Mitos Contemporâneos - A Criação Publicitária
Mitos Contemporâneos - A Criação Publicitária
Mitos Contemporâneos - A Criação Publicitária
F
ERNANDO Z
ARPELON
ECA/US
P
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e A rtes
Mitos Contemporâneos
A Criação Corporativa
Fernando Z arpelon
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, no Departamento de Relações
Públicas, Publicidade e Propaganda e Turismo para obter graduação
de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade
e Propaganda.
São Paulo
2007
La Fable et la Vérité A Fábula e a Verdade
Jean-Pierre Claris de
Florian, c. 1785
Lista de Imagens e Gráficos
A
29. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007. gradeço primeiramente todos os deuses, santos (especialmente
30. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007. Santo Expedito), heróis, entidades, duendes, orixás e seres espi-
31. Carlos Lunetta, The articulation of visual experiences through rituais que podem de alguma forma ter influenciado e ajudado na
algorithm, Boston, E.U.A.: Massachusetts College of Art, 2005, p. 24 realização deste trabalho. Não fosse por eles, seria preciso, além de tudo,
32. http://www.bergoiata.org/fe/800-1024-1280/New_York--Times_Square.jpg escolher outro tema de pesquisa.
em 21/05/2007.
Agradeço à Escola de Comunicações e Artes e demais unidades que
33. Carregada em 28/07/2006, por Straws pulled at random,
http://www.flickr.com/photos/ste/176933584/ em 21/05/2007. freqüentei na Universidade de São Paulo; todos os funcionários, profes-
34. Carregada em 23/09/2006, por Mantelli, sores e colegas com quem convivo desde de 2001 e que possibilitaram
http://www.flickr.com/photos/mantelli/250820227/ em 21/05/2007. minha formação acadêmica.
35. http://www.in70mm.com/news/2004/circlorama/images/ Agradeço à Mundrungagem Cósmica, à galera do Vamoaê, aos PPTrutas
circlorama_picadilly_circus.jpg em 21/05/2007. e todos os grupos e e-grupos de amigos com quem compartilho idéias,
36. Carregada em 23/11/2006, por kridgett kreations, http://www.flickr.com/ inspirações, valores, referências, contatos e grandes amizades, tanto nas
photos/kridgett_kreations/304491286/ em 21/05/2007.
baladas, como no dia-a-dia das repúblicas e online.
37. Carregada em 11/10/2006, por powerbooktrance,
http://www.flickr.com/photos/powerbooktrance/267059283/ em 21/05/2007. Um agradecimento especial às pessoas que diretamente me auxiliaram
38. Carregada em 22/02/2007, por weathershenker, neste estudo: Eneus Trindade, atencioso professor orientador; Carlos
http://www.flickr.com/photos/98496150@N00/398569554/ em 21/05/2007. Lunetta, “patrão”, amigo e grande referência bibliográfica; Maira S.
39. Carregada em 08/01/2007, por Justin Hiltz, Albuquerque com quem viajei, visitei, conversei e aprendi muito sobre his-
http://www.flickr.com/photos/deadmole/351247777/ em 21/05/2007. tória e mitologia; Paula K. Santos, grande amiga que me “salvou” na edição
40. Carregada em 25/09/2005, por hipertoto, do trabalho; à família Dazroo Butantã: Sherlon, Flavião, Carol “Ambrô”,
http://www.flickr.com/photos/30643794@N00/46441489/ em 21/05/2007.
André “Legal”, Maria Regina, Adriano “Sapo”, Yara, Ami “San” e todos os
41. Carregada em 01/10/2005, por jaimelondonboy,
http://www.flickr.com/photos/38575691@N00/48487565/ em 21/05/2007. agregados (que não caberiam nesta página) tão compreensivos e impresci-
42. http://www.dcs.ed.ac.uk/teaching/cs4/www/graphics/ díveis para que o trabalho finalmente “saísse do quarto”.
Web/intro_graphics/cgrasp.jpg em 21/05/2007. Finalmente – e mais importante de todos – agradeço à minha família,
43. http://www.cea.wsu.edu/Content/Headers/virtualrealS05.jpg em 21/05/2007. aos meus pais e ao meu irmão que, mesmo longe fisicamente agora, nun-
44. http://us.movies1.yimg.com/movies.yahoo.com/images/hv/photo/ ca mediram esforços, diálogo, apoio e amor durante toda minha vida para
movie_pix/warner_brothers/the_matrix/matrixjacks.jpg em 21/05/2007. que pudesse ultrapassar os momentos difíceis com confiança e otimismo.
45. Carregada em 14/09/2004, por andyi, Este trabalho é dedicado a vocês.
http://www.flickr.com/photos/andyi/434460/ em 21/05/2007.
46. Carregada em 16/03/2007, por L’Oréal Paris Second Life,
http://www.flickr.com/photos/7354016@N02/422905842/ em 21/05/2007.
47. Carregada em 23/10/2006, por Silvery,
http://www.flickr.com/photos/silvery/278058062/ em 21/05/2007.
48. Carregada em 12/08/2006, por Stephanie Booth, Muito Obrigado!
http://www.flickr.com/photos/bunny/213397504/ em 21/05/2007.
Sumário
1 Introdução.................................................................................... 11
Mitos Contemporâneos............................................................107
4 4.1 Produção Mitológica Contemporânea na Coleção Puma French 109
4.2.Enunciação Mítica: Elementos Dialógicos e Aplicações
Mercadológicas............................................................................ 113
Bibliografia................................................................................. 123
Webiografia................................................................................ 125
Anexos........................................................................................ 127
I: Coleção Puma French 77 – Apresentação para Vendas e
Apresentação da Campanha........................................................ 129
II: Coleção Puma French 77 – Cenas de http://www.puma.com/
french77...................................................................................... 151
III: Coleção Puma French 77 – Letra da Música: “For Energy Infinite”.... 159
1 Introdução
A
tarefa de distinção entre o que é verdade e o que é fantasia talvez seja
a mais recorrente no nosso dia-a-dia social. Ainda que exista o con-
senso sobre o que cada um destes qualitativos signifique, a tarefa de
atribuí-los a um discurso em particular não é nada fácil. O que nos leva a esco-
lher entre o que acreditamos e o que não acreditamos faz parte das particula-
ridades subjetivas de cada um, dos contextos, do conteúdo dos discursos e das
culturas envolvidas, e isso para todos os momentos da nossa existência.
O conhecimento dessas relações é de interesse particularmente importan-
te para a enunciação publicitária, que usa e abusa do trânsito entre os pólos
do fantástico e do verdadeiro. A publicidade é sempre ambígua em seu aspec-
to mais íntimo, pois é um discurso articulado por símbolos dispostos a fim
de persuadir os receptores a fazerem, ou acreditarem em algo. Estes objeti-
vos intrínsecos aos discursos publicitários lhes fazem recorrer à apropriação
de imagens e figuras, cujas linguagens metafóricas não podem desfrutar de
absoluto consenso conceitual em uma sociedade de classes. Por mais que use-
mos símbolos e eles tenham referência comum, cada um de nós guarda sig-
nificados de uma maneira pessoal e íntima que traduz a nossa identidade
através da relação que temos com eles.
As imagens e figuras têm compreensão muito mais instantânea e geral do
que os discursos lógicos, pois são formas inconscientes de percepção. Estão
conectadas com a satisfação dos nossos desejos, nossas pulsões e nossas neces-
sidades particulares e irracionais. Via de regra, a necessidade pessoal é mais
urgente do que a necessidade do grupo. Inclusive, foi para facilitar a solução das
necessidades pessoais através força sinérgica das ações em grupo que acredita-
mos, hoje em dia, que o ser humano tenha desenvolvido e evoluído a própria
linguagem. O sistema semiótico, assim concebido pela cultura, atribui dinami-
camente valores sociais (e econômicos) maiores ou menores aos símbolos que
articula. Além disso, é este mesmo sistema (que também é ideológico) quem gera
e conceitua a própria realidade para qualquer coletividade que o compartilhe.
Principal operadora destas imagens e símbolos na sociedade hoje, a publi-
cidade é a enunciação do capitalismo corporativo e pós-industrial por exce-
lência. O Ocidente, como veremos, sempre procurou destituir o poder das
11
2
imagens através de técnicas, métodos e condutas que as rejeitassem dentro
de seus sistemas e isso nos possibilitou avanços tecnológicos e científicos. Iconoclastia
Porém, ignorar e combater as imagens totalmente sempre se mostrou infru- vs. Iconolatria
tífero. Além disso, recentemente estes esforços vêm sendo pouco a pouco
abandonados em favor do processo de globalização dos mercados, que é enca-
beçado pelas instituições corporativas.
A pós-modernidade, ou modernidade-mundo, e a série de novas caracte-
rísticas incorporadas à sociedade pelas novas tecnologias, e pelo atual con-
texto evolutivo dos sistemas simbólicos, inauguram novas formas de organi-
zação social e novas perspectivas de mundo. Estas novas relações simbólicas
dizem respeito à maneira como nos identificamos para conosco, para com os
outros e, em muitos aspectos, remontam velhas estruturas sociais que acre-
ditávamos decadentes. Estruturas neotribais surgem para darmos conta de
explicar novos contextos e situações sociais com os quais nos deparamos na
contemporaneidade. O discurso oficial do mundo globalizado, sob o “man-
to” da publicidade, cria e dispõe ao público diversas realidades, parciais e
diluídas, que passeiam livres entre verdade e fantasia.
A vivência de realidades parciais pode ser experimentada de muitas manei-
ras através do acesso ao universo imaginário. Os mitos e sonhos, os transes
e rituais, os heróis e anti-heróis, todos são elementos facetados do universo
imaginário, do inconsciente coletivo, da nossa memória comum.
Pretendemos com este trabalho entender aspectos e características da moder-
nidade-mundo dentro do imaginário. Analisaremos a articulação dos meios e
discursos de suas instituições através da uma leitura de uma campanha publi-
citária inserida no contexto do mercado global. Com ênfase dos elementos sim-
bólicos que constituem esta comunicação sob uma perspectiva mitológica, bus-
caremos abarcar os aspectos trazidos pelas novas mídias nesta análise.
O modo que uma sociedade entende e atua no espaço não é muito mais
do que a tradução e solução das suas necessidades consensuais. Compreender,
ainda que apenas parcialmente, a natureza do consenso entre verdade e fan-
tasia nas diversas classes e culturas da nossa sociedade Ocidental é o maior
interesse do nosso estudo.
Ao final do trabalho, analisaremos a mitogênese corporativa no caso da
“Coleção Puma French 77” e procuraremos propor algumas idéias, bem como
tecer alguns comentários acerca da produção simbólica contemporânea.
Colocaremos e discutiremos alguns pontos que acreditamos que possam ser bené-
ficos para a construção de uma estrutura social mais eficiente, justa e ética atra-
vés da comunicação entre os mais diferentes seres humanos e suas instituições.
