Ensino Da Historia e Memória Coletiva 232

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E59 Ensino da história e memória coletiva [recurso eletrônico] / Mario Carretero,

Alberto Rosa e Maria Fernanda González (organizadores) ; tradução


Valério Campos. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed, 2007.

Editado também como livro impresso em 2007.


ISBN 978-85-363-1170-8

1. Educação – Fundamentos. 2. História. I. Carretero, Mario.


II. Rosa, Alberto. III. Gonzáles, Maria Fernanda.

CDU 37.01:930

Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho – CRB 10/1798


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Um encontro de disciplinas:
a história das mentalidades e a
psicologia das representações sociais
José Antonio Castorina

PSICOLOGIA E HISTÓRIA

Em outro trabalho (Castorina, 2004) no qual mostramos que a pesquisa em


história e em psicologia do conhecimento social e histórico enfrentam problemas
básicos análogos, destacamos a correspondência das questões referentes a rela-
ções entre compreensão e explicação, sujeito e objeto, mas, sobretudo, entre indi-
víduo e sociedade. Considera-se resolvida a discussão desse último ponto no cam-
po da história, mas ainda não se avançou suficientemente na psicologia do conhe-
cimento da sociedade. Mostrou-se, por exemplo, que os traços de “personalização”
que crianças e adolescentes atribuem aos feitos históricos podem ser interpreta-
dos tanto a partir do conhecimento individual quanto das práticas sociais de que
participam. Inclusive, alguns conhecimentos dos alunos explicam-se pelas catego-
rias da psicologia cognitiva, enquanto outros exigem representações sociais.
Nosso objetivo é buscar um apoio indireto para a tese de que os saberes dos
alunos sobre a sociedade dependem, em boa medida, de representações sociais
que têm uma natureza histórica. Permitimo-nos recuperar a pergunta epistemoló-
gica referente às vinculações entre conhecimento individual e sociedade, mas si-
tuando na história ambos os pólos da relação: a interpretação da história e da
sociedade pelos alunos depende de uma história social de que tomam parte? Ou
provém unicamente de mecanismos universais de conhecimento? A psicologia tem
hoje condições de situar os conhecimentos em um plano histórico? Em que senti-
do as representações sociais são históricas? E, o que é mais importante, propor
uma historização dos saberes sociais é compatível com a atividade construtiva de
cada aluno em sala de aula?
76 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

Algumas destas questões podem ser tratadas empiricamente, mas é preciso


retornar às relações teóricas entre psicologia e história, explorando o significado e
o alcance das categorias de representação social e cultural. Le Goff (1974) já havia
proposto uma articulação das disciplinas a respeito dos estudos sobre as condutas
ou atitudes.
Foi Meyerson (1948) quem formulou explicitamente uma psicologia histórica
baseada no estudo de obras e textos, centradas no rechaço à universalidade das
funções psicológicas e na defesa de sua radical descontinuidade histórica. Essa
perspectiva aproxima-se da teoria das mentalidades dos historiadores (Revel, 1996),
mas também se distingue dela: a noção de mentalidade, como veremos, tem aspi-
rações de totalidade, de abarcar uma época ou uma sociedade, enquanto as for-
mas e funções psicológicas são plurais em uma sociedade; ademais, não podem
ser descritos os feitos mentais externos às expressões simbólicas, diferentemente
do que acontece com os estudos das mentalidades (Chartier, 1996).
Para J. P. Vernant (1965), discípulo de Meyerson, a psicologia histórica situa
“historicamente” as condutas humanas, reconstruindo uma função psicológica atra-
vés do tempo. Enquanto as mentalidades dos historiadores justapõem as histórias
da técnica, a atividade econômica e as práticas sociais, a história psicológica dos
homens é elaborada nelas e dentro delas, sendo que a história psicológica está no
começo, mas, mesmo assim, assumiu decididamente a historização das funções
psicológicas e deve ser considerada pelos historiadores, que utilizaram em grande
escala uma psicologia individualista e naturalista.
Por sua parte, Jodelet (2003) considera que as representações sociais consti-
tuem uma categoria privilegiada para unir psicologia e história, o que também
vale para as mentalidades. Essa autora encontra notável reciprocidade entre ambas
as perspectivas, de modo que a análise de suas convergências e diferenças pode
enriquecer a interpretação teórica de cada uma. Inspiramo-nos parcialmente em
seu estudo, mesmo que venhamos a considerar aquelas relações segundo nossos
próprios problemas.
Vamos examinar algumas convergências entre as representações sociais e as
mentalidades. Ambas desempenharam papel crítico notavelmente similar na his-
tória recente de cada disciplina; as notas que caracterizam as respectivas defini-
ções dessas categorias são igualmente nebulosas; por isso, suas relações com a
ideologia são discutíveis, mas ilustrativas de seus traços mais relevantes; ambas
são o resultado de processos do imaginário das produções intelectuais; além dis-
so, cada uma influi decisivamente sobre a vida prática dos indivíduos; finalmente,
a compreensão de cada uma envolve a articulação entre sociedade e indivíduo. Do
ponto de vista das diferenças, analisamos criticamente a tese segundo a qual as
representações sociais são de curta duração, enquanto as mentalidades são de
longa duração. Voltamos, assim, à questão da historicidade das representações
sociais e examinamos seu significado para a pesquisa psicológica.
Ensino da história e memória coletiva 77

