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AUGUSTO COMTE E

O “POSITIVISMO”
REDESCOBERTOS
Apartado realizado por el Sistema de Bibliotecas de la Universidad
Andrés Bello con fines académicos. Autorizado según Ley Nº 20.435
artículo 71K.

De Lacerda, G. B. (2009). Augusto Comte e o “positivismo”


redescobertos. Revista de Sociologia e Política, 17(34), 319–
343. https://doi.org/10.1590/s0104-44782009000300021
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO”


REDESCOBERTOS

Gustavo Biscaia de Lacerda

RESUMO

Neste ensaio abordamos algumas pesquisas que, nos últimos dez anos ou mais, têm recuperado a obra do
fundador do Positivismo, Augusto Comte. Essa recuperação consiste em perceber os trabalhos de Comte em
sua inteireza e a partir de sua lógica interna, enfatizando em particular a sua segunda grande obra, o
Système de politique positive (1851-1854), e as suas contribuições para a reflexão social e política contem-
porânea. A fim de tornar inteligível a novidade dessas novas pesquisas, apresentamos uma das narrativas-
padrão a respeito de Comte e do Positivismo – no caso, a partir dos escritos de Anthony Giddens –; além
disso, fazemos uma discussão sobre o significado da palavra “Positivismo” e as várias correntes teóricas
subsumidas em tal expressão.
PALAVRAS-CHAVE: Positivismo; Augusto Comte; Système de politique positive; Anthony Giddens; Círculo
de Viena.

FÉDI, Laurent. 2008. Comte. São Paulo: Estação Liberdade.


GRANGE, Juliette. 1996. La philosophie d’Auguste Comte. Science, politique, religion. Paris : PUF.
TISKI, Sérgio. 2007. A questão da moral em Augusto Comte. Londrina: UEL.

I. INTRODUÇÃO de philosophie positive (1830-1842) e Cathéchisme


positiviste (1852) e dos menos famosos Système
É mais ou menos consensual no âmbito das
de politique positive (1851-1854), Appel aux
Ciências Sociais que a palavra “Positivismo” tem
conservateurs (1855) e Synthèse subjective (1856),
um significado negativo, assim como que já pos-
além de algumas outras publicações menores e de
suiu um significado positivo. Acompanhar a mu-
extensa correspondência. A relação que se esta-
dança de valoração dessa palavra é historiar uma
belece entre a filosofia do francês Comte – cha-
parte importante da história das Ciências Sociais
mada de “filosofia positiva” ou “Positivismo” – e
no Brasil e no mundo ao longo do século XX e
as várias correntes denominadas de “Positivismo”
início do século XXI. Por outro lado, o conteúdo
baseia-se em diversas possibilidades: a primeira,
desse “Positivismo” não é algo consensual nem
claro, é a identidade de nome em diversas situa-
muito menos preciso, variando desde a equiva-
ções; em seguida, alguns vínculos históricos (te-
lência à reação política da burguesia (com Lênin)
óricos e políticos) entre eles; por fim, mera ex-
até à razão instrumental que desumaniza (com a
tensão ou ampliação de sentido. Além disso, a crer
Escola de Frankfurt); no Brasil, também são fre-
em alguns abalizados pesquisadores da história da
qüentes as afirmações de que “os positivistas”
Sociologia – pensamos em Anthony Giddens –,
estiveram na raiz do regime militar de 1964. De
há mais continuidades que rupturas entre uma
lambujem, afirma-se que o Positivismo Jurídico,
forma e outra, sendo possível caracterizar o se-
o Comportamentalismo psicológico, o Positivismo
gundo como um prenúncio do primeiro.
na História são variações, ou melhor, aplicações
do Positivismo original, vinculado à Filosofia e à Essa caracterização é tanto mais incorreta
Sociologia. quanto a influência exercida pelo “Positivismo”
“filosófico” no Brasil foi enorme: basta pensar na
Em quaisquer dessas hipóteses, a origem do
constante referência ao lema da bandeira nacio-
“Positivismo” é atribuída ao francês Augusto
nal, o “Ordem e Progresso”. Ora, passar de uma
Comte (1798-1857), autor dos famosos Système
influência tal que permitiu a inscrição no pavilhão

Recebido em 11 de agosto de 2009.


Aprovado em 30 de agosto de 2009.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 34, p. 319-343, out. 2009
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nacional do lema do “Positivismo” “filosófico” para Política e Social. Considerando que o grande
a confusão corrente e a subsunção dessa “varie- arquiinimigo de várias das principais correntes
dade” de “Positivismo” ao “intelectual” revela teóricas nas Ciências Sociais é, precisamente, o
muito não apenas dos hábitos intelectuais brasilei- “Positivismo”, recuperar e discutir o pensamento
ros quanto indica os descaminhos da história das do próprio Comte é participar de maneira mais
Ciências Sociais e da História das Idéias, de modo adequada, porque mais qualificada, das polêmi-
geral, ao longo do século XX. cas teórico-metodológicas e políticas contempo-
râneas. Além disso, retirada a extensa camada crí-
As vinculações indicadas acima constituem
tica sobreposta à obra comtiana, é possível per-
uma sugestão teórica – uma hipótese de pesquisa
ceber que, de fato, essa obra apresenta elementos
–, que começaria com a leitura do texto original
efetivos para os debates teóricos, metodológicos
de Comte e avançaria pelas diversas correntes auto
e políticos atuais.
ou heterodenominadas de “positivistas”, passan-
do pelos críticos do “Positivismo”. Esse percur- Dessa forma, antes de discutirmos os livros
so não apresenta nenhuma grande inovação indicados acima, é necessário examinarmos duas
metodológica, consistindo apenas no exame das outras questões, intimamente relacionadas: 1) quais
perspectivas teóricas e metodológicas de uma e o que são os “positivismos”? 2) Do que o
extensa literatura filosófica e sociológica: todavia, “Positivismo” é acusado? Essas questões não são
é curioso que ele não seja realizado, sendo mes- secundárias; considerando que desde há algumas
mo desprezado. Um passar de olhos em parte décadas o “Positivismo” é “outro” teórico contra
importante da literatura teórica das Ciências Soci- o qual por assim dizer todos batem-se, variados
ais contenta-se 1) em estabelecer a relação entre sentidos do “Positivismo” produzem variadas im-
Comte e os demais “positivismos” a partir da co- plicações.
incidência de nomes e 2) em repetir lugares-co-
Este artigo terá a seguinte estrutura. Como o
muns a respeito do “Positivismo” (em particular
presente tema é a recuperação da obra de Comte,
com um juízo de valor negativo).
em um primeiro momento examinaremos algumas
Embora tais relatos, de boa ou de má-fé, pos- formas usuais de abordá-lo nas Ciências Sociais
sam multiplicar-se bastante, é digno de nota que – em particular, na obra de Anthony Giddens, que
diversos pesquisadores, em vários países, têm apresenta um caráter paradigmático a respeito. O
investigado diretamente a obra de Comte e chega- exame das exposições de Giddens servirá como
do à conclusão simples de que a maior parte das fio condutor para uma outra discussão: o exame
relações entre o Positivismo comtiano e os das variedades do “Positivismo”, ou seja, a deter-
“positivismos” atuais consiste apenas em coinci- minação do que se entende por essa palavra nos
dência terminológica. debates das Ciências Sociais. Esse procedimento
facilitará a compreensão e a avaliação de algumas
Neste ensaio bibliográfico trataremos de algu-
das recentes obras que têm recuperado o pensa-
mas das mais representativas dessas pesquisas que
mento comtiano; por fim, faremos alguns con-
recuperam o pensamento original de Comte: de
clusões gerais.
Laurent Fédi, Comte (2008); de Juliette Grange,
La philosophie d’Auguste Comte. Science, II. UM ANTIPOSITIVISTA PARADIGMÁTICO:
politique, religion (1996), e, de Sérgio Tiski, A GIDDENS
questão da religião em Augusto Comte (2008).
Como indicamos acima, não é novidade que a
Preocupados com questões diversas mas coinci-
palavra “Positivismo” atualmente carrega um va-
dindo em aspectos importantes, esses livros ca-
lor semântico bastante negativo. Entre a confu-
racterizam-se pelo fato de tomarem como objeto
são terminológica a respeito da palavra
de análise o pensamento de Comte em si mesmo,
“Positivismo” e a crítica mais ou menos informa-
sem deixarem de apresentar diálogos com ques-
da a respeito de Comte, várias são as correntes
tões atuais e sem deixarem de lado perspectivas
teóricas que se encarrega(ra)m de combatê-lo, a
“críticas”.
partir das mais variadas perspectivas, entre as quais
“Recuperar” o pensamento de Comte é impor- podemos citar o marxismo, o pós-modernismo, a
tante por outro motivo, além de fazer justiça ao Sociologia Compreensiva. Como é evidente, cada
fundador da Sociologia em pesquisas de Teoria uma delas mobiliza diferentes pressupostos filo-

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sóficos, a partir de suas preocupações políticas e que Comte foi um dos pensadores do século XIX
intelectuais, o que resultaria em discussões muito que, impressionado com o desenvolvimento das
maiores das que podemos, no espaço de um arti- ciências naturais em sua época, decidiu adotar os
go, realizar. procedimentos dessas mesmas ciências para es-
tudar a sociedade; essa proposta, além disso, se-
Ainda assim, a tarefa impõe-se; cumpre exa-
ria movida por um desejo similar de aplicação prá-
minar alguns dos argumentos sobre Comte nas
tica dos conhecimentos científicos, resumido na
apresentações críticas a seu respeito. A fim de
fórmula “prévoir pour pouvoir” (“prever para
facilitar, uma exposição sistemática da história da
poder”). A metodologia por assim dizer
Sociologia, informada por um projeto teórico-
“naturalística” seria caracterizada pela busca de
metodológico, é o que nos interessa; assim, para
leis naturais (sociais) e foi posteriormente reto-
os fins desta discussão, escolhemos Anthony
mada e formulada na regra durkheimiana de “con-
Giddens, autor de inúmeras obras de referência
ceber os fatos sociais como coisas” (idem, p. 12-
em Teoria Social e em história da Sociologia. Cer-
13). Em seguida, Giddens rejeita a aproximação
tamente esse famoso sociólogo não é o único que
das ciências sociais às ciências naturais por duas
comete os erros que indicaremos; além disso, não
ordens de motivos: 1) “we cannot approach
pretendemos negar a importância de várias de suas
society, or ‘social facts’, as we do objects or
pesquisas nem, por outro lado, torná-lo uma es-
events in the natural world, because societies only
pécie de bode expiatório teórico; contudo, sendo
exist in so far as they are created and re-created
ele o autor da atual narrativa-padrão da história da
in our own actions as human beings. [...] We have
Sociologia (segundo suas próprias palavras:
to grasp what I would call the double involvement
GIDDENS & PIERSON, 1998, p. 45), autor de
of individuals and institutions: we create society
numerosos manuais ou livros em que aborda o
at the same time as we are created by it” (idem, p.
conjunto das teorias sociológicas e políticas e, por
13-14; grifos no original); 2) “[...] the practical
fim, devido ao caráter sistemático dos erros so-
implications of sociology are not directly parallel
bre Comte (e o “Positivismo”) que comete e ten-
to the technological uses of science, and cannot
do várias de suas objeções repetidas por outras
be. [...] As human beings, we do not just live in
escolas sociológicas, vale a pena elegê-lo como
history; our understanding of history is an inte-
exemplar.
gral part of what history is, and what it may
Com uma extensa obra, para os nossos fins become. This is why we cannot be content with
podemos simplificadamente afirmar que Giddens Comte’s idea of Prévoir pour pouvoir, seen as
possui livros de história da Teoria Social e livros social technology” (idem, p. 14-15)1. Em outras
dedicados às suas próprias elaborações sociológi- palavras, as suas objeções consistem em, por um
cas; são principalmente os primeiros os que nos lado, afirmar a particularidade das Ciências Soci-
interessam, em particular Giddens (1985; 1998; ais em relação às Ciências Naturais via reflexividade
2000). Escritos mais ou menos na mesma época, do ser humano e, por outro lado, que essa
esses relatos têm as características de 1) basea-
rem-se na leitura de poucas obras de Comte, 2)
usarem largamente opiniões de segunda mão (em 1 Tradução livre dos dois trechos: 1) “não podemos abor-
particular, Durkheim e Stuart Mill), 3) simples- dar a sociedade, ou os ‘fatos sociais’, como fazemos com
mente desconsiderar os argumentos do próprio objetos ou eventos do mundo natural, pois as sociedades
somente existem na medida em que elas são criadas e recri-
Comte, 4) de modo a poder encaixar forçadamente
adas por nossas próprias ações como seres humanos. [...]
Comte em categorias que Giddens deseja comba- Nós temos que adotar o que eu chamaria de duplo
ter. envolvimento de indivíduos e instituições: criamos a socie-
dade ao mesmo tempo que somos criados por ela”; 2) “as
II.1. Comte como promotor da tecnologia social implicações práticas da Sociologia não são diretamente
não-reflexiva paralelas aos usos tecnológicos da ciência e não podem ser.
Tomemos, por exemplo, o pequeno manual [...] Como seres humanos, nós não vivemos simplesmente
na história; nosso entendimento da história é uma parte
Sociology – A Brief but Critical Introduction integral do que a história é e do que ela pode tornar-se. É
(GIDDENS, 1982). As referências a Comte ocu- por isso que não podemos contentarmo-nos com a idéia de
pam quatro páginas (idem, p. 12-15), em que Comte de Prévoir pour pouvoir, vista como tecnologia
Giddens segue este percurso: inicialmente, afirma social”.