12 Mitos Contemporâneos 13
2.1 Os Símbolos:
Mitos e Arquétipos
O
capitalismo pós-industrial enquanto sistema ideológico estabe-
lece-se de maneira análoga a qualquer outro sistema humano de
símbolos, valendo-se da linguagem que emana do aparato comu-
nicativo social para sua existência e fluxo. O sistema capitalista em suas
configurações atuais, em virtude da complexa tecnologia comunicacio-
nal, tem em suas características estruturais, elementos essenciais que
podem ser identificados desde os seus primórdios com permanências e
transformações em seu processo evolutivo.
Ao assimilar a dinâmica dos poderes atribuídos aos símbolos sociais
e, conseqüentemente, a vantagem da classe que os manipula, associan-
do-se aos significados legítimos destes símbolos comuns, procuraremos
desvendar os meandros por onde habitam as imagens arquetípicas das
culturas humanas e a pluralidade que hoje convive com a globalização.
imagem 1
na instância lingüística a separação entre classes sociais, dada pela habi-
lidade de articulação dos símbolos de um sistema.
No catolicismo, a Palavra está associada com a própria “Carne Sagrada
id, ego e superego. A porção submersa e mais profunda representa id, o de Cristo”, o “verbo” que todos comungam num simbólico gesto antropo-
que Jung denomina inconsciente coletivo está ligado à estrutura psicoló- fágico durante a cerimônia. Desta maneira, todos fazem parte do mesmo
gica do animal social. Nesta parte os sistemas arquetípicos provocam grupo, pois são identificados e constituídos da mesma substância que o
as imagens arquetípicas. A segunda porção é a região onde se vive; onde herói (Jesus) sacrificado para salvar e saciar o grupo, como um cordeiro.
acontecem as estratificações sociais, a divisão social do trabalho e onde Além disso, não esqueçamos que foi a “Voz de Deus” (Jeová), no livro de
são distribuídas funções dentro dos rituais do cotidiano cultural. Aqui Gênesis na Bíblia, quem teve poder para criar a luz.
habitam as nossas personas, ou máscaras sociais, com as quais nos apre- Como exemplo ilustrativo da autorização lingüística, podemos citar o
sentamos frente às demais pessoas e interagimos lingüisticamente no personagem Fabiano, de Graciliano Ramos em Vidas Secas. Ele ouvia pala-
nosso cotidiano. A porção superior corresponde ao superego ou seu equi- vras que gostaria de pronunciar, mas cujo significado não compreendia.
valente racionalizado em códigos, planos, programas, pedagogias e todo Dado seu pequeno repertório cultural, estava fadado, como uma criança, a
o protocolo das instituições (Durand, 2004, p.92). admirar os discursos alheios que articulavam conceitos mais “complexos”
A partir deste círculo ele prossegue fatiando na vertical, separando do que aqueles que lhe foram apresentados. Para ele, que sempre era ludi-
desta forma os pólos ambíguos dos símbolos: o sagrado e o profano. É a briado e humilhado por ignorância, estes símbolos desconhecidos só
dialética do imaginário que opera entre os juízos oficiais e os falsos. O podiam ser assimilados no campo do “mistério da fé” irracional, onde as
trajeto antropológico do símbolo percorre este círculo. Com seis pontos imagens metafóricas dão conta da inteligibilidade do sistema.
em seu perímetro, o símbolo parte da ponta inferior (onde habitam as Quando usamos um nome sem plena consciência do objeto ou idéia que
imagens arquetípicas do imaginário) do círculo e caminha até o outro designa dentro do sistema ao qual ele está integrado, no mínimo, aumenta-
pólo (onde habitam os códigos e leis do consciente cultural). Em movi- mos o risco vexatório de incorrer em inúmeros problemas de linguagem. Eles
mento rotacional, ele estabelece um fluxo que passa pelo uso prático-coti- virão sob as mais diversas modalidades e não possibilitarão a compreensão
diano (no equador habitado pelas personas), determinando papéis sociais. dos demais indivíduos inseridos no contexto do sistema; não gerando desta
Ele ascende até o plano do superego, lá ele encontra o ápice no código e forma qualquer cognição ou desencadeamento de ação em favor da comuni-
retorna; passando continuamente entre o código, entre a expressão social dade. Ou pior, em engano que comumente se torna prejuízo para o grupo.
Imagem 5
Imagem 3
a forma e vetor do instinto, estabelecendo máscaras para nosso atuar
social, estas são as personas que assumimos. Por outro lado, nosso impul-
so em agir (instinto) também determina como compreendemos uma situ-
ação (arquétipo novamente).
Jung chega a esta relação “ovo-galinha” e sugere que o arquétipo pode
ser facilmente descrito como a autopercepção do instinto, ou então como
um “auto-retrato do instinto”; na exata mesma medida que a consciência
individual é uma percepção interna do processo objetivo da vida. (Jung
apud Hyde, 2000, p.59). Auto-retrato que se manifesta mesmo sem possuir
uma existência material fixa, sempre através de imagens que são correla-
tas, mas não idênticas.
Esta concepção junguiana é análoga com a concepção que Lévi-Strauss
tem sobre as imagens mitológicas. Para ambos, elas possuem estruturas Hathor/ Egito Ceres/ Roma Ronald/ Estados Unidos
E
dos às normas e leis que coletivizam esta ilusão. Alguém que ouse sair des-
xiste uma infinidade de recortes de momentos históricos que podem
te padrão certamente estará tomando uma atitude criativa que suscitará
ser tomados estruturalmente de modo a perceber similaridades e dis-
dúvidas e paixões (políticas) em relação à tradição vigente. Este conflito,
tanciamentos entre o que gostaríamos de chamar “momentos cultu-
entre o oficial e a solução criativa/ profana, é uma força que se revela pro-
rais”. Momento cultural nos parece um bom termo já que sugere que qualquer
pulsora da dinâmica dos sistemas simbólicos.
interpretação de imagens precisa, necessariamente, dispor de um contexto
Porém, como veremos mais à frente, devido às peculiaridades con-
geográfico e temporal específico ao grupo a que pertence. São illud tempus
temporâneas (advindas dos novos suportes comunicacionais) deste pro-
diversos onde o modo de produção característico de uma determinada popu-
cesso de substituição e modificação nos sistemas simbólicos, a dinâmi-
lação é permeado no dia-a-dia por outros símbolos e outros mitos; homogê-
ca simbólica foi em muito acelerada. O conflito entre o oficial e o extra-
neos, coesos e coerentes em si, mas circunstancialmente diferentes daqueles
oficial, o sagrado e o profano perdem força em virtude do amplo espaço
que conhecemos em nossa própria rotina produtiva diária. Por vezes incoe-
de discussão e partilha de informações, o oficial passa a ser parcial e
rentes com o nosso sistema simbólico que Ocidental, estas realidades hoje
fragmentado em diferentes sistemas simbólicos dispersos no seio da glo-
podem ser reconhecidas dentro de sua sabedoria e diversidades adaptativas.
balização. A separação entre emissores e receptores fica ofuscada com as
novas tecnologias. Para entender o presente precisaremos saber qual foi
O que é admirável, tanto em Eliade como em Corbin, para uma teoria do
o processo de desenvolvimento dos símbolos no pensamento humanos,
imaginário, é que eles conseguem mostrar, com uma erudição gigantesca, que que
considerar as relações culturais que lhe são intrínsecas e não perder de
o imaginário dispõe, ou tem acesso a, de um tempo – illud tempus – específico
vista sua função social.
que escapa à entropia da dissimetria newtoniana (sem o “depois” que necessita o
“antes”), e a uma extensão figurativa (na koja abad = “não onde” em persa) diferente
do espaço das localizações geométricas”.
(Durand, 2004, p. 38).
S
lado é poder material. abendo de antemão da pluralidade de concepções culturais que
O que denominamos um “sistema simbólico” não possui uma rigidez convivem no contemporâneo, precisamos investigar a maneira
intransigente. Existem sempre flexibilidades onde trocas de informações como opera a difusão mítica estrutural que contemplamos nas
entre culturas ocorrem. Para os especialistas da “teoria dos sistemas”, este sociedades. Entender o movimento de transmissão e de renovação mito-
vocábulo implica na idéia de uma abertura necessária: trata-se de um con- lógica nos permitirá mais à frente acompanhar melhor ressignificações
junto relacional entre vários elementos que podem até mesmo ser contra- míticas de nossa contemporaneidade.
ditório entre si. Assim como geneticamente temos crossovers cromossômi- Já argumentamos a respeito da influência dos signos sob o status social do
cos que criam novos códigos pelo contato e interação entre eles, podemos indivíduo que acumula valor simbólico. Estamos cientes de que as classes
perceber o movimento de intercâmbio acontecendo nas bordas culturais mais elevadas socialmente são tidas como “cultura oficial”, que dominam as
e dando origem à pluralidade e sincretismos dentro do imaginário, o que tradições, as instituem e as destituem. As demais tradições dominadas pos-
permite inclusive a eclosão de culturas mistas. suem preceitos e hábitos próprios que não se enquadram, e podem até mes-
Por conseguinte, a origem da coerência dos plurais culturais do ima- mo ser tabu, frente às práticas da cultura dominante. Isso dá origem a toda
ginário encontra-se em sua natureza sistêmica, e esta, por sua vez, fun- sorte de preconceitos, disfunções cognitivas, desentendimentos, diásporas e
da-se no princípio do “terceiro dado”, na ruptura da lógica bivalente onde aversões típicas de uma Torre de Babel. Acaba por excluir a cultura domina-
“A” exclui “não-A”. Com efeito, Durand nos diz (2004, p.84) que permitir da dos meios materiais disponíveis mais eficientes para a difusão de sua ide-
um conjunto de atributos intermediários entre culturas significa permi- ologia. Seu “poder” vai esvaindo-se com o abandono da sua prática ritual, até
tir a “A” e “não-A”, participarem em “B”. Esta é a fonte primária da diver- finalmente perecer aculturada. A ruína dos templos e a substituição do illud
gência entre o que se entende como pensamento mítico e o que se enten- tempus tornam um deus ineficiente e acontece então, lentamente, a substitui-
de como pensamento lógico-racional. Para que assuma uma modalidade ção pelo seu oposto dialético. A fé é frustrada e há uma tremenda migração
de pensamento, o homem precisa, por razões de coerência simbólica, ideológica que afeta os hábitos, rituais e perspectivas de existência social.
abandonar a outra. Todavia, nenhuma cultura é completamente soberana sobre as demais.
