Mitos Contemporâneos - A Criação Publicitária

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F
ERNANDO Z
ARPELON
ECA/US
P
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e A rtes

Mitos Contemporâneos
A Criação Corporativa

Fernando Z arpelon
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, no Departamento de Relações
Públicas, Publicidade e Propaganda e Turismo para obter graduação
de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade
e Propaganda.

Prof. Orientador: Dr. Eneus Trindade Barreto Filho

São Paulo
2007
La Fable et la Vérité A Fábula e a Verdade

La Verité toute nue A Verdade toda nua


Sortir un jour de son puits. Sai um dia de seu poço.
Ses attrait par le temps étaient un peu détruiits. Os encantos, pelo tempo, foram um pouco destruídos.
Jeune et vieux fuyaient sa vue. Jovens e velhos fogem de sua vista.
La pauvre Vérité restait là morfondue, A pobre Verdade espera em vão,
Sans trouver um asile oú pouvoir habiter. Sem encontrar um asilo onde possa habitar.
A ses yeux vient se présenter A seus olhos vem se apresentar
La Fable richement vêtue. A Fábula ricamente vestida.
Portant plumes et diamants, Portando plumas e diamantes,
La plupart faux, mais trés brilliant. A maior parte falsos, mas muito brilhantes.
Eh! Vous voilà, bonjour, dit-elle: Ei! Você aí, bom-dia, diz ela:
Que fait vous ici seule sur un chemin? O que faz aqui sozinha no caminho?
La Vérité répond: Vous le voyeuz, je gèle. A Verdade responde: Veja você, eu congelo.
Aux passants je demande en vain Aos que passam eu peço em vão
De me donner une retraîte, Que me dêem um refúgio,
Je leur fais peur à tous. Hélas! Je le vois bien. eu amedronto a todos. Maldição! Agora entendo.
Vieille femme n’obtient plus rien. Velhas senhoras não conseguem mais nada.
Nous êtes pourtant ma cadette, Nós somos portanto, minha caçula,
Dit la Fable, sans vanité. Diz a Fábula, sem vaidade.
Partout je suis fort bien reçue. Por toda parte sou bem recebida.
Mais aussi, dame Vérité, Mas assim, dama Verdade,
Pourquoi vous montrer tout nue? Porque você se apresenta toda nua?
Cela n’est pas adroît. Tenez, arrangeons-nous; Assim não está certo. Contenha-se, arranjemo-nos;
Qu’un même intérêt nous rassemble: Que um mesmo interesse nos reúne:
Venez sous mon manteau, nous marcheron ensemble. Venha sobre meu manto, nós marcharemos unidas.
Chez le sage, à cause de vous. Junto aos sábios, por sua causa
Je ne serai point rebutée. Eu não serei rejeitada.
A cause de moi, chez le fous. Por minha causa, junto aos tolos
Vous ne serez point maltraitée. você não será maltratada.
Servant par ce moyen chacun selon son goût, Servindo deste modo, cada um ao próprio gosto,
Grâce à votre raison et grâce à ma folie, Graças à sua razão e à minha loucura,
Vous verrez, ma sœur, que partout Você verá, minha irmã, que por toda parte
nous passerons de compagnie. nós passaremos em companhia.

Jean-Pierre Claris de
Florian, c. 1785
Lista de Imagens e Gráficos

capa: Montagem Própria a partir da imagem carregada em 01/08/2006 por kamshots,


http://www.flickr.com/photos/kamshots/204048386 em 10/06/2007.
1. Ilustração Própria: Diagrama da Tópica descrito por Gilbert Durand.
2. Carregada em 06/04/2007, por Orchard Lake,
http://www.flickr.com/photos/orchardlake/448542536/ em 21/05/2007.
3. http://www.historicart.se/HA_Replica_Catalogue_egyptian.htm em 21/05/2007.
4. http://www.mjausson.com/2002/img/31Mar02/05demeter02.jpg em 21/05/2007.
5. http://photo.xanga.com/masquerading_love/b509f103288509/photo.html
em 21/05/2007.
6. http://www.ufrsd.net/staffwww/stefanl/myths/hercules.jpg em 03/06/2007.
7. Alexandre Cabanel, 1863, Museu d´Orçay, Paris, França.
8. Carregada em 29/11/2005, por Cybjorg,
http://www.flickr.com/photos/cybjorg/68265465/ em 21/05/2007.
9. Ilustração Própria: Bacia Semântica deságua no “Oceano da
Contemporaneidade”.
10. Vadim Onishchenko, www.wildlife-photo.org, 2004-2005.
11. http://www.linsdomain.com/gods&goddesses/anubis.htm em 21/05/2007.
12. Sandro Botticelli, c.1483, The National Gallery, Londres, RU.
13. Carregada em 07/02/2007, por bazarmiraofertas,
http://www.flickr.com/photos/bazarmiraofertas/383113194/ em 21/05/2007.
14. http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Flags_of_the_Union_ Jack.png
em 21/05/2007.
15. Eugène Delacroix, 1830, Museu do Louvre, Paris, França.
16. http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/archive/a/
af/20070108180923!Image-IPod_5G,_nano_2G,_shuffle_2G.jpg em 21/05/2007
17. http://www.stereo3d.com/img/siemensglobalplayer.jpg em 21/05/2007.
18. Carregada em 07/04/2006, por carambar67,
http://www.flickr.com/photos/82241344@N00/124622125/ em 31/03/2006.
19. http://www.cccpfashion.com/images/CCCP-3-big.jpg
20. Michel Pastoureau; Heraldry: Its Origins and Meaning,
London, U.K.: Thames & Hudson Ltd, 2001, p. 56.
21. Michel Pastoureau; Heraldry: Its Origins and Meaning,
London, U.K.: Thames & Hudson Ltd, 2001, p. 57.
22. http://www.rohdesign.com/weblog/img/photos/National_Park_
Service_9-11_Statue_of_Liberty_and_WTC_fire.jpg em 21/05/2007.
23. http://www.mirrors.org/historical/2001-09-11-World-Trade_Center/
wtc/wtc_005.jpg em 21/05/2007.
24. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.
25. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.
26. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007. Agradecimentos
27. Phillippe Codognethttp://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.
28. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

A
29. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007. gradeço primeiramente todos os deuses, santos (especialmente
30. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007. Santo Expedito), heróis, entidades, duendes, orixás e seres espi-
31. Carlos Lunetta, The articulation of visual experiences through rituais que podem de alguma forma ter influenciado e ajudado na
algorithm, Boston, E.U.A.: Massachusetts College of Art, 2005, p. 24 realização deste trabalho. Não fosse por eles, seria preciso, além de tudo,
32. http://www.bergoiata.org/fe/800-1024-1280/New_York--Times_Square.jpg escolher outro tema de pesquisa.
em 21/05/2007.
Agradeço à Escola de Comunicações e Artes e demais unidades que
33. Carregada em 28/07/2006, por Straws pulled at random,
http://www.flickr.com/photos/ste/176933584/ em 21/05/2007. freqüentei na Universidade de São Paulo; todos os funcionários, profes-
34. Carregada em 23/09/2006, por Mantelli, sores e colegas com quem convivo desde de 2001 e que possibilitaram
http://www.flickr.com/photos/mantelli/250820227/ em 21/05/2007. minha formação acadêmica.
35. http://www.in70mm.com/news/2004/circlorama/images/ Agradeço à Mundrungagem Cósmica, à galera do Vamoaê, aos PPTrutas
circlorama_picadilly_circus.jpg em 21/05/2007. e todos os grupos e e-grupos de amigos com quem compartilho idéias,
36. Carregada em 23/11/2006, por kridgett kreations, http://www.flickr.com/ inspirações, valores, referências, contatos e grandes amizades, tanto nas
photos/kridgett_kreations/304491286/ em 21/05/2007.
baladas, como no dia-a-dia das repúblicas e online.
37. Carregada em 11/10/2006, por powerbooktrance,
http://www.flickr.com/photos/powerbooktrance/267059283/ em 21/05/2007. Um agradecimento especial às pessoas que diretamente me auxiliaram
38. Carregada em 22/02/2007, por weathershenker, neste estudo: Eneus Trindade, atencioso professor orientador; Carlos
http://www.flickr.com/photos/98496150@N00/398569554/ em 21/05/2007. Lunetta, “patrão”, amigo e grande referência bibliográfica; Maira S.
39. Carregada em 08/01/2007, por Justin Hiltz, Albuquerque com quem viajei, visitei, conversei e aprendi muito sobre his-
http://www.flickr.com/photos/deadmole/351247777/ em 21/05/2007. tória e mitologia; Paula K. Santos, grande amiga que me “salvou” na edição
40. Carregada em 25/09/2005, por hipertoto, do trabalho; à família Dazroo Butantã: Sherlon, Flavião, Carol “Ambrô”,
http://www.flickr.com/photos/30643794@N00/46441489/ em 21/05/2007.
André “Legal”, Maria Regina, Adriano “Sapo”, Yara, Ami “San” e todos os
41. Carregada em 01/10/2005, por jaimelondonboy,
http://www.flickr.com/photos/38575691@N00/48487565/ em 21/05/2007. agregados (que não caberiam nesta página) tão compreensivos e impresci-
42. http://www.dcs.ed.ac.uk/teaching/cs4/www/graphics/ díveis para que o trabalho finalmente “saísse do quarto”.
Web/intro_graphics/cgrasp.jpg em 21/05/2007. Finalmente – e mais importante de todos – agradeço à minha família,
43. http://www.cea.wsu.edu/Content/Headers/virtualrealS05.jpg em 21/05/2007. aos meus pais e ao meu irmão que, mesmo longe fisicamente agora, nun-
44. http://us.movies1.yimg.com/movies.yahoo.com/images/hv/photo/ ca mediram esforços, diálogo, apoio e amor durante toda minha vida para
movie_pix/warner_brothers/the_matrix/matrixjacks.jpg em 21/05/2007. que pudesse ultrapassar os momentos difíceis com confiança e otimismo.
45. Carregada em 14/09/2004, por andyi, Este trabalho é dedicado a vocês.
http://www.flickr.com/photos/andyi/434460/ em 21/05/2007.
46. Carregada em 16/03/2007, por L’Oréal Paris Second Life,
http://www.flickr.com/photos/7354016@N02/422905842/ em 21/05/2007.
47. Carregada em 23/10/2006, por Silvery,
http://www.flickr.com/photos/silvery/278058062/ em 21/05/2007.
48. Carregada em 12/08/2006, por Stephanie Booth, Muito Obrigado!
http://www.flickr.com/photos/bunny/213397504/ em 21/05/2007.
Sumário

1 Introdução.................................................................................... 11

Iconoclastia vs. Iconolatria.......................................................... 13


2 2.1 Os Símbolos: Mitos e Arquétipos............................................. 15
2.2 Pensamento Mitológico e Pensamento Científico..................... 31
2.3 A Propagação Mítica Estrutural e sua Função Social............... 41
2.4 Evolução do Pensamento Mitológico ao Pensamento Científico.......47
2.5 A Criatividade, a Dinâmica dos Sistemas Simbólicos, o Caos no
Senso Comum e a Queda do Determinismo Lógico no Ocidente.. 63

Semiótica na Internet e Contemporaneidade............................ 73


3 3.1 Enunciação na Internet: Conceitos e Aplicações...................... 75
3.2 Sistemas Computacionais como Sistemas Simbólicos.............. 81
3.3 O Contexto Mercadológico, Pós-Industrial e Global................ 87
3.4 O Sagrado Corporativo: Ícones e Imaginário na
Contemporaneidade....................................................................... 99
3.5 Realidades Virtuais e Rituais Xamânicos ................................ 99

Mitos Contemporâneos............................................................107
4 4.1 Produção Mitológica Contemporânea na Coleção Puma French 109
4.2.Enunciação Mítica: Elementos Dialógicos e Aplicações
Mercadológicas............................................................................ 113

5 Considerações Finais................................................................. 119

Bibliografia................................................................................. 123
Webiografia................................................................................ 125
Anexos........................................................................................ 127
I: Coleção Puma French 77 – Apresentação para Vendas e
Apresentação da Campanha........................................................ 129
II: Coleção Puma French 77 – Cenas de http://www.puma.com/
french77...................................................................................... 151
III: Coleção Puma French 77 – Letra da Música: “For Energy Infinite”.... 159
1 Introdução

A
tarefa de distinção entre o que é verdade e o que é fantasia talvez seja
a mais recorrente no nosso dia-a-dia social. Ainda que exista o con-
senso sobre o que cada um destes qualitativos signifique, a tarefa de
atribuí-los a um discurso em particular não é nada fácil. O que nos leva a esco-
lher entre o que acreditamos e o que não acreditamos faz parte das particula-
ridades subjetivas de cada um, dos contextos, do conteúdo dos discursos e das
culturas envolvidas, e isso para todos os momentos da nossa existência.
O conhecimento dessas relações é de interesse particularmente importan-
te para a enunciação publicitária, que usa e abusa do trânsito entre os pólos
do fantástico e do verdadeiro. A publicidade é sempre ambígua em seu aspec-
to mais íntimo, pois é um discurso articulado por símbolos dispostos a fim
de persuadir os receptores a fazerem, ou acreditarem em algo. Estes objeti-
vos intrínsecos aos discursos publicitários lhes fazem recorrer à apropriação
de imagens e figuras, cujas linguagens metafóricas não podem desfrutar de
absoluto consenso conceitual em uma sociedade de classes. Por mais que use-
mos símbolos e eles tenham referência comum, cada um de nós guarda sig-
nificados de uma maneira pessoal e íntima que traduz a nossa identidade
através da relação que temos com eles.
As imagens e figuras têm compreensão muito mais instantânea e geral do
que os discursos lógicos, pois são formas inconscientes de percepção. Estão
conectadas com a satisfação dos nossos desejos, nossas pulsões e nossas neces-
sidades particulares e irracionais. Via de regra, a necessidade pessoal é mais
urgente do que a necessidade do grupo. Inclusive, foi para facilitar a solução das
necessidades pessoais através força sinérgica das ações em grupo que acredita-
mos, hoje em dia, que o ser humano tenha desenvolvido e evoluído a própria
linguagem. O sistema semiótico, assim concebido pela cultura, atribui dinami-
camente valores sociais (e econômicos) maiores ou menores aos símbolos que
articula. Além disso, é este mesmo sistema (que também é ideológico) quem gera
e conceitua a própria realidade para qualquer coletividade que o compartilhe.
Principal operadora destas imagens e símbolos na sociedade hoje, a publi-
cidade é a enunciação do capitalismo corporativo e pós-industrial por exce-
lência. O Ocidente, como veremos, sempre procurou destituir o poder das

11
2
imagens através de técnicas, métodos e condutas que as rejeitassem dentro
de seus sistemas e isso nos possibilitou avanços tecnológicos e científicos. Iconoclastia
Porém, ignorar e combater as imagens totalmente sempre se mostrou infru- vs. Iconolatria
tífero. Além disso, recentemente estes esforços vêm sendo pouco a pouco
abandonados em favor do processo de globalização dos mercados, que é enca-
beçado pelas instituições corporativas.
A pós-modernidade, ou modernidade-mundo, e a série de novas caracte-
rísticas incorporadas à sociedade pelas novas tecnologias, e pelo atual con-
texto evolutivo dos sistemas simbólicos, inauguram novas formas de organi-
zação social e novas perspectivas de mundo. Estas novas relações simbólicas
dizem respeito à maneira como nos identificamos para conosco, para com os
outros e, em muitos aspectos, remontam velhas estruturas sociais que acre-
ditávamos decadentes. Estruturas neotribais surgem para darmos conta de
explicar novos contextos e situações sociais com os quais nos deparamos na
contemporaneidade. O discurso oficial do mundo globalizado, sob o “man-
to” da publicidade, cria e dispõe ao público diversas realidades, parciais e
diluídas, que passeiam livres entre verdade e fantasia.
A vivência de realidades parciais pode ser experimentada de muitas manei-
ras através do acesso ao universo imaginário. Os mitos e sonhos, os transes
e rituais, os heróis e anti-heróis, todos são elementos facetados do universo
imaginário, do inconsciente coletivo, da nossa memória comum.
Pretendemos com este trabalho entender aspectos e características da moder-
nidade-mundo dentro do imaginário. Analisaremos a articulação dos meios e
discursos de suas instituições através da uma leitura de uma campanha publi-
citária inserida no contexto do mercado global. Com ênfase dos elementos sim-
bólicos que constituem esta comunicação sob uma perspectiva mitológica, bus-
caremos abarcar os aspectos trazidos pelas novas mídias nesta análise.
O modo que uma sociedade entende e atua no espaço não é muito mais
do que a tradução e solução das suas necessidades consensuais. Compreender,
ainda que apenas parcialmente, a natureza do consenso entre verdade e fan-
tasia nas diversas classes e culturas da nossa sociedade Ocidental é o maior
interesse do nosso estudo.
Ao final do trabalho, analisaremos a mitogênese corporativa no caso da
“Coleção Puma French 77” e procuraremos propor algumas idéias, bem como
tecer alguns comentários acerca da produção simbólica contemporânea.
Colocaremos e discutiremos alguns pontos que acreditamos que possam ser bené-
ficos para a construção de uma estrutura social mais eficiente, justa e ética atra-
vés da comunicação entre os mais diferentes seres humanos e suas instituições.

12 Mitos Contemporâneos 13
2.1 Os Símbolos:
Mitos e Arquétipos

O
capitalismo pós-industrial enquanto sistema ideológico estabe-
lece-se de maneira análoga a qualquer outro sistema humano de
símbolos, valendo-se da linguagem que emana do aparato comu-
nicativo social para sua existência e fluxo. O sistema capitalista em suas
configurações atuais, em virtude da complexa tecnologia comunicacio-
nal, tem em suas características estruturais, elementos essenciais que
podem ser identificados desde os seus primórdios com permanências e
transformações em seu processo evolutivo.
Ao assimilar a dinâmica dos poderes atribuídos aos símbolos sociais
e, conseqüentemente, a vantagem da classe que os manipula, associan-
do-se aos significados legítimos destes símbolos comuns, procuraremos
desvendar os meandros por onde habitam as imagens arquetípicas das
culturas humanas e a pluralidade que hoje convive com a globalização.

O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer


uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e em particular do mundo
social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, “uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível
a concordância entre as inteligências” Durkheim, ou, depois dele, Radcliffe-Brown,
que faz assentar a “solidariedade social” no fato de participar num sistema simbólico
tem o mérito de designar explicitamente a função social (no sentido do estruturo-
funcionalismo) do simbolismo, autêntica função política que não se reduz à função de
comunicação dos estruturalistas. Os símbolos são os instrumentos por excelência da
“integração social”: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (cf. a
análise durkheimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido
do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social:
a integração “lógica” é a condição da integração “moral”.
(Bourdieu, 1989, p. 9).

Compreender o sentido de diferentes condições culturais é essencial


para este trabalho. As nuances específicas de cada grupo humano (este-
ja este em quaisquer que sejam os níveis de atuação), dadas primeiramen-

Iconoclastia vs. Iconolatria 15


te por sua linguagem e cultura, mas que se estendem em interações tat e, por fim, está atrelada a distribuição de classes sociais e a relação entre
sociais, formas de tratamento, rituais, mitos e imagens diferentes; atua- elas. Afinal, se conceituarmos a mitologia como este poder que a linguagem,
rão como ferramentas para a compreensão do funcionamento do sistema especialmente a visual, exerce sobre o pensamento, isso não poderá deixar
ideológico em cada contexto. de abarcar a esfera política e, conseqüentemente, econômica da sociedade.
Procuraremos entender como estas configurações, antes geografica-
mente isoladas, atuam no novo ambiente “virtualmente global” que pre- (...) a diversidade entre as várias línguas, não é uma questão de sons e signos
senciamos. Afinal, isso é pertinente ao modo como cada cultura utilizou distintos, mas sim de diferentes perspectivas do mundo. Se, por exemplo, em grego,
sua própria memória coletiva, organizou seu tempo-espaço e produziu a Luz é denominada “Medidora” e, em latim, “Luminosa” (luna) ou, sendo mesmo
em conhecimento e sabedoria através de uma linguagem estabelecida. idioma, como no sânscrito, o elefante ora se chama “O que bebe duas vezes”, ora “O
Bidentado”, ora “Aquele que é munido de uma mão”, tudo isto mostra que a linguagem
Cada linguagem traça um círculo mágico ao redor do povo a que pertence, círculo nunca designa simplesmente os objetos como tais, mas sempre conceitos formados
do qual não existe escapatória possível, a não ser que se pule para outro. pela atividade espontânea do espírito, razão pela qual a natureza dos referidos
(Cassirer, 1972, p. 23). conceitos depende do rumo tomado por esse exame intelectual.
(Cassirer, 1972, p.44).
Este grande círculo permeia a “lógica” lingüística e estabelece um sistema de
idéias, um sistema ideológico. Suas histórias particulares, origens, modo de con- Nesta atividade espontânea do espírito, aquele que estiver mais próxi-
ceituação do universo e de produção estão contidos dentro do arcabouço do ima- mo do “oculto”, do “sagrado”, do “mágico” em sua função social possuirá
ginário ou inconsciente coletivo. Tais termos são, sem sombra de dúvida, bastante um status quo seguramente superior. Seu conceito pessoal estará atrelado
controversos no meio acadêmico, e buscaremos abordar estes conceitos e suas a idéias que são mais importantes dentro da perspectiva de mundo de
respectivas definições para elucidar melhor este ponto mais adiante. cada cultura. O status dialético inverso – a classe massificada – concen-
O mito é especial em nossa abordagem porque é uma identidade antro- trará suas energias para a produção alienada pela fé na promessa de um
pológica muito marcante dentro da memória coletiva. Max Müller nos diz: sistema ideológico. O mito estabelece relações sociais de classe na medi-
da em que é difundido por um segmento dominante e compreendido
A mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à linguagem, se reconhecemos como verdade pelo segmento majoritário, massificado.
nesta a forma externa do pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra
que a linguagem projeta sobre o pensamento, e que não desaparecerá enquanto a Contra todas as formas do erro “interacionista”, o qual consiste em reduzir as
linguagem e o pensamento não se superpuserem completamente: o que nunca será o relações de força a relações de comunicação, não basta notar que as relações de
caso. Indubitavelmente, a mitologia irrompe com maior força nos tempos mais antigos comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem,
da história do pensamento humano, mas nunca desaparece por inteiro. Sem dúvida, na forma e no conteúdo, do poder material do simbólico acumulado.
temos hoje nossa mitologia, tal como nos tempos de Homero, com a diferença apenas (Bourdieu, 1989, p. 11).
de que atualmente não reparamos nela, porque vivemos à sua própria sombra e porque,
nós todos, retrocedemos ante a luz meridiana da verdade. Mitologia, no mais elevado Os símbolos, que hoje podem estar associados com uma determinada
sentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, e classe, surgiram socialmente muito antes mesmo desta classe tomá-lo
isto em todas as esferas possíveis da atividade espiritual. para si. Não basta a intenção de se associar a um símbolo, é preciso acu-
(Müller apud Cassirer, 1972, p.20). mular materialmente este símbolo para que qualquer associação com ele
seja reconhecida socialmente. Uma classe social associada a um símbolo
A mitologia de uma cultura expressa o seu modo de produção social, o comum, faz com que a recorrência do uso deste resulte, por muitas vezes,
meio através do qual a cultura se desenvolve, o que ela dispõe em seu habi- na “sinapse” para com a sua imagem.

16 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 17


Mas afinal, de onde vem esta característica plenamente associativa A identidade essencial entre a palavra e o que ela designa torna-se ainda mais
das palavras? Como o poder material do simbólico é acumulado por evidente se, em lugar de considerar tal conexão do ponto de vista objetivo, a tomamos
algum estrato social, já que um todo coletivo sempre participa da pro- de um ângulo subjetivo. Pois também o eu do homem, sua mesmidade e personalidade,
dução material? É de se esperar que este poder imanente tenha origem estão indissoluvelmente unidos com seu nome, para o pensamento mítico. O nome
com a própria palavra dentro da evolução dos sistemas de pensamen- nunca é um mero símbolo, sendo parte da personalidade de seu portador; é uma
to humano. propriedade que deve ser resguardada com o maior cuidado e cujo uso exclusivo deve
ser ciosamente reservado.
(...) todo o trabalho intelectual que o espírito executa ao enformar impressões (Cassirer, 1972, p. 65).
particulares em representações e conceitos gerais, visa essencialmente a romper
o isolamento do dado “aqui e agora”, para relacioná-lo com outra coisa e reuni- A palavra surge dentro de uma rede, uma vez que estabelece conexão com
lo aos demais numa ordem inclusiva, na unidade de um “sistema”. A forma lógica as demais palavras do sistema do qual faz parte. E isto inclusive para a deno-
do conceber, sob o ângulo do conhecimento teórico não é senão o preparo para minação e identificação de cada indivíduo. Elas definem-se meta-lingüistica-
a forma lógica do ajuizar – mas não esqueçamos que todo ajuiza–mento tende mente em um novo significado e transformam-no em um conceito. Este novo
a subjugar e dispersar a aparência da singularização que vai aderida a cada conceito comum condensa, dentro de seu significado, propriedades que nada
conteúdo particular da consciência. O fato aparentemente singular é conhecido, mais são do que a descrição das suas relações específicas com os outros sig-
compreendido e conceituado, somente quando é “subsumido” a um universal, nos do sistema e das regras a que obedece dentro de sua hierarquia.
quando é aceito como o “caso” de uma lei, como membro de uma multiplicidade A correta articulação de conceitos não tem acesso irrestrito e muito menos
ou de uma série. Neste sentido, todo juízo verdadeiro é sintético, pois seu principal popularizado. Quando o indivíduo compreende/ é compreendido pelo siste-
propósito é este urdimento dos particulares em um sistema. Tal síntese não pode ma, e reconhece os símbolos de maneira correta, passa a ter autoridade sobre
realizar-se imediatamente ou de golpe, mas precisa ser elaborada aos poucos, pela suas corretas articulações, pois se subentenderá maior “destreza” no seu racio-
atividade progressiva que relaciona as intuições isoladas ou as percepções sensíveis cínio. Isso potencializará a eficácia de sua atuação social em comparação com
particulares, reunindo depois o todo resultante em um complexo relativamente maior, os demais do grupo. Além disso, subjetivamente cresce o valor simbólico de
até conseguir, enfim, que a unificação final de todos estes complexos separados um sujeito quanto mais reconhecimento, importância pessoal e identificação
produza a imagem coerente da totalidade dos fenômenos. ele possui para com os símbolos valorizados oficialmente dentro de um dado
(Cassirer, 1972, p. 44). sistema. Ao desvendar a existência, a palavra torna-se meio imprescindível
para a partilha de informações essenciais à vida do grupo.
A partir desta imagem coerente, desta construção social significativa
(ainda que repleta de singularizações derivadas dos juízos pessoais de De fato, a palavra, a linguagem, é que realmente desvenda ao homem aquele
valor), a palavra passa a existir e ser compartilhada com um referencial mundo que está mais próximo dele que o próprio ser físico dos objetos e que afeta mais
comum dentro do sistema social e cultural que lhe deu vida. Como um diretamente sua felicidade ou sua desgraça. Somente ela torna possível a permanência
bebê, cada palavra passa a existir socialmente quando tem um nome, e a vida do homem na comunidade; e nela, na sociedade na relação com um “tu”
quando é partilhada, quando é substantivada e passa a ser referenciada também assume forma determinada o seu próprio “eu”, sua subjetividade.
nos discursos e documentos. (Cassirer, 1972, p. 78).
O sistema faz com que a palavra passe a designar a compreensão que
se tem de sua existência e atuação no mundo real, na realidade comum. O poder de consenso das inteligências que uma linguagem comum gera
Vai além e, através de suas conexões com as demais palavras dentro do é capaz de descrever a nossa própria experiência subjetiva no mundo. Para
emaranhado lingüístico, passa a ser o lastro para aquilo que se entende que reconheçamos dentro de um sistema ideológico as respostas às nossas
como “verdade social” dentre convivas em paz cultural. necessidades humanas, precisaremos ver nele verossimilhança com a pró-