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reflexividade não permite uma “tecnologia social” ticipar do poder Temporal: essa restrição não foi
semelhante à engenharia (que é uma forma de feita no sentido de tornar o Estado incompetente
“tecnologia física”)2. ou irresponsável, mas para que os formuladores
da opinião pública permaneçam como
Pois bem: ambas as objeções são incorretas.
formuladores da opinião pública, sem confundi-
Não que sejam erradas em si, mas é incorreto atri-
rem as opiniões sob sua responsabilidade com
buí-las a Augusto Comte, que foi muito claro a
projetos de tomada do poder – o que, não rara-
seu respeito: por um lado, o caráter reflexivo do
mente, podem tornar-se imposição da opinião e
ser humano foi desde o início afirmado por ele e,
censura; uma outra possibilidade da imposição
no fundo, a lei dos três estados pressupõe-na; ali-
política do saber sociológico são as tecnocracias3
ás, o caráter específico do ser humano em rela-
– ou, nos termos de Comte, a “pedantocracia”4.
ção aos outros animais consiste, acima de tudo,
em seu caráter histórico, que não é dado simples- II.2. A retórica da loucura
mente pela acumulação de “materiais” geração após
Vejamos outro texto de Giddens: “Augusto
geração, mas pela reflexividade de cada geração a
Comte e o Positivismo”, publicado no Brasil em
respeito das anteriores e – algo fundamental para
2000 (GIDDENS, 2000), mas consistindo de fato
as discussões sociais contemporâneas – também
na republicação de um artigo de 1982. Esse artigo
a respeito das vindouras.
de pouco mais de 11 páginas pretende fazer uma
Por outro lado, a Sociologia existe para ter fins apresentação geral da importância teórica de
práticos. Esses fins “práticos” são, por um lado, Comte, ajuntando aos comentários propriamente
intelectuais e morais: ter uma compreensão da teóricos algumas observações biográficas relevan-
realidade (cósmica e social) é importante para a tes. Cumpre reconhecermos desde já um argu-
harmonia mental de cada indivíduo; por outro lado, mento, na verdade mais uma pequena indicação,
os fins “práticos” são políticos: para Comte, o bastante iluminadora e até simpática de Giddens a
conhecimento elaborado pelos sociólogos deve ser respeito da obra de Comte: a contraposição
aplicado politicamente sob a forma de conselhos estilística das duas grandes obras comtianas – o
práticos, não de engenharia social. A divisão entre Système de philosophie positive5 (1830-1842) e o
os poderes Temporal e Espiritual é o maior resul- Système de politique positive (1851-1854)6 – re-
tado disso: o poder Temporal – grosso modo, o vela uma alteração fundamental. Enquanto a
Estado – deve conhecer a sociedade para saber
como lidar com ela: por exemplo, respeitando as 3 Jean Lacroix (2003, p. 101) compreendeu esse aspecto
famílias, respeitando as várias tradições, permi- do pensamento comtiano, ao comentar com clareza e sim-
tindo as várias liberdades, em particular as de pen- plicidade que “sua [de Comte] concepção de poder Espiri-
samento e de expressão etc. Por outro lado, o tual afastava-o [...] de qualquer tendência tecnocrática”
poder Espiritual pode ser também chamado – lite- (LACROIX, 2003, p. 101).
ralmente – de “sociedade civil” e consiste em uma 4 Uma das conseqüências do caráter sistêmico do pensa-
série de órgãos formuladores da opinião pública, mento comtiano é que, embora em cada capítulo de suas
capaz de orientar a ação do Estado e, acima de obras ele tratasse em particular de determinadas questões,
tudo, de estabelecer limites para ela (o que inclui a essas mesmas questões eram discutidas sob outras pers-
pectivas em outros capítulos, dedicados a outros temas;
(des)legitimação). O que é importante assinalar é
assim, não apenas a quantidade de citações possíveis para
que os sociólogos (ou, sendo mais correto a res- cada tema é enorme como a complexidade das perspectivas
peito da terminologia comtiana, os sacerdotes) também é grande – o que torna a apresentação de suas
devem permanecer no poder Espiritual e não par- idéias uma tarefa sempre exigente. Essa constatação é feita
por todos os especialistas no pensamento comtiano (cf.,
por exemplo, GRANGE, 1996; LACROIX, 2003; GANE,
2 Um pouco adiante ele comenta que “[...] sociological 2006; FÉDI, 2008).
analysis teaches sobriety. For although knowledge may be 5 Originalmente chamado de Cours de philosophie positive,
an important adjunct to power, it is not the same as power.
foi alterado para “Système” em 1848 (cf. COMTE, 1957,
And our knowledge of history is always tentative and
p. 3).
incomplete” (GIDDENS, 1982, p. 15) (“[...] a análise soci-
ológica ensina a sobriedade. Pois embora o conhecimento 6 Para simplificar a redação, adotaremos as formas
possa ser um importante adjunto do poder, ele não é a simplificadas de “Philosophie” para referirmo-nos ao
mesma coisa que o poder. E o nosso conhecimento da his- Système de philosophie positive e de “Politique” para as
tória é sempre tentativo e incompleto”). referências ao Système de politique positive.

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Philosophie foi redigida em um estilo sóbrio e al- tual; foram suicidas ou homicidas Roland Barthes,
tamente impessoal, embora a vida pessoal e pro- Nicos Poulantzas e Louis Althusser; Georg Lukács
fissional de Comte estivesse profundamente atri- abjurou inúmeras vezes perante Stálin e sua cor-
bulada, a Politique foi redigida de maneira pesso- te; Sartre fazia da promiscuidade sexual e intelec-
al e “apaixonada”, indicando uma grande altera- tual um valor moral e político; last but not the
ção pessoal e profissional e, do ponto de vista te- least, não podemos esquecer os nazistas Carl
órico, uma inflexão importante (GIDDENS, 2000, Schmidt e Martin Heidegger, que, após a queda
p. 223). O curioso, quase chocante, é que essa do III Reich, encerraram-se em silêncios obse-
indicação notável é uma exceção em um artigo quiosos mas sem jamais renegarem os passados
profundamente antipático; mas como ninguém é nacional-socialistas. Esses dados biográficos cos-
obrigado a ter simpatia por ninguém, a questão tumam aparecer apenas a título de introdução bi-
importante é outra: a antipatia de Giddens é ográfica quando tratamos de cada um dos auto-
“justificada” por deturpações e más-interpretações res em questão, mas um exame aprofundado das
reiteradas. condições de sanidade dos teóricos sociais ainda
está por ser feito – exame que, como se pode
Comecemos por um mito bastante difundido:
perceber, não é nem um pouco ocioso, tal a inci-
a “loucura” de Comte. Giddens fala em “vida des-
dência de problemas ou distúrbios psicológicos
regrada” (idem, p. 217), “períodos de loucura”
ou emocionais. A despeito dos problemas de to-
(no plural) (idem, p. 218), “estranhos excessos”
dos esses autores, os comentadores, exegetas e
da Politique (idem, p. 221), “decadência melan-
discípulos de variados estilos não costumam le-
cólica de um grande intelecto” (ao referir-se no-
var em consideração tais aspectos biográficos, pois
vamente à Politique) (Stuart Mill apud GIDDENS,
assumem que não interferem na produção teórica
2000, p. 223). Essas quatro observações – devi-
ou até mesmo que, se interferirem, não têm im-
damente feitas sem referências bibliográficas –
portância negativa para a sua validade intelectual.
causam a profunda impressão de que a obra de
Assim, apresenta-se com clareza a seguinte ques-
Comte, em particular a de sua fase mais madura,
tão: por que a gritante duplicidade de critérios em
foi o resultado da especulação de um lunático. Isso
que se considera que a “loucura” de Comte é pre-
é um recurso retórico próximo ao sofisma ad
judicial mas os sérios problemas emocionais e
hominem, em que a argumentação teórica e
psicológicos de todos os demais autores não o é?
empírica é substituída pela crítica ao autor; além
Parece-nos que a resposta é simples: além de sim-
disso, esse procedimento é particularmente espe-
ples hipocrisia, trata-se do recurso sistemático ao
cioso, porquanto inúmeros pensadores e teóricos
já citado sofisma ad hominem como estratégica
das Ciências Sociais foram “loucos”, “desregra-
retórica para desqualificar o pensamento de
dos”, mau-caracteres ou simplesmente tiveram
Augusto Comte8.
sérios problemas emocionais e psicológicos. Ve-
jamos alguns: o atualmente tão festejado Friedrich Mas, a despeito de sua irrelevância para a prá-
Nietzsche era louco ou catatônico, alternando fa- tica intelectual, é importante considerar a tese da
ses mais ou menos lúcidas a longos períodos anor- loucura em si mesma, pelo que ela revela e devido
mais; Karl Marx tinha esposa e amante e estupra- às clivagens que surgem a partir dela na avaliação
va ambas, além de difundir mentiras a respeito de da obra de Comte; para isso, é necessário apre-
seus inimigos políticos para desmoralizá-los7; Max sentarmos um pequeno resumo biográfico do pen-
Weber teve um colapso nervoso e desde cerca de sador francês.
1900 até sua morte, em 1920, esteve incapaz de
lecionar oficialmente (embora extra-oficialmente
tenha lecionado em diversas instituições do mun-
do germanófono); John Stuart Mill passou por uma 8 Talvez a observação acima cause espanto ou estranheza.
severa depressão no meio de sua carreira intelec- Mas, parece-nos, isso é mais devido a uma sistemática
ausência de uma Sociologia das Ciências Sociais que por
qualquer outro motivo. De qualquer forma, tal empreendi-
mento não seria difícil de realizar: do ponto de vista teóri-
7 Referências úteis sobre a biografia de Marx podem ser co-metodológico, uma combinação entre alguns estudos de
encontradas nas obras dos anarquistas, adversários políti- Pierre Bourdieu (2004) e de Quentin Skinner (2002, espe-
cos e teóricos de Marx quando este vivia; cf., por exemplo, cialmente cap. 2-6) permitiriam um excelente ponto de
Bakunin (2001). partida.

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Tendo nascido em 1798 em Montpellier, no Clotilde de Vaux. Essa moça, com cerca de 30
Sul da França, Augusto Comte foi sozinho para anos de idade, tinha uma situação marital seme-
Paris durante a adolescência para estudar na École lhante à de Comte, pois que fora abandonada por
Polytechnique. Devido a problemas políticos, foi um marido devedor e caloteiro – e, assim, fugiti-
expulso desse estabelecimento, voltou por um vo da polícia. Comte apaixonou-se por ela, man-
curto período para Montpellier e fixou residência, tendo um relacionamento platônico a partir de
afinal, em Paris em 1816. Para manter-se, lecio- 1845; ela, de início assustada, paulatinamente pas-
nava Matemática como professor particular e, sou a respeitar e até a corresponder ao afeto. Com
durante alguns anos, foi secretário de Saint-Simon; tuberculose, em 1846 Clotilde de Vaux faleceu.
ainda assim, sua vida era financeiramente austera Esse breve e intenso relacionamento marcou uma
e sua disciplina intelectual, bastante rigorosa. Eis inflexão fundamental na obra de Comte, que a partir
que, em 1825, casou-se com Carolina Massin; essa dali passou a enfatizar mais os sentimentos e me-
moça, inteligente e um pouco mais jovem que o nos a inteligência; ou melhor, subordinou a inteli-
próprio Comte, era uma prostituta a quem o pen- gência aos estímulos afetivos (altruístas ou ego-
sador, solitário em Paris, resolveu auxiliar via ca- ístas). Não somente ocorreu um redirecionamento
samento (em caso contrário, ela seria presa devi- teórico como a própria produção de Comte inten-
do às suas atividades profissionais), esperando sificou-se: em 1848 ele redigiu dois livros, Discours
uma retribuição na forma de companheirismo e, sur l’esprit positive (COMTE, 1990) e o Discours
claro, fidelidade. É perfeitamente possível afirmar sur l’ensemble du Positivisme (COMTE, 1957)9;
que tal ação foi um excesso romântico: mas, em- depois, entre 1851 e 1854 redigiria os quatro vo-
bora o procedimento de Comte tenha sido eviden- lumes da Politique (COMTE, 1890); em 1853, o
temente ingênuo, em si não foi ruim, ou melhor, Cathéchisme positiviste (COMTE, 1934); em 1855,
não representou demência, loucura ou desequili- o Appel aux conservateurs (COMTE, 1899) e, em
bro mental, mas simples inexperiência de vida, além 1856, o volume I e único dos quatro planejados
de indicar generosidade pessoal. Carolina Massin, da Synthèse subjective (2000b), além de sua ex-
todavia, não correspondeu aos anseios de Comte, tensa correspondência. Essa fase marca a afir-
pois que sistematicamente o traía, retornando aos mação do “método subjetivo” e da criação da Re-
seus hábitos profissionais anteriores; da mesma ligião da Humanidade.
forma, ela insistia em que Comte deveria usar seus
A passagem do Positivismo “filosófico” para
talentos intelectuais para ganhar dinheiro, sem
o “religioso” produziu dissensões ou “deserções”,
maiores preocupações com o projeto intelectual
como a indicada por Giddens a respeito de Stuart
que ele desenvolvia. Essa situação tornou-se in-
Mill (apud GIDDENS, 2001, p. 223): “decadên-
sustentável e, em meados de 1826, a combinação
cia melancólica de um grande intelecto”. Comte
da penúria material com o descaso intelectual e as
morreu prematuramente em 1857, deixando seus
traições da esposa, além dos esforços intelectuais
bens (aí incluídos os direitos autorais de suas
próprios – em 1826 Comte deu início à apresen-
obras) para um grupo de 13 executores-
tação oral e pública do seu Curso de filosofia po-
testamenteiros. Logo em seguida, a viúva, Caroli-
sitiva –, resultaram em um sério esgotamento ner-
na Massin, procurou leiloar todos os bens de
voso, que chegou ao ponto de uma tentativa de
Comte e anular o testamento, o que iniciou um
suicídio. Nos dois anos seguintes Comte recupe-
processo judicial que se estendeu até 1870. Esse
rou-se paulatinamente desse episódio, retomou
processo visava a permitir que Massin editasse as
suas atividades e, em 1830, iniciou a publicação
obras de Comte, retirando as várias referências
da Philosophie, projeto que só se completou em
elogiosas a Clotilde de Vaux e as referências nega-
1842, quando se separou de Carolina Massin (em-
tivas a ela própria; além disso, em associação com
bora restrita à separação de corpos e mantendo
o ex-discípulo de Comte, o dicionarista Littré,
uma pensão vitalícia).
pretendia permitir a publicação apenas do que fora
Ao longo da década de 1840, Comte estava escrito durante a convivência conjugal (essenci-
sozinho e com suas dificuldades financeiras, ao almente a Philosophie), classificando, não por
mesmo tempo que se preparando para avançar em
suas elaborações intelectuais. Enquanto descan-
sava e refletia para o que seria a sua Politique, 9 O Discours sur l’ensemble seria incorporado ao volu-
conheceu a irmã de um de seus alunos em 1844: me I da Politique, a título de “Prefácio geral”, em 1851.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