Ao abarcar novos indivíduos, um imaginário sofre modificações adaptati-
vas que contemplam seguramente perspectivas diferentes daquelas dos indi-
víduos dominantes. Perceberemos, certamente, um movimento retrógrado
natural por parte das instituições que precisarão se readaptar ao novo con-
texto. Abrir espaço intelectual para indivíduos “aculturados” é o ponto cul-
minante deste processo, pois isso certamente gera interpretações distintas
sobre o código, o superego social e sua gestão. Na própria expansão de um
sistema simbólico e de sua compreensão, decorrente da aculturação de
algum grupo, surge o desacordo sob sua interpretação, num movimento
dialético. Quando um elemento “comum” do imaginário passa a apresen-
tar duas versões antagônicas igualmente válidas surge o dilema social:
O dilema do imaginário acontece quando existe um embate cultural A s estruturas verbais primárias
Hercules/ Glória de Hera.
dentro de um sistema. Como o mito não raciocina nem descreve, ele tenta representam, de alguma forma, os
convencer pela redundância, pelo pleonasmo e pela repetição. Como já fora moldes ocos que aguardam serem
Imagem 7
notado por Goebbels, ministro das comunicações do nazismo alemão, que preenchidos pelos símbolos distribuídos
acreditava que “uma verdade é uma mentira repetida inúmeras vezes”. pela sociedade, sua história e situação
Nuanças suaves permeiam toda esta repetição. Porém, a contrapartida des- geográfica. Reciprocamente, contudo, para
tas particularidades é que cada ato ritual acaba por portar uma mesma verda- sua formação todo símbolo necessita das
de relativa à totalidade do mito. Nestes diversos fragmentos rituais, está conti- estruturas dominantes do comportamento
da a totalidade do objeto mítico a que corresponde. Assim, os rituais supersti- cognitivo inato do sapiens. Assim, os
ciosos (de eficácia questionável) são também resquícios de uma aculturação. níveis “da educação” se sobrepõem na
O imaginário, nas suas manifestações mais convencionais (o sonho, o formação do imaginário: em primeiro
onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação etc.) e, em relação à lógi- lugar encontra-se o ambiente geográfico Afrodite/ A que nasce da espuma
ca Ocidental desde Aristóteles, é alógico. A identidade não-coordenada, (clima, latitude, locações continentais,
o tempo assimétrico, a redundância e a metonímia do plano de existên- oceânicas, montanhosas, etc.), mas desde
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cia mítica definem uma lógica inteiramente outra em relação àquela, por já regulamentado pelos simbolismos
exemplo, do silogismo ou daquela da narração jornalística, mas muito parentais da educação, o nível dos jogos
próxima em certas medidas à lógica musical. (o lúdico) e das aprendizagens por último.
Desse modo, precisamos de alguns critérios para estabelecer uma E, finalmente, pelo nível que René Alleau
possível “gramática do imaginário”. As unidades operantes deste movi- denomina de “sintomático”, ou o grau
mento devem ser as unidades lingüísticas que criam significados ao dos símbolos e alegorias convencionais
tecer continuamente o sistema num fluxo de idéias. A mitoanálise pre- determinados pela sociedade para a boa
cisa compreender os atributos conceituais de cada imagem e sua eti- comunicação dos seus membros.
Christos/ O ungido
mologia até o momento cultural que se pretende analisar e não apenas (Durand, 2004, p. 91).
prender-se à forma material explícita que ela apresenta.
Assim, todo ser divino carrega sinteticamente em seu epíteto a sua sig- Contrapondo agora um sistema imaginário com outro diverso teremos
nificação arquetípica. Hércules significa “glória de Hera”; Afrodite, a que “nas- os já comentados dilemas inerentes a relação simbólica. Ao final da que-
ce da espuma” e Christos, o “ungido”. Quando estes atributos são substan- rela de valores, alguns aspectos do sistema dominado atualizarão o siste-
tivados, eles passam a possuir uma dimensão de atuação na realidade do ma dominante. Outros símbolos podem ainda ser “potencializados” e
illud tempus. O trajeto antropológico do signo mitológico é reafirmado pelas obrigados a permanecerem “profanos” (embora latentes no imaginário e
orações, litanias, ladainhas e mantras, que reforçam socialmente a gama de emergindo de tempos em tempos) e serão considerados alógicos e arras-
adjetivos que potencializam e definem a entidade sagrada. tados pelo fluxo comunicacional vigente até as sombras do imaginário.
Imagem 9
(e suas instituições) em suprir e/ ou criar estas necessidades no ser huma-
no. Voltaremos nossos olhos agora sobre o que se teoriza a respeito da
evolução do pensamento humano ao longo dos tempos.
S
abemos, por certo, que a Mitologia é anterior à História, à Ciência e
ao Capitalismo e compreendemos agora a forte maneira como estão
relacionadas tanto em sua estrutura, como em sua função social.
Precisamente porque se propõem a solucionar os mesmos problemas, encai-
xam-se de maneira análoga na sociedade e herdam inclusive algumas de
suas estruturas hierárquicas enquanto instituições equivalentes.
O exemplo mais emblemático é o fato que as primeiras universidades
surgiram em mosteiros. Os monges também eram quem abrigavam as
bibliotecas e, por conseqüência, o conhecimento. Quando o mito deixou
lentamente de ser legitimado como verdade oficial, a busca da verdade
científica tomou, conseqüentemente, seu lugar na pedagogia e na trans-
missão de conhecimento teórico.
Por causa desta vivacidade e excitabilidade do sentimento religioso, qualquer A noção de ciclos permite que passemos a adorar entidades que agora
conceito, qualquer objeto que por um instante dominasse todos os pensamentos, podem ser denominadas deuses especiais. É preciso adorar a chuva, para que
podia ser exaltado, independentemente da hierarquia divina: Inteligência, Razão, venha no momento propício. É preciso adorar o sol e tudo o que possa sim-
Riqueza, Casualidade, o Instante Decisivo, Vinho, a Alegria do Festim, o Corpo de um bolicamente se associar com fertilidade e abundância, entendidas como o
Ser Amado... Tudo o que nos vem repentinamente como envio do céu, tudo o que nos reconhecimento da prática do culto e trabalho com a terra. O homem tam-
alegra, entristece ou esmaga, parece um ser divino para o sentimento intensificado. bém compreende as estações do ano e suas implicações no ambiente, os ciclos
(Cassirer, 1972, p. 34). de vida e morte. São deuses de imagens zoomorfizadas e vinculadas aos fenô-
menos naturais. Deste profundo respeito e entendimento da atuação dos deu-
Podemos imaginar assim um contexto de onde emergiria um deus ses e da necessidade de sua adoração surgem os cultos.
momentâneo. Um homem ferido que se refugia numa caverna e con-
segue se salvar e depois volta contando como conseguiu realizar o fei- Onde quer que se estabeleça um deus
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to. Uma tribo que atravessa uma montanha e encontra sua caça, especial, onde quer que ele se erga como
repassa seu relato para a geração seguinte, que disso foi fruto direto. uma configuração determinada, esta
Surge uma nova denominação. Este sentimento de salvação é tão configuração é investida de um nome
intenso que merece um culto porque está relacionado com necessida- especial, derivado do círculo de atividade
des irracionais e inconscientes do ser. São aspectos biológicos como a pa r t icula r que deu o r igem ao deus .
nutrição, a hidratação, a cura, a respiração, a reprodução etc. Enquanto este nome for compreendido,
enquanto for percebido em sua significação
É claro que existe uma contrapartida: o reconhecimento do símbolo originária, suas limitações hão de estar em
só acontece à medida que possui uma dimensão real de atuação. Quando correspondência com as do deus; através
Imagem 11
um mito passa a ser ineficiente a criatividade dá novamente vazão à tor- de seu nome, um deus pode ser mantido
rente evolutiva do pensamento, gerindo novos ídolos, imagens e uma nova duradouramente no estreito domínio para
versão para o mito. o qual foi, na sua origem, criado.
Depois deste estágio algumas tribos abdicam o nomadismo em favor (Cassirer, 1972, p. 36).
de se estabelecer em uma determinada região. Foi na Revolução Agrícola
que passamos a produzir sistematicamente nosso alimento e começamos O princípio de unidade trazido pela
a intervir na natureza ao perceber o processo de evolução e de ciclos identidade comum é fundamental para
daquilo que tínhamos necessidade de “consumir”. É a eclosão dos mitos o amálgama social. Uma sociedade só
de fertilidade e da constante renovação cíclica da vida. poderá se estabelecer em uma região se
encontrar um objetivo comum entre seus
Acima destes demônios momentâneos que vêm e vão, aparecendo e desaparecendo membros e adorar deuses cujos domí-
como as próprias emoções subjetivas que os originam, ergue-se agora uma nova nios são compreendidos por todos. Um Deuses Zoomorfos: Chacal e
Anúbis (deus egípcio da morte).
série de divindades, cujas fontes não residem no sentimento momentâneo, mas no centro, onde todos aqueles membros
(...) porém, o eu só pode trazer à consciência este seu atuar de agente, como As imagens arquetípicas destes novos ídolos pessoais sofrem antropo
antes o seu sofrer de paciente, projetando-o para fora e colocando-o diante de si morfizações. Os deuses passam a interagir com os homens comuns e não
em firme configuração visível. Cada direção particular desta atuação humana gera mais atuam de acordo conduta geral do grupo. Realizam milagres e uti-
seu correspondente deus particular. Também estas divindades, que Usener chama de lizam seus atributos mágicos seguindo vontades típicas de quem possui
“deuses especiais” (Sondergötter), ainda não possuem, por assim dizer, uma função um ego também. Os deuses passam a tomar atitudes pontuais em relação
ou significação geral; ainda não penetram o ser em toda sua amplitude e profundidade, às personas. A estes deuses é conferido o poder de modificar o curso ordi-
permanecendo limitados a um setor, a um círculo muito determinado. Mas, em suas nário da existência individual e para que ele seja mais eficaz seus rituais
esferas respectivas, tais deuses ganharam determinação e duração, tendo com isto vão aumentando a complexidade.
também alcançado certa universalidade. É possível neste momento persuadir um Deus através de oferendas e
(Cassirer, 1972, p. 35). sacrifícios pessoais, ou esperar alguma retaliação caso suas especificidades
Imagem 13
acordo com o protocolo passa a ser essencial para a eficácia do deus.
(...) todo aquele que queira conseguir sua proteção e ajuda deve tomar o máximo
cuidado para ingressar realmente em seu círculo, para lhe conferir sua proteção e
ajuda deve tomar o máximo cuidado para lhe conferir seu “justo” nome. (...) Este modo
estereotipado de invocação deve repetir-se sempre; pois, cada serviço oferecido em
honra do deus, cada desejo dirigido a ele, só é acolhido por ele na medida em que
se der sob o seu devido nome. Por isso, a arte da correta invocação desenvolveu-se
em Roma a ponto de tornar-se uma verdadeira técnica sacerdotal, cujo produto, os
Indigitamenta, estava sob custódia dos pontífices.
(Cassirer, 1972, p. 72).