18 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 19


pria realidade. O poder lingüístico é quem possibilita a compreensão de de que acabei de falar: o significante, o significado e o signo. Mas o mito é um sistema
cada “vida” dentro do seu contexto cultural, bem como o seu atuar dentro particular, visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que existe já antes
do sistema e seu espectro existencial subjetivo inconsciente. dele: é um sistema semiológico segundo.
É importante assinalar neste momento que o sistema ideológico que (Barthes, 1993, p. 131).
nos referimos ainda não tem nenhuma relação com a lógica binária gre-
ga surgida apenas muito mais adiante no pensamento da cultura Este sistema semiológico segundo é peça fundamental para o consen-
Ocidental. Um sistema ideológico obedece às suas próprias regras e rela- so do grupo, pois é como um compêndio das imagens comuns e dos ter-
ções internas, que são estabelecidas de acordo com as configurações espe- mos inconscientes do contrato social. Estes termos inconscientes, ainda
cíficas de cada grupo humano que o compartilha culturalmente. em tempo, estão relacionados com as necessidades irracionais comuns
Não é na mera substantivação (nomeação) que cessa a atuação da pala- em cada ser.
vra. Pelo contrário, como precisamos sempre recorrer a palavras para con-
ceituar outras palavras, incorremos em uma espécie de espiral para onde A moderna ciência lingüística, em seu esforço para iluminar a “origem” da
não há saída no momento em que se acaba o repertório lingüístico do gru- linguagem, também recorreu muitas vezes ao aforismo de Hamann, de que a poesia é
po. Neste momento surge o discurso consensual. Ele designa e explica o a “língua materna da humanidade”; também ela acentuou que a linguagem tem suas
sistema, mas sua atuação lingüística não tem função necessariamente raízes, não no lado prosaico, mas sim no lado poético da vida, que, por conseguinte,
denotativa. Ele trabalha através de imagens, metáforas, figuras de lingua- seu fundamento último não deve ser procurado no abandono à percepção objetiva
gem e criatividade para permitir a convergência e o conformismo entre das coisas, nem em sua classificação segundo determinadas notas características,
as inteligências num mesmo ponto. mas sim no primitivo poder do sentimento subjetivo. Mas, embora esta teoria da
expressão lírico-musical pareça, à primeira vista, poder evadir-se do círculo vicioso
Tudo o que chamamos de mito (...) é, na verdade, o resultado de uma deficiência em que sempre torna a cair a teoria da expressão lógica, tampouco consegue superar
lingüística originária, de uma debilidade inerente à linguagem. Toda designação o abismo entre a função expressiva da linguagem e sua função denotativa. Pois
lingüística é essencialmente ambígua e, nesta ambigüidade, nesta “paronímia” das também nesta teoria persiste um hiato entre o aspecto lírico da expressão verbal e
palavras, está a fonte primeva de todos os mitos. seu caráter lógico; o que precisamente permanece inexplicado é a substituição pela
(Müller apud Cassirer, 1972, p. 18). qual o som da sensação se transforma em som denotativo e significativo.
(Cassirer, 1972, p. 54).
Surgem metáforas e metonímias como soluções para o círculo restri-
to de possibilidades da meta-linguagem. Estas figuras têm liberdade A respeito desta dúvida sobre a origem subjetiva ou objetiva da lingua-
poética para utilizar recursos lingüísticos que tornam o funcionamen- gem, Durand nos oferece uma excelente teoria para que entendamos o
to do sistema inteligível a todos e assegura seu estabelecimento enquan- funcionamento do conjunto imaginário dentro de uma sociedade. Para
to verdade social. ele todo imaginário humano articula-se por meio de estruturas plurais e
irredutíveis, contidas dentro de três classes que gravitam ao redor dos
O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como profere. processos intelectuais do separar (heróico), incluir (místico) e dramatizar
O mito tem limites formais, mas não substanciais. (...) O mito não pode definir-se nem (disseminador) e pela distribuição das imagens de uma narrativa ao lon-
pelo seu objeto, nem pela sua matéria, pois qualquer matéria pode ser arbitrariamente go do tempo (2004, p. 40).
dotada de significação: a flecha apresentada para significar uma provocação é também Ele sugere o diagrama da tópica (I magem 1) para que entendamos o
uma fala. Não há dúvida que na ordem da percepção, a imagem e a escrita, por exemplo, trajeto antropológico dos signos. O diagrama consiste em um círculo,
não solicitam o mesmo tipo de consciência; e a própria imagem propõe diversos modos seccionado em duas fatias horizontais, as quais correspondem (de bai-
de leitura. (...) No mito, pode encontrar-se o mesmo esquema tridimensional [semiológico] xo pra cima) às três camadas freudianas, aplicadas a um corpo social:

20 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 21


particular no plano das interações sociais, até sua correspondente ima-
gem arquetípica no inconsciente, esteja este símbolo profano ou sagrado
(positivo ou negativo) dentro do sistema.
Os símbolos tecem uma rede de usos legalizados (sentidos) no cotidiano
que lhes simplificam, estereotipam para que possam estar disponíveis para
participar das interações inter-pessoais. Depois que foi simplificado e sinte-
tizado em uma imagem, o símbolo pode passear muito mais livremente
pelas sentenças de um discurso, embora sem sua original espontaneidade.
Conhecendo o código “oficial” de um símbolo (contido nas constru-
ções filosóficas e ideológicas) apenas em sua forma estereotipada, esta-
remos nos esquivando da possibilidade de articulá-lo corretamente den-
tro do discurso e entregamos automaticamente poder de autoridade
àquele que o faz competentemente no palco do cotidiano. Assim surge

imagem 1
na instância lingüística a separação entre classes sociais, dada pela habi-
lidade de articulação dos símbolos de um sistema.
No catolicismo, a Palavra está associada com a própria “Carne Sagrada
id, ego e superego. A porção submersa e mais profunda representa id, o de Cristo”, o “verbo” que todos comungam num simbólico gesto antropo-
que Jung denomina inconsciente coletivo está ligado à estrutura psicoló- fágico durante a cerimônia. Desta maneira, todos fazem parte do mesmo
gica do animal social. Nesta parte os sistemas arquetípicos provocam grupo, pois são identificados e constituídos da mesma substância que o
as imagens arquetípicas. A segunda porção é a região onde se vive; onde herói (Jesus) sacrificado para salvar e saciar o grupo, como um cordeiro.
acontecem as estratificações sociais, a divisão social do trabalho e onde Além disso, não esqueçamos que foi a “Voz de Deus” (Jeová), no livro de
são distribuídas funções dentro dos rituais do cotidiano cultural. Aqui Gênesis na Bíblia, quem teve poder para criar a luz.
habitam as nossas personas, ou máscaras sociais, com as quais nos apre- Como exemplo ilustrativo da autorização lingüística, podemos citar o
sentamos frente às demais pessoas e interagimos lingüisticamente no personagem Fabiano, de Graciliano Ramos em Vidas Secas. Ele ouvia pala-
nosso cotidiano. A porção superior corresponde ao superego ou seu equi- vras que gostaria de pronunciar, mas cujo significado não compreendia.
valente racionalizado em códigos, planos, programas, pedagogias e todo Dado seu pequeno repertório cultural, estava fadado, como uma criança, a
o protocolo das instituições (Durand, 2004, p.92). admirar os discursos alheios que articulavam conceitos mais “complexos”
A partir deste círculo ele prossegue fatiando na vertical, separando do que aqueles que lhe foram apresentados. Para ele, que sempre era ludi-
desta forma os pólos ambíguos dos símbolos: o sagrado e o profano. É a briado e humilhado por ignorância, estes símbolos desconhecidos só
dialética do imaginário que opera entre os juízos oficiais e os falsos. O podiam ser assimilados no campo do “mistério da fé” irracional, onde as
trajeto antropológico do símbolo percorre este círculo. Com seis pontos imagens metafóricas dão conta da inteligibilidade do sistema.
em seu perímetro, o símbolo parte da ponta inferior (onde habitam as Quando usamos um nome sem plena consciência do objeto ou idéia que
imagens arquetípicas do imaginário) do círculo e caminha até o outro designa dentro do sistema ao qual ele está integrado, no mínimo, aumenta-
pólo (onde habitam os códigos e leis do consciente cultural). Em movi- mos o risco vexatório de incorrer em inúmeros problemas de linguagem. Eles
mento rotacional, ele estabelece um fluxo que passa pelo uso prático-coti- virão sob as mais diversas modalidades e não possibilitarão a compreensão
diano (no equador habitado pelas personas), determinando papéis sociais. dos demais indivíduos inseridos no contexto do sistema; não gerando desta
Ele ascende até o plano do superego, lá ele encontra o ápice no código e forma qualquer cognição ou desencadeamento de ação em favor da comuni-
retorna; passando continuamente entre o código, entre a expressão social dade. Ou pior, em engano que comumente se torna prejuízo para o grupo.

22 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 23


Imagem 2
Estes níveis de fala a que nos referimos Ainda neste sentido podemos divagar mais sobre a questão energética
(Preti, 2000), são uns dos fatores deter- da enunciação. Ao proferir uma palavra, ou invocar um deus – por ela ser
minantes na marginalização moral e esta condensação de uma idéia dentro de um sistema – damos um passo
intelectual de um indivíduo em uma muito grande na conversão de uma ação mais concentrada e de maior
cultura, dentre inúmeros outros como impacto na realidade, potencializando sua atuação na natureza. A sua
origem étnica, social, aparência e capa- energia é o próprio potencial de ação coletiva.
cidade física e apresentação pessoal. Afim de que seja criado e legitimado, um símbolo passa pelo crivo
Quem não possui retrospecto social que o reconhece dentro daquilo que significa. Como vimos, o sím-
positivo em suas argumentações sis- bolo é dialético e participa do processo histórico daqueles que o reconhe-
temáticas acaba destituído do poder cem, alterando suas configurações no significante, bem como no signifi-
da Palavra em sua oratória e sua opi- cado de acordo com o contexto em que é apresentado. Porém, existem
nião é desvalorizada. Porém, a cren- traços inconscientes nestes símbolos que se expressam como imagens, e
ça na eficácia do símbolo, mesmo embora alterados todas as vezes que os reapresentamos, ainda permane-
sem sua compreensão total dentro do cem correntes e gerais mesmo em culturas distintas. São os arquétipos e
sistema, já permite ao indivíduo uma as imagens arquetípicas que aparecem nos mitos.
vida social ordinária. A sociedade em Para Jung os arquétipos são, juntamente com os instintos, os dois com-
última instância não cobra do sujeito ponentes que formam o inconsciente coletivo humano. Os instintos são
compreensão do sistema, apenas sua impulsos que desencadeiam ações a partir das necessidades irracionais.
aceitação. A linguagem liga-nos ine- Assim, da mesma maneira, ele sugere que existem modos inconscientes
xoravelmente ao campo das satisfa- de compreensão que regulam a nossa própria percepção. Formas intrín-
ções irracionais (indispensáveis à secas de idéias intuitivas que são determinantemente necessárias para
O Sacramento da Eucaristia na Igreja Católica
vida) e abriga o “mistério sagrado” do todos os processos psíquicos e intelectuais.
símbolo em seu arcabouço. Embora, por estas características, não se possa afirmar ou mesmo con-
Há um poder imanente àquele que possui autoridade sobre a Palavra (ou ferir a existência de arquétipos absolutos e conteúdos padronizados (com-
discurso) que pode ser aceito enquanto verdade dentro do sistema. O poder partilhados por todas as culturas), alguns deles são seguramente fortes e
de manipular conceitos cuja compreensão participa de um sistema de atua- muito recorrentes, como as imagens materna e paterna, ou mesmo os heróis
ção social hierarquicamente superior é determinante no potencial social de da criação e fertilidade. Para Jung eles estavam divididos entre anima (o
quem pronuncia a palavra. Seja no quesito agregador, que trás a participação feminino) e animus (o masculino), o self (a porção de nossa personalidade
de mais indivíduos nas atividades de interesse coletivo (aumen­tando a con- que reconhecemos) e a sombra (a porção de nossa personalidade que “recal-
centração energética), como no quesito identificador, que atribui identidades/ camos” no inconsciente); os quatro instintos básicos de sua teoria.
identificações comuns para aqueles que em seu discurso reconhecem uma Instintos determinam nossas ações e arquétipos determinam nosso
verdade, o potencial social do sujeito autoridade é favorecido. modo de apreensão do mundo. Ambos, instintos e arquétipos são coleti-
vos porque estão preocupados com o universal, com os conteúdos herda-
Quanto maior o poder de um ser, e quanto mais eficácia e “significação” mítica dos além do pessoal e do individual, com as memórias sociais que possi-
contém, tanto mais se estende a significação de seu nome. A prescrição que manda bilitam o entendimento do indivíduo e suas correlações com sua comu-
guardar segredo, aplica-se, em primeiro lugar, ao nome do deus, pois o mero enunciado nidade (Jung apud Hyde, 2000, p.59). A maneira como percebemos uma
deste desata todos os poderes encerrados neste deus. situação (arquétipo) determina nossos impulsos para agir diante dos fatos
(Cassirer, 1972, p. 71). cotidianos. A compreensão inconsciente através do arquétipo determina

24 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 25


Imagem 4

Imagem 5
Imagem 3
a forma e vetor do instinto, estabelecendo máscaras para nosso atuar
social, estas são as personas que assumimos. Por outro lado, nosso impul-
so em agir (instinto) também determina como compreendemos uma situ-
ação (arquétipo novamente).
Jung chega a esta relação “ovo-galinha” e sugere que o arquétipo pode
ser facilmente descrito como a autopercepção do instinto, ou então como
um “auto-retrato do instinto”; na exata mesma medida que a consciência
individual é uma percepção interna do processo objetivo da vida. (Jung
apud Hyde, 2000, p.59). Auto-retrato que se manifesta mesmo sem possuir
uma existência material fixa, sempre através de imagens que são correla-
tas, mas não idênticas.
Esta concepção junguiana é análoga com a concepção que Lévi-Strauss
tem sobre as imagens mitológicas. Para ambos, elas possuem estruturas Hathor/ Egito Ceres/ Roma Ronald/ Estados Unidos

que mesmo ofuscadas pelas arbitrariedades culturais, podem ser verifi-


cadas e analisadas por um método científico. O antropólogo inclusive che- ba, grisalha e patriarcal. Nem todas as culturas necessariamente comparti-
ga a fazer analogias entre as curas xamânicas e as curas da psicanálise em lham a imagem de um senhor em idade avançada, com os mesmos traços e
Antropologia Cultural (1996), mas não temos o interesse de nos aprofun- vestes, mas certamente no tocante “sábio espírito” haverá uma ou mais enti-
darmos no mérito específico deste tema para a psicologia. Apenas preten- dades análogas – não necessariamente masculinas – a quem se recorre ritu-
demos demonstrar que as duas ciências compreendem que as imagens almente de maneira a obter as respostas sábias disponíveis naquela cultura.
habitam nos campos do inconsciente humano. Fazendo o caminho inverso, podemos pensar no instinto da “nutri-
Elas são invocadas durante nossos esforços diários em busca da satis- ção”. Certamente este é um instinto universal já que é imperativo a todos
fação das nossas necessidades e desejos em primeira instância, e possuem nós. Portanto, todas as culturas devem possuir um mito análogo que
a importantíssima característica de ter uma universalidade, no sentido de explique como aquele povo vem sobrevivendo e prosperando em respon-
que as fronteiras culturais da linguagem visual são muito mais difusas do der a esta necessidade geral e natural.
que as da linguagem verbal, por exemplo. Esta universalidade estrutural Nestes mitos encontraremos as imagens arquetípicas equivalentes ao
nas linguagens do imaginário (mitologias) é uma das grandes descober- arquétipo. Pensando no auto-retrato do instinto da nutrição, por exem-
tas de Lévi-Strauss. plo, sua imagem arquetípica poderá estar num deus em forma de animal
(em uma comunidade que vive do pastoreio ou da caça) ou em alguma
As histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, divindade da fertilidade (em uma comunidade agrícola), ou em algum
absurdas, mas apesar de tudo, dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma mascote corporativo de uma cadeia de lanchonetes (em uma comunida-
criação “fantasiosa” da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não de urbana). De qualquer forma, criamos um elo entre a necessidade irra-
se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. cional e sua resposta mais econômica dentro do inconsciente comum.
(Lévi-Strauss, 1989, p. 23).
(...) na linguagem, os conteúdos perceptivos, apesar de toda a diversidade e até da
Por exemplo, em todas as eras e culturas, a humanidade se imaginou em mais completa disparidade, podem alcançar uma unificação, sempre que os conteúdos
comunhão com um “sábio espírito”. Uma das formas mais comuns desta con- sejam vistos como coincidentes, correspondentes entre si em seu “sentido” teleológico
cepção no Ocidente é a imagem de um “homem idoso” encontrado em inú- ou, neste caso, em seu significado cultural.
meros mitos e lendas e, tradicionalmente, acompanhado de uma longa bar- (Cassirer, 1972, p. 59).

26 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 27


A existência do arquétipo pode ser apenas inferida, dada sua nature- Logo que se aborda o problema neste sentido, a lógica tradicional abandona o
za inconsciente. A imagem arquetípica é trazida à tona no consciente e é pesquisador ou o filósofo da linguagem, pois a explicação que dá sobre o surgimento
a maneira como percebemos os arquétipos para nós mesmos. Assim, os das representações gerais e dos conceitos genéricos pressupõe aquilo que aqui se
arquétipos, nossos modos de percepção, são sempre velados, embora reve- procura e de cuja possibilidade indagamos, ou seja, a formação das noções lingüísticas.
lados em imagens deles próprios. São idéias primordiais, mas não prin- O problema se faz ainda mais difícil e urgente, se consideramos que a forma dessa
cípios abstratos lógicos ou necessariamente racionais, eles estão carrega- síntese ideacional, que conduz aos conceitos verbais primários e a determinadas
dos com o senso da manifestação do sagrado, ou ainda, “daquele que sacia denotações lingüísticas, não é prescrita de modo simples e unívoco pelo próprio objeto,
o instinto”, e são comuns aos indivíduos que compartilham a mesma cul- mas, ao contrário, abre um amplo campo de ação para a livre atividade da linguagem
tura, o mesmo imaginário. e para sua peculiaridade especificamente espiritual.
Para Durand, os arquétipos são também idéias elementares, que (Cassirer, 1972, p. 43).
podem ser chamadas idéias “de base”. Ele os interpreta como estrutu-
ras mentais de base biológica e inconsciente, mas que não estão mais A compreensão da gênese de diferentes sistemas lingüísticos, indepen-
aprisionadas nas quatro formas primordiais de Jung. Para corroborar dentes uns aos outros, dentre os seres humanos nos trás uma série de
neste aspecto, citamos: implicações. Ao verificarmos seu funcionamento nestes incontáveis pla-
nos, nos obrigamos abandonar a predileção ao nosso próprio sistema e o
Não só há duas matrizes arquetípicas produtoras de imagens e que se organizam decorrente desmerecimento das demais perspectivas de mundo.
em dois esquemas míticos, animus e anima, mas que se pluralizam num verdadeiro Os diferentes imaginários interagindo possibilitam a “alucinação cole-
“politeísmo” psicológico: a anima, por exemplo, pode ser Juno, Diana ou Vênus... O tiva” que cada grupo cultural vive. É o que Mircea Eliade (Eliade apud
psiquismo não se limita a ser “tigrado” por dois conjuntos simbólicos opostos, mas Durand, 2004, p. 73) entende como illud tempus. O illud tempus é o “con-
é também mosqueado por uma infinidade de nuanças que remetem ao panteão das formismo das inteligências”, contido nos momentos culturais de cada um
religiões politeístas e das quais as astrologias modernas mantiveram alguns traços. dos grupos humanos e é o “calendário” de eventos através dos quais os
(Durand, 2004, p.38). rituais estão organizados. O tempo ritual é o tempo sagrado do mito e
tudo que não se encaixe dentro deste sagrado não existe para o sistema
Mas assim um outro problema surge. O que levaria a linguagem a esco- cultural, estando com isso associado ao “sofrimento”, à quebra de equilí-
lher alguma configuração específica na série de fluxos de impressões que brio do sistema e à subseqüente não satisfação das necessidades comuns.
atacam nossos sentidos ou brotam da nossa mente, em detrimento de O equivalente para a dimensão espacial é o templo, local onde se sucedem
outras? O que obriga que nos coloquemos em alerta a sua frente e lhe os acontecimentos das narrativas míticas e onde, geralmente, encontra-
asseguremos uma significação única? Quais atributos um objeto precisa mos as representações materiais dos símbolos sagrados.
possuir para que possamos lhe conferir um justo nome? Quando é que A idéia de “alucinação coletiva” advém do fato de que não podemos
um “certo ato” merece ser especificamente verbalizado? interpretar os símbolos de outras culturas, caso não aceitemos a existên-
Podemos obviamente voltar a pensar na satisfação da pulsão instinti- cia de “realidades relativas”. Dentro deste conceito fica implícito que esta-
va particular do espírito humano. Mas alguns outros elementos também mos, no executar diário de nossas atividades, imersos na influência lógi-
caracterizam esta relação, que se torna complexa na medida em que co-lingüística de nossa própria cultura.
aumenta a interação dramática dos diferentes instintos individuais em
um grupo. A linguagem precisa dar conta de convergir as mais ímpares (...) em todas as religiões, mesmo nas mais arcaicas, há uma organização de uma
pulsões dos inconscientes individuais para um inconsciente “coletivo”. rede de imagens simbólicas coligidas em mitos e ritos que revelam uma trans-história
Através de suas imagens ela descreve e executa o sistema que possibilita por detrás de todas as manifestações da religiosidade na história. Um processo mítico
a satisfação consciente destas necessidades humanas. que se manifesta pela redundância imitativa de um modelo arquetípico (perceptível

28 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 29


mesmo no cristianismo, onde os “eventos” do Novo Testamento se repetem sem
“eliminar” aqueles do longínquo Antigo Testamento) e pela substituição do tempo
profano por um tempo sagrado: o illud tempus da narrativa ou ato ritual.
(Eliade apud Durand, 2004, p.73).
2.2 Pensamento Mitológico
e Pensamento Científico
Esta alucinação só pode ser geral em um grupo se estivermos subjuga-

E
dos às normas e leis que coletivizam esta ilusão. Alguém que ouse sair des-
xiste uma infinidade de recortes de momentos históricos que podem
te padrão certamente estará tomando uma atitude criativa que suscitará
ser tomados estruturalmente de modo a perceber similaridades e dis-
dúvidas e paixões (políticas) em relação à tradição vigente. Este conflito,
tanciamentos entre o que gostaríamos de chamar “momentos cultu-
entre o oficial e a solução criativa/ profana, é uma força que se revela pro-
rais”. Momento cultural nos parece um bom termo já que sugere que qualquer
pulsora da dinâmica dos sistemas simbólicos.
interpretação de imagens precisa, necessariamente, dispor de um contexto
Porém, como veremos mais à frente, devido às peculiaridades con-
geográfico e temporal específico ao grupo a que pertence. São illud tempus
temporâneas (advindas dos novos suportes comunicacionais) deste pro-
diversos onde o modo de produção característico de uma determinada popu-
cesso de substituição e modificação nos sistemas simbólicos, a dinâmi-
lação é permeado no dia-a-dia por outros símbolos e outros mitos; homogê-
ca simbólica foi em muito acelerada. O conflito entre o oficial e o extra-
neos, coesos e coerentes em si, mas circunstancialmente diferentes daqueles
oficial, o sagrado e o profano perdem força em virtude do amplo espaço
que conhecemos em nossa própria rotina produtiva diária. Por vezes incoe-
de discussão e partilha de informações, o oficial passa a ser parcial e
rentes com o nosso sistema simbólico que Ocidental, estas realidades hoje
fragmentado em diferentes sistemas simbólicos dispersos no seio da glo-
podem ser reconhecidas dentro de sua sabedoria e diversidades adaptativas.
balização. A separação entre emissores e receptores fica ofuscada com as
novas tecnologias. Para entender o presente precisaremos saber qual foi
O que é admirável, tanto em Eliade como em Corbin, para uma teoria do
o processo de desenvolvimento dos símbolos no pensamento humanos,
imaginário, é que eles conseguem mostrar, com uma erudição gigantesca, que que
considerar as relações culturais que lhe são intrínsecas e não perder de
o imaginário dispõe, ou tem acesso a, de um tempo – illud tempus – específico
vista sua função social.
que escapa à entropia da dissimetria newtoniana (sem o “depois” que necessita o
“antes”), e a uma extensão figurativa (na koja abad = “não onde” em persa) diferente
do espaço das localizações geométricas”.
(Durand, 2004, p. 38).

O estranhamento ao nos depararmos com ficções, mitos, símbolos


e hábitos culturais diferentes tenderá a ser maior na medida em que
nos distanciamos culturalmente de um dado povo. Entender os distan-
ciamentos e proximidades culturais é um exercício de extremo valor,
uma vez que só com isso poderemos compreender melhor a contem-
poraneidade e sua heterogeneidade mitológica mais à frente.
Como já vimos, processos arquetípicos são aqueles desencadeados pela
dinâmica dos símbolos sociais, relacionados desde tempos arcaicos com as
necessidades da condição existencial humana. São uma série de atividades
e condicionamentos que estabelecem algumas “certezas” e pré-visibilida-
des acerca da vida na dimensão social dos sujeitos que interagem, seja com

30 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 31


outros sujeitos, seja com o meio em que habitam. Estes processos são expe- valia para nosso estudo. A existência de fatos e experiências subjetivas
riências ativas no ser ao longo da narração da espécie humana, como o nas- que não podem ser explicadas dentro de um sistema simbólico é nativa
cer e pôr-do-sol. E que, por possuírem homônimos arquetípicos em todos do pensamento humano. Ficamos assim, enquanto sujeitos sociais, nes-
os indivíduos, acabam por se estabelecer como uma unidade fundamental ta constante busca pelo objeto “a”, pelo objeto de desejo, conforme nos
para preenchimento da memória coletiva do imaginário inconsciente. comenta D’Angelo sobre o pensamento de Lacan.
O mito é estabelecido como uma malha dinâmica de processos arque- Isso já está cimentado na estrutura psicológica humana desde o
típicos e caracterizado pelo uso e abuso da magia, do milagre, do incom- momento em que iniciamos nosso processo cognitivo na infância.
preendido, do inexplicável, do sagrado, do acreditado, do campo semân- Somos “doutrinados” a justificar nossas pulsões e atos a partir do que
tico onde habita a fé, daquele a quem se atribui crédito. Vale-se do inefá- é dado pela cultura e tradição que temos acesso. O Homo sapiens é
vel, do “outro social” que é externo ao ser, e que não encontramos no em- uma espécie diferenciada das demais devido a uma série de caracte-
si, dos bens, signos ou percepções comutadas nesse encontro cotidiano; rísticas biológicas no desenvolvimento do seu cérebro que o faz des-
vale-se do produto que sacia e da sociedade da qual herdamos, não gra- de tempos muito remotos um Homo symbolicus. São fatos biológicos
tuitamente, uma linguagem. A necessidade de preencher esta lacuna imprescindíveis que nos trazem esta natureza social simbólica. Durand
imposta pelo desejo determina uma busca incessante em nossa existên- (2004, p.45) comenta que a formação anatômica do cérebro humano se
cia e se confunde com o objeto “a” lacaniano no escopo do ego. Este obje- encerra por volta dos sete anos, e as reações encefalográficas se nor-
to “a” determina o “próximo passo” de nosso dia-a-dia, da nossa existên- malizam apenas aos vinte anos de vida, o que coincide, inclusive com
cia enquanto seres constituídos socialmente. a estabilização hormonal em um adulto. Deste modo, o homem pas-
sa a ser o único ser vivo com uma maturação tão lenta que permite ao
A partir de Lacan el significante implica que no hay nunca una significación meio, especialmente ao meio social, desempenhar um grande papel
completa, podría decirse que para el hablante siempre falta un significante para poder no desenvolvimento cerebral. Já desde tempos muito remotos somos
significarlo todo. No hablamos de un significado total, sino simplemente que en el seres que utilizam linguagem para operar os arquétipos que vivem
dicho, en cualquier dicho, siempre algo escapa a la significación. Por la estofa misma submersos no inconsciente.
del significante algo siempre escapa a la significación; en este sentido puede decirse O limite meta-lingüístico do sistema é a válvula de escape para a cria-
que falta un significante. Falta que no se puede suturar ya que aun agregando un tividade, que emerge do caos (da desordem dos símbolos) em busca de
significante igual seguiría faltando; esto equivale a decir que el significante segrega un associações metafóricas que se transferem em significados sociais para
resto que es insignificabilizable. Eso que falta, eso que el significante, como Aquiles, além do código. Parece-nos clara a percepção de que símbolos depen-
nunca podrá alcanzar, hará decir a Lacan que es su único descubrimiento. El nombre dem de outros símbolos associados para serem utilizados de maneira a
de este descubrimiento es: objeto “a”. atingir uma cognição mínima e cumprir seu papel comunicativo. Desta
(D’A ngelo et alii; 1984, p. 42). forma, quando não é mais possível manejar estes símbolos devido ao
esgotamento de suas inter-relações diretas, há uma fuga para o pensa-
Compreender a importância da elevada ordem de grandeza psicoló- mento mitológico/ figurativo, onde questões fundamentais da existência
gica desta “falta” na linguagem, deste “insignificabilizável”, é de grande humana podem repousar com a segurança de uma explicação soberana,
totalizadora, convincente e legitimada.
. A partir de Lacan o significante implica que não há nunca uma significação completa, poderia
dizer-se que para o emissor sempre falta um significante para poder significá-lo todo. Não falamos de
um significado total, sendo simplesmente que no discurso, em qualquer discurso, algo sempre escapa No fim de contas, esta tradução [meta-lingüística] é a que se espera de um dicionário
à significação. Pela estofa mesma do significante algo sempre escapa à significação; neste sentido
pode-se dizer que falta um significante. Falta que não se pode conter já que mesmo a um agregando – o significado da palavra em outras palavras que, a um nível ligeiramente diferente, são
um significante igual seguiria faltando; isto equivale a dizer que o significante segrega uma parte que
isomórficas relativamente à palavra ou à expressão que se pretende perceber.
é insignificabilizável. Esta falta, essa que é significante, como Aquiles, nunca poderá alcançar, dirá
Lacan que é sua única descoberta. O nome desta descoberta é: objeto “a”. (Lévi-Strauss, 1989, p. 24).