acaso, de “produto de loucura” tudo aquilo que vista por Comte “com desdém” (GIDDENS, 2001,
foi escrito depois da separação conjugal. O resul- p. 222). A referência à proposta de matematização
tado desse longo litígio foi que, com base em lau- da sociedade é correta, mas o “desdém” afirmado
dos médicos, em testemunhos e na análise do tes- por Giddens sugere algo como ciúme profissio-
tamento, a Justiça da França deu ganho de causa nal, ou seja, uma motivação mesquinha, além de
aos executores-testamenteiros, recusando assim intelectual e teoricamente pobre. Essa insinuação
a tese da loucura (cf. LACERDA NETO, 2004, p. é incorreta: ao insistir em seu projeto específico
211-219). de ciência da sociedade, a preocupação de Comte
era preservar a especificidade teórico-metodológica
Retomando a discussão anterior: o que Giddens
da Sociologia, indicando que ela é irredutível às
(2001) faz, ao retomar o tema da loucura de
demais ciências tanto em termos de objeto quanto
Comte, é adotar um discurso que visa a
de método – o que, no caso da proposta de
desqualificar de maneira rápida e superficial a obra
Quételet, a intenção era evitar que a ciência social
religiosa de Comte, pois que não a examina em
fosse reduzida, desde o início, à sociometria. Mais
momento algum, e reduzindo o corpus comtiano
ainda: em vez de a Sociologia (e, por extensão, as
à Philosophie – e, ainda por cima, a partir de um
Ciências Humanas) dever subordinar-se às Ciên-
relato sórdido10.
cias Naturais, seriam estas que deveriam subordi-
II.3. Filosofia das Ciências nar-se teoricamente à Sociologia, a partir de uma
perspectiva que hoje chamaríamos de
Vimos acima que várias das opiniões atribuí-
transdisciplinar, radicalmente humanista (esse é o
das por Giddens a Comte não procedem; essas
sentido da “síntese subjetiva” de Comte).
opiniões supostamente se refeririam à obra valo-
rizada com a acusação de loucura, ou seja, refe- A Politique assume que a Sociologia já foi cri-
rem-se à Philosophie. Em que consistiu essa vo- ada e, a partir disso, consiste em um
lumosa obra escrita em 12 anos e seis volumes? aprofundamento sistemático dessa perspectiva
Em um exame sistemático das ciências abstratas humanista (COMTE, 1890, v. I, Préface; v. III,
constituídas até então, de acordo com a “escala Préface), por assim dizer “subjetivista” e
enciclopédica” de Comte; a seqüência seria a se- “qualitativista”, das teorias sociológicas. Tal
guinte: Matemática, Astronomia, Física, Química aprofundamento considera, por um lado, as insti-
e Biologia. Esse exame das ciências não era um tuições comuns a todas as sociedades humanas
fim em si mesmo, mas um meio para um fim (religião, família, linguagem, propriedade, gover-
ambicioso: a constituição da ciência da socieda- no) – é a Estática Social, apresentada no volume
de, inicialmente chamada de “Física Social” e de- II – e as mudanças por que essas instituições pas-
pois renomeada para “Sociologia”. Os três pri- saram ao longo da história e suas inúmeras
meiros volumes foram dedicados a essa progres- interações (“reflexivas”, para usar o jargão de
são de ciências preliminares; já os três últimos Giddens) – é a Dinâmica Social, do volume III da
trataram da definição do objeto e do método da Politique. O volume I da Politique apresenta, em
nova ciência, incluindo aí as tentativas anteriores suma, considerações epistemológicas diversas; já
e as principais questões teóricas (especificamen- o volume IV apresenta um quadro geral do que
te, a Estática e a Dinâmica sociais). seria a sociedade ideal, em que o ser humano pode
realizar-se ao máximo de acordo com as suas
Convém notarmos que, a propósito da mudan-
potencialidades reveladas historicamente: é, lite-
ça de nome da Sociologia, Giddens afirma que foi
ralmente, a utopia positivista. Nesses livros Comte
devida ao projeto de estatística social de Quetélet,
discute concepções de justiça social, de liberda-
des públicas e assim por diante (cf., por exemplo,
10 Pode parecer estranho o uso de expressões como “sór- LACERDA, 2004; 2008a; 2008b; 2009a).
dido” em um artigo científico de Teoria Social; entretanto, Essa digressão foi necessária para indicar qual
não apenas não é possível qualificar de outra forma o epi- o sentido dos relatos de Giddens: é afirmar um
sódio como, por outro lado, o próprio Comte afirmava que
Augusto Comte “cientificista”, “naturalista”, mes-
não se pode conhecer a realidade social sem a referência a
valores (COMTE, 1890, v. II, cap. 1, 4); por fim, a com- mo “quantitativista”. Veremos em detalhes na pró-
preensão das várias fases da carreira comtiana não é possí- xima seção que, para Giddens, qualquer
vel sem a adoção de juízos de valor (como mesmo Giddens “Positivismo” tem necessariamente tais caracte-
implicitamente admite). rísticas; aqui ainda importa contrapor algumas das

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AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

perspectivas sociológicas que Giddens atribui a conflitos entre as várias tradições: esses conflitos
Comte com o que o próprio Comte dizia. Assim, a são solucionados de acordo com as condições
respeito de Filosofia da Ciência: “O Curso [a sociais gerais e também com o confronto com a
Philosophie] apresenta uma extensa análise do realidade cósmica. A relação causal geral, portan-
desenvolvimento das ciências como preâmbulo to, não é da ciência para a sociedade, mas, ao
necessário ao seu programa prático por meio da contrário, da sociedade para a ciência: ou seja, os
tese de que a evolução progressiva, porém ordei- conhecimentos humanos desenvolvem-se confor-
ra, da ciência fornece o modelo para uma evolu- me as condições e as necessidades sociais. Os
ção paralela da sociedade como um todo. O que conflitos sociais não deixam de ser refletidos nos
diria Comte à moderna filosofia da ciência que, conflitos teóricos; além disso, o surgimento das
nos trabalhos de Bachelard, Kuhn e outros, su- ciências, embora tenha obedecido a uma seqüên-
plantou a evolução com a revolução bem no âma- cia histórica e lógica muito clara, nem por isso foi
go da própria ciência natural?” (GIDDENS, 2001, “contínuo”: basta ver que a Matemática e a Astro-
p. 224-225; grifo no original). Esse trecho apre- nomia surgiram na Antigüidade (egípcia e grega)
senta duas questões: por um lado, atribui a Comte e só foram decididamente retomadas após o
um relato da evolução das ciências segundo o qual Renascimento, havendo um enorme lapso que
ela teria sido “ordeira” e que, além disso, serviria compreende o Império Romano e a Idade Média
como modelo para o desenvolvimento social; por entre ambos os extremos. O comentário ligeiro
outro lado, contrapõe uma perspectiva de Giddens apresenta ainda dois problemas teóri-
“evolucionista” (Comte) a uma outra “revolucio- cos: em primeiro lugar, ele mistura a constituição
nária” (Bachelard, Kuhn) do desenvolvimento ci- de corpos teóricos abstratos a respeito de fenô-
entífico. Vejamos cada uma delas em separado. menos específicos com o desenvolvimento da
sociedade, ou, o que dá no mesmo, mistura o abs-
Para Comte, o desenvolvimento das ciências
trato com o concreto; em segundo lugar, ele pre-
não é “ordeiro”, isto é, isento de conflitos ou so-
tende invalidar uma observação teórica (abstrata)
bressaltos. Deixando de lado o fato de que atri-
apenas porque a realidade prática (concreta) é
buir a Comte um desenvolvimento “ordeiro” é uma
múltipla e variada – o que equivale a negar a (pos-
forma de torná-lo um apologeta da “ordem”, isto
sibilidade de) teoria com a platitude de que a “re-
é, um conservador ou mesmo um reacionário (cf.
alidade é inesgotável”.
GIDDENS, 2001, p. 222)11, a narrativa comtiana
do desenvolvimento das ciências é muito clara e A respeito da concepção de ciência de Comte
muito rica ao tratar dos conflitos teóricos entre face à concepção “moderna”. Deixando de lado
autores, escolas e “epistemes”. Antes de mais nada, os fatos de que Giddens propõe um evolucionismo
a lei dos três estados indica que as concepções canhestro (em que o que vem depois é sempre
humanas passam por três fases (teológica, melhor do que o que veio antes) e de que as con-
metafísica e positiva) e que há, precisamente, cepções “modernas” têm sempre um quê de sim-
ples modismo, tanto a concepção comtiana não é
“evolucionista” quanto o caráter “revolucionário”
11 No seguinte trecho, temos a clara impressão de que, atribuído às mudanças paradigmáticas é discutí-
segundo Giddens, Comte era um teórico exclusivamente da vel. Vimos acima que para Comte há uma estreita
“ordem”, um conservador, talvez um reacionário: “[...] o relação entre as condições sociais gerais e o de-
tipo de sociedade previsto por Comte com a garantia de senvolvimento do conhecimento em cada socie-
ambos, ordem e progresso, dava grande importância às ca- dade; mas, além disso, as passagens das concep-
racterísticas constantes dos trabalhos da ‘escola retrógra-
ções teológicas para as metafísicas e destas para
da’ [...], ainda que destituídas de associação específica com
o catolicismo” (GIDDENS, 2001, p. 222); aqui e ali Giddens as positivas são sempre “revolucionárias”, pois
usa a expressão “progresso com ordem” no mesmo senti- que envolvem amplas visões de mundo. Basta
do. Essas observações são chocantes à luz da defesa dou- pensar na passagem do modelo geocêntrico para
trinária que Comte fez dos direitos trabalhistas (incluindo o heliocêntrico: para Comte, o deslocamento do
o direito de greve), a radical liberdade de pensamento e de centro do universo teve conseqüências radicais,
expressão, do fim dos impérios coloniais (a começar pelo
tendo sido o responsável direto pela decadência
da França, em relação à Argélia), da defesa da justiça social
e do combate ao liberalismo laissez-faire e “burguesocrata”, intelectual da teologia. Mas, de maneira mais de-
do apoio aos proletários parisienses que se sublevaram no cisiva, a passagem das fases teológica e metafísica
início de 1848 e diversas outras medidas. para a positiva é muito mais importante; ela con-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

siste em passar do absolutismo filosófico para o trinsecamente a importância atribuída pelos


relativismo, nisso consistindo a “revolução mo- organizadores. Dessa forma, esse esforço de afir-
derna”, para Comte. mar a validade do uso do rótulo “Positivismo”
consiste em forçar a entrada de movimentos teó-
Mas a idéia de “revolução” na filosofia da ci-
ricos diversos em uma categoria única; importa
ência moderna não é unívoca. Antes de mais nada,
nisso muito menos as idéias de cada uma das teo-
convém elucidar o sentido das palavras “revolu-
rias reunidas do que o valor operatório do rótulo.
ção” e “evolução”. A “revolução” pode ser uma
mudança brusca (às vezes violenta) e/ou uma Ao definirmos a expressão “Positivismo”, é
mudança radical; a “evolução” pode ser uma mu- possível estabelecermos uma comparação com o
dança gradual e/ou uma mudança pacífica. Como “marxismo”: assim como há uma grande
Giddens adota a expressão “evolução” como equi- polissemia a respeito do marxismo, sendo neces-
valente epistemológico para “ordem” ou sário explicitar a qual marxismo faz-se referên-
“conservadorismo”, o que se depreende é que, cia, há também uma grande polissemia com o
para Comte, as mudanças teóricas são Positivismo. Entretanto, ao contrário do marxis-
incrementalistas e “controladas”. É difícil conce- mo, em que é possível – na verdade, é necessário
ber uma afirmação mais gratuita que essa, que – fazer de alguma forma referência a Marx, no
aprisiona em uma camisa de força a compreensão caso do Positivismo as referências necessárias a
da prática científica e teórica. Tanto Comte quan- determinados autores não são possíveis, ocorrendo
to Bachelard e Kuhn afirmam que as mudanças na prática ou a utilização de um rótulo ou a
científicas ocorrem de maneira incremental e de subsunção de perspectivas metodológicas (em al-
maneira abrupta; além disso, é há muito sabido guns poucos casos, teóricas) sob uma rubrica
que não é possível “controlar” as descobertas ci- comum. Embora nesses casos a referência a
entíficas, tanto no sentido socialmente disruptivo Augusto Comte seja corrente, ela não costuma
quanto no sentido da própria prática científica. ser fácil, simples ou, como veremos, justificada.
Em outras palavras, Giddens adota duas categori-
Em um esforço para elucidar esses diferentes
as desnecessariamente restritivas e excludentes
sentidos, Peter Halfpenny escreveu um opúsculo
para poder forçar Comte em uma delas, que são
chamado Positivism and Sociology
também as menos valorizadas.
(HALFPENNY, 1982), em que identificou 12 sen-
III. DIFERENCIANDO OS “POSITIVISMOS” tidos para a palavra “Positivismo”. Vejamos quais
são eles.
A concepção de um Comte “cientificista” de
Giddens torna-se mais clara no longo artigo 1. “Positivism1 is a theory of history in which
intitulado “Comte, Popper e o Positivismo” improvements in knowledge are both the
(GIDDENS, 1998). O objetivo desse texto é es- motor of progress and the source of social
clarecer o sentido da expressão genérica stability (Comte1).
“Positivismo”, indicando a descendência intelec-
2. Positivism 2 is a theory of knowledge
tual que vai de Comte a Mach, ao Círculo de Vie-
according to which the only kind of sound
na e a Popper, em termos de Filosofia das Ciênci-
knowledge available to humankind is that
as, e de Comte a Durkheim e ao funcionalismo,
of science grounded in observation (Comte2).
na Teoria Social. Esse artigo de Giddens, portan-
to, insere-nos em uma discussão mais ampla, que 3. Positivism3 is a unity of science thesis
já foi tratada por outros autores, embora não ne- according to which all sciences can be
cessariamente a respeito da Teoria Social. Pode- integrated into a single natural system
mos citar apresentações gerais do que é o (Comte3).
“Positivismo”, além da de Giddens, as de 4. Positivism4 is a secular religion of humanity
Kolakowski (1976) e de Arana (2007), que são devoted to the worship of society (Comte4).
sucintas e bastante informativas. Todas elas, no
entanto, apresentam um grave defeito: no esforço 5. Positivism5 is a theory of history in which
de buscar um denominador comum para a ex- the motor of progress that guarantees the
pressão “Positivismo”, deixam de lado importan- emergence of superior forms of society is
tes aspectos particulares de cada teoria ou escola competition between increasingly
e realçam outros aspectos que não possuem in- differentiated individuals (Spencer).

