LATOURELLE, René. Teologia Da Revelação

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f,

1 TEOLOGIA
t DA REVELAÇÃO

Para a fecunda discussão na Igre-


ja, para o diálogo significativo com
os irmãos separados, para a re-
novação da teologia pastoral e por
outros motivos, temos necessida-
de de novo conhecimento da teo-
logia da revelação. Os costumei-
ros tratados apologéticos da reve-
lação, baseados em sua existên-
cia, só atingem as margens da
realidade. Em nossos dias urge a
necessidade de Uma teologia da
revelação que nos mostre a na-
tureza, profundidade e dimensões
do mistério. O livro do padre La-
tourelle oferece valiosa coopera-
ção no campo da teologia da re-
velação. É, , reconhecidamente, tra-
. .balho original.

\ 1

RENÉ LATOURELLE, S.J.·

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.01 REYELICAO
TEOLÓGICA - 5 \ EDIÇÕES
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PAULINAS
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Teológica - 5

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René Latourelle, S. J.
Professor na Universidade Gregoriana

Teologia da Revelação

Coleção TEOLÓGICA

1. - A lgre;a vive, L. M. Carli


2. - Tradição e progresso no cristianismo p6s-conciliar, H. Pfeil
3. - Teologia e Bíblia, K. Rahner
4. - O problema da Revelação, C. Tresmontant
5. - Teologia da Revelação, R. Latourelle
6. - Cristo diante de nós, Diversos **
. 7. - Existe uma moral cristã? Josef Fuchs
8. - Que devo fazer? Card. G. Garrone
9. - A Eucaristia, libertação do homem, Mário Cuminetti
10. - A lgre;a na crise atual, H. de Lubac
11. - A Mãe do Salvador, K. H. Schelkle
** Em preparação Edições Paulinas
Título original
Tbéologie de la Révélation
Tradução da 3~ edição ( 1969)
Desclé!;': de Brouwer, Bruxelles - Paris
Les Éditions Bellarmin, Montreal
Tradução de Flávio Cavalca de Castro, CSSR
Nihil obstat: Pe. Paulo Pazzaglini, ssp. - São Paulo, 20-11-1972
Imprimatur: t B. de Ulhôa Vieira, vig. ger. • São Paulo 22-11-1972

Deus não é um Presente ausente. "Muitas vezes e de


muitos modos falou Deus outrora a nÓssos ais, -~l?r~-
~ ; nestes ú timo_s tempo§.,_. f~l9u a nós no Filho" ( HeEr
1,1 ) ~ Deus nin uém ·ain::iis o viu; manifestõu-no-lo o
,Unigênito de Deus, que e_§tá ~ºº seio ~Ol>aí"·-170·-T;nrr,
Rompeu Deus o silêncio: saiu de seu m7.steriô, dirigiu-se
ao homem e desvendou-lhe os segredos de sua vida pessoal;
comunicou-lhe seu desígnio inaudito de uma aliança que
levasse a uma participação de vida. Deus, o Deus vivo,
falou à humanidade. Esse o fato imenso que domina ambos
os Testamentos. Essa palavra, inicialmente longinQ.u!L. con-
fusa, intermitent~tie"''l'iiím:f"seriê-a:ê '"iQ!tS ... cle~a-~
~u?t~?.Pií~:r~~~á~~~-á~~}f!~--
~-se Evaií~no-~ ressoa, clara e disiiiitii.çoill~lllil~1!!~.-
~ : a "palavra da Boa-nova" (At 15,7), a ' . ' ~ ~
Set1bot.= ( 1Tes 1,8; 2'1'es 3, 1 ), a "palavra de Deus" ( 1T es 3
2,13), a_ "palavra de verggde" (2Cor 6,7; Ef 1,13; Col'-1_
1,5; 2Tim 2,15), a_"palavra de vida" (Flp 2,16), a "men-~
_sagem de salvação" (At 13,26), "~ Evangelho da graça"~-
(At 20,24 ). · - ~
A revelação ou a palavra de Deus à humanidade é a
primeira realidade cristã: o primeiro fato, o primeiro mis-
tério, a primeira categoria. Toda a economia da salvação,
na ordem do conhecimento, repousa sobre esse mistério
da automanifestaçãci de Deus numa confidência de amor.
A revelação é o mistério primordial, o que nos comunica
todos os outros, pois é a manifestação do desígnio salvífico
de Deus, premeditado desde toda a eternidade e que ele
realizou em Jesus Cristo (Ef 1,9-10; Rom 16,25-27). Pela
revelação conhecemos os dons da salvação e os meios que
© 1972 BY EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO
nos levam à sua consecução. A revelação é o acontecimento
6 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 7

decisf vo ~ primeiro do cristianismo, condicionante da opção de sinais que nos permitam estabelecê-lo com certeza. Ta-
de fe, p01s, se Deus falou à humanidade e se isso for soli- reflexão sobre o fato da revelação, parte da função apolo-
damente comprovado,.!. opção de fé não será uma OJ>Ção às gética da teologia, é necessária na Igreja que, se deixasse de
ce as, mas uma opção de homelll, de acorct()-Cô~tn sllã-~iiã-- refletir sobre a intervenção divina na história e sobre os
.~reza. e. ser mte_1gen1e -~- Tvrê._~-,A- reveláção: -finalmente, sinais dessa intervenção, se exporia afinal ao perigo do
e .a pr_imeua das catego_rias que fundamentam toda pesquisa fideísmo. Empenhada na aventura da fé, já não saberia
teo~?gi~a. Re~~lação, mspiração, tradição, significam para nem por que nem como se empenharia.
ª. "cie~cia teologica o mesmo que as -noções básicas para as Contudo, por mais sólido que fosse, o estudo apolo-
ciencias humanas. Implicadas em todos os passos, essas ca- gético do fato da revelação não esgotaria a riqueza dessa
tegorias são as primeiras que se devem conhecer · definir realidade que, como já o dissemos, não é somente um fato,
.
exp1icar. ' ' mas um mistério. Estabelecido que Deus falou, e que a
. ~ revelação é o fato primeiro, o primeiro mistério ;: a aparição do Cristo na história é o ponto mais denso dessa
primeira ..:ategoria do cristianismo. E, contudo, essa reali- intervenção, já teríamos, sem dúvida, feito muito, mas não
dade foi bast_a,nte pouco estudada até agora. Em 1911, o tudo. Teríamos demonstrado que a revelação existe, mas
P. Lebreton Ja observava que os teólogos descuidaram de- ainda não teríamos dito tudo o que ela é. Estaríamos na
mais as "concepções fundamentais da revelação e da fé" 1 • periferia da revelação. Restar-nos-ia ainda descobrir sua
Cinqüenta anos depois, em 1961, A. Léonard, na introdu- natureza, seus aspectos, suas dimensões, sua profundidade.
ção a uma obra coletiva sobre a teologia da palavra de Deus, Paralelamente a uma apologética da revelação há, pois, lugar
r_epete. a mesma queixa. A revelação, observa, é "a realida- para uma dogmática da revelação, do mesmo modo como
de primária e fundamental" do cristianismo. "Por isso é ao lado de uma apologética da Igreja e da ressurreição há
tanto mais de se admirar que a teologia católica não tenha uma dogmática da Igreja e da ressurreição.
quase examinado e desenvolvido todas as variações desse O presente estudo gostaria de ser uma contribuição a
tema . . . ~arec_e que na teologia ele desempenhou o papel essa dogmática da revelação. Considera a revelação ào ponto
des~as evidências fundamentais que, implicitamente, estão de vista da revelação, do mesmo modo como se tratam os
subJacentes a tudo que se diz ... _Em teologia tudo depende outros mistérios da fé: criação, encarnação, redenção etc.
Da fé, parte para a inteligência da fé, apoiando-se à Es-
-~1h~~al~!~p~r~~s~~~, critura como fonte inspirada e à Igreja como instituição
divina. Fides quarens intellectum: é uma busca do espí-
te, como uma dessas grandes verdades implícitas tão evi-
~entes e certas que não precisam ser explicitadas" 2 • Significa- rito, uma prospecção do mistério já aceito na fé.
tivo também que o tema da revelação geralmente seja si- Uma teologia da revelação, assim entendida, parece
le~ciado pelos historiadores do dogma. Harnack, Schwane, corresponder adequadamente aos anseios de nossa época,
Tix~ront, De Groot,, Loofs, Seeberg e Landgraf não têm um que redescobriu o mistério da palavra de Deus. Proliferam,
capitulo sequer sobre a questão. em toda parte, os estudos sobre a Eséritura, tradição, pre-
Em teologia, contudo, há um tratado sobre a revela- gação, liturgia, consideradas como palavra de Deus ou como
ção. Tratado que estuda o fato da revelação e o conjunto seus efeitos. O termo "palavra de Deus" usa-se para in-
dicar quase todos os mistérios da salvação e realidades cris-
tãs. Sinal evidente que se procura dar à palavra de Deus o
1 J. LEBRETON, "Són Éminence le Cardinal Billot" Études 129 lugar de honra que lhe compete na fé e na vida dos
( 1911): 521-522. ' '
· 2 A. LÉONAim, "Vers une théologie de la· parole de Dieu", em: cristãos.
La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Paris, 1961), p. 12. Permanece verdade, porém, que o termo palavra de
8 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 9

Deus se aplica primariamente à révelação, ou seja: à inter- que é o ambiente vital de sua vida interior, que se reno-
venção primeira de Deus que sai de seu mistério, dirigin- va num encontro diário com a Escritura. Conseqüentemen-
do-se à humanidade e comunicando-lhe seu desígnio salví- te a teologia da palavra de Deus ganha uma importância
fico. A Escritura, a tradição contêm essa palavra; a pre- muito grande e recebe tratamento privilegiado. De fato,
gação da Igreja transmite-a; a liturgia, celebra e atualiza. todos os grandes nomes da teologia protestante contempo-
Mas, tudo deriva da palavra original que vem de Deus. rânea ( K. Barth, R. Bultmann, E. Brunner, P. Tillich, R.
Atualmente a teologia da revelação e da palavra de Niebuhr, H. W. Robinson, e outros) consagram capítulos
Deus se parece corµ um imenso canteiro de obras. Todos e até mesmo obras completas ao tema da revelação. Dar,
os elementos para a vasta construção encontram-se na reno- portanto, à palavra de Deus toda a importância que lhe
vação bíblica e patrística do século vinte, nas reflexões sobre compete entre as realidades cristãs é de algum modo con-
a natureza e o estatuto da teologia, nas queixas e nas ten- tribuir para uma aproximação ,entre os cristãos.
tativas da teologia querigmática, nas pesquisas sobre o sen- Nosso estudo comporta cinco partes que se sucedem
tido do ministério da pregação na Igreja, nos estudos sobre conforme ao método habitual em teologia, conjugando-se
o desenvolvimento dogmático e nas monografias sobre a o trabalho especulativo ao positivo na elaboração dos da-
revelação e a fé. Parece que um novo tratado dogmático dos por este obtidos: 1. Noção 4 bíblica de revelação; 2 .
se elabora, um tratado da revelação, destinado a ter lugar O tema da revelação nos Padres da Igreja; 3. Noção de
entre os grandes tratados teológicos como os da fé e dos revelação na tradição teológica; 4. Noção de revelação e
sacramentos. Dogmática da revelação que seria um com- Magistério da Igreja; 5. Reflexão teológica.
plemento do tratado apologético e uma preparação ao da fé. Na segunda e na terceira parte, evidentemente não
"O importante, escreve John Baillie, é que haja correspon- seria possível interrogar todos os Padres da Igreja nem to-
dência total entre a inteligência da revelação e a inteligência dos os teólogos que escreveram sobre o tema da revelação.
da fé que a recebe" 3. Fé e revelação, sendonoçõescor- Pesquisa imensa e atualmente impossível, pois sobre o tema
re ·ivas, como palavra e respostã~-uma refli~~Q ~0J?r1: __ a não há senão raras monografias. Em vez de multiplicar os
revelação necessariamen e-iravera·
mna tÇQlogia clã Ié. -~
cte
-fe~u.Í!qar . e vivj.Ii~~f
...... . - autores apresentando de cada um apenas fragmentos, pre-
ferimos interrogar mais atentamente certo número de mes-
Além de enriquecer a reflexão teológica, uma dogmá- tres representativos do pensamento de uma época. Quanto
tica da revelação corresponde às atuais preocupações ecumê- ao período patrístico nossa pe'Squisa abrangeu uns vinte
nicas. Com efeito, o ecumenismo não é apenas problema autores; da tradição teológica, uns 15 nomes mais repre-
eclesiológico, mas também problema de metodologia. Uma sentativos. Nosso ponto constante de referência foi a re- -
teologia, com preocupações ecumênicas, deve procurar apre- velação enquanto correlativa à fé.
sentar a doutrina da Igreja fielmente, sem dúvida, mas com A quarta parte estuda a noção de revelação nos documen-
fidelidade que favoreça o diálogo com os cristãos separa- . tos do Magistério: documentos do Magistério extraordinário
dos. Ora, principalmente entre os protestantes, sendo a Es- nos concílios, do Magistério ordinário também, principal-
critura o único centro de atenção, compreende-se que a pa- mente nas encíclicas. Esses .documentos quase todos, são dos
lavra de Deus ocupe o primeiro lugar tanto na vida espi- séculos XIX e XX. Prolongam e sancionam a elaboração
ritual como na pesquisa teológica. Na educação protestante, teológica dos séculos anteriores, refletindo ao mesmo tempo
o homem está sozinho diante da palavra de Deus; palavra
4 Damos ao termo noção o sentido que tem em alemão (Begriff);
3 J. BAILLIE, The Idea of Revelation in Recent Thought (London, aqui noção designa toda a realidade da revelação, sob seus díversos
1956), p. 99. aspectos.
INTRODUÇÃO

as preocupacões atuais da Igreja. Portanto, do ponto de


vista histórico, ·esta parte une-se estreitamente às prece-
dentes;
Nosso estudo de maneira alguma pretende ser exaus-
tivo. Apresenta-se, repetimos, como simples ensaio, uma
tentativa para um tratado dogmático da revelação. Se, primeira parte
a esse título, puder prestar algum serviço e permitir que
outros vão mais longe na mesma direção, dar-nos-emos por NOÇÃO BfBLICA DE REVELAÇÃO
satisfeitos. ·

Segunda edição

Além das correções de pormenores, esta segunda edi-


ção contém os seguintes acréscimos:
1. Um artigo sobre a Epístola aos hebreus;
2. Um artigo sobre Duns Scot;
3. Um artigo sobre a encíclica Ecclesiam suam de
Paulo VI; .
4. Um capítulo todo sobre a Constituição De divina
revelatione do Vaticano IL
Esse último capítulo apresenta-se como comentário por-
menorizado dos parágrafos conciliares sobre a natureza
e a transmissão da revelação. Outras páginas - principal-
. mente as conclusões da quarta parte - foram retocadas
levando-se em conta os ensinamentos do Concílio. A biblio-
grafia, finalmente·, foi atualizada.

Terceira edição

Esta edição reproduz o texto da segunda. Um suple-


mento bibliográfico ( p. 577) apresenta as principais obras
e artigos publicados, de 1966 a 1968, sobre o tema da
revelação.
1.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO
i ,
...~ ' ,;','
·:~• :,17

\: .,/,,'. Í:

\~~~§Fi.!i.
Caracteriza-se a religião do Antigo Testamento pela
afirmação de uma intervenção de Deus na história, inter-
venção devida unicamente à sua livre decisão ..É concebida
essa intervenção como o encontro de alguém com alguém:
de alguém que fala com alguém que ouve e responde. ,Piri-
ge-se Deus ao homem como um senhor a seu s~:r}'.9.,. inJ~J:-
pfti.o, ~~ o húm~m; que -ouve a ~eus, res~on_d~__pel<Lfé.
!!J?.~lª_<>bediência. Q fato e o conteúdo dessa COJl)J,,!l:lÍc:::tção,
!].ÓS o chamamos de revelaçqo__ 1. · --- - --

1 Sobre o tema da revelação no Antigo Testamento, ver principal-


mente: O. GRETHER, Name. und Wort Gottes im Alten Testament
( Giessen, 1934); L. DuERR, Die W ertung des gottlichen Wortes im A. T.
und im Antiken Orient (Leipzig, 1938); H. NIEBECKER, ·wesen und Wir-
klichkeit der übernatürlichen Offenbarung (Freiburg, 1940), W. ElcHRODT,
Theologie des Alten Testaments (2 vol., Berlin, 1948), 2;32-38; A. RoBERT,
"La parole divine dans l'Ancien Testament", Dictionnaire de la Bible,
Supplément, 5; 442-465; S. MowINCKEL, "La connaissance de Dieu chez
les prophetes de l'Ancien Testament", Revue d'histoire et de philosophie
religieuses, 22 (1942) 69-106; C. LARCHER, "La parole de Dieu en tant
que révélation dans l'Ancien Testament", em: La Parole de Dieu en
Jésus-Christ (Paris, 1961), pp. 35-67; G. E. MtNDENHALL, Law and
Covenant in Israel and the Ancient Near East (Pittsburgh, 1955); W.
MoRAN, "De Foederis mosaici Traditione", Verbum Domini, 40 ( 1962)
3-17; A. ÜEPKE, "&.1toxa,M1e-rw", Theologisches Worterbuch, 3, 565-597;
O. ·pROCKSCH, "Wort Gottes em A. T.", Theologisches worterbuch, 4,
89-100; W. E. WRIGHT, God who acts (London, 1952); P. VAN lMSCHOOT,
Théologie de l'Ancien Testament (2 vol., Paris-Tournai-New York-Rome,
1954 e 1956), I, 142-255; E. JACOB, Théologie de l'Ancien Testament
(Paris, 1955), pp. 103-109, 148-184;L. KoEHLER, Old Testament Theo-
logy (London, 1957), pp. 99-126; J. L. McKENZIE, "The Word .of God
in the Old Testament", Theological Studies, 21 (1960) 183-206; TH. C.
VRIEZEN, An Outline of the Old Testament Theology (Oxford, 1958), pp.
233-267; A. BARUCQ, "Oracle", Dictionnaire de la Bible, Supplément,
6, 752-787; H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Tes-
tament ( Oxford, 1946); J. Levie, La Bible, parole humaine et message
de Dieu (Paris-Louvain, 1958), (trad. A Bíblia, mensagem de Deus em
palavra humanas - São Paulo, 1963); H. H. RowLEY, The Faith of Israel
14 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 15
Tomada em sua totalidade, como um fenômeno comple- _ç!o e_que termma · com a pa1avra-:;J~Jtij_C.fü:llç_
f' " 6 . Traçar ,
xo que compreende uma multiplicidade de formas e de meios, · pois, a história da palavra de Deus e traçar ao mesmo tem-
essa revelação apresenta-se, antes de mais nada, como ª. ~x- po a história da revelação 7 •
periência da ação de uma potência soberana que modifica
o curso normal da história e da existência individual. Ação
que não é > porém > uma manifestação violenta de poder, I. AS ETAPAS DA HISTóRIA DA REVELAÇÃO
A

emoldurada sempre e amoldada por palavras: é uma poten-


cia que dialoga, anuncia, explica, manifesta um plano. Deus 1. Ainda é hesitante a pesquisa quanto à fase mais
não fala à massa mas escolhe inicialmente um povo e, nesse antiga da revelação, fase que parece centrada nos fatos teo-
povo, intermediários que transmitirão sua palavra e exigi- fânicos e nas manifestações de tipo oracular.
rão, em seu nome, uma resposta. G_Gêns:.sis nar_ra_q_JJ~lfWÇ__fü:~~rec~~ sC>b _forpias h1:1n:ia-
.Ainda que o AntigQ__Testamento nã_~_J~.h~_u_~_!~;m~ ~ ~braão J!pto a~s terebintos 9e Mamré (G~~}~,!~., A(r~o
técnico para traduzir a_idéfa_de revelação_,_a_exp_te~~íio_~- anunêlanct~ o nascimento de Isaac e a destruiçaocle o-
doma. Aparece-lhe ainda Javé para concluir uma aliança
1ªvrã-cteJiv~rmãnece a expressão priyJl~si~P!!,J_111a~_s,
.freqüente e significativa_ pa1:1;L_exprimir_ a _co111u~k e mudar seu nome de Abrão em Abraão l Gên_~_!lJ~s). _
vina. Nas teofanias, a manifestação sensível está a serviço Isaac e Jacó tiveram aparições semelhantes. ( Gêp. ~~2, _l.,~ 1 .
·da palavra 3 • O mais importante não é ver a divindade, mas ..25-31;_3_2.,il Impossível, contudo, de~ermmar ~ nat~r~za .J~C.c,
ouvir sua palavra. O chamado de Deus a Abraão ap~esen-· exata dessas manifestações, que poderiam ter sido v~s~es
ta-se-lhe como simples falar divino ( Gên 12,lss). É igual- sensíveis afetando os sentidos exteriores, ou apenas visoes
mente significativo o fato de Moisés, que podia conversar interiore~, apresentadas de forma antro~~m~rf~ca apta a i:1--
com Deus, como um amigo com seu amigo (:Êx 33, 11 ) , dicar o caráter intenso e direto da experiencia mterior. Nao
não poder ver sua face ( Ê'.x 3 3 ,21-2 3 ) . Na revelação do há dúvida de que essas tra~ições patriarc~is fora~ ~onser-
Sinai, a força da narrativa recai na palavra de Deus. Quanto vadas em textos que a pesqmsa contemporanea at~ibm apro-
aos profetas, "é de se notar, diz Mowinckel, que as palavras ximativamente ao século décimo ( J) ou ao nono-01tavo (E);
são o essencial mesmo nas visões" 4. Observa Kohler que textos, porém, que transmitem tradições muito -~ai~ anti-
a revelação por visões é também revelação pela palavra 5 • gas. Pode-se admitir, contudo, que essas exper1enc1as fo-
É por sua palavra que Deus, progressivamente, introduz o ram retocadas pelos narradores.
homem no conhecimento de seu ser íntimo. ~~ O ambiente oriental usava algumas técnicas para tentar
de Deus, no Antigo Testamento, dirige e inspira uma hi.§_: penetrar os segredos dos de~ses: ~ivinhações, so:e_hos, s?I-
tória que se inicia pelãpalavra divina pronunciada na cria- ,_tilégios, ~ros etc. O Antigo Testa!11e~to, dura_n~e muito
tempo, conservou algumas dessas tecmcas, purificando-as
(London, 1956), pp. 23-47; R. B. Y. ScoTT, The Relevance of the Pro-
phets (New York, 1960 10 ); JAMES G. S. S. THOMSON, The Old Tes- 6 E. JACOB, Theólogie de l'Ancien Testamen(, P-, 104. "Si l'on except~
tament View of Revelation (Grand Rapids, Michigan, 1960); W. BuLST, le nom de Dieu, remarque F. J. Leenhardt, 11 n,est pas ~e m?t qm
Offenbarung (Düsseldorf, 1960); P. GRELOT, Sens chrétien de l'Ancien Tes- occupe une place et qui joue un ~ôie comP_~able a ceux qu1 ,rev1enn~nt
tament (Paris-Tournai-New York-Rome, 1962), pp. 126-134. au mot Parole dans toute la trad1t1on chretmne, et, av~nt J1;su~-~hr!st,
2 H. SCHULTE Der Begriff der Offenbarung im Neuen Testament dans l'hebrai:sme d'ou elle est issue" (F.): Le1;,nhardt, ~~ s1gmficat1on
(München, 1949), 'pp. 38-40; P. VAN fMSCHOOT, Théologie de l'Ancien de la notion de parole dans la pensée chreuenne , Rev. d htst. et de ph.
Testament, I, 142. rel., 35 [1955], 261). T » v· d
3 S. MowrNCKEL, "La connaissance de Dieu chez les prophetes de 7 A. Robert, "La parole divine dans l'Ancien est~ent , zct. e
l'Ancien Testament", Rev. d'hist. et de ph. rel., 22 (1942) 79. la Bible, Suppl., 5, 442-465; C. LARCHER, "La parole de_ D1eu e~ tant que
4 Ibid., p. 83 révélation dans l'Ancien Testament", em La Parole de D1eu en ]esus-Christ,
s L. KoEHLER, Theologie des Alten Testaments (1953 3 ), p. 87. pp. 35-67.
16 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 17
de suas aderências politeísticas ou mágicas ( Lev 19 ,26; Dt ela constitue 10 • Javé, que provara a Israel o seu poder e
18,lOs; lSam 15,23;28,3 ), atribuindo-lhes, contudo, certo a sua fidelidade livrando-o do domínio egípcio, pela Aliança
valor. Nos momentos importantes ou difíceis, por exem- faz desse povo sua propriedade e torna-se chefe da nação.
plo, antes de uma guerra ou aliança, Israel interroga, con- Todas as tradições ligam à Aliança certas leis que são as
sulta Javé, seu Deus, que ele sabe estar presente a todas condições de Javé, as cláusulas por ele impostas a Israel 11 •
as suas ações ( lSam 9,1-10; Jos 7,6-15; lSam 10,20-21 ). Leis que são as "palavras" da Aliança (:Êx 20,1-17) ou as
Mas, enqvanto entre seus vizinhos semitas ou egípcios o "dez palavras" ( :Êx 34,28). O característico dessas deba-
adivinho procura coagir os deuses mediante ritos conside- rím, que originalmente poderiam ter existido de forma muito
rados infalivelmente eficazes, Israel espera uma resposta mais simples e não decalógica, é o estilo apodítico, que
que depende do bel-prazer de Javé. Essas consultas, quase não encontramos senão em Israel e em alguns tratados hiti-
sempre em favor dos chefes da nação, são feitas pelos vi- tas do segundo milênio 12 • As palavras da Aliança são a
dentes e principalmente pelos sacertodes ( lSam 14,36;22, revelação da vontade divina, que respeitada ou transgre-
15). Nos oráculos, o sacerdote usa os Urim e Thummim, dida trará a bênção ou a maldição; exprimem o exclusivismo
guardados no ephod; as respostas são dadas em fórmulas do Deus de Israel e suas exigências morais. A Aliança trans-
breves, sim ou não (Dt 33,8; :Êx 28,30; Lev 8,8; Núm formou em comunidade as tribos que tinham saído do Egito,
27,21; lSam 14,41;23,l0ss) 8 • Significativo também que Is- dando-lhes uma lei, um culto, um Deus, uma consciência
rael tenha sempre recusado aceitar certas formas clássicas religiosa. Torna-se Israel um povo governado por Javé.
da técnica de adivinhação, por exemplo, a hepatoscopia, Todo seu destino, de agora em diante, está ligado a es-
muito usada nos sacrifícios divinatórios do antigo oriente. sa vontade divina historicamente manifestada e alicerçada
Como a maioria dos povos antigos, admitiam os he- no acontecimento da libertação 13 • Os profetas não deixarão
breus que Deus se pudesse servir de sonhos para dar a de aplicar aos acontecimentos contemporâneos as implica-
conhecer suas vontades (Gên 20,3;28,12-15;37,5-10; Jz 7, ções do regime da Aliança 14 • Os mishpatím ou costumes do
13ss; lSam 28,6; lRs 3,5-14 ). José tem uma taça de adi- Código da Aliança (Êx 20,22-23;19), se bem que sejam de
vinhação ( Gên 44,2.5) e é perito na interpretação de so- uma fase ulterior que supõe uma canonização das leis con-
nhos ( Gên 40-41). Progressivamente, porém, distinguem- suetudinárias dos antepassados, são considerados também
-se os sonhos que Deus envia aos profetas autênticos ( Núm
12,6; Dt 13,2) e os dos adivinhos profissionais que apre- 10 H. W. ROBINSON, lnspiration and Revelation in the Old Tes-
tament, p. 153.
goam sonhos mentirosos (Jer 23,25-32; Is 28,7-13). li W. ErcHRODT, T heology of the Old T estament ( trad. J. A.
Nos profetas, essas técnicas arcaicas tendem a desapa- Baker, London, 1961), I, 37-38; G. E. MENDENHALL, Law and Covenant
in Israel and the Ancient Near East, pp. 37 e 43; W. MoRAN, "De Foe-
recer, dando lugar à experiência da palavra que prevalece 9 • deris mosaici Traditione", Verbum Domini, 40 (1962) 7-13.
12 W. ErcHRODT, Theology of the Old Testament, I, 71, 72; G. E.
2. A aliança do Sinai é um momento decisivo ria MENDENHALL, Law and Convenant in Israel and the Ancient Near East,
. história da revelação. Não pode ser compreendida a não ser pp. 7. 10. 27. 28; A. ALT, Die Ursprünge des israelitische11 Rechts
à luz de todo o processo histórico, cuja meta e acabamento (Leipzig, 1934); W. KoRNFELD, Studien zum Heiligkeitsgesetz (Wien,
1952), pp. 53-66.
13 W. ErcHRODT, Theology of the Old Testament, I, 39; G. E.
8 P. VAN IMSCHOOT, Théologíe de l'Ancien Testament, I, 148-154; MENDENHALL, Law and Covenant in Israel and tbe Ancient Near East,
H. H. RowLEY, The Faith of Israel, pp. 28-29; A. BARUCQ, "Oracle", p. 5. Acrescentemos que, pela Aliança, Israel se reconhece introduzido
Dict. de la Bíble, Suppl., 6, 679-681; H. W. Robinson, Inspiration and numa existência dialogal; colocado, daí por diante, num contexto de
Revelation in the Old Testament, pp. 202-204. chamado e de resposta.
9 Contudo, encontram-se sonhos no gênero apocalítico (Daniel, Za- 14 W. ErcHRODT, Theology of the O/d Testament, I, 42; A. ROBERT,
carias), quando então eles têm uma significação e se tornam também "La parole divine dans l'Ancien Testament", Dict. de la Bible, Suppl.,
palavra. 5, 444.
18 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 19
_como expressão da vontade de Deus. Por suas fórmulas o testemunho enfim, tantas vezes heróico, do próprio pro-
imperativas, já, porém, mais circunstanciadas ou casuísticas, fe!a sobre a sua vocação (Je 1,4-6;26,12-15). Jeremias
são um prolongamento do Decálogo. f01 consagrado profeta como que num rito: colocou-
-lhe Deus na boca sua palavra como um objeto material
3. O profetismo constitui uma nova etapa na histó-
(Jer 1,9). Alimento saboroso (Jer 15,16), ou fonte de
ria da palavra,. Já o eloísta ou o javista, quando narram
tormentos (Jer 20,9.14), a palavra de Deus escraviza-o e
a história das origens da nação, tomam um ponto de vista
coage-o como uma realidade objetiva e superior. A pala-
profético. Consideram certos fatos como "julgamentos" e
vra, da qual é o destinatário ou o órgão, está geralmente
vêem nos patriarcas seres carismáticos, dirigidos pela pala-
relacionada com a fidelidade que Israel deve à Aliança de
vra de Javé (Gên 12;13;15;16;18;26;28). Balaão, apesar
Javé. Jeremias é o defensor da Lei e da Aliança. Como
de pagão, tem o papel de um profeta inspirado ( Núm 22-
os outros profetas, exorta, promete, ameaça (Jer 2,4;7,2;17,
-23 ) . Principalmente Moisés é considerado como o protótipo.
20;22,2.19;34,4;22,5;26,12-13;19,2;20,1 ). Também apre-
dos profotas (Dt 34,10-12;18,15.18). Se bem que Josué já
senta a palavra como uma entidade independente, de dina-
apareça como confidente e porta-voz de Javé, foi somente mismo irresistível (Jer 5,14;23,29;25,13 ;26,12) 15 •
a partir de Samuel ( 1Sam 3, 1-21 ) que o profetismo se
tornou freqüente; parece quase permanente até o século 4. O Deuteronômio, originário dos ambientes do nor-
quinto, mesmo sendo sempre antes carismático que insti- te trabalhados pela pregação profética dos séculos · nono e
tucional. oitavo (segundo Welch, Alt, von Rad), encontra-se na con-
No tempo dos profetas escritores, a palavra de Javé fluência de duas correntes: a legalista, expressão do sacer-
impõe-se cada vez mais como a expressão da vontade divina dócio, e a profética. Aprofunda-se, sob essa dupla influên-
e como poder decisivo na história de Israel. Os profetas cia, a teologia da Lei. O Deuteronômio, procurando cor-
_anteriores ao exílio ( Amós, Oséias, Miquéias, Isaías) são rigir o ~resente à luz do passado, relaciona mais que nun-
os guardiães e defensores da ordem moral imposta pela ca a Lei ao tema da Aliança. A história de Israel, com
Aliança. Sua pregação é um chamamento à justiça, à fide- suas desgraças, aparece como a conseqüência lógica duma
lidade, ao serviço do Deus todo-poderoso e três vezes santo. infidelidade constante e renovada. Javé, revelando sua von-
Como, porém, Israel é infiel às condições da Aliança, as tade prometera sua bênção à obediência: o castigo de Is-
mais das vezes o dabar divino condena e anuncia castigos rael é o julgamento de Detis sobre a desobediência de seu
(Am 4,1;5,1;7,10-11; Os 8,7-14;13,15; Miq 6-7; Is 1,10- povo 16 • Israel, pois, se quiser viver, deve pôr em prática todas
20;16,13;28,13-14;30,12-14;37,22;39,5-8). Castigos que as palavras da Lei (Dt 29,28) que, saída da boca de Javé,
não serão revogados. O tema dá irreversibilidade e do di- é fonte de vida (Dt 32,47). O Deuteronômio amplia em
namismo da palavra divina afirma-se claramente em Is 31,2; diversos sentidos o dabar divino. Os relatos do Sinai em-
Os 6,5, e ainda mais explicitamente em Is 9,7: "Lança o pregam o termo debarim para designar o Decálogo ( :E:x 20).
Senhor uma palavra contra J acó e ela cai sobre Israel", O Deuteronômio, que também chama o Decálogo de: as
Aqui aparece a palavra como puro dinamismo. Cai como "dez palavras" ( Dt 4, 13; 1O,4 ) estende a expressão a todas
flecha e desenvolve seus efeitos por etapas sucessivas. as cláusulas da Aliança ( Dt 28 ,69 ) , isto é: ao conjunto
das leis morais, civis, religiosas e criminais. Firma-se de
Jeremias ocupa lugar importante na reflexão teológica tal modo a coesão de todas essas prescrições que "palavra"·
sobre a revelação, pois· tentou determinar os critérios da acaba sendo a designação de toda a Lei mosaica (Dt 28,69;
autêntica palavra de Deus. Tais critérios são: a realiza-
ção da palavra do profeta (Jer 28,9;32,6-8; Dt 18,21-22), 15 A. ROBERT, ibid., 5, 446-447.
a fidelidade a Javé e à religião tradicional (Jer 23,13-32), 16 G. VON RAD, Studies in Deuteronomy (London, 1956), p. 77.
20 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 21
30,14;32,47). Nas leis do Sinai, o dabar divino era sim- Javé (2Sam 7,16;23,5), ponto central na história da salva-
ples mandamento, sem comentários. No Deuteronômio, pelo ção. De agora em diante, repousa sobre o rei a esperança de
contrário, os preceitos são acompanhados de evocações his- Israel: primeiro o rei presente, depois um rei futuro, esca-
tóricas, promessas e ameaças ( Dt 4,32), que devem inspi- tológico, à medida que as infidelidades dos reis históricos
rar o amor e o respeito pela lei. Finalmente, interioriza-se tornam mais remota a esperança de um rei conforme ao
a palavra da Lei. Os "mandamentos e as leis" que Javé ideal davídico. Essa profecia é o início de uma teologia,
prescrevera (Dt 27,10) já não se concebem como simples im- elaborada pelos profetas. Teologia eminentemente de pro-
perativos, mas como uma realidade íntima no coração do ho- messa, voltada sempre para o futuro, mais que a teologia
mem: "A palavra está perto de ti, tu a tens em tua boca da Aliança do Sinai, cujas exigências são principalmente
e no coração, para poder cumpri-la" (Dt 30,11-14). Con- cotidianas 16 •
siste a Lei em amar a Deus de todo o coração e de toda
6. Quando do exílio, a palavra profética, sem deixar
a alma (Dt 4,29) 17 •
de ser uma palavra viva, torna-se sempre mais uma pala-
5. Paralelamente às correntes proféticas e deuteronô- vra escrita. Significativo que a palavra confiada a Eze-
micas, forma-se uma literatura histórica (Juízes, Samuel, quiel está escrita num rolo que o profeta deve comer
Reis) que abarca fontes e documentos muito mais antigos. para depois anunciar seu conteúdo ( Ez 3, lss) . Suas men-
Essa literatura histórica é em realidade uma história da sal- sagens ganharão, escritas, a estabilidade dos decretos di-
vação e uma teologia da história.' Nas desgraças e nos su- vinos. Ezequiel é o ministro duma palavra irrevogável, que
cessos de Israel, o livro dos Juízes vê uma ilustração do anuncia os acontecimentos dando-lhes um desenrolar infalível
regime da ·Aliança. Principalmente no livro dos Reis desen- (Ez 12,25-28;24,14). Com ele, as vezes, o dabar não é
volve-se a concepção do dabar divino presente na história apenas uma mensagem, mas uma ordem formal e veemen-
para dirigi-la. A Aliança concluída por Javé e as condi- te, um poder que opera efeitos físicos. Uma primeira ca-
ções por ele impostas, supõem que o curso dos aconteci- racterística da profecia de Ezequiel é o número e a am-
mentos é regulado pela vontade divina, levadas em conta plitude das visões (Ez 1;2,8-3,9;8-11;37;40,1-48,35). Há
as atitudes do povo eleito. Desde então Israel sempre pen- palavras que comentam essas visões que, por si mesmas,
sou sua religião em categorias históricas. Em última aná- são um ensinamento. Uma segunda característica é o tom pas-
lise, é a palavra de Deus que faz a história e a torna com- toral da palavra de Ezequiel. Após a queda de Jerusalém
preensível. Ao longo de toda a história dos Reis, as pala- (Ez 33,1-21 ), já não existe Israel como nação. Torna-se
vras de Javé vão escandindo o curso dos acontecimentos, ma- então a palavra de Javé uma palavra de conforto e espe-
nifestando seu sentido religioso ( lRs 2,4;3,ll-14;6,11-13; rança para os exilados abatidos. Ezequiel começa a formar
8,46-52;9,3-9; 11,31-39; 12,15; 14,6-16; 15,29-30; 16,1-4; 2Rs o novo Israel, como o faria um diretor espiritual ( Ez 33,
9,7-10;21,10-15 ;22,16-20;24,2-4). 1-9). Deixando entrever que a palavra que decretara e in-
Importante nessa literatura histórica é o texto da pro- fligira o castigo continua sendo uma promessa, Ezequiel,
fecia '1,e Natan ( 2Sam 7) que dá à Aliança conexões com contudo, preocupa-se que não haja engano quanto a sua na-
a realeza e inicia o messianismo real. Com essa profecia tureza e exigências: não basta ouvir a palavra, é preciso dela
a dinastia de Davi torna-se para sempre a aliada direta de viver ( Ez 33 ,31 ) . Ezequiel, "pela importância dada ao
mashal, ao ensinamento moral e individual, orienta-nos ela-
17 A. ROBERT, "La parole divine dans l'Ancien Testament", Dict. de
la Bible, Suppl., 5, 448; G. VON RAD, Studies in Deuteronomy, pp. 77-91; 18 A. GELIN, art. "Messianisme", Dict. de la Bible, Suppl., 5, 1174-1177;
C. LARCHER, "La parole de Dieu en tant que révélation dans l'Ancien H. VAN DEN BussCHE, "Le texte de prophétie de Nathan sur la dynastie
Testament", em La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 59-60. davidique", Eph. Theol. lov. (1948), 354-394.
22 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 23
ramente para uma noção sapiencial da palavra, para uma na época persa e helenista, porém, é que está inais em voga:
reflexão fria» 19 • às coleções existentes (por exemplo, Prov 10,1-22,16;25-
Dêutero-Isaías ( Is 40-5 5 ), que devemos ler no con- 29) juntam-se numerosas criações ( Jó, Eclesiastes, Eclesiás~
texto do exílio, considera o dabar divino em seu dinamis- tico, Sabedoria). Ainda que a literatura sapiencial do Antigo
mo a uma só vez cósmico e histórico. Manifesta-se a trans- Testamento pertença a uma corrente de pensamento inter-
cendência de Javé primeiramente em a natureza. O exér- nacional ( Grécia, Egito, Babilônia, Fenícia) presente desde
cito dos céus obedece ao Criador: Javé chama pelo nome o segundo milênio 21 , contudo, em Israel essa corrente trans-
os astros, os quais obedecem ( Is 40,26;45,12;48,13). Sua formou-se bem cedo num instrumento de revelação.
absoluta soberania sobre a criação é o fundamento e a ga- O mesmo Deus, que ilumina os profetas, usou a ex-
rantia de sua ação onipotente na história: porque Javé, pela periência humana para dar o homem a conhecer-se a si
sua palavra, fez do nada tudo surgir, por isso é o senhor mesmo ( Prov 2,6;20,27). Inicialmente essa sabedoria é
das nações como das forças da natureza. O aspecto his 0
simples reflexão, positiva e realista, sobre o homem e seu
tórico do dabar inspira toda a primeira parte da coleção comportamento, para ajudá-lo a se orientar na vida com
( Is 40,1-48,22). A palavra domina a história e de ante- prudência e discrição ( Prov 1, 1-6 ) . Na Grécia essa refle-
mão lhe revela o curso (Is 45,19;48,16). Está no início xão será mais especulativa e se transformará em filosofia.
e no termo dos acontecimentos: ela que os prediz, suscita, Em Israel, muito cedo o tesouro de experiência dos sábios
realiza. Em Is 48,3-8, a realização das profecias anteriores foi vivificado pelo sopro da religião de Javé. Assumindo a
aparece como garantia das coisas futuras também anuncia- · experiência humana, Israel interpreta-a e aprofunda à luz
das: da libertação, da volta, da restauração, do universalis- de sua fé em Javé, senhor dos homens e da vida 22 • E até
mo escatológico. Nas mãos de Deus estão os polos extre- mais: muitas vezes pertencem à revelação os dados sob os
mos da história ( Is 41,4;44,6;48,12). História que é in- quais se inclina a reflexão sapiencial: a criação ( Eclo 43 ) ,
teligível porque se desenvolvendo segundo um plano que a história que torna patentes os caminhos de Deus ( Eclo 44-
a palavra revela progressivamente aos homens. Finalmente, 50), os livros históricos, a Lei e os profetas ( Eclo 39 ,lss).
em Is 55, o autor canta a eficácia infalível da palavra que Sob a influência dessa fé em Javé, a antítese sabedoria-
executa as vontades divinas com a mesma fidelidade dos -loucura torna-se progressivamente uma oposição entre jus-
eleméntos da natureza: "Assim como a chuva e a neve do tiça e iniqüidade, piedade e impiedade. Sábio é quem cum-
ééu descem e não voltam para lá sem terem antes irrigado pre a lei de Deus (Eclo 15,1;19,20;24,23; Ecl 12,13 ), pois
a terra e a terem fecundado e feito germinar. . . assim será toda sabedoria provém de Deus ( Prov 2,6). Somente ele
da palavra que sair da minha• boca: não voltará a mim a possui plenamente; manifesta-a em suas obras e comuni-
vazia, mas, antes, operará tudo o que me agrada, e obterá ca-a aos que o amam (Eclo 1,8-10; Sab 9,4; Jó 28,12-27).
o escopo para o qual a mandei" ( Is 55,10-12). Audaciosa A sabedoria, como a palavra, saiu da boca do Altíssimo;
personificação, que apresenta a palavra como realidade di- agia nas origens da criação e veio estabelecer-se em Israel
nâmica, criadora da história 20 • · (Eclo 24,3-31 ). Assim a sabedoria se identifica finalmente
7. A literatura sapiencial é testemunha de uma tra- com a palavra de Deus, criadora e reveladora ( Sab 7-9 ) .
dição muito antiga em Israel ( lRs 5,9-14;10,1-13.23-25); 8. O saltério, formado aos poucos, ao longo de to4a
19 A. ROBERT, "La parole divine dans l'Ancien Testament", Dict. de uma história, é principalmente uma resposta à revelaç_ão;
la Bible, Suppl., 5, 451: "nous orient nettement vers une notion sapien-
tielle de la parole, par la place qu'il fait au mashal, à enseignement moral 21 H ..W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Testa-
et individuei, à la réflection froid". ment, pp. 235-237.
20 lbid., 5, 453-455. 22 Ibid., pp. 252-253.
24 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 25
mas é também revelação, pois a oração dos homens, pelos dos muito antigos, chamadas código deuterocanônico e có-
sentimentos que' manifesta, dá à revelação toda a sua di- digo. sacerdotal. Assim fixada, foi possível ler e meditar
mensão. A grandeza, a majes_tade, a potência, a fidelidade, a palavra de Deus e contemplar a fiel realização de suas
a santidade de Javé reveladas pelos profetas, refletem-se promessas. Reveste-se a palavra· de Deus de caráter dura-
nas atitudes do crente e na intensidade de sua oração 23 • douro de eternidade: ela permanece irrevogável e infalí-
Espelhos da revelação, os salmos são também sua reatuali- vel. Por outro lado, fixando-se; corre o risco de perder
zação cotidiana no culto do templo. Não nos admiremos, um tanto do dinamismo que tivera nos profetas 25_; será pre-
pois, se ali reencontrarmos os diferentes aspectos da pala- ciso também atualizá-la sempre, aplicando-a às novas situa-
vra já indicados. Muitas vezes a palavra de Javé indica os ções· históricas, numa releitura constante que por si mesma
preceitos impostos por Deus a seu povo (SI 17,4;107,11). será um aprofundamento.
O saltno 119 amplia essa visão celebrando a torá como a
encarnação de toda a revelação divina, que às vezes II. VALOR NOETICO E DINAMICO DA PALAVRA DE DEUS
ordena, ameaça às vezes ou faz promessas. Há também no
saltério oráculos que são recordação dos compromissos an- O esboço de história da revelação já nos dá uma idéia
teriormente assumidos por Javé (SI 99,7;85,9;89,20;12,6; sobre o sentido e o valor da palavra ·de Deus em Israel. Se
62,12;60,8; 105,11 ;68,2.3). O salmista põe ainda em evi- é constestada a etimologia do termo dabar 26 , seu uso dá-nos
dência a veracidade, a fidelidade da palavra de Javé, segura a conhecer seu alcance preciso. Dabar é "o que sai da
e sem mescla. Mesmo quando o dabar não é proferido em boca" (Núm 30,13) ou "dos lábios" (Jer 17,16) do ho-
forma oracular, tem muitas vezes o valor de uma promessa. mem, mas que tem sua fonte no coração. O dabar expri-
Assim, no salmo 56, põe o fiel sua esperança na palavra me, exterioriza o que o homem já proferiu em seu coração
de Javé cuja veracidade jamais falha. Finalmente, muitos ( Gên 17, 17; SI 14, 1 ) ou o que lhe vem ao coração (Jer
salmos celebram a palavra criadora de Javé: o mundo surge 3,16; Is 65,17), ou ao seu espírito (Ez ll,5;20,32). A
do nada ao som da palavra que produz, organiza e governa palavra não é, pois, a simples expressão de idéias abstra-
( SI 33,6.9). Os elementos naturais, mesmo o tufão, obe- tas; está carregada de sentido, tem um conteúdo noético
decem às ordens de Deus (SI 147,15-18;107,25;148,8). Em que vem da concentração do coração sobre um objeto ou
resumo: para os salmistas a palavra de Deus é ao mesmo de pensamentos que dele se apossam, traduzindo ao mesmo
tempo promessa e potência que se exerce em a natureza 25 E. JACOB, Théologie de l'Ancient Testament, p. 108.
e na história 24. 26 O. PROCKSCH e E. JACOB dão-lhe o sentido radical de "estar por
detrás e empurrar". Diz Jacob: "le dabar pourrait être défini comme la
9 . Concluindo este esboço, ponhamos em evidência projection en avant de ce qui est à l'arriere, c'est-à-dire le passage à
o papel da escritura na história da revelação. O processo l'acte de ce qui est d'abord dans le coeur" (Théologie de l'Ancien Tes-
tament, p. 104). E O. Procksch diz: "O dabar é o pano de fundo de
que levou à fixação da palavra foi inicialmente muito lento. uma coisa, o sentido que lhe é pr6prio; é esse sentido que é expresso
Até ao fim da época dos reis, foi principalmente de forma pela palavra. . . Cada palavra contém, não apenas um sentido mas tam-
ocasional que se escreveram as antigas tradições e os oráculos bém uma energia" ·(Theologie des Alten Testaments, p. 469). A' seus olhos
essa explicação justifica o aspecto noético e dinâmico da palavra. A.
proféticos. Nem parece que pretendesse formar um cânon. Robert conclui que: "le plus sur est de supposer ici, comme si fré-
Após o exílio somente é que se constituíram essas gran- quemment ailleurs, deux racines paralleles, l'une signifiant parler, l'autre
être en arriere" (Dict. de la Bible, Suppl., 5, 442). Ver também F. J.
des compilações, redigidas em camadas sucessivas, com da- Leenhardt, "La signification de la notion de parole dans la pensée
chrétjonne", Rev. d'hist. et de phil. rei.,. 35 ( 1955) 263-264. O método
23Ibid., pp. 262-265. de O. Procksch foi criticado por J. Barr, "Hypostatization of Linguistic
24A. ROBERT, «La parole divine dans l'Ancien Testament», Dict. de Phenomena in modem Theological Interpretation", Journal of Semitic
la Bible, Suppl. 5, 458-461. Studies, 7 (1962), 88-92.
26 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 27
tempo um estado de alma, que de algum modo impregna Assim a palavra de Javé, é ao mesmo tempo noética e
a palavra pronunciada, articulada 27 • Pedersen tem razão dinâmica; discurso do ·Deus de verdade e ato salvador do
quando afirma que a "palavra. . . é a expressão corporal Deus vivo; anúncio e realização da salvação; luz e poder.
do conteúdo da alma ... ; por detrás da palavra subsiste a A palavra de Deus cria o mundo, impõe a lei, suscita a
totalidade da alma que a criou. Se quem proferiu a pa- história; a mesma palavra manifesta ao homem a vontade
lavra é uma alma enérgica, então sua palavra exprimirá de Deus, seu desígnio salvífico. A palavra de Deus realiza
mais realidade que a de uma alma fraca. Quem dirige uma infalivelmente o que ela diz. Envia-a Deus como se envia
palavra a outro, faz nascer um pouco de sua própria alma um mensageiro vivo e está atento para que se cumpra. A
na alma do outro" 28 • Por isso a palavra é eficaz, agindo palavra de Deus permanece para sempre, fiel e eficaz.
como um prolongamento da energia física de quem a proferiu.
Para Israel a palavra tem duplo valor: noético e dinâ-
mico. É expressão de pensamentos, intenções, projetos, de- III. REVELAÇÃO CóSMICA E REVELAÇÃO HISTóRICA
cisões; é discurso inteligível; esclarece o sentido dos acon-
tecimentos; ela "nomeia" as coisas, pois o nome é a reali- Só tardiamente a reflexão teológica de Israel se ocupa
dade enquanto inteligível. Por outro lado, é uma força com a palavra criadora ( se bem que a idéia da criação possa
ativa, um poder que realiza o que significa; opera o que ter surgido e circulado muito antes de aparecer nos textos
o homem medita e decide em seu coração. Paiavra de de- sagrados). Principalmente através da história é que Israel
sejo, de promessa, de preceito, permanece sua ação enquanto conheceu Javé, quando no Egito experimentou seu poder
dura o processo que desencadeou. Sua eficácia é tanto libertador. Meditando continuamente sobre esse poder ili-
maior, quanto mais potente a vontade que lhe deu origem mitado de Javé, que utilizava os elementos naturais na sal-
( como a dos reis, de Deus) ou mais profunda a .fonte de vação de seu povo (pragas do Egito, travessia do mar,
que jorrou ( amor, ódio). A palavra libera uma energia que teofania do Sinai), chegou à crença na criação, após ma-
já não poderá ser recuperada: sua eficácia aparece princi- turação orgânica e homogênea influenciada pelo meio am-
palmente nas mudanças de nome que determinam uma biente. Compreendeu Israel que o mesmo Deus que o
nova atribuição ou vocação ( Gên 17 ,5 .15; 35, 1O) e nas suscitara do nada da escravidão, também do nada fizera
formas de bênção ou maldição (Gên 27; Jz 17,1-2; 2Sam surgir o cosmos. Sua soberania é universal. Gên 1 afirma
12, 1-8; Núm 5 ,12-13 ) . O realismo da palavra é confir- que Deus tudo criou por sua palavra: dá nome aos ser~s, e
mado ainda pelo fato de dabar designar não apenas a pa- a seu chamado eles surgem do nada; a palavra de Deus
lavra, mas também a coisa, a realidade, o acontecimento dá-lhes existência e subsistência. O salmo 33 é ainda mais
que ela suscita ( Gên 22,1 ;24,66; lRs 11,41). Em resumo, expressivo: "Uma palavra do Senhor criou os céus, e um
a palavra é uma força atuante cujo dinamismo se funda- alento de sua boca a todos ornou . . . porque ele diz, e é
menta no dinamismo mesmo de quem a pronunciou. Mal criado, ele ordena e tudo existe" ( SI 33,6.9). Uma vez
se distingue da pessoa, cujo modo de ser e de agir ela é. que a criação é o que foi dito por Deus, ela é também re-
Por isso é reveladora. Ninguém fala sem se revelar 29 • velação. Os seres são um eco da palavra daquele que os
nomeou, manifestam sua presença, sua majestade, sua sabe-
27 C. LARCHER, "La parole de Die~ en tant que révélation dans doria (Sl 19,2-5; Jó 25,7-14; Prov 8,22-31; Eclo 42,15-43,
l'Ancien Testament", em La Parole de Dieu en Jésus-Christ, p. 37-40.
28 J. PEDERSEN, Israel, its Life and Culture (London, 1946), p. 107.
ment, I, 201-202; L. DuERR, Die Wertung des gottlichen Wortes im A.
29 J. K. McKENZIE, "The · Word of God in the Old Testament",
T. und antiken Orient (Leipzig, 1938), pp. 149ss; G. VAN DER LEEUW,
Theological Studies, 21 (1960), 187-191; E. JACOB, Théologie de l'Ancien La religion dans son essence et ses manifestations ( Paris 1948), pp.
Testament, pp. 103-104; P. VAN IMSCHOOT, Théologie de l'Ancien Testa- 395-397. '
28 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 29
33; Sab 13,1-9). Deus aparece como que velado numa palavra de Deus 33 • Nesse estágio, a Lei absorve tudo: lei,
nuvem ( f:x 13 ,21 ) , abrasador como fogo ardente ( f:x 3,2; sabedoria, profecia. Expressão da vontade divina, é o ca-
Gên 15,17), atroante na tempestade (:Êx 19,16; SI 29,2ss), minho de vida e de salvação (Dt 30,14;32,47;8,3 ). Con-
suave como a brisa leve (1 Rs 19, 12ss ) 30 • E ainda mais: forme for aceita ou recusada será perdão ou julgamento,
a fonte sacerdotal, que repensa a criação em termos litúr- vida ou morte.
gicos, vê o universo como a expressão pa vont~d~ ~e Deus A revelação profética é a outra forma da revelação
que, pelos astros e estações, regula os tempos hturg1cos, os histórica. A expressão "palavra de Javé", em 225 casos
sábados e as festas ( Gên 2 ,2-3 ) . Também por sua pala- num total de 241, serve para designar a palavra recebida
vra governa Deus os fenômenos da natureza: a neve, a ou proferida pelo profeta. Devido à sua importância, essa
geada, os ventos (SI 107,25;147,15-18;148,8; Jó 37,5-13), forma de revelação exige um tratamento especial.
as águas do abismo (Is 44,27;50,2). Às suas ordens as-
tros e elementos combatem por Israel (SI 46,7;106,9-12;
107 ,25). Afora a revelação primitiva narrada nos primei- IV. A REVELAÇÃO PROFÉTICA
ros capítulos do Gênesis, a revelação histórica ( para dis- A revelação do Sinai constitui sempre o bloco cen-
tingui-la da cósmica) começa com Abraão, Moisés e os tral da revelação; mas, se perdurou no Antigo Testamento,
profetas. Torna-se então a palavra plenamente inteligível. principalmente através da época dos reis e do exílio, se foi
Dirige-se Deus ao homem, interpela-o, torna-o participante aprofundada e desenvolvida, foi mérito principalmente dos
de seu desígnio, fala-lhe. Torna-se a revelação mistério de profetas. Quando retomam as leis e exigências da Aliança,
um encontro pessoal entre o Deus vivo e o homem. A fazem-no de maneira tão vigorosa que nos dão a impressão
Lei e a palavra profética são as formas privilegiadas dessa de criar coisas inteiramente .novas, como se fossem arautos
revelação 31 •
de uma religião que transcende e quase se opõe à da Lei.
A palavra, quando se impõe às coisas, é criadora; É que eles têm uma fonte secreta. De fato, a autoridade
quando se impõe aos homens, torna-se lei. As "dez pala- e originalidade do profeta vêm de sua experiência privile-
vrãs" do Sinai (f:x 34,28; Dt 4,13;10,4), pronunciadas giada: ele conhece Javé, pois Javé lhe falou e confiou sua
por Javé sobre a montanha, por entre fogo, constituem uma palavra. Foi admitido a uma intimidade toda especial junto
revelação da vontade do Deus da Aliança; Javé afirma-se
de Deus: chamado a partilhar do seu conhecimento, seus
então como o Senhor. O termo palavra aplicada aos costu- desígnios, suas vontades, para interpretá-los junto aos ho-
mes do Código da Aliança (:Êx 20,22-23,19), significa que mens 34 • Semelhante aos anjos que participam do conselho
tudo na vida cotidiana dos hebreus está submetido à von- divino (Jó 1,6; 2, 1; Zac 1, 11 ss), o profeta "assiste ao con-
tade de Javé e se passa na sua presença 32 • Q Deut~ronômio selho de Javé" (Jer 23,18.22; lRs 22,19-23) que lhe re-
depois aplica o termo palavra a todas as prescrições da velou seus desígnios ( Am 3,7 ) . Conhece os segredos do
Aliança, de tal modo que palavra serve para designar toda altíssimo ( Núm 24,16-17), pois ouviu as palavras de Javé
a Lei mosaica ( Dt 28,69). Por fim, o conjunto dos livros (1 Sam 15, 16 ) . Possui a palavra de Javé que lhe falou.
sagrados, principalmente· a Lei, serão considerados como Essa é a experiência fundamental do profeta. Nele
30 Israel, porém, não confunde Deus e a tempestade, Deus e a nuvem
etc. A palavra de Deus nem sempre é inteligível, mas é sempre _mani_fes- 33 A. ROBERT, "Le sens du mot Loi dans te psaume 119», Revue
tação do Deus pessoal. A nuvem, a tempestade, o fogo, a brisa leve, Biblique ( 1937), pp. 182-206. ·
manifestam a presença do Senhor e suas propriedades. 34 S. MowINCKEL, "La connaissance de Dieu chez les prophetes de
31 E. JACOB, Théologie de l'Ancien Testament, p. 104. L'Ancien Testament", Revue d'hist. et de phil. rel., 22 (1942), 75-76;
32 H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Testa- H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Testament, pp.
ment, p. 212. 166-170; W. EICHRODT, Theology of the Old Testament, 1, 344.
30 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 31
está a palavra de Javé (Jer 5, 13 ) . Foi colocada em sua conhecimento especial de Deus, próprio aos profetas, consiste
boca (Jer 1, 9; 5, 14 ) , ele a engoliu como ufil alimento ( Ez 3, em terem recebido a palavra de Javé, conhecendo-lhe a von- .... --, .....
1-3). Diversas vezes repete Jeremias que na _posse da pa- .,,. r-~-~~'~;:
tade e os desígnios, e, portanto, a faceta de seu ser vol- . ,..__,,, . .,,
lavra reside a diferença decisiva entre o verdadeiro e o
falso profeta (Jer 23,16-31). "Assim fala Javé" é habi-
tada para o mundo" n. . /~::7,. ,>
O p~ofeta receb~u a palavra não para ~ardá-la, m9:sj1 _. 'i l-"'°"'~:~,-:.(
tualmente a introdução da- mensagem profética, ou: "ouvi a para publicar e nunc1ar. É a boca de Jave (Jer 15,l9iJ ,,, <J}f1 é';
voz do Senhor" ( Is 6 ,8 ) , ou "assim me falou J a- :íh 7,1-2), como Aarão era o profeta de Moisés cujas pala':.: 1 \ ( ~ \ -
vé" (Is 8,11; Jer 11,21;15,l), ou "meus ouvidos _rece- vras proclamava (1h 4,16). Jeremias é constituído pro-\ · ~ . .,_~,, <~
beram esta revelação" (Is 22,14), ou: "veio a mim a feta porque Deus o enviou e lhe pôs na boca suas palavras. '·•.,:\::'.:.1~
palavra de Javé" 35 • Que essa palavra seja no profeta um O profeta é o arauto de Javé, escolhido, chamado para
pensamento como que repentino ou uma idéia lentamente proclamar as palavras que dele recebeu e ouviu. É o ho-
formada, ela sempre lhe "é dada", "veio a ele". Vinda mem da palavra (Jer 18,18) 38 • Está entre os homens como
que é um acontecimento sobrenatural. A experiência da intérprete, autorizado por Deus, de tudo que acontece no
palavra produz no · profeta a firme convicção de que está mundo ( tempestades, cataclismos, penúrias, prosperidades),
ouvindo uma palavra divina e não humana. Tem consciên- na hum,anidade ( pecados, mortes, obstinações) e na histó-
cia de não ter criado essa palavra que nele está, mas dele ria ( derrotas, vitórias, sucessão de impérios) 39 • É preciso
não vem (Jer 1,4-10), e que tantas vezes, aliás, vai contra -sublinhar o caráter objetivo e dinâmico da palavra. Javé
seus instintos e sentimentos naturais 3~. Diz Mowinckel: "O dirige a palavra ao profeta: chega-lhe esta como realidade
ativa, carregada da força que o próprio Deus lhe comunica.
35. ~ evidente que nessas expressões é preciso levar em conta as fór- O primeiro efeito dessa palavra manifesta-se no próprio
mulas redacionais; porém, já a sua freqüência é significativa. Os profetas
•tfitmam que Deus lhes falou e que sua palavra chegou até eles. Deve- profeta que a recebe: é tomado por uma força externa que
mos notar também que o tei;mo palavra de Deus não se verifica sempre o acomete e domina. Às vezes fonte de alegria (Jer 15,16),
do mesmo modo, nem com· a mesma intensidade. Na vida dos profetas há outras de opróbio (Jer 20,7-9), a palavra age como fogo
momentos privilegiados, quando a palavra de Deus apodera-se deles de
forma mais intensa. O momento mais importante é o de sua vocação. Por
várias razões não podemos indentificar sempre a palavra de Deus com objeto de uma comunicação divina é a própria experiência da palavra.
revelações diretas e formais. Essas razões ~ão as ~eguintes: a) . Os orá- Essa experiência impõe-se-lhe com força tal que ele, num julgamento
culos recebidos pelos profetas podem ter sido muito curtos, assim como intuitivo e imediato, reconhece a palavra e ao mesmo tempo a Deus
também uma visão pode exigir uma longa explicação. b) Normalmehte como seu autor. Alguém fala nele, ao passo que ninguém fala nos falsos
o profeta deve, ainda sob o impulso recebido, comentar a palavra de profetas (Jer 5,13;14,14;23;29,8-9; Ez 13,1-16). O critério é dado junto
Deus. c) Às vezes se trata de nova tomada de consciência de verdades com a palavra. Sem raciocínio explícito, o profeta percebe no efeito em
já conhecidas, em vista de situação nova. d) Acontece que às vezes si produzido a causa divina; na palavra reconhece o seu autor. A origem
os profetas reelaboram verdades já comunicadas a outros _profetas; }lm divina da palavra não é deduzida, mas experimentada vivencialmente,
profeta pode depender espiritualmente de outro, como Jeremias de Ose1as. de modo imediato, simultâneo. Cfr. H. W. ROBINSON, Inspiration and
Alguns tiveram discípulos que retomaram e explicitaram os · orá~?s Revelation in the Old Testament, pp. 194 e 274; J. SKINNER, Prophecy
do mestre. . e) A palavra recebida atualiza-se muitas vezes por ocas1ao and Religion (Cambridge, 1949), p. 196; I. SEIERSTAD, Die Offenba-
de fatos concretos, em função de acontecimentos da história. A pala".ra rungserlebnisse der Propheten Amos, Jesa;a und Jeremia (Oslo, 1946),
do profeta ilumina a história, seja voltando ao passado de Israel, pri_?- pp. 236-237. .
cipalmente sobre a eleição e a Aliança, seja estab~lecend? uma relaçao 37 "La connaissance spéciale de Dieu, propre aux prophetes consist
entre a história de Israel e a de outros povos, seJa mamfestando o es- en ceei qu'ils ont reçu la parole de Y ahvé, qu'ils connaissent sa volonté,
copo visado por Deus. Quanto a isso, crf.: C. LARCHER, "La parole de ses desseins, donc aussi le côté de son être tourné vers le monde". S.
Dieu en tant que révélation dans l' Ancien Testament", em La Parole de MOWINCKEL, "La connaissance de Dieu chez les prophetes de l'Ancien
Dieu en Jésus-Christ, pp. 56-58. Testament", Rev. d'hist et de phil. rel., 22 (1942), 85.
36 S. MowINCKEL, "La connaissance de Dieu chez les prophetes de 38 TH C. VRIEZEN, An· Outline of Old Testamént Theology, p. 241.
l'Ancien Testament", Rev. g!hist. et de phil. rel., 22 (1942), 8~-83. O 39 H. W. ROBINSON, Inspiration and. Revelation ·in _the Old Testa-
critério subjetivo que garante ao profeta ter ele sido verdadeiramente ment, pp. 161-164.
32 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 33
devorador (Jer 20,8-9), como uma força irreprimível (Jer vina em seu favor. Também a religião bíblica é essencial-
6,11). Impossível escapar-lhe. Javé falou, o profeta deve mente crença em fatos divinos, em intervenções de Deus
testemunhar. Nele a palavra é como uma luz e uma energia. na trama da história humana 43 • Tais fatos são principal-
Foi essa a experiência de Amós ( Am 3,8), de Jeremias mente os que marcaram o nascimento de Israel como nação:
(Jer 20,7-9), de Isaías (Is 8,11), de Ezequiel (Ez 3,14), libertação do cativeiro do Egito, marcha pelo deserto, con-
de Elias (lRs 18,46), de Eliseu (2Rs 3,15) 4-0. O profeta quista da terra prometida. Por quarenta anos Javé caminhou
está ligado a Deus por sua palavra. com seu povo, conduziu-o como pastor. Só ele o protegeu,
A palavra de Deus, além da ação sobre o profeta, tem defendeu, salvou. Nesses acontecimentos apóia-se a fé de
uma eficácia própria, independendo do profeta: um valor Israel, e seu credo consiste em recitá-los (Dt 26,5-10). Nos
sacramental. Quando Javé lança sua palavra nada lhe pode tempos seguintes, os profetas constantemente se referem a
barrar o movimento: segue seu caminho e realiza sua obra 41 . eles, seja para chamar Israel de volta à felicidade, à Aliança,
Destruição, morte, fome, salvação, fuga de exércitos: tudo seja durante o exílio, para anunciar um novo :Êxodo, nova
acontece segundo a palavra que é verdade ( lRs 15,29;16, Aliança (Éx 36-37; Is 54-55). 44 •
12; 2Rs 1,17;7,16;9,26;10,17). A palavra do profeta, que A ação divina, que faz da história uma obra de sal-
é palavra de Deus em palavras humanas, participa dessa vação ou de condenação, é duplamente o efeito da palavra:
eficácia. Recebe Jeremias poder "sobre as nações e sobre é a palavra de Javé que suscita e dirige os acontecimentos,
os reinos, para extirpar e abater, para destruir e demolir, como também é a palavra de Javé que lhes interpreta o
para construir e plantar" (Jer 1,9-10; lSam 16,4; 2Rs 2, sentido. Por sua palavra, antecipa-se Deus ao acontecimen-
24 ) . A palavra de Deus é como o martelo que despedaça to, anuncia-o, pois Aquele que é o primeiro e o último sabe
as pedras (Jer 5,14;23,29), ou como a espada que mata o que afinal acontecerá ( Is 41,4;43,10;44,6;48,12). "Não,
(Os 6,5). Não é jamais estéril (Is 45,23;31,2). "Permanece o Senhor nada faz sem revelar o seu segredo aos seus ser-
perene" como o próprio Javé ( Is 40,6-8) 42 • Não que vos" ( Am 3, 7 ) . Todas as etapas decisivas da história de
seja uma força indomável. Deus continua sendo o Se- Israel foram precedidas pela palavra: criação ( Gên 1,3),
nhor e dirige-lhe os efeitos conforme seus planos; e esse dilúvio ( Gên 6,7), vocação de Abraão ( Gên 12,1), voca-
plano revelado_ pouco a pouco é a salvação e a vida do ção de Moisés e saída do Egito (:Êx 3,14,30-31 ), marcha
homem. Por isso, principalmente no Antigo Testamento, desde o Horeb até Canaã (Dt 1,6;6,2.18.31;3,1.27.28),
Deus tem paciência, atende, deixa-se dobrar, perdoa e até vocação de Samuel (1 Sam 3 ) , realeza (1 Sam 8, 7; 9, 17;
mesmo se arrepende. 10,17-24), eleição de Davi (lSam 15,10;16,12), aliança
Campo de ação da palavra profética é a história, da com a dinastia de Davi na profecia de Natã ( 2Sam 7 ) , di-
qual é criadora e intérprete. A revelação de Deus, com visão do reino de Israel ( 1Rs 11,31 s ) , queda da casa de
efeito, chegou ao povo hebreu pela experiência da ação di- Acab (lRs 21,17-24), o exílio (Jer 25,1-13), ruína de Je-
rusalém (Ezl-23), retorno do cativeiro (Is 40,2;43,1-5;
4-0 P. VAN lMSCHOOT, Théologie de l'Ancien Testament, I, 171-172;
S. MowrNCKEL, "La connaissance de Dieu chez les prophetes de l'Ancien 44,21-23;48,20-21 ). Para Israel, a história é um processo
Testament", Rev. d'hist. et de ph. rel., 22 (1942), 77; E. JACOB, Théolo- que Javé dirige para um término que prefixou 45 •
gie de l'Ancien Testament, pp. 105-106. A palavra profética não apenas anuncia e suscita a
41 H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Testa-
ment, p. 170. história, mas também a interpreta. Está o profeta imerso
42 J. L. McKENZIE, "The Word of God in the Old Testament",
Theological Studies, 21 (1960), 196-197; E. JACOB, Théologie de l'Ancien 43 E. JACOB, Théologie de l'Ancien Testament,. pp. 153-154.
Testament, p. 106; P. VAN IMSCHOOT, Théologie de l'Ancien Testament, 44 Ibid., 154-155.
I, 203; TH C. VrnEZEN, An Outline of Old Testament Theology, pp. 45 J. L. McKENZIE, "The Word of God in the Old Testament'',
238-239. Theological Studies, 21 (1960), 198-199.

2 • Teologia da revelação
34 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 35
na história de seu tempo e é na atualidade dessa história soal, como Aquele que é (eficazmente), em oposição aos
que Deus lhe manifesta sua vontade e seu desígnio d~ sal- ídolos mudos e mortos. Como o Deus onipotente, senhor do
vação. O Deus do Antigo Testamento é um Deus de mter- cosmos e senhor das nações, que exige sejam obedecidas suas
venções e o profeta é que as interpreta, percebe e procla- leis. Os profetas, aos poucos vão educando Israel para uma
ma o seu valor salutar. Percebe o profeta o sentido divino
compreensão sempre mais profunda dos atributos divinos:
dos acontecimentos e o dá a conhecer aos homens de seu Amós põe em evidência sua justiça; Oséias, seu amor terno
tempo. Interpreta a história do ponto de vista de Deus 46 •
e ciumento; Isaías, sua grandeza e transcendência; Jere-
Se a própria realização da salvação na história já é palavra
mias ensina uma religião mais interior; Ezequiel lembra
de Deus, seu conteúdo preciso torna-se inteligível apenas as exigências da santidade de Deus; o Dêutero-Isaías leva
mediante a palavra do profeta. Revelação-acontecimento e para uma religião mais universalista. Ao mesmo passo
revelação-palavra, são como que as duas faces da palavra que em Israel se percebe mais claramente a transcendência
de Deus. A história da salvação é uma seqüência de interven- de Deus, mais também se percebe sua proximidade e sua inti-
ções divinas interpretadas pelo profeta. Para um israelita, midade. Porque o Altíssimo, o Deus três vezes santo e
narrar a história é o mesmo que interpretá-la à luz do que misterioso, é também um Deus que sai de seu mistério,
Deus manifestou a sei.is confidentes. Foi através dos acon- que trava um diálogo com o homem: faz-se Emanuel e
tecimentos do Êxodo, interpretados por Moisés, que o povo Esposo. Evolução patente no tema da Aliança. Entre o
hebreu conheceu Javé como o Deus vivo e pessoal, único, Deus transcendente e o Deus da Aliança, entre o Deus
onipotente, fiel, que salva seu povo e com ele faz aliança oculto e o Deus da palavra, há como que uma tensão cons-
para que, povo escolhido, lhe seja fiel na obra comum d_e tante que constitui, digamos, a dinâmica da revelação vete-
salvação ( Dt 6,20-24). Conseqüentemente, Deus, seus atn- rotestamentária. Ambos os polos exercem igual atração. Re-
butos, seus desígnios, se revelam, não abstrata, mas con- sulta um delicado equilíbrio entre o Deus do mistério
cretamente na história e pela história. A mensagem de re- e o Deus da revelação. Da solução desse contraste é que
velação está incorporada na história. Há progresso no co- resulta finalmente a harmonia do sentimento religioso do
nhecimento de Deus, mas através dos acontecimentos que fiel do Antigo Testamento.
a palavra de De1:1s anuncia, realiza, interpreta 47 • O outro aspecto da revelação veterotestamentária é
a salvação. Com efeito, a Aliança prende-se a um desígnio
V. OBJETO DA REVELAÇÃO
divino ( a um mistério, como o dirá são Paulo) oculto até
a plenitude dos tempos, mas cujos primeiros traços pro-
Podemos dizer que o objeto ou ·o conteúdo da reve- gressivamente os foi revelando Deus no Antigo Testamento.
lação veterotestamentária é duplo: revelação do próprio Javé Uma promessa de salvação reluz desde o protoevangelho
e revelação de seu desígnio de salvação. O Deus do Antigo ( Gên 3,15 ) . Por ocasião do êxodo, o Deus que Israel
Testamento revela-se inicialmente como um Deus vivo e pes- conhece é um Deus que salva seu povo do cativeiro, com-
bate a seu lado, entrega-lhe a terra prometida. Nasce a
46 H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Testa- Aliança nesse clima de salvação. Posteriormente a idéia da
ment, pp. 125-128, ln. Record and Revelation ( Oxford, 1951), pp. Aliança se prolonga na idéia do reino. Pela profecia de Natã
303-304; H. BuTTERFIELD, Christianity and History ( London, 1954), p. ( 2Sam 7, 16 ) , Javé conclui uma aliança eterna com Davi
3; G. E. WRIGHT, God who acts, p. 13.
47 W. ErcHRODT, "Offenbarung und Geschichte im Alten Testa- e sua dinastia. A experiência do reino, porém, como a da
ment", Theol. Zeitschrift, 4 (1948), 322-323; TH. C. VRIEZEN, An Ou- Aliança, acaba num fracasso. Pelo menos aparentemente.
tline of Old Testament Theology, pp. 31-34; H. M. FÉRET, Connaissance Pois Deus persiste em seu desígnio com uma continuidade
biblique de Dieu (Paris, 1955), pp. 36-40.
misteriosa, manifestando no próprio fracasso uma nova di-
.,.,
i

36 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO


A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 37
mensão da economia da salvação. Mesmo diante da infi-
gundo as exigências da AHança. Foi essa a pregação cons-
delidade de Israel e de seus réis, Javé anuncia, pelos pro-
tante dos profetas (Miq 6,8; Os 6,6; Jer 5,1-9;9,2-5;22,
fetas, uma nova Aliança, um novo reino, um novo rei (Jer 11,
15ss) 48 • Conforme às mudanças de situação, deve o homem
3.5;24,5-7; Ez 11,19-20; Jl 3,1-5; Zac 8,1-17;13,9; Is 2,3; constantemente renovar essa fidelidade a Javé 49 •
11 ) . Nos períodos de crise, é de um rei que Israel espera a sal:
Revelação e fé são correlativas. A fé do Antigo Testa-
vação. Pensam alguns que o próprio Javé, sem nenhum re1 mento, com efeito, corresponde exatamente ao tipo de reve-
humano, estabelecerá seu reinado; idéia que encontramos
lação que lhe foi feita. No Antigo Testamento a revelação
nos salmos. do Reino (SI 97;98; Zac 14,16). Segundo ou- era essencialmente lei e promessa de salvação; a, fé, princi-
tros a salvação virá com o misterioso filho de homem que palmente obediência e confiança. Falando a Abraão, ordena-
verr: sobre as nuvens do céu para receber investidura e -lhe Deus que abandone sua pátria, prometendo-lhe ao mesmo
missão.
tempo uma numerosa posteridade ( Gên 12, 1-3; 15 ,5-6 ) . Deus
Em alguns ambientes sacerdotais de Jerusalém e em empenha sua fidelidade ao mesmo tempo que dá sua lei ao
Qumrân, espera-se um Messias de raça sacerdotal. O~- pov(I de Israel ( Ex 19 ,3-8). Desde então, para um hebreu,
tros, fipal111ente, esperam a salvação pelo servo ?e Jave, acreditar é obedecer .e confiar; é reconhecer Javé como o
profeta e rei, que salvará pelo sofrimento. Israel vive dessa único Deus Salvador de Israel, o que lhe deu a lei e pro-
esperança de uma salvação que virá. meteu a salvação; é aceitar a sua vontade e fiar-se em suas
promessas. A fé em Maria, a flor do Antigo Testamento,
é pura obediência e pura confiança: obediência da serva do
VI. RESPOSTA DO HOMEM A REVELAÇÃO
Senhor ( Lc 1,38), confiança que exalta o Deus fiel a suas
promessas 50 •
Se Deus fala, o homem deve escutar. Não se recebe
a revelação bíblica numa contemplação da divindade, como
nos mistérios gregos e na gnose oriental, mas escutando VII. TRAÇOS CARACTERfSTICOS DA REVELAÇAo'
a palavra. Nesta terra ninguém pode ver a Deus (Ex _33,20).
Deus dá testemunho de si mesmo, pela palavra comunica-se ao A revelação veterotestamentária tem traços específicos
homem, mas foge à visão. Em sua realidade prof~nda é sem- que a distinguem de qualquer outro tipo de conhecimento:
pre o Deus insondável, o Totalmente Outro: esqmva-se o seu 1. A revelàção é essencialmente interpessoal. Antes
mistério. Samuel responde a Deus que o interpela: "F~a, que manifestação de alguma coisa é manifestação de Alguém
Senhor, que o teu servo escuta" ( _!Sam 3,10). ?scut~r in-
dica a primeira atitude do hor,nem ante a revelaçao: nao de 48 S. MowINCKEL, "Connaissance de Dieu chez les prophetes de
modo material e passivo~ mas em disponibilidade totalmente . l'Ancien Testament", Rev. d'hist. et de ph. rel., 22 (1942), 88-89; W.
füCHRODT, Theology of the Old Testament, 1, 389. ·
ativa. A palavra ouvida deve ser assimilada pela fé e p~a 49 TH. C. VRIEZEN, An Outline of Old Testament Theology, p. 240.
submissão, numa entrega de todo o ser, como o fez Abr8:ª? 50 P. DEMANN, "Foi juive et foi chrétienne", Cahiers Sioniens, 6
( Gên 15,6;24,7). Resposta à palavra deverá ser a docili- ( 1952), 89-103. Quanto a isso, a fé do Novo Testamento apre~enta mu-
dança de acentuação. Permanece o aspecto de obediência, mas o -de
dade do espírito e da conduta ( Miq 6,8). Israel, pela re- confiança não se manifesta com a mesma intensidade. Em o Novo Testa-
velação, conheceu -a Deus, ou seja: foi admitido gratuit~- mento domina o aspecto de conhecimento. A fé do Antigo Testamento
mente a uma _comunhão de pensamento e vontade com Jave. ansiava por uma salvação prometida; ainda obscura, objeto de esperança
e de confiança. Com a vinda de Cristo, essa salvação é fato consumado.
Esse conhecimento exige como resposta de Israel um apego Desde então nossa fé tem um conteúdo explícito e atual: o Cristo é o
total a Javé pelos laços da fé, da obediência e do amor. Filho de Deus, enviado pelo Pai, que sofreu, morreu por •nós, ressusci-
Quem ouviu a palavra de Javé deve cumpri-la, vivendo se- tou, está à direita do Pai, donde enviou seu Espírito. Tudo isso é objeto,
não apenas de esperança e de confiança, mas objeto de conhecimento e
38 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO NO ANTIGO . TESTAMENTO 39

a alguém. É Javé ao mesmo tempo sujeito e objeto da re- ao profeta e envia-o para falar. O profeta comunica os
velação, Deus que revela e Deus revelado, Deus que se dá desígnios e as vontades de Deus e o homem é convidado à
a conhecer e se faz conhecer. Javé, o Deus vivo, estabelece com obediência da fé; Mas, nem tôda visão é excluída, pois,
o homem relações de pessoa a pessoa. Alia-se-lhe como um de algum modo e em graus diversos, a palavra já afasta os
Senhor com seu servo; depois, progressivamente, como um véus que obscurecem o espírito e preludia a visão. Se não
Pai com séu filho, amigo com amigo, esposo com esposa. chegam os homens até a intimidade do Mistério, pela pa-
A palavra de Deus introduz o homem numa xowwvla., numa lavra eles já podem, de algum modo, dele se aproximar.
comunhão com Deus, para a salvação. Notemos ainda que, se a palavra exige do homem mais aten-
ção que a visão, ela indica um maior respeito da liberdade
2. A revelação bíblica é uma iniciativa divina. Não
humana por parte de· Deus: dirige-se ele ao homem, inter-
é o homem que descobre a Deus: é Javé que, antes, se ma-
pela-o, deixando-lhe a liberdade da aceitação ou da recusa.
nifesta, quando .quer, a quem ele quer. Javé é liberdade A palavra, que, entre os homens é o intercâmbio mais espi-
absoluta. Foi ele quem primeiro escolheu, prometeu, fez ,ritual, será também o meio por excelência para o intercâm-.
Aliança. Sua palavra que contradiz a maneira humana e bio espiritual· entre Deus e o homem.
carnal de Israel julgar, faz brilhar ainda mais a liberdade · 4. _Pela revelação o homem é posto em confronto
e continuidade de seu desígnio. Manifesta-se ainda a liber-
com a palavra, uma palavra que exige fé e execução. O
dade divina na variedade de meios escolhidos para a reve- . pecado, desde logo, será recusar-se ·a escutar, não respon-
lação: a natureza, a existência humana, a história; na varie- der aos apelos do Senhor, endureceNe na resistência (Jer
dade das pessoas escolhidas ( sacerdotes, sábios, profetas, 7, 13; Os 9, 17 ) . Conforme fôr aceita ou recusada, a reve-
reis, aristocratas ou camponeses e pastores); na diversidade lação será para o homem graça ou condenação, morte ou
dos modos de comunicação ( teofanias, sonhos, consultas, vida ( Is 1,20). A sorte do homem dependerá da opção
visões, êxtases, arrebatamentos); na diversidade dos modos decisiva a favor ou contra a palavra. O objetivo porém da
de expressão ou de gêneros literários ( oráculos, exortações, re;velação é a vida e a salvação do homem, sua comunhão
autobiografias, descrições, hinos, reflexões sapienciais). -com Deus (Is. 55,2).
3. É a Palavra que dá unidade à economia da reve- 5 . A revelação é toda orientada para a esperança
lação. Essa primazia da palavra não é um postulado da fé,
mas um. fato perceptível pelo simples conhecimento his-
a
de 4ma salvação que há de vir. Torna impulso p'~rtir da
prom~l,Sa feita a Abraão· e tende para sua realização'. -Para o
tórico. As filosofias gregas e as religiões do período helê- . profeta o présente é apenas a realízaçãó · parcial âo futuro
nico procuram a visão da divindade. A religião do Antigo . anunciado, esperado, preparado e prometido, mas ainda
Testamento, pelo contrário, é a religião da palavra ouvida. oculto. O presente não tem sentido pleno a não ser pela
Deus revela e se revela pela sua palavra. Essa prevalência promessa, feita no passado, daquilo que será o futuro. Cada
do ouvir sobre o ver é uma das características essenciais revelação profética marca uma realização da palavra, mas
da revelação bíblica. Após o pecado, é pela fé na palavra deixa, ao mesmo tempo, lugar para a esperança de uma
que Deus traz a humanidade de volta à visão. Fala Deus realização ainda mais decisiva. O tempo bíblico não é, pois,
t~gipo cíclico, mas linear: algo de novo acontece na história
de re-conhecimento. Para o Novo Testamento, crer, é aceitar a pregação sob á direçãô de Deus. A história tende para a plenitude
dos apóstolos referente a esses acontecimentos;_ a fé é aceitação do qúé-
rigma cristão como verdadeiro (At 2,44;4,4.32;8,13). Em conseqüência, dOs tempos, que será a realização dos desígnios de Deus
pois, da vinda de Cristo, a fé do Novo Testamento tem caráter mais no Cristo e pelo Cristo.
explícito e mais doutrinal que a fé do Antigo Testamento. Cfr. J. ALFARO,
"Fides in terminologia bíblica", Gregorianum, 42 (1961), 504-505. Cfr.
também P. GRELOT, Sens chrétien de l'Ancien Testament, pp. 142-145.
40 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

VIII. CONCLUSÃO
2.
A REVELAÇÃO EM O N0VO TESTAMENTO
A pesquisa que até agora fizemos possibilita-nos _deli-
mitar mais precisamente a noção de revelação veterotesta-
mentária. Mostra-se-nos a revelação como a intervenção
gratuita e livre do Deus santo e oculto que, progressiva-
mente, se manifesta e torna conhecido seu desígnio salvífico
de estabelecer uma aliança com Israel, e depois com todos
os povos, .para, afinal, realizar na pessoa de seu Ungido a
promessa outrora feita a Abraão, abençoando em sua pos-
teridade todos os povos da terra. Intervenção que se con- A noção de revelação apresenta, em o Novo Testamen-
cretiza no âmbito da história, relacionada com os aconteci- to, maior complexidade e diversidade de tons que no An-
mentos da história interpretados pela palavra dirigida aos tigo Testamento. Entre ambas as Alianças deu-se um aconte-
profetas, numa comunicação que se revestiu de múltiplas cimento de capital importância: "Muitas vezes e de muitos
formas. Em termos da mística profética, a revelação é a modos falou Deus outrora a nossos pais, nos profetas; nes-
manifestação progressiva, em palavras, dos desígnios de tes últimos tempos falou a nós no Filho" ( Hebr 1, 1 ) . A
graça de Javé que desposa seu povo, a humanidade toda, Palavra íntima de Deus, na qual totalmente se exprime e
unindo-se-lhe para sempre na pessoa de seu Ungido. Agir conhece tudo, fez-se homem em Jesus Cristo, tornou-se Evan-
esse conceituado como palavra de Deus que convida para a gelho, palavra de salvação para chamar o homem à salva-
fé e a obediência; pala"ra essencialmente dinâmica, realiza- ção. Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o Filho está pre-
ção da salvação ao mesmo tempo que anúncio 51 • sente entre nós. Em termos humanos que podemos com-
preender e assimilar, . ele fala, prega ensina, atesta o que
viu. e ouviu no seio do Pai. O Cristo é o cume e a pleni-
tude da revelação. Mistério inesgotável, cujo esplendor
desvendam, revelam os escritores sagrados, cada qual se de-
morando num aspecto. A tradição sinótica descreve prin-
dpalmente a economia da manifestação histórica do Cristo,
ligando sua função de revelador a seu título de Messias,
51 Por fidelidade ao esquema de nosso estudo, agrupáínos os elemen-
doutor e pregador. Os Atos apresentam os apóstolos como
tos deste capítulo segundo a via expositionis. Teria sido .possível também testemunhas e arautos do -Cristo. São Paulo desenvolve a
organizá-los segundo a via inventionis. O processo seria o seguinte: 1) idéia da revelação a partir do tema do mistério e do Evan-
Introdução: primeiro lance de olhos sobre o Antigo Testamento como gelho. A Epístola aos hebreus compara a economia de am-
revelação; ausência de vocabulário técnico, mas presença de um elemento
comum, sempre ·encontrado: o dabar divino; qual o alcance exato desse bas as Alianças, exaltando as excelências da revelação em
dabar? 2) Parte descritiva: etapas da revelação, formas e meios de re- Cristo. Para São João, a função reveladora de Cristo radi-
velação; gêneros literários 3) Exame· dos resultados: onipresença do diá- ca-se na st1;a qualidade de Logos e Filho. As diversas ten-
logo, formando o contexto· dos acontecimentos da salvação; relações entre
a palavra e a Aliança e o profetismo; poder da palavra na boca de Javé tativas de penetração no mistério são como os · diversos
( palavra de criação, de salvação, de julgamento) e na boca de seus men- ângulos. de visão de uma só catedral, que permitem captar
sageiros; conteúdo da palavra; a palavra é mais que a nossa "palavra". toda a realidade _na sua unidade e complexidade.
4) Reexame dos . elementos segundo a via expositionis: revelação c6smica
e hist6ria; revelação profética; resposta do homem. 5) Síntese. Utiliza o Novo Testamento grande número de vocá-
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 43
42 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

bulos para tradtizir essa economia da revelação 1• As pala- acontecimentos paixão-ressurreição que desvendaram sua ver-
vras mais comuns são, entre os verbos: a.1toxa.:>..ó-rc-r&w, q,a.v&poüv, dadeira identidade, os títulos de Rabbi, Doutor, Profeta,
yvwplt&w ) cpw-rltEw > -x~púf'. O'~ELV &ú~vvE).l
. .1 1
E0'9tx.L > xa.-ra.yyÉÀ.À.EW
. ) ÕL.
foram. abandonados po_r inadequados e substituídos pelos
6áO'xEw, µa.p:-upEi:v, MyEw, i:v; en e os substantivos: à.1tox<i. de Cristo, Senhor e Filho de Deus. Que os sinóticos os
).ul!iLç Émcp<ÍVELIX. . xi'Jpvyµa. EÚa.yyÉÀ.LOV . µá;p-ruç µap-rupla. µa.p-rú. tenham conservados apesar de seu arcaísmo, é um teste-
pLov, J 6L6àO'xa.Ã.oç,' 6L6a.x1J, ' i1tLO'-r<Í-rT}ç,
. '
yvt'i'>O'LÇ,. ' .µUO''i',;'piov,' ).6yoç, munho de sua fidelidade histórica 3 •
à.).1J8ELa.. Para delimitarmos, pois, a noção de revelação será Habitualmente os sinóticos apresentam a Cristo pre-
insuficiente o estudo de apenas um vocábulo, por exemplo: gando e ensinando: os termos :X:TJPÚO'cr&w e 6L6á.O'xEw são os
d.1toxa.M1t-rEw. ·Se os termos nos devem manter alerta não mais usados. Mateus e Lucas agrupam-nos, às vezes, na
~~·"~ôctemos guiar somente por eles. Mais que às paÍavras mesma frase: "E Jesus percorria toda a Galiléia ensi-
devemos. estar atentos ao tema da revelação, à sua realida- nando nas suas sinagogas, pregando a Boa-nova do 'reino"
de e à realidade conexa, ou seja, à fé. É o único caminho (Mt 4,23;11,1; Lc 20,1 ). Aparecem novamente juntos em
que nos parece possível. divers?s _tex_tos dos Atos (At 4,2;5,42;15,35;28,31 ). Mar-
cos diz mdiferenteniente que o Cristo ensina ( Me 1,22 )
ou prega (Me 1,39), percorre as aldeias ensinando (Me
I. A TRADIÇÃO SINóTICA 6_,6) ou preg~ndo (Me 1,38). Segundo Lucas, Cristo en-
1. Os vocábulos sina ou anunct~ a Boa-nova no templo (Lc 19,47;20,1 ), ele
prega ou ensina nas cidades e aldeias, pelos caminhos
Na tradição sinótica os termos que principalmente des- e por toda a região ( Lc 13 ,22 ;23 ,5). Pode-se contu-
crevem a ação reveladora de Cristo são: pregar, no sentido do, perceber matizes diversos em ambos os' termos.
de proclamar ( "TIPÚO'O'ELV), pregar o Evangelho ( XTJPÚO'O'EW -rb KTJpÚO'O'Ew sig?-ifica procl~mar ( de um modo ainda glo-
E~f>to_v ) , evangelizar ( E~r:r,0$J!"8a.L), ensinar ( 6L6MxEw), bal) a novidade inaudita do Reino de Deus realizado
revdfãrlà.~,i::w) 2 • o-Crfstõ'{f'o Rabbi, o Doutor, que ~m J_esus Cristo, enquanto o termo 6L6á.crimv significa
interpreta as Escrituras com a autoridade de um mestre mstrmr ?etalhadamente nos mistérios da fé e precei-
de Israel. Títulos que atestam o respeito dos discípulos e t?s morais. Ao passo que o quérigma corresponde prin-
do povo pela palavra sapientíssima de Jesus. Para o povo, cipal?-1ente ao aspecto dinâmico da palavra, a 6L6a.x'ÍJ evi-
Jesus é também um profeta, repleto do Espírito, em cuja dencia antes seu aspecto noético. O ensinamento acom-
boca estão as palavras de Deus. Como os profetas ele prega panha normalmente o choque do primeiro anúncio da sal-
e apresenta sinais. Cristo não recusa esses títulos mas nem vação 4.
tampouco os reivindica. Pois é mais que um profeta e
rabbi: é o Filho que partilha dos segredos do Pai. À luz dos 2. O Cristo como pregador

1 H. ScHULTE, Der Begriffe der Offenbarung im Neuen Testament Pela sua pregação Cristo continua a tradição dos pro-
(München, 1949). fetas, que eram os arautos de Deus, os mensageiros e in-
2 Quanto aos principais termos que os Sin6ticos usam para designar
a revelação, veja principalmente: G. FRIEDRICH, ":itTJpUO'O'W, x1Jpuyµa.", térpret~s de sua palavra (Ex 4,15-16;7,l; Jer 1,9). Deus
Theol. Wotterbuch, 3: 701-717; Id. "Eúa.yy&Ã.ltoµa.L, EÚyyÉÀ.Lov", ibid., os envia p~ra gritar aos ouvidos (Jer 2,2; Is 58,1 ), publi-
2: 705-735; K. H. RENGSTORF, "6L6ii0':itw, 6L6á.crxa.À.oç", ibid., 2: 138-168; car, anunciar (Jer 4,5;50,2; Zac 1,14.17), proclamar 0
G. K1TTEL, "à.xoúw", ibid., I, 216-223; A. ÜEPKE, "à.1toxcx.Ã.u1t-rw, à.1to-
xcx.Ml!iLç", ibid., 3, 565-597; D. MOLLAT, art. "~vangile", Dict. de spirit.,
4, 1747-1751; H. NIEBECKER, Wesen und Wirklichkeit der übernatur-
licben Offenbarung (Freiburg, 1940).
! P.-A.
V. TAYL~R,, The N~,mes of, Jes'fs jLondon, 1954), pp. 12-17.
LIEGE, art. Évangelisat1on , Catholicisme, 4, 756.
44 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMEN'f_O 45
seu Dia, a sua vontade, _suas intenções, promessas, ameaças. 14s;8,28; Mt 21,11 ). Conforme São João os que ass1st1-
K'Y)p\Í<i<iEwé freqüente em Joel e Jonas como apelo à peni- ram os milagres dos pães proclamam: ~Este é, na verdade, o
tência. Jonas, arauto típico do Antigo Testamento, prega profeta que deve vir ao mundo" (Jo 6, 14 ) .
( 3,4) e como conseqüência Nínive decreta um jejum ( 3,5) Con,tudo, o Cristo quando fala de si mesmo não rei-
e proclama a penitência (3,7). João Batista, "o profeta vindica o título de profeta. Tem consciência, sem dúvida,
do Altíssimo" ( Lc 1, 76-77 ) , é a voz anunciada por Isaías de sua afinidade com os profetas: como eles penetra os
( Is 40 ,3 .6), que vai adiante de Javé anunciando sua che- segredos de Deus ( Me 4,11), prevê, para si a sorte dos
gada. Nele resplandece a palavra de Deus. Sob a profetas (Mt 13,57; Lc 13,33 ). Como revelador, porém,
ação potente do Espírito "proclama um batismo de p~ni- pela excelência de sua pessoa, sobrepassa os profetas. É
tência para remissão dos pecados" ( Lc 3 ,3 ) . É o arauto maior que Jonas (Mt 12,40 ), Moisés e Elias (Me 9,2-10;
do Messias que vem (Mc·l,6-8; Mt 3,11-12; Lc 3,16-17). Mt 17,1-13; Lc 9,28-36), Davi (Me 12,35-37; Mt 22,41-
Os sinóticos caracterizam a missão do Batista com o verbo -46; Lc 20,41-44) e João Batista (Lc 7,18-23; Mt 11,2-6).
X'YJpÚ<i<iEW (Mt 3,1; Me 1,4.7; Lc 3,3) 5• Na parábola dos vinhateiros· coloca-se acima dos profetas
Cristo inicia seu ministério à moda dos profetas e como o filho acima dos servos ( Me 12, 1-12 ) . Leva à per-
do Batista, pregando a Boa-nova do Reino, e a penitência .íx1ção a lei e os profêtas ( Mt 5 ,17). Ele não diz: "Assim
que introduz no Reino: "Começou Jesus a pregar e a di- fala Javé", mas: "Eu, porém, digo-vos" (Mt 5,22.28.32) 6 •
zer: convertei-vos, porque está próximo o reino dos céus" O Cristo não somente prega, chama também outros a
(Mt 4,17; Me 1,14-15). Na sinagoga de Nazaré aplica a participar de sua missão: "E constituiu doze deles, para
si mesmo as palavras do Dêutero-Isaías que mostram o andarem com ele, e para os mandar pregar" ( Me 3 ,14 ) .
Messias como profeta consagrado à evangelização dos po- Envia-os "a pregar o reino de Deus e curar os enfermos"
bres (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). Em Mateus, Cristo dá como {Lc 9,2; Mt 10,7-8). Dá-lhes esse poder, já durante sua
sinal de sua autenticidade messiânica o fato de que "aos vida e principalmente após sua ressurreição: "Ide por todo
pobres é anunciada a Boa-nova" ( Mt 11,5). Essencialmente o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura" (Me 16,
sua pregação é o Evangelho do Reino ou do Reinado: Cris- 15.20). O Evangelho não pode ficar oculto: "deve ser
to anuncia a inauguração desse Reino cuja iminência fora pregado a todas as gentes" ( Me 13 ,1 O), "em todo o mun-
anunciada pelo Batista ( Me 1, 15 ) . do" ( Mt 24, 14 ) . Os que acolherem a mensagem dos após-
Tendo reconhecido na pregação e nos milagres de tolos serão salvos; os outros, condenados (Me 16,16; Mt
Jesus o estilo dos grandes profetas, o povo o considera um 10,14; Lc 10,12-17). Entre a pregação de Cristo e a dos
deles. Exclamam as turbas após a ressurreição do filho apóstolos há continuidade.
da viúva de Naim: "Surgiu entre nós um grande profeta"
{Lc 7,16). Uns, vêem nele João Batista; outros Elias; 3. O Cristo como Doutor
outros, Jeremias ou algum dos profetas (Mt 16,14 ). Os
fariseus e sacerdotes têm medo de prendê-lo, pois as mul- O Cristo ensina: chamam-no Rabbi (Me 9,5;11,21;
tidões o consideram como um profeta ( Mt 21,46). Os 14,45; Mt 23,7;26,25), fü6ci<ixa.À.oç ou tm<i-.á.'t'YJÇ (termo pró-
discípulos de Emaús falam de Jesus Nazareno como de um prio a Lucas que o emprega seis vezes) . O povo ou os
"profeta poderoso em obras e palavras" ( Lc 24, 19 ) . Mais doutores da lei dão-lhe, umas quarenta vezes, o título de
. fü6á.<il!.a.Mç; mais de cinqüenta vezes aparece ó termo 6~6á.<ixew
ainda, baseando-se em Dt 18,18, as turbas designam Jesus
como o profeta esperado J?ara o fim dos tempos ( Me 6, 6 O. CuLLMANN, Christologie du Nouveau 1 estament ( Paris, 1958),
.i,p. 18-38, 42-47; F. G1ts, Jésus Prophete d'apres les Synoptiques (Louvain.
5 A. RÉTIF, Foi au Christ et Mission ( Paris, 1953), pp. 57-60. 1957), pp. 9-47.
46 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 47
para descrever seu ministério. Já aos doze anos Jesus en- as minhas palavras não hão de passar" (Mt 24,35). Nun-
sina no templo entre os doutores ( Lc 2 ,46-4 7). Durante ca se desdisse de uma só de suas palavras. Envia, final-
sua vida pública ensina na sinagoga (Me 1,21; Mt 4,23; mente, seus apóstolos a ensinar tudo quanto prescreveu, e
9 35) ou sobre a montanha (Mt 5,1-2). Às vésperas de está com eles até o fim dos séculos ( Mt 28,20).
s~a p~ixão, ho-lo mostram os evangelistas "ensinando no
templo" (Me 12,35; Lc 19,47;20,1; Mt ~1,23). Con!ra
os que o vêm prender, Cristo protesta: Todos os dias 4. O Cristo como Filho do Pai
me sentava a ensinar no templo, e não me prendestes" ( Mt
26 55 · Me 14 49). Ele tem discípulos, como os doutores Se o Cristo é em si mesmo a mais alta manifestação
de,Isr~el (Me 4,34;6,37-41;11,1-6); forma-os e instrui co~o profética possível, se ensina com tão grande autoridade,
deve-se ao fato de ser ele o filho único, o herdeiro ( Me
os rabinos de ~eu tempo. Muit~s vezes .º ensino_~ oca~io-
nal: responde as perguntas, corrige as atitudes ( cmme, i~s- 12,6), a quem o Pai tudo confiou ( Mt 11,27), e que o
tinto de vingança, vaidade, violência). Inculca-lhes os prin- Pai envia depois de seus servidores, os profetas (Me 12,6).
cípios da nova moral: pobreza, humildade, caridade. Mas Como um filho amado ( Me 1, 11 ; 12 ,6 ) ele chama a Deus
há também um ensino sistemático. Manifesta-lhes o sen- "meu pai" (Mt 7,21;10,32-33;11,27;12,50). " ..•J~"íngi!ém
tido das parábolas, "porque a vós foi dado serdes postos a conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho
par dos mistérios do reino dos céus" (Mt 13,10-12; Lc -o quiser revelar" (Mt 11,25-27). Ninguém conhece (Lc:
·yLvwaxEw; Mt: E1tLywwaxtw) com aquele conhecimento que é
8,9-10). Dá-lhes esclarecimentos sobre sua paixão e res-
surreição (Me 8,31;9,30-31 ). Entretem-se com eles de mo- também experiência, a vida íntima e profunda do Filho,
do particular, como após a Ceia, quando lhes dá o essen- senão o Pai; e ninguém conhece a vida íntima, e prof~n-
cial de sua doutrina. Instrui também o povo: senta-se, ex- da do Pai senão o Filho. Ambos conhecem-se pelo sim-
plica, interroga (Mt 13,1-53; Me 10,1;4,1-10). Com os ples fato d~ estarem face e face, como duas_ ~randezas igu~is
escribas e fariseus, discute e polemiza ( Me 8, 11; 1O,2; 3, e da mesma ordem. E ninguém pode participar desse mis-
22-30 ). tério de conhecimento mútuo sem uma revelação gratuita.
O Cristo ensina, mas seu ensinamento tem caracterís- O Cristo, que é o Filho, é o perfeito Revelador d? Pai;
ticas absolutamente únicas. Desde o início seus ouvintes só ele conhece o Pai e seus segredos, cujo conhecimento
são arrebatados: "E maravilhavam-se por causa de sua dou- comunica a quem bem lhe apraz 7 ". Aos discípulos esco-
trina, pois os ensinava como quem tem autoridade" ( Me lhidos "foi dado", como uma graça, conhecer os mistérios
1,22;11,28; Lc 4,31-32; Mt 7,28-29). Impõe-se pela sabe- do Reino dos céus (Mt 13,11; Me 4,10-12).
doria de sua doutrina e pela autoridade de sua pessoa. Também o Pai revela o Filho: aos "pequenos", que
"Subleva o povo, acusavam-no, ensinando por toda a Judéia, reconhecem sua indigência diante de Deus ele revela o mi -
a começar da Galiléia até aqui" ( Lc 23 ,5). O Cristo não é tério a a o ris to; foi por revela ão o Pai que
um simples rabi: é o Mestre (Mt 23,10). Os doutores de Pedro reconheceu a ris o ue é na realida e t
Israel limitam-se a comentar a lei; o Cristo interpreta, cor- 7 Sobre esse importante logion dos Sinóticos, veja: J. DUPONT,
rige, aprofunda. Às prescrições de uma moral imperfeita, Gnosis (Paris, Louvain, 1949), ~P- 58-62; _A. ~~UILLET, "J~s~s et la
substitui exigências que penetram até o âmago dos cora- Sagesse divine d'apres les Évangiles Synopttques , Revue_ Bz~lzque,. 62
( 1955), 161-196; L. CERFAUX, "L'Évangile de Jean ..et le log1on J~hà~mqu»e
ções. Fala com a autoridade de Javé: "Eu, porém, digo- des -Synoptiques" em L'Évangile de Jean (Col. Recherches b1bhques ,
-vos" ( Mt 5 ,22 .28 .32 ) . Quem constrói sobre suas pala- Louvain, 1958), 'pp. 147-159; Id. "Les sources scripturaires de Mt 11,
vras, constrói sobre a rocha; senão, caminha para sua pró- 25-30" Eph. th. lov., 30 (1954), 740-746; 31 (1955), 331-342; L.
CHAR{IER, "L'action de grâces de Jésus (Mt 11,25-30)", Bible et vie
pria ruína ( Mt 7 ,24-28 ) . "Passarão o céu e a terra, mas chrétienne, 1957, pp. 87-99.
,.....,...