32 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 33


Conforme veremos mais à frente, quando discutirmos a evolução do pen- As ciências da física e matemática, dentre outras, desenvolveram inú-
samento científico, durante um bom tempo acreditamos na possibilidade de meras teorias que recorrem a conceitos como “caos”, “entropia” e “ambi-
uma descrição absoluta da natureza através da matemática e da supressão güidade”; antes excluídos mesmo do léxico do pensamento lógico-discur-
dos sentidos humanos para a compreensão do universo. Como a máquina e sivo. Com estes conceitos novamente ativos no senso comum contempo-
o desenvolvimento técnico das ciências conquistaram tantos avanços signi- râneo, a importância do pensamento imaginário toma um novo fôlego, já
ficativos, passamos a crer que só ela poderia nos fornecer a precisão ótima que nem todo o volume de informações e dados hoje acumulados conse-
para nossa visão e perspectiva do mundo, mas o cientificismo e a lógica biná- guem oferecer uma predizibilidade absoluta a partir dos dados científi-
ria mostraram-se concepções frustrantes, como veremos mais adiante. cos, sejam eles de quaisquer níveis: metereológicos, econométricos ou
mercadológicos. Não raro, padrões numéricos irracionais emergem quan-
A matemática é uma linguagem particularmente boa para descrever, discutir e do estes dados são analisados. Padrões estes que podem ser expressos e
imaginar coisas que são realmente complicadas. Quanto mais complexa for uma estrutura, compreendidos através de símbolos, mas sua cuja exatidão matemática
tanto mais fácil será abarcá-la com as nossas mentes. As palavras são, com freqüência, descritiva vai ao infinito daquilo que não pode ser comunicado exatamen-
inadequadas. A linguagem se desenvolveu através da necessidade de partilhar nossas te por sua falta de significação (sua “insignificabilização”), desta vez na
experiências num nível de complexidade mais ou menos tradicional, mas inadequado para própria matemática; as reticências dos números irracionais...
se compreender o mundo inteiro, ou a alma do mundo, ou a biosfera do planeta Terra. A
matemática tem apenas um pouco mais de magia que a linguagem comum. No século XIX, acreditava-se, de um modo geral, que não existia, em absoluto,
(A braham in McK enna , 1992, p.59). nenhuma indeterminação. Acreditava-se que tudo era totalmente determinado pelas leis
eternas da natureza. Laplace pensava que todo o futuro e todo o passado do universo
Avanços das teorias da física permitiram modificações imensas na poderiam ser calculados a partir do seu estado presente, se houvesse uma mente
investigação dos “sistemas de imagens”, pois acrescentaram no senso poderosa o bastante para efetuar os cálculos e realizar as observações. Essa ilusão da
comum as dimensões da relatividade que até então eram subjugadas de previsibilidade total manteve a ciência sob o seu feitiço durante gerações. (...) O ideal da
sua real relevância pelas as teorias do conhecimento e da linguagem. predizibilidade total era, em princípio, nada mais nada menos do que um ato de fé.
(Sheldrake in McK enna , 1992, p. 54).
Gerald Holton, médico americano, foi quem melhor determinou, com uma
seriedade e exaustão totalmente científicas, o papel direcional dos sistemas da A ciência também passou por um estágio mítico até se desenvolver nos
imagem (que ele denomina “pressupostos temáticos” ou thêmata) na orientação moldes atuais. Isso foi necessário para que pudesse compartilhar os
singular da descoberta. Estes thêmata contribuíram para o que Einstein chamava conhecimentos humanos, pois nos mitos a realidade pessoal da existên-
de Weltbild, a “imagem do mundo”, (não apenas do Universo, mas “do mundo”, do cia pode ser comutada e aceita pelo senso comum: o sentimento ético-
ambiente cotidiano humano). Na sua generalidade formal, os thêmata se aproximam existencial de responsabilidade para com a vida e a atuação social do
(descontínuo-contínuo; simplicidade-complexidade; invariância-evolução etc.) sujeito. Existe uma força coesiva nos símbolos que draga o homem para
dos “arquétipos junguianos” ou do que denominamos de “esquemas”. Holton, ao sua existência social e que dá conta da previsibilidade total do mundo
retomar uma diferença célebre entre os imaginários “dionisíacos” e “apolíneos”, com a utilização de imagens. Isso só é possível por força da fé partilha-
demonstrou, de maneira muito minuciosa e corroborada por amplas pesquisas da em um sistema ideológico.
de psicossociólogos, que as descobertas dos especialistas mais importantes
(Kepler, Newton, Copérnico e, sobretudo, Niels Bohr e Einstein...) foram de alguma O mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como símbolos: não no sentido
forma pressentidas pela formação e as fontes imaginárias de cada pesquisador de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real
(freqüências, educação, leituras...). existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu próprio
(Durand, 2004, p.70). mundo significativo. Neste domínio, apresenta-se este autodesdobramento do

34 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 35


espírito, em virtude do qual só existe uma “realidade”; um Ser organizado e definido. compreender o que há neste mito, perante o qual permanecíamos completamente cegos
Conseqüentemente, as formas simbólicas especiais não são imitações, e sim, órgãos antes de a idéia das operações binárias se tornar um conceito familiar para todos.
dessa realidade, posto que, só por meio delas, o real pode converter-se em objeto de (Lévi-Strauss, 1989, p. 37).
captação intelectual e, destarte, tornar-se visível para nós.
(Cassirer, 1972, p. 22). Embora o mito trabalhe no campo da ilusão (das imagens, das narrações e
dos sonhos), ele está operando no mesmo nível simbólico que o real, ainda que
Nós, seres humanos, sempre buscamos algo que transcenda o raio ilu- esteja afastado em um grau do sistema lingüístico primeiro (o do código). Ele
minado pelo conhecimento, algo que nos explique a última coisa que foi se permite privilégios lingüísticos como utilizar em conjunto, por exemplo, as
explicada. Como a mais curiosa criança cheia de porquês, o desejo de funções conotativa e lírica da linguagem para formular o consensus (Bourdieu,
compreender o mundo que nos cerca não deixa de ser recorrente jamais 1989, p. 9). As suas relações sociais próprias com as alegorias (e quaisquer que
e é inquietante, até que a pressão moral elimine esta conduta. Tão inquie- sejam as figuras de linguagem envolvidas) formam um sistema de imagens
tante que não permite que o homem produza satisfatoriamente – caso não bastantes à satisfação intelectual do grupo humano a que pertence.
propriamente imerso num sistema ideológico. Isso acontece porque para que o illud tempus se torne confiável (e não
A não-eficiência divina sempre fomenta a busca de novos ídolos e fruto da alucinação individual de êxtases religiosos/ artísticos, alucinó-
movimentos sociais. A não-conformidade entre os sacrifícios e as graças genos ou patologias psiquiátricas) ele usa o conceito de verdade como
é por vezes fatal às ideologias descuidadas. Os mitos e o conjunto de fato- uma ventosa que lhe estabiliza agarrada ao real coletivo. Assim a socie-
res de sua legitimação coletiva dissolvidos no illud tempus do grupo a que dade nos coage a compartilhar seus significados simbólicos, punindo
pertence, preenchem uma lacuna crucial na concepção simbólica da vida quem não se enquadra com a força centrípeta que atua aos poucos empur-
social humana: rando alguns indivíduos para a margem de seu núcleo.
Um conceito é uma unidade operante do sistema simbólico. Conceito cons-
O mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio. Apesar de tudo, titui-se como a síntese de um arranjo de objetos acordantes em determina-
dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode entender o universo e de das características e, por conseguinte, uma parte de seus conteúdos são reu-
que ele entende, de fato, o universo. Como é evidente, trata-se apenas de uma ilusão. nidos no pensar; este abstrai as características heterogêneas retendo para si
(Lévi-Strauss, 1989, p. 32). unicamente as homogêneas e refletindo sobre elas, de onde surge, na cons-
ciência, a idéia geral dessas classes de objetos agrupados em rede.
No momento que não temos mais repertório e substratos meta-lingü-
ísticos para explicar algo partimos para a criatividade, a fantasia, a fic- Os conceitos do conhecimento teórico constituem apenas uma camada superior
ção, para o mito. Isso está no caminho dialeticamente oposto ao fluxo da lógica, que por sua vez se alicerça em uma camada inferior: a lógica da linguagem.
do pensamento apolíneo, argumentativo, racionalizado, cartesiano (que Antes que pudesse iniciar o trabalho intelectual do conceber e compreender os
divide o objeto em quantas forem partes necessárias para seu estudo). fenômenos, foi preciso realizar, certamente, a tarefa de denominar e alcançar certo
Não obstante, o pensamento normatizado oficial é que difunde para as grau de elaboração; pois este labor que transforma o mundo das impressões sensíveis,
massas a ilusão do entendimento do universo como realidade. como também o animal possui, um mundo espiritual, um mundo de representações e
significações. Todo conhecer teórico parte de um mundo já enformado pela linguagem,
Esta é a originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do e tanto o historiador, quanto o cientista, e mesmo o filósofo, convivem com os objetos
pensamento conceptual: um animal susceptível de ser usado como, diria eu, um operador exclusivamente ao modo como a linguagem lhos apresenta. E esta vinculação imediata,
binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma relação com um problema que também inconscientemente, é mais difícil de ser descoberta do que tudo quanto o espírito cria
é um problema binário (...) na realidade não existe uma espécie de divórcio entre mitologia mediatamente, por atividade consciente do pensamento.
e ciência. Só o estádio contemporâneo do pensamento científico é que nos habilita a (Cassirer, 1972, p. 48).

36 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 37


Um conceito se constitui quando certo número de objetos acordantes em A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior
determinadas características e, por conseguinte, em uma parte de seu con- da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente
teúdo, é reunido no pensar; este abstrai as características heterogêneas, retém aos cultos sérios (por sua organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que
unicamente as homogêneas e reflete sobre elas, donde surge, na consciên- convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia (riso ritual); paralelamente aos
cia, a idéia geral dessa classe de objetos. Logo, o conceito (notio, conceptus) é mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos.
a idéia que representa o símbolo através da linguagem (Cassirer, 1972, p. 42). (...) Entretanto, nas etapas primitivas, dentro de um regime social que não conhecia ainda
Os conceitos religiosos e os conceitos lingüísticos coincidem em caracterís- nem classes nem Estado, os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do
ticas essenciais. A separação dos dois é recente na história humana. homem eram segundo todos os indícios, igualmente sagrados e igualmente, poderíamos
Ao acatarmos o conceito de verdade como não sendo nada além deste dizer, “oficiais”. (...) Mas quando se estabelece o regime de classes e de Estado, torna-se
acordo social entre as inteligências, poderemos vislumbrar nossas diver- impossível outorgar direitos iguais a ambos os aspectos, de modo que as formas cômicas
sas personas e compreender a lógica intrínseca a nossos atos cotidianos. – algumas mais cedo, outras mais tarde – adquirem um caráter não-oficial, seu sentido
O acordo social é quem possibilita a produção de bens, a distribuição de modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para transformarem-se finalmente nas
tarefas/ remunerações e, por conseqüência, produtos de necessidade formas fundamentais de expressão da sensação popular do mundo, da cultura popular. É
social. Cria-se uma ilusão coletiva que dá sentido à existência, à realida- o caso dos festejos carnavalescos no mundo antigo, sobretudo nas saturnais romanas,
de. São as versões, que os mitos e as ciências consideram verdades, para assim como nos carnavais da Idade Média que estão evidentemente muito distantes do
o real significado da vida social. riso ritual que a sociedade primitiva conhecia.
A história do Ocidente é marcada por uma guerra contra as forças sim- (Bakhtin, 1999, p. 5).
bólicas do imaginário, contra o poder mitológico de estabelecer um illud
tempus distinto do seu padrão para a compreensão da realidade. Vale lem- Dado a estas características sempre dúbias atribuídas às imagens (sagra-
brar que nossa herança ancestral mais antiga no Ocidente é o monoteís- das ou profanas), elas não puderam desfrutar do mesmo grau de importân-
mo do Pentateuco e a proibição de criar qualquer imagem (Eidôlon) como cia conferido ao raciocínio lógico e oficial; uma vez que dependem da per-
substituto ao divino. A herança monoteísta deu origem ao “método da ver- cepção subjetiva e não podem ser reduzidas a argumentos “falsos” ou “ver-
dade” que, conforme nos diz Gilbert Durand (O Imaginário), é oriundo do dadeiros”. As imagens passam ao longo de nossa história a serem acusadas
socratismo grego e baseado na lógica binária onde só existem pares de valo- de “amantes do erro e da falsidade” por proporem esta “realidade velada”,
res; sendo que um deles é necessariamente “verdadeiro” e antagônico a um enquanto a lógica aristotélica exigia “claridade e diferença”, a seriedade.
outro, necessariamente “falso”. Todavia, a propriedade das imagens de sintetizar aspectos indemonstráveis
Santo Agostinho em seu maniqueísmo platônico (e por que não dizer da subjetividade jamais passou desatenta ao pensamento ocidental.
binário) foi um dos precursores desta postura no pensamento Ocidental
também. E este preceito filosófico dá vazão a um iconoclasmo endêmico (...) graças à linguagem imaginária do mito, Platão admite uma via de acesso para
no Ocidente. Durand (2004, p. 9) ainda nos assinala que há pensadores as verdades indemonstráveis: a existência da alma, o além, a morte, os mistérios
que afirmam que foi a própria sintaxe grega quem exigiu e desencadeou do amor... Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica
este dualismo no pensamento de Aristóteles e Platão. Mesmo nas socie- fala diretamente à alma.
dades mais inclinadas para o racionalismo e a austeridade, o “culto ao (Durand, 2004, p.16).
riso” sempre foi presente, embora compensado dialeticamente com o “cul-
to ao choro”. Ao longo da história da civilização houve inúmeras tentati- Por estas razões “passionais” envolvidas na linguagem, jamais se con-
vas de minimizar ou alijar da massa o “culto ao riso”, mas isso se mos- seguiu controlar absolutamente o uso e gênese de imagens dentro das
trou impossível. Como exemplo, podemos citar as saturnais romanas ou sociedades ocidentais, e que também por isso, não apenas as oficiais
os carnavais feudais europeus, tão bem pontuados por Bakhtin: foram disseminadas nestes séculos de histórias. Como exemplo, temos

38 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 39


as invasões bárbaras sofridas pelo Império Romano, que sempre vinham
recheadas com novos deuses, heróis e santos, que podiam ser renega-
dos ou submetidos ao sincretismo religioso. Tudo dependia do valor
político do símbolo em questão e da maneira que ele poderia ser arti-
2.3 A Propagação Mítica Estrutural
e sua Função Social
culado em benefício de Roma. Desta maneira, podemos reafirmar que
não é recente, de fato, a compreensão de que poder simbólico acumu-

S
lado é poder material. abendo de antemão da pluralidade de concepções culturais que
O que denominamos um “sistema simbólico” não possui uma rigidez convivem no contemporâneo, precisamos investigar a maneira
intransigente. Existem sempre flexibilidades onde trocas de informações como opera a difusão mítica estrutural que contemplamos nas
entre culturas ocorrem. Para os especialistas da “teoria dos sistemas”, este sociedades. Entender o movimento de transmissão e de renovação mito-
vocábulo implica na idéia de uma abertura necessária: trata-se de um con- lógica nos permitirá mais à frente acompanhar melhor ressignificações
junto relacional entre vários elementos que podem até mesmo ser contra- míticas de nossa contemporaneidade.
ditório entre si. Assim como geneticamente temos crossovers cromossômi- Já argumentamos a respeito da influência dos signos sob o status social do
cos que criam novos códigos pelo contato e interação entre eles, podemos indivíduo que acumula valor simbólico. Estamos cientes de que as classes
perceber o movimento de intercâmbio acontecendo nas bordas culturais mais elevadas socialmente são tidas como “cultura oficial”, que dominam as
e dando origem à pluralidade e sincretismos dentro do imaginário, o que tradições, as instituem e as destituem. As demais tradições dominadas pos-
permite inclusive a eclosão de culturas mistas. suem preceitos e hábitos próprios que não se enquadram, e podem até mes-
Por conseguinte, a origem da coerência dos plurais culturais do ima- mo ser tabu, frente às práticas da cultura dominante. Isso dá origem a toda
ginário encontra-se em sua natureza sistêmica, e esta, por sua vez, fun- sorte de preconceitos, disfunções cognitivas, desentendimentos, diásporas e
da-se no princípio do “terceiro dado”, na ruptura da lógica bivalente onde aversões típicas de uma Torre de Babel. Acaba por excluir a cultura domina-
“A” exclui “não-A”. Com efeito, Durand nos diz (2004, p.84) que permitir da dos meios materiais disponíveis mais eficientes para a difusão de sua ide-
um conjunto de atributos intermediários entre culturas significa permi- ologia. Seu “poder” vai esvaindo-se com o abandono da sua prática ritual, até
tir a “A” e “não-A”, participarem em “B”. Esta é a fonte primária da diver- finalmente perecer aculturada. A ruína dos templos e a substituição do illud
gência entre o que se entende como pensamento mítico e o que se enten- tempus tornam um deus ineficiente e acontece então, lentamente, a substitui-
de como pensamento lógico-racional. Para que assuma uma modalidade ção pelo seu oposto dialético. A fé é frustrada e há uma tremenda migração
de pensamento, o homem precisa, por razões de coerência simbólica, ideológica que afeta os hábitos, rituais e perspectivas de existência social.
abandonar a outra. Todavia, nenhuma cultura é completamente soberana sobre as demais.
Ao abarcar novos indivíduos, um imaginário sofre modificações adaptati-
vas que contemplam seguramente perspectivas diferentes daquelas dos indi-
víduos dominantes. Perceberemos, certamente, um movimento retrógrado
natural por parte das instituições que precisarão se readaptar ao novo con-
texto. Abrir espaço intelectual para indivíduos “aculturados” é o ponto cul-
minante deste processo, pois isso certamente gera interpretações distintas
sobre o código, o superego social e sua gestão. Na própria expansão de um
sistema simbólico e de sua compreensão, decorrente da aculturação de
algum grupo, surge o desacordo sob sua interpretação, num movimento
dialético. Quando um elemento “comum” do imaginário passa a apresen-
tar duas versões antagônicas igualmente válidas surge o dilema social:

40 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 41


Imagem 6
Não apenas todo “objeto” imaginário é constitutivamente “dilemático” (cf. Claude Esta potencialidade é então conver-
Lévi-Strauss) ou “anfibológico” (isto é, “ambíguo” ao compartilhar com seu oposto tida em atuação verbal. A ação mate-
uma qualidade comum), mas é a física contemporânea que, pelos seus conceitos de rializada na natureza é quem pode, de
“complementariedade” (cf. Niels Bohr), antagonismo e “contraditariedade”, introduziu o fato, responder às necessidades huma-
status científico do anfibólio. nas. As imagens ligam-se aos arquéti-
(Durand, 2004, p. 84). pos através de seus atributos verbais.

O dilema do imaginário acontece quando existe um embate cultural A s estruturas verbais primárias
Hercules/ Glória de Hera.
dentro de um sistema. Como o mito não raciocina nem descreve, ele tenta representam, de alguma forma, os
convencer pela redundância, pelo pleonasmo e pela repetição. Como já fora moldes ocos que aguardam serem

Imagem 7
notado por Goebbels, ministro das comunicações do nazismo alemão, que preenchidos pelos símbolos distribuídos
acreditava que “uma verdade é uma mentira repetida inúmeras vezes”. pela sociedade, sua história e situação
Nuanças suaves permeiam toda esta repetição. Porém, a contrapartida des- geográfica. Reciprocamente, contudo, para
tas particularidades é que cada ato ritual acaba por portar uma mesma verda- sua formação todo símbolo necessita das
de relativa à totalidade do mito. Nestes diversos fragmentos rituais, está conti- estruturas dominantes do comportamento
da a totalidade do objeto mítico a que corresponde. Assim, os rituais supersti- cognitivo inato do sapiens. Assim, os
ciosos (de eficácia questionável) são também resquícios de uma aculturação. níveis “da educação” se sobrepõem na
O imaginário, nas suas manifestações mais convencionais (o sonho, o formação do imaginário: em primeiro
onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação etc.) e, em relação à lógi- lugar encontra-se o ambiente geográfico Afrodite/ A que nasce da espuma

ca Ocidental desde Aristóteles, é alógico. A identidade não-coordenada, (clima, latitude, locações continentais,
o tempo assimétrico, a redundância e a metonímia do plano de existên- oceânicas, montanhosas, etc.), mas desde

Imagem 8
cia mítica definem uma lógica inteiramente outra em relação àquela, por já regulamentado pelos simbolismos
exemplo, do silogismo ou daquela da narração jornalística, mas muito parentais da educação, o nível dos jogos
próxima em certas medidas à lógica musical. (o lúdico) e das aprendizagens por último.
Desse modo, precisamos de alguns critérios para estabelecer uma E, finalmente, pelo nível que René Alleau
possível “gramática do imaginário”. As unidades operantes deste movi- denomina de “sintomático”, ou o grau
mento devem ser as unidades lingüísticas que criam significados ao dos símbolos e alegorias convencionais
tecer continuamente o sistema num fluxo de idéias. A mitoanálise pre- determinados pela sociedade para a boa
cisa compreender os atributos conceituais de cada imagem e sua eti- comunicação dos seus membros.
Christos/ O ungido
mologia até o momento cultural que se pretende analisar e não apenas (Durand, 2004, p. 91).
prender-se à forma material explícita que ela apresenta.
Assim, todo ser divino carrega sinteticamente em seu epíteto a sua sig- Contrapondo agora um sistema imaginário com outro diverso teremos
nificação arquetípica. Hércules significa “glória de Hera”; Afrodite, a que “nas- os já comentados dilemas inerentes a relação simbólica. Ao final da que-
ce da espuma” e Christos, o “ungido”. Quando estes atributos são substan- rela de valores, alguns aspectos do sistema dominado atualizarão o siste-
tivados, eles passam a possuir uma dimensão de atuação na realidade do ma dominante. Outros símbolos podem ainda ser “potencializados” e
illud tempus. O trajeto antropológico do signo mitológico é reafirmado pelas obrigados a permanecerem “profanos” (embora latentes no imaginário e
orações, litanias, ladainhas e mantras, que reforçam socialmente a gama de emergindo de tempos em tempos) e serão considerados alógicos e arras-
adjetivos que potencializam e definem a entidade sagrada. tados pelo fluxo comunicacional vigente até as sombras do imaginário.

42 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 43


Um sistema sociocultural possui sempre um conjunto mais vasto em Porém, ao lançarmos um olhar mais atento para nossa contemporanei-
sua profusão de imagens, o qual contém conjuntos mais restritos. E dade poderemos avançar nesta metáfora. Hoje temos uma “topografia do
assim ao infinito, seja caminhando para o macro-cosmos, seja para o imaginário” bem diferente do que podíamos imaginar antes do advento
micro-cosmos, teremos escopos diferentes. Os imaginários sociais, mito- das novas mídias, representadas emblematicamente pela Internet.
lógicos, religiosos, éticos e artísticos sempre têm raízes e ramificações A revolução comunicativa e social que este novo paradigma inaugura
onde poderemos encontrar seu volume de atuação material. nos permite expandir a teoria de Durand até uma etapa posterior aos del-
No fluxo contínuo destas idéias polarizadas entre o inconsciente e o tas e meandros (2004, p. 114) das correntes do imaginário. Um momento
consciente social encontramos uma ordem morfogênica. Uma ordem que onde diversos fluxos imaginários, de diferentes culturas e tradições,
estabelece forma particular às imagens mitológicas e arquetípicas sobre desembocam num vasto oceano do imaginário global, inaugurado pelas
o relevo das condições sócio-ambientais, e que não pode ser completa- novas tecnologias e que garantiram o acesso de uma grande parte das
mente arbitrária ou aleatória. Ela foi teorizada e descrita por Durand: “bacias semânticas” a um espaço virtualmente comum no mar aberto da
web. Espaço este onde não existem mais fronteiras delimitadas entre ima-
Assim, levando em consideração estas várias constatações, aperfeiçoamos o gens sagradas e profanas.
conceito de “bacia semântica”. Ele já estava implícito na nossa “tópica”, matizando em Compreendemos assim a função social da propagação mítica. O traje-
subconjuntos o movimento sistêmico, o qual, por um lado, conduz o “isso” imaginário to antropológico do signo permite a atuação subjetiva de cada indivíduo
ao esgotamento no “superego” institucional e, por outro, suspeita desse “superego” e em seu grupo. Nossas escolhas e atitudes espontâneas (não racionaliza-
o erode pelos escoamentos abundantes de um “isso” [id] marginalizado. das), como aquelas do momento do consumo, são processadas através de
(Durand, 2004, p. 103). imagens arquetípicas que são retransmitidas culturalmente. Esta premis-
sa é essencial para que possamos mais à frente entender a explosão do
uso de imagens no mercado globalizado e a busca sistêmica do marketing

Imagem 9
(e suas instituições) em suprir e/ ou criar estas necessidades no ser huma-
no. Voltaremos nossos olhos agora sobre o que se teoriza a respeito da
evolução do pensamento humano ao longo dos tempos.

Bacia Semântica desagua no “Oceano da Contemporaneidade”.

44 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 45


Evolução do
2.4 Pensamento Mitológico
ao Pensamento Científico

S
abemos, por certo, que a Mitologia é anterior à História, à Ciência e
ao Capitalismo e compreendemos agora a forte maneira como estão
relacionadas tanto em sua estrutura, como em sua função social.
Precisamente porque se propõem a solucionar os mesmos problemas, encai-
xam-se de maneira análoga na sociedade e herdam inclusive algumas de
suas estruturas hierárquicas enquanto instituições equivalentes.
O exemplo mais emblemático é o fato que as primeiras universidades
surgiram em mosteiros. Os monges também eram quem abrigavam as
bibliotecas e, por conseqüência, o conhecimento. Quando o mito deixou
lentamente de ser legitimado como verdade oficial, a busca da verdade
científica tomou, conseqüentemente, seu lugar na pedagogia e na trans-
missão de conhecimento teórico.