327
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

6. Positivism 6 is a theory of knowledge A relação acima é bastante esclarecedora; em-


according to which the natural science of bora apresente alguns problemas sérios 13 ,
sociology consists of the collection and Halfpenny esclarece que há inúmeras formas de
statistical analysis of quantitative data about “Positivismo” que não se referem (diretamente) a
society (Durkheim). Augusto Comte – no caso, oito em 12, isto é, dois
terços. Além dos sentidos 1 a 4, poderíamos tam-
7. Positivism 7 is a theory of meaning,
bém incluir na rubrica comtiana o nono, relativo
combining phenomenalism and logicistic
às leis naturais.
method, and captured by the principle of
verifiability, according to which the meaning Parece claro que a relação acima está longe de
of a proposition consists in its method of esgotar o assunto; além dos sentidos habituais re-
verification (logical positivism1). lativos à Sociologia e à Filosofia das Ciências, po-
demos incluir alguns outros. Nesse sentido, é ne-
8. Positivism 8 is a programme for the
unification of sciences both syntactically and
semantically (logical positivism2).
9. Positivism 9 is a theory of knowledge garante o surgimento de formas superiores de sociedade é a
according to which science consists of a competição entre indivíduos crescentemente diferenciados
corpus of interrelated, true, simple, precise (Spencer). O Positivismo 6 é uma teoria do conhecimento
de acordo com a qual a ciência natural da Sociologia consis-
and wide-ranging universal laws that are
te na coleção e na análise estatística de dados quantitativos
central to explanation and prediction in the sobre a sociedade (Durkheim). O Positivismo 7 é uma teo-
manner described in the D-N [deductive- ria do significado, combinando métodos fenomenológicos e
nomological] schema (Hempel). lógicos e obtida pelo princípio da verificabilidade, de acor-
do com o qual o significado de uma proposição consiste em
10. Positivism10 is a theory of knowledge seu método de verificação (Positivismo Lógico 1). O
according to which science consists of a Positivismo 8 é um programa para a unificação das ciênci-
corpus of causal laws on the basis of which as, tanto sintática quanto semanticamente (Positivismo
phenomena are explained and predicted. Lógico 2). O Positivismo 9 é uma teoria do conhecimento
de acordo com a qual a ciência consiste em um corpus de
11. Positivism11 is a theory of scientific method leis universais interrelacionadas, verdadeiras, simples, pre-
according to which science progresses by cisas e de amplo alcance que são centrais para a explicação
inducting laws from observational and ex- e para a previsão, à maneira descrita pelo esquema DN
[dedutivo-nomológico] (Hempel). O Positivismo 10 é uma
perimental evidence (Bacon).
teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência
12. Positivism12 is a theory of scientific method consiste em um corpus de leis causais, a partir dos quais os
according to which science progresses by fenômenos são explicados e previstos. O Positivismo 11 é
uma teoria do método científico de acordo com a qual a
conjecturing hypotheses and attempting to
ciência progride por meio de leis indutivas a partir de pro-
refute them, so that false conjectures are vas observacionais e experimentais (Bacon). O Positivismo
eliminated and corroborated ones retained 12 é uma teoria do método científico de acordo com a qual
(Popper)” (idem, p. 114-115; sem grifos no a ciência progride conjecturando hipóteses e tentando refutá-
original)12. las, de modo que as conjecturas falsas são eliminadas e as
corroboradas são retidas (Popper)”.
13 Por exemplo: afirmar que a Sociologia de Durkheim é
12 No original, essa relação consiste de apenas um único e particularmente quantitativa, o que é verdade em particular
longo parágrafo, que dividimos para facilitar a compreen- para O suicídio, mas deixando de lado todas as demais
são. Tradução livre: “O Positivismo 1 é uma teoria da his- grandes obras (A divisão do trabalho social, As formas
tória em que os desenvolvimentos do conhecimento são elementares da vida religiosa e mesmo As regras do método
tanto o motor da história quanto a fonte da estabilidade sociológico). No que se refere a Comte, podemos indicar o
social (Comte 1). O Positivismo 2 é uma teoria do conheci- seguinte: na definição 1, o que garante a estabilidade social
mento de acordo com a qual o único tipo são de conheci- não é o conhecimento (de uma perspectiva estritamente
mento disponível para a humanidade é o da ciência baseada intelectual), mas os sentimentos (em particular, os
na observação (Comte 2). O Positivismo 3 é uma tese da altruístas); na definição 3, a escala enciclopédica é concluída
unidade da ciência segunda a qual todas as ciências podem pela Sociologia e pela Moral e são elas que devem orientar
ser integradas em um único sistema natural (Comte 3). O esse conjunto; na definição 4, o objeto de culto da Religião
Positivismo 4 é uma religião secular da Humanidade devo- da Humanidade não é a “sociedade”, mas uma abstração
tada à veneração da sociedade (Comte 4). O Positivismo 5 relativa ao conjunto dos seres humanos altruístas,
é uma teoria da história em que o motor do progresso que historicamente constituída.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

cessário distinguirmos duas variedades “discipli- além de carecer de interpretações e de hipóteses


nares” de Positivismo que guardam poucas rela- de fundo, essa historiografia caracterizar-se-ia por
ções com o que nos interessa aqui; são elas o ser dedicada aos fenômenos políticos, isto é, aos
Positivismo Jurídico e o Histórico. O primeiro, atos dos “grandes líderes” e à vida (política) das
também chamado de “Juspositivismo”, é obra do nações, sem dúvida aí incluídas as guerras. O
austríaco Hans Kelsen, que no início do século Positivismo comtiano afasta-se dessa modalidade
XX afirmou, grosso modo, que as fontes do Di- em primeiro lugar porque a historiografia por ele
reito têm que ser buscadas apenas no próprio Di- sugerida não consiste, metodologicamente, na
reito14 , excluindo-se as fontes extrajurídicas, acumulação de fatos ou na ausência de hipóteses
como hábitos e costumes compartilhados, além interpretativas; em segundo lugar, porque em ter-
de valores disseminados socialmente. Sem nos de- mos teóricos a historiografia proposta por Augusto
termos em uma extensa crítica a seu respeito, im- Comte é de caráter sociológico, vinculada a “gran-
porta notar que essa perspectiva, se abre a possi- des durações”: de fato, desde o início da carreira
bilidade de uma Sociologia do Direito a partir da Comte afirmou que é necessário o pensamento
consideração do Direito como um sistema fecha- social ultrapassar a crônica mais ou menos
do em si mesmo, em seus próprios termos nega a anedótica da vida política e passar para uma pers-
possibilidade de considerar na prática o Direito pectiva totalizante da vida social (em que o políti-
como integrante de um sistema maior (o sistema co não ocupa o nível fundamental) e em que os
social), que o informe com outros princípios juri- acontecimentos sociais engendram a si mesmos,
dicamente aplicáveis. Como veremos adiante com continuamente, no método por ele denominado,
maiores detalhes, esse raciocínio não integra o com precisão, de “filiação histórica” (cf. COMTE,
pensamento comtiano, pois que este estava preo- 1890, v. III; 1895; 1972). Nesse sentido, não é
cupado fundamentalmente em constituir um sis- difícil de perceber nem de sugerir uma continui-
tema de valores socialmente compartilhado capaz dade teórico-metodológica entre Comte e a Esco-
de regular as relações sociais e dirimir os confli- la dos Anais16.
tos sociais; secundariamente, convém notar que
Enquanto as duas variedades de Positivismo
Augusto Comte simplesmente não tratou do Di-
acima indicadas são disciplinares, uma outra ver-
reito e as suas referências aos juristas eram, de
tente é por assim dizer substantiva, isto é, consti-
modo geral, negativas, devido ao caráter
tui uma corrente filosófica, correspondendo aos
metafísico deles, que negava precisamente as con-
sentidos 7 e 8 de Halfpenny: é o “Positivismo Ló-
siderações sociológicas15.
gico”, também conhecido por “Neopositivismo”,
O Positivismo na História seria aquela corren- “Empirismo Lógico” e “Círculo de Viena”. De-
te iniciada com a obra do historiador alemão marcar a diferença dessa corrente com o
Leopold von Ranke, que no século XIX definiu Positivismo comtiano exige maiores comentári-
que “os documentos falam por si próprios”, con- os.
sistindo o trabalho do historiador em apresentar
Antes de mais nada, enquanto a expressão “Cír-
os “fatos” indicados pelos documentos. Assim,
culo de Viena” indica a origem dos pensadores agru-
pados em torno de um determinado projeto intelec-
tual, “Empirismo Lógico” designa com grande pre-
cisão o conteúdo desse projeto intelectual; já
14 Como o Direito escrito é o chamado “Direito Positivo”,
“Neopositivismo” é uma expressão menos descri-
a afirmação de que ele é a única fonte do Direito é o
tiva e que apresenta o demérito de ser profunda-
“positivismo jurídico”.
mente elusiva para o nosso presente fim. Na ver-
15 A confusão entre os positivismos, no presente caso,
dade, mesmo os “neopositivistas” desgostavam
surge também por um outro motivo: o juspositivismo bate-
dessa expressão, tanto por ser pouco descritiva de
se contra as várias escolas de Direito Natural, que são
percebidas como ilegítimas e, segundo a terminologia suas preocupações intelectuais, como porque as
comtiana, como metafísicas, isto é, inválidas. Entretanto, remetia às idéias de Comte – com quem, aliás, não
Comte não nega o Direito Natural para reduzir o Direito ao
que está escrito: ele informaria pesadamente o Direito com
a sua Sociologia e também, nos dias atuais, com a
Antropologia. Para uma exposição pormenorizada do 16 Para uma distinção mais pormenorizada sobre o
Positivismo Jurídico, cf. Bobbio (2001). Positivismo em História, cf. Reis (2004).