. 48 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM ·o NOVO TESTAMENTO 49


17). Ambas as revelações completam-se:· a· do Pai faz acolher condenado" (Me 16,15-16). O anúncio do Reino está,
a de Jesus sobre o Pai e os mistérios do Reino. Em vão soa a pois, ligado ao apelo à conversão, ou seja, a uma volta com-
palavra de Jesus se o Pai não dá às almas a compreensão do pleta de todo ser a Dçus. Jesus assim começa sua prega-
que ele diz. O Filho· não pode ser reconhecido pelo que ção: " ... está próximo o Reino de Deus; convertei-vos e
é sem uma luz concedida pelo Pai: graça recusada ao orgu- acreditai na Boa-nova" (Me 1,15; Mt 3,2; 4,17). Tiro e
lho dos "sabias". A aceitação da revelação divina é obra Sidônia, no dia· do juízo, serão julgadas com menos seve-
da graça. ridade que as cidades da Galiléia que aos milagres de Cristo
opuseram sua recusa (Mt 11,20-24; Lc 10,13-15). Erguer-
-se-ão os ninivitas para condenar os judeus que rejeitaram
5. A fé, resposta do homem quem é maior que Jonas e Salomão (Mt 12,41; Lc 11,31 ).
No dia do julgamento os pregadores testemunharão contra
Os apóstolos, introduzidos por Cristo no mistério do os que não quiseram escutar sua mensagem (Me 6,11;13,
Pai e do Filho, acolheram com fé sua palavra. Resposta 9; Mt 10,15; Lc 10,12) .8•
condizente com a pregação da Boa-nova é a fé (Me
16,15-16). São os homens convidados a escutar e com-
preender ( Mt 13 ,23 ) , isto é, a aceitar na fé a palavra de
6. Conclusão
Deus e viver de acordo (Me 4,20; Mt 7,24-27; Lc 6,47-
-49; 8 ,21; 11,28). _Cristo faz a oposição entre os g_ye ouvem Na tradição sinótica, portanto, Cristo é o Revelador
a. palavra e a õem em rática · os ue ouvem sem assar enquanto proclama a Boa-nova do Reino dos céus e ensina
~vive- a: casa a icer a a sobre rocha e casa alicerçada sobE com autoridade a palavra de Deus. Afinal, se ele revela,
.areia (Mt 2,24-27) 2 .· . é por ser o Filho que conhece os segredos todos do Pai.
Para muitos, infelizmente, a palavra é estéril ( Me 4, Quando Cristo tiver terminado sua obra, os apóstolos de-
15-19). Com efeito, Deus revela-se de forma tão desorien- verão, por sua vez, revelar o que o Mestre lhes confiou; em
tadora que a revelação se pode tornar para os homens pe- outras palavras, deverão pregar o Evangelho da salvação, en-
dra de escândalo, ocasião de incredulidade. Os habitantes sinar, convidar os homens à fé. A fé, dom de Deus, revelação
de Nazaré rejeitam a Cristo por que conhecem sua origem do Pai, é a resposta do homem à pregação do Evangelho.
mode_sta ( Me 6,3). As palavras de Cristo sobre o perigo O conteúdo essencial da revelação é a salvação oferecida à
das riquezas (Me 10,23-27), o Messias sofredor (Me 8,31; humanidade sob a imagem do Reino de Deus, anunciado
9 •? 1 ) , são incompreensíveis até para os discípulos. A sua e iristaurado por Cristo. Chegou o tempo à sua plenitude:
atitude ante os costumes judaicos ( Me 7, lss; Lc 11 38-40 ) em Jesus Cristo está presente e atuante o Reino de Deus 9 •
ante o sa'bado (Me 3,1-6; Lc 13,10-17;14,1-6), seu' relacio-' O Cristo é, ao mesmo tempo, quem anuncia o Reino e aquele
namento com os publicanos e pecadores (Mt 11,19; Lc 7, em quem o Reino se realiza. ·
34; Me 2, 16 ) , sua pretensão de perdoar os pecados ( Me
2,5s; Lc 7,48), s4a morte na cruz (Me 15,29-32): são ou- II. ATOS DOS APóSTOLOS
tras tantas pedras de tropeço.
Cada qual será julgado por sua atitude diante da pa- Os Atos refletem a linguagem da Igreja primitivà e
lavra. Sendo a revelação anúncio de salvação coloca os !>Ua nova fé. Pouco a pouco vai-se tornando mais preciso
homens diante de uma opção da qual depende ;ua salvação 8 J. ScHMID, Das Evangelium nach Matthaus (Regensburg, 1956),
ou condenação: " ... pregai o Evangelho a toda criatura. pp. 201-203.
Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será 9 D. MoLLAT, art. "Évangile", Dictionnaire de spiritualité, 4, 1748.
50 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 51
o vocabulário do Novo Testamento, a partir das expres- l,8.22;2,32;3,15;5,32;10,39.41;13,31 ). São três as suas
sões de Jesus e do uso dos LXX 10 • características 13 • São escolhidos por Deus (At 10,41;1,26) 14.
Cristo dera a seus apóstolos a missão de "proclamar Associados a Cristo durante sua vida, viram-no após a ressur-
a Boa-nova" ( X'l}púacmv "º EvocvyyÉÀ.Lov) no mundo inteiro reição. Matias, que vivera com Cristo durante sua vida públi-
(Me 16,15), "fazer discípulos" (Mt 28,19), _e de "ensi- ca, passa a ser com os apóstolos "testemunha de sua res-
nar" ( 6L6cíaxEw ) tudo quanto prescrevera ( Mt 28 ,20 ) . Por surreição" (At 1,22). Testemunha por excelência é quem
ocasião de sua ascenção prometera-lhes seu Espírito: "Se- conheceu toda a obra de Cristo, do batismo à ressurreição
reis minhas testemunhas ( µcíp-.upeç) tanto em Jerusalém, que é o término e a coroa de um só e único proces·so de
como em toda a Judéia e Samaria, e até às extremidades da salvação 15 • Os apóstolos, que por toda parte seguiram a
terra" ( At 1,8 ) . Diante de Cornélia, declara Pedro que Cristo, que "comeram e beberam com ele após sua res-
o Cristo lhes "impôs pregar ao povo ( x'l}púaaEw) e atestar surreição" ( At 1O,41 ) , serão suas testemunhas no mundo
( füocµocp-.úpea-.oci) " que ele é o juiz dos vivos e mortos ( At todo ( At 1,8 ) . Lucas denomina-os "testemunhas oculares
10,42). Testemunhar, proclamar o Evangelho, ensinar, per- e servidores c,la Palavra" ( Lc 1,2). Testemunhar é, pois,
tencem à função apostólica. Dóceis à palavra do Sel)hor, a função própria dos que viram e ouviram a Cristo, que
~s apóstolos saíram, de fato, "pregando" (Me 16,20), "<;n- viveram em sua intimidade e tiveram, portanto,· uma ex-
smando" ( At 2,42;4,2.18;5;25.42; 11,26;17,19; 18,11 ;21, periência direta, viva, de sua pessoa, doutrina e obra. Ex-
21), "atestando" ( 1,22;2,32;3,15 ;5 ,30-32; 10,39; 13,31). periência indispensável, pois o Cristo não escreveu livro
algum, mas confiou aos apóstolos sua palavra viva. Por
isso, somente os que viram e ouviram o Cristo durante seu
1. Os apóstolos testemunham ministério terrestre, os que por ele foram longamente pre-
parados, podem testemunhar o que ele disse e fez 16 • De-
A primeira parte dos Atos insiste nos termos testemu- clara-o São João: "O que vimos e ouvimos, anunciamo-lo
nhas e testemunhar. · Testemunhar caracteriza a atividade também a vós" ( lJo 1,3 ). Concretiza-se a revelação pelo
apostó_lica nos primeiros tempos após a ressurreição. Os- depoimento dessas testemunhas apostólicas. Terceira carac-
que viram o ressuscitado, testemunham sua volta à vida terística da testemunha é a missão ou mandato que recebeu
tomando partido por ele ante os inimigos 11 • Testemunh~ de testemunhar (At 1,8) 17 • Como os outros apóstolos, foi
que tem, ao mesmo tempo, valor religioso e jurídico 12 . Paulo chamado para testemunhar, objeto que foi de uma
Testemunhas são, em primeiro lugar, os apóstolos (At eleição especial; viu a Cristo glorificado e recebeu seu en-
sinamento; foi enviado para dar testemunho diante dos
10 Q1;~ntc_i aos vocábu1,os, além dos artigos do Theologisches Wor- homens ( At 22,14-15). Apareceu-lhe Cristo para que fosse
terbuch, Ja citados no paragrafo anterior, veja: H. STRATHMANN, ".µcíp- "ministro e testemunha" de sua gloriosa ressurreição ( At
'tUÇ, µocp-.uptw,_p,ocp-.uploc",.~ 4, 492-514. Quanto à função dos após-
tolos na revelaçao, veJa prmctpalmente: R. AsTING, Die Verkündigung 26,16). Nele também podemos encontrar as tres condi-
tes, W, artes Got~es i1;' 7!rchris~entum ( Stuttgart, 1939); L. CERFAUX, ções que caracterizam a testemunha 18 • Evidente que Paulo
Temoms du Chrtst d apres le Livre des Actes", Recueil Cerfaux (2 vol.,
Gembloux, 1954), 2, 157-174; A. RÉTIF, Foi au Christ et Mission (Paris,
1953); N. BRox, Zeuge und Martyrer (München 1961)· Ph.-H. MENOUD 13 N. BRox, Zeuge und mrirtyrer, p. 46.
"Jésus et ses té~oins"; liglise et Théologie, junho 1960, pp. 1-14; A.-M'. 14 Quanto a Matias, a eleição mediante sorte exprime a vontade de
~UNTER, Un. Setgneur, une ~~lise! un salut (Paris, 1950); J. ScHMITT, Deus.
Jesus ressusc1té dans la pred1cat10n apostolique (Paris, 1949); C. H. 15 N. BRox, Zeuge und Mrirtyrer, pp. 44-45.
Donn, The Apostolic Preaching and its Developments (London, 1936). 16 Ph.-H. MENOUD, "Jésus et ses témoins", Église et Théologie,
11 L. CERFAUX, "Témoins du Christ d'apres le Livre des Actes" junho, 1960, pp. 5-6.
Recueil Cerfaux 2, 157. · ' 17 N. BRox, Zeuge und Mrirtyrer, p. 46.
12 A. RÉTIF, Foi au Christ et Mission, pp. 40-47. 18 Ibid., p. 46.
52 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 53

nífo foi testemunha ocular de toda a vida terrestre de Cris- cerca (At 4,8.31;5,32;6,10). Recebido o Espírito, "com
t?, que lhe mostrou, porém, a realidade de sua vida glo- grande poder os apóstolos davam testemunho da ressur-
riosa e lhe deu a conhecer ao mesmo tempo sua identidade reição" ( At 4 ,3 3 ) . Quando atestam, o Espírito testemunha
c?m Jesus de Nazaré ( At 22,6-8): o mesmo Jesus que es- com eles· ( At 5 ,32); seu poder sustenta-os e atua para atrair
tivera morto, agora está vivo ( At 25, 19 ) . · Assim Paulo seus ouvintes, convencê-los, ou confundi-los se resistem.
é verdadeiramente testemunha do Cristo de Nazaré morto Assiste-os o Espírito, sustenta-os com sua força, principal-
e ressuscitado 19 • ' mente nas perseguições quando é preciso confessar o Cris-
Os apóstolos são, em primeiro lugar, testemunhas da to, não apenas com palavras, mas também pelo sofrimento.
ressurreição, pois é esse o fato essencial que garante tudo Está com os apóstolos perseguidos diante do Sinédrio ( At
que o precede e tudo que ainda deve vir,_ (At 1,22;2, 4, 8;5,41 ), com Estêvão (At 6,1-15) cuja confissão e con-
32;_3,13-16;4,2.33;5,30-31; 10,39 .41.42; 13,31); de maneira denação lembram o testemunho de Cristo ( At 7 ,54-60).
mais geral, porém, são testemunhas de tudo quanto viram Revestidos assim do Espírito, intrépidos e invulneráveis en-
e ouviram de Cristo ( At 4,20), de seus atos como de sua tre os inimigos, apoiados na força de Deus, assemelham-se
doutrina ( At 1,1). São testemunhas de toda a sua vida ( At os apóstolos aos profetas do Antigo Testamento. Estes
1,21), do batismo à ressurreição: "Nós somos testemunhas deram testemunho da salvação que deveria vir, num clima
de todas as coisas que ele fez na terra dos judeus e em de hostilidade e perseguições; os apóstolos testemunham a
Jerusalém". ( At 10,39). Testemunham a obra de salvação salvação realizada (At 10,43;26,22), também por entre
maugurada com sua morte e ressurreição: exaltou-o Deus perseguições (At 4,7;5,27;7,58). Um dia deverão tam-
"a fim de dar a Israel a conversão e a remissão dos pecados. bém eles confessar o Cristo até ao martírio (Jo 21,19),
E nós somos testemunhas dessas coisas" ( At 5 31 ) . Deus completando em si mesmos a imagem do Cristo, a Teste-
(( • A • )

i~pos-n?s anunciar ao povo e atestar que ele é aquele que munha perfeita (1 Tim 6) 3). No Apocalipse ( 11,3 ) , de-
foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos ( At pois que "as duas testemunhas" - os profetas e apósto-
1O,42). Os apóstolos são testemunhas de toda a obra do los - prestam o seu testemunho, a besta que sobe do abis-
~risto: da que se orienta para a paixão-ressurreição e da que mo os mata (Apoc 11,7). Após tres dias, porém, sobem
maugura a paixão-ressurreição 20 • aos céus ante seus inimigos ( Apoc 11,12). Entre o Cristo,
O testemunho apostólico é dado sob o poder do Es- Testemunha do Pai, e os apóstolos, testemunhas do Cristo,
pírito: "Recebereis uma força, a do Espírito Santo ... se- há uma continuidade na missão, no testemunho, na morte,
reis então minhas testemunhas" ( At 1,8) : isto é: ensi- na glória 22 •
nando e fortificando, o Espírito vos possibilitará dar teste-
munho em meu favor. De fato, essa é segundo os Atos
a ação do Espírito 21 • Instrui os apóstolos: o testemunho 2. Os apóstolos proclamam a Boa-nà-va
deles manifesta um superior conhecimento das Escrituras
e supera o que se poderia esperar de homens "sem instru-
ção n~m. cultura" (At 4,13 ). Dá-lhes o Espírito coragem e
constancia para testemunhar apesar da hostilidade que os
à ativid
19 Ph.-H. MENOUD, "Jésus et ses témoins», Eglise et Théologie, uma atl postólica, baseada n -
junho, 1960, pp. 8-9. ção privi egia a dos que viram e ouviram, enquanto x"l]púe1e1i::w
20 L. CERFAUX, "Témoins du Christ d'apres le Livre des Actes",
#F'kJcJ-ci.~
Recueil Cerfaux, 2, 159.
21 Ibid. 2, 164. 22 Ibid., 171-172.
54 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 55
põe em evidência o caráter dinâmico, publicitário, do teste- gentios. As atitudes de Pedro e Paulo são as dos arautos.
munho. Aplica-se também aos outros pregadores ( At 15, Pedro, "está em pé" com os Onze e fala alto (At 2,14).
35; 18 ,25 ) . O testemunho implica fidelidade a uma expe- Inúmeras vezes seus discursos exigem atenção, intimam:
riência e coragem para atestá-la. Quérigma indica retum- prestai ouvidos ( At 2 ,14), ouvi ( At 2 ,22 ~, convert~i-vos
bância, poder, expansão, publicidade. É assim que Pedro, ( At 2,38), salvai-vos ( At 2,40). Tudo manifesta um imen-
no dia de Pentecostes, diante do povo, grita em alta voz so desejo de levar a todos e a toda parte a pal~vra "de
para tornar pública, notória, oficial, a Boa-nova da salvação Deus. Paulo tenta conquistar os grandes centros de mfluen-
pelo Cristo ( At 2,14). Filipe "proclama" o Cristo aos cia: Damasco, Corinto, Efeso, Atenas, Roma. A partir de
samaritanos ( At 8,5). Aos apóstolos foi mandado "pregar Pentecostes, homens de todas as nações ouvem a palavra
ao povo" (At 10,42). Desde sua conversão, Paulo "pro- ( At 2,5). Na pessoa de Cornélia, dirige Pedro sua men-
clama" que Jesus é o Filho de Deus ( At 9 ,20) ; "proclama sagem a todos os gentios (At 10,35.45). A pal~vra do
o Reino" (At. 20,25), o "Reino de Deus" (At 28,31). Evangelho é dinâmica, explosiva. É vontade de Cris~o que
Com o mesmo sentido de xripúcrcrew encontramos também seus pregadores atinjam todos os habitantes do universo.
EúayyeÃli:;Ecr"'c-a~. Pedro e João "evangelizam" muitas aldeias
Os arautos dos Atos, sob o domínio do Espírito, parecem
samaritanas ( At 8,25). ·Filipe "anuncia a Boa-nova de Jesus" tomados por uma febre que os força a gritar, procla~ar,
ao eunuco etíope (At 8,35). Paulo e Barnabé "evangelizam" anunciar, evangelizar. Não podem calar a salvação trazida
Derbe ( At 14,21). Paulo compreende, numa visão, que por Cristo 24 •
deve "evangelizar" a Macedônia ( A t 16, 1O) .
É com soberana segurança que se faz a proclamação
Evangelizar e ensinar aparecem juntos muitas vezes. do Evangelho confirmada e apoiada pelos sinais de poder
Soltos pelo Sinédrio, os apóstolos· não param de "ensinar ( At 2,43 ;3,16;5,12.14;8,6;9,35.42; 13,12). Garantidos pel_a
e proclamar a Boa-nova de Jesus" no Templo e nas casas promessa de Cristo, os apóstolos não temem fazê-los e so~i-
( At 5 ,42). Em Antioquia, Paulo e Barnabé, "ensinam e citá-los ( At 4,30). Renovam-se as cenas da vida de Cm-
anunciam a Boa-nova" (At 15,35). Apolo "prega e en- to: "E a multidão concorria a Jerusalém também das cida-
sina" o que se refere a Jesus ( At 18,25). Paulo, em Ro- des circunvizinhas, trazendo os enfermos e os atormenta-
ma, "proclama" o Reino de Deus e "ensina o que diz dos por espíritos imundos, e todos eram curados" (At 5,
respeito ao Senhor Jesus Cristo" (At 28,31) 23 • 16; 8 ,6-8; 19, 11-12 ) . Pelos sinais, Deus credencia seus en-
De muitos modos manifesta-se a finalidade publicitá- viados ante os ouvintes da palavra e os enche de segurança:
ria do quérigma. Pedro e Paulo dirigem-se às multidões "Paulo e Barnabé prolongaram, pois, por bastante tempo
(At 1,15-22;3,12;13,16) ou a grupos (At 10,44). Falam sua permanência ( em Icônio), cheios de segurança no Se-
ao ar livre, nas sinagogas, diante do Sinédrio. A pregação nhor que dava testemunho à pregação de sua graça, ope-
dos apóstolos reboa e tende a propagar-se entre judeus e rando sinais e prodígios pelas mãos deles" ( At 14 ,3; 19 ,8).
Mais precisamente, os milagres confirmam o testemunho
23 O ensino, ou catequese, sugere contudo instruções mais elabo-
dos que afirmam ter visto o Cristo ressuscitado. O poder
radas dirigidas aos recém-convertidos, uma exposição de tom didático em
que se explicam as Escrituras à luz do acontecimento cristão. É nesse de que dispõem atesta que Jesus, realmente ressuscitad? e
sentido que os primeiros cristãos "eram assíduos ao ensino dos apóstolos" glorificado por Deus, foi revestido de todo o poder. Feitos
(At 2,42). Os apóstolos ficam no templo e ensinam o povo (At 5,25.28). em nome de Jesus (At 3,6;4,30), os prodígios manifestam
Nomeiam os diáconos para que eles, os apóstolos, possam dedicar-se ex-
clusivamente "à oração e ao serviço da palavra" ( At 6,4). Paulo fica · a glória que lhe foi conferida quando de sua ressurreição.
ano e meio em Corinto "ensinando-lhes a palavra de Deus" (At 18,11).
Ao primeiro impacto da Boa-nova segue-se a proposição e a explicação 24 D. MoLLAT, "Évangile", Dictionaire de spiritualité, 4, 1751; A.
da doutrina cristã.
RÉTIF, Foi au Christ et Mission., pp. 61-76.
56 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 57
Tem Jesus um nome capaz de operar milagres em favor 2,38;5,31;10,43;13,38) e dá o Espírito, dom salvífico por
dos que nele acreditam 25 excelência ( At2,38). A característica do cristão é ser "repleto
do Espírito" (At 6,5;9,17;11,24;13,52) e por .ele gover-
nado 26 . ·
3. Objeto do testemunho e da pregação

O que os apóstolos pregam, ensinam, atestam, o que 4. A fé, resposta do homem


seus ouvintes são convidados a escutar e receber, é o Cristo
(At 5,42;8,5.35;9,20;18,5) ou a palavra do Cristo (At A resposta conveniente ao quérigma e ao testemunho
15,35), ou palavra sobre o Cristo (At 18,25;28,31). Pa- é a fé 27 • Os Atos descrevem o aumento contínuo dos cren-
lavra que, como no Antigo Testamento é palavra de Deus tes sob a ação da palavra (At 2,41;4,4;5,14;6,7;9,42;11,21;
(At 18,11;4,29-31 ), a palavra do Senhor (At 13,48;16, 13,43.48;14,1 ). Na origem da fé está a pregação que lhe
32). Mais concretamente, o que os apóstolos pregam, en- apresenta seu objeto (At 11,20-21 ). Crer, é "acolher a
sinam, atestam, é a Boa-nova da salvação pelo Cristo. Ilumi- palavra" (At 2,41;11,1), a "Boa-nova do Reino" (At 8,12),
nados pelos acontecimentos pascais, proclamam os apósto- a "Boa-nova do Senhor Jesus" (At 11,20), a "Boa-nova de
los que "não há sob o céu outro nome, dado aos homens, Jesus" ( At 8 ,3 5 ) . Pedro foi escolhido para que dele ou-
pelo qual possamos ser salvos" ( At 4,12). Pedro diz a vissem os pagãos a "palavra da Boa-nova e. cressem" (At
Cornélio: Deus "enviou sua palavra aos filhos de Israel 15,7). Paulo e Barnabé, em Icônio, "falaram de tal ma-
anunciando a paz por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor neira que grande multidão de judeus e gregos abraçaram
de todos" (At 10,36; Hebr 1,1-2). Em Jesus Cristo, glo- a fé" (At 14,1 ). Muitos coríntios "prestando ouvidos,
rificado na ressurreição e feito Senhor de todos, os homens creram e foram batizados" (At 18,8;17,11-12.34;13,48) 28 ,
são agora reconciliados. Pedro menciona a "palavra da A fé, segundo os Atos, é algo de global: é uma absoluta
Boa-nova" (At 15,7); Paulo, a do "Evangelho .da graça" e total adesão ao Cristo: é a fé no Senhor Jesus ( At 16,
(At 20,24 ). Concretamente, pois, a palavra de Deus é a 31),,no S:>nhor Jesus Cristo (At 9,42;11,17), em o nome
mensagem evangélica ( At 8, 4; 14, 7 ) , a "mensagem de sal- de-'Jesus ( At 3,16). É doação ao Cristo: aceita-o total-
vação" ( At 13 ,26) isto é, palavra que anuncia a salvação e mente, com tudo que isso implica. Comporta também uma
nela introduz. "conversão": quem acredita no Senhor, cohverte-se (At
Mais explicitamente, o conteúdo da palavra é em pri- 11,21).
meiro lugar· que Jesus ressuscitou (At 2,32;3,15;5,30;10, A fé não é simples obra humana. Ao mesmo tempo
4_1;13,31) e que, pela ressurreição, foi constituído juiz dos que ressoa externamente o apelo de uma pregação ampli-
vivos e dos mortos (At 10,42), Senhor e Cristo (At 2,36). ficada pelos sinais que a acompanham e credenciam como
É por ele que se concede a salvação: é o "Príncipe da vida" divina, internamente age Deus para torná-la assimilável à
(At 3,15), o "Salvador" (At 5,31;13,23), fora do qual alma. O apóstolo prega, mas internamente é Deus que pela
não á saJvação (At 4,12;5,31;10,43 ). Nele culmina e sua graça dá a possibilidade de acolher a palavra pela ade-
chega a seu termo toda a história profética ( At 3, 18 .21.24. são da fé. Lídia ouvia a pregação de Paulo: "O Senhor
25). Realiza-se a salvação pela fé em Cristo e pelo batismo
( At 2,41; 11,21; 18,8) que dá a remissão dos pecados ( At 26 J. ScHMITT, Jésus réssuscité dans la prédication apostolique (Pa-
ris, 1949), pp. 218-222.
25 J. DUPONT, "repentir et conversion d'apres les Actes des apôtres" 27 1tUT't'EÚELV aparece 39 vezes e 1tl0'-riç, 15 vezes.
Sciences Écclésiastiques, 12 ( 1960), 160-161. ' 28 A.RÉTIF, Foi au Christ et Mission, pp. 112-114.
58 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 59
abriu-lhe o coração de sorte que aderiu ao que Paulo dizia" vida a crer o que Cristo disse e fez. A fé, resposta a essa
(At 16,14). A partir de Pentecostes, os apóstolos e o pregação, é obra divina, despertada pelo Espírito que in-
Espírito, a Igreja e o Espírito, colaboram para o aumento teriormente age e fecunda a palavra externamente ouvida.
da Igreja (At 9,31 ). O mistério do crescimento da Igreja
é fruto da palavra da pregação fecundada pelo Espírito.
Isso porque o Cristo, fazendo os apóstolos suas testemu-
nhas e mensageiros, juntou à deles a missão do Espírito III. SÃO PAULO
(At 1,8).
O drama está em que o homem pode fechar-se em seus São Paulo para penetrar no âmago da idéia de revela-
caminhos e resistir à palavra: como o fariseu que volunta- ção usa as categorias de mistério e de Evangelho. · Ele é
riamente se faz cego ( At 4,16) e tampa os ouvidos para ·apóstolo para anunciar a Boa-nova do mistério revelado por
não ouvir ( At 7 ,57), ou o grego que zomba do mistério Deus 29 •
(At 17,18.32), ou o devasso que resiste à fé (At 26,28),
ou o governador que sem pureza suficiente de alma nada 1: Os termos
vê além de seus interesses ( At 24,25-26), ou o judeu que
não aceita o universalismo do plano divino ( At 14,2). A A simples justaposição dos vocábulos usados já indica
auto-suficiência, seja de natureza religiosa, filosófica ou cul- o movimento de. seu pensamento sobre a revelação.
tural, faz nascer o desprezo, o desdém, a desatenção. O Deus revela ( (btoxaM1t-rm ) , torna manifesto ( q>avepoüv ) , dá
apelo divino exige uma atitude de aceitação. Cornélio ( At a conhecer ( yvwpl~EL'II ) , ilumina . ( q>w-rl~ew ) . Os apóstolos
10,1-2), Lídia (At 16,14), o procônsul Sérgio Paulo (At falam ( ÀaÃei:v), pregam ( XTJpúcrcmv), ensinam ( 6L6ácrxeLv),
13,7-12): todos eles ouvem, acolliem, obedecem. A pala- anunciam a Boa-nova ( xa-rayyeÀÀEL'II), testemunham (µap_
vra divina põe a descoberta o coração do homem forçan- -rupei:v), comunicando assim a palavra ( Myoç), a pregação
do-o a se julgar. Trágica opção que salva ou condena. Dra- ( x'Í)puyµa) ·, o testemunho ( µap-rúpLcrv), o· mistério ( µucr-r'Í)pLcrv),
ma· de luz e trevas desencadeado pela vinda· e encontro de
Cristo. 29 Sobre o mistério, ver principalmente: G. BORNKAMM, "µucr-r'Í)pLo'II",
Theologisches Wéirterbuch, 4, 809-834; D. Deden, "Le mystere pauli-
nien", Eph. theol. lov., 13 (1936), 403-442; K. PRÜMM, "Mysterion von
Paulus bis Origenes", Zeitschrift für Katholische Theologie, 61 (1937),
5. Conclusão 391-425; Id. "Zur Phiinomenologie des paulinischen Mysterion", Bíblica,
37 (1956), 135-161; Id. "Mysteres", Suppl. au Dict. de la Bible, 6,10-225;
C. SPrcQ, Les Épitres pastorales {Paris, 1947), pp. 116-125; R. E.
Os Atos descrevem a atividade apostólica como uma BROWN, "The pre-Christian Semitic Concept of Mystery", Catholic Bibli-
cal Quarterly Review, 20 (1958), 417-443; Id., "The Semitic Background
continuação da obra de Cristo. Os apóstolos ouviram-no of the New Testament Mystêrion", Bíblica, 39 ( 1958), 426-448; 40
falar, pregar, ensinar, revelar ( tradição sinótica ) . Dele re- (1959), 70-87; L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de S. Paul (Pa-
ceberam a missão de atestar sua ressurreição e sua obra, ris, 1954), pp. 229-242; 303-328 Le chrétien dans la théologie paulinienne
(Paris, 1962) pp. 431-469; J. DuPONT, Gnosis, La connaissance religieuse
pregar, ensinar o que ele prescrevera e ensinara. Fiéis à dans les építres de S. Paul (Louvain, Paris, 1949), pp. 187-194, 493-498;
sua missão, apresentaramsse como testemunhas do Cristo J. COPPENS, "Le mystere dans la théologie paulinienne et ses paralleles
ressuscitado, Messias e Senhor; pregaram o Evangelho da qumrâniens", em: Littérature et théologie pauliniennes (Coll. "Recher-
ches bibliques", V. Bruges, 1960), pp. 142-165; B. RIGAUX, "Révélation
salvação, anunciaram a Boa-nova, ensinaram a doutrina do des mysteres et perfection à Qumrân et dans le Nouveau Testament",
Mestre. Sua fonção era a de testemunhas e arautos. Seu New Testament Studies, 4 (1958), 237-262. Sobre o tema "Evangelho",
depoimento constitui o objeto de nossa fé. A revelação con- veja: D. MoLLAT, art. "Évangile", no Dictionnaire de spiritualité, 4,
1747-1751; G. Friedrich, "EvayyEÀlç-oµaL, EvayyeÀLov", Theologisches
fiada à Igreja .é esse testemunho apostólico que nos con- Worterbuch, 2, 705-735. .
60 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 61

o Evangelho ( euayyÉÀLov) 30 . A doxologia que finaliza a salvação: sabedoria secreta, oculta em Deus e totalmente
Epístola aos romanos ilustra perfeitamente essa diversida- sobrenatural, cujo objeto são os· bens esplêndidos que Deus
de 'e riqueza da economia da revelação: "Aquele que tem · destinou para seus escolhidos 33 • Na Epístola aos romanos,
poder para confirmar-vos segundo o meu Evangelho e a concentra-se sua atenção na participação dos gentios, pela
mensagem de Jesus Cristo, e segundo a revelação do arcano, fé, nesses bens ( Rom 16,25-27). Os pagãos outrora esta-
por tantos séculos mantido em silêncio, mas agora mani- vam como que banidos da salvação, reservada aos judeus.
fes!ado e, por ordem do Deus eterno, dado a conhecer, por O desígnio divino de salvar também a eles, de chamá-los
meio dos escritos dos profetas, a todas as nações, para que "à esperança da glória", pela união com Cristo, finalmente
elas se submetam à fé. . . a ele seja a glória" ( Rom 16, foi revelado ( Col 1,25-28). O mistério, agora desvendado,
25-26). Em Jesus Cristo, pois, um mistério antes oculto é que "os gentios são co-herdeiros e membros do mesmo
e guardado como um segredo ( µuO"'t'TJpLov ) , é agora desven- corpo e co-participantes das promessas em Cristo Jesus por
dado, revelado ( rhtoxaÀÚ1t't'ELV) e manifesto ( cpavEpoúv); é le- meio do Evangelho" ( Ef 3 ,6). O capítulo primeiro da
vado ao conhecimento dos povos ( yvwplÇew) pelo Evange- Epístola aos efésios amplia ainda mais essa visão: o mis-
lho (EuayyÉÀLov) e pela pregação ( x'ÍJpuyµa) para levá-los à tério é a reunião de tudo em Cristo, a submissão de todos
fé e à obediência ( u1taxo'ÍJ 1tlO"'t'Ew,;-). Na Epístola aos colos- os seres ao Cristo, "as coisas que estão no céu e as que
se1;1ses encontramos a mesma maneira de falar: "Dela [da estão na terra" ( Ef 1,1 O). Reunindo os elementos desses
Igreja] eu me tornei ministro, em virtude do encargo que diversos textos, podemos dizer que o mistério, de que fala
Deus me conferiu para convosco, de anunciar com plenitude Paulo, é o plano divino da salvação, oculto desde toda a
a palavra de Deus, esse arcano oculto por tantos séculos às eternidade e agora revelado, pelo qual Deus estabeleceu a
gerações passadas, mas que agora Deus revelou a seus san- Cristo como o centro da nova economia, constituindo-o,
tos" ( Col 1,25-26). pela sua morte e ressurreição, único princípio de salvação
tanto para os gentios como para os judeus, cabeça de todos os
2. O mistério paulino seres, anjos e homens. É o plano divino total ( encarnação,
redenção, eleição para a glória) que em última análise se con-
A teologia de são Paulo é uma soteriologia, cuja in- centra no Cristo, com suas riquezas insondáveis ( Ef 3 ,8 ) ,
tuição fundamental se exprime com o conceito mistério 31 . seus tesouros de sabedoria e ciência ( Cal 2 ,2-3 ) . Concreta-
Principalmente nas epístolas do cativeiro é que o termo mente o mistério é o Cristo (Rom 16,25; Col 1,26-27;
aparece em toda sua plenitude: indica, então, o plano di- 1Tim 3, 16 ) 34 • O mundo, criado na unidade, pelo Cristo
v!nº. ?ª s~lvação manifestado e realizado pelo Cristo 32 • Essa Salvador. e Cabeça, volta à unidade. Assim pois, inicialmen-
te, ao descrever o mistério Paulo acentua a vocação dos
s1gmficaçao, contudo, já aparece em lCor 2,7-8 e Rom 16,
25. · Na Epístola aos coríntios evidencia são Paulo o cará- gentios; em seguida, nas epístolas do cativeiro, o misté•
ter "misterioso" da sabedoria que presidiu a economia da rio passa a ser principalmente Cristo e a participação no
Cristo. Recapitula-se tudo no Cristo: na sua manifestação,
30 M. MEINERTZ, Theologie des Neuen Testaments (2 voL V Bonn, nos bens que representa, no caminho que nos traça para
1950), I: 59-60; H. ScHULTE, Der Begriff der Offenbarung im Neuen Deus 35 .
Testament, pp. 21-22. ·
31 Em sã2 Paulo, ,essa noção foi progressivamente aprofundada. Cfr.
J. Cop~ENS:, Le my~te;e dans la t~éologie paulinienne et ses paralleles 33 K. PRÜMM, "Mysteres", Suppl. Dict. de la Bible, 6: 193-194.
34 L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de S. Paul, p. 305.
qumramei;i;s , em: ~:tterature et theologie pauliniennes, p. 142; R. E.
B~o~N, The Sem1t1c Background of the New Testament Mystêrion" 35 J. CoPPENS, "Le mystere dans la théologie paulinienne et ses
Btbltca, 39 ( 1958): 440. ' paralleles qumrânien~", em Littérature et théologie pauliniennes, p. 143.
32 L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de S. Paul, pp. 304-305. Em lTim 3,16, as etapas da história do Cristo coincidem com as fases
62 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 63
"A mim, sim, ao mais pequenino de todos os santos foi
3. As etapas na revelação do mistério concedida esta graça de anunciar aos gentios as incomp;een-
síveis riquezas de Cristo, e de' expor à luz, a dispensação
Pode-se considerar o mistério em diversos planos: no do mistério" ( Ef 3,8-9). Foi chamado por Deus e "posto
...E!~E.O da intenç~g_ J2_mis teyio __d_ç;_J)~!:!Ü; nq_,_pl~no da .reali- à parte" ( Rom 1, 1 ) para ser "pregador e apóstolo ... ,
. zaçã,2,1_,.,g2 . Çristo .e. pelo Cristo ( q mistério do Cristo ) ; no doutor dos pagãos na fé e na verdade" ( lTim 2,7), "sa-
eiãno ~2,..~!1ÇQnjro pessoal ( o _mistério do Evangelho, da cerdote do Evangelho de Deus, para que os pagãos se tornem
J2Jti'ª-.Y.rª-,,-~ da fé) ; no plano da sua extensão à humanidade oferenda agradável, santificada no Espírito Santo" (Rom
(o mistério da. Igreja). Faz-se a revelação do mistério em 15 ,16). Em vista dessa vocação, recebeu uma altíssima in-
etãpas"~que correspõiídem a esses diversos planos e traçam teligência do mistério ( Ef 3 ,.3-4). ·
a história da salvação. Revelado a testemunhas escolhidas, o mistério é dado
Na fase inicial, o mistério está oculto em Deus: se- a conhecer a todos os chamados à Igreja. O encargo dos
w·edo de infinita sabedoria (1 Cor 2, 7), envolto em silên- apóstol~s é proclamar o conteúdo do mistério ou Evange-
c10 desde a eternidade (Rom 16,25 ), oculto às gerações pas- lho. Sao Paulo estabeleceu uma equivalência "concreta"
sadas ( Ef 3 ,5; Cal 1,26), oculto mesmo aos espíritos ce- entre Evangelho e mistério ( Rom 16 ,25; Col 1,25-26; Ef
lestes ( Ef 3,9-10). Sabedoria inacessível, conhecimento re- 1,9-13;3,5-6). Em ambos os casos temos a mesma realida-
servado. de, ~to é: o plano divino de salvação considerado porém,
Mas, "agora", o mistério outrora oculto está mani- sob angulos diversos. Sob um aspecto, é um segredo, des-
festo, revelado (Rom 16,25; Cal 1,26). Pela vida, morte vendado, revelado, manifestado, transmitido ou comunica-
e ressurreição do Cristo o mistério entrou em sua fase de do; sob outro, é a Boa-nova, uma mensagem anunciada pro-
realização; em Jesus Cristo cumpre-se e ao mesmo tempo clamada 37 • Dá-se a conhecer o Evangelho como se ~oinu-
revela-se o desígnio salvífico de Deus ( Ef 1, 7-9 ) ; o mis- nica o mi~~édo; as pessoas podem ter parte no Evangelho
tério torna-se acontecimento da história ( 1Tim 3,16). Se- ( ~~ 3 ,6) da mesr;;a forma como podem participar no mis-
gundo a divina economia, o mistério é inicialmente comu- .!~r~o ( Col 1,27) . Plano divino oculto e revelado, plano
nicado a testemunhas privilegiadas: os apóstolos e profetas d1v1no proclamado: Evangelho e mistério têm o mesmo
( Ef 3 ,5; Col 1,26). São eles os mediadores e os arautos objeto e conteúdo. Objeto duplo: soteriológico isto é: a
do mistério ( Ef 3 ,5). Tornam-se, por sua pregação, o ali- -~~(Jn(J~~a da salvação. pelo C~Tstõ}EfJ~Tl]J;·-ê:~~fil~lQgfçõ,··
cerce da Igreja, cuja pedra angular é o Cristo ( Ef 1,22-23; ,_ouseJi1:: a promessa da glória com todos os bens destinados
2 ,20-21 ) 36 • Paulo faz parte desse grupo privilegiado: é "mi- aos escolhidos, frutos da cruz é da rilc:ifte do Çfisfõ-(CõrI~78;
nistro da Igreja" ( Cal 1,25-26), e na revelação do misté- 1Cor 2, 7; Ef 1, 18) . O mistério. nài:ificado' ãõ"s""""liõmefi'S
rio tem um papel de primeiro plano. O mistério, no que pela pregação e pelo evangelho vem a ser o plano da sal-
se refere aos gentios, foi-lhe revelado de forma especial: vação levado ao último estágio do acontecimento pessoal.
A Boa-nova da salvação é chamada por são Paulo de
sucessivas_ do mi~tério. Assim como no mistério Deus medita um plano o Evangelho, simplesmente ( 1Tes 2,4), ou de o "Evange-
de. salvaçao, _mamfesta_-o aos_ homens e leva-os à glória, · assim também o
Cristo preex!stente fo1 manifestado pela carne, pregado e crido entre os
37 D. _!)EDE~, "Le mystere paulinien", Eph. Theol. Lov., 13 ( 1936):
homens, ~ fmalmente volta glorioso aos céus. Cfr. C. SPICQ, Les Építres
pastorales, p. 119. 422-423; sao mmtos os textos que apresentam o Evangelho como a men-
36 D. DEDEN, "Le mystere paulinien", Eph. Theol. Lov., 13 (1936): sagem_, . a Boa-nova da salvação proclamada aos homens pela pregação
420-421; L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de S. Paul pp. 310 apostohca (lCor 15,1-2; Rom 2,16;16,25; 2Cor 11,4; Gál 1,6-7; Ef 1,13·
311; Le chrétien dans la théologie paulinienne pp. 444-447; 'C. SPICQ'. 6,15; Col 1,5.23; lTim 1,11; 2 Tim 2,8). '
38 L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de S. Paul. p. 304.
Les Építres pastorales, pp. 116-117.
64 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 65
lho de Deus" (Rom 1,1;15,16; 2Cor 11,7; lTes 2,2.8-9), c_9-Aciliação" ( 2Cor 5, 18-19 ) . "Paralelamente ao que se
pois Deus é seu ay,tor e seu objeto 39 , ou, com o mesmo faz pelo Cristo, aparece o que é feito pela palavra. Ambas
sentido, "o Evangelho de Cristo" (Rotn 15,19-20; 2Cor 2, as operações são obras salvíficas do Cristo" 43 •
12;9,13;!0,14; Gál 1,7; Flp 1,27), "o Evangelho de nosso ' Sendo o mistério a reunião em Cristo dos judeus e dos
Senhor Jesus" (2Tes 1,8), "o Evangelho da gl.ória do Cristo" · gentios, num mesmo organismo de salvação, aparece a Igre-
( 2Cor 4,4) 40 • ja como o termo final do mistério, a brilhante realização
Em vez de Evangelho, mas com o mesmo sentido téc- da economia divina, sua expressão visível e estável. O pla-
nico de mensagem cristã, Paulo usa também o termo palavra no da salvação é não apenas revelado, proclamado pelo
(Col 1,25-26; lTes 1,6), cm
palavra de Deus (lTes 2,13; Evangelho, mas também efetivamente realizado na Igreja.
O estabelecimento objetivo da Igreja, que é a manifesta-
Rom 9,6; lCor 14,36), ou palavra do Senhor (lTes 1,8;
4,15; 2Tes 3,1), ou palavra do Cristo (Rom 10,17). Com ção do mistério, revela às potências celestes a infinita sa-
essa palavra, que é mensagem divina em lábios humanos, é bedoria do desígnio de-Deus ( Ef 3, 1O) e indica que chegou
sempre· Deus que fala e interpela a humanidade ( Rom 1O, o tempo da submissão de todas as coisas ao Cristo ( Col
14 ) . Paulo dá graças a Deus porque os tessalonicenses aco- { 1, 16 ) . Assim como no Cristo se torna visível o mistério
lheram a palavra por ele anunciada "não como palavras de Deus, assim na Igreja se torna visível o mistério do
pe homens, mas, qual realmente é, palavra de Deus" ( 1Tes Cristo 44 •
2,13) 41 • Palavra que, por ser divina, é ativa. É "palavra
de salvação" (Ef 1,13). "Palavra de vida" (Flp 2,16), 4. Resposta do homem
"palavra de verdade" (2Cor 6,7; Col 1,5; 2Tim 2,15), É pela fé que se tem acesso ao mistério, ao Evange-
"palavra de reconciliação" ( 2Cor 5, 19 ) , não só porque lho, à palavra. De fato, é pela fé que o homem reconhece
tem por objeto a verdade, a vida, a reconciliação e a salva- como verdadeiro o plano da salvação, realizado por Deus
ção, mas porque oferece e dá a salvação, porque introduz na morte e ressurreição do Cristo, adere inteiramente a esse
na vida ( Rom 1, 16; 1Cor 1,21 ; 1T es 2, 13; Ef 1, 13 ) 42 • É plano, se bem que desconcertante para a humana sabedoria
dupla a obra divina: ao mesmo tempo que a reconciliação ( lCor 1,17-30; 2,1-4). A pregação do Evangelho ou do
çlo mundo pelo Cristo, Deus estabeleceu a "palavra de re- mis!ério revelado tem por finalidade conseguir a "obediên-
ciã da fé" ( Rom 16 ,26; 2Cor 1O,5). Fé que é a resposta
39 Com efeito, o Evangelho é a revelação de Deus nosso Pai ( 1Tes
específica do homem à palavra do Evangelho. "Isso o que
1,3; 2Tes 1,1; Rom 1,7), rico em misericórdia (Ef 2,4), que nos chama
para seu reino e sua glória (lTes 2,12). É o Evangelho do amor de pregamos, isso o que acreditastes", relembra Paulo aos co-.
Deus (lTes 1,4). Nesse Evangelho Deus revela aos homens a eleição ríntios ( lCor 15,11 ). Tendo ouvido a "palavra de verda-
gratuita de que foram objetos e convida-os a se voltarem totalmente para de ·" , a "Boa-nova " de sua " sa1vaçao
- " , os ef,es10s
· acred'1ta-
ele (2Tes 2,13-16). Cfr. D. MoLLAT, "Évangile", Dict. de Spir. 4: 1756.
40 B. R!GAUX, Les Epitres aux Thessaloniciens (Paris, 1956), pp. ram ( Ef 1, 13 ) . É pela fé na mensagem que os cristãos se
1.58-159. abrem para a salvação 45 •
41 H. ScHLIER, "La notion paulinienne de la parole de Dieu", em:
Littérature et théologie pauliniennes, pp. 129-130; J. DuPONT, "La parole A palavra exige ser escutada, acolhida, guardada. Se-
de Dieu suivant S. Paul", em: La Parole de Dieu en J ésus-Christ ( Cas- guindo a tradição sinótica e dos Atos, a Boa-nova
terman, 1960), pp. 68-70; B. RIGAUX, Les Épztres aux Thessaloniciens, destina-se aos homens que não se consideram auto-suficien-
p. 160; L. M.- DEWAILLY, La jeune Église de Thessalonique (Paris, 1963 ),
pp. 24-48. tes, conscientes de sua fraqueza e indigência, abertos
42 J. DuPONT, "La parole de Dieu suivant S. Paul", em: La Parole
de Dieu en Jésus-Christ, pp. 72-73; H. ScHLIER, "La notion paulinienne 43 H. SCHLIER, ibid. 127.
de la parole de Dieu", em: Littérature et théologie pauliniennes, pp. 44 C. SPICQ, Les Épitres pastorales, pp. 120-121. .
134-135. 45 L. CERFAUX, Le chrétien dans la théologie paulinienne, pp. 132-134.

3 - Teologia da revelação
66 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 67
para o dom que se lhes oferece. Não é possível a fé senão cjmento do mistério. Progresso que se prende porém a
a quem esteja pronto a ouvir a palavra da verdade ( Rom algumas condições. Quem quiser penetrar a sabedoria do
1O, 18: iíxoucrcx.v ) e obedecer-lhe ( Rom 1O, 16: v1tT]xoucrcx.v ) • A desígnio divino, medir-lhe a profundidade, é precisà que te-
fé, para são Piaulo, é a acolhida da palavra (Rom 10,16; nha' uma alrria transformada pelo Espírito: exige-se uma certa
Gál 3 ,5: rixolJ r1tlcr1:ewç) e a obediência ao Evangelho ( Rom maturidade religiosa. lmperfeitos e indóceis, os coríntios
1,5;16,26: V1tll%0TJ 1tLCT"tEWç). tornaram-se incapazes de compreender a sabedoria miste•
Adesão e submissão à mensagem evangélica que não riasa de Deus ( lCor 3,1-3). Conhecimento que é dado
seria possível de forma meramente natural. .É preciso um aos perfeitos ( lCor 2,6; Flp 3,15; Ef 4,12-13 ), aos espi-
dom da graça: uma "iluminação" que venha de Deus como rituais ( lCor 13,1), ou seja: aos cristãos espiritualmente
a criação da luz no primeiro dia ( 2Cor 4,5-6), uma "unção" evoluídos e amadurecidos. Dóceis ao Espírito ( lCor 2,
divina ( 2Cor 1,21-22), que despertem a fé nos corações 10.15 ), esses cristãos vivem de acordo com sua fé. Dá-lhes
dos que ouvem o Evangelho 46 • A palavra de Deus não é também o Espírito um conhecimento vivificado pela cari-
simplesmente um enunciado de verdades; é principalmente dade (Col 2,2-3; lCor 2,6) que lhe possibilita "compreen-
uma apresentação da pessoa do Cristo, Senhor e Salvador, der" as dimensões todas do mistério, e do amor do Cristo
e do que ele significa para todo homem. A pregação do que ele manifesta ( Ef 3, 14-19; Col 2 ,2-3 ) , conduzindo-os
Evangelho é ainda a ocasião e o lugar para uma opção. Para a utn aprofundamento sempre maior, como que a uma su-
alguns, o Evangelho é escândalo, pedra em que tropeçam perciência da economia da salvação ( Flp 1,9-11). Conheci-
(Rom 9,32-33; lCor 1,23; Gál 5,11 ), loucura ( lCor 1, mento que, segundo são Paulo, é de ordem mística. Todo
18.21.23). Permanece velado ( 2Cor 4,4). Os incrédulos, cristão, porém, é chamado a crescer no conhecimento do
os indóceis à verdade (Rom 2,8;10,21; 11,30-32;15,31 ), mistério. A sabedoria não é um conhecimento reservado
sem ouvidos para escutar o Evangelho da salvação ( Rom a alguns iniciados, mas um dom que são Paulo pede para
11, 7-1 O), estão a caminho da perdição ( 1Cor 1, 18; 2Cor todos os cristãos ( Ef 1, 17-18 ) 48 •
4,3). Todos os que não acreditam, mas aderem à iniqüi-
dade, serão condenados ( 2Tes 2,11). O Evangelho só exer-
ce seu poder de salvação e de vida para aqueles que crêem 6. Revelação histórica e revelação escatológica
(Rom 1,16-17; Gál 3,11; lCor 1,18.20; Flp 2,16; 2Tim
1,10). A pregação do Evangelho é, pois, desde agora o Além desse conhecimento de fé e amor, sob a influên-
prelúdio da separação final 47 • cia do Espírito, existe outra revelação, a escatológica, que
será plena manifestação e visão ( lCor 13,12). Veemente-
5. Aprofundamento do mistério mente almeja são Paulo esse apocalipse final. Podemos
perceber em sua consciência como que uma tensão entre
O conhecimento do mistério e do Evangelho é um co- a primeira e a última revelação. Para a compreendermos,
nhecimento dinâmico, sempre em crescimento. Pode crescer seria preciso referirmo-nos à experiência decisiva de sua
sempre nos cristãos, desde o conhecimento inicial dado com vida: a revelação do Cristo na estrada de Damasco ( Gál 1,
a fé. É possível, pois, distinguir diversos níveis no conhe- 16; At 9 ,3-9). Naquele momento, foi Paulo "tomado pelo
Cristo Jesus" ( Flp 3,12); compreendeu que Jesus de Na-
46 I. DE LA PoTTERIE, "L'onction du chrétien par la foi", Bíblica, zaré, o Crucificado, está agora na glória exaltado à direita
40 (1959): 24-25.
47 J. DuPONT, "La parole de Dieu suivant S. Paul", em: La Parole 48 D. DEDEN, "Le mystere paulinien", Eph. theol. lov., 13 ( 1936):
de Dieu en Jésus-Christ, pp. 78-80; D. MoLLAT, "Évangile", Dict. de 418-419, 421; L. CERFAUX, Le chrétien dans la théologie paulíníenne,
Spir., 4: 1760-1761. pp. 461-468.
68 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 69
do Pai. Paulo foi, então, convertido pela visão do Cristo oontinuamente a Epístola aos efésios, a revelação do mis-
ressuscitado e glorioso (1 Cor 1.5 ,3-8; 9, 1; Gál 1, 15-16),. do- tério tem por finalidade "o louvor e a glória da graça"
tado do poder divino. Foi agraciado com um apocalipse de peus (Ef 1,6.12,14; Flp 2,11 ). Ao apresentar as rique-
do Filho de Deus ( 1Tes 1, 1O; Col .3 ,3-4), teve de certa zas do mistério ( eleição, filiação, redenção), deslumbra-se
forma uma antecipação da epifania gloriosa do fim dos são Paulo com a magnifícência do plano de salvação ( Ef
tempos 49 • •
l , 14-) , obra da infinita sabedoria de Deus ( 1Cor 2, 7; Rom
Essa experiência fundamental ajuda-nos a melhor com- 11-13; Cal 2 ,2-3 ) , inaudita manifestação de sua caridade
preender o contraste que Paulo estabelece entre a revela- para com o homem. O mistério revela um abismo de sa-
ção da história e a da parusia; aquela, sob véus; esta, glo- bedoria e de amor: "Deus, que é rico em misericórdia, mo-
riosa ( Flp 2 ,5-11 ) . Não há d{1vida que a revelação que vido pela imensa caridade com que nos amou, restituiu-nos
anuncia é a trazida pelo Cristo da história: é "agora" que à vida juntamente com Cristo, justamente quando estáv~-
o mistério outrora oculto se revela ( Rom 16,25); é "ago- mos mortos pelos nossos pecados . . . Assim, a bondade que
ra" que se manifesta a justiça de Deus ( Rom 3 ,21 ) ; é teve para conosco, em Cristo Jesus, mostrará nos séculos
"agora" que se realiza a pregação do Evangelho. A re".'ela- que hão de vir, as superabundantes riquezas de sua graça"
ção que constitui o objeto de nossa fé não é algo que amda (Ef 2,4-7;1,1-14). Desde logo, a resposta a tão grande
se espera: realizou-se no Cristo e pelo Cristo. E Paulo, sabedoria e tanto amor deverá ser adesão amorosa ao de-
como os apóstolos, recebeu a missão de anun~iá-la. Ta?t? sígnio divino, a exemplo de são Paulo, perpétuo hino de
mais vivamente, porém, deseja ele a sua revelaçao escatolog1- louvor e de ação de graças.
ca. pntão realizar-se-á na sua plenitude a "revelação de nosso
Senhor Jesus Cristo" ( lCor 1,7; 2Tes 1,7). Os homens 8. Conclusão
hão de assistir ao triunfo do Senhor que, aos olhos de to-
dos, manifestará sua glória de Filho de Deus. então? Segundo são Paulo, podemos pois definir a revelação
aparecerá também a glória de todos que se conf1_gu:a_ram como a ação livre e gratuita de Deus que, no Cristo
ao Cristo ( Rom 8, 17-19 ) . Essa tensão entre a historia e e pelo Cristo, manifesta ao mundo a economia da sal-
a escatologia, entre a economia da palavra e a da visão, da vação, isto é: seu eterno desígnio de reunir· tudo no Cris-
humildade e da glória, é característica de são Paulo. to, Salvador e Cabeça da nova criação. A comunicação desse
desígnio se faz pela pregação do Evangelho, confiada aos
apóstolos e profetas do Novo Testamento. A obediência
7. Finalidade do mistério
da fé é a resposta do homem à pregação evangélica, sob a
iluminação do Espírito Santo; não é uma exigência tirânica
A finalidade imediata da revelação do mistério e da
de Deus, mas uma adesão amorosa ao plano de sua in-
pregação do Evangelho é levar os homens à obedi~ncia da
finita sabedoria e caridade. A fé dá começo a um processo
fé ( Rom 16 26) "tornar todos os homens perfeitos em
de crescimento contínuo no conhecimento do mistério que
Cristo" ( Col ' 1,28' ) , edificar "um templo santo no Senhor " ,
só atingirá seu termo na revelação de visão
uma "habitação de Deus, pelo Espírito" (Ef 2,21-22), for-
mar o "corpo de Cristo" que é a Igreja (Ef 1,22;4,16;5,
23.30), o. "homem perfeito" que "realiza a plenitude do IV. EPfSTOLA AOS HEBREUS
Cristo" ( Ef 4 ,13 ) . Mas, em última análise, como repete
Dirige-se aos judeu-cristãos a Epístola aos hebreus. Quer
49 L. CERFAUX, Le Christ dans la théologie de S. Paul, pp. 59 e demonstrar a excelência de Cristo como Mediador e a su-
330-331. perioridade de seu sacerdócio sobre o da Antiga Aliança.
70 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 71

A demonstração apóia-se num jogo de contrastes ou de oomplemento direto para o verbo MXÀ.Erv insiste no caráter
oposições entre ambas as economias. O próprio tema da re- interpessoal dessa palavra: comércio entre Deus e nossos
velação participa desse clima e apresenta-se com? um pa~ pais na fé, entre Deus e nós, tendo por finalidade uma
raleio entre a revelação da Antiga e a da Nova Ahança. Os comunhão pessoal. Palavra, enfim, que é essencialmente
judeu-cristãos, aos quais se dirige o autor, passam por histórica ( aspecto indicado pelos aoristos), acontecendo em
uma crise de fé e sentem-se tentados a voltar ao culto ,e momentos determinados da duração temporal ·e dirigindo-
à liturgia da Antiga Aliança. Por isso as insistentes exorta- -se a seres cujas decisões livres fazem a história mudar de
ções à fé, à docilidade, à obediência, à paciência perseve- rumo. A palavra de Deus no A. Testamento anunciava e
rante. Para a história da noção de revelação a Epístola aos preparava a palavra do Filho, mais eloqüente que o sangue
hebreus traz duas novidades: comparação entre a revelação de Abel ( 12,24). •
da Nova Aliança e a da Antiga, grandeza e exigências da Entre a revelação da Antiga e a da Nova Aliança existe
palavra de Deus. uma continuidade e semelhança, mas também diferença e
superação. Primeiramente diferença de épocas: o mesmo
l. Revelação da Antiga e da Nova Aliança Deus, que falafa outrora num passado já longínquo, falou-
-nos também nesta etapa final da história em que vivemos,
O paralelo entre a revelação em ambas as Alianças "no final destes dias". Em segundo lugar, há diferença nos
apresenta-se desde o primeiro versículo: "Muitas vezes e modos de revelação: palavra sucessiva, parcial, fragmentá-
de muitos modos falou Deus aos nossos pais, nos profetas; rio no Antigo . Testamento ( 1t0Ã.vµe:pwç), trazendo cada co-
nestes últimos tempos, falou a nós no Filho, a quem con- municação apenas uma frase do discurso, não manifestando
feriu o domínio de todas as coisas" ( 1,1-2). Evidencia esse senão uma parte do desígnio de Deus; pelo contrário; pa-
versículo a autoridade da revelação do N. Testamento, e lavra única e total do Filho em o N. Testamento. Palavra
também a relação histórica entre ambas as fases da histó- multiforme (1toÀ.v-cp61teuç), no Antigo Testamento, sob a for-
ria da salvação. Entre ambas as economias há relação de ma de promessas, ordens, ameaças; teofanias terríveis ou
continuidade (Deus falou), diferença ( tempo, modo, me- familiares; oráculos, sonhos e visões, ritos e instituições.
diadores, destinatários) e excelência ( superioridade da nova Essa multiplicidade de formas dissolve-se, em o Novo Testa-
economia ) 50 • mento, na unidade da pessoa do Filho encarnado, que se
Os elementos de continuidade entre ambas as revela- exprime segundo os modos da· carne, isto é, por gestos, pa-
ções são Deus e sua palavra, sendo a palavra do Filho a con, lavras, ação. Há uma terceira diferença: os destinatários.
tinuação e a perfeição da palavra cujos instrumentos foram No Antigo Testamento, Deus falara aos Pais, ou seja: ao
os profetas. A continuidade transparece nas próprias pa- povo eleito, aos nossos antepassados na fé, que nos trans-
lavras: falou Deus. Palavra que, sendo intervenção de Deus mitiram as promessas de que eram depositários. Agora, é
na- história para manifestar sua vontade e seu desígnio de a nós que Deus fala, a todos aos quais se dirige o Evan-
salvação, é palavra de autoridade, que deve ser ouvida com· gelho do Cristo, pregadores e ouvintes. Quarta diferença:
atenção ( 2,1; 12,25), crida (3,12-19;4,2-3; 10,22.38-39; 11; os mediadores da revelação. De uma parte a multidão dos
13,7-9), obedecida (10,36;11,8;12,9). A ausência de um inspirados: os profetas e todos aqueles pelos quais Deus
guiara seu povo. O próprio Deus falara neles, depositando
.50 Sobre o primeiro versículo da Epístola, cfr. R. ScHNACKENBURG, neles sua palavra, usando-os como intérpretes. Doutra par-
"Zum Offenbarungsgedanken in der Bibel", Biblische Zeitschrift, 7 ( 1963): te, só o Filho; Filho que se qualifica imediatamente como
2,13. Sobre a estrutura da Epístola, cfr. A. VANH0YE, La struture litté-
raire de l'ép,tre aux Hébreux (Coll. "Studia Neotestamentica", Studia I, herdeiro de tudo, por quem Deus fez os séculos, irradiação
Paris-Bruges, 1963). de sua glória, efígie de sua substância ( 1,2-3 ). Filho que
72 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 73
é o mediador único da Nova Aliança, tanto no plano de re-
velação com~ do sacerdócio. Ele, em pessoa, é o Revelador 2. Grandeza e exigências da palavra de Deus
único e definitivo. Dirá são João: "A Deus ninguém ja-
mais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está O segundo tema sobre o qual se demora a Epístola aos
no seio do Pai" (Jo 1,18); É a pessoa do filho que, em hebreus é o da grandeza e das exigências da palavra de
última análise, constitui a superioridade da revelação nova Deus, sempre numa perspectiva de comparação entre ambas
sobre a antiga. · as Alianças.
O tema da excelência da nova revelação reaparece na No início da Epístola, depois de mostrar por uma
parenese (exortação) do capítulo 2,1-4, que, tendo uma série de contrastes a superioridade de Cristo sobre os an-
coloração particular, continua na mesma linha da introdução. jos ( 1,5-14), o autor tira uma conclusão prática para seus
Lá, o paralelo é entre os. profetas e o Filho; ~qui, entre. leitores: a exigência de uma docilidade mais atenta à pala-
os anjos e o Senhor. É a revelação do Antigo Testa- vra do Senhor ( 2, 1 ) . Devemos obedecer ao Evangelho ainda
mento, feita pelo intermédio dos anjos, e a revelação mais que à Lei "para que não nos percamos", isto é,
do Novo Testametfto, feita pelo Filho e suas testemu- para que não sejamos excluídos da economia da salvação.
nhas. Para mais claramente marcar a mudança de eco- Se, com efeito "toda transgressão e desobediência" à "pa-
nomia, de um a outro testemunho, o autor opõe a pala- lavra promulgada por anjos" teve sua justa retribuição,
vra proclamada por anjos e a salvação proclamada pelo Se- como poderíamos fugir ao justo castigo, que nos espera, se
nhor ( 2,2-.3). O Cristo, de fato, trouxe-nos mais que uma não dermos atenção à salvação promulgada pelo próprio
palavra: a própria salvação inaugurada por sua pregação Senhor? ( 2,2-3). Se os antigos foram punidos quanto mais
mesma. Salvação que, realizada e notificada pelo Senhor, o serão os cristãos infiéis?
nos foi ,atestada pelos ouvintes imediatos do Cristo ( 2 ,3; A segunda parte da Epístola começa com uma: compa-
Lc 1 2 ) sendo o testemunho deles apoiado pelos sinais da ração entre a fidelidade de Moisés e a de Jesus. Moisés
inter~en~ão divina, prodígios ou acontecimentos extraordi- foi fiel na casa, ou seja: o povo de Deus, como servo. Jesus
nários, obras do poder de Deus, e pelos carismas visív~is foi fiel enquanto Filho, como quem reina sobre a casa ( 3,
da comunicação do Espírito ( 2,4). Assim está descrita 1-6). O Cristo tem assim direito a uma fidelidade muito
toda a economia da revelação nova: a revelação é a palavra superior à merecida por Moisés, como Filho constituído
de salvação proclamada pelo Senhor ou Filho, recolhida e sobre a casa. O autor invoca o salmo 95 ( 3,7-11) para
atestada por suas testemunhas imediatas, confirmada pelo evidenciar essa exigência; comenta-o ( 3,12-4,12) tendo em
próprio Deus com sinais e carismas. vista a situação de seus leitores ameaçados, como os he-
Outros textos, finalmente, põem em realce o quanto a breus no deserto, pela tentação da infidelidade. Devido à
revelação veterotestamentária contihua ainda presa ao plano sua incredulidade (3,12;3,19), os judeus indóceis ( 3,18)
cósmico, ou seja: ligada a um mediador que pertence ao não puderam alcançar o repouso da terra prometida (3, 19;
mundo terrestre ( 12,21), a fenômenos cósmicos ( monta- 4, 1; 4 ,5 ) . Quanto a eles, os cristãos são convidados a en-
nha, fogo, trevas, tempestade; 12,18-21.25-26), a um tem- trar no repouso do Senhor, contanto, porém, que "ninguém
plo cósmico e construído (9,1 ), cuja insuficiência os pró- caia no mesmo exemplo de infidelidade", ( 4,11 ;4,6). Pois
prios ritos revelam ( 9,8-10). A nova revelação, pelo con- a infidelidade não pode contar com a impunidade. Afinal,
trário, vem do céu ( 12,22-24), por um mediador celeste, a palavra de Deus tem virtudes temíveis. É viva, como o pró-
Jesus ( 12,24 ), que inaugura "caminho novo e vivo", atra- prio Deus vivo. É ativa, mais cortante que espada de dois
vés do véu de sua carne (1 O,20). gumes. Aguda, penetra até a divisão da alma e do espí-
rito; discerne e julga as disposições e pensamentos do co-
74 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 75

ração ( 4, 12-13 ) . "Para ela não existe criatura algum~ que


possa ocultar-se à sua vista": a essa palavra é .que sera pre- V. SÃO JOÃO
ciso prestar contas ( 4, 13 ) . "P~rmaneç~mos fumes ~a nos-
sa profissão de fé" ( 4, 14 ) . Assim termma a. exortaçao. para Nos Sinóticos, nos Atos dos Apóstolos e nas epístolas
que sigam docilqiente o Evangelho do Cristo, Mediado_r de são Paulo, palavra de Deus é a designação que se dá à
fiel, superior a Moisés, superior -ao~ anjos, em sua quali- mensagem evangélica. A grande novidade de são João é
dade de Filho. a equação que estabelece entre o Cristo, Filho do Pai, e o
Assim, na Epístola aos hebreus, apresenta-se a palavra Logos. O Cristo é a Palavra eterna, subsistente, pessoal;
de Deus com traços que lembram os do Antigo Testamento, realiza-se a revelação porque essa Palavra se fez carne para
mas com caráter de urgência ainda maior, devido à pre- nos ,falar do Pai 52 •
sença e à autoridade do Filho. Palavra que ~. ao mesmo
tempo conhecimento da verdade ( 10,26), ensmamento ou 1. Jesus Cristo, Palavra de Deus e Filho de Deus
mensa~em ( 2,1-2), promessa ( 4,1), lei ( 2,2). Palavra que
deve ser ouvida com atenção ( 2, 1 ) , crida (3, 12 ) , obede- Já conhecia o Antigo Testamento a Sabedoria e a Pa-
cida (10,36). Saborosa para quem. a acolhe (6,5), terrí- lavra. Em Jó, Provérbios, Eclesiástico, e principalmente
vel para os que a rejeitam (2,3 ). Promessa de repouso ( 4, no livro da Sabedoria, a Sabedoria está junto de Deus: pre-
1;4,5), pode transformar-se em ameaça (3,8;4,7) e em side à criação e à organização do mundo ( Sab 7-8 ) ; tudo
juiz ( 4,13). Ativa ( 4,12), eficaz ( 4,13), ~empre at~al vê, tudo penetra ( Sab 9, 11 ) , tudo governa ( Sab 8, 1 ) ; ins-
( 3 7 . 3 15 · 4 7 ) continuamente ressoa aos ouvidos do cris- trui os homens ( Sab 8, 7; 9 ,11 ) , guia ( Sab 9, 11; 1O, 1O) ,
tão' ' a ' cada ' alma
) ' clama, num hoje permanente, para en- protege-os ( Sab 9, 11 ) e assiste-os ( Sab 9, 1O) ; promana
trar no repouso de Deus (3,7;3,15;4,11) 51 .
'
de Deus, é seu reflexo e sua imagem ( Sab 7 ,25-26). O
Antigo Testamento conhecia também a Palavra criadora ( SI
3. Conclusão 33,9) e reveladora, enviada à terra para revelar os segre-
dos de Deus, a ele retornando uma vez cumprida sua
Portanto, na Epístola aos hebreus, o termo mais usa~o missão (Is 55,10-11). Mas o Antigo Testamento não en-
para designar a revelação é palavra. Numa comparaçao tendia ( e dificilmente o poderia, pelo seu monoteísmo radi-
entre ambas as fases da economia da salvação, a Epístola cal ) a Sabedoria e a Palavra de Deus como uma pessoa
põe em evidência a continuidade entre as revelaç~es, ao realmente distinta. Sob a ação do Espírito, são João reco-
mesmo tempo que a excelência da nova revelação, maugu- nheceu na pessoa do Cristo histórico essa Sabedoria e essa
rada pela palavra de salvação do Filho. Palavra que, rec_o- Palavra de Deus de que está cheio o Antigo Testamento.
lhida e transmitida pelas testemunhas do Senhor, é confir- Jesus Cristo é a Palavra eterna de Deus, como criadora e
mada também pelo testemunho de Deus, mediante ~ina~s e
carismas. Essa excelência exige dos cristãos uma fidelida- s2 Sobre a função reveladora do Cristo como Logos e como Filho do
de, uma obediência proporcionadas à sua origem e à supe- Pai, cfr. H. NIEBECKER, W esen und Wirklichkeit der übernatürlichen
Offenbarung (Freiburg, 1940); H. HuBER, Der Begriff der Offenbarung
rioridade do Mediador. im Johannes-Evangelium (Gottingen, 1934); M.-E. BmsMARD, Le Prologue
de S. Jean (Paris, 1953); J. GIBLET, "La théologie johannique du Logos",
51 Seria preciso ir ainda mais longe nessa personificação da palavra em La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 85-119; G. KITTEL, "Wort und
e "ao mesmo tempo subentender o Logos eterno que penetra essa men- Reden im NT", Theol. Worterbuch, 4: 100-140; J. BLANK, "Der Johan-
sagem e a anima"? Nada o impede, conforme H. CLAVIER, "O logos t?u neische Wahrheitsbegriff", Biblische Zeitschrift, 7 ( 1962): 163-173; K.
Theou dans l'épitre aux Hébreux", em New Testament Essays (Stud1es WENNEMER, "Theologie des Wortes im Johannesevangelium", Scholastik,
in Memory of Thomas Walter Manson, Manchester, 1959, pp. 81-93 ). 38 ( 1963 ), 1-17.
76 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 77
reveladora, mas enquanto Pessoa. Em Jesus Crist.o enco~- povo e se lhe· manifestou pela Lei e pelos profe tas; mas
tra sua perfeição plena a palavra de Deus que ena o um- essa revelação, como a primeira, malogrou: "O Logos veio
verso, impõe a lei, anuncia a salvação e interpela a hu~a- . para sua casa e os seus não o receberam" (Jo 1, 11 ) . Fi-
nidade. Para João o Logos é uma Pess~a,. que mantem nalmente, depois de ter falado pelos profetas, fala-nos Deus
com o Pai o mais íntimo comércio, dele distmta, Deus, no por seu Filho ( Hebr 1, 1 ) : "O Verbo se fez carne e ar-
entanto, como ele mesmo, Verbo de Deus, Palavra de Deus mou sua tenda entre nós" (Jo 1, 14 ) . "A Deus ninguém
(Jo 1, 1 ) . Palavra que, encarnada entre os. ~o~ens (Jo jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que
1,14) é o Filho do Pai, o Monogenes, umgemto, como está no seio do Pai" (Jo 1,18). Jesus Cristo é a Palavra
termo que é de umi: geração p~ena~e~te fecun~a. Toda. a substancial de Deus, o Filho Ünico do Pai. Realiza-se a re-
revelação refere-a Joao a esse Filho umco que vive no se10 velação porque a Palavra se fez carne e assim se tornou
do Pai (Jo 1,18) como a Palavra interior de Deus 53 • É mensagem divina, contando-nos em termos e proposições
em Jesus Cristo que ela se faz ouvir fora e entender pelo humanas os segredos do Pai, principalmente o mistério de
homem. seu amor por seus filhos 55 • Tres elementos fazem de Cristo
o perfeito Revelador do Pai: sua preexistência como Logos
2. A Gesta do Logos ae Deus (Jo 1,1-2), a encarnação do Logos (Jo 1,14), a
intimidade de vida permanente do Filho com o Pai, antes
Apresenta-se o prólogo do Evang~lh? ?e
são João. como e depois da encarnação (Jo 1,18) 56 • João dá à revelação o
a Gesta do Logos, um resumo da historia d~s . ma1:1fest~- máximo de extensão e de significação justamente porque vê
ções de Deus por sua Palavra. Podemos distmgmr tres __
no Cristo a Palavra encarnada, o Filho que vive no seio
etapas nessa economia. A primeira manifestação de Deus-
do Pai. O Cristo está ontologicamente qualificado como o
é a criança. "Tudo criaste com tua palavra" (Sab 9,1 ),
único revelador perfeito: sua missão de revelação baseia-se
escreveu o autor de Sabedoria. São Paulo, por sua vez,
na sua própria vida no seio da Trindade. Aquele que, no
afirma: "nele foi criado tudo que há . . . tudo foi criado seio da Trindade, já é a Palavra e a Sabedoria de Deus, tor-
por ele e para ele" (Col 1,15-16). Em são João encontra-
na-se, na economia concreta da encarnação, fonte de luz e
mos o eco: "Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem de verdade para os homens. Dá-nos assim são João a últi-
ele, coisa alguma foi feita" (Jo 1,3). Porque o mundo cria-
ma palavra sobre a função de Cristo como revelador.
do pelo Logos ( e no Logos, pois Deus vê e concebe tud~
em seu Logos que é a Sabedoria de Deus ) , a Palavra esta 3. A revelação no vocabulário joanino
no mundo com seu poder e sua sabedoria. Sendo o mundo o
que foi proferido por Deus, manifesta a pres~nça e as per-
Para João o Cristo é a Palavra de Deus: essa novida-
feições invisíveis do Deus que fala. Deveriam, portanto,
de repercute na própria linguagem e provoca uma reorga-
os homens reconhecer e glorificar o autor e artífice do mun-
do ( Sab 13,1-9; Rom 1,18-23). Mas, de fato, o h?m~m de S. Jean, (Paris, 1953), p. 114. Outros exegetas, porém, julgam que
permaneceu surdo à mensagem da criação. Essa primeira nesse versículo está em questão o ministério histórico do Verbo encar-
manifestação de Deus foi um fracasso: "O Logos estava nado. Segundo Spitta, Zahn, Loisy, a perspectiva histórica já começaria
no versículo 4 do Prólogo; segundo B. Weiss, no versículo 5; segundo
no mundo, e o mundo por ele foi feito, mas o mundo Heitmüller, Bernard, Büchsel, Holzmann, Harnack, W. Bauer, Lagrange·,
não o conheceu" (Jo 1, 1O) 54 • Por isso Deus escolheu um começaria no versículo 9. Quanto a isso, cfr. R. SCHNACKENBURG, "Lo-
gos-Hymnus und johanneischer Prolog", Bibl. Zeitschrift, 1 (1957):
69-109.
53 S. LYONNE'r, "Hellénisme et christianisme", Biblica, 26 (1945): 55 M.-E. BoISMARD, Le Prologue de S. Jean, pp. 109-123.
115-132; M.-E. BoISMARD, Le Prologue de S. Jean, p. 110. 56 J. ALFARO, "Cristo glorioso, Revelador dei Padre", Gregorianum,
54 :É a interpretação proposta por M.-E. BmsMARD, em Le Prologue 39 ( 1958): 225-226.
78 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 79
nização dos vocábulos. Com efeito, os termos que tradu- riêhcia ( principalmente da vida íntima do Pai e do Filho),
zem a visão interior de João prendem-se, em sua maioria, e essa declaração tem caráter solene, jurídico 59 • O Cristo é
à idéia de revelação: palavra, testemunho, luz, verdade, gló- a Testemunha perfeita e seu testemunho apresenta-se como
ria, sinal, conhecer, saber, ver, manifestar, mostrar, dar a depoimento público no vasto processo que o opõe ao mun-
conhecer, ensinar, testemunhar, dizer, falar, interpretar 57 • do. Em favor de Cristo existem os testemunhos de João
Segundo os Sinóticos, Cristo ensina, prega e anuncia Batista (Jo 1,7), do Apóstolo (Jo 19,35;21,24), da Escri-
a Boa-nova do Reino. Em João, ele fala, testemunha: é o tura (Jo 5,39), do Pai (Jo 5,32.37;8,18) e do Espírito
Filho que fala sobre o Pai (Jo 1,18), a Testemunha que (Jo 15,26). Os homens, contudo, preferem as trevas à
declara o que viu e ouviu no seio do Pai. Por duas vezes verdade. Os judeus, que representavam o conjunto do mun-
no Apocalipse o Cristo é chamado Testemunha fiel ( Apoc do hostil, confrontados com Cristo rejeitam seu testemunho
1,5;3,14). A noção joanina de revelação prende-se, pois, e julgam-se a si mesmos. O testemunho de Cristo faz a
à de testemunho 58 • O substantivo µa.p"t'upla. retorna 13 vê- discriminação entre os homens (Jo 9 ,3 9 ) .
zes e o verbo, µa.p"t'upe~v 33 vezes. Testemunhar é afirmar-,_ Do mesmo modo, falar tem em João o sentido inten-
a realidade de um fato, dando à afirmação toda a solenida- _ · sivo de testemunhar e caracteriza a palavra autorizada do
de exigida pelas circunstâncias. Um processo, uma contes- Filho de Deus: "Eu, eu vos digo a verdade que ouvi de
taçãú, formam o contexto natural do testemunho. No tes- Deus" (Jo 8,40.26.38). Significa o texto que o Cristo
temunho estão implícitos dois aspetos que podem ser mais proclama a verdade revelada; sua palavra é, de forma abso-
ou menos separados. Há em primeiro lugar uma comuni- luta, a palavra de Deus que salva e que julga (Jo 12,
cação referente a acontecimentos dos quais a testemunha 48-49) 60 •
tem conhecimento por experiência. Em segundo lugar, essa
declaração geralmente é feita em função de uma pessoa de- 4. O Cristo, Testemunha do Pai
terminada: a testemunha, com seu depoimento, toma par-
tido a favor ou contra alguém. Em João, testemunhar in- O Cristo fala como Testemunha qualificada, pois é a
clui ambos os aspectos. Cristo ao testemunhar declara a ex- Palavra de Deus (Jo 1,1-2) e o Filho do Pai (Jo 1,18);
periência de realidades e fatos dos quais só ele tem expe- só ele conhece o Pai porque vem de junto dele (Jo 6,46;
7,29;8,55;16,27;17,8); conhece o Pai (Jo 7,29) como o
57 'Arcoxa.À.vrc"t'EW não pertence ao vocabulário de S. João. Só apa-
rece uma vez, numa citação de Isaías (Jo 12,38). Em seu lugar,, S.
Pai o conhece (Jo 1O, 15 ) , porque está no Pai e o Pai nele
João usa cpa.vEpoüv. (H. SCHULTE, Der Begriff der Offenbarung' im está (Jo 10,30;17,21.23); ele em Pessoa é a Luz (Jo
Neuen Testament, p. 67). Do mesmo modo a noção de testemunho subs- 1,8;9,5) e a Verdade (Jo 14,6). Pode assim testemunhar
titui a de Evangelho (D. MoLLAT, art. "Évangile", Dict. despir. 4: 1761).
Nem se encontram os termos XTJPÚCTCTELV e EÚa.yyEÀ-ll;Ecr0a.L, característicos sobre o Pai e sobre a missão de salvação que dele recebeu.
da tradição sinótica. Sua palavra é afirmação de quem viu e ouviu pessoalmente:
58 Quanto à noção de testemunho em S. João, podem-se consultar: "Nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que
1. DE LA PoTTERIE, "La notion de témoignage dans S. Jean", Sacra Pagina
(2 vol., Paris-Gembloux, 1959), 2: 192-208; B. TRÉPANIER, "L'idée de vimos, mas vós não recebeis o nosso testemunho" (Jo 3,
temoin dans les écrits johanniques", Rev. de l'Université d'Ottawa, 15 ( 1945): 11). "Eu ensino o que vi junto do Pai" ( Jo 8,38). "Aquele
27-63; N. BRox, Zeuge und Mãrtyrer, pp. 70-106; M. R. SCHIPPERS,
Getuigen van Jesus Christus in het Nieuwe Testament (Franeker, 1938); 59 Encontramos em S. João todo um vocabulário tomado à lingua-
E. BuRNIER, La notion de témoignage dans le Nouveau Testament (Lau- gem jurídica: convencer, acusar, defensor, julgar, julgamento, testemunhar,
sanne, 1939); Ch. MASSON, "Le témoignage de Jean", Rev. de th. et de testemunho. A obra de Jesus é apresentada num cenário de contestação
ph., 1950, pp. 120-127; A. VANHOYE, "Témoignage et vie en Dieu selon e de defesa (1. DE LA PoTTERIE, "La notion de témoignage dans S. Jean",
le quatrieme Évangile", Christus, n. 6 (abril 1955), pp. 150-171; J. Sacra Pagina, pp, 195-196).
Gu1TTON, Le probleme de Jésus et les fondements du temoignage chrétien 60 1. DE LA PoTTERIE, "L'arriere-fond du theme johannique de la
(Paris, 1950), pp. 153-178. vérité", em Studia Evangelica (Berlin, 1959), pp.289-290.
80 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 81
que me enviou é veraz e eu anuncio ao mundo o que dele Tas entregou em sua mão" (Jo 3,35). Principalmente con-
ouvi" (Jo 8,26.40). "Aquele que vem do céu ... dá teste- fiou ao Filho o seu poder, para que o Cristo realize as
munho de tudo que viu e ouviu" (Jo 3,3 2 ) . QuandO' de obras que o Pai faz e seja assim reconhecido como Envia-
sua paixão, Cristo declara diante de Pilatos: "Para isto do do Pai: "As obras que o Pai me deu para realizar, essas
é que vim ao mundo: para dar testemunho da verdade" (Jo mesmas obras que faço, atestam, a meu respeito, que o Pai
'18 ,3 7 ) , isto é: para proclamar a revelação definitiva rece.: me enviou" (Jo 5,36; 10,25). As obras do Cristo são ao
bida do Pai 61 • São Paulo refere-se ao belo testemunho mesmo tempo suas obras (Jo 5,36;7,21;10,25) e obras do
dado por Cristo ante Pilatos (1 Tim 6,13); os homens, po-- Pai (Jo 9 ,3-4; 14, 1O) pois o Pai nele está e ele no Pai
. rém, não aceitaram seu testemunho (Jo 3,32;1,11 ). O (Jo 10,38;14,10-11 ), e o que é do Pai é também do
essencial de seu testemunho é que o Cristo é o Filho do Paí; Filho (Jo 17, 1O) • O Filho, como o Pai, dispõe da vida,
o Enviado do Pai, o Salvador do mundo e que, pela fé julga e ressuscita os mortos (Jo 5,25-30). Que assim o
nele depositada, é que os homens poderão chegar à vida Pai dê ao Filho, que por si mesmo nada pode fazer (Jo
eterna (Jo 3,16;17,3; lJo 5,10-11). O testemunho pois_ 5 ,30), seu poder e suas obras ( Jo 5 ,36), isso demonstra
-é sabre o próprio Cristo, a natureza misteriosa de sua pessoa·' uma perfeita união de vontade entre o Pai e o Filho, cons-
e sua missão salvífica 62 • tituindo o testemunho do Pai em favor do Filho. É o
Os apóstolos, por sua vez, eles que viveram na inti- Pai que, pelas obras de Jesus, testemunha em favor de
midade do Cristo, que estiveram com ele "desde o começo", seu Filho.
tlão o seu testemunho sobre ele (Jo 15,27). João, que De outro modo presta o Pai testemunho em favor de
vira manar a água e o sangue, atesta a salvação realizada seu Filho: pela atração que exerce sobre as almas. e que
(Jo 19,35-37). Porque vira, ouvira, tocara o Cristo, dá lhes possibilita aceitar o testemunho do Cristo: "Nin-
o seu testemunho sobre o Verbo da vida (lJo 1,1-5); atesta guém pode vir a mim s~ não o atrair o ·pai. . . Todo aquele
"que o Pai enviou o Filho, Salvador do mundo" ( lJo 4,14; que ouviu o Pai e recebeu o seu ensinamento vem a mim"
Jo 20,30-31). (Jo 6,44-45). Isaías e Jeremias já anunciavam o dia em
que todos seriam instruídos pelo próprio Deus (Is 54,13;
5. O testemunho do Pai Jer 31,33s): esse tempo chegou. Deus fala por seu Filho.
Mas, para que dêem adesão à palavra do Filho é preciso
Testemunha o Filho sobre o Pai que o enviou; diz
as palavras que lhe deu o Pai (Jo 3,34;17,8;14,24), e é que o Pai arraste os homens e os dê ao Filho. A fé é um
válido seu testemunho (Jo 8,13-14). Mas, também o Pai "dom" do Pai (Jo 6,65 ) . Pode assim o Cristo afirmar
testemunha em favor do Filho (Jo 5,36;8,18) e sobre a que o Pai lhe dá os que acreditam em sua palavra (Jo 6,
missão que o Filho recebera dele (Jo 5,36). De dois mo- 39;10,29;17,9-11). Em sua primeira epístola João fala do
dos testemunha o Pai em favor de seu Filho. Em primeiro "Espírito que testemunha" e assim dá origem à fé ( lJo 5,6).
lugar, pelas obras 63 • Pois o Pai "ama o Filho e todas as coi- Assim, pois, o testemunho, seja interior seja exterior,
ordena-se à fé; é essencialmente um convite para crer. Re-
61 Ibid., 287; N. BRox, Zeuge und Mãrtyrer, p. 76; B. TRÉPANIER, ceber o testemunho e crer, são praticamente sinônimos (Jo
"L'idée de témoin dans les écrits johanniques", Rev. de l'Univ. d'Ottawa,
15 (1945): 45-48.
62 I. DE LA PoTTERIE, "La notion de témoignage dans S. Jean", H. VAN DEN BussCHE, "La Structure de Jean I-XII", em L'Évangile de
Sacra Pagina, p. 199. Jean (Col. "Recherches bibliques", Louvain, 1958), pp. 88-97; L. CERFAUX,
63 Quanto ao testemunho de Deus pelas suas obras, cfr.: A. VAHOYE, "Les miracles, signes messianiques de Jésus et oeuvres de Dieu", em
"Opera Jesu donum Patris", Verbum Domini, 36. (1958): 83-92; Id., L'Attente du Messie (Col. "Recherches bibliques", Louvain, 1958), pp.
"L'oeuvre du Christ, doo du Pere", Rech. de se. rel., 48 ( 1960): 377-420; 131-138.
_82 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 83
3,11-12.33-36) 64 • E mais, o testemunho é uma ação de -ri ,8 ) , aceitar o seu testemunho ( J o 3, 11 ) , permanecer
toda a Trindade. É ao Filho, enviado pelo Pai, que com- em sua palavra (Jo 8,31.51) 65 • Tanto quanto a Pessoa
pete fazer o Pai conhecido (Jo 1,18) e testemunhar sobré de Cristo, a sua Palavra é vida e verdade (Jo 6,63;17,17).
seu amor ( lJo 4,8-10), pois ele é a Testemunha e a Pala- Ter fé em Cristo é ao mesmo tempo aderir a ele e à sua
vra. O Pai envia seu Filho e confia-lhe todo seu poder palavra. Crer é receber o Cristo (Jo 5,43 ), e ao mesmo
(Jo 3,35;10,28-29;13,3 ); pelas obras que lhe dá, atesta tempo reconhecer a veracidade divina (Jo 3,33), tendo
que o Filho é seu Enviado e, pela atração que exerce, move por verdadeiras as afirmações de seu Enviado (Jo 3,36;
os homens em direção ao Cristo. O Espírito, finalmente, 14,10;16,27.30;20,31; lJo 5,10); é aceitar como verda-
não apenas possibilita a adesão à verdade ( lJo 5,5-12), deiras a filiação divina do Cristo e sua missão de salvação 66 •
mas age também nos corações para que continue sempre
ativa a palavra recebida na fé (lJo 2,20-27); é o Espírito 7. Características da Revelação
que aplica e interioriza a palavra e o testemunho.
A revelação, em são João, apresenta características bem
6. O Cristo, Deus que revela e Deus revelado definidas. Em primeiro lugar, é como que um escândalo,
feita de forma inaudita e inesperada: que a Palavra seja
Para com a revelação e a fé, é inteiramente única a carne e que o acontecimento da salvação nos seja trazido
posição do Cristo. Porque é, em pessoa, a Palavra de Deus, pór um homem visível, audível, palpável (Jo 1,14; lJo 1,
o Filho do Pai, o Cristo é ao mesmo tempo o Deus que 1-3; 4 ,2-3 ) , tudo isso é desconcertante e escandaloso para a
revela e o Deus revelado. Sua doutrina é de Deus, mas lógica humana, que se fecha na objeção (Jo 3,9;6,42;7,15.
não como a do profeta que recebe a revelação e a anuncia. 26.52;8,33.52; 12,34).
Em nosso caso, a revelação parte do Cristo ao mesmo tempo A palavra do Cristo coloca o homem ante uma opção
que do Pai. Cristo ensina a única religião agradável ao decisiva: a favor ou contra a vida. O Cristo veio não para
Pai (Jo 4,23 ), mas ao mesmo tempo ele é o objeto da julgar (Jo 3,17; 12,47), mas para salvar (Jo 3,16-21) e
revelação, o Deus revelado. Afinal, o que revela Cristo, para dar a vida (Jo 10,10). Sua palavta, porém, sendo
senão o desígnio de Deus, isto é: o próprio Cristo, o Filho palavra de salvação, traz julgamento e condenação para
enviado pelo Pai (Jo 5,38), aquele em quem é anunciado quem a recusa: "Se alguém ouve as minhas palavras e não
e reconhecido o Deus verdadeiro (Jo 17 ,3)? O Cristo é as guarda, eu não o julgo; que eu não vim para julgar
pois, ao mesmo tempo, o Deus que fala e o Deus do qual o mundo, e sim para salvar o mundo. Quem me re•
se fala, quem revela o mistério e é o próprio mistério. jeita e não acolhe as minhas palavras tem quem o julgue:
Não apenas comunica a palavra e a verdade: ele é a Palavra a palavra mesma que eu anunciei há de julgá-lo no último
e a Verdade (Jo 1,1;14,5-6), é em pessoa o que ele ensina dia" (Jo 12,47-48). O julgamento é, pois, apenas o re-
e proclamá. Por isso são João pode dizer da doutrina de verso da salvação oferecida. É menos uma sentença divina
Cristo o mesmo que afirma de sua pessoa. Devemos crer que a revelação do segredo dos corações. São os homens
no Cristo (Jo 1,12;10,26), receber o Cristo (Jo 5,43), que se julgam, decidindo-se a favor ou contra o Cristo (Jo
vir ao Cristo (Jo 5,40;6,35.37.44.65;7,37), permanecer no 9,39) .67 Pelo contrário, quem acolhe o Cristo e acredita em
Cristo (Jo 15,4.7). Da mesma forma, devemos crer em
sua palavra (Jo 5,24), receber suas palavras (Jo 12,48; 65 A. DECOURTRAY, "La notion johannique de la foi", Nouvelle Revue
théologíque, 81 ( 1959): 563. _
66 J. ALFARO, "Fides in terminologia biblica", Gregorianum, 42 (1961):
64 I. DE LA PoTTERIE, "La notion de témoignage dans S. Jean", 497-504. -
Sacra Pagina, p. 202. 67 D. MoLLAT, art. "Jugement", Suppl. Dict. de la Bible, 4:1380.
84 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 85
su_a palavra, está salvo (Jo 3,16-18); torna-se uma nova -interior do Pai e ao testemunho do Espírito. Dimensão
criatura (Jo 3,3), um filho de Deus (Jo 1,12), vivificado, dupla da única palavra do amor de Deus.
~lu~inado, santificado, chamado à vida eterna (Jo 3,16),
a visão ( lJo 3,1-2). Depois dessa pesquisa na tradição sinótica, nos Atos,
A revelação, com efeito, é luz e vida. Já no Antigo são Paulo e são João, podemos agora tentar uma descri-
Testamento· os termos Lei, Sabedoria, Palavra são associa- ção da revelação tal como aparece nos escritos do Novo
d~s intimamente à idéia de luz e vida, realidades que per" Testamento. A revelação é a ação, sumamente livre e amo-
mi~em seguir o caminho da vida sem tropeços e chegar rosa, pela qual. J?e_us, numa economia de encarnação, já de
assim a Deus, que é a vida do homem ( Sab 2 13 · 14 18-19 ·
6,12;7,10.30;3,38;4,3). No prólogo joanin~ ~ L~gos
alguma_ forma miciada no Antigo Testamento ( pela instru-
é mentahdade da .palavra profética), dá-se a conhecer em
Luz e Vida para os homens. O Cristo, que ê a Palavra en- sua vida íntima e no desígnio amoroso que eternamente
c_arnada, apresenta-se como a Luz do mundo (Jo 9 ,5 ) , que fo~mou d: salvar e re~onduzir a si todos os homens pelo
hvra de tropeçar no caminho para Deus. "Eu sou a luz do Cristo. Açao que se realiza pelo testemunho exterior do Cristo
mundo: quem me segue não andará nas trevas, mas terá a e dos ~póstolos e pelo testemunho interior do Espírito que
luz da vidà" (Jo 8,12;12,46). O Cristo é a luz que con- opera internamente a conversão dos homens ao Cristo. Esse
duz à vida. Q}lem anda no escuro, corre para· a morte;
testemunho do Cristo e dos apóstolos é ampliado e con-
quem, pelo contrário, recebe a palavra do Cristo e vive fir~ado pelos. sinais de poder. Dessa forma, pela ação
conforme, anda no claro e possui a vida: "~uem ouve a conJunta do Filho e do Espírito, o Pai manifesta e realiza
minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida seu desígnio de salvação.
eterna e _não incorre em condenação, mas passa da mort·é
para a vida" ( J o 5 ,24 ) . Veio o Filho do Pai "para que
todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida
eterna" (Jo 3, 16 ) . O Cristo é o bom Pastor que veio para
que as ovelhas tenham a vida, e vida em abundância ( J o
10,l~). Nã? existe vida fora dele (Jo 6,53). Ora, "nisto
co~siste a vida eterna: que te conheçam a ti, único verda-
deiro J?~us, e aquele que enviaste, Jesus Cristo" (Jo 17 ,3).
A tragicidade da revelação está em o homem poder fechar
os olhos à luz, não aceitar o testemunho e correr assim para
a ruína (Jo 1,11 ).

8. Conclusão

João entende a revelação como a Palavra de Deus feita


carne, e por essa carne, palavra e testemunho formulados
humanamente, dirigida imediatamente aos apóstolos e por
eles a toda a humanidade, para atestar a caridade do Pai
que envia seu Filho entre os homens, para que, acreditan~
do nele, tenham a vida eterna. A fé é resposta ao tes-
temunho exterior do Cristo e, ao mesmo tempo, à atração
segunda parte

O TEMA DA REVELAÇAO
NOS SANTOS PADRES
Num estudo recente sobre Orígenes e a função do
Verbo encarnado 1, Marguerite Harl observa que o assunto
tratado "não só ainda não foi estudado em Orígenes, mas
nem sequer foi claramente percebido na história dos dogmas
dos três primeiros séculos. Para bem situar a contribuição
de Orígenes, continua ela, seria preciso escrever, pelo menos
brevemente, uma história da função reveladora do Verbo
encarnado antes de Orígenes. Em parte alguma consegui-
mos encontrar coligidos seus elementos" 2
De fato, os historiadores do dogma, absorvidos por
outros problemas ( Trindade, cristologia; soteriologia, teo-
logia sacramental etc.), não chegaram a perceber suficien-
temente a grande importância do tema da revelação na teo-
logia dos tres primeiros séculos. Contudo, quem ler atenta
e objetivamente os santos Padres não poderá fugir à impres-
são de que o tema do Cristo como fonte de conhecimento
ali está onipresente.
Ao examinar a revelação nos santos Padres, sabemos
perfeitamente que seria vão pretender um estudo exaus-
tiv9. Além do mais nossa intenção é fazer apenas um re-
conhecimento do terreno. Se com isso não são percebidos
todos os pormenores, pelo menos se notam os conjuntos,
os relevos, facilitando assim as tentativas de aproximação.
1 M. HARL, Origene et la fonction révélatrice du Verbe Incarné
(Paris, 1958).
2 Ibid., p. 24: "non seulement n'a pas encere fait l'objet d'une
enquête chez Origene, mais n'a même pas été clairement remarqué dans
l'histoire des dogmes des trois premiers siecles. Pour mieux situer l'apport
d'Origene, il serait nécessaire d'écrire, au moins brievement, une histoire
de la fonction révélatrice du Verbe incarné avant Origene. Nous n'en
avons trouvé nulle part les éléments rassamblés". Cfr. também p. 84:
"Nous avons du parcourir rapidement trois grandes oeuvres - celles
d'Irénée, de Clement et d'Hippolyte - pour découvrir une doctrine du
Christ révélateur de son Pere. Nul ouvrage, malheureusement, ne nous
donne une synthese sur ce sujet".
r
90 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

Nem será possível examinar todos os santos Padres que 1.


escreveram sobre o tema. Aliás, o que importa é perce- PRIMEIRAS TESTEMUNHAS
ber as orientações mais gerais do pensamento, notar a con-
tinuidade ou descontinuidade, os pontos de partida e de
ruptura; brevemente, estudar os que traçaram rumos. Esses
os que escolhemos, uns vinte autores desde a época apos-
tólica até santo Agostinho 3 •
É claro que nenhum dos santos Padres pretendeu es-
crever um tratado sobre a revelação, apesar de podermos
muitas vezes encontrar dispersos em seus escritos quase
todos os elementos necessários para uma síntese doutrinal I. OS PADRES APOSTóLICOS
·sobre o assunto. Agrupando, pois, esses elementos, não po-
deremos esquecer os contextos teológicos em que se inse- Eco direto da Boa-nova, os Padres Apostólicos 1 usam
rem. Justamente por isso é que nos deixamos guiar antes os termos da pregação primitiva.
pelos próprios autores, pelos temas e vocábulos usados, 1. O autor ·da Didaché recomenda que ninguém se
que pelas categorias de nossa teologia atual. Isso sem deixàr separe dos "mandamentos do Senhor" ( 4, 12 ) , mas que
de interrogar cada um sobre alguns pontos essenciais ao todos sigam "a regra do Eyangelho" ( 11,3 ) conformando-
nosso intento. Para escandir mais claramente as etapas -lhe as ações (15,3-4).
do pensamento patrístico, terminaremos cada monografia
com um sumário. 2. Clemente de Roma atesta a fé recebida. Uma das
características de sua Epístola é a fidelidade à h~rança que
recebera dos apóstolos e que transmite integralmente. O
Cristo é apresentado como o Mestre cujo ensinamento leva
à salvação ( 36,1), sendo os apóstolos os mensageiros da
Boa-nova por ele anunciada: "Os apóstolos foram-nos en~
viados por nosso Senhor Jesus Cristo como mensageiros da
Boa-nova. O Cristo vem, pois, de Deus, e os apóstolos, de
Cristo: ambas as realidades vêm em boa ordem da vontade
de Deus. Os apóstolos, munidos com as instruções de nosso
Senhor Jesus Cristo e plenamente convencidos de sua res-
3 Além das obras clássicas de A. VON HARNACK, Lehrbuch der
Dogmengeschichte (Giessen, 1885; 5~ ·ed., Tübingen, 1931), de J. T1xE-
surreição, fortalecidos pela palavra de Deus, foram, com
RONT, Histoire des dogmes dans l'antiquité chrétienne (Paris, 1930), de a segurança do Espírito Santo, anunciar a Boa-nova, a che-
R. SEEBERG, Lehrbuch der Dogmengeschichte (Leipzig, 4~ ed., 1930-1933), gada do Reino de Deus" ( 42,1-3). Clemente designa pois
e os tratados de patrologia de F. CAYRÊ, de J. QuAsTEN e de B. ALTANER,
· seria bom notar, entre as obras gerais, também as seguintes: D. VAN o objeto da fé como Boa-nova, instruções· de Cristo, palavra
DEN EYNDE, Les normes de l' enseignement chrétien dans la littérature de Deus pregada na força do Espírito.
patristique d_es trois premiers siecles ( Gembloux, 1933); E. MoLLAND,
The Conceptzon of the Gospel in the Alexandrian Theology ·(Oslo, 1938); 1 J. B. LIGHTFOOT, The Apostolic Fathers (London, 1889-1890); J.
M.. Spaneut, Le sto'icisme des Peres de l'Église (Paris, 1957); J. DANIÊLOU,
Message évangélique et culture hellénistique aux II• et III• siecles (Paris- LEBRETON, Histoire du dogme de la Trinité, 2: 249-394; H. ScHLIER,
Religionsgeschichtliche Untersuchungen zu den lgnatius-Briefen (Giessen,
-Tournai-New York-Rome, 1961); G.-1. PRESTIGE, Dieu dans la pensée 1929); P. Ta Camelot, lgnace d'Antioche et Polycarpe de Smyrne
patristique (Paris, 1955); J. LEBRETON, Histoire du dogme de la Trinité ("Sources chrétiennes I", Paris, 1951), pp. 7-59.
(Paris, 1928),'
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 93
92 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

3. Policarpo recomenda aos filipenses que marchem ter~os estão correlacionados: O Cristo, os apóstolos, a
no caminho da verdade traçado pelo Senhor (5,2;4,1 ), que I?reJa, representada por seu bispo e seu presbitério. É pre-
sejam "dóceis à palavra da justiça" (9,1). Insiste: sirva- c~so permanecer. "inseparáveis de Jesus Cristo Deus, do
mos ao Senhor "como ele mesmo nos mandou, assim como bispo e do_s preceitos dos apóstolos" ( Tt. 7, 1 ; 13 ,2 ) . "Sigam
os apóstolos que nos pregaram o Evangelho e os profetas que todos o bispo como Jesus Cristo a seu Pai, e o presbitério
nos anunciaram a vinda do Senhor" ( 6,3). Abandonemos "as como os apóstolos" ( Smir. 8,1).
falsas doutrinas para voltarmos ao ensinamento que nos foi , Ináci? usa pouco o Antigo Testamento. Percebe po-
transmitido desde o começo" ( 7 ,2 ) . rem a umdade profunda entre o Evangelho .e.' os profetas.
Acorrentado, refugia-se "no Evangelho como na carne de
4. Pápias estabelece oposição entre os "mandamen- Jesus Cristo e nos_ apóstolos como no presbitério da Igreja.
tos estranhos" e os "mandamentos dados pelo Senhor, à fé, Amamos também os profetas, pois também anunciaram o
nascidos da própria verdade" ( Eusébio, HE 3 ,39 ,3-4). Evangelho, esperara~ nele (Jesus Cristo) e o aguardaram;
5. Inácio de Antioquia está todo impregnado do Novo crendo nele, foram salvos e, permanecendo na unidade de
Testamento, principalmente de Paulo e João. Vê em Cristo Jesus Cristo, como santos dignos de amor e admiração, re-
o conjunto da verdade e da vida, o Mediador da revelação ceberam o testemunho de Jesus Cristo e foram admitidos
e da salvação. O Cristo é o Filho que o Pai enviou a este ao Evangelho de nossa esperança comum" (Filad. 5,1-2).
mundo para manifestá-lo: "não há senão um só Deus, que A revelação abarca toda a "economia. . . referente ao homem
se manifestou em Jesus Cristo, seu Filho, que é seu Ver- novo, Jesus Cristo" ( Ef. 20 ,1 ) , fonte de salvação para
bo saído do silêncio" (Magn. 8,2;6,J-2). O Cristo é "a todos os homens.
boca sem mentira pela qual o Pai falou verdadeiramente" Aos judaizantes, que levantam oposição entre os pro-
(Rom. 8,,?). feta~ e o Evangelho e que o subordinam aos arquivos do
Antes ainda de se encarnar, manifestara~se o Verbo Antigo Testamento, Inácio opõe a pessoa de Jesus Cristo
pela criação do mundo (Ef. 15,1); depois, em todo o An- ~m quem tud? se reduz à unidade, esperança e realização:
tigo Testamento: "Os profetas, pelo espírito, eram seus Quanto a mim, meus arquivos são Jesus Cristo· meus ar-
discípulos, e o ouviam como a seu Mestre" (Magn. 9,1-2; quivos invioláveis são a sua cruz sua morte su; ressurrei-
Filad. 5 ,2 ) . Essas manifestações orientavam-se para a ma- 8
ção e a fé que vem dele" ( Filad. ,1-2). Sodiente ao Cristo
nifestação definitiva da encarnação: "Aparecia Deus sob "foram confiados os segredos de Deus. Ele é a Porta do
forma humana para inaugurar a vida eterna" ( Ef. 19 ,3 ) . Pai, pela qual entram Abraão, Isaac Jacó os profetas e os
"O Evangelho é a consumação da vida eterna" ,( Filad. 9 ,2 ) . , 1os da Igreja. Tudo isso leva' à unidade
aposto ' com Deus"
Concisamente declara Inácio que "o conhecimento de Deus ( Filad. 9, 1 ) . Para todos o Cristo é o único Salvador e
é Jesus Cristo" ( Ef. l7 ,2 ) , indicando assim que o Cristo Revelador.
é o Mestre único (Ef. 15,1; Magn. 9,1) pelo qual Deus . Estão persuadidos os Padres Apostólicos de que o en-
se nos dá a conhecer. smamento da Igreja é de origem divina. O objeto da fé é
Ressoa um· leitmotiv em todas as cartas de Iná- a palavra de Deus, o conjunto dos mandamentos e ins-
cio. É preciso fugir dos hereges e das doutrinas per- truções ~ados à humanidade pelo Cristo, pelos profetas e
versas (Filad. 2-3; Polic. 3,1; Smir. 4,1). Ou, positiva- pelos apostolas. Para todos o Cristo é a fonte de onde
mente, é preciso permanecer firme nos "ensinamentos do j~rr~ o cristia!-1~sm<;>, o Mest,re único; os profetas são seus
Senhor e dos apóstolos" ( Magn.. 13 ,1 ) . Os efésios não discipul~s espmturus; os apostolas são os pregadores e os
devem ter outro ornato senão os "mandamentos de Jesus m~nsageiros ?e seu Evangelho; a Igreja recolhe e trans-
Cristo" (Ef. 9,2). Nesse movimento de fidelidade tres mite seu ensmamento. Inácio de Antioquia, mais que to-
'7"""

94 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 95


dos vê no Cristo o todo da revelação e· o todo da salvação. do; por ele se fez conhecer; por ele opera a salvação do
Nel~ Verdade e Vida estão inseparavelmente unidas. Na mundo.
enca;nação do Filho termina e atinge seu ponto mais alto Deus criou e organizou o cosmos por seu Logos, e para
a economia da revelação. O Cristo é o conhecimento do Pai. esta obra é que Deus o concebeu: "O Filho de Deus, o
único realmente Filho, o Logos com ele existente e gerado
antes de todas as criaturas, quando no começo fez e orga-
II. OS APOLOGETAS
nizou tudo" ( II Apol. 6,3). A geração prende-se à cria-
ção, deu-se tendo em vista essa criação. Em vários textos,
porém, Justino insiste na anterioridade absoluta do Logos
Mais o gênero literário que a tradição dá aos apolo- antes de toda criação: "Como princípio antes de todas as
getas uma unidade 2 • Procuram nos sistemas filosóficos do criaturas, Deus gerou de si mesmo antes de toda criatura
século segundo todos os recursos que pensam poder encon- uma certa virtude verbal" ( Dial. 61, 1 ) . Ou ainda: "Esse
trar para apresentar o Evangelho ao mundo helêi~.ico, de- rebento emitido realmente pelo Pai antes de todas as cria-
finindo-o em categorias_ desse mesmo mundo. Assim, pen- turas, estava com o Pai e é com ele que o Pai se entretém"
sam eles,. o mistério cristão atingirá essas almas sem as es- ( Dial. 62 ,4 ) . Parece que para Justino a geração do Logos
pantar. Ora, um ponto da filosofia da época, do sistema é a ação pela qual Deus, antes de criar, por seu poder e
estóico particularmente, é que o Logos e o Pneuma é Deus vontade, emite o Verbo como artífice da criação 3 •
difundido no universo. Por outro lado, a doutrina do Deus- O Logos exerce também uma função religiosa como re-
-Logos está no centro mesmo da teologia joanina. A teo- velador e salvador ( II Apol. 6,1-5); Sua ação reveladora,
logia, pois, dos apologetas será elaborada a partir da teolo- difundida na humanidade ( I Apol. 46,2-5) manifesta-se
gia do Logos. Será uma teologia das manifestações do Deus mais claramente entre os judeus e nos profetas e é total
transcendente pelo Logos criador, revelador e salvador. somente em Jesus Cristo ( II Apol. 10,8; I Apol. 5,4).
Segundo Justino, toda verdade origina-se do Logos ou
1. S. Justino Verbo divino. Em cada homem há uma semente, "um ger-
me do Logos", que lhe permite atingir parcialmente a ver-
No pensar de Justino, o Pai, transcendente, incognos- dade (kata meros) e exprimi-la (II Apol. 13,5;8,l). Diz
cível, invisível, age através do Logos: por ele criou o mun- ainda que todos os homens participam do Logos divino ( I
Apol. 46,2). Conforme R. Holte, para Justino há uma
2 J. R. LAURIN, Orientations mditresses des apologistes chrétiens distinção entre Spermatikos Logos e spermata tou Logou.
(Rome, 1954); J. LEBRETON, Histoire du dogme de la Trinité, 2: 395-516;
A. PuECH, Les apologistes grecs (Paris, 'i912); J. BARBEL, Christos Os germes são uma participação do Logos no espírito hu-
Angelos (Bonn, 1941); A. L. FEDER, Justins des Miirtyres Lehre von mano; provêm da ação do Logos que fecunda as inteligên-
Jesus Christus (Freiburg, 1906); J. DANIÉLOU, Message évangélique et cias, são as sementes de um conhecimento de grau inferior
culture hellénistique aux Jie JIJe siecles, pp. 42-50 e 317-328; e. ANDRE-
SEN, Logos und Nomos (Berlin, 1955); R. HoLTE, "Logos Spermatikos, que somente o Cristo, Logos encarnado, poderá levar à
Christianity and Ancient Phílosophy according to St. Justin's Apologies", perfeição 4• Foi devido a essa participação e sementes do
Studia theologica, 12 (1958): 109-168; G. BARDY, Athénagore, Supplique
au sujet des chrétiens ("Sources chrétiennes 3", Paris, 1943), pp. 7-69; Logos que os filósofos pagãos puderam perceber alguns raios
Id., Théophile d'Antioche, Trois livres à Autolycus ("Sources chrétiennes, da verdade merecendo assim o título de cristãos ( I Apol.
20" Paris 1948) pp. 7-56; H. I. MARROU, A Diognete (Sources chrétien-
nes: 33 ", 'Paris, 1951), pp. 5-42; M. SPANNEUT, Le stozcisme des Per1:5 3 G. AEBY, Les missions divines, p. 14; A. Orbe, Hacia la primera
de l'Eglise ( Paris, 1957), G. AEBY, Les missions di~ines, ~e saint ] ustz_n Teologia de la procesión del Verbo, pp. 568-574.
à Origene (Fribourg, 1958) pp. 6-24; A. ÜRBE, Hacza la przmera Teologia 4 _R. HoLTE, "Logos Spermatikos, Christianity and Ancient Phílosophy
de procesión del Verbo (2 vol. Roma, 1958), pp. 565-603. accordmg to St. Justin Apologies", Studia Theologica, 12 (1958): 144.
96 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 97
46,2-3). No entanto, Justino não diz _claramente co~o ele ções do Logos no Antigo e Novo Testamento. "O Pai do
entende essa ação do Logos spermattkos, que suscita ?s universo tem um Filho, que é Logos, primogênito de Deus
germes no espírito. Dá ainda uma explicação de ordem his- e Deus ele mesmo. Manifestou-se inicialmente sob a forma
tórica: os elementos de verdade que podemos encontrar nos de fogo e sob forma incorpórea a Moisés e aos outros pro-
filósofos e nos poetas derivam de empréstimos feitos do fetas; e agora ... se fez homem, nasceu duma Virgem, se-
Antigo Testamento (I Apol. 44,8-9;59,l). As mesmas gundo a vontade do Pai, para a salvação dos que nele acre-
verdades, pois, provêm de uma dúplice fonte. . ditam" (I Apol. 63,15-16). Os filósofos pagãos chega-
Mais ainda se manifesta nos patriarcas e profetas a ram a alguma verdade, mas não à plenitude da verdade.
ação reveladora do Logos. Justino reconhece o Logos na- "Graças ao germe do Logos neles depositado pela natureza,
quele que aparece aos patriarcas e com eles se entretém 5 • podiam confusamente ver a verdade. Mas, uma ·coisa é
Foi o Logos que apareceu a Abraão junto, ao ~arvalho de possuir um germe e uma semelhança proporcionada às fa-
Mambré (Dial. 56,1-2); que lutou com Jaco (Dial. 1~~,3). culdades, outra, a própria realidade cuja participação e imi-
"Foi justamente Jesus que apareceu e falou a Moises, a tação procedem da graça que vem dele" ( II Apol. 13 ,3-6).
Abraão afinal a todos os patriarcas" (Dial. 113,4;37,4; Justino faz a distinção entre o pleno conhecimento que o Ver-
58 3). 'Justin~ chama-o "anjo" de Deus (Dial. 56,4;127,4; bo concedeu gratuitamente, revelando-se no Cristo e o que
128,1) para marcar bem seu papel de ~ervidor (Dial. 56, de parcial puderam perceber os pagãos pela participação do
22) que realiza os desígnios do Pai ( Dial. 1_27 ,l-4;58,3) ~ Verbo que tinham recebido. Somente o cristão vive "segun-
denomina-o também "apóstolo", pois "anuncia tudo que e do o conhecimento e a contemplação do Verbo total, que é o
preciso saber e é enviado para significar tudo que é anu~- Cristo" (II ApoL 8,3;10,2-3). Acentua assim a continui-
ciado" (I Apol. 63,4-5; Dial. 56,1;67,6;128,2). O Pai, dade e universalidade da ação do Logos: antes do Cristo
pelo contrário, é invisível; não pode nem ~parec~r nem o Logos age espermaticamente no conjunto da humanidade,
falar, pois é o Deus transcendente que habita acima do atingindo a plenitude no Cristo. Inicialmente verdade par-
mundo (Dial. 127,1-4). cial e obscura, depois total e clara.
Os profetas são as testemunhas de Deus: "viram e Pelo Logos encarnado é que. nos vem o conhecimento
anunciaram a verdade aos homens". Disseram o que, "re- do Pai (I Apol. 63,13 ). Pelo Cristo é-nos dado "aprender
pletos do Espírito Santo, tinham ouvido e visto. Para falar a conhecer tudo do Pai" ( Dial. 121,4; I Apol. 13 ,3 ) .
não usaram demonstrações porque acima de qualquer Assim supera a doutrina cristã toda doutrina humana: "te-
demonstração eram eles as dignas testemunhas da ver- mos todo o Logos no Cristo que por nós se manifestou,
dade" ( Dial. 7, 1-2). O que anunciavam primordialmente corpo, logos e alma. Os filósofos é legisladores devem à
era o Cristo, sua vida terrestre, o mistério da salvação. Para descoberta e contemplação parciais do Logos todos os prin-
Justino não há senão um grupo de proclamadores, os pro- cípios justos que descobriram e exprimiram. Por não te-
fetas (I Apol. 40,1;52,3;53,2;54,2) e um só objeto de rem conhecido o Logos total, que é o Cristo, é que muitas
proclamação: O Cristo e seu mistério (Dial. 14,8;24,2;34, vezes caíram em contradições " ( II Apol. 1O, 1- 3 ) . Os
2;43,1 ;48,4;63,5 ;71,2;88,8). cristãos possuem em Cristo, de forma eminente a verda-
Mesmo sem dizer que as teofanias do Logos no An- de de toda filosofia, que não é senão uma parti~ipação do
tigo Testemente preparam a teofania da encarnação, Jus- Logos. Toda verdade é cristã.
tino, pondo em · evidência a unidade do plano de Deus, É pois o Cristo o nosso "Mestre" (I Apol. 12,9;21,1 ),
gosta de falar da economia única que abarca as manifesta- que devemos preferir a todos os didáscaloi ( Dial 142 ,2).
Com as suas "lições", "preceitos", seus "ensinamentos" suas
5 G. AEBY, Les missions divines, pp. 6-10.
"máximas" (I Apol. 14,3-4) ele "ilumina" todas as dações
4 - Teologia da revelação
98 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 99
( Dial. 122 ,4). Sua doutrina é doutrina de salvação: o Lo- eia, por suas obras, deixa-se ver e compreender" ( Autol.
gos fez-se homem "para trazer-nos uma doutrina que reno- I, . 5~6). É preciso, porém, uma alma pura e liberta das
vasse e regenerasse o gênero humano" ( I Apol. 23, 1-2). Dou- pa1xoes ( Autol. I, 2 ) . Por enquanto olhos humanos não
trina que, contida nas Memórias dos apóstolos, "que denomi- p_odem ver a Deus claramente: para chegar à visão é pre-
namos Evangelhos" (I Apol. 66,3; Dial. 102,5;103,6-8;104, ciso passar pela fé e provar a morte ( Autol. I, 7).
1), somos convidados a receber na fé, conformando-lhe . ~ela mesm~ razão que Justino, Teófilo de Antioquia
nossa vida (1 Apol. 61,2; 6 7 ,3-4). Adesão que se realiza atribui as teofamas ao Logos do Pai. "Deus, o Pai do uni-
pela graça, "pois ninguém pode ver ou compreender se verso, não pode estar contido num lugar· pois não existe
Deus e seu Cristo não lhe dão compreender" ( Dial. 7 ,3 ) . onde se retire para descansar. Mas seu Verbo, pelo qual
tudo f_ez, que é seu poder ~ sua sabedoria, assume o papel
2. Atenágoras d~ Pai e do Senhor do umverso, ele é que estava no pa-
raisa, representava a Deus e entretinha-se com Adão" ( Autol.
Atenágoras acentua que Deus é invisível e incompreen- II, 22). As teofanias não podem ser atribuídas ao Pai
sível: somente Deus nos pode ensinar algo sobre Deus que tran~cende o .~spaço e o lugar. É o Logos, o Verbo d~
( Leg. VII). O que ele, Atenágoras, ensina, não é uma dou- Deus, o mtermedrnrio entre ele e o mundo. Por ele Deus
trina humana, mas uma doutrina "ensinada pot Deus" tudo criou, ~le é ~1:1e aparece aos homens como represen-
( Leg. XXXII). Os preceitos cristãos "não são preceitos tante do Pa~. _Teofilo compreende as teofanias do Logos
humanos, foram proferidos e ensinados por Deus" ( Leg. com~ uma missao que tem sua origem na geração do Filho. É
XI). Isso não quer dizer que Deus não possa ser conheci- o Pai que envia o Filho quando quer pois que o gerou quan-
do, até certo ponto, sem a revelação. Atenágoras reconhece do q?is 6 • "Assim, o :Verbo sendo Deus e de Deus nascido,
que o Deus invisível pode, por suas obras, ser conhecido o Pai 1e todas as coisas, quando quer o envia a um lugar
pela razão ( Leg. V). A ordem do universo, manifesta o d~termma?º· Quando ele se apresenta, pode ser ouvido e
criador, artífice e arquiteto da beleza e da harmonia in- visto, enviado que é de Deus num lugar concreto" ( Autol
visíveis ( Leg. IV. XV. XVI). Paralelamente a este chegar II, 22). ' .
a Deus por uma demonstração a partir da criatura, Atená- . Teófilo insiste na importância dos profetas na eco-
goras admite certo conhecimento popular e intuitivo, nomia da revelação. "Os profetas ... foram instruídos por
que ele chama de caminho da consciência ( Leg. V. XXJI). ~eus ", foram os "órgãos de Deus" ( Autol. II, 9). Comu-
Ante a revelação, porém, esse conhecimento é débil, incom- mcam-nos "os ensinamentos das santas vontades de Deus"
pleto e passível de erro. Os filósofos "conseguiram conce- ( Autol. II, 14). Somente os cristãos possuem de fato a
ber, mas não encontrar o ser, pois não se dignaram verdade, porque foram "instruídos pelo Espírito Santo, que
aprender de Deus o que a Deus se refere, mas de si mes- fal~ndo no~ santos profetas, tudo predisse" ( Autol. II, 3 3).
mos o quiseram aprender. É por isso que cada um apre- Foi para aJudar-nos a mais bem conhecê-lo que "Deus nos
sentou uma opinião diferente sobre Deus, sobre a natureza, deu uma}ei e santos mandamentos" ( Autol. II, 27) e colo-
sobre as formas e o mundo" ( Leg. VII). cou-n~s na escola do_s ~antas profetas" ( Autol. III, 17).
~ am,?em podemos ouvir a voz do Evangelho" que "nos en-
si1;a ( ~?tal.,, III, 13 ) . Vamos pois "à escola dos pre-
3. S. Teófilo de Antioquia
ceitos divmos antes que à dos "autores profanos" ( Autol
III, 17). .
Também ele admite que a razão pode apresentar certa
demonstração da existência de Deus: "pela sua providên- 6 G. AEBY, Les missions divines, pp. 16-20.
100 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 101
A Epístola insiste na continuidade entre a :-nissão do
4. Epístola a Diogneto
Logos e a missão da Igreja. O que o Verbo ensinou, e os
apóstolos receberam, continua na Igreja. A Igreja aumenta
Cbnforme o autor da Epístola a Diogneto os cristãos
graças à revelação e, pela Igreja "a graça dos profetas é re-
não são "defensores de uma doutrina humana", de origem
conhecida, firmada a fé nos Evangelhos e conservada a tra-
terrestre (V, 3 ) : sua fé vem do próprio Deus que "entre dição dos apóstolos" ( XI, 6). A Igreja é o lugar privilegiado
os homens estabeleceu a Verdade, o Logos santo e incom- onde se prolonga entre os homens a ação do Logos salvador
preensível" (VII, 1-2). É de Deus esse primeiro passo e revelador. Suas normas são a Lei, os Profetas, os Evan-
gratuito e amoroso: "ele mesmo é que se manifestou" (VIII, gelhos, a tradição dos Apóstolos ( XI, 6).
5-6). Opõe-se a esse conhecimento de Deus a impotência
da razão humana, incapaz de se elevar a uma válida com-
preensão da natureza divina. O autor não chega a negar a Mesmo reconhecendo à razão humana o poder chegar
possibilidade de certo conhecimento de Deus pelas forças a certo conhecimento de Deus e caprar elementos de ver-
dade moral e religiosa, os apologetas concluem ser nGces-
naturais da razão: fala antes de uma impotência experimen-
sária a revelação para chegarmos a um conhecimento autên-
tal; de fato, os caminhos humanos não chegam ao termo. tico do Deus inc0gnoscível e transcendente. É pelo Logos
Só a revelação pode dar um conhecimento autêntico de Deus. que o Pai é manifestável e manifesto. A não ser Justino,
O revelador é o Logos, o Filho ( IX, 4), o Filho de os apologetas falam mais do Logos que do Cristo. Sua ação
Deus (X, 2), o Monogenes, Logos e Verdade (VII, 2), é começa na criação. Depois de se ter dirigido aos patriarcas
sua missão entre os homens revelar o autêntico e pleno co- e, aos profetas para instruí-los, o Logos manifestou-se ple-
nhecimento de Deus ( VIII, 1-5). A epístola de tal forma namente pela encarnação, manifestando aos homens os mis.,
concentra no Logos a ação reveladora que deixa na penum- térios e segredos do Pai, seu plano de salvação, ensinan-
bra o papel dos profetas e do conhecimento natural. O L?- do-lhes a doutrina e os preceitos divinos. Dirigindo-se ao
gos ensina a verdade a todos que o escutam (XI, 2 ) . Veio mundo dos intelectuais, inclinam-se os apologetas a consi-
ao mundo para comunicar aos homens o "conhecimento dos derar a revelação como a comunicação de iima filosofia
mistérios do Pai"; ele que, desprezado por seu povo, "foi superior, o dom da verdadeira doutrina, da verdade abso-
anunciado pelos apóstolos e crido pelas nações" (XI, 2-4 ) . luta. O Logos dos apologetas é o Mestre, o Didáscalos
Veio desvendar o desígnio de salvação concebido nas pro- por excelência; os cristãos são discípulos que se ligam à
fundezas secretas de Deus ( VIII, 9-11), fruto de seu amor sua escola. Sua doutrina, porém, e nisso insistem os apolo-
e de sua misericórdia ( VII, 3-5). Vindo ele, começou para getas, é uma doutrina de salvação, dom do Pai das miseri-
a humanidade uma era de justiça ( IX, 1 ) . Pela fé conhece- córdias, doutrina que conduz à vida eterna os que a recebem
mos a Deus de uma maneira completa e eficaz ( VIII, 6; IX, na fé. É variável o papel que os apologetas atribuem aos pro-
6; X, 1 ) . Se alguém se espanta de a revelação ter vindo tão fetas e aos apóstolos. A maioria confere aos profetas um lugar
tarde, responde o autor que a revelação se realiza no tempo, privilegiado: Justino, Atenágoras, Taciano, Teófilo de An-
mas realiza um desígnio eterno do coração de Deus ( VIII, tioquia. Não que os coloquem acima dos apóstolos, mas
9). Principalmente, era preciso que a humanidade, mergulha- vêem na antiguidade e no cumprimento das profecias um
da cada vez mais no mal, experimentasse sua impotência argumento apologético importante. O verbo X'!Jpúcrcmv, em-
de chegar por si mesma à salvação, reconhecida ao mesmo
pregado quase tecnicamente em o Novo Testamento para
tempo como urgente e gratuita ( IX, 1-2,6).
indicar o testemunho dado pelos apóstolos em favor de
102 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

Cristo, chega em Justino a cara_cterizar o ~núncio ~e Cristo 2.


pelos profetas. Mas nem por 1ss~ os apos~olos sao esque-
cidos. Justino e a Epístola a D1ogneto dao-lhe_s o papel SANTO IRINEU
que lhes compete, situando-os em relação a Cn~to e aos
profetas. Sua ação, porém, é descrita menos frequentemen-
te. Quanto à Igreja, compete-lhe recebe~, conservar, pre-
sencializar também o ensinamento de Cristo, dos profetas
e dos apóstolos.