(...) nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma


função já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por
finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente
impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado. Contudo, para nós
o futuro deveria ser sempre diferente, e cada vez mais diferente do presente, dependendo
algumas diferenças, é claro, das nossas preferências de caráter político. Mas, apesar de
tudo, o muro que em certa medida existe na nossa mente entre mitologia e História pode
provavelmente abrir fendas pelo estudo de Histórias concebidas não já como separadas
da Mitologia, mas como uma continuação da Mitologia.
(Lévi-Strauss, 1989, p. 63).

Desta forma parece interessante neste momento lançarmos olhos pelo


caminho que percorreu a Mitologia até sua, por assim dizer, metamorfo-
se em História. Vários autores já procuraram estabelecer possíveis etapas
na evolução dos mitos.
A mitologia evolui à velocidade que a complexidade da experiência humana
requisita narrações e imagens para nossas percepções enquanto sujeitos sociais.
O mito evolui porque evolui a gama de aspectos da realidade a serem abarcados
pelos textos sagrados e pelas leis. Por isso mesmo seus temas são comuns e suas

Iconoclastia vs. Iconolatria 47


inflexões inalienáveis da cultura pela qual foi gerado. O conhecimento depen- culturas ainda preservam tradicionalmente até os dias de hoje. Ao invés
de do “avanço lingüístico” proporcionado pela calibragem de suas característi- de ego, valores de parceria tribais coletivistas operavam intuitivamente
cas intermediárias (os atributos conceituais dos símbolos) com a realidade per- numa matriz matriarcal. As irregularidades que fugiam às explicações
cebida coletivamente pelas histórias oficiais e discursos legítimos. mitológicas deste momento mantinham a realidade cultural assentada no
plano dos valores do grupo e da espécie, os quais estavam equilibrados
Quando Kant definiu o conceito de “realidade” mediante a consideração de que é com o ecossistema e as práticas cooperativas em lugar das competitivas.
preciso designar como “real” todo conteúdo da percepção empírica, na medida em que
seja determinado por leis gerais e, destarte, ordenado na uniformidade do “contexto da Quando estas práticas foram sendo interrompidas, à medida que diminuíam os
experiência”, demarcou com isso exaustivamente o conceito de realidade do pensamento suprimentos dessas plantas, surgiram novas formas religiosas, e o tempo entre esses
discursivo. Nem o pensamento mítico, nem a concepção verbal primitiva, porém, conhecem grandes festivais foi-se tornando cada vez mais longo. O ego começou a se firmar,
de início semelhante “contexto da experiência”, pois sua função, como já vimos, consiste, primeiro como uma espécie de aberração cancerosa, depois foi se convertendo
antes, na liberação, na diferenciação e individualização e quando a intuição foi concentrada rapidamente num novo estilo de comportamento, que eliminou outros estilos de
em um só ponto e – em certa medida – reduzida a este, é que surge daí a formação mítica comportamento, suprimindo o acesso às fontes do caos. O ponto que quero frisar
e lingüística, brota a palavra ou o mítico “deus momentâneo”. é que entre o ego e a compreensão plena da realidade existe uma barreira: o medo
(Cassirer, 1972, p. 75). do ego de se render ao fato do caos. Numa sociedade pré-moderna, mulher alguma
poderia escapar ao caos devido ao script de parto automático, segundo o qual as
Ao que tudo indica a transmissão do mito teve origem com os conta- mulheres devem parir repetidas vezes até morrerem. As mulheres estão biologicamente
dores de história que pela primeira vez encadearam as imagens de manei- roteirizadas a estarem muito mais perto do caos simplesmente por que há episódios
ra a organizá-las e preservá-las com o passar das gerações, unindo o gru- em suas vidas que têm a garantia de serem solventes de fronteiras.
po através de sua memória coletiva, seu imaginário em uma realidade (McK enna , 1992, p. 54).
comum. (Lévi-Strauss, 1989, p. 56).
A este respeito ainda, podemos citar McKenna (1992) que propõe uma teo- Nestes primeiros estágios mitológicos o homem possuiu uma relação de
ria polêmica, mas sem sombra de dúvidas pertinente, sobre a evolução dos dependência muito grande do ambiente e daquilo que ele pode prover enquan-
sistemas simbólicos. Seu estudo tem grande peso no que se compreende atu- to recurso material. Quando um lugar, objeto, conduta, ou ritual oferece sal-
almente sobre a transição do matriarcado para o patriarcado na história da vação a um povo é onde surgem então os denominados deuses momentâneos:
civilização. Ele foca em aspectos da vida social num ambiente antropológico
pré-lingüístico, um momento antropológico onde são adorados deuses Se desejamos encontrar algum análogo para a concepção mítica posta aqui em
momentâneos e o matriarcado é predominante entre as culturas. questão [deuses momentâneos], cumpre retroceder, ao que parece, ao nível primitivo
Para ele o arquétipo feminino, anima, sempre esteve relacionado com o das interjeições verbais.
caos, com a criatividade e, desta forma, este matriarcado arcaico não con- (Cassirer, 1972, p. 88).
cebe um ego, apenas um corpo social com o qual se identificavam os indi-
víduos. Práticas como os rituais psicodélicos de sexo grupal e de transes No Brasil temos a interjeição “Oxalá!”, entidade mítica da mitologia
(induzidos pelo uso de alucinógenos) eram comuns. Tudo era ritualizado Yoruba (pai da humanidade e dono de todas as cabeças), muito presente
segundo a ideologia da ilusão coletiva destas comunidades. Os filhos e fru- na religião Candomblé e que, como interjeição da língua portuguesa do
tos destas práticas estavam absolutamente inseridos no contexto social. Brasil, transmite um desejo de sucesso, uma fé no sucesso, uma torcida
McKenna defende que pequenos grupos de caçadores/ coletores e de pelo sucesso. Nos E.U.A. o ritmo blues também está associado com enti-
pastores deste momento cultural ingeriam substâncias alucinógenas e dis- dades mitológicas afro-americanas, os blues-devils, relacionados com os
solviam suas fronteiras perceptivas comuns à realidade – como algumas espíritos que traziam tristeza e depressão, retomavam a memória de uma

48 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 49


situação melhor (pré-escravidão e deslocamento geográfico compulsório) atuar ordenado e duradouro do homem. Na medida em que avança o desenvolvimento
e inspiravam-os a entoarem seus cantos enquanto trabalhavam. Ambos espiritual e cultural, tanto mais a atitude passiva do homem diante do mundo externo
são bons exemplos de deuses momentâneos, pois possuem até nos dias transforma-se em ativa.
de hoje sua função lingüística preservada para invocar tais entidades. (Cassirer, 1972, p. 35).

Por causa desta vivacidade e excitabilidade do sentimento religioso, qualquer A noção de ciclos permite que passemos a adorar entidades que agora
conceito, qualquer objeto que por um instante dominasse todos os pensamentos, podem ser denominadas deuses especiais. É preciso adorar a chuva, para que
podia ser exaltado, independentemente da hierarquia divina: Inteligência, Razão, venha no momento propício. É preciso adorar o sol e tudo o que possa sim-
Riqueza, Casualidade, o Instante Decisivo, Vinho, a Alegria do Festim, o Corpo de um bolicamente se associar com fertilidade e abundância, entendidas como o
Ser Amado... Tudo o que nos vem repentinamente como envio do céu, tudo o que nos reconhecimento da prática do culto e trabalho com a terra. O homem tam-
alegra, entristece ou esmaga, parece um ser divino para o sentimento intensificado. bém compreende as estações do ano e suas implicações no ambiente, os ciclos
(Cassirer, 1972, p. 34). de vida e morte. São deuses de imagens zoomorfizadas e vinculadas aos fenô-
menos naturais. Deste profundo respeito e entendimento da atuação dos deu-
Podemos imaginar assim um contexto de onde emergiria um deus ses e da necessidade de sua adoração surgem os cultos.
momentâneo. Um homem ferido que se refugia numa caverna e con-
segue se salvar e depois volta contando como conseguiu realizar o fei- Onde quer que se estabeleça um deus

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to. Uma tribo que atravessa uma montanha e encontra sua caça, especial, onde quer que ele se erga como
repassa seu relato para a geração seguinte, que disso foi fruto direto. uma configuração determinada, esta
Surge uma nova denominação. Este sentimento de salvação é tão configuração é investida de um nome
intenso que merece um culto porque está relacionado com necessida- especial, derivado do círculo de atividade
des irracionais e inconscientes do ser. São aspectos biológicos como a pa r t icula r que deu o r igem ao deus .
nutrição, a hidratação, a cura, a respiração, a reprodução etc. Enquanto este nome for compreendido,
enquanto for percebido em sua significação
É claro que existe uma contrapartida: o reconhecimento do símbolo originária, suas limitações hão de estar em
só acontece à medida que possui uma dimensão real de atuação. Quando correspondência com as do deus; através

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um mito passa a ser ineficiente a criatividade dá novamente vazão à tor- de seu nome, um deus pode ser mantido
rente evolutiva do pensamento, gerindo novos ídolos, imagens e uma nova duradouramente no estreito domínio para
versão para o mito. o qual foi, na sua origem, criado.
Depois deste estágio algumas tribos abdicam o nomadismo em favor (Cassirer, 1972, p. 36).
de se estabelecer em uma determinada região. Foi na Revolução Agrícola
que passamos a produzir sistematicamente nosso alimento e começamos O princípio de unidade trazido pela
a intervir na natureza ao perceber o processo de evolução e de ciclos identidade comum é fundamental para
daquilo que tínhamos necessidade de “consumir”. É a eclosão dos mitos o amálgama social. Uma sociedade só
de fertilidade e da constante renovação cíclica da vida. poderá se estabelecer em uma região se
encontrar um objetivo comum entre seus
Acima destes demônios momentâneos que vêm e vão, aparecendo e desaparecendo membros e adorar deuses cujos domí-
como as próprias emoções subjetivas que os originam, ergue-se agora uma nova nios são compreendidos por todos. Um Deuses Zoomorfos: Chacal e
Anúbis (deus egípcio da morte).
série de divindades, cujas fontes não residem no sentimento momentâneo, mas no centro, onde todos aqueles membros

50 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 51


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convergem seus esforços diários a fim de compartilharem e celebrarem sua
existência coletiva, só é possível com o estabelecimento da estrutura moral
de compromissos específicos e recíprocos dos deuses especiais.
É o nascimento do ego e a queda das sociedades matriarcais. Lugares
cultivados passam a ser propriedade de uma comunidade, que passa a
delimitar fronteiras físicas e culturais. O valores sociais dos meios pas-
sam a ter pesos diferentes, já que podem satisfazer melhor ou pior às
necessidades gerais do ser humano. Os valores de parceria são substitu-
ídos pela competitividade decorrente da escassez material do meio. Surge
a estrutura familiar. Os rituais orgiásticos vão sendo pouco a pouco extin-
tos e a certeza da paternidade passa a ser imprescindível na nova ordem, Deuses Antropomorfos: “Vênus e Marte” deuses romanos da beleza e da guerra, respectivamente.

em função da transmissão de posses e direitos. Aparece a hereditarieda-


de dos valores simbólicos das imagens arquetípicas, antes incorporadas Desse modo, à medida que novas revoluções acontecem, outros seto-
arbitrariamente por qualquer indivíduo. res e domínios das necessidades existenciais vão aflorando e um outro
As cosmogonias culminam em grandes mitos genealógicos, que nar- estágio mitológico: os deuses pessoais. Estes deuses são, segundo Usener
ram a história do ambiente que habitam (normalmente a partir de esta- (apud C assirer, 1972, p.78), frutos de um processo histórico-lingüístico que
dos caóticos) até a “geração presente”. Cria-se uma organização do sis- culminou com a necessidade de universalizar cada vez mais a compreen-
tema simbólico. O modo que a cultura estrutura os sistemas pela atua- são do símbolo sagrado, expandir suas fronteiras até um limite máximo
ção dos diferentes domínios é atualizado continuamente. Estes nomes que encontrasse em si todas as expectativas do próprio ser.
sagrados identificam àqueles que conhecem a narração mitológica e nela Ainda em tempo, segundo Cassirer, os deuses especiais representam um
têm fé. São como redemoinhos que atraem todos aqueles que o legiti- ponto de passagem necessário que a consciência religiosa deve atravessar para
mam e reconhecem para seu centro, e, quanto mais se conhece a res- chegar a seu objetivo último e supremo: a conformação dos deuses pessoais.
peito do símbolo e seus rituais, maior o poder de influência no domí-
nio que exerce. Preferimos a imagem de um redemoinho para esta repre- O conceito de deus especial, que expressa mais um certo fazer do que um certo
sentação porque ela sugere inclusive os “efeitos hipnóticos” do trajeto ser, só então ganha corporeidade e, em certa medida, sua própria carne e sangue. Este
antropológico dos símbolos, donde é possível compartilhar com um gru- deus, agora, é capaz de agir e sofrer como uma criatura humana.
po uma ilusão coletiva. (Cassirer, 1972, p. 36).

(...) porém, o eu só pode trazer à consciência este seu atuar de agente, como As imagens arquetípicas destes novos ídolos pessoais sofrem antropo­
antes o seu sofrer de paciente, projetando-o para fora e colocando-o diante de si morfizações. Os deuses passam a interagir com os homens comuns e não
em firme configuração visível. Cada direção particular desta atuação humana gera mais atuam de acordo conduta geral do grupo. Realizam milagres e uti-
seu correspondente deus particular. Também estas divindades, que Usener chama de lizam seus atributos mágicos seguindo vontades típicas de quem possui
“deuses especiais” (Sondergötter), ainda não possuem, por assim dizer, uma função um ego também. Os deuses passam a tomar atitudes pontuais em relação
ou significação geral; ainda não penetram o ser em toda sua amplitude e profundidade, às personas. A estes deuses é conferido o poder de modificar o curso ordi-
permanecendo limitados a um setor, a um círculo muito determinado. Mas, em suas nário da existência individual e para que ele seja mais eficaz seus rituais
esferas respectivas, tais deuses ganharam determinação e duração, tendo com isto vão aumentando a complexidade.
também alcançado certa universalidade. É possível neste momento persuadir um Deus através de oferendas e
(Cassirer, 1972, p. 35). sacrifícios pessoais, ou esperar alguma retaliação caso suas especificidades

52 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 53


de desejos não sejam contempladas pela conduta daquele sujeito que o ado- (...) não é o “estado civil” indicado pelo nome próprio o que importa na identificação
ra. São os mitemas, propostos por Lévi-Strauss (1996), que vão vagarosa- de um deus, herói ou santo, mas as litanias “compreensivas” dos seus atributos. Mas
mente organizando mais e mais a existência e o atuar social do sujeito. o atributo quase sempre é subentendido por um verbo: afastar, avisar, atrair, ungir
etc. É o nível verbal que desenha a verdadeira matriz arquetípica. Dominique Raynaud
Como o mito não é nem um discurso para demonstrar nem uma narrativa para evidenciou muito bem na sua tese este primado da “esquematização verbal” do qual
mostrar, deve servir-se das instâncias de persuasão indicadas pelas variações derivam secundariamente o que, em 1990, denominamos de as “imagens arquetípicas
simbólicas sobre um tema. Estes “enxames”, “pacotes” e “constelações” de imagens epítetas”, seguidas das “substantivas” e, por fim, dos símbolos supradeterminantes
podem ser reagrupados em séries coerentes ou “sincrônicas” – os “mitemas” de pelo meio geográfico e social, e o momento sociocultural.
Lévi-Strauss (a menor unidade semântica num discurso e que se distingue pela (DURAND, 2004, p. 89).
redundância) – além do fio temporal do discurso (diacronia).
(Durand, 2004, p. 60). O poder de um símbolo passa a ser cada vez mais valioso quando expres-
sado por abundantes epítetos e reconhecimentos. Quanto mais vezes a
Estas unidades semânticas mínimas não por acaso residem na redundân- “Virgem Maria”, ou o “Mártir” forem reconhecidos em diferentes santos
cia. Elas são os limites formais da meta-linguagem para a elucidação da rea- regionais, quanto mais múltipla for sua ubiqüidade, mais abrangentes serão
lidade cultural do grupo. São produtos daquela deficiência lingüística intrín- seus poderes de influência sobre o domínio. As ladainhas (ou litanias) de
seca a que já nos referíamos anteriormente. Mitemas são as sínteses discur- atributos são quem asseguram sua vivacidade e atuação eficaz na realida-
sivas básicas que se aplicam na justificativa de hábitos culturais dos sujeitos de de uma comunidade. Proteger os ritos é função social esperada de cada
de um grupo. A iconolatria pede a execução do ato ritual da maneira mais um nós e, ao assistir isso com atenção, fazemos com que todos sejam coa-
aplicada possível, pois só através da bajulação existe a chance ser agraciado gidos à mesma conduta. A aceitação dos fatos narrados e das explicações/
com a simpatia divina e, quiçá, favores sobre-humanos. Executar o ritual de

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acordo com o protocolo passa a ser essencial para a eficácia do deus.

(...) todo aquele que queira conseguir sua proteção e ajuda deve tomar o máximo
cuidado para ingressar realmente em seu círculo, para lhe conferir sua proteção e
ajuda deve tomar o máximo cuidado para lhe conferir seu “justo” nome. (...) Este modo
estereotipado de invocação deve repetir-se sempre; pois, cada serviço oferecido em
honra do deus, cada desejo dirigido a ele, só é acolhido por ele na medida em que
se der sob o seu devido nome. Por isso, a arte da correta invocação desenvolveu-se
em Roma a ponto de tornar-se uma verdadeira técnica sacerdotal, cujo produto, os
Indigitamenta, estava sob custódia dos pontífices.
(Cassirer, 1972, p. 72).

É neste estágio que encontramos a mitologia greco-romana, ou mais à


frente a hagiografia católica. Embora a natureza politeísta da primeira seja
diversa da novidade introduzida pelo monoteísmo cristão, a Igreja não dei-
xou de utilizar a facilidade de conversão proporcionada pela aceitação e sin-
cretismo de santos regionais e suas respectivas imagens dentro do oficial,
Imagens de Santos Católicos.
nas ocasiões em que isso apontava em seu favor “diplomático” e político.

54 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 55


verificações proporcionadas pelos mitemas é ativa no processo de reconhe- Mas como é possível adorar uma entidade cuja imagem arquetípica não
cimento da eficácia dos esforços individuais de adoração. Abre-se o leque é única? Ora, podemos imaginar que neste momento algo aconteceu para
de representações e a possibilidade de expansão da fé. permitir ao ser humano agrupar diferentes representações dentro de um
A Idade Média se desenrola sob a égide da Santa Igreja e um longo tem- mesmo arquétipo. Durante as cruzadas os esforços bélicos foram concen-
po se passa com os iconólatras retomando seus postos e disputando espa- trados em nome de um ícone centralizador: “Jesus Cristo” e a “Santa Igreja
ços dentre as diferentes doutrinas em conflito neste período. Durante Católica Apostólica Romana”. Objetivando a reconquista da Terra Santa
pouco mais de treze séculos a Igreja Católica foi desenvolvendo imagens e a tomada de território do Islã, o Ocidente conseguiu finalmente expul-
sagradas e monges guardavam suas relíquias a sete chaves. Homens san- sar o invasor da Europa depois de árdua resistência, inclusive cultural,
tos regionais e mártires foram admitidos na corte divina, houve a proli- que até hoje deixou vestígios em palavras e hábitos ibéricos. Com o fim
feração de ordens eclesiásticas e surge o culto ao presépio natalino. das cruzadas, as diversas ordens eclesiásticas começaram a apresentar
A este respeito é interessante citar que as batalhas entre feudos medie- entre si novas rixas relativas às interpretações da “palavra sagrada”.
vais pré-cruzadas eram defendidas em nome de santos protetores e padro- Embora Roma tenha por muito tempo conseguido centralizar a interpre-
eiros. Como resquício histórico há a cruz vermelha sobre o branco na tação oficial da Bíblia, era difícil não admitir as alterações necessárias para
bandeira inglesa, que é a cruz de São Jorge; a cruz transversal branca o conformismo com as especificidades regionais.
sobre o azul na bandeira da Escócia, que é a cruz de Santo André. Já a Muito mais tarde, Galileu e Descartes fundaram as bases da física
cruz transversal vermelha sobre o branco na bandeira irlandesa é a cruz moderna e do mecanicismo racionalista, culminando num terceiro golpe
de São Patrício, que levou o catolicismo aos celtas. Isso para citar apenas do iconoclasmo Ocidental. Embora atualizassem em muito os erros come-
um dos cenários de conflitos medievais. tidos por Aristóteles e a posterior escolástica medieval, eles não contra-
Todavia, com o advento da dizem em momento algum a “lógica clássica” de que a razão é o único

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escolástica medieval e o redesco- meio de legitimação e acesso à verdade. A partir do século XVII o imagi-
brimento das obras de Aristóteles, nário passa a ser banido dos processos intelectuais:
tudo isso foi novamente questio-
nado em função da presença O legado do universo mental, as experiências de Galileu (...) e o sistema geométrico
“terrorista” da expansão islâmi- de Descartes (...) representam um universo mecânico no qual não há espaço para a
ca, que com seu monoteísmo abordagem poética. A mecânica de Galileu e Descartes decompõem o objeto estudado
mais fresco e vigoroso (verifica- no jogo unidimensional de uma única causalidade: assim, tomando como modelo de
do até os dias de hoje), exigiu um base bolas de sinuca que se chocam, o universo concebível seria regido por um único
retorno à “fé original” cristã. determinismo, e Deus é relegado ao papel de “dar o empurrãozinho” inicial a todo
Buscando com isso uma concen- o sistema. O século XVIII acrescentará outra coluna da tradição aristotélica a esta
tração ideológica mais encorpa- herança cristã de cinco séculos de racionalismo incontornável: o empirismo factual
da a fim de reunir forças sufi- (que delimitará os “fatos” e fenômenos). Os grandes nomes de David Hume e Isaac
cientes para enfrentar o perigo Newton permanecem atrelados ao empirismo e com eles esboça-se o início do quarto
eminente da invasão. Isso foi momento (no qual ainda estamos mergulhados) do iconoclasmo ocidental.
conseguido restringindo os (Durand, 2004, p. 13).
demais cultos de santos. Depois
do “método da verdade” aristoté- Este quarto momento inaugurado pelo empirismo praticamente cimen-
lico este foi um segundo golpe do ta as bases daquilo que será a ideologia embrionária do Estado e das ins-
iconoclasmo ocidental. tituições capitalistas modernas, que culminaram nas revoluções liberais.

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Surgem as infindáveis metáforas e analogias da natureza do homem com filósofo Jean Guitton, “fundar a fé sobre o espírito dos tempos”. Donde, claro, o esforço
a “máquina perfeita”, que precisa ser estudada a fim de ser descrita mate- dobrado dos teólogos para “desmitificar” as verdades de fé e fundamentá-las em fatos
maticamente. É a pretensão de se alcançar um determinismo absoluto na históricos positivos. Os teólogos ocidentais só conseguiram exorcizar as tentações
natureza a partir de equações. Os Estados tornam-se laicos e ocorre uma modernistas e iconoclastas recentemente. Com o questionamento da “modernidade”,
secularização verificável em todos os aspectos sociais dos símbolos. o “monoteísmo” do futuro científico fragmentou-se em pluralismos, foi renegado por
O positivismo e as filosofias da História, às quais as Ciências da uma “filosofia do não” (G. Bachelard), e as grandes “religiões seculares”, o nacional-
Comunicação tributam suas origens, serão produto da conjunção entre a fac- socialismo e o leninismo-stalinista, desmoronaram. Jean-Pierre Sirronneau, na primeira
tualidade da análise empírica com o rigor iconoclasta do racionalismo clássi- parte de sua tese Sacré et désacralisation [O sagrado e a dessacralização], analisou
co. Estas duas correntes esvaziaram por completo a legitimidade conferida ao muito bem estes movimentos de dessacralização e secularização que atingem a teologia
imaginário, ao raciocínio simbólico pela semelhança, ou seja, a metáfora. em cheio. Não deixa de ser significativo que o revisionismo teológico tenha se originado
Emergem o cientificismo e o historicismo. Qualquer imagem que não fora das diretrizes das Igrejas. Nos primeiros anos do nosso século, as dificuldades para
esteja neste momento devidamente estabelecida como um mero “clichê” as explicações historicistas do sagrado produziram uma corrente inteira de análises
de sentido estreito e estereotipado passa a ser suspeita de ser passionali- “fenomenológicas” (que se atêm “à coisa em si”, ao próprio objeto do religiosus) do
dade. São as divagações dos “poetas malditos”, as alucinações e delírios Sagrado. E é nesta corrente que se situam dois dos principais inovadores do papel do
dos doentes mentais, as visões dos místicos e as obras de arte que serão imaginário nas aparições (hierofanias) do “religioso” no centro do pensamento humano:
expulsas da terra firme da ciência. Mesmo a classe dominante deste o romeno Mircea Eliade (1907-1986) e o francês Henry Corbin (1903-1978).
momento (a burguesia) passa a reservar-se do gasto com decorações, que (Durand, 2004, p. 72).
são tratados como mero deleite estético sem significado real. Toda a arte
sofre uma grande transformação: Neste sentido, o desenvolvimento das filosofias da História teve influ-
ência de tal pensamento: o ponto de vista do autor de qualquer documen-
(...) foi só quando o pensamento mitológico (...) passou para segundo plano no to histórico é necessariamente político e isso precisa ser tomado em con-
pensamento ocidental da Renascença e do século XVIII, que começaram a aparecer ta na sua análise. O “adulto civilizado” é co-autor de qualquer documen-
as primeiras novelas, em vez de longas histórias ainda elaboradas segundo o modelo to científico aceito pela comunidade científica internacional.
da mitologia. E foi precisamente por esta altura que testemunhamos o aparecimento Obviamente esta questão autoral não pode ser a única diferença entre
dos grandes estilos musicais. História e Mitologia. No entanto, a “história oficial” disseminada pelos
(Lévi-Strauss, 1989, p. 68). meios de comunicações legitimados nunca deixou de ser estigmatizada
pela mediação dos valores das elites. Sempre detentores do poder simbó-
Com isso a ética e estética protestante tornam-se regra no Ocidente. A lico acumulado e institucionalizado, para estas classes burguesas os mitos
Reforma é o período onde esta nova perspectiva de mundo é finalmente incor- tomam a forma de ficção e a arte se destina a “imitar a vida”. A princípio
porada oficialmente à cultura. Embora todo este processo tenha sido lento, a separados entre o jornalismo (objetivo) e a publicidade (subjetiva), hoje,
erosão do papel do imaginário na filosofia e na epistemologia ocidental pro- este aparatus comunicativo do capitalismo tende novamente à homoge-
porcionou um grande potencial técnico que desenvolveu máquinas, aparelhos neização com as mídias eletrônicas, mas sempre tomando como lastro
e rituais sociais que inauguraram um novo herói: o “adulto civilizado”, sepa- receptivo de seu discurso o “adulto civilizado”, também considerado
rado por sua “mentalidade lógica” das demais culturas do mundo. público-alvo de suas enunciações.
Assim, o processo contínuo de busca da verdade ainda é submetido à lógi-
No Ocidente, a partir do final do século XVIII, as religiões institucionalizadas passaram ca binária grega. A diferença fundamental na Ciência é acerca do conhecimen-
a ser consideradas conforme o gosto historicista e cientificista do dia. Estas tentações, to, tido como infinito e inesgotável. Ao contrário da Mitologia, a Ciência não
que reagrupamos sob o nome de “modernismo”, almejam, segundo as palavras do estabelece dogmas compulsórios sobre os conceitos gerais da linguagem.