329
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

mantinham grandes afinidades (cf. HALLER, 1990, Nesse sentido, a definição de “Positivista” cos-
p. 47)17. Além disso, o nome “Empirismo Lógico” tuma ser reduzida a algumas características: 1) a
esclarece as marcadas distâncias entre Comte e o rejeição da teologia e da metafísica e 2) a afirma-
Círculo de Viena, pelo apego deste grupo às ques- ção da empiria (o que, em alguns casos ou em
tões puramente empíricas somadas à análise lógica algumas versões, é tomada como a referência aos
das expressões lingüísticas utilizadas no dia-a-dia e “fatos puros”); 3) como conseqüência das carac-
na ciência. Mais do que isso: o “Empirismo Lógi- terísticas anteriores, a afirmação da ciência como
co” esclarece a origem do senso comum acadêmi- conhecimento verdadeiro da realidade. Essa defi-
co que atribui ao “Positivismo” a pesquisa dos “fa- nição tripla, bastante comum e popular, na verda-
tos puros”: embora descrever dessa forma o proje- de é superficial e redutora; um exame preliminar
to do Círculo de Viena seja redutor (e, até certo indica que, com um mínimo de rigor teórico e
ponto, injusto), chegando ao ponto de constituir o metodológico, pode-se englobar nela não apenas
sofisma do espantalho18, o fato é que a exigência os assim chamados “positivistas” como todas
de rigorosamente corresponder a toda afirmação aquelas linhas teóricas e metodológicas que valo-
um fato empírico é do Círculo de Viena, não de rizam a ciência, não se incomodam com a teolo-
Comte (cf. DUTRA, 2005, seção 2.2). gia, rejeitam puras entidades abstratas e exigem a
referência a “fatos” empíricos: em certo sentido,
Há pontos de contato entre a obra de Comte e
virtualmente todas as teorias sociológicas.
as idéias do Círculo de Viena, o que atrapalha um
pouco a diferenciação: por exemplo, os sentidos Examinemos as características indicadas aci-
3 e 8, ou 2 e 9-12, da relação de Halpenny19. Isso ma, começando pela rejeição da teologia e da
permite que alguns autores – continuemos, para metafísica. A postura de Comte era de ultrapassar
os presentes fins, com Giddens (cf. GIDDENS, ambas essas formas de interpretar a realidade em
1998, p. 178) – a forçar os argumentos no senti- favor da científica – ou, sendo mais específico,
do de apresentar Comte como neopositivista avant em favor da interpretação “positiva” da realida-
la lettre20 . de. Enquanto a teologia e a metafísica são absolu-
tas, pesquisando questões inacessíveis ao ser hu-
mano (de onde viemos? Para onde vamos? Qual a
17 A página indicada acima cita uma carta escrita por Otto
“essência” da vida e da realidade?), a positividade
Neurath – um dos fundadores do Círculo de Viena, tanto
é relativa, isto é, percebe que tudo é relativo para
em sua versão de 1909 quanto em segunda versão, vinte e ao ser humano e, portanto, pesquisa apenas as
anos posterior – para Rudolph Carnap em que manifesta relações entre seres e fenômenos: a partir daí,
seu profundo desagrado com a obra de Comte – e, daí, seu substitui a pesquisa das causas primeiras e finais
repúdio ao adjetivo “positivista”. pelas relações percebidas abstratamente entre fe-
18 O sofisma do espantalho consiste em simplificar ao nômenos, ou seja, pelas leis. Mas ao advogar o
extremo uma perspectiva filosófica ou um argumento – conhecimento positivo da realidade, ao afirmar que
nesse movimento descaracterizando-o – para “refutá-lo”. a teologia e a metafísica são perspectivas irreais
19 Vejamos novamente: 2) teoria do conhecimento, em que (no sentido de que não permitem um conhecimento
o único tipo são de conhecimento é a ciência baseada na da realidade), Comte não deixa de lado a perspec-
observação; 3) tese da unidade da ciência, em que todas as tiva sociológica, isto é, histórica: para ele, teolo-
ciências podem ser integradas em um único sistema natu- gia e metafísica foram condições necessárias e,
ral; 8) programa para a unificação das ciências, tanto sintá-
em seu momento, insubstituíveis no desenvolvi-
tica quanto semanticamente; 9) teoria do conhecimento de
acordo em que a ciência consiste em um corpus de leis mento do espírito humano; nesse sentido, devem
universais interrelacionadas, segundo o modelo dedutivo- ser respeitadas. Por outro lado, o conhecimento
nomológico; 10) teoria do conhecimento, em que a ciência da realidade pode ser analítico ou sintético: pri-
consiste em um corpus de leis causais; 11) teoria do méto- meiro analítico, referente a aspectos isolados da
do científico, em que a ciência progride por meio de leis realidade, por meio da ciência; em seguida sintéti-
indutivas, com provas observacionais e experimentais; 12)
teoria do método científico, em que a ciência progride
conjecturando hipóteses e tentando refutá-las.
20 O seguinte comentário de Giddens é esclarecedor, nesse obedeceram intelectualmente ao programa filosófico de-
sentido: “Considerarei a influência de Comte apenas sob senvolvido pelo positivismo lógico” (GIDDENS, 1998, p.
dois aspectos. As formas pelas quais seus escritos por 178; sem grifos no original). Uma autora que segue essas
Durkheim e a extensão em que as concepções de Comte propostas de Giddens é Alcântara (2008).

330
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

co, elaborando uma visão de conjunto dessa mes- res como Platão, Espinoza, Hegel etc., a filosofia
ma realidade mas atendendo também a necessida- era percebida como sinônima de metafísica; para
des psicológicas não apenas intelectuais, mas ter algum sentido intrínseco, ela deveria mudar de
afetivas e por assim dizer psíquicas: essa visão de objeto e de procedimento e referir-se à análise das
conjunto, essa síntese, é obra da filosofia21. Des- afirmações científicas, o que resultou em análise
sa forma, em Comte há claras, embora pouco co- lingüística e lógica das afirmações – ou, de ma-
nhecidas, distinções entre, de um lado, ciência e neira mais precisa: a filosofia foi reduzida à aná-
positividade e, por outro lado, ciência e filosofia: lise lógica e lingüística das proposições científi-
a positividade é maior que a ciência, embora ba- cas.
seie-se nela; a filosofia não se reduz à ciência e,
Não é difícil perceber as diferenças entre Comte
embora baseie-se nela, tem seu âmbito de pesqui-
e o Círculo de Viena no que se refere à teologia e
sas irredutível ao da ciência.
à metafísica – e, por extensão, também à filoso-
De maneira semelhante, o Círculo de Viena ti- fia. Não se trata de afirmar que há em Comte uma
nha em alta conta a ciência e em péssima conta a “reabilitação” delas; o que ocorre é que o pensa-
teologia e a metafísica22. Teologia e metafísica, dor francês reconhecia seu inevitável papel histó-
não se referindo a questões de fato – empíricas, rico para o ser humano, de modo que a simples e
isto é, sujeitas a comprovação sensorial – eram direta afirmação de que elas são sem sentido não
percebidas como afirmações sem sentido. Por cabe no sistema comtiano; muitas das obras e das
outro lado, sendo a ciência o estudo da realidade, idéias teológicas e metafísicas conservariam seu
as afirmações científicas tinham que ter uma es- valor no caso de serem “traduzidas” para o espí-
trutura lógica a que se faria correspondência com rito positivo24. Afirma-se que à negação da teolo-
a realidade23. Considerando as obras de pensado- gia e da metafísica corresponde a “morte da filo-
sofia”: se deixarmos de lado a estreita definição
de “filosofia” como sendo “metafísica” (ou tam-
bém “teologia”), perceberemos que tanto no caso
21 A partir de uma perspectiva kantiana, os conceitos de de Comte como no do Círculo de Viena isso é
“analítico” e “sintético” esposados pelo Círculo de Viena incorreto, embora possamos perfeitamente con-
diferiam marcadamente dos de Comte: Comte considera ceder que o papel da filosofia é bastante reduzido
que o sintético é aquilo que apresenta uma visão de conjun- e empobrecido para o Círculo de Viena – mas não
to, ou seja, são as observações concretas e também a elabo-
para Comte, que lhe concede uma grande digni-
ração filosófica de conjunto; o analítico corresponde às
perspectivas que estudam questões específicas dos fenô- dade25.
menos (cf. COMTE, 1934); a perspectiva kantiana, por No que se refere à afirmação da empiria, há
outro lado, considera que uma afirmação analítica é pura-
que se diferenciar as perspectivas de cada qual,
mente intelectual (as verdades matemáticas, por exemplo),
ao passo que as afirmações sintéticas são aquelas originári-
as das observações concretas, ou seja, todas as que não são
puramente originárias da inteligência (cf. SALMON, 1969, 24 Dois exemplos marcantes disso: em primeiro lugar,
p. 131-135).
Comte recomendava a leitura da obra do místico medieval
22 Convém notarmos que o uso da expressão “Círculo de alemão Tomás de Kempis, A imitação de Cristo, substitu-
Viena” é um tanto arriscado: afinal, as perspectivas espo- indo as referências teológicas (“deus”, “Cristo” etc.) por
sadas por seus membros não eram necessariamente con- expressões positivas, isto é, humanas e humanistas. Um
cordantes entre si (chegando mesmo, em alguns casos, a esforço nesse sentido foi realizado pelo psiquiatra paulista
serem contraditórias) – embora, por questões de propa- Paulo de Tarso Monte Serrat (1983). Em segundo lugar,
ganda intelectual e, daí, de um certo corporativismo, afir- Comte afirmava que a “plena racionalidade positiva” exige
massem alguns que havia uma unidade de pensamento en- a incorporação da primeira etapa da teologia – o fetichismo
tre eles (cf. AYER, 1959; HALLER, 1990, cap. 2; DUTRA, – no Positivismo (COMTE, 1890, v. III passim). Essa
2005, seções 2.2-2.3). incorporação equivale ao reconhecimento de méritos lógi-
23 Dessa preocupação, é importante notarmos, desenvol- cos, práticos e afetivos do fetichismo – o que chegou a
receber o elogio expresso de Lévi-Strauss (2008, cap. VIII).
veu-se um dos mais profícuos e importantes programas de
pesquisas filosóficas e epistemológicas do século XX, in- 25 Contraste-se a discussão acima com a seguinte afirma-
vestigando-se as condições de correspondência entre enun- ção de Giddens (1998, p. 183): “Quando Comte e Mach
ciados e fatos, a estrutura de obtenção e de checagem dos falaram da preservação da filosofia, tratava-se da ‘filosofia
fatos, a comprovação ou refutação de teorias científicas e positiva’: aqui filosofia era o esclarecimento lógico da base
assim por diante. da ciência”.

331
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

novamente. Vimos há pouco que, para o Círculo p. 181-182); mas, novamente, tal aproximação é
de Viena, a correspondência das afirmações lin- superficial e baseada em uma apreciação ligeira e
güísticas com fatos empíricos era uma exigência; desinformada dos projetos teóricos específicos.
todavia, essa exigência revelou-se com o passar A proposta do Círculo de Viena era efetivamente
do tempo, com o avançar das discussões internas unificar as ciências por meio de um linguajar por
ao grupo, mais como um postulado a ser investi- assim dizer neutro (isto é, axiologicamente neu-
gado que como uma profissão de fé. No caso de tro), capaz de expressar pelos mesmos símbolos
Comte, a necessidade da empiria consiste muito e pelas mesmas operações lógicas os mais dife-
mais na exigência da verificação das afirmações rentes fenômenos. (Não é difícil de entender, com
teóricas que na postulação de “fatos puros” e na isso, a justiça do nome “Empirismo Lógico” auto-
descoberta da dinâmica da realidade pela simples atribuído ao grupo por alguns de seus membros.)
inspeção dessa realidade e/ou pelo acumular de Para Comte, a única possibilidade de “unificação”
informações isoladas. Nesse sentido, Comte era da ciência é por meio de um método geral adota-
bastante explícito: sendo a ciência o conjunto de do pelas diversas ciências particulares – a já refe-
leis abstratas, o acúmulo de informações esparsas rida subordinação da imaginação à observação – e
é qualquer coisa menos útil; mas, de maneira mais por meio de teorias homogêneas, isto é, que pos-
decisiva, o conhecimento da realidade consistin- sam comunicar-se entre si, relevando as relações
do nas representações teóricas verificadas na rea- dos vários fenômenos (das diversas ciências) en-
lidade, só é possível saber o que procurar na rea- tre si: qualquer coisa além disso é, segundo as
lidade a partir de uma teoria prévia26, de tal sorte palavras de Comte, “abusiva” (COMTE, 1890, v.
que o ser humano, para conhecer a realidade, cons- I passim; v. II passim). Aliás, as intromissões
tantemente “oscila” entre a postulação teórica e a indevidas de teorias de uma ciência em outra re-
observação empírica. Afirmando que a diferença cupera um termo usado anteriormente: cada ciên-
metodológica entre a teologia e a metafísica, de cia tem sua dignidade própria, devendo preser-
um lado, e a ciência, de outro lado, é a subordina- var-se tanto do misticismo (explicar um fenôme-
ção (e não supressão) da imaginação à observa- no mais grosseiro por um mais nobre) quanto do
ção pela ciência, Comte considerava que a razão materialismo (explicar um fenômeno mais nobre
normal é sempre próxima ao bom senso comum por um mais grosseiro)28. A síntese filosófica, por
e eqüidistante de dois vícios intelectuais opostos: outro lado, consiste na coordenação dos princi-
o misticismo e o empirismo. O misticismo é a pais resultados de cada ciência necessários para
tendência a considerar que as teorias bastam por que o ser humano possua uma visão de mundo
si sós e que os fatos empíricos são desnecessári- (cosmológica e humana) coerente, capaz de con-
os; já o empirismo – que, para evitar ambigüida- ferir harmonia mental a cada um e também de
des, poderíamos chamar por meio do anglicismo permitir que cada um aja em sociedade: em outras
“empiricismo” – consiste em considerar que a palavras, consiste em um humanismo forte.
mera coleção de fatos é suficiente para conhecer
Retornemos a Giddens. Para argumentar que
a realidade27.
há uma relação entre Comte e o Círculo de Viena,
Um outro elemento que, segundos alguns, Giddens apresenta Ernst Mach como mediador
aproxima Comte e o Círculo de Viena é a idéia de entre eles (GIDDENS, 1998, p. 181) e cinco ca-
uma ciência unificada. Mais uma vez, a referên- racterísticas comuns aos três: 1) “a reconstrução
cia ideal para essa aproximação é Giddens (1998,

28 A palavra “misticismo” é utilizada ainda em uma tercei-


26 Essa necessidade, aliás, é o que justifica o fato de a ra oposição por Comte: agora entre misticismo e idiotismo,
isto é, excesso de subjetividade e excesso de objetividade
teologia e a metafísica serem o início necessário da marcha
(ou seja, o “empiricismo” que comentamos há pouco). Sem
do espírito humano, pois que fornecem uma teoria atrativa
dúvida alguma, Comte estabelece uma identidade profunda
o suficiente para manter a atenção humana concentrada em
entre os três usos da palavra “misticismo” e seus três pares
questões específicas por longos períodos de tempo – ainda
de oposições (materialismo, empiricismo e idiotismo).
que essas teorias revelem-se falsas e seus objetivos, inatin-
Convém notar, mais uma vez: esses extremos intelectuais e
gíveis.
psicológicos constituem pólos de que a razão normal deve
27 Bem notadas as coisas, o jogo entre teoria e empiria é manter-se distante – e a razão normal baseia-se no senso
uma das maiores conquistas do movimento epistemológico comum, como um meio-termo entre a teoria e a observação,
chamado, ironicamente, de “pós-positivismo”. entre a subjetividade e a objetividade.