A obra de Santo Irineu 1 insere-se num contexto de


polêmicas antignósticas. Os sequazes de Ptolomeu e Mar-
dão fazem do Cristo o revelador de um Deus desconheci-
do no Antigo Testamento: teria o Cristo revelado um Deus
distinto do Deus da Lei e dos Profetas. Pelo contrário,
Irineu declara que Deus é uno, una a economia da reve-
1 Sobre Irineu e o tema de revelação, consultamos estas obras e estes
artigos: F. SAGNARD, Irénée de Lyon, Contre les hérésies, L. III ("Sour-
ces chrétiennes 34", Paris, 1952), pp. 9-85; L. M. FROIDEVAUX, Irénée
de Lyon, Démonstration de la prédieation apostolique ( "Sources chrétien-
nes 62", Paris, 1959); J. LEBRETON, Histoire du dogme da la Trinité,
2: 517-617; Id., "La connaissance de Dieu chez S. Irénée", Reeh. de se.
rel., 16 (1926): 385-406; A. BENOIT, Saint Irénée, Introduetion à l'étude
de sa théologie (Paris, 1960); A. HoussIAu, La ehristologie de S. Irénée
(Louvain, 1955); Id., "L'exégese de Mt. 11,27b selon S. Irénée", Eph.
theol. lov., 29 ( 1953): 328-354; J. Ford, St. Irenaeus and Revelation,
A Theologieal Perspeetive (Dissertado ad lauream, Romae, 1961); G. AEBY,
Les missions divines, de Saint Justin à Origene (Fribourg, 1958); J.
DANIÉLOU, Message évangélique et eulture hellénistique aux IJe et III•
siecles (Paris-Tournai-New York-Rome, 1961); F. HITCHCOCK, Irenaeus
of Lugdunum, A Study of his Theology (Cambridge, 1914); L. EscouLA,
"Le Verbe sauveur et illuminateur chez S. Irénée", Nouvelle Revue
Théologique, 66 (1939): 385-400, 551-567; Id., "Saint Irénée et la
connaissance naturelle de Dieu", Revue des se. rel., 20 (1940): 252-271;
R. D. LUCKHART, "Matthew 11,27 in the Contra Haereses of St. Irenaeus",
Rev. de l'Université d'Ottawa, 23 ( 1953): 65-79; B. REYNDERS, "Para-
dosis, Le progrés de l'idée de tradition jusqu' à S. Irénée", Reeh. de théol.
ane. et méd., 5 (1933): 155-191; H. HoLSTEIN, "La tradition des apôtres
chez S. Irénée", Reeherehes de se. rel., 36 (1949): 229-270; Id., "Les
témoins de la révélation d'apres S. Irénée "Reeh. de· se. rel., 41 ( 1953):
410-420; D. E. LANNE, "Le ministere apostolique dans l'oeuvre de S. Iré-
née", Irenikon, 25 (1952): 113-141; J. DANIÉLOU, "S. Irénée et les
origines de la théologie de l'histoire", Reeh. de se. rel., 34 (1947):
227-231; K. PRÜMM, "Gottliche Planung und menschliche Entwicklung
nach Irenaus Adversus Haereses", Seholastik, 13 (1938): 206-224, 342-366;
A. VERRIELE, "Le plan du salut d'apres S. Irénée", Rev. des se. rel.,
14 (1934): 493-524; TH. A AunET, "Orientations théologiques chez S.
Irénée", Traditio, 1943, pp. 15-54; H. DE LuBAC, Catholieisme (Paris,
r
1

104 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES


SANTO IRINEU 105
lação pois é um só e o mesmo Verbo de Deus que preside
pável_, mostra-se o Pai. Pois o Pai é o que há de invisível
à revelação do Antigo e do Novo Testamento. Em Santo n? Filho e este, o que há de visível no Pai" (IV, 6,6). O
Irineu o tema da revelação é conexo com o tema mais vasto Filho não apenas propicia o conhecimento do Pai; é a
ainda da ação do Verbo na obra da Salvação. Vê o Verbo em
manifestação viva do Pai. Não que o Filho seja natural-
ação desde a aurora da humanidade. Sob sua direção a huma- mente visível: ele é invisível por namreza, como o Pai.
nidad~ nasce, cresce e amadurece até à plenitude dos tem-,
pos; pela encarnação do Verbo e sua obra redentora, tor-
J\ . encarnação porém, torna-o visível ( Dem. 84), possi-
b1htando-lhe, de múltiplas .formas, manifestar o Pai ( IV,
na-se corpo do Cristo, com ele e nele encaminha-se para a
6,6). Irineu considera, pois, a revelação como a epifania
visão do Pai (IV,· 38,3) 2 •
do Pai através do -Verbo encarnado. O Cristo ou o Ver-
Pois que impossível conhecer a Deus sem Deus, o bo encarnado é o que se pode ver e atingir, que mani-
Verbo de Deus é que ensina a humanidade a conhecê-lo festa o Pai; este é o invisível que manifesta o Filho que
(IV, 5,1;6,4). É no· comentário a Mt 11,25-27 qué Irineu se fez visível. Como se vê, Irineu continua com linguagem
exprime o que pensa sobre a ação reveladora de Deus e de Jo 1,18 e de lJo 1,1-3.
sobre os fundamentos trinitárias dessa ação 3 • "Ninguém Irineu admira a maravilhosa unidade e progressão do
pode conhecer ao Pai a não ser pelo Verbo de Deus, isto é, plano de revelação. Com o Verbo encarnado culmina um
se o Filho não o revela. Nem se pode conhecer o Filho processo que se desenvolve desde a origem do mundo: ini-
se não ao bel-prazer do Pai. O Filho realiza o beneplácito cialmente pela obra da criação, depois pela •Lei e pelos
do Pai. O Pai envia, o Filho é enviado e vem. E o Pai, profetas, fmalmente pela encarnação (IV, 6,6; Dem 6).
invisível e indelimitável para nós, é conhecido por seu pró- Pois que o Verbo está eternamente presente junto ao Pai,
prio Verbo, que nos dá a conhecê-lo, o inefável. De seu está . presente à humanidade desde o começo a dispensar
lado, o Pai é o único a conhecer seu Verbo. É por isso que contmuamente as graças e os mistérios do Pai ( III, 11,1).
por sua própria manifestação o Filho revela o conhecimento "O Filho, desde o início junto ao Pai, desde o início é o
do Pai. Realmente, a manifestação do Filho é conhecimento revelador" (IV, 20,7). Essa revelação do Pai pelo Verbo
do Pai, pois tudo é manifestado pelo Verbo" (IV, 6,3). realiza-se progressivamente. Quer Deus dar-se a conhecer
O Pai manifesta-se aos homens "tornando seu Verbo visí- porque é bom e porque o homem precisa desse conheci-
vel para todos; por sua parte o Verbo, sendo visto por mento para viver. É, porém, o homem frágil demais para
todos, a todos mostrava o Pai e o Filho" (IV, 6,5). A suportar a visão de Deus ( IV, 20,5). Bom pedagogo, Deus
ação do Pai que envia o Filho é, pois, o ponto de partida educa a humanidade. Iríneu compara a ação do Verbo à
da revelação. Vindo a nós, o Filho revela-se a si· mesmo e, amamentação que habitua o homem a comer e a beber
visível, manifesta o Pai. "Pelo Verbo, feito visível e pal- o Verbo de Deus e prepara-o para assimilar o pão de imor-
talidade que é o Espírito do Pai.' "Diria alguém: Por que
1938); R. WILSON, The Gnostic Problem (London, 1958); A. ÜRBE, Deus não fez o homem perfeito desde o começo? Saiba
Hacia la primera Teología · de la Procesión del Verbo ( Roma, 1958); J. que Deus é sempre o mesmo, incriado e, considerado em
ÜCHAGAVÍA, Visibile Patris Filius (Col. "Orientalia Christiana Analecta",
171, Romae, 1964). s1 mesmo, tudo lhe é possível... Do mesmo modo que
2 A menos que se indique o contrário, as citações referemcse ao uma mãe não pode dar um alimento perfeito a seu .filhinho
Adversus Haereses. A abreviação Dem. indica Démonstration de la pré- que seria incapaz de suportar esse alimento sólido, assi~
dication apostolique. . . .
3 Sobre esse texto, cfr. principalmente:. A. HoussIAu, La chrzstologze J?eus; teria podido oferecer a per.feição ao homem desde o iní-
de S. Irénée, pp. 72-73, 109-114, 127,128; Id., "L'exégese de. Mt. 11,27b c1?, mas~ h~mem não a teria podfdo sup?r~ar: era afinal uma
selon S. lrénée", Eph. theol. lov., 29 (1953): 328-354; G. AEBY, Les c~iança. I or 1.s~o nosso Senhor veio nos últimos tempos, reca-
missions divines, de Saint Justin à Origene, pp. 51-53.
pitulando em s1 tudo, não como lhe seria possível, mas como o
106 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES SANTO IRINEU 107
poderíamos ver. Com efeito, poderia ter vindo em sua glória criaçao, o Filho revela o Pai para todos, a quem ele quer
inefável, cuja grandeza, porém, não poderíamos suportar ... quando quer e como quer" (IV, 6, 7). "Já pela criação
Era precis? 9.ue o homem primeiro fosse feito; feito, chegasse o Verbo revela o Deus criador; pelo mundo, revela o Se-
à idade madura e se fortalecesse; fortalecido, crescesse em for- n?or const~utor do mundo; pelas obras; o artífice; pelo
ça; crescido em força, fosse glorificado; e uma vez glorificado, Filho, o Pai" (IV, 6,6; II, 6,1;27,2; III, 25,1; V; 18,3 ).
visse seu Senhor" (IV, 38, 1 ) . Pela presença cada vez mais Não diz Irineu se esse testemunho que o mundo criado
viva de seu Verbo entre os homens, Deus os vai prepa- presta a Deus é perceptível pela simples razão. Do ângulo
rando para que o vejam (IV, 20,5). Ambos os Testamentos sob o qual considera as coisas, trata-se de um conhecimento
representam dois momentos na educação da humanidade. de caráter religioso, de uma manifestação que tem como
Inicialmente o Verbo forma a humanidade por uma disci- conseqüência salvação ou julgamento ( IV, 6,5-6;20,7).
plina exterior: é a Lei. Uma vez formada e capaz de agir "Também pela Lei e pelos Profetas o Verbo procla-
livremente; liberta-a da escravidão e dá-lhe a adoção filial: mava-se a si mesmo e ao Pai" ( IV, 6 ,6; 9 ,3 ) . Como Justino
é o Evangelho (IV, 9,l;ll,1;20,10;36,4) 4. e Teófilo de Antioquia, Irineu atribui as teofanias ao Verbo
A correlação entre ambos os Testamentos está situa- de Deus. Apenas criado o homem, o Verbo começa a lhe
da também na perspectiva da economia ou do plano salvífico aparecer e ensinar (Dem. 12). Pelo Verbo é que Abraão
concebido e realizado por Deus numa história culminada conheceu o Pai ( IV, 7,1.3); o Verbo falou a Moisés (IV,
no Cristo. Desde Abraão até o Cristo e os apóstolos, é o 5,2). Todos que, desde o princípio, conheceram a Deus e
mesmo Deus que age, faz suas promessas e as cumpre ( IV, profetizaram a vinda do Cristo receberam do Filho essa re-
7 ,3 ) , seguindo um plano simultaneamente uno e multifor- velação ( IV, 7 ,2 ) . O Filho de Deus "ora se entretém
me (III, 12,11). Processa-se a revelação "segundo um en-. com Abraão, ora com Noé. . . ora procura Adão ou vem
cadeamento, uma harmonia, nas épocas propícias"; desen- julgar os sodomitas; aparece conduzindo Jacó em sua viagem
rola-se "em mil economias providenciais" ( IV, 6, 7 ) . Com ou fala a Moisés na sarça" ( IV, 1O, 1 ) . É o Filho que apa-
efeito, a economia geral da salvação diversifica-se em vá- r~ce, não o Pai: "Todas as visões desse tipo indicam o
rias economias parciais que vão balizando sua realização, F~ho, de D~us falando e conversando com os homens, pois
economias diversas que, por sua vez, dependem da eco- nao e o Pai de todos e o Criador do universo . . . que veio
nomia universal. "Não há senão um só e mesmo Deus que, falar com Abraão nesse recanto da terra, mas o Verbo de
do começo ao fim, em várias economias, vem socorrer o Deus. que sempre estava com o gênero humano e que de
gênero humano" (III, 12,13 ). O único Deus, por seu antemão anunciava os acontecimentos futuros ensinando
único Verbo, realiza· um único plano de salvação, desde a aos hom~ns as c?isas de Deus" ( Dem. 45 ) . 'Em Justino
criação até o fim ( III, 16,6). A história da salvação é una. as teofanias queriam demonstrar a distinção entre o Pai e
A criação é a primeira etapa da revelação. Quando o Verbo. Em Irineu elas têm por finalidade estabelecer,
afirma o Cristo que ninguém conhece o Pai senão o Filho contra os marcionitas, a unicidade de Deus e unidade do
e aqueles a quem o Filho o revelou ( Mt 11,27) isso vale plano divino num e noutro Testamento. Revela-se Deus
para todos os tempos, antes e depois da encarnação; "Não não apenas a partir dos tempos de Tibério, mas desde a
fala no futuro, como se o Verbo tivesse começado a manifes- aurora da humanidade. Pelas teofanias habitua-se a viver
tar o Pai quando nasceu de Maria, mas está presente à tota- entre os homens: "Desde os princípios o Verbo acostuma-
lidade do tempo. Com efeito, desde o início presente na -se a subir e a descer pela salvação dos que estão enfer-
mos" (IV, 12,4; Dem. 45). Esse acostumar-se tornar-se
4 J. DANIÉLOu,. Message évangélique et culture hellénistique aux perfeito na encarnação que é a adaptação de Deus ao
II• et III• siecles, p. 159. homem e do homem a Deus - "O Verbo fez-se filho
108 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
SANTO IRINEU 109
do homem para acostumar o homem a acolher a Deus e Testamento?" Responde Irineu: Vindo o Filho, "deu-nos
para acostumar Deus a permanecer no homem segundo o toda a novidade, dando-se a sim mesmo, ele. . . que ma
beneplácito do Pai" ( III, 20,2). Dum lado temos Deus
renovar e vivificar a humanidade. Os servos enviados diante
que desce, pelas teofanias e pefa encarnação; doutra parte, do Rei anunciam sua chegada, para que os súditos pos-
o homem que, educado pelo Verbo, so?~ até Deus. O _An: sam preparar-se para receber seu Senhor. Mas, quando o
tigo Testamento prepara a natureza d1vma para se um~- a Rei chegou, quando seus súditos. . . dele receberam a alfor-
natureza humana, e prepara a natureza humana para a umao
ria, quando contemplaram sua face, quando ouviram suas
com a divina. As teofania15 são verdadeiras antecipações da palavras e gozaram de seus dons, já não se pergunta o que
encarnação; continuam, porém, simples esboços da suprema o Rei trouxe a mais que seus precursores que o anuncia-
revelação, esboços do futuro ( IV, 20,10-11); visões par- ram. Ele deu-se a si mesmo" ( IV, 34,1). A encarnação é
ciais do Verbo de Deus que se torna visível stS na encarna- o ponto culminante da contínua intervenção do Verbo. "O
ção, e mesmo então velando sua glória 5 • Profetas e pa-
Verbo que está junto de Deus desde o princípio (Jo 1,1),
triarcas estão na mesma situação - Ezequiel, Elias, Moisés
por quem tudo foi feito (Jo 1,13) e que continuamente
não viram a face de Deus, mas apenas sinais que indicavam
dá assistência ao gênero humano, esse mesmo Verbo, nos
st~a presença, anunciando uma presença maior ainda (IV,
ummos tempos, no momento prefixado pelo Pai, uniu-se à
20,9-10), a presença humana do Verbo. A própria profecia é
obra por ele modelada, tornou-se capaz de sofrer" (III,
um anúncio das realidades futuras ( IV, 20,5) e ao mesmo 18,1; IV, 41,4). A encarnação é uma nova teofania do
tempo uma preparação da humanidade para a vinda do Verbo
Verbo de Deus; traz como progresso a presença humana
de Deus na carne ( IV, 20,8).
e carnal do Verbo, feito visível e palpável entre os homens,
Essa manifestação de Deus, por seu Verbo na histó- para manifestar o Pai que continua invisível ( IV, 24,2).
ria faz a unidade de ambos os Testamentos. "Ambos os
A vida humana do Verbo é a novidade do cristianis-
Te~tamentos foram firmados por um mesmo Pai de fa-
mo: não se trata de um novo Deus, mas de uma nova
mília nosso Senhor Jesus Cristo, que se entreteve com
manifestação de Deus em Jesus Cristo. Antes da encarna~
Abraão e Moisés e que, nesses últimos dias, deu-nos a liber-
dade" ( IV, 9, 1 ) . ·Os profetas anunciaram o Cristo e o ção os homens conheciam o Verbo encarnado apenas obs-
cura e veladamente, percebendo só imagens de sua pre-
Evangelho que viria ( IV, 34,1); os apóstolos proclama-
sença humana. O Antigo Testamento era dirigido pelo
ram-no ( IV, 36,5). "Não era um Deus que inspirava aos
Verbo, q1;1e poré~, se tornaria visível e palpável somente
profetas e outro que inspirava aos apóstolos. . . mas um só
pela · encarnação 6 • Desta novidade fundamental procedem
e mesmo Deus dava a uns anunciar o Senhor; a outros, dar
todas as outras, pois a presença do Verbo encarnado é fonte
o Pai a conhecer; a outros, proclamar antecipadamente a
de novas graças (III, 1O,2; IV 36 ,4). É sempre o mesmo
chegada do Filho de Deus; a outros, enfim, anunciar sua
presença aos que estavam longe" (IV, 36,5). Deus "que tem sempre cada vez mais a dar aos de sua casa, e
Unidade dos Testamentos, mas que diferença também que de fato cada vez mais lhes dá na medida em que pro-
entre o Cristo anunciado pelos profetas e o Cristo dado e pre- gridem no amor de Deus" (IV, 9 ,2 ) . A encarnação inau-
gura nova etapa na aquisição da semelhança divina. O Ver-
sente! O Antigo Testa~ento é apenas uma promessa, um
anúncio; o Novo, é a realização, o auge, o dom do Verbo bo, que fizera o homem à sua imagem, vem restaurar sua
obra desfigurada pelo pecado; mostra "com toda a verda-
encarnado. A quem dissesse: "Se o Antigo Testamento já
de, essa imagem, tornando-se ele mesmo o que era sua
conhecia o Verbo, em que consiste a novidade do Novo
imagem, isto é, homem". Imprime "profundamente essa
5 G. AEBY, Les missions divines, de Saint Justin à Origene, p. 56.
6 A. HoussIAU, La chrístologie de S. Irénée, pp. 127-128.
110 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES SANTO IRINEU 111
semelhança, tornando o homem semelhante ao Pai invi~ível, esmorecimento e, por sua vez, transmite a seus filhos" (1,
por meio do Verbo visível" (V, 16 ,2 ) . Com o dom de 10,2). Assim pois, os apóstolos e a Igreja transmitem,
Cristo, toda a humanidade, e não apenas Israel, passa da mas de maneira diferente: os apóstolos comunicam a pró-
lei da escravidão à lei da liberdade (IV, 13 ,2; 9, 1 ) . pria revelação do Novo Testamento ( I, 8,1), enquanto que
O resultado da ação reveladora é a doutrina ensinada a Igreja transmite o depósito revelado sem nada mudar
pelo Cristo, pregada e transmitida pelos apóstolos, conser- ( I, 10,2). Esta é a regra da salvação e a norma da vida:
vada na Igreja. Os termos revelação, pregação, tradição, "Os profetas a anunciaram, Cristo estabeleceu, os apóstolos
Igreja, sempre presentes na obra de Irineu, têm entre si transmitiram, por toda parte a Igreja a oferece a seus fi-
estreita correlação que devemos definir. lhos" ( Dem. 98). Se, pois, alguém procura a verdade, en-
O Verbo de Deus sendo o único Revelador, é também contrá-la-á na fé pregada pelos apóstolos, por eles trans-
nosso único Mestre. O título dá realce à veracidade e au- mitida às Igrejas e conservada até nossos dias ( III, 2,2;
toridade do Verbo. "Não teríamos podido conhecer as coi- 3,3 ) . Irineu não se cansa de dizer que a tradição dos
sas de Deus se nosso Mestre não se tivesse feito homem, apóstolos se conserva na Igreja: "nela, como num rico
mesmo continuando Verbo. Pois, se ninguém nos poderia celeiro, os apóstolos depositaram toda plenitude da ver-
revelar a realidade do Pai a não ser seu Verbo . . . tam- dade" ( III, 4,1). É o Espírito quem garante a fidelidade
bém não poderíamos aprendê-las a não ser vendo nosso Mes- da Igreja ao Cristo e à sua doutrina. Espírito enviado pri-
tre e ouvindo o som de sua voz (V, 1,1; III, 18,7). meiro aos apóstolos para relembrar-lhes as palavras do Ver-
É por todos os meios da encarnação, tanto pela pa- bo no seu verdadeiro sentido, firmando-os na possessão da
lavra como pelos atos que o Cristo nos revela o Pai. verdade ( III, 1,1); Espírito que age também na Igreja
Mas o Cristo não escreveu: agiu e ensinou. Os após- para assegurar a conservação da fé, que "semelhante a um
tolos são os intermediários entre o Cristo e a Igreja, pois !icor valioso, conservado num vaso de boa qualidade, re-
a eles é que oficialmente confiou sua mensagem ( I, 27,2; Juvenesce e faz rejuvenescer mesmo o vaso que o contém ...
IV, 37, 7 ) . "Os apóstolos transmitiram a todos, pura e sim- Pois onde está a Igreja, lá também está o Espírito de Deus"
plesmente, o que eles mesmos tinham aprendido do Senhor" ( I!I, 24,1). Assim, a unidade que jorra de Deus, pelo
( III, 14,2). Inicialmente transmitiram um Evangelho vivo, Cristo e pelos apóstolos recai sobre a própria Igreja, que
depois consignado por escrito no Evangelho tetramorfo "que a manifesta ao mundo inteiro ( III, 3,3). "A Igreja, es-
conserva um só Espírito" (III, 11,8). O Mestre de tudo, palhada por toda a terra até os confins do mundo, recebeu
deu aos seus apóstolos o poder de pregar o Evangelho. dos apóstolos e de seus discípulos a fé em um só Deus ...
Por seu intermédio é que conhecemos a verdade, isto é, o e em um só Jesus Cristo. . . e no Espírito Santo. . . A
ensinamento do Filho de Deus. . . Este Evangelho, eles Igreja, disseminada por todo mundo, conserva cuidadosa-
inicialmente o pregaram. Depois, por vontade de Deus, mente esse quérigma e a fé que recebeu. Guarda-os como
no-lo transmitiram nas Escrituras para que se tornasse a se habitasse apenas uma casa; neles crê como se não tivesse
base e a coluna de nossa fé" ( UI, 1, 1 ) . A função dos se?-ão um só coração e uma só alma; prega, ensina e trans-
apóstolos, testemunhas do Verbo, é pois pregar e trans- mite como se tivesse apenas uma boca. . . Como o sol,
mitir a doutrina do Cristo ou o Evangelho (III, 1,1; II, criatura de Deus, é um só e o mesmo sobre toda a terra
35,4 ). O objeto dessa pregação não é um outro Deus di- ~ssin:i, por toda parte manifesta-se a pregação da verdade;
ferente daquele do Antigo Testamento, mas o Filho de dutnmando a todos que querem chegar a seu conhecimen-
Deus, que se fez homem e sofreu (III, 12,3; IV, 23,2). to" (1, 10,2).
A fé da Igreja apóia-se nessa doutrina, recebida dos A revelaç~o tem características. que a distinguem de
apóstolos ( II, 9, 1 ) , que ela "conserva fielmente, ensina sem qualquer doutrina humana. Em primeiro lugar, é essencial-
r
1

112 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES SANTO IRINEU 113


mente obra da graça. Nenhum esforço especulativo poderá vão escandindo a ação do Verbo e a economia da mani-
penetrar o mistério da vida íntima de Deus. Somente ele festação progressiva do Pai pelo Verbo. Estamos diante de
poderá abrir-se ao homem numa iniciativa inteiramen~e de um só movimento, uma só palpitação de amor que, origi-
amor. Fica ássim excluída e condenada toda pretensão do nando-se na Trindade, repercute no tempo para culminar
orgulho humano e o conhecimento de Deus se mostra como na visão. Daí provém a unidade indestrutível entre ambos
um dom aos que o amam: "Devido a sua grandeza e a sua os Testamentos. Ante o Antigo Testamento - e êste foi
glória admirável, ninguém poderá ver a Deus sem morrer. o maior problema do século II - são possíveis duas ati-
O Pai, com efeito, não pode ser conhecido. Mas, pelo seu tudes: ou não perceber suficientemente a novidade do Evan-
amor e sua humanidade, sendo-lhe tudo possível, concedeu gelho ( tentação dos meios judáicos tradicionais ) , ou então
até isso aos que o amam: ver a Deus como o anunciaram subestimar o Antigo Testamento e com ele romper, como
os profetas; pois que o impossível aos homens é possível o fez Marcião. Irineu, com Clemente de Alexandria e Ter-
a Deus" (IV, 20 ,5 ) . Em segundo lugar, a revelação é obra tuliano, situa-se na corrente de pensamento que sublinha
de salvação. Para quem não acreditar é julgamento, para a unidade entre ambos os testamentos. Neles vê dois
os crentes é salvação e vida, levando o homem para a visão momentos da educação da humanidade pelo único Verbo de
e a imortalidade (Dem. 31 ). "Impossível viver sem a vida; Deus. Entre ambos, contudo, há a diferença entre o .Cristo
não possuímos a vida sem participar de Deus. Ora, parti- anunciando e o Cristo presente e dado. Irineu, como Iná-
cipar Deus é vê-lo e usufruir de sua bondade. Os homens, cio de Antioquia, faz a revelação depender estreitamente
pois, ver~~ a Deus para viver, feitos imortais pela visão e da pessoa de Cristo. A revelação é a epifania de Deus
porque chegaram até ele". · (IV, 20 ,5-6). "Quem vê a no Cristo e pelo Cristo; é a manifestação do Pai pelo Filho
Deus está em Deus e participa de sua luz" (IV, 20 ,5 ) . e por todos os meios de expressão possibilitados pela en-
Finalmente, a revelação ao mesmo tempo revela e vela, des- carnação. Por sua palavra e ação, por seu exemplo e seu ensi-
cobre e encobre Deus. Deus se revela para provocar namento, o Cristo dá a conhecer o Pai e seu desígnio sal-
o progresso do homem; oculta-se, ao mesmo tempo, para vífico. Testemunhas do Verbo, iluminados pelo Espírito,
que o homem não perca o senso do mistério e do respeito. os apóstolos pregam e transmitem o que aprenderam do Se-
O Verbo de Deus, tornou-se o dispensador da glória paterna nhor - é por eles que o Cristo nos entrega sua men-
para a utilidade dos homens. Por isso levou a termo toda sagem. A Igreja recebe o ensinamento. que lhe entregam
essa economia, mostrando Deus aos homens, apresentando o as testemunhas apostólicas: conserva-o fielmente, aprofun-
homem a Deus, preservando a invisibilidade do Pai, para da-o sem o atraiçoar, até a parusia. Daí o caráter essencial-
que o homem não chegasse a desprezar a Deus e para que mente apostólico da tradição eclesial. Em sua forma plena,
a revelação ou o que se transmite, é o ensinamento do
tivesse de progredir sempre, mas sempre tornando Deus
Filho de Deus, a mensagem evangélica, a tradição ou o en-
visível ao homem em numerosas teofanias, para que o ho- sinamento dos apóstolos, a fé da Igreja, o mistério cris-
mem não deixasse de existir, privado totalmente de Deus. tão, a verdade, a regra da salvação, a norma de vida, o.
Pois a glória de Deus é a vida do homem e a vida do ho- próprio Cristo. A revelação não é pois uma doutrina hu-
mem é a visão de Deus" (IV, 20,(,-7). mana, mas um dom do Amor, uma doutrina que solicita
Irineu é sensível ao aspecto dinâmico e histórico da a fé, gera a vida dos que acreditam e os encaminha para a
revelação. Põe em evidência movimento, progresso e uni- visão e para a imortalidade. Irineu descreve a revelação como
dade profunda. Vê o Verbo de Deus em ação desde os alguém sob o impacto do acontecimento, cuja emoção ainda
princípios: a criação, .as teofanias, os patriarcas, a Lei, os pro- sente e comunica aos que o ouvem.
fetas, o Cristo, os apóstolos, a Igreja, são momentos que
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 115
3.
No centro da história humana, como no centro de
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA sua teologia, Clemente coloca o Logos encarnado, o Cristo,
fonte de todo conhecimento e salvador dos homens. O
Logos 2 é o criador e ordenador do mundo. É o único autor
da manifestação divina na Lei, nos Profetas, na filosofia dos
gregos, na encarnação. É o Mestre que instrui a humani-
dade, seu salvador e o criador da nova vida. Vida que
principia com a fé, progride com a gnose e se realiza plena-
mente na visão eterna. Clemente atribui-lhe uma tríplice fun-
I. OS ALEXANDRINOS ção para a humanidade: ele converte, educa, instrui. O
título, porém, mais denso, que compreende as diversas atri-
1. Clemente de Alexandria buições do Logos ante a humanidade, parece ser o de "Luz"
( Str. VII, 5,5).
Outros vêem no cristianismo principalmente a reden- Por sua própria natureza o Logos é indicado para re-
ção, a salvação, a libertação do pecado. Clemente 1 procura velar o Pai, sendo ele a Face e. a Imagem do Pai. "Cha-
em primeiro lugar a revelação de Deus: "Se, por hipótese, ma-se o Filho Face do Pai ( Sl. 23 ,6), porque, Verbo re-
alguém oferecesse ao gnóstico a escolha entre o conheci- velador das características próprias do Pai, pelos seus cinco
mento de Deus e a salvação eterna - como se fossem rea- sentidos tomou sobre si a carne" ( Str. V, 34,1). "A Face
lidades distintas, quando sabemos serem, ao contrário, idên- do Pai é o Logos, por quem Deus é posto às claras e re-
ticas - ele não hesitaria um momento em escolher o co- velado" (Paed. I, 57,2; Str. VIl,58,3-4). O Filho, en-
nhecimento de Deus" ( Str. IV, 136,5). Atitude inspira- quanto Logos, "é, desde antes dos séculos, a primeira ima-
da pelo temperamento intelectual de Clemente e também gem do Pai invisível" ( Str. V ,3 8, 7 ) . É a imagem gerada
pelo ambiente alexandrino todo voltado para as religiões que, por sua missão entre os homens, se torna a Imagem
de revelação. encarnada; porque no seio da Trindade o Logos é gerado des-
de logo como Imagem do Pai, é ele enviado com revelador
1 As citações são feitas segundo a edição de O. Staehlin. O primeiro do Pai. É esse Logos, ontologicamente qualificado como reve-
algarismo indica o livro; o segundo, o parágrafo; o terceiro, a seção do lador, que ilumina a humanidade e a dirige para a plenitude
parágrafo. Sobre Clemente de Alexandria cfr: E. MoLLAND, Tbe Con-
ception of tbe Gospel in tbe Alexandrian Tbeology (Oslo, 1938); E. F. da verdade; ele dá uma unidade à revelação, ao longo da
OSBORN, Tbe Pbilosopby of Clement of Alexandria (Cambridge, 1957•); história humana.
J.. MOINGT, "La gnose de Clément d'Alexandrie dans ses rapports avec
la foi et la philosophie", Recb. de se. rel., 37 ( 1950): 195-251, 398-421, A manifestação da verdade faz-se por etapas, num pro-
537-564; 38 ( 1951): 82-118; W. VoELKER, Der wabre Gnostiker nacb gresso constante ( Str. VI, 44 ,1 ; 166 ,4-16 7, l). A ação do
Clemens Alexandrinus (Berlin-Leipzig, 1952); C. MoNDÉSERT, Clément Logos pode ser acompanhada ao longo das vartas épocas.
d' Alexandrie ( Paris, 1944); J, DANIÉLOU, Message évangélique et culture
bellénistique aux II• et III• siecles, pp. 50-67, 334-344· G. AEBY, Les Como Justino e Irineu, Clemente atribui ao Logos as teo-
missions divines , de Saint Justin à Origene, pp. 120-146{ C. MoNDÉSERT, fanias. E o Logos quem fala com Abraão ( Paed. I, 56,
Clément d' Alexandrie, Le Protreptique ( "Sources chrétiennes 2", Paris,
1949); pp. 5-50; Id., Clément d' Alexandrie, Stromate I ( "Sources .chrétien- 2-3), faz as promessas a Jacó ( Paed. I, 56,3-4), luta com
nes 30", Paris, 1951), pp. 5-41; P. TH. CAMELOT, Clément d'Alexandrie, ele ( Paed. I, 57,1). E ainda o Logos quem faz Israel sair
Stromate II ("Sources chrétiennes 38", Paris, 1954), pp. 7-29; H.-I.
MARROU e M. HARL, Clément d'Alexandrie, le Pédagogue ("Sources chré-
2 Enquanto os apologetas falam mais do Filho, Clemente fala prin-
tiennes 70", Paris, 1960); P. TH. CAMELOT, Foi et gnose (Paris, 1945); •
M. SPANNEUT, Le Stozcisme des Peres de l'Église (Paris, 1957). cipalmente do Logos. Sem dúvida que sob a influência de Fílon de
Alexandria, Logos torna-se um termo privilegiado em sua teologia.
116 O TEM~ DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 117
do Egito, o conduz ao deserto, protege-o como um filho e oferecido um testamento novo e jovem; o Logos fez-se
se faz, em Móisés, guia de seÜ povo ( Paed. I, 58,1). Já carne e o temor mudou-se em amor" (Paed. I, 59,1 ). Entre
em algumas passagens dos Stromata, Clemente não apre- ambos não há, porém, oposição: a lei prepara o Evan-
senta as teofanias como aparições pessoais, que atingissem gelho (Str. II, 37,2-3) e o Evàngelho leva a Lei à realiza-
os sentidos externos, mas antes como uma iluminação ção ( Str. VI, 94,6). O Cristo é o termo e a perfeição
interior, um toque divino pelo qual a alma reconhece da Lei ( Str. II, 42,5). A Lei não passa de uma imagem
Deus ( Str. VI, 34,2-3). É ainda o Logos quem dá a Lei da verdade; o Cristo é a Verdade (Str. VI, 58,lss). Ele
(Str. I, 167,3); quem, pelos profetas, canta, prediz, ameaça próprio é a Lei ( Prot. 2,3). Em última análise, a diferença
( Prot. 8,3). É o Logos enfim que se encarna para nos ins- entre a Lei e o Evangelho está na encarnação do Logos:
truir sobre Deus ( Prot. 8 ,3-4) e nos dá a conhecer o que nós por Moisés recebemos a Lei; o Evangelho, por Cristo
próprios somos ( Str. I, 178,2). Outrora, Deus precisava de ( Paed. I, 60,1). Mas, uma vez que o mesmo Logos se
uma forma tomada de empréstimo ( anjo, profeta); pela en- faz ouvir na Lei e no Evangelho, jamais poderemos des-
carnação, ele mesmo se torna homem ( Paed. I, 58,1) e nos prezar a Lei como o fazem os hereges Valentim, Basílides
"fala ... claramente" (Prot. 8,3-4; Str. I, 29,5). Ao re- e Marcião ( Paed. II, 29 ,1).
velar, o Verbo tem um só fim - salvar a humanidade: Mais íntimo ainda o relacionamento entre a pro-
"o bom Deus enviou também o bom Pastor. O Logos fecia e o Evangelho. Nos oráculos dos profetas vê Cle-
desvenda toda a verdade aos homens para mostrar-lhes a mente enígmas e símbolos cuja solução é o Cristo. Distin-
sublimidade da salvação" ( Prot. 116 ,1 ) . Logos de ver- gue duas faces na revelação - a profecia e a explicação
dade e de incorruptibilidade, que "diviniza o. homem com da profecia. A profecia é um ensinamento em imagens,
um ensinamento celeste" (Prot. 114,4) e o regenera para cheio de mistêrios, que permanece obscuro até sua reali-
a vida eterna ( Prot. 117,4). zação. O Cristo apresenta-se como a explicação da pro-
Clemente insiste muito na unidade orgânica do An- fecia: "A Luz de verdade, o Logos, uma vez feito Boa-
tigo e do Novo Testamento. A Lei, os Profetas, o Evan- -nova, devia decifrar o silêncio misterioso dos segredos pro-
gelho são obra de um só Deus, por seu Verbo, e levam féticos" (Prot. 10,1; Str. VI, 68,3). Clemente vê no si-
todos para um mesmo conhecimento (Str. II, 29,3; III, lêncio de Zacarias o silêncio misterioso das profecias desa-
70,3). Não existe, afinal, senão uma só história da salva- tado pela encarnação do Logos ( Prot. 10, 1 ) . A figura do pas-
ção, através do tempo e do espaço. sado torna-se, pois, um apelo lançado ao futuro que a escla- .
. A lei divina não consiste apenas na Lei de Moisés - tece. O Cristo é a porta e à chave dos mistérios do Pai:
a lei natural, a lei dos gregos e a dos bárbaros tem o mesmo "Ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem
Deus como autor - em Moisés porém, e nos profetas en- o Filho o revelou. Essa porta, até agora fechada, quem a
contramos a Lei verdadeira ( Str. I, 165-167). O mesmo descerra. . . revela então o que está dentro e mostra o que
Logos, que instruiu o povo usando Moisés ( Paed. I, 60,1), antes não podíamos conhecer sem antes termos passado pelo
deu-nos o Evangelho. Os preceitos do Sermão da Mon- Çristo, único intermediário que dá a iniciação reveladora"
tanha completam os preceitos dados a Moisés (Prot. 108, ( Prot. 1O,3 ) . Essa concepção leva a uma dupla conseqüência:
4-5; Str. VI, 94,6). Da Lei ao Evangelho houve progresso, a primeira é que a vinda do Cristo, como chave do An-
as exigências do Evangelho são maiores e atingem os pen- tigo Testamento, testemunha em favor da verdade de sua
samentos mais íntimos; o Evangelho já não inspira o temor, missão e de seu ser. A revelação, ao mesmo tempo que
mas a liberdade e o amor. "Outrora o povo antigo tinha se realiza na história, demonstra-se verdadeira. A segun-
um testamento antigo, uma lei educava o povo no temor, da, que a regra da fé é justamente o acordo de ambos
e o Logos era um anjo: porém, ao povo novo e jovem foi os Testamentos na pessoa de Cristo: "O cânon eclesiástico
118 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 119
é o acordo e a harmonia da Lei e dos Profetas com o Testa- receberam, em diversas economias, a divina pedagogia pela
mento dado pela presença do Senhor" (Str. VI, 125,3 ). voz do único Senhor. Existe uma só verdade, que, porém,
A teologia de Clemente situa a própria filosofia na órbi- é como um rio para o qual de diversas direções confluem
ta da economia da revelação. Considera-a como um "dom de veios d'água ( Str. I, 29,1-4;7,38).
Deus aos gregos" ( Str. I, 20, 1 ) , como uma economia espe- É preciso distinguir entre a filosofia considerada como
cial exigida por Ele para conduzi-los ao Cristo: "Como o qué- economia ou disposição histórica que levou os gregos para
rigma veio hoje, em seu devido tempo, assim a Lei e os o Cristo, e a filosofia como instrumento a serviço da ver-
Profetas foram dados aos bárbaros e a filosofia aos gregos, dade revelada. De agora em diante ela é como que uma
preparando-lhes os ouvidos para o quérigma" ( Str. VI, propedêutica à fé e, dentro da fé, é um meio de aprofunda-
44, 1 ) . Para os gregos a filosofia é algo paralelo à Lei para mento e defesa. Prepara para a revelação "enquanto é uma
os judeus; é uma preparação do Cristo, como a Lei o foi busca da verdade" (Str. I, 97,100), "desperta uma saga-
para os hebreus. "Deus é a fonte de todos os bens; de uns, cidade na procura da filosofia verdadeira", isto é: do cris-
como no caso de ambos os Testamentos, o é de forma prin- tianismo ( Str. I, 32,4), e "prepara-nos para nos deixar pe-
cipal; de outros, como a filosofia, de forma subordinada. netrar pela verdade" ( Str. I, 80, 6). No interior da fé, ela
Mas, pode-se até mesmo dizer que foi dada a título prin- constitui uma preciosa dialética, servindo para fazer fruti-
cipal para os gregos, antes que o Senhor os chamasse: com ficar a fé adquirida ( Str. I, 35 ,2-4 ) , para demonstrar a
efeito, educava o helenismo para o Cristo, como a Lei o sua solidez ( Str. 1,20,2) e defender a vetdade ( Str. 1,
fazia com os hebreus" (Str. I, 28,1-3; VI, 41,7-42,1 ). A 99,100). ,
filosofia foi dada aos gregos tendo-se em vista a sua salva- Assim, pois, a filosofia tem apenas um direito: enca-
ção: "Antes da vinda do Senhor a filosofia era necessária minhar para o Evangelho, nele descobrir uma verdade mais
aos gregos para a justificação" ( Str. I, 28,1). "Assim como, plena e mais sólida. Apaga-se ante o Testamento de Cris-
dando-lhes os profetas, quis Deus que os judeus fossem to. A verdade que os filósofos não puderam senão entrever, o
salvos, assim suscitou como profetas próprios dos gregos, em crente a possui plenamente "pois somos discípulos de Deus,
sua própria língua, os mais notáveis dentre eles, na medida em e é seu próprio Filho que nos dá uma instrução verdadeira-
que estavam aptos a receber o dom de Deus" ( Str. VI, 42 ,3; mente santa" ( Str. I, 98,4); "somos discípulos de Deus,
110,3;153,l ). Clemente chega a considerar a filosofia dos depositários da única sabedoria verdadeira" ( Prot. 112,2).
gregos como uma Aliança, um Testamento especial: "Se A incomparável superioridade do cristianismo deve-se a ele
de modo geral nos vem de Deus todo o necessário ou útil ter o "Logos como Mestre" (Str. li, 9,4-6), o Logos que
à vida, tanto mais a filosofia dada aos gregos como uma ensina o caminho da vida eterna (Prot. 7,3.6). O Logos
Aliança a eles própria, como uma etapa da filosofia do encarnado enche o universo de sua verdade e faz da terra
Cristo" ( Str. VI, 6 7, 1 ) . Esse dom divino aos gregos foi-
-lhes comunicado pelos anjos encarregados das nações, que (Str. VI, 82, 1). c) Os gregos não dependem apenas dos judeus (Str. ·
são ministros do Logos ( Str. VI, 57 ,2-4). Dessa maneira, V, 29, 4), mas em parte chegaram a deformar o que tinham recebido
(Str. I, 87, 2; VI, 55, 4). d) A filosofia permanece conjectura! e não tem
judeus, gregos e cristãos, a filosofia, a Lei e o Evangelho a mesma certeza que a fé (Str. I, 100, 5). Mesmo os maiores filósofos
formam uma só ordem salvífica: são tres disposições ou não chegaram a conhecer a Deus com certeza, mas apenas aproximativa-
Testamentos cujo autor é o mesmo Logos 3 • Os tres povos mente (Str. V, 39, 1). Portanto, a filosofia tem valores vindos da razão,
ou da revelação de anjos aos sábios, ou de empréstimos da Escritura.
Esses valores, porém, estão misturados com muita ganga e foram muitas
3 Clemente, mesmo justificando o valor da filosofia, não deixa de
vezes falseados. A verdade total e perfeita encontra-se só no Cristo. Não
indicar seus limites. a) A filosofia é inferior à fé, pois tem caráter seria, pois, a filosofia aceitável como um todo. Deve-se distinguir o bom
elementar em comparação com a ciência perfeita revelada pelo Cristo e o mau. Cfr. J. DANIÉLOu, Message évangélique et culture hellénistique
( Str. VI, 68, 1). b) A filosofia possui uma verdade apenas parcial aux IJe et IJJe siecles, pp. 67-72.
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120 O .TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 121
toda uma Grécia e uma Atenas: "Este Mestre agora nos tismo, o germe da fé. Germe que se deve desenvolver. A
ensina tudo" (Prot. 112,1 ); a "palavra de nosso Didásca- gnose é o crescimento da fé; não apenas adesão à verdade,
fos ... transbordou sobre toda a terra" ( Str. VI, 167,3-5). mas inteligência da fé que termina no amor ( Str. VII, 1,1 ;57,
No alvorecer, apagam-se as estrelas quando no horizonte 4 · 68 1 ) experiência adquirida no estudo e na prática dos
sobe o sol. É objeto de nossa fé a doutrina do Mestre m'andam'entos ( Str. III, 44,2). O perfeito gnóstico pro-
( Str. I,38,5), seu divino ensinamento ( Str. VII, 122,1-2; cura adaptar sua vida à vontade divina, pois, afinal, só o
II, 21,5). amor dá a inteligência da fé; "Deus é caridade, ele que se
O Cristo é a luz plena, o Sol que apaga toda noite. deu a conhecer aos que o amam; do mesmo. modo, Deus
Esse simbolismo da luz, de ressonância joanina e platônica, merece fé, ele que se confiou en~inando aos crentes:• ( Str.
. é o preferido por Clemente para indicar a revelação, natu- V, 13,1-2). O gnóstico tem a "fé perfeita que atmge as
ral ou sobrenatural. A ação iluminadora do Logos está em ações, honrando o Evangelho pol'. seus atos e sua, c?ntem-
exercício desde a criação. Clemente compara sua ação à plação" (Str. VII, 78,2). Por sua fé, sempre avida na
do sol nascente: sol da alma, "o 4nico que, nascendo in- busca, procurando sempre a vontade divina, torna-se pouco
teriormente nas profundezas do espírito, ilumina os olhos a pouco a imagem viva do próprio Cristo, procurando for-
da alma" ( Prot. 68,4). Ação íntima que se parece com mar gnósticos consumados, fazendo-se didáscalos como o
uma criação continuada de luz e de inteligência. Principal- Cristo ( Str. VII, 52). Tres coisas, com efeito, constituem
mente por seu Evangelho, o Logos é luz do gênero humano. o gnóstico cristão: a contemplação, o cumprimento dos pre-
"Iluminou-nos por seus ensinamentos" (Prot. 110,3 ). "Ilu- ceitos do Senhor, a formação de crist~os perfeit.os (Str.
minou" o espírito sepultado nas trevas ( Prot. 113 ,2). "Se II, 46,1). Finalmente, o termo da gnose é a visão: "con-
não tivéssemos conhecido o Logos nem sido iluminados por templarás então a Deus, terás a iniciação· em seus santos
seus raios" estaríamos no escuro, como aves que se engor- mistérios, gozarás dos bens secretos do céu" (Prot. 11_8,4 ).
dam para a morte ( Prot. 113 ,3 ) . Os homens andavam O sistema de Clemente repousa sobre sua teologia do
errantes à procura de Deus: o Cristo instrui-os com seu Logos, revelador e salvador. Sem dúvida, antes dele essa
Evangelho e ilumin.a toda sua vida (Prot. 114,1). "Rece- idéia já se encontrava em Justino e Irineu, mas com ele
bemos a Luz e tornamo-nos discípulos do Senhor" ( Prot. tornou-se mais compreensível e mais concreta. O Logos é a
113,4;114). Quando Clemente diz que o Cristo é Luz, o fonte única, donde flui toda verdade. É o mesmo Logos
termo abrange toda a atividade salvífica do Logos: arreba- que, por etapas, vai-se revelando, sempre mais, pela Lei, pelos
ta-nos às trevas ·da ignorância, do pecado e da morte, ar- Profetas e pelo Evangelho. Do .Logos vem ainda a verdade
rastando-nos para o reino da verdade, da luz e da vida da filosofia grega. Porque vê na filosofia grega um dom
( Prot. 114-116). Os apologetas insistem na ação do Lo- do Logos, fonte de toda verdade, Clemente não hesita em con-
gos no mund6; chamando Cristo de Luz, Clemente insiste siderá-lo como um terceiro ·Testamento, como uma Aliança es-
em sua ação individual, no íntimo da alma. pecial de Deus com os gregos, para' conduzi-los ao Cristo. Essa
Com o dom da revelação recebida · na fé inaugura-se estima pela filosofia grega distingue Clemente d~ seus con-
todo um movimento, o de sua frutificação pela gnose. Não se temporâneos; já aparece em Justino, mas domma todo o
trata de uma nova revelação, nem de um conhecimento oculto, pensamento de Clemente. Judeus, gregos e cristãos são re-
mas de um crescimento na fé. Clemente vê a ordem da salva- gidos por um só Senhor que os reúne num só povo, por
ção como uma passagem das trevas à fé, da fé à gnose. Em uma única fé. No horizonte de seu pensamento estão sem-
cada etapa há possibilidades de crescimento. A gnose está, pre os adversários, marcionistas e gnósticoss por isso insiste
pois, ao alcance do filósofo, do judeu e do crente. Mas a na unidade, na •harmonia e no desenvolvimento da revela-
verdadeira gnose só é possível ao crente. Ele recebe, no ba- ção. O cume da ação reveladora é a encarnação do Logos.
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122 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 123
É a encarnação que distingue o Evangelho da filosofia grega Pai 5 • O Verbo, gerado pelo Pai como sua Imagem, existe
e do Antigo Testamento; é ela também que lhes dá um para manifestá-lo. "No Verbo, que é Deus e Imagem do Deus
sentido, pois o Cristo é a realização dos anseios e desejos invisível, podemos ver imediatamente o Pai que o gerou;
da filosofia, o cumprimento da Lei, a explicação da profecia, quando olhamos para a Imagem do Deus invisível, podemos
a exegese da Escritura. A encarnação continua, aperfeiçoa ver imediatamente o Pai, o protótipo da Imagem" ( Com.
e consuma a história da revelação. Segundo Clemente, a Jo. 32,29). "Quando se vê a imagem de alguém, vê-se
busca mais fundamental do homem é a busca da verdade; vê aquele de quem é imagem: assim, pelo Verbo de Deus, sua
por isso no Cristo principalmente o · Mestre, o Didáscalos Imagem, veremos a Deus" (Horn. Gen. 1,13 ). Através de
que traz a verdadeira filosofia, a verdade. O Cristo é Sol toda a história da salvação é também o Verbo que revela os
e Luz das almas. Verdade porém, que não é abstrata, segredos do Pai: "O Verbo pode ser chamado .Filho porque
pois a gnose - plena apropriação da revelação - somente anuncia os segredos do Pai, sendç, este a Inteligência como
se obtém pela caridade. o Filho é chamado Palavra. Como entre nós a palavra re-
vela a visão da inteligência, assim .o Verbo de Deus conhece
2. Orígenes o Pai e, uma vez que nenhuma criatura dele pode se aproxi-
mar sem guia, revela o Pai que conhece" ( Com. Jo. 1,38).
O sistema de Orígenes 4 edifica-se a partir de Deus ( De Como estamos vendo, Orígenes exprime-se quase com as
Princ. I, 1,1 ). Puro espírito, Deus gera o Verbo ou o Filho. mesmas palavras de Clemente. O Verbo procede do Pai,
O Verbo procede do Pai como uma Imagem invisível, igual do qual é o revelador nato, enquanto sua Imagem e Pala-
ao Pai, Imagem filial que reproduz fielmente os traços do vra. O Verbo está naturalmente qualificado para sua missão
modelo, Imagem eterna, continuamente engendrada pelo de Revelador, pois que antes mesmo de ser enviado para
o meio dos homens, ele já é no seio da Trindade a imagem
4 Referências feitas segundo a edição de Berlim. Sobre Orígenes: reveladora do Pai.
M. HARL, Origene et la fonction révélatrice du V erbe incarné ( Paris, Deus é incognoscível. Somente por Jesus Cristo e seu
1958); H. CROUZEL, Théologie de l'image de Dieu chez Origene (Paris, Espírito é que se torna próximo para nós. "O Verbo fez-se
1956); Id., Origene et la connaissance mystique (Bruges, 1961); H. DE
LuBAC, Histoire et Esprit (Paris, 1950); Id. Origene, Homélies sur carne pata habitar entre nós, e não o podemos começar a com-
l'Exode ("Sources chrétiennes 16", Paris, 1947), pp. 1-62; E. MoLLAND, preender a não ser assim" (Com. Jo. 1,18). Não pode-
The Conception of Gospel in the Alexandrian Theology ( Oslo, 1938);
G. AEBY, Les missions divines, de Saint Justin à Origene, pp. 146-183; mos atingir o Verbo senão por sua encarnação, que não
J. DANIÉLOU, Origene (Paris, 1948); R. P. e. HANSON, Origen's Doctrine é a epifania do Deus invisível, mas o instrumento dessa
of Tradition (London, 1953); F. BERTRAND, Mystique de Jésus chez manifestação. O Cristo manifesta o Pai enquanto quem
Origene (Paris, 1951); P. NEMESHEGYI, La Paternité de Dieu chez Origene
(Paris-Tournai-New York-Rome, 1960); H. U. VON BALTHASAR, "Le mys- o compreende "por isso mesmo compreende o Pai,
terion d'Origene", Rech. de se. rel., 26(1936): 513-562; 27 (1937): 38-64; segundo o que se diz - quem me vê, vê o Pai" ( De Princ.
A. ÜRBE, "La excelencia de los profetas, según Orígenes", Estudios I, 2,6). Não se pode pois esperar ver o Pai visível sensi-
Bíblicos, 14 (1955): 191-221; E. HASLER, Gesetz und Evangelium in der
Alten Kirche bis Origenes (Zürich-Frankfurt, 1953), pp. 74-102; · A. velmente no Cristo; trata-se antes de conceber e compreen-
LIESKE, Die Theologie der Logosmystik bei Origenes (Münster, 1938); der o Pai, invisível e espiritual, a partir do sinal de Jesus
W. VoELKER, Das Vollkommenheitsideal des Origenes (Tübingen, 1931); ( C. Cels. 7,4 3 ) . Quem não chega ao Verbo através da
G. BARDY, "La rêgle de foi d'Origene", Rech. de se. rel., 9 (1919):
162-196; R. CADIOU, Introduction au systeme d'Origene (Paris, 1932); carne, isto é, não ultrapassa a humanidade do Cristo para
H. KocH, Pronoia und Paideusis (Berlin, 1932); E. R. REDEPENNING, perceber a divindade, hão compreende nem mesmo a carne,
Origenes, Eine Darstellung seines Lebens und seiner Lebre (2 vol., Borin,
1841-1846); E. FITZGERALD, Christ and the Prophets. A Study in Origen's como quem se prende ao sentido literal da Escritura, sem
Teaching on the Economy c:if · the Old Testament (Dissertatio ad lauream,
PUG, Romae, 1961) 5 H. CROUZEL, Théologie de l'image de Dieu che~ Origene, pp. 87-88.
124 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
í TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 125
chegar ao sentido espiritual, não compreende nem a letra Cristo, os apóstolos, a Igreja, são os "luminares" do mundo
da Escritura. O Verbo fez-se carne para levar-nos, a nós ( Horn. Gen. 1,5-6). A doutrina de Cristo chega-nos pela
que éramos carne, a vê-lo tal qual era antes de se fazer pregação dos apóstolos e pelo ensino da Igreja. A regra
carne (C. Cels. 6,68;4,15). A visão material não basta da fé está pois na pregação da Igreja que nos trans-
então para nos dar a conhecer o Verbo de Deus ( Com. Jo. mite integralmente o ensinamento vivo dos apóstolos ( De
19, 2;20,30). Pilatos, Judas, os fariseus, os judeus viram Princ., praef. 2)-; é a "palavra da Igreja" (Com. Jo. 5,8),
Jesus com os olhos do corpo, sem chegar, porém, ao "co- a "doutrina da Igreja" (Horn. Núm. 9,1 ). É igualmente
nhe ·menta do Verbo". Viu somente quem conheceu o a Escritura que contém esse ensinamento ( Com. Mt. ser.
_Cristo como Verbo de Deus, e pelo Verbo conheceu o 46). "Quem compreende perfeitamente o sentido de um
Pai ( Com. Cânt. 3; Horn. Lc. 1). Assim os apóstolos, escrito apostólico, sem o deformar, esse recebe, ao mesmo
que viram o corpo de Jesus, conheceram também o Verbo tempo que o apóstolo, o Cristo que fala e vive no apóstolo,
de Deus ( Horn. Lc. 3 ) ; assim Pedro que confessou o Cris- e igualmente possui os ensinamentos do Cristo" ( Frag.
to, e Paulo, o apóstolo do Senhor. Crer no Cristo e nele' Mt. 218). No pensar de Orígenes esses termos são equi-
reconhecer a glória do Verbo, é um dom do Espírito que valentes. O Verbo de Deus faz-se carne em Jesus e mani-
ilumina os corações ·(Horn. Jer. 10,1 ). festa-se na Escritura. Escritura e encarnação são incorpo-
O Verbo revestiu-se com a forma de escravo para rações do Verbo que se destinam a no-lo revelar (Horn.
instruir o homem "por. exemplos e ensinamentos" ( De Jer. 9,1; Com. Jo. 2,1-9). A voz, porém, do Cristo, que
Princ. IV, 4,5). A carne é o ,instrumento privilegiado que é a Escritura, dirige-se à Igreja e ressoa na Igreja.
lhe permite ser ouvido como nosso Mestre e ser visto como A doutrina do Cristo que a Igreja anuncia é divina:
nosso Modelo (De Princ. III, 5,5; C. Cels. 2,11.16.40.44). é acompanhada pela graça, necessária para que se possa
Como Salvador, o Cristo é o enviado do Pai que vem ouvir e apreender o sentido dos mistérios ( Com. Jo. 20,18).
"tomar pela mão os que estavam fora de Deus e trazê-los '' O homem não se voltaria para Deus se ele mesmo não lhe
de volta ao caminho divino" ( Com. Jo. 32,3): ele indica tocasse a alma" ( C. Cels. 1,9). As palavras de Cristo "são
o caminho da salvação. Vem "instruir e educar o homem" proferidas com uma virtude divina" ( C. Cels. 7 ,54) e o pre-
(De Princ. I,3,8). A educação do Antigo Testamento su- gador é impotente para comover "se a graça não acompanha
cedem "os ensinamentos mais altos do Cristo" (De Princ. o que ele diz" ( C. Cels. 6,2). Mais que à manifestação
III, 6,8) que nos deu "dogmas salutares" (De Princ. IV, objetiva da verdade, Orígenes é sensível à seu impacto nas
1 ) . Por sua doutrina o Cristo é a Luz do mundo ( Horn. almas e sua assimilação. Quem, iluminado pelo Logos di-
Lev. 13,2; Horn. Gên. 1,5; C. Cels. 8,5;6,79). É o Mestre vino, percebeu o esplendor do Pai já não precisa de nin-
único, o "Didáscalos dos mistérios divinos" ( C. Cels. 3, guém para instruí-lo ( Com. 1,24). Essa iluminação de-
62.81). Por seu ensinamento, fonte de toda verdade re- pende de nossa docilidade. Tomando a iniciativa aproxi-
ligiosa, revela o Pai: "Quem. acredita e está persuadido ma-se Deus do homem; é preciso, porém, que este se volte
que a graça e a verdade vêm por Jesus Cristo, e que para o Senhor e dele se aproxime: deve haver uma aproxi-
o Cristo é a própria verdade, não procura a ciência da vir- mação mútua. E Orígenes insiste: o "Cristo envia sua
tude e da felicidade fora das palavras e da doutrina do luz a nossos espíritos, mas não haverá iluminação se a nossa
Cristo". O Cristo, porém, "falou também por Moisés e cegueira se opõe" (Horn. Gen .. 1,7). Quanto mais nos
pelos_ profetas" e, depois de sua ascensão, "continua a falar aproximarmos do Cristo, tanto mais recebemos de sua luz.
pelos apóstolos" ( De Princ. praef. 1). Doutra parte, como o Aos que se abrem ao Logos, este confia os segredos do
Cristo não se torna presente aos homens senão pela Igreja, Pai, e essa palavra toma formas várias, em seus corações,
esta é também uma autêntica manifestação do Verbo. O segundo as capacidades e necessidade de cada um (Horn.
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126 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES


TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 127
Gên. 1,8). Faz-se Cristo, ao mesmo tempo, médico, pastor, devem s<:r suavizadas por outras que evidenciam o progresso
rei, vinha, pão, cordeiro, profeta. Sua revelação como Sabe- da revelação, tanto no plano da preparação como no do
doria e Vida está reservada aos perfeitos ( Com. Jo. 1, conhecimento.
22-23), esclarecidos de forma particular ( C. Cels. 3,60).
Orígenes reconhece que a revelação teve começos hu-
O pensamento de Orígenes supõe sempre, como o de mildes: inaugurada pela manifestação divina na criação ( De
seu~ antecessores, a heresia marcionita que estabelece um Princ. 1, 1,6) e na consciência de cada homem (De Prin.
fosso entre Lei e Evangelho, que opõe o Deus do Novo Tes- 1, 3,1), progredindo com a Lei e os Profetas ( Com. Mt.
tamento ao do Antigo. Por isso Orígenes também exalta 13 ,2 ) , para ter afinal sua plenitude em Jesus ( Horn. Lev.
a unidade de ambos os Testamentos, Antigo e Novo que 1,4 ). Manifestou-se Deus "nos momentos oportunos", e
têm por autor o mesmo Deus. Apóstolos e profetas foram "segundo certa ordem" ( De Princ. IV, 4 ,8 ), pois o homem
inspirados por um só Espírito ( De Princ. 1, praef. 4). As não poderia receber duma só vez "os preceitos da liber-
Escrituras todas referem-se ao Cristo, que é Logos 'de ver- dade" (Horn. Ex. 8,1 ). Se o Cristo não veio mais cedo,
dade desde o princípio ( Com. Mt. ser. 4 7 ) presente no é que sua vinda devia ser preparada ( C. Cels. 4,8). Os
mundo, ainda antes da encarnação (Horn. Jer. 9,1 ). Ele é acontecimentos da história de Israel destinavam-se a pre-
que se manifesta nas teofanias do Antigo Testamento, dire- parar, para um dia receber os mistérios, um povo pouco
tamente ou por intermédio de um anjo (Horn. Jer. 16,4; apto a suportá-los ( C. Cels. 2,2). Anunciando a vida do
Com. Cant. 2) 6 • Para marcar essa unidade entre os Testa- Cristo, deviam despertar o seu desejo ( Com. Cânt. 1). Lei
mentos, afirma Orígenes que os patriarcas, Moisés e os e Profetas preparavam o caminho ao Evangelho; eram como
profetas viram a glória do Cristo ( Com. Jo. 1,17). Quanto que "rudimentos que levavam à perfeita inteligência do
ao conhecimento, os profetas mais perfeitos não são infe- Evangelho" ( Com. Mt. 10,10).
riores aos apóstolos ( Com. Jo. 6,3). Os santos do Antigo De um a outro Testamento há progresso, não apenas
Testamento receberam do Cristo o seu conhecimento, pois quanto à preparação mas também quanto ao conhecimento.
"o Verbo os instrui antes mesmo de se encarnar" ( Com. Como o homem sensato, ao ouvir uma sábia palavra, apro-
Jo. 6,4). Os profetas, como os apóstolos, testemunharam va-a e algo lhe acrescenta, é evidente que os apóstolos,
em favor de Cristo, pois o compreenderam e o anunciaram servindo-se das sementes de revelações mais secretas e pro-
( Com. Jo, 2,34). Moisés, Isaías, Ezequiel tiveram cons- fundas já percebidas por Moisés e pelos profetas, chega-
ciência dos mistérios expressos em seus escritos ( Com. Jo. ram a contemplações bem mais numerosas da verdade, sob
6 ,4 ) . Ou seja, "os apóstolos não foram mais sábios que a ação de Jesus que elevava seus olhos e iluminava suas
os Pais, Moisés ou os profetas" (Com. Jo. 6,5). A vinda inteligências. . . Não foi por serem inferiores que os pro-
de Cristo não trouxe uma verdade nova, lhas apenas a f~tas e Moisés não puderam ver, desde o começo, o que
manifestação de verdades já conhecidas ( Com. Jo. 6,4). viram os apóstolos quando da vinda de Jesus; é que espe-
Os mistérios que os profetas conheceram, os apóstolos vi- ravam a plenitude dos tempós. Porque a vida de Jesus
ram-nos realizados e cumpridos. estava reservada para esses tempos, importava também que
Afirmações que, inspiradas pela atitude antimarcionita, fossem reveladas verdades reservadas para esses tempos;
verdades outras que as já anunciadas ou escritas no mundo·
6 Orígenes atribui ao Verbo as teofanias do Antigo Testamento; é, . .
e_er~ preciso que essa revelação fosse feita por aquele que,
'
porém, mais discreto que os apologistas, Irineu ou mesmo Clemente.
Apela para o ministério dos anjos, tanto para salvaguardar a transcendência nao J_ulgando fosse roubo fazer-se igual a Deus, "despojou-se
do Verbo como para atenuar a exterioridade das teofanias. Encontramos de si mesmo para tomar a forma do escravo" ( Com. Jo.
em Orígenes uma tendência evidente para interiorizar e espiritualizar 13,48). Afirma pois Orígenes que o Cristo desvendou aos
as teofanias.
apóstolos mistérios que os profetas nãu conheceram, cuja
128 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 129
revelação desejaram. Ainda mais, a realização das profecias <ladeiras, espmtuais, inv1S1ve1s, divinas, eternas. É preciso
e a possessão das realidades anunciadas no Antigo Testa- ultrapassar as sombras e as imagens da carne, a letra e a
mento tornaram-se fonte de um conhecimento mais subli- história para atingir a plena realidade.
me e mais claro. Assim, por exemplo, os antigos não ti- A vinda do Cristo é uma promoção de todo o Antigo
veram uma noção completa da Trindade. A segunda pessoa Testamento. "A luz contida na lei de Moisés, oculta sob
não se tornou plenamente conhecida a não ser pela encar- um véu, brilhou quando da vinda de Jesus, que afastou o
nação do Filho de Deus. O Espírito Santo não foi plena- véu e fez conhecer rapidamente os bens cuja sombra se
mente conhecido senão por sua vinda às almas e por sua continha na letra" ( De Princ. IV 1,6 ) . "O Cristo anula
vida na Igreja (Horn. Jos. 3,2). Os apóstolos, pois, mais toda sombra e toda imagem" (Frag. Jo. 9,12). Vindo,
que os profetas penetraram os mistérios do Cristo. -Seu co- Jesus Cristo dá-nos por lei o Evangelho e imediatamente
nhecimento comparado ao dos profetas, é como a planta "a lei de Moisés nos parece espiritual" (Sei. SI. 118,102).
comparada 1ao germe. O Evangelho supera a Lei 7 • Com sua presença faz a letra explodir sob a pressão do es-
O próprio Cristo, em o Novo. Testamento, não se ma- pírito. O Evangelho "afastou a velharia da letra" e deu-
nifestou senão progressiva e parcialmente, pois se o Verbo -nos "a novidade do Espírito que jamais envelhece" ( Com.
tivesse manifestado toda sua glória, o mundo inteiro não Jo. 1,6). "Quando veio o Salvador e deu corpo ao Evan-
a teria podido conter. (Com. Jo. 19,10). O Cristo diver- gelho, então, pelo Evangelho, fez que tudo fosse semelhante
sificou seus dons e adaptou-se à capacidade e às necessida- ao Evangelho" ( Com. Jo. 1,8). Doravante possibilita-nos
des dos homens ( Com. Jo. 1,20; Com. Mt. 15,24). Con- ler o Antigo Testamento evangélica e espiritualmente ( Horn.
forme os ouvintes, falou de maneira diferente. À multi- Lev. 6,1). A glória do Cristo transfigura todo o Antigo
dão, fal~u em parábolas; aos discípulos proporcionava expli- Testamento e faz Elias e Moisés sair das sombras como
cações. A alguns privilegiados revela sua glória: a Pedro que absorvidos em sua luz.
por exemplo, que confessa sua divindade ( Com. Mt. 12, • Mas o próprio Evangelho, tanto quanto o Antigo Tes-
10; Com, Jo. 32,24); aos tres apóstolos testemunhas de tamento, deve ser entendido no Espírito. A verdade do
sua transfiguração, "exemplo da glória futura do Salvador" Evangelho não é conhecida senão pelos que sabem "trans-
( Frag. Lc 22). Aos principiantes, que devem ser levados formar o Evangelho sensível em Evangelho Espiritual" ( Com.
à fé, apresenta-se como o Verbo feito Carne; aos perfeitos, Jo. 1,8). O Antigo e o Novo Testamento devem ser lidos
como o Verbo glorioso do final dos· tempos: - dois níveis do mesmo modo: para se ter o espírito das Escrituras, que
correspondentes a dois níveis de alma e às duas vindas do é o espírito do Cristo, é preciso "ter o Espírito do Cristo"
Cristo, em forma de escravo e em forma de glória. .A cada (De Princ. IV, 2,3 ). Todos os relatos evangélicos, todas
um é dada a possibilidade de aumentar sua capacidade es- as parábolas do Cristo escondem um mistério que é pre-
piritµal, de fazer sempre mais vasto o espaço interior para ciso penetrar. "Os textos do Evangelho não se devem
chegar ao grau dos perfeitos ( Frag. Jo. 7). tomar simplesmente no seu sentido imediato; aos simples,
Contudo, mais que às .etapas e preparações da reve- apresentam-se pedagogicamente como simples, mas para os
lação, Orígenes mostra-se atento à passagem da carne ao que querem e podem compreendê-los mais profundamente,
espírito, da história ao espírito, da letra ao espírito. O ali se escondem ensinamentos sábios e dignos do Logos"
mundo parece-lhe uma vasta imagem da verdade, que ele (Com. Mt. 10,1 ). O que há de obscuro no Evangelho
revela e vela ao mesmo tempo. Os acontecimentos do mun- deve estimular· o leitor na procura do verdadeiro sentido
do são sinais, símbolos, tipos, imagens das realidades ver- (De Princ. IV, 2). Palavra alguma do Cristo deve ser to-
mada no sentido vulgar: "É preciso perscrutar muito cuida-
7 H. CROUZEL, Origene et la connaissance mystique, pp. 301-311.
dosamente as que parecem totalmente claras e não perder
5 - Teologia da revelação
~;~'

130 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA· IGREJA GREGA 11=,l
a esperança de encontrar, se o procurarmos corretamente, ao mesmo tempo que se esforçam por atingir a divinddJ~\ ?~ \.\,\1. •
algo digno dos lábios sagrados, mesmo nas palavras simples do Verbo no si?~l da _carne, J?e~o espírito s_e esforçab\ '"'.-~,,...,,-,r'.'-;.;1
e aparentemente sem mistério ( Com. Jo. 20,36). · Assim para s_e elevar ate as realidades d1vrnas, das quais os gestos '•.:tndnà~1:~:
também todos os gestos do Cristo, para além de sua reali- de Cristo são simplesmente figuras, sem contudo pretende- ~---"
dade sensível, têm um significado espiritual que se prolonga tem penetrar completamente o mistério do Verbo que só
entre nós. "Os atos então realizados eram símbolos de o Pai _conhece ( De Princ. II, 6, 1; C. Cels. 2 ,6 7 ) . Q~ando da
atos realizados sempre pelo poder de Jesus; não há tempo, ~arusia, ao Evangelho temporal sucederá o eterno: os que
com efeito, em que se não produza pelo poder de Jesus, tiverem vivido espiritualmente o Evangelho do tempo pre-
cada uma das ações narradas pela Escritura" ( Com. Mt. sente "viverão no reino dos céus segundo as leis desse Evan-
11, 1 7 ) . Não cessa o Cristo de curar a lepra do pecado e gelho eterno" (De Princ. IV, 3,12-13 ).
de iluminar os cegos ( C. Ces. I, 48; Horn Lc. 17). São . Segundo Orígenes a função do teólogo é escrutar as
históricos todos os fatos de sua vida, mas são também ao Escrituras, pois ali está contida toda verdade. Quanto à
mesmo tempo modelo do que deve acontecer no futuro revelação natural e à filosofia, Orígenes é muito mais mo-
( Com. Mt. ser. 78). A compreensão espiritual do Novo ~erado que Clemente. Sem dúvida que os gentios jamais
Testamento deve ser tão ampla como a do Antigo Testa- ficaram sem benefícios divinos; Orígenes, porém, não chega
mento: progresso vertical que atinge toda a revelação. a _falar de um Testamento dos gentios. A revelação gra-
O Novo Testamento e toda a economia cristã, por si tui!a acontece porque o Verbo de Deus, que procede do
mesmos, são um sinal da realidade definitiva do "Evangelho Pai como fidelíssima imagem, se encarna, e, pelos meios
eterno" (De Princ. IV, 2-3 ). Somos convidados a ver, na da encarnação, carne de seu corpo e carne da Escritura, dá
vinda do Logos encarnado, uma imagem da economia de a compreender o Pai e seus mistérios. A ação reveladora
visão ( Horn. II, 2 in Ps. 3 8). "Pela primeira vinda muitas é plename?te efetiva quando o homem, pelo sinal da Carne
coisas ficaram esboçadas . . . que se devem consumar em e da Escritura, reconhece no Cristo o Verbo de Deus a
realização e perfeição quando da segunda vinda . . . O que l~agem do ~ai e, na Imagem, o próprio Pai. Esse conhe-
agora prelibamos pela fé e pela esperança, teremos então cimento realiza-se ~ob a ação da graça. Orígenes, mais ain-
definitivamente em substância" ( Horn. Jos. 8,4). O Evan- da que Clemente, rnsiste na subjetividade da revelação. O
gelho eterno revelar-se-á "quando a sombra tiver passado e que importa é não apenas que Deus saia de seu mistério
a verdade chegado, destruída a morte e restituída a imor• mas também que o homem reconheça essa vinda de Deus'.
talidade" (Com. Rom. 1,4 ). O Evangelho eterno não é Fala também de iluminação, que, iniciada pela fé, pode
um Evangelho diferente do temporal, mas um estado dife- crescer sempre, tanto nos simples como nos perfeitos. Inte-
rente do mesmo Evangelho, tendo os sinais cedido lugar ressam a Orígenes os problemas da relação entre a Lei e
à realidade. O Evangelho presente apenas nos mostra a o Evangelho, entre a letra e o espírito. Nele encontramos,
realidade num espelho e enigmaticamente, enquanto o Evan- COfil.Q em seus predecessores, uma visão evolutiva da revela-
gelho eterno no-la fará contemplar diretamente. Ambos os ção. Oríge_:1es reconhece um desenvolvimento e um progresso
Evangelho são idênticos quoad se, diferentes, porém, quoad na revelaçao, uma pedagogia divina que dirige a maturação da
nos. Ao temporal corresponde a vinda do Cristo em forma humanidade até a plenitude dos tempos. Celebra a unidade
de escravo; ao eterno, sua vinda na glória. O Evangelho e harmonia_de ~mbos os Testamentos. A seus olhos, porém,
eterno é o Cristo em pessoa, manifesto em sua glória de a encarnaçao e menos uma transição brusca na história
Verbo divino (Com. Mt. 17,19). Dele nos aproximamos q_ue uma p~omoção de tudo em direção ao Espírito. Mais
na medida em que progredimos em perfeição. Os perfeitos, ~rnda 9ue_. a yassagem das preparações à realização, ele dá
isto é, os cristãos cujas exigências espirituais são maiores, importancia a passagem das figuras e sinais à realidade, à
132 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 133
passagem da história e da letra ao espírito trazido pela pre-
pela encarnação: "quando a alma se liberta de qualquer
sença do Cristo, à transfiguração da Lei sob a luz do Evan-
mancha deixada pelo pecado, e não guarda em pureza total
gelho. Orígenes insiste também na tensão do Evangelho
senão a semelhança da imagem, por isso mesmo, quando
temporal em direção ao Evangelho eterno, realidade dos
essa imagem é iluminada, como num espelho, pode nela
mistérios esboçados no Evangelho temporal.
contemplar o Verbo - imagem de Deus Pai - ; nele con-
templa o Pai, cuja imagem é o Salvador" ( C. Gent. 34).
3. Santo Atanásio Atanásio não· esclarece como essa purificação permite à
alma, voltando-se sobre si mesma, perceber o Verbo Ima-
Além do ensinamento de Cristo, Atanásio 8 distingue gem do Pai.
duas fontes do conhecimento de Deus: uma, direta e inte- Realmente ambos esses caminhos de acesso ao conhe-
rior; outra, pelo testemunho da criação. cimento de Deus, a ele não conduziram o homem. Os
O mundo traz a marca do Verbo, seu autor e organi- homens tornaram confusa a imagem divina neles e na
zador. Deus de "tal modo organizou a criação que, mesmo criação. Deus, então "veio em socorro da sua fraqueza
sendo ele naturalmente invisível, o pudéssemos conhecer dando-lhes a Lei, enviando-lhes os profetas, homens que
mediante suas obras" ( C. Gent. 35 ) . Parece que esse co- eles conheciam"; assim podiam ser instruídos por "mestres
nhecimento de Deus se obtem simplesmente por uma in- que lhes fossem próximos" ( De Inc. 12). Esse benefício
ferência a partir do cosmos: "Olhando o céu e vendo sua da Lei e dos profetas destinava-se, observa Atanásio, não
ordem e beleza . . . podemos fazer uma idéia do Verbo que é apenas aos judeus, mas a todos os homens. Era para todos
o autor dessa ordem; assim também, ao pensarmos no "como que uma escola santa do conhecimento de Deus e
Verbo de Deus, temos que necessariamente pensar em Deus da vida espiritual" ( De Inc. 12).
seu Pai ... ; vendo o poder do Verbo, chegamos a uma Apesar da Lei e dos profetas os homens desviaram-se
idéia sobre a bondade do Pai" (C. Gent. 45). Como vemos, da verdade. "Esqueceram-se de Deus. . . em seu lugar for-
Atanásio interpreta em função de sua fé trinitária o conheci- jaram para si outros deuses'' ( De Inc; 11 ) . Acabam es-
mento que, a partir da criação, podemos obter sobre quecendo-se que eram feitos "à imagem de Deus" ( C. Gent.
Deus. O Logos de que Atanásio fala não é o Logos 8) : a obra divina encaminhava-se para a ruína ( De Inc. 6).
seminal dos estóicos, mas a Sabedoria do Pai ( C. Gent. Era preciso que a alma fosse recriada conforme a imagem.
40,41). Tudo que o infiel pode ver não existe nem subsiste "E como seria isso possível, senão pela presença da pró-
senão por essa Sabedoria de Deus. Se "a criação pode sub- pria Imagem ·de Deus,. . . para que, sendo a Imagem do
sistir solidamente" é que o Verbo, pela plenitude de seu Pai, pudesse recriar o homem segundo a imagem" ( De Inc.
poder, lhe dá consistência (C. Gent. 41.42.46). O Verbo 13). Restaurar o homem, sendo isso obra de criação, de-
de Deus é Jesus Cristo, o Salvador ( C. Gent. 40). veria caber ao Verbo. Por "condescendência", por "filan-
Atanásio fala ainda do conhecimento de Deus por um tropia", encarnou-se pois o Verbo de Deus ( De Inc. 8):
caminho interior. Sendo o homem a imagem de Deus, pode "epifania divina para os homens" ( De Inc. 1 ) . Após se ter
conhecer a Imagem que é o Verbo de Deus, e nele pode manifestado pela criação, pela Lei e pelos profetas, Deus
conhecer o Pai, antes mesmo que a Imagem se manifeste nos fala por seu Filho ( 1 C. Ar. 55; 2 C. Ar. 81). Recriar
o homem segundo a imagem é restaurar nele o verdadeiro
8 L. Atzberger, Die Logoslehre des Hl. Athanasius ( München, 1880);
P. TH. CAMELOT, Athanase d'Alexandrie, I: Contre les Pa"iens; II: Sur
conhecimento de Deus para divinizá-lo. A revelação é con-
l'Incarnation du Verbe ("Sources chrétiennes 18", Paris, 1946), pp. 7-104; dição e meio para o fim que é divinização. Conseqüente-
R. BERNARD, L' Image de Dieu d'apres Athanase (Paris, 1952); K. PRÜMM, mente, a restauração do homem se realiza pelo conhecimento
"Mysterion hei Athanasius", Zeit. Kath. Theol. (1939), pp. 350ss.
de Deus que o Cristo nos traz (De Inc. 20,16).
134 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 135
Na manifestação do Verbo pela encarnação, Atanásio vias de conhecimento, Deus instruiu os homens pela Lei e
distingue dois aspectos: a manifestação do Cristo como pessoa pelos profetas. E, afinal, o próprio Verbo de Deus, Ima-
divina, Imagem do Pai, e a com,unicação que ele nos traz gem do Pai, tomou a carne para recriar o homem segundo
da doutrina salvífica. a imagem, isto é: para divinizá-lo restaurando nele o ver-
Pelo pecado os homens rebaixaram Deus ao nível dos dadeiro conhecimento de Deus. Por suas obras de poder,
seres corporais. Deus assume-os em seu próprio nível: en- manifestou-se o Cristo como Senhor do mundo. Por seu
carna-se. Assim poderão reconhecer "pelas ·obras realizadas ensinamento invade o universo todo com o conhecimento
no corpo, o Verbo de Deus que está no corpo e, por ele, do Filho e do Pai; comunica aos homens um ensinamento
reconhecer o Pai" (De Inc. 14 ). Desde logo os milagres que eles são convidados a aceitar na fé.
são antes manifestações. do poder divino que sinais de
veracidade. Vendo as obras da onipotência do Cristo ( curas, 4. São Cirilo de Alexandria
exorcismos, ressurreições), os homens devem nele reconhe-
cer o Senhor do universo. Como o Verbo invisível mani- Seguindo a Escritura 9 Cirilo repete que ninguém viu a
festava-se pelas obras de sua criação, assim o Verbo en- Deus e que o conhecimento do Pai nos vem pelo Filho (Jo.
carnado se faz reconhecer como "Cabeça e Rei do Univer- Ev. 1,10:73,178) 10 • O Cristo, Verbo encarnado, é a porta e
so" por suas obras de poder ( De Inc. 16). Nele reconhecen- o caminho que conduz ao conhecimento do Pai (Jo. Ev.
do o poder divino, os homens podem fazer uma idéia do 5,4:73,823 ).
poder do Pai, pois tudo que está no Cristo está no Pai,
sendo o Cristo sua perfeita Imagem, sua "impressão" Pelo Cristo a verdade propõe-se-nos, não em figuras,
exata (1 C. Ar. 16; 28), que possui como o Pai o Poder como no Antigo Testamento, mas em preceitos claros ( Jo.
( 1 C. Ar. 33), a Senhoria ( 2 C. Ar. 13), a Eternidade Ev. 1,9:73,174). "Nosso Senhor Jesus Cristo mostra-nos,
( 1 C. Ar. 13). Atanásio afirma com Orígenes: "O Ver não a imagem das coisas, mas abertamente a própria ver-
bo . . . fez-se visível em seu corpo para fazermos uma idéia dade das coisas . . . O ensinamento das palavras do Cristo
de seu Pai invisível" ( De Inc. 54). era a transformação e a conversão das figuras em verdade"
Pela encarnação o Cristo também pode fazer o ho- (Jo. Ev. 10:74,298). De seus lábios ouvimos a doutrina
mem conhecer a doutrina da salvação. "O Salvador inefável (Com. Lc. 10:72,675). Antes, Deus falava aos
veio dar testemunho" ( 2 C. Ar. 55); veio fazer conhe- homens pelos profetas; agora, o .próprio Filho se fez "Dou-
cido a si mesmo e ao Pai ( 2 C. Ar. 81;. De Inc. 20), tor e Mestre". "Só o Cristo ensina, enquanto Mestre e
veio trazer aos homens "um ensinamento divino", objeto Sabedoria do Pai" (Com. Lc. 5:72,563 ). A palavra é,
de fé ( De Inc. 3). O Cristo é também o Mestre cuja dou- pois propriamente a "pregação da Boa-nova" (Jo. Ev. 5,
trina domina o mundo ( De Inc. 48), ilumina o universo 5:73,855).
( De Inc. 55 ) , transforma as almas ( De Inc. 5 2 ) . A terra Para designar a função reveladora do Cristo, o título
toda está repleta do conhecimento do Pai que nos vem pelo preferido por Cirilo é o de Luz. "As nações foram ilumi-
Filho (2 C. Ar. 81;82). Ensinamento que é também o
dos apóstolos ( 1 C. Ar. 4), da Igreja ( C. Gent. 33), a 9 H. nu MANOIR DE JuAYE, Dogme et spiritualité dans S. Cyrille
fé batismal (1 C. Ar. 8; 2 C. Ar. 34). d'Alexandrie (Paris, 1944); J. LIÉBAERT, La doctrine christologique de
S. Cyrille d'Alexandrie (Lille, 1951); W. J. BURGHARDT, The Image of
O homem poderia elevar-se ao conhecimento do Deus God in Man According to Cyril of Alexandria (Woodstock, 1957).
invisível a partir da criação visível; poderia também, em sua 10 Quanto a Cirilo de Alexandria, Basílio, Gregório de Nissa e João

alma purificada e iluminada, contemplar, como num espe- Crisóstomo, posto que as referências às divisões de suas obras são muito
gerais, citamos conforme a edição de Migne: o primeiro algarismo após
lho, o Verbo de Deus, Imagem do Pai. Falhando essas duas os dois pontos indica ó tomo; o segundo indica a coluna.
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136 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 137
nadas pelo Cristo, pela doutrina evangélica" (Jo. Ev. 6:73, Cristo por um ensinamento interior, por uma unção, por
994), pela "doutrina da salvação" (Jo. Ev. 6: 73,1050). uma iluminação que produz internamente (Jo. Ev. 4,1:73,
"Quem me acompanha, diz o Cristo, isto é, quem segue 554-558). O Filho por sua vez, revela o Pai "inserindo
os traços de minha doutrina, não estará jamais em trevas, em cada um de nós uma iluminação do Espírito" (Jo.
mas terá a luz da vida, isto é, a revelação dos mistérios Ev. 11,12:74,575).
que pode conduzi-lo à vida eterna" (Jo. Ev. 5,2:73,778). É pelo Verbo que chegamos ao conhecimento do Pai.
Quanto aos apóstolos, eles receberam do Cristo a mis- Como Orígenes, Cirilo declara que a vinda do Cristo nos
são de ensinar e de iluminar a terra. Devem, colunas fez passar da imagem, da figura, do tipo à verdade. Dos
da Igreja, pregar o Evangelho ( Glaph. Ex. III: 69, lábios do Cristo, Sabedoria do Pai e Doutor da humanida-
519). "Foram escolhidos para a função apostólica e rece- de, ouvimos um ensinamento propriamente divino. O Cris-
beram o encargo de dispensar, em toda terra, as coisas sa- to iluminou-nos por sua doutrina de salvação. Revelou os
gradas, pela pregação apostólica, isto é, pelo Evangelho do mistérios que levam à vida eterna. Os apóstolos partici-
Cristo. Quem lhes disse: Ide, ensinai todas as nações, pando do magistério do Cristo, iluminaram o universo pela
constituiu-os mestres ilustres e afamados. Por isso que obe- pregação do Evangelho. Transmitiram à Igreja o depósito
decendo pronta e generosamente aos preceitos divinos, ilumi- da fé que se deve guardar intato. A Palavra do Evangelho
naram a terra" (Glaph. Lev.: 69,547). para ser eficaz e permanecer nas almas pela fé, precisa ser
Cirilo chama a verdade revelada: Boa-nova, doutrina acompanhada de uma ação interior da graça que Cirilo,
da salvação, doutrina evangélica, pregação evangélica, dou- seguindo a Escritura, chama de revelação ou iluminação.
trina inefável, doutrina do Cristo, doutrina divina e evan-
gélica, pregação evangélica e salutar, palavras do Cristo,
preceitos do Cristo, palavra ou mensagem da salvação por
Jesus Cristo, doutrina da fé, doutrina transmitida pelos II. OS CAPADóCIOS
apóstolos. Cirilo recomenda aos monges do Egito "guardar
sempre, como uma pedra preciosa engastada em suas al-
mas a fé que foi transmitida pelos santos apóstolos às O problema da revelação não preocupa os Capadócios.
Igrejas" (Ep. 1:77,14). Para permanecermos unidos ao Em seu horizonte o primeiro plano é ocupado pela Trinda-
Cristo, é preciso "guardar como depósito divino e espiritual de e pela cristologia. Contudo, a heresia de Eumônio oferece-
a puríssima doutrina do ensinamento evangélico e a verda- -lhes ocasião para apresentarem a doutrina tradicional. Os
deira doutrina da fé" (Jo. Ev. 10:74,366). Nada se pode primeiros escritores cristãos - Justino, Irineu, Clemente
ajuntar ou diminuir a esse depósito. Qualquer acréscimo, de Alexandria, Orígenes -. afirmavam que o conhecimento
inovação ou diminuição seria heresia. Insistentemente re- da essência divina está além das forças naturais do homem.
pete Cirilo que é preciso não abandonar "a tradição anti- Pelo fim do século quarto, Eunômio pretendia, pelo con-
quíssima da fé que até nós chegou a partir dos apóstolos" trário, que a essência divina uma vez revelada, já não apre-
(De recta fide, 17:76,1159). sentaria nenhum mistério. Diante desse erro, Gregório de
É a fé a resposta que convem ao ensinamento do Nazianzo, Basílio, Gregório de Nissa insistem na incom-
Cristo, à sua palavra, à sua doutrina. Para confessar, po- preensibilidade da essência divina, misteriosa mesmo para
rém, o Cristo e sua mensagem é preciso um dom do Pai a inteligência iluminada pela revelação. A partir do mun-
das luzes (Jo. Ev. 4,3:73,606). Pedro confessou o Cristo, do visível, pode o homem chegar a conhecer a Deus, sua
mas foi sob o impulso do Pai que lhe "revelou" seu Filho. existência e seus atributos, mas a essência mesma de Deus
O Pai revela o Filho e convida à fé. O Espírito revela o continua sendo trevas que se não podem penetrar totalmente.
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138 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 139

Pai (De Sp. S. 18:32,153 ). Sob a luz irradiante do Es-


1. São Basílio pírito, a inteligência ergue-se, pelo Filho, até ao Pai, pene-
trando cada vez mais nos mistérios divinos. O Espírito
São Basílio 11 ensina que somente o Filho e o Espírito "conhece as profundezas de Deus e dele recebe a criatura
conhecem intimamente o Pai (De Sp. S. 16:32,139). a revelação dos mistérios" (De Sp. S. 24:32,172).
Mesmo as testemunhas de Deus que receberam suas confi-
dências, Davi, Isaías, Paulo, confessam que a essência divina 2. · São Gregório de Nissa
é inacessível (A. Eunom. 1,13:29,542). O que sabemos
dos segredos de Deus, o sabemos pelo Cristo que nos faz Como são Basílio, Gregório de Nissa 12 insiste, contra
conhecer o Pai (De Sp. S. 8:32,104). "Aos que estão Eunômio, na inacessibilidade da essência divina. Deve-se,
presos sob as trevas da.ignorância, ele os ilumina: é por isso contudo, distinguir entre o conhecimento de Deus autor do
a Luz verdadeira" (De Sp. S. 8:32,101 ). Ele é a Verda- mundo e o de sua essência (De Beatit. Or. 6:44,1270).
de. Dele, que é o Mestre, recebemos uma "doutrina ne- Gregório compara o universo a uma obra que permite re-
cessária e salutar", que se deve guardar íntegra, à qual nos conhecer não a natureza, mas a existência e a arte do ar-
devemos agarrar (De Sp. S. 10:32,112-113 ). Essa dou- tífic.e: "Olhando a ordem da criação, podemos fazer uma
trina encontra-se na Escritura, que é palavra de verdade idéia, não da essência, mas da sabedoria de quem tudo
(De Sp. S. 4:32,77) e na tradição oral, autorizada e garan- fez sabiamente ... ; o invisível por natureza torna-se vi-
tida pela Igreja (De Sp. S. 27:32,188.193 ). sível por sua atividade que algo nos manifesta acerca de
A são Basílio, porém, mais que o dom da doutrina sua natureza" (De Beatit. Or. 6:44,1270.1050). É, pois,
revelada, interessa sua plena assimilação e frutificação na um conhecimento analógico de Deus a partir das perfeições
alma por uma "iluminação da gnose" (De Sp. S. 8:32,100). visíveis de suas criaturas ( Cant. Horn. 11 :44,1010).
Gnose que é um elemento essencial da assimilação progres- Deus não apenas se deixa conhecer pela pregação si-
siva a Deus, da divinização do cristão (De Sp. S. 8:32,97). lenciosa do universo, mas vem ao encontro do homem es-
E um conhecimento superior de Deus, sob a influência do tabelecendo com ele uma comunicação pessoal. Tipo da
Espírito (De Sp. S. 18:32,153 ). testemunha das confidências de Deus no Antigo Testamento
É de modo inteiramente intelectual que Basílio entende é Moisés. Foi "instruído. . . pelo ensinamento inefável de
a ação santificadora do Espírito Santo. Ele deifica ilumi- Deus" ( De Vita Moysis I: 44,319); foi iniciado nos segre-
nando, revelando, fazendo a alma participar de sua pró- dos divinos; recebeu "o conhecimento dos mistérios ocultos",
pria luz (De Sp. S. 24:32,172). Irradia sua luz na alma os "mandamentos divinos" ( De Vita Moysis I: 44,318 ) .
que assim se torna mais e mais transparente e espiritual, Sobre a montanha santa, observa Gregório de Nissa, Moisés
mais penetrante, podendo chegar a uma inteligência maior recebeu "pela palavra, o mesmo ensinamento que lhe fora
das coisas divinas (De Sp. S. 30:32,217). Tal gnose, po- dado antes pelas trevas para que, penso eu, nossa fé nessa
rém, não é privilégio de alguns iniciados: destina-se a todos doutrina fosse garantida pelo testemunho da palavra divina"
os batizados. Pouco a pouco o espírito de verdade, de sa- (De Vita Moysis II: 44,378); comunicou depois a seu povo
bedoria, manifesta-lhes no Cristo a glória do Filho vindo do
12 F. DJEKAMP, Die Gotteslehre des Hl. Gregor von Nyssa (Münster,
11 B. PRUCHE, Saint Basile, Traité du Saint-Esprit ( "Sources chrétien- 1896); H. U. VON BALTHASAR, Présence et pensée,. Essai sur la philo-
nes 17", Paris, 1946), pp. 1-100; H. DoERRIES, De Spiritu Sancto, Der sophie religieuse de Grégoire de Nysse (Paris, 1942); J. DANIÉLOU, Pla-
Beitrag des Basilius zum Abschluss des trinitarischen Dogmas (Gottin- tonisme et théologie mystique (Paris, 1944); ld., Grégoire de Nysse, La
gen, 1956); S. GrnT, Basile de Césarée, Homélies sur l'Hexaéméron vie de Morse ("Sources chrétiennes 1 bis", Paris, 1955), pp. X-XXXV;
("Sources chrétiennes 26", Paris, 1949), pp. 1-84. R. LEYS, L'Image de Dieu chez Grégoire de Nysse (Paris, 1951).
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140 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 141
"os ensinamentos. . . recebidos do Mestre celeste" ( De Vita trazida por Cristo aos homens é o ensinamento da religião,
Moysis II: 44,375). Gregório ainda nota muito bem que a a doutrina nova, o Evangelho, a doutrina de Deus, a graça
doutrina revelada sobre a criação e a queda nos foi comuni- do Evangelho, a doutrina do mistério, os ensinamentos
cada sob a forma de uma história: "Moisés narra mais como revelados.
um historiador. . . apresentando-nos doutrinas sob a forma Os capadócios, ao mesmo tempo que se opõem a Eu-
de relatos" (Or. Cat. 5:45,23;8:45,34). nômio, reconhecem duplo caminho de acesso no conheci-
· Com o tempo, fez-se a palavra divina cada vez mais mento de Deus: pela criação visível e pelo ensinamento da
clara. Débil ainda, sob a Lei e os profetas, brilha e ressoa fé. Por Cristo nos vem o conhecimento dos mistérios divi-
na pregação do Evangelho, levada pelo sopro do Espírito nos. São Basílio vê no Cristo e no seu ensinamento a
até os confins da terta (De Vita Moysis II: 44,375). No luz dos homens. Insiste, como Clemente de Alexandria,
Cristo e nos apóstolos a revelação atinge seu auge. Com no movimento de frutificação que a adesão da fé inicia na
precisão Gregório descreve essa ação divina. Insistente- alma: sob a iluminação do Espírito, a alma penetra mais
mente repete que nossa fé é segura, instruídos e ensinados nos mistérios do Filho e do Pai. Gregório de Nissa vê
qu_e fomos pelo próprio Senhor. "A fé dos cristãos ... na revelação a iniciativa benévola de Deus que confia seus
não· vem dos homens, nem pelos homens, mas por nosso segredos a suas testemunhas, os profetas e os apóstolos, e
Senhor Jesus Cristo, que é o Verbo de Deus, Vida, Luz e por seu intermédio, à humanidade. No Cristo e no Evan-
Verdade, Deus e Sabedoria, por sua própria natureza". En- gelho culmina a revelação. Então é o próprio Verbo que
carnou-se o Verbo para que os homens não mais se apoias- testemunha e nos introduz nos segredos divinos. Aos após-
sem nas suas próprias opiniões como se fossem verdade. tolos compete a missão de proclamar o mistério de pieda-
"Certos de que Deus se manifestou na carne, acreditemos de como uma Boa-nova.
nesse único verdadeiro mistério de piedade, que nos foi
transmitido pelo próprio Verbo, que pessoalmente falou III. SÃO JOÃO CRISóSTOMO
aos apóstolos". Se "o Verbo em pessoa nos dá um teste-
munho no Evangelho", devemos acreditar nele pois "que Na esteira de Basílio, Gregório de Nissa e Cirilo de
testemunha mais digna de fé que o próprio Senhor pode- Jerusalém, são João Crisostomo 13 , escrevendo contra os
remos encontrar? " ( C. Eunom. II: 4 5 ,466-46 7). anomeus, repete que Deus, mesmo depois da revelação,
Muitas vezes Gregório de Nissa apresenta a idéia de continua o Deus oculto e incompreensível.. Fala, porém,
revelação com o termo paulino mistério, isto é, o segredo de forma mais pastoral.
desde a eternidade oculto em Deus e manifestado pelo Deus é invisível, inenarrável, inescrutável, inacessível,
Cristo. É, como em são Paulo, o "mistério de piedade" (C. incompreensível, incircunscriptível, irrepresentável: será para
Eunom. II: 45 ,466-46 7 ) e o mistério da "economia da en- sempre o Abismo, a Escuridão. É radical essa incompreen-
carnação" ( C. Eunom. II: 45,582). Mistério que diversa- sibilidade. Atinge a todas as criaturas: o salmista, Isaías,
mente dos mistérios pagãos, destina-se essencialmente a ser Abraão, Moisés, os anjos. Inacessível não é apenas a essên-
promulgado. Assim Pedro revela daramente a economia ocul- cia divina, mas também sua presença no mundo, ou seja, o
ta do mistério. João é o arauto do mistério do conhecimento mistério de. seus caminhos, de seus desígnios e de sua reali-
de Deus. O mistério, enquanto revelado, é essencialmente a
"Boa-nova", o "mistério evangélico" (ln Ps. c. 8:44,516). 13 E. BouLARAND, La venue de l'homme à la foi d'apres S. Jean
Chega ao conhecimento dos homens pela palavra de Deus, Chrysostome (Rome, 1939); J. DANIÉLOU et F. CAVALLERA, Saint Jean
Chrysostome, Discours sur l'incompréhensibilité de Dieu ( "Sources chré-
a palavra do mistério, e os apóstolos são os "servidores tiennes 28", Paris, 1951), pp. 7-45; C. BAuR, Der Heilige Joannes Chry-
do mistério". No modo de falar de Gregório, a verdade sostomus und seine Zeit (2 vol. München, 1929-1930).
142 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES T~STEMUNHAS DA IGREJA GREGA 143

zação, tão impenetrável quanto sua transcendência. Quan- fan~; deve, na fé, acolher as palavras divinas. "Quando Deus
do os profetas afirmam ter visto a Deus, não viram senão fala, ou quando, faz milagres, devemos crer e obedecer".
sinais figurativos, na medida de sua fraqueza humana. Ante (Rom. Horn. 18,h2:60,574 ). S. João Crisóstomo não proíbe
o Incomprensível, . deve o homem reconhecer que ele nada ao cristão aprofundar sua fé; recusa, porém, as especulações
sabe, a menos que pretendesse poder chegar a um conhe- racionalistas. (Ep .. ad Tim. Horn. 1,3:62,507). Se Deus
cimento completo da essência divina (De incompr. Dei Nat. fala, deve o homem conformar sua vida aos ensinamentos
I-III: 48,701-728). divinos~ E, uma vez que Deus nos fala por seu Filho, "vi-
O perfeito conhecimento de Deus é privilégio exclu- vamos de uma forma que seja digna de tão grande honra.
sivo do Filho e do Espírito (Jo. Horn. 15,1 :59,98). Podem Seria ridículo, que, dignando-se Jesus Cristo falar-nos por si
penetrar o próprio Deus apenas o Espírito de Verdade "que mesmo e não mais por seus servos, não fizéssemos mais
perscruta as profundezas de Deus" ( lCor. 2,10) e o Filho que aqueles que nos precederam. Tiveram Moisés por mestre,
unigênito que vive no seio do Pai: "como Filho, como Mo- e nós temos por doutor o mestre de Moisés ... Jesus não nos
nogenes e como quem habita no seio do Pai, ele conhece per- trouxe uma doutrina celeste senão para que ao céu elevás-
feitamente todos os segredos do Pai" ( De incompr. Dei semos o nosso pensamento e para que imitássemos nosso
Nat. IV: 48,732). Conhece-o exata, plena, e inteiramente doutor, à medida de nossas forças e capacidades" (Jo. Horn.
(Jo. Horn. 15,2:59,98-100). 15,3:59,100).
Apesar de tudo, sabemos algo a respeito de Deus, pois Os profetas, que conheceram a Jesus Cristo antes mes-
ele falou aos homens "por s1 mesmo no começo" ( Gen. mo de sua encarnação, que souberam e anunciaram que ele
c. 1, Horn. 2,2:53,27-28), depois "pelos profetas", final- deveria vir para entre os homens (Jo. Horn ..8,1:59,66),
mente "pelo Filho", que "falou aos apóstolos e por eles em favor dele prestaram seu testemunho que a Escritura
a muitos" (Heb. c. 1, Horn. 1,1:63,15-16). Em Jesus Cris- conserva. Assim também os apóstolos são testemunhas do
to nos é dado o conhecimento do mistério oculto aos po- Cristo, mas do Cristo entre nós. Viram e ouviram o Cristo
vos e aos anjos. O que somente Deus conhecia, ele nô-lo desde o começo, comeram e beberam em sua companhia:
revelou em seu Filho Jesus Cristo (Col. Horn. 5,1-2;62,331- também eles testemunhâm o que viram e ouviram. Ins-
333). Foi Deus, pois, e não um homem quem nos ensinou a truiu-os Cristo, confiou-lhes seus segredos, comunicou-lhes
fé cristã (Rom. Horn. 27,1:60,643-664). A doutrina anun- sua doutrina (Act. Ap. Horn. 1,2-3:60,16-17). É missão
ciada por Cristo contém um conjunto de verdades que a in- deles divulgar no universo a doutrina que de Cristo rece-
teligência humana não poderia nem atingir nem suspeitar. beram. O que anunciam é a palavra viva do Cristo, o Evan-
Mesmo após a revelação continuam impenetráveis os misté- gelho, a Boa-nova, "isto é, a libertação das penas, o perdão
rios (Rom. Horn. 27,1;60,644-645). Os profetas e os após- dos pecados, a justiça, a santificação, a redenção, a adoção
tolos que receberam a revelação dos segredos .divinos pro- dos filhos de Deus, a herança de seu reino e a glória de
clamam, apesar de tudo, sua sabedoria incompreensível. nos tornarmos irmãos de seu Filho único" (Mt. Horn. 1,
Ante a imensidade de Deus, ó .homem é toniado pela 2:57,15). Se todos os atos do Filho têm por finalidade
admiração, pelo estupor como Zacarias, tremem os anjos salvar o homem, podemos dizer que o tema do Evangelho
num terror sagrado. Ante a santidade divina, a criatura é o Cristo e a economia da salvação pela cruz. Numa pa-
adora, glorifica e se cala. Ante Deus que fala ou se revela, lavra: é a história sagrada ou "a palavra da cruz" (Mt.
presta a homenagem da fé (De incompr. Dei Nat. I-III: Horn. 1,2:57,16). Os apóstolos, meros ministros do Evan-
48,705-720). Assim foi com Abraão: a seu exemplo, quan- gelho, transmitiram-no em sua pureza integral. Sua doutri-
do Deus fala, o homem deve apresentar-lhe um es- na conserva-se,· sem alteração, na Escritura e na tradição
pírito disponível e desembaraçado de toda sabedoria pro- da Igreja.
144 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

São João Crisóstomo nada nos apresenta de sistemá- 4.


tico sobre a revelação. Refutando os anomeus e nas suas
hoinilias sobre a Escritura tem, porém, ócasião, se não de TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA
explicar, pelo menos de afirmar e des~rever a revelação.
Contra os anomeus insiste na incompreensibilidade e ina-
cessibilidade de Deus. Só o Filho e o Espírito conhecem
perfeitamente a Deus. O que dele sabemos, nos vem pelos
profetas e principalmente pelo Cristo, o Filho do Pai que
veio trazer aos homens o conhecimento da economia sal-
vífica oculta aos anjos e às nações. Anunciada por Cristo
a Boa-nova da salvação, os apóstolos, suas testemunhas, re- I. TERTULIANO
ceberam a missão de pregá-la e transmiti-la à Igreja. Os
homens são convidados a dar resposta à mensagem de Cristo, Sendo jurista, Tertuliano 1 é um apaixonado da ver-
crendo e conformando sua vida à doutrina ouvida. dade. Para ele o problema do cristianismo é o da verdade
diante do erro (paganismo, as várias heresias) . O Cristo
fundara uma religião para levar os homens ao conhecimento
da verdade ( Apolog. 21,30). O único problema, pois, é
saber quem possui essa verdaçle, quem a pode reivindicar.
Justino procurava partir da filosofia, na qual Clemente
via uma correspondência com a Lei dos judeus. Tertuliano
recusa-se a admitir qualquer comunicação entre a filosofia
e a fé: "Tendo Jesus Cristo, já não queremos entrar em
discussões frívolas" ( De Pr. 7, 13 ) . As analogias encon-
tradas entre o ensinamento da Igreja e o dos filósofos de-
vem-se a empréstimos do Antigo Testamento ou do Evan-
gelho (Apolog. 47,2.13-14). De mais a mais, essa verdade
assim roubada foi corrompida e falsificada pelos filósofos
(Apolog. 47,9); rebaixaram a "doutrina salvífica" à ca-
tegoria de opiniões humanas (Apolog. 47,11), assimilaram
a "revelação divina" a uma "espécie de filosofia" ( Apolog.
46,2). Nem por isso se deve concluir que Deus só pode
ser conhecido por revelação. Tertuliano reduz a dois os
meios naturais para conhecermos a Deus: a argumentação
a partir da criação, que utiliza contra Marcião: "Não há
1 L. FuETSCHER, "Die natürliche Gotteserkenntnis hei Tertullian",
Zeit. Kath. Theol., .51 ( 1927): 1-35, 217-251; A. VELLICo, La Rivelazione
e le sue fonti nel "De Praescriptione haereticorum" di Tertulliano (Roma,
1935); .R. F. REFOULÉ, Tertullien, Traité de la prescription contre les
hérétiques ("Sources chrétiennes 46", Paris, 1957), pp. 11-84; A. n'Adis.•
La Théologie de Tertullien (Paris, 1905); M. SPANNEUT, Le sto'ícisme
des Peres de l'Église (Paris, 1957).
146 Ó TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
r
1

TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 147


outro sinal manifesto da existência de nosso Deus senão
mente instruídos por Cristo (De Pr. 20,3;21,3;22,3 ), por
toda a obra que criou" (Adv. Marc. I, 11; V, 16) ;_ e de-
ele enviados como doutores e mestres das nações (De Pr.
pois o testemunho espontâneo da alma, que ele maneJa co~-
tra os pagãos (Apolog. 17,5-6; Test. an. 2). Conheci- 8,14-15;6,4). O Espírito Santo, que foi seu doutor (~e
Pr. 8,14-15), o "vigário do Cristo" junto deles, conduzm-
mento bastante imperfeito se. comparado com o q1:1e nos
vem pela revelação ( De anima I ) . Entre um conheciment~ -os à plenitude da verdade (De Pr. 28,1-2). . ,
Pela resposta às objeções dos hereges, Tertuliano e
e outro, porém, há unidade de objetos; o mesmo Deus e
conhecido por duplo caminho: "Afirmamos que. Deus deve levado a precisar a posição singular dos apóstolo~ na ~co-
ser primeiramente conhecido pela natureza, depois reconhe- nomia da revelação. Objeta-se que os apóstolos nao sabiam
cido por ensinamento: pela natureza, em suas obras; por tudo, ou que, mesmo sabendo tudo, não ensinara~ t~do
ensinamento, pela pregação" (Adv. Marc. I, 18). Deus se para todos ( De Pr. 22 ,2 ) . Tertuliano responde pr~meira-
mente que os apóstolos tiveram um pleno conhecimento
faz nosso Mestre, seja pela criação, seja pela rev~lação; a
da revelação: "Quem, sendo sensato, acreditaria que eles
fé, porém, supre as deficiências dos dados naturais. "Para
tenham ignorado algo, eles que Cristo estabeleceu como mes-
que pudéssemos conseguir um conhecimento mais completo
tres, que foram seus companheiros, seus discípulos, seus
e mais profundo dele mesmo, de seus decretos e de suas
familiares, a quem explicava em particular todos os pontos
vontades", enviou-nos Deus seus profetas cujas palavras es-
obscuros, dizendo que lhes era dado conhecer os .segredos
tão na Escritura (Apolog. 18,1-5). Ainda mais, enviou-nos
que o povo não tinha o direito de conhecer?" (De Pr.
seu Filho, "a luz, o guia do gênero humano", que nos
22,3). E mais: Cristo enviou-lhes o Espírito e prometeu-
trouxe toda a verdade ( Apolog. 21, 7 ) . ·
-lhes "a posse de toda a verdade" (De Pr. 22,9). Essa ple-
O Cristo pregou sua doutrina (Apolog. 21,17-18),
nitude de conhecimento que possuíam, os apóstolos não a
instruiu seus apóstolos confiando-lhes a missão de pregar
reservaram para alguns iniciados. A idéia de um Evange-
em toda a terra ( Apolog. 21,23 ) . Nossos mestres são, pois,
lho oculto é alheia ao pensamento de Cristo e dos após-
os apóstolos do Senhor, que "fielmente transmitiram às na-
tolos: "O Cristo falou publicamente e jamais alude a uma
ções a doutrina recebida do Cristo" (De Pr. 6,4). A ver-
doutrina secreta. Impusera mesmo ( a seus discípulos) pre-
dade vem-nos do Cristo, fonte da revelação, pelos apósto-
gar à luz do dia e sobre os tetos o que tinham ouvido
los, mediadores privilegiados: "Ninguém conhece o Pai
na obscuridade e no segredo" (De Pr. 26,2-5). Deve-se,
senão o Filho e aquele a quem o Filho o revelou. Ora, não
então, concluir que "não é crível não tenham os apóstolos
se sabe que o Cristo o tenha revelado a outros que não os
conhecido plenamente a doutrina que anunciavam ou que
apóstolos que enviou a pregar - pregar, evidentemente, o
não tenham entregue a todos a regra total da fé" ( De
que lhes tinha revelado" ( De Pr. 21, 1-2 ) . Por sua vez, Pr. 27,1).
os apóstolos confiaram a doutrina recebida às igrejas que
Se o Cristo "uma vez por todas confiou" a seus após-
"fundaram pessoalmente e pessoalmente instruíram, seja de
tolos "o Evangelho e uma mesma doutrina" (De Pr. 44,
viva voz, como se diz, seja, mais tarde, por cartas" (De Pr.
9), se não há outros mediadores da revelação além
21,3 ) . Segue-se que uma doutrina é verdadeira se concor-
dos apóstolos, a conseqüência é que com eles terminou a
de com essas igrejas, pois "contém evidentemente o que as
revelação. A Igreja deve conservar intato o depósito
igrejas receberam dos apóstolos; os apóstolos, do Cristo; o
que lhe foi confiado. Qualquer doutrina s~rgida depo~s
Cristo, de Deus" (De Pr. 21,4;20,4-8;37,1 ). Tertuliano
da pregação apostólica, ou seja qualquer novidade doutri-
nunca deixa de repetir que a · Igreja recebeu dos apóstolos
nal será apenas erro. O que é primitivo, é apostólico; o
a verdade. Os apóstolos, e eles exclusivamente, são o canal
qU:~ é posterior, herético (De Pr. 35,3-4). Aliás, a história
autêntico da revelação ( De Pr. 6,4); eles foram especial-
confirma que as doutrinas de Valentim, Marcião, Apeles,
148 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
r TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 149
são fenômenos recentes (De Pr. 29-30). Nenhum desses jas "transmitem" (De Pr. 28,4;37,2). Percebe-se, porém,
hereges pode apresentar de seus bispos uma lista que che- a difere.nça entre os termos. O Cristo transmite como fonte
gue até os apóstolos (De Pr. 32,1 ). As igrejas, pelo con- de verdade; os· apóstolos, como mediadores; as Igrejas,
trário, receberam dos apóstolos sua doutrina, como uma como depositárias. Os apóstolos receberam a doutrina trans-
herança direta ( De Pr. 37 ,5 ) . Definitivamente, é a apos- mitida pelo Cristo (De Pr. 21,4) com o privilégio exclu-
tolicidade de uma doutrina que constitui o critério de · sua sivo de as transmitir às igrejas por eles fundadas, enquanto
verdade (Apolog. 47,10; Adv. Marc. 1,1 ). E a apostolici- mestres e doutores. Às igrejas compete apenas o direito de
dade firma-se pela sucessão contínua desde os apóstolos. integralmente transmitir a doutrina apostólica, através dos sé-
Ambos os argumentos mutuamente se condicionam. culos, como uma herança, um bem de família que passa intato
Os termos com que Tertuliano designa a revelação obje- de pai para filho (De Pr. 36,4-5). As igrejas "apostólicas"
tiva nos esclarecem sobre sua natureza. Em sua forma reali- são o receptáculo da tradição. Só elas receberam a herança
zada a revelação é em primeiro lugar "a doutrina única e e para conhecer a verdade basta interrogá-las (Adv. Marc.
precisa" ensinada pelo Cristo, a qual somos convidados a I, 21 ).
aceitar pela fé ( De Pr. 9 ,3 ) . Para marcar o seu caráter Para Tertuliano a doutrina revelada e transmitida iden-
normativo, chama-a Tertuliano "a regra" dada pelo Cristo tifica-se, praticamente, com as Escrituras. Após a ascensão
aos apóstolos, de uma vez para sempre (De Pr. 44,9), e os apóstolos tinham a missão de ensinar as igrejas, seja de
por eles comunicada a todos os cristãos (De Pr. 27,1 ), viva voz, seja por escrito ( De Pr. 21,3). São duas formas de
como "regra de fé" ( De Pr. 12 ,5 ) , "regra de verdade" ensino, não dois ensinamentos diversos. Tertuliano não
( Apolog. 4 7, 1O) . Designa-a ainda como "disciplina" no deixa de salientar o acordo fundamental da doutrina e da
sentido de doutrina, recebida de Cristo (De Pr. 6,4 ), a
Escritura: alteração sofrida por uma traria a alteração d3
"Evangelho" (De Pr. 7,12), "doutrina" por excelência, em outra. A "integridade da doutrina" não se entende "sem a
oposição às heresias ( De Pr. 8, 15 ) , "doutrina do Cristo" integridade dos meios que permitem ensiná-la", ou sejam, as
(De Pr. 8,3;26,5), "doutrina católica" (De Pr. 20,2), Escrituras (De Pr. 38,3 ). Não se pode pois fazer a opo-
"verdade" (De Pr. 12,1 ), "mistério" enquanto verdade sição entre Escritura e· doutrina: idêntico é seu conteúdo.
sagrada e misteriosa (De Pr. 20,9), "luz" (De Pr. 26,5), Contudo, não basta apenas a posse material da Escritura:
"palavra de Deus" (De Pr. 26,5), "pregação" (De Pr. é preciso .ter recebido dos apóstolos a sua autêntica signifi-
23,10), "depósito" (De Pr. 25,3), "fé" ou "fé cristã" cação. As escrituras têm apenas um sentido: o que lhes
(De Pr. 19,3), "verdadeira fé" (De Pr. 44,12). A reve- foi dado pelos apóstolos e ensinado às igrejas apostólicas.
lação é, pois, entendida como uma doutrina, um ensina- :é preciso ler a Escritura na Igreja.
mento do Cristo aos apóstolos, por eles transmitido às Igre- Mesmo admitindo que o homem, a partir da criação
jas, como verdade absoluta a ser guardada intata como um e pelo testemunho espontâneo da alma "naturalmente cris-
depósito. tã", possa chegar a Deus por uma via demonstrativa, Ter-
Com isso chegamos ao cerne das preocupações de Ter- tuliano espera da revelação o conhecimento autêntico de
tuliano: para ele o importante não é saber se existe uma Deus. Sendo jurista, mostra-se ele menos atento à dimen-
revelação, mas saber onde encontrá-la e como atingi-la. Daí a são históricà e ao progresso da revelação que à sua posse.
atenção dada à idéia de tradição; para Tertuliano, como pa- A revelação sendo verdade, o essencial é possuí-la. Por isso
ra Irineu, tradição é a doutrina revelada, considerada, po- a idéia de tradição ou de transmissão da verdade tem pre-
rém, em sua passagem através das gerações. Dirá Tertuliano cedência sobre a idéia de manifestação. O que garante a
que Cristo "transmite" (De Pr. 37,1 ), os apóstolos "trans- posse da verdade é a continuidade existente entre o Cristo
mitem a doutrina de Cristo" (De Pr. 22,2;32,l ), as Igre- e os apóstolos, entre estes e as Igrejas por elefi fundadas. O
150 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 151