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Haverá sempre novos problemas, e, ao mesmo ritmo com que a ciência foi capaz de das revoluções liberais
resolver problemas filosóficos que se consideravam insolúveis há uma dúzia de anos ou (Indus­trial e Francesa espe-
há um século, voltarão a aparecer novos problemas que não haviam sido apercebidos cificamente) foram aos pou-
como tais. Haverá sempre um fosso entre as respostas que a ciência está habilitada a cos transferindo a eficiên-
dar-nos e as novas perguntas que essas respostas provocarão. cia da atuação divina para
(Lévi-Strauss, 1989, p. 25). as máquinas e aparatos téc-
nicos avançados pela ciên-
Enquanto para a mitologia o sistema fechado que a caracteriza ofere- cia. Neste ínterim surge
ce uma versão singular e não permite adendos para abarcar novas reali- também a ritualização do
dades e situações, na Ciência este empecilho é facilmente ultrapassado. uso destes aparatos.
A única verdade absoluta na Ciência é a de que não existe verdade abso- Não obstante, mesmo
luta. O cânone científico abre a possibilidade que tudo possa ser questio- durante a Revolução Indus­
nado e comprovado através do método científico. Ele ainda sugere a aná- trial inglesa esta nova pers-
lise fractal dos objetos: tudo será dividido em partes suficientes para uma pectiva ritual gerou contro-
analise satisfatória. vérsia e acontecimentos Revoluções Liberais: Liberdade conduzindo à vitória.

significativos como o ludis-


O que se descobre ao ler estes livros é que a oposição – a oposição simplificada mo (movimento social de artesões têxteis do começo do século XIX que
entre Mitologia e História que estamos habituados a fazer – não se encontra bem protestavam contra as mudanças introduzidas pela Revolução Industrial)
definida, e que há um nível intermédio. A mitologia é estática: encontramos os mesmos e outros que visavam destruir máquinas e fábricas.
elementos mitológicos combinados de infinitas maneiras, mas num sistema fechado, Apesar de certas resistências pontuais, as instituições capitalistas não
contrapondo-se à História, que, evidentemente, é um sistema aberto. O caráter aberto falharam em disseminar seu avanço tecnológico e valores ideológicos atra-
da História está assegurado pelas inumeráveis maneiras de compor e recompor as vés do consumo social de suas novidades tecnológicas. Não é possível
células mitológicas ou as células explicativas, que eram originariamente mitológicas. para o homem, no exercício de sua função social, compreender o funcio-
(Lévi-Strauss, 1989, p. 61). namento das máquinas que ressurgem mais complexas todos os dias;
quando muito ele pode compreender a sua total aplicabilidade. A conver-
Como efeitos desta postura introspectiva e “micro-cósmica” da Ciência gência dos avanços foi customizada socialmente para produtos e apara-
(voltada para a análise); presenciamos o fenômeno contemporâneo da tos que encantam as pessoas, bem como os mitos de outrora, pois satis-
especialização superlativa da atuação profissional. Os indivíduos são con- fazem às mesmas necessidades inconscientes de sobrevivência e acesso
duzidos por carreiras que os encaixam em atividades sociais cada vez ao sagrado. A mitologia capitalista, ao dar conta dos arquétipos com ima-
mais específicas. Estas células explicativas interagem dando vida à nos- gens arquetípicas hi-tech, criou ícones e instituições disseminadoras de
sa complexa sociedade, embora não possam evitar a alienação daqueles sua cultura oficial.
que participam do processo, dado o condicionamento micro-cósmico exi- As representações simbólicas deste aparato possuem imagens arquetí-
gido pela especialização. picas esboçadas em logotipos e mascotes corporativos que são conceitos
A Ciência tem sua faceta mágica na tecnologia, nas engrenagens e bugi- de design pretensiosamente globais. Imagens estas que já tinham suas
gangas desenvolvidas pelo seu avanço técnico. A sinergia das expertises, antecessoras nas bandeiras e símbolos das nações, ou mesmo nos brasões
experimentadas pelos ambientes de pesquisas dos Estados-Nacionais e feudais e, muito antes, nas respostas subconscientes do homem às suas
das corporações, permitiu o desenvolvimento de ferramentas humanas necessidades irracionais; deste modo contemplando aquilo que se espe-
que ficaram complexas como as próprias especialidades. Os imaginários ra de uma imagem arquetípica.

60 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 61


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Os objetos sociais que hoje consu- A Criatividade, a Dinâmica dos
mimos, participam do imaginário no
abrangente escopo do mercado global,
antes jamais experimentado por quais-
2.5 Sistemas Simbólicos, o Caos
no Senso Comum e a Queda do
Determinismo Lógico no Ocidente
quer outros sistemas simbólicos. Seja
por seu alcance territorial ou popula-

O
cional, nenhum outro sistema simbó- s avanços tecno-científicos e a postura analítica micro-cósmica
lico foi, até onde se tem conhecimento, da Ciência acabaram nos levando até as teorias da física moder-
tão influente no pensamento humano. na. Entre elas, a Teoria da Relatividade, as Teorias da Física

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Aproveitaremos para discutir estes Quântica e as Teorias do Caos são as mais significativas, pois ironicamen-
aspectos políticos e sociais contempo- te processam um novo movimento no imaginário do Ocidente. É a eclo-
râneos mais à frente em um capítulo são dos novos padrões artísticos, da contracultura, do retorno à busca da
específico, em função de sua relevân- verdade do sagrado e da verificação da impossibilidade de total determi-
cia para este estudo. nação da natureza através da matemática e do mecanicismo. Citamos dois
No cientificismo existe a ilusão de importantes autores a este respeito:
que o homem alcançou o status de
mestre da natureza. Religiosos come- Com a mecânica quântica, em 1927, veio um reconhecimento do autêntico
çam a aumentar o volume das acusa- indeterminismo que vigora na natureza. Desde essas épocas, tem havido um reconhecimento
ções de que os cientistas estariam Aparelhos Computacionais Hi-tech: I- gradativo de que a indeterminação existe não só no nível quântico, mas também em todos
Pod’s da Apple, Capacete e JoyStick da
“brincando de deus”. Dada à eficiência Siemens para Realidade Virtual. os níveis de uma organização natural. Há uma espontaneidade, um indeterminismo e uma
alcançada nesta busca (que o determi- probabilidade inerentes no tempo, na quebra das ondas, no fluxo turbulento, nos sistemas
nismo lógico empreendeu) da absoluta descrição da natureza; são criadas nervosos, nos organismos vivos, nos ciclos bioquímicos e em toda uma série de fenômenos.
as condições para o desenvolvimento de técnicas de comunicação como Até mesmo o velho modelo, favorito como representante da ordem matemática racional
a fotografia, a produção gráfica, o rádio, a televisão, o cinema etc. total, das órbitas dos planetas no sistema solar, revela-se caótico e imprevisível em temos
Graças a este efeito perverso (que subverte a lógica binária que lhe deu da física newtoniana. O mesmo indeterminismo está sendo agora reconhecido em todos
origem) da “civilização da imagem”, a que nos refere Durand (2004, p.31), os níveis da natureza. A mim me parece que esse estado de abertura da natureza, esse
culminamos todos estes meios finalmente no computador e na nova indeterminismo, essa espontaneidade, essa liberdade é algo que corresponde ao princípio
mídia: a Internet, a rede virtual que inaugura uma nova etapa na histó- do caos em seus sentidos intuitivo e mitológico. Os matemáticos têm utilizado a palavra
ria dos sistemas simbólicos humanos. Etapa esta que discutiremos espe- caos em vários sentidos técnicos, e não é totalmente clara para mim a maneira como esses
cialmente no próximo capítulo deste estudo. modelos técnicos de sistemas caóticos correspondem às noções intuitivas de caos.
(Sheldrake in McK enna , 1992, p. 55).

Gerald Holton permite-nos perceber que, atualmente, e para explicar suas próprias
orientações, o pensamento científico vê-se constrangido a pedir auxílio ao mesmo imaginário
durante tanto tempo reprovado, no século XVII, pelo iconoclasmo das teorias originárias... No
próprio santuário da física, que esteve longamente voltado apenas para o seu mecanicismo,
as imagens irreconciliáveis da onda (contínua) e do corpúsculo (descontínuo) vêem-
se obrigadas a se associarem a um “mecanismo ondulatório”. Dessa forma, a precisão

62 Mitos Contemporâneos 63
científica não pode abrir mão de uma “realidade velada” (Bernard d’Espargnat), onde os Dizer que um modo de pensamento é desinteressado, e que é um modo intelectual
símbolos, estes objetos do imaginário humano, servem como modelo. de pensar, não significa que seja igual ao pensamento científico. Evidentemente que
(Durand, 2004, p. 71). continua a ser diferente em certos aspectos, e que lhe é inferior noutros. E continua a ser
diferente porque a sua finalidade é atingir, pelos meios mais diminutos e econômicos, uma
O argumento da lógica binária não é mais suficiente para explicar compreensão geral do universo – e não só uma compreensão geral, mas sim total. Isto é,
dinâmica social contemporânea. A criatividade, deste modo, é o que vem trata-se de um modo de pensar que parte do princípio de que, se não se compreende tudo,
dar substrato à constante renovação mitológica. Ela puxa o movimento não se pode explicar coisa alguma. Isto está inteiramente em contradição com o modo de
dialético à medida que novas soluções precisam ser desenvolvidas para proceder do pensamento científico, que consiste em avançar etapa por etapa, tentando
abarcar os dilemas advindos dos embates culturais. A criatividade que dar explicações para um determinado número de fenômenos e progredir, em seguida, para
emana da dramaturgia (interação) diária das personas precisa ser expres- outros tipos de fenômenos, e assim por diante. Como já disse Descartes, o pensamento
sa através de um meio. Quanto maior o alcance do meio, maior e mais científico divide a dificuldade em tantas partes quantas necessárias para resolver.
complexa será a sociedade abarcada pelos símbolos que difunde. (Lévi-Strauss, 1989, p. 31).
A única maneira de conservar uma tradição é renová-la em função das
circunstâncias da época. Quando o mundo se altera, a religião e a mitolo- Outro ponto a ser considerado é que este pensamento criativo está alta-
gia (ou os sistemas simbólicos) precisam se transformar. As diferentes mente vinculado ao momento de ócio, defendido por Domenico de Masi
sociedades buscam equilibrar as cargas dialéticas emanadas deste movi- (2000). No ócio é que surge o insight, o vislumbre do novo significado, a
mento em trágico e cômico, em riso e choro, em sagrado e profano, em nova associação suficientemente forte para ser compreendida e legitima-
classe dominada e dominante. da socialmente. O que nos dá uma boa percepção de como é que a socie-
O momento criativo é onde permitimos associar os signos certos a fim dade distribui às classes o tempo livre que lhes cabe. Não gostaríamos de
de recriar as parafernálias comunicativas, mitológicas e, sobretudo, lin- nos aprofundar neste mérito, no entanto, obviamente o tempo criativo
güísticas que operam e gerem, sendo esta sua função social, as institui- legítimo é permitido apenas às elites.
ções; sobretudo igrejas/ seitas e entidades que trabalham com mídia: Nestas características “universalizadoras” do pensamento mítico (de
publicidade, jornalismo, ficção, esportes e artes. Sabemos também que a que tudo precisa ser compreendido para que algo possa ser explicado)
criatividade eclode com muito mais força na cultura popular, já que ela estão representações do riso e do choro, do clímax orgástico social, do
precisa concentrar muito mais seus esforços para fazer frente ao gigantis- coro no estádio de futebol, da repetição da palavra de ordem, das calami-
mo do aparato comunicacional oficial. No momento criativo nos encon- dades e dos desastres compartilhados. Em outras palavras, esta é a sínte-
tramos legitimamente libertos das amarras sociais convencionais e salta- se necessária para que a identificação pessoal com os símbolos e imagens
mos para o universo simbólico com uma aleatoriedade associativa que sejam ótimas para toda uma população em questão.
ricocheteia nas possibilidades das sinapses cerebrais. As sociedades descrevem as suas próprias histórias e mundos, ou
Aquilo que Lévi-Strauss (1976) chama de pensamento desinteressado melhor, suas próprias versões de história, adequadas para a manutenção
em seu Totemismo ou O pensamento selvagem se confunde com o que conhe- da classe dominante e do sistema em sua posição. Replicando a ideologia
cemos como livre associação de idéias (fundamental para o brainstorming nos mais criativos suportes e designs, para os mais repetidos conceitos e
corporativo) ou a maiêutica (“parto de idéias” dos gregos socráticos). No objetivos, a classe dominante consegue se manter vinculada ao poder
momento que abrimos mão da tradição por uma postura criativa, que tem material/ simbólico. Já que é vetado à classe subjugada legitimar o valor
a finalidade de totalizar uma compreensão total do universo ou de algum da sua cultura, ela é por esta relação assim denominada subcultura. Desta
domínio, o símbolo é “negligenciado” de suas associações convencionais forma, a comunicação e o pensamento humano evoluí em complexidade
na linguagem codificada e são permitidas as alegorias e licenças poéticas à medida que precisa criar novos códigos para de prevenir o acesso da
para que dinâmica sistêmica prossiga em seu fluxo: subcultura aos meios de dominação.

64 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 65


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A dificuldade em se expressar de acordo com o código formal é a barreira
para o acesso da subcultura aos meios de dominação. A linguagem escrita, o
código em sua excelência, são as instâncias dos símbolos no superego social.

A linguagem escrita cria para nós a ilusão de um mundo independente. A noção


de um mundo de Formas transcendente e eterno não poderia ter surgido enquanto
não existisse a linguagem escrita, porque esta lhe fornece o modelo. Pelo que penso
ser uma espécie de idolatria, os símbolos e as estruturas feitos pelos seres humanos,
depois de escritos duram para sempre, segundo se imagina, no âmbito de algum outro
reino. A linguagem falada é muito mais antiga do que a escrita, mas é um processo que
acontece no tempo. A memória envolvida em culturas orais é transportada em histórias Varal com Camisetas de Che Guevara à venda e Regata com Foice e Martelo.

continuamente recontadas, que evoluem à medida que são transmitidas.


(Sheldrake in McK enna , 1992, p. 69). Todo signo é tributário ao sistema que o criou, mas seu significado
pode ser usurpado e modificado por decorrência dos movimentos sociais
Sabendo disso, e pensando na contemporaneidade, que é assumida- e da mudança de paradigma cultural adotado na sua análise. Como já
mente uma sociedade composta por símbolos predominantemente visu- citamos na teoria das “bacias semânticas”, qualquer fluxo de idéias con-
ais; um logotipo corporativo (enquanto símbolo dentro de um sistema) tínuo apresenta confluências e inter-relacionamentos dialéticos com
expressa um conceito partilhado no imaginário através da comunicação outros fluxos que se modificam mutuamente neste contato. Porém, um
de uma instituição e é tomado como verdade pelo consumidor. Ele iden- deles sempre há de prevalecer, carregando consigo toda a energia da qual
tifica a imagem e busca o produto irracionalmente, pelo reflexo incons- se apodera com a dominação cultural do outro.
ciente do arquétipo, como solução imediata de sua necessidade. Para satis- É inevitável ilustrar a maneira como a suástica nazista é tratada no oci-
fazer nossas necessidades sociais de identificação, tecemos uma expres- dente e sua carga de vergonha, pesar e insanidade difundida pelos vence-
são pessoal através dos símbolos disponíveis no imaginário coletivo. dores da II Guerra Mundial. Igualmente, a foice e o martelo foram banidos
A constatação da presença de um símbolo é o bastante para que uma da área de influência americana, durante a Guerra-Fria e as Ditaduras
associação seja feita e julguemos se nossa personalidade associa-se ou não Latino-Americanas. Embora hoje em dia o ícone tenha caído nas mãos da
ao conceito; porém, jamais poderemos nos isentar da compreensão deste, cultura pop, juntamente com o rosto de Che Guevara, e tenha evoluído a
por razões sociais de dependência e, sobretudo, vantagem de nossa influ- favor do sistema capitalista de forma irônica; o símbolo nazista até hoje não
ência política. Ignorar o conhecimento e o sistema ideológico é um ato que foi superado. Podemos ainda pontuar uma das principais teses protestan-
gera sérias implicações na colocação social de um indivíduo e o conheci- tes contra o catolicismo: a supressão do culto aos santos e seu vigor violen-
mento da cultura dominante é sempre lastro para o julgamento das sabe- to ao depredar imagens. Da mesma forma, o Islã age contra as imagens que
dorias das demais culturas. consideram pagãs e/ ou hereges. Uma guerra, em sua dimensão ideológi-
A palavra não pode ser contestada em seu significado mítico. É impres- ca, sempre depende destes arquétipos para concentrar suas tropas e esfor-
cindível que, sob todos os aspectos, ela esteja livre da “contaminação” de ços.
outros atributos ao seu conceito. Deste modo, a aura sagrada surge. Rituais e Outro exemplo elucidativo foi o que aconteceu na França durante a
etiquetas para a correta utilização do símbolo são criados para impedir seu revolução burguesa e ascensão do Estado-Nacional. Em sua famosa sessão
fácil acesso e possível desvio. Ele passa a ser cercado de cuidados especiais, de 19 de Junho de 1790, a Assembléia Constituinte decretou a supressão
de reserva simbólica: a intocabilidade e a impronunciabilidade do sagrado, de brasões e ao mesmo tempo de títulos da nobreza, indumentárias, estan-
por exemplo. Com isso ainda valoriza seu lado espiritual e transcendente. dartes, pendões, ordens de cavalaria, decorações e todos os “símbolos do

66 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 67


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impacto das imagens proporciona-
das pelo incidente, mas principal-
mente pelo seu significado contex-
tual: as torres eram materializações
simbólicas ultrajantes para guerra
islâmica contra o capitalismo. É cla-
ro que não podemos esquecer que
o ataque foi muito mais amplo, mas
os outros alvos parecem-nos agora
secundários, se pensarmos na rele-
vância de um ataque contundente

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ao que se traduz como “Centro
Comercial do Mundo”. Exatamente
o edifício que se pretendia sede,
templo do mercado globalizado.
Entendemos que este ato não seja
suficiente para alterar um sistema
ideológico e seus mitos, mas é com
certeza uma das primeiras provi-
dências a serem tomadas em tais
ocasiões históricas. Da mesma for-
ma como uma camiseta de futebol
Brazões medievais foram abolidos pela Assembléia Constituinte durante a Revolução Francesa. pode ser queimada como forma de
agressão simbólica pela torcida Estátua da liberdade e World Trade Center
em Chamas no dia 11 de Setembro.
feudalismo”. O uso de brasões foi abolido. adversária, ou uma bandeira é reco-
Assim uma nova iconografia sempre surge para ilustrar e representar novos lhida e outra hasteada assim que é
tempos. Para ilustrar este fato, temos o romantismo francês e suas grandio- efetivada a tomada de território ao final de uma batalha. O processo de câm-
sas composições dramáticas. Um exemplo destacável poderia ser a alegoria bio ideológico opera no movimento dialético, criando significados opostos
da “liberdade”, antropomorfizada em mulher e trajando vestes à moda clás- para um mesmo significante, um deles oficial e outro profano.
sica grega. Sua importância era tão grande enquanto ícone do movimento Dessa forma, uma alteração na linguagem (estrutura básica na cons-
revolucionário que ganhou inúmeras representações em telas e estátuas – trução de uma sociedade) acarretará mudanças, acertos, gambiarras e
onde o exemplo mais emblemático é a enorme obra presenteada pela França mesmo supressão e proibição de mitos e símbolos. Compreendemos que
aos Estados Unidos e ancorada em Manhattam: a estátua da liberdade. o mito é um sistema semiológico segundo, operando sempre metaforica-
Aliás, bem próximo de onde se encontra esta famosa estátua, um outro mente com a linguagem, deslocando-se de um nível o sistema formal das
grande símbolo foi destruído ao vivo worldwide e desencadeou uma guerra significações imediatas.
ideológica contra inimigos sem rostos ou pátria: os “terroristas islâmicos fun- Lévi-Strauss nos diz que o mito é “uma magnífica lente na maneira
damentalistas”. O ataque ao World Trade Center sem sombra de dúvidas é como o homem sempre pensou” (L évi-Strauss in Wiseman, 2000, p. 134).
um momento histórico, não tanto pelo espetáculo trágico-midiático e o Para ele o mito era o verdadeiro caminho para a compreensão do incons-

68 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 69


fana) e esta característica precisa ser pontuada durante sua interpretação.
ciente coletivo, bem como o sonho era para Freud ao inconsciente parti-
No próximo capítulo estudaremos o contexto dos sistemas simbólicos
cular. Sabendo que o homem sempre buscou satisfazer as mesmas neces-
contemporâneos e suas particularidades advindas do avanço tecnológico
sidades existenciais – tanto por meio do pensamento mitológico, como
e da introdução dos novos meios de comunicação. Esta discussão (que
pelo lógico-científico – verificamos uma evolução e passamos por etapas
apresentamos sobre os aspectos antropológicos, psicológicos e sociais dos
até chegarmos neste presente estado “plasmático” que a pós-modernida-
símbolos e imagens) será essencial em nossa análise posterior, principal-
de se apresenta. Com a possibilidade de explicar o mundo utilizando
mente pelo fato de que a linguagem visual é a quem caracteriza o siste-
novamente conceitos como o “caos”, com o inchaço urbano e o aumento
ma simbólico atual.
vertiginoso do fluxo comunicacional e comercial humano, principalmen-
te através do uso de imagens, a Ciência volta a ter interesse em campos
de conhecimento por tanto tempos esquecidos.

(...) tenho a sensação de que a ciência moderna, na sua evolução, não se está a
afastar destas matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada vez mais reintegrá-
las no campo da explicação científica. O fosso, a separação real, entre a ciência e aquilo
que poderíamos chamar pensamento mitológico, para encontrar um nome, embora não
seja exatamente isso, ocorreu nos séculos XVII e XVIII. Por essa altura, com Bacon,
Descartes, Newton e outros, tornou-se necessário à ciência levantar-se e afirmar-se
contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a
ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos,
cheiramos, saboreamos e percebemos; o mundo sensorial é um mundo ilusório, ao
passo que o mundo real seria um mundo de propriedades matemáticas que só podem
ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos
sentidos. Este movimento foi provavelmente necessário, pois a experiência demonstra-
nos que, graças a esta separação – este cisma, se quiser –, o pensamento científico
encontrou condições para se auto-constituir.
(Lévi-Strauss, 1989, p. 18).

Não cabe a nós, portanto, julgar a postura que o Ocidente tomou


durante todos estes séculos em excluir o “caos” do seu senso comum e
dos seus sistemas simbólicos. O que pretendemos neste estudo é o apro-
fundamento da compreensão sobre o sistema simbólico contemporâneo,
pós-industrial e virtualmente global.
Seguiremos a tendência de revalorização dos conhecimentos e estudos sobre
as imagens, que voltam a ter valor graças às circunstâncias atuais da socieda-
de. Imagens são aspectos da atuação social humana cuja interpretação a mui-
to estávamos afastados na Ciência, em benefício do paradigma da lógica biná-
ria, que não reconhece qualquer coisa que não possa ser reduzida em verda-
deiro e falso. Como vimos, a imagem é dúbia em sua essência (sagrada e pro-

70 Mitos Contemporâneos Iconoclastia vs. Iconolatria 71


3 Semiótica na Internet
e Contemporaneidade

73
3.1 Enunciação na Internet:
Conceitos e Aplicações

A
pós a introdução dada no capítulo passado sobre as origens dos
sistemas simbólicos e suas relações com a atuação social huma-
na, procuraremos, neste capítulo, abrir a discussão destes temas
no nosso contexto cultural contemporâneo. Para isso, será necessário
compreender como se dá enunciação simbólica nestes novos meios.
Todo discurso se dá na interface de um emissor e receptor dentro de
um dado espaço-tempo. Entender os mecanismos enunciativos de um
computador significa entender os processos de codificação internos das
mensagens neste suporte como uma das formas de mediação da comuni-
cação entre emissores e receptores.
Nesse sentido, as contribuições da enunciação lingüística são, sem
sombra de dúvida, lugares de partida para se pensar a enunciação midi-
ática computacional, que em suas especificidades demanda a compreen-
são dos mecanismos internos de codificação, enquanto suporte/ espaço
do processo das comunicações virtuais mediados pelo computador.
Desse modo, um longo caminho precisou ser percorrido pelo conheci-
mento humano até que as máquinas fossem aperfeiçoadas para a transmis-
são de informação, dados e, posteriormente, expandidos em textos, ima-
gens, sons, vídeos e outras infin-

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dáveis aplicações.
Um dos primeiros passos para
o avanço destas técnicas certa-
mente está no desenvolvimento
de um sistema binário suficiente-
mente eficiente para a representa-
ção dos símbolos sociais. O siste-
ma de notação binária representa
a “linguagem universal” para a
mecânica e eletrônica porque
po­de codificar diferentes in­for­
mações em um modelo re­conhe­ Medalhão de Leibnitz, base de
números binários em 1718.
cido e computado por uma má­qui­

Semiótica na Internet e Contemporaneidade 75


Imagem 25

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na. O reconhecimento de que as propriedades mais importantes das ope-
rações binárias eram, acima das aritméticas, as lógicas; permitiu um gran-
de salto no desenvolvimento dos computadores.
Ainda que argumentemos que, em sua camada mais interna, um sis-
tema de computador não seja nada além um artefato desenvolvido com o
objetivo de estocar e manipular informações codificadas de maneiras con-
venientes, este sistema estará sempre sujeito a uma análise semiótica.
Todas suas outras camadas operam símbolos que podem ser interpreta-
dos pelos diversos grupos de profissionais que os manipulam.
As Primeiras Imagens Digitais: impressão das fotos
da Mariner IV em números binários; Ranger VII,
There are always texts that must be interpreted as statements or prescriptions Imagens da Lua; Mariner IV, imagens de Marte.
about some present or future state of the system. As we change level, the concepts
signified by the texts change. On the lower levels, the meaning of the signs are related
to the physical parts of the machine, like registers and storage cells. As we ascend, the Depois de operar palavras, foi vez das imagens começarem a entrar
texts are interpreted differently, we move away from a physical interpretation, and new dentro da dinâmica dos processamentos computacionais. A digitalização
software concepts appear, like run-time, stacks, heaps, and variables. A total picture of e codificação binária de imagens, ao que tudo indica, tiveram origem com
the whole system will depict semiotic activities from the top down to the very bottom a necessidade e dificuldade das missões espaciais em compor imagens
of the system. A computer system can be seen as a complex network of signs, and que pudessem ser retransmitidas por sondas até a terra. As primeiras ima-
every level contains aspects that can be treated semiotically.2 gens digitais eram compostas por duzentas linhas e cada linha compos-
(A ndersen, 1992, p. 5). ta por duzentos pontos. Cada ponto desta imagem (pixels ou picture ele-
ments) era gravado em um código, que os descreviam através de seqüên-
Mesmo assim ainda existe um abismo entre este princípio e o que cias de “zeros” e “uns”. Assim, para branco (0) tínhamos “000000” e para
vivenciamos. É muito interessante que computadores possam calcular e preto (63) “111111”. Cada figura era então constituída de quarenta mil
operar notações binárias, mas uma outra etapa precisa ser alcançada para pequenos pontos codificados em duzentos e quarenta mil (240 000) bits
que eles possam processar outros níveis mais relevantes de informação. de código binário que era transcrito numa fita magnética quando envia-
A primeira delas talvez seja a codificação dos símbolos do alfabeto, moven- do por ondas eletromagnéticas até a terra, onde era decodificado. A títu-
do o escopo de atuação destes sistemas computacionais para o nível das lo de comparação, podemos citar o fato de que, atualmente, para a com-
palavras. Muitos modelos foram propostos até que se chegasse no padrão posição destas imagens computadores pessoais processam pixels e mati-
ASCII (American Standard Code for Information Interchange), atualmente zes cromáticas na ordem dos Megabytes.
compartilhado universalmente pela indústria de computadores e basea- No entanto este não é o único avanço que possibilitou às imagens
do em 8 bits de informação binária. computacionais atingirem tal grau de complexidade. A indexação des-
tes bitmaps (mapas de bits) foi também indispensável para que elas
2. Sempre há textos que precisam ser interpretados como declarações ou prescrições sobre o presente pudessem ser úteis enquanto dados manipuláveis. Inclusive, a habili-
ou futuro estado do sistema. Ao trocarmos de nível, os conceitos significados pelos textos mudam.
Em níveis ainda mais profundos, os sentidos dos signos estão relacionados com as partes físicas da dade manipulativa trazida pela indexação provou ser etapa essencial
máquina, como registradores e células de armazenagem. Ao subirmos, os textos são interpretados para a explosão do cyberspace e da Internet. A expansão da rede até os
diferentemente, nos afastamos da interpretação física, e novos conceitos de software aparecem
como runtime, pilhas, alocação de memória e variáveis. Uma representação total do sistema inteiro principais fluxos de comunicação da sociedade, com o crescimento
vai mostrar atividades semióticas do topo à base do sistema. Um computador pode ser visto como
uma complexa rede funcional de símbolos que em todos os níveis possuem aspectos que podem ser
exponencial verificado na sua trajetória, só foi possível quando sinais
tratados semioticamente. de trocas eletrônicas puderam ser ao mesmo tempo mais complexos