332
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

da história como realização do espírito positivo”; veis para o ser humano externar aquilo que está
2) “a dissolução final da metafísica, intimamente presente em seu interior (COMTE, 1890, v. II,
ligada à idéia de superação da própria filosofia”; cap. III); o que é esse “interior”? São sensações,
3) “a existência de um claro e definido limite entre sentimentos e idéias – em outras palavras, exata-
o factual, o ‘observável’, e o imaginário, ou o ‘fic- mente aquilo a que se dá o nome de “subjetivida-
tício’”; 4) “o ‘relativismo’ do conhecimento cien- de”, cuja existência, aliás, não é “metafísica”.
tífico”; 5) “o vínculo integral entre ciência e mo-
Giddens também afirma que tanto Comte des-
ral e progresso material da humanidade” (idem, p.
prezava os “indivíduos” e as capacidades huma-
181-182). Já comentamos, por outras vias, as
nas que nem chegou a incluir a Psicologia na sua
características 1 a 3; falta tratar das duas últimas.
escala enciclopédica, isto é, que a teria concluído
Ao discutir o relativismo, como nos casos an- na Sociologia. Ora, a escala enciclopédica de
teriores, Giddens apresenta corretamente as linhas Comte não parou na Sociologia, mas avançou mais
gerais do pensamento comtiano, apenas para um degrau: como Giddens considera apenas a
torcê-lo nos detalhes, em direção àquilo que ele, Philosophie para seus comentários sobre Comte,
Giddens, considera incorreto. Já vimos o sentido ignora a Politique, em cujos volumes II e III Comte
do “relativo” comtiano, que está em oposição ao afirma não apenas a necessidade de fundar uma
“absoluto”: o ser humano não tem acesso às cau- ciência dedicada ao ser humano individualmente
sas (primeiras e finais) nem a supostas “essênci- tomado – nos termos de Comte, a “Moral”, o que
as”; a única coisa passível de observação são re- equivale, nos dias de hoje, à “Psicologia” –, como
lações entre fenômenos; tais relações são, por cria formalmente essa sétima ciência, acima da
definição, as leis naturais. De acordo com Giddens, Sociologia. Convém notar que, se Comte não in-
para Mach as “relações” são (ou devem ser) cluiu (inicialmente) a “Psicologia” na sua escala
redutíveis a expressões matemáticas; obtidas es- enciclopédica, foi porque a “Psicologia” de sua
sas expressões, as teorias são descartáveis, por época (e mesmo muito do que há ainda hoje) era
serem inúteis; “apesar de isso diferir da visão de pura metafísica, a começar pelo “método” psico-
Comte, isso não está tão longe dela como pode lógico, que consistia na pura introspecção – em
parecer à primeira vista” (idem, p. 183), pois, “No que o observador observava a si mesmo enquan-
positivismo de Comte, não era possível encontrar to usava suas outras faculdades mentais, de modo
um lugar para o sujeito pensante: a psicologia nem que ao mesmo tempo observava e era observado
mesmo aparecia na hierarquia das ciências e a (cf. COMTE, 1972; LAZINIER, 2002)29. Da mes-
noção de experiência subjetiva era encarada como ma forma, a última obra de Comte, a Synthèse
uma ficção metafísica” (idem, p. 184). Deixando subjective, teria quatro volumes, dos quais o se-
de lado o reiterado erro de imputar a Comte o gundo e o terceiro tratariam de modo específico
projeto de matematização da sociedade e da análi- do estudo do ser humano individualmente consi-
se sociológica, atribuir a Comte a negação da sub- derado: entretanto, Comte morreu após publicar
jetividade humana é uma afirmação recorrente mas o primeiro desses quatro volumes30.
nem por isso correta. Comecemos pela lei dos
três estados: ela afirma a capacidade humana de
interpretar a realidade de acordo com diferentes 29 Ainda assim, podemos indicar dois livros brasileiros
princípios gerais, historicamente modificáveis; dedicados à “Psicologia” baseada em Comte: Escobar (1979)
além disso, o conhecimento humano é um contí- e Coelho (1982). Além dessas duas obras teóricas, houve
nuo e eterno diálogo entre o interior (subjetivo) e toda uma escola de Psicologia Clínica baseada em Comte, a
o exterior (objetivo). Em termos epistemológicos, partir das pesquisas do médico paulista Aníbal da Silveira.
isso é um dos temas mais importantes e que, há 30 Somando o recurso às leis naturais à “ausência” de
séculos, oscila entre os objetivistas e os materia- Psicologia, Giddens conclui que a Sociologia de Comte não
listas, mas que, para Comte, não é possível resol- apenas não é “reflexiva” como faz um apelo à
ver de maneira categórica em que medida a subje- “desresponsabilização” individual e coletiva, isto é, políti-
tividade e a objetividade entram no conhecimento ca. Nessa tese, Giddens foi seguido por Alcântara (2008):
em Lacerda (2009b) apresentamos arrazoados demonstran-
humano. Mas talvez seja a teoria da linguagem
do o erro de tais teses. Em todo caso, em Comte (1899, p.
aquela parte das idéias comtianas que apresentam 45-60), afirma-se a necessidade de “consagrar para disci-
a refutação mais direta do comentário de Giddens: plinar” as forças sociais quaisquer e, para o que nos inte-
para Comte, a linguagem são os meios disponí- ressa, o indivíduo.

333
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

Todavia, é necessário indicar que no capítulo do ponto de vista político, Comte rejeitava o que
I do volume IV da Politique, Comte distingue de chamamos atualmente de tecnocracia; contudo,
maneira clara os “elementos sociais” (famílias, importa aqui desfazer o nó que vincula ciência e
pátrias, humanidade e grupos intermediários) dos desenvolvimento da moralidade. Para isso, cum-
“agentes sociais”. Essa distinção já fora esboçada pre definir o que é a moralidade, ou melhor, a moral
no capítulo III do volume II, dedicado às famílias para Comte: é o conjunto de atributos “afetivos”
como elementos sociológicos, mas no volume IV dos seres humanos, voltados para o benefício in-
Comte é formal na distinção entre uns e outros. O dividual e, acima de tudo, coletivo. De modo mais
que caracteriza os “elementos sociais” é o fato de específico, Comte determina dez “instintos” que
serem homogêneos em relação às sociedades, ou originam as ações humanas, sete egoístas (volta-
melhor, serem sociedades em escalas diversas: é dos para a satisfação individual) e três altruístas
por esse motivo que as famílias são a unidade so- (voltados para a colaboração e a satisfação dos
ciológica e não os indivíduos. Já os “agentes so- outros); esses instintos são ordenados de acordo
ciais” são os responsáveis pela existência objetiva com sua força decrescente e sua dignidade cres-
das sociedades e, mais do que isso, pelas ações cente: instintos nutritivo, sexual, materno,
concretas; o que caracteriza esses “agentes” é o destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade (como
exercício das suas “vontades” (“volontés”), que, egoístas), apego, veneração e bondade (como al-
embora livres em si, são submetidas às diversas truístas)32. Para Comte, todo ser humano é um
condições e fatalidades sociológicas, biológicas e indivíduo e um membro de uma sociedade; cada
cosmológicas. Da mesma forma que nas teorias sociedade, por sua vez, estimula mais alguns ins-
sociológicas contemporâneas (em que se incluem tintos e desenvolve menos (ou reprime) outros. O
as do próprio Giddens), esses “agentes” são os desenvolvimento moral, nesse quadro, consiste no
indivíduos, com a particularidade de que, para fortalecimento dos instintos altruístas e na com-
Comte, a ação desses indivíduos deve conjugar a pressão (e nunca na extinção) dos instintos ego-
liberdade individual (a que se associa, necessaria- ístas – ou, nos termos de Comte, no desenvolvi-
mente, a responsabilidade) e a convergência, isto mento da ternura (altruísmo) e da pureza (com-
é, a busca do benefício coletivo, direto ou indire- pressão do egoísmo).
to (cf. COMTE, 1890, v. IV, p. 30-40). Sem for-
Do ponto de vista histórico, o relacionamento
çar o argumento, e ao contrário do que afirma
entre egoísmo e altruísmo variou. De uma pers-
Giddens, é possível afirmar que em Comte há ao
pectiva de longuíssima duração, o desenvolvimen-
mesmo tempo a solução para uma forma de
to material permite que a pressão das necessida-
dualidade entre “agência” e "estrutura" e a defini-
des individuais diminua e, portanto, que o altruís-
ção de um indivíduo que, capaz de agir autono-
mo seja desenvolvido. Sem dúvida alguma que a
mamente, não se define pelo egoísmo, a partir dos
ciência, como conhecimento da realidade, tem um
modernos conceitos metafísicos (e, portanto, em
papel central nisso, mas o longo acumular de pro-
última análise, teológicos)31.
dutos humanos (materiais, intelectuais, artísticos
A última característica que Giddens atribui a etc.) é o fator-chave aí, de modo que o desenvol-
Comte é a íntima vinculação entre a ciência, por vimento moral é possível e até se realiza antes de
um lado, e o desenvolvimento moral e material da a ciência constituir-se como tal.
sociedade. Essa é uma mais ou menos elegante de
De acordo com a filosofia da história de
afirmar que Comte foi um “cientificista” e, acima
Comte, o Ocidente apresenta uma inversão im-
de tudo, um tecnocrata: quanto mais ciência, me-
lhor desenvolvida a sociedade e mais “moraliza-
da” ela será; a “moralidade” consistirá em varia- 32 Esses dez “instintos” somam-se a cinco funções inte-
das formas de intelectualismo, a serem racional- lectuais e a três da ação prática; esse conjunto de 18 fun-
mente controladas. Vimos anteriormente como, ções cerebrais constitui a “alma”, na teoria comtiana. Note-
se que o móvel das ações são os instintos, que visam à sua
satisfação; a inteligência (modernamente representada de
maneira sintética pela ciência) ocupa um papel apenas ins-
31 A respeito da gênese teológico-metafísica do individua- trumental aí. Não é difícil de perceber que essa teoria da
alma – desenvolvida no longo capítulo III do volume I da
lismo moderno e de seu caráter egoísta, cf. Laffitte (1897,
Politique (COMTE, 1890, v. I, cap. III) – é uma teoria da
lições 5-6) e Dumont (1992, cap. 2).
agência humana.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

portante. Após a Grécia ter desenvolvido a inte- IV. O RECUPERAR DE COMTE


ligência (a arte, a filosofia e a ciência), os roma-
Em um artigo que visa a tratar de obras recen-
nos desenvolveram a atividade prática (subordi-
tes sobre Augusto Comte, talvez tenha causado
nando a inteligência à ação e criando uma vasta
estranheza as longas observações feitas acima.
civilização pacificada, ao redor do Mediterrâneo),
Esse procedimento justifica-se pelo seguinte mo-
faltava o desenvolvimento da moralidade – o que
tivo: enquanto as obras de que trataremos na se-
se realizou na Idade Média, católico-feudal, mais
qüência apresentam esse pensamento social (em
por meio dos hábitos cavalheirescos que por meio
todo ou em partes), sem considerar as críticas
do dogma católico. Independentemente das rela-
anteriores – mas sabendo que elas existem –, as
ções estabelecidas entre egoísmo e altruísmo
críticas correntes teriam que ser, em algum mo-
nesse período, é fácil perceber como não houve
mento, enfrentadas. Além disso, o valor da “recu-
relação direta entre desenvolvimento científico e
peração” aumenta quando se tem em mente a en-
desenvolvimento moral no período. Aliás, para
vergadura da “perda”.
Comte – e bem ao contrário do que afirma
Giddens –, o período posterior à Idade Média Compreender o pensamento de Augusto Comte
(chamado por Comte de “modernidade”) con- em si mesmo e em sua inteireza (ainda que sem
siste em um desenvolvimento contínuo da inteli- tratar de todo ele), deixando de lado o rótulo fácil
gência em reação à moralidade católica; consi- de “positivista”, conforme o senso comum aca-
derando que, para Comte, a moral católica é ego- dêmico contemporâneo estabelece, e perceber os
ísta, até certo ponto faz sentido essa reação, mas elementos que o fundador do Positivismo apre-
o combate ao catolicismo tornou-se combate senta para as questões atuais – em outras pala-
generalizado à moral como um todo. Além disso, vras, não incorrer nos diversos problemas teóri-
inúmeras teorias científicas afirmam o materia- cos e metodológicos discutidos até aqui: esses são
lismo, que é a subordinação de fenômenos mais os elementos que unem os livros de Juliette Grange
nobres aos mais grosseiros: além de negarem as (1996), Sérgio Tiski (2007) e Laurent Fédi (2008).
particularidades do ser humano (em termos so- A procedência nacional dessas pesquisas é signi-
ciais e morais), há teóricos que afirmam o cará- ficativa: a maior parte delas é francesa (Grange e
ter intrinsecamente egoísta do homem, negando Fédi), enquanto poucos são brasileiros (Tiski);
o altruísmo (Hobbes é um bom exemplo, mas embora não tratemos de nenhum anglófono aqui,
também os “economistas políticos”). Dessa for- o fato é que autores de língua inglesa ocupam uma
ma, não há relação causal entre “desenvolvimen- posição intermediária34. Evidentemente, esses três
to da ciência” e “desenvolvimento moral” da hu- livros não esgotam a fortuna crítica relativa a
manidade, no pensamento comtiano. Comte; da segunda metade do século XX para cá
poderíamos também indicar diversos pesquisado-
Como se vê, portanto, a argumentação de
res que consideraram o “Positivismo” sem a ca-
Giddens é frágil e enviesada; baseado em uma lei-
mada crítica apontada antes: Kremer-Marietti
tura superficial de apenas uma obra de Comte (a
(1980), Aron (1999), Arnaud (1969), Bastide
Philosophie), o conjunto da argumentação de
(1990), Lacroix (2003) e, no Brasil, Soares (1999),
Giddens cria um Augusto Comte cientificista e
Ribeiro Jr. (2006) e Trindade (2007). O que dis-
tecnocrático; caso considerasse com seriedade as
tingue dos demais os três livros que nos interes-
outras obras de Comte (em particular, a Politique),
sam aqui, além das datas de publicação mais re-
seria difícil sustentar tais opiniões: é essa a gran-
centes, é a consciência das críticas com que lida-
de virtude dos autores que recuperam Comte, de
mos há pouco; é tendo essas críticas como pano
que trataremos em seguida33.
de fundo que os autores de que nos ocuparemos

34 Podemos incluir no rol anglófono o pequeno mas inte-


33 Embora já tenhamos indicado, na primeira seção deste ressante livro de Mike Gane (2006), que historia as várias
artigo, que Giddens não é o único autor a criticar de maneira formulações da “lei dos três estados”, e as muitas pesqui-
sistemática Augusto Comte, convém realçar aqui tal fato; sas de Mary Pickering, responsável por uma alentada bio-
as críticas elaboradas pela Escola de Frankfurt, em particu- grafia intelectual de Comte, cujo volume segundo está pres-
lar as surgidas durante e após a “polêmica do Positivismo tes a ser lançada pela editora de Cambridge, embora o volu-
na Sociologia alemã”, exigem uma análise toda própria. me primeiro seja de 1993.