Cristo é a fonte da verdade; os apóstolos, testemunhas pri- que não remontam à "origem da verdade", "à fonte" que
vilegiadas do Cristo, os únicos mediadores, por ele instruí- é o Magistério divino ( De Unit. 3 ) .
dos, mandatários seus, assistidos pelo Espírito para chega- O mesmo se deve dizer da tradição apostólica. Uma
rem à posse de toda a verdade. As Igrejas por eles funda- tradição não tem valor a não ser que se apóie na "tra-
das e assistidas pelo Espírito são as únicas depositárias da dição evangélica e apostólica", isto é, aquela que "procede
verdade apostólica que conservam intata como uma herança. da autoridade do Senhor e do Evangelho, das prescrições e
A apostolicidade de uma doutrina, .que se concretiza na das epístolas dos apóstolos" (Ep. 74,2). Na querela ba-
sucessão ininterrupta dos bispos desde os apóstolos, é o tismal Cipriano observa que, se a verdade se desvia em
critério da verdade. Mais que Irineu, insiste Tertuliano algum ponto, é preciso voltar à origem, à tradição evangé-
no caráter concreto da sucessão apostólica, sobre a assis- lica e apostólica, tradição consignada na Escritura (Ep. 63,
tência do Espírito na transmissão da doutrina apostólica 2-10). Cipriano firma-se na "autoridade" da fé, na "ver-
e sobre o caráter normativo da doutrina revelada. A dou- dade" das Escrituras (Ep. 73,8;64,3;69,1 ). E as Escritu-
trina da verdade está consignada nas Escrituras, conforme ras encontram-se na Igreja. Deve-se-lhe, pois, indefectível
são lidas e entendidas pelas igrejas apostólicas. fidelidade: "Não podemos ter a Deus como pai, se não te-
mos a Igreja como mãe" (De Unit. 6).
Cipriano dá, pois, ao termo tradição o sentido ativo
II. SÃO CIPRIANO
e forte de primeira comunicação da verdade, ou seja: reve-
lação. A fonte, a origem da verdade cristã é a tradição evan-
gélica e apostólica ou o ensinamento do Cristo e a pregação
Cipriano 2 para designar a ação reveladora adota o dos apóstolos.
termo tradição. Na origem e na fonte do cristianismo en-
contramos a tradição de Deus, do Cristo e dos apóstolos
(Ep. 67,5;74,2.10; De Unit. 3.12). Ao refutar o erro de III. SANTO AGOSTINHO
alguns bispos quanto ao rito eucarístico, apresenta-lhes a
"tradição" autêntica e primitiva do Senhor (Ep. 63,2-10). É de são João que santo Agostinho 3 toma emprestado
O verdadeiro discípulo não se deve afastar dos ensinamen- os termos com que exprime a idéia de revelação. O centro
tos do Mestre: "nem o próprio apóstolo, nem um anjo do de cristalização de seu pensamento é o Cristo, Caminho e
céu podem anunciar ou ensinar diversamente o que o Cristo Mediador.
ensinou e os apóstolos anunciaram" (Ep. 63,11 ). Não há Apesar de uma passagem de sua obra que parece afir-
senão um Mestre que deve ser ouvido, o Cristo, (Ep. 63, mar o contrário (De Gen. ad litt. XII, 28-34), o pensa-
14 ) , que é o próprio Filho a nos falar e abrir o caminho mento de Agostinho é que ninguém, aqui em baixo, viu a
da vida ( Dom. Orat. 1). Devemos "observar e conservar Deus (Ep. Jo. tr. 3,17). Moisés viu, não a essência divina,
o que o Senhor nos ensinou" (Ep. 63,17), guardar a ver- mas sinais figurativos, "criaturas que traziam a marca de
dade da tradição do Senhor" (Ep. 63,19). "Devemos obe-
3 Sobre santo Agostinho e o tema da revelação, dr.: M. OLTRA,
decer a seus preceitos e avisos" ( De Unit. 15; Dom. Orat.
"Como se conosce la revelación sobrenatural según San Agustín", em
1), a seu "magistério" ( De Unit. 15), pois seu Evangelho Augustinus, 3 ( 1958): 281-289; A. C. DE VEER, "Revelare-Revelatio",
é luz, verdade, ensinamento de Deus (De Unit. 22.10.8). em Recherches augustiniennes, 2 ( 1962): 331-357; M. PoNTET, Saint
Hereges e cismáticos são os que se afastam do Cristo, por- Augustin: sermons sur saint Jean (Namur, 1958); A. D. R. PoLMAN,
T he W ord of God according to Saint Augustine ( London, 1961); R.
Hoolte, Béatitude et Sagesse (Paris, 1962); F. ARSENAULT, Le Christ Plé-
2 A. n'Aü:s, La théologie de Saint Cyprien (Paris, 1922). nitude de la Révélation (Dissertado ad lauream, PUG, Romae, 1965).
r
152 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 153
seu Senhor". Quando se diz no Antigo Testamento que multiplicação dos pães. Observa Agostinho por ocasião da
Deus apareceu a nossos Pais, devemos pois entender que cura do paralítico: "Esse poder e essa bondade procuravam
as aparências corporais sob as quais se mostrou foram pro- fazer que as almas compreendessem, por esses atos, os en-
duzidas pelos anjos que falavam e agiam como se fossem sinamentos referentes à salvação eterna; muito mais isso
Deus em pessoa, ou que tomavam emprestado das criaturas o que dar aos corpos a saúde transitória de que talvez care-
que eles mesmos não eram (De rin. III, 11,27). Do teste- cessem" (Jo. tr. 17 ,l).
munho de Cristo recebemos o que conhecemos da vida ín- A palavra do Cristo não é uma palavra humana: está
tima de Deus. Mesmo o conhecimento de Deus autor do dotada de dupla dimensão, exterior e interior, pela graça
universo, ao qual podemos chegar pela consideração do que acompanha e vivifica a doutrina- anunciada. Agostinho
mundo criado, é incomparavelmente mais fácil pela fé ( De desenvolve esse pensamento no comentário a Jo. 6,44:
Util. cred. 10,24). Foi para permitir que o homem, de "Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair", e no
olhos tantas vezes anuviados pelo pecado, marche com se- De Grafia Christi, escrito contra Pelágio. "Chegar ao Cris-
gurança na verdade que o Filho de Deus se encarnou, tor.- to", é experimentar a atração do Pai, é acreditar (Jo. tr.
nando-se assim nosso Caminho e nossa Meta ( De Civ. 26,5). Assim Pedro confessou o Cristo por uma "reve-
Dei XI, 2). lação" do Pai: "revelação que outra coisa não é que uma·
O Filho, que está no seio do Pai, no-lo dá a conhecer atração". Trata-se de um dom (Jo. 6,65). Diz ainda o
(De Trin. VIII, .3; Jo tr. 47,3 ). Ele é a "Sabedoria ge- Cristo: "Todo aquele que ouviu o Pai e recebeu o seu en-
rada por Deus Pai", que manifesta aos homens os "se- sinamento vem a mim" (Jo. 6,45). Não é pois o Cristo
gredos paternos" ( De fide et symb. 3 ,3). Para Deus, re- que fala e que é o Mestre? Responde Agostinho: "O Fi-
velar significa "falar" à sua criatura (Jo. tr. 21,7). O lho falava, o Pai ensinava", pois ensina quem é escutado:
Filho de Deus desceu a nós para anunciar-nos seu Evan- "O Pai ensina aquele que escuta seu Verbo" (Jo. tr. 26,8).
gelho: devemos pois acreditar nas palavras que se dignou Quem ouve o Verbo é ensinado pelo Pai, por ele atraído:
dizer-nos ( Jo. tr. 22,1). Fazendo assim seu Pai conhecido "Aprendei, pois, a ser atraídos ao Filho pelo Pai, e para
das nações, Cristo o glorifica (Jo. tr. 1O5, 1 ) . isso escutai o seu Verbo". O Cristo faz ouvir sua palavra,
· A revelação não é a comunicação aos homens de uma mais é o Pai que possibilita ao homem acolhê-la por uma
verdade abstrata: insere-se no tempo e toma a forma de uma atração, em direção ao Filho, que ele produz na alma.
história: "Nesta religião o ponto essencial que se deve admi- Acolher as palavras do Cristo, observa ainda Agostinho, não
tir é a história e a profecia do modo como a Providência é apenas ouvi-las externamente, "com os ouvidos do corpo,
divina realizará no tempo. a salvação do gênero humano, mas no fundo do coração", como os apóstolos (Jo. tr. 106,
restaurando-o e renovando-o para a vida eterna" ( De vera 6). Ouvir com os ouvidos interiores, obedecer à voz do
rei. 7 ,13). A Cidade de Deus descreve o desenvolvimento Cristo, crer: é tudo a mesma coisa (Jo. tr. 115,4 ). Quem
dessa revelação no tempo, história santa da salvação anun- não adere ao Cristo, ainda que tenha ouvido exteriormente
ciada no Antigo Testamento e realizada em o Novo. a palavra do Cristo, não ouviu a voz do Pai, não aprendeu
Realizada numa economia de encarnação, a revelação do Pai ( De Gr. Christi I, 14, 15 ) . Insiste: a palavra que
utiliza todos os caminhos da carne. O Cristo proclama seu ressoa externamente nada vale se o Espírito do Cristo não
Evangelho tanto pela ação como pela palavra: "ensinamen- age internamente para nos fazer perceber a verdade da
to direto ou figurado, usando a palavra, gesto, o sinal sa- palavra ouvida: "Jesus Cristo é nosso Mestre e sua unção
grado" ( De vera rel. 17 ,3 3 ) . "Jesus Cristo é o Verbo nos instrui. Faltam essa inspiração e essa unção? Em
de Deus; toda ação, pois, do Verbo é para nós uma pala- vão ressoam as palavras em nossos ouvidos" (Ep. Jo. tr.
vra" (Jo. tr. 24,2). Nesse contexto fala do milagre da 3, 13 ) . Essa graça da fé, concebe-a Agostinho como uma
154 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
r
1 TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 155
inspiração e iluminação (Ep. Jo. tr. 4,8; De Gr. Christi 1 para nós: Caminho que leva à Verdade e à Vida (Jo. tr.
I, 14,15). É ao mesmo tempo atração e luz. Atração que 34). Verdade e Caminho: títulos que resumem para Agos-
solicita as potências do desejo, luz que faz ver no Cristo tinho todo o mistério do Cristo. O Cristo é Caminho para
a Verdade viva. Seguindo o modo de ver de Agostinho, a Verdade e a Vida. Verdade e Vida, tomou a carne para
o Concílio de Orange dirá que ninguém pode aderir ao ser nosso Caminho ( Serm. 141,4).
Evangelho e fazer um ato salutar sem 1' uma iluminação e O Cristo é, pois, ao mesmo tempo, Meta e Caminho:
uma inspiração do Espírito Santo que dá a todos a suavi- o Deus revelado e aquele por quem Deus se revela. O que
dade da adesão e da crença à verdade" (D. 180). De nos ensina é sua doutrina, mas doutrina que tem como
Deus o homem recebe um duplo dom: o da doutrina e o da ob~eto o próprio Cristo; "Jesus Cristo prega Jesus Cristo,
graça para aceitá-la na fé (De Gr. Christi I, 10,11;26, pois que ele mesmo é o objeto de sua pregação" (Jo. tr.
27;31,34). 4 7 ,3). Pessoalmente é "a Doutrina do Pai, se ele é o
Agostinho atribui ao Cristo revelador os títulos con- Verbo do Pai" (Jo. tr. 29,3;30,6). A do_utrina conside-
sagrados pelos Sinóticos e por João. Conforme a profecia de rada em seus enunciados designa a doutrina considerada
Moisés, o Cristo é profeta: "Os tempos precedentes me- em sua realidade. E a realidade é o Verbo de Deus, Doutri-
receram ouvir os profe tas inspirados e repletos do Verbo na do Pai, Sabedoria de Deus, Filho de Deus. "Aplicai-
de Deus; quanto a nós, merecemos ter como profeta o pró- -vos, então, à doutrina de Jesus Cristo e chegareis ao Verbo
prio Verbo de Deus. Ora, o Cristo é profeta e Senhor de Deus" (Jo. tr. 29,4). Da revelação-doutrina à revela-
dos profetas" (Jo. tr. 24,7). Agostinho tem preferência ção-mistério vai o dinâmico movimento da revelação.
pelo título de Mestre. O Cristo é o Mestre do Antigo e O que Cristo revela é ele mesmo, mas é também o
do Novo Testamento. Os profetas ouviram sua voz (Jo. Pai: "É por seu próprio Filho que ele ( o· Pai) revela
tr. 45,9), outro Evangelho não existe além do que nos o Filho e é por seu Filho que ele se revela" (Jo. tr. 23,
ensinou por si mesmo e por seus apóstolos ( Ep. ad. Gal. 4). Revelando-se, o Pai quis exprimir apenas uma coisa
exp. 4). Sendo o Mestre cuja luz brilha a nossos olhos, o essencial: seu amor. O Cristo "veio principalmente para
Cristo ensina as verdades da Salvação (Jo. tr. 17,15;21,7). fazer o homem conhecer quanto Deus o ama, para fazer-
Devemos então agarrar-nos "firmemente aos ensinamentos -lhe saber que se deve inflamar de amor por aquele que
que ele mesmo determinou" ( J o. tr. 7, 7 ) . De forma ainda amou primeiro" (De Cat. rud. 4,8; De Gr. Christi I,
mais universal,· o Cristo, sendo Verbo de Deus, é a única 26,27).
luz das almas, o princípio de todo conhecimento, seja na- . O Cristo é a Luz; os apóstolos e os profetas são teste-
tural, ou sobrenatural. Ele é o Mestre interior. munhas da Luz. Apoiados em seu testemunho é que acredita-
Agostinho gosta de definir o Cristo com os termos mos nas realidades invisíveis ( De Civ. Dei XI, 3 ) . Os profe-
joaninos de Caminho, Verdade, Luz, Vida. O Cristo não tas são chamados "profetas devido aos acontecimentos fu-
apenas ensina a verdade, é a Verdade (Jo. tr. 37,7). É a turos q_ue prenunciaram ou de certa maneira prefiguraram,
Luz. E aqui a metáfora agostianina de iluminação se en- acontecimentos referentes à Cidade de Deus e ao Reino dos
contra com a Escritura. Luz verdadeira, o Cristo é fonte cé:1s" ( !)e Civ. Dei XVII, 1 ) . Também o passado lhes
de luz. Por ele iluminado, o homem pode tornar-se, ele foi mamfestado. O profeta não estava presente à criação,
também, testemunha da Luz e arauto do Dia: assim o fo- mas lá estava a "Sabedoria de Deus", por quem tudo foi
ram João Batista, os profetas, os apóstolos. O Cristo é feito, que "internamente narra suas .obras, sem rumor de
finalmente Vida e fonte de Vida (Jo. 14,6). Os títulos de palavras" ( De Civ. Dei XI, 4). No De Gen. ad litt. 12,
Verdade e de Vida designam a divindade do Cristo. Pela 6-27 Agostinho explica sumariamente como Deus age na
encarnação é que o Verbo de Deus se tornou Caminho alma do profeta. Distingue tres tipos de visões: corpo-
156 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

rais, espirituais ou imaginativas, e intelectuais, conforme o


objeto da _visão é percebido pelos sentidos, pela imagina-
r
1
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 157
A fé, fecundada pela caridade e por seu dinamismo próprio,
expande-se em conhecimento sempre mais penetrante dos
ção ou pela inteligência. D.istingue ainda na profecia a mistérios. A recompensa imediata da fé é a inteligência.
acceptio das imagens e a sua interpretação. O que caracte- Mas a fé não é visão. Por ela, "esforça-se a alma por che-
riza o verdadeiro profeta é a capacidade de interpretar os gar até a visão, em que os corações santos e perfeitos co-
sinais, graças à luz que recebe. O profeta é aquele "cuja nhecem a bondade inefável cuja plena intuição constitui
alma é iluminada para compreender". Não apenas percebe a suprema felicidade. . . O começo é a fé; o termo, a visão.
as figuras, os sinais,, mas tem também "a interpretação das Eis em resumo toda a nossa doutrina" (Enchir. 1,5). Vi-
imagens". Assim Daniel: "As imagens corporais foram vemos na economia do testemunho e da fé, esperando a
produzidas em seu espírito; o sentido, foi-lhe revelado à visão, quando os profetas, os apóstolos, o Evangelho se
alma" (De Gen. ad litt. XII, 9). Santo Tomás voltará a calarão. "Já não precisaremos de sua luz, quando esses
isso: o mais importante na profecia não são as representa- homens de Deus que no-la dispensavam participarem co-
ções, mas a luz para julgá-las, corretamente, para perceber o nosco da visão da luz verdadeira e esplêndida" dp próprio
sentido entendido por Deus. Verbo (Jo. tr. 35,9).
Verbo de Deus, "tendo falado primeiro pelos profetas, Como os outros Padres, também Agostinho não tratou
falou por si mesmo, depois pelos seus apóstolos, na medida ex professo do conceito de revelação, que, porém, está oni-
em que o julgou necessário" (De Civ. Dei XI, 3 ). Os presente em sua obra. Em termos joaninos, Agostinho afir-
apóstolos são testemunhas do Cristo, pois "viram o Senhor ma que a visão de Deus agora nos é impossível. O mediador
presente na carne, recolheram as palavras de seus lábios de toda revelação é Jesus Cristo, Verbo de Deus, Filho
e anunciaram-nos o que tinham visto e ouvido (Ep. Jo. tr. de Deus, que por suas palavras e ações veio manifestar-nos
I, 3-4). Receberam do próprio Cristo a missão de pre- o 1rvangelho da Salvação. Sua mensagem, porém, não atinge
gar ao gênero humano "suas ações e suas palavras" ( De Cons. seu efeito se o homem, atraído pelo Pai, não abre seu cora-
Evang. I, 16; Ep. Jo. tr. 4,2). A palavra dos apóstolos é ção à palavra externamente ouvida. A palavra exterior do
pois a palavra de Deus que se deve crer (Jo. tr. 109,5). Cristo, a iluminação e a inspiração do Espírito formam a
Palavra que inicialmente foi pregada (Jo. tr. 109,1), fiel- única palavra de Deus. Tendo em conta seu papel na re-
mente escrita depois. Deve-se receber o relato dos Evan- velação, o Cristo é chamado Profeta, Senhor dos profetas
gelhos como se a mão do próprio· Salvador o tivesse escrito e principalmente Mestre. Ensina a verdade e ao mesmo
(De Cons. Evang; I, 35. 54 ). Encontramos assim a dou- tempo é a Verdade, Deus que revela e Deus revelado, Meta
trina que devemos crer, na palavra apostólica "chegada ~té e Caminho. Sua doutrina refere-se a ele mesmo, que é em
nós, por onde quer que se estenda o império da Igreja" pessoa a Doutrina do Pai, Mistério revelado. O que revela
(Jo. tr. 109,1; De fide et symb. I, 1 ), e na Escritura que é sua própria pessoa e por si mesmo revela o amor do
a contém (Enchir. I, 4). Os apóstolos, a Igreja, a Es- Pai. Os profetas e apóstolos participam de sua Luz: Luz
critura: são os elos que rios unem ao Cristo e que garantem que anunciam e da qual prestam testemunho, pois que a
a autenticidade da fé católica. Aos· que procuram a ver- viram e ouviram. Atingimos a palavra de Cristo, objeto
dade _Agostinho aconselha seguir "a regra católica que, de nossa fé, pela palavra apostólica consignada na Escri-
do Cnsto em pessoa, veio até nós pelos apóstolos e passará tura e proclamada pela Igreja. Agora caminhamos na fé,
a nossos descendentes" ( (De Util. 8,20). fé que suspira pela visão, quando a Luz do Verbo absorverá
. "É a ~é a resposta à pregação do Evangelho pela Igre- as pálidas luzes da fé.
Ja: Ouvimos o Evangelho e demos a nossa adesão; pelo
Evangelho de Jesus Cristo, chegamos à fé" (Jo. tr. 16,3).
158 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 159
Padres oportunidade para salientar a harmonia e o pro-
CONCLUSÕES
gresso da revelação, obra de um só e único Deus por seu
Logos.
l. Onipresença do tema da revelação No IV século, por fim, a heresia de Eunômio levou os
Capadócio~ e são João Crisóstomo a tornar mais preciso
Sem contestação o tema da revelação ocupa um pri- o pensamento tradicional sobre o conhecimento de Deus.
meiro plano na consciência cristã dos tres primeiros séculos.
Os cristãos são os que conhecem a Deus. O Incognoscível
saiu de seu mistério e manifestou-se aos homens: primeiro 2. Conhecimento natural e conhecimento sobrenatural
ao povo judeu, pela Lei e pelos profetas, depois à humani-
dade toda pelo Cristo, Verbo encarnado, que veio pessoal- Os Padres da Igreja afirmam constantemente que Deus
mente contar-nos os mistérios do Pai. Esse grande in- está além de qualquer definição ou compreensão: inefável
teresse pelo tema da revelação tem diversas causas: e incompreensível. Justamente enquanto Deus é incognos-
a) As primeiras gerações cristãs estão ainda sob o cível, percebem eles a necessidade da revelação. O Conhe-
ímpacto da grande epifania de Deus no Cristo. As teste- cimento de Deus, em sua natureza íntima, não se obtém a
munhas desse acontecimento assombroso, ou seus discípulos, não ser por graça. Só Deus pode instruir-nos a respeito de
vivem ainda e proclamam o Evangelho da salvação. Como Deus, dizem todos com Atenágoras.
poderia, então, o impacto desse:: acontecimento deixar de De forma não menos constante afirmam também que
repercutir tanto nos escritos como nas instituições? Deus pode ser conhecido até certo ponto, mesmo sem a re-
b) A preocupação de atingir os pagãos leva os pensa- velação, por um duplo caminho. A partir do mundo visível
dores cristãos a procurar pontos de aproximação entre o pode-se deduzir a existência de seu autor, e conceber algo
cristianismo e o pensamento contemporâneo. Por isso os de seus atributos: poder, sabedoria, beleza, providência. O
apologetas tomarão o conceito de Logos, comum a todas as segundo caminho é o da consciência ou o do testemunho
religiões do Império e aos sistemas filosóficos do século espontâneo da alma. Os Padres, contudo, insistem na pre-
III, para fazer a teologia do Logos verdadeiro, de sua vida cariedade desse conhecimento natural em confronto com
no seio da Trindade e de suas manifestações pela criação, o da revelação. Salientam, afinal, que entre um e outro
pela Lei e pelo Evangelho. Poderão assim ser compreen- não há oposição mas continuidade, já que o mesmo Logos
didos pelos círculos cultos e levar ao Cristo novos apóstolos. se manifesta num e noutro.
c) Também os primeiros hereges levaram os pensa-
dores cristãos ao terreno da revelação. Os gnósticos, em certo
3. Os dois Testamentos: unidade e progresso
· sentido, elevam ao máximo o conceito de revelação, mas
o deformam ao mesmo tempo. Pensam que a salvação se
No começo do cristianismo um dos maiores problemas
reduz à gnose, em vez de ser também um conhecimento.
é o da relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Os
Os escritores cristãos mostram que o cristianismo traz a
judaizantes querem preservar a primazia da revelação pro-
verdadeira gnose, evidenciando, porém, que é ao mesmo
tempo e inseparavelmente vida e conhecimento. fética, enquanto os marcionistas estabelecem oposição entre
Entre os gnósticos os marcionitas consideram o Cristo ª°:bos os Testamentos. Os Padres tiveram, pois, que exa-
mmar a relação entre a Lei e o Evangelho. Primeiramente
como o revelador de um Deus totalmente novo, desconhecido
salientam a unidade profunda de ambos. Um só e mesmo
do mundo judeu. Estabelecem uma diferença radical entre
Deus é o autor da revelação por seu Verbo ou Logos, sen-
o Deus do Antigo e o do Novo testamento. Têm assim os
do a criação, as teofanias, a Lei, os Profetas, a encarnação,
160 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 161

etapas dessa única e contínua manifestação de Deus através Começou com os patriarcas. A verdade do Cristo já era
da história humana. conhecida pelos profetas do Antigo Testamento.
Doutra parte salientam, não menos claramente, o pro-
gresso de uma revelação à outra. Progresso que cada um 5. As etapas da revelação
considera de modo um tanto diferente. Segundo Justino
temos uma manifestação parcial e obscura do Logos no Os Padres evocam constantemente as grandes etapas
Antigo Testamento, plena em o Novo. Irineu vê no An- da revelação e salientam seu caráter profundamente histó-
tigo Testamento uma preparação, educação da humanidade, rico. Dessa visão são sempre os mesmos os pontos prin-
esboços e promessas da encarnação; em o Novo Testamen- cipais: dum lado a Lei e os profetas; doutro, os apóstolos
to, realização, presença e dom; primeiro, disciplina externa, e a Igrej~; no centro e no ápice, o Cristo. Com outras pa-
depois, espírito de adoção. Conforme Clemente de Alexan- lavras: preparação do Cristo, vinda do Verbo encarnado,
dria: enigmas e mistérios no Antigo; explicação da profecia missão dos apóstolos, extensão da salvação no mundo e no
em o Novo. Para Orígenes, temos no Antigo Testamento o tempo pela Igreja. Há, porém, variações .no esquema. Os
çonhecimento dos .mistérios; em o Novo, a realização e posse; apologetas dão lugar preponderante aos profetas. Inácio
passagem das sombras e das imagens à verdade, da letra de Antioquia, Irineu, Tertuliano, Cirilo de Alexandria, João
e da história ao espírito. Crisóstomo insistem no papel dos apóstolos. Inácio de An-
tioquia, Irineu, Tertuliano, Cipriano, Orígenes, Agostinho
4. Economia e pedagogia estabelecem um estreito nexo entre a Igreja e o desenvol-
ver-se da revelação. Clemente de Alexandria considera a filo-
Os padres, principalmente Justino, Irineu, Clemente, sofia dos gregos como um Testamento especial, equivalente
Orígenes, Basílio, Gregório de Nissa, Agostinho, insistem à Lei dos judeus. Para todos, culmina a revelação no Cristo,
no caráter econômico da revelação. · Ela apresenta-se como o Filho do Pai, o perfeito revelador, o Verbo ou Logos
um plano de salvação, sapientíssimo, que Deus concebeu de Deus encarnado. ·
des~e toda a ~ternidade e realizou pacientemente segundo
cammhos previstos, preparando a humanidade, fazendo-a 6. O Cristo e a revelação
a1:1adurecer, r~velando-lhe progressivamente os desígnios di-
vmos na medida em que o podia suportar. Comprazem-se De modo geral os Padres, quando falam em revelação,
os Padres em traçar a história das iniciativas divinas a acos- refere~-se ao fat? de Cristo, o Verbo de Deus, a Imagem
tumar os homens à sua presença, às investidas da graça do Pai, ter mamfestado o Pai e seus desígnios de salva-
sobre a natureza humana. ção, usando, para comunicar aos homens esse conhecimento
Prende-se a essa idéia a do retardamento na vinda do todo~ os cami~hos da encarnação, tanto a palavra com~
Crist~. Afirma a Epístola a Diogneto que os homens deviam a açao: As mais das vezes, contudo, é à palavra humana
experimentar sua impotência antes que conhecessem a plenitu- do Cristo que eles atribuem o papel principal. Dentro
de da salvação ( perspectiva dramática). Irineu, Clemente, dessa concepção geral podemos distinguir acentuações di-
Orígenes ( em algumas passagens ) , desenvolvem a tese da versas, tomando, porém, o cuidado de não torná-las rígidas
pedagogia divina. · demais:
J?eus educa a humanidade, preparando-a para receber . a) Inácio de Antioquia, Atanásio e prin~ipalmente
a plemtude dos dons divinos. da encarnação ( visão otimista) . Irmeu falam da revelação em termos realistas e bíblicos.
Agostinho e Orígenes ( noutros passos) mal se .propõem o Segu~d~ Isaías 40,5, o homem deveria, quando da época
problema, pois a Igreja é coextensiva com a humanidade. messiamca, ver a Deus. Irineu vê no Cristo a realização
6 - Teologia da .revelação
r
162 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 163
dessa promessa. Jesus Cristo é a epifania existencial d:
Deus. No Filho que se tornou visível e palpável, é o Pai ( Inácio de Antioquia), os mistérios do Pai (Agostinho).
que se nos mostra e manifesta. Revela o Pai ( Tertuliano, Irineu, Orígenes). Ele fala ( Orí-
b) No polo oposto encontramos uma teologia d~ cunho genes, Gregório de Nissa, Crisóstomo, Agostinh,o_). Faz
bastante grego, menos atenta ao papel da carne. E a po- compreender o Pai ( Orígenes). Testemunha ( Atanasio, Gre-
sição representada por Justino e em grande parte por Cle- gório de Nissa). Ele prega ( Tertuliano, Agostinho). Trans-
mente de Alexandria, que no Cristo vê principalment: o mite a verdade do Evangelho ( Tertuliano, Cipriano). Prin-
Mestre, fonte de toda verdade e, na revelação, a comunica- cipalmente, ele ensina ( Clemente de Roma, Justino, Ate-
ção da verdade absoluta, da verdadeira filosofia. nágoras, Epístola a Diogneto, Irineu, Tertuliano, ~ipriano,
c) Num meio termo podemos colocar Orígenes. Con- Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Cnsostomo,
forme ele Cristo revela enquanto por intermédio de Gregório de Nissa, Agostinho). Ele ilumina ( Justino, Cle-
sua carne podemos compreender, conceber, fazer uma idéia mente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Cirilo de Alexan-
do Verbo, e por ele, Imagem do Pai, podemos chegar a uma dria, Basílio, Agostinho).
idéia do próprio Pai. Como vemos, 'os alexandrinos vêem na revelação prin-
cipalmente uma iluminação. Para eles o Cristo é aquele que
7. Mediadores da revelação traz a luz às inteligências mergulhadas nas trevas. Nostalgia
platônica do mundo da luz e de sua contemplação pela
inteligência. ,
Os títulos dados ao Cristo, aos profetas e aos após-
tolos bem como os verbos empregados para indicar sua c) Os apóstolos são os mensageiros da Boa-nova, os
ação,' esclarecem-nos sobre o como os Padre entendiam a pregadores do Evangelho, os doutores e mestres das nações,
revelação. as testemunhas do Cristo. Eles pregam ( Policarpo, Epístola
a) Os profetas, além de seu título habitual de pro- a Diogneto, Irineu, Tertuliano, Cirílo de Alexandria, Orí- ,
fetas são também chamados instrumentos de Deus, teste- genes, Agostinho). Pregam e transmitem ( Irineu); trans-
munhas de Deus testemunhas da verdade, testemunhas do mitem ( Cipriano, Tertuliano); testemunham (Agostinho);
Cristo testemunhas da luz, discípulos espirituais do Cristo, ensinam ( Inácio de Antioquia, Atanásio, Cirilo de Alexan-
anunciadores do Cristo, mestres dos homens. Sua função dria, Tertuliano); iluminam ( Cirilo de Alexandria).
é anunciar o Cristo, anunciar os mistérios da salvação, anun- d) A Igreja guarda fielmente, conserva, ensina sem
ciar a verdade; testemunhar, ensinar as vontades de Deus. falhar e transmite. A idéia de tradição ocupa sempre o pri-
meiro posto.
b) Os apologetas dão ao Cristo títulos que vã~ de-
saparecer depois: chamam-no de anjo e apóstolo ( J1;1-stmo).
8. A revelação objetiva e seus nomes
O título mais freqüentemente empregado para designar o
Cristo como revelador é o de Mestre, universalmente em-
pregado principalmente a partir de Clemente. O Cristo A revelação, enquanto já realizada, recebe os seguin-
é o Verbo de Deus, o Filho encarnado, que veio par~ en- tes nomes: verdadeira sabedoria ( Clemente de Alexan-
sinar aos homens o caminho da salvação. Ele é o Cammho, dria), palavra de Deus ( Clemente de Roma, Tertulia-
o Guia, o Past~r, a Boa-nova em pessoa. Sua doutrina é no), revelação divina (Tertuliano), palavra de justiça
luz e vida para os homens. (Policarpo), palavra do Cristo ( Cirilo de Alexandria), pa-
O Cristo anuncia os desígnios de Deus (Justino), os lavra da cruz (Crisóstomo), Boa-nova ou Evangelho ( Cle-
mistérios de Deus ( Orígenes). Manifesta Deus ( Inácio de mente de Roma, Inácio de Antioquia, Tertuliano, Cirilo de
Antioquia, Atanásio), o Pai ( Irineu), os segredos de Deus Alexandria), pregação evangélica ou apostólica ( Cirilo de
Alexandria), mistério ( Tertuliano, Gregório de Nissa), pres-
164 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

crições, preceitos, mandamentos, vontades, estatutos de Deus


ou do Cristo (todos), ensinamentos, instruções, doutrinas,
doutrina, doutrina de fé, doutrina de salvação, doutrina evan-
gélica (todos), ensinamentos dos apóstolos ( Inácio de An-
tioquia), fé ou fé cristã ( Inácio de Antioquia, Irineu, Tertu-
liano), regra da fé, regra da verdade (Tertuliano), regra do
Evangelho ( Didaché), regra católica (Agostinho), tradição
terceira parte
( Irineu, Tertuliano, Cipriano), depósito ( Tertuliano, Cirilo
de Alexandria) . A NOÇÃO DE REVELAÇÃO
NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA
9. Dupla dimen.são da revelação

A maioria dos Padres da Igreja insistem que a palavra


da revelação não é uma palavra humana mas divina: é acom-
panhada pela graça. À ação exterior do Cristo que fala e
comunica a doutrina da· salvação, corresponde uma ação
interior que os Padres, seguindo a Escritura, chamam re-
velação, atração, audição interior, iluminação, unção, teste-
munho. Ao mesmo tempo que a Igreja anuncia a Boa-nova
da Salvação, o Espírito age internamente para tornar fecunda
e salutar a palavra ouvida. Orígenes, Agostinho, Cirilo de
Alexandria insistem nessa segunda dimensão da revelação.
Deve-se atribuir à ação interior dessa graça a adesão à men-
sagem do Evangelho.

1O. O frutificar da revelação

Os apologetas mostram.. se sensíveis principalmente


à comunicação da mensagem da verdade aos homens. Os
alexandrinos e os capadócios estão mais atentos à apropria-
ção subjetiva .da verdade e à sua frutificação na alma pela
fé e pelos dons do Espírito. A fé é o ponto inicial duma
penetração sempre mais profunda da verdade recebida, de
uma busca da inteligência, sempre mais intensa e ardente.
Contudo, a gnose cristã não é simplesmente um conheci-
mento, como o poderia ser para os gregos, mas é sabedoria
e vida. É inteligência dos mistérios orientada para a per-
feição espiritual sob a influência do Espírito e de seus dons,
que ilumina o crente e o transfigura, assimila-o ao Cristo,
e o torna capaz, por sua vez, de gerar gnósticos perfeitos.
A finalidade desta terceira parte é mostrar como os
teólogos, partindo dos dados da Escritura, da tradição e do
ensino da Igreja, descrevem e concebem a noção de revela-
ção. Nossa pesquisa começa com o século XIII: não que
os séculos anteriores não apresentem nada de interessante,
mas porque a teologia escolástica, atingida sua plena ma-
turidade, ao mesmo tempo que recolhe as riquezas do pas-
sado, ordena-as e submete-as a uma análise mais rigorosa
e metódica. Ainda mais que nosso plano não é fazer pesquisa
exaustiva através de todos os séculos e em todos os teólogos.
Quisemos apenas indicar as linhas básicas da teologia da
revelação, tais como se manifestam nas diversas escolas e
principalmente em seus teólogos mais importantes.
Examinaremos sucessivamente: 1. A tradição do sé-
culo XIII, representado por são Boaventura e santo To-
más; 2. Os teólogos pós-tridentinos, principalmente os do-
minicanos Cano e Bafies, os jesuítas Suarez e De Lugo, os
carmelitas de Salamanca; 3. Alguns representantes da re-
novação teológica do século XIX: Mohler, Denzinger, Fran-
zelin, Newman, Scheeben. Do período contemporâneo,
posterior à crise do modernismo, veremos o ensino comum
dos teólogos no início do século XX; mostraremos depois
como, há um quarto de século mais ou menos, se inicia uma
importante renovação da teologia da revelação.
Demoraremos mais na contribuição dos séculos XIII
e XX ( capítulos I e IV) que nos parece mais rica de ele-
mentos válidos para uma teologia da revelação. Nos ca-
pítulos II e III iremos apenas deixando balizas entre a
época medieval e a contemporânea.
1.
A ESCOLASTICA DO SÉCULO XIII

Não é preocupação dos escolásticos do século XIII


nem da teologia que os precedeu interrogar-se especialmente
sobre a natureza e as propriedades da revelação cristã. Santo
Tomás, por exemplo, fora de seus comentários escriturísti-
cos onde o texto sagrado inspirava seus passos, tem apenas
breves indicações quanto à revelação pelo Cristo e pelos .
apóstolos. O que principalmente prende a atenção é a re-
velação imediata dirigida aos profetas: carisma de conhe-
cimento, entendido como uma iluminação do espírito. Fa-
lam também da revelação objetiva ou do Evangelho, suma-
riamente, porém.

I. SÃO BOAVENTURA

São Boaventura fala · ocasionalmente da revelação em


seu Comentário das Sentenças de Pedro Lombarda e nos
seus comentários bíblicos; fala mais explicitamente no seu
tratado sobre a profecia 1 •

1. Revelação e economia da revelação

O emprêgo do termo "revelação" no Proemio ao co-


mentário das Sentenças indica-nos a inclinação de seu pen-
samento: a revelação é luz para o espírito. Quatro abismos,
diz ele, abrem-se ante o teólogo, quatro segredos ou mis-
1 S. Boaventura estudou a profecia num tratado inédito, atualmente
propriedade da Biblioteca Municipal de Assis, cod. 186. Cfr. F.-M. HEN-
QUINET, "Un bróuillon autographe de S. Bonaventure sur le Commentaire
des Sentences", Études franciscaines, 44 ( 1932): 633-655; 45 (1933):
59-81.
170 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

térios: o mistério de Deus e de sua vida íntima, o mistério


T A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII

os anjos podem servir como causa instrumental; o terceiro


171

da criação e do pecado, o mistério da encarnação e da re- modo é próprio de Deus 8•


denção, o mistério dos sacramentos e da glória à qual con- Precisava o homem da revelação, pois sua atividade,
duzem. Quem perscruta esses mistérios é propriamente o eficaz no que toca às realidades do mundo natural, mostra-
Espírito Santo ( lCor 2,10), o revelador dos segredos e -se impotente e débil quando se trata da salvação: então
dos abismos da Trindade. Contudo, diz são Boaventura, a o homem mais regride do que avança se não for "dirigido
função do teólogo analogicamente se aproxima à do Espí- pelo ensinamento da divina revelação"; por isso "nos foi
rito Santo. Ele perscruta os mistérios divinos para desco- dada a Escritura, divinamente inspirada pelo Espírito San-
brir-lhes as profundezas, dá-las a conhecer e manifestar 2 • to", que nos instrui no tocante à fé e aos costumes 9 •
Revelar significa pois, iluminar o espírito quanto ao que A revelação é uma ação comum à Trindade; atribui-se,
antes era trevas, segredo, mistério. Um segundo elemento, porém, especialmente ao Filho e ao Espírito 10 • Contudo,
essencial ao conceito de revelação, é a certeza que ela nos o Filho e o Espírito não nos revelaram tudo, mas apenas
traz. "Chamo revelação o dar interiormente uma ilumina- o necessário para a salvação 11 • A hora do juízo final, por
ção certa" referente a um acontecimento futuro 3 • Sob esse exemplo, continua desconhecida para nós, pois que nos é
aspeto distingue-se a revelação da pregação 4, da conjetura e mais útil ignorá-la 12 •
da opinião 5 •
A ação reveladora desenvolve-se no tempo e na histó-
Deus revela algo à humanidade quando fala ao homem,
ria, num rítmo estabelecido por Deus, que prepara a huma-
isto é, ilumina seu espírito 6 • Relevação, palavra, ilumina-
ção são termos conversíveis. A palavra de Deus é eterna nidade para receber dons sempre maiores; assim foi a eco-
e temporal: eterna é a Palavra pela qual, no seio da Trin- nomia sacramental retardada até à sexta idade do mundo 13 •
dade, o Pai gera um Filho que lhe é em tudo semelhante; A revelação começada com os profetas, só com Cristo e os
temporal é a palavra que Deus profere para fora pela cria- apóstolos projetou sua luz total 14. Mesmo a revelação pro-
ção e pela revelação de si mesmo à humanidade 7 • Deus fética, através dos séculos, teve um crescimento numa luz·
fala ao homem de tres modos: por sinais que atingem seus cada vez mais viva 15 • Por Cristo recebemos a plenitude da
sentidos externos, por sinais que atingem seus sentidos in- revelação; ele está entre os homens "como o Doutor infi-
ternos e a imaginação, e finalmente por uma palavra que nitamente sábio que os ilumina pela palavra de seus ensma-
inspira diretamente ao espírito. Nos dois primeiros casos
8 II Sen., d. 10, a. 3, q. 2, e.
2 I Sent., proemium. Citamos segundo: Doctoris Seraphici S. Bona- _9 "Ad cognitionem naturalem rerum multum potest proficere proprio
venturae Opera omnia edita studio et cura Patrum Collegii a S. Bonaven- stu<;110 atque ingenio, sed in cognitione modi perveniendi ad vitam per
tura (Quaracchi, 1882-1902). se 1psum plus deficit quam proficit, nisi divinae revelationis instructione
3 II Sent., d. 4, a. 2, q. 2, e. di~i~atur. Et propterea magis data est nobis Scriptura, divinitus et per
4 "differt praedicere et revelare ... ; quia quod revelatur, certítudina- Spmtum Sanctum revelara, in cognitione fidei et morum, quam in cogni-
liter scitur; quod vero praedicitur, non; quia aHquando creditur ex com- tlone rerum naturalium, licet omnis veritas aliquo modo a Spiritu Sancto
minatione dictum, aliquando vero sub conditione" (ln ]o., e. XIII, 55). esse dicatur" (II Sent., d. 23, dub. 3).
5 Assis, cod. 186, 31va. 1º In ]o., e. VI, 79, arg. 3; e. XIII, 71; IV Sent., d. 48, a. 1, q.
6 "In Deo enim loqui ad alterum supra intellectum notat effectum, 4, ad 2 et 3.
11 IV Sent., d. 48, a. 1, q. 4, ad 2 et 3.
videlicet revelationem. Non enim dicitur Deus nobis loqui solum quia
12 IV Sent., d. 48, a. 1, q. 4, ad 4.
intelligit, sed etiam quia revelando aliquam illustrationem in nobis efficit.
13 IV Sent., d. 2, a. 1, q. 2, e.
Unde Gregorius in Moralibus: Dei locutio, ad nos intrinsecus facta, ví-
. 14 "Lumen plenum est in doctrina evangelica, scilicet doctrina Chris-
detur potius quam auditur; quia, dum semetipsum sine mora sermonis
insinuat, repentina luce tenebras nostrae ignorantiae illustrat" (II Sent., t1 ... ; lumen subseguens in doctrina apostolica ... · lumen praecedens in
d. 10, a. 3, q. 1, e.) prophetica" (IV Sent., d. 24, p. 2, a. 2, q. 4, e.).'
15 III Sent., d. 25, a. 2, q. 2, f. 2.
7 II Sent., d. 13, dub. 3; I Sent., d. 27, p. 2, a. un., q. 1, e.
172 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 173
mentos" 16 • Somente ele merece o título de Mestre, ele tudo, receber uma luz especial para perceber-lhe a significa-
que possue toda a ciência e de quem deriva, como da única ção ( como se deu com o Faraó, Baltasar e Nabucodonosor),
fonte, toda verdade. Prega o caminho verdadeiro que leva temos uma revelação imperfeita. Ao contrário, será per-
até Deus. É preciso, pois ouvir sua palavra e acolhê-la feita quando há também a inteligência -dos sinais 22 • O que
com fé 17 • caracteriza o verdadeiro profeta é a iluminação para que
compreenda o que vem representado 23 • Chama-se infusa essa
2. A revelação profética iluminação, pois que eleva o espírito ao conhecimento do
que, por suas próprias forças, não poderia perceber 24 • O
Interessa-se são Boaventura, como toda a idade média, julgamento do profeta baseia-se não na evidência do objeto,
principalmente pela revelação profética 18 • Sua doutrina de- mas na da "Verdade que o ilumina e instrui" 25 • Quanto
pende de santo Agostinho e, mais diretamente, de seu mes- a isso, a posição do profeta é semelhante à do crente, apoian-
tre Alexandre de Hales. Seu pensamento reduz-se aos se- do-se ambos na luz interior que os aclara 26 • Enquanto re-
guintes pontos: Primeiro deve-se distinguir profecia e dom velação ou iluminação do espírito, a profecia, ao contrário dos
de· profecia. O dom de profecia é um habitus que para agir dons de sabedoria e de caridade não implica de per si a
exige uma iluminação divina atual 19 • A _profecia·, por si graça santificante. Ordena-se à utilidade alheia e não à
mesma, é um ato transitório. Compreende uma receptio própria: pode pois subsistir em profetas cuja conduta seja
de algo nos sentidos, na imaginação ou no espírito 20 , um condenável 27 • Conforme a luz recebida será a grandeza do
;udicium causado pela iluminação do espírito 21 • Se alguém profeta. Elias recebeu luz mais abundante; Davi, uma· luz
recebe uma representação sensível ou imaginativa sem, con- mais penetrante, pois que nele a profecia é de ordem inte-
lectual. Podemos, com efeito, distinguir tres modos de re-
16Dom. III Adv., sermo I. velação profética: sensível, imaginativa, intelectual. Este
17Dom. XXII post Pent., sermo I.
18Sobre S. Boaventura e a profecia, cfr.: B. DECKER, "Die Analyse último é o mais alto e supõe sempre uma revelação; não
des Offenbarungsvorganges beim hl. Thomas im Lichete vorthomistischer
Prophetietraktate", Angelicum, 16 ( 1939): 195-244; Id. Pie Entwicklung ut videlicet quando duo in eamdem partem· aspicientes, habentes visum
der Lebre von der prophetischen Offenbarung von Wilhelm von Auxerre aeque limpidum, non similiter vident, quia unus videt, alter non, sicut
bis zu Thomas von Aquin (Breslau, 1940) pp. 134-164; F.-M. HENQUINET, exemplum est de manu Baltassar, Dan. 4" (Assis, cod. 186, 30va).
"Un brouillon autographe de S. Bonaventure sur le Commentaire des sen- 22 "Revelado autem quaedam est imperfecta, quaedam perfecta ...
tences", Êtudes franciscaines, 44 ( 1932): 633-655; 45 ( 1933): 59-81; J. Imperfectam reveladonem voco, in qua fit · ostensio alicujus signi, non
G. BoUGEROL, lntroduction à l'étude de saint Bonaventure (Paris-Tournai- tamen per illud signum directe et certe ducitur intellectus in signatum,
-New York-Rome, 1961), pp. 246-247. sicut fuit in Pharaone et Baltassar et Nabuchodonosor; et talis potest esse
1~ "Dicendum est quod differt dicere prophetiam et donum prophe- sine habitu superinfuso et mediante .ministerio angelico. Revelatio autem
tiae; nam donum prophetiae est habilitatio naturalium ad intelligendum perfecta ( est), in qua non solum est speciei signantis impressio, sed signati
quod ostenditur; propheda autem est actualis illustratio ad intelligendum manifesta declarado" (Assis, cod. 186, lOvh).
actu quod ostensum est; . . . et dicitur ergo donum prophedae habitus 23 "Nullus dicendus est propheta nisi illustratus fuerit ad intelligen-
primus, propheda vero habitus secundus, quia facit habilem actu intelligere dum quod sihi ostendehatur" (Assis, cod. 186, 30ra).
quotienscum.que vult, et ideo ordinat ad denundandum" (Assis, cod. 24 "Illuminationem ad futura praecognoscenda dicimus esse infusam
186, llra). propter hoc quod in ipsa elevatur anima supra ea quae sunt eí naturalia"
20 II Sent., d. 10, a. 3, q. 2, e. (III Sent., d. 23, a. 2, q. 2, e).
21 Sobre a visão corporal, diz S. Boaventura: "Notandum est quod in 25 "Propheta ilon assentit ei quod praenunciat, propter se, sed propter
visione corporali duo haec sunt: recepdo et judicium. Judicium autem Veritatem ipsum illuminantem et erudientem" (III Sent., d. 24, a, 1,
dupliciter est: quoddam est naturale, quod fit per lucem virtuti innatam; q. 2, ad 5).
quoddam supernaturale, quod non potest fieri nisi per lucem superin- 26 "Cognitio fidei et prophedae et cujuslibet revelationis divinae ...
fusam, ut quando per praesens signum judicat de futuris. Similiter re- non pendet ah eo quod creditur vel quod revelatur, sed ah illo lumine,
cepdo dupliciter est: quaedam naturalis, ut cum obiectum se offert omni per quod ad hoc cognoscendum illuminatur" (III Sent., d. 24, a. '1, q.
aspicienti et dirigend adem visus ad partem illam, et haec semper fit 1, ad 2).
praesente ( corporeo) objecto et lumine; quaedam autem supernaturalis, 27 I Sent., d. 18, a. un., q. l, e; III Sent., d. 34, p. 2, a. 1, q. 1, ad 1.
174 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 175
se dá o mesmo com o sensível e o imaginativo Na reve- 28 •
Essa iluminação interior, que não manifesta um ri.ovo
lação profética o sujeito é mais passivo que ativo. Pode-se objeto mas possibilita ao espírito percebê-lo como é pre-
também observar que muitas vezes Deus revela em sonhos; ciso, São Boaventura denomina-a com a Escritura "revela-
sem dúvida, porque então a alma está inteiramente dispo- ção", "testemunho", "inspiração interior". Ao comentar Jo
nível para a ação divina 29 • 5 ,3 7, observa que o Cristo foi credenciado não apenas pelo
testemunho de João Batista e pelo de seus próprios mila-
3. Fé e revelação gres, mas também pelo testemunho interior do Pai. O Pai,
que envio~ seu Filho e o tornou visível pela encarnação, dá-
Nasce a fé da ação conjugada da palavra exterior e da -lhe testemunho por uma "inspiração interior" e o "revela
palavra interior, do ensinamento da pregação que fere os por uma voz inteligível". Os judeus carnais não entende-
ouvidos e do ensinamento do Espírito Santo que fala no ram essa voz, mas a Simão Pedro, que a percebeu, foi dado
segredo do coração. São Boaventura ensina que há dois confessar o Cristo 31 • O que nos é comunicado pela reve-
modos de aprendizagem: por descoberta e por ensinamento. lação, ou seja, o objeto da fé, denomina-o são Boaventura:
A vista é apropriada para o primeiro; a audição, mais para "ensinamento da divina revelação", "doutrina" evangélica,
o segundo. O conhecimento da fé se consegue por ensina- apostólica ou profética, "verdade da salvação", "verdade
mento. Mas, observa são Boaventura, a fé nasce principal- da fé e da Santa Escritura", pois que esse ensinamento,
mente da audição interior, pois em vão trabalha o pregador essa verdade se encontra nas Santas Escrituras. "Toda ver-
se não existe internamente a "iluminação do Mestre inte- dade da salvação está na Escritura, dela parte ou a ela se
rio;" 30 • prende". 32 • São Boaventura fala equivalentemente -da "ver-
dade da fé e da Santa Escritura" 33 , pois, segundo ele, toda
28 "Dicendum quod ad esse prophetiae duo concurrunt: similitudi- a Escritura nós a recebemos "por revelação divina do Pai
nis repraesentatio et revelatio significationis illius similitudinis. Ista re-
velatio semper est intellectiva; sed impressio similitudinis potest esse in
vi intellectiva per se et primo, non mediante sensu vel imaginatione, vel quod fides, quantum ad suum formale per infusionem est, sed quantum
in ipsa imaginativa primo, non mediante sensu, et sic dicitur visio imagi- ad materiale, videlicet quoad notitiam iliam qua cognoscitur. . . est per
naria; vel in ipso sensu et tunc visio corporalis. Impressio similitudinis auditum, ita quod unum est per auditum cordis, et aliud per auditum
intellectiva primo et per se semper habet revelationem conjunctam; sed corporis. Ideo generaliter dicit Apostolus, fidem ex auditu esse, magis
similitudo imaginaria aliquando habet, ut in prophetis veris, aliquando non, principaliter ratione auditus interioris quam exterioris. Et sic dicit Gre-
ut in Pharaone. Similiter dicendum est de impressione in sensu. Ad hoc gorius quod in vanum laborat sermo praedicatoris, nisi adsit illustratio
ergo quod sit propheta, requiritur revelatio in parte intellectiva" (Assis, doctoris interioris" (III Sent., d. 24, dub. 2). Cfr. III Sent., d. 23, a.
cad. 186, 12vb). Cfr. I Sent., d. 16, a. un. q. 2, arg. 4. 2, q. 5, c.; d. 25, a. 2, q. 2, f. 4.
31 "Et qui misit me Pater, etc. Tangitur hic tertium testimonium,
29 " •.. quia in somnis magis agitur homo quam agat, et in revelatione
divina plus se habet homo per modum suscipientis quam agentis ... " scilicet divinum, quod et paternum dicit; propter quod ait: et qui misit ·
(II Sent., d. 25, p. 2, a. un., q. 6 ad 5). · me Pater, per incarnai:ionem, testimonium perhibuit de me per internam
30 "Dicendum quod, sicut dicit Philosophus, dupliciter contingit ali- inspirationem; quia, sicut dicitur infra sexto ( v. 44), nemo venit ad me,
quid addiscere, videlicet per inventionem et per doctrinam. Et sensus nisi Pater traxerit eum. Unde voce intelligibili revelat et testificatur,
quidem visus maxime deservit illi modo addiscendi, qui est per inven- quam Judaei carnales nec audite poterant, nec ipsum loquentem videre.
tionem; sensus vera auditus illi modo, qui est per doctrinam. Quoniam Ideo dicit: neque vocem ejus unquam audistis, per mentis revelationem;
igitur ea quae fide novimus, non cognoscimus per inventionem, sed magis sicut Petrus audivit, Matthaei decimo sexto (v. 17): Beatus es, Simon
per doctrinam, per doctrinam, inquam, non solum praedicatoris loquentis Bar Jona, quia caro et sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus qui in
cpelis est" (ln ]o., c. V, 65; c. VI, 68).
per aurem corporis, sed etiam Spiritus Sancti loquentis per aurem cordis; 32 "Omnis veritas salutaris vel in Scriptura est, vel ah ipsa emanat,
hinc est quod in Littera dicitur, quod fides non tantum est ex auditu exte-
riori, sed etiam interiori. Et quamvis Apostoli multa didicerint videndo vel ad eam reducitur" (ln circuncisione Domini, sermo I). "Veritas enim
Christum, multo tamen plura didicerunt audiendo ipsum qui loqueretur fidei et vitae sanctitas non aliunde quam ex scripturarum fonte hauritur"
exterius et qui loqueretur eis interius per Spiritum Sanctum. . . Ad illud ( Opusc. 13, Determinationes quaestionum circa regulam fratrum mino-
rum, p. I, q. 3).
quod objicitur quod fides est per infusionem, non per auditum, dicendum 33 III Sent., d. 23, a. 1, q. 4, ad 4.
176 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SECULO XIII 177

das luzes" 34 • Essa origem é que lhe dá autoridade e a certeza como um acontecimento histórico, que se desenrola no tempo
incomparável que ela f~z nascer 35 • e atinge os homens de todos os séculos numa_ complexa
economia de intermediarias, de etapas e de modalidades;
4. Conclusão ou como ação divina que se insere na vida psicológica do
profeta e assim atinge a própria humanidade; ou como
Em São· Boaventura, a revelação designa em primeiro doutrina sagrada que o Cristo comunicou a seus apóstolos
lugar a ação iluminadora de Deus ou a iluminação subie- e por eles foi transmitida, doutrina contida na Escritura e
tiva resultado dessa ação. Tal é especificamente a revela- proposta ·pela Igreja à fé dos fiéis, ou, finalmente, como um
ção feita aos profetas. Também o ensino do Cristo é en- grau de conhecimento que ele procura situar com relação aos
tendido como uma iluminação da humanidade. São Boaven- outros tipos de conhecimento, natural, de fé, de visão. Essa
tura não distingue. claramente as duas noções de revelação multiplicidade de aspectos evidencia a riqueza da realidade.
e de inspiração. Muitas vezes diz revelação quando hoje
em dia usaríamos o termo inspiração. Seguindo a Es~ 1. A revelação como operação salvífica
critura ele igualmente chama de revelação a iluminação
interior pela· graça da fé. Salienta o caráter trinitário da
ação de revelação, como também seu aspecto de economia. Iniciando a Summa, santo Tomás coloca o fato funda-
~a importância dada à iluminação percebemos as perspec- mental da revelação como ponto de apoio da teologia e da
tivas agostinianas. Entre a iluminação do conhecimento fé cristã. Inspirada pelo livre amor divino, - a revelação
natural, da revelação, da· fé, da contemplação e da visão, existe para a_ salvação do homem .. Ora, a salvação do homem
Boaventura percebe úma continuidade e um aprofundamento é. o próprio Deus, em sua vida íntima, objeto pois que
dos dons divinos. Das trevas lentamente jorra a luz até a ultrapassa totalmente as forças e exigências humanas. Era,
plena visão36 • · · então, necessário que Deus mesmo se revelasse, se desse a
conhecer ao homem para indicar-lhe sua meta e o caminho
que a ela conduz 38 •
II. SANTO TOMAS DE AQUINO A revelação de verdades de ordem natural sobre Deus
e nossas relações com ele, mesmo não sendo absolutamente
_ Por várias vezes santo · Tomás fala da revelação 37 • necessária, era moralmente requerida. Com efeito, have-
Considera-a como operação salvífica, que procede do livre ria três inconvenientes se essas verdades fossem abando-
amor de Deus e proporciona ao homem as luzes indis- nadas à busca apenas da razão: poucos homens chegariam a
pensáveis ou simplesmente úteis na busca de sua salvação; ou seu conhecimento, pelo pouco vigor intelectual da maioria,
pelas pr~cupações da vida do dia a dia, ou simplesmente
. . 34 ·"0rtu~ _namque non ~st per humanam - .mvest1gat1onem,
· · · sed per por sua preguiça de espírito; e mesmo os que a atingis-
d1vmam revelat1onem quae flu1t a Patre luminum" (Prol. in Breviloq., V). sem, não o fariam senão após longos e penosos esforços,
35 "Nullus autem est, qui falli non possit et fallere nesciat, nisi
Deus et_ ~piritl:!s Sanctus; hinc est, quod ad hoc, quod Scriptura sacra ficando os outros condenados às trevas da ignorância.
mo~o s1b1 · deb1t? esset perfecte authentica, non per humanani investi- E afirial, essas buscas estariam sempre expostas a muitas
gat1onem est tradita, sed per revelationem divirtam" (Prol. in Breviloq., V). dúvidas, erros, desvios na demonstração. "Por isso a di-
36 "~icut sacramenta dicunt quoddam velamen gratiae interioris, quod
tamen ahquo modo illuminat ad cognoscendum; sic fides velamen dicit vina clemência cuidou que também coisas acess1ve1s à
futurac: contemplationis et visionis, et tamen hoc velamen potius est nossa razão fossem propostas à nossa fé; assim todos po-
illuminans quam obscurans" (IV Sent., d. 3, p. 1, a, 1, q. 3, e.).
37 $._ th., la, q, 1; 2a 2ae, q. l-7, 171-174; S. Contra Gentiles, L.
III, e. 154; De Veritate, q. 12; Expos. ln Jo., passim. 38 la, q. 1, a. 1, e.
178 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 179

deriam participar facilmente do conhecimento divino sem lação que se constitui, segue o da revelação que se aplica.
dúvidas e erros " 39 • ' A alguns coube receber e pregar a revelação; a outros, pre-
Santo Tomás considera,: pois, a revelação como a ação gá-la apenas. Mas todos são verdadeiros mediadores entre
do Deus da salvação que, livre e graciosamente, fornece aos Deus e os homens: "Com relação a Deus são homens, mas
ho~ens to?as as verdades necessárias e úteis para a conse- com relação aos homens são deuses enquanto participam do
cuçao do fim sobrenatural. i: conhecimento divino", tanto pelas revelações que recebe-
Primeira e essencialmente constituem o revelado ·ou re- ram diretamente como pelo conhecimento maior que delas
vel~tum os conhecimentos sobre Deus que são inacessíveis à possuem 43 •
razao e que, portanto, só podem ser conhecidos por revelação. Em segundo lugar, a revelação é marcada pela suces-
O revelabile refere-se mais aos conhecimentos que, sem ultra- são: não se realiza de repente, mas por etapas, que são rea-
pa_s~ar_ o alcance da razão natural, são revelados por Deus, lizações parciais do desígnio divino. Foi aos poucos que
utihssimos _que são para a salvação, mas que a maioria dos Deus nos confiotl seu segredo - tamanha é a sua riqueza,
homens deixados a si mesmos jamais chegariam a conhecer. que ao homem foram necessários longos séculos de pre-
~azem parte de fato do bloco da revelação 40 • O revelatum paração para que pouco a pouco a pudesse assimilar 44 • Na
tinha que ser revelado; o revelahile poderia ser revelado. história da revelação, podemos distinguir tres idades ou
momentos principais. No início de cada uma está uma re-
2. A revelação como acontecimento da história velação superior da qual decorrem tod:;ts as outras: a re-
velação feita a Abraão, iniciada pela revelação do Deus
A revelação, acontecimento no tempo, apresenta-se a único; a revelação mosaica iniciada pela revelação da es-
santo Tomás como uma operação hierárquica sucessiva pro- sência divina;' a revelação do Cristo iniciada pela revelação
gressiva, polimorfa. ' '
do mistério da Trindade.
Primeiramente hierárquica: a verdade sobrenatural che-
ga até nós como uma torrente cujas águas caudalosas vindo A primeira começa a era patriarcal e destina-se apenas
de Deus, sua nascente, atingem a planície só depois de te- a algumas famílias; a segunda, a era profética, destinada a
rem formado sucessivos remansos. São os anjos que primei- todo um povo; a terceira, a era cristã é dirigida a toda hu-
manidade 45 • Como um mestre que não confia logo ao dis-
ros ~ recebem, segundo a ordem das hierarquias celestes 41 ,
depois os homens: primeiro os maiores entre eles isto é os cípulo toda a ciência de sua arte, mas "a transmite pouco
· prof etas e apóstolos. Atinge depois a multidão' dos 'que velati? autem divina ordine quodam ad inferiores pervenit per superio-
a acolh_em pela fé? numa caminhada análoga: os que têm um res, stcut ad h~mine_s per angelos, et ad inferiores angelos per superiores,
c?nhecimento mais vasto devem transmiti-la e explicá-la aos ut patet per Dtonystum. . . Et ideo, pari ratione, explicado fidei oportet
simples fiéis que estão obrigados a se ater explicitamente quod perveniat ad inferiores homines per maiores. Et ideo, sicut supe-
riores 9:11~e~, qui inferiores iluminant, habent pleniorem notitiam de
apenas aos artigos de fé 42 • Ao movimento, pois, da reve- rebus d1vm1s quam inferiores, ut dicit Dionysius ... , ita etiam superio-
res homines, ad quos pertinet alios erudire, tenentur habere pleniorem
• 3~ "Salubriter ~rgo divina providit clementia ut ea etiam quae ratio notitiam de credendis, et magis explicite credere" (2a 2ae, q. 2, a. 6. c.).
43 "Illi quibus incumbit officium docendi fidem sunt medii inter
~v~st:J.gare P<;>~est? f1de ~e?enda praeciperet; ut sic omnes de facili possent
divmae cogrut:J.orus participes esse, et absque dubitatione et errore" ( C. Deum et homines; unde respectu Dei sunt homines, et respectu hominum,
G., L. 1, c. 4). Cfr. la, p. 1, a 1, c. sunt dii, in quantum divinae cognitionis participes sunt" (III Sent., d.
~ la, q. 1, a. 3, ad 2um; E. GILSON, Le thomisme, introduction à 25, q. 2, a. 1, qla 4, sol. 4).
la P1flosophie de saint Thomas (Paris, 1948, 5~), pp. 20ss. 44 "Tam magna erant quae de Christo dicebantur, quod non poterant
2a 2ae, q. 172, a. 2, c. credi, nisi cum incremento temporum prius didicissent. Unde dicit beatus
• , 42 J?iversas vezes santo Tomás descreve essa economia descendente e Gregorius: per successiones temporum crevit divinae cognitionis augmén-
hterar~utca da . r~velação. P<;>r_ ~xemplo: "Explicado credendorum fit per tum" (Ad Heb. c. 1, lect. 1).
revelattonem dtvtnam. Cred1b1ha erum naturalem rationem excedunt. Re- 45 2a 2ae, q. 174, a. 6, c.
180 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 181
a pouco, adaptando-se à capacidade do aluno", Deus mos- lação com .Cristo. João Batista leva vantagem sobre Moi-
tra-se cóndescendente com a fraqueza da humanidade e não sés, porque "praesentialiter Christum digito demonstravit" 50 •
deixa transparecer mais luz do que ela poderia receber 46 • Também os apóstolos superam Moisés, tendo visto mais
Um duplo movimento percorre toda a economia da reve- claramente os mistérios do Cristo 51 •
lação e cimstitui o dinamismo de seu progresso. Primeiro, um A revelação é polimorfa: Para se tornar conhecido,
movimento de aumento progressivo do depósito da revela- Deus não desdenhou nenhum meio de comunicação. No
ção, tendo os profetas dos últimos tempos conhecido màis seu comentário à Epístola aos hebreus 52 , santo Tomás nota
verdades ·que os. da idade patriarcal, e conhecendo os após- a extraordinária riqueza e variedade dos caminhos de Deus:
tolos muitas coisas ignoradas pelos profetas 47 • O segundo multiplicidade e variedade dos personagens a que se dirige;
é o movimento que leva a humanidade a uma visão sempre diversidade dos processos psicológicos ( visão corporal, ima-
mais clara da encarnação que deve vir: "Moisés sobressai no ginativa e intelectual); revelações sobre o futuro, presente
que tange o conhecimento da divindade; Davi, porém, co- e passado; contato com o homem para instruir· ou punir;
nheceu e exprimiu mais plenamente o mistério da encarna- diversidade de graus de clareza ou obscuridade. Às vezes a
ção do Cristo " 48 • · revelação é ofuscante, o mais das vezes, porém, "o divino
Quanto mais próximo o Cristo,. mais próxima a pleni- se vela na novidade e na obscuridade das palavras e das
tude da revelação. Com o Cristo chega a primavera da coisas" 53 • Benditos véus que levam à humildade ante Deus.
graça, a hora da juventude, o tempo da perfeição. "A últi- Com o Çristo e os apóstolos, completa-se o aconteci-
ma perfeição da graça chega com Cristo; por isso o seu mento da revelação. Mas nem por isso retirou-se o Espírito
tempo é chamado tempo da plenitude. Assim os que esta- de revelação; age sob a forma mais modesta das revelações
vam mais próximos do Cristo, antes como João Batista ou particulares. "Jamais faltaram homens dotados do espírito
depois como os apóstolos, mais plenamente conheceram os de profecia; não para nos trazerem nova doutrina mas para
mistérios da fé. O mesmo acontece com o homem: a perfei- a orientação dos atos humanos" 54 , pois que a fé católica "se
ção está na juventude, e tanto melhor o estado do homem apóia na revelação feita aos apóstolos e profetas e não em
quanto mais se aproxima, antes ou depois, de sua juven- revelação talvez feita a outros doutores" 55 •
tude" 49 • Tanto mais viva a luz quanto mais estreita a re-
3. Revelação profética como carisma de conhecimento
46 "Sicut magister qui novit totam artem non statim a principio tradit
eam discípulo, quia capere non posset, sed paulatim, condescendens ejus
capacitati. Et hac ratione profecerunt homines in cognitione fidei per Santo Tomás interessa-se principalmente com a reve-.
temporum successionem. Unde Apostolus, ad Gal. 3,24ss, comparat statum lação profética 56 • Cuidando demais de seu conteúdo, po-
Veteris Testamenti pueritiae" (2a 2ae, q. 1, a. 7, ad 2). "Et ideo tantum
dabatur Patribus qui erant instructores fidei de cognitione fidei, quantum q. 12, ad 1. Quanto ao progresso da revelação segundo santo Tomás,
oportebat pro tempore illo populo tradi vel nude vel in figura" ( 2a 2ae, cfr.: A. HAYEN, "Le thomisme et l'histoire", Revue Thomiste, 62 (1962):
q. 1, a. 7, ad 3). ·is-t,
47 2a 2ae, q. 1, a. 7.
50 2a 2ae, q. 174, a. 6, ad 3.
48 "Visio. . . Moysi fuit excellentior quantum ad cognitionem divi-
51 2a 2ae, q. 174, a. 4, ad 3.
nitatis: sed David plenius cognovit et expressit mysteria Incarnationis 52 ln ep. ad Heb., e. 1, lect. 1.
Christi" (2a 2ae, q. 174, a. 4, ad 1). 53 ln Boet. de Trin., pr., q. 2, a. 4.
49 "Ultima consummatio gratiae facta est per Christum: unde et tem-
54 "Et singulis temporibus non defuerunt aliqui prophetiae spiritum
pus ejus dicitur tempus plenitudinis, ad Gal. 4,4. Et ideo illi qui fuerunt habentes, non quidem ad novam doctrinam fidei depromendam, sed ad
propinquiores Christo vel ante, sicut Joannes Baptista, vel post, sicut ·humanorum actuum directionem" (2a 2ae, q. 174, a. 6, ad 3).
Apostoli, plenil;ls mysteria fidei cognoverunt. Quia et circa statum homi- 55 "Innititur enim fides nostra revelationi Apostolis et Prophetis
nis hoc videmus, quod perfectio est in juventude, et tanto habet homo factae, qui canonicos libros scripserunt; non autem revelatfoni, si qua
perfectiorem statum vel ante vel post, quanto est juventuti propinquior" fuit aliis doctoribus facta" ( la, q. 1, a. 8, ad 2).
(2a 2ae, q. 1, a. 7, ad 4). Cfr. 2a 2ae, q. 174, a. 6, e.; De Veritate, 56 Santo Tomás trata da profecia nos seguintes lugares: De Verit.,
q. 12; 2a 2ae, q. 171-174; C. G., L. III, e. 154; ln primam ad Cor.,
182 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 183
<leríamos faltar com a atenção devida ao processo concreto Na profecia ele distingue conhecimento profético e
da revelação. Foi assim possível que no tempo do moder- denuntiatio ou proclamação da profecia. "A profecia é em
nismo se desenvolvesse a lenda de uma revelação católica primeiro lugar e principalmente conhecimento ... ; secunda-
formada de verdades caídas do céu. Santo Tomás, porém, riamente locução" 61 • No primeiro caso o profeta recebe: é
cémsidera a revelação em sua fase psicológica, como ação di- antes passivo 62 ,. como a atmosfera sob os raios do sol 63 ;
vina que se insere no psiquismo humano. O seu De Pro- sofre a ação da luz e do contato divino 64 • Na denuntiatio,
pheiia caracteriza-se por uma referência contínua às afirma- porém, age mais a vontade e o profeta escolhe suas ima-
ções dos profetas e- por um espantoso respeito para com os gens segundo seu temperamento e sua experiência pessoal.
dados complexos da experiência profética 57 •
A profecia traz à consideração do profeta um conhe-
Para santo Tomás profecia é "conhecimento, sobrenatu-
cimento que estava longe de seu espírito 65 • "Os profetas
ralmente dado ao homem, de verdades que atualmente su-
conhecem coisas que estão longe do conhecimento ordiná-
peram o alcance de seu espírito, que lhe são manifestadas rio dos homens" 66 • Aliás, a Escritura os chama muito cor-
por Deus para o bem da comunidade" 58 • Como carisma so-
retamente videntes. Eles "viam o que os outros não viam,
cial a profecia ensina à humanidade "todo o necessário para percebiam o que estava oculto no mistério" 67 • Viam o
a salvação" 59 • Paralelamente a esse sentido mais importante, opaco e distante, em particular o futuro, especialmente lon-
às vezes santo Tomás dá à profecia um sentido mais restrito gínquo e obscuro com relação ao presente 68 , mas também
de conhecimento de coisas futuras; considera-a então como o que estava longe, além do alcance da razão natural, ou
um carisma que "confirma" a revelação ( ou profecia no seja, o mistério 69 • A distância percorrida pela profecia é
sentido lato), da mesma forma que os milagres 60 •
da ordem do conhecimento. Pois Deus não está distante
de nós; é o nosso espírito que está longe de Deus, e assim
c. 14, lect. 1; ln Is., 1,1;6,l. Como obras auxiliares, cfr.: S. Thomas
d'Aquin, La prophetie ( trad. par P. Synave et P. Benoit, Paris, 1947); estará até a visão 70 • A revelação profética afasta o véu que
B. DECKER, "Die analyse des Offenbarungsvorganges beim hl. Thomas im obscurece nosso espírito e reduz a distância que nos separa
Lichte vorthomistischer Prophetitraktate", Angelicum, 16 (1939): 195-244; de Deus 71 •
lo., Die Entwicklung der Lebre von der prophetischen Offenbarung von
Wilhelm von Auxerre bis zu Thomas von Aquin (Breslau, 1940); V. WHITE,
"Le concept de révélation chez S. Thomas", L'année théologique, 11 61 "Prophetia primo et principaliter consistit in cognitione ... ; phophe-
(1950): 1-17, 109-132; S. M. ZARB, "Le fonti agostiniane del trattato tia secundaria consistit in locutione, prout prophetre ea qure divi-
sulla profezia di S. ToMMAso", Angelicum, 15 (1938): 169-200; A. GAR- nitus edocti cognoscunt, ad aedificationem aliorum annuntiant" (2a 2ae,
DEIL, Le donné révélé et la théologie ( Paris, 1932, 2!); A. LÉONARD, q. 171, a. 1, c.).
"Vers une théologie de la parole de Dieu", em La parole de Dieu en 62 Pelo menos na recepção da luz e do auxílio; pois que, na per-
Jésus-Christ (Paris, 1961), pp. 13-18. Quanto à questão da profecia, cepção mesma, ele é ativo e reage vitalmente.
santo Tomás depende particularmente dos árabes, Avicena, Algazel, Aver- 63 "Oportet quod lumen propheticum non sit habitus, sed magis sit
roes, que se preocupavam com as incidências psicológicas da revelação pro- in anima prophetae per modum cujusdam passionis ut lumen solis in aere"
fética; depende do judeu Maimônides que ele aproveita, corrige e melho- (De Verit., q. 12, a. 1, c.).
ra; depende dos escolásticos, seus predecessores e mestres; depende de santo 64 Ibid., c.
Agostinho, principalmente de sua obra De Genesi ad litteram. 65 São válidas as reflexões de santo Tomás sobre a profecia; partem,
57 Cfr. De Verit., q. 12. O P. WHITE salientou muito bem esse
porém, de uma etimologia falsa. Profecia viria de: phanos e procul.
aspecto do tratado de santo Tomás em seu: "Le concept de révélation 66 "Cognoscunt quaedam quae sunt procul remota ab hominum cogni-
chez S. Thomas", L'année théologique, 11 (1950): 6-8. tione" (2a 2ae, q. 171, a. 1, c.).
58 " .•. connaissance, donnée surnaturellement à un homme, de vé- 67 "ln Vetere Testamento appellabantur Videntes: quia videbant ea
rités qui dépassent actuellement la portée de son esprit et dont il est quae ceteri non videbant, et prospiciebant quae in mysterio abscondita
instruit par. Dieu pour le bien de la communauté", S. Thomas, La Prophe- erant" (2a 2ae, q. 171, a. 1, e.).
tie ( trad. P. Synave et P. Benoit), p. 270. 68 2a 2ae, q. 171, a. 3; De Verit., q. 12, a. 2.
59 De V erit., q. 12, a. 2, c. 69 2a 2ae, q. 171, a. 2, c.
60 C. G., L. III, c. 154; ln primam ad Cor., c. 12, Lect. 2; 2a 2ae, 10 2a 2ae, q. 171, a. 4, ad 2.
q. 172, a. 5, ad 3. 71 2a 2ae, q. 171, a. 1, ad 4.
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184 - A NOÇÃO DE REVELAÇÃO· NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 185


Concretamente como se dá esse afasta1 de véus que se completa o conhecimento" 75 • A essência da pro-
que põe o profeta na posse da verdade divina? 72 • Define-se fecia não está, pois, na representação, mas na luz divina
a profecia a partir de dois elementos que se incluem em concedida ao profeta para que possa discernir, julgar e ex-
todo conhecimento humano: representação ( acceptio rerum) primir as intenções e as ações de Deus. Mesmo quando,
que nos fornece o material e julgamento desse material, usando da riqueza psicológica do profeta, a ação divina uti-
julgamento que se efetua à luz natural do espírito. Encon- liza imagens ou idéias preexistentes, o homem não pode-
tramos ambos os elementos no conhecimento profético, am- ria de per si associar essas imagens de modo a fazer surgir
bos elevados pelo dom profético. A acceptio rerum pode essas verdades até então desconhecidas, que constituem o
dar-se diversamente: quer o próprio Deus produza exter- objeto de sua mensagem: é preciso a iluminação divina 76 •
namente formas sensíveis ( exemplo de Daniel que vê ins- Pela iluminação recebida, o profeta julga, com certeza e
crições na parede); quer utilize formas imaginativas deri- sem erro, os elem~ntos presentes à sua consciência apossan-
vadas de objetos percebidos pelos sentidos, dando-lhes, po- do-se assim da verdade que Deus lhe quer comunicar.
rém, uma orientação inesperada; quer imprimindo direta- Com essa iluminação e esse julgamento opera-se realmente
mente formas inteiramente novas ( por exemplo: um cego no profeta a re-velação do pensamento divino. A luz pro-
de nascença em cuja imaginação se imprimissem imagens fética aperfeiçoa e fortifica, de fato, a luz natural da in-
de côr); quer, afinal, agindo Deus diretamente sobre a teligência, permitindo-lhe perceber o que não poderia des-
inteligência do homem, imprimindo no espírito espécies in- cobrir por si mesma. Tendo-a recebido, o profeta reage de
teligíveis 73 • forma vital. Passivo na inspiração que o eleva, é ativamente
O julgamento especulativo realiza-se sob o influxo de que compreende na revelação 77 • Para além do plano das ima-
uma luz especial concedida ao profeta. "Formal no conhe- gens ele atinge a verdade mais profunda que elas indicam 78 •
cimento· profético é a luz divina, de cuja unidade provém
a unidade específica da profecia, ainda que diversos sejam 75 "Per donum autem prophetiae confertur aliquid humanae mentis
os objetos manifestados proféticamente pela luz divina" 74. Sll:P!ª id quod pertinet ad naturalem facultatem, quantum ad utrumque:
Com efeito, o dado iluminado por essa luz é de espantosa scil1cet et quantum ad judicium, per influxum intellectualis luminis· et
qua~tum ad acceptionem seu repraesentationem rerum, quae fit per aliquas
riqueza histórica e psicológica: acontecimentos da história, spec1es. Et quantum ad hoc secundum, potest assimilari doctrina humana
comportamento de pessoas, objetos da natureza, visões in- r~v~lationi propheticae, ~on autem quantum ad primum: homo enim suo
teriores, imagens, sonhos etc. A essência da profecia, po- ~hscwulo_ repr_aesenta~ altqua~ res per signa locutionum, non autem potest
mterius. 1llummare, s1cut fac1t Deus. Horum autem duorum primum prin-
rém, não está nesse elemento representativo, mas na luz cipalius est in prophetia: guia judicium est completivum cognitionis" (2a
divina comunicada ao vidente. Sob esse aspecto a ação divi- 2ae, q. 173, a. 2, c).
76 "Dicendum quod quascumque formas imaginatas naturali virtute
na desafia qualquer comparação com a de um mestre humano: homo potest formare, 1;1bsolute hujusmodi formas considerando: non tamen
este "pode apresentar .a seu discípulo realidades mediante ~t sint ordinatae ad repraesentandas intelligibiles veritates quae hominis
os sinais da linguagem, não pode, porém, iluminá-lo inter- mtellectum excedunt, sed ad hoc necessarium est auxilium supernaturalis
luminis" (2a 2ae, q. 173, a. 2, ad 3).
namente como Deus o faz. Ora, na profecia, o mais im- 77 2a 2ae, q. 171, a. l, ad 4. -
portante é a elevação do julgamento, pois é no julgamento 78 "Ex eisdem formis imaginatis subtilior conspicitur veritas secun-
dum illustrationem altioris luminis" (2a 2ae, q. 173 a. 2, ad 2). Cfr. ainda
72 2a 2ae, q. 171, a. 6, c. la,. q. 1, a. 9, a~ 2. santo Tomás diz que o profeta vê in speculo aeterni-
73 2a 2ae, q. 173, a. 2, c. Este artigo, que apresentamos resumi- tatzs. A expressao pode ter duplo sentido: ou que os objetos apresenta-
damente, é o cerne da explicação de santo Tomás sobre o conhecimento dos à consciência do profeta têm característica de presencialidade, como
profético. Cfr. também C.G., L. III, c. 154. para_ Deus, ante o qual o futuro coincide com o presente e .o passado (De
. 74 "Formàl~ in cognitione prophetica est lumen divinum, a cujus Verzt., q. 12, a. 6, c.); ou, então, que o profeta percebe as realidades que
umtate prophet1a habet utiitatem speciei, licet sint diversa quae per lumen se lhe apresentam,· com aquele sentido eterno que elas têm em Deus e
divinum prophetice manífestantur" (2a 2ae, q. 171, a. 3, ad 3.). pare Deus.
divinum prophetice manifestantur" (2a 2ae, q. 171, a. 3, ad 3.).
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186 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 187

Tanta essa luz é o elemento mais importante que pode o caso dos hagiógrafos que "falaram o mais das vezes ...
bastar para qualificar o verdadeiro profeta: José, por exem- em nome próprio de verdades ao alcance da razão humana,
plo, explicando o sonho de Faraó 79 , ou Daniel interpretan- ajudados, porém, pela luz divina" 86 • Esse caso extremo do
do as visões de Baltasar. Inversamente: Faraó e Baltasar carisma profético é o que no sentido moderno chamamos
que receberam representações sem a luz para as interpretar, inspiração 87 •
não podem ser considerados profetas, a não ser de forma Nem sempre o profeta tem consciência do carisma re-
muito relativa, ou mesmo de modo algum 80 • Tipo do ver- cebido. Como o observava santo Tomás, pode acontecer
dadeiro profeta é o que recebe de Deus as representações que ele não perceba "claramente se suas palavras e pensa-
e ao mesmo tempo a luz para julgá-las 81 • Essa forma emi- mentos vêm de uma inspiração divina ou de seu próprio
nente de revelação comporta graus conforme a natureza das espírito". Será então algo ·"imperfeito no gênero da profe-
representações: as visões sensíveis são inferiores às imagi- cia" 88 • Pelo contrário, na revelação explícita "o profeta
nativas; estas, inferiores às intelectuais. "É evidente que tem a máxima certeza do que conheceu pelo dom da pro-
a manifestação da verdade divina que se faz pela pura con- fecia e tem como certo que isso lhe foi divinamente reve-
templação da própria verdade é superior à que utiliza o sim- lado" 89 • Do mesmo modo que pela luz que ilumina uma
bolismo das coisas temporais, pois que mais se aproxima da
86 "Plures loquebantur frequentius de his quae humana ratione cognos-
visão da pátria onde a verdade é contemplada na essência ci possunt, non quasi ex persona Dei, sed ex persona propria, cum
de Deus" 82 • adjutorio tamen divini luminis" ( 2a 2ae, q. 174, a. 2, ad 3).
87 Santo Tomás, contudo, não lhe dá esse nome. Inspiração e Reve-
Se o profeta, finalmente, recebe a luz sobrenatural para lação, na única passagem em que aparecem justapostas (2a 2ae, q. 171,
julgar, com a certeza de Deus, não dados sobrenaturais, mas a. 1, ad 4), contradistinguem-se como espécies do gênero "profecia". Ins-
o que pôde conseguir por si mesmo com meios humanos, piração é a moção de ordem .intelectual que dá ao espírito maior vigor;
então encontramos um grau "inferior à profecia propria- revelação é a percepção da verdade, que afasta o véu ·de mistério e de
ignorância que ocultava o desconhecido. Não há revelação sem inspiração,
mente dita", já que o profeta não atinge a verdade sobre- pelo menos na profecia propriamente dita. Falando do carisma profético
natural 83 • Santo Tomás ainda o coloca no capítulo dá re- em geral, santo Tomás usa o termo revelação ou revelação profética em
vez de inspiração, pois o termo revelação indica mais precisamente o essen-
velação porque a luz concedida permite julgar segundo a cial da profecia. A proporção no uso dos dois termos, como o observa
verdade divina 84 e com uma certeza que vem do alto 85 • É o P. Benoit, é de 106 para 17, com a palavra revelação é usada 30 vezes
na expressão prophetica revelatio. Do mesmo modo que santo Tomás
fala de profecia em sentido amplo que abrange casos alheios à profecia
79 "Erit autem propheta si solummodo intellectus ejus illuminetur propriamente dita, assim também emprega o termo revelação quando se
ad dijudicandum etiam ea quae ab illis imaginarie visa sunt: ut patet de refere à infusão de luz sem novas representações (2a 2ae, q. 173, a. 2, c.).
Joseph, qui exposuit somnium Pharaonis" (2a 2ae, q. 173, a. 2, c.). Portanto, para santo Tomás revelação não tem o sentido técnico e estrito
80 De Verit., q. 12, a. 7, c.; 2a 2ae, q. 173, a. 2, c. ·de luz acompanhada de espécies, em oposição a inspiração: luz sem es-
81 "Sed sicut Augustinus dicit. . . maxime propheta est qui utroque pécies. A revelação compreende ao mesmo tempo inspiração e revelação
praecellit: ut videat in spiritu corporalium rerum significativas similitu- no sentido estrito. Contudo, já que o Aquino em sua análise reconheceu
dines et eas vivacitate mentis intelligat" ( 2a 2ae, q. 173, a. 2, c.). a distinção entre a luz com espécies e a luz sem representação infusa, é
82 "Manifestum est autem quod manifestado veritatis divinae quae legítimo basear nele a distinção atual entre revelação e inspiração. Cfr.
fit secundum nudam contemplationem ipsius veritatis, potior est quam P. BENOIT, em: S. Thomas, La Prophetie, pp. 278-282.
illa quae fit sub similitudine corporalium rerum; magis enim appropinquat 88 "Sed ad ea quae cognoscit per instinctum, aliquando sic se habet
ad visionem patriae, secundum quam in essentia Dei veritas conspicitur. ut non plene discernere possit utrum hoc cogitaverit aliquo divino ins-
Et inde est quod prophetia per. quam aliqua supernaturalis veritas cons- tinctu, vel per spiritum proprium. Non autem omnia quae cognoscimus
picitur nude secundum intellectualem veritatem, est dignior quam illa in divino instinctu, sub certitudine prophetica nobis manifestantur: talis
qua veritas supernaturalis manifestatur per similitudinem corporalium re- enim instinctus est quiddam imperfectum in genere prophetiae" (2a 2ae,
rum secundum imaginariam visionem" (2a 2ae, q. 174, a. 2, c.). q. 171, a. 5, c.).
83 2a 2ae, q. 174, a. 3, c. 89 "De his ergo quae expresse per spiritum prophetiae propheta
84 2a 2ae, q. 173, a. 2, c. cognoscit, maximam certitudinem habet, et pro certo habet quod haec
85 2a 2ae, q. 174, a. 2, ad 3. sibi sunt divinitus revelata. Unde dicitur Jer. 26,15: in veritate misit
188 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA
r A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 189
sala conhecemos indubitavelmente a presença do sol, assim seu comentário a são João nota que Deus revela de tres
o profeta, na luz que recebe, reconhece a origem divina da modos: por uma voz sensível ( como no batismo e na trans-
verdade revelada. "Temos uma indicação da certeza profé- figuração ) , pela manifestação de sua essência ( visão dos
tica no caso de Abraão que, avisado numa visão profética, bem-aventurados ) , por uma palavra interior ( caso dos pro-
preparou-se para imolar seu únicó filho; não o teria feito fetas) 93 • Palavra interior que nada mais é que a ilumi-
de modo algum se não tivesse plena certeza da revelação nação 94 •
divina" 90 • No fulgor da luz recebida o profeta percebe, Falar, diz ele, é manifestar o pensamento a outra pes-
sem raciocínio explícito, como se atinge a causa no efeito, soa 95 • O homem manifesta seus pensamentos com sinais
que Deus é o autor dessa luz e da verdade que ela lhe sensíveis ( mímica, sons, sinais gráficos); a. palavra, porém,
manifesta. no sentido formal é uma categoria que abarca ao mesmo
Divinamente iluminado, o campo de visão do profeta tempo a comunicação humana, angélica ou divina 96 • Entre
é ilimitado. O conhecimento profético, sendo um reflexo da a palavra humana e a divina existe analogia. Enquanto som
ciência divina, pode atingir qualquer objeto ao alcance dessa ou gesto a palavra só pode ser metaforicamente atribuída a
ciência, humano ou divino, corporal ou espiritual 91 ; esten- Deus; mas enquanto fato espiritual e manifestação do pen-
de-se a tudo que possa ser necessário ou útil saber para a samento, não importa nenhuma imperfeição e pode ser atri-
salvação humana, realidades presentes, passadas ou futuras, buída a ele.
pequenas ou grandes 92 • Jeremias vê uma significação divina Podemos,. observa ainda, distinguit duas audições e
numa amendoeira (Jer 1,11-12); Amós, num cesto de frutas duas palavras: "uma palavra exterior, na qual Deus nos fala
( Am 8,1-2): só importa o sentido que Deus atribui a essas pelos pregadores; uma interior, na qual nos fala por uma
humildes realidades. 1
1 inspiração interna. Inspiração que se chama palavra por
sua semelhança com· a palavra ·exterior. Assim como na
4. A revelação como palavra palavra exterior apresentamos a quem nos ouve não a pró-
A ação pela qual Deus comunica aos homens seu pen- pria coisa que lhe queremos dar a conhecer, mas um sinal
samento é para santo Tomás a palavra de Deus, por analogia seu, isto é, uma palavra que a significa, assim Deus -
com as· relações que entre si estabelecem os homens. Em quando inspira internamente - não dá a visão da essência,
mas um sinal dessa essência, uma semelhança espiritual
me Dominu,s ad vos, ut loquerer in aures vestras omnia verba haec" (2a de sua sabedoria". Foi assim que Deus se fez ouvir no
2ae, q. 171, a. e.). interior dos profetas; de modo semelhante dirigiu-se a Adão
90 "Et signum propheticae certitudinis accipere possumus ex hoc quod
·Abraham, admonitus. in prophetica visione, se praeparavit ad filium unige- e o instruiu diretamente 97 • Os sinais ou semelhanças que
nitum immolandum: quod nullatenus fecisset nisi de divina revelatione
fuisset certissimus" (2a 2ae, q. 171, a. 5, e.). Santa Teresa observa tam- 93 "Ostenditur triplex modus quo. a Deo aliquid revelatur alicui.
bém a respeito de suas visões: "E tão no íntimo, as palavras se ouvem Quia vel per vocem sensibilem et sic testificatus est Christo in Jordane et
tão claramente da boca do mesmo Senhor, com os ouvidos da alma, e tão in monte,. . . vel per visionem suae essentiae, et bane revelat beatis, ...
em segredo, que o próprio modo de as entender e os efeitos operados vel per interius verbum inspirando" (ln Jo.,· e. 5, lect. 6).
pela sobredita visão, dão segurança ê certeza de que ali o demônio não 94 "Perceptio divime locutionis, qua prophetam alloquitur interius, qtire
pode ter parte" ( Castelo Interior, ou Moradas), Sextas Moradas, cap. 3. - nihil est quam mentis illustratio" (De Verit., q. 12, a. 1, ad 3).
Obras de Santa Teresa de Jesus, Traduzidas pelas Carmelitas descalças 95 "Nihil aliud est loqui ad alterum quam conceptum mentis alteri
do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, tomo IV. (Petrópolis, manifestare" (la, q. 107, a. 1, e.).
(1945), p. 132). 96 la, q. 107, a. 2; De Verit., q. 18, a. 3.
91 "Cognitio autem prophetica est per lumen divinum,. quo possunt 97 "Est etiam quaedam locutio exterior, qua Deus nobi~ pe! ~raedi-
omnia cognosci, tam divina quam humana, tam spiritualia quam corpo- catores loquitur; quaedam interior, qtia loquitur .nobis per msp1rat1onem
ralia" (2a 2ae, q. 171, a. 3, e.). internam. Dicitur autem ipsa inter.ior inspirado locutio quaedam ad simi-
92 ln Rom., e. 11, lect. 1. litudinem exterioris locutionis sicút enim in exteriori locutione proferi-
190 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 191

se recebem são representações deficientes do objeto divino, dos povos instruindo primeiro os apóstolos, confiando-lhes
mas com elas e pela luz que as ilumina Deus verdadeira- depois a missão de transmitir sua doutrina a todos os povos,
mente nos comunica seu pensamento, nos inicia aos seus mis- a cbmeçar pelos judeus 102 • Finalmente, a quaestio 40 observa
térios: Deus fala a nós 98 • que o Cristo preferiu conversar com os homens e não levar
uma vida solitária, pois que viera ao mundo para manifestar
5. A revelação pelo Cristo e pelos apóstolos a verdade 103 • .
Encontra-se mais alguma coisa no comentário sobre
Quanto à revelação pelo Cristo e pelos apóstolos en- são João. "Outrora o Filho manifestou o conhecimento de
contramos na Summa somente breves indicações, muito su- Deus pelos profetas que o anunciaram na medida em que
gestivas, porém. A terceira parte, que trata do Cristo Sal- participavam do Verbo eterno. . . Agora, porém, o próprio
vad~r, começa assim: "Viam veritatis nobis in seipso de- Filho falou de Deus aos fiéis. Portanto essa doutrina vence a
monstravit" (Prólogo). Para que o homem caminhasse todas em dignidade, autoridade, utilidade, imediatamente
c~m maior confiança rumo à verdade, a própria verdade, o transmitida que foi pelo Filho unigênito que é a Sabedoria
· · "w4 . O hornem, quan do quer mam'festar seu pensa-
primeira
Filho de Deus, fazendo-se homem, estabeleceu e fundou a
fé: por isso, apoiando-se na palavra do Cristo apóia-se o mento, encarna-o em sons ou letras: do mesmo modo "Deus,
homem na ·palavra de Deus 99 • Todos os fatos da vida do querendo manifestar-se aos homens, revestiu de carne no
Cristo ( nascimento, batismo, transfiguração, milagres, pai- tempo seu Verbo concebido desde toda a eternidade" 105 •
xão, morte, ressurreição) revelam-nos um ou outro aspecto Pela carne que assumiu, o Verbo nos fala e nós o podemos
do mistério da salvação 100 • Por toda sua pessoa encarnada ouvir 106 • O Cristo é pois, por sua humanidade, o caminho
indica-nos o Cristo o caminho da salvação. A quaestio 7 que leva ao conhecimento da verdade; por outro lado, sendo
apresenta o Cristo como o "primeiro e principal Doutor da Deus, é a própria Verdade 107 • Dá testemunho à verdade,
fé" 101 • A quaestio 42 nota que o Cristo foi Luz e Salvação à verdade que é ele mesmo 108 • Ninguém mais que ele
pode manifestar a verdade, pois que ele é luz e verdade 10'.
~us ad. ipsum audientem non ipsam rem quam notificare cupimus, sed Sendo Sabedoria e Verbo de Deus, é "o começo e o princípio
s1gnum il!ius rei, sci~icet vocem significativam; ita Deus interius inspirando,
n_on exh1bet essentlam suam ad videndum, sed aliquod sure essentire
de nossa sabedoria" 11 º, "a raiz e a fonte de todo conheci-
s1gnum, quod est aliqua spiritualis similitudo sure sapientire. Ab mento sobre Deus" 111 •
utroque auditu fides in cordibus fidelium oritur. Per auditum interiorem O Cristo é o Doutor por excelência, cuja palavra re-
in his 9uae fide~ primo acceperunt et docuerunt, sicut in apostolis et in vela os segredos do Pai. Santo Tomás vê nesse ministério
propheus; unde m Ps. 84,9: Audiam quid loquatur in me Deus. Per se-
c~ndum :'eri auditum fides oritur in cordibus aliorum fidelium, qui per uma das duas funções principais do Cristo, sendo a outra
ahos !-iomm~s ~ognitionem fidei accipiunt. Adam autem primo fidem habuit, a de "abrir-nos por sua paixão as portas do céu" 112 • O
et pnmo est. fidem edoctus a Deo; et ideo per internam locutionem fidem
habere debuit" (De Verit., q. 18, a. 3, e.). "ln statu primre conditionis Cristo prega tanto por suás ações como por suas palavras 113 ,
non era~ auditus ab homine_ exterius loquente, sed a Deo interius inspi- mas, diferente dos mestres humanos, ensina externa e in-
!ante: s_1cut et propheta~ _aud1ebant" (2a 2ae, q. 5, a. 1, ad 3 ). "Ita igitur ternamente 114 • Às vezes santo Tomás identifica essa função de
m homme duplex cogmt10 erat: una qua cognoscebat Deum conformiter
angelis per inspirationem internam; alia qua cognoscebat Deum conformi-
ter nobis per sensibiles creaturas" ( De Verit., q. 18, a. 2, e). gratiae gratis datae, sicut in primo et principali Doctore fidei" ( 3a, q. 7,
98 la, q. 107, a. 1. · a. 7, e).
99 3a, q. 1, a. 2, e. 102 3a, q. 42, a. 1, ad 1.
100 Quanto ao nascimento: 3a, q. 36, a. 3, ad 1; quanto ao batismo: 103 3a, q. 40, a. 1; ln ]o., e. 3, lect. 5.
?ª, q. 3~, a. 8~ ad 2 et 3; quanto aos milagres: 3a, q. 44, a. 3 ad 1; quanto 104 "Olim enim unigenitus Filius manifestavit Dei cog111t1011em per
Pwphetas, qui eum in tantum annuntiaverunt in quantum aeterni Verbi
a transfiguraçao: 3a, q. 45, a. 4, ad 2; quanto à ressurreição: 3a, q. 53,
a. 1 et 3. fuerunt participes. . . Sed nunc ipse unigenitus, Filius, enarravit fideli-
101 "Manifestum est quod in Christo fuerunt excellentissime omnes bus. . . Et haec doctrina ideo omnibus aliis doctrinis supereminet digni-
192 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO. XIII
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 193
Doutor à de Profeta. Como os profetas, teve Cristo em sua
imaginação o reflexo da_s coisas divinas 115 ; mes~o-co?1o ho- velação está na Escritura, é preciso acreditar numa e noutra:
mem, porém, sobrepuja os profeta~ pela sua_ v1sao !~te~ec- "quidquid scriptura continet" 124 • O objeto de noss~ fé é ·a
tual de Deus 116 • Como ·Deus é mais que profeta: é o ins- verdade primeira proposta nas Escrituras, compreendidas, po-
pirador dos profetas e dos anjos";, "anuncia a v~~fade sob~e rém segundo a sã doutrina da Igreja. Deus propôs sua
Deus" mas ao mesmo tempo ele e essa .verdade . Instruiu '
doutrina diretamente aos prof etas e aposto ' 1O!\; a nos '
'
os apóstolos . sua pregação e por seu Espmto
por , . 118 ~ue lhes propõe pela Igreja. Esta será pois a regr~25 infalíve_l no que
manifestou o sentido de sua doutrina • Podem assim tam-
119 tange à proposição da verdade revelada . Manifestou:se
bém· os apóstolos iluminar os homens 120 por sua pregação, Deus através de muitíssimos escritos, sob formas literárias
dar o seu testemunho do Cristo que viram e ouviram 121 , muito variadas · e assim sua doutrina é muitas vezes uma
transmitir sua doutrina. ·resultante que 'dificilmente se percebe. Por isso recebeu a
Igreja a missão de esclarecer qual é propriame~te o tes:e-
6. Revelação., Escritura, Igreja munho divino da Escritura. Os símbolos concretizam a açao
da Igreja que afirma e propõe o que está revelado e que,
O conjunto dos conhecimentos que Deus revelou aos pro- portanto, deve ser crido 126 • O símbolo dos apóstolos é o
fetas e aos apóstolos ch ama-se "doutrma· sagrad a ", " ens ina- encontro de toda a Igreja na unidade, da fé: é o ponto de
mento segundo a re;elação" que se contém na Escritura 122 • reunião da multidão dos crentes, dos apóstolos que o com-
"Baseia-se nossa fé na revelação feita aos apóstolos e aos pro- puseram e dos pregadores que o anunciar_am. É.ª ~~mpi-
fetas que escreveram os livros canônicos" 123 • Sendo que a re- lação das Escrituras, um resumo dos maiores misterios e
dos maiores benefícios de Deus 127 • Os vários símbolos "não
tate, auctoritate et utilit~te, quia ab unigenito Filio, qui est prima diferem a não ser nisto: um explica mais amplamente o
sapientia, irnmediate est tradita" (ln ]o., c. 1, lect. 1~). que o outro contém implicitamente, conforme o exigiam
105 "Et sicut homo volens revelare se verbo cordi~, quod . profert
ore induit quodammodo ipsum verbum litteris vel voce, tta Deus, volens
os ataques dos hereges" 128 • "Na doutrina do Cristo e
se 'manifestare hominibus, Verbum suum conceptum ab aeterno, carne dos apóstolos a verdade da fé está suficientemente ex-
induit in tempore" (ln Jo., c. 14, lect. 2.).
106 ln Jo., c. 8, lect. 3.
101 ln Jo:, c. 14, lect. 2; c. 1, lect. 8. 124 2a 2ae, q. 2, a. 5, c. • .
108 ln ]o., c. 3, lect. 5. · . d d é ·' 125 "Formale objectum fidei est veritas prima, secundum quo? mam-
109 ln .]o., c. 18, lect. 6. Cfr. A. NYSSENS, La pl~nztu e e. v ~tte festatur in Scripturis sacris et in doctrina Ecclesiae: Unde q~ncumque
dans le Verbe Incarné. Doctrine de Saint Thomas d'Aquzn (Baudoumville, ·non inhaeret sicut infallibili et divinae regulae, doctrm,ae Eccles1ae, quae
1961 ). procedit ex veritate prima in · Scripturis ~~cris ~anifest_ata,_ ill~ ~º?- habet
110 ln ]o., c. 1, lect. 1. habitum fidei" (2a 2ae, q. 5; a. 3, c.). Omm~us artt~lis f1de1 mh~eret
,111 ln ]o., c. 17, lect. 6. fides propter unum medium, scilicet_ propter ve~ttat~m P!tm~ prop?,sttam
112 I n Jo., c. 4, lect. 4. nobis in Scripturis secundum doctrmam Eccles1ae mtelligent1s sane ( 2a
1IJ ln ]o., c. 11, lect. 6. 2ae, q; 5, a. 3, ad 2).. . .. d'
114 ln Jo., c. 13, lect. 3; c. 3, lect. 1. 126 "Veritas fidei in Sacra Scriptura diffuse contmetur et varns mo 1s,
115 3a, q. 7, a. 8, ad 1; 2a 2ae, q. 174, a. 5, ad 3. et in quibusdam obscure; ita quod ad · elicien~~ fidei verhatem ex sacra
116 ln ]o., c. 4, lect. 8. scriptura requiritur longum studium et exerc1ttum, ad q?o~ no~ possunt
117 ln ]o., c. 4, lect.' 6; c. 6, lect. 2. pervenire omnes i1li quibus necessarium.. est cognosce_re fide1 ".er1~atem .. :
118 ln ]o., c. 17, lect. 6. Et ideo fuit necessarium ut ex sententns sacrae scripturae al1qwd mam-
119 ln ]o., c. 14, lect. 4. festutn summarie colligeretur quod proponeretur omnibus a~ credendum.
120 I n Jo., c. 12, lect. 8 .. Quod quidem non est additum sacrae scripturae, sed potms ex sacra
121 ln ]o., c. 15, lect. 5. scriptura assumptum" (2a 2ae, q. 1, a. 9, ad 1).
122 la, q. 1, a. 1, c. . . . . . 121 III Sent., d. 25, q. 1, a. 1, qla 3. , .
123 "Innititur enim" fides nostra revelat1oru apostohs et prophetts 128 "Quae in nullo alio differunt nisi quod in uno. plenius exp~cantur
factae, qui canonicos libros scripserunt" (la, q. 1, a. 8, ad 2). quae in alio continentur implicite, secundum quod ex1gebat haeret1corum
•instantia" (2a 2ae, q. 1, a. 9, ad 2).

7 - Teologia da revelação
194 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 195
plicada. Como, porém, homens perversos pervertem a dou- Em conjunto com a ação exterior dessa pregação ga-
trina apostólica e o resto das Escrituras . . . torna-se neces- rantida pelo próprio Deus, a graça age internamente e
sário, no decurso dos tempos, uma explanação da fé contra convida a crer na mensagem proposta. Arrasta-nos Deus
os erros que vão surgindo" 129 • não só pela mensagem de salvação e pelos sinais de poder
que são os milagres, mas também por uma atração que
7. Da revelação à fé internamente ·Rroduz 136 • Dois os apelos que ressoam: "um
Os homens, ao contrário das grandes testemunhas de exterior, pela voz do pregador; interior, o outro, que não
Deus, apóstolos e profetas, chegam à revelação apenas me- é senão uma inspiração do espírito pela qual o coração do
diatamente: de um intermediário humano é que recebem a homem é impelido a dar o seu assentimento ao objeto da
verdade da fé 130 • Essa palavra exterior é também palavra fé. . . Apelo que é necessário, pois nosso coração não se
de Deus, derivada que é da revelação primeira 131 • Contudo, voltaria para Deus se o próprio Deus não o atraísse a si" 137 •
antes de aceitá-la e de por ela arriscar toda sua vida, é justo Alhure~ observa santo Tomás que Deus nos ajuda a crer
que o homem verifique os títulos que garantem a autorida- com um tríplice auxílio: por um apelo interior, pelo ensi-
de do mensageiro. namento e pela pregação exterior, pelos milagres 138 • O apelo
O pregador da fé é credenciado e seu ensinamento qua- interior da graça é o "testemunho" da "Verdade primeira
lificado como divino pelos milagres que Deus lhe concede que ilumina e instrui internamente o homem" 139 • Se falta
realizar 132 ; esse o selo divino que atesta a origem divina da o socorro de Deus e de sua pregação interior, em vão se
doutrina pregada 133 , o argumento que manifesta como real-
mente divina a palavra do profeta 134 • A ação persuasiva 136 "Quia non solum revelatio exterior, vel objectum, virtutem attra-
do pregador, sua própria certeza contagiante, são também hendi habet, sed etiam interior instinctus impellens et movens ad cre-
dendum; ideo trahit muitos Pater ad Filium per instinctum divinae ope-
agentes que externamente solicitam 135 • rationis nioventis interius cor hominis ad credendum" (ln ]o., e. 6, lect.
5). Cfr.: 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3.
129 "ln doctrina Christi et apostolorum veritas fidei est sufficienter 137 Primum in quo incipit praedestinatio hominis impleri est vocatio
explicata. Sed quia perversi homines apostolicam doctrinam et ceteras hominis, quae quidem est duplex: una exterior, quae fit ore praedica-
scripturas pervertunt,. . . necessaria est, temporibus procedentibus, expla- toris ... ; alia vero vocatio est interior quae nihil aliud est quam quidam
natio fidei contra insurgentes errores" (2a 2ae, q. 1, a. 10, ad 1). mentis instinctus quo cor hominis movetur a Deo ad assentiendum his
130 2a 2ae, q. 6, a. 1, c. Cfr.: B. DuRoux, La psycologie de la foi quae sunt fidei et virtutis. . . Et haec vocatio necessaria ·est quia cor
chez Saint Thomas d'Aquin (Fribourg, 1956), pp. 28-30. nostrum non se convetteret ad Dominum, nisi ipse Deus nos ad se
131 De Verit., q. 18, a. 3, ad 2. traheret" (ln Rom., e. 8, leçt. 6).
132 "Fides non habet inquisitionem rationis naturalis demonstrantis 138 "Adjuvatur autem a Deo aliquis ad credendum tripliciter. Primo
id quod creditur, habet tamen inquisitionem quamdam eorum per quae quidem per interiorem vocationem, de qua dicitur Jo. 6,45: omnis qui au-
inducitur homo ad credendum, puta quia sunt dieta a Deo et miraculis divit a Patre, et didicit, venit ad me; et ad Rom. 8,30: quos praedesti-
confirmata" (2a 2re, q. 2, a. 1, ad 1). Cfr.: C. G., L. III, c. 154. navit, hos et vocavit. Secundo, per doctrinam et praedicationem exterio-
133 "Ut, dum aliquis facit opera quae solus Deus facere potest, cre- rem, secundum illud Apostoli ad Rom. e. 10,17: Fides ex auditu, auditus
dantur ea quae dicuntur esse a Deo, sicut cum aliquis defert litteras autem per verbum Christi. Tertio, per exteriora miracula; unde dicitur
anulo regis signatas, creditur ex voluntate regis processisse, quod in illis lCor. 14, quod signa data sunt infidelibus ut scilicet per ea provocentur
continetur" (3a, q. 43, a. 1, c.). "Hoc contingere non potest quod ad fidem" ( Quodl., 2, q. 4, a. 6). "Ille qui credit habet sufficiens in-
aliquis falsam doctrinam annuntians, vera miracula faciat, quae nisi virtute ductivum ad credendum: inducitur enim auctoritate divinre doctrinre mi-
divina fieri non possunt; sic enim Deus esset falsitatis testis, quod est raculis confirmatre, et, quod plus est, interiori instinctu Dei invitantis"
impossibile" ( Quodl. 2, q. 4, a. 6, ad 4). Cfr. também: 2a 2ae, q. 178, a. 1. (2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3).
134 "Ad hoc datum est hominibus facere miracula ut ostendatur quod 139 "Deus testificatut alicui dupliciter, scilicet sensibiliter et intelligi-
Deus per illos loquitur" (III Sent., d. 25, q. 2, a. 1, qla 4, ad 4). Cfr.: biliter. . . Intelligibiliter autem testificatur inspirando in cordibus aliquo-
A. VAN HovE, La doctrine du miracle chez S. Thomas et son accord avec rum quod credere debeant" (ln ]o., e. 5, lect. 6). "Dicendum quod
les príncipes de la recherche scientifique ( Louvain, 1927); B. DuRoux La interior instinctus quo Christus poterat se manifestare sine miraculis ex-
psychologie de la foi chez Saint Thomas d'Aquim, pp. 38-44. terioribus pertinet ad virtutem Primre Veritatis qure interius hominem
135 2a 2ae, q. 6, a. 1, c; q. 171, a. 5, e. illuminat et docet" ( Quodl. 2, q. 4, a. 6, ad 3).
196 A ESGOLÁSTICA DO SÉCULO XIII A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIIt 197
esforça o pregador O homem recebe . pois dois dons
140 •
_modo, o homem tende parà Deus; no segundo, Deus indi-
de Deus: o dom da doutrina e o dom da graça para con- na-se par~ o homem, revela-se-lhe e pela _fé pouco a pouco
fessar a doutrina proposta 141 • Pelo menos habitualmente o encaminha para a visão._ "A profecia é ·como que algo
santo Tomás não chama de revelação essa ação da graça, imperfeito no gênero. da divina revelação. . . A perfeição
ma~ de vocação, apelo, atração ou tração do Pai, moção, da divina revelação será conseguida na pátria" 144. Enquanto
socorro, testemunho e, principalmente, instinto e inspiração a esperamos, caminhamos pela fé. "A contemplação que
interior 142 • suprime toda necessidade de fé, será a . contemplação da
pátria, .na qual a verdade 'sobrenatural será percebida em
8. Revelação como grau no conhecimento de Deus sua essência" 145 • Somente então a "Verdade primeira será
conhecida, não pela fé, mas na visão;. . . não percebere-
Revelação e fé não existem por si mesmas, mas para mos apenas um pouco dos divinos mistérios, mas a pró-
a visão, pois que o fim do homem é chegar, um dia, ao face à pria majestade divina com toda a perfeição de suas ·rique-
face da contemplação divina. Nesse sentido a revelação é zas . . . Então a verdade se proporá ao homem, não mais
um conhecimento imperfeito, um momento de nossa ini- envolta em véus, mas inteiramente a descoberto" 146 • Essa
ciação à visão: "De tres modos o homem pode conhecer inanifestação terá o fulgor de um: relâmpago. Deus é ver-
as coisas divinas; pelo primeiro o homem, graças à luz na- dade em seu ser e· em suas palavras. Pela verdade de sua
tural da razão, eleva-se ao conhecimento de Deus pelas palavra, leva-nos pouco a pouco à verdade de seu ser.
criaturas; pelo segundo, a verdade divina, que ultrapassa
os limites de nossa inteligência,· desce a nós pela revelação
não como evidentemente demonstrada, mas· como palavra 9. Conclusões
que se deve crer; pelo terceiro, a alma será elevada para
ver perfeitamente o que lhe fora revelado" 143 • No primeiro À base da teologia e da fé católica, santo Tomás co-
loca o fato primordial da revelação: operação salvífica pela
140In ]o., 21, lect. l; ln Mt. 4, 18. . qual Deus, não querendo deixar o homem entregue apenas
141"Fides ex duabus partibus est a Deo, scilicet ex parte interioris aos recursos da razão, fornece-lhe todas as verdades ne-
luminis guod inducit ad assensum, et ex parte eorum· guae extedus pro-
ponuntur, guae ex divina revelatione initium sumpserunt; et haec se cessárias e úteis para a salvação. Operação que se realiza
habent ad cognitionem fidei sicut accepta per sensum ad cognitionem prin- no tempo, em etapas sucessivas, progredindo tanto no âm-
cipiorum, guia utrisgue fit •aligua cognitionis determinado. Unde si~ut bito como na compreensão das verdades reveladas. Dos
cognitio principiorum accipitur a sensu, et tamen lumen guo principia
cognoscuntur est innatum, ita fides est ex auditu; et tamen auditus fidei patriarcas e. profetas até os apóstolos forma-se paulatina-
est infusus" (ln Boet. de Trin., lect. 1, g. 1, a. 1; ad 4). Cfr.: 2a 2ae,
g. 6, a. 1, e. · .
142 2a 2ae, g. 2, a. 9, ad 3; g. 10, a. 1, ad 1; In Jo., e. 6, lect. 5;
tia est secundum guod roens humana elevabitur ad ea guae sunt revelata,
perfecte intuenda" (C. ·G., L. IV, e. 1). ·
2a 2ae, g. 1, a. 4, ad 3; In Rom. e. 8, lect. 6; Quodl. 2, g. 4, a. 6, ad 3. 144 "Prophetia- est ~·.cut guj.ddam imperfectum in genere divinae reve-
Cfr.: B. DuRoux, La psychologie de la foi chez Saint Thomas d'Aquim, lationis. . . Perfectio autem divinàe revelationis erit in ·patria" ( 2a 2ae,
pp. 32-38. Para estudar os textos de santo Tomás sobre o instinto in-
terior, veja: M.-L GuÉRARD DES LAuRIERS, Dimensions de la foi (2 vol., g. 171, a. 4, ad 2). Cfr.: 2a 2ae, g. 173, a. 1, e.
· 145 ''Contemplado quae tollit necessitatem fidei est contemplado pa-
Paris, 1952), excursus VI: "Instinct intérieur, grâce actuelle et grâce
sanctifiantel', 2: 253-269; ver ainda os autores citados mais. abaixo, nota triae, gua supematuralis veritas per essentiam videtur" (2a 2ae, g. 5, a.
8 do II cap. · da 5~ parte: n. 120. . · · 1, ad 1). Cfr.: De Verit., g. 14, a. 9, ad 2.
146 "Ad tertiam cognitionem pertinet, guia pril:µa Veritas cognoscetur,
143 "Est igitur triplex cognitio hominis de divinis. Quarum prima est,
secundtim guod homo naturali lumine rationis, per creaturas in Dei non sicut credita sed sicut visa; videbimus enim eum sicut est, ut dicitur
cogqitiõnem -ascendit; secunda est, prout divina veritas intellectum huma- ( 1Jo. 3,2); nec iiliguid modicuin de divinis mysteri~s percipietur, sed ipsa
m.1ni:"exceden.s, per modum revelationis in nos descendit, non tamen guasi majestas divina videbitur, et ·omnis bonorum perfectto;. . . non a~tem pro=
demónstrata" ad videndum, sed guasi sermone prolata ad credendum; ter- ponetur veritas homini . aliguibus velaminibus occultata,. sed omnmo mant-
festata" (C. G., L. IV, e. 1).
198 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 199
mente o depósito sagrado da verdade revelada. A encarna- Destinando-se o homem à visão, a revelação é apenas
ção do Cristo marca a plenitude e a consumação da revelação. uma etapa transitória para a economia definitiva da pátria.
O Antigo Testamento, até o último profeta, orienta-se para o Conhecimento de Deus superior ao conhecimento natural
Cristo. Dado, porém, o Cristo, a função da revelação será fa- mediante ~s obras da criação, imperfeito, porém, se com-
zer-nos conhecer e apredar o dom da salvação. Doravante, parado ao conhecimento face a face da visão beatífica.
assim como já não se espera um novo redentor, não haverá É_ preciso notar a perfeita coerência da doutrina de
também uma nova revelação que se proponha à fé da Igreja. santo Tomás. Segundo seu modo de ver constante, o conhe-
Santo Tomás interessa-se principalmente pela revelação cimento não se concretiza senão no julgamento. A revelação,
imediata e, mais especificamente, pela profética. Esta sendo eminentemente conhecimento, exige, como qualquer
é, para ele, essencialmente um ato cognoscitivo: graças a conhecimento, uma apreensão do objeto e uma luz que
uma iluminação especial, o profeta julga com certeza e sem possibilite o julgamento. Assim acontece no conhecimento
erro, conforme à intenção divina, os objetos presentes à natural, assim também no conhecimento da fé, entendido
sua consciência, chegando assim à posse da verdade que segundo o mesmo esquema. Duas coisas são exigidas na
Deus lhe quer comunicar. Por essa iluminação e esse juízo, fé: um objeto para ser crido, verdades propostas, e o assen-
dá-se realmente no profeta a manifestação do pensamento timento a essas verdades. A proposição das verdades faz-se
divino. A ação de Deus que comunica ao homem seu pen- pela pregação exterior, garantida pelos milagres, enquanto que
samento mediante semelhanças e sinais criados, chama-a san- o assentimento sobrenatural se torna possível pela luz da fé.
to Tomás palavra de Deus. Isso por analogia com a palavra O mesmo se dá, afinal, com o conhecimento na glória,
humana que também é comunicação do pensamento mediante quando o objeto .( a essência divina) será visto conforme
sinais. Da revelação imediata do Cristo aos apóstolos ele fala a Verdade na luz da glória. A luz é o movimento descen-
menos. No Cristo vê principalmente o Mestre por excelência, dente da revelação; luz que possibilita o movimento ascen-
o Doutor da fé, o Verbo em pessoa, Verdade e Sabedoria dente da fé. Tudo vem de Deus: a revelação e a fé que lhe
de Deus, que assume a natureza humana para ensinar ao ho- corresponde. No tema da revelação, quase não encontra-
mem, por· gestos e palavras humanas, o caminho da salvação. remos entre os teólogos subseqüentes perspectivas mais vas-
A màioria dos homens não tem acesso à revelação a tas que as desenvolvidas por santo Tomás. A terminologia
não ser mediatamente, pela pregação da doutrina da salva- tornar-se-á mais precisa, mais técnica, mas a reflexão não se
ção: pregação garantida como palavra de Deus pelos mila- tornará muito mais profunda.
gres que atestam sua origem divina. Deus leva-nos a crer
pela pregação exterior e pelos milagres, mas também pela
ação interior de sua graça que nos convida a aderir à mensa-
III. DUNS SCOT
gem ouvida. Ação da graça que santo Tomás, pelo menos habi-
tualmente, não denomina revelação, mas antes, vocação, A doutrina de Duns Scot 147 sobre a revelação pode
atração, socorro, moção, testemunho e, principalmente, ins- resumir-se nos pontos seguintes: necessidade e economia da
tinto interior. revelação, relacionamento da revelação com a Escritura e
O conjunto de verdades que Deus nos dá a conhecer,
denomina-o santo Tomás doutrina que procede da revela- 147 Sobre o tema da revelação em Duns Scot, cfr.: S. BELMOND,
ção, doutrina sagrada, verdade de fé. Não o chama dire- "Crédíbílité et révélatíon d'apres Duns Scot", Études francíscaines, 34
tamente de revelação. Essa verdade está contida na Escri- ( 1922): 5-22, 145-157, 289-307; P. MINGES, Joannis Duns Scoti Doctrina
philosophica et theologica (2 vol., ad Claras Aguas, 1930), 1: 521-548;
tura, corretamente interpretada e compreendida pela Igreja A. M._ VELLICO, "De regula fídeí juxta Joannís Duns Scotí doctrínam",
que no-la propõe nos símbolos de fé. Antonzanum, 10 (1935): 11-36; B. A. WoLTER, "Duns Scot on the Ne-
200 . A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 201
com a tradição, e em particular, a revelação aos profetas e todos os homens é a autoridade que não pode nem se enganar
aos apóstolos. nem enganar 151 • A revelação · é sobrenatural, não enquanto
conhecimento, pois o conhecer é natural ao homem mas
l. Necessidade e eco_nomia da revelação tendo em vista a sua fonte, que é Deus,· e o como é ~omu-
nicada 152 • No próprio dado revelado podemos distinguir
O Prólogo ao Comentário às Sentenças intitula-se: ".Da objetos estri~amente revelados ( Trindade, encarnação) que
necessidade de uma: doutrina revelada". Aos filósofos que de per si são inl!,cessíveis à razão, e objetos revelados de fato,
· ousassem negar a necessidade de uma doutrina revelada, que poderiam · ser conhecidos naturalmente 153 • Scot, por-
sob pretexto de que a natureza permite ao homem conse- ~anto, entende como revelação a tradição .ou comunicação,
guir, no desenvolvimento natural de suas faculdades, todos ativa e autoritativa, da doutrina necessária ou útil para a
os conhecimentos indispensáveis, Scot re.sponde pela refu- salvação. Esse modo de conhecer, não avilta o homem,
tação de sete objeções fundamentais e por uma argumenta- antes o dignifica, pois que a capacidade de receber uma per-
ção positiva. O homem necessita, observa ele, de uma dou- feição que o transcende manifesta evidentemente sua digni-
trina sobrenaturalmente revelada; isto por tres motivos:· dade 154 • .·

para conhecer o seu fim e para deliberadamente tender em Duns Scot, como santo Tomás, concebe a revelação como
sua direção; para saber com que meios o poderá atingir; uma operação hierárquica: os anjos superiores, instruídos so-
para estar certo que esses meios bastam para garantir a bre os maiores mistérios, comunicam-nos aos inferiores· estes
sua posse 148 • Esses conhecimentos devem ser-lhe comunica- são enviados aos homens para anunciar ou realizar as ~ensa-
. dos sobrenaturalmente, por que, deixado a si mesmo, não gens divinas 155 • · Partindo de um texto de são Paulo ( Ef
os poderia encontrar nem ensinar a outros: Haec autem 3,1 O); Scot observa que o mistério da encarnação pôde ficar'
prima traditio talis doctrinae dicitur revelatio 149 • Como foi oculto aos anjos inferiores até os tempos da vida do Cristo
possívd essa primeira comunicação da doutrina necessária . e da pregação do Evangelho na Igreja 156 • Os profetas e os
à salvação? Por uma palavra interior? ou exterior mediante · ~p1stolos e~tão entre <?S homens como "montanhas da Igre-
sinais sensíveis? Não o poderíamos dizer com certeza, pois Ja : a partir deles flut a verdade para toda a humanidade
um e outro meio seriam possíveis 150 • Seria muito útil que e sobre eles repousa a fé dos fiéis 157 •
também verdades naturais nos fossem "comunicadas me-
diante autoridade", já que a coletividade é negligente na 2. A Escritura e o costume
b~sca da verdade, e o espírito humano é impotente, multi-
. plicando os erros na demonstração e tornando assim obscura "O conhecimento sobrenatural necessário ao homem é
a verdade. Sendo assim, o caminho mais seguro e útil para transmitido de modo suficiente na Escritura"? Scot res-
ponde afirmativamente· e apresenta oito argumentos para
cessity of revéaled Knoweledge", Franc. Stud., 11 ( 1951): 231-272; T. d~~onstrar que a Escritura é verdadeiramente de origem
BART, • "Duns Scotus und die Notwendigkeit einer übematürlichen Offen- dtvma: as profecias, a· concórdia das Escrituras, a autori-
barung", Franz. Stud., 51 (1959): 362-404; 52 (1960): 51-65; J. FIN- dade dos autores, a diligência dos destinatários, a conveniên-
KENZELLER, Offenbarung und Theologie nach der Lebre des Johannes
Duns- Skotus (Münster, 1961); J. BEUMER, Die mündliche Ueberlieferung
als Glaubensquelle ( Freiburg, 1962). . . 151 I Sent., dist. 2, q. 3, n. 7.
148 Prol., p. 1, un., nn. 13, .17, 18. Quanto ao Prólogo, usamos o 152 Prol.,· p. 1, q. un., nn. 62-6.5.
text~ da edição ~aticana: Doctoris Subtilis· et Mariani Joannis Duns 153 Ibid., n. 65.
Scott .Opera Omnza studio et cura Commissionis scotisticae praeside C. 154 Ibid., n. 75.
Balic (Civitas Vaticana, 1950ss). :: Ox. II, d~st. 9, q. 2, n. 25; dist. 10, q. un., n. 2.
149 Ibid., n. 62. Ox. II; dtst. 10, q. un., n. 2.
150 Ibid. n. 69. 157 Rep. Par. III, dist. 24, q. un., nn. 21-22.

j
202 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 203

eia racional do dado revelado, a absurdidade dos erros opos- mente, diz ele, se revela por imagens interiores 165 • Por isso
tos ao dom revelado, a estabilidade da Igreja, a evidên- é que a revelação profética acontece principalmente no sono
cia dos milagres 158 • Numa primeira série de textos afir- quando o- homem está menos distraído pelos objetos do
ma que a Escritura contém todo o necessário e suficiente mundo exterior. É tanto mais extraordinário, observa Scot,
para que o homem atinja seu fim 159 • Com efeito, a Escri- que uma verdade seja revelada num sonho, pois se é na-
tura determina não s6 qual o fim do homem, mas também ~ural _que o homem tenha o uso da razão quando acordado,
quais os meios para consegui-lo. Também a ·teologia tem e mmto menos natural que o tenha quando dorme 166 • Fa-
como objeto o que está contido na Escritura e o que daí lando da ação divina, explica que Deus, para se dar a co-
decorre 160 • Noutros textos, contudo, Scot esclarece que nem nhecer, pode servir-se de um objeto que o represente sob
tudo foi escrito: "Muitas verdades foram transmitidas à ~eu ?spec~o de Divindade, ou então, agindo diretamente na
Igreja pelos ap6stolos, que não estão, porém, consignadas 1ntehgenc1a do profeta, pode produzir esse conhecimento
nos Evangelhos" 161 Por exemplo: a descida de Cristo ao de si mesmo sem qualquer objeto intermediário. "Esse co-
inferno e vários pontos da economia dos sacramentos. Con- nhecimento chama-se palavra interior de Deus como o
tudo a Igreja considera essas verdades "transmitidas certa- conhecimento dos profetas" 167 • Os anjos ou os' demônios
mente pelos apóstolos". Devemos pois admitir não s6 o que não poderiam elevar o homem a um conhecimento dessa
nos vem por estrito dos ap6stolos, mas também o que se ordem 168 • O conhecimento surgido assim é acompanhado de
ap6ia no "costume universal da Igreja". Aliás, o Cristo não uma certeza firmíssima: certeza que o conhecimento vem
declarou aos ap6stolos que teria muitas outras coisas para de Deus e certeza da verdade desse conhecimnto. Ainda
lhes dizer e que lhes seriam ensinadas pelo Espírito Santo? q~e a certeza do profeta não repouse na evidência do objeto,
"Ensinou, pois, o Espírito Santo muitas coisas que não es- nao pode ele negar-se a aceitar a verdade recebida 169 • A
tão no Evangelho, numerosas coisas que os ap6stolos trans- verdadeira profecia inclui a certeza e a consciência da ação
mitiram em parte pela Escritura em parte pelo costume" 162 • divina.
É por isso que a Igreja conserva certo número de verdades Duns Scot não deixou nada elaborado sobre a revela-
que lhe foram transmitidas pelos ap6stolos sem terem sido ção neotestamentária .. Afirma simplesmente que o promul-
escritas 163 • Portanto, é objeto de fé o que está explicita- gado e transmitido pelo Cristo aos ap6stolos, foi promulgado
mente na Escritura ou foi expressamente declarado pela Igre- e transmitido à Igreja pelos ap6stolos oralmente ou por
ja, ou evidentemente decorre do que está claramente contido

escrito 110
. Dos ap6stolos como dos profetas
' deve-se ·dizer
na Escritura ou claramente determinado pela Igreja 164. que "seria vã a revelação exterior sem o concurso da ilumi-
nação e revelação interior" 171 • A pregação dos profetas e
dos ap6stolos é acompanhada por milagres que atestam a
3. Profetas e apóstolos verdade da doutrina pregada 172 • Finalmente, um último
ponto de aproximação entre os ap6stolos e os profetas é
Como são Boaventura e santo Tomás, Scot interessa- a característica da grande certeza de seu conhecimento.
-se principalmente pela revelação · profética; Deus geral-
165I Sent., dist. 16 n. 2.
158 Prol., p. 2, q. un., nn. 100-113. 166IV Sent., dist. 45, q. 2, n. 11.
159 lbid., n. 120. 167Rep. Par. Prol., q. 2, n. 17.
160 Prol., p. 3, q. 3, nn. 204, 207. 168II Sent., dist. 11, n. 4.
161 IV Sent., dist. 8, q. 2, n. 6; dist. 7, q. 1, n. 3. 169III Sent., dist. 24, q. un., n. 17.
162 I Sent., dist. 11, q. 1, n. 5 º IV Sent., dist. 17, n. 17; dist. 8, q. 2, n. 6.
17
163 IV Sent., dist. 17, q. un., n. 17; dist. 8, q. 2, n. 6. 171I Sent., dist. 16, q. un., n. 2.
164 IV Sent., dist. 11, q. 3, n. 5. 172Prol., p. 2, q. un., n. 113.
T
1

204 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Certeza semelhante à do assentimento que prestamos aos 2.


primeiros princípios e que medeia entre a evidência da vi- ~SCOLASTICOS PóS-TRIDENTINOS
são .e o conhecimento de fé dos simples fiéis. Certeza ne-
cessária, pois que a fé da Igreja se apóia sobre essas "monta-
nhas" que são os apóstolos e profetas 173 • Em virtude dessa
inabalável· certeza, uma ponte se estabelece entre Deus e
a Igreja. Enquanto santo Tomás· insistia mais :na plenitude
do conhecimento desses. grandes mediadores da revelação,
Scot insiste na certeza do seu conhecimento: habitus aná-
logo, na ordem do conhecimento, à impecabilidade na or- No século XVI, o movimento humanista e as· neces-
dem moral. · sidàdes da controvérsia protestante suscitam na Igreja um
conjunto de novas questões e um imenso esforço que le-
Resumindo: Para Duns Scot a revelação é a tradição vam a criar uma teologia que estuda as fontes da revela-
ativa que Deus faz ao homem ·da doutrÍna necessária ou ção por· si mesmas com maior atenção. Principalmente no
útil para a salvação. Doutrina comi,micada aos profetas me- tratado De Locis, criado por Melquior Cano, e no De Fide,
diante imagens ou por uma ação direta de. Deus na inte- os teólogos geralmente intercalam alguns parágrafos · em
ligência: palavra interior de Deus, iluminação do profeta. que se preocupam com definir a revelação.
A ação reveladora do Cristo e dos apóstolos é brevemente O período que vai do século XVI ao XVIII caracteri-
delineada:· o Cristo promulga e transmite, os apóstolos pro- za-se pelo esforço de pôr a questão em dia. Continua
mulgam e transmitem à Igreja. Característica comum do o interesse pela .revelação profética, mas o centro das,
conhecimento dos profetas e dos apóstolos: a certeza inaba- atenções desloca-se claramente em favor da revelação feita
lável. do seu conhecimento. A doutrina da salvação está pelo Cristo e pelos apóstolos. Para reagir contra a intem-
contida na Escritura e, complementariamente, na tradição perança do iluminismo protestante, que concede a cada
ou costume universal da Igreja. fiel uma revelação imediata do Espírito Santo, há um
esforço para· demonstrar ·· que é suficiente a revelação me-
dia ta. Q essencial, salientam, é que o testemunho de
Deus sobre ·si mesmo nos seja comunicado e validamente
garantido como divino. De mais a mais, nossa fé se baseia
.nessa revelação mediata.
Longas discussões sobre o· motivo formal da fé levam
também os teólogos a definir mais precisamente o que se
entende por revelação e a mais bem distinguir, de modo es-
pecial a iluminação interior da graç~ da fé e a manifes-
tação objetiva dos mistérios antes ocultos.