A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES

A historiografia francesa vinculada à Escola dos Annales (Chartier, 1995)


questionou as representações coletivas e as categorias intelectuais compartilhadas
pelos indivíduos em determinada época. Seus traços estão na obra de L. Fevre ou
em M. Bloch e foram corrente de pesquisa na década de 1960, pela obra da Le Goff
(1974), Duby (1974), Volvelle (1982) e Mandrou (1968), entre outros. A palavra
mentalidade provém da filosofia inglesa e refere-se à forma de pensar de um povo,
inclusive, para um pensador individual, “é o que tem em comum com outros ho-
mens do seu tempo” (Le Goff, 1974, p. 83). Ou também “o nível da história das
mentalidades é o do cotidiano e o do automático, o que escapa aos sujeitos indivi-
duais da história porque é revelador do conteúdo impessoal de seu pensamento”
(Le Goff, 1974, p. 85). Ou seja, designa os sistemas de valores e crenças próprias
de uma época ou de um grupo, o que compartilham Colombo e os marinheiros de
suas caravelas ou César e seus soldados.
Todos os autores concordam com a tese básica segundo a qual a crença cole-
tiva regula, sem se explicitar como tal, os valores dos indivíduos. Em outras pala-
vras, um grupo ou a sociedade compartilha um conjunto de representações e valo-
res, não necessariamente tematizados conscientemente pelas pessoas que as
interiorizam. Além disso, os historiadores incluem no campo da mentalidade cole-
tiva a vida afetiva, isto é, são introduzidas categorias psicológicas. Assim, a noção
de mentalidade pretende captar essa combinação de conteúdos intelectuais e va-
lores comuns juntamente com sua carga afetiva e emocional. Tudo isso constitui a
“psique coletiva”.
Finalmente, cabe mencionar que os questionamentos tentaram diferenciar a
história das idéias. Ou seja, enfatizaram os aspectos coletivos das crenças, a
recorrência de elementos inertes, as sobrevivências e os arcaísmos, inclusive irra-
cionais, próprios de uma perspectiva da história sociocultural.
A tradição dos Annales impôs durante anos a nova temática dos métodos
exitosos nos estudos sociais e econômicos. Isto é, um tratamento dos dados homo-
gêneos, repetíveis e comparáveis a intervalos regulares, uma história quantitativa
que, posteriormente, se mostrou insuficiente para dar conta das crenças coletivas.
Outro aspecto da mesma tradição foi a reconstrução do sistema de crenças com
base na análise prévia dos níveis econômico ou profissional. Para a história mais
recente, as crenças ou as práticas culturais não se organizam unicamente em fun-
ção daquelas diferenças sociais. A crise desse enfoque historiográfico levou a uma
profunda revisão dos estudos sobre as mentalidades (Chartier, 1995). Hoje, pode-
se contrapor a chamada “quarta geração dos Annales” desenvolvida na década de
1990 e centrada na história social das práticas culturais, que teve em Chartier
(1995; 1998) um de seus principais expoentes.
78 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