Imagem 14
escolástica medieval e o redesco- meio de legitimação e acesso à verdade. A partir do século XVII o imagi-
brimento das obras de Aristóteles, nário passa a ser banido dos processos intelectuais:
tudo isso foi novamente questio-
nado em função da presença O legado do universo mental, as experiências de Galileu (...) e o sistema geométrico
“terrorista” da expansão islâmi- de Descartes (...) representam um universo mecânico no qual não há espaço para a
ca, que com seu monoteísmo abordagem poética. A mecânica de Galileu e Descartes decompõem o objeto estudado
mais fresco e vigoroso (verifica- no jogo unidimensional de uma única causalidade: assim, tomando como modelo de
do até os dias de hoje), exigiu um base bolas de sinuca que se chocam, o universo concebível seria regido por um único
retorno à “fé original” cristã. determinismo, e Deus é relegado ao papel de “dar o empurrãozinho” inicial a todo
Buscando com isso uma concen- o sistema. O século XVIII acrescentará outra coluna da tradição aristotélica a esta
tração ideológica mais encorpa- herança cristã de cinco séculos de racionalismo incontornável: o empirismo factual
da a fim de reunir forças sufi- (que delimitará os “fatos” e fenômenos). Os grandes nomes de David Hume e Isaac
cientes para enfrentar o perigo Newton permanecem atrelados ao empirismo e com eles esboça-se o início do quarto
eminente da invasão. Isso foi momento (no qual ainda estamos mergulhados) do iconoclasmo ocidental.
conseguido restringindo os (Durand, 2004, p. 13).
demais cultos de santos. Depois
do “método da verdade” aristoté- Este quarto momento inaugurado pelo empirismo praticamente cimen-
lico este foi um segundo golpe do ta as bases daquilo que será a ideologia embrionária do Estado e das ins-
iconoclasmo ocidental. tituições capitalistas modernas, que culminaram nas revoluções liberais.
O
cional, nenhum outro sistema simbó- s avanços tecno-científicos e a postura analítica micro-cósmica
lico foi, até onde se tem conhecimento, da Ciência acabaram nos levando até as teorias da física moder-
tão influente no pensamento humano. na. Entre elas, a Teoria da Relatividade, as Teorias da Física
Imagem 17
Aproveitaremos para discutir estes Quântica e as Teorias do Caos são as mais significativas, pois ironicamen-
aspectos políticos e sociais contempo- te processam um novo movimento no imaginário do Ocidente. É a eclo-
râneos mais à frente em um capítulo são dos novos padrões artísticos, da contracultura, do retorno à busca da
específico, em função de sua relevân- verdade do sagrado e da verificação da impossibilidade de total determi-
cia para este estudo. nação da natureza através da matemática e do mecanicismo. Citamos dois
No cientificismo existe a ilusão de importantes autores a este respeito:
que o homem alcançou o status de
mestre da natureza. Religiosos come- Com a mecânica quântica, em 1927, veio um reconhecimento do autêntico
çam a aumentar o volume das acusa- indeterminismo que vigora na natureza. Desde essas épocas, tem havido um reconhecimento
ções de que os cientistas estariam Aparelhos Computacionais Hi-tech: I- gradativo de que a indeterminação existe não só no nível quântico, mas também em todos
Pod’s da Apple, Capacete e JoyStick da
“brincando de deus”. Dada à eficiência Siemens para Realidade Virtual. os níveis de uma organização natural. Há uma espontaneidade, um indeterminismo e uma
alcançada nesta busca (que o determi- probabilidade inerentes no tempo, na quebra das ondas, no fluxo turbulento, nos sistemas
nismo lógico empreendeu) da absoluta descrição da natureza; são criadas nervosos, nos organismos vivos, nos ciclos bioquímicos e em toda uma série de fenômenos.
as condições para o desenvolvimento de técnicas de comunicação como Até mesmo o velho modelo, favorito como representante da ordem matemática racional
a fotografia, a produção gráfica, o rádio, a televisão, o cinema etc. total, das órbitas dos planetas no sistema solar, revela-se caótico e imprevisível em temos
Graças a este efeito perverso (que subverte a lógica binária que lhe deu da física newtoniana. O mesmo indeterminismo está sendo agora reconhecido em todos
origem) da “civilização da imagem”, a que nos refere Durand (2004, p.31), os níveis da natureza. A mim me parece que esse estado de abertura da natureza, esse
culminamos todos estes meios finalmente no computador e na nova indeterminismo, essa espontaneidade, essa liberdade é algo que corresponde ao princípio
mídia: a Internet, a rede virtual que inaugura uma nova etapa na histó- do caos em seus sentidos intuitivo e mitológico. Os matemáticos têm utilizado a palavra
ria dos sistemas simbólicos humanos. Etapa esta que discutiremos espe- caos em vários sentidos técnicos, e não é totalmente clara para mim a maneira como esses
cialmente no próximo capítulo deste estudo. modelos técnicos de sistemas caóticos correspondem às noções intuitivas de caos.
(Sheldrake in McK enna , 1992, p. 55).
Gerald Holton permite-nos perceber que, atualmente, e para explicar suas próprias
orientações, o pensamento científico vê-se constrangido a pedir auxílio ao mesmo imaginário
durante tanto tempo reprovado, no século XVII, pelo iconoclasmo das teorias originárias... No
próprio santuário da física, que esteve longamente voltado apenas para o seu mecanicismo,
as imagens irreconciliáveis da onda (contínua) e do corpúsculo (descontínuo) vêem-
se obrigadas a se associarem a um “mecanismo ondulatório”. Dessa forma, a precisão
62 Mitos Contemporâneos 63
científica não pode abrir mão de uma “realidade velada” (Bernard d’Espargnat), onde os Dizer que um modo de pensamento é desinteressado, e que é um modo intelectual
símbolos, estes objetos do imaginário humano, servem como modelo. de pensar, não significa que seja igual ao pensamento científico. Evidentemente que
(Durand, 2004, p. 71). continua a ser diferente em certos aspectos, e que lhe é inferior noutros. E continua a ser
diferente porque a sua finalidade é atingir, pelos meios mais diminutos e econômicos, uma
O argumento da lógica binária não é mais suficiente para explicar compreensão geral do universo – e não só uma compreensão geral, mas sim total. Isto é,
dinâmica social contemporânea. A criatividade, deste modo, é o que vem trata-se de um modo de pensar que parte do princípio de que, se não se compreende tudo,
dar substrato à constante renovação mitológica. Ela puxa o movimento não se pode explicar coisa alguma. Isto está inteiramente em contradição com o modo de
dialético à medida que novas soluções precisam ser desenvolvidas para proceder do pensamento científico, que consiste em avançar etapa por etapa, tentando
abarcar os dilemas advindos dos embates culturais. A criatividade que dar explicações para um determinado número de fenômenos e progredir, em seguida, para
emana da dramaturgia (interação) diária das personas precisa ser expres- outros tipos de fenômenos, e assim por diante. Como já disse Descartes, o pensamento
sa através de um meio. Quanto maior o alcance do meio, maior e mais científico divide a dificuldade em tantas partes quantas necessárias para resolver.
complexa será a sociedade abarcada pelos símbolos que difunde. (Lévi-Strauss, 1989, p. 31).
A única maneira de conservar uma tradição é renová-la em função das
circunstâncias da época. Quando o mundo se altera, a religião e a mitolo- Outro ponto a ser considerado é que este pensamento criativo está alta-
gia (ou os sistemas simbólicos) precisam se transformar. As diferentes mente vinculado ao momento de ócio, defendido por Domenico de Masi
sociedades buscam equilibrar as cargas dialéticas emanadas deste movi- (2000). No ócio é que surge o insight, o vislumbre do novo significado, a
mento em trágico e cômico, em riso e choro, em sagrado e profano, em nova associação suficientemente forte para ser compreendida e legitima-
classe dominada e dominante. da socialmente. O que nos dá uma boa percepção de como é que a socie-
O momento criativo é onde permitimos associar os signos certos a fim dade distribui às classes o tempo livre que lhes cabe. Não gostaríamos de
de recriar as parafernálias comunicativas, mitológicas e, sobretudo, lin- nos aprofundar neste mérito, no entanto, obviamente o tempo criativo
güísticas que operam e gerem, sendo esta sua função social, as institui- legítimo é permitido apenas às elites.
ções; sobretudo igrejas/ seitas e entidades que trabalham com mídia: Nestas características “universalizadoras” do pensamento mítico (de
publicidade, jornalismo, ficção, esportes e artes. Sabemos também que a que tudo precisa ser compreendido para que algo possa ser explicado)
criatividade eclode com muito mais força na cultura popular, já que ela estão representações do riso e do choro, do clímax orgástico social, do
precisa concentrar muito mais seus esforços para fazer frente ao gigantis- coro no estádio de futebol, da repetição da palavra de ordem, das calami-
mo do aparato comunicacional oficial. No momento criativo nos encon- dades e dos desastres compartilhados. Em outras palavras, esta é a sínte-
tramos legitimamente libertos das amarras sociais convencionais e salta- se necessária para que a identificação pessoal com os símbolos e imagens
mos para o universo simbólico com uma aleatoriedade associativa que sejam ótimas para toda uma população em questão.
ricocheteia nas possibilidades das sinapses cerebrais. As sociedades descrevem as suas próprias histórias e mundos, ou
Aquilo que Lévi-Strauss (1976) chama de pensamento desinteressado melhor, suas próprias versões de história, adequadas para a manutenção
em seu Totemismo ou O pensamento selvagem se confunde com o que conhe- da classe dominante e do sistema em sua posição. Replicando a ideologia
cemos como livre associação de idéias (fundamental para o brainstorming nos mais criativos suportes e designs, para os mais repetidos conceitos e
corporativo) ou a maiêutica (“parto de idéias” dos gregos socráticos). No objetivos, a classe dominante consegue se manter vinculada ao poder
momento que abrimos mão da tradição por uma postura criativa, que tem material/ simbólico. Já que é vetado à classe subjugada legitimar o valor
a finalidade de totalizar uma compreensão total do universo ou de algum da sua cultura, ela é por esta relação assim denominada subcultura. Desta
domínio, o símbolo é “negligenciado” de suas associações convencionais forma, a comunicação e o pensamento humano evoluí em complexidade
na linguagem codificada e são permitidas as alegorias e licenças poéticas à medida que precisa criar novos códigos para de prevenir o acesso da
para que dinâmica sistêmica prossiga em seu fluxo: subcultura aos meios de dominação.
Imagem 21
impacto das imagens proporciona-
das pelo incidente, mas principal-
mente pelo seu significado contex-
tual: as torres eram materializações
simbólicas ultrajantes para guerra
islâmica contra o capitalismo. É cla-
ro que não podemos esquecer que
o ataque foi muito mais amplo, mas
os outros alvos parecem-nos agora
secundários, se pensarmos na rele-
vância de um ataque contundente
Imagem 23
ao que se traduz como “Centro
Comercial do Mundo”. Exatamente
o edifício que se pretendia sede,
templo do mercado globalizado.