I. MELQUIOR CANO E DOMINGOS BANES

1. Em Melquior Cano, a noção de revelação aparece


apenas indiretamente, por ocasiã,o da análise da fé. Escreve
no seu De Locis Theologicis ( 1563) que, no caminho para
173 Rep. Part. III, dist. 24; q. un., nn. 21-Ú.
206 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 207

a fé, exigem-se alguns elementos exteriores ( pregação per- fé: a razão formal do assentimento de fé é a luz interior que
suasiva, milagres) que induzem a crer, mas que a:inda não Deus· infunde no crente 4 •
são a luz que abre o espírito às claridades do mundo so- Melquior Cano reserva, pois, o termo revelação para
brenatural. "Toda a persuasão externa e humana não basta designar a revelação incriada, que existe em Deus, ou então
para crer. . . é ainda necessária uma causa interior isto é a iluminação interior da graça de fé que induz a crer. Não
uma luz divina que incite à fé, olhos interiores d~dos po; chama de revelação a doutrina de salvação proposta pela
Deus para ver. . . O que se confirma claramente pela pa- pregação da Igreja 5 •
lavra de Cristo a Pedro: 'Bem-aventurado és tu Simão Bar 2. Domingos Bafies, discípulo de Cano, entende do
Jona, porque não foi a carne nem o sangue que' to revelou, mesmo modo a revelação. Se é correto, diz, entender por
mas meu Pai que está nos céus'. É certo, Pedro ouvira o revelação a ação divina existente em Deus, é mais correto
testemunho de João Batista que proclamara o Filho de ainda chamar de revelação "o efeito que Deus, revelando,
Deus; vira também muitos milagres do Cristo; e mesmo produz em nós, efeito pelo qual alguma coisa nos é for-
assim o Cristo atribui sua confissão de fé, não ao teste- malmente manifestada ou revelada". Esse efeito é a ·1uz
da fé, ou a iluminação resultante 6 • Do mesmo modo que
n_iunho ou à autoridade de João, .nem aos milagres presen-
Deus, autor da natureza, nos revela verdades naturais dan-
ciados, mas à revelação divina" 1•
do-nos a luz do espírito, assim também nos revela as ver-
O fundamento último de nossa fé, diz ainda Cano, não dades do mundo sobrenatural "infundindo-nos a luz pela
é a autoridade da Igreja nem a da Escritura, mas a autori- qual essas verdades nos são reveladas" 7 • É Deus quem
dade de Deus que revela. "Dou minha adesão a todos infunde a luz e de sua ação segue-se uma iluminação que
os princípios da doutrina cristã levado pela fé infusa, não
porque João ou qualquer outro homem disse, mas porque 4 "Proponere credenda, suadere, miracula facere, determinant intellec-

?eus_ os revelou; e o próprio fato da revelação, eu o creio tum ut credat, quasi conditiones, sine quibus vix unquam intellectus
determinatur; at ratio formalis assentiendi lumen fidei est quod Deus
1med1at~mente sob o impulso dum instinto divino especial" 2 • infundit credenti" ( Ibid.). '
A autoridade da Igreja não é a razão última da fé é antes 5 "Ex parte objecti ·ratio formalis movens est divina verita~ revelans;

a " causa sme



qua non" 3. Proposição exterior da' verdade
' ' sed ilia tamen non sufficit ad movendum, nisi adsit causa interior, hoc
est Deus etiam movens per gratuitum specialemque concursum" (De Lo-
de fé, persuasão do pregador, milagres, são condições da cis, L. 2, e. 8).
6 ··"Divina revelatio potest considerari ut est actio Dei in ipso Deo

1 "Externae igitur omnes et humanae persuasiones non sunt satis ad existens. Et isto modo non est ratio formalis nostrae theologiae aut
credendum ... , sed necessaria est insuper causa interior hoc est divinum fidei, sub qua objectum fidei vel theologiae attingitur. Quoniam illa rio-
qu:~d?am lul?en incitans . ad ·credendum, et oculi quid~ interni Dei be- bis extrinsece tenens se ex parte causae efficientis et superioris. Altero
nef1~10 ad v1de1;1dum datt. . . Hoc quoque sua voce dilucide confirmavit modo, divina revelatio sumitur pro ipso effectu, quem Deus revelans
Christus Pe~ro -~quiens: Beatus es Simon Bar Jona, guia caro et sanguis efficit in nobis, quo formaliter fit nobis aliquid manifestum seu revelatum.
non r~velavtt ttbt, sed Pater meus qui in coelis est. Certe Petrus audierat Et isto modo nihil aliud est ratio formalis sub qua objecti theologiae
Joanm~ . Baptistre testimonium, quo aperta voce clamaverat Christum yel fi~ei,_ quam ipsum lumen, aut effectus formalis luminis, quod Deus
esse Filtui:n Dei; multa in_supe~ Christi miracula viderat: . et tamen · post mfundit m 1;1o~is, ut per µJ.ud immediate assentiamus principiis, mediate
h~~ o~ta, non _aut testtm:omo, aut auctoritati Joannis, non miraculis vero conclustontbus deductts" (ln Primam Partem, q. 1, a. 3, B et C).
vtst~ f1de1 c~n~esstonem Christus assignat, sed divinae revelationi" ( De 'J'.exto cit~do conforme: Scholastica commentaria .in primam partem angeli-
Locts theologtcts, L. 2, c. 8, ad 4). cz Doctorzs D. Thomae usque ad sexagesimam quartam quaestionem com-
2 •~oeteris universis doctrinae christianae principiis .asserttio per in- plectentia, auctore Fratre Dominico Bafies Mondragonensi ( Romae, 1584) .
7 "Quemadmodum. . . dicitur Deus manifestare, seu revelare, ut auctor
fusam ftdem, fl:ºn qu?d Joannes dixerit, aut quivis alius homo, sed quod
Deus revelavertt; hutc autem: Deus revelavit immediate credo a Deo naturae, aliqua quae de Deo naturaliter cognoscibilia sunt non alia ra-
motus per instinctum specialem" ( Ibid.). ' ' tione nisi guia confert hominibus h:imen naturale: ita etiam dicitur re-
3 "Non est e_nim Ecdésiae auctoritas ratio per se movens ad creden- velare ea quae ad supernaturalem cognitionem pertinent quatenus infundit
dum, sed causa stne qua non crederemus" ( De Locis, L. 2, e. 8) lumen, quo talia revelentur" ( Ibid., E).
T
208 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 209
origina um n~':º conhecimento 8• A atenção de Bafies como pelo próprio Deus, pelo menos se exige que essa proposi-
a de Cano, dmge-se, pois, à iluminação do sujeito m;is que ção se apresente em tais circunstâncias e com tais garantias
à revelação do objeto. que se manifeste como "crível" ou, com outras palavras,
qualificada pelo poder divino 12 •
II. FRANCISCO SUAREZ
1. Revelação no sentido estrito
, S~a3ez ~nsiste na revelação mediata. Revela-se Deus
a mulu~ao, nao, porém, imediatamente, mas por seus legados. Para- Suarez, revelação é "a simples propos1çao su-
No Antigo Testamento, falou Deus imediatamente a Moisés ficiente do objeto revelado, acredite ou não aquele a quem
aos protetas, e por eles a todo o povo. Não é diferente ~ se faz essa revelação, seja ela feita interna e imediatamente
ec<:nomia do Novo Testamento: "Primeiro foi mandado por Deus mesmo, ou por seus anjos, ou que se faça exter-
Jo~o, para que todos 1:or ele acreditassem; depois, o pró- namente pela pregação humana" 13 • Considera, pois, a re-
prio Deus, pela humanidade que assumiu instruiu aqueles velaç,ão do ponto de vista do objeto, apresentando-a como
que o p~deram o~vir imediatamente. Para' os outros enviou proposição do objeto revelado que se deve crer sub divina
,seus apostolas, ,dize_ndo: Pregai o Evangelho a toda a cria- auctoritate. Suarez explicita seu pensamento distinguindo
tura• • • Essa e pois a man1:ira suficiente, até mesmo ordi- os vários componentes da fé: "Note-se que duas coisas são
naria, de se propor e conceber a fé" 9 • necessárias para o conhecimento da fé: a primeira é a apreen-
. Tendo _Cristo instruído a Igreja apostólica, é pela Igre- são do que se deve crer, enquanto proposto ao homem como
Ja q~e ele_ instrui cada fiel, "tanto que uma definição da palavra de Deus e, portanto, crível devido ao testemunho
IgreJa equi~al~ a uma revelação" 10 • Quem ouve a Igreja, divino; a outra é o assentimento ao que foi proposto, o
ouv~ o proprio Deus que lhe fala 11 • Contudo, se não é que constitui propriamente a fé" 1~. O objeto é crível, e
preciso que a proposição da verdade se faça imediatamente portanto sua proposição é suficiente quando a verdade pro-
posta aparece como coberta pela autoridade de Deus, soli-
8 Ibid., D. damente atestada por ele.
9 "P h
revelatio::t;top~~eb~:em sage _Deus _per! Prophet~s Io'?uebatur, et novas
emque m ege gratrne, idem modus pro-
f .d . . . ···
entrne et praed1cat1onis fidei servatus est. Nam imprimis missus est
?tannes, ut omnes creder~nt per íllum; postea vera Deus ipse per huma-
12 "Statuendum est ad suffícíentem oQjecti fidei propos1t1onem non
satis esse objectum utcumque proponi tamcjuam díctum seu revelatum a
Deo, sed necessarium saltem esse cum talibus círcunstantiis proponi ut
Adatemr assumptam docmt
m . . eos qm· 1·11um imme · d'iate· aud1re
· potuerunt prudenter appareat credibile, eo modo quo proponitur" (De Fide, disput.
r re iquos. autem m1S1t apostolas dicens, Mt. ultimo: praedicate Evan: 4, sect. 2, n. 3: t. 12, 116). "Quamvis necessarium non sit ut sufficiens
g_e ium omm creaturae • • • Ergo hic est modus sufficíens immo et ordina- propositio fidei a Deo immediate fiat, necessaríum saltem est ut divina
Rus, ªfo.Pf?aºnendam ~t concípiendam fidem. Et idea' dixit Paulus ad virtus in ea proxime intercedat" (De Fide, disput. 4, sect. 1, n. 5: t.
a;~~ · 1 es ex ~t1;d_1tu, aud1tus. autem per verbum Christi. Loquitur
(D F1e vdibo sensibih, nam subd1t: quomodo audient sine praedicante?"
e . z _e, sput. 4, sect. 1, n. 2: t. 12, 112). Citado se ndo· R p
12, 113).
13 " ..• solam objectí . revela ti sufficíentem propositionem, sive credatur
ab eo cui fit talís revelado, sive non, et sive revelado fíat mere interius
Fra7:ctsVc1_
Pans, 1ves, ~uarez Opera omnia edita a M. André et C Ber:n (28 ~0 1· ab ipso Deo per se ipsum, vel per angelos, sive fiat exterius per hominum
1856-1878). · ., praedicationem" (De Trinitate, L. 1, e. 12, nn. 4-5: t. 1, 571).
1º"Vb O
e . er suo. Ch· ·
r1~tus fidem tradidit, et apostolicam ecclesíam do- 14 "Sed quaeret aliquis primo quid nomine revelationis intelligamus.
t~:!'m
.
ethiib\ Ec<:lesdam smgul1o~ f~d~les . instruit, et Ecclesiae defini tio vir-
_e CUJUS ª/:1 reve auoms (Proleg. V, De variis erroribus di-
Respondeo breviter intelligi omnem suffícientem fidei propositionem, sive
interius tantum fiat, sive per exteriorem praedicationem. Ut hoc autem
vzna~1 g:,attae ~ontrartts, e. 3, n. 16: t. 7, 233). magis intelligatur, adverta ad cognitionem fídei duo esse necessaria: unum
piunt· i;1~es~a... est sei:sibilís r~~la, quam facilius audiunt e• oercí- est apprehensio rerum credendarum, quatenus homini proponuntur ut
.t . , r . a alamen auctor1tatem d1vmam quasi !aquentem suppo .· . , ~t dieta a Deo, et consequenter ut credibilia ex testimonio divino; aliud est
1 1mp 1c1te s tem suam fidem in Deum resolvunt" (De Fide
3,a sect. 10: n. 10: t. 12, 94). · ' "'• ·-
assensio ad res propositas, in quo proprie fídes ipsa consistit" ( De ne-
cessitate gratiae, L. II, e. 1, n. 8: t. 7, 588).
210 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA ESCOLÁSTICOS PQS-TRIDENTINO~ 211
Na proposição histórica da fé, Suarez distingue dois Suarez compreende, pois, como revelação no sentido
momentos. A fé foi proposta "primeiro -pela pregação ge- estrito essa proposição suficiente da fé, pressuposta pelo
ral, quando foi introduzida pela primeira vez, caril a pre- julgamento de fé: "pois, a muitos que não acreditam é re-
gação do Cristo e dos apóstolos; então era de todo neces- velada a fé, se bem que sem prévia revelação ninguém
sário que o ensinamento fosse confirmado pelos sinais pró- acredite" 17 •
prios do poder divino, os milagres". De fato, Deus sem-
pre respeitou essa economia, tanto na promulgação da auto- 2. Iluminação ou revelação do objeto e da potência
ridade profética como na da mensage_m evangélica. Agora,
porém, que a fé já está espalhada e j4 foi anunciada para A fé vem de Deus, tanto quanto ao objeto como quan-
todos, os milagres já não são necessários\ Porém, "continua to ao socorro ou à virtude sobrenatural dada à potência 18 •
sendo necessário que o poder divino ajud~ e trabalhe inte- A doutrina é de Deus e a graça é de Deus. Sob ambos os as-
riormente para que · cada um perceba conv~ientemente pectos podemos devidamente chamá-la de iluminação. De fa-
a proposição da fé e tome sua decisão, pois isso é obra total- to, por um lado, propor um objeto e mostrar sua verdade, as
mente sobrenatural que não se pode realizar sem o socorro razões para dar-lhe adesão, como um professor que orienta
da graça " 15 • seus alunos, é iluminar. Eminentemente o Cristo, pela pre-
Não sendo possível a adesão da fé a não ser com um gação de sua doutrina, ilumina o mundo: seu ensinamento
socorro da graça, "às vezes a Escritura chama de revelação é luz. Por outro lado, também a infusão da fé é luz. Diz
também a inspiração e a infusão da luz interior que gera são Paulo que os batizados que recebem a fé ·são ilumina-
eficazmente a fé. É nesse sentido que o Cristo diz a Pedro dos 19 • Entre ambas as iluminações, porém, há uma dife-
(Mt 16): Caro et sanguis non revelavit tibi, sed Pater rença importante: enquanto a iluminação ex parte objecti
meus, et ( Mt 11): Nemo novit Filium nisi Pater, neque pode ser f{!ita por Deus ou por seus anjos, a iluminação
Patrem quis novit, nisi Filius et cui voluerit Filius revela- ex parte potentiae faz-se sempre imediatamente por Deus,
re. Essa revelação não se dá apenas quanto ao objeto, mas
também quanto à potência, e, portanto, inclui tanto a pro- significetur ipsamet · interna inspirado et infusio ínterioris luminis, quae
posição do objeto como a inspiração e o socorro para acre- effícaciter generat fidem, quomodo dixit Christus Pedro Mt. 16: caro et
ditar" 16 • sanguis non revelavít •tibi, sed Pater meus, et Mt. 11, generaliter díxít:
nemo novit Filitim nisi Pater, negue Patrem quis novit, nísi Filius et cui
voluerit Filius revelare. Haec ením revelatio non. iólum ex parte objecti,
15 "Haec fides dupliciter potest proponi: primo per gener~lem praedi-
sed etiam ex parte potentire fit, et ideo objecti propositionem et inspira-
cationem quae fit quando primum incipit introduci, sicut praedicata est tionem, ac adjutorium ad credendum includit" (De Trinitate, L. 1, e. 12,
per Christum et per apostolos, et tunc profecto necessarium fuit doctrinam nn. 4-5: t. 1, 571). ·
confirmari signis propriis divinae virtutis, ut sunt miracula,... et ideo 17 "Non ità loquimur de revelatione, sed priori modo quatenus ad
semper hunc ordinem Deus observavit, ut constat in promulgatione Evan- judicium fidei praesupponitur; sic enim oonti.tlgit multis revelari fidem
gelií, et in promulgatione Veteris Testamenti, et fere in singulis prophetis; qui non credunt, quamvis sine praevia revelatione nemo credat" ( De
ac denique de seipso dixít Christus: si non venissem et focutus eis fuissem, Necessitate gratiae, L. II, e. 1, n. 8: t. 7, 588). Cfr. De Fide, disput. 8,
et si opera non fecissef!! in eis quae nullus alius fecit, peccatum non sect. 4, n. 24: t. 12, 157.
haberent. Alio modo contingit fídem · jam suffícienter praedicatam et in- 18 De Fide, disput. 3, sect. 3, n. 5: t. 12, 47.
troductam, singulis praedicari et quasi applicari, et tunc non sunt neces- 19 "Primo modo fit manifestando in objecto veritatem ejus, vel ra-
saria exteriora signa divinae virtutís; necessarium autem est ut divina tionem assentíendi illi; sic enim praeceptor illuminat auditores. . . Sic
virtus interius adjuvet et cooperetur, ut unusquisque sufficienter perci- ergo DeUB revelans et testificans res fidei, merito dicitur illuminare illas,
piat propositionem fidei et de ilia convenienter judicet; nam totum hoc et sic dicitur illumínare prophetas, et Christus Dominus dicitur illuminasse
est opus valde supernaturale, quod sine auxilio gratiae praestari non munduril praedicatione sua. Denique, ait Paulus, omne quod manifesta-
potest" (De Fide, disput. 4, sect. 1, n. 6: t. 12, 114). tur, lumen esse, atque euam manifestado objecti est quaedam illu_minatio.
16 '_'Haec assensio per fidem supernaturalis est in se, et ideo praeter
Deinde ipsa etiam infusio fidei divinae illuminatio est, nam fides est
objecti propositionem sufficientem, indiget superriaturali principio, a quo quoddam lumen, et ideo Paulus, ad Hebr. 6, baptizatos vocat ílluminatos
fiat. Atque hinc ortum est ut nomine revelationís interdum in &:riptura 1uia lumen fidei recipiunt" ( lbid., n. 6).
212 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 213

pois que a infusão da luz sobrenatural é · ação que lhe é III. JOÃO DE LUGO
própria de forma exclusiva.
Em ambos os casos podemos falar de revelação, não, 1. A Revelação como palavra
porém, de forma igualmente estrita. Revelar é afastar. o
véu que nos esconde um objeto; o véu, porém, pode cobrir Tanto a revelação mediata como a imediata são designa-
seja o objeto seja a faculdade de ver. Na ordem da fé, das pela Escritura ·como palavra de Deus. De Lugo estudl¼
tanto o objeto como a potência estão velados: o objeto essa analogia da palavra 21 • Conforme ele, para que se ve-
enquanto totalmente ignorado e nem sequer suspeitado; a rifique o conceito de palavra não basta que apre~entemos
potência; enquanto não proporcionada ao objeto. Deus afas- a alguém um objeto; é prec~so que tam?ém lhe !11anifestemos
ta os véus: o primeiro, pela revelação do objeto de fé; o o que pensamos desse obJeto. Os ceus manife_stam-no~ a
segundo, pela infusão da fé. Contudo, "propriamente e se- glória de Deus, não nos falam, porém, no sentido est~ito.
gundo .o uso mais freqüente da Escritura, chama-se reve- A palavra "de per si e imediatamente ordena-se a manif~s-
lação a que se refere ao objeto ..• · Nesse sentido é que tar a alguém o pensamento de qu~m fala. Fal~r ! 2:lgue_m
santo Tomás ensina muitas vezes que a revelação se faz não é, pois, o mesmo que falar diante <!_e alguem . Dis-
. por intermédio de anjos ... , o que só é verdade quanto à tingue-se a palavra de qualqu:r ºt:tra ~çao que possa g:rar
revelação objetiva; assim também se diz na linguagem cor- o conhecimento, enquanto visa 1med1atame?te comunicar
rente: revelar segredos. Por ·isso distinguem os teólogos a outro o conhecimento de quem fala, manifestando-lhe a
entre a revelação necessária à,fé.e a infusão do hábito, entre vontade de ser entendido e compreendido 23 •
a revelação ·propriamente dita e o instinto divino. . . Além Na revelação imediata ( aos profetas, por exemplo),
disso, existe entre ambas esta notável diferença: a revelação Deus pode servir-se de sinais sensíveis, como a_ pala':ra
propriamente dita é percebida pela inteligência. . . enquanto humana, e assim manifestar seu pensamento; ou enta~, agm-
que a infusão da fé não é percebida pelo espírito, mas é ope- do internamente, pode gerar imediatamente o conhecimento
rada invisivelmente pelo próprio Deus" 20 • do objeto que deseja comunicar, mânifestando-~4 como sendo
verdadeiramente o objeto de seu pensamento .
Segundo Suarez, pois, a revelação deve-se definir a Proporcionalmente pode-se dizer o mesn:_o da p_ala,v~a
partir do objeto antes que a partir da potência. Define-se mediata pela qual Deus atualm~nte nos p~o~o_e o m1steno ·
como sendo a proposição suficiente, isto é, garantida por . da fé. Essa palavra é a proposição do m1sterio, uma pro-
Deus, de mistérios divinos, da verdade divina, da doutrina posição, porém, "tal que eu possa nela ;econhecer - como
da salvação. Num sentido mais largo, pode-se designar como na voz mediata de Deus - que Deus e o autor dessa dou-
revelação a luz ou a iluminação da graça da fé.
tellectu et per eam concipitur aliquo modo objectum r~velatum, ~t ratio
20 "Primum ergo velamen tollitur per revelationem objecti fidei; nam quae o~t_enditur ad assentie?d~ll: _il_li; infusio r,~tem habttus_ non 1ta per-
per illam fit aliquo modo cognoscibile sub testimonio divino: per infusio- cipitur ah. intellectu, sed mv1s1b1lt modo .ah tpso Deo fit, ut per se
nem autem fidei tollitur ignorantia mentis, et ideo utraque dici potest constat" ( Ibid., n .. 7: t. 12, 48) • . _ L
revelatio. Proprie tamen, et juxta frequentiorem modum loquendi Scriptu- 21 De Fíde, disput. 1, sect. 10, n. 193. Cttaçao _confo:~e: J. DE UGO,
rae, revelado dicitur illa quae est ex parte objecti, juxta illud ad Rom. Disputationes scholasticae et morales ( 8 vol., Paris, Vives, 1~91-18d~4) ·
1: Justitia Dei in eo, id est in Evangelio, revelatur ex fide in fidem; 22 "Requiritur ergo ad locutionem qu<;>d ordinetur ~er se et 1m~e. iate
in Evangelio enim objectum fidei aperitur. . . Sic etiam D. Thomas saepe ad manifestandum alicui mentem loquentls. Ex quo ftt ut non stt idem
docet revelationem fieri mediantibus angelis (2a 2ae, q. 2, a. 6; q. 172, loqui alicui et loqui coram altero" (Ibid., n. 197 / · . . · ,
a. 5; la, q. 96, a. 3), quod non est verum nisi de revelatione objectiva; 23 Ibid. n. 210. Segundo De Lugo devemos dt~tmgutr tambem entre
et sic etiam in communi sermone dicimus revelari secreta: hoc ergo modo audição e palavra. A audição supõe percepçao: .P~rcebo, o que
distinguunt theologi revelationem necessariam ad fidem ah infusione é dito e O percebo como pensamento de alguém .. Por _si_ e po~s1vel haver
habitus: ita etiam distingui solet propria revelatio ah instinctu Dei. .. palavra, isto é, intenção de comunicar, sem que haJa aud1çao (Ibtd. n. 198).
Estque valde notanda .differentia quod revelatio propria percipitur ah in- 24 Ibid., n. 203.

1
214 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 215
trina e que assim quer comunicar-me seu pensamento: nisto doutrina, proposta como vinda de Deus, é verdadeirament~
verifica-se o conceito de palavra" 25 • mensagem de Deus. A certeza não é menor que na revela-
Reivindicando para cada fiel uma inspiração interior ção imediata 29 • É verdadeiramente palavra de Deus.
do Espírito Santo, os protestantes não levam na devida A revelação mediata apresenta-se, pois, como o com-
conta a revelação mediata. Nós, pelo contrário, afirma- plexo da· doutrina e dos sinais que a garantem como divina.
mos que Deus não falou imediatamente a não ser aos pro- Os sinais são parte integrante dessa palavra que nos é apre-
fetas e aos apóstolos; para a multidão a revelação é· ap,enas sentada hic et nunc como palavra de Deus. Quem acredita
mediata. Revelação, porém, que tanto quanto a primeira na pregação do profeta, não acredita no que é proposto sem
merece o título de palavra de Deus 26 • "Deus fala como levar em conta a autoridade do profeta; igualmente quem
seria conveniente que falasse a homens que percebem os acredita no que lhe propõe a Igreja, não acredita na Igreja
objetos mediante seus sentidos materiais; ou seja: propondo abstração feita de sua autoridade, mas acredita numa palavra
os mistérios e operando milagres, de maneira que possamos autorizada como divina pelos sinais que a acompanham 30 •
perceber, não apenas pelo ouvido, mas também pelos olhos,
a voz de De1.,:s que nos fala" 27 • Assim, quando leio a carta 2. Revelação e hábito ou auxílio da fé
de um amigo, sei que meu amigo me fala; se duvidasse, o
exame da letra garantir-me-ia que é ele mesmo 28 • Do mesmo Se a revelação propriamente dita é palavra de Deus,
modo, a proposição que se me faz dos mistérios de Deus, comunicação aos homens do pensamento divino não se po-
com os sinais que a acompanham, garantem-me que essa deria confundir com o hábito de fé ou com o auxílio da
graça da fé. Nota de Lugo: "Deus não nos fala enquanto
25 "Idem cum proportione dicendum esse de locutione mediata, gua nos dá o habitus da fé, mas enquanto diz a encarnação ou a
Deus mihi hic et nunc proponit mysterium fidei credendum: haec enim Trindade; do mesmo modo que não dizemos que Deus nos
locutio est ipsa mysterii propositio mihi faáa a praelatis et magistris cum fala quando nos dá a inteligência para crer e conhecer outros
~alibus circunstantiis, etc.; haec enim propositio talis mihi apparet, ut in
1psa tanguam in Dei voce mediata possim cognoscere Deum esse auctorem objetos. . . Deus, dando-nos a inteligência e o habitus da
huius doctrinae, et Deum per hoc medium velle mihi suam mentem commu- fé, dá~nos a faculdade que nos torna capazes de ouvir .sua
nicare: in guo consistit ratio locutionis" ( Ibid., n. 204). voz e de àcreditar; não se diz, porém, que ele fala, pois a
26 "Adverte revelationem Dei aliam esse immediatam gua Deus
immediate aliguid revelat; aliam esse mediatam, seu notiti:mi guae ad palavra é produção de verbos que exprimem o pensamento
nos venit ex revelatione immediata aliis facta. Priorem revelationem vi- de quem fala ... ; a inteligência, ou o habitus da fé, não é
dentur exigere in · singulis ad assensum fidei haeretici nostri temporis,
dum dicunt regulam fidei esse instinctum et Spiritum internum uniuscuius-
verbo de Deus; por isso a sua produção não é de forma al-
que. Posteriorem nemo catholicus negat: necessarium enim omnino est guma palavra ou revelação de Deus" 31 • O instinto interior,
nobis ad credendum fide christiana, guod mysterium nobis proponatur não é nem total nem parcialmente, palavra de Deus 32 •
tanguam a Deo alicui immediate revelatum, et licet Deus non loguatur
nobis immediate, loguitur tamen aliguo modo per os illorum gui myste- 29 Ibid., n. 123.
ria sibi revelata proponunt, nam multifariam multisgue modis Deus logui- 30 De Fide, disput. 1, sect. 8, n. 130. .
tur, ut dixit Paulus. Nec novum est appellare locutionem Dei hanc locu- 31 "Revelado enim propria Dei est locutio Dei, gui certe non loqu1-
tionem mediatam; sic enim appellatur saepissime in Scriptura" (De Fide, tur guatenus dat habitum fidei, sed guatenus dicit Incarnatio1;1em v~l
disput. 1, sect. 7, n. 122). • Trinitatem· sicut non dicitur Deus logui nobis, guatenus ded1t nob1s
27 "Loguitur autem, sicut expedit Deum logui cum hominibus per-
intellectum' guo possimus ei credere et cognoscere etiam alia ·objecta ...
cipientibus objecta per sensus materiales: nimirum taliter proponendo Deus dans' intellectum, vel habitum fidei, dicitur dare nobis potentiam,
mysteria, talia miracula operando, ut non solum auribus, sed visu etiam gua ejus vocem audire et credere possimu~; non tamen dicitur loquii guia
percipiainus vocem Dei loguentis nobiscum, ideo enim Paulus ad Hebr. 2, locutio est productio verborum ad expr1mendam mentem loguenus ... ;
miracula dixit esse guamdam Dei locutionem. . . Sunt ergo miracula ipsa intellectus autem, vel habitus, non est verbum Dei, guare ejus productio
aliquo modo vox Dei; unde Augustinus. . . absolute dixit: Deus mira- non est ullo modo locutio vel revelado Dei" (De Fide, disput. 1, sect. 2,
bilibus loguitur" (De Fide, disput. 1, sect. 7, n. 122). n. 9). Cfr. De Fide, disput. 1, sect. 10, n. 194
2ll Ibid., n. 122.
32 De Fide, disput. 1, sect. 2, n. 22.
216 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃb TEOLÓGICA ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 217
O próprio santo Tomás, continua De Lugo, distingue térios de ordem sobrenatural), à sua indeterminação ( os
claramente entre a moção interior, que dispõe e inclina ao futuros· livres ) , ao modo de sua proposição ( enigmas e
assenso da fé, e o ensinamento ·divino: "Deus, internamen- figuras do Antigo Testamento). O véu pode cobrir tam-
te propondo à revelação, move os homens a dar seu assen- bém o espírito, devido às más disposições da alma, como
timento; por isso esse convite interior de Deus não é uma no caso dos judeus infiéis. Toda ação que afasta um desses
nova palavra divina, a não ser alegoricamente, neste sen- véus e permite a compreensão de uma coisa, é propriamente
tido que Deus, por sua graça, dispõe o entendimento inte- revelação divina 35 •
rior do espírito para que melhor perceba a força e a auto- É preciso distinguir na revelação duplo aspecto: ativo
ridade do testemunho divino proposto" 33 • A graça in- e passivo. Ativamente a revelação é "a ação oµ a locução
terior apenas assume a palavra proposta para que sua ver- divina que nos atesta, por palavras ou por atos, uma verda-
dade seja mais bem percebida. · de, ou imediatamente por si mesma ou mediante seus minis-
A revelação, no sentido estrito, é pois a palavra de tros: os anjos, os apóstolos e os profetas" 36 • · Passivamente,
Deus aos homens, ou seja, a· comunicação do pensamento a revelação "consiste no conhecimento atual ou habitual
divino. Por essa comunicação o homem conhece a verdade do que Deus disse e atestou". Então designa tanto o hábito
proposta por Deus e conhece como sendo verdadeiramente como o assentimento da fé. Designaçãó que se justifica por
seu pensamento. Aplica-se essa noção tanto à revelação muitas razões: primeiro, porque o habitus ou o ato de fé
mediata como à imedíata: ambas são palavras de Deus. são o efeito da revelação ativa; depois, porque o assenti-
Na revelação mediata, a palavra total apresenta-se como mento da fé exclui, por parte do sujeito, o véu da. infideli-
o complexo da mensagem e dos sinais que autenticam como dade; finalmente, porque comunica a inteligência justa das
palavra de Deus · a mensagem ouvida. · coisas reveladas. Aléni da visão do objeto; como a puderam
ter o Faraó e Nabucodonosor, dá também a inteligência do
objeto revelado 37 • ·
IV. OS CARMELITAS DE SALAMANCA
Portanto, os teólogos de Salamanca reconhecem como
correspondentes à definição de revelação, tanto o teste-
O De Fide dos te6logos· de Salamanca tem alguns pa- munho de Deus que nos manifesta os mistérios de sua vida
rágrafos muito precisos sobre a noção de revelação 34• Por íntima - . por si mesmo ou por. seus ministros - como a
revelação, dizem, deve-se entender a ação de Deus que iluminação da graça da fé ( ato o-q hábito).
afasta o véu que esconde a inteligência de algo: véu que
pode encobrir o objeto ou o sujeito que conhece. O objeto ·
pode escapar ao espírito devido à sua excelência ( os mis- 35 De· Fide, disput. 1, § 1, n. 81. .
36 "Est actio, vel locutio Dei testificantis nobis verbo vel facto
aliquam veritatem, sive immediat.e per se ipsam, sive mediate per suos
33 "Per auctoritatem divinae doctrinae. intelligi a Sancto Thoma totum
ministros, quales sunt angeli, apostoli et prophetae" (Ibid., n. 82).
quod. se tenet ex parte objer.ti ... ; motionem adaequate distinguit a tota 37 "Consistit in actuali vel etiam habituali cognitione eorum . quae .
doctr111a et auctoritate divina, solumque vult inducere ad credendum; qua- nobis Deus loquitur et testificatur; sic enim interiorem illi adhibemus
tenus Deus proponendo interius eamdem revelationem, movet homines ad r.uditum. Quo pacto, tam habitus quam assensu~ fidei dicitur divina
praebendum assensum; quare ilia invitatio Dei interna non est nova locutio revelado. Néc immerito, tum quia generaliter loquendo, actio divina
Dei nisi allegorica, quatenus Deus accommodat sua gratia aures internas passive accepta sµpponit pro illius effectu; constat autem tam habitum
me~tis ut melius percipiat vim et veritatem divini testimonii propositi" quam actum fidei esse effectum revelationis activae .Dei; tum etiam quia
(Ib1d. n. 26). .
34 _'.l'ractatus. XV~I, De F_ide_, disput. 1, dub. 3, Citado segundo:
praedictus .assensus fidei excludit in genere causae formalis infidelitatem,
quae est velamen ex parte subjecti se tenens; tum denique, quia communi-
Collegtt Salmanttcenszs FF. Dzscalceatorum B.. Mariae de Monte Carmeli cat formaliter suo subjecto rectam intelligentiam eorum quae divinitus
primitivae observantiae Cursus theologicus, ;uxta miram Divi Thomae revelantur, sive ex parte objecti proponuntur; haec enim est differentia
Praeceptoris angelici Doctrinam ( Lyon, 1779). essentialis constitutiva revelationis passivae ... " ( lbid., n. 83).
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 219
J. dora, que o Espírito do Cristo vivifica sempre. Não esquece o
A RENOVAÇAO ESCOLASTICA DO SÉCULO XIX fato da fundação da Igreja, mas o que deseja evidenciar é
principalmente o Espírito dispensador de vida, princípio de
unidade e de crescimento, interno e externo, fonte contínua
de dinamismo: "Para quem penetra o conjunto de nossa
fé, a vida do Espírito em· nós tem prioridade sobre o ensi-
namento ou a fé formulada, se bem que - acrescenta logo -
no tempo a pregação anteceda nossa adesão" 1• Contudo,
essa afirmação vigorosa do primado do Espírito, a repre-
. De 1760 a 1840, a teologia, em vez de procurar sua ins- sentação da consciência da fé em termos que lembram de-
piraç~o n~ grande tradição cristã de santo Agostinho, santo mais Schleiermacher, espantaram os espíritos da época. Aliás,
Tomas, sao Boaventura, procura seu fermento nas filosofias o próprio Mohler reviu suas posições. Com a mesma insis-
sempre mutantes da época. Cada vez mais se avilta e cai no tência com que em A Unidade diz· que o primordial é o
marasmo do filosofismo. Espírito, no Simbolik insiste em dizer que o primordial é
, . Após ~sse período de desconfiança para com a esco- a Igreja visível. Quando fala da revelação é para ·salientar
lasttca medieval, há uma reorientação no sentido da tradi- sua objetividade e exterioridade.
çãoJ i?iciada já n~ ~spanha e na: Itália, onde persiste a es-
cola~ttca, mas principalmente estimulada e favorecida pela Ao princípio do protestantismo segundo o qual a Igreja
I~reJa mesma na pessoa de seus chefes. De modo particular visível deriva da invisível,· opõe o contrário, isto é, qu~ a
Pio IX reafirma os direitos do sobrenatural ante o raciona- Igreja visível existe antes da. invisível. "Quando o Cristo
lismo e dá novamente à teologia seu verdadeiro sentido. começou a anunciar o Reino ·de Deus, esse Reino existia
Nessa renovação sobressaem alguns nomes, tais como Mohler, nele apenas e na idéia divina; veio aos homens, primeira-
Kleutgen, Denzinger, Franzelin, Scheeben. Na revaloriza- mente aos apóstolos, nos quais o Reino de Deus foi estabe-
ção ~o sobtenatural, todos tiveram que falar da revelação, lecido pelo Verbo de Deus que lhes falava de fora, em
se_ nao sempre para estudar-lhe a noção, pelo menos para t~rmos humanos, assim que o Reino penetrou neles,
afirmar a sua possibilidade e realidade. Em Mohler, Kleut- vmdo de fora" 2 • O que Cristo fizera, fizeram-no os apósto-
gen e Denzinger nada· encontramos de bem elaborado sobre los por sua vez, formando eles também outros discípulos.
a noção de revelação. Pelo fim do século, ao contrário Assim, através dos séculos, a Igreja invisível veio sempre
quando do Concílio Vaticano I encontramos bem mais' da Igreja visível: "Essa ordem exigia a idéia de uma reve-
especialmente em Franzelin e S~heeben. Newman na ln: 1 " ... pour qui pénetre l'ensemble de notre foi, dit-il, la vie de l'Esprit
glaterra, mantém uma posição muito firme ao mesm'o tempo
en nous garde la priorité sur l'enseignement ou foi formulée, bien que,
que profundamente religiosa. ajoute-t-il aussitôt,. dans le temps, la prédication précede notre adhésion"
(J. A. MõHLER, L'Unité dans l'Eglise, ou le príncipe du catholicisme
d'apres l'esprit des Peres des trois premiers siecles de l'Église. Trad. de
I. JOÃO MõHLER ANDRÉ DE LILIENFELD (Paris, 1938), pp. 22-23).
• 2 "Als Christus das Reich Gottes zu verkünden begann, war es
mrgends vorhanden, als in ihm und der gottlichen ldee; es kam von
Mais que todos, Molher foi, na Alemanha o chefe da aussen zu den Menschen, und zwar zuerst zu den Aposteln, in welchen
also das Reich Gottes durch das von aussender, menschlich zu ihnem
renovação teológica. Sua obra "A Unidade da Ígreia" é um sprechende Wort Gottes ausgerichtet •ward, so dass es von aussen in sie
protesto da vida contra a anemia do reino das luzes. Nessa hineindrang" (J. A. MõHLER, Symbolik oder Darstellung der dogmatischen
obra apresentá a Igreja como uma realidade viva ' ativa., cria- Gegensiitze der Katholiken und Protestanten nach ihren offentlichen Be-
kenntnisschriften (Mainz, 1838, 5~), L. I, e. 5, § 48, p. 426).
220 A NOÇÃO DE RÊVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 221
lação · exterior e histórica, que, por sua própria natureza, comunicação imediata do Espírito na consciên~ia de cada
exigià um magistério permanente, determinado, exterior, ao homem, esquece ' . que a revelação interior é condicionada
qual se deve referir quem quer que deseje conhecer essa ·re- pela palavra exterior e que a ·inteligência da palavra interior
velação" 3• ~ condicionada pela palavra exterior que se dirige ao ho-
~utero raciocina inversàmente "como se a revelação, mem" 9• Esquece também que a voz da consciência altera
no CrISto Jesus, fosse uma revelação interior como se Deus muitas vezes .o testemunho de Deus: "É por isso que ao
não se tivesse feito homem, como se, cons;qüentemente, a lado da Sagrada Escritura, que é sem erro, foi dada a auto-
revelação não se concretizasse num testemunho exterior, como ridade viva da Igreja, para que guardássemos a palavra di-
s~ não fosse . importante. qu~ o ensi~ado por Cristo vina tal qual é" 10 •
tivesse a garantia de uma autoridade exterior . . . Em Lute- Portanto, segundo Mohler, a revelação feita aos após-
ro, a autoridade exterior da Igreja transformou-se em auto~ tolos é a comunicação, pela palavra humana do Cristo, Verbo
ridade interior e a palavra exterior reconhecida como divina encarnado, da Boa-nova do Reino, oculto nele e no Pai.
tornou-se voz interior do Cristo e de ~eu Espírito" 4. Logi- Tendo recebido a missão de pregar, os apóstolos propuse-
c~ente, pois, segundo Lutero, "poderíamos dispen~ar um ram, a seu turno, a doutrina da salvação. A revelação
Cristo exterior e uma revelação exterior" 5• Em resumo "o do Cristo e dos apóstolos é, pois, . um ensinamento propos-
significado de: o Verbo fez-se carne, tornou-se homem, 'isso to de fora e destinado ao espírito que o assimila. Chega-nos
nunca foi claramente compreendido por Lutero" 6 • "Seu esse ensinamento pela Igreja visível que o propõe com au-
erro ... foi que· jamais considerou a fundo o que significa o tor~dade. A palavra recebida de fora corresponde a luz in-
fato de a revelação imediata no Cristo ser uma revelação terior, a palavra do Espírito, a reyelação.interior. Se Mohler
exterior" 7 • Por isso rejeitou a visibilidade da Igreja, rejei- salienta ao máximo o caráter de objetividade e de exteriori-
tou o testemunho exterior. Finalmente, a revelação da cons- dade da revelação, foi por ter escrito contra os protestantes
ciência foi proclamada intérprete da revelação escrita\ A que tudo sacrificam à subjetividade e à interioridade. Seu
posição protestante, que baseia toda a vida religiosa sobre a pensamento mais profundo devesse reencontrar numa dis-
creta referência à posição de A Unidade.
3 "Diese Ordnung forderte der Begriff einer iiusséren historischen
Offe_nbarung, deren ganzes, eigenthümliches W esen ein fortwiihrendes II. H. J. DOMINGOS DENZINGER
bestlmmtes, iiusseres Lehramt erheischt, ari welches ein Jeder sich iu halte~
hat,l~
.
dieselbe. will kennen lernen" ( Ibid., p. 426).
. Und ~or10 hat nach Luther Jemand in letzter Instanz die Ge-
. Na eliminação da Aufklãrung, bem como no esforço
y,71ssl;ie1t zu f10den, dass er in der Wahrheit stehe? ln einem lediglich
de restauração da escolástica, devemos mendonar Denzin-
mneren Acte,. in de~ Zeugni~e des heiligen ·Geistes; gleich ais wiire die · ger .. Não foi um inovador. como Mohler, muito contribuiu,
Offenbarung 10 Chrtsto Jesu e10e innere, gleich ais wiire er nicht Mensch porém, para uma teologia mais positiva. Sua obra principal,
gew<;>rden, ais klime es miJhin nicht auf ein iiusseres Zeugniss, ais kiime
es ntcht darauf an, dutch etne ãussere Auctoritãt gerviss zu werden was er Vier Bücher von der· Religiosen Erkenntniss, publicado em
gelehrt hat. . . Die iiussere Auctoritiit der· Kirche verwandelt ~ich hei 1856-1857, é notável pela riqueza da documentação e da
~uth~ _in eine i~ere, un~ ~as iiusserliche ais gottlich beglaubigte Wort análise crítica 11 •
10 .d1e tnnere St1mm~ . Chrtstt und seines Geistes" ( Ibi& 427).
5 ."Hiitte er einen iiusseren, historischen Christus, eine iiussere Offen- 9 "Der inneren Offenbarung entspricht die iiussere und das Ver-
barung wohl recht. missen konnen" ( Ibid; 427). stiindniss der inneren Einsprache hat die iiussere Ansprach~ zur Bedingung"
. 6 "Was es heisst: das Wort ist Fleisch, ist Mensch geworden wurde (L. II, e. 2, § 71, p. 531). .
Luther'n niemals klar" (lbid. 430). . ·· ' IO _"paher is! der heilig~n Schrift, der irrthumslosen, die lebendige
• 7 "~ein Fehler. . . war, dass er nicht gündlich erwog, was es heisst Auctorttat der Kirche zur Sette gegeben, damit wir das gottliche Wort
dte unm1ttelbare Offenbarung in Christus sei eine ãussere" ( Ibid 3.: 49' wie es an sich ist, für uns erhalten" (L. II, e. 5, § 44, p. 403). '
p. 431). ., ' 11 H. DENZINGER, Vier Bücher von der Religiosen Erkenntniss (Würz-
. 8 Ibid., 432. burg, 1856). · ·
222 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 223
Segundo Denzinger a revelação se deve definir como concepção da revelação 14 • A maioria dos elementos ele os to-
sendo uma comunicação de verdade; verdade conhecida ime- ma de Suarez e de Lugo, utiliza-os, porém, de modo a dar-
diatamente como verdade, e não a partir de qualquer outro -lhes nova consistência.
objeto do qual a pudéssemos deduzir. Caso contrário, diz ele, o Quando Deus fala aos homens, diz, seja imediata-
termo revelação poderia convir às obras da criação e aos mente, como aos profetas e aos apóstolos, seja mediante
acontecimentos da história. Como também qualquer fato seus legados, faz que sua palavra seja reconhecida por sinais
singular, enquanto manifesta a ação divina ou indica uma de que a garantem como sendo realmente sua. Esses sinais
suas propriedades, poderia ser chamado de revelação. Nem são os milagres e os carismas sobrenaturais: "o falar di-
se poderia, rigorosamente falando, deixar de considerar como vino consiste em palavras que enunciam a verdade, em fatos
revelação o dom da faculdade ou do meio de conhecer o que manifestam essas palavras como sendo locução divi-
objeto. Ou seja, em poucas palavras: o objeto imediato da na" 15 • "Pois Deus não fala somente pelas palavras, mas
revelação é a própria verdade como verdade, e a revelação ao mesmo tempo pelas palavras e pelos fatos" 16 •
•~ a comunicação desse objeto pela palavra ou por um sinal Esses fatos ou palavras reais, que, juntamente com as
adequado, ou pela contemplação direta 12 • palavras formais, constituem a locução divina são, em o
Novo Testamento, toda a vida de Cristo, principalmente
seus milagres, sua morte, sua ressurreição, a missão do Es-
III. J. B. FRANZELIN pírito, com seus maravilhosos efeitos; no Antigo Testa-
mento, toda a história humana, principalmente a história
Como Mohler e Denzinger, também Franzelin orienta de Israel com as grandes manifestações que a acompanham;
seu ensino para as pesquisas positivas 13 • Teólogo papal no e depois da vinda do Cristo, a pregação do Evangelho e
Concílio Vaticano I, teve parte ativa na preparação dos sua admirável expansão, a revolução nas idéias e nos cos-
esquemas da constituição dogmática: deve pois seu teste- tumes que ela operou, sua manutenção através dos séculos,
munho ser levado em conta. Ê no seu Tractatus de divina apesar das perseguições, seus frutos de santidade, os mila-
traditione et scriptura, publicado em 1870, que expõe sua gres e os carismas que não cessam de ilustrá-la. "Todos
esses fatos, tomados em conjunto, são como outros tantos
12 "Die Offenbarung ist eine Bekanntmachung von Wahrheiten, welche raios que fazem resplandecer a palavra proposta como pa-
unmittelbar ist a parte objecti, d. h. welche die zu offenbarende Wahrheit lavra divina e lhe manifestam a origem divina" 17 • A pala-
in sich bekanntmacht, nicht aber bloss · darin besteht, dass ein Anderes
ds Objekt der Offenbarung gesetzt wird, aus dem man durch Schluss
auf eine Wahrheit kommen kann, in welchem Sinne auch die Werke 14 Citamos segundo a quarta edição, de 1896.
Gottes in der Natur und in der Geschichte eine Offenbarung genannt 15 "Animadvertendum est locutionem divinam esse complexam ex
wer~en; oder eine besondere Tatsache als Offenbarung angesehen und verbis enunciantibus veritatem, et ex factis quibus verba exhibentur ut
beze1chnet werden kann, weil sie irgend eine Eigenschaft Gottes als locutio divina" (J. B. FRANZELIN, Tractatus de divina traditione et scriptu-
Wirkung derselben manifestiert. Ferner kann die Offenbarung nicht bloss ra, p. 618). .
gewiss zu werden, was er gelehrt hat. . . Die aussere Auctoritat der Kirche 16 "Non enim solis verbis sed una cum verbis etiam factis illis
vermandelt in der Verleihung des Vermogens oder der Mittel oder Anleitung omnibus loquitur ipse Deus" ( p. 626).
zum Erkennen bestehen, sondem ihr unmittelbares Objekt muss die zu offen- 17 "Si consideretur fastigium divinae revelationis Jn Christo, imprimis
barende Wahrheit sein. Kurz, sie ist die Bekanntmachung durch das tota vita Jesu Christi, miracula, mors et prae ceteris resurrectio, electio
Wort oder durch dem Worte gleichkommende Zeichen oder durch un mi- paucorum rudium hominum ad conversionem generis humani, missio Spiri-
ttelbares Schauenlassen des zu offenbarenden Gegenstandes selbst. Wir tus Sancti spectata in evidentibus effectibus; tum tota historia generis
werden allerdings finden, dass viele das Wort ganz anders fassen: allein humani, et maxime historia populi Israel cum omnibus suis m;mifesta-
der hergebrachte Spragebrauch beweist, dass der aufgestellte ·Begriff der tionibus supernaturalibus ut praeparatio et paedagogia ad Christum, atque
allein eingentliche und stricte ist" ( lbid., vol. 1, L. 2, pp. 116-117). tàta historia humana subsequens ut effectus promanans ab ipso Christo;
13 Sobre Franzelin, dr. DTC 6: 765-767; E. HocEDEz; Histoire de apostolica praedicatio, mirabilis religionis propagado, media ad finem
la théologie au XIX•. siecle, 2: 356-358. propositum, omnia contraria iis quibus homines utuntur, et quae humanitus
224 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 225
vra proposta, diz Franzelin, retomando os termos de Suarez, Continuando sua explicação, Franzelin mostra como a
é "suficientemente proposta como palavra de Deus" 18 • Por- Igreja, através dos séculos, apresenta-se como um grande
tanto,. a palavra que revela é o complexo dâs palavras for- fato divino, um elemento também componente da palavra
mais e dos fatos divinos: as palavras enunciam a verdade; divina. "A pregação e a primeira promulgação da revela-
os fatos autenticam-na como divina e revelada. Assim tam- ção, feita pelo Cristo e pelos apóstolos, compunha-se de
palavra e coisas, sendo que pelas coisas manifestava-se a
bém, quando um rei fala por seu legado, as cartas patentes, palavra como divina ... Assim também, a revelação agora·
o selo real, a pompa exterior, tudo isso entra como com- proposta pela Igreja como revelação derivada do Cristo e
ponentes da palavra real que a fazem reconhecer como tal 19 • dos apóstolos, não se compõe apenas de palavras, mas tam-
A nós, a palavra de Deus atinge-nos mediante a Igre- bém de toda uma série de coisas e fatos, pelos quais a Igreja
ja. Franzelim mostra como Deus, seguindo sempre a mesma se mostra divinamente fundada e mandatária de Cristo para
economia, dirige-se aos homens de todos os tempos me- conservar e pregar sua doutrina. Portanto, não apenas na
diante a sua Igreja, isto é, pela íntima união de palavras pregação pessoal do Cristo e dos apóstolos, mas também
reais ( fatos divinos) e de palavras formais. O Cristo, pri- na Igreja de agora e de sempre, essas coisas e fatos - a
meiramente, fez que os apóstolos fossem reconhecidos união da Igreja com o Cristo e com os apóstolos, sua admi-
como legados seus mediante os fatos divinos, ou seja, pelos rável expansão, sua unidade de doutrina, os carismas sobre-
sinais que acompanhavam a sua pregação. Esses fatos, reali- naturais que nela se manifestam, sua constância na fé rece-
zados pelo Cristo e pelos apóstolos, pertencem agora à Igre- bida, seus mártires, a vitalidade espiritual que ela manifesta,
ja e constituem sua herança. Ainda mais, a Igreja, por sua tudo isso que é a Igreja sob o aspecto das coisas e dos
vez, recebeu ao longo dos séculos novos fatos que são fatos, tudo isso é elemento integrante da própria palavra di-
"como que selos demonstrativos de sua instituição divina vina enquanto ela se compõe de palavras e de coisas " 21 •
e de sua união com o Cristo e com os apóstolos" 20 • Contudo, a proposição suficiente da revelação, com o
c?mplexo de palavras e fatos que a constituem, não pode-
spectata non tam ad obtinendum quam ad impediendum effectum vide- na substituir a graça. Esta exerce tríplice função: ajudar
rentur idonea; effectus autem ex nulla humana causa ingens et universalis in
humano genere, inter ferrum et ignem, inter tormentorum om:nia genera, a reconhecer o valor dos fatos que demonstram a existência
quibus per tria saecula et amplius saevitum est, conversio omnium idearum da revelação e, credibilidade de seu conteúdo; ajudar a ven-
ordinis theologici et moralis, commutatio totius vitae publicae et privatre; cer as resistências da natureza ante verdades que contradizem
non minus mirabilis totius institutionis conservado per saeculorum de-
cursum, omnibus aetatibus moraliter perpetua sanctitas et virtutum nuspiam
extra hanc religionem cognitarum, constans exercitium heroicum in multis, tamquam sigillis demonstrantibus ejus institutionem divinam et connexio-
aestimatio in omnibus, charismata supernaturalia effectibus externis etiam ncm cum Christo et apostolis" ( Ibid., 639).
sese manifestantia; postremo totus hic rerum divinarum complexus tum 21 "Praedicatio et prima promulgado revelationis,. . . peracta a Christo
universim tum in factis singulis diu antea promissus et praenuntiatus; et ab apostolis, componebatur verbis et rebus, et per res locutio erat
haec inquam omnia sii;nul spectata sunt totidem radii, quibus verbum cognoscibilis ut divina. . . Pari modo, revelado, quae nunc ab Ecclesia
propositum ut divinum resplendet, et suam originem divinam manifestat" proponitur tamquam revelatio derivata inde a Christo et ab apostolis, non
(lbid .. 618). tantum verbis constat, sed etiam tota serie rerum et factorum, quibus
18 Ibid., 624. Ecclesia exhibetur ut divinitus instituta, et pro Christo legatione fungens ad
19 Ibid., 641. conservationem et praedicationem doctrínre. Ergo non solum in personali
20 "Deus rebus et factis cognoscibiles reddidit primum ap_ostolos praedicatione Christi et apostolorum, sed etiam perpetuo ín Ecdesia res
tan-quam suos lega tos in promulganda revelatione. . . Sucessores sene per- ilf~e et facta,. connexío ínquam Ecclesíae cum Chrísto et apostolis, mira-
petua immediate nectuntur cum ipsis apostolis, et in mundo universo b1hs propagatlo et conservatio, consensio, supernaturalia charísmata sese
communione et doctrina inter se conjuncti, velut unum corpus ad nos usque manifestantia, constantia in fide accepta, martyria, tota spiritualis vita
pertingunt. Ex connexione cum apostolis et · curo Christo ípso · res illae Ecclesiae manifesta ta, omnia scilicet illa quae diximus ·Ecclesiam spectatam
et facta Christi et apostolorum pertinent ad totam Ecclesiam subsequen- secundum res et facta, componunt ípsam dívínam locutíonem, quatenus
tem, quae et ipsa insuper novis rebus et factis quavis aetate insignitur, ccnstat duplici elemento verborum et rerum" (bíd., 640-641).

8 - Teologia da revelação
226 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 227
as inclinações da carne; iluminar o espírito, fortificar e mo- Em segundo lugar, a revelação é um mistério. Dá-nos es-
ver a vontade para que o homem possa aderir a Deus, com clarecimento sobre Deus, mas não suprime o mistério que o
a humildade e a reverência de filho, baseado apenas no rodeia 28 • "Quando nada conheces da luz revelada, diz New-
testemunho de sua palavra reconhecida por si mesma 22 • man, não conheces as trevas reveladas. A verdade religiosa
Em resumo, eis como Franzelin entende a revela~ão: exige que algo te seja dito, mas a imperfeição de tua na-
Toda verdade salvífica foi revelada aos apóstolos por Cristo, tureza impede que tudo conheças" 29 • Criaturas imperfeitas
que ensinava visivelmente e pelo dom de seu Espírito. Essa que somos não podemos jamais penetrar as trevas do
verdade é o Evangelho que os apóstolos devem pregar a mistério.
toda criatura e transmitir à Igreja 23 • Esta, por sua vez, Em terceiro lugar, a revelação apresenta-se como uma
conserva e prega a verdade total, definitiva, que recebeu economia. Fez-se em etapas sucessivas, progredindo em quali-
dos apóstolos 24. Franzelin entende por revelação a propo- dade e quantidade, até a plenitude do Cristo 30 • Em sua con-
sição suficiente 25 , pelo Cristo aos apóstolos e por estes à descendência, Deus adaptou-se às condições humanas e às
Igreja, e pela Igreja, a todos os homens, da palavra divina, fraquezas de seu povo 31 • A encarnação é, por excelência,
isto é, do complexo de palavras e de fatos divinos que. as o tipo dessa divina economia.
autenticam como verdade divina e como verdade revelada. Em quarto lugar, a revelação é doutrinal. Transmite-
Já em De Lugo encontrávamos essa concepção. A graça -nos um ensinamento, uma mensagem 32 . "A fé do Evan-
intervem para guiar a alma na sua busca, iluminar o espí- gelho é um depósito definido, comum a todos, um e o
rito e mover a vontade para que se entregue a Deus con- mesmo em todos os tempos, formulado em termos precisos,
fiando em sua palavra. Concepção que leva em conta a de tal modo que possa ser recebido, conservado e transmi-
ação exterior da revelação. Sinais e proposições fundem-se tido. . . o depositum é, com toda certeza, uma série de
num todo único que constitui o falar atual de Deus. Parece, ·verdades e de preceitos" 33 • Por isso, não é a fé um senti-
porém, que não integra tão bem a ação interior do Espírito.
mento, uma emoção, mas uma adesão do espírito.

IV. JOÃO HENRIQUE NEWMAN (J. H. NEWMAN, Parochial and Plain Sermons [8 vol., London, 1834-
-1843], 7: 246). "What is the knowledge wich God has not thought fit
to reveal us? Knowledge connected merely with this present world ...
Ao falar, de passagem, da revelação, Newman reco- No divinely authenticated directions. . . have been given to the world at
nhece-lhe as seguintes características 26 : Primária e essencial- large, on subjects relating merely to this our temporal state of being"
mente a revelação é um conhecimento religioso. Não nos ( Ibid., 244).
28 "God has promised us light and knowledge ... , but in His way,
é dada para aumentar nosso conhecimento profano, mas not in our way" (Parochial and Plain Sermons, 7:221). "The Divine
para tornar-nos melhores e mais santos e para encaminhar- Scheme is larger and deeper than our own capacities" (Ibid., 3: 358).
-nos à salvação. Também a Escritura que contém a reve- 29 "When you knew nothing of the revealed light, you knew not
revealed darkness. Religious truth requires you should be told something,
lação é um livro religioso 27 • your imperfect nature prevents your knowing ali" (Ibid., 1: 211).
3a Ibid., 2: 123.
Ibid., 648-649.
22 31 J. SEYNAEVE, Cardinal Newman's Doctrine on Holy Scripture,
Ibid., 247-249.
23 pp. 33-34; 209-211; J. H. NEWMAN, Apologia pro vita sua (London,
Ibid., 250-251.
2, 1864), p. 343.
Ou seja uma proposição confirmada por sinais que atestam a ori-
25 32 ]. H. NEWAN, The Idea of a University ( London, 1886) p. 223;
gem divina da palavra pregada. Id., Discussions and Arguments on various Subjects ( London, 1872),
26 Sobre isso, cfr. principalmente: J. SEYNAEVE, Cardinal Newman's p. 135.
Doctrine on Holy Scripture (Louvain, Oxford et Tielt, 1953), pp. 30-37; 33 "The Gospel faith is a definite deposit, a treasure, common to
205-214. ali; one and the sarne in every age, conceived in set words, and such as
27 "That knowledge which God has given ... is religious knowledge" r,dmits of being received, preserved, transmitted. . . The deposit certainly
228 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 229
Finalmente, a revelação é dogmática: impõe-se auto- era preciso uma autoridade viva e infalível para garantir
ritativamente. O cristianismo é uma "revelatio revelata, é ao mesmo tempo a imutabilidade e o desenvolvimento do
uma mensagem definida de Deus para o homem, depósito revelado. A Igreja é essa autoridade infalível 36 •
transmitida por instrumentos escolhidos e recebida co- "A Revelação é uma doutrina; somente os apóstolos a rece-
mo tal mensagem o merece: positivamente recebida, aceita beram em depósito, o método dedutivo é o único instru-
e defendida como verdadeira . . . vinda daquele que não mento para examiná-la, somente a autoridade da Igreja pode
pode enganar-se nem enganar-nos. . . A matéria da reve- sancioná-la. A voz divina falou de uma vez para sempre:
lação não é simplesmente uma coleção de verdades, uma a questão única é saber como entendê-la" 37 •
idéia filosófica, um sentimento religioso, uma moral
Newman evidencia, pois, o caráter doutrinal e impe-
especial. .. ; é um ensino autoritativo, que testemunha
rativo da revelação. Se Deus falou, o homem deve obede-
em seu próprio favor, que conserva sua unidade en-
cer a essa palavra que veio de um mundo transcendente.
quanto se opõe a todas as opiniões contrárias que o
Sublinhou também o aspecto religioso, salvífico e misterioso
rodeiam, que fala a todos os homens como o mesmo sempre
desse conhecimento sobrenatural. Mostra, finalmente, como
e em toda parte, exigindo ser recebido inteligentemente por
a revelação nos foi dada segundo uma economia e uma pe-
todos aos quais se dirige, como uma doutrina, uma disci-
dagosia muito sábias.
plina, uma devoção diretamente recebida do alto" 34 • Se
admitimos a existência de uma revelação, ela será impera-
tiva para a nossa fé, justamente porque revelada 35 • É reli- V. M. J. SCEEBEN
gião dogmática justamente porque r~ligião revelada. Diga-
-se o mesmo de sua imutabilidade. Se Deus, ao longo dos
séculos, revelou uma verdade sobrenatural para a salvação Em sua Dogmatik Scheeben escreveu algumas páginas
dos homens, essa verdade não pode nem desaparecer nem ser sobre a noção de revelação. Segundo um método que lhe
alterada substancialmente. Doutra parte, devendo essa re- é muito caro, que consiste em relacionar os mistérios entre
velação viver e desenvolver-se no espírito do homem, estan- si e em estudá-los como um vasto conjunto cujas partes
do pois exposta a todas as flutuações do raciocínio humano, mutuamente se iluminam, Scheeben compara entre si as
diversas formas de revelação para indicar suas semelhanças
was a series of truths and rules" (J. H. NEWMAN, Parochial and Plain e suas diferenças para mais facilmente caracterizar o tipo de
Sermons, 2: 265). revelação que dá começo à fé e à teologia. Segundo ele,
34 "It is a revelatio revelata: it is a definite message from God to
man distinetly conveyed by his chosen instruments, and to receive as podemos distinguir três formas de revelação.
such a message; and therefore to be positively acknowledged, embraced, Num sentido amplo, revela-se Deus ao homem pelas
and maintained as true. . . because it comes from Him ( God) who neither
can deceive nor be deceived. . . The matter of Revelation is not a mere obras da criação que refletem seu poder e suas perfeições, pela
collection of truths, not a philosophical view, not a religious sentiment comunicação da luz interior da razão que nos ·torna capazes
or spirit, not a special morality, ... but an authoritative teaching, which bears de conhecer as obras de Deus e o próprio Deus em suas
witness to itself and keeps itself together as one, in contrast to the assem-
blage of opinions on all sides of it, and speaks to all men, as being ever and obras. Ação que merece ser chamada locução divina. Não dá,
everywhere one and the sarne, and claiming to be received intelligently,
by all whom it addresses, as one doctrine, discipline, and devotion directly 36 J. H. WALGRAVE, Newman, Le développement du dogme (Paris-
given from above" (J. H. NEWMAN, An Essay in Aid of a Grammar of -Tournai, 1957), pp. 261-280.
Assent (London, 1885, 5~), pp. 386-387). 37 "Revelation is all in doctrine; the Apostles its sole depository,
35 "Revelation implies a something revealed, and what is revealed is the inferential method its sole instrument, and ecclesiastical authority its
imperative on our faith, because it is revealed. Revelation imples impera- sole sanction. The divine Voice has spoken once for all, and the only
tiveness" (J. H. NEWMAN, Discussions and Arguments on various Subiects, question is about its meaning" (J. H. NEWMAN, The Idea of a University,
p. 132). p. 223).
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230 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 23\ )\ \',\;;..\.•''
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\ ...... \:.,,._ \'l'f'u

porém, origem à fé, mas apenas a um conhecimento imper- manifestação objetiva, real ou verbal, é substituída pela vis?º\,,, '····:•~,-w/4
feito e indireto de Deus 38 • sem véu da natureza íntima de Deus. Em vez da luz subJe- ·,-,,:_'·: !º!<;.....
"Em sentido mais estrito e elevado, revelação é o ato tiva, concedida para compreendermos e. apossarmo-no~ _do
pelo qual um espírito apresenta a outro o objeto de seu conteúdo da revelação de Deus, é a pl~mtude da luz d!vi~a
que nos possibilita contemplar em si mesma a essencia
próprio conhecimento, po"ssibílitando-lhe que, mesmo sem
de Deus.
ver por si mesmo o objeto, aproprie-se de seü conteúdo,
Esses três tipos de revelação correspondem a três graus
apoiando-se nas luzes de quem ~e lhe re~ela. O ~eículo
ou profundidades em que a noção geral de revelação se
dessa revelação é a palavra propriamente dita ( locutto for-
malis). Corresponde-lhe, da parte de quem recebe a re-
realiza sempre mais perfeitamente. A cada grau correspo~-
.
velação, a forma de conhecimento que denommamos
. f e,,, 39 . de, da parte de Deus, uma medida de graça e uma comum-
cação de si mesmo sempre mais abundante e elevada. Cor-
Como Deus une à revelação pela criação o dom da
luz intelectu,al que permite conhecê-lo, assim também ao responde-lhe também, da parte da criatura, homenag~~ ê
submissão cada vez mais plena. No grau supremo, a maxi1!1a
anúncio objetivo da revelação corresponde uma iluminação
interior que nos torna capazes de assimilar o· conteúdo do co- medida de graça coincide com a suprer:i~ h~menage_m m-
nhecimento divino. Iluminação que também se chama re- terior da criatura e com a suprema glorihcaçao exterior d_e
velação ou palavra de Deus. Muito expressivam~nte a Es- Deus. Essas três formas de revelação não apenas comuni-
cam um conteúdo objetivo, mediante obras, palavras ou
critura a designa como revelação e palavra do Pai _(Mt 16,
visão direta, mas também produzem o próprio conhecimento
17; Jo 6,45) para distingui-la da revelação exterior e ~a
subjetivo mediante a iluminação interior sempre maior da
palavra do Filho que, enquanto enviado do Pai, nos _anur_icia
razão, da graça e da glória. .
o que dele recebeu. O termo indica também que a ilumma-
Esses três graus têm como princípio comum o próprio
ção interior leva-nos de volta à fonte da verdade donde
Deus ou melhor o Verbo de Deus, seu Logos. O princípio
procede a revelação exterior.
do p~imeiro é ; Logos criador, por quem tudo foi feito,
"Num sentido mais estrito ainda e também mais particularmente a luz da razão que colocou no homem
alto, denomina-se revelação divina uma manifestação pela sua imagem; o princípio do segundo é o Cristo, Logos en-
qual Deus torna nosso conhecimento inteiramente confor- carnado, enviado pelo Pai, que falou pelos profetas e pela
me ao seu, de modo que o conhecemos como ele a si mesmo humanidade de que se revestiu; o princípio do terceiro é
se conhece: é a visão face a face" 40 • Nessa revelação, a ainda o Cristo, pela glória divina que nele resplandece.
A revelação mediante a graça apresenta-se como o
38 M. J. ScHEEBEN, Handbuch der Katholischen Dogmatik (Freiburg, meio termo entre a revelação da natureza e a revelação da
1948), 1: 10. . . .
39 "Im engeren und hoheren Sinne heisst Offe1;1barung_ d1e1emge
glória: supondo e apérfeiçoando a primeira, prepara?do_ a
Kundgebung eines Geistes an den andem, wodurch Jener. _d1esem .. d~n última à qual aspira, participando da imperfeição da primei!ª
Inhalt seiner eigenen Erkenntnis als rnkhen vorlegt und so l?n. befah1gt e da perfeição da última. Situa-se por essa dupla relaçao
und veranlasst ohne eigene Anschauung auf Grund der Ems1cht des
Offenbarenden' des Inhaltes derselben sich zu bemachtigen. Das Vehikel que lhe dá sua exata significação.
dieser Offenbarung ist das Wort im eigentlichen Sinne (locutio formalis), A definição de Scheeben, percebe-se, caracteriza-se pelo
und ihm entspricht vonseiten des Empfangers der Offenbarung als d1e cuidado em integrar o elemento exterior e o interior da re-
Form der durch dieselbe ermoglichten Erkemtnis der Glaube" ( Ibid., 10).
40 "Im engsten und zugleich hochsten Sinne heisst géittliche Offenba-
velação, pelo respeito da necessária proporção entre o objeto
rung diejenige Kundgebung vonseiten Gottes,. durch welche e_r unsere proposto e a iluminação correspondente. Para Scheeben,
Erkenntnis der seinigen vollkommen gleichfürmig macht und. bewirkt, dass revelação é, no sentido estrito, a comunicação ao ho~em
wir ihn ahnlich erkennen, wie er sich sellbst erkennt, durch d1e Anschauung
von Angesicht zu Angesicht" ( Ibid., n. 11). do pensamento divino mediante a palavra humana do Cristo,
T
232 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 233
Logos encarnado. A esse anúncio corresponde uma ilumi- O caráter histórico da revelação mostra-se nas suces-
nação interior que também se chama revelação: é ela que sivas fases de sua realização temporal. Na revelação públi-
introduz na posse da revelação exterior. A definição de . ca Scheeben distingue duas fases: a revelação feita à huma-
Scheeben ainda se enriquece pela comparação com os ou- nidade em seu estado original, revelação do paraíso, e a
tros dois tipos de revelação: a da natureza e a da glória. feita à humanidade em seu estado de pecado, revelação evan-
Nota em ambas a convergência do elemento objetivo e da sélica e redentora. Essa, por sua vez, realiza-se em duas
luz. Suas afirmações apóiam-se nas Escrituras, segundo as etapas: a revelação preparatória do Antigo Testamento e
quais a fé cristã exige, com a revelação exterior, também a consumação em o Novo Testamento. O progresso da re-
uma revelação interior ( Mt 16,17) e um ensinamento in- velação é extensivo: a revelação patriarcal dirige-se a uma
terior do Mestre que acompanhe a audição da palavra ex- família; a mosaica, a um povo; a cristã, à humanidade
terior (Jo 6,44). Ao analisar o ato de fé, Scheeben pre- toda. É também quantitativo e qualitativo: o campo da re-
cisa a natureza dessa revelação interior. Diz: "Essa ilumi- velação alarga-se sem cessar e a luz difundida é cada vez
nação interior tem as características de uma revelação in- mais abundante 4<i. Em Jesus Cristo temos a plenitude da
terior enquanto renova e vivifica o convite à fé que nos Luz e da Verdade. Em Jesus Cristo e por Jesus Cristo, a
é feito pela revelação exterior. Por isso comumente se de- Palavra eterna de Deus dirige-se aos apóstolos e pelo seu
nomina uma voz, uma atração de Deus (Jo 6,44). Deno- Espírito consuma internamente a obra iniciada por sua pre-
mina-a santo Tomás instinto divino: interior instinctus gação; É universal a destinação dessa revelação: os enviados
Dei moventis (2a 2ae, q. 2; a. 9, ad 3) que internamente de Cristo, os apóstolos, devem anunciá-la à terra toda, para
nos convida a crer; chama-lhe são Paulo abertura do cora- reunir todos os homens num só reino. "Essa revelação não
ção ( At 16, 14 ) ou dos ouvidos à palavra de Deus" 41 • é apenas mais sublime e mais completa que a revelação pre-
Outro mérito de Scheeben é ter posto em evidência o paratória; é também, sob muitos aspectos, mais sublime e
caráter ao mesmo tempo sobrenatural e histórico da reve- mais completa do que a do paraíso e será, justamente por
lação. Seu caráter sobrenatural mostra-se na finalidade, que isso, a última revelação pública e constitutiva feita pela
é ajudar o homem a conseguir seu fim sobrenatural, ou palavra divina" 47 •
seja, a visão de Deus 42 ; nas novas relações que estabelece
de Pai a filho, de amigo a amigo 43 ; em seu conteúdo espe-
cífico, ou sejam, os mistérios de Deus ( vida trinitária), de
seu coração ( desígnio salvífico) 44 ; na resposta, finalmente,
que espera: a fé 45 •
41 ''Auch diese Erleuchtung hat insofern ebenfalls den Charakter
einer innern Offenbarung, als sie die Aufforderung zum Glauben, die in
der iiussern Offenbarung an uns herantritt, innerlich wiederholt und
belebt. Sie wird daher gewêihnlich ais der Ruf oder Zug Gottes (Jo.
6, 44; Thomas nennt ihm 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3: interior instinctus Dei
moventis), der uns innerlich zum Glauben einladet, resp. als õffnung
unseres Herzens (Act., 16,14) oder unseres Ohres für die Aufnahme des
Wortes Gottes ... bezeichnet" (Ibid., 356-357).
42 Ibid., 19.
43 Ibid., 22-23.
44 Ibid., 26.
45 Ibid., 27.
4<i Ibid., 35-41. 47 lbid., 38.
T
!

TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 235


4. "A revelação sobrenatural direta é a manifestação de Deus
A TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX pela palavra divina, isto é, por um ato de Deus, ordenado
direta e imediatamente para manifestar ao homem seu co-
nhecimento próprio" 5 • Palavra que, evidentemente, não
se deve conceber antropomorficamente, mas sim em termos
de conhecimento: trata-se de uma iluminação sobrenatural
da inteligência. "A revelação nada mais é que a mani-
festação duma verdade, que Deus realiza no homem mediante
I. A DOUTRII'>iA COMUM NO COMEÇO DO SÉCULO XX
a iluminação sobrenatural de sua inteligência" 6 •
A essa iluminação corresponde não a ciência, mas a
A teologia fundamental, no século XX, estruturou-se fé. "A revelação divina, no sentido estrito, é a palavra de
segundo as indicações do Concílio Vaticano I, e os do- Deus, mediante a qual ele comunica aos homens algo do
cumentos antimodernistas; definiu a revelação na perspec- que ele conhece, assim que os homens o creiam pela auto-
tiva desses documentos. Era preciso proteger-lhe o con- ridade de Deus que fala" 7 • Para evidenciar o elemento for-
ceito contra as negações do racionalismo ou contra as con- mal dessa palavra, usam o conceito testemunho: a revela-
taminações do protestantismo liberal. Encontramos pois, ge- ção é uma palavra que atesta, uma palavra de Deus que
ralmente com certa diversidade de acentuação, um acordo testemunha 8 • Mas também, como essa palavra enriquece o es-
fundamental' em todos os autores. pírito com conhecimentos novos e superiores, é também
Insistem sempre sobre a transcendência da revelação, um ensinamento autoritativo 9 • São raros, porém, os teó-
bem como no caráter doutrinário do objeto revelado: o que se logos que, usando da filosofia e da psicologia da linguagem,
comunica ao homem é um conjunto de verdades necessá- elaboram esses conceitos de palavra e testemunho. Entre
rias à salvação. "Quando dizemos que Deus revelou, enten- os que dedicam ao conceito de revelação uma expo-
demos que Deus falou aos homens para manifestar-lhes al- sição mais longa, mencionamos Gardeil, Garrigou-Lagrange,
guma verdade, e que os homens reconheceram sua voz" ~ Diekmann.
"A revelação é a comunicação, ao homem, de verdades reli-
giosas" 2 • "A revelação divina é a manifestação de verdades 5 "Relevatio supernaturalis directa est manifestatio Dei per locutionem
que Deus faz à criatura racional, para que atinja seu fim" 3 • divinam, i. e. per actum Dei directe et immediate ordinatum ad hoc ut
Nesse objeto, fazem às vezes a distinção entre os ensinamentos cognitionem propriam homini manifestet" (L. LERCHER, Institutio11es
theologiae dogmaticae [4 vol., Ba~celona, 1945, 4~], 1: 11); A. DoRscH',
e as vontades ou decretos de Deus 4 Institutiones theologiae fundamentalis (2 vol. Innsbruck, 1930), 1: 300;
Servem-se da analogia da palavra para representar essa G. LAHOUSSE, De vera religione ( Louvain, 1897), p. 87; J. V. BAINVEL,
ação pela qual Deus comunica ao homem seu pensamento. De vera religione et apologetica ( Paris, 1914), p. 152.
6 E. RoLLAND, em M. BRILLANT · et M. NÉDONCELLE, Apologétique
(Paris, 1939), p. 199; J. LEBRETON, "L'encyclique et la théologie moder-
1 J. LEBRETON, L'encyclique et la théologie moderniste, DAFC, 3: niste" DAFC, 3: col. 675; H. FELDER, Apologetica seu theologia funda-
col. 675, 677. menta/is (Paderborn, 1923 ), p. 28; A. TANQUEREY, Synopsis theologiae
2 "Offenbarung iro theol. Sinne ist die Mitteilung religioser W ahrheiten dogmaticae fundamentalis (Paris-Tournai-Rome, 1929, 22~), pp. 110-111;
an die Menschen durch Gott, sei es perséinlich oder durch einen Engel" J. MAUSBACH, Grundzüge der kath. Apologetik (Münster, 1933), p. 9.
(H. STRAUBINGER, art. "Offenbarung", Lexikon für Theologie and Kirche 7 "Revelatio divina stricte dieta est locutio Dei, qua Deus ex iis
[Freiburg, 1935], 7: col. 682). quae cognoscit, quaedam curo hominibus communicat, ita ut homines ea
3 "Revelatio divina· est manifestatio veritatum per Deum creaturae propter auctoritatem Dei loquentis credant" (C. PESCH, Compendium
rationali facta, ut haec ad debitum suum finem perveniat" (W. PoHL, De theologiae dogmaticae [Fribourg, 1935, 5~ ], 1: 29).
vera religione, quaestiones selectae [Freiburg, 1927], p. 269). 8 Dieckmann, Pesch, Tromp, Gobel, Lercher, Dorch, Mors, Vizma-
4 J. DmrnT, art. "Révélation divine", DAFC, 4: col. 1005; 1. ÜTTIGER, nos, Nicolau.
Theologia fundamentalis (2 vol., Fribourg, 1897), 1: 45. 9 R. Garrigou-Lagrange, J. Riviere, I. L. Gondal.
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236 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 237


1. O P. A GARDEIL, em em sua obra Le Donné ré- ção do profeta, e sim a sua inteligência capaz do absoluto" 14.
véle et la théologie, consagra todo o capítulo segundo à A revelação, pois, segundo Gardeil, mostra-se como uma
noção .de revelação. Lamenta que o ensino, simplificando ação divina, com uma finalidade social, que ativa e dirige
demais, "nem sempre se preocupe suficientemente com os a faculdade da afirmação do profeta, assim que os seus
caminhos psicológicos" mediante os quais recebemos a re- julgamentos, proferidos sob a luz divina, sejam comunicá-
velação, dando assim "a impressão de que fórmulas vão veis a toda a sociedade humana.
sendo sobrepostas ao espírito, o que de modo algum cor- Ao analisar o processo do conhecimento profético, Gar-
responde à realidade dos fatos" 10 • Gardeil, mantendo-se fiel deil fundamentalmente se mantém fiel aos elementos de
a santo Tomás, descreve a revelação apoiando-se no seu santo Tomás. O conhecimento profético, como qualquer
De Prophetia. Mas, enquanto santo Tomás se interessa com outro, supõe acceptio rerum e judicium, isto é, a concepção
a revelação primeira considerada em si mesma, Gardeil qµer de imagens ou de idéias e um julgamento que as une na
primordialmente defender a homogeneidade da verdade re- verdade. Sob a ação divina chegam, primeiramente, à cons-
velada no dogma e na teologia. ciência imagens e noções ( adquiridas ou infusas ou reor-
Tendo examinado e condenado o conceito moder- denadas ) que correspondem analogicamente ao aspecto da
nista de revelação, representado por Loisy e Tyrrell, realidade divina que Deus quer revelar. A luz divina realça
insiste Gardeil na finalidade social do carisma profético e o poder de expressão desses sinais mentais; o profeta, então,
na denuntiatio da verdade revelada 11 • Sendo o conheci- "reagindo ante o objeto que lhe é posto ao alcance divina-
mento profético essencialmente um carisma social, deve mente iluminado", concebe, afirma e denuncia o que Deus
"comunicar-nos um objeto válido para todos, expresso bas- queria que ele afirmasse 15 • Deus não força o julgamento
tante claramente para servir de ponto de convergência para do profeta: rende-se este à luz. Deus, fonte de luz, reforça
todos que procuram o divino. . . Sem esse valor fixo e a luz do espírito humano sem lhe modificar a natureza e
bastante claro do objeto do conhecimento profético, jamais sem lhe perturbar o ritmo de funcionamento. .N. luz rece-
poderíamos ter uma participação socializada da própria luz bida gera uma dupla certeza: que a verdade é exatamente o
que Deus difundiu no espírito do profeta" 12 • É preciso que está sendo indicado pelos sinais e pela luz, e também que
que o dado revelado seja comunicado de um modo que lhe a verdade e a luz não são próprias do profeta, mas de
garanta o valor exato, absoluto, imutável, indefinidamente Deus 16 • O profeta afirma o que está vendo, primeiro para
transmissível através do tempo e do espaço. Sua co- si mesmo, depois para os outros homens aos quais tem a
municabilidade, .com essas características, está garantida, missão de esclarecer. Sendo a profecia um carisma social,
l '! pelo conteúdo de pensamento suficientemente nítido, é preciso que "o profeta exprima externamente o que julga
proposto por Deus; 2? pela ação do Espírito que man- internamente como verdade revelada por Deus, e isso de
tém a fidelidade entre a Jenuntiatio e o dado interior 13 ; 3'! modo tal que possa ser transmitida aos outros homens e se
pelo absoluto de que são capazes algumas afirmações hu- tornar indefinidamente entre eles objeto de intercâmbio
manas. Desde que "a ação revdadora de Deus se mani- social" 17 •
festa na faculdade humana de afirmação, a humanidade pos- 2. O P. GARRIGOU-LAGRANGE consagra trinta páginas
sui uma verdade determinada, indefinidamente transmissível. de seu De Revelatione ao conceito de revelação 18 • Primeiro
Na revelação, o que é diretamente .ativado não é o cora-
14 Ibid., 54-5'"
1º A. GARDEIL, Le donné révélé et la théologie (Paris, 1909), p. 71. 15 Ibid., 75.
11 Ibid., 49. 16 lbid., 66-67.
12 Ibid., 53. 17 Ibid., 70.
13 Ibid., 63'-64. 18 R. GARRIGOU·LAGRANGE, De Revelatione per Ecclesiam catholicam
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238 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 239


a define a partir dos documentos da Igreja, depois lhe dá os homens; foi, antes, o iniciador de um movimento reli-
uma explicação. teológica. Diz: "A revelação é a ação gioso adaptado ou adaptável aos diversos tempos e luga-
divina, livre e essencialmente sobrenatural, pela qual Deus, res" 21 ; apóia-se, finalmente, numa análise da ?oção 1e ~e-
querendo conduzir o gênero humano a seu fim sobrenatural, velação concebida como palavra de um superior ~apientis-
que consiste na visão da essência divina, falando-nos pelos simo que a seu inferior manifesta verdades sublimes. A
profetas e nestes últimos tempos pelo Cristo, manifestou- partir dessa idéia de revelação, palavra de ensino, é fácil
-nos um tanto obscuramente mistérios sobrenaturais e tam- deduzir as condições requeridas para sermos instruídos por
bém verdades da religião natural, que depois possam ser um mestre divino ou humano. Para isso é necessário, se-
infalivelmente propostos pela Igreja, sem nenhuma mudança gundo san'Io Tomás 22 , uma proposição objetiva da verdade
de sentido, até o fim do mundo" 19 • Retoma essa definição, e uma luz interior para julgar a verdade proposta ou, pelo
inspirada principalmente no Vaticano I, e ordena seus ele- menos a autoridade do mestre. Evidente que o mestre hu-
mentos segundo as· quatro causas: final, eficiente, formal, mano 'não poderá conceder a luz interior da inteligência;
material. Nota que a ação reveladora é uma ação livre e essen- produz, contudo, uma luz objetiva enquanto por sua _de-
cialmente sobrenatural: em razão de seu fim e de seu objeto monstração guia metodicamente seu discípulo, do conhecido
próprio que são os mistérios da vida íntima de Deus. Não é ao desconhecido, permitindo-lhe ver por si mesmo o que
uma ação que esteja no âmbito do concurso divino ordinário, não teria percebido sem o auxílio do mestre. O Mestre
nem apenas sobrenatural quoad modum, como o milagre; é divino pode, de dois modos, propor a verdade: na evidênc~a
essencialmente sobrenatural, que procede de Deus e de sua da visão ou na obscuridade da fé. Neste caso, duas condi-
vida íntima. E uma vez .que é palavra, difere da infusão ções são requeridas para que o homem se apodere do pen-
da luz da fé. samento divino. Objetivamente, deve haver uma propo-
Ao dar a explicação teológica, Garrigou-Lagrange de- sição sobrenatural da verdade: algo que, antes oculto, é
fine formàlmente a revelação como "palavra de Deus en- manifestado por Deus, levado ao conhecimento do homem
quanto ensinamento" 20 • Afirmação que fundamenta, pri- e proposto como vindo de Deus. Desse ponto de vista a
meiramente apelando para Hebr 1,1; Is 50,4; Os 2,4; SI revelação assemelha-se à palavra do magistério humª?º·
84,9 e para as passagens da Escritura onde se diz ,que as Subjetivamente, deve haver uma luz sobrenatural que ilu-
multidões davam ao Cristo o título de Mestre, título por mine os termos da proposição e permita uni-los de modo
ele mesmo reivindicado como próprio (Mt 8,28; Jo 8,13); infalível num julgamento conforme à verdade. Luz que
aduzindo depois o decreto Lamentabili que condena a se~ permita também discenir com certeza a origem ~ivin~ da
guinte proposição dos modernistas: "O Cristo não ensinou verdade comunicada. Sob esse aspecto, a revelaçao difere
um corpo de doutrinas aplicável a todos os tempos e a todos do magistério hu.mano, pois somente Deus pode agir imedia-
tamente sobre o espírito e infundir-lhe a luz 23 •
proposita (2 vol., Romae, 1950, 5~), 1: 130-160. Idên.tica é a posição de Assim, em Garrigou-Lagrange, a revelação é descrita
J. BRINKTRINE, Offenbarung und Kirche (2 vol., Paderborn, 1947), principalmente como ensinamento, analisada em termos _de
pp. 33-53. relacionamento de mestre e discípulo. Nessa análise, CUJOS
19 "Actio divina libera et essentialiter supernaturalis qua Deus ad
perducendum humanum genus ad finem supernaturalem qui in visione
essentiae divinae consistit, nobis loquens per prophetas et novissime per 21 "Christus determinatum doctrinae corpus omnibus temporibus
Christum, sub quadam obscuritate manifestavit mysteria supernaturalia cunctisque hominibus applicabile non docuit, sed potius inchoavit motum
naturalesque religionis veritates, ita ut. deinceps infallibiliter proponi quemdam religiosum diversis temporibus ac locis adaptatum vel adaptan-
possint ah Ecclesia sine ulla significationis mutatione, usque ad finem dum" (D. 2059).
mundi" (R. GARRIGOU-LAGRANGE, De Revelatione, 1: 132). 22 De Verit., q. 11; S. th., la, q. 117, a. 1.
20 Ibid., 1: 143. 23 R. GARRIGOU-LAGRANGE, De Revelatione, pp. 143-153.
240 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 241