335
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

escrevem; nesse sentido, é comum, e infelizmen- sofo do século XXI?”. É claro que essa forma de
te cansativo, ler afirmações no sentido de que expor facilita a compreensão, quando menos por-
cumpre recuperar o pensamento de Comte, em que formula com clareza as questões que orientam
primeiro lugar lendo a obra no original e, em se- os raciocínios. Além disso, a inspiração propria-
gundo lugar, em seus próprios termos (cf. mente literária tende à exposição por meio de con-
GRANGE, 1996, p. 9-11; FÉDI, 2008, Prefácio). tradições, o que dificulta um tanto a leitura e a evo-
lução das idéias. Poder-se-ia argumentar que se trata
O mais ambicioso é o de Juliette Grange, que
de um artifício utilizado para, além de expressar
consiste em uma apresentação sistemática da obra
um estilo de redação, também permitir a adoção de
de Comte. Com quase 450 páginas em letra pe-
várias perspectivas e a constatação de pontos fra-
quena, a autora retraça os argumentos comtianos
cos ou falhos na matéria exposta.
de acordo com a seqüência em que foram elabo-
rados, isto é, começando pela discussão teórico- O livro de Grange procura expor o pensamen-
metodológica sobre as ciências, com o fito de to profundo de Comte – “oculto”, segundo suas
apresentar a Sociologia; em seguida, tira as con- palavras (idem, p. 10-11) – deixando de lado o
seqüências políticas e as aplicações práticas das senso comum e a referência a aspectos propria-
perspectivas teóricas, ao mesmo tempo que ilu- mente datados. Assim, por exemplo, ela comenta:
mina como essas preocupações concretas influ- “Trata-se bem, todavia, de reler um texto [...] fora
enciaram as teorizações; no final do livro, estabe- dos destinos ulteriores que múltiplas posteridades
lece a relação dessas idéias preliminares com a de institucionais ou ideológicas forjaram [...]. A his-
religião. Com uma grande quantidade de citações tória da palavra positivismo o destino singular dessa
diretas e dialogando com questões atuais (ecolo- obra, pouco comentada em si, que forneceu di-
gia, empirismo, pacificismo, “império”, versos neologismos para a linguagem comum –
mundialização, economicismo, holismo etc.), o neologismos cuja acepção usual contradiz
livro permite uma compreensão ao mesmo tempo freqüentemente o sentido proposto por Comte. É
aprofundada de Comte e indicativa de sua atuali- por essa razão que será de fato preferível evitar o
dade. Esses elementos permitem que o livro seja uso da palavra ‘positivismo’, o grande peso de
uma excelente introdução a Comte, em particular seu uso trivial levando-nos a preferir a de
porque o todo de sua obra é analisado (superando ‘comtismo’ [...]” (idem, p. 29-30).
a afirmação da própria autora, de que “ninguém lê
Da mesma forma, na seção intitulada “O
o conjunto das obras” (GRANGE, 1996, p. 9)).
Positivismo é um fisicalismo?” (idem, p. 77-81), a
A organização didática do livro, de acordo com autora faz referência direta às costumeiras aproxi-
um princípio mais ou menos cronológico, não im- mações da obra de Comte com a dos vários mem-
pede a autora de (r)estabelecer a todo instante as bros do Círculo de Viena (em particular com as
interconexões entre problemas epistemológicos, doutrinas de Rudolph Carnap, autor da expressão
científicos, sociológicos, políticos, psicológicos “fisicalismo”) para, após uma densa discussão
e artísticos que Augusto Comte estabelecia ao es- epistemológica, concluir que “O positivismo não é
crever. Isso, sem dúvida, acarreta uma pequena nem um realismo, nem um fisicalismo: é um
dificuldade: o raciocínio é pleno de vaivéns, em historicismo” (idem, p. 81): nesse historicismo, ou
que, à medida que se avança na exposição, a quan- melhor, nessa epistemologia historicista, o ser hu-
tidade de pressupostos teóricos e metodológicos mano vive em uma realidade que o cerca e que o
aumenta, exigindo tanto do autor quanto do leitor constrange, mas que é também modificável por esse
grande concentração e necessidade de abstração mesmo ser humano, a partir do conhecimento abs-
(ainda que essa dificuldade seja atenuada pela re- trato, parcial e relativo das regularidades; esse co-
petição dos elementos importantes quando as dis- nhecimento muda de acordo com a sociedade e,
cussões exigem-no). em particular, de acordo com a acumulação histó-
rica, em que as elaborações teóricas (isto é, cientí-
O estilo da autora merece algumas observações.
ficas) são feitas a partir de uma conjugação entre
Em forma literária, a exposição apresenta a todo
necessidades sociais, a realidade concreta e, claro,
instante perguntas-chave, por vezes retóricas, por
a subjetividade de cada pesquisador. Na seqüência,
vezes realmente importantes: “Que é uma obra re-
aliás, a autora discute precisamente a historicidade
presentativa?”, “O Positivismo é um fisicalismo?”,
do conhecimento (aí incluído o científico, mas to-
“A filosofia de uma ciência ultrapassada?”, “Filó-

336
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

mado em sentido geral), para indicar que, para 370), as relações entre indivíduo e sociedade (idem,
Comte, essa historicidade refere-se, mais que a um p. 267-276), a regulação prática (isto é, política)
caráter temporário (como em certo sentido insis- da sociedade (idem, parte II, cap. V-VI). A conclu-
tiu, por exemplo, Weber, em A ciência como voca- são geral da autora é que, embora vários aspectos
ção (WEBER, 1977)), às vinculações que o co- epistemológicos, científicos, sociológicos e políti-
nhecimento tem com as sociedades que o produz, cos de Comte sejam inevitavelmente datados e
assim como à necessidade de acumular observa- embora seu estilo dificulte, sem dúvida, a compre-
ções, teorias e perspectivas35. ensão, o seu pensamento, isto é, a inspiração pro-
funda e as questões que ele formulou são atuais,
Mas o mais interessante no livro de Grange é
são as nossas (idem, p. 19-21, 421-423 et passim).
que a discussão epistemológica não se confina em
si mesma, mas é apresentada – de acordo com o O livro de Fédi (2008) é, assim como o de
espírito da obra comtiana – como condição inte- Grange, uma apresentação didática do pensamen-
lectual para considerações sociológicas e políti- to de Comte e igualmente realiza uma exposição
cas mais amplas: o que chamamos hoje de das idéias comtianas preocupando-se em indicar
“Epistemologia” e de “Filosofia das Ciências (So- sua “atualidade”. Com pouco menos de 200 pági-
ciais)” integra um exame mais geral da realidade nas, a edição original é do ano 2000 e segue um
humana, com vistas à intervenção nessa mesma roteiro até certo ponto tradicional: ciências e filo-
realidade. Assim, não apenas esse gênero de dis- sofia das ciências; sociedade e Sociologia; reli-
cussão ocupa apenas entre um quarto e um terço gião e política. Sua brevidade não diminui a quali-
do livro, como ele subordina-se sempre às consi- dade da apresentação, pois, embora o autor cite o
derações sociais. Talvez afirmar a “subordinação original, está mais preocupado em compreender e
às considerações sociais” pareça óbvio para um expor a lógica subjacente do pensamento comtiano
cientista social, mas é necessário ter em mente o (em particular daquela mais madura, isto é, do
senso comum a respeito de Comte ou do Système de politique positive e da Synthèse
“Positivismo”, em que ambos são percebidos ape- subjective) que em apresentar passo a passo a
nas em termos epistemológicos e estritamente constituição desse pensamento. Isso confere gran-
“cientifistas”. de agilidade à narrativa, que pode ser feita com
facilidade em um ou dois dias de leitura contínua.
Dessa forma, a autora tem em mente as idéias
profundas da Sociologia e da política comtianas, Fédi discute com clareza várias das questões
mostrando o sentido da “lei dos três estados” como que comentamos nas seções anteriores; ao mes-
sendo, mais que propor a “morte de deus”, a afir- mo tempo em que reconstitui as características
mação de uma sociedade plenamente humana e da obra comtiana, articula-as com questões mais
caracterizada pelo conhecimento científico e contemporâneas: a importância da afetividade e
imanente da realidade, além de pacífica e globalizada da subjetividade para o ser humano em geral e
(idem, p. 8-41, 421-423 et passim)36. A partir des- para a prática científica em particular (aí incluída
sa perspectiva, outros aspectos são comentados, a incorporação do fetichismo na positividade)
alguns deles com bastante insistência: a incorpora- (idem, p. 35-87, 145-151); o relativismo especí-
ção do fetichismo no Positivismo, que a autora de- fico ao espírito positivo (idem, p. 74-78); a
nomina de “neofetichismo” (idem, p. 129-136, 357- deontologia pacifista da sociedade moderna (idem,
p. 137-144); a inclusão social (idem, p. 100-104);
a separação entre Igreja e Estado e, por extensão,
a crítica ao que chamaríamos hoje de “totalitaris-
35 Nesse sentido, Comte abarca as idéias de Thomas Kuhn, mo” e de “tecnocracia” (idem, p. 172-175).
sem cair nos problemas criados pelo conceito de Francamente simpáticos a Comte, tanto Grange
“paradigma” (em particular, a incomensurabilidade mútua
quanto Fédi preocupam-se mais em resgatar um
dos paradigmas).
pensamento que consideram instigante que em fa-
36 Considerando dessa perspectiva o empreendimento
zer-lhe a crítica. É interessante notar que uma qua-
científico, a criação da sétima ciência por Comte – a “Mo-
lidade de ambos os livros é que esse resgate, essa
ral” – que, como outros elementos do seu pensamento, é
tão facilmente desdenhável – assume um aspecto bastante “apresentação geral” do pensamento comtiano não
atual, na forma da regulação social e ética das pesquisas é feita às custas da fluência do texto; em outras
científica palavras, não se tratam de apresentações por assim

337
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

dizer burocráticas, mas de exposições vivas, que, catolicismo e a emancipação, Tiski identifica uma
por sua própria forma, tornam mais fácil a respos- fase intermediária, de oscilação entre a emancipa-
ta à necessária pergunta a respeito da “atualidade” ção humanista com o uso de expressões teológi-
do pensamento de Comte. Grange considera que o cas (1812-1817). Ao investigar tanto os livros
projeto religioso de Comte, em si, é impossível; quanto a extensa correspondência de Augusto
mas, por outro lado, as críticas que Comte fez ao Comte (em oito volumes), o autor identificou cada
individualismo, ao racionalismo, ao desregramento uma das vezes em que o francês usou as expres-
científico, ao absolutismo filosófico, assim como sões indicadas acima, determinando o sentido ado-
a defesa da liberdade de pensamento e de expres- tado; da mesma forma, há grande quantidade de
são, da separação entre Igreja e Estado e do prima- citações diretas de Comte, o que enriquece sobre-
do do “social” em relação ao “econômico” são ele- maneira o texto.
mentos permanentes (GRANGE, 1996, p. 421-
A idéia de religião em Comte, de fato, é cen-
422); mais do que isso, logo no início do livro ela
tral. Como demonstra Tiski, enquanto em um pri-
afirma que “[...] em grande medida, vivemos em
meiro momento Comte identificava religião e teo-
um mundo quase inteiramente previsto por Comte”
logia, isto é, considerava que a religião é a crença
(idem, p. 19). Fédi, da sua parte, considera que a
no sobrenatural, em vontades externas ao ser hu-
obra de Comte deve ser lida “[...] não na esperança
mano que comandariam arbitrária e absolutamen-
irrisória de reabilitar Comte ou de impor
te a realidade (e a que se oporia a ciência, de cará-
dogmaticamente suas soluções, mas simplesmente
ter relativo), em sua fase mais madura Comte per-
tendo em vista levar suas reflexões à discussão,
cebia na religião uma forma de unidade humana.
com a convicção de que o interesse dessa filosofia
Essa unidade seria ao mesmo tempo “moral” (de
pode se renovar à medida que surjam novos pro-
caráter individual, em que ocorreria a harmonia
blemas” (FÉDI, 2008, p. 168)37.
afetiva, intelectual e prática) e coletiva (em que os
Por fim, o livro do brasileiro Sérgio Tiski (2006) indivíduos e os grupos sociais relacionar-se-iam
é mais específico, tratando de uma questão cen- de maneira construtiva e pacífica) e de que a teo-
tral em Comte: a religião. Esse tema é importante logia teria sido apenas uma forma de realização,
seja a partir do enunciado comtiano da “lei dos temporária e transitória entre o fetichismo (está-
três estados” (segundo a qual as concepções hu- gio inicial do ser humano) e o positivismo (está-
manas passam por três fases sucessivas – teoló- gio final). Assim, a religião são é a prática e a
gica, metafísica e positiva), seja porque a fase fi- instituição sociais que denotam a totalidade da
nal de Comte caracterizou-se pela fundação da existência humana, no pensamento comtiano.
“Religião da Humanidade”, seja porque são várias
As várias acepções que a “religião” teve no
as referências à contradição entre a lei dos três
pensamento de Comte são um bom índice das
estados e a Religião da Humanidade.
mudanças por que esse pensamento atravessou.
O procedimento que Tiski adotou foi adequa- Sem esposarmos a tese da ruptura entre essas fases
do para sua proposta: verificar de que maneira, ao – em particular entre a Philosophie e a Politique
longo de sua carreira, Comte considerou o con- –, é possível identificar uma inflexão de um certo
ceito de (e, portanto, a palavra) “religião”, bem “cientificismo” – que, talvez, seja melhor qualifi-
como os conceitos associados de “teologia” e cado de “intelectualismo” – para um subjetivismo
“deus”. Examinando do ponto de vista cronológi- afetivo baseado no conhecimento científico.
co a obra comtiana, Tiski dividiu-a em quatro fa-
Ao realizar tal investigação, Sérgio Tiski é
ses, que passam de uma adesão à fé católica (1798-
exaustivo e minucioso. Embora isso torne a leitu-
1812) à emancipação com respeito à teologia
ra um tanto cansativa, o resultado é satisfatório,
(1817-1848) até a criação da Religião da Humani-
pois tornam-se claros vários elementos: a conti-
dade (1848-1857), de caráter humano; entre o
nuidade na carreira de Comte; as relações teóri-
cas, epistemológicas e políticas da “religião”, da
teologia e da “positividade”; a possibilidade de um
a religião humana e humanista.
37 Convém notar que Fédi tem participado, juntamente
com Catherine Kintzler e outros, dos vivos debates recen- Há alguns aspectos problemáticos, todavia, no
tes sobre a laicidade na França, citando Comte como uma livro de Tiski; esses problemas não comprome-
das suas referências. Cf. Fédi (2007) e Kintzler (2008). tem a investigação realizada, mas produzem re-