Entendemos que este ato não seja
suficiente para alterar um sistema
ideológico e seus mitos, mas é com
certeza uma das primeiras provi-
dências a serem tomadas em tais
ocasiões históricas. Da mesma for-
ma como uma camiseta de futebol
Brazões medievais foram abolidos pela Assembléia Constituinte durante a Revolução Francesa. pode ser queimada como forma de
agressão simbólica pela torcida Estátua da liberdade e World Trade Center
em Chamas no dia 11 de Setembro.
feudalismo”. O uso de brasões foi abolido. adversária, ou uma bandeira é reco-
Assim uma nova iconografia sempre surge para ilustrar e representar novos lhida e outra hasteada assim que é
tempos. Para ilustrar este fato, temos o romantismo francês e suas grandio- efetivada a tomada de território ao final de uma batalha. O processo de câm-
sas composições dramáticas. Um exemplo destacável poderia ser a alegoria bio ideológico opera no movimento dialético, criando significados opostos
da “liberdade”, antropomorfizada em mulher e trajando vestes à moda clás- para um mesmo significante, um deles oficial e outro profano.
sica grega. Sua importância era tão grande enquanto ícone do movimento Dessa forma, uma alteração na linguagem (estrutura básica na cons-
revolucionário que ganhou inúmeras representações em telas e estátuas – trução de uma sociedade) acarretará mudanças, acertos, gambiarras e
onde o exemplo mais emblemático é a enorme obra presenteada pela França mesmo supressão e proibição de mitos e símbolos. Compreendemos que
aos Estados Unidos e ancorada em Manhattam: a estátua da liberdade. o mito é um sistema semiológico segundo, operando sempre metaforica-
Aliás, bem próximo de onde se encontra esta famosa estátua, um outro mente com a linguagem, deslocando-se de um nível o sistema formal das
grande símbolo foi destruído ao vivo worldwide e desencadeou uma guerra significações imediatas.
ideológica contra inimigos sem rostos ou pátria: os “terroristas islâmicos fun- Lévi-Strauss nos diz que o mito é “uma magnífica lente na maneira
damentalistas”. O ataque ao World Trade Center sem sombra de dúvidas é como o homem sempre pensou” (L évi-Strauss in Wiseman, 2000, p. 134).
um momento histórico, não tanto pelo espetáculo trágico-midiático e o Para ele o mito era o verdadeiro caminho para a compreensão do incons-
(...) tenho a sensação de que a ciência moderna, na sua evolução, não se está a
afastar destas matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada vez mais reintegrá-
las no campo da explicação científica. O fosso, a separação real, entre a ciência e aquilo
que poderíamos chamar pensamento mitológico, para encontrar um nome, embora não
seja exatamente isso, ocorreu nos séculos XVII e XVIII. Por essa altura, com Bacon,
Descartes, Newton e outros, tornou-se necessário à ciência levantar-se e afirmar-se
contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a
ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos,
cheiramos, saboreamos e percebemos; o mundo sensorial é um mundo ilusório, ao
passo que o mundo real seria um mundo de propriedades matemáticas que só podem
ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos
sentidos. Este movimento foi provavelmente necessário, pois a experiência demonstra-
nos que, graças a esta separação – este cisma, se quiser –, o pensamento científico
encontrou condições para se auto-constituir.
(Lévi-Strauss, 1989, p. 18).
73
3.1 Enunciação na Internet:
Conceitos e Aplicações
A
pós a introdução dada no capítulo passado sobre as origens dos
sistemas simbólicos e suas relações com a atuação social huma-
na, procuraremos, neste capítulo, abrir a discussão destes temas
no nosso contexto cultural contemporâneo. Para isso, será necessário
compreender como se dá enunciação simbólica nestes novos meios.
Todo discurso se dá na interface de um emissor e receptor dentro de
um dado espaço-tempo. Entender os mecanismos enunciativos de um
computador significa entender os processos de codificação internos das
mensagens neste suporte como uma das formas de mediação da comuni-
cação entre emissores e receptores.
Nesse sentido, as contribuições da enunciação lingüística são, sem
sombra de dúvida, lugares de partida para se pensar a enunciação midi-
ática computacional, que em suas especificidades demanda a compreen-
são dos mecanismos internos de codificação, enquanto suporte/ espaço
do processo das comunicações virtuais mediados pelo computador.
Desse modo, um longo caminho precisou ser percorrido pelo conheci-
mento humano até que as máquinas fossem aperfeiçoadas para a transmis-
são de informação, dados e, posteriormente, expandidos em textos, ima-
gens, sons, vídeos e outras infin-
Imagem 24
dáveis aplicações.
Um dos primeiros passos para
o avanço destas técnicas certa-
mente está no desenvolvimento
de um sistema binário suficiente-
mente eficiente para a representa-
ção dos símbolos sociais. O siste-
ma de notação binária representa
a “linguagem universal” para a
mecânica e eletrônica porque
pode codificar diferentes infor
mações em um modelo reconhe Medalhão de Leibnitz, base de
números binários em 1718.
cido e computado por uma máqui
Imagem 26
Imagem 27
na. O reconhecimento de que as propriedades mais importantes das ope-
rações binárias eram, acima das aritméticas, as lógicas; permitiu um gran-
de salto no desenvolvimento dos computadores.
Ainda que argumentemos que, em sua camada mais interna, um sis-
tema de computador não seja nada além um artefato desenvolvido com o
objetivo de estocar e manipular informações codificadas de maneiras con-
venientes, este sistema estará sempre sujeito a uma análise semiótica.
Todas suas outras camadas operam símbolos que podem ser interpreta-
dos pelos diversos grupos de profissionais que os manipulam.
As Primeiras Imagens Digitais: impressão das fotos
da Mariner IV em números binários; Ranger VII,
There are always texts that must be interpreted as statements or prescriptions Imagens da Lua; Mariner IV, imagens de Marte.
about some present or future state of the system. As we change level, the concepts
signified by the texts change. On the lower levels, the meaning of the signs are related
to the physical parts of the machine, like registers and storage cells. As we ascend, the Depois de operar palavras, foi vez das imagens começarem a entrar
texts are interpreted differently, we move away from a physical interpretation, and new dentro da dinâmica dos processamentos computacionais. A digitalização
software concepts appear, like run-time, stacks, heaps, and variables. A total picture of e codificação binária de imagens, ao que tudo indica, tiveram origem com
the whole system will depict semiotic activities from the top down to the very bottom a necessidade e dificuldade das missões espaciais em compor imagens
of the system. A computer system can be seen as a complex network of signs, and que pudessem ser retransmitidas por sondas até a terra. As primeiras ima-
every level contains aspects that can be treated semiotically.2 gens digitais eram compostas por duzentas linhas e cada linha compos-
(A ndersen, 1992, p. 5). ta por duzentos pontos. Cada ponto desta imagem (pixels ou picture ele-
ments) era gravado em um código, que os descreviam através de seqüên-
Mesmo assim ainda existe um abismo entre este princípio e o que cias de “zeros” e “uns”. Assim, para branco (0) tínhamos “000000” e para
vivenciamos. É muito interessante que computadores possam calcular e preto (63) “111111”. Cada figura era então constituída de quarenta mil
operar notações binárias, mas uma outra etapa precisa ser alcançada para pequenos pontos codificados em duzentos e quarenta mil (240 000) bits
que eles possam processar outros níveis mais relevantes de informação. de código binário que era transcrito numa fita magnética quando envia-
A primeira delas talvez seja a codificação dos símbolos do alfabeto, moven- do por ondas eletromagnéticas até a terra, onde era decodificado. A títu-
do o escopo de atuação destes sistemas computacionais para o nível das lo de comparação, podemos citar o fato de que, atualmente, para a com-
palavras. Muitos modelos foram propostos até que se chegasse no padrão posição destas imagens computadores pessoais processam pixels e mati-
ASCII (American Standard Code for Information Interchange), atualmente zes cromáticas na ordem dos Megabytes.
compartilhado universalmente pela indústria de computadores e basea- No entanto este não é o único avanço que possibilitou às imagens
do em 8 bits de informação binária. computacionais atingirem tal grau de complexidade. A indexação des-
tes bitmaps (mapas de bits) foi também indispensável para que elas
2. Sempre há textos que precisam ser interpretados como declarações ou prescrições sobre o presente pudessem ser úteis enquanto dados manipuláveis. Inclusive, a habili-
ou futuro estado do sistema. Ao trocarmos de nível, os conceitos significados pelos textos mudam.
Em níveis ainda mais profundos, os sentidos dos signos estão relacionados com as partes físicas da dade manipulativa trazida pela indexação provou ser etapa essencial
máquina, como registradores e células de armazenagem. Ao subirmos, os textos são interpretados para a explosão do cyberspace e da Internet. A expansão da rede até os
diferentemente, nos afastamos da interpretação física, e novos conceitos de software aparecem
como runtime, pilhas, alocação de memória e variáveis. Uma representação total do sistema inteiro principais fluxos de comunicação da sociedade, com o crescimento
vai mostrar atividades semióticas do topo à base do sistema. Um computador pode ser visto como
uma complexa rede funcional de símbolos que em todos os níveis possuem aspectos que podem ser
exponencial verificado na sua trajetória, só foi possível quando sinais
tratados semioticamente. de trocas eletrônicas puderam ser ao mesmo tempo mais complexos
Imagem 29
A
ficado simbólico. Nossa proposta consiste em analisar a enunciação dos o pensar na relação entre os símbolos computacionais enquanto
conteúdos simbólicos destas novas ferramentas para determinar quais os “sistemas”, ou ainda, enquanto propriedade de um grupo social
conceitos “clássicos” de comunicação que podem ser contemplados na e não de uma mente particular, parece não haver razão para
dinâmica enunciativa deste sistema simbólico contemporâneo. excluí-los do estudo semiótico tradicional apenas por apresentarem-se
sob um novo suporte. Os símbolos continuam a ser nossos veículos de
cognição individual, bem como os meios que utilizamos para interagir
com outras pessoas e objetos.
Certamente tudo o que já foi discutido sobre a imagem, o imaginá-
rio, a linguagem e a cultura até este momento do trabalho precisam
novamente ser levados em conta. Inclusive o que vimos sobre a estru-
tura comunicativa social, sobre os sistemas ideológicos e sobre as traje-
tórias simbólicas será imprescindível para a abordagem que pretende-
mos fazer neste capítulo.
Sistemas computacionais são desenvolvidos por seres humanos, para
seres humanos e todas as estruturas comunicacionais desta relação pos-
suirão correlatos verificáveis na nova mídia. O desenvolvimento das téc-
nicas e das rotinas de programação proporcionou que muitos termos da
lingüística fossem aplicados na codificação funcionais dos computado-
res. Estes termos usados muitas vezes de forma até mesmo descuidada,
ainda assim conservam alguns significados originais, mesmo quando
aplicados às novas condições exigidas pelas características intrínsecas
ao suporte.