76 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 77


(sintetizando melhor as informações) e menos “secos” (tornando-se mais O alfabeto filosófico para esta enciclopédia global deveria ser um
aprazes esteticamente). “alfabeto de imagens”, composto por clichês de impressão. Os sistemas
A principal consideração aqui nos remete a tudo o que já foi dito anterior- de indexação desenvolvidos para as imagens no final da Idade Média
mente sobre as imagens. Obviamente elas são mais “fáceis” de serem memo- correspondem, mesmo considerando as características peculiares a cada
rizadas e articuladas pelo raciocínio binária do que as palavras, por partirem suporte, aos sistemas que utilizamos hoje em dia nos hiper-textos da
de uma lógica analógica, embora no computador as imagens passem por uma world wide web (www).
codificação binária para ter uma expressão “analógica” na tela.
No século XVII alguns enciclopedistas já se dedicavam à tarefa de As data have to be transmitted through some external (usually analog) medium,
indexar as imagens dos “principais objetos” do mundo e das principais a further encryption scheme (semiotic system) has to be devised and applied: the
ações da vida humana (Codognet, 2007). Os primeiros dicionários ilus- communication protocol. The current success of the World Wide Web protocol on
trados entendiam as imagens como ícones para todas as coisas visíveis the internet (http) is mainly due to its ability to manipulate images and sound in
do mundo. addition to simple alphanumeric text. As humans communicate through this medium
Uma das técnicas que precisou ser desenvolvida, muito antes, foi o and exchange cultural signs, some problematic issues should be raised. Indeed,
anexo de letras e de números nas imagens, os quais eram utilizados the human being has to decompose himself as a collection of transmissible and
para referências dentro dos textos. Estas legendas deram origem ao que immediatly understandable signs in order to be communicable, and this drift can
hoje conhecemos como infográficos. Ao mesmo tempo, os padres be seen today in personal Web pages or electronic mail communications. The self
Jesuítas aperfeiçoaram suas cartilhas usando o mesmo sistema de inde- is mutilated and disintegrated into conventional signs, in a deeper and much more
xação em inúmeros textos e publicações destinadas à evangelização. dramatic way than oral communication.3
Porém, sabemos que a maior parte destas edições eram destinadas a (Codognet, 15/04/2007).
temas como arquitetura, metalurgia, hidráulica e mecânica. As conven-
ções de desenho técnico, desenvolvidas durante a Renascença, viraram Não nos é surpreendente que os computadores tenham passado a habi-
o padrão destes impressos. tar o “reino das imagens” ao adicionar no cyberspace a dimensão necessá-
ria a esta forma de representação simbólica. Com o passo dado em dire-
Imagem 28

Imagem 29

ção à possibilidade de imagens computacionais, o termo “realidade vir-


tual” deixa de ser um mero delírio e passa a ser cada vez mais recorren-
te no senso comum. Os impactos introduzidos por este fato na organi-
zação e cotidianos sociais humanos são profundos. As características da
sociedade global são em grande parte devidas à integração ocorrida
entre as mídias, que formam a multimídia centralizada pela Internet.
Imagem 30

Dicionários e As ferramentas comunicacionais introduzidas pela nova mídia não


Enciclopédias
Ilustradas do
Renascimento e
do Iluminismo. 3. Um dado precisa ser transmitido através de um meio externo (normalmente analógico), um
subseqüente esquema de encriptação (sistema semiótico) precisa ser desenvolvido e aplicado: o
protocolo de comunicação. O atual sucesso do protocolo da World Wide Web na Internet (http)
é principalmente devido à sua habilidade de manipular imagens e sons somados ao que era
simplesmente texto alfanumérico. Seres humanos ao se comunicarem através deste meio e realizarem
trocas culturais levantam alguns temas problemáticos. De fato, seres humanos precisam decompor
a si mesmos como um apanhado de símbolos transmissíveis e imediatamente compreensíveis para
comunicar, e esta influência pode ser vista hoje em páginas pessoais ou correspondência eletrônica.
O ser é mutilado e desintegrado em signos convencionais de uma maneira ainda mais profunda e
dramática do que na comunicação oral

78 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 79


teriam jamais tal relevante significância por si sós, pois características
aparentemente novas (como a virtualidade) são a muito conhecidas e estu-
dadas pelas ciências da comunicação. No entanto, a Internet, engatilhou
no processo inconsciente dos arquétipos humanos uma nova perspecti-
3.2 Sistemas Computacionais
como Sistemas Simbólicos
va de mundo (eletrônica e global) para as figuras e imagens coletivas.
Páginas web são atrativas e repletas de informações carregadas de signi-

A
ficado simbólico. Nossa proposta consiste em analisar a enunciação dos o pensar na relação entre os símbolos computacionais enquanto
conteúdos simbólicos destas novas ferramentas para determinar quais os “sistemas”, ou ainda, enquanto propriedade de um grupo social
conceitos “clássicos” de comunicação que podem ser contemplados na e não de uma mente particular, parece não haver razão para
dinâmica enunciativa deste sistema simbólico contemporâneo. excluí-los do estudo semiótico tradicional apenas por apresentarem-se
sob um novo suporte. Os símbolos continuam a ser nossos veículos de
cognição individual, bem como os meios que utilizamos para interagir
com outras pessoas e objetos.
Certamente tudo o que já foi discutido sobre a imagem, o imaginá-
rio, a linguagem e a cultura até este momento do trabalho precisam
novamente ser levados em conta. Inclusive o que vimos sobre a estru-
tura comunicativa social, sobre os sistemas ideológicos e sobre as traje-
tórias simbólicas será imprescindível para a abordagem que pretende-
mos fazer neste capítulo.
Sistemas computacionais são desenvolvidos por seres humanos, para
seres humanos e todas as estruturas comunicacionais desta relação pos-
suirão correlatos verificáveis na nova mídia. O desenvolvimento das téc-
nicas e das rotinas de programação proporcionou que muitos termos da
lingüística fossem aplicados na codificação funcionais dos computado-
res. Estes termos usados muitas vezes de forma até mesmo descuidada,
ainda assim conservam alguns significados originais, mesmo quando
aplicados às novas condições exigidas pelas características intrínsecas
ao suporte.
Como exemplo ilustrativo podemos citar o emprego do termo “arqué-
tipo”. Em linguagem de programação ele se refere a expressões comu-
táveis entre várias linguagens, a partir de um domínio de conteúdos
padrão, na forma de declarações limitadas estruturalmente por um
modelo referencial. São expressos, com igual rigor, em geral para pro-
porcionar maior re-utilização, embora especializados na inclusão de
particularidades locais de um sistema programado. Eles acomodam
quaisquer números de linguagens e terminologias necessárias. São
imprescindíveis para práticas saudáveis de programação e para a inte-
gração entre sistemas.

80 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 81


Imagem 31
Não pretendemos aqui discorrer sobre a construção de um sistema Linguagem Linguagem Linguagem Computacional
Verbal Visual
computacional e todas as nuanças e particularidades técnicas envolvi-
das nas Ciências da Computação para que um programador possa dar
Representação verbal Representação visual Representação lógica
vida a tal estrutura. Nosso foco concentrar-se-á nas idéias elementares dos fatos dos fatos dos fatos
que precisam ser transcritas em linguagem computacional para que as
máquinas possam hoje operar o fluxo comunicacional de uma fatia Letra Ponto Bit
cada vez mais gorda do material simbólico-cultural humano. Palavra Forma Objeto/ Variável
Sentença Composição Código
The computational language acts as an extra channel - it has similar structural
properties to other communication means, thus, correlations of similar elements Estas unidades primárias são organizadas e agrupadas em unidades
in the structure can be established. The computer language, in essence a binary de um outro nível, que estabelecem sentidos (culturalmente “arbitrá-
series of logical and arithmetical operations, can be understood by contextualizing rios”) em um segundo nível. Letras se unem para gerar palavras; pon-
other channels – especially, but not limited to, verbal and visual realms. We can tos, para gerar formas e bits para gerarem variáveis. Os semantemas des-
communicate to a computer by typing verbal commands; the verbal will become tes níveis tornam-se conceitos sintetizados, rotulações para as quais
a digital process, returned and converted to any output – verbal, visual, haptical, significados são atribuídos. Assim, surge o terceiro nível, encadeando
sonorous or any other available.(…) The structure of the computational language as unidades concebidas no nível anterior, os sujeitos sociais tecem uma
is similar to the structure of visual, verbal or any other language; a structure of rede que expressa idéias em sentenças (linguagem verbal), composições
elements interacting in a composition. Elements can be arranged to work together (linguagem visual) e códigos (linguagem computacional). Cada um des-
in a logical environment just as in the visual or verbal form.4 tes últimos níveis semânticos cria equivalentes instâncias lingüísticas
(L unetta , 2005, p.23). cuja função simbólica é geral para o ser humano.
Para criar e recriar então sistemas simbólicos e sociais dentro de
Lunetta ainda propõe em sua tese inter-relações entre as linguagens uma máquina, um programador estará cercado dos dilemas pertinen-
verbais, visuais e computacionais em diversos níveis: tes às escolhas simbólicas em sua rotina produtiva. A dualidade dos
A linguagem verbal, a visual e a computacional possuem estrutu- símbolos não cessa jamais. Apesar de sua representação em um con-
ras correlatas quando analisadas em suas “unidades” semânticas (ou texto computacional, onde toda imagem depende na base de sua cons-
semantemas), empregados em cada uma destas formas. Desse modo, trução de um input binário que lhe codifique, esta característica ambí-
temos a letra (fonética, manuscrita ou tipografada) como unidade gua permanece evidente. Num suporte lógico-matemático, onde só
mínima para linguagem verbal, e seus equivalentes na linguagem existe a possibilidade de “A” ou “B” serem verdadeiros, as imagens con-
visual e computacional: o ponto (adimensional) e o bit (ligado ou des- tinuam dúbias nos significados atribuídos subjetivamente pelos usuá-
ligado), respectivamente. rios em seus outputs.

4. A linguagem computacional age como um canal extra – ela tem propriedades estruturais
similares a outros meios de comunicação, assim, correlações de elementos em sua estrutura Although systems designers may not be van Gogh’s, they are faced with similar
podem ser estabelecidas. A linguagem computacional, em essências séries binárias de operações problems when building systems: should we base our system on a metaphor that
lógicas e aritméticas, pode ser compreendida por suas contextualizações em outros canais
– especialmente, mas não limitados, aos campos verbais e visuais. Podemos nos comunicar users understand in order to ensure understandability, but running the risk of
com computadores entrando comandos verbais; o verbal se transformará em processo digital, constructing a system that really do not give users new opportunities, or should we
retornará e converterá em qualquer output – verbal, visual, táctil, sonoro ou outro disponível.
(...) A estrutura da linguagem computacional é similar à estrutura visual, verbal ou de qualquer invent new ways of doing and looking at things, risking that nobody will understand
outra língua; elementos estruturais interagindo numa composição. Os elementos podem então
it? In fact, it is possible to stretch the analogy even further: it is not only sculptors
ser organizados para trabalharem juntos em um ambiente lógico, bem como em sua forma verbal
ou visual. that give form to substance. Designers and programmers of computer systems do

82 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 83


the same thing, only the substance they mould does not consist of stone but of diferença deste novo suporte é que além dos meios de produção simbóli-
program executions (viz. sequences of system states), and the tools they use to ca serem intrínsecos a ele, foi aberto um canal de emissão comunicativa
shape the substance are not chisels but programming environments.5 gigantesco, limitada em tese apenas pela postura ativa, que é necessária
(A ndersen, 1992, p. 11). ao usuário que busca e disponibiliza a informação na rede. Uma vez que
a dinâmica enunciativo-receptiva das informações neste novo meio é mui-
A partir desta constatação podemos avançar na compreensão da “subs- to mais veloz, os sujeitos podem trocar papéis e atuar de maneira muito
tância” utilizada pela computação para estas criações e operações simbó- mais livre. Na emissão, pela liberdade daquilo que se tem espaço e pro-
licas novas. A seqüência de estados de uma variável em um programa é a teção para expressar; e na recepção, pela liberdade daquilo que se esco-
trajetória semiótica deste símbolo dentro do sistema, passeando entre o lhe para contemplar e interpretar.
código que o constitui e as instâncias (verbais ou visuais) na sua interfa-
ce com o usuário. As linguagens empregadas para constituir os sistemas Computational devices became a medium, with an important difference from other
precisarão tanto dar conta das suas relações internas no código, quanto known media – they allow direct feedback and participation from the audience. The
das relações que estabelecerão com aqueles que as utilizarão. Ao satisfa- concepts of broadcaster and viewer got blurred, since one can become the other after
zer isso, um sistema computacional dá vazão a uma ideologia que cons- few keystrokes.6
titui o ambiente virtual particular constituído por um código. O código (Lunetta , 2005, p. 18).
aplicado se torna um ambiente onde os objetos obedecem a regras lógi-
cas totalmente descritas dentro da programação e alteráveis de acordo A relatividade que se apresenta, advinda da coexistência de realidades
com as necessidades daquele que o gerou. parciais provenientes das diversas fontes de informação aceitas pela
O ambiente virtual – ao qual todos os objetos (ou variáveis) do sistema Internet, contradiz muitas vezes as próprias ideologias capitalistas, cienti-
computacional obedecem – se torna ainda mais complexo quando nos apro- ficistas e patriarcais no sujeito social contemporâneo. No instante que o
fundamos na nova relação que o usuário (sujeito social) estabelece com este mundo computacional abre a possibilidade do sujeito definir e calibrar seus
meio. Quando um sujeito consegue objetivar sua presença dentro de um próprios atributos, suas personas (ou avatares) podem passear livres da
sistema ele passa a compartilhar uma realidade com os demais símbolos e necessidade de coerência com o senso comum, e sem coerção alguma por
os parâmetros e atributos designados para as variáveis desta realidade vir- tal atitude. Isso tudo aliado com a possibilidade do anonimato e a coexis-
tual. Depois que um usuário consegue ultrapassar esta primeira barreira tência de diferentes domínios e sistemas simbólicos na rede abre espaço
(entrar no sistema), ele pode executar ações com as novas ferramentas que para que se tenha a vivência desta pluralidade de realidades conscientes.
lhe ficam disponíveis. A aplicabilidade dos computadores se expandiu O ego se vê fragmentado em benefício das trocas econômicas e cultu-
monstruosamente, incorporando símbolos de diferentes domínios e viabi- rais potencializadas pelo contexto global de atuação destes símbolos vir-
lizando operações em volumes de informação cada vez maiores. tuais. O simulacro poderoso da realidade virtual, que interage com a ver-
A acumulação de ferramentas e aplicativos possibilitou na década de dade empírica e o espaço mecanicista (ainda tão presente nas massas),
90 a popularização da Internet e dos computadores pessoais. A principal nos presenteia com as novas ferramentas comunicacionais das institui-
ções midiáticas, desenvolvidas através de avanços tecnológicos e criando
5. Embora designers de sistemas não sejam “van Goghs”, eles enfrentam problemas similares quando ilusões (illud tempus) muito próximas daquelas que concebíamos até a
constroem sistemas: devemos nos basear em uma metáfora que usuários entendem para assegurar a
compreensão, mas correndo o risco de construir um sistema que não abre novas oportunidades reais, pouco como “arcaicas”.
ou devemos inventar novas maneiras de fazer e olhar as coisas, arriscando que ninguém entenda
isso? De fato, é possível alongar a analogia ainda além: não apenas escultores dão forma à substância.
Designers e programadores de sistemas computacionais fazem a mesma coisa, apenas a substância 6. Aparatos computacionais se tornaram um meio, com uma importante diferença das outras mídias
que moldam não consiste de pedra, mas sim execuções programáticas (a saber, seqüências de estados conhecidas – eles permitem feedback direto e participação da audiência. Os conceitos de difusor e
de um sistema), e as ferramentas que usam para dar forma à substância não são cinzéis, mas ambientes espectador são embaçados, uma vez que um pode se tornar o outro depois de poucos comandos
de programação no teclado.

84 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 85


A Internet é o local onde se dá a maior vazão de símbolos através dos
novos sistemas semióticos que se proliferam no mundo virtual e que pos-
suem sua dimensão real no processo de re-tribalização que vivenciamos
em nossa sociedade, sobretudo nas grandes metrópoles, e que discutiremos
3.3 O Contexto Mercadológico,
Pós-Industrial e Global
no próximo tópico.

A
fim de entender estes novos sistemas simbólicos na sociedade pre-
cisaremos verificar quais as instituições que os introduziram nes-
ta escala global de consumo. Sabemos que, caso a tecnologia com-
putacional ficasse restrita a pequenos grupos, não poderíamos verificar
tamanha pluralidade de sistemas. Foi com a popularização de computa-
dores pessoais, consoles de jogos eletrônicos e de aparelhos hi-tech que
expandiram as possibilidades dos sistemas simbólicos computacionais.
O contexto da produção em massa destas máquinas faz parte de uma
dinâmica econômico-social ampla. Inicialmente utilizados com finalida-
des militares, muito rapidamente os computadores passaram para o
ambiente corporativo. E assim sucessivamente, até que os avanços na
miniaturização e barateamento dos custos dos componentes eletrônicos
abrissem espaço para computadores pessoais, laptops e toda a gama que
hoje temos de produtos multifuncionais.
Entendemos que qualquer aparato computacional e comunicacional é
em sua essência um produto cultural. O processo material de sua produ-
ção se insere no contexto das instituições corporativas, que por sua vez
compartilham da ideologia e dos símbolos do capitalismo em todos os
níveis semióticos. É a gênese do que hoje entendemos por era pós-indus-
trial, cujas tendências são agrupadas sob o nome de pós-modernismo.
As formas da publicidade e da propaganda neste ambiente atuam
contexto materializando as imagens e símbolos do sistema capitalista
em seu presente estágio, que se expandiu especialmente após o final da
Guerra-Fria contra o sistema comunista soviético. Além de informar
sobre os produtos à disposição dos consumidores, ela se estabelece
como um gênero híbrido na medida em que se faz presente em todos os
espaços da produção cultural sob as mais diferentes formas.
A propaganda, como já indicou Mattelart (1989, p. 139-162), está pre-
sente no mundo midiático, nas artes, nos esportes e por todo nosso coti-
diano: publireportagens, publicidade em programas, testemunhais, mer-
chandising, patrocínios, promoções, licenciamento de personagens de
ficção para estes fins (spin off), embalagens, e mais recentemente os web-

86 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 87


peu e americano no que tange a política, a economia e cultura imposta às
sites com suas funcionalidades e jogos eletrônicos disponíveis gratuita-
outras sociedades do planeta. As ideologias corporativas trazem novos
mente na Internet. A publicidade (com a liberdade do discurso ficcional
valores sobre o sagrado e o profano contemporâneos.
que substituiu as narrativas mitológicas) cria realidades que cercam os
indivíduos, submetendo-os a um bombardeio de símbolos do mercado
(…) media and retail companies have inflated to such bloated proportions that simple
globalizado, tanto nos espaços coletivos como nos privados.
decisions about what items to stock in a store or what kind of cultural product to commission
A linguagem e os símbolos de mercado espalham-se pelo mundo acom-
– decisions quite properly left to the discretion of business owners and culture makers – now
panhando sua dinâmica evolutiva. Ela invade praticamente todos os círculos
have enormous consequences: those who make choices have the power to reengineer the
de relações sociais. Isso universaliza determinados modos de falar, codificar,
cultural landscape. When magazines are pulled from Wal-Mart’s shelves by store managers,
pensar. Cria-se uma espécie de língua franca universal, econômica, racional,
when cover art is changed on CDs to make them Kmart-friendly, or when movies are refused
moderna, prática, pragmática e telemática. Este processo de globalização pro-
by Blockbuster Video because they don’t conform to the chain’s “family entertainment” image,
movido pela publicidade, também descrito por Ianni (2000, p. 219), mundia-
these private decisions send waves through the culture industries, affecting not just what is
liza signos e símbolos, logotipos e slogans, qualificativos e estigmas.
readily available at the local big box but what gets produced in the first place.7
(K lein, 2002, p. 166).
(...) essa atividade profissional sempre acompanhou e foi propulsora do processo
de expansão da economia em escala global. Registra-se desde o Século XIX a atuação
A atuação padronizadora destas instituições e mercadorias em todos os can-
de agências de publicidade inglesas, americanas e francesas em mercados outros,
tos do planeta onde o capitalismo global chega; vai fundamentada no ideário
além dos limites de seus países de origem. Tais ações iniciam o processo de definição
de progresso, de evolução e de poder de consumo, compreendidos consensu-
da política geoestratégica das redes mundiais de publicidade que se torna mais nítido
almente como indicadores da qualidade de vida de uma população. Quanto
a partir de meados da década de 80.
mais atuante um sujeito-consumidor é, mais ele estará bem inserido no uni-
(Trindade in Barbosa , 2005, p. 87).
verso da cultura mundializada. Isso influencia em absoluto o modo de ser das
pessoas, ditando hábitos comportamentais através do consumo de bens (mate-
Apoiada na ideologia do discurso competente, a publicidade coloca-se
riais e, sobretudo, simbólicos). O poder econômico das grandes corporações
como modelo da representação deôntica (dever-ser) dos indivíduos con-
que é capaz de intervir por melhores preços de fornecedores, começa a atuar
temporâneos (Trindade in Barbosa, 2005, p. 90). Atuam no universo sim-
também censurando a própria produção cultural, garantindo o predomínio
bólico, no imaginário, por meio de caricaturas e estereótipos construídos
do sistema capitalista em detrimento dos demais com que compete.
sob o que se entende falaciosamente como consenso e padrão mundial.
Estabelecem-se valores padronizados de beleza, juventude, profissiona-
(...) if not always the original intent, advanced branding is to nudge the hosting
lismo, de gêneros, tudo de acordo com o tempo e espaço do público-alvo
culture into the background and make the brand the star. It is not to sponsor culture
idealizado nas enunciações das mensagens mercadológicas. Estes padrões,
but to be the culture.8
por sua vez, contradizem os valores culturais dos grupos humanos que
(K lein, 2002, p. 30).
são dominados, cheios de ressentimentos (resultantes dos conflitos cria-
dos pela expansão e dominação econômicas), neste processo. 7. As empresas de mídia e varejistas inflaram a tais proporções que simples decisões, como quais
Todos os sistemas simbólicos em suas vidas buscam igualmente o cres- produtos estocar em uma loja, ou qual tipo de produto cultural comissionar – decisões antes próprias
da discrição de homens de negócio e produtores culturais – agora têm enormes conseqüências:
cimento. Assim, as corporações e empresas aumentaram seu poder sim- aqueles que fazem decisões têm poder de remontar a paisagem cultural. Quando revistas são tiradas
das prateleiras do Wal-Mart por gerentes de lojas, quando capas de CD’s são modificadas para
bólico a ponto de ultrapassarem os próprios Estados-Nacionais na influ- contemplar a imagem de “entretenimento familiar” da rede, estas decisões privadas mandam ondas
ência que exercem sobre os meios de produção cultural da pós-moderni- para a indústria cultural, afetando não apenas o que está disponível, mas o que é produzido em
primeiro plano.
dade, ou modernidade-mundo, como preferem alguns autores como Ianni 8. (...) se não sempre o intento original, o branding avançado carrega a cultura hospedeira para o plano
(2000), considerando a atualidade fruto da ampla difusão do modelo euro- de fundo e transforma a marca na estrela. Não para patrocinar cultura, mas para ser cultura.

88 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 89


Imagem 32

Imagem 33
Assim, o que muitos chamam de pós-modernidade é o resultado
do processo histórico percorrido pelo sistema capitalista, que passou
pela modernidade baseada na razão Iluminista quando se deu a for-
mação da sociedade burguesa. Antes pautado na organização políti-
ca dos Estados-Nacionais, o sistema capitalista, pela sua convenien-

Imagem 34
te expansão econômica, acabou por enfraquecê-los, determinando
novas formas de perceber a relação entre os indivíduos e entre seus
espaços e tempos.
A categoria espaço ganha um caráter de não-lugar, assim como o
tempo assume uma certa atemporalidade (TRINDADE in BARBOSA,

Imagem 35
2005, p. 90), decorrentes do fato de que os produtos deste sistema glo-
bal têm suas matrizes de matérias-prima de origens distintas, cada
parte do processo acontece em um local, assim como os serviços de
empresas multinacionais que atuam, através de funcionários e escri-
tórios, em suas várias instâncias no mundo.
Anúncios Publicitários Externos em Metrópoles: Nova Iorque, Tóquio, São Paulo e Londres.

Dessa forma, a única coisa que permanece intacta nesses bens de consumo
corporation would have to adopt variations on the theme of diversity as their
mundiais é a determinação do valor simbólico dado pela marca, que pode ter uma
brand identities. 9
origem nacional, mas que, pela sua ampla utilização mundial, passa a ser um
(K lein, 2002, p. 112).
patrimônio universal, sem pátria e ao mesmo tempo pertencente a todos os lugares.
É a contradição dos lugares e não-lugares da atual modernidade.
O sonho de diversidade em alguns critérios se verifica quando pensa-
(Trindade in Barbosa , 2005, p. 92).
mos nas grandes metrópoles. Estes espaços mundiais são encontrados em
cidades como Hong-Kong, São Paulo, Paris, Nova York, Tókio, Nova Deli,
A coexistência e simbiose de valores, hábitos e costumes locais e
Frankfurt, Londres, Singapura, Cidade do México e tantas outras que
nacionais muitas vezes contraditórios é um dos elementos mais rele-
poderiam aqui se encaixar. Estes aglomerados urbanos são os territórios
vantes nesta análise. Isso gera a tendência, bastante acentuada nos últi-
conquistados pela “mundialidade” que coexiste com os territórios de
mos anos, da incansável busca das empresas por identidades corpora-
expressão nacionais e regionais excluídos pela globalização.
tivas apoiadas na idéia de diversidade, seja ela cultural, comportamen-
Outro espaço importantíssimo onde a mundialização dos símbolos
tal ou qualquer outra. Os conceitos que constituem as identidades
acontece é o espaço virtual. Lá ela encontra a situação ótima para o seu
empresariais são elaborados, em situações ideais, a partir de pesquisas
desenvolvimento:
de opinião e dados mercadológicos, que buscam afinar a comunicação
empresarial com as vontades, os desejos e as necessidades dos públi-
To see the birthplace of this kind of brand ambition, you have to go online,
cos a que se destinam.
where there was never really any presence of a wall existing between editorial and

(…) consumer companies would only survive if they built corporate empires
9. (…) empresa de bens de consumo apenas sobreviveriam se construíssem seus impérios corporativos
around “brand identities”. (…) So, of course, if the market researchers and cool em torno de “identidades de marca”. (...) Então, obviamente, se todos os pesquisadores de mercado e
caçadores de tendência atestam que diversidade é a característica chave para o trato deste contingente
hunters all reported that diversity was the key character trait of this lucrative
demográfico lucrativo, havia apenas uma coisa a ser feita: qualquer corporação que pensasse olhando
demographic, there was only one thing to be done: every forward-thinking para o futuro adotaria variações sobre o tema da diversidade em suas identidades corporativas.

90 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 91


advertisement. On the web, marketing language reached its nirvana: the ad-free ad.
O Sagrado Corporativo:
For the most part, the online version of media outlets feature straightforward banner
ads similar to their paper or broadcast versions, but many media outlets have also used
the net to blur the line between editorial and advertising much more aggressively than
3.4 Ícones e Imaginário
na Contemporaneidade
they could in the non-virtual world.10
(K lein, 2002, p. 42).