Podem-se citar estudos, diferentes entre si, que pertencem à “história das
mentalidades”: as representações ideológicas do mundo feudal em três estamentos:
os especialistas da oração, do combate e da produção (Duby, 1974); a vivência
popular da peste no século XIV como um castigo divino (Le Goff, 1974); as repre-
sentações da criança e a morte no antigo regime (Áries, 1962); o medo arcaico
que impulsionou a invasão dos camponeses franceses aos castelos, ameaçando a
dominação senhorial (Lefevre, 1956).
Com extrema generosidade, poderíamos ligar esta corrente de pesquisa ao
estudo de Ginzburg (1981) sobre a ascensão da cultura popular que sublinha as
idéias religiosas – vinculadas à tradição camponesa – do moleiro Menocchio, mor-
to na fogueira em meados do século XVII. Contudo, esse autor rechaça explicita-
mente que tenha tratado das mentalidades porque há componentes racionais na
visão de mundo do moleiro, que não aparecem naquelas; sobretudo, porque não
se devem assumir os riscos de uma perspectiva “interclassista” (que une o olhar de
Colombo ao de seus marinheiros), típicas de muitos estudos de mentalidades “co-
letivas”, já que generaliza em toda uma população o que é encontrado em um de
seus extratos.

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Assim como com as mentalidades, faremos uma caracterização geral das re-
presentações sociais, para nos dedicar de imediato aos aspectos pertinentes à nos-
sa discussão. Segundo S. Moscovici (1976), a noção de representações sociais
recupera o conhecimento do sentido comum que inclui aspectos tanto cognitivos
quanto afetivos e orienta a conduta dos indivíduos no mundo social. Essencial-
mente, trata-se de uma representação de um sujeito social imerso em um contexto
histórico e social a respeito de um objeto.
É uma forma de conhecimento prático: emerge das experiências de interação
e comunicação social; constitui-se para assumir novas situações que enfrenta a
atividade dos agentes, e cada indivíduo as utiliza para atuar sobre demais mem-
bros da sociedade. Além disso, as representações sociais são implícitas, no sentido
de que os indivíduos não têm consciência de sua existência como tal. Ou seja, as
produções coletivas, ao ser socialmente produzidas, transbordam a consciência
individual.
Os aspectos cognitivos das representações sociais adquirem para os psicólo-
gos um traço particular: a inclusão da pessoa em um grupo social e sua participa-
ção na cultura. Desse modo, elas contêm um conjunto de significados que delimi-
tam as posições adotadas pelos indivíduos, configurando sua identidade social.
Por outro lado, expressa as necessidades e os valores de um grupo social, o que as
distingue do conhecimento científico. Claramente, as representações sociais não
Ensino da história e memória coletiva 79

são um reflexo da realidade, mas sua estruturação significante, o que faz com que,
para as pessoas, se convertam na própria realidade (Jodelet, 1989a).
A elaboração das representações sociais ocorre mediante os mecanismos de
ancoragem e objetivação. Segundo o último, selecionam-se aspectos do objeto
conceitual (por exemplo, da psicanálise), concretizando-o em um núcleo figurati-
vo. Assim, tais aspectos tornam-se “o real”, ou seja, são naturalizados. Por seu
turno, a ancoragem permite que as situações sociais inesperadas ou “não-familia-
res” sejam assimiladas pelo conjunto de crenças e valores preexistentes, conce-
dendo-lhes algum significado (Moscovici, 1986).
A perspectiva metodológica principal situa as representações sociais em um
processo histórico, buscando reconstruir sua sociogênese nas práticas sociais. Além
disso, os estudos utilizam entrevistas abertas e procedimentos etnográficos, assim
como procedimentos estatísticos no tratamento dos dados. Trata-se de uma com-
binação criativa de métodos qualitativos e quantitativos.
Finalmente, mencionamos alguns dos temas estudados na teoria das repre-
sentações sociais: a psicanálise (Moscovici, 1976), a loucura (Jodelet, 1989b; 1992),
a inteligência (Mugny e Carugati, 1985), o gênero (Lloyd e Duveen, 2003), a
autoridade institucional (Emler, Ohana e Moscovici, 1987), o campo educativo
(Gilly, 1980; Lautier, 1999), a saúde e a doença (Herzlich, 1986). Como se vê, as
pesquisas não tratam das significações sociais que os agentes concedem à totalidade
social, mas a seus setores relativamente bem delimitados.