elementos são tomados do De Magistro 24 e do De Prophe- segunda implica também que a testemunha tem o direito
tia 25 de santo Tomás, quase não aparece a categoria "teste- de ser ouvida e acreditada. A autoridade divina é, ao mes-
munho", tão rica e sempre presente na Escritura. É fato que mo tempo, teórica e jurídica: repousa não sobre sua ciência
a revelação nos ensina algo que deve ser transmitido como e sua veracidade infinitas, mas também sobre sua qualidade
um corpo de doutrina. Contudo, o que a especifica como de Mestre absoluto da criatura humana, da qual é o autor e
pal~~ra, não é a ciência, mas a fé. No gênero palavra, es- o fim supremo. Porque a revelação é palavra que atesta,
pec1f1ca-se antes como testemunho do que como ensinamen- reclama a homenagem da fé.
to. Garrigou-Lagrange é mais inspirado quando, em todos É inegável que esses ensaios contêm elementos pre-
os graus da revelação, evidencia a conjunção entre o objeto ciosos que devemos reter.. Mas também apresentam graves
e a luz que lhe é proporcionada: à luz profética correspon- lacunas. Seguindo santo Tomás, insistem na revelação pro-
de proporcionalmente, no crente, a luz da fé· nos bem-aven- fética, ignorando quase completamente a revelação pelo
turados, a luz da glória. Essa proposição, apenas enunciada Cristo. De modo geral, aliás, é ainda tímida a considera-
no capítulo da ,revelação, é longamente elaborada no capí- ção bíblica da revelação; isso para não dizermos que não
tulo da fé 26 • É com ràzão que insiste também na liberdade existe de todo. Definem a revelação a partir da etimologia ou
e sobrenaturalidade da revelação 27 bem como na relação a partir dos documentos do Magistério, dos quais se faz, aliás,
íntima que une Igreja e revelação 2;. apenas um brevíssimo inventário; apressam-se logo a tratar
3. H. DIEKMANN 29 , antes da' definição de revela- do problema da possibilidade da revelação, sem refletir su-
ç~o, coloca um breve parágrafo reunindo os principais vo- ficientemente que não se trata de uma revelação qualquer,
cabulos que em Novo Testamento designam a revelação 30 • mas de uma revelação muito específica, que nos vem através
Defir~e-a, depois, como sendo locutio Dei attestans. "A pa- da história e da encarnação. Insistem muito mais nas verda-
lavra é o ato pelo qual alguém diretamente manifesta a des reveladas do que em Deus que revela e se revela. São es-
o~tro seu pensamento" 31 • Noção de palavra que inclui pantosamente discretos quanto às relações interpessoais que
tres elementos: l '.' uma manifestação de pensamento; 2'.' ma- a revelação estabelece entre Deus e o homem. Parece-nos
nifestação direta de pensamento: portanto, o conhecimento que essas deficiências se devem em grande parte a uma
de Deus a partir de suas obras não verifica estritamen- consideração insuficiente dos dados da Escritura .. A preo-
te a noção de palavra; 3'.' uma dualidade de pessoas con- cupação apologética oculta as riquezas da realidade en-
cebidas como tais: Deus deve ser conhecido como pessoa volvida na discussão.
que se dirige ao homem como pessoa.
A palavra que revela é um testemunho: isto significa
que ela reclama um assentimento baseado na autoridade IL FATORES DE RENOVAÇÃO E ORIENTAÇÕES ATUAIS
de quem fala. Diekmann distingue entre autoridade teó-
rica e autoridade jurídica da testemunha. Funda-se a De uns 25 anos para cá aumentou, entre os teólogos
primeira na ciência e na veracidade da testemunha· a católicos, o interesse por essa primeira realidade cristã que
' é a revelação. Indicaremos brevemente as causas dessa
24 De Verit., q. 11, a. l; S. th., la, q. 117, a. 1. renovação e a orientação que está tomando.
25 S. th., 2a 2ae, q. 1.71-178.
26 R. GARRIGOU-LAGRANGE, De Revelatione 1 · 150 427ss.
27 Ibid., 1: 135-136. ' . '
28 Ibid., 1: 134-135.
29 H. DrncKMANN, De Revelatione christiana (Freiburg 1930).
30 Ibid., 135-136. '
31 Ibid., 138 32 Ibid., 138-141.
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242 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 243
concertantes que· os homens deveriam aceitar como verda-
1. Ponto de partida: insatisfações e queixas deiras sem as compreender. Na realidade, a revelação apre-
senta-se nas Escrituras de modo muito menos nocional e
No início da renovação encontramos um estado de muito mais pessoal: é antes de tudo a manifestação do pró-
insatisfação que se manifestava em queixas, às vezes bas- prio Deus que, através duma história sacra que culmi?a
tante veementes. Já em 1911, o Pe. Lebreton deplora que com a morte e a ressurreição do Cristo, faz entrever o mis-
os teólogos clássicos, que sistematizaram com precisão tério de seu amor" 40 • Segundo G. Thils deve-se à inadequa-
algumas partes da dogmática, tenham, contudo, descui- da apresentação de muitos manuais católicos a idéia inexata
dado as categorias fundamentais da revelação e da fé 33 • P. que os protestantes fazem do conceito católico de revelação.
Charlier censura ao Pe. Gardeil por ter insistido demais no São assim levados indevidamente a fazer uma oposição
aspecto conceptual da revelação e pouco sobre seu aspecto entre revelação "conhecimento" de verdades "sobrenaturais"
real 34 • Pergunta-se o P. Chenu se o saldo da passagem da e revelação "acontecimento salvífico", dom de Deus, que
Sagrada Escritura à teologia não seria, em muitos casos, um se apresenta ao homem no tempo. De fato, diz ele, para os
empobrecimento de fato 35 • O P. de Lubac observa que a católicos a revelação é também revelação do mistério real
maioria dos teólogos, ao tratar da revelação, contenta-se que é o próprio Deus, mas inclui também, evidentemente,
com uma visão rápida e superficial, reduzindo-a muitas ve- uma revelação doutrinal 41 • Os representantes da teologia
zes a uma série de proposições desconexas 36 • Muitos auto- querigmática ( principalmente J. Jungmann e H. Rahner)
res ( como H. Rondet, G. Thils, H. Delesty, J. Bonsirven, insistem, por sua vez, na insuficiente apresentação tradi-
P. Benoit) notam que na Escritura há preciosas indicações, cional da noção de revelação e percebem que é necessário
muitas vezes esquecidas. O P. V. White, depois do P. substituí-la por uma concepção realístico-histórica, mais pró-
Gardeil 37 acha que a teologia tradicional muitas vezes priva xima da mentalidade bíblica. Diz Guardini que somente
a revelação de seu aspecto temporal e de encarnação: não a revelação pode dizer-nos o que é a revelação; seria inútil
leva suficientemente em conta seu caráter histórico nem os querer abarcar numa fórmula breve toda a riqueza contida
caminhos psicológicos pelos quais se realiza 38 • Os PP. de
Lubac, Danielou, Fessard, Bouillard, Von Balthasar, opõem-se
40 "La rivelazione e stata troppo spesso concepita come la comuni-
a um certo intelectualismo que tende a fazer da revelação cris- cazione da parte di Dio di un certo numero di sconcertanti affermazioni
tã a comunicação de um sistema de idéias antes que a mani- che gli uomini dovrebbero considerare come vere senza comprenderle. ln
festação duma pessoa que é a verdade 39 • R. Aubert diz: realtà la rivelazione si presenta nella Bibbia in una manieta molto meno
nozio~ale e molto piu. personale: essa é soprattutto la manifestazione di Dio
"A revelação foi por demais concebida como a comunica- stesso, il quale, attraverso una storia sacra, culminante nella morte e
ção, feita por Deus, de certo número de afirmações des- rissurrezione di Christo, ci fa intravvedere il mistero dei suo amore" (R.
AuBERT, "Questioni attuali interno all'atto di Fede", em Problemi e
Orientamenti di Teologia dommatica [Milano, 1957, 2 vol.], 2: 671). As
33 J. LEBRETON, "Son Éminence le cardinal Billot", Études, 129
mesmas idéias encontram-se em R. AuBERT, Le Ptobleme de l'acte de foi
( 1911): 521-522. ( Louvain, 1958, 3~), p. 3. O P. BoNSIRVEN, a seu turno, faz notar que
34 L. CHARLIER, Essai sur le probleme théologique (Thuillies, 1938),
o termo revelação, na teologia e nos documentos do magistério, tem uma
p. 66. ressonância totalmente intelectual, designando um ensinamento que co-
35 D. CHENU, "Vocabulaire théologique et vocabulaire biblique",
munica noções bem definidas. A noção bíblica compreende muito mais:
Nouvelle Revue Théologique, 74 (1952): 1029-1041. "La révelation, dans son essence profonde, apparait comme la grâce total~
36 H. DE LuBAC, "Le probleme du développement du dogme", Rech.
par laquelle le Créateur introduit la créature dans la communion _à sa ~1-
de se. rel., 35 ( 1948): 153-155. vinité" (J. BoNSIRVEN, Théologie du Nouveau Testament (Parts, 19)1
37 A. GARDEIL, Le donné révélé et la théologie (Paris, 1910), p. 30.
p. 9).
38 V. WHITE, "Le concept de révélation chez S. Thomas d'Aquin",
41 G. THILS, "L'évolution du dogme dans la théologie catholique",
L'année théologique, 11 ( 1950), 2-6. Eph. theol. lov., 28 ( 1952): 680.
39 Dialogue théologique ( Saint-Maximin, 1947), p. 90.
244 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 245
na realidade· bíblica 42 • Em resumo: as queixas dos teólogos torna presente ao homem para salvá-lo e estabelecer com ele
concretizam-se em dois pontos: negativamente, medo que uma comunhão de vida. P. Althaus acusa a teologia ca-
o cristianismo seja reduzido a um intelectualismo exagera- tólica de ter despersonalizado a revelação. Diz ele: a reve-
do; positivamente, desejo de uma fidelidade maior às fon- lação não é uma comunicação de verdades, um ensinamento,
tes da Sagrada Escritura, e da tradição. mas uí:n encontro pessoal de Deus conosco, "não uma
súmula de credenda, mas um credendus" 44 • Oepke subli-
2. Teologia protestante nha: "A revelação não é a comunicação de um conheci-
mento sobrenatural ... , antes é, propriamente, a ação de
As obras protestantes, por sua abundância e qualidade, Javé, o desvendar de seu mistério essencial, a oferta de si
estimularam também o pensamento católico. A maioria mesmo como amigo" 45 • É a ação de Deus que sai de seu
dos teólogos protestantes contemporâneos consagram ao tema mistério e interpela o homem. Bultmann chega mesmo a
da revelação, não apenas importantes qap1tulos, mas também considerá-la como nada m,ais sendo que uma ação, uma
obras inteiras. Baste enumerar entre os nomes mais recentes: int~rpelação, praticamente com, .a exclusão de qualquer dis-
K. Barth, R. Bultmann, E. Brunner, H. W. Robinson, W. curso 46 • Segundo ele, o que importa não é a mensagem
Temple, E. F. Scott, G. E. Wright, H. H. Schrey, J. Wolff, da Palavra, seu conteúdo inteligível, mas o próprio fato de
H. Huber, H. Schulte, J. de Saussure, P. Tillich, H. R. ela ressoar como um apelo para a decisão definitiva; é o
Niebuhr, L. S. Thornton, A. Neher, A. Oepke, O. Procksch, acontecimento mesmo da Palavra e o acontecimento da fé
G. Kittel, J. Baillie, H. D. McDonald, James G. S. S. Thomp- que ela suscita 47 •
son, W. J. Martin, P. K. Jewett e outros. A revelação é o A teologia bíblica protestante insiste fortemente na
centro da teologia de Bultmann. O P. Malevez escreve: consideração da revelação enquanto acontecimento e histó-
"Bultmann apresenta-nos uma teologia da revelação. Váli- ria. A revelação é acontecimento e está ligada a acon-
da ou não, tem pelo menos o mérito de reconduzir a aten- tecimentos, isto é, aos atos salvíficos de Deus. Não apenas
ção do cristão para o âmago de um problema central, o se insere na trama da história humana: ela mesma é histó-
tema da revelação e da palavra de Deus, de sua inserção na rica. O Deus que fala, diz G. E. Wright, é principalmente
história . . . Convida-nos a aprofundar a teologia cristã da o Deus que age 48 • Todos, finalmente, insistem no caráter
revelação" 43 • O mesmo se deve dizer de K. Barth e de salvífico e existencial da revelação: encontro de Deus e do
E. Brunner. homem, no centro de uma opção que compromete totalmente
Podemos afirmar que, em seu conjunto, o pensamento a existência e suscita nova compreensão da condição humana.
protestante recusa a idéia de uma revelação concebida como Ação, acontecimento, encontro: são os aspectos que
uma manifestação e uma notificação de verdades sobre Deus a teologia protestante atuàl considera como mais impor-
ou de verdades ditas por Deus. Na revelação vê, primeiramen-
te, a manifestação pessoal do Deus vivo que ativamente se 4~ P. ALTHAUS, Die christliche Wahrheit (Gütersloh, 1947), 1: 285-286.
45 "Offenbarung ist nicht Mitteilung übernatürlichen Wissens. . . son-
42 R. GuARDINI, Die Olfenbarung, ihr W esen und ihre Formen dem recht eigentliche Handeln Jahwes, Aufhebung seiner wesenhaften
(Würzburg, 1940), pp. 118-119. Verborgenheit, Selbstdarbietung zur Gemeinschaft" (A. ÜEPKE, art. "cbto-
43 "Bultmann nous offre une théologie de la révélation. Valable ou xa.M1t,:-w", no TW 3: 575).
non, elle a du moin le mérite de ramener l'attention du chrétien au coeur ·46 R. BuLTMANN, Der Begrilf der Olfenbarung im Neuen Testament
mêm': d'un problem~ cen!ral, le theme de la révélation et de la parole (Tübingen, 1929), pp. 40ss.
de D1eu, et de son msert1on dans l'histoire. , . Elle nous invite à appro- 47 R. MARLÉ, "La théologie bultmannienne de la Parole de Dieu", em:
fondir la théologie chrétienne de la révélation" (L. MALEVEZ, Le message La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Paris, 1961), pp. 268-280.
cbrétien et le mythe (Bruxelles-Bruges-Paris, 1954), pp. 115-116. 48 G. E. WRIGHT, God who acts (Lóndon, 1952).
246 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO .NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 247
tantes na revelação. O aspecto doutrinal fica perceptível- os artigos do Lexikon für T heolo gie und Kirche e do 'J:!iction-
mente desvalorizado 49 • naire de spiriiualité 53 são muitas vezes, por sua amplitude e
riqueza, verdadeiras monografias. Afora os dicionários, mul-
3. Renovação bíblica e patrística tiplicam-se os trabalhos sobre temas fundamentais, neces-
sários à compreensão da noção de revelação; por exemplo,
No ambiente católico, o interesse pela teologia da re-
os estudos de J. Dupont sobre gnosis 54 ; de D. Dede?, ,~·
velação deve-se a diversos fatores, de valor aliás desigual. Prümm, R. E. Brown, C. Spicq, J. Coppens sobre o mtsterto
Enquanto que as correntes de pensamento do século XX ( exis-
paulino 55 ; de E. Pax sobre epiphaneia 56 ; de B. Trépanier, 1.
tencialismo, personalismo) formam como· que o pano de
de la Potterie, N. Brox, sobre testemunha e testemunhos,;
fundo, enquanto a teologia protestante age como fermento
de H. Schlier, J. Giblet, J. Dupont, C. Larcher, sobre 5/
de inquietação e como estimulante para a reflexão católica,
palavra de Deus 58 ; de 1. de la Potterie, sobre a verda~e ;
outros fatores exercem uma ação mais direta e mais definida.
de T. Crisan sobre glória 60 • Evidentemente que amda
O primeiro e o mais importante é a renovação bíblica muito resta a fazer nesse inventário dos dados da Escritura.
e patrística. A atenção dedicada ao dado revelado não po-
Como diz Schnackenburg "há conceitos importantes. . . que
deria deixar de se estender também ao Deus que revela. A
ainda esperam um estudo católico que tenha em conta os
volta às fontes bíblicas teve como corolário o primado da últimos resultados da pesquisa ... ; é o caso dos temas
palavra e da ação reveladora.
Pesquisas semânticas, agora mais exigentes, permitem 53 Por exemplo o artigo de D. MoLLAT, "Évangile", 4: cal. 1745-1772.
delimitar melhor uma noção e também formar conjuntos 54 J. DuPONT, 'cnosis, La connaissance religieuse dans les épitres de
de textos que revelam temas, deixando entrever estruturas. S. Paul (Louvain-Paris, 1949).
55 D DEDEN "Le mystere paulinien", Eph. th. lov., 13 ( 1936):
O estudo dos termos referentes à revelação, como foi ten- 403-442; ·K. PRü~M, "Mysteres", DBS 6: 1-225; R. E. BROWN, "The.. pre-
tado por H. Schulte 50 ou como se pode fazer partindo dos -Christian Semitic Concept of Mystery", CBQ 20 (1958): 417-443; The
dicionários bíblicos permite 0nos um contato mais próximo Semitic Background of the N. T. Mystêrion", Bíblica, 39 ( 1958): 426-448;
40 (1959): 70-87· C. SPICQ Les Épztres pastorales (Paris, 1947), excursus
com a realidade. Os artigos do Theologisches Worterbuch V: "Le mystere ~hrétien", pp. 116-!25; J. C~P~ENS~ "Le mys~e~e dans la
sobre os termos "conhecer", "ouvir", "evangelizar", "pre- théologie paulinienne et ses paraleles qumramens , em: Lttterature et
gar" "revelar" "falar" "ensinar" "testemunhar" 51 • os théologie pauliniennes (Col. "Recherces bibliques", V, Louvain, 1960),
' ' ' ,. ' pp. 142-165. . b.
artigos do Supplement do Dictionnaire de la Bible sobre os 56 E. PAx Epiphaneia. Ein religionsgeschichtlicher Beztrag zur z-
termos "palavra", "mistério", "oráculo" 52 ; como também blischen Theol~gie ( "Münchener Theologische Studien", I, 10, München,
1955). . l , . . h · " R
57 B. TRÉPANIER, "L'idée de témotn dans es ecr1ts Jo nmques , . ev.
49 J. BAILLIE, The Idea of Revelation in Recent Thought (London,
1956), pp. 49-50. de l'Université d'Ottawa, 15 (1945): 5-63, secção marcada com astemco;
50 H. ScHULTE, Der Begriff der Offenbarung im Neuen Testament
I. DE LA PoTTERIE, "La notion de témoignage dans S. Jean", em: Sacra
Pagina (2 vol. Paris-Gembloux, 1959), 2: 192-208; N. BRox, Zeuge und
(München, 1949).
Miirtyrer (München, 1961). .
51 G. KrTTEL, "á.xoúw", 1: 217-225; R. BuLTMANN, "ywwirxw",
58 H. ScHLIER, Wort Gottes (Würzburg, 1958); lo., "La not101;1
1: 688-715; G. FRIEDRICH, "eúayyEÀLov", 2: 714-718; 724-733; G. FRIE· paulinienne de la Parole de Dieu", em: Littérature et théologie paulz-
DRICH, "Xl]púirirw", 3: 701-717; A. ÜEPKE, "á.1tOXIXÀÚ1t-rw", 3: 565-597; niennes ( Cai. "Recherches bibliques", V, Louvain, 19'?0), pp. 1~7-111;
o. PROCKSCH, "ÃÉyw, ).,6yoç-", no A. T., 4: 89-100; G. KrTTEL, "Ãeyw, C. LARCHER, "La parole de Dieu en tant que revelat1on dans 1Anc1en
Myoç-", no N. T., 4: 100-140; K. H. RENGSTORF, "6tôá.irxw", 2: 138-168; Testament" em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 35-67; J. DuPON!,
H. STRATHMANN, ".µap't"IJÇ', µap-rupÉw, µap-rúpoµat", 4: 492-520; Cfr. "La parole 'de Dieu suivant S. Paul", ibid. 68-84; J. GIBLET, "La théolog1e
também os artigos correspondentes no Vocabulaire de théologie biblique johannique du Logos", ibid. 85-119.
(Paris, 1962).
59 I. DE LA PorTERIE, "L'arriére-plan du théme johannique de la vé-
52 A. BARUCQ, "Oracle et divination", 6: 752-787; A. ROBERT, J.
rité", em: Studia evangelica (Berlin, 1959), pp. 277-294.
STARCKY, e outros., "La parole divine dans l' A. et le N. Testament", 60 T. CRISAN, De notione Doxa in Evangelio S. Joannis in luce Ve-
5: 425-497; R. FOLLET et K. PRÜMM, "Mysteres", 6: 1-225. teris Testamenti (Dissertado, Romae, 1953).
248 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 249
"conversão", "paz", "esperança", . . . e mesmo "palavra de ciso ainda acrescentar um bom número de outros trabalhos
Deus" ou "Espírito Santo" 61 • Contudo, já agora as teolo- que .dedicam um ou mais capítulos ao tema da revelação 66 •
gias bíblicas aproveitam esses estudos parciais e preparam Os autores dessas pesquisas sobre os santos Padres pro-
uma síntese que será sempre difícil, pois a revelação é uma curam principalmente definir a função de Cristo como reve-
categoria fundamental do cristianismo, onipresente na Es- lador do Pai numa economia de encarnação, situar os pro-
critura e multiforme em sua expressão 62 • fetas e apóstolos com relação ao Cristo, e também de-
Parecem-nos ser os seguintes os pontos sobre os quais terminar em que profetas e apóstolos se assemelham e
insistem a exegese e a teologia bíblica: a) a educação pro- se distinguem. Os terrias da unidade. de ambos os Testa-
gressiva· de Israel: a revelação é um lento caminhar das mentos, do progresso da revelação, da pedagogia divina, do
trevas para a luz ( idéia de Deus, de aliança, de messias, caráter histórico e salvífico da revelação, estão sempre
de reino, de salvação, de graça etc); deve-se lealmente re- presentes.
conhecer o fato, sem falso concordismo; b) a historicização
da revelação: dá-se Deus a conhecer na história, através de 4. Reflexão sobre a teologia
seus gestos de salvação; e) a infinita diversidade dos modos
de expressão ou de gêneros literários; d) a unidade e a Entre 1936 e 1939 surgiu entre teólogos um debate
continuidade do plan_o divino, que não exclui, porém, im- quanto a natureza e os métodos da teologia. Deram-lhe
precisões e até mesmo retrocessos; e ) o caráter essencial- início duas conferências de R. Draguet 67 que inspirarâm
mente interpessoal e dinâmico da palavra divina. Charlier em seu Essai sur le probleme théologique 68 • O P.
Se bem que a pesquisa patrística sobre o tema da re- Chenu publicava na ·mesma época uma obra na qual e~punha
velação não progrida no mesmo ritmo, a teologia da re- como se concebia a pesquisa teológica na escola de Saul-
velação já está se beneficiando com a renovação geral dos choir 69 • Finalmente, J. Fr. Bonnefoy publicou nas Epheme-
estudos patrísticos. Entre as monografias que tratam dire- rides de Lovaina uma série de artigo sobre a teologia
tamente da revelação, devemos mencionar a obra de Mar- enquanto ciência 70 • Essas publicações, principalmente as
guerite Harl sobre Orígenes 63 , os estudos de J. Ford e J. de Chenu, Draguet, Charlier, provocaram reação em ca-
Ochagavía sobre santo Irineu 64, a obra de E. Molland sobre deia. Y.-M. Congar 71 , M. R. Gagnebet 72 , W. Goossens 73 ,
à tema do Evangelho na escola alexandrina 65 • Seria pre-
(Louvain-Gembloux, 1955); J. LEBRETON, Histoire du dogme de la Trinité
(2 vol., Paris, 1928); D. VAN DEN EYNDE, Les normes de l'enseignement
61 "Des concepts importants. . . attendent encore une étude catholi- chrétien dans la littérature patristique des trois premiers siecles ( Gembloi.!x,
que tenant compte des derniers résultats de la recherche ... ; c'est le cas 1933); H. DE LuBAC, Histoire et Esprit (Paris, 1950); G. AEBY, Les
pour les themes de conversion, paix, espérance,. . . et même parole de missions divines, de Saint Justin à Origene (Fribourg, 1958).
Dieu ou Esprit Saint" (R. SCHNACKENBURG, La théologie du Nouveau 67 R. DRAGUET, "Méthodes théologiques d'hier et d'aujourd'hui",
Testament (Bruges, 1961), pp. 38-39). · Revue catholique des idées et des. faits, 15 ( 1936), 10 janvier, pp. 1-7;7
62 Mais ou menos trinta vocábulos servem para exprimir a idéia de
févriet, pp. 4-7; 14 février, pp. 13-17.
revelação. 68 L. CHARLIER, Essai sur le probleme théologique (Thuillies, 1938).
63 M. HARL, Origene et la fonction révélatrice du V erbe incarné 69 M.-D. CHENU, Une École de théologie, le Saulchoir (Le Saulchoir,
(Paris, 1958). Kain-lez-Tournai, Belgique, et Étiolles, France, 1937) .
• 64 J. _FoRD, St. Irenaeus and Revelation, A Theological Perspective · 70 J. F. BONNEFOY, "La théologie comme science et l'explication de
(D1ssertat10, Romae, 1961); J. ÜCHAGAVÍA, Visibile Patris Filius (Col. la foi chez S. Thomas d'Aquin", Eph. th. lov., 14 (1937): 421-446, 600-631;
"Orientalia Christiana Analecta", 171, Romae, 1964). 15 (1938): 491-516.
65 E. MoLLAND, The Conception of the Gospel in the Alexandrian 71 Y.-M. CONGAR, "Recensions", Bulletin thomiste, 1938, pp. 490-505.
Theology (Oslo, 1938). 72 M. GAGNEBET, "Un Essai sur le probleme théologique", Revue
66 Cfr. por exemplo: H. CROUZEL, Origene et la ªconnaissance mysti-
thomiste, 45 (1939): 108-145.
que" (Bruges, 1961); J. DANIÉLOU, Message éva11gélique et culture hellénisti- 73 W. GoosSENS, "Notion et méthode de; la théologie", Coll. Gand.,
que (Paris-Tournai-Rome, 1961); A. Houssuu, La christologie de S. Irénée 26 ( 1939): 115-134.
250 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 251
C. Boyer T. Zapelena e vários outros entraram também
74 , 75
se exprime o testemunho divino. Doutro, a própria Reali-
no debate. Não pretendemos reabri-lo, mas apenas relem- dade que essas· proposições expressam. Sem dúvida, é a
brar o que então se disse acerca da revelação. Sendo a re- fé um assentimento às proposições que exprimem o mis-
velação o objeto da fé, e ao mesmo tempo o objeto ao qual tério. Mas através delas a fé visa à própria realidade do
se aplica a inteligência teológica, era então impossível tra- mistério, isto é, o Deus da visão e da beatitude 82 • É a fé "a
tar de uma sem falar da outra. Assim é que os PP. M.-D. percepção realista de Deus numa proposição conceptual" 83 •
Chenu e L. Charlier tiveram que explicar o que se deve Reagindo contra um intelectualismo abstrato e indife-
entender por revelação e por dado revelado. rente para com a história, o P. Ghenu salienta que o dado
São bem conhecidas as queixas do P. Chenu contra revelado nos chega em forma de história e não sob a forma
certo tipo de teologia demasiadamente intelectualista e con- de idéias abstratas. O que a inteligência teológica procura
ceitualizante 76 • Teologia· mais interessada nas conclusões a compreender é uma economia, cuja realização está presa ao
serem tiradas do dado revelado que na realidade do pró- tempo; é uma série de iniciativas do amor livre· de Deus
prio mistério. Teologia pouco atenta ao papel da fé no que dirige a história como quer 84 • O dado inicial da ciência
trabalho teológico 77 , permitindo assim certo divórcio prá- teológica "não é um inventum philoso phicum (D. 1800)
tico entre a teologia e a vida espiritual 78 • Reagindo violen- a ser tratado como uma série de princípios metafísicos ou
tamente contra esse tipo de teologia, o P. Chenu dedicou-se físicos, dos quais se deduzam logicamente conclusões cla-
à valorização do caráter realista, histórico e religioso da ras. São obras de Deus, do Deus de Abraão, de Isaac e de
revelação e da fé. Jacó, não do Ato puro; sua obra central, a encarnação não
Ponto de partida da teologia é a fé na revelação, que se insere em nenhuma ordem cósmica onde pudéssemos en-
é testemunho de Deus sobre si mesmo. Mas esse "teste- contrar uma sombra que fosse de razão determinante" 85 •
munho é apenas o veículo de um conhecimento real, que A teologia deve centrar-se na história da salvação, nas "impre-
nos dá, ainda que em mistério, uma realidade, a realidade visíveis histórias do amor gratuito de Deus" 86 • A teologia
divina, como objeto de percepção e amor" 79 • O objeto do pois, em segundo lugar, é realista por ser a inteligência da
testemunho divino, "dado numa confidência que exige con- ordem da salvação em sua realização histórica 87 •
fiança" 80 , é o próprio Deus, "aquele em quem agora re- Finalmente, uma descrição fiel da revelação deve evi-
conheço o todo de minha vida, o objeto deleitável de minha denciar um terceiro elemento. O objeto de fé ( proposições
felicidade" 81 • No objeto da fé podemos então distinguir e realidade) não se pode atingir formalmente se não sob
dois aspectos: dum lado, conceitos, proposições, em que uma luz proporcionada: a luz da fé. Luz interior que é a
palavra de Deus em mim: "graça pessoal, que me põe em
74 C. BoYER, "Qu'est-ce que la théologie?", Gregorianum, 21 ( 1940): diálogo e comércio direto com ele, presença misteriosa, à
255-266.
75 T. ZAPELENA, "Problema theologicum", Gregorianum, 24 ( 1943):
82 Ibid., 234.
23-47, 287-326; 25 (1944): 38-73, 247-282. s3 Ibid., 253, 239.
76 M.-D. CHENU, Une École de théologie, le Saulchoir, p. 72.
84 Ibid., 246-247.
77 M.-D. CHENU, "Position de la théologie", Rev. des Se. ph. et th.,
inventum philosophicum (D. 1800) à traiter tout
85 " ... n'est pas un
2-'!- (1935): 254. de go comme un lot de principes métaphysiques ou physiques, d'ou se
78 M.-D. CHENU, Une École de théologie, le Saulchoir, p. 71.
79 " ... témoignage n'est ici que le véhicule d'une connaissance réelle,
déduiraient logiquement des conclusions claires. Ce sont les oeuvres de
Dieu, du Dieu d'Abraham, d'Isaac et de Jacob, non de l'Acte pur; et
nous livrant, fíit-ce dans le mystere, en objet de perception et d'amour, son ouvre centrale, l'Incarnation de son Fils, ne s'insere dans aucun
une réalité, la réalité divine" (M.-D. CHENU, "Position de la théologie", ordre cosmique ou nous pourrions déçler une ombre de raison détermi-
Rev. des Se. ph. et th., 24 (1935): 233. nante" ( Ibid., 247).
8o Ibid., 234.
86 Ibid., 248.
81 Ibid., 234.
s1 Ibid., 249.
252 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 253
qual o homem novo tem acesso, não. porque sua razão o proposições sobre Deus. É por isso que insiste no aspecto
introduza, mas porque Deus se revela, sibi ipsi testis. Qui realista da revelação e na palavra interior que precede e
credit in Filium Dei, habet testimonium Dei in se ( lJo sustenta a adesão ao testemunho exterior 94.
5,10)" 88 • Sem essa luz não existe verdadeira comunhão A exposição do P. CHARLIER em seu Essai sur le pro-
com o pensamento divino. O conhecimento de fé é posse bleme théologique 95 incide em parte com o modo de ver do
obscura, não evidente, imperfeita, de seu objeto. É, porém, P. Chenu, apresentando ao mesmo tempo considerações
ao mesmo tempo percepção "saborosa" 89 , "religiosa" 90, "con- novas de um tom bem diferente. É no quarto capítulo da
templativa" 91 , "mística" 92 da realidade que as proposições primeira parte de sua obra 96 que encontramos seu conceito
exprimem, "conhecimento vital, que prepara ulterior pene- de revelação. Com o P. Chenu, ele observa inicialmente
tração até a visão" 93 • que há uma insistência demasiada no aspecto conceptual do
Assim, em face de uma teologia que ele julga infiel dado revelado e uma consideração insuficiente de seu aspecto
a seu objeto, demasiadamente intelectualista e não suficiente- real: "o revelado é antes de mais nada uma realidade que é
mente religiosa e teologal, o P. Chenu põe em evidência o dada" 97 • E a fé divina: "não é uma simples adesão a um qual-
aspecto realista, histórico e místico da revelação. O teste- quer testemunho exterior de Deus", é adesão ao próprio
munho de Deus exprime-se através de conceitos e de proposi- Deus em seu mistério, a Deus que se nos revela em sua luz.
ções que o veiculam. Em última análise, porém, o que se "A fé supõe que nós, através do conceito e da fórmula,
comunica ao homem é a realidade do mistério. P. Chenu atingimos a res, ou seja, a própria realidade divina" 98 • "O
não nega o aspecto conceptual e proposicional da revelação. principal na revelação é ... , concretamente, Deus em pessoa
Opõe-se, porém, a uma consideração unilateral desse aspecto, que se diz a nós, que se revela à nossa alma em sua pró-
em prejuízo do realismo da revelação, e principalmente em pria luz ... ; testemunho transcedente que a verdade dá
prejuízo da palavra interior, do testemunho interior, da ilu- sobre si mesma pelo contato direto que estabelece conosco.
minação interior que acompanha o ensinamento exterior cuja Pouco importa o mistério com que se envolve com relação
í!propriação torna possível. Falando da revelação ou da fé, à nossa inteligência, se a realidade, apresentando-se como
podemos insistir sobre a mensagem ouvida e aceita sobre algo que nos é dado, nos envolve com sua presença" 99 •
a /ides ex auditu, ou então sobre a realidade do mi;tério e Não há dúvida que o P. Charlier considera como o mais
so!=>re o testemunho interior, a luz interior. Chenu sabe per- importante na revelação, não a comunicação duma mensagem
feitamente que nosso encontro com Deus tem como norma referente a Deus e à nossa salvação, mas o dado-revelado-
a adesão à mensagem de salvação, ao Evangelho, sob a ação
da graça que solicita e eleva. Mas reage contra certa forma 94 Contudo, qualificar o conhecimento da fé, como ele o faz, de
"percepção" mística e· cheia de sabor, parece-nos ser dupla imprecisão:
de intelectualismo que na revelação vê apenas uma série de e:m rigor de termos, na fé Deus não é percebido, mesmo obscuramente,
mas apenas é crido; em segundo lugar, essa característica experimental
. 88 " . . . grâce personnelle, me mettant en dialogue et en commerce da fé pertence mais a uma fé privilegiada e não simplesmente a uma
d1rect avec lui, présence mystérieuse, à laquelle l'homme nouveau a acces, fé comum.
n?~ parce que sa raison l'y introduit, mais parce que Dieu se révele 95 L. CHARLIER, Essai sur le probleme théologique (Thuillies, 1938).
szbz zpsi testis. Qui credit in Filium Dei, habet testimonium Dei in s~ 96 Ibid., 66-80.
(lJo 5,10)", (M.-D. CHENU, Une École de théologie, le Sauchoir, p. 59). 97 Ibid., 50.
89 M.-D. CHENU, "Position de la théologie", Rev. des Se. ph. et th. 98 Ibid., 66.
24 (1935): 235-236. ' 99 "Ce qui est premier dans la révélation, c'est. .. , en conçret, Dieu
90 Ibid., 239. en personne se disant à naus, se révélant à notre âme en sa propre
91 M.-D. CHENU, Une École de théologie, le Saulchoir p. 76. lumiere ... ; témoignage transcendant que la vérité donne sur elle-même par
92 Ibid., 70. . . ' le contact direct qu'elle établit entre elle et naus. Qu'importe le mystere
93 M.-D. CHENU, "Position de la théologie", Rev. des Se. ph. et th. dont elle s'entoure au regard de l'intelligence, si la réalité, pour s'être
24 (1935): 233. ' mise d' abord en état de donné, nous enveloppe de sa présence" ( Ibid., 67).
254 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA . TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 255

-realidade, isto é, o próprio Deus em pessoa que se dá e desígnio, em cujo centro Deus se coloca e do qual o homem
se revela ao fiel em sua própria luz. Na economia cristã, é o beneficiário" 105 • A história influencia também o pro-
porém, o dom de Deus se resume no mistério do Cristo gresso do dogma: "o progresso do dado revelado não é, de
total - Cristo e a Igreja - . Sendo assim, o dado-revelado- modo algum, o resultado do estudo abstrato de uma doutri-
-realidade será o Cristo total, e com o Cristo toda a Trin- na. É, em primeiro lugar e principalmente, o progresso de
dade 100 . Logo, pois, que o Cristo
' '
nos foi dado e fundada toda a realidade divina contida no mistério da Igreja, que
a Igreja, já temos em toda a sua plenitude o dado-revelado- suscita conseqüentemente o progresso do conhecimento pro-
-realidade, bem como a revelação exterior que no-lo dá a fundo da fé e ·as intervenções decisivas do Magistério" 106 •
conhecer 101 •• Esse dado revelado está presente na Igreja, Assim, conforme o P. Charlier, a revelação é princi-
e é na lgreJa que ele se desenvolve "à medida que a lgrja palmente a comunicação da própria realidade divina: pre-
o assimila e lhe permite nela crescer" 102 • sença misteriosa oferecida à experiência de fé. A revelação-
Após ter assim acentuado o dado-revelado-realidade e -doutrina ( mensagem de salvação comunicada ao homem)
sua complexidade, o P. Charlier tira como conclusão uma passa claramente para o segundo plano. O dado-revelado-
teo:ia do desenvolvimento dogmático. No estágio consti- -realidade ( o próprio Deus no mistério do Cristo e da
tutivo do revelado, a realidade é dada ao mesmo tempo que Igreja) está em perpétuo trabalho de crescimento. É todo
sua ?-~tificação primeira e oficial. Ponto de partida que o mistério que cresce e, conseqüentemente, o conhecimento
cond1c1ona todo o posterior desenvolvimento orgânico. Pro- que dele temo~. Semelhante conceito de reveláção, além de
cessa-se o crescimento tanto no plano da realidade como no contradizer os dados da Escritura e do Magistério, que
do conhecimento: "Concretamente, há um crescimento de apresentam o objeto da fé como uma mensagem, ou seja,
todo o mistério de Deus: toda a realidade divina cresce a Boa-nova da salvação, põe em perigo a verdadeira noção
enquanto assimilada, enquanto há um crescimento do Crist~ de progresso dogmático. De fato, segundo o P. Charlier,
em sua Igreja, na medida em que esta com ele se identifi- esse progresso dogmático já não se poderia conceber como
ca. . . A este desenvolvimento do dado-revelado-realidade um conhecimento cada vez ·mais profundo e mais explícito
na Igreja, segue-se conseqüentemente o · desenvolvimento do depósito da fé, histórica e objetivamente constituído ( fi-
do dado-revelado-conhecimento" 103 • O magistério define cando bem claro que a Igreja, graças à assistência positiva
"em termos precisos e rigorosos, mas sempre analógicos, do Espírito, para isso dispõe de um poder de penetração
e sob a garantia da infalibilidade, o alcance exato desse que transcende o da simples razão ) . O progresso dogmá-
crescimento interior do revelado" 104, tico deveria ser entendido como uma assimilação da pró-
Também o P. Charlier insiste no caráter histórico da pria realidade divina, possuída misticamente, num contato
revelação. Ela "não é um sistema de idéias abstratas" mas supraconceptual, na experiência de fé. As fórmulas do Ma-
o "relato das realizações divinas a partir de um gran'dioso gistério interviriam como tradução analógica e provisória
dos estágios desse crescimento e dessa captação experimental
100 Ibid., 68-69. do revelado-realidade. Por outro lado, se o próprio dado
101 Ibid., 69. está sempre em crescimento, não vemos como, a não ser em
wz Ibid., 65.
1~3 "En concret, il y a granclissement de l'.Église et, dans l'Église,
grand1ssement de !□ut le myster~ d~ ~~eu: toute la réalité divine grandit, 105 L. CHARLIER, Essai sur le probleme théologique, 74.
en !ant que donnee,_ en tant qu ass1m!lee, en tant qu'il y a croissance du 106 " ... le progres du donné révélé n'est pas, tant s'en faut, que le fruit
Chns,t dans son Éghse, dans la mesure ou celle-ci s'identifie à lui. . . A de l'étude abstraite d'une doctrine, c'est d'abord et surtout le progres de
ce deve!oppement d1;1 do!).né-révélé-réalité dans l'Église, fait suite, par vaie toute la réalité divine incluse dans le mystere de l'Église., suscitant, par vaie
de consequence, le developpement du donné-révélé-connaissance" ( Ibid 70) de conséquence, le progres de la connaissance profonde de la foi et des
104 Ibid., 71. ' . . interventions décisives du Magistere" ( Ibid., 74).
256 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 257

palavras, se poderia continuar afirmando qu€ a revelação se dos tratados de teologia 108 • A própria teologia, preocupada
concluiu com a era apostólica. demais com demonstrações e refutações, chega a esquecer
Os ensaios do P. Chenu e do P. Charlier sobre o es- que ela é a ciência da salvação, e que cada um dos dogmas
tatuto da teologia, apesar dos excessos comprovados do P. Cristãos tem ressonâncias na vida religiosa pessoal. Há
Charlier, contêm elementos preciosos e perfeitamente as- uma barreira entre a teologia dos cursos e a atividade pas-
similáveis para uma teologia da revelação. Tais elementos toral 109 • Diante desse problema, Jungmann postulava uma
concernem: a) ao caráter realista, e não apenas conceptual distinção clara entre a proclamação da mensagem cristã e a
e proposicional da revelação; b) ao caráter histórico· da re- teologia científica. Desejava que a pregação se inspirasse
velação, em oposição a uma revelação de tipo abstrato, pu- mais na apresentação feita pela Escritura e pelos Padres;
ramente filosófica; c) ao caráter sobrenatural da revelação, que, conseqüentemente, fosse centrada sobre o Cristo e sobre a
que não é apenas uma mensagem divina exterior, mas tam- história da salvação 110 •
bém testemunho interior da Palavra incriada; d) ao cará- F. Lackner e J. B. Lotz 111 achavam que as necessida-
ter interpessoal e vital da revelação: confidência de amor des do apostolado exigiam mais ainda: paralelamente ·à teo-
do Deus vivo, que convida o homem a uma resposta de logia tradicional, a constituição de uma teologia assim cha-
confiança e de amor, tendo· em vista uma comunhão de mada querigmática. A primeira ( teologia das universidades )
vida e· de felicidade; e) ao caráter livre e gratuito da reve- se~!ª científica, sistemática, teocêntrica, preocupada principal-
lação: iniciativa do Amor infinito. mente com a pesquisa. A segunda ( teologia dos seminá-
rios), destinar-se-ia à pregação; seria pois histórica, cristo-
5. Teologia querigmática cêntrica, atenta ao progresso e à economia da revelação,
preocupada com a psicologia e com a pedagogia na apresen-
Pela mesma época, isto é, entre 1936 e 1940, surgiu, tação da mensagem cristã, a exemplo do próprio Cristo e
na Austria e na Alemanha, uma nova corrente de reflexão dos Padres da Igreja em suas homilias. Enquanto a teo-
teológica. A teologia querigmática que contribuiu podero- logia culta considera o dado revelado sob o aspecto da
samente para revitalizar certa teologia anêmica da reve- verdade, a teologia querigmática o considera enquanto bem
lação 107 • e valor. A primeira, usando uma linguagem técnica, confor-
É conhecido o contexto em que surgiu a teologia que- me as exigências da ciência; a segunda, devendo usar da
rigmática. Comovidos com as queixas de pastores de almas linguagem simples, plástica, sugestiva, procuraria ser uma
que deploravam a ignorância e a mediocridade de vida de teologia do coração, uma apresentação comovida e como-
suas ovelhas, alguns teólogos (J. A. Jungmann, F. Lackner, vente dos temas fundamentais da revelação. H. Rahner e
H. Rahner, J. B. Lotz, F. Dander) julgaram que a razão
de tal estado de coisas estava numa apresentação deficiente 108 F. LACKNER, "Das Zentralobjekt der Theologie", Zeitschrift für

do cristianismo e, mais profundamente, num ensino teoló- katholische Theologie, 62 ( 1938): 1-36.
109 G. B. GuzzETTI, "La controversia sulla teologia della predicazione";
gico inadequado. Como observam, a pregação muitas vezes La Scuola Cattolica, 78 (1950): 260-266: H. RAHNER, Eine Theologie
não passa de uma forma diluída do ensino teológico, com der Verkündigung (Freiburg i. Br., 1939), p. 7.
11 º J. A. }UNGMANN, Die Frohbotschaft und unsere Glaubensver-
sua terminologia, seus argumentos e suas objeções. Nas kündigung (Regensburg, 1936). Essa obra fundamental foi o início de
escolas, o catecismo é por demais semelhante a um resumo toda a controvérsia. Cfr. também de }UNGMANN, Catéchese (Bruxelles,
1955); o III apêndice, "La· théologie kérygmatique", é um valioso julga-
107 A literat~ra referente a esse movimento foi reunida por G. B. mento retrospectivo do conjunto do debate; ver principalmente pp. 2:75-280.
111 F. LAcKNER, "Das Zentralobjekt der Theologie", Zeitschrift für
GuzzETTI, "Saggio bibliografico sulla teologia della predicazione", La
Scuola Cattolica, 78 (1950): 350-356; e por E. KAPPLER, Die Verkün- katholische Theologie, 62 (1938): 1-36; J. B. LoTz, "Wissenschaft und
digungstheologie, (Fribourg, 1949), pp. 7-110. Vekündigung", Zeitschrift für katholische Theologie, 62 (1938): 465-501.

9 - Teologia da revelação
258 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 259
F. Dander chegaram a propor ensaios-tipos dessa teologia 112 • das trabalham com o dado revelado. Em níveis diversos,
Logo combatida ( principalmente por M. Schmaus, A. porém, com metas diferentes, e conseqüentemente, segundo
Stolz, C. Fabro, H. Weisweiler), a idéia de uma dupla leis diferentes. Ao lado da teologia há pois lugar para uma
teologia foi finalmente rejeitada com toda razão. Como ciência da pregação sob diversas formas: evangelização, ca-
bem o fazia notar Schmaus, qualquer teologia para ser fiel tequese, homilia 117 • O resultado mais concreto dessa con-
a seu objeto, à palavra de salvação do Deus Salvadori deve trovérsia foi a criação de um ano pastoral para a preparação
salientar em cada mistério esse valor de salvação e demons- do clero e uma mais precisa determinação do estatuto da
trar aptidão para vivificar a existência cristã. Sem isso, não homilética e da catequética 118 •
passaria de estéril metafísica. Por outro lado, uma teologia A teologia querigmática, mesmo sem apresentar uma no-
que renunciasse ao rigor da demonstração e da sistematiza- va concepção da revelação, pôs em maior evidência certos as-
ção, já não seria uma ciência 113 • A totalidade dos teólogos pectos que contribuíram para uma renovação da teologia
reconhecem de boa mente que a teologia deve ser mais da revelação:
atenta à economia da revelação, mais cristocêntrica, mais 1 ) O caráter histórico da revelação. Salientam os
pastoral, mais consciente de sua função social na Igreja. querigmáticos que o conteúdo essencial da revelação é o
Contudo, mesmo admitindo que o estado de coisas descrito
Evangelho, isto é, a Boa-nova da salvação. Objeto dessa
pelos querigmatistas exigia uma intervenção urgente, a maio-
Boa-nova não é, em primeiro lugar, um sistema de. pro-
ria dos teólogos julgava supérflua uma teologia especial
posições especulativas e práticas, mas é o Cristo em sua vida
ao lado da teologia clássica: a tarefa deveria ser assumida
e em sua obra de salvação. Os apóstolos dão testemunho de
pela própria teologia científica 114 • toda a obra de salvação anunciada e iniciada no Antigo Testa-
Na verdade, o debate se desviara do rumo inicial. Como
mento, realizada e completada pela morte e pela ressurrei-
Jungmann lembrava muito a próposito, "a questão capital
ção do Cristo. A teologia querigmática não nega o caráter
não é a de uma teologia da pregação independente em face
doutrinal da revelação, mas condena uma apresentação de-
da teologia científica. Estão em questão as regras próprias
masiadamente abstrata e conceptual do dado revelado, que
da pregação ante a teologia" 115 • F. X. Arnold observava por
levaria a esquecer que a revelação nos é dada sob a forma
sua vez: "É o quérigma, não a teologia querigmática, que
de história: história da salvação. Ela deixa bem claro o
deve ter caráter próprio. Compete, pois, ao quérigma, à
caráter realístico-histórico da revelação 119 •
pregação, tomar consciência de que deve antes de mais nada
conceber, ordenar, concentrar a mensagem cristã de uma chrétien d'une façon proprement kérigmatique, mais aussi employer une
forma propriamente querigmática, empregando métodos e méthode et une langage particullers", F. X. ARNOLD, "Renouveau de la
linguagem peculiares 116 • Pregação, catequese, teologia, to- prédication dogma tique et de la catéchese", Lumen Vitae, 3 ( 1948): 504.
117 D. Grasso, "Evangelizzazione, Catechesi, Omilia", Gregorianum, 42
(1961): 242-268. Já desde o início da controvérsia essa distinção fora
112 H. RAHNER, Eine Theologie der Verkündigung, (Freiburg i. Br.,
proposta por T. Soiron, "Das Wort Gottes", Wissenschaft und Weisheit, 9
1939); F. DANDER, Christus Alles und in Allen (Innsbruck-Leipzig, 1939). (1942): 24.
113 M. ScHMAUS, "Brauchen wir eine Theologie der Verkündigung?", 11s J. A. JuNGMANN, Catéchese (Bruxelles, 1955), p. 278; F. X.
Die Seelsorge, 16 (1938-1939): 1-12. Cfr. também o prefácio do segundo ARNOLD, "La catéchese en partant du mystere central de l'histoire du salut",
volume da sua Katholische Dogmatik (München, 1949), II: VII-XI. Évangéliser, 15 (1960): 212.
114 A. STOLZ, "De theologia kerigmatica", Angelicum, 17 ( 1940):
119 G. CoRTI, "Alla radice della controversia kerigmatica", La Scuola
337-351. Cattolica, 78 ( 1950): 284-291. Os numerosos trabalhos do após-guerra
115 J. A. JuNGMANN, "Le probleme du message à transmettre ou le
sobre a teologia da história contribuíram também para evidenciar essa c:a-
probleme kérygmatique", Lumen Vitae, 5 (1950): 276. racterística de historici:i:ação da revelação. Cfr. principalmente os trabalhos
11 6 "Ce n'est pas à une théologie kérigmatique, mais au kérigma que de Daniélou, Culmann, Féret, Thils, Von Balthasar, Melevez, H. Rahner,
revient un caractere propre. Au kérigma clone, à la prédication de prend.re Mouroux, e outros. Os teólogos da história insistem na incorporação da
conscience qu'elle doit avant tout concevoir, ordenner, concentrer le message palavra nos acon_tecimC:ll)tos da história. A revelação está ligada à história
260 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 261
2 ) Revelação enquanto economia. O cristianismo ba- 5) Revelação interpessoal. A revelação é palavra do
seia-se em acontecimentos, não isolados, mas organicamente Deus vivo e pessoal que se .dirige ao homem para convi-
ligados entre si, segundo a unidade harmoniosa do plano dá-lo à fé e à obediência. É também iniciação nos misté-
divino. A revelação apresenta-se como uma economia: foi rios pessoais de Deus. Procede de seu amor absolutamente
dada à humanidade segundo uma ordem, a da Sabedoria livre e infinito 123 •
de Deus. Importa pois colocar no primeiro plano da re- A teologia querigmática mostra-se, pois, sensível ao
velação as verdades que o próprio Deus, ao revelar, colocou progresso, à pedagogia e à economia da revelação. Presta
em primeiro plano: o fato inaudito da palavra, a história atenção ao fato de ela ser história e acontecimento. Preo-
como pedagogia que prepara o Cristo, a encarnação, a morte cupa-se com evidenciar o lugar de Cristo como autor, cen-
e a ressurreição do Cristo, o dom do Espírito, o encaminha- tro e objeto da revelação. Sublinha o caráter interpessoal e
mento da humanidade em direção a Deus pela Igreja e na salvífico da palavra de. Deus.
Igreja 12º.
3) A revelação crística. Toda a revelação está centrada 6. O problema teológico da pregação
sobre o Cristo. O Antigo Testamento é um anúncio e uma
preparação do Cristo: uma profecia e uma pedagogia do Cris- O problema teológico da pregação e o da teologia que-
to. O centro e objeto do Evangelho, em o Novo Testamento, rigmática, ainda que surgidos numa mesma situação histó-
é o Cristo. Na ordem da revelação e da realização da salvação, rica, são, contudo, muito diversos entre si. Aqui não se
Cristo sempre tem o primado. A teologia querigmática rela- trata da oposição entre duas teologias ( querigmática e cien-
ciona pois estreitamente a revelação à pessoa do Cristo 121 • tífica), mas de determinar, à luz da revelação, o sentido
4) O aspecto salvífico da revelação. A idéia que do ministério da pregação na Igreja: natureza, necessidade,
domina e dirige todo o progredir da revelação, do começo ao eficácia. Essa reflexão dogmática sobre a pregação é um fe-
fim, e que lhe dá a unidade, é a salvação anunciada e fi- nômeno recente. Começou lá por 1936 e está em pleno de-
nalmente dada no Cristo e pelo Cristo. A revelação é re- senvolvimento. A longa controvérsia, suscitada por Jung-
velação de Deus-que-salva-pelo-Cristo. O Evangelho é uma mann, não pôde fazer esquecer o essencial de suas reivin-
mensagem de salvação: notifica a salvação posta a nosso dicações, isto é, a existência de uma crise da pregação, que
alcance pelo Cristo e pela Igreja. A revelação põe em pauta não poderá ser superada sem uma reflexão teológica sobre o
o todo da existência 122 conteúdo e sobre a função da pregação 124 •
Essa urgência foi percebida muito vivamente na Ale-
de uma comunidade humana escolhida por Deus, por ele dirigida, e é atra- manha e na França, onde a tomada de consciência foi apres-
vés da história dessa comunidade que Deus se dá a conhecer. "Deus age sada pelas constatações dolorosas do ministério paroquial:
na história, Deus revela-se pela história", nota o P. DE LUBAC ( Catholicis-
me, Paris, 1947, p. 133). Conseqüentemente, a fé cristã não é simplesmente medíocre rendimento da pregação na Alemanha, descris-
a adesão a um conjunto doutrinal sobre o relacionamento entre o homem tianização na França. A reflexão teológica, já favorecida
e Deus, mas o reconhecimento de uma série de intervenções sobrenaturais pelas correntes recentes filosóficas ( Filosofia de valores, a
e irreversíveis de Deus no curso da história humana, tendo em vista levar
a humanidade a seu estado definitivo, que é o da Jerusalém celeste (M.
FLICK e Z. ALSZEGHY, "Conspectus, Teologia della storia", Gregorianum, 123H. RAHNER, Eine Theologie der Verkündigung, p. 15.
35 (1954): 292). 124J. A. JuNGMANN, Die Frohbotschaft und unsere Glaubensverkün-
120 H. RAHNER, Eine Theologie der Verkündigung, p. lL digung ( Regensburg, 1936). Mais de vinte anos depois, o P. J. HAMER
121 J. A. JUNGMANN, Die Frohbotschaft und unsere Glaubensverkün- declarava ainda a um grupo de sacerdotes que a crise da pregação é uma
digung, pp. 61ss. Esse caráter cristológico da revelação é sublinhado por "crise teológica" que não será superada enquanto não tivermos uma visão
todos os querigmáticos. clara do lugar que a palavra de Deus ocupa no plano divino (La Revue
122 E. KAPPLER, Die Verkündigungstheologie (Fribourg, 1949), pp. Nouvelle, 29 [1959]: 137-147). No mesmo sentido, cfr. C. MoELLER,
22-28. "Theólogie de la parole et oecuménisme", Irénikon, 24 (1951): 330-331.
262 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 263
Fenomenologia do encontro) e, estimulada pela teologia pro- puro, a essência da pregação, na sua meta fundamental de
testante particularmente ativa nesse tempo, beneficiou-se anunciar o desígnio salvífico de Deus, realizado no Cristo
também com a contribuição da renovação litúrgica, que e pelo Cristo 129 • "A pregação, observa o P. Liégé, deve re-
chamou a atenção sobre o valor cultuai da pregação 125 , e produzir na medida do possível as próprias formas nas
com o rápido progresso das ciências bíblicas e litúrgicas. De quais Deus se revelou" 180 •
repente, viu-se a teologia na posse de abundantes indicações Tendo por base essa aproximação entre a pregação
que poderiam servir à construção de um De Praedicatione atual e a pregação apostólica, podemos reconhecer que a
paralelo ao De Sacramentis. O estudo das fontes levou a pregação deve ter as seguintes características: a) Deve ser
compreender principalmente toda a importância da pregação histórico-bíblica, isto é, centrada na história da salvação e
na vida cristã, importância comparável à da oração e à na Escritura que contém essa história. O quérigma pri-
dos sacramentos 126 • O tempo da Igreja é o tempo da Pa- mitivo não se apresenta como uma metafísica superior que
lavra 127 • Deve-se pois dar à missão profética da Igreja a viesse responder às questões da inteligência humana. Apre-
mesma atenção dada à sua missão sacerdotal e ao seu poder senta-se como uma história sagrada. Sendo a pregação o
de jurisdição. anúncio da salvação histórica operada pelo Cristo, deve res-
A pregação atual da Igreja sendo a continuação da peitar a estrutura orgânica dessa história.
pregação apostólica, é nessa primeira pregação que se pro- b) Deve ser cristocêntríca, como o próprio plano da
cura o sentido da pregação. O estudo dos Atos será pois o salvação. A pregação deve seguir mais uma ordem con-
objeto privilegiado da reflexão teológica sobre a prega- cêntrica do que uma ordem linear; cada mistérió deve levar
ção 128 • Como observa o P. Grasso, o quérigma primitivo, ao Cristo ou dele proceder.
qual se percebe nos Atos, deve ser a norma para definir a c) Deve ser pascal, pois que, no conjunto dos misté-
pregação atual. Afinal, os próprios Evangelhos nada mais rios do Cristo, o mais importante é o mistério da ressur-
são que o desenvolvimento do quérigma primitivo e toda a reição. É propriamente a ressurreição que faz o Evangelho
pregação da Igreja consiste apenas em explicar e aplicar às ser uma Boa-nova.
sucessivas gerações os dados essenciais do quérigma. No d) Deve ser eclesial, não simplesmente porque o mi-
quérigma primitivo encontramos, como que em seu estado nistério da pregação foi confiado à Igreja, mas também por-
que a história da salvação continua na Igreja, que trabalha
125 Cfr., por exemplo, Parole de Dieu et liturgie ( "Lex Orandi", Paris, na edificação do Corpo do Cristo.
1958); La Parole de Dieu en Jésus-Christ ("Cahiers de l'actualité réligieuse", e) Deve ser lztúrgica, uma vez que a salvação, anun-
Paris, 1961).
126 Z. ALSZEGHY e M. FucK, "11 problema teologico della predica-
ciada pelo quérigma e explicada pela catequese, se realiza na
zione", Gregorianum, 40 ( 1959): 672-676. liturgia, nos sacramentos, principalmente no batismo e na
127 J. MouRoux, Le Mystere du temps (Paris, 1962), pp. 196-204. eucaristia. É principalmente na missa que a pregação realiza
128 Por exemplo: A. RÉTIF, Foi au Christ et mission (Paris, 1953);
J. R. GEISELMANN, Jesus der Christus, Die Urform des apostolischen plenamente sua definição de palavra sagrada, viva e atual:
Kerygmas ais Norm unserer Verkündigung und Theologie von Jesus toda a primeira parte da missa é uma liturgia da palavra,
Christus ( Stuttgart, 1951); R. AsTING, Die Verkündigung des Wortes a proclamação na Igreja da mensagem de salvação 131 •
Gottes im Urchristentum dargestellt an den Bergriffen "W ort Gottes",
"Evangelium", und "Zeugnis" (Stuttgart, 1939); R. KocH, "Die Ver- f) Deve ser escatológica, deve apresentar a palavra
kündigung des Wortes Gottes in der Urkirche", Anima, 10, ( 1955), pp.
256-265; Id., "Témoignage d'apres les Actes", Masses ouvieres (abril, 129 D. GRASSO, "11 kerigma e la predicazione", Gregorianum, 41
1957), pp. 16-35; (junho 1957), pp. 4-23; J. GEWIESS, Die Urapostolische (1960): 439-444.
Heilsverkündigung nach der Apostelgeschichte (Breslau, 1939); H. TRAUB, 13 º A. LIÉGÉ, "Le ministere de la parole: du kérygme à la catéchese",
Botschaft und Geschichte (Zürich, 1954); N. BROX, Zeuge und Miirtyrer, em La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Casterman, 1961), p. 170.
Untersuchungen zur früchristlichen Zeugnis-Terminologie ( München, 1961). 131 Parole de Dieu et liturgie, p. 181; J. GELINEAU, "L'annonce de la
264 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 265

como a palavra do Deus vivo que convida a uma opção de- temente sem negar a diferença entre sacramentos e prega-
cisiva, que compromete a sorte final do homem. ção 140 • E. Schillebeeckx observa que sendo a palavra da
g) Deve ser um testemunho, deve mostrar na vida Igreja a palavra do Cristo na sua expressão eclesial, - do
do pregador qu~ o Evangelho é capaz de transformar a exis- mesmo modo .que os sacramentos são a forma eclesial dos
tência humana 132 • atos salvíficos do Cristo - , essa palavra é também intrin-
Principalmente três problemas prendem a atenção dos secamente eficaz. "A graça não é dada por ocasião desse
ministério, mas por esse· próprio ministério" 141 • Na pala-
teólogos da pregação. O primeiro é o da causalidade que
compete a Deus e ao pregador. A maioria afirma que a vra da Igreja o Cristo está presente e atuante como a pa-
causa principal da pregação é Deus. O pregador seria lavra que convida para a fé. Ou seja, de "um modo
a causa instrumental, posto que a pregação estabelece que é. . . totalmente diverso da eficácia do sacramento ri-
um diálogo entre Deus e o homem pela instrumentalidade tual que supõe a fé, ainda que em ambos os casos. . . esteja
da Igreja 133 • O segundo problema diz respeito às formas presente a estrutura sacramental" 142 •
da pregação. Alguns, como o P. Liégé, preferem uma di- O convite para a fé, não perde sua eficácia pelo fato
de estar encarnada na palavra da Igreja. A palavra da pre-
visão bipartida: quérigma e catequese 134 • Outros, como o
P. Grasso, apresentam uma divisão tripartida: quérigma ou gação é, pois, um dos casos da estrutura sacramental da
Igreja. Vê-se, pois, que para definir a pregação foi preciso
pregaçã~ missionária, catequese ou iniciação cristã, homilia
aprofundar o tema da palavra de Deus. Se de fato a pre-
ou pregação litúrgica na assembléia cristã 135 • O terceiro
problema, ainda muito debatido, refere-se à eficácia da pre- g~ção é a _transmissão da palavra de Deus, não seria pos-
s1vel refletir sobre a pregação sem uma referência à reve-
gação da Igreja, que prolonga a pregação apostólica 136 • Se-
lação que foi a primeira notificação do desígnio salvífico.
gundo alguns, a pregação seria uma ocasião para a infusão da
A elaboração de uma teologia da pregação teve como conse-
graça, à maneira como a infusão da alma está unida infali-
qüência normal uma renovação da teologia da revelação.
velmente à geração do corpo humano 137 • Segundo outros, a
Quanto ao essencial, as preocupações dessa teologia coinci-
pregação, à maneira dos sacramentos, produz a graça ex
dem com as da teologia querigmática. Ela também insiste
opere operantis 138 • Outros afirmam que age, n'a ordem das
no caráter histórico, cristocêntrico, salvífico, dinâmico da
graças atuais, ex opere operato 139 • Outros, finalmente, fa-
revelação. Sua atenção prendeu-se principalmente à eficá-
lam claramente de uma sacramentalidade da pregação, eviden-
cia da palavra de Deus.
parole de Dieu dans le mystere du culte", em: La Parole de Dieu en
Jésus-Christ, pp. 202-209. 7. Desenvolvimento do dogma
132 D. GRASSO, "II kerigma e la predicazione", Gregorianum, 41
(1960): ~45. Cfr. Id., L'annunzio delta Salvezza (Napoli, 1965).
133 Fundamentam sua afirmação na Escritura. Também o problema do desenvolvimento do dogma
134 A. LIÉGÉ, "Le 1ninistere de la parole: du kérygme à la catéchese" levou os teólogos a se questionarem quanto à noção de re-
em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 170-184. '
135 D. GRASSO, "Evangelizzazione, Catechesi, Omilia", Gregorianum
42 ( 1961): 242-268. ' ~;~hfà~;~_bestimmung", Verkündigung und Glaube (Freiburg, i. Br., 1958),
136 Sobre o problema em geral, cfr.: Z. ALSZEGHY e M. FLICK "Il
140 O. SEMMELROTH, "Christliche Existenz und Gottes Wort" Geist
problema t~ologico della predicazione", Gregorianum, 40 (1959): 671~744;
C. DAVIS, The Theology of Preaching" The Clergy Review 45 ( 1960) · und Leben, 31, (195~): 245-2.56; Id., Wirkendes Wort (Frankfurt, '1962);
524-545. ' ' , E. ?CH_ILLEBEECKX, Parole et sacrement dans l'Église", Lumiere et Vie,
137 V. ScHURR, Wie heute predigen (Stuttgart, 1949). 9, Janeiro-março 1960): 32-39.
138 L. AGUSTONI, "Das Wort Gottes als kultisches Wort" Anima 141 E. ScHILLEBEECKX, "Parole et sacrement dans l'Église", Lumiere

10 ( 1955): 272-284. ' ' et Vie, 9 (janeiro-março 1960): 33.


142 lbid., 36.
139 J. BETZ, "Wort und Sakrament. Versuch einer dogmatischer
266 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 267

velação. A compreensão e a elaboração de uma teoria desse um simples formulário, como uma série de proposições desli-
enriquecimento do objeto da fé,. que a Igreja descreve como gadas desse mistério único e, portanto, desconexas entre
uma passagem do implícito- ao explícito, do obscµro ao si, como se fossem simplesmente premissas para nossos ra-
daro, tornam-se mais ou menos fáceis conforme a idéia ciocínios posteriores" 147 • "O caso da Verdade revelada é
que se tem da revelação. Esse aspecto do problema não único" 148 •
passou despercebido aos teólogos católicos. O P. Hugueny Depois dessas justas observações, o P. de Lubac expõe
já observava que, para compreender as leis e as caracterís- ~ua maneira de entender a revelação. Segundo ele, o mais
ticas do desenvolvimento dogmático, era essencial "ter idéia importante na economia cristã "é a ação redentora; é o
exata do fato da revelação que deu ao. mundo a verdade ~om que Deus de si mesmo nos faz em seu Filho; é a rea-
sobrenatural, cujo tesouro a tradição conserva e faz fruti- lização desse grande desígnio oculto em Deus desde o prin-
ficar" 143 • O P. De Lubac também insiste na necessidade de cípio e agora revelado" 149 , ou seja, a vocação de todos os
se aprofundar a noção de revelação 144 . Realmente, a maio- homens à vida eterna pelo Cristo e no Cristo. Ao mesmo
ria dos autores que tratam do dogma e de seu desenvolvi- ~empo que a ação, é fundamental, a "revelação de tudo isso,
mento ( C. Dillenschneider, C. Journet, H. Delesty, E. Dhanis, isto é: a manifestação dessa ação em sua realidade e no seu
C. Pozo, G. Thils, C. Boyer, H. de Lubac, D. Charlier, F. sentido de dom-de-salvação-que-realiza-um-desígnio-salvífico.
Marin-Sola, -H. Simonin, R. Draguet, F. Taymans, J. Lebre- Em Jesus Cristo coincidem: realidade revelada e ação reve-
ton, L. De Grandmaison, A. Gardeil e outros) falam tam- ladora, dom e revelação do dom. O Cristo é ao mesmo
bém sobre a revelação, às vezes, porém, em termos di- tempo o mistério e a revelação do mistério, o Todo da re-
ferentes. velação e o Todo do dogma 150 • Nesse Todo podemos operar
divisões e distinguir "verdades particulares enunciadas em
Assim, por exemplo, o P. de Lubac 145 • Observl:!, ele que,
proposições separadas, que se referem respectivamente à Trin-
nesta questão do desenvolvimento do dogma, o nó do pro-
dade, ao Verbo encarnado, ao batismo, à graça etc... Abs-
blema está numa idéia exata da revelação, que é o ponto
t~ação leg~tima e necessária ... , contanto que seja cons-
de partida desse desenvolvimento. Ora, "o conteúdo da
revelação, em sua forma primeira e em sua integridade sub- ciente, e n_ao n_os leve a desconhecer o Todo concreto, cujo
conteudo Jamais poderá ser plenamente abarcado pelas pro-
sistente, não pode ser, nem exata nem suficientemente de-
posições" 151 • Usando um texto de Lebretori o P. de Lubac
signada como uma série de enunciáveis" 146 . "Seria il~gíti-
di~ ainda mais claramente que, no princípio, a adesão ao
mo . . . acreditar. . . que a revelação foi feita sem um nexo
Cristo se apresentou como uma "percepção totalmente con-
intrínseco com a realidade una e total do Cristo, dada como
creta e viva", e que inicialmente muitos dogmas permane-
ciam "latentes na riqueza dessa percepção inicial" 152 • "Em
143 E. HuGUNY, Critique et Catholique, vol. II, Apologie des dogmes
(Paris, 1924), p. 37. Jesus Cristo, tudo nos foi dado e revelado de uma só vez ... ;
144 H. DE LUBAC, "Bulletin de théologie fondamentale. Le probleme
du développement du dogme", Recherches de science religieuse 35 . 147 "Se!al't .illé~1t1,me.
.. . . de cro~re.
· . . que 1a révélation nous a été
(1948): 153. , fa1te san~ _l1e!1 1!1tr1nseque avec _la realité une et totale du Christ, qu'elle
145 A ocasião próxima para essa exposição sobre a revelação do P. ~o!ls a ete hvree comme un simples formulaire, en une série de propo-
DE LUBAC foi um artigo do P. Boyer, publicado no Gregorianum, 21 s1t1ons détachés de ce mystere unique et par lá séparées les unes des
( 1940): 255-266, com o título: Qu'est-ce que la théologie? Réflexions au°:es, telles des majeures toutes prêtes pour nos raisonnements futurs",
sur une controverse récente". (Ib1d., 155).
146 "Le contenu de la révélation, à le prendre sous sa forme premiere 148 Ibid., 156.
et dans son intégrité subsistante, n'est ni exactement ni suffisament dé- 149> Ibid., 156.
signé comme une série d'énonciables ", H. DE LuBAC, « Bulletin de théolo- 150 Ibid., 156-157.
gie fond~n;entale. Le probleme du développement du dogme", Recherches 151 Ibid., 157.
de se. rel., 35 ( 1948): 154. 152 Ibid., 155.
268 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 269

conseqüentemente, todas as explicações posteriores, seja qual mistério, porém, enquanto revelado, isto é, manifestado
for o seu teor e o seu modo, nada mais serão que o trocar aos homens, são Paulo denomina-o Evangelho, ou seja, Boa-
em miúdos um tesouro já possuído como um todo. Tudo -nova, mensagem de salvação ( Rom 16,25; Col 1,25-26;
já estava contido real e atualmente num estado superior Ef 1,9-13;3,5-6), ou então palavra (Col 1,25-26; 1Tes 1,
de conhecimento e não apenas contido em princípios e pre- 6 ) . Os homens chegam ao mistério acolhendo a palavra
missas" 153 • O P. de :J:.,ubac apresenta essas idéias como (Rom 10,16; 1Cor 15,11; Ef 1,13) e obedecendo ao Evan-
sugestões capazes de clarear o difícil problema do desen- gelho (Rom 1,5;16,26) sob a ação da graça que ilumina
volvimento dogmático e não como teoria definitivamente ( 2Cor 4,5-6). O Cristo, ou o mistério, é o objeto da fé,
delineada. enquanto apresentado à consciência dos fiéis pelo teste-
Se bem o compreendemos, o P. de Lubac coloca em munho apostólico e pela pregação da Igreja. O mistério
primeiro plano na revelação a própria realidade do misté- (realidade) é sem dúvida o primeiro na ordem ontológica;
rio do Cristo. Esse Todo concreto da fé é objeto de uma na ordem, porém, do conhecimento, na ordem da revelação, o
apreensão global, intuitiva, viva: estado superior de conhe- primeiro é o testemunho apostólico. É o Evangelho ( que
cimento que "real e atuante" pré-contém o dogma com se refere ao Cristo e ao seu mistério) que é pregado e que é
toda a riqueza de seu desenvolvimento posterior. aceito pela fé ( Rom 10 ,4-17). Pela fé aderimos ao teste-
munho e pelo testemunho, à realidade por ele designada.
Relativamente a essa primeira percepção, a necessária
expressão conceptual, com suas noções e proposições, seria Julgamos importante fazer uma distinção clara entre
como que a revelação num segundo tempo. Sendo assim, a situação dos apóstolos e a da Igreja. A dos apóstolos
o desenvolvimento dogmático deveria ser entendido não é única e privilegiada. Só eles viram e ouviram o Cristo,
como um "desdobramento infinito de conclusões a partir de antes e depois de sua ressurreição; só eles receberam a mis-
suas premissas" 154 • Seria antes como que uma mudança de são de atestar a realidade dos fatos e sua significação, cujo
registro: da intuição para a conceptualização. A percepção sentido e alcance foram longamente explicados pelo Cristo
inicial, ainda global, vai sendo detalhada em verdades e posteriormente compreendidos sob o Espírito. A revela-
particulares .e em fórmulas cada vez mais precisas; sempre, ção cristã comporta necessariamente duas coisas: primeira,
porém, referindo-se à verdade normativa do próprio misté- a realidade da pregação e da salvação realizada pelo Cristo;
rio 155 , percebido num tipo superior de conhecimento dog- segunda, o testemunho dado pelos apóstolos em favor de
mático 156 • Cristo. Não podemos chegar à realidade do Cristo se
É fato que o Todo da revelação, principalmente na não pelo testemunho apostólico ( 1J o 1,1-3 ) . Não conhece-
terminologia de são Paulo, é o mistério, isto é, todo o de- mos outro Cristo além daquele que foi pregado e atestado
sígnio salvífico concebido e querido por Deus. Concreta- pelos apóstolos. Somente pela fé nesse testemunho pode-
mente, na ordem da execução desse desígnio, é o Cristo. O mos· participar na sua experiência do Verbo de vida. Nosso
conhecimento do Cristo tem, pois, no depoimento das teste-
153 "En Jésus-Christ, tout nous a été d'un coup, à la fois donné et
munhas privilegiadas o seu meio de comunicação e a sua
ré~élé ... ; par conséquent, toutes les explications à venir, quelle que
s01t leur teneur et quel que soit leur mode, ne seront jamais que le norma. É evidente que nesse testemunho nem tudo tem
monnayage en fractions plus distinctes d'un trésor déjà possédé tout en- a mesma clareza, nem a mesma precisão nem o mesmo realce.
tier; . ·; tout était ~éjà contenu réellement, actuellement, dans un plux No depoimento apostólico, além de um ensinamento mais
haut etat de conna1ssance, et non pas seulement dans des príncipes et
des prémisses" ( Ibid., 157-158). explícito, existe todo .um conjunto de percepções intuitivas,
154 Ibid., 139. de idéias ainda não bem claras neles produzidas pelo en-
155 Ibid., 148.
156 Ibid., 157. contro com Cristo. Idéias que eles transmitiram à Igreja
270 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 271
ainda como indícios, gérmens, oralmente, por escrito, ou dini 158 , L. M. Dewailly 159 , W. Bulst 160 , K. Rahner 161 , D.
como costumes e práticas. Permanece, contudo, o fato de Barsotti 162 • A esses ensaios devemos acrescentar os trabalhos
atingirmos o Cristo em sua realidade somente pela mediação coletivos sobre o tema geral da Palavra de Deus 163 •
dos sinais e dos julgamentos que se prendem à palavra dos Essa teologia insiste primeiramente sobre o caráter es-
apóstolos e por eles deixados na memória da Igreja. É esse pecífico da revelação cristã. Não se trata de uma revelação
testemunho apóstolico, esse depoimento das testemunhas, qualquer, gnose grega ou conhecimento hermético das reli-
considerado concretamente, que forma o ponto de partida giões de mistérios. Trata-se de uma revelação de um tipo
do desenvolvimento dogmático. É esse testemunho que a absolutamente único, que foge a toda a previsão ou dedu-
Igreja assimila, compreende cada vez mais em todas as suas ção humana. Para sabermos o que é a revelação, é preciso
implicações e exprime em termos cada vez mais claros e ouvir a própria revelação. Uma teologia da revelação deve
precisos. Ela o faz graças a uma força de penetração que basear-se nos dados da Escritura 164. E já que a Escritura
não depende apenas da lógica e da dialética, mas também- não tem um termo técnico para traduzir a idéia de reve-
da ação do Espírito que a ilumina. Se não se fazem essas lação, e apela para diversos vocábulos, o único meio de
distinções há o perigo de ambigüidade desde o princípio. · chegarmos à realidade da revelação é o caminho da fenomeno-
O P. de Lubac percebeu muito bem que o dogma logia. É o caminho seguido por H. Niebecker, e W. Bulst
deve poder desenvolver,se para além dos limites . de uma descreve as teofanias concedidas aos patriarcas do Antigo Tes-
operação puramente lógica ou dialética. Apoiando-se numa tamento, as visões proféticas, cuja objetividade e modalidade
tradição já vigorosa, de Newman, Gardeil, Bainvel, de ele estuda longamente 165 • Passando ao Novo Testamento, pro-
Grandmaison, Lebreton, ele demonstrou claramente que deJ cura evidenciar os traços característicos do conceito ·de re-
vemos levar em conta um elemento supraconceptual, que velação nos Evangelhos Sinóticos, em são Paulo, em são
se situa para além da dedução. puramente lógica. Quando
trata, porém, da teoria desse desenvolvimento, sua exposição 158 R. GuARDINI, Die Offenbarung, ihr Wesen und ihre Formen
(Würzburg, 1940).
não dissipa inteiramente, a nosso modo de ver, a ambigüi- 159 L.-M. DEWAILLY, Jésus-Christ, Parole de Dieu (Paris, 1945).
dade da qual falamos. 160 W. BuLST, Offenbarung, Biblischer un Theologischer Begriff (Düs-
seldorf, 1960).
161 K. RAHNER, Horer des Wortes (München, 1941).
8. Teologia da revelação e da fé 162 D. BARSOTTI, Il Mistero cristiano e la Parola di Dio (Firenze,
1954).
163 Parole de Dieu et liturgie ("Lex Orandi", 25, Paris 1958); La
Se é verdade que entre os católicos a teologia da re- Parole de Dieu en Jésus-Christ ("Cahiers de l'actualité religieuse", 15,
velação está um tanto em atraso, não se deve contudo exa- Paris 1961). Esta obra contém artigos excelentes sobre o tema da Pa-
lavra de Deus enquanto revelação. Principalmente os de A. LÉONARD,
gerar a gravidade do fato. Existe essa teologia, .mas sua sobre a urgência de uma teologia da revelação (pp. 11-32); de C. LARHCER,
presença é menos percebida por estarem seus elementos dis- sobre a revelação no Anti110 Testamento (pp. 35-67); de J. DuPONT, sobre
persos nos diversos tratados: De Trinitate, De Verbo In- a palavra de Deus segundo são Paulo (pp. 68-84); de J. GIBLET, sobre a
teologia joanina do Logos (pp. 85-119); de L. CHARLIER, sobre o Cristo
carnato, De Deo Uno, De Ecclesia, De Fide, De Traditione, Palavra de Deus (pp. 123-139). A segunda parte da obra estuda mais
sem esquecermos o De Revelatione. Também há entre os diretamente o problema da pregação da palavra de Deus. Para uma
análise dos diversos artigos, cfr. D. GRASSO, "Nuovi apporti alia teologia
católicos certo número de monografias explícitas sobre a della predicazione", Gregorianum, 44 (1963): 92-95; E. FoRTIN, Sciences
revelação, principalmente as de H. Niebecker 157,. R. Guar- Ecclésiastiques, 15 ( 1963): 141-144.
164 W. BuLST, Offenbarung, pp. 15-16; R. GuARDINI, Die Offenba-
rung, pp. 118ss.
157 H. NIEBECKER, wesen und Wirklichkeit der übernatürlichen Offen- 165 H. NIEBECKER, WESEN und Wirklichkeit der übernatürlichen
barung (Freiburg, 1940). Offenbarung, pp, 59-9.
272 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 273
João, nos Atos dos Apóstolos 166 • W. Bulst e R. Guardini, nele tudo nos é dado e revelado. Essa a afirmação repetida
para manter fidelidade à Escritura, falam de uma tríplice for- e sublinhada por muitíssimos teólogos, principalmente por
ma de manifestação de Deus 167 : a) as manifestações do agir H. de Lubac, K. Rahner, L. M. Dewailly, J. Mouroux, R.
divino ( T atoffenbarung), que se traduzem na criação, nos Guardini, H. Niebecker, G. Sohngen, H. U. Von Baltha-
grandes acontecimentos salvíficos do Antigo Testamento e sar 171 • Todas insistem na necessidade de relacionar a reve-
nos milagres que são os atos de poder de Cristo; b) as lação com a Pessoa do Cristo. Se Deus, para realizar a re-
manifestações visíveis de Deus ( Schauoffenbarung), que velação, escolheu uma economia d~ encarnação, . todas as
são as teofanias, o anjo de Javé, a glória de Javé, as visões dimensões do homem foram assumidas para servir de ex-
proféticas, a encarnação do Filho; c) manifestações divi- pressão à pessoa do Filho: gestos, ações, comporta~ento,
nas através de palavras ( Wortoffenbarung), principal for- tanto quanto as palavras. Por isso exigem da teologia _da
ma de manifestação divina, a que dá às manifestações de revelação uma fidelidade maior ao realismo da encarnaçao,
poder e às visões todo o seu pleno sentido 168 • É também uma fidelidade levada às últimas conseqüências. Contudo,
através das palavras das testemunhas que a revelação-ação pouco procuram demonstrar ~orno o Cristo, cone.retamente,
e a revelação-visão superam os limites do espaço e do tempo para se revelar e revelar o Pai, usou todos os caminhos e to-
e continuam a agir. W. Bulst termina essa pesquisa feno- dos os recursos da encarnação 172 • Pouco também estudam os
menológica propondo a seguinte definição de revelação: "A graves problemas levantados pela escolha de uma tal econo-
revelação sobrenatural é Deus que, por sua graça e por uma mia, principalmente o problema do aprisioruimento _da ve~d~-
inic_iativa pessoal, tendo um desígnio de salvação, abre aos de divina numa proposição humana, sendo que aqui o mist~-
homens a intimidade de seu ser. Isso no contexto da his- rio da encarnação se complica com o problema da analogia
tória humana, numa ação de caráter sobrenatural e divino, natural e da analogia revelada 173 •
numa manifestação visível, mas principalmente interpretan- Os teólogos da revelação sublinham u?anim~mente ~ c~-
do e englobando essa ação e essa manifestação visível no tes- ráter histórico da revelação. Deus vem, mtervem na histo-
temunho de sua palavra. É um acontecimento que, esboçado ria humana por uma série de aconteci~entos qu~ cul1;1inam
em Israel e definitivamente realizado em Jesus Cristo, nos é no acontecimento central da encarnaçao. É no mtenor de
apresentado na palavra e na ação da Igreja. Acontecimento nossa história que Deus nos vem interpelar. Essas inter-
agora ainda velado sob muitos aspectos ( e justamente por venções por si mesmas já constituem uma história, a histó-
isso recebido na fé), mas ordenado à visão imediata de Deus ria da salvação, história que dá sentido a qualquer outra
na eternidade" 169 • Numa palavra, a revelação é o Cristo 170 • história 174. Enfim, a história não somente é o lugar da re-
O Cristo está entre nós como a revelação em pessoa;
171 H DE LuBAC "Le probleme du éveloppement du dogme",
166 Ibid., 112-172. Rech, de· se. rel., 35 (1948): 157-158; K. RAHNER, Écrits théologiques,
167 W. BuLST, Offenbarung, pp. 70-86. t. I (trad. J. Y. Calvez et M. Rondet, Bruges, 1959): p. ~64;, ~.-M.
168 Ibid., 90-91. DEWAILLY, Jésus-Christ, Parole de Dieu, p. 28; J. MouR0UX, L e~p_erz7nec
169 "Die übernatürliche Offenbarung ist die gnadenhafte, personale, chrétíenne (Paris, 1952), p. 193; R. GUARDINI, Essence du chrfstt~nzsm;-
heilschaffende Selbschliessung Gottes an den Menschen im Raun seiner (trad. Lorson, Paris, 1947), p. 74; H. NIEBECKER, Wesen und_ Wt~klic~ke!t
Geschichte; und zwar in übernatürlichem gottlichem Tun, in sichtbarer der übernatürlichen Offenbarung, p. 155; G. SoEHNGEN, Dze Etnhezt tn
Erscheinung und vor allem, jene interpretierend und umfassend, in seinem der Theologie (Müncher, 1952), pp. 316, 354ss, 359; H. URS VON BALTHA-
bezeugenden Wort; vorbereitend geschehen in Israel, endgülting in Chris- SAR, La théologie de l'histoire (Paris, 1955), P-, 193. . . ,
tus Jesus, uns gegenwartig im Wort und Wirken der Kirche; hienieden 173 O assunto é estudado por: C. DE MoRE-PONTGIBA_un, Du fim a
noch in vielfültiger Verhi.illung ( darum vom Meschen aufzunehmen im l'infini (Paris, 1957), H. Bouillard, Kal Barth (3 vol., Pam, 1957), t. 3:
Glauben), aber hingeordnet auf die unmittelbare Gottesschau der Ewgkeit" 190-217; Y. Congar, art. "Théologie", DTC 1.5 (1): col. 473-474. .
(W. BmsT, Offenbarung, p. 111). m W. BuLST, Offenbarung, p. 59-62; , M. ScHMAUS, .Dommattca
no Ibid., 113. Cattolica (Roma, 1959), pp. 18-24.
27 4 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇio TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 275
velação, não somente a revelação faz história e tem ( lJo l,lss). De sua parte, o homem ouve a palavra de
sua história, mas a própria história, divinamente in- Deus, entrega-se-lhe pela fé, ou resiste e obstina-se. Mos-
terpretada, é o médium da revelação. A revelação pro- tra-se assim a revelação como um longo e patético diálogo de
gride, aprofunda-se, mas sempre em relação com os acon- Deus com sua criatura. O inaudito nesse diálogo é que um
tecimentos da história; Também aqui, ao falar da economia dos. interlocutores é o Onipotente, o Absoluto, o três ve-
·da encarnação, muitas vezes a teologia se limita a afirma- zes Santo; o outro, é sua criatura, a obra de suas mãos.
ções de 9rdem geral 175 •. Seria preciso definir máis precisa- O trágico é que a criatura pode fechar-se à Palavra do amor
mente as múltiplas relações entre história e revelação; seria infinito que se lhe oferece 179 •
preciso examinar as implicações duma revelação a tal ponto Os trabalhos recentes e numerosos sobre: a filosofia e
incorporada à história, implicações que afetam a sua natu- a psicologia da palavra 180 e do testemunho 181 muito con-
reza e seu progresso; seria preciso considerar particularmente tribuíram para a compreensão da revelação apresentada pela
a situação difícil, dramática, duma revelação que se pretende Escritura nas categorias de palavra e de testemunho. Na
imutável e que, contudo, imerge na história e deve atingir análise da palavra deixa-se claro, além de seu aspecto in-
os homens de todos os tempos. terpessoal e de interpelação, também o aspecto de doação,
Outra característica posta em evidência pela teologia característico da palavra que se torna, em sua forma mais
da revelação, e esta mais bem estudada, é o caráter inter- nobre, manifestação do mistério da consciência. Contudo,
pessoal da revelação. Esta é uma iniciativa pessoal do Deus a analogia da palavra humana não deve fazer esquecer o
vivo e a manifestação de seu mistério pessoal. Deus estabe- que há de característico na palavra de Deus: o Dabar di-
lece com o homem relações de pessoa a pessoa: o Eu divino vino é animado pelo próprio poder de Deus. A palavra
interpela o eu do homem 176 • A .revelação é personalizada e divina realiza o que ela significa; anuncia e realiza a sal-
personalizante 177 • Antes de revelar qualquer coisa, Deus re- vação, a reconciliação 182 • Flexível e sutil, insinua-se até o
vela-se a si mesmo em: seu mistério: Deus tem um nome, espírito e o coração do homem: ao mesmo tempo que ele
fala, podemos invocá-lo e ele responde; manifesta suas von- nos solicita pelo testemunho dos profetas, do Cristo, dos
tades, suas exigências, mas também sua vida íntima; faz apóstolos e da Igreja, Deus age interiormente por sua graça
aliança com o homem, oferece-lhe sua amizade, seu amor, sua e torna assimilável para a alma a mensagem externamente
vida 178 • No Cristo, esse Deus vivo está entre nós: fala, prega, ouvida. A ação interior da graça e a proposição exterior da
ensina, testemunha. Ouviu Moisés a voz de Javé; João mensagem são as duas dimensões da mesma palavra divina:
atesta, do Verbo de vida, o que ele pôde ver, ouvir e tocar palavra dotada de uma eficácia única, justamente por ser
palavra de Deus 183 •
175 Ativa sobre este ponto a reflexão protestante; cfr., por exemplo:
Finalmente, importa notar a importante contribuição
o. CULLMANN, Chnst et le temps (Neuchâtel, 1957); w. PANNENBERG, R.
RENDTORF, T. RENDTORF, U. WILKENS, Offenbarung als Geschichte
(Gottingen, 1961); W. ErcHRODT, "Offenbarung und Geschichte im A. T.", 179 K. RAHNER, Écrits théologiques, t. I: 59-60.
Teol. Zeitschrift, 4 (1948): 321-331; G. VON RAn, "Grundprobleme einer 180 Por exemplo: K. BüHLER, H. NoAcK, H. HEIDEGGER, G. SIEWERTH,
biblischen Theologie des A. T.", Theol. Lit. Zeitung, 68 (1943): 225-234; M. MERLAu-PoNTY, M. NÉDONCELLE, L. LAVELLE, G. GusnoRF, E. VER-
Id., "Theologische Geschichte im A. T.", Theol. Zeischrift, 4 (1948): noNc, e outros.
161ss. 181 J. GurTTON, Le probleme de Jésus et les fondements du te-
176 J. ALFARo, "Persona y grada", Gregorianum, 41 ( 1960): 11; R. moignage chrétien (Paris, 1950), pp. 147-187.
AuBERT, "Questioni attuali intomo all'atto di Fede", Problemi e Orienta- 182 W. BuLST, Offenbarung, pp. 18-19; J. L. McKENZIE, "The Word of
menti di Teologia dommatica (2 vol., Milano, 1957), t. 2:672. God in the Old Testament", Theological Studies, 21 (1960): 183-206.
177 W. BuLST, Offenbarung, pp. 63-65; A. LANG, Die Sendung
183 Outros aspectos, se bem que assinalados, são tratados mais breve-
Christi (München, 1957), pp. 40-41. mente, por exemplo, o aspecto eclesial e o escatológico. Cfr. W. BuLST,
178 W. BuLST, Offenbarung, pp. 63-68. Offenbarung, pp. 97-101, 105-106.

1
276 . A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO. NO SÉCULO XX 277
da teologia da fé para a teologia da revelação. Sendo reve- lientar o papel do Cristo como autor, centro e objeto da
lação e fé noções correlatas, o esforço no intuito de per- revelação. A teologia trabalha procurando maior integração
ceber mais claramente os componentes de uma levou natu- de todos esses elementos conhecidos ou redescobertos.
ralmente a um estudo mais atento da outra. O P. Alfaro, den-
tre os teólogos da fé, é, sem dúvida, um dos que mais
estudaram as relações que unem fé e revelação. Assim como CONCLUSÕES
a revelação é o primeiro passo de Deus que livremente vem
ao encontro do homem, assim também a fé é o primeiro 1. Problemática
passo do homem que livremente se dhige para Deus. O
P. Alfaro insiste no aspecto gratuito, interpessoal, salvífico O foco da atenção dos teólogos desloca-se, ao longo
e sobrenatural da revelação. Conforme ele, a razão última dos séculos, conforme a problemática da época.
da sobrenaturalidade da revelação está em Deus que se No século XIII, interessam-se principalmente com a
revela, vencer a distância infinita de sua Transcendência, revelação profética. O termo "revelação" evoca um fenôme-
entrar num relacionamento de amizade com sua criatura, no de ordem interior, uma comunicação íntima e sobrenatural
iniciá-la nos mistérios de sua vida íntima, principalmente de Deus à alma. A revelação proféticá coloca-se entre os
no mistério da Trindade, e começar desde agora uma comu- carismas: é uma graça gratis data, em benefício da humani-
nicação de si mesmo que deve completar-se na visão plena. dade. · Pouco falam da revelação pelo Cristo e pelos após-
Essa iniciativa é pura gratuidade 184. O P. Demann 185 e o tolos. As questões levantadas pela vinda de Cristo, exami-
P. Alfaro 186 mostram como a fé, no Antigo e no Novo Tes- nam-se em conexão com a encarnação e a redenção.
tamento, recebe uma acentuação diferente, justamente de- Os pós-tridentinos, continuando a falar da profecia,
vido a acentuação diferente que é dada à própria revelação. que passam a examinar no contexto do De Fide, já falam
A volta à Escritura e aos Padres da Igreja revitalizou mais da revelação mediata.
a teologia da revelação. Essa teologia distingue e equilibra A preocupação é mostrar que essa palavra exterior é
melhor a apresentação dos diversos aspectos da revelação: realmente palavra de Deus, pois que garantida por sinais
a revelação como agir divino, como acontecimento da his- indubitáveis que lhe atestam a origem divina. Isso fazia-se
tória e como história, como conhecimento e como mensagem, necessário pelos desvios do protestantismo que, cada vez
como encontro com o Deus vivo. Ê sensível ao progresso, mais se interessava exclusivamente com a Escritura e com
à pedagogia e à economia da revelação, aos caminhos di- a palavra interior do Espírito, tendendo assim a fazer do en-
versos e múltiplos através dos quais se realiza. Insiste na contro com a Bíblia' Ó lugar único de uma revelação ime-
eficácia singular da palavra de Deus e na comunhão íntima diata e individual, e a excluir o magistério eclesiástico de
que estabelece com o Deus vivo. Quanto ao dado revelado, qualquer papel na proposição e ria interpretação da palavra
essa teologia insiste na realidade revelada, no próprio mis- de Deus.
tério, na Pessoa que se revela, e não apenas nos sinais, con- Antes da Renascença, o pensamento religioso olhava
ceitos, enunciados, proposições que permitem ao espírito principalmente para as exigências de Deus. Ao contrário, no
apreender o mistério ou a pessoa. Finalmente, procura sa- mundo moderno, passam ao primeiro plano as exigências
do sujeito que pensa. Segundo Spinoza e Kant, a revelação
184 J.
ALFARO Adnotationes in tractatum de Virtutibus (Romae, 1959). nada mai,.s pode ser senão um tipo de conhecimento na-
185 P .. DEMANN, "Foi juive et foi chrétienne" Cahiers Sioniens 6
(1952): 89-103. tural, pois que o homem não tem outros princípios de conhe-
186 J. ALFARO, "Fides in terminologia biblica", Gregorianum, 42 cimento que suas faculdades naturais .. Segundo os pro-
(1961): 504-505. testantes liberais, Schleiermacher, Ritschl, Sabatier, e depois
T
278 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 279

os modernistas, a revelação é uma categoria tão universal ereta da revelação. Descreve esse agir como sendo a mani-
quanto a religião, uma experiência comum e imanente. Os festação e comunicação do pensamento de Deus, manifesta-
teólogos do século XIX são por isso levados a distinguir ção de seu desígnio salvífico para com a humanidade. Se-
duas ordens de revelação ( natural e sobrenatural), ao afir- guindo a Escritura, os teólogos denominam essa ação }?~lavra
mar a existência e a possibilidade de uma revelação sobrena- de Deus aos homens. Com efeito, com essa ação dmge-se
tural, a insistir no caráter objetivo e doutrinal da revelação. Deus ao homem, interpela-o, comunica-lhe seu pens~men!o,
No sécúlo XX, sob a influência das correntes de pen- convida-o a uma resposta, a ser dada pela fé. Para evidenciar
samento contemporâneo ( existencialismo, personalismo), o o elemento formal dessa palavra, os teólogos falam em tes-
que preocupa o teólogo e o simples fiel, é o encontro pessoal temunho divino; às vezes também, para indicar o enrique-
do Deus vivo e pessoal. Deus revela, mas principalmente cimento que traz ao espírito, a designam como palavra de
se revela. Deus fala, mas principalmente fala para mim. ensinamento.
Cuida-se pois de interiorizar a revelação, de salvaguardar Essa palavra que vem de Deus é recebida no homem.
seu caráter pessoal e personalizante. Há como que uma Os escolásticos do século XIII concebiam a revelação ime-
enfatização dos elementos subjetivos e uma coisificação dos diata como uma iluminação do espírito geradora de um co-
elementos objetivos. Apresenta-se o revelado não apenas nhecimento certo da verdade. Ato cognoscitivo, de ordem in-
como proposto, mas também como apreendido e possuído. telectual, que possibilita ao profeta julgar com certeza e sem
E quanto ao próprio revelado, insiste-se menos nos sinais, erro os elementos presentes em sua consciência. Também
conceitos e proposições que designam o mistério. A insis- a revelação apostólica realiza-se sob a influência ilumina-
tência maior é sobre o próprio mistério e sobre a Pessoa que dora do Espírito Santo, permitindo aos apóstolos captarem
revela. Há desconfiança contra certa tendência por demais a mensagem de Cristo no seu verdadeiro sentido. . .
conceitualizante, que na revelação veria apenas um sistema A revelação mediata é a proposição da verdade d1vma
de proposições sobre Deus. mediante legados, cuja palavra é autorizada como palavra
O teólogo do século XX, sensível à dimensão. histórica, de Deus pelos sinais que atestam sua origem. Todos os
interessa-se princtpalmente com as implicações de uma rela- teólogos repetem que a revelação mediata é suficiente e
ção que perpassa a história, a utiliza e transforma. Não lhe que merece plenamente o título de palavra de D_e~s. Not~m
basta conhecer o resultado da ação reveladora, ou seja, O· também constantemente a ligação entre a propos1çao exterior
depositum fidei; quer também compreender a sua gênese; da verdade e uma luz interior, entre uma palavra exterior
quer captar a revelação em seu afloramento histórico, em e uma palavra interior, entre uma pregação exter~or e uma
seu progresso através dos séculos, na sua economia e pe- iluminação .interior, entre um testemunho exterior e um
dagogia. Julga que a teologia da revelação deve apoiar-se testemunho interior. A palavra de Deus solicita o homem
na fenomenologia e na história da revelação. de todos os lados: de certo modo o assedia pela pressão
exterior do discurso e dos milagres e pela atração interior
2. Pontos de encontro da graça.

Desde são Boaventura até o século XX, toda a tradição 3. Oscilações


escolástica apresenta a revelação como uma ação sobrenatural
e soberanamente livre, pela qual Deus graciosamente forne- No século XIII, os teólogos têm uma v1sao sintética
ce à humanidade verdades necessárias à salvação. Nesse da revelação. Entendem por revelação o fenômeno com-
agir salienta-se freqüentemente a iniciativa amorosa do Pai plexo que coloca o homem na posse de um ~onhecime~to
e o papel conjunto do Filho e do Espírito na economia con- propriamente divino. Objeto novo e luz especial proporc10-
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 281
280 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

nada a esse objeto: o conjunto do fenômeno é qualificado tos; quer harmonizá-los na unidade, pois a revelação é ao
como iluminação, como palavra, como revelação. O termo mesmo tempo ação, acontecimento, história, conhecimento,
"revelação" ainda não tem sentido técnico. Indica tanto testemunho, encontro, doutrina, depósito imutável, palavra
o objeto manifestado como a iluminação subjetiva. A partir interior. Nesse trabalho de organização e precisação, acontece
dessa indeterminação do século XIII, manifesta-se uma que a teologia acentua demais este ou a,guele aspecto, subesti-
tendência que leva os teólogos a definir a revelação às vezes ma outro, reagindo contra os excessos do passado. Isso prova
ex parte obiecti, às vezes ex parte potentiae, outras ain- que a realidade da revelação será sempre mais rica que as
da ex parte obiecti et potentiae. Uma primeira corrente vê construções do espírito e que a teologia deve multiplicar
a revelação no próprio fenômeno de iluminação interior seus ângulos de visão para não ser por demais infiel a essa
que abre a alma às claridades do mundo sobrenatural. Assim realidade.
Bafies e Cano. Ao contrário, os jesuítas Suares e De Lugo,
reagindo contra os excessos do iluminismo protestante, reser-
vam o termo revelação à manifestação do objeto; a luz da
fé não mereceria ser chamada revelação a não ser num sen-
tido amplo. Os carmelitas de Salamanca julgam que tanto
a revelação ex parte obiecti quanto a revelação ex parte
potentiae merecem igualmente ser chamadas de revelação.
~o primeiro caso, é o objeto que é re-velado; no segundo,
'e a potência que é re-velada. No século XIX torna-se mais
comum definir a revelação ex parte obiecti, como sendo
a manifestação ao homem das verdades da salvação, dos
s~gr_edos de J?eus, do desígnio de Deus. Esse conjunto cons-
tltm a doutrma revelada ou a revelação ou o objeto da fé.
Continua, porém, sendo reconhecida a necessidade de um
auxílio interior, de uma luz interior que permita ao homem
apropriar-se desse objeto.
O século XX, mais consciente da complexidade da
ação reveladora e da multiplicidade de aspectos da revelação
o_scila entre um modo de ver e outro, correndo sempre ~
risco de dar preferência a um com detrimento do outro.
~evelação-realidade ou revelação-doutrina; revelação-aconte-
cu_ne?t.o-de-salvaç~o ou revelação-conhecimento; revelação-
-historia progressiva ou revelação-depósito imutável e definiti-
vo; revelação-ato-de-Deus ou revelação-testemunho humano·
re~elação-verdade ou revelação-encontro pessoal; revelação-tC:-
tahdade do Cristo ou revelação-multiplicidade dos mistérios
e das proposições; revelação-depósito a ser conservado ou
r:velação-palavra a ser compreendida e assimilada; revela-
çao-mensagem-exterior ou revelação-palavra-interior. A ree-
logia atual não gostaria de perder qualquer um desses aspcc
quarta parte

NOÇÃO DE REVELAÇÃO
E MAGISTÉRIO ECLESIASTICO
Evidente, para qualquer um que estude os documentos
da Igreja, que os erros referentes à noção de revelação são
um fenômeno recente. Não parece que a noção tenha sido con-
testada nos primeiros séculos e durante toda a idade média.
Não encontramos nenhum anátema ou condenação que nos
levasse a supor uma negação do fato ou uma contami-
nação do conceito. As controvérsias que prendem a aten-
ção da Igreja, e cujos ecos encontramos nos concílios, refe-
rem-se principalmente à Trindade, à Encarnação, ao misté-
rio de Cristo ( naturezas e pessoa), aos sacramentos, à au-
toridade do pontífice romano. Que Deus tenha falado aos
homens por Moisés e pelos profetas, depois pelo Cristo e
pelos apó~tolos, ninguém pensa negá-lo ou pô-lo em dúvida.
Também a Lei, os Profetas e o Evangelho, que contêm essa
palavra, são igualmente palavra de Deus. A Igreja, que
prega a palavra divina pretende conservar íntegra a fé con-
fiada aos apóstolos, ao abrigo de qualquer contaminação e
de qualquer novidade (D 159-160) 1, de qualquer germe
de erro que pudesse ser suscitado pelo espírito do mal,
que não cessa de misturar a cizânia à boa semente ( D 246 ) .
Diz o segundo concílio de Constantinopla, em 553: "Nós
confessamos conservar e pregar a fé que por nosso grande
Deus e Salvador Jesus Cristo, foi dada no princípio, aos san-
tos apóstolos e foi por eles pregada em todo o mundo e que
os santos Padres - principalmente os reunidos nos quatro
santos concílios - confessaram, explicaram e confiaram às
santas igrejas" 2•
1 H. DENZINGER-K. RAHNER, Enchiridion symbolorum, definitionum
et declarationum de rebus fidei et morum ( 30~ edição). De agora em
diante: D.
, 2 "Confitemus fidem tenere et praedicare ah initio donatam a magno·
Deo et Salvatore nostro Jesu Christo sanctis apostolis et ah illis in uni-
verso mundo praedicatam; quam et sancti Patres confessi sunt, et expla-
naverunt, et sanctis ecclesiis tradiderunt, et maxime qui in sanctis quatuor
synodis convenerunt" (D. 212).
286 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO 287

Na idade média, não há dúvida de que a noção de 2? o do primeiro concílio do Vaticano que se opõe ao ra-
revelação mais completa é a expressa pelo quarto concílio cionalismo; 3? o do decreto Lamentabili, da encíclica Pas-
de Latrão, 1215: "Esta santa Trindade... deu ao gê- cendi e do Motu próprio Sacrorum antistitum que se opõem
nero humano uma doutrina de salvação, primeiro por Moi- ao modernismo; 4? o período contemporâneo até o segundo
sés e pelos santos profetas e por seus outros servidores, concílio do Vaticano; 5? o do segundo concílio do Vaticano.
numa sapientíssima disposição de circunstâncias. E, final-
mente, o Filho único de Deus, Jesus Cristo ... mostrou mais
claramente o caminho da vida" 3 • Segundo o concílio, a
revelação é obra comum de toda !l Trindade. Os mediado-
res dessa revelação, no Antigo Testamento, são Moisés e
os profetas. O que trazem ao gênero humano é uma "dou-
trina de salvação". Em o Novo Testamento, a segunda
pessoa da Trindade, o Filho único do Pai, se encarna para
falar diretamente à humanidade e manifestar-lhe mais cla-
ramente o caminho da vida, isto é, os meios de chegar à
salvação. A finalidade da revelação é conduzir à vida eterna.
Já aparecem reunidos elementos importantes do conceito
de revelação: o autor ( a Trindade); os destinatários ( o
gênero humano); a finalidade ( a salvação, a vida eterna);
o objeto ( uma doutrina referente à salvação e aos meios
de consegui-la); o súbito progresso de uma economia à
outra pela encarnação do Filho de Deus.
Para dizer a verdade, é nos séculos XVIII e XIX
apenas que, em nome do sujeito pensante, inicialmente se
pôs em dúvida a possibilidade duma revelação sobrenatural
e depois, pouco a pouco, se reduziu a revelação a uma das
formas da experiência religiosa universal. Os princípios,
contudo, que levaram à corrupção e à dissolução do con-
ceito de revelação, já estavam agindo no protestantismo
nascente. É pois a partir deste último que continua nossa
análise. Nessa história podemos distinguir cinco períodos:
l? o do concílio de Trento que se opõe ao protestantismo;
3 Eis o texto completo: "Haec sancta Trinitas, secundum co=unem
essentiam individua, et secundum personales proprietates discreta, primo
per Moysen et sanctos Prophetas aliosque famulos suos, juxta ordi-
natissimam dispositiortem temporum, doctrinam humano generi tribuit
salutarem. Et· tandem unigenitus Dei Filius Jesus Christus, a tota Trini-
tate co~uniter incarnatus, ex Maria semper Virgine Spiritus Sancti
cooperatlone conceptus, verus homo factus, ex anima rationali et humana
carne compositus, una in duabus naturis persona, viam vitae manifestius
demonstravit" ( D. 428-429).
1.
O CONCfLIO DE TRENTO
E O PROTESTANTISMO

O protestantismo do primeiro período, mesmo sem


diretamente pôr em causa a noção de revelação, gravemente
a ameaça. Santo Tomás, no Contra Gentiles, observa que
existe um tríplice conhecimento das coisas divinas: "Pelo pri-
meiro, o homem, graças à luz natural da razão, eleva-se ao
conhecimento de Deus por meio das criaturas; pelo segun-
do, a verdade divina, que ultrapassa os limites de nossa in-
teligência, vem a nós como uma revelação ... ; pelo ter-
ceiro, eleva-se o espírito à visão perfeita do que lhe foi re-
velado" 1 • Os Reformadores ainda aceitariam essas afirma-
ções; sua antropologia, porém, perturba essa clara visão
das coisas. Na sua Institutio christianae religionis, Calvino
admite que Deus se manifesta aos homens pelas obras de
· sua criação 2, acrescenta, porém, que a razão humana foi
tão gravemente ferida pela falta de Adão que essa manifes-
tação objetiva de Deus se torna inútil para nós 3 • Foi por
isso que Deus deu à humanidade não apenas "mestres 'mu-
dos", mas também sua divina palavra 4. Desde então, po-
demos chegar a Deus somente pela revelação atestada na
Escritura. Assim, dos dois tipos de conhecimento de Deus,
tradicionalmente aceitos - conhecimento natural e conheci-
mento por revelação - o primeiro é menosprezado em favor
do segundo. A teologia escolástica, que continua afirmando o
valor da razão na sua procura de Deus, sofre as conseqüências

1 S. THOMAS, Summa contra Gentiles, L. IV, e. 1.


2 J. CALVINUS, I nstitutio christianae religionis ( Genevae, 1618), L.
I, e. 5, n. 2.
3 Ibid., L. I, e. 2, n. 1; L. II, e. 6, n. 1.
4 Ibid., L. I, e. 6, n. 1.

1O - Teologia da revelação
290 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O CONCÍLIO DE TRENTO E O PROTESTANTISMO 291
dessa ruptura de equilíbrio e cai em descrédito. Bem cedo o 1546, o cardeal Dei Monte fez uma declaração que de-
protestantismo se inclina a negar valor a qualquer conheci- veria orientar as discussões. Observou que nossa fé vem
mento de Deus que não seja revelação em Jesus Cristo 5 • da revelação divina, que nos é transmitida pela Igreja, a
O protestantismo, ao mesmo tempo que afirma o prin- qual a recebe em parte da Escritura do Antigo e do Novo
cípio da salvação pela graça e pela fé somente, põe também Testamento, em parte também da tradição. O ponto seguinte
o princípio da autoridade soberana da Escritura. A regra a ser tratado, conclui, é o referente à Escritura e às tradi-
de fé é somente a Escritura, com a assistência individual do ções 7 • Redigiu-se, pois, um decreto sobre o assunto, publi-
Es.pírito, que permite captar o que é revelado e o que, cado dia 8 de abril de 1546:
portanto; se deve crer. Testemunho do Espírito nas almas
e palavras de Deus na Escritura são inseparáveis. Só o "O santo, ecumênico e geral concílio de Trento, legiti-
Espírito ilumina a palavra. mamente reunido no Espírito Santo, sob a presidên-
A primeira vista parece, pois, que o protestantismo cia dos mesmos três legados da Sé Apostótica, tens
exalta a transcendência da revelação, já que suprime qual- .do sempre ante; 9s olhos que, afastados os erros,
quer intermediário entre a palavra de Deus e a alma que seja conservada na· Igreja a pureza do Evangelho, que,
a recebe. Mas, de fato, a compromete. Pois, ao mesmo prometido anteriormente pelos profetas nas ·Santas Es-
tempo que estabelece o princípio da autoridade soberana crituras, foi primeiramente anunciado pelos lábios do
da Escritura, ergue-se contra a autoridade da Igreja ( D 7 6 7 ) , Pr,óprio nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que
seja em sua tradição, seja nas decisões atuais de seu magis- depois o mandou anunciar a toda criatura, como fonte
t~rio. Guarda bem viva a noção da palavra de Deus, de toda verdade salutar e de toda disciplina dos costu-
divorciando-a, porém, de qualquer norma objetiva, arrisca-se mes: e considerando que essa verdade e essa disciplina
a cair numa inspiração incontrolável: orienta-a para o indivi- estão contidas nos livros escritos e nas tradições não
dualismo ou para o racionalismo, seja diretamente, seja pelos escritas, que os apóstolos receberam dos lábios do pró-
desvios do iluminismo e do pneumatismo 6 • Uma laicização prio Cristo, ou pelo Espírito foram ditadas aos pró-
da noção de revelação que se mostrará cruamente com o prios apóstolos dos quais as recebemos transmitidas
protestantismo liberal, mas cujo processo evolutivo já se como que de mão em ·mão; a exemplo dos Padres
inicia a partir do século XVII. ortodoxos, o concílio recebe e venera com a mesma -
Caberá ao primeiro Concílio do Vaticano reafirmar a piedade, afeto e reverência, todos os livros do An-
existência e a validade de duas ordens de conhecimento de tigo e do Novo Testamento, pois que de ambos Deus
Deus, natural e sobrenatural ( D 1785). O Concílio de é o autor, assim como as próprias tradições referentes
Trento limita-se a afastar o perigo mais imediato repre- à fé e aos costumes, como ditadas ou pelo próprio Cris-
sentado por uma atenção demasiadamente exclusiva à Es-
critura, em prejuízo da Igreja e de sua tradição viva. 7 "Noverunt Paternitates Vestrae qualiter omnis fides nostra de re-
velatione di_vina est _et hanc nobis traditam ab Ecclesia partim ex scripturis,
1. Desde o começo procura definir os caminhos pelos quae sunt m Veter1 et Novo Testamento, partin etiam ex simplici tradi-
quais Deus comunica sua revelação. A 12 de fevereiro de ttone l?er man;is .. Ut ita9ue omnia a nobis ordine proficiscantur, post
profess1onem f1de1 a nob1s factam conseguens est ut scripturas sacras
p_robemus, dei~de de traditionibus ecclesiasticis etiam disserendum" ( So-
5 J. BAILLIE, The Idea of Revelation in Recent Thought (London,
c1etas Goerres1ana, ed., Concilium Tridentinum. Diariorum actorum, epis-
1956), pp. 5-9; W. NrESEL, The Theology of Calvin (London, 1958, tolarum, tractatuum nova collectio [13 vol., Freiburg, 1901-1938], 5: 7-8).
segundo o original alemão Die Theologie Calvins, Munique 1938) pp. Em _vez de afirmar, como del Monte, que a Igreja recebe a revelação:
39-53. . , ' parttn ex scripturis ... , partin. . . ex simplici traditione o texto à.dotado
6 L. BouYER, Du Protestantisme à l'Église (Paris, 1954), pp. 128-129;
pelo concílio dirá que a revelação está contida: in lib;is scriptis et sine
151-152. scripto tradi tionibus.
T
1
1

292 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O CONCÍLIO DE TRENTO E O PROTESTANTISMO 293


to ou pelo Espírito Santo, e conservadas na Igreja ca- nos livros inspirados da Escritura e nas tradições não
tólica numa continua sucessão" 8 • escritas.
e) O concílio acolhe com igual piedade e respeito a
Em primeiro lugar notemos que em todo esse pará- Escritura ( Antigo e Novo Testamento); assim como as
grafo não aparece a palavra relevação. O termo que so- tradições "ditadas ou pelo próprio Cristo ou pelo Espí-
bressai é Evangelho, mais concreto, mais próximo do uso rito Santo, conservadas na Igreja católica numa contínua
neotestamentário. A Igreja recebeu a missão de con- sucessão".
servar o Evangelho em toda a sua pureza. O Evangelho
A única mensagem evangélica, a única Boa-nova ex-
isto é, a Boa-nova ou a mensagem de salvação trazida e
prime-se, pois, por duas formas distintas: escrita e oral.
realizada pelo Cristo e pregada a toda criatura. É exata-
Por isso é preciso crer tudo que se contém na palavra de
mente esse o sentido que lhe dá o concílio que se refere
Deus, escrita ou transmitida ( D .1792 ) . A seqüência da
. explicitamente ao final de Mateus e de Marcos: "Praedicate
revelação teve um .momento privilegiado, quando foi escrita
Evangelium omni creaturae. Qui crediderit et baptizatus
sob a inspiração do Espírito. A Igreja, porém, nem por
fuerit, salvus erit" ( Me 16,15-16). O quarto concílio de
isso deixa de possuir, todo inteiro, o ensinamento vivo
Latrão usara a expressão: doctrina salutaris. O Evangelho,
recebido no começo. Assim, pois, quando sobre um ponto
a doutrina da salvação: este o objeto proposto à nossa fé.
a •Escritura não parece suficientemente clara e explícita,
O texto faz três afirmações: a) o Evangelho foi-nos
pode. encontrar um esclarecimento na tradição que a Igreja
dado progressivamente: anunciado primeiro pelos profetas, conserva.
promulgado depois pelo Cristo, finalmente pregado pelos
apóstolos, por ordem sua, a toda criatura. Nele está a 2. No proemium do decreto sobre a justificação, o
fonte única de toda a verdade salutar e da disciplina dos objeto da fé é novamente apresentado como uma doutrina,
costumes. Para marcar o caráter histórico e contínuo dessa ensinada pelo Cristo, transmitida pelos apóstolos, conser-
economia, uma emenda propunha citar o primeiro versículo vada pela Igreja e por ela defendida contra ·os erros. O
da Epístola aos hebreus 9 • Concílio declara que se "propõe expor a todos os fiéis do
b) Essa verdade da salvação e essa lei para nosso Cristo a verdadeira e sã doutrina dessa mesma justificação
agir moral, cuja fonte única é o Evangelho, estão contidas que o. . . Cristo Jesus, autor e consumador de nossa fé,
ensinou, que os apóstolos transmitiram, que a Igreja cató-
B "Sacrosancta oecumenica et generalis Tridentina Synodus, in Spiritu lica, sob a ação do Espírito Santo, sempre conservou, proi-
Sancto legittime congregata, praesidentihus in ea eisdem trihus Apostolicae bindo severamente que alguém ouse crer, pregar, ensinar
Sedis Legatis, hoc sihi perpetuo ante oculos proponens, ut suhlatis errori- diversamente do que vem decidido no presente decreto" 10 •
hus puritas ipsa Evangelii in Ecclesia conservatur, quod promissum ante
per Prophetas in Scripturis sanctis Dominus noster Jesus Christus Dei 3. No capítulo quinto, o Concílio opõe à doutrina
Filius proprio ore primum promulgavit, deinde per suos Apostolos tanquam
fontem omnis et salutaris veritatis et morum disciplinae omni creaturae protestante da justificação unicamente pela fé, a doutrina
praedicari jussit: perspiciensque, hanc veritatem et disciplinam contineri católica que afirma ao mesmo tempo a necessidade da graça,
in lihris scriptis et sine scripto traditionihus, quae ah ipsius Christi ore à qual compete a iniciativa, e da livre cooperação do homem
ah Apostolis acceptae, aut ah ipsis Apostolis Spiritu Sancto dictante quasi
per manus traditae ad nos usque pervenerunt, orthodoxorum Patrum
exempla secuta, omnes lihros tam Veteris quam Novi Testamenti, cum 10 "Tridentina synodus .... exponere intendit omnibus Christifidelihus
utriusque unus Deus sit auctor, nec non traditiones ipsas, tum ad fidem, veram sanamque doctrinam ipsius justificationis, quam 'sol justitae', Chris-
tum ad mores pertinentes, tanguem vel oretenus a Christo, vel a Spiritu tus Jesus, fidei nostrae auctor et consummator, docuit, Apostoli tradi-
Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas, derunt et catholica Ecclesia, Spiritu Sancto suggerente, perpetuo retinuit;
pari pietatis affectu ac reverentia suscipit et veneratur" ( D. 783). districtius inhihendo ne deinceps audeat quisquam aliter credere, praedi-
9 Concilium Tridentinum, 5:51. care aut docere, quam praesenti decreto statuitur ac declaratur" (D. 792a).
294 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O CONCÍLIO DE TRENTO E O PROTESTANTISMO 295
com a ação divina ( D 797 ) . O capítulo seguinte explica pectiva conforme à Escritura que muitas vezes salienta a
em que consiste essa colaboração do homem e da graça: ação da graça que abre o coração à palavra exteriormente
"Eles se dispõem para a justiça, enquanto, excitados e aju- ouvida e possibilita ao homem dar-lhe o consentimento 15 •
dados pela graça divina, concebem a fé pela pregação ( Rom Em resumo: o ensinamento do concílio reduz-se aos
10,17) e livremente se voltam para Deus, crendo verda- pontos seguintes: sem usar o termo revelação, apresenta-a
deiras as verdades e promessas reveladas por Deus, prin- como sendo o conteúdo de uma palavra. Concretamente,
cipalmente acreditando que o ímpio é justificado pela graça esse conteúdo é o Evangelho ou a mensagem de salvação
de Deus por meio da redenção que está no Cristo Jesus" 11 • prometida inicialmente pelos profetas, publicada por Cristo,
A fé aqui em questão não é a fé-confiança, a /ides fi- pregada pelos apóstolos, transmitida à Igreja, que a conserva
ducialis dos protestantes, mas uma fé que adere às verdades e defende. Evangelho que é também designado como dou-
reveladas, um ato de inteligência que se submete a Deus e trina ensinada e transmitida; doutrina de salvação que cons-
que reconhece a verdade do que ele revela. As diversa~ re- titui um conjunto de verdades e de promessas oferecidas à
dações do texto mostram firme vontade de deixar bem claro fé cristã pela pregação, que se encontra na Escritura e na
o caráter dogmático da fé católica 12 • Contudo, essas verda- tradição. A fé, que responde à pregação do Evangelho, é
des podem ser também promessas que despertam a con- correlativamente designada como assentimento às verdades
fiança e a esperança do homem 13 • Não são apenas enrique- e às promessa1, nele contidas, sob a ação da graça que excita
cimento do espírito, mas mensagens de salvação que orien- e ajuda. Assentimento que termina, não nos simples enun-
tam o homem para Deus. ciados, mas se dirige ao próprio Deus dessas verdades e
Tal sendo a fé, seu objeto lhe é apresentado pela promessas.
pregação. Referindo-se a Rom 10,17 ( Fides ex auditu), o
Concílio encara a fé como a resposta que convém à Boa-
-nova, à mensagem de salvação. "Eis o que nós pregamos.
Eis o que acreditastes", escreve são Paulo aos coríntios
( 1Cor 15, 11 ) . "Depois de terdes ouvido a palavra da ver-
dade, isto é, o bom anúncio da vossa salvação, e também
depois de terdes crido nele", diz ele escrevendo aos efésios
( Ef 1,13). No entanto, essa pregação exterior, segundo o
pensamento do concílio, é ineficaz se não for acompanhada
do auditus interior da graça. É o que muito bem indicam
as palavras do texto: excitati divina gratia et adiuti 14. Pers-
11 "Disponuntur autem ad ipsam justidam, dum excitati divina grada
et adjuti, fidem ex auditu concipientes, libere moventur in Deum, creden-
tes vera esse quae divinitus revelata et promissa sunt, àtque illud in
primis a Deo justificari impium per gradam ejus, per redemptionem,
quae est in Christo Jesu" (D. 798).
12 Em setembro de 1546, a redação era a seguinte: "per fidem qua
credimus omnia quae nobis divinitus revelata et promissa sunt" ( Concilium ihterior, acrescentando: "ex dono Dei et auditu" (Concilium Tridentinum,
Tridentinum, 5: 422); a 31 de outubro: "qua credimus vera esse quae divi- 5: 697). Seripando julgava desnecessário o acréscimo mas 'observou:
nitus revelata et promissa sunt"; a 10 de dezembro, finalmente, é "rei tamen veritas est quod auditus exterioris verbi si~e interiori nihil
acrescentado: "ex auditu concipientes". efficit. lnde scriptum est: Dominus aperuit mihi aurem" (lbid. 5: 704-705).
13 R. AUBERT, Le Probleme de l'acte de foi (Louvain, 1950), pp. 77-78. 15 Cfr., por exemplo, At 16,14; Mt 16,17· 1Jo 2 27· Mt 1125-27·
14 Alguns conciliares queriam até mencionar explicitamente o auditus Jo 6,44-45. ' ' ' ' '
r