C
omo a imagem sempre foi desvalorizada como linguagem científica para
A ausência de barreiras no que concerne autenticidade, autoridade, e par- explicar o mundo, ela ainda não inquietava a consciência moral do
cialidade informativa abre espaço para enunciações publicitárias inovadoras, Ocidente que se acreditava vacinado por seu iconoclasmo endêmico. A
condensando diversas técnicas e subterfúgios, que buscam eficiência merca- produção obsessiva de imagens encontrava-se delimitada ao campo do “distrair”.
dológica a partir das possibilidades dos trazidas pelos novos suportes. Todavia, as difusoras de imagens – digamos as “mídias” – encontram-se onipresen-
Entre elas, podemos citar, como exemplo, o que se compreende atual- tes em todos os níveis de representação do homem ocidental ou ocidentalizado.
mente como marketing viral: uma estratégia de marketing que busca a divul- A imagem midiática está presente desde o berço até o túmulo, ditando as
gação de espaços da rede por meio da participação voluntária de usuários intenções de produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da
que querem compartilhar uma informação. Lançando mão destas e muitas criança, nas escolhas econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas
outras estratégias mercadológicas como os teasers, promoções de curta dura- tipológicas (de aparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos e
ção, jogos online especialmente desenvolvidos, e outras menos ortodoxas privados, às vezes como informação, às vezes velando a ideologia de uma pro-
como os hoaxes e ARG’s (Alternate Reality Games); as empresas atraem con- paganda, e noutras escondendo-se através de uma publicidade sedutora. A
sumidores e anunciam seus produtos. O que fica claro é que as empresas importância da manipulação icônica (relativa à imagem), todavia, não inquie-
não estão apenas vendendo seus produtos online; elas estão vendendo um ta. É dela que dependem todas as outras valorizações – das escolhas feitas nos
novo modelo de relacionamento das pessoas com a mídia. Através do patro- experimentos de “manipulações e melhoras” genéticas e nas cirurgias plásti-
cínio de entretenimento, produção cultural e apoio corporativo, associam- cas cosméticas, inclusive.
se aos materiais simbólicos e culturais produzidos e que são considerados A diferença entre produto e marca neste sentido é fundamental. Produto
relevantes para suas ambições e metas corporativas. é algo produzido em uma fábrica; uma marca é algo comprado por um con-
sumidor. Máquinas quebram, carros enferrujam, pessoas morrem, o que
sobrevive ao tempo no capitalismo são as marcas, os símbolos que compre-
endem a fatia mais grossa dos patrimônios corporativos da atualidade.

What was crystallized in those moments when pop culture bridged the wartime
divide, however, was that even if there exists no other cultural, political or linguistic
common ground, Western media have made good on the promise of introducing the first
truly global lexicon of imagery, music and icons. If we agree on nothing else, virtually
everyone knows that Michael Jordan is the best basketball player that ever lived.11
(K lein, 2002, p. 175).
10. Para ver o local de nascimento desta ambição corporativa, é preciso ir online, onde nunca realmente
ouve a presença de uma barreira entre o editorial e o publicitário. Na web, a linguagem de mercado 1. O que ficou cristalizado nestes momentos em que a cultura pop conectou o que tempos de
alcança seu nirvana: publicidade gratuita da publicidade. Para a maior parte dos casos, a versão online guerra dividiram, no entanto, foi que mesmo que não existisse outro arcabouço cultural, político
das lojas se apresentam de maneiras similares a suas versões impressas ou televisivas, mas muitos ou lingüístico comum, a mídia Ocidental tem cumprido a promessa de introduzir o primeiro léxico
estabelecimentos virtuais também usaram a rede para desfocar o limite entre editoriais e publicidades global para o imaginário, a música e os ícones. Se não concordarmos em mais nada, virtualmente
muito mais agressivamente do que poderiam fazê-lo no mundo não-virtual. todos sabem que Michael Jordan é o maior jogador de basquete que jamais existiu.

92 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 93


Como já vimos no principio de nosso estudo, imagens arquetípi- Ainsi, il est frappant de voir que les diverses institutions ne sont plus ni contestées
cas estão plenamente relacionadas com a satisfação de nossos dese- ni défendues. Elles sont tout simplement «mitées», et servent de niches à des micro
jos e pulsões inconscientes. Assim, quando as empresas criam siste- entités fondées sur le choix et l’affinité. Affinités électives que l’on retrouve au sein
mas de imagens próprios, virtualmente globais, que procuram esta- des partis, des universités, syndicats et autres organisations formelles, et fonctionnant
belecer ideologia, verdade e sistemas, interdependentes ainda que selon les règles de solidarité d’une franc-maçonnerie généralisée. Et ce, bien sûr,
particulares, para cada corporação; isso cria necessariamente um gru- pour le meilleur et pour le pire. Tribus religieuses, sexuelles, culturelles, sportives,
po “global” de indivíduos que compartilham símbolos e isto abarca musicales, leur nombre est infini, leur structure est identique : entraide, partage du
todos aqueles que podem ser identificados enquanto consumidores sentiment, ambiance affectuelle. Et l’on peut supposer qu’une telle fragmentation de
por estas instituições. la vie sociale soit appelée à se développer d’une manière exponentielle, constituant
A verdade absoluta, o total determinismo, abandonado mesmo pela ainsi une nébuleuse insaisissable n’ayant ni centre précis, ni périphéries discernables.
ciência, se fragmenta em verdades particulares convenientes à vida Ce qui engendre une socialité fondée sur la concaténation de marginalités dont aucune
cotidiana e ao público-alvo. Aqui é que se desenha bem a estrutura n’est plus importante qu’une autre.13
mitológica contemporânea. Cada território, real ou simbólico, segre- (Maffesoli, 2007, p. 1).
ga arbitrariamente seu modo de representação e sua prática lingüísti-
ca: “Cujus regio, ejus religio” (Cujo rei, sua religião). Donde surge esta Ao serem mitificadas, estas instituições corporativas executam o
babelização em potencial, termo cuja práxis procura negar o espectro importante papel de criar as imagens que vão satisfazer a necessidades
da globalização. destas neotribos; que por sua vez escolhem, dentre a variedade de siste-
mas disponíveis no mercado, aquelas que melhor lhe identificam e satis-
En fait, il y a bien des uniformisations mondiales : économiques, musicales, fazem simbolicamente. Esta conexão não é guiada pela imagem que a
consommatoires, mais il faut s’interroger sur leur véritable prégnance. Et se demander marca tem na cultura, mas pelo profundo significado psicológico e sócio-
si la véritable efficace n’est pas à chercher du côté des mythes tribaux et de leur aspect cultural que o consumidor guarda sobre a marca durante seu processo
existentiel. La communication en réseaux, dont Internet est une bonne illustration, de significação e identificação pessoal.
forcerait ainsi, à repenser en ce sens, pour la postmodernité, «l’universel concret» de Como exemplo temos o emblemático caso da Nike. Desde que ela se
la philosophie hégélienne.12 tornou líder em vendas de roupas identificadas por marca, ou brand clo-
(Maffesoli, 2007, p. 2). thing (K lein, 2002, p. 56), não é surpresa que isso tenha levado às últimas
conseqüências por algumas pessoas: a marca na carne. Não apenas deze-
As instituições sociais se tornam cada vez mais abstratas, imateriais e nas de funcionários da Nike têm o swoosh tatuado, como em toda a
dinâmicas, não têm mais a exigência de uma existência física, real e singu- América do Norte este símbolo se tornou um dos símbolos mais popula-
lar; a virtualidade dá conta de suas funções sociais. Donde emerge o neo- res para estes fins.
tribalismo pós-moderno que se edifica devido à falta de solidariedade e pro-
teção (evidenciadas com a perda de poder dos Estados-Nacionais), que
13. Assim, é notável perceber que as diversas instituições não são mais contestadas ou
caracterizam as sociedades contemporâneas. No ambiente das megalópo- defendidas. Elas são apenas “mitificadas” e servem de nichos às micro-entidades criadas
les “selva de pedra”, as tribos executam os papéis que lhe são próprios. de acordo com o acaso e afinidades. Afinidades eletivas que nos remonta aos partidos,
universidades, sindicatos e outras organizações formais, que funcionam segundo as regras de
solidariedade de uma franco-maçonaria generalizada. E é assim pelo melhor ou pelo pior. Tribos
religiosas, sexuais, culturais, esportivas, musicais, seus nomes são infinitos, suas estruturas
12. De fato, existem uniformizações mundiais: econômicas, musicais, de consumo, mas isto nos faz são idênticas: iniciação, partilha de sentimentos, ambiente afetivo. E pode-se supor que uma
interrogar sua real pregnância. Interroga-se se sua eficácia verdadeira não está em buscar a perspectiva tal fragmentação da vida social seja impelida a se desenvolver exponencialmente, constituindo
dos mitos tribais e de seus aspectos existenciais. A comunicação em redes, da qual a Internet é uma assim uma inalienável nébula que não possui nem centro preciso, nem periferias discerníveis.
boa ilustração, forçará assim, a repensar neste sentido o “concreto universal” da filosofia hegeliana Isto forma uma sociedade uma sociedade fundada na concatenização de marginalidades onde
para a pós-modernidade. nenhuma é mais importante que outra.

94 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 95


Imagem 36

Imagem 38

Imagem 40
Imagem 37
outras. Ainda mais viáveis financei-
ramente para o crescimento dos sis-
temas simbólicos do que os templos
físicos, ainda existem os templos e
espaços virtuais construídos e dis-
poníveis na rede.
Para entender finalmente como
Imagem 39
Tatuagens Corporativas: se processam os mitos corporativos,
Warner Bros., Mizuno,
Nike e Apple. precisamos pensar no significante

Imagem 41
do mito enquanto totalizador de
sentido e forma, não esquecer de sua
ambigüidade e reagir de acordo com
o seu mecanismo cultural constitu-
tivo. Precisamos compreender a
dinâmica própria dos contextos
The idea of harnessing sport shoe technology to create a superior being – of Michael
mitológicos. Para nos tornarmos lei-
Jordan flying through the air in suspended animation – was Nike mythmaking at work.
tores mitológicos eficientes, precisa-
These commercials were the first rock videos about sports and they created something
mos vivê-los simultaneamente como
entirely new. As Michael Jordan says, “What Phil [Knight] and Nike have done is turn Templos de Corporativos: Nike Town em
uma história verdadeira e irreal. Berlin e Virgin Mega Store em Londres.
me into a dream”.14
Precisamos aceitar e pensar sobre
(K lein, 2002, p. 52).
como acolhemos os mitos que identificam nós mesmos, porque em qual-
quer outro caso a intenção do mito será demasiado obscura para que seja
Utilizando estes heróis (vindos da indústria esportiva, cinematográfi-
eficaz, ou demasiado clara para que se acredite nele.
ca, da telenovela ou da animação, preferencialmente) os enunciados con-
O mito nada esconde ou ostenta: deforma. O mito não é uma mentira
tidos nas publicidades reproduzem seus valores através de todas as mídias
nem uma confissão: é uma inflexão. Ele aparece para firmar o compro-
quantas consigam articular.
misso de um grupo, ele é o próprio compromisso: encarregado de trans-
Da necessidade de articular mídias para um maior impacto comunica-
mitir um conceito intencional, o mito só tropeça nos limites meta-lingü-
tivo, surgem os “templos corporativos”. Virtualmente todas as empresas
ísticos, porque a linguagem ou lhe eclipsa em uma metáfora, ou lhe des-
de bens de consumo e entretenimento que vinham construindo a ima-
mascara. A elaboração do sistema semiológico segundo a que nos refere
gem de suas marcas através do marketing, da sinergia entre mídias e de
Barthes em sua obra Mitologias (1993), é o que permite que o mito escape
patrocínios, agora procuram edificar suas próprias lojas de marca. Para
a este dilema, naturalizando-o.
estas companhias, lojas multi-marcas tornaram-se antiéticas segundo os
Este é o princípio do mito: transformar a história em natureza.
cada vez mais estritos princípios de gerência de marca. São os casos de
Compreendemos assim por que, aos olhos dos consumidores de mitos, a
corporações como Nike, Diesel, McDonald’s, Virgin, Disney e tantas
intenção, o apelo dirigido ao homem pelo conceito, pode ser manifesto
sem parecer interessado. O que se faz com o que a fala mítica profere é
14. A idéia de encaminhar a tecnologia de calçados esportivos para a criação de um ser superior
– de Michael Jordan voando suspenso no ar por animação – é a gênese mitológica da Nike perfeitamente explícito, mas automaticamente petrificado de naturalida-
trabalhando. Estes comerciais foram os primeiros vídeos de impacto sobre esportes e eles criaram
algo inteiramente novo. Como Michael Jordan disse: “O que Phil [Knight] e a Nike fizeram foi
de; não é lido como hipótese, é tomado como razão. Tudo se passa quan-
transformar-me em um sonho. do acatamos um sistema simbólico como se a imagem arquetípica provo-

96 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 97


casse naturalmente o conceito, como se o significante criasse o significa-
do: o mito é uma fala excessivamente justificada socialmente.
Uma análise mitológica não aumentará absolutamente sua potência ou
fracasso: o mito é simultaneamente imperfectível e indiscutível. A natu-
3.5 Realidades Virtuais e
Rituais Xamânicos
ralização de conceitos, uma das funções essenciais dos mitos, a partir de
uma causalidade artificial e metafórica dá conta de sustentar sua fala ino-

A
cente. E não porque suas intenções estejam ocultas, se estivessem os mitos realidade virtual é uma tecnologia que permite a um usuário inte-
não seriam eficazes. ragir com um ambiente simulado por computador, seja verossí-
O que permite a um leitor absorver um mito inocentemente é o fato de mil ou fantástico. A maioria dos ambientes de realidade virtual
não se perceber nele um sistema semiológico (sistema de valores), mas são experiências ainda primárias, apresentadas por de meio telas de com-
sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência. Ele vê putadores. No entanto, algumas simulações incluem ainda outras infor-
uma espécie de rede de processos causais: o significante e o significado mações sensoriais, como o som através de microfones e head-phones (que
têm relações naturais e não políticas, sociais, etc. A semiótica vê a mito- isolam o sujeito acusticamente).
logia diferentemente do que a vê o consumidor de mitos, este a enxerga Algumas ainda mais avançadas incluem dispositivos muito mais sensí-
como um sistema factual a lhe explicar convincentemente a natureza das veis ao tato. Usuários podem interagir com um ambiente virtual tanto atra-
coisas do mundo, a semiótica observa os elementos simbólicos que cons- vés do uso de periféricos convencionais como teclado e mouse, ou aparelhos
tituem o discurso, bem como suas inter-relações, instrumentais lingüís- mais recentes como joysticks, tablets e luvas com sensores entre outros. Os
ticos, suportes. ambientes simulados podem ser verossímeis ao mundo real como, por exem-
Com estas últimas elucidações, fornecidas pelo estudo de Barthes, per- plo, simulações para pilotos e treinamentos de combate, ou diferir dele em
cebemos finalmente que na contemporaneidade o consumo assume a fun- absoluto, como nos jogos para entretenimento. Na prática, ainda é muito
ção do sagrado, uma vez que é ele quem satisfaz as necessidades irracio- difícil criar experiências virtuais de alta fidedignidade com a realidade físi-
nais do homem. Na mesma medida, ocorre a sacralização das mercado- ca, principalmente em função das limitações técnicas no poder de proces-
rias. O mito de outrora, apoiado na Ciência, Arte e Religião, hoje migra samento necessário para gerar estes sistemas, na resolução das imagens e na
e apóia-se no consumo e na Indústria Cultural para disseminar seus sím- banda de comunicação que não comportam tal volume de dados. Mas já é
bolos e valores socialmente. esperado que estas limitações técnicas sejam eventualmente ultrapassadas
conforme as tecnologias amadureçam em seu contexto produtivo, tornan-
do-se mais poderosas e viáveis financeiramente com o passar dos anos.
Com os atuais limites tecnológicos, a visão e a audição são os dois sen-
tidos melhores empregados nas simulações consideradas de alta qualidade.
Embora existam esforços no sentido de simular cheiros e gostos fisicamen-
te através de cápsulas que os produzam quimicamente, estes experimen-
tos tendem a serem inviáveis na medida em que se aumenta a gama e com-
plexidade de fragrâncias a serem simuladas (perfumes, por exemplo).
Desse modo, os pesquisadores buscam, objetivando simulações mais
convincentes e reais, acumular seus esforços para conseguirem um meio
de manipular os sentidos e sensações através de aparatos que atuem dire-
tamente no cérebro humano, órgão responsável pela organização e atri-
buição de relações entre os símbolos culturais.

98 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 99


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Luva com sensores de movimentos e experiências de realidade virtual.

Em Sete de Abril de 2005, a Sony veio a público com a informação de


que entrou com o pedido de patente para a idéia de um aparelho que gera- Plugs intradérmicos no filme Matrix e Sensores Neurais.

ria diferentes freqüências e padrões ondulatórios ultra-sônicos que viriam


a recriar satisfatoriamente os cinco sentidos15,de maneira parecida com referência, o do significante e o do significado, o homem exige ao pensamento mágico
aquela ficcionalmente representada na trilogia Matrix. Embora a empre- que lhe forneça um novo sistema de referência, no seio do qual os dados até então
sa não tenha conduzido ainda nenhum teste e isso seja apenas uma idéia, contraditórios possam se integrar.
pesquisas neurológicas e psiquiátricas têm mostrado que isso será possí- (Lévi-Strauss, 1996, p. 212).
vel em breve com o avanço tecnológico. Muitos falam que esta seria a últi-
ma invenção humana, quando simulações excelentes se tornassem bara- Quando pensamos o que as realidades virtuais representam em um contex-
tas e populares ninguém ousaria abandonar as ilusões “perfeitas” que elas to semiótico e antropológico contemporâneo (neotribal, globalizado, pós-indus-
nos possibilitariam. trial, pós-moderno, modernidade-mundo, etc.), veremos que elas se encaixam
Tudo ainda é muito incipiente, mas pensar em tal possibilidade de vir- estruturalmente com as experiências xamânicas das sociedades tribais indíge-
tualidade pelo viés das Ciências da Comunicação nos leva ao campo aber- nas, que Lévi-Strauss nos descreve em sua obra Antropologia Estrutural (1996).
to do imaginário comum, dos sonhos, dos mitos e das imagens arquetí- Seja pela administração de substâncias que induzem a estados alterados
picas. Tal virtualidade ótima seria como um “portal dimensional” por de consciência (hoasca, cogumelos, L.S.D., peyote, etc.), outros remédios, ou
onde o consciente visitaria o inconsciente prazerosamente, satisfazendo quaisquer outras formas de práticas intoxicantes (jejuns, redução de oxige-
todos os desejos e necessidades do ego quantas este pudesse desejar; sejam nação sangüínea através de mantras ou cânticos, privação de movimento cor-
elas de cura psicológica ou de natureza hedonista. A experiência mágica poral, exaustão por vigília e mesmo auto-flagelação); os rituais em geral não
que seria proporcionada por tais aparelhos é a que associamos compara- falham em simular satisfatoriamente realidades simbólicas e mitológicas que
tivamente com a experiência de um ritual xamânico: identificam grupos humanos. A partir de ambos (virtualidade computacio-
nal ótima e práticas que agrupamos sob o frágil nome de “xamânicas”) seria
(...) é necessário ver nas condutas mágicas a resposta à uma situação que se possível vivenciar o imaginário, experimentar a realidade simbólica em sua
revela à consciência por manifestações afetivas, mas cuja natureza profunda é plenitude, compreender, vivenciar e significar o mundo de acordo com um
intelectual. Pois sozinha, a história da função simbólica permitiria a explicação desta sistema fechado e compartilhado coletivamente em sua última instância.
condição intelectual do homem, de que o universo não significa jamais o bastante, e
que o pensamento dispõe sempre de demasiadas significações para a quantidade de Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância:
objetos nos quais ele pode enganchá-las. Dilacerado entre esses dois sistemas de a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita. Os espíritos
protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos, fazem
5. Times Online, http://www.timesonline.co.uk/tol/news/uk/article378077.ece em 22/04/2007.

100 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 101


parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente natureza e a variedade de estímulos, sinestésica e que tende a atordoar
os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não aceita são usuários das substâncias enteogênicas, e que é restrita (até o momento) a
dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas poucos efeitos no mundo computacional. 5. Existem diferenças também
que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os elementos se no que concerne o foco, que apesar dos esforços rituais em concentrar a
apóiam em conjunto. atenção, permanecem difusos com a ingestão dos psicoativos e que, ao
(Lévi-Strauss, 1996, p. 228). contrário, são totais para quem mergulha num ambiente simulado por
computador. Os últimos dois dizem respeito 6. ao poder do usuário e 7.
Pensar a realidade virtual no processo evolutivo do pensamento nos ao seu poder sobre o ambiente. No caso das substâncias, não existe qual-
leva a questionar a natureza da realidade objetiva e da organização social quer controle e apenas a administração supervisionada é recomendada/
mediada pelos símbolos e imagens culturais. O virtual, cuja dimensão aceita, fica-se à mercê da substância enquanto durar seu efeito; no caso
digital é apenas um aspecto, nos leva impreterivelmente a considerar o da virtualidade computacional o controle do usuário é completo em
poder da eficácia simbólica dos rituais e simulações biônicas, das expe- ambos os casos, já que ele é mestre da simulação e pode direcioná-la
riências de êxtases religiosos e artísticos, bem como das experiências de como quiser, e a qualquer momento no ambiente.
cyberspace sobre a conduta social humana. Isso determina socialmente a
própria atribuição de valor simbólico. O seu valor pode ser medido pela Quaisquer que sejam suas formas, a virtualidade e a fantasia de se deixar o corpo
legitimação e abrangência social enquanto arcabouço simbólico comum, para trás fazem parte da cultura humana: em diversos cultos religiosos, a experiência
e ainda economicamente. visionária negativa é constantemente acompanhada de sensações corpóreas de um
Precisamos destacar, entretanto, que existem muitas diferenças entre a tipo e característica muito especiais, enquanto visões maravilhosas são geralmente
forma de virtualidade proporcionada pelos rituais e mitos tribais e seus associadas à separação do corpo, à desindividualização. Entretanto nunca elas estiveram
equivalentes apresentados pelos sistemas e aparatos modernos que os simu- tão fortemente ligadas às tecnologias existentes. Na formulação contemporânea,
lam: lojas, materiais promocionais, rádio, teatro, cinema, televisão, ações não é apenas importante deixar o corpo, mas reconstruí-lo como objeto técnico sob
de relações públicas e mídias computacionais. Os mitos tribais apóiam-se controle humano, o que significa uma transformação essencial de biomorfismo para
na imaginação do receptor, que atua ativamente na investigação do univer- tecnomorfismo, em uma simbiose sem precedentes. Os próprios atributos tradicionais
so imaginário pessoal. Nos outros meios, boa parte desta função é realiza- da palavra “espiritual”: mítico, mágico, etéreo, incorpóreo, intangível, imaterial, ideal,
da por um intermediário, que conforme vão evoluindo as tecnologias, pas- platônico, se encaixam perfeitamente na definição atual do “digital”.
sam a determinar uma postura mais passiva do receptor nesta articulação (R adFahrer, 2002, p. 295).
simbólica. Ainda que a recepção seja ativa e disponha de resistências, ela
procura ser cada vez mais prevista na perspectiva do emissor. As experiências de realidade virtual computacionais podem incluir
A respeito das diferenças entre o efeito das substâncias enteogênicas e entre seus predecessores os jogos RPG (Role Playing Game), desenvolvi-
o da experiência virtual, Radfahrer (2002, p.293) aponta sete diferenças dos na década de 70, e onde os jogadores assumem personagens que
básicas entre o que proporcionam cada uma destas simulações. Estas dife- interagem em uma história cujo mestre/ narrador constrói e é interme-
renças estariam sobre aspectos como 1. o uso da razão, reduzida a um diário (como um xamã). A realidade por ele criada estabelece a relação
estado contemplativo na primeira e que não sofre alterações em compu- entre os jogadores e os demais personagens, fatos e acontecimentos
tadores. 2. O espaço virtual também se difere por se apresentar sob uma desenvolvidos durante a aventura, jornada ou batalha, dependendo do
série de percepções que cabem ao usuário filtrar no primeiro caso e no contexto simbólico de cada jogo. A natureza inconsciente desta viagem,
segundo é caracterizado por um espaço em branco, a ser preenchido pelos jornada conduzida pelo mestre de RPG, deve ser, sob a luz de nossa
interesses do programador e/ ou usuário. 3. Os usos rituais, que são ine- comparação, semelhante àquela assumida durante a experiência con-
xistentes nos computadores (ou de pouca referência bibliográfica). 4. A duzida por um xamã:

102 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 103


Imagem 47
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ções das quais não teríamos acesso caso não tivéssemos tomado as esco-
lhas que tomamos no curso de nossa história particular. Embora as expe-
riências de virtualidade trazidas pelas substâncias enteogênicas diferen-
Criação de avatar e
cenas do jogo ciem em muitos aspectos das trazidas pela tecnologia capitalista, o espaço
Second Life.
virtual se apresenta como um sinônimo de inexistente, imaginário, não-
verdadeiro, mas isso não quer dizer inverossímil, muito pelo contrário. Esta
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alucinação é assim entendida então por seu sentido estrito de “percepção


sem objeto”, ou seja, uma ilusão a respeito de um ambiente que não existe
em lugar material algum e cuja sensação de vivência simbólica é viabiliza-
da pela tecnologia ou pelo uso das já citadas substâncias.
Obviamente não pretendemos aqui dizer que os avanços tecnológicos
em busca da realidade virtual nos levaram a um estágio social neotribal.
Muito menos dizer que foi pela formação destas neotribos que aparece-
ram na sociedade representações simbólicas de realidades parciais, dis-
poníveis no mercado de símbolos. Talvez estas nem sejam mesmo as
melhores estruturas metafóricas para compreender como acontece a orga-
nização do imaginário contemporâneo, contudo estas teorias todas são
muito pertinentes e coerentes no que se propõem a discutir, e acredita-
O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, mos que esta analogia aqui estabelecida não deixará de ser válida para a
deixa de ser o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser análise que faremos no próximo capítulo deste estudo.
insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função
simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se
exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis.
(Lévi-Strauss, 1996, p. 234).