O PAPEL CRÍTICO DAS CATEGORIAS

Uma reconstrução da história contemporânea das mentalidades e represen-


tações sociais evidencia uma mesma função crítica em suas respectivas disciplinas.
No caso das mentalidades, o novo campo de indagações vai contra a tese
clássica de uma história das idéias centradas nos pensadores e na proposta de uma
relação transparente entre as intenções de quem elabora o pensamento e seus
produtos. Em outras palavras, os historiadores consideraram insuficiente o estudo
das criações intelectuais em termos exclusivamente individuais. Relacionaram es-
sas criações com as representações coletivas, passaram da audácia do pensamento
individual aos limites socioculturais do que é permitido pensar. Diferentemente
das construções conscientes dos indivíduos, a história das mentalidades baseou-se
em sistemas de representações e valores compartilhados, que ajustam os juízos
dos indivíduos sem que eles possam explicitá-los (Chartier, 1995).
No caso das representações sociais, sua formulação é uma reação à psicolo-
gia cognitiva baseada na metáfora do computador, segundo a qual os conhecimentos
são um processamento intrapsicológico da informação. Desse ponto de vista, as
representações são os componentes centrais do cálculo da informação na mente
80 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

individual. Sua principal insuficiência é, para Moscovici, a dificuldade de dar sig-


nificado social a tais representações. A esse respeito, Duveen (2001) evoca a mu-
dança da representação social do lugar de Praga em um mapa da Europa, como
conseqüência do fim da Guerra Fria. Ou seja, a passagem de uma versão ideológica
que a situava no Leste para uma versão geográfica que a coloca no Oeste.
Mesmo que a psicologia cognitiva possa reconhecer a modificação deste enten-
dimento pelas pessoas, não pode explicar seu significado social nem a intervenção
do processo social subjacente. Na verdade, a psicologia social “cognitiva” pode ca-
racterizá-la como um “corte”, revelador da distância entre o conhecimento comum
e o adequado. Pelo contrário, na teoria das representações sociais, as representa-
ções acontecem e sustentam-se por um grupo social, em uma conjuntura histórica.

O CARÁTER “NEBULOSO” DAS DEFINIÇÕES

Constatado o papel crítico desempenhado em cada disciplina, pode-se afir-


mar que a caracterização de ambas as categorias mudou ao longo das pesquisas.
Isto é, não oferecem logo de cara uma definição bem-formulada e precisa; inclusi-
ve, até hoje, não conseguiram se diferenciar com nitidez de outros conceitos das
ciências sociais, entre eles o de ideologia. Jodelet (2003) fala-nos da exigência da
elaboração mais rigorosa da noção, da passagem de uma função principalmente
crítica ou outra mais construtiva, destinada a produzir o conceito.
Volvelle (1985) demonstrou o caráter impreciso de quase todas as definições
das mentalidades. Por exemplo, Mandrou (1968) propõe fazer uma história das
“visões do mundo”, em que aparecem das crenças populares, inclusive as mais
arcaicas, às ideologias mais sistematizadas. Assim, a própria evolução do conteúdo
da categoria confirma essa impressão e sua dificuldade para encontrar uma iden-
tidade conceitual: de uma história centrada na cultura ou na forma de pensar
coletiva a uma reconstrução das atitudes ou das representações coletivas “incons-
cientes” referentes à infância, doença, sexualidade ou morte. Assim, enquanto
Mandrou (1968) estuda a mudança do olhar das elites quando se deixa de queimar
bruxas, Duby trata da crença na peste em grandes populações do século XIV.
Jahoda (1988) foi o primeiro psicólogo a mostrar as fraquezas epistemológicas
na construção do conceito de representação social na obra de Moscovici, como seu
caráter vago e amplo, e certa inconsistência em suas notas. Não há dúvida de que
a amplitude do termo tornou difícil distingui-lo de outras categorias sociais – como
a ideologia, as “teorias implícitas” ou as atitudes – ou ainda encontrar critérios
para identificar sem erro seus indicadores empíricos. Como no caso das mentali-
dades, a questão interessante é se se trata de dificuldades insuperáveis ou se ape-
nas expressam um momento na história da constituição de um conceito científico.
Um caso típico é a relação das mentalidades e as representações sociais com
a ideologia, considerando a diversidade de acepções desta última nas ciências
sociais. Duby (1974) identifica as mentalidades com a ideologia, uma espécie de
Ensino da história e memória coletiva 81