O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 297


2.
Se é verdade que o racionalismo deriva do protestan-
O PRIMEIRO CONCÍLIO DO VATICANO tismo, é igualmente certo que ele foi favorecido em seu
E O RACIONALISMO desenvolvimento por fatores importantes: pela filosofia car-
tesiana que rompeu com a autoridade e com a tradição, pelo
filosofismo moral e pelo panteísmo de Spinoza que excluem
a priori toda a religião revelada, pelo kantismo alemão que
confundiu a teologia com a filosofia, e a moral de Cristo
com a ética natural, pela filosofia experimental inglesa, en-
fim, que pretendeu ater-se unicamente às leis e observações
da razão e da natureza. Tanto que o Concílio pôde falar
l. A ação da Igreja em seu contexto em "reino da razão e da natureza". Em suas formas ex-
tremas, acrescenta ele, o racionalismo vai dar no "panteís-
O primeiro Concílio do Vaticano vê no racionalismo mo, no materialismo, no ateísmó" 2 •
os frutos amargos do protestantismo. Os parágrafos II e No dia em que as exigências do ser que pensa vieram
III do prólogo da constituição Dei Filius descrevem assim ocupar o primeiro plano da consciência ocidental, devia co-
o desenvolvimento fatal dos princípios postos na origem locar-se necessariamente o problema de uma intervenção
da Reforma: divina por uma revelação transcendente.
"Ninguém ignora. . . que depois de haver rejeitado o Desde então, além da posição católica, poder-se-iam, teo-
magistério divino da Igreja e abandonado as ques-
ricamente, conceber três respostas diferentes que de fato
tões religiosas ao julgamento particular de cada um,
existiram. Ou recusar a hipótese de uma revelação e de
as heresias proscritas pelos Padres de Trento se te-
nham fracionado pouco a pouco numa infinidade de uma ação transcedente de Deus na história humana: res-
seitas que se excluem e combatem mutuamente, e que posta do deísmo e do progressismo (D. 1807-1808 ) , que
enfim um grande número de seus membros perde- reclamam para a razão toda a autonomia é toda suficiên-
ram toda a fé em Jesus Cristo. Também os próprios cia. Ou negar o caráter transcendente da revelação para
livros santos que o protestantismo inicialmente pre- fazer dela uma realidade puramente imanente e tarefa do
tendia fossem a única fonte e a única regra da dou- homem, uma forma particularmente intensiva do sentimento
trina cristã, deixaram de ser considerados como di- religioso universal: resposta do protestantismo liberal e
vinos; chegou-se mesmo a classificá-los entre as fic- mais ou menos do modernismo. Ou, enfim, suprimir um
ções místicas. Nasceu então e infelizmente se difun- dos dois termos, Deus: os partidários do evolucionismo
diu por todo o universo esta doutrina do racionalis- absoluto, como os hegelianos, conservam ainda a palavra
mo e do naturalismo, que, colocando-se em todos revelação, mas vazia de todo o sentido tradicional. O
os pontos em oposição à religião cristã, se aplica, com universo e Deus sendo um só, a razão humana não é subs-
os maiores esforços, a excluir Jesus Cristo, nosso tancialmente distinta da razão divina e pode, portanto, desen-
único Salvador e Senhor, do pensamento dos ho- volvendo-se naturalmente, chegar a conhecer tudo; o cris-
mens, da vida e dos costumes dos povos para estabe-
lecer o reino daquilo que se chama a razão pura ou recentiorum Ecclesiae universae sive amplissimae collectionis conciliorum
a natureza 1 ". a Mansi et continuatoribus editae (sobre o concílio do Vaticano: t. 49-53;
Paris, 1923-1927), 51:429-430. De agora em diante, citado simplesmente:
Mansi.
1 Texto latino em L. PETIT e J. B. MARTIN, Collectio Conciliorum 2 Mansi, 51:430.
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298 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 299

tianismo seria apenas um momento da evolução da razão em Todo esforço dos teólogos, retomando a apologética do
direção de seu devir total. século XVII contra os "livres pensadores", consiste em defen-
Contra o panteísmo e o deísmo, o I Cone. Vat. afir- der a religião contra os adversários e em levantá-la do des-
mará solenemente o fato de uma revelação sobrenatural, sua prezo onde ela caíra. A própria dogmática se preocupa antes
possibilidade, sua conveniência, sua finalidade, sua discernibi- de tudo em tornar os dogmas aceitáveis às filosofias do
lidade, e seu objeto. Para avaliar o alcance de sua interven- dia, situando-se em seu próprio terreno. Infelizmente os
ção, é necessário ter em mente os nomes que, desde dois sécu- defensores da Igreja, penetrados por sua vez pelo espírito
los, dominam o pensamento ocidental: protestantes na maior do filosofismo e desprovidos de uma filosofia tradicional só-
parte, que pouco a pouco· derivaram para as diversas formas iida, se comprometeram às vezes em caminhos perigosos.
do racionalismo e materialismo 3 • Para nos ater ao contexto Uns? querendo realizar a passagem da razão à religião, unica-
imediato do Concílio, lembremo-nos que o século XIX, mente com recursos da razão, caem num semi-racionalismo·
exceto um curto período de religiosidade romântica, sofreu que o Concílio denunciará 6 • Teólogos como Hermes, Gün-
principalmente a influência dos deístas ingleses e dos enci- ther e Frohschammer, sob a influência inconsciente das fi-
clopedistas franceses. As noções de sobrenatural, de reve- losofias de Kant e de Descartes, inclinam-se a exagerar as
lação, de mistério e de milagre, nos meios cultos são postos forças da razão 7 • Eles não negam a revelação; esta, porém,
em dúvida, e os títulos do cristianismo discutidos em nome afinal não é sobrenatural senão quanto ao modo: na posse
da crítica histórica e da Hlosofia. ·A ciência totalmente nova das fórmulas de fé, o homem pode penetrar-lhe o mis-
da história das religiões põe o problema da transcendência. tério e demonstrar cientificamente sua verdade. Outros,
A esquerda hegeliana, com Feuerbach, prepara o caminho ao contrário, reagindo contra o reino absoluto da razão,
ao ateísmo de Marx, enquanto que as explicações mate- acham que é necessário que o homem se refugie na fé e
rialistas do mundo e da vida, a interpretação transformista na autoridade da tradição. Os fideístas, exagerando as obje-
do universo, sob a influência de Spencer e Darwin gran- ções do racionalismo e crendo que o fato da revelação
jeiam rapidamente a simpatia do público 4. não poderá ser estabelecido por uma demonstração sólida,
Essa maré crescente do racionalismo coincidiu com um imaginam que a fé deve ser completamente cega. Os tra-
período de decadência da teologia católica 5 • dicionalistas, de seu lado, sustentam que uma tradição, saída
de uma revelação primitiva, é absolutamente necessária para
3 Na Alemanha:
conhecer as verdades da religião natural, bem como os
Woolf (1679-1754), KANT (1724-1804), FrcHTE
( 1672-1810), SCHELLING ( 1775-1854 ), HEGEL ( 1770-1831 ), SCHOPENHAUER mistérios de ordem sobrenatural. Assim Lamennais, Bau-
(1788-1860), Shleiermacher (1768-1839), STRAUSS (1808-1874), BAUR (1792- tain, Bonnetty, Ventura, De Bonald.
-1860). O racionalismo inglês depende da filosofia de BAcoN (1561-1626),
do materialismo de HOBBES (1588-1679), do sensualismo de LoCKE (1631- Em suma, enquanto o semi-racionalismo concede à
1704). Como derivados surgiram: o positivismo de Stuart MrLL (1773- razão uma preponderância injustificada, o fideísmo e o
1836 ), o evolucionismo científico de SPENCER ( 1820-1903) e de DARWIN tradicionalismo humilham-na além da medida. Até ao I
(1809-1882). Na França, VOLTAIRE (1694-1778) e ROUSSEAU (1712-1778)
foram, com a Enciclopédia, os mestres do laicismo moderno. As teorias sen- Cone. do Vaticano percebe-se no meio dos teólogos cató-
sualistas e materialistas de Loke chegaram à França mediante Condillac licos uma oscilação entre estes dois polos, manifestação evi-
( 1715-1780), enquanto o positivismo inglês, de Hume, Spencer e Darwin,
foi introduzido por CoMTE (1798-1857), TAINE (1828-1893) e LITTRÉ
6 principalmente no parágrafo V do prólogo da constituição Dei Filius
(1801-1880).
4 R. AuBERT, Le Pontificat de Pie IX (Paris, 1952, t. 21 da Histoire (Mans1, 51: 430).
de l'Église, dirigida por A. Fliche e E. Jarry), p. 219. 7 Sobre o semi-racionalismo no século XIX: E. HocEDEZ, Histoire
5 E. HocEDEZ, Histoire de la théologie au XIX• siecle (3 vol., Bru- de la théologie au XIX• siecle, 1:161-205; J.-M.-A. VAcANT, Études
xelles et Paris, 1949-1952), 1:13-21; R. AuBERT, Le Pontificat de Pie IX, théologiqu_es, 1:119~138; R. AuBERT, Le Pontificat de Pie IX, pp. 193-211;
p. 220. cfr. tambem os artigos do DTC sobre os nomes citados.
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300 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 301
dente do mal-estar criado pelo difícil problema das rela- é, conseqüentemente, "inquirir diligentemente sobre o
ções entre a fé e a razão. Durante os pontificados de Gre- fato da revelação para obter a certeza de que Deus falou,
gório XVI e de Pio IX, percebe-se o eco dessas inquieta- para lhe render em seguida . . . uma homenagem racional";
ções. Constantemente Roma deve intervir para condenar c) "que é necessário prestar fé total a Deus que fala e que
os erros, assinalar os desvios, afirmar a doutrina católica. nada é mais conforme a própria razão do que aquiescer e
Gregório XVI condena o tradicionalismo absoluto de aderir firmemente a tudo o que foi estabelecido como re-
Lamennais (Mirari vos arbitramur, 15 de agosto de 1832; ve,lqdo por Deus que não se pode enganar nem nos enga-
Singulari nos affecerant gaudio, 25 de junho de 1834); nar" 9 • A encíclica enumera em seguida os argumentos que
apóia a razão contra o tradicionalismo mitigado de Bautain provam manifestamente a origem divina do cristianismo
e repudia o semi-racionalismo de Hermes ( Dum acerbissi- e afirma com são João Crisóstomo que "omne dogma-
mas, 26 de setembro de 1835). Pio IX, na encíclica Qui plu- tum nostrorum principium radicem ex coelorum Domino
ribus ( 9 de nov. de 1846) expõe a doutrina da Igreja sobre accepisse" (D. 1638).
as relações entre a fé e a razão. Condena o tradicionalismo Por três vezes o texto da encíclica inter-relaciona os
mitigado de Bonnetty, o semi-racionalismo de Günther e o rennos de revelação, palavra e fé, e os esclarece um pelo
liberalismo intelectual de Frohschammer. Finalmente, pelo outro. Considera a revelação, alternadamente, sob seu as-
Syllabus de 8 de dezembro de 1864 e pela encíclica Quanta pecto objetivo, ativo e passivo. No primeiro caso trata-se
cura que o acompanha, ele denuncia os etros e falsos prin- de religião. . . revelada ( no sentido de doutrina, segundo
cípios do século XIX: panteísmo, naturalismo e raciona- a interpretação do Voncílio Vaticano, que retoma o mesmo
lismo absoluto, racionalismo moderado, indiferentismo, li- texto, D. 1800), por oposição ao que não seria mais que
beralismo, socialismo. doutrina humana, fruto da reflexão filosófica; no segundo,
Neste período que precede imediatamente o I Con- o texto estabelece uma equivalência entre a ação de revelar e
cílio do Vaticano, o único texto que trata de nosso as- a ação de falar; no terceiro, encara a reação do homem
sunto é a encíclica Qui pluribus. Já são afirmados neste diante de Deus que revela: a fé é resposta a Deus que fala,
documento, princípios que, vinte e cinco anos mais tarde, aquiescência àquilo que revela. A fé dirige-se, propria-
serão retomados pelo Concílio. Pio IX afirma não existir mente, à pessoa e adere àquilo que ela diz. O motivo
nenhum conflito entre a fé e a razão, pois ambas derivam desta adesão e desta homenagem é a própria palavra de
da mesma fonte da verdade eterna; pelo contrário elas Deus: palavra de autoridade daquele que não pode enga-
devem prestar-se mútuo apoio (D. 1635). O racionalis- nar-se ( o que exclui todo o erro) nem enganar-nos ( o que
mo, "inimigo da revelação divina", quereria reduzir a re- exclui toda mentira). A fé é, pois, uma homenagem racio-
ligião cristã a uma simples "obra humana" ou a "uma desco- nal, fundada sobre a palavra verídica e infalível do próprio
berta filosófica" sujeita à lei de um progresso incessante. Deus. A palavra de Deus é um testemunho.
O papa levanta-se contra essa pretensão e declara que: a)
nossa religião foi "gratuitamente revelada por Deus à hu- 2. A constituição dogmática sobre a fé católica
manidade" e "recebe toda a sua força da autoridade do
próprio Deus que fala" 8 ; b) que o dever da razão humana Em quatro capítulos a constituição Dei Filius expõe a
doutrina da Igreja sobre Deus, a revelação, a fé, as rela-
8 "Et sane cum sanctíssima nostrà religio non ab humana ratíone
ções entre a fé e a razão. Nossa análise versará sobre os
fuerit inventa, sed a Deo hominibus clementissime patefacta, tum quisque
vel facile intelligit religionem ipsam ex ejusdem Dei loquentis auctoritate
omnem suam vim acquirere neque ab humana ratione deduci aut perfici 9 "Humana quidem ratio, ne in tanti momenti negotio decipiatur
unquam posse" (D. 1636). et erret, divillae revelationis factum diligenter inquirat oportet, ut certo
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302 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 303


capítulos segundo, terceiro e quarto. Lembramos nova!l1ente humano, por outra via, e esta sobrenatural, a si mesmo e
que neste. documento trata-se não tanto da natureza da os decretos eternos de sua vontade; é o que .diz o Após-
revelação - como mais tarde na encíclica Pascendi - nias tolo: após' haver, muitas vezes e de muitas formas, talado
principalmente do fato de sua existência, de sua possibili- outrora aos pais pelos profetas, Deus, nestes dias que são
dade, de seu objeto. A exposição da doutrina católica os últimos, nos falou pelo Filho" 10 • Ainda que resumi-
contudo, foi ocasião para os Padres definirem em termo~ do, este texto fornece diversos dados importantes sobre a
simples e concretos a noção tradicional de revelação. noção de revelação: '
1 . No parágrafo primeiro do capítulo sobre a re- à) O texto estabelece o fato da revelação sobrena-
velação, o Concílio distingue duas vias pelas quais o homem tural e positiva, tal como foi dada no Antigo e em o Novo
pode chegar ao conhecimento de Deus: via ascendente do Testamento.
co~ecimento naforal, via descendente da revelação. A pri- b) Desta revelação, Deus é o autor e a causa. Ela
meira tem seu ponto de partida na criação, tem por instru- é obra gratuita de sua vontade, efeito de seu bel-prazer:
mento a luz naturat da razão e alcança a Deus não em placuísse. Pode-se dizer da revelação, como de toda a or-
sua vida íntima, mas em sua relação causal com ~ mundo. dem sobrenatural, que ela é essencialmente graça, puro fa-
A segunda tem por autor Deus que fala, autor da ordem vor, dom do amor ..
sobrenatural, que se dá a conhecer a si mesmo e os de- c) Iniciativa divina, a revelação não foi, contudo,
cretos da sua vontade. Dois conhecimentos distintos igual- feita sem motivo; ela convinha à sabedoria e à bondade
mente legítimos. ' de Deus: sapientiae et bonitati. Convinha à sabedoria de
A primeira parte do parágrafo declara a possibilidade Deus, Criador e Providente ( D. 1782 a 1784), a fim de que
de.º home~ chegar, pelas luzes naturais de sua razão, por as verdades religiosas de ordem natural "pudessem ser
meio das criaturas ( per ea quae facta sunt, conforme a lin- conhecidas de todos, sem dificuldade, com firme certeza,
guagem da Escritura), a uin conhecimento certo de Deus e sem mistura de erro" ( D. 1786). Convinha à sua sabe-
princípio e fim· de todas .as coisas. O Concílio reivindica' doria de autor da ordem sobrenatural, pois se Deus elevara
pois, o valor da: teologia natural contra dois erros qu~ o homem a essa ordem, devia dar-lhe a conhecer sua fina-
ameaçam as condições ·.da fé. Esses dois erros são os do lidade e seus meios. A revelação convinha igualmente à
ateísmo e do positivismo, segundo os quais não existe bondade de Deus. Já a iniciativa pela qual Deus sai de
nenhum meio para o homem conhecer a Deus· e o do tra- seu mistério, dirige-se ao homem, interpela-o, entra em
dici~nalismo estrito que não concede à razão s~não o poder comunicação pessoal de pensamento com ele, é um sinal de
passivo_ de conhecer a Deus e, por conseguinte, espera todo o sua benevolência infinita. Que essa comunicação não somente
conhecimento de Deus da revelação ou de um ensinamento torna mais fácil a marcha natural do homem em direção a
positivo recebido pela tradição. ele, mas ainda o associa aos segredos de sua vida divina,
A segunda parte opõe este conhecimento natural de "à participação dos bens divinos" (D. 17 86 ) : eis o que
Deus à "via s_obren~tural" da revelação: "entretanto aprou- é digno da caridade infinita.
ve à sabedoria e a bondade de Deus revelar ao gênero
1º "Eadem sancta mater Ecclesia tenet et docet, Deum, rerum .omnium
principium et finem, naturali humanae rationis lumine e rebus creatis
sibi .constet Deum e~se l~cutum ac eidem, quemadmodum sapientissime cognosd posse; 'invisibilia enim ipsius, a creatura mundi, per ea quae
doce~ Apostolus, rattonabile obsequium exhibeat. Quis enim ignorat facta sunt, intellecta, conspiciuntur' ( Rom 1,20) ; attamen placuisse ejus
vel_ 1g!1º!ªr~ pot~st. omnem Deo loquenti fidem esse habendam, riihilque sapientiae et bonitati, alia eaque supernaturali via seipsum ac aetema
rattoru 1ps1 magis consentaneum esse quam iis acquiescere firmiterque voluntatis suae decreta humano generi revelare, dicente Apostolo: Multi-
adha~rer~ quae a Deo, qui nec falli nec fallere potest, revelata esse fariam multisque modis olim Deus loquens patribus in Prophetis: novissime
const1terit?" (D. 1637). diebus istis locutus est nobis in Filio (Hebr. 1,1 )" (D. 1785).
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304 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 305

d) O objeto material da revelação é o próprio Deus vindade, começado pela graça, consumado pela glória, que
e os _decretos eternos de sua vontade livre. Os parágrafos ultrapassa a compreensão do espírito humano, e do qual
seguintes (D. 1786, 1795) indicam que esse objeto com- ' 1o d'1sse que o oIho nunca vm
o aposto . . . . " 13 . Do momen t o
preende tanto verdades acessíveis à razão, como também em que Deus assinala ao homem um fim sobrenatural, ele
mistérios que a ultrapassam. Por Deus, é necessário, pois·, deve, se quiser respeitar a natureza inteligente e livre deste,
entender sua existência, seus atributos, como também a fazê-lo conhecer esse fim e os meios que asseguram sua
vida íntima das três pessoas. E por decretos, tanto aqueles posse: ele deve revelar-lhes. É, pois, em última análise,
que dizem respeito à criação e ao governo natural do mundo, a intenção salvífica de Deus que explica a necessidade da
como os que dizem respeito à nossa elevação à ordem so- revelação das verdades de ordem sobrenatural.
brenatural: a encarnação, a redenção, a vocação dos eleitos. Com relação às verdades religiosas de ordem natural,
e) Todo o gênero. humano é beneficiário da revelação; a revelação não tem esse caráter de absoluta necessidade.
ela é tão universal como a própria salvação ..· O concílio, utilizando os mesmos termos de santo Tomás,
f) O texto da Escritura, diz Mons. Gasser 11 , vem a descreve em termos de necessidade moral; esta necessida-
confirmar essa doutrina do fato da revelação e marcar-lhe de não se prende nem ao objeto nem ao poder ativo da
o progresso de uma Aliança à outra. A citação, estreita- razão, mas à condição atual da humanidade; sem a revela-
mente ligada ao texto, deixa entender que a revelação é con- ção, as verdades religiosas de ordem natural não podem
cebida pelos Padres do concílio como palavra de Deus di- ser "conhecidas de todos, sem dificuldade, com firme cer-
rigida à humanidade. Deus loquens . .. locutus est: o que teza, sem mistura de erro" 14
faz a unidade e a continuidade das duas Alianças é unica- Ao mesmo tempo que determina o grau de necessida-
mente a palavra de Deus, sendo a do Filho a continuação de da revelação, o concílio é levado a distinguir, no objeto
e o término daquela cujos instrumentos foram os profetas. material, de uma parte, aquelas verdades que são conatu-
A revelação do Antigo Testamento foi sucessiva, fragmen- rais ao homem e, de outra, aquelas que "ultrapassam com-
tária, polimorfa; a do Novo é única, total e definitiva. De pletamente o alcance do espírito humano". Trata-se sem-
um lado, a multiplicidade de inspirados; de outro, somen- pre do mesmo objeto do parágrafo precedente, mas con-
te o Filho. siderado desta vez sob seus aspectos de proporção ou de
2. O segundo parágrafo acrescenta a estes elementos desproporção com a razão natural.
da definição novas determinações concernentes à necessida- 3. Um vocábulo tal como revelação evoca tanto a
de, à finalidade e ao objeto da revelação. ação como o termo objetivo desta ação, ou seja, o dom rece-
Se a revelação é absolutamente necessária, diz o Con-
cílio, é "porque Deus, em sua infinita bondade, ordenou 13 "Deus ordinavit hominem ad finem supernaturalem, scilicet ad
o homem a um fim sobrenatural, isto é, à participação dos illud mirandum consortium divinitatis inchoandum per gratiam, con-
bens divinos" 12 Uma emenda, reconhecida como tradu- summandum per gloriam, rationis comprehensionem excedens, et de quo
dicitur quod oculus non vidit. .. " (Mansi, 51:280).
zindo bem o pensamento dos Padres, embora não adota- 14 "Huic divinae revelationi trihuendum quidem est, ut ea, quae in
da, propunha inserir: "Deus ordenou o homem ao fim rehus divinis humanae rationi per se impervia non sunt, in praesenti
sobrenatural, quer dizer, a este admirável comércio da di- quoque generis humani conditione ah omnihus expedite, firma certitu-
dine et nullo admixto errore cognosci possint" (D. 1786). Em santo
Tomás Summa theol. la, q. 1, a. l; 2a 2ae, q. 2, a. 4, e.; Contra gentiles,
Mansi, 51:272.
11 L. I, e. 4. A encíclica Humani Generis falará explicitamente de "neces-
"Revelatio ahsolute necessaria dicenda est ... quia Deus ex infinita
12 sidade moral": "divina revelatio moraliter necessária dicenda est ut ea
honitate sua ordinavit hominem ad finem supernaturalem, ad participan- quae in rehus religionis et morum rationi per se impervia non sunt, in
da scilicet hona divina, quae humanae mentis intelligentiam omnino praesenti quoque humani generis conditione, ah omnibus, expedite, firma
superant'' (D.· 1786). certitudine et nullo admixto errore cognosci possint" (I). 2305).
306 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 307
bido ou a verdade revelada. Também o concílio que vem deve inclinar-se diante da Verdade incriada 18 • O primeiro
falar de ação reveladora, distinguindo, no objeto da re- cânon sobre a fé a.firma, contra os racionalistas, que a razão
velação, verdades conaturais e mistérios, foi levado, por não é autônoma e que Deus lhe pode impor a fé (D. 1810).
uma transição normal, a considerar a revelação sob seu O homem, enquanto criatura, deve aceitar esse meio de co-
aspecto objetivo da palavra dita ou expressa. nhecimento indireto, por mais mortificante que ele seja
O receptáculo ou as fontes desta revelação, diz ele, para sua tendência à emancipação completa 19 •
retomando as próprias palavras do concílio de Trento, são A continuação do parágrafo declara que o motivo da
os livros escritos e as tradições que, "tendo sido recebidas fé é a autoridade de Deus que fala; esse motivo distingue
pelos apóstolos da boca de Jesus Cristo em pessoa, ou ten- a fé da ciência 20 • A afirmação dirige-se contra os racionalis-
do sido transmitidas, por assim dizer, de mão em mão tas que entendem por fé religiosa tão-somente a ciência
pelos próprios apóstolos, aos quais o Espírito Santo as filosófica que se refere a Deus e à religião 21 • Contra os
ditou, chegaram até nós" (D. 1787). Mas falando mais semi-racionalistas também, como Hermes, que julgam que
precisamente que o concílio de Trento, o Vaticano em- "qualquer persuasão firme sobre Deus e sobre as coisas
prega· expressamente o termo revelação para designar o divinas já é a fé propriamente dita", mesmo se o assenti-
cop.teúdo da palavra divina: haec porra supernaturalis re- mento provém apenas da "evidência do nexo interno das
velatio. Essa palavra dita por Deus, contida na Escritu- idéias" 22 • Neste sentido, dever-se-ia chamar fé o conheci-
ra e na Tradição, é o objeto da nossa fé. É por isso que mento de Deus obtido pela consideração do universo. A
o concílio declara no capítulo terceiro que nós devemos fé, diz o concílio, adere às coisas reveladas, "não por causa
crer "tudo o que está contido na palavra de Deus escrita de sua verdade intrínseca, percebida à luz natural da razão,
ou transmitida" 15 • mas por causa da autoridade do próprio D~us que não se
4. Mon·s. Martin relaciona o capítulo terceiro, sobre pode enganar nem enganar" 23 • Tal é o motivo formal da fé.
a fé, com o capítulo precedente, que trata da revelação, fa-
zendo observar que "à revelação da parte de Deus corres- quod Deus sit supremus auctor, quod Deus sit creator noster, quod Deus
ponde a fé da parte do homem" 16 • O capítulo informa-nos sit Dominus noster, a quo toti cum omnibus viribus nostris dependemus.
Haec est intentío prima partis huius primae paragraphi" (Mansi, 51:
particularmente sobre ó elemento específico da palavra re- 313, 316).
velação. · 18 O texto primitivo dizia: increatae rationi. Uma emenda propunha

O primeiro parágrafo lembra inicialmente o fundamento dizer: "increatae ratióni quae est ipsa Veritas". Foi aprovado e está no
texto definitivo: increatae Veritati (Mansi, 51: 315). ; ·
da nossa obrigação de crer em Deus que revela. O funda- 19 Mons. Martin observa que o cânon dirige-se contra os que susten-
mento geral, é que o "homem depende inteiramente de tam a seguinte opinião: "rationem · humanam esse, ut ita clicam, autonomam,
sibique plane suffícíeritem" (Mansi, 51: 329). .
Deus como de seu Criador e Senhor"; o fundamento espe- 20 "Ut ·omnes scimus, diz Mons. Martin, propria ratio fidei posita
cial, é que a razão humana, sendo criada, encontra-se "com- est in motivo seu in objecto suo formali, nempe in auctoritate Dei loquen-
pletamente submetida à Verdade incriada" (D. 17 89 ) . A tis_, quo. quidem motivo fídes scíentía naturali essentialiter distinguitur"
(Mansi, 51: 313 ). .
criação é razão pela qual o homem deve a Deus a homena- 21 "Rationalistae. . . nomine fídei generatim non aliud intelligunt
gem de sua inteligência e de sua vontade 17 ; a razão criada quatn rationalem scientiam rerum ad Deum et ad religionem pertinentium"
(Mansi, 50: 85). .
15 "Fide divina et catholica ea omnia oredenda sunt, quae in verbo 22 "Semi-rationalistae. . . docent enim omnem firmam persuasionem
Dei scripto vel tradito continentur et ad Ecclesia sive solemni judicio de Deo et rebus divinis esse fídem illam proprie dictam, a qua fideles
sive ordinario universali magisterio tanquam divinitus revelata credenda denominantur, etíamsi motivum amplectendi et tenendi veritatem non sít
proponuntur" (D. 1792). auctorítas Dei, sed veritas teneatur et solu=odo propter perspectum
16 Manisi, 51: 313. intrinsecum nexum idearum" (Mansi, 50: 85). ·
17 Mons. Martin explica: "Haec autem radíx, haec fundamentalis 23 "Hanc vero fídem ... virtutem esse supematuralem qua ... ad eo
ratío obrigationis humanae Deo fídem praestandi aperte posita est in eo (Deo) revelata vera esse credimus, non propter intrinsecam rerum veritatem
308 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 309

A autoridade de Deus in dicendo procede de sua infi- A fé é adesão religiosa à palavra de Deus sob a ação
nita sabedoria e veracidade, excluindo todo erro e toda men· conjugada . da palavra exterior e da moção interior do Es-
tira. O Deus onisciente não pode enganar-se nem ser en- pírito. Ao mesmo tempo que a pregação de Cristo, dos
ganado; o Deus veracíssimo não pode enganar-nos. Ele tem apóstolos ou da Igreja ressoa por fora, proclamando o Evan-
a autoridade de testemunha infinitamente qualificada, cuja gelho e convidando à fé, o Espírito age por dentro fecun-
palavra merece assentimento total e definitivo. Opondo dando essa ação. É Deus mesmo que, por primeiro, atrai
assim fé e ciência, evidência natural e assentimento de fé, o homem a si; e nesta ação interior de sua graça, já se de-
o concílio diz equivalentemente ( pois a palavra não ·apa• lineia a reação que é a resposta da fé. O sim da fé à pre-
rece) que a palavra de Deus se inclui na espécie testemunho. gação do Evangelho é ao mesmo tempo livre abandono à
Uma palavra que exige uma reação de fé, isto é, que pode moção do Espírito 26 •
ser admitida unicamente por causa da autoridade de quem 5. O capítulo quarto, consagrado ao problema das
fala, como única garantia de verdade, é propriamente um
testemunho. relações entre a fé e razão, contém um ensinamento pre-
O concílio, retomando em seguida os elementos es- ciso sobre o objeto da revelação, principalmente sobre seu
senciais da descrição do ato de fé, dada pelo concílio de objeto privilegiado, os mistérios.
Trento, afirma que a fé é uma virtude sobrenatural pela qual, O parágrafo primeiro distingue duas ordens de conhe-
sob a ação de uma graça preveniente e adjuvante, nós cre- cimentos: um, natural; outro, sobrenatural; um, tendo por
mos ser verdade aquilo que Deus revelou, por causa pre- princípio a razão natural; o outro, a fé divina. O conheci-
cisamente da autoridade de Deus que revela. O concílio mento natural tem por objeto verdades acessíveis à razão.
de Trento referia-se mais ao ato de fé que à virtude da O conhecimento sobrenatural da fé possui um duplo objeto:
ré e mencionava, como objeto da fé, as promessas feita~ primeiro "verdades que a razão natural pode alcançar" (D.
por Deus; é que ele falava da fé que justifica; de uma fé, 1795). Afirmação conforme ao que já foi dito nos capítu-
conseqüentemente, que devia suscitar a confiança pela con- los precedentes: o capítulo primeiro enumera, com efeito,
sideração das promessas divinas 24 • os atributos de Deus que encontramos em nossa teodicéia
A fé, em si mes_ma, é um dom de Deus. Argumentos (D. 1782 ) ; o capítulo segundo fala daqueles pontos que, "nas
de ordem racional podem preparar e sustentar a adesão; a coisas divinas, não são inacessíveis à razão" (D. 1786); o
causa verdadeira desta adesão, porém, devemos procurá-la capítulo terceiro indica como objeto de nossa fé "tudo aqui-
na ação sobrenatural de Deus. Não é suficiente que ressoe
nos ouvidos o ensinamento do Evangelho; é necessário ain- ad salutem consequendam, absque illuminatione et inspiratione Spiritus
da uma ação interior da graça que ilumine a inteligência e Sancti, qui dat omnibus suavitatem in consentiendo et credencio veritati"
(D. 1791).
incline as forças da vontade. Retomando o texto do con- 26 Santo Tomás retorna diversas vezes a esta idéia; por exemplo:
cílio de Orange (D. 180), o concílio diz: "Ninguém pode "non solum revelatio exterior, vel objectum, virtutem attrahendi habet,
aderir ao ensinamento do Evangelho/ como é necessário sed etiam interior instinctus impellens et movens ad credendum; ideo
trahit multos ad Filium ( Pater) per instinctum divinae operationis mo-
para alcançar a salvação, sem uma iluminação e uma inspi- ventis interius cor hominis ad credendum" (In Joan., c. 6, lect. 5). E
ração do Espírito Santo que dá a todos a suavidade da também: "Adjuvatur autem a Deo aliquis ad credendum tripliciter.
Primo quidem per interiorem vocationem, de qua dicitur Joan. 6, 45:
adesão e da crença na verdade" 25 • omnis qui audivit a Patre, et didicit, venit ad me; et ad Rom. 8,30:
quos praedestinavit, hos et vocavit. Secundo per doctrinam et praedi-
naturali rationis lumine perspectam, sed propter auctoritatem ipsius Dei cationem exteriorem, secundum illud Apostoli ad Rom. 10,17: fides ex
revelantis, qui nec falli nec fallere potest" ( D. 1789). auditu, auditus autem per verbum Christi. Tertio per exteriora mira-
24 J.-M.-A. VACANT, Études théologiques, 2:26. cula ... " ( Quodl. 2, q. 4, a. 6). Cfr. também Summa theol, 2a 2ae, q.
25 "Nemo. . . evangelicae praedicationi consentire potest, sicut oportet 2, a. 9, ad 3.
31 Ü NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 311
lo que está contido na palavra de Deus escrita ou transmi- Jesus Cristo ( D. 798). A revelação é essencialmente sal-
tida" e que a Igreja propõe por declaração solene ou por vífica iz_
seu magistério ordinário e universal como divinamente re- 6. O quarto capítulo termina com um parágrafo que
velado (D. 1792). O presente capítulo, enfim, indica como explica a verdadeira noção de desenvolvimento dogmático.
objeto próprio da revelação sobrenatural "os mistérios es- "A doutrina de fé que Deus revelou não foi proposta como
condidos de Deus que não podem ser conhecidos senão uma descoberta filosófica para ser aperfeiçoada pela inte-
pela revelação divina" 27 , isto é, os mistérios propriamente ligência humana, mas foi entregue à Esposa de Cristo como
ditos (D. 1816 ) . Esses mistérios são verdades das quais um depósito divino para ser fielmente guardada e infali-
só Deus possui um conhecimento natural. Os textos da velmente declarada" 29 • E na constituição dogmática sobre
Escritura citados ilustram-no bem: trata-se "da sabedoria a Igreja, lemos: "O Espírito Santo foi prometido aos su-
de Deus, misteriosa e oculta" ( 1Cor 2 ,7 ss ) , dos segredos cessores de Pedro . . . para que eles conservem santamente
de Deus que só o Espírito que perscruta as profundezes de e exponham fielmente a revelação transmitida pelos apósto-
Deus pode revelar-nos (lCor 2,10). los, ou o depósito da fé" 30 • Estas duas passagens se escla 0

Uma carta de Pio IX, em 1862, ao bispo de Munique, recem mutuamente e mostram evidentemente que a dou-
sobre o mesmo assunto, falava do "mistério escondido aos trina revelada, a revelação e o depósito da fé, são uma só
séculos e às gerações passadas" ( Col 1,26) e invocava o e mesma realidade. A Igreja deve guardar fielmente ( como
texto do prólogo de são João: "A Deus ninguém jamais um depósito) e declarar infalivelmente a doutrina revelada.
o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no E no segundo texto: ela deve conservar santamente ( como
seio do Pai" (Jo 1, 18; D. 16 72). Os mistérios "ultrapas- um depósito) e expor fielmente ( como uma doutrina) a re-
sam o entendimento criado" e, conseqüentemente, "a pró- velação transmitida. Sem dúvida, a revelação é entendida
pria inteligência natural dos anjos" (D. 1796, 1673). Em aqui no sentido objetivo de doutrina. O conteúdo da pa-
concreto, quais são esses mistérios? A carta de Pio IX ao lavra divina é uma doutrina religiosa, um conjunto de pro-
bispo de Munique assinala sobretudo os que se referem à posições que enunciam o mistério de nossa salvação e o
elevação sobrenatural do homem e às suas relações com designam.
Deus (D. 16 71 ) , e de modo especial a encarnação (D. A Igreja nada acrescenta a esse depósito da fé rece-
1669). Em outros termos: pode-se dizer também que o bido dos apóstolos. O que se pode aperfeiçoar é a com-
mistério principal que Deus quis manifestar-nos é o seu preensão do depósito, a assimilação, pelos fiéis, da doutrina
desejo salvífico, a saber, o mistério de nossa participação revelada, o sentido como tal permanecendo sempre o
na vida divina dada por Cristo ( "ordinavit hominem ad . .. mesmo, sem mudança de interpretação (D. 1800). Mas
participanda bana divina", D. 1786). O concílio de Trento para que a doutrina de Cristo seja sempre ensinada sem
afirma por sua vez que, na fé, nós cremos na verdade da-
quilo que Deus revelou e prometeu, primeiramente que o 28 Cfr. "Haec est autem vita aeterna: ut cognoscant te, solum Deum
verum et quem misisti Jesum Christum" (Jo. 17,3). Insiste santo Tomás
ímpio é justificado pela graça de Deus, pela redenção em nesta finalidade salvífica da revelação: "a cujus. . . ( divinae) veritatis cogni-
tione dependet tota hominis salus, quae in Deo est" (Summa theol. la,
27 "Hoc quoque perpetuus Ecclesiae catholicae consensus tenuit et
q. 1, a. 1, c.).
· 29 "Neque enim fidei doctrina, quam Deus revelavit, velut philosophicum
te~et, duplicem esse ordinem cognitionis non solum principio, sed objecto inventum proposita est humanis ingeniis perficienda, sed tanquam divinum
etlam distinctum: principio quidem, quia in altero naturali ratione, in depositum Christi Sponsae tradita, fideliter custodienda et infallibiliter
altero fide divina cognoscimus; objecto autem, quia praeter ea ad quae declaranda" (D. 1800).
naturalis ratio pertingere potest, credenda nobis proponuntur mysteria in 30 "Petri successoribus Spiritus Sanctus promissus est. . . ut, eo
Deo abscondita, quae, nisi revelata divinitus, innotescere non possunt" assistente, traditam per Apostolos revelationem seu fidei depositum sancte
(D. 1795). i custodirent et fideliter exponerent" ( D. 1836).
312 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
T O I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 313

acréscimo nem cor,:upção é necessário que a Igreja não so- tuem a revelação no sentido objetivo, ou a doutrina reve-
mente a conserve, mas também denuncie os erros que a lada confiada à Igreja por Cristo como um depósito para
. ameaçam. Ela tem, pois, o direito de proscrever as opi- guardar, declarar e proteger contra o erro. Esta
niões opostas à doutrina revelada (D. 1817 ) . doutrina é oferecida à nossa fé pela pregação. Mas para
Concluindo: podemos reter do primeiro Concílio do aceitá-la é necessário um impulso da graça ou do Espírito
Vaticano os seguintes dados: O concílio encara a revelação, Santo, que acompanhe o ensinamento da mensagem di-
quer no sentido ativo, quer no sentido objetivo, como uma vina e dê ao homem o poder de se abandonar à moção
palavra dirigida ou como palavra proferida. Mas, ma- interior de Deus. A doutrina revelada é· imutável e não
nifestamente, é a revelação, no sentido objetivo que pren- pode frutificar senão por umâ incessante assimilação.
de sua atenção.
A ação reveladora é ação soberanamente gratuita do
Deus de salvação, que, em sua sabedoria e bondade, se dá
a conhecer ao gênero humano: a si mesmo e os decretos
de sua vontade. Esta ação divina é concebida como pa-
lavra de Deus à humanidade, distinguindo-se de sua mani-
festação como causa e fim das criaturas; uma palavra de
autoridade, qualificada pela ciência e pela veracidade do
Deus infinitamente sábio e infinitamente santo. Esta ação
é pessoal; de sujeito a: sujeito, e não de objeto a objeto;
é histórica, .progressiva:, culminando com a revelação do
Filho; é salvífica, universal, desejando associar a humani-
dade toda aos bens da vida divina.
A fé, dom de Deus, que é resposta à sua palavra, não
é o assentimento do filósofo ou do sábio ante a evidência
da verdade, mas a resposta a um testemunho. A fé, por
certo, é homenagem a Deus, à sua Pessoa, mas esse Deus
manifestando-se como Deus que fala (Deus loquens), a
homenagem que lhe convém é a fé no que ele disse. Por-
tanto: a fé dirige-se à pessoa, mas imediatamente àquilo que
ela disse; e o motivo que motiva essa adesão é a au-
toridade do próprio Deus.
O objeto material da revelação pode ser encarado em
si mesmo: Deus e seus decretos. Ou segundo a propor-
ção desse objeto com o· poder de nossa razão: distinguem-
-se, então, verdades acessíveis à razão natural e mistérios
que ultrapassam a capacidade de nosso espírito. Esses mis-
térios dizem respeito à vida íntima de Deus e à nossa par-
ticipação nessa vida pela encarnação e redenção.
As verdades reveladas ou ditas por Deus acham-se
contidas nos Livros santos e nas tradições. Elas consti-
A CRISE MODERNISTA 315
3. 1. Em reação contra Kant, Schleiermacher restabe-
A CRISE MODERNISTA leceu, na religião, o valor do sentimento e da experiência
religiosa. Para Kant, o exercício da razão pura nos inter-
dita qualquer conhecimento de uma realidade supra-sensí-
vel, de um absoluto situado fora do círculo dos fenômenos:
"Eu não saberia. . . admitir Deus, a liberdade e a imor-
talidade como uma necessidade que deles tem minha razão
no seu uso prático necessário, sem repudiar ao mesmo tem-
po as pretenções da razão pura a contemplações transcen-
Diante da amplitude do fenômeno e de suas manifes- dentes, pois, para atender a essas contemplações, é-lhe ne-
tações, Pio X pôde denunciar o modernismo como "o ponto cessário servir-se de princípios que não se estendem, na
de encontro de todas as heresias" ( D. 2105). Sua nota ca- realidade, senão a objetos da experiência possível e que,
raterística, contudo; escreve J. Riviere, "-é a de atacar, para se a gente os aplica a uma coisa que não pode ser objeto duma
dissolver num puro subjetivismo, essas noções de revela- experiência, a transformam realmente e sempre em fenô-
ção, de fé, de dogma, que são os fundamentos do cristia- menos, e declaram assim impossível toda a extensão prá-
nismo tradicional" 1 • O modernismo, de fato, é o recrudes- tica da razão pura. Eu suprimi, por isso, o saber, para
cimento do problema, já enfrentado pelo concílio Vaticano, lhe substituir a fé". 2 • Mas a fé que interessa a Kant é
da harmonização dos dados da revelação com as aquisições muito diferente da fé de Lutero. É a Vernunftglaube, sim-
da filosofia e da ciência. Um tal problema incluía, na verda- ples fé racional, exercício da razão prática. Uma vez expur-
de, fatores demais para ser resolvido de uma só vez. Fatal- gada de todos os elementos estranhos à sua natureza -
mente, novos abalos deviam produzir-se, sinais de novas in- ritos e crenças - a religião se reduz ao querer moral, fun-
quietações. dado ele próprio sobre o imperativo categórico, o tu debes,
Principalmente no tocante à revelação os teólogos mo- impondo-se de maneira universal e absoluta. Uma revelação
dernistas, ·sob pretexto de retificar uma pseudonoção de transcendente, fornecendo um suplemento de conhecimen-
revelação, concebida à maneira de um monólito caído do to à humanidade, não tem evidentemente lugar no universo
céu e sem relação com a consciência humana, chegaram pra- kantiano agnóstico. Se o conceito, em si, não é contradi-
ticamente a negar a sua transcendência para fazer dela uma tório, pelo menos não temos meio algum de verificar sua
realidade puramente imanente e humana. Alguns, como objetividade. Uma religião que se diz histórica. e revelada
Tyrrel, sem cair num subjetivismo tão radical, comprome- deve, pois, ser julgada em função da moral e da razão pura
teram gravemente a noção de revelação objetiva e de de- que são as únicas coisas universais. "A fé histórica ...
senvolvimento dogmático.
2 "Je ne saurais. . . admettre Dieu, la liberté et l'immortalité selon le
1. Ascendência liberal do modernismo besoin qu'en a ma raison dans son usage pratique nécessaire, sans
repousser en même temps les prétensions de la raison pure à des vues
transcendentes, car, pour atteindre à ces vues, il lui faut se servir de
O modernismo, por intermédio de Schleiermacher, de príncipes qui ne s'étendent en réalité qu'à d.!s objets de l'expérience
Ritschl e de Sabatier, é tributário do protestantismo liberal. possible et qui, si on les applique à une chose qui ne peut être objet
d'une expérience, la transforment réellement et toujours en phénomene.,
et déclarent ainsi impossible toute extension pratique de la raison pure.
1 J. RrvrERE, Le Modernisme dans l'Eglise (Paris, 1929), p. 11; R. J'ai clone supprimé le savoir pour lui substituer la foi": E. KANT, Critique
MARLÉ, Au. coeur de la crise moderniste (Paris, 1960), p. 349; E. PouLAT, de la raison pure ( trad. J. BARNI, revue et corrigée par A. Archambault),
Histoire, dogme et critique dans la crise moderniste (Paris, 1962). prefácio da segunda edição, I: 28).
r

316 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 317

não tem senão um valor particular. . . Ela pode ser su- panha uma tomada de consciência mais viva, mais profunda
. ficiente à crença da Igreja, mas somente a pura fé religiosa, de nossa redenção em Cristo. Teologia antropocêntrica, in-
fundada inteiramente na razão, pode ser reconhecida como fetada de subjetivismo 5 •
necessária" 3 • Jesus Cristo mesmo não é outra coisa que 3. Hegel, colega e rival de Schleiermacher em Ber-
um belo exemplo de obediência ao imperativo categórico. lim, de 1818 a 1831, não poupou seu desprezo por esta
Kant nega sua divindade real e transforma em filosofia religião baseada no sentimento, e pretendeu reintroduzir na
moral os dados e expressões bíblicas do Evangelho. r~ligião o demento especulativo e teórico ( opondo-se as-
2. Schleiermacher (1768-1834), pietista e romântico, sim tanto ao moralismo de Kant como ao sentimentalismo
reagindo pois contra as ásperas negações de Kant, apli- de Schleiermacher). A luta foi viva entre os partidários dos
cou-se a revalorizar a oração e o sentimento. Na sua época dois chefes. Contudo, sob a influência de A. Ritschl foi a
nas igrejas da Alemanha, duas correntes se defrontavam; corrente iniciada por Schleiermacher que acabou triunfando.
o racionalismo, procurando reconduzir a religião aos limi- Ritschl ( 1822-1889), como Schleiermacher, reivindi-
tes da razão, e o supranaturalismo, esforçando-se por man- ca a autonomia da consciência religiosa e protesta contra
ter a transcendência do cristianismo como religião revelada. ª. interferência da filosofia em matéria de religião; ele par-
tilha seu agnosticismo metafísico, sua concepção antropo-
O pai da moderna teologia protestante conseguiu encon-
trar. entre essas duas correntes, uma espécie de caminho ~êntrica, e, como ele, reduz a teologia à cristologia; só lhe
médio. Sua teologia não se apóia nem sobre a doutrina ex au- interessam os juízos de valor (Werturteile), em oposição
difu nem sobre a verdade ex intellectu; teólogo do coração, aos juízos teóricos ( os Seinsurteile, que têm por objeto a
alicerça sua religião sóbre o sentimento de dependência, mais existência e a natureza das coisas). Ritschl, porém, se apre-
ou menos puro, mais ou menos profundo, conforme a di- senta como reacionário em oposição a Schleiermacher. Julga
que ele se desviou gravemente ao basear a religião unica-
versidade das religiões. A revelação, conseqüentemente
mente sobre a consciência subjetiva da comunidade e não
não é um privilégio do cristianismo, mas um bem comum
sobre a revelação cristã positiva. Por isso ele apóia-se sobre
a todas as religiões. Ela não é senão "o fruto espontâneo
o Evangelho, sobre o fato histórico, como vem exposto na
e. subjetivo do conceito de Deus que brota do sentimento
Bíblia. Como, porém, é possível, numa concepção
de 1ependência ou sentimento religioso" 4 • Em Cristo esse
kantiana do universo, que aceita como axioma fun-
se~tlmento de dependência se traduz pela consciência de sua
umdade com Deus, pela certeza sentimental de sua missão damental_ a oposição entre o númeno e o fenômeno, dar
de mediador entre os homens, seus irmãos, e Deus o Pai. um sentido às afirmações da Bíblia sobre Deus, a reve-
C! que importa não é que Cristo seja Deus, mas a consciên- lação e a salvação pelo Verbo encarnado? "Por simples
cia que ele tem disso. A própria fé é uma certeza que acom- convenção se denominará Deus, revelação, salvação, a ex-
periência religiosa imanente do homem. Cristo re
_3 "~a foi historique ... n'a qu'un valeur particuliere... Elle peut velará Deus, salvará o homem, simplesmente nesse sentido
suf~~re a la croyance ~'Église, ma~s seule la pure foi religieuse, fondée que ele exprimirá e nos permitirá exprimir, pela imagem
ent1erement s1;1r_ la ra1son, p~ut etre reconnue comme nécessaire" (E. sua que os Evangelhos imortalizaram, a mais alta consciên-
KAr:iT, La Relzgwn dans les mzlztes de la simples raison [ trad. J. Gibelin,
Paris; 1943], pp. 152-153). E também: "La pure foi morale ... seule cia que a humanidade tem de si mesma" 6 • Conservar-se-á
const1tu_e en to~te foi d'Église ce que celle-ci contient de religion propre-
me_nt dite" (lb1d., p. 159). "La pure foi religieuse est assurément celle 5 D. C. MACINTOSH, The Problem of religious Knowledge (New York,.
q~1 se~le peut fo1;1der une Église universelle, parce que e' est une simple 1940), pp. 236-242.
fo1 .rat1onnelle qm peut se communiquer a chacun pour le convaincre" , . 6 "On ~01;1viendra simplement d'appeler Dieu, tévélation, salut, l'ex-
( Ib1d., p. 138). perzence relzgzeuse toute immanente de l'homme. Le Christ révélera
4 L. CRrSTIANI, art. "Schleiermacher", no DTC, 14: col. 1500. Dieu, sauvera l'homme, simplement en ce sens qu'il exprimera et naus
318 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 319

pois o termo revelação, mas vazio de seu conteúdo tradi- ou, antes, o sentimento de sua presença em nós. A reve-
cional. O Evangelho não é mais que uma coleção de ex- lação está na oração e progride com a oração. Mais precisa-
periências religiosas, com a única finalidade de provocar as mente, diz Sabatier, "ela consiste na criação, purificação e
nossas próprias experiências. clareza progressiva da consciência de Deus no homem indi-
Ritschl e Schleiermacher acostumaram o pensamento vidual e na humanidade" 10 • Portanto, ela existe para quem
protestante a preferir . a experiência religiosa à .adesão às quer que se submeta à ação divina, e ela não se pode con-
verdades dogmáticas. Assim se dissolveu a noção de reve- ceber senão sob uma forma pessoal e imediata. O fato
lação objetiva, de doutrina efetivamente recebida de Deus. da revelação não precisa de prova, pois coincide com o fato
A religião, em vez de ser o resultado de uma iniciativa de da consciência religiosa que existe em todos os homens e
Deus, é simplesmente uma elaboração imanente que se desen- em todas as religiões, se bem que de maneira mais viva nos
rola no íntimo das consciências. Exalta-se a fé, mas ela não é profetas e em Cristo. A essência do cristianismo encontra-
mais que uma disposição afetiva da alma, sem nenhuma -se "numa experiência religiosa, numa revelação íntima de
crença determinada. Uma é a religião que vive no coração Deus que se deu pela primeira vez na alma de Jesus de
do fiel, outra a que procede <los dogmas e das fórmulas. Nazaré, mas que ·se verifica e se repete, menos luminosa-
mente sem dúvida, más não irreconhecível, na alma de todos
4. Na França, a difusão do liberalismo protestante os seus verdadeiros discípulos" 11 • A piedade filial para
foi obra de A. Sabatier no seu Esquisse d'une philosophie com o Pai e o sentimento fraternal para com os homens,
de la religion d' apres la psychologie e l' histoire 1 • Sabatier que nós observamos na consciência de Jesus, encontramo-
estabeleceu uma estreita relação entre religião, oração e re- -los igualmente na experiência de todos os cristãos.
velação. A religião é essencialmente a oração do coração, A emoção religiosa, que é a base da experiência re-
um movimento da alma que a põe em relação "com o po- veladora, traduz-se primeiro sob a forma de imagens, depois
der misterioso do qual ela sente a dependência sua e de sob a forma de conceitos e juízos que a Igreja, se quiser,
seu destino" 8 • Mas · que seria a piedade se ela não com- poderá aprovar e receber como dogmas. O único elemento,
portasse algumas manifestações positivas de Deus? A re- contudo, autêntico e permanente, reside na experiência re-
velação é a resposta de Deus à oração, "mas contanto que ligiosa ( por exemplo, da justiça, da paternidade divina, do
se acrescente que esta resposta está sempre, ao menos em reino de Deus), enquanto que as expressões dogmáticas,
germe, contida na própria oração" 9, pois Deus, a quem se são puramente simbólicas e submetidas à lei da evolução:
dirige a oração é também aquele que a inspira. variam, conseqüentemente, com as épocas, as filosofias,
A revelação não é, pois, comunicação, feita uma vez as culturas, o progresso do espírito. Assim alguns dogmas ·
por todas, de doutrinas imutáveis, mas é o próprio Deus poderão morrer ( existência de demônios, eternidade das
penas), mudar de sentido ( Trindade, milagre, revelação,
permettra d'exprimer, par l'image que les Évangiles ont immortalisée de satisfação, inspiração), reviver após um período de esque-
lui, la plus haute conscience que l'humanité prenne d'elle même" (L. · cimento, ou mesmo aparecer ( justificação pela fé, sacerdó-
BouYER. Du Protestantisme à l'Eglise, p. 239). Sobre R1TSCHL, cfr. D. C. cio universal) 12 •
MAEINTOSH, The Problem of religious Knowledge, pp. 243-250; art.
"Réforme", no DAFC, 4: col. 677-680. Entende-se desde logo que Sabatier se oponha com
7 Publicado em Paris em 1897. SABATIER expõe suas idéias sobre a
violência à noção de uma revelação, depósito revelado, pro-
religião e a revelação nos dois primeiros capítulos do livro primeiro:
"De l'origine psycologique et de la nature de la religion" (pp. 3-31) e
"Religion et révélation" ( pp. 32-61). 10 Ibid., p. 35.
8 A. SABATIER, Esquisse d'une philosophie de la religion, p. 24. 11 lbid., pp. 187-188.
9 Ibid., p. 32. 12 lbid., pp. 305-312, 390-400.
1
'

320 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 321


duto híbrido nascido, segundo ele, do encontro do raciona As experiências religiosas dos homens de Deus expri-
lismo grego e do sobrenaturalismo hebráico. mem-se naturalmente pela palavra e pela Escritura, e des-
Em vão parecem deduzir da Sagrada Escritura .essa tinam-se, depois de haverem iluminado sua própria cons-
teoria escolástica; ela não é mais que uma tradução ciência, a aclarar e vivificar outras almas. Mas como po-
infiel da noção bíblica. Arrancam ao solo da vida deriam as almas reconhecer, nos livros ou na palavra, uma
religiosa a revelação de Deus para a constituir em revelação autêntica?
um corpo de verdades sobrenaturais subsistente por Escutai, um só critério é infalível e suficiente: toda a
si mesmo, e apresentam como obrigação e mérito . a revelação divina, toda a experiência religiosa verda-
adesão a esse conjunto, fazendo calar, se preciso, deiramente boa para alimentar e sustentar vossa alma,
julgamento e consciência. . . No fundo, essa idéia 1ª deve poder repetir-se e continuar como revelação atual
revelação é totalmente pagã. . . Concluamos, pois, e experiência individual em vossa própria consciên-
corajosamente, contra todas as ortodoxias tradicionais, cia. . . Não creias, meu irmão, que os profetas e os
que o objeto da revelação de Deus não pode ser outro iniciadores tenham transmitido suas experiência para
senão Deus mesmo, isto é, o sentimento da sua pre- dispensar-te de fazer as tuas, ou que sua revelação te
sença em nós, que desperta nossa alma para a vida seja trazida para que tu não tenhas nada mais a fazer
da justiça e do amor 13 • que recebê-la passivamente, como uma quantia de di-
nheiro; se acontecer de a receberes assim, não te terás
Já que a revelação não é mais que a manifestação de
tornado mais rico. As revelações do passado não se
Deus na oração, serão estes seus traços característicos:
demonstram eficazes e reais a não ser que elas te tor-
Ela será interior, porque Deus, não tendo existência nem capazes de receber a revelação ·pessoal que Deus
fenomenal, não se pode revelar, senão ao espírito .e te reserva. . . A revelação divina que nãO se realiza
na piedade que êle mesmo inspira. . . Em segundo em nós e nem se torna imediata, não existe para.
lugar, esta revelação interior será sempre evidente; o nós" 15 • ·
contrário implicaria contradição. Quem diz revelação,
diz véu afastado e luz projetada. . . Enfim, essa re- inspire. . . En second lieu, cette révélation intérieure sera toujours evi-
velação será progressiva. O que quer dizer que dente. Le contraire itnpliquerait contradiction. Qui dit révélation, dit
voile tiré et lumiere venue. . . Enfin, cette révélation sera progressive.
ela se desenvolverá com o progresso da vida moral C'est dire qu'elle se développera avec le progres de la vie morale et
e religiosa que Deus fez nascer e crescer no seio da religieu~e que Dieu a fait naítre et croitre au sein de l'humanité" ( lbid.,
52-54).
humanidade 14 . 15 "Écoutez, un seul critere est infaillible et suffisant: toute · révé-
lation divine, toute expérience religieuse vraiment bonne pour nourrir
13 "En vain parait-on déduire de l'lkriture sainte cette théorie scolas- et sustenter votre âme, doit pouvoir se répéter et se continuer comme
tique; elle n'est qu'une traduction infidêle de la notion biblique. On révélation actuelle et expérience individuelle dans votre propre conscien-
arrache au sol de la vie religieuse la révelation de Dieu pour la cons- ce. . . Ne crois pas, ô mon frere, que les t,rophetes et les initiateurs
tituer en un corps de vérités surnaturelles subsitant par lui-même, et t'aient transmis leurs expériences pour te dispenser de faire les tiennes,
auquel on se fait une obligation et U_!l mérite d'adhérer, en flli:sant taire, ou que leur révélation te soit apportée pour que tu n'aies à la recevoir
s'il le faut, son jugement et sa consctence. . . Au fo?d, cette 1dée de la que passivement et comme une somme d'argent, ou bien, s'il t'arrive que
révélation est toute pal:enne. . . Concluons clone hardtment, contre toutes tu l'empn,entes ainsi, tu n'en seras pas plus riche. Les révélations du
orthodoxies traditionnelles, que l'objet de la révélation de Dieu ne saurait passé ne se démontrent efficaces et réelles que si elles te rendent capables
être que Dieu lui-même, c'est-à-dire le sentiment de sa présence ~ de recevoir la révélation personelle que Dieu te réserve. . . La révélation
nous, éveillant notre âme à la vie de la justice et de l'amour" (lb1d. divine qui ne se réalise pas en nous et n'y devient pas immédiate, n'existe
pp. 43-44). , . point pour nous" (lbid., 58-59). Quisemos transcrever esses textos por-
14 "Elle sera intérieure, parce que Dieu, n'ayant pas d ex!stence que mostram até que ponto Loisy e Tyrrell dependem de Sabatier na
phénoménale, ne peut se révéler qu'à l'esprit et dans la piété que lw-même doutrina e até mesmo no modo de falar. Monstram-se bem pouco origi-

11 - Teologia da revelação
322 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 323

O Esquisse de Sabatier foi completado pelo tratado Harnack, produziu na época o efeito de um raio e tornou-
mais positivo: Les Religions de l'autorité et la religion de -se logo, nos meios católicos, um sinal de contradição. Numa
l'Esprit, de 1904 onde ele se esforça por apoiar sobre o Novo visão retrospectiva de sua obra, Loisy declara ter procura-
Testamento e na história da Igreja primitiva esta concepção do, nem mais nem menos, "uma reforma essencial da exe-
de um cristianismo totalmente interior, sem. dogmas nem gese bíblica, de toda a teologia e até mesmo do catolicismo
ritos, nem chefes, erguido contra todas as formas de ortodo- em geral" 17 • É certo que o Autor d'un petit livre, publi-
xia ( católica ou protestante). Essas duas obras represen- cado em 1903, acabou de dissipar qualquer ambiguidade
tam perfeitamente o tipo de subjetivismo religioso que ca- sobre sua atitude e suas posições doutrinais.
racteriza a téologia protestante moderna. Nesta obra, onde o relativismo é um dos dogmas mais
importantes, a noção de revelação é diretamente posta em
causa. Loisy parte de uma noção de verdade, bastante vaga
2. Os pródromos da crise e inquietante: "parece-me evidente, pela experiência co-
No trato cotidiano e praticamente indispensável com num, disse ele, que a verdade é em nós alguma coisa
necessariamente condicionada, relativa, sempre perfectível,
as obras e os instrumentos de trabalho dos protestantes,
e susceptível também de diminuição. . . a verdade, enquan-
um perigo de contágio, para os católicos, não tinha nada
to bem do homem, não é mais imutável que o próprio
de quimérico 16 • De fato, a ciência católica dos. primórdios
homem. Ela evolui com ele, nele e por ele; e isso não a
do século XX, ao lado de trabalhadores inteiramente fiéis
impede de ser a verdade para ele; aliás, é somente assim
à sua fé ( tais como Duchesne, Battifol, Jacquier, Lagrange,
que ela o pode ser" 18 • Denuncia eni seguida o que ele pensa
Tixeront) conta com espíritos que resistiram mal à febre mo-
ser o conceito católico de revelação:
dernista e nos quajs se encontram, como em penumbra, as
tendências que aparecem•. claramente no protestantismo li- Mesmo a teologia culta tem da revelação uma idéia
beral. · extremamente antropomórfica, completamente descon-
1. A. Loisy, particularmente, mostrava-se ousado em certante para a ciência e a filosofia contemporânea.
matéria de exegese e de história. A publicação do L'Evan- Como geralmente nunca se deixou de tomar ao pé
gile et l'Église, em 1902, como resposta às pretensões de da letra os primeiros capítulos do Gênesis, não se
1_7 A. LorsY, Choses passées ( Paris, 1913), p. 246. Em 1906 êle
nais os modernistas se lemos suas obras após termos lido as de seus
ascendentes liberais. Ja afirmava querer apresentar: "Premierement une esquisse et une ex-
16 O P. Grandmaison escrevia então: "La source du modernisme plica!ion historique du développement chrétien; secondement, une philo-
est. . . dans les conceptions de ' philosophie religieuse préformées par soph1e générale de la religion et un essai d'interprétation des formules
Herder et Lessing, développées e~ poétisées par Schleiermacher, êlargies dogmatiques, symboles officiels et définitions conciliaires, en vue de les
et fécondées par Hegel, monnayées enfin sous mille formes, et à des ad_apter, par le sacrifice de la lettre à l'esprit, avec les données de l'his-
doses infiniment variées, par les exégetes, critiques et historien de la t01re et avec la mentalité de nos contemporains" ( Revue d' histoire et
gauche protestante... C'est· dans le commerce quotidien, rendu prati- de littérature, 11 [ 1906]: 570).
18 " . . . il me semble évident par la commune expérience que la
quement indispensable par la mainmise protestante sur les instruments
de travail scientifique, avec ces auteurs et leurs pareils; c'est dans la vérité est en nous quelque chose de nécessairement conditionné relatif
lecture des écrivains profanes: historiens de la religion et historiens tout toujours perfectible, et susceptible aussi de diminution. . . la vérité, e~
court, naturalistes, littérateurs même, portés par les grands courants de la tant qué bien de l'homme, n'est pas plus immuable que l'homme lui-même.
pensée moderne, sentimentalistes, monistes declarés ou hésitants, évolu- Elle évolue avec lui, en lui, par lui; et cela ne l'empêche pas d'être
tionnistes, agnostiques, savants férus des méthodes employées avec succés la vérité pour lui; elle ne l'est même qu'à cette condition" (A. LorsY
dans l'étude des êtres vivants; c'est dans l'impuissance à concilier ces Autor d'un petit livre [Paris, 1903], pp. 191-192). O decreto Lamentabili
notions et ces hypotheses avec la veleur absolue du dogme chrétien qu'il condenou a seguinte proposição tirada da obra qe Loisy: "Veritas non
faut chercher le vírus propre de la fievre moderniste" (Recherches de est immutabilis plus quam ipse homo, quippe quae cum ipso in ipso et
science religieuse, 9 ( 1919): 401-402). per ipsum evolvitur" (D. 2058). '
324 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
A CRISE MODERNISTA 325
encontra a menor dificuldade no fato de Deus mesmo, Assim, segundo Loisy, a revelação propriamente dita
no paraíso terrestre, nas conversas íntimas que pre- outra coisa não é que a consciência da relação homem-Deus.
cederam o primeiro pecado e pela terrível. sentença Esta consciência, acrescenta ele, "ao contrário das percep-
que o seguiu, ter explicado ao primeiro homem e à ções de ordem racional e científica. . . é um trabalho da
primeira mulher os dogmas fundamentais do cristia- inteligência, executado, por assim dizer, sob a pressão do
nismo, toda a economia da redenção 19 • ·
· coração, do sentimento religioso e moral, da vontade real
Essa concepção antropomórfica ele a substitui por uma do bem" 21 • É pois uma percepção intuitiva, experimental
concepção psicológica, imposta, julga ele, por suas consta- e cordial de .nossas relações com Deus. Qual é agora o
tações de historiador da religião de ·Israel. A "revelação objeto da revelação? São as idéias que surgiram na hu-
não pode ser outra coisa do que a consciência que o homem manidade e que descrevem as relações que devem existir
adqu~riu de sua relação com Deus. O que é a revelação entre Deus e o homem: "A revelação tem por objeto pró-
cristã, em seu princípio e seu ponto de partida, senão a prio e direto às verdades simples contidas nas asserções da
percepção, na alma de Cristo, da relação que unia o pró- fé. . . Sua forma própria é uma intuição sobrenatural e
prio Cristo a Deus, e que une todos os homens a seu uma experiência religiosa" 22 • Enfim, segundo Loisy, não
Pai celeste?... Num dado momento, o começo da re- poderia haver um depósíto imutável da revelação: "A Igrea
velação foi a percepção, por mais rudimentar que a supo- ja ·proclama que a verdade da revelação não está toda in-
nhamos, da relação que deve existir entre o homem, cons- teira na Escritura. Esta verdade não está, tampouco, toda
ciente de si mesmo, e Deus presente para além do mundo inteira nem na tradição do passado nem no ensinamento
fenomenal. . . O desenvolvimento da religião revelada efe- do presente; enquanto todos os crentes nela têm parte,
tuou-se pela percepção de novas relações, ou antes, por ela se realiza perpetuamente neles, na Igreja, com o auxílio
uma determinação mais precisa e mais distinta da relação da Escritura e da tradição" 23 • E no Simples réflexions: "A
essencial, entrevista desde a origem. O homem aprendeu idéia de marcar um término para a revelação divina é com-
assim a conhecer cada vez melhor tanto a grandeza de Deus pletamente mecânica e artificial. . . estranha aos apóstolos;
quanto o que .vinha a ser seu próprio dever-" 20 • mas ela está em relação com a idéia, não menos mecânica
Í9 "Même la théologie savante en retient une idée extrêmement
e totalmente mitológica, digamos infantil, que se forma .da
anthropomorphique, tout à fait déconcertante pour la science et la philo- própria revelação " 24 •
sophie contemporaines. Comme on n'a pas généralement cessé de prendre Em resumo, para Loisy, a revelação não é doutrina
à la Iettre les premiers chapitres de la Genese, on ne trouve pas la
moindre difficulté à ce que Dieu lui-même, au paradis terrestre, dans
les conversations intimes qui précéderent la premiere faute, et par la le commencement de la révélation a été la perception, si rudimentaire
terrible sentence qui la suivit, ait expliqué au premier homme et à la qu'on la suppose, du rapport qui doit exister entre l'homme, conscient
premiêre femme les dogmes fondamentaux du christianisme, toute l'éco- de lui-même, et Dieu présent, derriere le monde phénoménal. . . Le dé-
nomie de la rédemption" (lbid., pp. 192-193). Sem dúvida, Loisy nunca veloppement de la religion révélée s'est effectué par la perception de
estudou como santo Tomás concebe essa revelação primitiva: "ln statu nouveaux rapports, ou plutôt par une déterminaticin plus précise et ·
primae conditionis, non erat auditus ah homine e:icterius loquente, sed plus distincte du rapport essentiel, entrevu de des !'origine, l'homme
a Deo interius inspirante: sicut et prophetae audiebant, secundum illud apprenant ainsi à connaitre de mieux en mieux et la grandeur de Dieu
Psalm ( 84,9) : Audiam quid loquatur in me Dominus Deus" ( 2a 2ae, et le caractere de son propre devoi" ( Ibid., pp. 195-197). Compare
q. 5, a. 1, ad 3; De Verit., q. 18, a. 2, c.). com SABATIER, Esquisse d'une philosophie de la religion, pp. 34-35,
20 A révélation n'a pu être que la conscience acquise par l'homme 176-177, 183-184, 394-395.
de son rapport avec Dieu. Qu'est-ce que la révélation chrétienne, dans 21 Ibid., p. 197.
son principe et son point de départ, sinon la perception, dans l'âme du 22 Ibid., p. 200.
Christ rapport qui unissait à Dieu le Christ lui-même, et de celui qui relie 23 Ibid., 207.
tous les hommes à leur Pere céleste. . . Ce qui fut, à un moment donné, 24 A. Lmsv, Simples Réflexions (Ceffonds, 1908), p. 58.
326 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 327
oferecida à nossa fé, um depósito imutável de verdades, confusão entre revelação e teologia e os modos de conhe-
mas uma percepção intuitiva e experimental, sempre em cimento heterogêneos que elas representam 30 •
devir, de nossas relações com Deus. A revelação, como o . A revelação propriamente dita, que é preciso distin-
dogma e a teologia, evolui sempre; ela está sempre em gmr, observa ele, de sua transcrição e de sua comunica-
formação. ção 31 , "pertence antes à categoria de impressões do que à
2. Enquanto Loisy apóia sobre a história sua crítica da da expressão" 32 • Ela é emoção, impulsão, atinge o coração,
jdéia da revelação 25 , G. Tyrell fundamenta a sua sobre a filo- abala toda ·a alma 33 • "A revelação não é afirmação mas
sofia e ~ª teologia. As tendências modernistas, encontra~ expenencia 34 . E Tyrre11 esc1arece: "E- muito importante
'A • " '
ram neste intuitivo e neste místico um adepto entusiasta. lembrar que, estritamente falando, a revelação consiste na
Um estranho parentesco de atitude, de pensamento e de experiência .religiosa total, e não apenas no elemento in-
expressão o aproxima de Sabatier e de Loisy. Tyrrell re- telectual desta experiência" 35 • Quando Deus se revela a
conhece a transcendência da revelação, mas sua. concepção experiência é total, açambarcadora. Deus age mais do que
da revelação-experiência conduz em linha reta ao relativismo fala, e a reação do homem pode-se comparar àquela que
dogmático. No fim o desvio é flagrante. provoca nele o trovão. O abalo afeta todo o ser: mas en-
quanto que o elemento experimental é pouco mais ou menos
Como Loisy, Tyrrell ataca unia concepção antropomór-
fica e extrinsecista da revelação: "Conceber a revelação idêntico em todos os homens, a reação mental subseqüente,
como se ela tivesse sido ouvida do alto das nuvens, é cer· diferencia-se conforme as pessoas e segundo a cultura de cada
tamente deixar-se iludir pelo ingênuo simbolismo da arte um 36 • Tyrrel acentua de bom grado o caráter de totalidade
cristã" 26 • Por conseguinte, também ele . rejeita uma fé da experiência reveladora, como também os elementos emo-
que se apresenta como um assentimento do espírito a um cionais que ela comporta; esta insistência, todavia, diíJa~ça
sistema de proposições 27 , em vez de ser uma " adesão do mal certa desconfiança com respeito a elementos propria-
homem todo, coração, espírito e alma, ao Espírito divino mente intelectuais.
interior, que é antes de tudo Espírito de vida e de amor" 28 • Por natureza, a revelação é individual, incomunicá-
O Evangelho é uma força, não uma c1encia; o cristianismo vel: é uma experiência que cada profeta traduz como pode,
não é um corpo de definições e de asserções divinamente segundo sua riqueza mental e formação, pelo jogo de ima-
garantidas, mas uma vida 29 • gens e de conceitos: "O que nos é comunicado, é certa
A fonte dos conflitos atuais, julga Tyrrell, reside numa experiência, seja da presença de Deus,. de sua Providência,
de sua Paternidade, do poder expiador de Jesus Cristo sobre
25 A. LOISY, Autour d'un petit livre, p. 154.
as almas; da comunhão dos santos, do perdão dos pecados,
26 "To conceive revelation as necessarílly trumpeted from the clouds
is surely to be led astray by the nai:ve symbolism of the christian art" (G. · 30 Nesse termo "teologia", Tyrrel engloba e confunde muitas vezes
Tyrrell, Through Scylla and Charybdis [London, 1907], p. 314). O essen- dogma e teologia.
cial de seu pensamento encontra-se nos capítulos XI e XII dessa obra:
"Revelation"( pp. 264-307), "Theologism - A reply" (pp. 308-354).
!~ f· TYR~ELL, Through Scylla and Charybdis, p. 268.
Revelatton belongs rather to the category of impression than to
27 G. Tyrrell, A Much-abused Letter (London, 1907), pp. 39, 51, 52. that of expression" ( lbid., p. 280) .
. ~8 "Fa~th is now an intellectual assent to this revealed theology as 33 lbid., pp. 282-283.
denvmg directly from the divine intellect; it is no longer the adhesion : ::Rev_elation i_s not statement, but experience" ( Ibid., p. 285).
of the whole man, heart, mind and soul, to the divine spirit within- . It _1s v~ry 1mportant t<;> _remember . that, strictly speaking, Reve-
-primarily a spirit of life and love" (G. TYRRELL, Through Scylla and latlon cons1sts m the total rehg10us expenerrce and not simply in the
Charybdis, p. 213). mental element of that experience" ( lbid., p. 285).
29 G. TYRREL, A Much-abused Letter, pp. 51-52; Medievalism (Lon- 36 lbid., pp. 287-288. Compare com SABATIER Esquisse d'une philo-
don, 1908), pp. 217-218. sophie de la religion, p. 304-305. '
328 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 329

das esperanças eternas; experiência que enche e inspira o falível e inconstante. Nosso erro é· tratá-los como verdades,
espírito do profeta e espontaneamente se traduz e se expri- como afirmações certas. ·
me pelas categorias e imagens que este espírito encontra à A pr6pria revelação, como experiência, pode reivindi-
sua disposição" 37 • Mas esta transposição já não é a reve- car qualquer título de verdade? Sim, responde Tyrrell; esta
lação-experiência, isto é, o dado vital original e único autên- verdade, contudo, é. diretamente prática, preferencial, e s6
tico, mas uma sombra, uma representação relativa, um objeto indiretamente especulativa. "O que recebe uma aprovação
a ser interpretado; certamente que não é, de modo algum, imediata, por assim dizer experimental, é uma forma de
um juízo a ser desenvolvido nem um absoluto doutrinal. viver, de sentir e de agir relacionada com o outro mundo. As
A profecia é experiência e visão: experiência do poder, da concepções explicativas e justificativas que o espírito pro-
majestade e da transcendência de Deus. Do mesmo modo, cura mais tarde, enquanto exigidas por essa forma de vida,
os ap6stolos tiveram a revelação de Cristo por uma ex- não têm a aprovação divina" 41 • Por conseguinte, s6 a re-
periência viva, intuitiva e total. Esta experiência é expressa velação tem caráter sagrado; dogma e teologia têm caráter
primeiro sob a forma de imagens (para Pedro, Cristo é o profano. A verdade da revelação é profética, visionária; a
Messias; para João, o Verbo [ou Logos]; para Paulo, o se- da teologia e do dogma, intelectual e científica 42 •
gundo Adão), depois, ulteriormente na Igreja, sob a forma Já que a revelação é "experiência espiritual concreta",
conceptual mais elaborada do Verbo consubstancial ao Pai. é falso, explica Tyrell, "falar de um desenvolvimento da
Nenhum desses conceitos é propriamente a revelação 38 • revelação, como se ela fosse um corpo de afirmações ou
Sem dúvida, as imagens que vão surgindo da experiência de proposições teol6gicas" 43 • Falar assim denota confusão
apost6lica têm um· caráter especial, enquanto "vestígio, im- entre revelação e teologia. Sua verdade sendo de uma ordem
pressão imaginativa deixada por Cristo na mentalida~e de diferente, não poderá haver homogeneidade entre ambas.
· uma época que o conheceu, viu, tocou" 39 • Elas prolongam As f6rmulas dogmáticas têm por finalidade permitir· a cada
a experiência e nos ajudam a evocá-lo. As imagens e cone um evocar a experiência inicial e apropriar-se dela, sob a
ceitas, nascidos expontânea ou reflexivamente na alma do ação do Espírito. Mas entre os dogmas e o dado revelado
profeta ou do ap6stolo, não são mais que a reação humana primitivo, a relação não é a de uma f6rmula para com o
"ao toque divino sentido rio coração", simplesmente como dado objetivo e intelectual definido, mas a de uma inter-
os ·sonhos de um homem que dorme são criados e forma- pretação da experiência profética ou apost6lica; elabora-
dos por alguma causa exterior 40 • Esses elementos valem ção conceptual que é fruto da reflexão comunitária sobre a
como sugestão, mas eles continuam sendo produto humano, recordação deixada pelos inspirados; f6rmulas provis6rias,
voltadas para a experiência, nascidas das necessidades do
37 "It is some .communicated experience of God's presence or provi-
dence or fatherhood, of Christ's saving and atoning power over the soul,
tempo e adaptadas ao espírito de uma época 44 •
of communion with the Saints, of the forgiveness of sins, of the hope of
immortality, which fills and inspires the spirit of the prophet, and 41 "What is immediately approved, . as it were experimentally, is a
spontaneously utters and. expresses itself through the categories and images way of living, feeling, and acting with reference to the other world. The
with which his mind happens to be instructed" (G. TYRRELL, Through explanatory and justificatory conceptions subsequently sought out by the
Scylla and Charybdis, p. 314). mind, as postulated by the 'way of life', have no direct divine approval"
38 Ibid., pp. 280-289. (Ibid., p. 210).
39 Ibid., p. 291. 42 Ibid., pp. 209, 238.
40 "The expression is but the reaction, spontaneous or reflex, of the 43 "It is then a patent fallacy to speak of a development of Revelation
human mind to God's touch felt within the heart, and this reaction is as though it were a body of statements or theological proposition" ( Ihid.,
characterised wholly by the ideas, forms and imagens wherewith the mind p. 292). .
is stocked in each particular case" (Ibid., pp. 208-209). 44 Ibid., pp. 237, 303-305.
330 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA

Mas se, de uma parte, a revelação é experiência vital, estéreis e esterilizantes, será necessário libertar-nos del;s: \
inefável, e se, de outra parte, os enunciados dogmáticos não e levar a Igreja a libertar as almas de expressões caducas 47 • ,,.
são mais que interpretações provisórias a partir da expe- Esta atitude protestante é a conseqüência de todo o
riência rudimentar e deficiente do profeta, é possível ainda sistema de Tyrrell. Se a revelação é comunicada diretamente
termos acesso à revelação? E como a revelação se pode a cada alma, se ela é essencialmente experiência, se o dogma
transmitir? Segundo Tyrrell, é necessário supor em cada não é mais que uma concepção humana, uma interpretação
indivíduo uma capacidade de experiência semelhante à do falível, provisória, mais ou menos ligada a esta experiência
profeta ou do apóstolo. A revelação é uma experiência que e mais ou menos satisfatória, já não há lugar para uma au-
se repete analogamente em cada alma individual. Nosso toridade dogmática, e é necessário optar com Sabatier por
espírito responde ao Espírito e a experiência do profeta se uma religião do espírito contra uma religião da autoridade.
torna nossa experiência. A assimilação da revelação "não A Igreja continua ainda uma instituição respeitável', que
é somente a apreensão mental e a aceitação de afirmações e une os cristãos na profissão das mesmas fórmulas, mas ela
de pensamentos. . . o ensinamento exterior deve evocar já não é a Esposa do Cristo, pela qual toda graça e toda
uma revelação em nós mesmos; a experiência do profeta verdade nos são comunicadas 48 •
deve tornar-se experiência para nós. É a esta revelação evo- Ao lado de expressões manifestamente malsonantes, como
cada que nós respondemos pelo ato de fé, reconhecendo-a essas que acabamos de encontrar, acham-se em Tyrrell mui-
como palavra de Deus em nós e para nós . . . A revelação tas expressões ambíguas que nos podem enganar quanto
não pode vir a nós de fora; ela pode ser ocasionada, não ao seu pensamento real 49 • Sua obra, não obstante
causada pelo ensinamento" 45 • tomada em conjunto, com as conclusões às quais ele chega,
O ideal, para o cristão, é pois acolher, por ocasião mostra claramente que, para ele, a revelação não é, como
da Escritura, das fórmulas de fé, a revelação direta, o sopro para a Igreja, a palavra dita por Deus, uma doutrina di-
do Espírito, como o acolheram os discípulos de Jesus. O vinamente garantida; nem a fé uma adesão do espírito aos
único Mestre infalível é o Espírito de Deus que se revela ensinamentos dos apóstolos e da Igreja. Para Tyrrell a
a cada um dos fiéis, porém, mais claramente a uma elite de revelação não é mais que a experiência vinda do alto, das
homens espirituais, que se adiantam à massa dos cristãos.
O cristão serve-se de fórmulas que unem os cristãos na me- with the developments, especially if they but puzzle and hinder you. For,
after all, the visible Church ... is but a means, a way, a creature, to be
dida em que elas alimentam seu sentimento religioso. Qual- used where it helps, to be left where it hinders" (G. TYRRELL, A Much-
quer dogma que já não desperte eco na alma, deixa de ser -abused Letter, p. 86).
47 Ibid., p. 87. E no Through Scylla and Charybdis: "Deferential
necessário para a salvação. "Se o germe primitivo é su- within the limits of conscience and sincerity to the official interpreters
ficiente para a vossa vida, podeis dispensar-vos do de- of her mind (Of the Church), they must, nevertheless, interpret such
senvolvimento, sobretudo se ele vos impede e vos entra- interpretations in accordance with the still higher and highest canon of
Catrolic truth: with the mind of Christ. It is He who sends us to them;
va" 46 • Se, pois, as fórmulas se tornarem um fardo, porque not they who send us to Him. He is our first and our highest authority.
Where they to forbid the appeal, their own dependent authority would
45 This assimilation is precisely nn act of inward recognition - a be at an end" ( Ibid. p. 19).
48 J. LEBRETON, art. "Modernisme", no DAFC, 3: 683.
response of spirit to spirit, and not only the mental apprehension and
49 Por exemplo: "Can Revelation be communicated? Can I believe
acceptance of statements and me,mings. . . the teaching from outside
must evoke a revelation in ourselves; the experience of the prophet must on the strenght of God's word to another? Can such belief be (in de-
become experience for us. lt is to this evoked revelation that we answer fiance of logic) stronger than my purely human faith in the veracity of
by the act of Faith, recognizing it as God's word in us and to us ... that other? Must not God speak to me directly? Must He not, at least
Revelation cannot be put into us from outside; it can be occasioned, but from within, illuminate the revelation thus verbally communicated to me
it cannot be caused by instruction" ( Ibid., pp. 305-306). by another, and bring it home to me with a super-rational intuitive certi-
46 "If you can live on the undeveloped germ, you may dispense tude?" (Through Scylla and Charybdis, p. 268). Cfr. Ibid., p. 316.
332 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 333
realidades sobrenaturais. "Não só, escreve o P. de Grand- outra por um nexo interno, que o do próprio sistema de
maison, ela não importa, mas ela não comporta uma comu- Loisy ao qual elas se referem 53 • Nossa intenção não é reto~ar
nicação de verdades definidas, de julgamentos certos" 50 • aqui um assunto já exposto, mas mostrar como, sob uma tor-
E o dogma, que Tyrrell confunde com a teologia, não é ma negativa, o decreto reafirma posições anteriores, especial-
mais que "a análise, natural, tateante e falível dessa e:rpe- mente as do primeiro concílio do Vaticano. Relembrando d~-
riência" 51 • A revelação-experiência é, segundo este último, cisões doutrinais opostas; desde muito tempo, pela IgreJa
imutável e não pode receber um desenvolvimento; somente contra o livre exame protestante ou contra o racionalismo
o dogma e a teologia, superestrutura necessária, mas hete-
moderno, manifesta sua resolução de reagir a uma ofensiv~ de
rogênea com relação à experiência, evoluem e mudam
indênticas tendências. O decreto mantém em todo o seu rigor
sem cessar. É em nome dessa dissociação extremada entre
revelação-experiência e teologia, que Tyrell toma todas _as a noção de uma revelação objetiva, doutrina recebida de Deus,
liberdades em matéria doutrinal. Para 'Loisy, ao contrário, da qual a Escritura inspirada constitui o principal depósito
e cuja integridade a Igreja tem a missão de assegurar. As
revelação, dogma e teologia estão sujeitos a um vir a s:r proposições de LVII a LXV condenam os próprios princípios
perpétuo, ilimitado. Nos dois casos, as noções de revelaçao
do evolucionismo religioso, absoluto, ilimitado; com outras
e de desenvolvimento dogmático estão em jogo 52 •
palavras, toda a filosofia religiosa proveniente, mediante
Sabatier, de Schleiermacher e de Ritschl.
3. Documentos antimodernistas
A proposição XX condena a definição de revelação dada
1. Diante da gravidade do perigo, e sobretudo ~iante por Loisy "A revelação não pode ser nada mais que a cons-
das ilusões que se multiplicam por toda parte, Ro_ma inter- ciência que o homem adquiriu de sua relação com Deus" 54 •
vém; primeiro com sentenças do Index; em seguida, pel~s Para o historiador da religião de Israel, como nos lembranmos,
decisões da Comissão Bíblica (em 1905, 1906, 1907); fi- a revelação é progressiva e sua evolução dependeu de cir-
nalmente, pelo decreto Lamentabili do Santo Ofício ( 3 de cunstâncias políticas, sociais e culturais. Ele a vê como a
julho de 1907 ) . Um breve prefácio indica a intenção da San- atividade humana pela qual o homem toma consciência de
ta Sé de impedir os excessos cometidos pela crítica moderna suas relações com Deus. O objeto desta revelação se cons-
no terreno bíblico e dogmático. A Congregação agrupou e re- titui de idéias que tiveram origem na humanidade e que des-
provou sessenta e cinco proposições. Três dentre elas ( XX, crevem as relações que devem existir entre Deus e o homem.
XXI, XXII) dizem respeito diretamente ao nosso assunto. Idéias que se elaboram pouco a pouco, conforme se torna
Se .bem que separadas, essas proposições se juntam uma à mais distinta a consciência das relações homem-Deus. Por
50 L. DE GRANDMAISON, "Le Développement du dogme", Revue pratique
53 Contudo a intenção da santa Sé era, inicialmente, reunir propo-
d'apologétique, 6 (1908): 97-98. . .. sições claramente heterodoxas, sem visar um autor em particular. É por
51 "Revelation is a supernaturally imparted exper1ence of reahttes -
isso que, diz o P. · Grandmaison; "plausieurs proposition on é; à dessein,
an experience that utters itself spontaneously \n imag~native po~ular non- tres judicieusement définies, resserrées, voire majorées, afio d'en faire
•scientific form; theology is the natural, tentat1ve, falhble analysts of that ressortir le sens, et d'en dégager, sans discussion possible, la portée
experience. The Church's divine commission ~s. to teach and propag~te a hétérodoxe" (DAFC, 3: col. 605). Quanto às origens do decreto Lamen-
new life, a new love, a new hope, a new spmt, and not the analys1s of
these experiences" (G. TYRRELL, Medievalism, p. 129). Crf. Through Scylla
tabili, cfr.: P. DunoN, "Origines françaises du décret Lamentabili ( 1903-
-1907 )n, Bulletin de littérature ecclésiastique, 32 ( 1931): 73-96; R.
and Charybdis, p. 277. . ~ AUBERT, "Aux origines de la réaction anti-moderniste. Deux documents
52 Se demos a impressão de desenvolver demais a apresentaçao das
inédits", Eph. theol. lov. 37 (maio-setembro 1961): 557-579.
posições de Loisy e Tyrrel, bem como a de seus ascend~nt~s pro!estantes, 54 "Revelatio nihil aliud esse potuit quam acquisita ah homine suae
deve-se ·isso ao fato de essa exposição ser absolutamente md1spensavel para ad Deum relationis conscientia" (D. 2020). Proposição tomada do Autour
que possa ser devidamente apreciado o alcance das intervenções da Igreja. d'un petit livre, p. 195. Comentário do pr6prio Loisy no Simples Ré-
Havia urgência e razões mais que suficientes. flexions, p. 57.
· 334 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO 1 A CRISE MODERNISTA 335

conseguinte, "os dogmas que a Igreja propõe como re-


velados, não são verdades caídas do céu, mas uma certa inter-
pretação dos fatos religiosos que o espírito humano adqui-
ll possível a própria "doutrina" do Pai (Jo 7, 16), seu desígnio
de salvação para a humanidade ( Rom 16,25-27; Col 1,
25-28).
A revelação não é, portanto, uma realidade sempre
riu por um laborioso esforço" 55 • Enfim, conseqüência lógi-
ca, a revelação jamais está terminada, pois jamais está ter.- em devenir ligada ao desenvolvimento da consciência hu-
minada a tomada de consciência da humanidade: · "A reve- mana, mas um depósito de verdades sobrenaturais, confia-
lação que constitui o objeto de fé católica não ficou terminaJa do à guarda da Igreja e constituído desde o tempo dos após-
com os apóstolos" 56 • tolos. "A revelação, que constitui o objeto da fé católica ...
Por negativa que seja, essa exposição evoca a doutrina ficou terminada com os apóstolos" (D. 2021 ).
positiva da Igreja. Esta não nega que a verdade revelada, O texto do decreto implica os seguintes pontos de
destinada ao homem, seja recebida no homem, mas ela se ensinamento católico: primeiramente, a soma de verdades
recusa a ver na revelação o produto de uma atividade sim- oferecidas à nossa fé já está toda na doutrina apostólica
plesmente humana e natural. Dentro da ótica modernista, e, por conseguinte, não poderia sofrer nem acréscimo nem
a revelação, em última análise, é atribuível ao homem, e diminuição real; em seguida, que o objeto da nossa fé foi
as verdades conhecidas não ultrapassam o conteúdo ima- constituído pela revelação divino-apostólica, e somente por
nente da consciência religiosa da humanidade. De trans- ela; finalmente, o processo de revelação que constitui o
cendente, torna-se imanente. Deixa de ser palavra dita por objeto de nossa fé terminou com o tempo dos apóstolos.
Deus, expressão de seu pensamento, tendo por autor Deus, Desde o tempo apostólico o objeto da nossa fé ficou, pois,
agente pessoal e transcendente, que comunica ao homem, por completo, isto é, realizado em sua perfeição essencial de
uma ação graciosa e livre, verdades que podem até ultra- objeto a ser crido por todos: trazido à existência, em sua
passar a capacidade d1;1 inteligência humana (D. 1785, 1787). totalidade, como objeto de um convite divino à fé 57 • Re-
Pela revelação, como a concebe a Igreja, é Deus mesmo que· velação neste texto pode, pois, designar tanto a ação re-
vem ao encontro do homem, iluminando o espírito do pro- veladora como a doutrina ou o depósito da fé: de uma como
feta ou publicando o Evangelho da salvação por Cristo, Ver- de outra é certo afirmar que elas terminaram com os após-
bo "encarnado (D. 783, 1785). O homem, é verdade, re- tolos. O decreto não nega, contudo, que o término da
cebe ativamente a mensagem divina, mas a doutrina proce- revelação seja também o ponto de partida de um real mo-
de de um outro. A história religiosa da humanidade repou- vimento de assimilação subjetiva por parte da Igreja, que
sa sobre uma doação divina: sobre a "doutrina de fé que Deus penetra sempre, cada vez mais o depósito que Deus lhe
revelou" e que foi confiada à Igreja "como um depósito" confiou, não como um bloco inerte de metal precioso, mas
para ser conservado fielmente e a ser declarado infalivelmen- como uma palavra viva e fecunda. A fonte está dada, mas
te (D. 1800). Num sentido, as verdades reveladas são "ver- nós não cessamos de nela matar nossa sede.
dades caídas do céu", já que os lábios humanos do Cristo, Esta doutrina é perfeitamente coerente com as outras
Verbo encarnado, nos comunicam com autoridade e sem erro proposições do decreto, como também com o ensinamento
anterior da Igreja. A revelação foi comunicada aos homens
55 "Dogmata, quae Ecclesia perhibet tanquam revelata, non sunt por meio de Moisés, pelos profetas e finalmente por Cris-
veritates e coelo delapsae, sed sunt interpretado quaedam factorum reli-
giosorum, quam humana mens laborioso conatu sibi comparavit" (D. to, dizem os concílios de Latrão, de Trento e do Vaticano
2022). Cfr.: L'Évangile et l'Église, pp. 202-203; Autour d'un petit livre, (D. 428, 783, 1785). Ela não é uma obra humana que resul-
p. 189; Simples Réflexions, p. 59.
56 "Revelatio, objectum fidei catholicae constituens, non fuit cum
57 E. DHANIS, "Revélation explicite et implicite", Gregorianum, 34
Apostolis completa" (D. 2021). Cfr. Autour d'un petit livre, p. 207;
Simples Réflexions, p. 58. ( 1953): 214-215.
336 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 337
tasse de uma elaboração filosófica (D. 1636, 1656, 1800), encíclica. Esta quis simplesmente recolher tendências e
tampouco está submetida ao progresso indefinido da ra- princípios espar~os em diversos autores e mostrar como esses
zão (D. 17 O5 ) : é um depósito a ser guardado e exposto autores coincidiãm na profissão consciente ou inconsciente
(D. 1800 ) . O decreto especifica que o cristianismo não dos mesmos princípios e tendências. Tornava-se fácil, agru-
foi um movimento religioso sem base doutrinal 58 ; muito pando esses princípios, mostrar suas gravíssimas conseqüên-
ao contrário, o Cristo "ensinou um corpo determinado de cias nos domínios da filosofia, da teologia, da história, da
doutrina aplicável a todos os tempos e a todos os ho- crítica, da apologética.
mens" 59 • Não se pode admitir o princípio evolucionista se- Na base de sua filosofia religiosa, os "modernistas
gundo o qual "a doutrina _cristã, foi a princípio judaica, colocam a doutrina chamada comumente agnosticismo". Em
mas se tornou, através de sucessivas evoluções, primeiro virtude desta doutrina, é incognoscível tudo o que ultra-
paulina, depois joanina, finalmente helênica e universal" M_ passa o âmbito dos fenômenos. Por isso Deus não poderia
Longe de ter conhecido formas sucessivas e heterogêneas, ser objetQ de ciência, nem ser reconhecido como o autor
ela conserva a mesma significação para os cristãos de nosso de certas intervenções históricas; por conseguinte, também
tempo, como para os dos primeiros séculos (D. 2062). A a teologia natural, os motivos de credibilidade, a revelação
revelàção é pois imutável (D. 125, 148, 160, 212, 293, exterior pertencem ao sistema fora de moda e caduco do
300). Esta imutabilidade da doutrina, entretanto, não é intelectualismo ( D. 2072).
um obstáculo ao verdadeiro progresso das ciências moder- O agnosticismo representa o aspecto negativo do mo-
nas ( D. 2063): este não exige que se reformem os con- dernismo. A doutrina da imanência vital const1tu1 seu as-
ceitos da dou trina cristã sobre . . . a revelação 61 • pecto positivo. Ele intervém para explicar a religião: "uma
2. Dois meses depois do decreto Lamentabili, ou seja vez repudiada a teologia natural, tornado impossível qual-
a 8 de setembro de 1907, aparecia a encíclica Pascendi. quer acesso à revelação pela rejeição dos motivos de credi-
Enquanto o decreto se contentava com apontar os erros, a bilidade e, mais ainda, abolida totalmente qualquer reve-
encíclica descobre as raízes filosóficas do mal. Nenhum lação exterior, é claro que esta explicação não deve ser
modernista, diga-se de passagem, professou tal e qual o procurada fora do homem" 62 • Nas profundezas da sub-
corpo de doutrinas fortemente estruturado que apresenta a consciência existe uma necessidade do divino cuja pressão
"suscita na alma, inclinada à religião, um sentimento pecu-
.58 Nos Études évangéliques Loisy escreve: "Déposítaires et prédi- liar. Esse sentimento tem isto de próprio: que ele envolve a
cateurs d'une religion vivante, les premiers adeptes de l'Évangile ne
songerent pas un instant qu'ils dussent être liés dans leur enseignement, Deus tanto como objeto quanto como causa íntima, e que ele
soít par la lettre des formules dont le Chríst avaít pu se servir, soít par de algum modo une o homem a Deus" 63 • Essa é a origem da'
la réalíté matérielle des faíts accomplis; íls ne se considéraient pas comme fé religiosa da qual a revelação é somente outro nome.
les gardiens d'une essence doctrinale que Jésus n'avaít jamais eu l'intentíon
de prêcher. . . Jésus avaít été beaucoup moins le représentant d'une "Neste sentimento eles encontram, pois, a fé; mas
doctrine que l'initiateur d'un mouvement religieux" (p. XIII). Cfr.
L'Évangile et l'Eglise, p. 167; Autor d'un petit livre, p. 17. também com a fé e na fé, tal como a entendem, a
59 "Christus determinatum doctrinae corpus omnibus temporibus cunctis-
que hominibus applícabile non docuít, sed potius inchoavít motum quemdam 62 "Explicatio autem, naturali theologia deleta adituque ad revela-
religiosum diversis temporíbus ac locis adaptatum vel adaptandum" (D. tionem ob rejecta credibílítatis argumenta íntercluso, immo etíam reve-
2059). latione qualibet externa penítus sublata, extra hominem inquirítur frus-
60 «Doctrína christiana in suis exordiís fuit judaica, sed facta est tra. Est igítur in homine quaerenda. . . Ex hoc immanentíae religiosae
per successivas evolutiones prímum paulina, tum joannica, demum hellenica principium asseritur" (D. 2074).
et universalis" (D. 2060). 63 "lndigentia divini in animo ad religionem prono... peculiarem
61 "Progressus scientiarum postulat ut reformentur conceptus doctrínae quendam commovet sensum: hic veto divinam ípsam realitatem, tum
christianae de Deo, de creatione, de revelatione, de persona Verbi in- tanquam objectum, _tum tanquam sui causam intimam, in se implicatam
carnati, de redemptione" ( D. 2064). habet atque hominem quodammodo cum Do conjungít" (D. 2074).
338 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MOÜERNIST A 339
revelação. E para a revelação, com efeito, o que mais Deus, ou melhor, o sentimento· de Deus surgiu das
se quer? Por acaso não podemos chamar de revelação, profundezas da subconsciência, mas confusi;tmente ainda. A
ou pelo inenos começo de revelação, aquele sentimento inteligência, então, sobrevindo ao sentimento e inclinando-se
religioso que ·se manifesta em nossa ·consciência? Será de algum modo sobre ele "trabalha-o à maneira de um pin-
que não é o próprio Deus que os manifesta às nossas tor que numa velha tela reencontra .e faz reaparecer as linhas
mentes, embora confusamente, por meio dessa percep- apagadas do desenho" 65 • Esse trabalho da inteligência, _es-
ção religiosa? Acrescentam, contudo: como Deus pontâneo a princípio, · chega . a fórmulas ou asserções sim-
é ao mesmo tempo causa e objeto da fé, na fé ples e vulgares que representam, ainda toscamente, · os
encontra-se pois a revelação como vinda de Deus e fenômenos vitais que na alma se deram. Em seguida, uma
como versando sobre Deus. Quer dizer que Deus reflexão ulterior interpreta a fórmula primitiva por meio de
ali é ao mesmo tempo revelador e revelado. Daqui, fórmulas derivadas, mais aprofundadas, mais distintas. Essas
veneráveis Irmãos, esta doutrina absurda dos moder- fórmulas, sancionadas pela Igreja, constituem o dogma 66 •
nistas, segundo a qual toda religião é por sua vez na- As fórmulas do dogma não -têm outro fim que o de
tural é sobrenatural, conforme a consideremos. Daqui "fornecer ao crente o meio de se dar conta de sua fé" (D.
a equivalência entre consciência e revelação. Daqui, 2079). Elaboradas pela inteligência, não têm outro valor
enfim, a lei que erige a consciência religiosa em regra que o de sinais inadequados, símbolos, em relação a seu
universal, inteiramente igualada à revelação e à qual objeto; e, com relação ao crente, valor de instrumentos. Elas
tudo se deve sujeitar, até a autoridade suprema, em não contêm verdade absoluta: "como símbolos, elas são
sua tríplice manifestação doutrinal, cultual, discipli-
imagens da verdade que se devem adaptar ao sentimento
nar" 64.
religioso ... ; como instrumentos, são veículos. da verdade e
Assim, o sentimento religioso, sob a pressão da ne- devem por sua vez a,daptar-se ao homem em suas relações
cessidade universal do divino se põe a atuar, aflora à cons- com o sentimento religioso" 67 • E como, de uma parte, o
ciência e se torna experiência da realidade divina. Esse é absoluto, que é o objeto do sentimento religioso, apresenta
o germe da religião, de todas as religiões, inclusive do aspectos infinitos, e como, de outra parte, o crente pode
cristianismo: todas não são mais que eflorescências do sen- passar por diversas . situações, segue-se que as fórmulas es-
timento religioso, e, a este título, todas podem dizer-se tão sujeitas a contínuas variações. O dogma pode e deve
reveladas ( D. 2077). mudar: ele deve viver como o sentimento religioso. O moder-
nismo exalta a experiência religiosa e despreza as fórmulas
64 "ln ejusmodi enim sensu modernistae non fidem tantum reperiunt; (D. 2079-2080).
sed, cum fide inque ipsa fide, prout iliam intelligunt, revelationi locum
esse affirmant. Enimvero ecquid amplius ad revelationem quis postulet? 65 "Mens ergo, illi sensui adveniens, in eundem . se inflec~it inque
An non revelationem dicemus, aut saltem revelationis exordium, sensum eo elaborat pictoris instar, qui obsoletam tabulae cuJusdam diagraphen
ilium · religiosum in conscientia apparentem; quin et Deum ipsum, etsi collustret, ut nitidius efferat" (D. 2078). . _ .
confusius, sese in eodem religioso sensu animis manifestantem? Subdunt 66 D. 2078. Os mesmos termos reaparecerão na expos1çao dos prin-
vero: cum fidei Deus objectum sit aeque et causa, revelatio ilia et de Deo cípios teológicos do modernismo (2089).
pariter et a Deo est; habet Deum videlicet revelantem simul ac revelatum. 67 "Mediae iliae sunt inter credentem ejusque fidem: ad fidem quod
Hinc autem, Venerabiles Fratres, affirmatio ilia modernistarum perabsur- attinet, sunt inadaequatae ejus objecti notae, vulgo sym~ola vocitant; ~~
da qua religio quaelibet pro diverso aspectu naturalis una ac superna- credentem quod spectat, sunt mera instrumenta. Quoc1rca nulla_ co1?-fic1
tu;alis dicenda est. Hinc conscientiae ac revelationis promiscua signifi- ratione potest, eas veritatem absolute continere: nam qua symbola 1magm~s
catio. Hinc lex, qua conscientia religiosa ut regula universalis traditur, sunt veritatis atque idcirco sensui religioso ac_co17:1mod~dae, prout . hic
cum revelatione penitus aequanda, cui subesse omnes oporteat, supremam ad hominem refertur; qua instrumenta sunt veritat1s vehicula atque 1deo
etiam in Ecclesia potestatem, sive haec doceat, sive de sacris disciplinave accommodanda vicissim homini, prout refertur ad religiosum sensum"
statuat" (D. 2075). (D. 2079).
340 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 341

A teologia modernista nada mais fez que adaptar à fé falível" 70 • A encíclica, constata ainda Loisy, "não é mais
os princípios filosóficos da imanência, do simbolismo e . da que a expressão total, inelutavelmente lógica, do ensina-
evolução 68 • mento aceito na Igreja desde o fim do século XIII,, 71 •
Conforme o princípio de evolução vital, a revelação Ao longo de toda a encíclica, muitas expressões deixam
desenvolve-se com o sentimento religioso, à medida que este entender que o modernismo não é mais que uma renovação
se desembaraça de elementos estranhos ( sentimento fami- de velhos erros, já denunciados, mas retomados ao sabor
liar e nacional) e penetra a consciência da humanidade (D. das novas ciências. O texto recorda especialmente o ensi~
2094 ) . Essa evolução é geralmente paralela ao desenvol- namento do Vaticano contra o agnosticismo, a propósito
vimento cultural e moral da sociedade, mas pode ser aju- do conhecimento de Deus, dos motivos de credibilidade,
dada, favorecida pela ação de certos homens extraordiná- da possibilidade da revelação (D. 1806, 1807, 1812, 2072);
rios, tais como os profetas e o Cristo ( D. 2094). A ex- ao imanentismo é oposto o dogma do sobrenatural (D.
periência religiosa, com efeito, pode ser comunicada aos 1808, 2075); ao racionalismo, o ensinamento de Pio IX e
outros pela pregação ou pela Escritura. Em virtude do seu Gregório XVI sobre a subordinação da filosofia (D. 1634,
poder de sugestão, as fórmulas podem despertar o senti- 1635, 2075); ao relativismo, a censura de Gregório XVI
mento religioso, talvez adormecido, ou permitir ao crente àqueles que perdem de vista a noção de verdade (D. 1617,
reviver experiências já feitas ( D. 2083). Quando, pois, 2080) ; ao evolucionismo religioso, a imutabilidade da re-
pelo poder sugestivo da pregação ou da Escritura, o sen- . velação e dos dogmas reivindicada por Pio IX e pelo con-
timento religioso emerge à consciência do ouvinte ou do cílio Vaticano (D. 1705, 1800). ·
leitor, este tem a experiência da revelação. De outra parte, 3. A atividade antimodernista de Pio IX . foi coroa-
não sendo os dogmas mais que aproximações deficientes da pelo "motu proprio" Sacrorum antistitum de 1~ de setem-
da experiência religiosa, instrumentos cujo papel é de evo- bro de 1910 e pelo juramento que era imposto. Sem nada
car essa experiência, "o crente deve empregar essas fórmu- acrescentar de essencial aos atos ,anteriores, esse juramento
las na medida em que elas podem servir-lhe, pois é para como que os resumia solenemente. Apresentava uma gran-
ajudar sua fé, não para entravá-la que elas lhe são dadas" 69 • de vantagem: não era simplesmente uma condenação de erros
como o Syllabus, nem uma mera exposição de desvios como a
Mal há necessidade de notar com que fidelidade esse
Pascendi. Era antes uma reafirmação da doutrina positiva
quadro retrata as diversas afirmações encontradas em Sa-
batier, Loisy e Tyrrell. Sem dúvida, não têm elas, nesses da Igreja. É uma profissão direta das doutrinas católicas
autores, os contornos definidos que lhes empresta a encí- impugnadas pelas heresias modernistas.
clica. Resta que, no conjunto, os traços conferem. O O juramento tem duas partes; interessa-nos principal-
documento pontifício reuniu-os e confrontou-os para · des- mente a primeira. Após uma declaração geral de fidelida-
cobrir os elementos dissolventes. Conforme declaração mes- de a todos os ensinamentos da· Igreja, cinco pontos são mais
ma de Loisy, o papa quis manter "aquilo que é contestado precisados. Ocupar-nos-emos apenas com os três últimos
por muitos daqueles que ele chama de modernistas, a sa- que mais diretamente se referem ao nosso assunto.
ber: que existe um depósito imutável de verdade revelada, O artigo terceiro afirma a fundação da Igreja, "guar-
do qual o soberano pontífice seria. o guardião único e in- diã e mestra da palavra revelada", pelo Cristo histórico
(D. 1800, 1836 ). No mesmo sentido, o artigo seguinte
D. 2087-2096.
68 afirma o caráter imutável da "doutrina da fé", depósito
"Addunt praeterea formulas ejusmodi esse a credente adhibendas
69
quatenus ipsum juverint; ad commodum enim datae sunt, non ad impe- 70 A. LmsY, Simples Réflexíons, p. 139.
dimentum" (D. 2087). 71 Ibid., p. 23.
342 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 343
divino confiado à Esposa do Cristo e à sua guarda vigilante. sempre, declarado pela Igreja" 74 • A última parte do pará--
Rejeita a pretensão de se reduzir esse depósito a uma des- grafo rejeita a concepção racionalista de revelação já con-
coberta filosófica (D. 1800) ou a uma· criação da cons- denada pelo Vaticano (D. 1800), denunciando ainda a con-
ciência humana indefinidamente em progresso: cepção modernista que considera a doutrina cristã uma
"Sinceramente aceito a doutrina da fé tal qual no-la "criação da consciência humana", que se teria formado pouco
transmitiram os _apóstolos e os padres ortodoxos; acei- a pouco graças ao esforço dos homens, e que se deveria
aperfeiçoar indefinidamente. Aos modernistas repete a Igre-
to-a no mesmo sentido e com a mesma interpretação.
Por isso absolutamente rejeito a suposição herética ja o que já declarara aos racionalistas e aos semi-raciona-
da evolução dos dogmas, segundo a qual os dogmas listas: a "doutrina da fé" foi "transmitida pelos apóstolos
mudariam de sentido, recebendo um diverso daquele e pelos padres ortodoxos", como um "depósito divino", e
que inicialmente lhes deu a Igreja. Reprovo igual- não como um produto humano, fruto do pensamento ou
mente todo erro que consiste em substituir ao depó- da consciência humana.
sito divino, confiado à Esposa do Cristo e à sua guar- O quinto artigo, finalmente, unindo a doutrina do
da vigilante, uma ficção filosófica ou uma criação da primeiro concílio do Vaticano (D. 1789) à da encíclica
consciência humana que, pouco a pouco formada pelo Pascendi (D. 2074 ), relembra que a fé não é um puro sen-
esforço humano, seria no futuro capaz de um progresso timento cego, mas uma adesão da inteligência à verdade
indefinido" 72 • revelada por Deus:
O artigo, em seu duplo enunciado, pouco acrescenta "Estou plenamente certo e sinceramente professo que
às declarações do primeiro concílio do Vaticano. Afinal a fé não é um cego sentimento religioso, a surgir das
o concílio já ensinara que "a doutrina da fé, revelada por profundezas da subconsciência sob a pressão do cora-
Deus. . . foi confiada à Esposa do Cristo como um divino ção e o influxo da vontade moralmente informada. É
depósito, para ser fielmente conservada e declarada com antes um verdadeiro assenso da inteligência pres-
infalibilidade", mas sempre no mesmo sentido e com a tado à verdade recebida do exterior mediante a dou-
mesma interpretação 73 • Rejeitou também como herética a trina ouvida. Por este assenso, acreditamos como
evolução dos dogmas que lhes atribuiria, sob pretexto de verdade, por causa da autoridade de Deus sumamen-
uma "compreensão mais alta", ou de um "progresso da te veraz, tudo quanto foi dito, atestado e revelado
ciência", um "sentido diverso do que foi, de uma vez para pelo Deus pessoal, Criador e Senhor nosso" 75 •
72 Sublinhamos as palavras que se encontram indênticas ou quase
idênticas no primeiro do Vaticano: "Quarto: fidei doctrinam ab Apostolis per 74 "Hinc sacrorum quoque dogmatum is sensus perpetuo est retinen-
orthodoxos Patres eodem sensu eademque semper sententia ad nos usque dus quem semel declaravit sancta Mater Ecclesia, nec unquam ab eo
transmissam, sincere recipio; ideoque prorsus rejicio haereticum commen- sensu altioris intelligentiae specie et nomine recedendum" (D. 1800). E
tum evolutionis dogmatum, ab uno ad alium sensum Transeuntium, diver- no cânon correspondente: "Si quis dixerit fieri posse ut dogmatibus ab
sum ab eo, quem prius habuit Ecclesia, pariterque damno errorem omnem, Ecclesia propositis aliquando secundum progressum scientiae sensus tribuen-
quo, divino deposito, Christi S ponsae tradito ab eaque fideliter custodien- dus sit alius ab eo quem intellexit et intelligit Ecclesia: A. S." (D. 1818).
do, sufficitur philosophicum inventum, vel creatio humanae conscientiae 75 "Quinto: certissime teneo ac sincere profiteor, fidem non esse
hominum conatu sensim efformatae et in posterum indefinito progress~ caecum sensum religionis e latebris subconscientiae erumpentem, sub
perficiendae" (D. 2145). pressione cordis et inflexionis voluntatis moraliter informatae, sed verum
: 3 "N~que . enim fidei doctrina quam Deus revelavit, velut philo- assensum intellectus veritati extrinsecus acceptae ex auditu, quo nempe
s~p~1cum mventum proposita est humanis ingeniis perficienda, sed tanquam quae a Deo personali, creatore ac Domino nostro dieta, testata et revelata
d1vmum depositum Christi Sponsae tradita, fideliter custodienda et in- sunt, vera esse credimus, propter Dei auctoritatem summe veracis"
fallibiliter declaranda" (D. 1800). (D. 2145). ·
344 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO A CRISE MODERNISTA 345
Esse texto define a fé negativa e positivamente. O pria autoridade de Deus que revela (D. 1789) e não sobre a
primeiro concílio do Vaticano opunha-se ao racionalismo, evidência interna da verdade como na ciência. Finàlmente
para o qual a fé é apenas a ciência que tem a Deus como o juramento antimodernista diz claramente que a palavra
objeto. O juramento opõe-se aos modernistas que,, à ma- autoritativa do Deus que revela é um testemunho divino ao
neira dos protestantes liberais, reduzem a fé a um puro qual corresponde a fé (D. 214 5 ) . Temos assim os elemen-
sentimento irracional, surgido das profundezas do subcons- tos de uma noção formal: Deus que revela é Deus que fala
ciente sob a pressão do coração e o impulso da vontade, com a autoridade de testemunha sumamente veraz e que
sem qualquer ·dependência de uma revelação externa. merece a reação específica da fé. A revelação é palavra de
Contra o exclusivismo da posição modernista, o jura- testemunho (locutio Dei attestans).
mento sublinha o caráter intelectual da fé: verdadeiro as- Portanto: contra os modernistas que se opõem à no--
sentimento do espírito à verdade adquirida a partir de um ção católica de revelação, depósito divino, e lhe opõem o
ensino exterior ( Rom 1O, 17 ) . Não nega, é evidente, que conceito de uma revelação criação humana, saída das pro-
a revelação seja recebida pelo homem a quem é dirigida; fundezas do subconsciente, passando gradualmente do obs-
significa apenas que, mediata ou imediata, a verdade re- curo ao claro, do informulado ao formulado, o juramento
velada não procede totalmente do homem, mas de um outro, afirma que a revelação - objeto de fé - é uma revela-
de Deus agerite pessoal e distinto do homem, Criador e ção doutrinal. Aquilo que Deus disse, atestou, revelou, é
Senhor. Profetas, apóstolos, cristãos: todos recebem a ver- para a Igreja: palavra revelada, doutrina de fé, depósito
dade revelada mediante uma audição interior ou exterior. divino confiado à. sua guarda para ser conservado sem ac~és-
Pela fé reconhecemos como verdade "o que foi dito, cimo nem alteração, sem mudança de sentido ou de inter-
atestado e revelado" por Deus. O juramento não dá lugar pretação, Essa doutrina não vem do homem, mas de Deus.
a nenhuma ambiguidade: a revelação não é uma emoção re- A revelação, na perspectiva modernista, tende a se tornar
ligiosa, totalmente humana e subjetiva, que se fizesse claramen- pura imanência. Para a Igreja, porém, continua sendo ação
te consciente. É o conteúdo de uma palavra, de um teste- transcendente de Deus, cujo termo objetivo e criado é uma
munho: a palavra e o testemunho de Deus. Conteúdo que, doutrina, um ensinamento comunicado ao homem. Dirigi-
também chamado doutrina, Evangelho, é apresentado à in- do a ele, por ele ativamente recebido, mas que .não vem
teligência e exige o assenso da fé. dele. Ao tempo do modernismo a Igreja acentuou a trans-
É pela primeira vez que, num documento oficial, en- cedência da revelação ( sem negar o seu aspecto de imanên~
contramos reunidos os três termos: palavra (dieta), teste- eia) e a característica doutrinal do objeto de fé ( sem ne-
munho (testata) e revelação (revelata). Cada um desses gar os seus outros valores). Ela o fez justamente porque
termos retoma e torna mais preciso o anterior. A revela- o modernismo queria substituir as noções de revelação so-
ção pertence ao gênero palavra e à espécie testemunho. brenatural e de dogma imutável por uma evolução religiosa
Enquanto palavra dirige-se ao homem manifestando-lhe o cuja. única norma seria a consciência individual ou cole-
pensamento divino. Enquanto testemunho exige uma rea- tiva. A Igreja, que rião está obrigada a dizer tudo em cada
ção específica: a fé. Nos documentos de Pio IX e de Pio X uma de suas intervenções, afastou os equívocos e reafirmou
podemos ver como cada vez se torna mais precisa a noção suas posições tradicionais.
ger~l de revelação. A encíclica Qui pluribus, de Pio IX,
ensma que devemos prestar fé a Deus que fala, que não
pode enganar-se nem nos enganar; ou seja: a revelação é
uma palavra autoritativa (D. 1637); O primeiro concílio
do Vaticano observa que o assenso da fé repousa sobre. a pró-
O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 347
4. por uma fraternidade humana mundial, por um coletivismo
O PERfODO CONTEMPORÂNEO planetário, como o vemos nos grandes movimentos interna-
cionais: comunismo, movimento operário, atividades ecumê-
nicas de toda espécie. A segunda inspira-se em Nietzche e·
é marcada pela glorificação do super-homem, individual ou
coletivo, pela expansão mediante a violência das raças su-
periores, como o vemos no aparecimento das grandes ditadu-
ras e no culto da raça. A encíclica Mortalium animas, con-
tra o pancristianismo, e a Mit brennender Sorge, contra o
. , ~ste período é interessante pelas intervenções do ma- nacional-socialismo alemão, apresentam a doutrina da Igre-
g1ster10 que apresentam características parcialmente novas.
ja contra os excessos de ambas as tendências.
Tornam-se mais freqüentes, principalmente sob a forma de
encíclica, gênero preferido pelos últimos papas. E mais: 1. Pio XI na Mortalium animas ( de 6 de janeiro
tendem a se tornar longas exposições dogmáticas. Basta de 1928), previne contra um pancristianismo conseguido
le~brar, ~or exemplo, a Mystici Corporis (1943), a Me- à custa de concessões doutrinais· inaceitáveis para a Igreja:
d!ator Dez (1948), a Sacra Virginitas (1954), a Haurie- "Alguns não-católicos alimentam a esperança de facilmente
tts aquas (1956). Cada uma dessas encíclicas apresenta poderem levar os povos, apesar de suas diferentes concep-
so_bre u~ ~eterm~nado tema, uma longa exposição da dou- ções religiosas, a se unirem em torno de algumas doutrinas
trina ca_tol~ca. Nao tanto para condenar, corrigir, prevenir, admitidas como fundamento comum de vida espirtual" 1
mas principalmente para esclarecer, ensinar e evidenciar Com essa finalidade promovem-se congressos que reúnem
pa~a o povo cristão as insondáveis riquezas do mistério do homens de todas as confissões e das mais divergentes idéias
Cnsto. Portanto, ainda que nenhum desses documentos tra- religiosas. Tais esforços "apóiam-se na errônea opinião se-
t~ ~iretamente do nosso tema, poderemos contar com expo- gundo a qual todas as religiões são mais ou menos boas e
s1çoes ocasionais mais ricas mais bem fundamentadas e tam- louváveis. Todas igualmente manifestariam e traduziriam,
b'em, como o veremos, mais' bíblicas. Evidentemente não será ainda que de modos diversos; o sentimento natural e inato
o c_aso 1e ,recolhermos todas as alusões à revelação, pois que que nos leva em direção a Deus e à aceitação respeitosa
sena~ _inumeras. Nesses documentos quase sempre o ter- de seu poder. Além de estarem totalmente errados, os par-
m~ indica. a revelação no sentido objetivo, ou seja: a pró- tidários dessa opinião renegam ao mesmo tempo a verda-
deira religião, cuja noção falseiam, e descambam gradual-
pn~ doutr1,na, o ~~angelho do Cristo, a mensagem de sal-
vaç~o, a fe evangehca, o conjunto de verdades e preceitos mente para o naturalismo e o ateísmo. É pois perfeitamente
ensinados pelo Mestre, o depósito, a totalidade das ver- evidente que abandonam de todo a religião revelada por
dades reveladas. Às vezes indica também a própria ação Deus aqueles que se unem aos partidários e propagandistas
~eveladora. Bastará estudarmos aqui só os documentos que dessas doutrinas 2 ".
interessam mais particularmente ao nosso tema ou apresen- 1 "Eam .in spem ingressi videntur, haud difficulter eventurum ut
tam um material mais abundante. populi, etsi de rebus divinis alii aliud tenent, in nonnullarum tamen pro-
fessione doctrinarum, quasi in communi quodam spiritualis vitae funda-
1. No pontificado de Pio XI mento fraterne consentiant" (AAS, 20 [1928]: 6).
2 "Ejusmodi sane molimenta probari nullo pacto catholicis possunt,
quandoquidem falsa eorum opiriione nituntur, qui censent religiones quas-
A história da primeira metade do século XX é marca- libet plus minus honas ac laudabiles esse, utpote quae etsi non uno modo,.
aeque tamen aperiant ac significent nativum illum ingenitumque nobis
da por duas tendências opostas. A primeira é caracterizada sensum, quo erga Deum ferimur ejusque imperium obsequenter agnosci-
348 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 349

Essa idéia de um pancristianismo, continua a encíclica, A doutriQ.a da Igreja, pois, apresenta, a revelação
teria conquistado alguns católicos. É urgente, pois, reafirmar como um fato histórico: uma intervenção divina na história,
o pensamento da Igreja sobre a única unidade religiosa sob a forma de palavra dirigida à humanidade. Ação con-
possível. A verdadeira religião .é uma religião revelada, é tinuada através do Antigo Testamento e que termina com o
nuina economia de revelação que a humanidade deve rea- Cristo. Porém, esse fato histórico 'tem um correspondente
lizar sua salvação: social: o fato da Igreja.
"Poderia Deus ter imposto ao homem apenas a norma Com efeito, para ajudar a humanidade no caminho da
da lei natural que lhe deixara gravada na alma ao ·salvação, o Cristo fundou a sua Igreja, a única verdadeira.
criá-lo, orientando depois com sua providência ordi- Os "pancristãos ", pelo contrário, julgam que todas as igre-
nária o desenvolvimento dessa mesma lei. Preferiu, jas têm o mesmo valor e pretenderiam estabelecer entre to-
contudo, acrescentar-lhe preceitos a serem observados; das uma espécie de "federação .universal", mediante mútuas
no decorrer dos tempos, da origem do mundo até concessões em matéria doutrinal: "Poderíamos permitir,
a vinda e a pregação do Cristo Jesus, pessoalmente diz a encíclica, ... que a verdade, principalmente a verda-
instruiu os homens sobre os deveres que todo de revelada, fosse assim posta em discussão? E no caso
ser racional tem para com seu Criador: 'Deus, que trata-se justamente de proteger a verdade revelada" 4 •
diversas vezes e de diversos modos pelos profetas, fala- Se a verdade revelada está na única Igreja do Cris-
ra. antes a nossos pais, nestes últimos tempos falou- to, se essa Igreja tem a missão de ensinar a todos os
-nos pelo Filho'. Por isso, não pode haver· religião povos a mesma fé evangélica, se para isso recebeu uma assis-
verdadeira além da que se baseia na revelação divina. tência especial do Espírito Santo, como se poderia conceber
Essa revelação, iniciada nas origens do mundo, e con- uma federação .cristã baseada na coexistência e fusão das mais
tinuada sob a lei antiga, foi aperfeiçoada por Cristo contraditórias opiniões? "Ambos os preceitos do Cristo -
Jesus na nova lei. Portanto, se Deus falou - o que o de ensinar e o de acreditar. . . - não podem ser obedeci-
é atestado pela história - é evidente que o homem dos e nem teriam sentido a não ser que a Igreja proponha
tem obrigação de prestar fé absoluta a Deus que fala integral e claramente a doutrina evangélica, gozando para
e obedecer-lhe fielmente as ordens" 3 • isso de total infalibilidade" 5 • A união das Igrejas não pode
ser feita às custas da fé. Jamais poderia a Igreja aceitar que
mus. Quam quidem opinionem qui habent, _non modo ii errant ac falluntur,
sed etiam, cum veram religionem, ejus notionem depravando repudient, "a verdade. dogmática não seja absoluta, mas relativa, deven-
tum ad naturalismum et atheismuin, ut aiunt, gradatim deflectunt: unde ma- do portanto adaptar-se às mutáveis exigências dos tempos,
nifesto consequitur ut ah revelata divinitus religione omnino recedat quisquis dos lugares e das inclinações das almas e isso porque não
talia sentientibus molientibusque adstipulatur" ( AAS, 20 (1928) : 6).
3 "Potuit quidem Deus regendo homini unam tantummodo praes- se baseando numa revelação imutável, deve necessariamente
tituere . naturae legem, quam, scilicet, creando, in ejus animo insculpsit, acomodar-se à vida dos homens" 6 • Nem pode a Igreja admi-.
ejusque ipsius legis ordinaria deinceps providencia temperare incrementa;
ut vero praecepta ferre maluit, quibus pareremus, et decursu aetatum, tir que entre os dognias da fé ·haja artigos fundamentais e
sciliéet ah humani generís primordiis ad Christi Jesu adventum et praedi-
cationem, hominem ipsimet officia docuit, quae a natura rationis participe 4 "Num nos patiemur - quod prorsus iniquum foret - veritatem,
sibi Creatori deberentur: Multifariam multisque modis olim Deus loquens eamque divinitus revelatam, in pactiones deduci? Etenim de veritate
patribus in prophetis, novissime diebus istis locutus est nobis in Filio, revelata tuenda in praesentí agitur" ( lbid., p. 11).
Liquet inde, vetam religionem esse posse nullam praeter eam quae verbo 5 "Utrumque Christi praeceptum.. . . alterum scilicet docendi, alterum
Dei revelato nititur: quam quidem revelationem, fieri ah initio coeptam credendi ad aeternae adeptionem salutis, ne intelligi quidem potest, nisi
et sub. Vetere Lege continuatam, Christus ípse Jesus sub Nova 'perfecit. Ecclesia evangelicam doctrinam proponat integram ac perspicuam sitque
Jamvero si locutus est Deus - quem reapse locutum, historiae fide in ea proponenda a quovis errandi periculo immunis" (Ibid., pp. 11-12).
comprobatur -, nemo non videt hominis esse Deo et revelanti absolute 6 "Tenent iidem, veritatem dogmaticam non esse absolutam, sed
credere et omnino oboedire imperanti" (Ihid., p. 8). relativam, id est variis temporum locorumque necessitatibus variisque ani-
350 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 351
artigos não fundamentais: "A autoridade de Deus que re- zar a unidade religiosa é favorecer a volta dos dissidentes à
vela é a causa formal sobrenatural da fé; essa autoridade é verdadeira Igreja do Cristo. Ninguém, porém, faz· parte
incompatível com uma distinção desse gênero" 7 • · dessa Igreja, "coluna e sustentáculo da verdade", a não
A seguir a encíclica apresenta a função da Igreja com ser que lhe aceite a doutrina em sua totalidade.
relação à verdade revelada. O magistério da Igreja "foi 2: As doutrinas que o orgulho racial inspirou aos teó-
estabelecido por Deus para conservar perpetuamente intato ricos do nazismo alemão deram também a Pio XI ocasião
o depósito das verdades reveladas, e levá-lo ao conhecimento para definir precisamente vários conceitos - entre eles o de
dos homens de maneira fácil e segura" 8 • Esse magistério, revelação - por eles utilizados depois de uma sacrílega tran-
além de sua função ordinária e cotidiana, "deve também dar substanciação. Pio XI publicou sua encíclica Mit brennender
· definições oportunas e solenes, sempre que isso for neces- Sorge no dia 14 de março de 1937.
sário para mais eficazmente se opor aos erros e ataques dos Relembra a encíclica que "nenhuma fé se poderá man-
hereges ou para explicar mais clara e detalhadamente certos ter por longo tempo- pura e sem mescla a não ser que esteja
pontos da doutrina sagrada, tornando-os mais acessíveis aos apoiada pela fé no Cristo", pois é o Filho que revela o Pai, e
fiéis. Com esse magistério extraordinário nada se inventa segundo o desígnio divino, é o conhecimento do Cristo que
nem acrescenta ao conjunto das verdades contidas, pelo me- deve levar ao conhecimento do Pai:
nos implicitamente, no depósito da revelação divina confiado "Ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai, e ninguém
por Deus à Igreja. Apenas enuncia o que até então .poderia conhece o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o
parecer obscuro para alguns ou declara como objeto de fé Filho o quiser revelar ( Mt 11,27). Nisto consiste a
o que antes era para alguns ponto controvertido" 9 • Aqui vida eterna: que te conheçam a ti, único e verdadeiro
novamente encontramos reunidos os termos equivalente,;;: Deus, e aquele que enviaste, Jesus Cristo" (Jo 17,3).
doutrina sagrada, revelação, depósito de verdades. Ninguém, pois, poderá dizer: eu Creio em Deus, isso
Finalmente, conclui a encíclica, o único meio de reali- me basta como religião. A palavra do Salvador não
permite semelhantes escapatórias: "Quem quer que
morum inclinationibus congruentem, cum ea ipsa non immutabili reve• negue o Filho não possui tampouco o Pai; quem con-
latione contineatur, sed talis sit, quae hominum vitae accommodetur" fessa o Filho possui também o Pai" .(lJo 2,23 ). Em
( Ibid., p. 13). Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, mostrou-
7 "Supernaturalem enim virtus fidei causam formalem habet Dei reve-
lantis auctoritatem, quae nullam distinctionem ejusmodi patitur" ( lbid. -se a plenitude da revelação divina. "Muitas vezes e
p. 13. de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais,
8 "Etenim Ecclesiae magisterium - quod divino consílio in terris nos profetas; nestes últimos tempos falou a nós no
constitutum est ut revelatae doctrinae cum incolumes ad perpetuitatem
consisterent, tum ad cognitionem hominum facile tutoque traduceren- · Filho" (Hebr 1,1) 10 •
tur ... " (Ibid., p. 14).
9 "Ecclesiae magisterium. . . quanquam per Romanum pontificem et
Episcopos cum eo communionem habentes quotidie exercetur, id tamen
°
1 Kein Gottesglaube wird sich auf die Dauer rein und unverfaischt
erhalten, wenn er nicht gestützt wird voni Glauben an Chti1>tus .. "Niemand
complectitur muneris, ut, si quando aut haereticorum erroribus atque kennt den Sohn ausser dem Vater, und niemand kennt den Vater ausser
oppugnationibus obsisti efficacius aut clarius subtiliusque explicata sacrae dem Sohn, und wem es der Sohn offenbaren will" (Mt' 11,27). "Das
doctrinae capita in fidelium mentibus imprimi oporteat, ad aliquid tum ist das ewige Leben, dass sie Dich erkennen, den allein wahren Gott,
solemnibus ritibus decretisque definiendum opportune procedat. Quo und den Du gesandt hast, Jesus Christus" (Jo 17,3). Es darf also
quidem extraordinario magisterii usu nullum sane inventum inducitur nec niemand sagen: Ich bin gottgliiubig, das ist mir Religion genug. Des
quidquam additur novi ad earum summam veritatum, quae in deposito Heilands Wort hat für Ausflüchte dieser Art keinen Platz. "Wer den
Revelationis, Ecclesiae divinitus tradito, saltem implicite continentur, Sohn leugnet, hat auch nicht den Vater; wer den Sohn bekennt, hat
verum aut ea declaratur quae forte adhuc obscura compluribus videri auch den Vater" (lJo 2,23). ln Jesus Christus, dem menschgewordenen
possint aut ea tenenda de fide statuuntur quae a nonnullis ante in con- Gottessohn, ist die Fülle der gqttlichen Offenbarung erschienen" (AAS,
troversiam vocabantur" ( Ibid., p. 14). 29 [1937]: 150).
352 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 353
Em Jesus Cristo mostrou-se a plenitude da revelação A própria fé no Cristo, acrescenta a encíclica, não pode
divina, como diz a encíclica. Essa afirmação pode ser en- subsistir a não ser protegida e sustentada pela fé na Igre-
tendida de três modos no texto: ja. Tendo esta recebido do Cristo um mandato para con-
a) No sentido imediato indicado pelo contexto: o co- servar a pureza da palavra divina, é por ela que nos vem o
nh~cimento do Deus verdadeiro chega até nós mediante o Evangelho do Cristo. "Vale para os homens de todos os
Cristo. Ele que nos faz conhecer quem é Deus, não já dé tempos e de todas as religiões o mandamento que ele nos
modo gradual e parcial, como os profetas do Antigo Testa- deu de ouvir a Igreja (Mt 18,17), de acolher as palavras
m~nto, mas de uma vez e totalmente. O Cristo é o per- e os mandamentos da Igreja como suas próprias palavras e
feito Revelador, pois que é o Filho, partilha com o Pai o co- mandamentos ( Lc 10,16)" 12 •
nhecimento dos segredos divinos, estando, pois ontologica- Pio XI, finalmente, chama a atenção para que "os con-
mente qualificado para os revelar. O que o Pai é e qual ceitos religiosos fundamentais não sejam esvaziados de seu con-
seu plano de salvação para a humanidade, o Cristo no-lo teúdo essencial e recebam um sentido meramente profano.
disse de modo completo, pelo menos quanto ao essencial, Revelação, no sentido cristão do termo, indica a palavra que
pois que também os apóstolos são ( subsidiariamente) revela- Deus dirigiu aôs homens. Usar esse mesmo termo para in-
dores instruídos pelo Espírito Santo. dicar as sugestões do sangue e da raça, as irradiações da
b) O Cristo é também plenitude da revelação, en- história de um povo, é certamente criar um equívoco. Se-
quanto ele mesmo é, em Pessoa, o Verbo do Pai, "irradia- melhante falsa moeda não merece curso entre os fiéis· do
ção do seu esplendor e cunho de sua substância" ( Hebr Cristo" 13 • Correlativamente, a fé como resposta à revelação
1,3), "imagem do Deus invisível" (Col l_,15; 2Cor 4,4), cristã consiste em ter por verdadeiro o que Deus revelou e
o Deus que revela e o Deus .revelado, quem fala e de quem por sua Igreja propõe aos homens para crerem" 14 •
se fala. Em poucas palavras, o ensinamento de Pio XI so-
c) Finalmente; num último sentido ( sugerido pelo bre a revelação pode ser assim apresentado: A economia
verbo erschienen e pela preposição in): encarnando-se, o Ver- atual é uma economia de revelação. Deus falou: é um
bo usou para sua missão de revelação todos os meios de fato atestado pela história. Falou inicialmente pelos profe-
expressão humana, o facere e o docere ( At 1, 1 ) : fatos e tas, depois pelo Cristo, Verbo encarnado, que veio trazer aos
ações ( vida, paixão, morte, ressurreição) interpretados pela homens o conhecimento do Deus verdadeiro. No Cristo,
palavra do Cristo que exprime seu alcance salvífico e os Filho único do Pai, culmina a revelação divina, como ação,
apresenta como objetos do testemunho divino.
keine Nachtrage durch Menschenhand, kennt erst recht keinen Ersatz
Qualquer revelação meramente humana que se acres- und keine Ablosung · durch die willkürlichen "Offenbarungen ", die gewisse
centasse à Boa-:nova trazida por Cristo, não poderia ser senão Wotführer der Gegenwart aus dem sogenannten Mythus und Rasse her-
uma pseudo-revelação: "O ponto culminante que a revela- leiten wollen" (lbid., p. 151).
12 "Sein Gebot, die Kirche zu horen (Mt 18,17), aus den Worten
ção atingiu no Evangelho de Cristo é definitivo. É obri- und Geboten der Kirche Seine eigenen Wotte un Gebote herauszuhoren
gatório para sempre. Essa revelação não pode ser comple- (Lc 10,16), gilt für die Menschen aller Zeiten und Zonen" (lbid., p. 152).
13 "Ein besonders wachsames Auge, Ehrwürdige Brüder, werdet 1hr
mentada por mãos humanas, nem tampouco abolida ou haben müssen, wenn religiose Grundbegriffe ihres Wesensinhaltes be-
substituída por arbitrárias "revelações" que certos líderes raubt und in einem profanen Sinne umgedeutet werden. Offenbarung im
( Wortführer) da atualidade pretendem deduzir do assim christlichen Sinn ist das Wort Gottes an die Menschen. Dieses gleiche
chamado mito do sangue e da raça "11 • Wort zu gebrauchen für die Ausstrahlungen der Geschichte eines Volkes
ist in jedem Fall verwirrend. Solch falsche Münze verdient nicht in den
Sprachschatz eines glaubigen Christen überzugehen" ( lbid., ·p. 156).
11 "Der im Evangelium 'Christi erreiclite Hohepunk der Offenbarung 14 "Glaube ist das sichere Fürwahrhalten dessen, was Gott geoffenbart
ist endgültig, ist verpflichtend für immer. Diese Offenbarung kennt hat und durch die Kirche zu glauben vorstellt" (lbid., p. 156).