Esta mesma estrutura de jogo RPG foi concebida computacionalmente com


a introdução dos MMORPG’s (Massively Multiplayer Online Role-Playing Game).
Nesta modalidade de entretenimento as correlações com as experiências xamâ-
nicas são ainda mais fortes, pois, como o próprio nome já sugere, nestes casos
múltiplos jogadores compartilham um ambiente virtual. Os participantes assu-
mem personagens fictícios e podem controlar sensorialmente uma gama sig-
nificante de ações prescritas no código que gera o sistema. Ele difere de outros
jogos de usuário único ou dos de pequeno número de usuários pela persistên-
cia do ambiente virtual (usualmente hospedado em rede pela empresa que
publicou o jogo), que é contínuo mesmo que o jogador se ausente. O exemplo
mais emblemático atualmente talvez seja o título Second Life.
A diferença básica entre a ficção e a verdade consensual, no que concer-
ne à compreensão dos receptores, é a possibilidade de experimentar situa-

104 Mitos Contemporâneos Semiótica na Internet e Contemporaneidade 105


4 Mitos Contemporâneos

107
Produção Mitológica
4.1 Contemporânea na
Coleção Puma French 77

C
hegamos finalmente na fase de análise mitológica do nosso tra-
balho. Obviamente poderíamos escolher inúmeros exemplos de
mitogênese na sociedade contemporânea. A comunicação cor-
porativa nunca desfrutou, como já vimos, de tantos poderes para este fim
criativo. Porém, alguns critérios na escolha do caso específico para nos-
so estudo certamente foram aplicados. Precisávamos de um exemplo de
campanha de marketing onde as ferramentas estivessem afinadas com as
tendências apontadas nas características da pós-modernidade.
Tínhamos que selecionar corporações com contextos de atuação que
pudessem ser, de fato, considerados globais. Depois, dentre estas, sele-
cionar produtos cuja função social e aquisição estivessem relacionadas
clara e diretamente com o processo de identificação social dos sujeitos.
Era necessário que a comunicação em questão se dedicasse a construir
uma realidade particular, que esta realidade se prestasse a explicar ideo-
logicamente algo que aconteceu na realidade comum. Era imprescindível
que os produtos, ao serem comprados, identificassem um grupo de pes-
soas, que compartilha e convive com estes símbolos no seu dia-a-dia de
alguma maneira. As vivências mitológicas necessárias para a mitogêne-
se, constituídas pelos diversos mitemas, precisavam estar evidentes na
campanha e acessíveis a os seus públicos. Precisávamos ainda que a cam-
panha escolhida fosse articulada e integrada em uma pluralidade sufi-
ciente e eficiente de mídias e materiais promocionais, a serem utilizados
como corpus para os fins pretendidos pelo nosso trabalho.
Escolhemos, por estas razões, analisar a campanha de lançamento de
uma coleção de roupas da reconhecida marca Puma. Sob o título “French
77”, os produtos e os conceitos da coleção foram concebidos a partir de uma
história que teria acontecido (suposição baseada em fatos jornalísticos) nos
bastidores do mundo do tênis profissional. Todos os materiais analisados
e referenciados encontram-se nos anexos I, II e III deste trabalho.
A narrativa conta uma passagem da vida de Guillermo Vilas, tenista
argentino, que no ano de 1977 foi a grande revelação mundial do esporte.
Recebendo da mídia o epíteto de “Touro dos Pampas”, ele era aclamado

Mitos Contemporâneos 109


um fenômeno das quadras. Já havia se sagrado vice-campeão do Aberto símbolos da época de seu auge, com o uso de materiais novos e de desenhos
da Austrália (Australia Open) e campeão do Aberto da França (Roland atualizados. Os produtos tiveram detalhes inspirados no mundo do tênis pro-
Garros), dois dos quatro mais importantes torneios do tênis internacional fissional e procuram contemplar roupas casuais (street-wear) com o visual
(Grand Slam) e estabelecido a mais longa seqüência de vitórias até então característico às indumentárias da modalidade em 1977. Esta mistura de per-
(50). Além da evidente fama decorrente de seu sucesso nas quadras, Vilas fis, verificada no todo da coleção, mantém os pés firmemente apoiados no
também era notório por seu estilo de vida, regado a muitas festas, viagens presente, caracterizando produtos inclusivos, confortáveis e de apelo abran-
e mulheres. Ele é facilmente identificado com a tradicional figura arquetí- gente; ainda que de notável estilização, sofisticação e aparência.
pica do capitalismo: o playboy, o autêntico bon-vivant. O público-alvo que a comunicação da Puma busca capturar a atenção
Chega então o terceiro grande torneio, Wimbledon na Inglaterra, e é constituído por formadores de opinião em moda. A empresa espera con-
Guillermo, franco favorito, misteriosamente deixa de comparecer ao even- vencê-los dos conceitos com as peças mais sofisticadas e divertidas da
to, além de ficar longe do acesso da mídia. Os tablóides e revistas de cele- coleção, que são apresentadas nos comerciais. Além disso, estende sua
bridades não demoram em perceber que o repentino sumiço coincide com oferta a produtos mais básicos e de preços mais acessivos (onde são espe-
a ausência da princesa Caroline de Mônaco (então com dezenove anos), rados os maiores volumes de vendas) de modo que todos que desejem,
que havia assistido a todos os jogos de Vilas durante o Aberto da França possam de fato experimentar “la vie GV en Paris Juin 1977” (a vida
sentada junto à quadra. Semanas depois, os dois reaparecem às lentes Guillermo Vilas em Paris, Junho de 1977).
mais ou menos no mesmo período. Ele perdeu uma grande chance de Desse modo, a coleção foi montada para satisfazer vários níveis dife-
fazer história no torneio, mas voltou a ganhar no Aberto dos Estados rentes de consumo, enquanto mantém uma idéia única permeando todos
Unidos (US Open), último torneio Grand Slam daquele ano. Talvez pudes- seus objetos. Utilizando essencialmente elementos geométricos simples
se ter ido além em suas conquistas se tivesse comparecido, mas os rumo- como listras e círculos, a linguagem visual da coleção utiliza ainda íco-
res sobre a história de amor com a princesa não deixam sombra de dúvi- nes franceses em sua composição, como a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo,
das de que aquele foi o grande ano do tenista. presentes na mídia impressa. As cores escolhidas são predominantemen-
De qualquer modo, o lugar que a linha criativa da Puma leva nossa te tons de azul e o branco, e fazem referência à bandeira da Argentina,
imaginação, ao resgatar e fantasiar sobre esta passagem intrigante do tênis ainda que não fiquem restritas a estes.
internacional, é o ambiente de onde teria sido protagonizada a história A plataforma da campanha para o segundo quarto do ano de 2007, pri-
de amor. As roupas, acessórios, materiais de campanha e ações publici- mavera no hemisfério Norte, pode ser divida entre uma sólida e distinta
tárias homenageiam e estabelecem o herói Guillermo Vilas na França. parte voltada para os pontos de venda da marca e o apoio de uma massi-
Para que o consumidor vivencie o mito eficientemente, a empresa desen- va comunicação composta por anúncios em revistas de comportamento,
volveu todos os elementos e esforços da sua comunicação voltados a repro- painéis de mídia externa diversos e quatro spots de 15 segundos para a
duzir, trinta anos depois, uma versão contemporânea da história. televisão. O período mais ativo da publicidade está planejado nos Estados
Convidando seus consumidores a reviver, através do estabelecimento de Unidos, Canadá e alguns países da Europa entre os dias 1º de Abril e 15
analogias simbólicas proporcionadas pelo visual retrô, a experiência de de Maio de 2007.
estrelato pela qual passou o tenista naquele ano, sobretudo o seu suces- Foram providenciadas atividades de relações públicas como eventos de
so social e amoroso. lançamentos para a mídia e para o público em geral em Mônaco, com a pre-
A associação da imagem de Guillermo Vilas com a Puma remonta a pró- sença de Guillermo Vilas e outras celebridades, além de diversas sessões de
pria trajetória do tenista, para contribuir ainda mais com a força comunica- fotos. Inclusive, para este período foi planejado um grande esforço de asses-
tiva do conceito. A empresa, na verdade, resgatou o Touro dos Pampas de seus soria de imprensa para conseguir espaço em editoriais de moda. Algumas
arquivos, afinal ele sempre foi patrocinado por ela durante a sua carreira atividades de marketing de guerrilha também foram planejadas para acon-
como atleta. Ela presta homenagem ao herói resgatando conceitos visuais e tecer nos torneios de Wimbledon e de Roland Garros deste ano.

110 Mitos Contemporâneos Mitos Contemporâneos 111


Por fim, foi desenvolvido um website que, além de possuir informa-
Enunciação Mítica:
ções e detalhes sobre todos os objetos da coleção, proporcionam aos
usuários conduzir ações através do ambiente interativo. Os usuários de
Internet podem checar o catálogo de produtos, comprar, ver fotos da
4.2 Elementos Dialógicos e
Aplicações Mercadológicas
coleção, ouvir a música-tema, assistir aos spots de televisão e jogar um
jogo especialmente desenvolvido para a campanha.

C
São sobre estes elementos comunicativos, que constituem o sistema omo já discutimos anteriormente, o capitalismo global age cons-
simbólico presente nos materiais publicitários desenvolvidos para a cole- truindo verdades e realidades parciais que são difundidas pelos
ção, que pretendemos debruçar nossos esforços no próximo tópico des- mitos da publicidade em nossa sociedade. O sistema de símbo-
ta análise. Estaremos atentos especialmente ao website, pois além da los criado para a coleção “French 77” da Puma não faz por menos. A
enunciação na nova mídia ser uma dos focos do nosso trabalho, ele pra- integração das mídias para a comunicação da campanha certamente
ticamente sintetiza em seu conteúdo toda a campanha e contém a maior alcança seu objetivo e consegue ser percebida como uma unidade pelos
parte das informações verbais e visuais disponíveis aos consumidores. consumidores. Desta forma, o que se expressa em cada uma das peças
completa e enriquece o que se entende sobre o todo do conceito.
Assim, os spots de televisão e o website são os materiais-chave desta
análise, pois são eles que conseguem criar a representação do espaço
idealizado onde se leva a imaginação do consumidor assim que ele
adquire os produtos da marca. Este local é exatamente onde se pode
vivenciar o mito propagado pela campanha. Neste ambiente, desenro-
lam-se as ações relativas ao herói, esse é o seu domínio simbólico pro-
priamente expresso e o local onde seus atributos fazem-se eficazes.
Ali é o universo onde o mito é possível, onde se verifica o seu funciona-
mento. Podemos dizer que os produtos em merchandising nas peças publi-
citárias são transfigurados, dentro deste ambiente, nos próprios atributos
do herói Guillermo Vilas. As peças de roupa utilizadas na comunicação per-
mitem que se compreenda que são elas que possibilitam que qualquer um
desfrute do estilo de vida do herói, que qualquer um seja o herói.
Utilizar as roupas do comercial significa para o consumidor que ele
pertence ao universo criado pela Puma; logo, qualquer um que tenha
conhecimento do mito reconhecerá neste sujeito os atributos do herói em
questão. O consumidor apropria-se dos símbolos de modo antropofági-
co ao consumi-lo, criando com isso a sua própria identidade social. Esta
identidade será certamente reconhecida e legitimada em sua tribo ao ser
notado portando a indumentária que está associada ao herói.
Constituído por um fundo infinito neutro e branco, o espaço virtual
de “French 77” ganha tridimensionalidade nos spots de TV e no website
com plataformas de aspecto vetorizado (coloridas em tons claros e satu-
rados) que se movimentam ordenadamente (como num jogo de videoga-

112 Mitos Contemporâneos Mitos Contemporâneos 113


me típico do final da década de 70) para criar os caminhos por onde os mulher, cada um de um lado da festa, utilizam os blocos como degraus e o pla-
personagens passam ao pular de disco em disco. Neste ambiente intera- no da câmera fecha para dar close-up nos tênis. O casal encontra-se no meio das
gem pessoas trajando as peças da coleção, todos na faixa de vinte anos e duas pistas, dá as mãos e sai andando. A câmera dá uma volta e os dois estão
que caminham até plataformas maiores onde existem concentrações de novamente se dirigindo à pista caminhando por um chão quadriculado.
pessoas dançando numa festa. O terceiro spot é bem parecido com o primeiro. Um homem corre por
A música tema da campanha chama-se For Energy Infinite e é do extin- blocos pretos, uma garota corre por blocos iguais, mas de ponta-cabeça.
to grupo Marazin, natural de Boston (EUA). A letra, que se encontra no Os dois param na mesma plataforma, a câmera sai de um detalhe do tênis
anexo III deste trabalho, começa sugerindo um sujeito feliz que diz sen- e ela o puxa para o mesmo lado em que se encontra. Eles se abraçam e
tir falta dos seus tempos de solteiro. Como estivesse se justificando, o eu- saem andando em direção a uma outra festa.
lírico procura dizer que gosta da pessoa a quem se dirige como gosta de No último spot da campanha um rapaz e uma garota jogam tênis em
todas e pede para que “ondas de inspiração” o carreguem. uma quadra que obedece ao mesmo padrão de toda a direção de arte da
Na terceira estrofe diz que “todos colocaram campainhas em suas campanha. Começa uma chuva, ele puxa os cordões do gorro de sua blu-
casas”, como se os tempos de “balada” tivessem terminado. Lamenta-se sa e com isso os dois campos se juntam. A rede desaparece para que eles
disso perguntando se ninguém percebe que “energia é uma coisa breve”. possam se abraçar e saírem sob a proteção da blusa dele.
Completa dizendo não entender como esta “saudade” dos tempos de fes- Todos os vídeos são assinados ao final com a logomarca da Puma e o
ta o traz novamente até ela e que era “inocente” sozinho. endereço eletrônico (puma.com), e possuem o mesmo trecho inicial da
No refrão aparece um segundo eu-lírico, feminino como supomos, que música. Além disso, podemos dizer que em todos os comerciais o uso de
conversa com o primeiro perguntando se alguém está a ouvir as palavras detalhes das roupas funciona como plot-point para a aproximação dos
que ele a escreveu. Ela se torna implacável ao perguntar se todos percebem casais. Confirmando para o receptor da comunicação, mais uma vez, a
a inocência de “bem... está acabado”. Então ele repete muitas vezes em arre- associação entre as roupas e o estilo de vida proporcionado a quem as
pendimento “Eu sei, eu sei, eu sei (...) Eu poderia ter lhe contado”. veste. As roupas, através da realidade parcial construída pelo mito no
Estabelece-se assim, com o auxílio explícito da canção, um clima de material publicitário, é atribuída de poderes mágicos que influenciam o
encontros, flertes e galanteios para todo ambiente da campanha. O arqué- ambiente para que se tenha sucesso no encontro de um par. São estes
tipo do bon-vivant, do sujeito que não se envolve em relacionamentos lon- mesmos atributos mágicos que o consumidor espera inconscientemente
gos e que leva um estilo de vida conforme lhe guia a “inspiração” e as gla- receber ao comprar os produtos.
morosas festas e viagens, está presente no eu-lírico da música e encaixa- Terminada a descrição dos spots, partimos para o website. Na página
se perfeitamente na comunicação como um possível discurso do herói da inicial temos quatro plataformas grandes, identificadas pelas cores: rosa,
nossa campanha. verde, azul clara e azul escura. Estas plataformas funcionam como nave-
Com os personagens interagindo neste espaço, partimos para a descrição gador para o usuário. Ao clicar sobre elas, acessa outros estados da pági-
dos spots de TV . No primeiro, uma garota caminha por pequenas platafor- nas, a saber: Inspiration (Inspiração), His (Ele), Hers (Ela) e o jogo Party
mas amarelas retangulares, de cantos arredondados. Um rapaz nota que ela Hopper (Estimulante de Festas).
vai passando, sai da plataforma onde se encontra com outras pessoas e vai ao Os efeitos sonoros são típicos de uma partida de tênis (raquetadas,
encontro dela,. formando um segundo caminho paralelo ao primeiro. Ela per- vozes de arbitragem, torcida, etc.) e interagem identificando os botões. O
cebe a presença dele, há uma troca de olhares entre os dois, ela sorri e fecha menu também pode ser acessado através da barra de navegação superior,
o zíper da blusa que veste, fazendo assim com que os dois caminhos se apro- que ainda possui quatro outras páginas: “Spots de TV”, “Cadastro de E-
ximem para que ele possa alcançá-la. Os dois se abraçam e saem andando. mail”, “Encontre uma Loja” e “Conte a um amigo”, que são auto-explica-
O segundo spot começa com uma festa repartida ao meio por os blocos azuis tivos por si sós. Ao lado disso, ainda temos um player que toca a música
que funcionam como gráficos de um espectro sonoro. Um homem e uma da campanha e permite ao usuário parar, voltar, ouvir trechos de outras

114 Mitos Contemporâneos Mitos Contemporâneos 115


músicas, regular o volume e/ ou retirar o som da página. A plataforma vente conforme vão evoluindo as fases e a dificuldade vai aumentando
cor-de-rosa no plano mais próximo tem uma garota sentada a balançar as pela quantidade de pulos necessários até o final da fase e com a acele-
pernas que pendem, e não possui navegação alguma, apenas interage atra- ração na oscilação das plataformas. Ao chegar ao final de cada fase o
vés de sons quando o mouse é posicionado sobre ela. jogador ganha um simpático sorriso da modelo e pode escolher entre
A primeira plataforma navegável do caminho do website é a azul cla- encaminhar o link do jogo a um amigo ou dirigir-se à próxima fase. O
ra ao centro, nela vê-se um homem (His) e uma mulher (Hers). Ao clicar usuário é estimulado a permanecer jogando pela existência de um
em um dos dois vamos para um ambiente onde três modelos vestem dife- ranking com os melhores jogadores.
rentes roupas da coleção. Cada uma das peças recebe um rótulo que a Procuramos evidenciar, com essas descrições e análises, os aspectos
identifica com a interação do mouse. Clicando em uma peça de roupa mitológicos da campanha “French 77” da Puma. A mitogênese, ao pas-
abre-se uma janela onde se encontra todo o catálogo, masculino ou femi- sar às mãos corporativas, continua acontecendo exatamente da manei-
nino de acordo com a primeira escolha. Nesta janela há uma breve des- ra como já nos dizia Barthes em Mitologias (1993), constituindo um sis-
crição do produto, uma imagem, as cores disponíveis para a peça, um tema factual onde o grupo é induzido sacralizar os símbolos que satis-
botão de aproximação (que abre uma grande imagem do produto em pri- fazem nossas necessidades humanas, sociais ou subjetivas, e que são os
meiro plano) e um botão que redireciona para o endereço de lojas da produtos de consumo dos nossos tempos. Os mitos sempre estabelecem
Puma no mundo. valores para as sociedades, explicando e suprindo o imaginário coleti-
A segunda, de cor verde, é a plataforma Inspiration. Nesta parte do web- vo com fatias de representação da realidade que não correspondem
site temos uma fotografia de Guillermo Vilas, ainda jovem, preparando- necessariamente à realidade objetiva da ciência. Pelo contrário, a publi-
se para executar uma rebatida. Ao lado da imagem temos um texto que cidade em geral se comunica através de imagens que na nossa contem-
explica sucintamente o conceito da coleção, estabelece os atributos do poraneidade geram sistemas simbólicos fechados e parciais como os
herói e conta a anedota durante Wimbledon em 1977 com a princesa de totens de Lévi-Strauss (1976). Estes sistemas ideológicos são cada vez
Mônaco. No canto superior direito desta mesma janela de texto há um mais céleres e eficientemente vivenciados pelas pessoas, em função dos
botão que dá acesso a outras fotos de divulgação. As primeiras imagens avanços tecnológicos, e se prestam a identificar grupos; hoje as neotri-
são das extraordinárias performances do Touro dos Pampas, nelas a logo- bos urbanas, que emergem nas metrópoles como resposta ao imenso
marca da Puma aparece em placas publicitárias dispostas nas quadras. individualismo gerado pelas condutas, valores e características do capi-
Depois temos ainda fotos contemporâneas de modelos trajando as roupas talismo pós industrial na modernidade-mundo.
da coleção em iates, carros e lugares luxuosos. O ensaio foi realizado em
Mônaco e contou com a participação de Vilas, que dirige um automóvel
conversível em uma das imagens e sempre aparece acompanhado de pelo
menos duas garotas.
Por fim, a terceira, de cor azul escura, dá acesso ao jogo Party Hopper.
Para jogar, o usuário pode optar entre um homem e uma mulher. O obje-
tivo é simples, consiste em pular pelas plataformas até alcançar a festa
que acontece mais adiante sem cair no abismo branco. Existem, disponí-
veis em determinadas plataformas, bolinhas de tênis nas cores azul, laran-
ja e amarela que pingam e oferecem ao jogador que as alcança a tempo
vantagens de vida extra, tele-transporte e slow motion, respectivamente.
O usuário possui apenas dois comandos: “pulo” ou “superpulo” (jump
ou power jump), disponíveis a qualquer hora do jogo. Ele torna-se envol-

116 Mitos Contemporâneos Mitos Contemporâneos 117


5 Considerações Finais

C
hegamos assim ao final do nosso estudo. Procuramos no decor-
rer destes capítulos abarcar os aspectos semânticos do estudo das
imagens e entender como que o aparato comunicacional da socie-
dade contemporânea e a mitogênese (o processo de criação mitológica)
foi assumida pelas instituições corporativas no decorrer da história da
civilização ocidental.
Para estes fins, buscamos abordar a obra de alguns autores normalmen-
te estudados pela psicologia, antropologia, sociologia e lingüística, mas que
sem sombra de dúvida oferecem pensamentos e teorias importantíssimas
para o avanço das Ciências da Comunicação. Ainda que cada um destes
campos do conhecimento concentre seus esforços em sentidos por vezes
obtusos entre si, todos utilizam objetos comuns para suas análises: os sím-
bolos sociais. Os símbolos, como vimos, participam inexoravelmente da
existência humana não só pela necessidade que temos de utilizá-los em
todos os momentos de nossa existência, mas também por influenciarem os
aspectos da formação e do desenvolvimento dos indivíduos: sociais, cultu-
rais, psicológicos, ideológicos, cognitivos etc.
O capitalismo pós-industrial, o marketing global, o desenvolvimento
da Internet, a re-introdução do conceito de caos no senso comum, o retor-
no à busca do sagrado; tudo isso inaugura um novo momento na histó-
ria do imaginário e do pensamento humano no Ocidente. O processo de
sacralização dos produtos de consumo aumenta exponencialmente em
nossos tempos e a indústria cultural patrocinada por estas instituições
difunde valores que se chocam e, por uma questão de inércia, afastam do
palco principal do cotidiano os valores pátrios, regionais e/ ou religiosos
das comunidades aonde chegam.
Fatos como o aparecimento da literatura de auto-ajuda, da figura arque-
típica do homem-marca ou self-made-man e a cristalização do marketing
eleitoral nas plataformas das campanhas políticas anunciam a chegada des-
ta nova perspectiva de mundo. Antigas instituições milenares, como o
Estado ou mesmo a Família, parecem não serem mais tão eficientes como
outrora para atribuir significados aos contextos de vida enfrentados no dia-

119
a-dia dos grandes centros metropolitanos. As pessoas passam a se identifi- Esse arquétipo também se faz presente atualmente na política. Uma pes-
car e agregar de acordo com símbolos comuns, mas que não pertencem soa legitimamente reconhecida como self-made-man consegue seguramente
mais a um único sistema centralizador. A liberdade de escolha de ideolo- vantagens e maiores taxas de aprovação perante a opinião pública. O marke-
gias e a troca de sistemas, que em tempos não tão longínquos da história ting eleitoral inclusive vem se dedicando a isso, deixando de lado as tradicio-
ocidental era sinônimo de traição e falta de caráter em um sujeito, hoje pare- nais doutrinas políticas do liberalismo (como a esquerda, e a direita e deri-
cem indispensáveis para que o homem contemporâneo possa se situar a vados) e concentrando seus esforços comunicacionais para constituir candi-
qualquer instante em seu espaço social. Caracterizando uma sociedade que datos alinhados aos mesmos conceitos de diversidade que o mercado global
só pode ser compreendida pelo conceito de diversidade humana, situações precisou desenvolver para ser coerente com seus públicos específicos.
novas que emergem todo dia sem precedentes, jurisprudências e significa- Por outro lado, não podemos deixar de comentar nestas considerações
dos nesta confluência confusa de valores. finais o fato que a dinâmica dialética dos símbolos não se faz de rogada.
As auto-ajudas e os vídeo-games participam da sociedade contemporânea, No mesmo instante que o interesse das corporações procura sacralizar
cada um a seu modo, oferecendo uma narrativa possível para o universo secu- seus produtos, ondas no sentido contrário já profanam estes símbolos.
lar que deu origem às corporações e que não pode mais ser sustentado devi- Como exemplo claro deste aspecto citamos as cada vez mais ignoradas
do às proporções alcançadas pelo mercado global. Como o capitalismo pós- leis de direitos autorais que procuram proteger os usos, e decorrentes divi-
industrial jamais poderá tomar por completo o lugar da cultura base de um dendos, dos símbolos sociais. A pirataria de produtos da indústria cultu-
sujeito, na auto-ajuda e no universo dos jogos ele se permite – em favor da ral, a quebra de patentes, a reprodução não autorizada de marcas regis-
dominação simbólica em última instância – um sincretismo (normalmente tradas e a arte de guerrilha (rapidamente desvirtuada pelo marketing)
originário de culturas dominadas) para que as pessoas recuperem a espiritu- caracterizam, sem sombra de dúvidas, o uso profano que se faz dos mitos
alidade e um objetivo de vida além do consumo. Como alguns não podem corporativos na grande geléia cultural de nossos tempos. Estas condutas
mais ter fé nos valores e promessas do capitalismo, a auto-ajuda constrói uma trazem em si signos de resistência ao domínio dos sistemas corporativos.
espécie de limbo para o imaginário entre os símbolos do mercado global e São formas ilícitas, marginais, mas que são resultado direto das práticas
um qualquer sistema ideológico anterior este. Cabe aqui ainda lembrar das desiguais e monopolistas das instituições.
projeções feitas a respeito do desenvolvimento das realidades virtuais com- O trajeto antropológico dos símbolos sociais, a polarização deles entre
putacionais e as comparações que tecemos com os rituais tribais xamânicos, imaginário e código, entre sagrado e profano, presente no pensamento
hoje também redescobertos pela auto-ajuda. humano desde seu princípio, não foi alterado em suas características
Temos ainda o arquétipo do self-made-man que define sujeitos autodi- essenciais com a chegada deste novo momento histórico em que vivemos.
datas cuja produção de material simbólico é extraordinariamente acumu- As corporações certamente têm consciência da dimensão e do poder de
lada em pouquíssimo tempo. Essa maneira de alcançar prestígio e reco- suas atuações na sociedade, mas parecem não perceber a ossatura dos
nhecimento social parece ser atualmente a maneira mais rápida e eficien- malefícios que andam causando aos nossos próprios meios de existência
te para o sucesso. São inúmeros e não param de aparecer na mídia casos no planeta devido à corrida desenfreada por crescimento econômico.
de adolescentes nerds que ganharam fortunas repentinas com desenvol- Pelo conhecimento disso, gostaríamos de encerrar este trabalho propondo
vimento de ferramentas computacionais e idéias inovadoras para corpo- às corporações globais (instituições que hoje dispõem de tantos poderes mate-
rações, que lucram ainda mais do que pagam por isso. A possibilidade riais simbólicos quantos os necessários para dar vazão ao processo mitogênico
quase lotérica de achar o grande filão de atuação, de ser “abençoado” pela na sociedade) que se dediquem a construir, dar subsídio e apoio à construção
criatividade, de se “fazer” intelectualmente, profissionalmente e de ser de um imaginário mais ético e responsável. Um imaginário que contribua para
reconhecido financeiramente coloca-se questionavelmente como única a solução dos problemas que a sociedade enfrenta em função do próprio siste-
saída do sujeito para o seu sucesso no ambiente extremamente competi- ma capitalista pós-moderno. Só isso poderá fazer jus à abrangência tão impo-
tivo e voraz do mercado de trabalho contemporâneo. nente deste novo sistema simbólico que impera entre nós, homo symbolicus.

120 Mitos Contemporâneos Considerações Finais 121


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124 Mitos Contemporâneos 125


Anexos

127
Anexo I

128 Mitos Contemporâneos anexos 129


130 Mitos Contemporâneos anexos 131
132 Mitos Contemporâneos anexos 133
134 Mitos Contemporâneos anexos 135
136 Mitos Contemporâneos anexos 137
138 Mitos Contemporâneos anexos 139
140 Mitos Contemporâneos anexos 141
142 Mitos Contemporâneos anexos 143
144 Mitos Contemporâneos anexos 145
146 Mitos Contemporâneos anexos 147
148 Mitos Contemporâneos anexos 149
Anexo II

150 Mitos Contemporâneos anexos 151


152 Mitos Contemporâneos anexos 153
154 Mitos Contemporâneos anexos 155
156 Mitos Contemporâneos anexos 157
Anexo III

For Energy Infinite Para Energia ao Infinito

My fingers jingle round and round Meus dedos gingam por aí


Forget that it may come to for miss Esqueço que isso pode estar vindo por falta de
my days alone meus dias sozinho
I should have seen this one long Eu deveria ter aproveitado por mais tempo
For many thousand dollars blew it in the sound Por muitos mil dólares bradei isso ao som

I love you too as I love everyone Eu te amo também como amo todas
Let the waves of inspiration Deixe as ondas da inspiração
Coming for their daily happenings Vir para seus acontecimentos diários
For they can move me Para que possam me levar

Then everyone placed bells into their homes Então todos colocaram campainhas em suas casas
But could anyone know that energy is brief? Mas poderia alguém saber que energia é breve?
How could this missed thing bring me Como pode esta saudade me trazer
back to you? de volta a você?
I was innocent alone Eu era inocente sozinho

I could have told you Eu poderia ter lhe contado


I could have told you Eu poderia ter lhe contado
Oh, Oh Oh, Oh
I know, I know… Eu sei, Eu sei…

Is anyone listening to the words you wrote? Tem alguém ouvindo as palavras que você escreve?
Else me? Além de mim?
Has anyone perceived the innocence of “well Alguém percebeu a inocência de “bem…
it’s over”? está acabado”?

Oh, Oh Oh, Oh
I know, I know… Eu sei, Eu sei…
I could have told you Eu poderia ter lhe contado
I know, I know, I know… Eu sei, Eu sei…

So this is when I could sit down and explain Foi então que pude me sentar e explicar o
what all this means que isso tudo significa

Is anyone listening to the words you wrote? Tem alguém ouvindo as palavras que você escreve?
Else me? Além de mim?
Has anyone perceived the innocence of “well Alguém percebeu a inocência de “bem…
it’s over”? está acabado”?

Banda: Mazarin
Álbum: We’re already there – 2005.

anexos 159

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