Como exemplo ilustrativo podemos citar o emprego do termo “arqué-
tipo”. Em linguagem de programação ele se refere a expressões comu-
táveis entre várias linguagens, a partir de um domínio de conteúdos
padrão, na forma de declarações limitadas estruturalmente por um
modelo referencial. São expressos, com igual rigor, em geral para pro-
porcionar maior re-utilização, embora especializados na inclusão de
particularidades locais de um sistema programado. Eles acomodam
quaisquer números de linguagens e terminologias necessárias. São
imprescindíveis para práticas saudáveis de programação e para a inte-
gração entre sistemas.
4. A linguagem computacional age como um canal extra – ela tem propriedades estruturais
similares a outros meios de comunicação, assim, correlações de elementos em sua estrutura Although systems designers may not be van Gogh’s, they are faced with similar
podem ser estabelecidas. A linguagem computacional, em essências séries binárias de operações problems when building systems: should we base our system on a metaphor that
lógicas e aritméticas, pode ser compreendida por suas contextualizações em outros canais
– especialmente, mas não limitados, aos campos verbais e visuais. Podemos nos comunicar users understand in order to ensure understandability, but running the risk of
com computadores entrando comandos verbais; o verbal se transformará em processo digital, constructing a system that really do not give users new opportunities, or should we
retornará e converterá em qualquer output – verbal, visual, táctil, sonoro ou outro disponível.
(...) A estrutura da linguagem computacional é similar à estrutura visual, verbal ou de qualquer invent new ways of doing and looking at things, risking that nobody will understand
outra língua; elementos estruturais interagindo numa composição. Os elementos podem então
it? In fact, it is possible to stretch the analogy even further: it is not only sculptors
ser organizados para trabalharem juntos em um ambiente lógico, bem como em sua forma verbal
ou visual. that give form to substance. Designers and programmers of computer systems do
A
fim de entender estes novos sistemas simbólicos na sociedade pre-
cisaremos verificar quais as instituições que os introduziram nes-
ta escala global de consumo. Sabemos que, caso a tecnologia com-
putacional ficasse restrita a pequenos grupos, não poderíamos verificar
tamanha pluralidade de sistemas. Foi com a popularização de computa-
dores pessoais, consoles de jogos eletrônicos e de aparelhos hi-tech que
expandiram as possibilidades dos sistemas simbólicos computacionais.
O contexto da produção em massa destas máquinas faz parte de uma
dinâmica econômico-social ampla. Inicialmente utilizados com finalida-
des militares, muito rapidamente os computadores passaram para o
ambiente corporativo. E assim sucessivamente, até que os avanços na
miniaturização e barateamento dos custos dos componentes eletrônicos
abrissem espaço para computadores pessoais, laptops e toda a gama que
hoje temos de produtos multifuncionais.
Entendemos que qualquer aparato computacional e comunicacional é
em sua essência um produto cultural. O processo material de sua produ-
ção se insere no contexto das instituições corporativas, que por sua vez
compartilham da ideologia e dos símbolos do capitalismo em todos os
níveis semióticos. É a gênese do que hoje entendemos por era pós-indus-
trial, cujas tendências são agrupadas sob o nome de pós-modernismo.
As formas da publicidade e da propaganda neste ambiente atuam
contexto materializando as imagens e símbolos do sistema capitalista
em seu presente estágio, que se expandiu especialmente após o final da
Guerra-Fria contra o sistema comunista soviético. Além de informar
sobre os produtos à disposição dos consumidores, ela se estabelece
como um gênero híbrido na medida em que se faz presente em todos os
espaços da produção cultural sob as mais diferentes formas.
A propaganda, como já indicou Mattelart (1989, p. 139-162), está pre-
sente no mundo midiático, nas artes, nos esportes e por todo nosso coti-
diano: publireportagens, publicidade em programas, testemunhais, mer-
chandising, patrocínios, promoções, licenciamento de personagens de
ficção para estes fins (spin off), embalagens, e mais recentemente os web-
Imagem 33
Assim, o que muitos chamam de pós-modernidade é o resultado
do processo histórico percorrido pelo sistema capitalista, que passou
pela modernidade baseada na razão Iluminista quando se deu a for-
mação da sociedade burguesa. Antes pautado na organização políti-
ca dos Estados-Nacionais, o sistema capitalista, pela sua convenien-
Imagem 34
te expansão econômica, acabou por enfraquecê-los, determinando
novas formas de perceber a relação entre os indivíduos e entre seus
espaços e tempos.
A categoria espaço ganha um caráter de não-lugar, assim como o
tempo assume uma certa atemporalidade (TRINDADE in BARBOSA,
Imagem 35
2005, p. 90), decorrentes do fato de que os produtos deste sistema glo-
bal têm suas matrizes de matérias-prima de origens distintas, cada
parte do processo acontece em um local, assim como os serviços de
empresas multinacionais que atuam, através de funcionários e escri-
tórios, em suas várias instâncias no mundo.
Anúncios Publicitários Externos em Metrópoles: Nova Iorque, Tóquio, São Paulo e Londres.
Dessa forma, a única coisa que permanece intacta nesses bens de consumo
corporation would have to adopt variations on the theme of diversity as their
mundiais é a determinação do valor simbólico dado pela marca, que pode ter uma
brand identities. 9
origem nacional, mas que, pela sua ampla utilização mundial, passa a ser um
(K lein, 2002, p. 112).
patrimônio universal, sem pátria e ao mesmo tempo pertencente a todos os lugares.
É a contradição dos lugares e não-lugares da atual modernidade.
O sonho de diversidade em alguns critérios se verifica quando pensa-
(Trindade in Barbosa , 2005, p. 92).
mos nas grandes metrópoles. Estes espaços mundiais são encontrados em
cidades como Hong-Kong, São Paulo, Paris, Nova York, Tókio, Nova Deli,
A coexistência e simbiose de valores, hábitos e costumes locais e
Frankfurt, Londres, Singapura, Cidade do México e tantas outras que
nacionais muitas vezes contraditórios é um dos elementos mais rele-
poderiam aqui se encaixar. Estes aglomerados urbanos são os territórios
vantes nesta análise. Isso gera a tendência, bastante acentuada nos últi-
conquistados pela “mundialidade” que coexiste com os territórios de
mos anos, da incansável busca das empresas por identidades corpora-
expressão nacionais e regionais excluídos pela globalização.
tivas apoiadas na idéia de diversidade, seja ela cultural, comportamen-
Outro espaço importantíssimo onde a mundialização dos símbolos
tal ou qualquer outra. Os conceitos que constituem as identidades
acontece é o espaço virtual. Lá ela encontra a situação ótima para o seu
empresariais são elaborados, em situações ideais, a partir de pesquisas
desenvolvimento:
de opinião e dados mercadológicos, que buscam afinar a comunicação
empresarial com as vontades, os desejos e as necessidades dos públi-
To see the birthplace of this kind of brand ambition, you have to go online,
cos a que se destinam.
where there was never really any presence of a wall existing between editorial and
(…) consumer companies would only survive if they built corporate empires
9. (…) empresa de bens de consumo apenas sobreviveriam se construíssem seus impérios corporativos
around “brand identities”. (…) So, of course, if the market researchers and cool em torno de “identidades de marca”. (...) Então, obviamente, se todos os pesquisadores de mercado e
caçadores de tendência atestam que diversidade é a característica chave para o trato deste contingente
hunters all reported that diversity was the key character trait of this lucrative
demográfico lucrativo, havia apenas uma coisa a ser feita: qualquer corporação que pensasse olhando
demographic, there was only one thing to be done: every forward-thinking para o futuro adotaria variações sobre o tema da diversidade em suas identidades corporativas.
C
omo a imagem sempre foi desvalorizada como linguagem científica para
A ausência de barreiras no que concerne autenticidade, autoridade, e par- explicar o mundo, ela ainda não inquietava a consciência moral do
cialidade informativa abre espaço para enunciações publicitárias inovadoras, Ocidente que se acreditava vacinado por seu iconoclasmo endêmico. A
condensando diversas técnicas e subterfúgios, que buscam eficiência merca- produção obsessiva de imagens encontrava-se delimitada ao campo do “distrair”.
dológica a partir das possibilidades dos trazidas pelos novos suportes. Todavia, as difusoras de imagens – digamos as “mídias” – encontram-se onipresen-
Entre elas, podemos citar, como exemplo, o que se compreende atual- tes em todos os níveis de representação do homem ocidental ou ocidentalizado.
mente como marketing viral: uma estratégia de marketing que busca a divul- A imagem midiática está presente desde o berço até o túmulo, ditando as
gação de espaços da rede por meio da participação voluntária de usuários intenções de produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da
que querem compartilhar uma informação. Lançando mão destas e muitas criança, nas escolhas econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas
outras estratégias mercadológicas como os teasers, promoções de curta dura- tipológicas (de aparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos e
ção, jogos online especialmente desenvolvidos, e outras menos ortodoxas privados, às vezes como informação, às vezes velando a ideologia de uma pro-
como os hoaxes e ARG’s (Alternate Reality Games); as empresas atraem con- paganda, e noutras escondendo-se através de uma publicidade sedutora. A
sumidores e anunciam seus produtos. O que fica claro é que as empresas importância da manipulação icônica (relativa à imagem), todavia, não inquie-
não estão apenas vendendo seus produtos online; elas estão vendendo um ta. É dela que dependem todas as outras valorizações – das escolhas feitas nos
novo modelo de relacionamento das pessoas com a mídia. Através do patro- experimentos de “manipulações e melhoras” genéticas e nas cirurgias plásti-
cínio de entretenimento, produção cultural e apoio corporativo, associam- cas cosméticas, inclusive.
se aos materiais simbólicos e culturais produzidos e que são considerados A diferença entre produto e marca neste sentido é fundamental. Produto
relevantes para suas ambições e metas corporativas. é algo produzido em uma fábrica; uma marca é algo comprado por um con-
sumidor. Máquinas quebram, carros enferrujam, pessoas morrem, o que
sobrevive ao tempo no capitalismo são as marcas, os símbolos que compre-
endem a fatia mais grossa dos patrimônios corporativos da atualidade.
What was crystallized in those moments when pop culture bridged the wartime
divide, however, was that even if there exists no other cultural, political or linguistic
common ground, Western media have made good on the promise of introducing the first
truly global lexicon of imagery, music and icons. If we agree on nothing else, virtually
everyone knows that Michael Jordan is the best basketball player that ever lived.11
(K lein, 2002, p. 175).