imagem simplificada da organização social, que deixa de lado os matizes e a com-


plexidade dos fenômenos sociais. Destacam-se as distinções e as hierarquias so-
ciais, com um propósito conservador. Assim, a sociedade medieval, com uma base
agrária, aparece ante os indivíduos naturalmente dividida entre os cavalheiros, os
clérigos e os camponeses.
Por seu turno, Volvelle (1985) mostrou que, de determinado enfoque histó-
rico, as mentalidades são “o que fica de uma ideologia”, ou seja, são as marcas no
imaginário coletivo de uma concepção da sociedade que perdeu suas raízes, o que
o autor expressa com uma metáfora: “Ao abrir o armário de sua avó, se descobre
nele o essencial” (Duby, 1974, p. 16). Seguindo esse caminho, os historiadores
chegam a uma aparente oposição das mentalidades com a ideologia, em que as
primeiras se tornam cada vez mais autônomas a respeito das estruturas econômi-
co-sociais ou das concepções do mundo. Assim, as atitudes e os comportamentos
sobre a infância em l’Ancien Regime não se inferem de alguma interpretação filosó-
fica ou religiosa do mundo (Áries, 1962).
Ao resumir esta discussão, Volvelle sustenta que o problema das mediações
entre as condições da vida social e sua imagem é comum tanto a uma versão não
mecanicista da ideologia como à teoria das mentalidades. Inclusive, a própria men-
talidade não precisa abarcar somente “o espírito de uma época” – outra vez, o que
compartilham Colombo e os marinheiros – mas pode incluir as tensões e os conflitos
entre as classes (Volvelle, 1989). Atualmente, é necessário pensar em uma possí-
vel reconciliação entre ambos os termos, a partir da discussão da generalidade
social atribuída à categoria.
No caso das representações sociais, o fato de que expressam e até justificam,
de uma perspectiva sociocêntrica, os interesses e os valores de um grupo social, as
liga à ideologia. Mas, como já mostramos, não são idênticas porque as representa-
ções sociais são conhecimentos cotidianos em um contexto histórico social bastante
preciso (Jodelet, 2003). Pode-se dizer que as representações sociais têm um con-
teúdo ideológico ou colocam-se sobre o horizonte de uma concepção do mundo,
mas segundo processos genéticos a respeito de temas específicos (como o gênero
ou a Aids) na interação e comunicação social.
Contudo, Marková (1996) tem uma interpretação ligeiramente diferente: en-
quanto a ideologia seria o pronunciamento explícito dos grupos políticos no po-
der, as representações sociais são implicitamente compartilhadas por muitas pes-
soas em sua vida cotidiana, além dos grupos de poder. Mas, se as ideologias ex-
pandem-se sobre os “leigos” e tornam-se implícitas, podem ser tratadas como re-
presentações sociais. Como se vê, ante a precisão da categoria de representações
sociais, como as mentalidades, a questão da ideologia depende não só de sua
amplitude, como também da diversidade de acepções do termo “ideologia”.
Mas, em nossa opinião, o caráter duvidoso das categorias não é uma dificul-
dade definitiva, e sim uma instância inevitável de sua constituição como conceitos
científicos. Sem dúvida, estamos em pleno processo de transição da função crítica
à função construtiva das representações sociais e mentalidades, como queria
82 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

Jodelet. Novamente evocamos o questionamento de Jahoda e sua tese de que a


teoria das representações sociais deu menos contribuições relevantes à psicologia
social do que a retórica.
De modo contrário, acreditamos que houve um substancial avanço dos co-
nhecimentos produzidos pela psicologia social. Nesse sentido, a importância
epistêmica de um conceito ou de uma teoria nas ciências sociais é avaliada por sua
capacidade de tornar inteligíveis os fenômenos do campo de estudo e suscitar
problemas que possam ser abordados com métodos apropriados (Castorina e
Kaplan, 2003). Exige-se ainda certa clareza e precisão para sustentar questões em
diversas áreas (Duveen, 2001). Pode-se dizer que tais questões se produziram por
um presumível desejo, antes de ter uma definição estrita e rigorosa. Provavelmente,
se possa afirmar o mesmo sobre a situação na história das mentalidades.