338
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009

sultados estranhos na argumentação do autor e, tempo e que em sua obra mais madura ele pos-
no final das contas, na própria compreensão do suía uma definição bastante particular e distante
pensamento comtiano. Por um lado, há aspectos do senso comum, é precisamente esse sentido do
estilísticos do texto no mínimo desconcertantes, senso comum (que toma como equivalente de re-
que geram uma dubiedade na interpretação que ligião a teologia) que norteia a avaliação de Tiski.
dificulta a compreensão e a apreensão dos argu- Basta notar os segintes comentários da investiga-
mentos pelos leitores. Essa dubiedade é caracteri- ção: na “Introdução”, o autor afirma de maneira
zada pelo uso recorrente de expressões com o simples, direta e reveladora que “Utilizamos o ter-
símbolo gráfico da barra (“/”) e indicam que o mo religião no seu significado mais comum, con-
autor não se decidiu a respeito de qual a interpre- forme aparece nos três trechos a seguir”; em se-
tação que adotaria. Exemplos aleatórios e não guida cita três dicionários vernaculares e resume:
exaustivos: “Os três últimos volumes (lições 46 a “Como se pode notar, a pressuposição básica na
60) são dedicados à Sociologia/moral/política” noção comum de religião é a existência da divin-
(idem, p 160); “[...] supondo a transitividade/ dade, e a necessidade e a possibilidade de relacio-
sinonímia entre os dois termos” (idem, p. 194); namento com ela, que explica e decide a sorte do
“E, referindo-se à unidade, harmonia conseguida homem. [...] Uma grande porção da humanidade
a partir de sua experiência de amor por Clotilde de continua, de um modo ou de outro, sendo religio-
Vaux, unidade/harmonia que se tornaram ‘[...] uma sa nesse sentido tradicional, isto é, acreditando
das bases [...]’” (idem, p. 226); “[...] ao mesmo em divindade sobrenatural e sendo, portanto,
tempo a justificação/legitimação da legitimação da sobrenaturalista. O sobrenaturalismo é comum e
humanidade” (idem, p. 246); “[...] são explicitadas estamos acostumados a ele” (idem, p. 1-2). Em-
as duas funções/finalidades/destinações da religião bora reconheça logo em seguida (idem, p. 3-5) a
[...]” (idem, p. 252). confusão que se produz na compreensão de
Comte o uso desse sentido de senso comum a
Um segundo problema na interpretação de
respeito da “religião” – e, como vimos, consistin-
Tiski refere-se à forma como apreende – e, por-
do exatamente na explicação desses sentidos es-
tanto, expõe – o conceito de “religião” em Comte,
pecíficos o objeto de sua pesquisa –, em outros
ou seja, refere-se ao próprio objeto de sua inves-
trechos o autor reafirma o senso comum. Veja-
tigação; nesse sentido, é um problema mais cen-
mos uma passagem decisiva, nesse sentido: “É
tral. O conjunto da pesquisa de Tiski é satisfatório
óbvio que com o ‘theos’ humanidade e com a re-
no sentido de indicar que Augusto Comte modifi-
ligião da humanidade A. Comte retorna a um teísmo
cou suas concepções a respeito da “religião”, em
e a uma teologia, além de retornar a uma religião.
particular entre as fases da Philosophie e da
Do mesmo modo, com a sua ‘filosofia primei-
Politique, que correspondem às terceira e quarta
ra’39 esboçada, prometida mas não escrita, ele
fases identificadas pelo autor38. Enquanto na pri-
retorna a uma metafísica. [...] A sua ‘metafísica’,
meira dessas duas Comte adotava como sinôni-
o seu ‘teísmo’ e a sua ‘teologia’ são muito dife-
mo de “religião” a teologia, na segunda fase pas-
rentes do tradicional, sobretudo pela restrição ao
sou a distinguir uma coisa da outra, considerando
humano, ao natural e ao científico; nesse sentido,
que a religião é um estado de unidade e harmonia
o não assumir e o não utilizar tais termos evitou
moral e social, do indivíduo e dos grupos huma-
toda a confusão [...]. [...] A sua ‘filosofia pri-
nos e de que a teologia é apenas uma das modali-
meira’ é uma ‘metafísica’, uma espécie de
dades possíveis (e histórica e logicamente transi-
metafísica; o seu humanismo é um ‘teísmo’; e a
tória). Assim, na fase final de Comte, há a afirma-
sua ‘teoria da humanidade’ uma ‘teologia’” (idem,
ção da religião, mas agora humana e humanista:
p. 241; sem grifos no original). Por fim, no últi-
daí o nome de “Religião da Humanidade”.
mo parágrafo do livro: “Teísmo, só que humano:
Ora, mesmo considerando que o conceito de humanismo” (idem, p. 336).
“religião” para Comte modificou-se ao longo do

39 Seguindo uma sugestão de Francis Bacon, a “filosofia


38 As duas primeiras correspondem às da infância e da primeira” de Comte consiste no conjunto de pressupostos
adolescência, o que, embora biograficamente sejam mais ou e procedimentos teóricos e epistemológicos do Positivismo
menos relevantes, não têm de fato nenhuma importância (cf. COMTE, 1934, p. 479; cf. também LAFFITTE, 1894;
para a obra filosófica da maturidade. 1928).

339
AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS

A insistência de Tiski em adotar o senso senti- Parafraseando o líder revolucionário francês


do comum para a exposição das idéias de Comte Georges Danton, Comte afirmava que “só se des-
gera confusão e dificulta o entendimento do que trói o que se substitui” (COMTE, 1899, p. 191):
ele mesmo, Tiski, pesquisa e expõe. Em um mo- não deixou de ser esse o percurso deste artigo. A
mento, afirma que não se pode compreender fim de indicar as contribuições recentes de pes-
Comte a partir do senso comum; em seguida, re- quisadores que apresentam um Comte “clássico”
toma o mesmo sentido comum para expor as idéi- (no sentido de Alexander), foi necessário antes
as de Comte. Essa hesitação teórica não deixa de comentar vários mitos e interpretações erradas a
ser uma variação, mais profunda, do problema seu respeito. Como indicamos anteriormente, a
anteriormente indicado, isto é, do uso do sinal escolha de Giddens como autor preferencial para
gráfico da barra em sua exposição. Por outro lado, a crítica deve-se ao duplo motivo de ser ele o au-
não se trata apenas de uma questão terminológica, tor da narrativa-padrão atual da história da Socio-
isto é, de palavras sendo trocadas, mas de con- logia – narrativa que, a respeito de Comte, apre-
ceitos sendo misturados: como vimos anterior- senta sérias deformações que, longe de serem ino-
mente, e como o próprio Tiski esclarece, a teolo- centes, produzem um resultado teórico e prático
gia (assim como a metafísica) pressupõe o abso- funesto. Mas, sem dúvida, outras tantas observa-
lutismo filosófico e a pesquisa das causas, en- ções poderiam ser feitas a propósito de outros
quanto a positividade requer o relativismo e a busca críticos e comentadores, de que a Escola de Frank-
das regularidades, cada qual com profundas im- furt e mesmo alguns marxistas são bons exem-
plicações sociais (guerra versus pacifismo, con- plos. Não se trata de integrar o debate teórico e
fusão entre Igreja e Estado versus separação entre metodológico próprio às disciplinas científicas,
Igreja e Estado, escravidão versus trabalho livre mas, antes, de evitar um senso comum acadêmi-
etc.). co mais preocupado com a repetição mecânica de
estereótipos que com a reflexão séria do pensa-
Esse problema – a hesitação teórica – de fato
mento de autores – mesmo, e talvez principalmen-
dificulta a compreensão; por outro lado, embora
te, daqueles de quem se discorda.
exija do leitor um esforço redobrado para com-
preender uma argumentação que, por si só, é den- É claro que muitas das críticas direcionadas a
sa, o conjunto da pesquisa não é comprometido: Comte são substantivas e, mesmo sem necessaria-
abstraindo-se dessas dificuldades, o resultado é mente concordar com elas, referem-se a diferen-
satisfatório. ças reais entre as várias correntes de pensamento
social e político; mas não deixa de ser irônico o
IV. COMENTÁRIOS FINAIS
fato de que, como se pode constatar com os livros
Em outra ocasião (LACERDA, 2008a) afirma- de Grange, Fédi e Tiski, muitas das críticas feitas
mos que cumpre recuperar Augusto Comte como ao pensamento que se atribui a Comte são, na ver-
um clássico sociológico, de acordo com a defini- dade, compartilhadas pelo mesmo que é criticado.
ção de Jeffrey Alexander (1996), isto é, como um
Dessa forma, o escrutínio dessa discussão é
autor capaz de fornecer quadros mentais, descri-
altamente instrutivo; poder-se-ia, quem sabe, fa-
ções sociológicas, juízos de valor e modelos de
lar-se em uma “Sociologia das Ciências Sociais”
procedimentos que inspirem e orientem, de ma-
com um “estudo de caso: Comte e seu(s) legado(s)”.
neira viva e efetiva, gerações de pesquisadores e
Trata-se não apenas de recuperar um pensamento
pensadores. É corrente afirmar que Augusto
rico, amplo e sugestivo – literalmente fundamental
Comte é um “clássico” da Sociologia (e, de ma-
–, mas também de evitar automatismos mentais,
neira mais ampla, das Ciências Sociais e Huma-
em que a criatividade e a criticidade recuperam o
nas), mas tal classificação serve mais para incluí-
espaço perdido para a rotulação estereotipada das
lo em um escaninho estereotipado que para
correntes de pensamento.
servirmo-nos efetivamente dele.

Gustavo Biscaia de Lacerda ([email protected]) é Doutorando em Sociologia Política pela Universida-


de Federal de Santa Catarina (UFSC), Sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Editor-Executivo da Revista
de Sociologia e Política.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34: 347-354 OUT. 2009
ABSTRACTS

AUGUSTE COMTE AND “POSITIVISM” REDISCOVERED


Gustavo Biscaia de Lacerda
In this essay we look at some research that has, within the last ten years, revisited the work of
Positivism’s founder, Augusto Comte. This return to his work has consisted of perceiving his work in
its entirety and through its own internal logic, placing particular emphasis on his second great work,
Système de politique positive (1851-1854), and its contributions for contemporary political and
social thought. In order to make the novelty of this new research clearer, we present one of the
standard narratives on Comte and Positivism – in this case, through the work of Anthony Giddens –
; we also go on to discuss the meaning of the term “Positivism” and the various theoretical currents
that come together under this rubric.
Keywords: Positivism; theoretical interpretation; Augusto Comte; Anthony Giddens; Vienna Circle.
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34: 357-365 OUT. 2009
RÉSUMÉS

AUGUSTE COMTE ET LE “POSITIVISME” RÉDÉCOUVERTS


Gustavo Biscaia de Lacerda
Dans cet essai nous abordons les recherches qui au cours des dix dernières années environ se sont
penchées sur l’oeuvre du fondateur du Positivisme, Auguste Comte. Ce retour consiste à comprendre
les travaux de Comte dans leur ampleur et à partir de leur logique interne, surtout en ce qui concerne
son second ouvrage, le Système de politique positive (1851-1854), et ses contributions pour une
réflexion sociale et politique contemporaine. Afin de rendre intelligible la réflexion des nouvelles
recherches, nous présentons un des récits-standards concernant Comte et le Positivisme – en
l’ocurrence, à partir des écrits d’Anthony Giddens – ; en outre, nous discutons du sens du mot
« Positivisme » et des plusieurs courants théoriques sousjacents à cette expression.
MOTS-CLÉS : positivismes ; interprétation théorique ; Auguste Comte ; Anthony Giddens ; Cercle
de Vienne.

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