10. Para ver o local de nascimento desta ambição corporativa, é preciso ir online, onde nunca realmente
ouve a presença de uma barreira entre o editorial e o publicitário. Na web, a linguagem de mercado 1. O que ficou cristalizado nestes momentos em que a cultura pop conectou o que tempos de
alcança seu nirvana: publicidade gratuita da publicidade. Para a maior parte dos casos, a versão online guerra dividiram, no entanto, foi que mesmo que não existisse outro arcabouço cultural, político
das lojas se apresentam de maneiras similares a suas versões impressas ou televisivas, mas muitos ou lingüístico comum, a mídia Ocidental tem cumprido a promessa de introduzir o primeiro léxico
estabelecimentos virtuais também usaram a rede para desfocar o limite entre editoriais e publicidades global para o imaginário, a música e os ícones. Se não concordarmos em mais nada, virtualmente
muito mais agressivamente do que poderiam fazê-lo no mundo não-virtual. todos sabem que Michael Jordan é o maior jogador de basquete que jamais existiu.
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outras. Ainda mais viáveis financei-
ramente para o crescimento dos sis-
temas simbólicos do que os templos
físicos, ainda existem os templos e
espaços virtuais construídos e dis-
poníveis na rede.
Para entender finalmente como
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Tatuagens Corporativas: se processam os mitos corporativos,
Warner Bros., Mizuno,
Nike e Apple. precisamos pensar no significante
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do mito enquanto totalizador de
sentido e forma, não esquecer de sua
ambigüidade e reagir de acordo com
o seu mecanismo cultural constitu-
tivo. Precisamos compreender a
dinâmica própria dos contextos
The idea of harnessing sport shoe technology to create a superior being – of Michael
mitológicos. Para nos tornarmos lei-
Jordan flying through the air in suspended animation – was Nike mythmaking at work.
tores mitológicos eficientes, precisa-
These commercials were the first rock videos about sports and they created something
mos vivê-los simultaneamente como
entirely new. As Michael Jordan says, “What Phil [Knight] and Nike have done is turn Templos de Corporativos: Nike Town em
uma história verdadeira e irreal. Berlin e Virgin Mega Store em Londres.
me into a dream”.14
Precisamos aceitar e pensar sobre
(K lein, 2002, p. 52).
como acolhemos os mitos que identificam nós mesmos, porque em qual-
quer outro caso a intenção do mito será demasiado obscura para que seja
Utilizando estes heróis (vindos da indústria esportiva, cinematográfi-
eficaz, ou demasiado clara para que se acredite nele.
ca, da telenovela ou da animação, preferencialmente) os enunciados con-
O mito nada esconde ou ostenta: deforma. O mito não é uma mentira
tidos nas publicidades reproduzem seus valores através de todas as mídias
nem uma confissão: é uma inflexão. Ele aparece para firmar o compro-
quantas consigam articular.
misso de um grupo, ele é o próprio compromisso: encarregado de trans-
Da necessidade de articular mídias para um maior impacto comunica-
mitir um conceito intencional, o mito só tropeça nos limites meta-lingü-
tivo, surgem os “templos corporativos”. Virtualmente todas as empresas
ísticos, porque a linguagem ou lhe eclipsa em uma metáfora, ou lhe des-
de bens de consumo e entretenimento que vinham construindo a ima-
mascara. A elaboração do sistema semiológico segundo a que nos refere
gem de suas marcas através do marketing, da sinergia entre mídias e de
Barthes em sua obra Mitologias (1993), é o que permite que o mito escape
patrocínios, agora procuram edificar suas próprias lojas de marca. Para
a este dilema, naturalizando-o.
estas companhias, lojas multi-marcas tornaram-se antiéticas segundo os
Este é o princípio do mito: transformar a história em natureza.
cada vez mais estritos princípios de gerência de marca. São os casos de
Compreendemos assim por que, aos olhos dos consumidores de mitos, a
corporações como Nike, Diesel, McDonald’s, Virgin, Disney e tantas
intenção, o apelo dirigido ao homem pelo conceito, pode ser manifesto
sem parecer interessado. O que se faz com o que a fala mítica profere é
14. A idéia de encaminhar a tecnologia de calçados esportivos para a criação de um ser superior
– de Michael Jordan voando suspenso no ar por animação – é a gênese mitológica da Nike perfeitamente explícito, mas automaticamente petrificado de naturalida-
trabalhando. Estes comerciais foram os primeiros vídeos de impacto sobre esportes e eles criaram
algo inteiramente novo. Como Michael Jordan disse: “O que Phil [Knight] e a Nike fizeram foi
de; não é lido como hipótese, é tomado como razão. Tudo se passa quan-
transformar-me em um sonho. do acatamos um sistema simbólico como se a imagem arquetípica provo-
A
cente. E não porque suas intenções estejam ocultas, se estivessem os mitos realidade virtual é uma tecnologia que permite a um usuário inte-
não seriam eficazes. ragir com um ambiente simulado por computador, seja verossí-
O que permite a um leitor absorver um mito inocentemente é o fato de mil ou fantástico. A maioria dos ambientes de realidade virtual
não se perceber nele um sistema semiológico (sistema de valores), mas são experiências ainda primárias, apresentadas por de meio telas de com-
sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência. Ele vê putadores. No entanto, algumas simulações incluem ainda outras infor-
uma espécie de rede de processos causais: o significante e o significado mações sensoriais, como o som através de microfones e head-phones (que
têm relações naturais e não políticas, sociais, etc. A semiótica vê a mito- isolam o sujeito acusticamente).
logia diferentemente do que a vê o consumidor de mitos, este a enxerga Algumas ainda mais avançadas incluem dispositivos muito mais sensí-
como um sistema factual a lhe explicar convincentemente a natureza das veis ao tato. Usuários podem interagir com um ambiente virtual tanto atra-
coisas do mundo, a semiótica observa os elementos simbólicos que cons- vés do uso de periféricos convencionais como teclado e mouse, ou aparelhos
tituem o discurso, bem como suas inter-relações, instrumentais lingüís- mais recentes como joysticks, tablets e luvas com sensores entre outros. Os
ticos, suportes. ambientes simulados podem ser verossímeis ao mundo real como, por exem-
Com estas últimas elucidações, fornecidas pelo estudo de Barthes, per- plo, simulações para pilotos e treinamentos de combate, ou diferir dele em
cebemos finalmente que na contemporaneidade o consumo assume a fun- absoluto, como nos jogos para entretenimento. Na prática, ainda é muito
ção do sagrado, uma vez que é ele quem satisfaz as necessidades irracio- difícil criar experiências virtuais de alta fidedignidade com a realidade físi-
nais do homem. Na mesma medida, ocorre a sacralização das mercado- ca, principalmente em função das limitações técnicas no poder de proces-
rias. O mito de outrora, apoiado na Ciência, Arte e Religião, hoje migra samento necessário para gerar estes sistemas, na resolução das imagens e na
e apóia-se no consumo e na Indústria Cultural para disseminar seus sím- banda de comunicação que não comportam tal volume de dados. Mas já é
bolos e valores socialmente. esperado que estas limitações técnicas sejam eventualmente ultrapassadas
conforme as tecnologias amadureçam em seu contexto produtivo, tornan-
do-se mais poderosas e viáveis financeiramente com o passar dos anos.
Com os atuais limites tecnológicos, a visão e a audição são os dois sen-
tidos melhores empregados nas simulações consideradas de alta qualidade.
Embora existam esforços no sentido de simular cheiros e gostos fisicamen-
te através de cápsulas que os produzam quimicamente, estes experimen-
tos tendem a serem inviáveis na medida em que se aumenta a gama e com-
plexidade de fragrâncias a serem simuladas (perfumes, por exemplo).
Desse modo, os pesquisadores buscam, objetivando simulações mais
convincentes e reais, acumular seus esforços para conseguirem um meio
de manipular os sentidos e sensações através de aparatos que atuem dire-
tamente no cérebro humano, órgão responsável pela organização e atri-
buição de relações entre os símbolos culturais.
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Luva com sensores de movimentos e experiências de realidade virtual.
ções das quais não teríamos acesso caso não tivéssemos tomado as esco-
lhas que tomamos no curso de nossa história particular. Embora as expe-
riências de virtualidade trazidas pelas substâncias enteogênicas diferen-
Criação de avatar e
cenas do jogo ciem em muitos aspectos das trazidas pela tecnologia capitalista, o espaço
Second Life.
virtual se apresenta como um sinônimo de inexistente, imaginário, não-
verdadeiro, mas isso não quer dizer inverossímil, muito pelo contrário. Esta
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107
Produção Mitológica
4.1 Contemporânea na
Coleção Puma French 77
C
hegamos finalmente na fase de análise mitológica do nosso tra-
balho. Obviamente poderíamos escolher inúmeros exemplos de
mitogênese na sociedade contemporânea. A comunicação cor-
porativa nunca desfrutou, como já vimos, de tantos poderes para este fim
criativo. Porém, alguns critérios na escolha do caso específico para nos-
so estudo certamente foram aplicados. Precisávamos de um exemplo de
campanha de marketing onde as ferramentas estivessem afinadas com as
tendências apontadas nas características da pós-modernidade.
Tínhamos que selecionar corporações com contextos de atuação que
pudessem ser, de fato, considerados globais. Depois, dentre estas, sele-
cionar produtos cuja função social e aquisição estivessem relacionadas
clara e diretamente com o processo de identificação social dos sujeitos.
Era necessário que a comunicação em questão se dedicasse a construir
uma realidade particular, que esta realidade se prestasse a explicar ideo-
logicamente algo que aconteceu na realidade comum. Era imprescindível
que os produtos, ao serem comprados, identificassem um grupo de pes-
soas, que compartilha e convive com estes símbolos no seu dia-a-dia de
alguma maneira. As vivências mitológicas necessárias para a mitogêne-
se, constituídas pelos diversos mitemas, precisavam estar evidentes na
campanha e acessíveis a os seus públicos. Precisávamos ainda que a cam-
panha escolhida fosse articulada e integrada em uma pluralidade sufi-
ciente e eficiente de mídias e materiais promocionais, a serem utilizados
como corpus para os fins pretendidos pelo nosso trabalho.
Escolhemos, por estas razões, analisar a campanha de lançamento de
uma coleção de roupas da reconhecida marca Puma. Sob o título “French
77”, os produtos e os conceitos da coleção foram concebidos a partir de uma
história que teria acontecido (suposição baseada em fatos jornalísticos) nos
bastidores do mundo do tênis profissional. Todos os materiais analisados
e referenciados encontram-se nos anexos I, II e III deste trabalho.
A narrativa conta uma passagem da vida de Guillermo Vilas, tenista
argentino, que no ano de 1977 foi a grande revelação mundial do esporte.
Recebendo da mídia o epíteto de “Touro dos Pampas”, ele era aclamado
C
São sobre estes elementos comunicativos, que constituem o sistema omo já discutimos anteriormente, o capitalismo global age cons-
simbólico presente nos materiais publicitários desenvolvidos para a cole- truindo verdades e realidades parciais que são difundidas pelos
ção, que pretendemos debruçar nossos esforços no próximo tópico des- mitos da publicidade em nossa sociedade. O sistema de símbo-
ta análise. Estaremos atentos especialmente ao website, pois além da los criado para a coleção “French 77” da Puma não faz por menos. A
enunciação na nova mídia ser uma dos focos do nosso trabalho, ele pra- integração das mídias para a comunicação da campanha certamente
ticamente sintetiza em seu conteúdo toda a campanha e contém a maior alcança seu objetivo e consegue ser percebida como uma unidade pelos
parte das informações verbais e visuais disponíveis aos consumidores. consumidores. Desta forma, o que se expressa em cada uma das peças
completa e enriquece o que se entende sobre o todo do conceito.