OUTRAS CONVERGÊNCIAS

Há aspectos das representações sociais e das mentalidades que demonstram


enorme correspondência: as crenças coletivas não traduzem diretamente as idéias
propriamente intelectuais de que provêm; têm um papel fortemente orientador
dos comportamentos dos agentes sociais; as condições sociais se impõem, mas
admitem uma participação individual.
Em primeiro lugar, como foi dito, as mentalidades referem-se às crenças co-
letivas que fazem parte, mais ou menos automaticamente, da vida cotidiana e,
assim, não são conscientes para as pessoas na história. Porém, vivências e compor-
tamentos cotidianos são, muitas vezes, influenciados pelas concepções ideológi-
cas da época. Mas a transmissão vertical dos sistemas de idéias religiosas aos mem-
bros da sociedade modifica as articulações lógicas e as argumentações teológicas.
Assim, a equação peste e castigo, proposta pelos clérigos medievais a partir das
idéias de Santo Agostinho e São Tomás, é reinterpretada, em termos figurativos e
imaginativos, nas vivências das pessoas, inclusive em seus comportamentos.
Estamos muitos distantes das argúcias da atividade intelectual (Le Goff, 1974).
Por seu turno, boa parte das representações sociais deriva de processo seme-
lhante, mesmo que se trate da propagação, propaganda e difusão das teorias cien-
tíficas no mundo moderno. Isto é, os conceitos perdem sua abstração e tornam-se
um complexo de imagens concretas; além disso, as idéias perdem seu caráter his-
tórico e tornam-se realidade, se naturalizam. Assim, os atributos ou as relações
conceituais construídas na teoria psicanalítica tornam-se substantivos ou se
“coisificam”. É o que acontece com a crença social relativa a “o” inconsciente ou
“a” repressão (Moscovici, 1976).
Em segundo lugar, a história das mentalidades mostrou que as crenças orien-
tam as práticas coletivas. Pode-se dizer que estas são incompreensíveis sem
relacioná-las com os sistemas de significação social. Entre outros, destacamos o
Ensino da história e memória coletiva 83

estudo de Lefevre sobre o rumor – “uma gigantesca notícia falsa” – em Le Grand


Peur. Em 1789, os camponeses franceses acreditavam na existência de um plano
de vingança dos nobres, que teriam contratado pistoleiros. A conseqüente ocupa-
ção dos castelos e a destruição dos símbolos da nobreza são testemunho da força
desse medo arcaico, vinculado ao mito do “salteador” ou do “complô”. Se as repre-
sentações levam à ação ou à passividade, é possível deduzir que há uma certa
capacidade para impô-las ou torná-las aceitáveis, um certo exercício do poder.
A psicologia social, por seu lado, outorga às representações sociais uma fun-
ção na vida dos grupos. São, principalmente, conhecimentos práticos que, ao
reordenar significativamente os componentes do mundo, dão outro significado
aos atos sociais. Assim, tendem a influir sobre os comportamentos. Por exemplo: o
mundo da doença mental definido pelo senso comum de uma comunidade rural
determina em boa medida os atos do grupo com os doentes (Jodelet, 2003). Além
disso, as representações sociais são elaboradas para conjurar o “vazio existencial”
que acontece quando fatos incompreensíveis ou estranhos, como a AIDS, criam
uma “realidade social” para preencher uma fissura na cultura. Assim, os atos se-
guintes das pessoas recuperam seu sentido.
Por último, recordamos a crise dos estudos das mentalidades baseados nos
critérios dos Annales, a insatisfação dos historiadores ante uma história quantita-
tiva das crenças e a tese de que as práticas culturais se organizam somente a partir
das divisões sociais existentes e, mais do que isso, uma distribuição estatística que
fazia sumir o sujeito, individual ou coletivo. Ou seja, não era considerada a forma
como alguém se apropriava das idéias coletivas ou de uma obra cultural.
Por outro lado, os estudos posteriores seguem outra orientação. Assim,
Ginzburg procurou interpretar como um grupo social ou indivíduo comum (o
moedor Menocchio no século XV) se apropria, do seu jeito – que pode ser
deformante ou mutilador – das crenças de sua época. “Da cultura de sua época e
de sua própria classe, ninguém escapa [...] Como a língua, a cultura oferece ao
indivíduo um horizonte de possibilidades latentes, uma jaula flexível [...] Com
clareza e lucidez, Menocchio articulou a linguagem de que dispunha historica-
mente” (1986, p. 22).
Moscovici rechaçou a cisão entre indivíduo e sociedade, característica da
teoria das representações coletivas de Durkheim. A maioria de seus discípulos
destacou a articulação entre a produção social das representações sociais e a par-
ticipação dos agentes sociais. Qualquer agente tem maneiras específicas de com-
preender, comunicar e atuar sobre o mundo social: “Uma vez que comprometem
seu pensamento, as pessoas não reproduzem e reciclam seu entorno social simbó-
lico de maneira habitual e automática, mas o incorporam a seu esquema cogniti-
vo” (Marková, 1996, p. 164). Quanto a isso, destacamos um estudo recente sobre
a influência da representação de gênero na transformação dos julgamentos mo-
rais das crianças. Esse estudo utiliza a elaboração individual dos argumentos
heterônomos ou autônomos no estilo de Piaget (Leman e Duveen, 1999).
84 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