Assim, os spots de televisão e o website são os materiais-chave desta
análise, pois são eles que conseguem criar a representação do espaço
idealizado onde se leva a imaginação do consumidor assim que ele
adquire os produtos da marca. Este local é exatamente onde se pode
vivenciar o mito propagado pela campanha. Neste ambiente, desenro-
lam-se as ações relativas ao herói, esse é o seu domínio simbólico pro-
priamente expresso e o local onde seus atributos fazem-se eficazes.
Ali é o universo onde o mito é possível, onde se verifica o seu funciona-
mento. Podemos dizer que os produtos em merchandising nas peças publi-
citárias são transfigurados, dentro deste ambiente, nos próprios atributos
do herói Guillermo Vilas. As peças de roupa utilizadas na comunicação per-
mitem que se compreenda que são elas que possibilitam que qualquer um
desfrute do estilo de vida do herói, que qualquer um seja o herói.
Utilizar as roupas do comercial significa para o consumidor que ele
pertence ao universo criado pela Puma; logo, qualquer um que tenha
conhecimento do mito reconhecerá neste sujeito os atributos do herói em
questão. O consumidor apropria-se dos símbolos de modo antropofági-
co ao consumi-lo, criando com isso a sua própria identidade social. Esta
identidade será certamente reconhecida e legitimada em sua tribo ao ser
notado portando a indumentária que está associada ao herói.
Constituído por um fundo infinito neutro e branco, o espaço virtual
de “French 77” ganha tridimensionalidade nos spots de TV e no website
com plataformas de aspecto vetorizado (coloridas em tons claros e satu-
rados) que se movimentam ordenadamente (como num jogo de videoga-
C
hegamos assim ao final do nosso estudo. Procuramos no decor-
rer destes capítulos abarcar os aspectos semânticos do estudo das
imagens e entender como que o aparato comunicacional da socie-
dade contemporânea e a mitogênese (o processo de criação mitológica)
foi assumida pelas instituições corporativas no decorrer da história da
civilização ocidental.
Para estes fins, buscamos abordar a obra de alguns autores normalmen-
te estudados pela psicologia, antropologia, sociologia e lingüística, mas que
sem sombra de dúvida oferecem pensamentos e teorias importantíssimas
para o avanço das Ciências da Comunicação. Ainda que cada um destes
campos do conhecimento concentre seus esforços em sentidos por vezes
obtusos entre si, todos utilizam objetos comuns para suas análises: os sím-
bolos sociais. Os símbolos, como vimos, participam inexoravelmente da
existência humana não só pela necessidade que temos de utilizá-los em
todos os momentos de nossa existência, mas também por influenciarem os
aspectos da formação e do desenvolvimento dos indivíduos: sociais, cultu-
rais, psicológicos, ideológicos, cognitivos etc.
O capitalismo pós-industrial, o marketing global, o desenvolvimento
da Internet, a re-introdução do conceito de caos no senso comum, o retor-
no à busca do sagrado; tudo isso inaugura um novo momento na histó-
ria do imaginário e do pensamento humano no Ocidente. O processo de
sacralização dos produtos de consumo aumenta exponencialmente em
nossos tempos e a indústria cultural patrocinada por estas instituições
difunde valores que se chocam e, por uma questão de inércia, afastam do
palco principal do cotidiano os valores pátrios, regionais e/ ou religiosos
das comunidades aonde chegam.
Fatos como o aparecimento da literatura de auto-ajuda, da figura arque-
típica do homem-marca ou self-made-man e a cristalização do marketing
eleitoral nas plataformas das campanhas políticas anunciam a chegada des-
ta nova perspectiva de mundo. Antigas instituições milenares, como o
Estado ou mesmo a Família, parecem não serem mais tão eficientes como
outrora para atribuir significados aos contextos de vida enfrentados no dia-
119
a-dia dos grandes centros metropolitanos. As pessoas passam a se identifi- Esse arquétipo também se faz presente atualmente na política. Uma pes-
car e agregar de acordo com símbolos comuns, mas que não pertencem soa legitimamente reconhecida como self-made-man consegue seguramente
mais a um único sistema centralizador. A liberdade de escolha de ideolo- vantagens e maiores taxas de aprovação perante a opinião pública. O marke-
gias e a troca de sistemas, que em tempos não tão longínquos da história ting eleitoral inclusive vem se dedicando a isso, deixando de lado as tradicio-
ocidental era sinônimo de traição e falta de caráter em um sujeito, hoje pare- nais doutrinas políticas do liberalismo (como a esquerda, e a direita e deri-
cem indispensáveis para que o homem contemporâneo possa se situar a vados) e concentrando seus esforços comunicacionais para constituir candi-
qualquer instante em seu espaço social. Caracterizando uma sociedade que datos alinhados aos mesmos conceitos de diversidade que o mercado global
só pode ser compreendida pelo conceito de diversidade humana, situações precisou desenvolver para ser coerente com seus públicos específicos.
novas que emergem todo dia sem precedentes, jurisprudências e significa- Por outro lado, não podemos deixar de comentar nestas considerações
dos nesta confluência confusa de valores. finais o fato que a dinâmica dialética dos símbolos não se faz de rogada.
As auto-ajudas e os vídeo-games participam da sociedade contemporânea, No mesmo instante que o interesse das corporações procura sacralizar
cada um a seu modo, oferecendo uma narrativa possível para o universo secu- seus produtos, ondas no sentido contrário já profanam estes símbolos.
lar que deu origem às corporações e que não pode mais ser sustentado devi- Como exemplo claro deste aspecto citamos as cada vez mais ignoradas
do às proporções alcançadas pelo mercado global. Como o capitalismo pós- leis de direitos autorais que procuram proteger os usos, e decorrentes divi-
industrial jamais poderá tomar por completo o lugar da cultura base de um dendos, dos símbolos sociais. A pirataria de produtos da indústria cultu-
sujeito, na auto-ajuda e no universo dos jogos ele se permite – em favor da ral, a quebra de patentes, a reprodução não autorizada de marcas regis-
dominação simbólica em última instância – um sincretismo (normalmente tradas e a arte de guerrilha (rapidamente desvirtuada pelo marketing)
originário de culturas dominadas) para que as pessoas recuperem a espiritu- caracterizam, sem sombra de dúvidas, o uso profano que se faz dos mitos
alidade e um objetivo de vida além do consumo. Como alguns não podem corporativos na grande geléia cultural de nossos tempos. Estas condutas
mais ter fé nos valores e promessas do capitalismo, a auto-ajuda constrói uma trazem em si signos de resistência ao domínio dos sistemas corporativos.
espécie de limbo para o imaginário entre os símbolos do mercado global e São formas ilícitas, marginais, mas que são resultado direto das práticas
um qualquer sistema ideológico anterior este. Cabe aqui ainda lembrar das desiguais e monopolistas das instituições.
projeções feitas a respeito do desenvolvimento das realidades virtuais com- O trajeto antropológico dos símbolos sociais, a polarização deles entre
putacionais e as comparações que tecemos com os rituais tribais xamânicos, imaginário e código, entre sagrado e profano, presente no pensamento
hoje também redescobertos pela auto-ajuda. humano desde seu princípio, não foi alterado em suas características
Temos ainda o arquétipo do self-made-man que define sujeitos autodi- essenciais com a chegada deste novo momento histórico em que vivemos.
datas cuja produção de material simbólico é extraordinariamente acumu- As corporações certamente têm consciência da dimensão e do poder de
lada em pouquíssimo tempo. Essa maneira de alcançar prestígio e reco- suas atuações na sociedade, mas parecem não perceber a ossatura dos
nhecimento social parece ser atualmente a maneira mais rápida e eficien- malefícios que andam causando aos nossos próprios meios de existência
te para o sucesso. São inúmeros e não param de aparecer na mídia casos no planeta devido à corrida desenfreada por crescimento econômico.
de adolescentes nerds que ganharam fortunas repentinas com desenvol- Pelo conhecimento disso, gostaríamos de encerrar este trabalho propondo
vimento de ferramentas computacionais e idéias inovadoras para corpo- às corporações globais (instituições que hoje dispõem de tantos poderes mate-
rações, que lucram ainda mais do que pagam por isso. A possibilidade riais simbólicos quantos os necessários para dar vazão ao processo mitogênico
quase lotérica de achar o grande filão de atuação, de ser “abençoado” pela na sociedade) que se dediquem a construir, dar subsídio e apoio à construção
criatividade, de se “fazer” intelectualmente, profissionalmente e de ser de um imaginário mais ético e responsável. Um imaginário que contribua para
reconhecido financeiramente coloca-se questionavelmente como única a solução dos problemas que a sociedade enfrenta em função do próprio siste-
saída do sujeito para o seu sucesso no ambiente extremamente competi- ma capitalista pós-moderno. Só isso poderá fazer jus à abrangência tão impo-
tivo e voraz do mercado de trabalho contemporâneo. nente deste novo sistema simbólico que impera entre nós, homo symbolicus.
123
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pessoa espaço e tempo in Barbosa, Ivan Santos; Os sentidos da Publicidade:
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http://www.timesonline.co.uk/tol/news/uk/article378077.ece em 22/04/2007.
127
Anexo I
I love you too as I love everyone Eu te amo também como amo todas
Let the waves of inspiration Deixe as ondas da inspiração
Coming for their daily happenings Vir para seus acontecimentos diários
For they can move me Para que possam me levar
Then everyone placed bells into their homes Então todos colocaram campainhas em suas casas
But could anyone know that energy is brief? Mas poderia alguém saber que energia é breve?
How could this missed thing bring me Como pode esta saudade me trazer
back to you? de volta a você?
I was innocent alone Eu era inocente sozinho
Is anyone listening to the words you wrote? Tem alguém ouvindo as palavras que você escreve?
Else me? Além de mim?
Has anyone perceived the innocence of “well Alguém percebeu a inocência de “bem…
it’s over”? está acabado”?
Oh, Oh Oh, Oh
I know, I know… Eu sei, Eu sei…
I could have told you Eu poderia ter lhe contado
I know, I know, I know… Eu sei, Eu sei…
So this is when I could sit down and explain Foi então que pude me sentar e explicar o
what all this means que isso tudo significa
Is anyone listening to the words you wrote? Tem alguém ouvindo as palavras que você escreve?
Else me? Além de mim?
Has anyone perceived the innocence of “well Alguém percebeu a inocência de “bem…
it’s over”? está acabado”?
Banda: Mazarin
Álbum: We’re already there – 2005.
anexos 159