OS TEMPOS DE LONGA E CURTA DURAÇÃO

Uma tese central da versão clássica da história das mentalidades é que elas
são de longa duração, de acordo com o enfoque da escola dos Annales. Os historia-
dores mostram que as mentalidades mudam de forma muito lenta, justamente por
serem vinculadas “às profundidades” das representações arcaicas, autênticas mar-
cas residuais das concepções mais intelectuais; isto é, um mundo que carece da
agilidade dos instrumentos dos meios intelectuais, muito mais suscetíveis à modi-
ficação.
Le Goff (1999) exemplifica com o conceito de autoridade na Idade Média. Os
pensadores rechaçavam a novidade e refugiavam-se sempre na autoridade da Bí-
blia; mesmo quando o pensamento escolástico renovava os problemas filosóficos,
limitavam-se a afirmar a autoridade dos professores. Até os magistri do século XII,
no nascente mundo acadêmico, voltam a assumir traços e funções sagradas. Esse
autor ainda destaca que a mentalidade medieval que negava a perspectiva na arte,
na história, não chegava a assumir essa dualidade. Assim, os cruzados que iam a
Jerusalém acreditavam que iam matar os carrascos de Cristo, e não seus sucesso-
res ou os filhos de seus sucessores.
Para os historiadores dos Annales, as mentalidades são zonas de relativa imo-
bilidade das crenças coletivas e constituem uma expressão do atraso da evolução
mental em relação à evolução econômica, técnica e social. Segundo Braudel, são o
lugar das “prisões de longa duração”. Mesmo aceitando a existência dessas cren-
ças e sua lenta modificação, os historiadores posteriores não desprezaram os tra-
ços do instante e da brusca mudança. Segundo Volvelle (1989), deve-se incluir o
estudo de uma revolução, particularmente a francesa de 1789, com suas rupturas
abruptas. Uma história das “festas revolucionárias”, as “resistências” ou a
descristianização dos costumes, com seus respectivos contrastes de classe.
As representações sociais foram postuladas por Moscovici para dar conta das
interpretações do senso comum que não correspondiam às representações coleti-
vas de Durkheim. Uma das principais razões é que elas se referem a formas de
consciência social cuja transformação é lenta, enquanto as representações sociais
mudam mais aceleradamente. Elas se associam aos intercâmbios sociais cotidia-
nos da vida moderna, criam e recriam a si mesmas em condições que as tornam
muito mais maleáveis ou mutáveis. Sem dúvida, algumas representações sociais
apresentam uma forte estabilidade temporal, como demonstram os estudos de
gênero. Mas boa parte delas apresenta uma história relativamente breve, com
modificações significativas.
Um estudo sobre a representação da inteligência em professores franceses,
realizado entre 1978 e 1988 (Lautier, 2001), evidencia a noção de curta duração.
Os jovens docentes de 1978 contrastam a inteligência e a criatividade, o que se
vincula muito claramente com os debates típicos do maio de 1968 na França.
Enquanto a inteligência era interpretada como sinônimo de segurança, rigidez e
controle, a criatividade envolvia um compromisso emocional e era própria da ima-
Ensino da história e memória coletiva 85

ginação. Em compensação, para os jovens professores de 1988, a concepção da


criatividade está muito próxima da inteligência, de tal modo que a competitividade,
que em 1978 parecia aos jovens contraposta à criatividade, é agora um traço co-
mum à inteligência e à criatividade.
Moscovici (1987) considerou que a diferença entre mentalidades e represen-
tações sociais é questão de escalas temporais, de longa e curta duração. Por seu
turno, Jodelet (2003, p. 108) afirma: “As mentalidades comprometem o passado e
o longo prazo, as representações, o termo curto e um tempo acelerado, incluindo
precipitações conjunturais em razão dos meios de comunicação contemporâneos”.
Portanto, as diferenças de escala temporal, mesmo com as ressalvas feitas, mos-
tram um certo desajuste entre as categorias.
Cabe assinalar que os estudos realizados em cada disciplina podem ajudar a
iluminar as mudanças que se realizam na outra, contrastando os caminhos de
pesquisa e a dinâmica interna das modificações constatadas. Por um lado, os pro-
cessos psicológicos comprometidos nas mentalidades e especialmente em sua inércia
podem se refinar mediante o estudo psicológico das modificações das represen-
tações sociais. Por outro, a perspectiva dos historiadores sobre episódios de épo-
cas distintas pode reorientar o interesse dos psicólogos, já que a utilização dos
documentos históricos contribui para reconstruir as transformações de uma re-
presentação social, destacando seus aspectos arcaicos ou seu dinamismo (Jodelet,
1984).

O SIGNIFICADO DA RECIPROCIDADE

Finalmente, insistimos nas perguntas formuladas na introdução deste artigo.


Nossa inquietação é com o processo de aprendizagem das noções sociais e históri-
cas do ponto de vista da psicologia do conhecimento. Para articular a elaboração
conceitual dos conteúdos curriculares de cada aluno (estudada por psicólogos
cognitivos) com a índole social de alguns de seus saberes prévios, é preciso que
estejam bem-estabelecidos. Este trabalho não contribui com dados empíricos para
tal exigência, mas, ao estabelecer novos vínculos entre as histórias e a psicologia,
dá-se um argumento simples e indireto a favor da intervenção das crenças coletivas
no conhecimento histórico. A quase superposição entre as representações sociais e
as mentalidades, o fato de que os historiadores e psicólogos sociais possam cruzar
seus descobrimentos, que uns comecem a olhar a pesquisa dos outros, tudo isso
não pode deixar indiferentes os psicólogos do conhecimento social.
Em outras palavras, pode-se continuar procurando nos alunos somente os
instrumentos universais que lhes permitem pensar a história ou a política? Isto é,
é lícito pensar que a “personalização” dos fatos históricos que mostram as indaga-
ções derive unicamente da projeção de “teorias mentalistas” ou do egocentrismo
infantil? Além disso, as crenças históricas de uma comunidade “influem” unica-
mente como inputs externos para um aparato mental ou são também formadoras
86 Mario Carretero, Alberto Rosa, María Fernanda González & cols.

da subjetividade social? Em nossa opinião, os psicólogos cognitivos ou genéticos


têm que se interrogar considerando a reciprocidade entre psicologia social e histó-
ria. A convergência das disciplinas que mostramos na análise das crenças parece
válida para estudar o conhecimento histórico de crianças e adolescentes, assim
como o dos adultos. Isto é, as crenças se configuram historicamente e se impõem
à consciência individual, mesmo que sem determiná-la em sentido único. Espera-
mos uma renovação do interesse em situar certas crenças dos alunos na história e
em conceder participação relevante à subjetividade social na aquisição do conhe-
cimento histórico e político.
Uma lição fundamental vem da historização das crenças, para o que ambas
as disciplinas contribuem. Quando os historiadores e os psicólogos necessitam das
condições sob as quais emergem as representações sociais e as mentalidades, tor-
na-se suspeita a universalidade de certos modos de pensamento sobre a socieda-
de. O que não muda na construção cognitiva pode-se vincular dialeticamente com
a reiteração de certas situações históricas e culturais, nas quais surgem as crenças,
como assinala Jodelet (2003) a propósito da representação social da loucura em
um meio rural.
Por este caminho, impulsiona-se a desnaturalização do senso comum, o que
não é pouca coisa para os psicólogos do conhecimento social. Além disso, contri-
bui-se para vincular o destino da psicologia do conhecimento à história social, não
a reduzindo à busca de um processo intelectual universal ou de um aparato natu-
ral de processamento. Nesse sentido, evocamos uma idéia central de Meyerson,
por mais discutível ou escandalosa que possa parecer: o trabalho da psicologia
histórica não é referir as variações das obras ou fatos dos históricos a uma função
ou categoria mental permanente que nelas se expressaria. “O homem fabricou
suas funções psicológicas em suas obras e suas obras atuaram sobre ele” (citado
por Chartier, 1996), ou seja, derivam de uma construção histórica.*

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*
Agradeço a colaboração de N. Pizzarroso, da UPND, por suas observações sobre a escola
francesa de psicologia histórica e pela bibliografia que me apresentou.
Ensino da história e memória coletiva 87
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