12 • Teologia da revelação
354 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 355
como mensagem e como economia. Não existe, pois, senão Deus conferiu à sua Igreja o Magistério vivo para que tam-
uma religião: a religião revelada. E também existe uma só bém esclarecesse e explicitasse o que no depósito da· fé está
Igreja, fundada pelo Cristo e assistida pelo Espírito, atra- contido apenas de forma obscura e como que implícita" 16 •
vés da qual recebemos a palavra divina imutável e absoluta. Isso quer dizer que todos os dogmas estão contidos na dou-
A função da Igreja é guardar para sempre intata, como um trina revelada, alguns explicitamente, implicitamente outros;
depósito, a doutrina revelada, sem nada acrescentar ou al- é função do teólogo mostrar como aquilo que a Igreja en-
terar. Deve levá-la ao conhecimento de todos os homens sina "está explícita ou implicitamente contido nos livros
como uma Boa-nova; deve defendê-la contra o erro e, se for sagrados e na divina tradição" 17 •
necessário, deve definir certos pontos, explicitando e esclare- 2. Na Bula dogmática Munificentissimus Deus, Pio
cendo. O homem deve acolher a revelação, a palavra pro- XII exprime-se do mesmo modo. Declara que a assunção
ferida por Deus, e a ela submeter-se. A fé consiste em corporal de Nossa Senhora "é uma verdade revelada por
aceitar como verdadeiro o que Deus disse e revelou, e agora Deus e contida no depósito divino, confiado por Cristo à
nos propõe mediante a sua Igreja. Aderindo assim à ver- sua Esposa, para que ela o guarde fielmente e infalivel-
dade proposta, com toda a alma e no espírito da Igreja, met).te o proclame. O· Magistério da Igreja, não apenas
o fiel inicia em si mesmo esse conhecimento que, segundo com meios humanos, mas com a assistência do Espírito da
o, Cristo, terá na vida eterna sua plena realização. verdade (Jo 14,26), e por isso sem qualquer erro exerce
a função que lhe foi confiada de conservar através dos séculos,
2. No pontificado de Pio XII puras e íntegras, as verdades reveladas. Por isso as trans-
mite sem alteração, sem nada acrescentar nem suprimir" 18 •
Entre os documentos publicados por Pio XII exami- Objetivamente, pois, a revelação apresenta-se como um
naremos os seguintes que contêm passagens referentes ao conjunto de verdades, um sagrado depósito que a Igreja con-
nosso tema: Humani Generis ( 12 de agosto de 1950), serva vigilantemente. Esse depósito vive no coração da Igre-
Munificentissimus Deus ( 1 de novembro de 1950), Ad ja, que é divinamente assistida para poder conservá-lo sem
Sinarum Gentem (7 de outubro de 1954). contaminação, para ter dele uma consciência sempre mais cla-
1. A Humani Generis, mesmo sem tratar explicita- ra, sem acresce~tar novas verdades, mas por um processo
mente da própria noção de revelação, toca em pontos que de ex:plicitação das verdades contidas nesse depósito que a
lhe são conexos: desenvolvimento dogmático, motivos de reflexão humana jamais poderá esgotar. A Igreja é levada a
credibilidade, função do magistério eclesiástico ante a ver- essa explicitação pela necessidade de defender a verdade reve-
dade revelada. Falando da revelação em seu sentido objeti-
vo, a encíclica designa-a como: "verdade revelada" (D. 16 "Una enim cum sacris ejusmodi fontibus Deus Ecclesiae suae Ma-
2310), "verdade divinamente revelada" (D. 2307), que gisteriuin vivum dedit, ad ea quoque illustranda et enucleanda, quae in
contém "tesouros de verdade" (D. 2314), "depósito re- fidei deposito nonnisi obscure ac velut implicite continentur" (D. 2314).
17 "Eorum... est indicare qua ratione ea quae a vivo Magisterio
velado" (D. 2314 ), "depósito de fé" (D. 2313-2314 ). O docentur, in Sacris Litteris et in divina traditione, sive explicite, sive
Cristo confiou à Igreja "todo o depósito da fé, a Sagrada implicite inveniantur" (D. 2314).
18 "Ejusmocli privilegium veritatem esse a Deo revelatam in eoque
Escritura e a divina tradição, para que o guarde, defenda
e mterprete
• ,, 15 . "Juntamente com essas f ontes sagradas, contentam divino deposito, quod Christus tradidit Sponsae suae fideliter
custodiendum et infallibiliter declarandum. Quocl profecto Ecclesiae ma-
gisterium non quidem industria mere humana, sed praesidio Spiritus veri-
15 "Christus Dominus totum depositum fidei - Sacras nempe Litteras tatis, atque adeo sine prorsus ullo errore, demandata sibi munere fungitur
ac diviham traditionem - ad custodiendum et tuendum et interpretandum revelatas adservandi veritates omne per aevum puras et integras; quamobrem
concredidit" ( D, 2313). A rriesma afirmação é repetida diversas vezes na eas intaminatas tradit, eisdem adjiciens nihil, nihil ah iisdem detrahens"
encíclica: D. 2307, 2315, 2325, 2327. (AA~, 42 (1950): 756-757).
356 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 357
lada ou pelo impulso da piedade ou da reflexão teológica. É
dessa Igreja sempre viva que recebemos o objeto de nossa 3. No pontificado de Paulo VI
fé. Estão em suas mãos as fontes da revelação, com as
explicitações feitas. Como observa a Humani generis, Entre os textos de Paulo VI é a encíclica Ecclesiam
quando voltamos às fontes não é para julgar segundo suam ( 6 de agosto de 1964) que mais interessa ao nosso
elas as explicitações da Igreja, mas para interpretar as fon- tema. Descreve a encíclica o duplo movimento e dupla ati-
tes à luz da Igreja que nos diz infalivelmente o que elas tude que caracterizam a Igreja do Cristo: a fidelidade e o
contêm. Proceder de maneira inversa seria "explicar - o aggiornamento. Ao mesmo tempo que deve permanecer fiel
claro pelo obscuro", preferir o implícito à verdade explí- à verdade recebida do Cristo, deve a Igreja estar atenta
cita 19 • . aos sinais dos tempos 21 • Deve "inserir a mensagem cristã
3. A encíclica Ad Sinarum Gentem ( 7-10-1954) ad- no círculo do pensamento, da palavra, da cultura, dos hábi-
verte os fiéis chineses contra uma falsa concepção da trí- tos e tendências da humanidade, como ela vive hoje e se
plice autonomia ( de governo, de economia, de pregação). agita sobre a face da terra" 22 • Distinta do mundo, mas mer-
Tratando da autonomia quanto à pregação, explica que uma gulhada no mundo para transformá-lo, nele vivendo, a "Igre-
justa e sadia liberdade concedida quanto aos métodos não ja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igre-
deve chegar ao ponto de pôr em questão a própria doutri- ja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio" 23 •
na e sua interpretação. "Com que direito poderiam os ho-
mens interpretar a seu bel-prazer, diversamente em cada na- possunt homines, alio in aliis Nationibus modo, pro arbítrio suo inter-
pretari? Sacrorum Antistitibus, qui Apostolorum successores sunt, ...
ção, o Evangelho que nosso Senhor Jesus Cristo divinamente munus demandatum est Evangelium illud annuntiandi ac docendi quod
nos revelou?" Os bispos, sucessores dos apóstolos e os Christus ipse ejusque Apostoli annuntiavere ac docuere primi, ef quod
presbíteros, colaboradores dos bispos, devem "anunciar e haec Apostolica Sedes omnesque Episcopi, eidem adhaerentes, per saeculo-
rum decursum illibatum inviolatumque servarunt ac tradiderunt. Sacri
ensinar esse Evangelho que o próprio Senhor e seus após- igitur Pastores hujus Evange!ii non inventores auctoresve sunt, sed
tolos anunciaram e ensinaram". Eles "conservaram-no e $Olummodo custodes ex auctoritate, ac praecones divinitus constituti.
transmitiram ilibado e íntegro através dos séculos". Eles não Quamobrem Nosmet ipsi et Episcopi una Nobiscum hanc Jesu Christi
sententiam iterare possumus ac debemus: "Mea doctrina non est mea
são autores do Evangelho, mas "apenas depositários e arau- sed ejus qui misit me" (Jo 7,16). Atque omnibus cujusvis tempori~
tos constituídos pela autoridade de Deus". Podem assim re- sacrorum Antistitibus hoc Apostolí Pauli hortamentum tribui potest: "O
petir as palavras do Cristo: "Minha doutrina não é mi- Timothee, depositum custodi, devitans profanas vocum novitates et opposi-
tiones falsi nominis scientiae"; itemque haec ejusdem Apostoli sententía:
nha, mas daquele que me enviou" (Jo 7,16). Os bispos de depositum custodi per Spiritum sanctum, qui habitat in nobis" (2Tim
todos os tempos repetem a exortação de Paulo: "ó Timóteo, "Bonum depositum custodi per Spiritum sanctum, qui habitat in nobis"
guarda o depósito, evitando as vaidades profanas de palavras 1,14). . . Cum certissimum Nobis sit hanc doctrinam quam Sancti
Spiritus ope innixi, tueri integram debemus, divinitus fuisse fraditam,
e as contradições de uma pretensa ciência". E mais estas haec Apostoli. gentium iteramus verba: "Sed licet nos, aut. angelus de
palavras do mesmo Apóstolo: "Guarda o bom depósito, coelo evangelizet vobis praeterquam quod evangelizavimus vobis, anathema
sit" (AAS, 47 [1955]: 10-11).
com a virtude do Espírito Santo, que habita em nós". Uma .• 21 Paulus VI, Ecclesiam suam, AAS, 56 ( 1964): 632. Nas citações
vez que "foi divinamente revelada a doutrina" cuja integri- utthzamos, com algumas pequenas alterações, a tradução publicada pelas
dade a Igreja deve defender, seja anátema quem anunciar Edições Paulinas ( São Paulo, 1965, 3~).
22 "Nonne Concilium ipsum, ex eo cj_uod sibi proposuit, pastorali
um Evangelho diferente daquele que é pregado pela Igreja 20 • munere, illuc contendit jure meritoque, ut christianus· nuntius in cogita-
tiones influat, in verba, in cognitiones, in mores, in sensa hominum qui
19 "Si autem hoc suum munus Ecclesia exercet,... patet omnino in terrarum orbe hodie vivunt et animis aestuant?" (lbid., 640-641).
falsam esse methodum, qua ex obscuris clara explicentur, quin immo con- 23 "Ecclesiae in colloquium veniendum est cum hominum societate
trarium omnes sequi ordinem necesse est" (AAS, 42 (1950): 569). in qua vivit; ex quo fit, ut eadem veluti speciem et verbi et nuntii e;
20 "Evangelium, divinitus a Jesu Christo traditum, quonam jure colloquii induat" ( lbid., 639). ' '
358 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 359
1. O protótipo do diálogo entre a Igreja e o mundo É a primeira vez que uma encíclica salienta tanto o
é o diálogo do próprio Deus com os homens, diálogo que caráter dialogal da revelação. É verdade que os documentos
chamamos revelação: anteriores 25 , a exemplo da Escritura, apresentavam a reve-
A revelação, ou seja, a relação sobrenatural que o pró- lação como uni intercâmbio de palavras entre Deus e o ho-
prio Deus estabeleceu com os homens, podemo-la imagi- mem; jamais, porém, tinham orquestrado todas as riquezas
nar como diálogo em que o Verbo de Deus se exprime do tema. A encíclica, descrevendo a revelação não apenas
a si mesmo na encarnação e depois no Evangelho. Esse e.orno palavra, mas tambéni como diálogo ( colloquiu:m) e con-
colóquio paternal e santo entre Deus e o homem, in- versação ( sermocinatio: Bar 3 ,38), salienta àinda mais seu
terro~pido pelo pecado original, é maravilhosamente caráter interpessoal e dinâmico. O Deus da revelação não
reatado no decurso dos tempos. A história da salvação é um Ser do qual se fala em terceira pessoa. É um Eu
narra este diálogo longo e variado que Deus iniciou e ~ue se dirige a um Tu: o Deus vivo, puramente por amor,
continuou com o homem. É nesta conversação de Cristo ·sai de seu mistério e entra em comunicação com o homem,
entre os homens ( cfr. Bar 3,38) que Deus dá a en- dialoga e conversa, para estabelecer uma comunhão de pen-
tender alguma coisa de si - o mistério de sua vida, samento e de vida.
admiravelmente una na essência e trina nas pessoas - De fato, essa estrutura dialogal é que caracteriza
e diz em resumo como quer ser conhecido. Ele é amor, a revelação. Da sarça em chamas, Deus interpela Moi-
e como quer ser honrado e servido por nós. Amor é o sés: "Moisés, Moisés . . . Sou eu, o Deus de teu pai,
mandamento supremo que nos impõe. O diálogo torna- o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó"
-se pleno e confiado: é convite para a criança, e o mís- ( Ex 3 ,4-6). A revelação da Lei assim começa: "Eu sou
tico plenamente com ele se sacia. Esta inefável e realís- o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da
sima relação de diálogo, que Deus Pai nos propõe e casa da escravidão" ( Dt 5 ,6 ) . Eu, Deus, e tu, meu povo:
estabelece conosco por meio de Cristo no Espírito Santo, o Deus libertador e salvador interpela Israel e convida-o
é preciso que a tenhamos sempre presente para enten- à fidelidade numa santa aliança com ele. Deus chama Sa-
dermos a relação que nós, queremos dizer a Igreja, muel, fala-lhe, e Samuel responde: "Fala, Senhor, que teu
devemos procurar restabelecer com a humanidade" 24 • servo escuta" ( lSam 3,10). Deus dialoga com Isaías (Is
6, 1-7 ) , com Jeremias (Jer 1,4-10 ) , com suas testemunhas
e com seus arautos, os profetas, e por seu intermédio di-
24 "Tum etiam revelatio, - id est ratio suprema, quam Deus ipse rige-se a seu povo. Em o Novo Testamento, a Palavra de
cum hominibus instauravit - quasi ·quoddam colloquium haberi potest,
quo Verbum Dei sive per Incarnationem, sive in Evangelio loquitur. Deus em pessoa, essa Palavra interior com a qual o Pai
Colloquium paternum et sanctum inter Deum et homines, quod post mantém um eterno diálogo -de amor, essa Palavra faz-se
miserum Adae casum abruptum erat, postea per aetates .et tempora redin- carne e, mediante a encarnação, interpela o homem e con-
tegratum est. Re enim vera historiae humanae salutis hoc longum et
varium colloquium produnt, quod Deus mirifice cum hominibus inchoat vida-o à fé; pela carne da Escritura faz-se Evangelho e fala-
cum iisdemque multimodis protrahit. ln hujuscemodi prorsus Christi ~nos. Assim a revelação toma a forma de um longo e paté-
inter homines quasi sermocinatione (Bar 3,38) aliquid Deus de se de-
monstrat, de suae vitae arcano, de sua videlicet unica essentia, Personis tico diálogo entre Deus e sua criatura: diálogo interrompido
trina. Simul autem significat, hinc qualis a Nobis agnosci velit, uti Amor
plane; illinc qua ratione velit sibi et honorem et officium a nobis adhiberi, Spiritu Sancto aperuit et nobiscum instituit: si modo nos, hoc est
amorem certe ut nihil supra nobis imperans. Ad colloquium id genus, Ecclesia, intelligere cupimus, quaenam sit nobis cum hominibus ineunda
quod identidem fit crebrum et fiduciae plenum, cum puer vocatur, tum atque intendenda necessitudo" ( Ibid., 641-642).
25 Por exemplo, a encíclica Qui pluribus ( D. 1638), o Vaticano I
mysticis disciplinis initiatus homo, cujus animi vires eo sane explentur.
Hoc igitur nomine opus est nos veram hujusmodi ·et inenarrabilem (D. 1785), o juramento anti-modernista (D. 2145), a enclíclica Mit
colloquii consuetudinem intueri, quam Deus Pater per Jesum Christum in brennender Sorge (AAS 29 (1937): 156), a encíclica Mortalium animos
(AAS 20 [1928]: 8).
O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 361
JC>Ü NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
o homem meio de conhecer a si .mesmo, e também aqui
pelo pecado do homem, mas r~atado pelo amor de Deus.
pelo diálogo, porque é no diálogo com o outro que? homem
Um diálogo constante reatado por Deus, apesar das cons- toma consciência de si mesmo e descobre-se para s1 mesmo.
tantes infidelidades do homem. Arrebatadora imagem do Até certo, ponto, como o diz muito bem J. Lacroix, não é
diálogo pessoal de cada homem com Deus. Deus sempre
tanto a pessoa que faz o diálogo; é mais o diálogo que
chamando, e o homem sempre esquivo a fugir, a tapar os faz a pessoa zr. Pelo diálogo duas interioridades renunciam
ouvidos para não ouvir. a seu isolamento ou à sua oposição para que se possam
A encíclica salienta o caráter trinitário desse diálogo encontrar: revelando-se mutuamente, cada qual se revela
do qual participam as três Pessoas divinas: o Pai, que tem para .si mesmo 28 • . •
a iniciativa; o Verbo que, pela encarnação, é o Mediador; Contudo, o diálogo não chega a isso a não ser que seJa
o Espírito, que torna a palavra do Cristo assimilável à alma, atividade máxima e máxima receptividade, acolhida mútua e
pela unção que lhe concede, pois sem o Espírito, que trans- mútua doação. A base de qualquer diálogo é o profundo res-
forma a inteligência e o coração, como poderia o homem peito pelo outro e uma disponibilidade; com o que já te~os
abrir-se ao que lhe é estranho? um começo de amor. Como o observa Paulo VI na Eccleszam
O principal objeto desse diálogo amoroso é o segredo suam, essa forma de relacionamento que cham~os diálogo
da vida divina, na unidade da essência e na Trindade das implica "por parte de quem a inicia, um prop6s1to de urba-
pessoas. Revela-se Deus como •O Deus do amor ( lJo 4,8), nidade, de estima, de simpatia e de bondade" 29 • Não há
que quer ser honrado e servido por amor. Seu manda-
diálogo sem oferta de si mesmo~ Há diálogo perfei~o quan-
mento supremo é o amor (Me 12,29-30; Jo 15,10;1,21 ). do quem fala escuta tão bem que desperta a confiança de
Semelhante confidência, tendo por objeto o pr6prio mis- quem deve responder. E, reciprocamente, quando quem
tério da intimidade divina, é da parte de Deus, uma ma- escuta manifesta tanta atenção e simpatia que leva o outro
nifestação e uma doação de amor, tendo em vista a amizade. a ceder-lhe a palavra para ouvi-lo. Semelhante diálogo não é
A revelação nascendo do amor, realiza uma obra de amor. possível a não ser que, de antemão, esteja disposto a ser mo-
2. Entre o diálogo humano e o diálogo divino há dificado reorientado, interrompido e retomado; a não ser que
como que uma relação dialética. Partindo do sentido que as paixões, principalmente o interesse e o desejo de domin~r,
o diálogo tem nas relações humanas é que nos representa- estejam superadas; a não ser, finalmente, que cada um aceite
mos o diálogo divino, seja no seio da Trindade, seja entre corajosamente o jogo da verdade oferecida e reconheci?ª· A
Deus e a humanidade. Mas, por outro lado, o diálogo grande tentação do diálogo é o mon6logo, para dominar o
divino da revelação mostra-nos como deve ser o diálogo da outro, ou a recusa do diálogo, para eliminar e outro. No verda-
Igreja com a humanidade e o diálogo do cristão com os deiro diálogo está sempre contida a possibilidade de uma mor-
outros homens. te e de um holocausto: justamente por isso não é possível a
Entre os homens, o diálogo é a· primeira forma da não ser na caridade 30 • É somente pela caridade que o diá-
palavra, que é diálogo antes de ser mon6logo. A palavra logo pode culminar numa comunhão em que o homem,
tende para a ação. Até mesmo podemos dizer que, para o
homem, ela é a ação primordial: ação pela qual ele inter- 27 J. LACROIX, "La filosofia del Dialogo", em Studi Cattolici 8 nov.-
vem no mundo e no curso da existência de seus semelhan- -dezembro de 1964), p. 57. .
28 M, NÉDONCELLE, La réciprocité des consciences (Paris,. 1942),
tes: ação pela qual ele sai de si mesmo para ir em dire-
pp. 16-17. . . . . . . . d'
ção ao outro, para se-lhe-dar ou para conquistá-lo. A pa- 29 "Qui hujus necess1tudm1s genus adJung1t. .. s1b1 ~tatqtum. osten tt,
lavra é antes de tudo diálogo 26 • A palavra é também para ut et urbane agat, et magni aestimet alios, et benevolenttam borutatemque
erga alios declaret" ( AAS 56 [ 1964]: 644).
30 J. LACROIX, La filosofia del Dialogo, pp. 50-60.
26 L. BouYER, Le rite et l'homme (Paris, 1962), pp. 80-83
362 NOÇÃO D~ REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 363
deixando de ser autosuficiente, sai de si mesmo para se dativa divina: Ele foi o primeiro a amar-nos" 34 • Na reve-
transformar no outro, sem deixar de ser ele mesmo 31 • lação tudo é amor, tudo é graça.
A Ecclesiam suam assim resume as qualidades do diá- b ) É um diálogo nascido "da caridade, da bondade
logo: clareza, mansidão, confiança, prudência. Quanto à divina" 35 •
mansidão, diz a encíclica: "O diálogo não é orgulhoso, c) "O diálogo da salvação não se proporcionou aos mé-
não é pungente, não é ofensivo. A autoridade vem-lhe da ritos dos interlocutores convidados nem aos resultados
verdade que expõe, da caridade que difunde, do exemplo que iria · conseguir ou malbaratar" 36 •
que propõe; não é comando, não é imposição. O diálogo d) É um diálogo de imensa importância, isso porque é a,
é pacífico, evita os modos violentos; é paciente e é gene- salvação que está em jogo, e ao mesmo tempo infinitamente
roso" 32 • E a respeito da confiança na capacidade acolhe- respeitoso da liberdade humana. "O diálogo da salvação não
dora do outro: "Ela produz confidências e amizade; enlaça obrigou fisicamente ninguém a responder: foi pedido insis-
os espíritos numa adesão mútua aó Bem, que exclui qualquer tente de amor que) se constituiu responsabilidade tremen-
interesse egoísta" 33 • da naqueles a quem foi dirigido ( cfr. Mt 11,21 ) , os
Entre. o diálogo de Deus com os homens e o diálogo deixou livres para corresponder ou fechar os ouvidos" 37 •
do homem com o homem existe analogia, mas não identidade. De passagem, a encíclica salienta que os sinais da revela-
Com efeito, no diálogo da salvação, quem interpela é. o ção não coagem a liberdade humana, mas se lhe oferecem
próprio Deus vivo, o Senho.r cuja palavra vem do mundo como um socorro para que possa dar um assenso livre
transcendente da vida divina e convida o homem para a obe- e meritório: o diálogo da salvação "adaptou até o número
diência da fé. Sua palavra é testemunho infalível do Deus da e a força probante dos sinais (cfr. Mt 12,38ss) às exigên-
cias e disposições espirituais dos homens ( cfr. Mt 13,13ss);
verdade. Contudo, levada em conta essa diferença essen-
facilitou assim aos ouvintes o consentimento livre à reve-
cial, o diálogo salvífico pode servir de inspiração e de exem- lação divina, sem perda do mérito" 38 •
plo para as relações da Igreja com o mundo e de cada cris- e) O diálogo da salvação não exclui ninguém, "foi
tão com os homens seus irmãos, principalmente no referen- destinado a todos sem qualquer discriminação" 39 •
te à confiança e à caridade. Assim descreve a encí- f) Finalmente, esse diálogo foi obra de paciência e
clica as propriedades ou características do diálogo da re- sábia pedagogia: teve "progressos sucessivos, humildes prin-
velação: cípios antes do resultado pleno" 40 , respeitou a lenta ma-
a) É um diálogo "aberto espontaneamente por ini- turação psicológica e histórica da humanidade.
34 Ibid., 642.
31 M. NÉDONCELLE, La réciprocité des consciences, p. 17. 35 Ibid., 642.
32 "Deinde colloquium nostrum necesse est ea lenitas comitetur, 36 Ibid., 642.
quam Christus ut a se ipso disceremus hortatus est: discite a me, quia 37 "Adeo adfuit ut quisquam vi cogeretur venire ad colloquium sa-
mitis sum et humilís corde (Mt 11,29); quandoquidem indecorum e~t lutis, ut is magis amore impulsionis invitaretur. Qua •invitatione, quam-
colloquium nostrum superbia tumere, aculeata usurpare verba, alios acerbe quam grave onus ejus animo impositum est ad quem pertinuit (Mt 11,~l),
laedere. Ah eo auctoritatem ipsum repetit, quia verum declarat, quia relicta tamen est ipsi potestas aut veniendi ad colloquium aut illud fugien-
caritatis dona disseminat, quia virtutis exempla supponit, quia jussis non di" (Ibid., 642).
utitur, quia nihil injungit. Idem adhuc pacatum est, rationes respuit 38 "Quin immo Christus sive miraculorum numerum (Mt 12,38s),
immoderatas, contraria tolerat, ad liberalitatem inclinat" (AAS 56 [ 1964]: sive eorumdem vim probativam cum ad condiciones tum ad voluntatem
645). audientium aptavit (Mt 12,13s); eo nimirum consílio, ut iidem juve~t~r
33 "Quodcirca colloquium pariter mutuam fovet familiaritatem. et
amicitiam pariter colloquentium animos jungit ad assentiendum Bono ad libere assentiendum divinae revelationi, neque exinde suae assens1orus
praemio carerent" ( Ibid., 642-643).
iili, quocl,' sane nullius consilium recipit omnia in commodum sui trahendi" 39 Ibid., 643.
(Ibid., 645). 40 Ibid., 643.
364 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 365

3. A encíclica descreve ainda os deveres da Igre;a Da procura desse equilíbrio entre a fidelidade e a
ante a revelação. A Igreja deve aprofundar sua consciên- adaptação nasce a posição harmoniosa da Igreja, obrigada
cia "do tesouro de verdades de que é herdeira e guar- a permanecer fiel ao Cristo, seu Esposo, e obrigada tam-
da" 41 : ela deve pois conservar fielmente e defender o de- bém a caminhar na história para distribuir aos homens de
pósito que recebeu em herança ( 1Tim 6,20). Contudo, todas as gerações o pão do Evangelho ao mesmo tempo que
"nem a guarda nem a defesa são os únicos deveres da Igreja o pão eucarístico. É um · equilíbrio delicado, que a Igreja
quanto aos dons que possui" 42 : deve também difundir o aeve sempre conservar ·ou recuperar, mas que se prende
patrimônio recebido. Por.tanto, deve manifestar em seu à própria condição de uma revelação que entra na história
ensinamento o esforço de "aproximá-lo quanto possível da para atingir os homens de todos os tempos.
experiência e capacidade de compreensão do mundo con-
temporân~o" 43 • Deve adaptar-se "à vida dos homens num
dado moipento, num dado lugar, numa dada cultura e numa
dada situação social" 44 •
Finalidade e adaptação são os polos da ação da Igre-
ja com relação ao Evangelho. Deve propor aos homens
de nosso tempo o Evangelho de Cristo, dado de uma vez
para sempre, e, contudo, sempre presente e sempre atual.
A Igreja deve harmonizar em si ambas as atitudes sem
que nenhuma se torne exclusiva. É preciso que a fiç.elida-
de fuja ao conservadorismo indolente e estéril. A adapta-
ção deve "premunir-se contra o perigo dum relativismo
que ofende sua fidelidade dogmática e moral" 45 • A preo-
cupação do diálogo não deve "traduzir-se numa atenuação
ou diminuição da verdade" 46 , pois "o irenismo e o sincre-
tismo são, no fim de contas, formas de cepticismo a res-
peito da força e do conteúdo da Palavra de· Deus, que
desejamos pregar" 47 •
41 "Ad officii partes, quas Ecclesia praesenti aetate exequi ,debet, id
necessario pertinere debetur, ut ipsa de se, de veritatis thesauro, cujus
heres et custos constituta est, ac de munere his in terris sibi mandato,
clariorem plenioremque conscientiam adipisci contendat" (lbid. 614).
42 "Quamvis enim haud quidem sit dubium, quin veritatis et gratiae
thesauri, hereditate nobis a christianae fidei patribus traditi, sint servandi
integri atque tuendi, S. Paulo monente: depositum custodi (lTim 6,20);
tamen neque custodia, neque defensione plane explentur officia, quibus
obstringitur Ecclesiae erga data sibi dona" (lbid., 639).
41 lbid., 640.
44 lbid., 646.
4S Ibid., 646.
46 "Profecto fratrum adeundorum sollicitudo eo nos nullo pacto
moveat oportet, ut veritatem vel extenuemus, vel de ea aliquid imminua- ficare ad ultimum videtur, nisi scepticismi modos, sive quoa!,Í vim sive
mus" (lbid., 647). quoad rem Verbi Dei, quod nuntiare nobis animus est" (Ibid., 647).
47 "Nam irenismus et syncretismus, quos nominant, nihil aliud signi-
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 367
5. O_. primeiro esquema encontrou, pois, forte resistên-
O SEGNDO CONCfLIO DO VATICANO cia pot parte de uma importante maioria; assim a discus-
E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" são · de cada capítulo prometia ser trabalhosa, prolongada e
sem esperança de sucesso. Por isso, na têrça-feira, dia 20
de novembro, João XXIII decidiu que fosse antes revisto
por uma comissão especial. Essa comissão chamada mixta, .
porque composta de 7 cardeais nomeados · pelo papa, 1O
membros da comissão doutrinal e 1O do secretariado para
a união, foi nomeada no dia 25 de novembro de 1962.
Numa quarta-feira; dia 14 de novembro de 1962, o Terça-feira, ·20 de novembro, dia em que João XXUI
segundo concílio do Vaticano iniciou o exame do esquema decidiu remeter o esquema para essa comissão mixta, foi um
De fontibus Revelationis. O exame continuou até ao dia dos pontos decisivos do concílio. A partir desse dia, o
21 de novembro. Nesse prímeiro esquema, composto de problema do conteúdo material da Escritura e da Tradi-
cinco capítulos ( 1. A dúplice fonte da revelação; 2. Ins- ção continua sendo um problema aberto, que os teólogos e
piração, inerrância, gênero literário; 3. Antigo Testamen- exegetas poderão continuar aprofundando. O concílio, esco-
to; 4 .. Novo Testamento; 5. A Sagrada Escritura na Igre- lhendo outro caminho, preocupou-se mais com marcar bem·
ja), as passagens pertinentes diretamente à revelação trata- claramente a unidade orgânica entre a Escritura e a Tra-
vam do fato da revelação e da sua transmissão, da função dição, e o estreito relacionamento entre Escritura, Tradi-
de Cristo e dos apóstolos na economia. da revelação, da ção e Igreja.
dúplice fonte de revelação, da função do Magistério para Durante a segunda sessão do concílio reinou o mais
com o depósito da fé. · completo silêncio sobre o esquema da revelação. A co-
Inicialmente o esquema foi objeto de observações ge- missão mixta terminou seu trabalho em março de 1963,
rais sobre o conjunto dos capítulos. Desde logo manifestaram- e os Padres ficaram conhecendo o resultado de suas pes-
-se duas atitudes entre os Padres: uns, aceitavam substan- quisas em maio do mesmo ano. Muitos manifestaJ?llll o
cialmente o esquema, com retoques, porém; outros, decla- desejo de que o texto tratasse de modo mais amplo da
ravam-no inaceitável e pediam pura e simplesmente que Tradição e da pópria revelação. A 7 de março de 1964
fosse substituído por um texto. mais conciso, mais pasto- a comissão doutrinal constituiu uma subcomissão para,
ral e mais ecumênico. atendendo a esse desejo, emendar o esquema. A sub-
Entre os problemas em jogo, foi principalmente o comissão transformou em dois o primeiro capítulo ( A
das relações entre Escritura e Tradição que prendeu a aten- palavra revelada de Deus): I - A revelação em si mesma,
ção. Quais são essas relações e em que termos devem II - A transmissão da revelação. Esses capítulos novos
ser expressas? A preocupação com o diálogo ecumênico foram examinados numa sessão plenária da comissão dou-
tornava o problema bastante delica<io. Principalmente para trinal, de l'! a 6 de junho de 1964. O primeiro capítulo
os protestantes, desde logo, o esquema assumiu a figura de foi aceito sem dificuldade; o segundo, por uma maioria de 17
um símbolo: seu julgamento sobre o concílio iria em gran- contra 7. A oposição era causada pelo fato de o texto evi-
de parte depender da atitude que assumisse nessa ques- tar dizer.. _que na Tradição há mais verdades que na Es-
tão. Diante das hesitações da pesquisa teológica, dian- critura.
te das dificuldades de uma formulação exata, muitos Padres O novo esquema foi discutido durante a terceita ses-
começaram a se perguntar se seria oportuno que o concí- são do concílio, de 30 de setembro a 6 de outubro de 1964,
lio tomasse posição sobre questões ainda controvertidas. sem que desta vez fosse questionado o delicado equilíbrio
368 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 369
que se conseguira e sem que houvesse qualquer perturba- quae erat apud Patrem et apparuit nobis: quod vi-
ção da paz. No seu conjunto, o texto agradou aos Padres, dimus et audivimus annuntiamus vobis, ut et vos
porque equilibrado, de sabor bíblico, cristocêntrico, com societatem habeatis nobiscum, et societas nostra sit
uma longa exposição sobre a Tradição e, finalmente, por- curo Patre et curo Filio eius Iesu Christo" ( lJo 1,2-3).
que deixava aos teólogos liberdade quanto às questões con- 2. Propterea, Conciliorum Trindentini et Vaticani I
trovertidas. inhaerens vestigiis, genuinam de divina Revelatione
Terminada a discussão conciliar, a Comissão retomou ac de eius transmissione doctrinam proponere inten-
imediatamente o trabalho para atender às observações fei- dit, ut salutis praeconio mundus universus audiendo
tas pelos Padres, principalmente as referentes aos capítulos credat, credendo speret, sperando amet.
I e II, os mais importantes do esquema. O resultado foi
entregue aos Padres no último dia da terceira sessão. Ainda que sóbrio, é grandioso este prooemium. Seu
Finalmente, o texto reelaborado foi submetido ao tom solene e religioso justifica-se plenamente pelo fato de
voto da assembléia conciliar logo no começo da quarta ses- a constituição Dei V erbum apresentar-se logicamente como
são, a 20, 21 e 22 de setembro de 1965. As emendas que o primeiro dos grandes documentos do Vaticano II. Real-
os Padres apresentaram quanto a detalhes, melhoraram bas- mente este prooemium é uma introdução ao conjunto da
tante a forma do texto, sem modificar a sua substância. A obra conciliar. No conjunto da Constituição Dei Verbum
Constituição Dei Verbum, votada capítulo por capítulo no dia ele apresenta o tema da constituição: tema que será desen-
29 de outubro de 1965, e aprovada quase por unanimidade, volvido e ,orquestrado pelos· capítulos seguintes.
foi oficialmente promulgada por Paulo VI a 18 de novembro 1. Dei V erbum: essas duas palavras que servirão
de 1965. para caracterizar a constituição e distingui-la dos outros do-
Não pretendemos analisar aqui toda a Constituição cumentos conciliares, exprimem de fato todo o seu conteúdo.
nem historiar os diversos esquemas que precederam o texto Deus, o Deus vivo, falou à humanidade. O termo palavra
definitivo votado pelos Padres conciliares. Vamos apenas de Deus aplica-se em primeiro lugar à revelação, a essa
examinar os capítulos I e II que tratam da revelação e de intervenção primeira pela qual Deus sai de seu mistério, --
sua transmissão. De modo especial examinaremos o I ca- dirige-se à humanidade para lhe manifestar os segredos
pítulo que trata da própria revelação. Depois de uma de sua vida divina e comunicar-lhe seu desígnio de salva-
análise pormenorizada dos dez parágrafos que formaram os ção. Esse é o fato inaudito que domina ambos os Testa-
capítulos I e II da Dei Verbum, apresentaremos reflexões mentos e do qual vive a Igreja. Essa palavra de Deus, di-
sobre o conjunto dos dois capítulos 1 • rigida uma vez por todas, perdura através dos séculos,
sempre viva e atual, pela Tradição e pela Escritura.
Ante a palavra de Deus, o concílio assume a mesma
atitude que descreverá no capítulo II ao falar da atitude
TEXTO E COMENTARIO
do Magistério da Igreja: ele escuta e proclama a palavra de
1. Prooemium Deus. Como todo o povo cristão, de cuja fé partilha, ele
primeiro acolhe com fé e piedade a palavra do Senhor.
1. Dei verbum religiose audiens et fidenter procla- Mas também em virtude da missão profética que recebeu
mans, Sacrosancta Synodus verbis S. Joannis obse- do Cristo, ele é o arauto dessa palavra que proclama com
quitur dicentis: "Annuntiamus vobis vitam aeternam a confiança dos profetas e dos apóstolos. O termo fidcn-
' ter, que qualifica essa proclamação, lembra a "1tapp1Jala, ou
1 Para facilitar o trabalho numeramos as frases de cada parágrafo. atitude de confiança e segurança da pregação apostólica
370 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 371
(At 4,29-31;9,28;19,8). O concílio, ministro da palavra Patrem et divinae naturae consortes efficiuntur ( cfr.
de Deus, lembra respeitosamente ( obsequitur) o começo da Ef 2.18;2 Pdr 1,4).
primeira Epístola de João: "Por isso, atestamos e vos anun- 2. Hac itaque revelatione De~s inv~sib~is (Cfr. C~l
ciamos· a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos apa- 1 15 · 1Tim 1 17) ex abundantla cantatls suae hom1-
receu; o que vimos e ouvimos, anunciamo-lo também a vós, n~s ;amquam ~micos alloquitur (cfr. Ex 33,11; Jo 15,
para estardes, vós também, em comunhão conosco. A nos- 14-15) et cum eis conversatur ( cfr. Bar 3,38), ut
sa comunhão é com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cris- eos ad societatem Secum invitet in eamque suscipiat.
to" (lJo 1,2-3 ). Em termos bíblicos, esse texto enuncia 3. Haec revelationis oeconomia fit gestis verbisque
o essencial da constituição. A Vida, que estava em Deus, intrinsece inter se connexis, ita ut opera, in historia
junto do Pai, apareceu para nós. Deus saiu de seu misté- salutis a Deo patrata, doctrinam et res verbis signifi-
rio e, graças ao sinal da humanidade do Cristo, João pôde catas manifestent ac corroborent, verba autem opera
ver e ouvir o Verbo da vida. João anuncia o que viu e proclamant et mysterium in ei.s contentum elucident.
ouviu, para que os homens, pela fé em seu testemunho, 4. Intima autem per hanc revelationem tam de Deo
participem de sua experiência e com ele entrem em co- quam de hominis salute veritas nobis in C~risto illuc~s-
munhão de vida com o Pai e seu Filho Jesus Cristo. Men- cit, qui mediator simul et plenitudo totms revelauo-
cionando a Epifania de Deus em Jesus Cristo, a mediação nis exsistit.
do testemunho apostólico, a participação do homem na
vida trinitária, esse texto de são João descreve o movi- 1 . Aqui se descreve a revelâção em sua fase ativa e
mento total da revelação: a Vida em Deus, Vida que desce constitutiva em sua economia de realização concreta me-
até o homem e se manifesta, em Jesus Cristo, para levar o diante a hi~tória e a encarnação. Inicialmente a Constitui-
homem de volta à Vida. Esse texto, por sua densidade e ção enuncia o fato e o· objeto da revelação. Da revelação,
força de sugestão, é como que o leitmotiv da constituição, como de qualquer obra salvífica, é preciso dizer que ela
principalmente do capítulo I. é efeito do beneplácito divino: placuit (Ef 1,9-10). É
2. A segunda frase indica a finalidade. da Constitui- graça, livre iniciativa de Deus, e não o efeito de uma
ção. O concílio quer expor a verdadeira doutrina sobre a re- coação ou solicitação por parte do homem. Como obra de
velação e sobre sua transmissão. Em o fazendo, ele ao mesmo amor ela procede da bondade e da sabedoria de Deus.
tempo continua e amplia o trabalho iniciado pelos concí- O texto retoma as palavras do Vaticano I, dando-lhe, po-
lios Tridentino e Vaticano I. A referência final a Agos- rém, uma formulação mais personalista. Em vez de dizer
tinho evidencia a preocupação pastoral que inspira toda a placuit eius sapientiae et bonitati, diz placuit. Deo, in: sua
obra do concílio. bonitate et sapientia. E mais, menciona primeiro a bonda•
de de Deus, depois sua sabedoria.
Também ao propor o objeto da revelação o texto se-
CAP!TULO I. A REVELAÇÃO gue o Vaticano I. Enquanto, porém, este-dizia: se~psum ac
aeterna voluntatis suae decreta revelare, o Vaticano II
2. Natureza e objeto da revelação desdobra o verbo e substitui decreta pelo termo paulino
sacramentum ( "Mysterium", n:o texto grego) mais bíblico
1. Placuit Deo in sua bonitate et sapientia Seipsum e concreto: seispsuni revelare et notum facere sacramentum
revelare et notum facere sacramentum voluntatis suae voluntatis suae. Dizendo que o objeto da revelação é o
( cfr. Ef 1,9), quo homines per Christum, Verbum próprio Deus, o texto personaliza a !._evelação: antes de
carnem factum, in Spiritu Sancto accessum habent ad manifestar algo, ou seja, seu ·desígJÜo' de salvação, é sua
3 72 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 373
própria ·pessoa que Deus revela. O mistério paulino evoca eles conversa. Jesus Cristo é a Sabedoria de Deus que apare-
esse desígnio salvífico, desde toda a eternidade oculto em ceu sobre a terra e conversou com os homens. O tema,
Deus, e agora revelado. Por esse desígnio Deus estabe- aqui simplesmente evocado, será retomado no parágrafo IV.
lece o Cristo como centro da nova economia e o constitui, O concílio, pois, para definir a revelação conserva a
por sua morte e ressurreição, como o único princípio de analogia da palavra, onipresente no Antigo e Novo Tes-
salvação, para gentios e judeus, Cabeça de todos os seres, tamento (Hebr 1,1 ), tradicional nos documentos do ma-
dos anjos e dos homens. O Mistério é o plano divino gistério 2 e em toda a tradição teológica. Deus falou à hu-
que, afinal, se resume no Cristo, com suas insondáveis ri- ma:cyidade. Mediante sua palavra é que o Invisível se fez
quezas, seus tesouros de sabedoria e de ciência. Con- conhecer, que sua transcendência se fez proximidade.
cretamente o Mistério é o Cristo. O concílio, usando a A economia é economia de palavra e de fé. A visão está
categoria paulina de Mistério, com a plenitude de sen- para além da morte. Nosso Deus é o Deus da palavra:
tido e multiplicidade de ressonâncias que tem na Epístola fala a Abraão, a Moisés, aos profetas e, por eles, fala a
aos efésios ( cap. I), dá ao objeto da revelação sua ex- seu povo. Pelo Cristo Deus fala aos apóstolos e por eles
pressão mais completa, mais rica e mais sugestiva. a nós. Nele é o Filho que nos fala pessoalmente.
A última parte da frase diz em que consiste o desígnio Essa palavra, pela qual Deus transpõe de certo modo
salvífico de Deus: que os homens, pelo Cristo, Verbo a distância infinita que o separa do homem, será neces-
encarnado, tenham acesso ao Pai (Ef 2,18) no Espírito sariamente uma palavra de amizade: procede do amor, rea-
e se tornem participes 'da natureza divina ( 2Pdr 1,4). O liza-se como amizade e tem em vista uma obra de amor:
desígnio divino, expresso em termos de relacionamento ex abundantia caritatis. . . tamquam amicos. . . ut ad so-
interpessoal, inclui os três principais mistérios do cristia- cietatem secum. . . Se Deus estabelece comunicação com
nismo: a Trindade, a encarnação, a graça. o homem, sua criatura, ele o fará necessariamente para es-
2. Estabelecidos o fato· e o objeto, o co:9cílío esta- tabelecer com ele laços de amizade, para associá-lo à sua
belece a natureza da revelação. Pela revelação, o Deus in- vida íntima: para convidá-lo para essa vida e para nela intro-
visível e oculto ( Col 1, 15; 1Tim, 1,17), que ninguém pode duzi-lo pela fé em sua palavra. A revelação que proce-
ver sem morrer, o transcendente e três vezes santo, na de do amor, quer realizar uma obra de amor: quer intro-
superabundância de sua caridade ( pois Deus é amor: lJo duzir o homem nessa sociedade de amor que é a Trindade.
4,8) sai de seu Mistério. Deus rompe o silêncio: dirige-se O texto retoma assim o tema anunciado no proemium.
ao homem, interpela-o, trava com ele um diálogo de ami- 3. A analogia da palavra, usada para representar a
zade, como o fizera com Moisés ( Ex 3 3, 11 ) e com os revelação, ainda não diz nada quanto a disposição concreta
apóstolos (Jo 15,14-15). , adotada por Deus para se pôr em intercâmbio pessoal com
Deus conversa com os homens para convidá-los a par- o homem. Assim como um homem pode comunicar-se
t1c1par da sociedade das pessoas divinas e para introduzi- com outros de muitas maneiras, - gestos, ações, palavras,
-los nessa sociedade. O texto de Baruc ( 3,38) mencio- imagens, gestos acompanhados de palavras, sinais ar~icula-
nado pelo concílio e empregado também na liturgia ( por dos ou sinais gráficos - , assim também Deus poderia co-
ex., na sexta profecia do antigo ofício do sábado s,anto), municar-se de diversos modos. Deve pois a compreensão
significa que a Sabedoria desceu do céu para habitar· entre da revelação descrever a economia de fato adotada por
os· homens, encarnando-se na Lei judaica. O concílio já
evoca essa plenitude da revelação pela qual a Sabedoria 2 Por exemplo, a encíclica Qui pluribus (D. 1637), o Vaticano I (D.
pessoal de Deus, pela encarnação, assume a existência hu- 1785), o juramento antimodernista (D. 2145), a encíclica Mit brennender
Sorge (AAS, 29 [1937] 156), a encíclica Mortalium animos (AAS
mana, vive com os homens, como um dentre eles, e com [1928] 8).
374 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O VATI CANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 375

Deus para falar à humanidade. Dirigindo-se ao homem ser Cristo e a própria libertação do pecado que ele opera na
de carne e espírito, mergulhado no tempo, · Deus co~uni- alma; a ressurreição manifesta seu soberano domínio sobre
cou-se com o homem pelas vias da encarnação e da his- a morte e sobre a vida. Por outro lado, essas mesmas obras
tória. Pela primeira vez um documento do Magistério des- corroboram, apóiam, confirmam, atestam a doutrina e
creve assim a economia da revelação em seu exercício con- a realidade profunda, misteriosa, oculta nas obras e signi-
creto e nessa fase ativa que a faz existir. ficada pelas palavras. É assim que o :Êxodo confirma a
Primeiramente afirma o concílio que a revelação se faz promessa feita por Javé a Moisés de salvar seu povo; a
pela íntima união dos gestos e de palavras. Por gesta cura do paralítico mostra e ao mesmo tempo demonstra
( termo de ressonância mais personalista que facta) deve- a validade da palavra do Filho do homem que se arroga o
mos entender as ações salvíficas de Deus isto é todas as poder de perdoar os pecados; a ressurreição do Cristo con-
obras feitas por Deus que constituem a bistória' da salva- firma a verdade de seu testemunho e a realidade de sua
ç~o: algumas realizadas diretamente por Deus; outras, me- missão como Filho do Pai, vindo para salvar os homens
d1a1;1t~ ?s profetas; umas, dependendo de sua providência do pecado e da morte.
ordinana; outras, sendo verdadeiros mi.lagres· todas porém Muitas vêzes, porém, os acontecimentos são opacos;
send o realmente manifestações do agir divino' na história
' da' as obras são passíveis de ambigüidade e equívocos. É função
salvação, ordenadas segundo uma sapientíssima disposição das palavras dissipar essa ambigüidade e proclamar o sen-
(economia) querida por Deus. Esses gestos e obras são, tido a.utêntico e misterioso das ações divinas: "As palavras
por ex., no Antigo Testamento: os acontecimentos do :Êxo- proclamam e iluminam o mistério contido nas obras". Se
do, o estabelecimento da monarquia, .os julgamentos de por exemplo, os gestos de perdão e de cura rea-
Deus manifestados na derrota dos exércitos o exílio o ca- lizados por Cristo exprimem admiravelmente o amor que ele
. . a restauração; em o Novo Testamento,
t1ve1ro, ' são as' ações viera revelar, sua morte fica sendo um acontecimento pas-
da vida do Cristo, principalmente seus milagres, sua morte sível de diversas interpretações: é a palavra do Cristo, con-
e sua ressurreição. A palavra, são as palavras de Moisés e dos tinuada pela dos apóstolos, que nos ·descobre ,a dimensão
profetas que interpretam os gestos de Deus na história· inaudita dessa morte e propõe à nossa fé ao mesmo tempo
são as palavras do Cristo que manifesta o sentido d~ o próprio acontecimento e seu alcance salvífico. É a pre-
suas açõe~; são finalmente, as palavras dos apóstolos, tes- gação de Pedro que, na manhã de Pentecostes, atesta que
temunhas e intérpretes autorizádos da vida do Cristo. os apóstolos não estão embriagados, mas sob a ação do
Tendo afirmado a íntima união, como a de corpo e Espírito Santo que sobre eles descera ( At 2, 15-19), e que
de alm~,. das ob:as e das palavras na economia da revelação, a ressurreição do Cristo é, não apenas um milagre, mas
? conc1ho explica brevemente como obras e palavras são também o mistérió da intronização do Cristo como Messias
interdependentes. As obras, "realizadas por Deus na his- e Senhor ( At 2,33-36). O mesmo se dá com o :Êxodo:
tória da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as sem a palavra de Moisés que em nome de Deus interpre-
realidades ( desígnio e atos salvíficos de Deus) significa- tou para Israel aquela migração como uma libertação que
das pelas palavras". Deus, com efeito, manifesta seu de- tinha em vista uma aliança, o aconteceimento não recebe-
sígnio de salvação já no próprio gesto pelo qual a realiza. ria aquela plenitude de sentido que o transformou no fun-
~ !)eus que revela é um Deus que se compromete na his- damento da religião de Israel. Os acontecimentos vêm carre-
toria e nela se revela como quem faz a salvação de seu gados de uma significação religiosa que as palavras devem
P?VO. As~im é que a libertação do cativeiro egípcio ma-
proclamar e iluminar.
mfesta a intervenção do Deus salvador e a própria salva- Quanto a essa união íntima e, 'vital entre obras e pa-
ção; a cura do paralítico manifesta o poder libertador do lavras devemos fazer duas observações:
376 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 377
a) Trata-se de uma união de natureza, não necessa
riamente de tempo. Às vezes há simultaneidade entre o menta 4 , basta para distinguir a revelação cristã de todos os
gesto e a palavra ( por exemplo, na cura do paralítico, quan- outros tipos de revelação filosófica ou gnóstica.
do as palavras acompanham o gesto); às vezes, porém, o 4. Mediante essà revelação, brilha a nos'sos olhos,
acontecimento precede a palavra ( por exemplo, na criação no Cristo, a verdade profunda sobre Deus e sobre o ho-
do mundo, no estabelecimento da monarquia); oú, pelo mem. No Cristo revela-se-nos quem é Deus: Pai que
contrário, a palavra precede o acontecimento ( por exemplo, nos criou e nos ama como filhos; Filho e Palavra, que nos
o anúncio do Messias como Servo sofredor; cfr. Is 48,3-8; chama e nos convida para uma comunhão de vida com a
Am 3,7). Trindade; Espírito, que vivifica e santifica. No Cristo
revela-se-nos também a verdade do homem: chamado e esco-
b ) Devemos notar ainda que a proporção entre as lhido por Deus, ainda antes da criação do mundo, para
obras e as palavras pode variar muito. Às vezes, as pala-
ser filho adotivo do Pai no Cristo.
vras ocupam o primeiro lugar, como por exemplo, nos li-
O Cristo é, ao mesmo tempo, Mediador e Plenitude
vros sapienciais, no sermão da montanha; outras vezes,
da revelação. É o Caminho escolhido por Deus para nos
os fatos: nos livros históricos, nos acontecimentos da paixão,
dar a conhecer o que ele é ( Pai, Filho. e Espírito) e o que
morte e ressurreição do Cristo.
nós somos ( pecadores chamados à vida). O Cristo. é. o
. O concílio, insistindo nas obras e palavras como ele- Caminho porque nos revela a Vida e o caminho da Vida.
mentos constitutivos. da revelação, e na sua íntima união põe "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém chega ao
em evidência o caráter histórico e sacramental da re- Pai a não ser por mim" (Jo 14,6). E também "ninguém
velação: acontecimentos iluminados pela palavra dos profe- conhece o Filho senão o Pai, nem ninguém conhece o Pai
tas, do Cristo e dos apóstolos. O caráter histórico da re- senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar"·
velação mostra-se na própria ação de Deus que sai de seu ( Mt 11,2 7 ) . "A Deus ninguém jamais o viu; manifes-
mistério e participa da história, na sucessão dos aconte- tou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai"
cimentos ou intervenções de Deus que se ordenam segun- (Jo 1, 18 ) . O Cristo é também a Plenitude 5 d~ revelação,
do um desígnio coerente e sábio que é propriamente a· eco- isto é, o Deus que revela e o Deus revelado, o autor e o
nomia da revelação e da salvação, e, finalmente, na inter- objeto da revelação, quem revela o Mistério e é o pró-
pretação desses acontecimentos mediante a palavra que é prio Mistério em pessoa (Jo 14,6; 2Cpr 4,4-6; Ef 1,3-14; ·
ela mesma um acontecimento. O caráter sacramental da Col 1,26-27; lTim 3,16). Ele é pessoalmente a Verdade
revelação mostra•se na compenetração e mútuo apoio entre que ele anuncia e prega. Por isso, a verdade que nele resplan-
obras e palavras. Deus propõe à fé o acontecimento da dece não apenas solicita a adesão do espírito: quer invadir
salvação e ao mesmo tempo esclarece-lhe o sentido; inter- toda a nossa vida, para transformá-la e transformar-nos no
vém na história e diz o sentido de sua intervenção; age e Cristo; pela união com o Cristo ela tende à comunhão com o
comenta sua ação. Essa estrutura geral da revelação, rea-- Pai, o Filho e o Espírito.
firmada no capítulo IV, em se tratando do Antigo Testa-
tamento 3, e no capítulo V em se tratando do Novo Testa-
4 "Christus Regnum Dei in terris instauravit, factis et verbis Patrem
3"Amantissimus Deus ... ita Se tamquam unicum Deum verum et suum ac Seipsum manifestavit, atque morte, resurrectione et glqriosa
vivum verbis ac gestis revelavit ut Israel, quae divinae essent cum homi- ascensione missioneque Spiritus Sancti opus suum complevit" (Cap .. V,
nibus viae experiretur easque, ipso Deo per os prophetarum loquente, n. 17).
penitius et clarius in dies intelligere atque latius in. gentes exhiberet" ( cap. s Pela primeira vez encontramos a expressão na encíclica "Mit bren-
IV, n. 14). nender Sorge": "ln Jesus Christus, dem menschgewordenen Gottessohn,
ist die Fülle der gottlichen Offenbarung erschienen" (AAS, 29 [1937] 150).
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 379
378 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
te entre ambas as manifestações de Deus, natural e sobre-
3. A preparação da revelação evangélica natural. Não diz se, na intenção divina, uma se ordenava
à outra, nem se a primeira já estava penetrada pela graça.
1. Deus, per Verbum omnia creans (dr. Jo 1,3) et Depois, tomando os pontos mais importantes, indica as
conservans, in rebus creatis perenp.e sui testimonium etapas da revelação no Antigo Testamento: promessa a
hominibus praebet ( cfr. Rom 1,19-20), et viam salu- nossos primeiros pais, vocação de Abraão, instrução do
tis superne aperire intendens, insuper protoparentibus povo escolhido, mediante Moisés e os profetas.
inde ab initio Semetipsum manifestavit.
2. Post eorum autem lapsum eos, redemptione pro- 2. Após a queda de nossos primeiros pais Deus os
missa, in spem salutis erexit (cfr. Gen 3,15) et sine reergueu pela esperança de uma salvação futura ( Gen 3,15),
intermissione generis humani curam egit, ut omnibus pela promessa de um resgate. Esse vislumbre da sal-
qui secundum patientiam boni operis salutem quaerunt, vação evocado pelo Génesis, é o Protoevangelho. Com a
vitam aeternam daret ( cfr. Rom 2 ,6-7 ) . promessa, de alcance salvífico universal, começa a marcha
3. Suo autem tempore Abraham vocavit, ut face- da história da salvação e Deus a ninguém deixa fora da
ret eum in gentem magnam ( cfr. Gen 12,2-3) quam salvação. Ainda que o povo de Israel tenha sido cons-
post Patriarchas per Moysen et Prophetas erudivit ad tituído o depositário dessa promessa, jamais Deus cessou
se solum Deum vivum et verum, providum Patrem (sine intermissione) de se preocupar (curam egit) com a
et iudicem iustum agnoscendum, et ad promissum Sal- humanidade, dando a vida eterna a todos que, constantes
vatorem expectandum, atque ita per saecula viam Evan- no bem, procuram a salvação ( Rom 2 ,6- 7).
gelio praeparavit. 3. A última frase evoca rapidamente dois milênios de
história, de Abraão a Jesus Cristo: Deus chamou Abraão,
1. A primeira frase afirma e distingue uma dupla mani- instruiu-o e formou Israel seu povo, preparando assim o
festação de Deus: a primeira, pelo testemunho da cria- caminho para o Evangelho.
ção, dirigida a todos os homens; a segunda, por uma Deus, no tempo por ele escolhido, chamou Abraão
revelação positiva, dirigida a nossos primeiros pais. O mes- para que se tornasse uma grande nação ( Gên 12,2). Ap~s
mo Deus que criou o cosmos manifestou-se também na his- o tempo dos patriarcas, Deus instruiu esse povo pelo mi-
tória humana. nistério de Moisés e dos profetas. O verbo erudire signi-
Em poucas palavras o texto descreve essa primeira fica, ao mesmo tempo, instrução e formação. Deus for-
manifestação de Deus na criação. Foi pelo seu Verbo que mou o povo judeu para que o pudesse reconhecer como
Deus criou (Jo 1,3) e tudo conserva, como também é por Deus vivo e verdadeiro, con10 um Pai que cuida de seus
seu Verbo que Deus falou à humanidade ( parágrafo IV). O filhos, como um justo juiz, e para que esperasse o Sal-
universo das criaturas constitui uma primeira presença e uma vador prometido. Afirma assim o concílio o conteúdo es-
primeira manifestação de Deus: um testemunho perma- sencial da revelação veterotestamentária: o conhecimento
nente de si mesmo à humanidade, inscrito no universo por do único Deus, o Deus de vida e de verdade, e a esperança
ele criado (Rom 1,19-20). O concílio afirma o fato, sem do ·Salvador prometido. A última parte da frase apresenta
maiores explicações. a revelação do Antigo Testamento como uma sábia peda-
O mesmo Deus que se manifestou à humanidade por gogia que durou séculos, ao longo dos quais Deus formou
seu Verbo criador, é também o Deus Salvador que, para seu povo e preparou os caminhos para o Evangelho.
abrir ao gênero humano o caminho da salvação, se mani-
festou aos nossos primeiros pais numa revelação histórica
e pessoal. Contudo, o concílio não explica a relação que exis-
380 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 381

4. O Cristo leva a revelação à sua plena realização ( palavra intermitente e fragmentária no Antigo Testamen-
to; palavra única e total do Filho em o Novo Testamento),
1. Postquam vero multifariam multisque modis Deus formas, destinatários e mediadores. Em última análise, é
locutus est in prophetis, "novissime diebus istis lo- a pessoa do Filho que dá à revelação do Novo Testamento
cutus est nobis in Filio" (Hebr 1,1-2). a sua superioridade sobre a antiga. Porque o Cristo é o Filho,
2. Misit enim Filium suum, aeternum scilicet Ver- nele a revelação atinge seu ápice 6 •
bum, qui omnes homines illuminat, ut inter homines 2. A seguir o texto explica porque o Cristo é o ápice
habitaret iisque intima Dei enarraret ( cfr: J o 1, 1-18 ) . da revelação. Deus enviou-nos seu Filho, isto é, sua Pala-
3. Iesus Christus ergo, Verbum caro factum, "homo vra eterna: esse Filho, essa Palavra divina, que já pela
ad homines" missus, "verba Dei loquitur" (Jo 3,34) criação era Luz dos homens, Deus o enviou para habitar
et opus salutare consummat quod dedit ei Pater fa- entre os homens e para contar os segredos da vida divina,
ciendum (dr. Jo 5,36;17,4). para a qual nos convida e na qual nos quer introduzir: "A
4. Quapropter lpse, quem qui videt, videt et Pa- Deus ninguém jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de
trem ( dr. Jo 14,9), tota suiipsius praesentia ac ma- Deus, que está no seio do Pai" (Jo 1, 18 ) . Assim se cum-
nifestatione, verbis et operibus, signis et miraculis, pre e aprofunda infinitamente o texto de Baruc ( 3,38)
praesertim autem morte sua et gloriosa ex mortuis antes citado. O Cristo é a Sabedoria de Deus que habita
resurrectione, misso tandem Spiritu veritatis, reve- entre os homens e conversa com eles. Filho de Deus, Pa-
lationem complendo perficit ac testimonio divino con- lavra eterna do Pai, Luz dos homens, ele está ontologica-
firmat, Deum nempe nobiscum esse ad nos ex pe~cati mente qualificado para nos revelar Deus e seu mistério.
mortisque tenebris liberandos et in aeternam v1tam
resusci tandos. 3. Na terceira frase encontramos a intuição central
do parágrafo e até mesmo de todo o capítulo. Re-
5. Oeconomia ergo christiana, utpote foedus novum
toma o que já fora dito sobre o Filho enviado entre os
et definitivum, nunquam praeteribit, et nulla iam nova
homens, insiste na plenitude e no realismo da encarnação
revelatio publica expectanda est ante gloriosam ma-
na economia da revelação. Jesus Cristo, a Palavra substan-
nifestationem Domini nostri Iesu Christi ( cfr. 1Tim
6, 14 et Tit 2,13). cial de Deus, na qual Deus se exprime a si mesmo e toda a
criação ( ad intra et ad extra), é essa Palavra que, median-
te a encarnação, nos fala, falando-nos de homem para homem.
O parágrafo retoma o tema do Cristo Mediador e Ple-
nitude da revelação, já agora, porém, na perspectiva da O paralelo entre a Palavra e as palavras que ela pronun-
história da revelação. cia mediante a carne, evidencia de modo impressionante
1. Nessa perspectiva histórica o texto da Epístola que o Filho de Deus realmente se fez homem e usou
aos hebreus afirma que o Cristo é o ponto mais alto da revela- sem subterfúgios os meios de expressão da natureza hu-
ção. Evidencia a superioridade da revelação nova sobre a an- mana. Jesus Cristo, diz o concílio, é, portanto, a Pa-
tiga, como também a relação existente entre ambas as fa- lavra de Deus que se fez carne ( Verbum caro factum ) ,
ses da história da salvação. Entre ambas as economias há que se tornou um de nós, isto é, homem; Palavra que
continuidade e diferença. O elemento que dá continuidade é foi enviada aos homens para se encontrar com eles e atin-
Deus e sua palavra: a palavra do Filho é a continuação e gi-los em seu próprio nível ( homo ad homines missus).
o cumprimento da palavra anunciada pelo ministério dos Jesus Cristo é a Palavra de Deus que verdadeiramente
profetas. Há continuidade, mas também diferença e supe-
6 R. ScHNACKENBURG, "Zum Offenbarungsgedanken in der Bibel",
ração. Diferença quanto a épocas e modos de revelação Biblische Zeitschrift, 7 ( 1963): 2-23.
382 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 383
"pronuncia as palavras de Deus" ( verba Dei loquitur:
Jo 3,34) e "leva a termo a obra de salvação que o Pai vel, mostrava-se o Pai" ( Adv. Haer. IV, 6,6). A encar-
lhe confiara" (Jo 5,36;17,4). A revelação faz parte dessa nação do Filho, concretamente entendida, é a revelação do
obra de salvação que o Pai confiara ao Filho. Na prece sa- Filho, e, por ele, do Pai. Foi por suas ações, seus gestos,
cerdotal o Cristo diz ao Pai: "Eu glorifiquei-te na terra, suas atitudes, seu comportamento total, tanto quanto por
consumando a obra que me deste a fazer" ( J o 17 ,4), e suas palavras, que o Cristo foi revelador. Também a mis-
acrescenta logo: "Manifestei o teu nome aos homens" (Jo são do Espírito faz parte da obra reveladora do Cristo e a
17,6). E mais adiante: "Dei-lhes a conhecer o teu nome e leva a termo. Isso porque o Espírito, sem nada inovar,
dar-lho-ei a conhecer ainda, para que o amor com que me sem trazer novo objeto, introduz na verdade plena do
amaste esteja neles e eu esteja neles" (Jo 17 ,26). Cristo, levando assim tudo ao pleno cumprimento. É o
Espírito que dá aos apóstolos a memória viva, a inteligên-
4. Sendo o Cristo o Filho do Pai, a Palavra eterna cia dos gestos e das palavras do Cristo (Jo 14,26;16,12-13 ).
que se fez carne, segue-se que ele é ao mesmo tempo o Assim temos novamente a dimensão trinitária da revelação.
supremo Revelador e o supremo Objeto revelado. Nel~ O concílio salienta a dupla função das mesmas reali-
a revelação atinge seu término ( complendo) e sua perfe;- dades da vida do Cristo. Palavras, ações, vida, paixão,
ção ( perficit). O concílio aplica ao Cristo o que no para- morte e ressurreição do Cristo são parte da própria eco-
grafo II se dissera sobre a estrutura geral da revelação 7 • ~ nomia da revelação e também têm um valor apologético. Por-
Cristo exerceu sua função de revelador usando todas as possi- que o Cristo coloca-se entre os homens como o Filho do Pai,
bilidades que lhe eram oferecidas pela encarnação; revelou: por isso há em sua mensagem, em suas obras, em seu com-
por sua presença e pela manifestação de si mesmo 8 , portamento de Verbo encarnado um resplendor que é real-
por suas palavras e por suas obras, por seus sinais e por mente sua glória e o manifesta como o Filho do Pai 10 • A
seus milagres 9 e, principalmente por sua morte e por sua res- sublimidade de sua doutrina, a sabedoria e a santidade de
surreição, e, finalmente, enviando o Espírito da verdade. A sua vida, o poder manifestado pelos milagres e por sua
expressão "por sua presença e pela man~fest_ação ~e ressurreição, a suprema caridade manifestada em sua mor-
si mesmo", correspondente ao termo grego epzfama ( 2T1m te, todo esse resplendor do ser e do agir do Cristo são
1,10), significa que a revelação pelo Cristo, Verbo encar- um testemunho propriamente divino (Jo 5,36-37;10,37-38),
nado usou todos os recursos da expressão humana, o que confirma a revelação e lhe demonstra a credibilidade.
f acer~ e o docere ( At 1, 1 ) , para nos · manifestar o Filho Pois esse resplendor atesta que o Cristo está verdadeira-
de Deus e, nele, manifestar-nos o Pai, pois quem vê o mente entre nós como o Emanuel, o Deus-conosco, agindo
Cristo vê o Pai (Jo 14,9). e conversando com os homens, para libertar-nos do peca-
Era no mesmo sentido que Inácio de Antioquia afir- do e da morte, ressuscitando-nos para a vida eterna.
mava: "Não existe senão um Deus, manifestado por Jesus 5. A última frase do parágrafo é como que uma con-
Cristo seu Filho, que é sua palavra saída do silêncio" (Magn. clusão de tudo quanto se disse sobre o Cristo. Sendo este a
7 ,2). E santo Irineu: "Pelo Filho, feito visível e palpá- Palavra eterna de Deus, o Filho único do Pai enviado aos
homens para lhes revelar a vida íntima de Deus, a econo-
7 A ordem da enumeração é conforme à da manifestação histórica mia por ele inaugurada - a aliança nova e definitiva -
do Cristo: obras morte, ressurreição, missão do Espírito. não poderia ser considerada apenas como algo transi-
8 O esquem~ precedente dizia: fota sua persona. O concílio preferiu
a expressão atual para evitar dificuldades crist?lógicas. .
9 Sinais e milagres não são puros sinômmos: com efeito, se os 10 Os sinais da revelação não são exteriores ao Cristo. São o próprio
milagres são sinais, há também sinais que não são milagres, por exemplo: Cristo, no brilho de seu poder, de sua santidade, de sua sabedoria.
os gestos de bondade e de misericórdia do Cristo para com os pecadores. Nesse fulgor percebemos sua glória de Filho do Pai; do reflexo vamos
diretamente à fonte.
384 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 385

tório. Essa economia não passará, não -será suplantada ja- Segundo o concílio, essa fé estabelece entre Deus e
mais por uma mais perfeita. Nem tampouco devemos es- o homem uma relação viva, de pessoa a pessoa, numa ad~-
perar uma nova revelação pública ( o que não exclui as revela- são total que inclui o conhecimento e o amor. É todo o
ções particulares) antes da epifania gloriosa do Cristo, ou homem que, livremente, se confia a Deus. Pela revelação
sua manifestação gloriosa e não já na condição de escravo Deus vem até ao homem, condescende, patenteia-lhe os se-
( lTim 6,14; Tit 2,13 ). Tendo-nos dito sua Palavra única gredos de sua vida íntima, à procura de uma reciprocidade
e total ( pelo menos enquanto a podemos compreender em de amor. Pela fé o homem volta-se para Deus, dá-se-lhe
nossa situação terrestre), que mais poderia Deus dizer? na amizade. O final da frase explica em que consiste essa
Mais: tendo-nos dado seu Filho único, que mais nos po- rendição do homem todo a Deus. O hometn, pela fé, presta
deria dar? Seria tão impossível imaginar uma nova revelação a Deus total homenagem de sua inteligência e de sua von-
no futuro como imaginar a encarnação de um novo Filho de tade, assente livremente à revelação. O concílio evita assim
Deus. O Novo Testamento é realmente novum et defini- duas concepções incompletas da fé: uma fé-homenagem,
tivum. Jesus Cristo é a última palavra da revelação: nele praticamente sem conteúdo, e uma fé-adesão despersonali-
tudo se cumpriu, a salvação e a sua manifestação. zada a uma doutrina. A fé cristã é indissoluvelmente dom
e assenso.
5. A revelação e a aceitação da fé. 2. A resposta do homem à revelação não é simples
resultante da atividade humana; é um dom de Deus. Não
1. Deo revelanti praestanda est "oboeditio fidei" basta que o Evangelho ressoe aos ouvidos; exige-se também
(Rom 16,26; cfr. Rom 1,5; 2Cor 10,5-6), qua homo uma graça preveniente e adjuvante 12 , que mova para crer
se totum libere Deo committit, "plenum revelanti Deo ( ad credendum) e possibilite crer (in credendo). A ação
intellectus et voluntatis obsequium" praestando et vo- da graça, é, logo em seguida, descrita com termos bíblicos
luntarie revelationi ah Eo datae assentiendo. e mais personalistas: concretamente exigem-se auxílios do
2. Quae fides, ut praebeatur, opus est praeveniente Espírito Santo que movem o coração do homem, que o con-
et adjuvante gratia Dei et internis Spiritus Sancti auxi- vertem para Deus, que iluminam a inteligência e inclinam
liis, qui cor moveat et in Deum convertat, mentis as potências volitivas. É o Espírito Santo que "dá a todos
oculos aperiat, et det "omnibus suavitatem in con- a suavidade da adesão e a crença na verdade" 13 • Muitas
sentiendo et credendo veritati". vezes salienta a Escritura que, para crer, é necessária essa
3. Quo vero profundior . usque evadat revelationis ação da graça que abre o espírito para a luz que vem do
intelligentia, idem Spiritus Sanctus fidem iugiter per alto (Mt 16,17;11,25; At 16,14; 2Cor 4,6) e atrai o ho-
dona sua perficit. mem em direção a Cristo (Jo 6,44). Essa ação interior é
1. Para manter-se fiel ao conceito de revelação aci- o testemunho do Espírito ( lJo 5,6) que age internamente
ma exposto e para salientar o caráter teologal da fé, ~o con- para que o homem reconheça a verdade do Cristo.
cílio declara inicialmente que o objeto da fé é o próprio 3. É também ao Espírito e aos seus dons que deve-
Deus enquanto Revelador. Devemos acreditar no Deus que mos atribuir o aprofundamento da revelação. Pois o dom
revela, no Deus que fala; devemos obedecer-lhe: essa é uma da fé é semente que deve germinar e crescer indefinidamen-
afirmação constante da própria revelação (Rom 16,26;1,5; te. Esse aprofundamento da fé, que conduz a uma super-
2Cor 10,5-6; Ef 1,13; lCor 15,11; Me 16,15-16) e dos ciência de Deus e de seu mistério, é ohra do Espírito. Di-
textos do magistério 11 •
12 D. 798, 1789.
13 D. 1791, 1800.
11 D. 1637, 1789, 2145.
13 - Teologia 'ela revelação
386 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 387
zendo que o Espírito, com seus dons, confere uma inteli- e da redenção que têm por objeto nossa elevação à ordem
gência mais profunda da revelação, o concílio novamente sobrenatural. O Vaticano I, falando indistintamente dos
evidencia a ação do Espírito sobre a inteligência do crente. No decretos divinos, permitia que se pensasse nos decretos
movimento do homem em direção à fé, é o Espírito que divinos referentes tanto à ordem natural quanto à sobrena-
abre a inteligência ( mentis oculos aperit) para esse mun- tural. Portanto, Deus não se revela nem revela alguma
do totalmente novo em que o introduz o Evangelho. Tam- coisa para satisfazer a curiosidade do homem, mas para
bém no interior da fé é o Espírito que desenvolve o po- salvá-lo, para tirá-lo da morte do pecado e para levá-lo
der de penetração da inteligência ( dom da inteligência) e a participar dos bens divinos que superam tudo que o
dispõe o fiel a compreender pelos caminho! ~o amo~ ( dom homem pode compreender. .
da sabedoria), infundindo-lhe uma consonancia afetiva que 2. O concílio, tendo falado do objeto privilegiado da
lhe torna co-natural o Evangelho. revelação, ou seja, dos mistérios, continua falando da-
quelas verdades, referentes a Deus, acessíveis à razão hu-
6. As verdades reveladas . mana, principalmente do conhecimento de Deus, princípio
1. Divina revelatione Deus Seipsum atque aeterna e fim de tudo. O concílio, com um tom solene justificado
voluntatis suae decreta circa hominum salutem mani- p~Ío contexto histórico do ateísmo contemporâneo, salien-
festare ac communicare voluit, "ad participanda scili- ta que Deus ·pode ser conhecido com a luz da razão huma-
cet hona divina, quae humanae mentis intelligentiam na que reflete sobre o mundo, pois que a criação pro-
omnino superant". . clama irrefragavelmente seu autor. Contudo, é pela reve-
2. Confi.tetur Sacra Synodus "Deum, rerum omnmm lação que essas verdades podem "ser conhecidas por todos,
principium et finem naturali humanae rationis lumine sem dificuldades, com plena certeza, sem mescla de erro" 14 •
e rebus creatis certo cognosci posse" ( cfr. Rom 1,20); Nesse parágrafo, pois, o concílio considera o objeto
eius veto revelationi tribuendum esse docet, "ut ea, da revelação em si mesmo ( Deus e seus decretos), na sua
quae in rebus divinis humanae ration~ per se i?1pervi~ proporcionalidade para com a inteligência humana ( misté-
non sunt, in praesenti quoque gener1s humani cond1- rios que superam o alcance de nossa razão, e verdades aces-
tione ah omnibus expedite, firma certitudine et nullo síveis à razão natural) e na sua finalidade ( salvação do ho-
admixto errore cognosci possint". mem, participação rios bens divinos). O primeiro capítulo,
tendo começado com uma declaração de fidelidade à doutri-
1. Tendo falado da fé, agora o concílio fala das ver- na do Vaticano I, termina retomando-lhe a doutrina e os
dades reveladas e que, portanto, se devem crer: primeiro termos.
os mistérios, depois as verdades cuja revelação é moral-
mente necessária no estado atual da humanidade.
CAPfTULO II: A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA
O texto retoma as afirmações do Vaticano I, fa-
zendo, porém, duas modificações importantes. A formula- 7. Os apóstolos e seus sucessores, arautos do Evangelho
ção atual usa dois verbos: manifestare e communicare, em
vez do único revelare do Vaticano I. Isso para indicar que 1. Quae Deus ad salutem cunctarum gentium reve-
a revelação é ao mesmo tempo manifestação e comunica- laverat, eadem benignissime disposuit ut in aevum in-
ção de vida, pois a palavra de Deus não apenas notifica a sal- tegra permanerent omnibusque generationibus trans-
vação, ela traz a salvação. A formulação precisa ainda que mitterentur.
os decretos eternos, que se mencionam, dizem respeito à
salvação do homem. São pois os decretos da encarnação 14 D. 1785, 1786 ..
388 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 389
2. Ideo Christus Dominus, in quo summi Dei tota Evangelho outrora p~ometido; que, portanto, a ordem dada
revelatio consummatur (cfr. 2Cor l,20;3,16-4,6), man- aos apóstolos de pregarem o Evangelho engloba a totali-
datum dedit Apostolis ut Evangelium, quod promis- dade da revelação, do Antigo e do Novo Testamento. Essa
sum ante 'per prophetas Ipse adimplevit et proprío afirmação é sublinhada no mesmo parágrafo VII com a ex-
ore promulgavit, tamquam fontem omnis et s~lutaris pressão: utriusque Testamenti; Nota ainda o concílio que
v-eiitatis et morum disciplinae omnibus praed1carent, os apóstolos comunicam não apenas o Evangelho, mas to-
eis dona divina communicantes. dos os bens espirituais que receberam e que se prendem
3. Quod quidem fideliter factum est, tum ah Apos- ao Evangelho, ( carismas, sacramentos etc.), pois que a reve-
tolis, qui in praedicatione orali, exemplis et institu- lação é ao mesmo tempo manifestação e comunicação da
tionibus ea tradiderunt quae sive ex ore, conversa- salvação.
tione et operibus Christi acceperant, sive a Spiritu 3. O mandamento dado por Cristo aos apóstolos de
Sanéto suggerente didicerant, tum ah illis Aposto~s. vi- pregarem o Evangelho foi fielmente cumprido. Primeiro,
risque apostolicis qui, sub inspiratione eiusdem Spmtus pela pregação ou testemunho apostólico, entendido, porém,
Sancti, nuntium salutis scriptis mandaverunt. de modo concreto, incluindo não apenas palavras, mas também
4. Ut autem Evangelium integrum et vivum iugiter exemplos ou modos de agir, práticas, instituições, ritos,.
in Ecclesia servaretur, Apostoli successores reliquerunt numa palavra: tudo que os apóstolos receberam do Cristo,
Episcopos, ipsis "suum ipsorum locum magisterii- tra- por suas palavras e por suas obras, como também tudo que
dentes". · eles aprenderam do Espírito Santo. por suas sugestões re-
5. Haec igitur Sacra Traditio et Sacra utriusque Tes- ferentes às palavras e aos gestos do Cristo. O testemunho
tamenti Scriptura veluti speculum sunt in quo Eccle- apostólico, -pois, é mais vasto que a pregação oral propria-
sia in terris peregrinans contemplatur Deum, a quo mente dita: inclui também tudo que se refere ao culto e
omnia accipit, usquedum ad Eum videndum fade ad aos sacramentos ( principalmente o batismo e a eucaristia)
fadem sicuti est perducatur (cfr. lJo 3,2). e tudo que se refere ao comporta.mehto moral e à direção
moral das comunidades cristãs. Os---,apóstolos dão teste-
1. Tendo falado da revelação em si mesma, agora o munho do mistério do Cristo comunicando-o e prolongan~
concílio examina o problema de sua transmissão. A pri- do-o entre os homens, segundo o mandato do Senhor.
meira frase do parágrafo VII exprime o objeto de todo o Em segundo lugar, o mandamento do Cristo foi fiel-
capítulo II: a vontade de Deus é que a revelação por ele mente executado quando se escreveu a Boa-nova da salva-
feita permaneça íntata através dos séculos e seja transmitida ção, sob a inspiração do Espírito; seja pelos apóstolos, seja
a todas as gerações. O capítulo tratará dessa transmissão por seus discípulos. A revelação foi, pois, transmitida de
sob a forma de Tradição e de Escritura, de sua mútua re- dois modos: pela Tradição e pela Escritura. O Vaticano II
lação e de sua relação comum com a Igreja e o magistério. fala primeiro da Tradição ç depois .da Escritura ( ao con-
2. Essa vontade divina foi proclamada pelo Cristo, trário da ordem .seguida pelo Tridentino), por fidelidade à
na ordem expressa que deu aos apóstolos de pregarem a realidade das coisas, uma vez que a Tradição precedeu a
todõs os homens o Evangelho prometido pelos profetas, Escritura. •
cumprido e promulgado por ele, para ser fonte de toda a 4. Tendo falado da transmissão da revelação pelo
verdade salvífica e de toda norma para os costumes. Aqui Cristo e pelo Espírito Santo aos apóstolos ( transmissão ver-
o Vaticano II retoma o texto do Tridentino, mas com dois tical), e pelos apóstolos à Igreja ( transmissão horizontal),
importantes acréscimos. Reafirma o concílio que, no Cristo, diz o texto que essa transmissão horizontal continua na Igreja
foi completada toda a revelação; que o Cristo realizou o mediante os sucessores dos apóstolos. São eles os bispos, aos
390 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 391

quais os apóstolo transmitiram sua missão de ensinar, para ferunt in corde suo· ( cfr. Lc 2,19 et 51), tum ex
que o Evangelho se conserve intato e vivo através dos sé- intima spiritualium rerum quam experhintur intelli-
culos. É função dos bispos transmitir fielmente tudo quanto gentia, tum ex praeconio eorum qui cum episcopatus
receberam dos apóstolos, seja pela pregação ( entendida con- successione charisma veritatis certum acceperunt.
cretamente, como ficou acima exposto), seja pela Escritura. 5. Ecclesia scilicet, volventibus saeculis, ad plenitu-
5. A última frase apresenta as. conclusões dos enun- dinem divinae veritatis jugiter tendit, donec in ipsa
ciados anteriores. Sendo que a revelação toda nos foi dada consumentur verba Dei.
pelo Cristo e por seu Espírito, sendo essa revelação .trans- 6. Sanctorum Patrum dieta huius Traditionis vivifi-
miti.da pela Tradição e pela Escritura, conclui-se que a Tra- cam testificantur praesentiam, cujus divitiae in praxim
dição e a Escritura são como que o espelho no qual a Igre- vitamque credentis et orantis Ecclesiae transfunduntur.
ja, caminhando em direção à pátria, progride na econo- 7. Per eamdem Traditionem integer Sacrorum Li-
mia da visão, esperando a plena iluminação do face a face brorum Canon Ecclesiae innotescit, ipsaeque Sacrae
com o Pai. É a fé prelibação da visão escatológica 15 • Com Litterae in ea penitius intelleguntur et indesinenter
essa menção da Igreja prepara-se o último parágrafo do actuosae redduntur; sicque Deus, qui olim locutus
capítulo em que será examinada a comum relação da Tra- est, sine interinisione cum dilecti Filii sui Sponsa collo-
dição e da Escritura com a Igreja e o magistério. quitur, et Spiritus Sanctus, per quem viva vox Evan-
gelii in Ecclesia, et per ipsam in mundo resonat, cre-
8. A sagrada Tradição dentes in omnem veritatem inducit, verbumque Christi
in eis abundanter inhabitare facit ( cfr. Col 3, 16) .
1. !taque praedicatio apostolica,. quae in inspiratis
libris speciali · modo exprimitur, continua successione Pela primeira vez um documento do magistério ex-
usque ad consummationem temporum conservari de- traordinário propõe um texto• tão elaborado sobre a Tra-
bebat. dição: natureza, objeto, importância.
2. Unde Apostoli, tradentes quod et ipsi acceperunt, fi- 1. A pregação apostólica, que .se exprime principal-
deles monent ut teneant traditiones quas sive per mente nos livros inspirados, deve perpetuar-se até o final
sermonem sive per epistulam didicerint ( cfr. 2Tes dos tempos ..
2,15), utque pro semel sibi tradita fide decertent 2. É por isso que os apóstolos, transmitindo o que
(cfr. Jd 3 ). eles mesmos tinham recebido, exortam os fiéis a guardar
3. Quod vero ah Apostolis traditum est, ea omnia fielmente as tradições recebidas de viva voz ou por escrito
complectitur quae ad Populi Dei vitam sancte ducen-· ( 2Tes 2,15) e a combater pela fé transmitida de uma vez
dam fidemque augendam conferunt, sicque · Ecclesia, por todas (Jd 3).
. in sua doctrina, vita et cultu, perpetuat cunctisque ge- 3. Tendo falado da Tradição no sentido ativo de trans-
nerationibus transmittit omne quod ipsa est, omne missão da revelação, o concílio fala agora da Tradição no sen-
. quod credit. tido passivo ( o que foi transmitido). Indica o objeto da Tra-
4. Haec quae est ah Apostolis Traditio sub assisten- dição e sua extensão. O que foi transmitido pelos apósto-
t~a Spiritus Sancti in Ecclesia proficit: crescit enim los engloba tudo que serve para ordenar santamente a vida
tam rerum quam verborum traditorum perceptio, tum do povo de Deus e para aumentar sua fé. Com outras pa-
ex contemplatione et studio credentium, qui ea con- lavras: tudo quanto se refere à fé e aos costumes do povo
cristão. Essa afirmação coincide· com a do concílio Td-
15 S. Thomas, III Sent., d. 23, q. 2, a. 1, ad 4. dentino que ·declara que o Evangelho, isto é, a revela-

392 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO


O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 393
ção, é fonte de toda a verdade salvífica e de toda a disci-
plina dos costumes. A Igreja, em sua doutrina, por sua tólicos, prende-se ao fato de terem sistematizado em seus
vida e por seu culto, perpetua e transmite assim a todas as es,critos ~ rev~la~ão recebida, crida e vivida na Igreja. Tam-
gerações tudo que ela é e acredita. Portanto, a Tradição be~ a ~zturgza e uma testemunha privilegiada da Tradição,
não é apenas verbal, mas real. Realiza-se, pois, não apenas CUJas riquezas ela recolheu. Dificilmente encontraríamos
pelo ensino, mas também pelas instituições, pelo culto, pelos uma verdade de fé que de algum modo não se expresse
na Liturgia.
ritos etc. Pela Tradição perpetua-se não apenas a fé da
Igreja, mas toda a sua vida. 7. A última frase do parágrafo salienta a importância
4. O concílio passa a considerar a Tradição em seu da Trad~ção em face da_ Escritura. Importância decorrente
aspecto dinâmico. A Tradição divina, que vem dos ?ºs seguintes fatos: a) E pela Tradição que nos é conhecido
apóstolos, vive na Igreja, que dela vive sem cessar. Por- integralmente o cânon dos livros inspirados. Quanto a isso
tanto, num certo sentido, podemos dizer que a Tradição pro- ? co~cílio reconhece que o conteúdo objetivo da radição
gride continuamente na Igreja, sob a. ação e assistência do e m~1~ amplo que ~ da Escritura. b) É também pela
Espírito. Note-se, porém, que não é propriamente a Tra- Trad1çao que . a Escritura é compreendida mais profunda-
dição apostólica que cresce, mas a percepção sempre mais mente. c) Finalmente, é pela Tradição que a Escritura é
profunda que adquirimos das coisas e das palavras trans- sempre atual e atualizada. Pela Tradição conclui o con-
mitidas. São fatores desse progresso a contemplação e o ~ílio numa perspecti:7a trinitária, Deus continua com a lgre-
estudo dos fiéis (Lc 2,19.51 ), a experiência vital das rea- Ja, Espos~ ?e seu Filho, um permanente diálogo, enquanto
lidades espirituais, da qual nasce uma compreensão sabo- que o Espmto, por quem a voz do Evangelho ressoa na Igreja
reada 16 , e, finalmente, a pregação daqueles que juntamente e, por ela, no mundo todo, conduz os crentes para plenitude
com o episcopado receberam o carisma do ensino. da verdade e faz que a Palavra do Cristo neles permaneça
5. Assim a Igreja, ao longo dos séculos, sob o im- abundante ( Cal 3, 16 ) .
pulso vivo que recebe da Tradição, tende sempre à pleni-
tude da verdade divina, até que nela se cumpra a Palavra 9. Relações mútuas entre a Tradição e a Escritura
de Deus. Ao mesmo tempo ativa e passiva, a Igreja leva a
Tradição e é, por sua vez, levada e vivificada pela Tradição. 1. Sacra Traditio ergo et Sacra Scriptura arcte inter
6. Como conseqüência, nenhuma· verdade transmiti- se connectuntur atque communicant.
da pela Tradição poderá ser plenamente conhecida, em toda 2. Na1;1 ambae, ex eadem divina scaturigine proma-
a sua ·riqueza, através de um único documento ou de uma nantes, m unum quodammodo coalescunt et in eumdem
testemunha só. Será conhecida plenamente mediante o con- finem tendunt.
junto das testemunhas e das formas de expressão em que 3; . Etenim Sacra Scriptura est locutio Dei quatenus
vive: escritos dos santos Padres, liturgia, praxe da Igreja, d1vm_o_ afflante Spiritu scripto consignatur; Sacra autem
reflexão teológica. Principalmente as obras dos santos Pa- Tradit10 verbum Dei, a Christo Domino et a Spiritu
dres é um testemunho dessa Tradição vivificante, cujas ri- Sancto Apostolis concreditum, successoribus eorum in-
quezas se transfundem na vida e na prática da Igreja crente t~gre transmittit, ut illud, praelucente Spiritu ve.rita-
e orante. Os santos Padres. são as testemunhas da Tradição. t1_s, praeconio su~ fideliter servent, exponant atque
O seu valor, mais que a sua proximidade dos tempos apos- d1ffundant; quo ftt ut Ecclesia certitudinem suam de
omnibus revelatis non per solam Scripturam hauriat.
16 Por exemplo, a compreensão que nasce da prática da vida sacra- 4. Quapropter utraque pari pietatis affectu ac re-
mental.
verenda suscipienda et veneranda est.
394 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 395

Propositadamente o concílio não tratou do problema, sobre o conjunto das. coisas reveladas por Deus, que,
teologicamente ainda não resolvido, do conteúdo. material portanto, propõe ou pode propor como tais à fé de seus
da Tradição e da Escritura: Temos na Tradição um conteúdo filhos, não procede ,somente da Escritura. Pois afinal a
objetivo mais amplo que o da Escritura? Poderíamos Igreja possui sempre totalmente ( integre transmittitur) a
dizer. que nada se encontra na Tradição, que de algum mo- pal?vra viva r7cebida no começo. Portanto, se a Igreja
do não se encontre também na Escritura? 17 • A não ser hesita pronunciar-se sobre determinada questão, porque
no caso do cânon dos livros inspirados, o concílio julgou a Escritura não lhe parece suficientemente clara e ex-
inoportuno fazer qualquer determinação quanto ao objeto plícita, ela pode encontrar na Tradição, conservada por
quantitativo da Tradição e da Escritura. Sendo a questão ela, um meio para se esclarecer e se firmar. Assim a Escri-
de primordial importância para o diálogo ecumênico atual, tura e a Tradição completam-se mutuamente, não tanto pela
com razão o concílio insistiu mais sobre a mútua relação contribuição quantitativa de cada uma, quanto por um
e mútuo serviço entre a Tradição e a Escritura. mútuo esclarecimento. Precisando esse ponto como simples
1. Como uma conclusão dos parágrafos anteriores, a
conseqüência do que dissera antes, o concílio não está rein-
troduzindo sub-repticiamente a questão das duas fontes.
primeira frase deste parágrafo declara que a Tradição e a
Simplesmente afirma um fato universálmente reconhecido
Escritura estão estreitamente unidas entre si e em mútua
pelos teólogos e unia praxe constante da Igreja.
comunicação. Seria pois um erro considerá-las como dois ca-
4. A última frase termina com as palavras do T ri-
minhos paralelos e independentes, afirmar a existência de
dentino. Uma vez que a Tradição e a Escritura transmi-
uma negando a da outra, ou ignorar suas mútuas relações.
tem e. conservam a revelação sob ambas as formas por ela
A Tradição e a Escritura são inseparáveis, formam um todo
assumidas, uma vez que ambas tendem ao mesmo fim a
orgânico cujos elementos são interdependentes.
salvação da humanidade, ambas devem ser recebidas e 're-
2. O concílio diz precisamente como a Tradição e a verenciadas com o mesmo respeito e piedade.
Escritura estão assim estreitamente ligadas: a) ambas jor-
ram da mesma torrente de águas vivas, isto é, da revela- 10. Relação comum da Tradição e da Escritura
ção; b) ambas, em certo sentido, formam um todo, pois que para com a Igreja e Magistério
ambas exprimem o Mistério único, ainda que de forma
diferente; c) ambas tendem para um mesmo fim, a salva- 1. Sacra Traditio et Sacra Scriptura unum verbi Dei
ção dos homens, como se explica no parágrafo seguinte. sacrum depositum constituunt Ecclesiae é:ommissum
3. A última frase apresenta a razão última do nexo cui inhaerens tota plebs sancta pastoribus suis adunat~
entre Tradição e Escritura: ambas são igualmente palavra i~ doctrin~ Apost~lor_um et communione, fractione pa-
de Deus. De fato, a Escritura é palavra de Deus enquanto ms et orat1ombus mgiter perseverat ( cfr. At 2 42) ita
escrita sob a inspiração do Espírito Santo. Mas a Tradi- u_t _in t:adi_ta fide. t~nenda, exercenda profi{end;que
ção também é palavra de Deus, pelo Cristo e pelo Espírito smgulans fiat Antistltum et fidelium conspirado.
confiada aos apóstolos, transmitida intata a seus sucessores, 2. Munus autem authentice interpretandi verbum Dei
para que estes, sob a luz do Espírito, pela pregação fiel- scriptu~ vel tradi~um soli _vivo Ecclesiae Magisterio
mente conservem, exponham e propaguem a palavra recebi- concreditum est cums auctontas in nomine Jesu Christi
da dos apóstolos. Conseqüentemente, a certeza da Igreja exercetur.
3. Quod quidem Magisterium non supra verbum Dei
" '.7 Sobre ess~ _problema, veja a ótima exposição de J. DUPONT, est, sed eidem ministrat, docens nonnisi quod tradi-
Écnture et Trad1t1on", Nouvelle Revue théologique, 85 ( 1963): 337-356 tum est, quatenns illud, ex divino mandato et Spi-
449-468. '
396 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 397
ritu Sancto assistente, pie audit, sancte custodit et O concílio retoma a doutrina da Humani GenerÚ 18 , expli-
fideliter exponit, ac ea omnia ex hoc uno fidei de- cando porque essa função é privativa do magistério: somente
posito haurit quae tamquam divinitus revelata cre- ao magistério da Igreja, que exerce a autoridade em nome
denda proponit. . do Cristo, é que foi confiada a função de interpretar com
4. Patet igitur Sacram Traditionem, Sacram Scr1p- autoridade a palavra de Deus, escrita ou transmitida.
turam et Ecclesiae Magisterium, iuxta sapientissimum 3. A frase seguinte explicita mais a posição do ma,
Dei consilium, ita inter se connecti et consociari, ut gistério ante a revelação. ConfOrme se considere, pode ser
unuin sine aliis non consistat, omniaque simul, singula uma posição de dependência ou de transcendência. De mo-
suo modo, sub actione unius Spiritus Sancti, ad ani- do geral, porém, devemos dizer que o magistério não está
marum salutem efficaciter conferant. acima da palavra de Deus, mas a seu serviço. Nos ambien-
tes acatólicos pode, às vezes, existir a impressão de que a
O parágrafo compõe-se de duas alíneas. A primeira Igreja é um absoluto que sucede à Escritura e a substitui.
fala da relação entre a Tradição e a Escritura e a Igre;a O próprio magistério define-se mais modestamente como o
toda: fiéis e hierarquia. Trata a segunda da relação da Tra- servo da palavra de Deus, nada ensinando senão o que lhe
dição e da Escritura para com o Magistério da Igreja; pois foi transmitido. A Igreja não é domina, mas ancilla da pa-
era preciso situar corretamente a Tradição e a Escritura lavra de Deus. Preciosa afirmação no diálogo ecumênico
face ao Magistério, já que muitas vezes os protestantes atual: é pela primeira vez que um texto conciliar assim
têm a impressão de que nós subordinamos a Escritura ao se exprime. .
Magistério e confundimos este último com a Tradição. A seguir é especificada a função do Magistério ante a
1. O único depósito da revelação, formado pela Tra- revelação. Por mandato expresso do Cristo e sob a assistên-
dição e pela Escritura, foi confiado à Igreia toda, evidente- cia do Espírito, o Magistério ouve piedosamente, guarda
mente não para que toda a Igreja o interprete oficialmen- ·santamente, expõe fielmente, haurindo no único depósito
te - função que compete só ao magistério - , mas para da fé tudo quanto propõe para ser crido como divinamente
que toda a Igreja dele viva. Todo o povo cristão, unido revelado. ·
a seus pastores e numa adesão fiel ao depósito, único e sa- a) O Magistério ouve piedosamente a voz viva do
grado, persevera no ensinamento dos apóstolos, numa adesão Evangelho que ressoa continuamente a seus ouvidos, pois
de espírito e coração, na fração do pão e na prece. Isso· o Magistério, enquanto tal, também vive na fé, sendo o pri-
para que haja união dos fiéis e dos seus chefes espirituais meiro a prestar ouvidos à palavra de Deus. Como a Virgem
na adesão à fé transmitida, no seu exercício e na sua profissão, piedosamente recolhia as palavras dos lábios de Cristo, as-
Assim vivendo da fé transmitida pelos apóstolos, a Igreja de sim também o Magistério está atento à palavra de Deus.
cada geração imita a Igreja apostólica na sua adesão à re-
b) O Magistério guarda santamente a palavra de
velação. A afirmação desta alínea, mesmo sem constituir
Deus. Essa expressão, tomada ao Vaticano I 19 , é tradicio-
uma novidade doutrinal, representa de fato um progresso nal e encontra-se freqüentemente nos documentos do Ma-
face aos documentos anteriores, principalmente Vatica-
gistério, com forma idêntica ou equivalente 20 • Guardar
n6 ·I e encíclica Humani Generis, que se limitavam a con-
santamente o depósito da palavra de Deus significa nada
siderar as relações da Escritura e da radição apenas para perder, nada subtrair, nada acrescentar. Assim como nada
com o magistério da Igreja.
2. A segunda alínea descreve a função que compete 1s D. 2314.
exclusivamente ao magistério da Igreja ( ordinário ou ex- 19 D. 1800.
traordinário): interpretar autenticamente o depósito da fé. 20 D. 1781, 1793, 1800, 1836, 2145, 2315.
398 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUiyI" 399
se pode acrescentar à Escritura, assim também nada se almas. Do mesmo modo que Tradição e Escritura são in-
pqde tampouco acrescentar à Tradição. O esforço para separáveis, assim também Tradição e Escritura são inse-
perscrutar as Escrituras não pretende enriquecer o tesouro paráveis do Magistério, unidas em mútua interdependência.
das Escrituras. Assim também a Tradição viva da Igre-
ja, que se exprime sob formas diversas através dos tempos,
não pretende enriquecer o tesouro. da Tradição recebido OBSERVAÇÕES GERAIS
dos apóstolos. O que se aperfeiçoa não é a revelação, mas
a compreensão que dela temos, as explicitações sucessivas A Constituição do Vaticano II sobre a revelaçãQ teve
com as quais procuramos manifestar as suas inesgotáveis uma tramitação bastante movimentada. Tendo sido uma das
.riquezas para iluminar as sucessivas gerações; aperfeiçoam- primeiras . a ser proposta para a discussão dos conciliares,
-se, finalmente, as formulações que multiplicamos para tra- foi uma das últimas a ser votada. Antes de aprovada en-
duzir em termos humanos todo esse esforço de assimilação frentou muitas resistências, passou por muitas tempesta-
da palavra de Deus. Da função de custos ou guardião da des, escapou ao naufrágio. O texto definitivo votado pelos
revelação segue-se a função de proteger a palavra de Deus padres conciliares já era a quinta redação oficial. As re-
contra os desvios, deslizes, heresias. sistências encontradas não nos devem surpreender muito.
c ) O Magistério deve também expor fielmente a pa- No plano doutrinal, a Constituição De divina Revelatione,
lavra de Deus 21 , pois a função de Igreja não é apenas guar- como a Constituição De Ecclesia, é afinal o documento mais
dar e defender a palavra: deve propô-la aos homens de importante do concílio; isso pela importância dos proble-
todos os tempos. Isto significa declarar o seu sentido au- mas tratados e pelas conseqüências que terá no diálogo
têntico, esclarecendo e explicando ó que fôr obscuro. A ecumênico.
exposição fiel da palavra é a meta total da missão de ensi- Pela primeira vez um concílio estudou de forma tão
nar que a Igreja recebeu e que exerce por seu Magistério consciente e metódica as categorias fundamentais e primei-
ordinário ou extraordinário. ras do cristianismo: Revelação, Tradição, Inspiração. Essas
d) Finalmente, diz o concílio, o Magistério haure noções, onipresentes no cristianismo e implicadas em qual-
dessa fonte viva da palavra de Deus tudo quanto propõe à quer processo teológico, são também as mais difíceis de
fé como divinamente revelado 22 • Nada propõe que já não definir, justamente por serem noções primeiras. Elas são
esteja contido no único depósito da fé. O desenvolvimento para a teologia o mesmo que as noções de conhecimento,
dogmático, que é um esforço para propor e formular, de modo de ser e de agir são para a filosofia. Vivemos dessas reali-
fiel, mais preciso e mais rico, a palavra de Deus, realiza-se dades, são porém as últimas a ocupar nossa reflexão críti-
sempre no interior do objeto da fé. ca. Acrescente-se que, em grande parte, as dificuldades
4. A última frase conclui o que se disse sobre a Es- do concílio provêm do fato de a reflexão teológica so-
critura, a Tradição e o Magistério declarando que, no sa- bre esses pontos , fundamentais nem sempre ter atingido
pientíssimo desígnio de Deus, essas três realidades são sua plena maturidade. Como se poderia propor um con-
inseparáveis. De tal modo interligadas e associadas que uma junto doutrinal coerente sobre pontos que, sob certos as-
não pode ter consistência sem as outras. As três em con- pectos, ainda são objeto de pesquisa teológica? A pesquisa
junto, sob a ação de um só e mesmo Espírito, cada qual ainda incompleta e também o fato de, em alguns ambientes
a seu modo, contribuem eficaimente para a salvação das católicos, serem ignorados os resuhados já obtidos, explicam
parcialmente as hesitações do concílio, a redação trabalho-
21 D. 1800, 1836, 2307, 2313, 2314. sa, certas limitações do texto.
22 D. 2314.
Do ponto de vista ecuménico, seria difícil exagerar a
400 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 401
jmportância do texto. Sob a influência do Espírito e sem da exposição. No proremium encontramos expressos: a fi-
nada sacrificar de sua fé, a Igreja soube encontrar uma nalidade da constituição ( J), a natureza, o objeto e a eco-
linguagem comum, acessível a todos os cristãos. Descre- nomia da revelação ( II ) ; a revelação na sua preparação ( III ) ;
vendo equilibradamente os diversos aspectos da revelação e a revelação no seu auge e plenitude ( IV) ; a resposta à
da tradição, apresentando a fé como uma adesão total da revelação (V) ; as verdades reveladas para a fé ( VI ) ; •os
pessoa a Deus que r~vela, propondo a .Tradição e a Escri- apóstolos e seus sucessores como arautos do Evangelho
tura como duas plenitudes intimamente interdependentes e (VII); a Tradição em si mesma (VIII); a mútua rela-
ligadas à vida da Igreja, estabelecendo niais claramente as ção entre Tradição e Escritura (IX); relação comum da
relações do magistério para com a Escritura e a Tradição, Escritura e da Tradição ante a Igreja e o Magistério (X).
descrevendo de forma matizada a inspiração e a verdade da · 3. O texto procura fazer uma exposição serena da
Escritura, consagrando a importância do gênero literário doutrina da Igreja. Não quer anatematizar nem estabele-
para a compreensão dos textos sacros, salientando a unida- cer polêmica. A intenção do concílio foi antes estudar esses
de profunda entre ambos os Testamentos e a sua mútua pontos pacificamente possuídos, deixando aos teólogos liber-
inclusão, restituindo à Escritura o lugar que lhe compete no dade para discutir problemas ainda não resolvidos. Exem-
ensino, na vida litúrgica da Igreja e na piedade dos fiéis, plo típico dessa atitude é a questão do conteúdo material
o concílio afastou muitos equívocos e manifestou no texto objetivo da Escritura e da Tradição.
um acordo que muitas vezes já existia na realidade. 4. O tom da constituição é profundamente religioso.
No que se fere mais precisamente à revelação o texto Continuamente se percebe a presença contemplativa e apos-
apresenta um conjunto admirável. Queremos aqui chamar tólica, da Esposa do Cristo, sempre a meditar a apalavra
a atenção para alguns de seus méritos. do Esposo, partindo para seus filhos o pão da palavra ao
1. A constituição oferece bases sólidas para um tra- mesmo tempo que o pão eucarístico. Esse caráter religioso
tado dogmático sobre a revelação. Examinam-se todos os deve-se, em grande parte, ao uso abundante dos textos da
pontos fundamentais: a natureza, o objeto, a finalidade, a Escritura, tão bem empregados que parecem ser o meio
economia, o progresso e a pedagogia da revelação; a posição natural para exprimir o pensamento da Igreja. Esses textos
central do Cristo como Deus que revela e como Deus re- formam como que a trama da constituição. Seu ca-
velado; a resposta da fé, a transmissão da revelação, as for
0 ráter bíblico aparece principalmente no primeiro capítulo
mas dessa transmissão; as relações da Escritura e da Tradi- onde encontramos trinta e .duas referências à escritura ( no
ção ante a Igreja e o Magistério. O texto não descuida corpo do capítulo e nas notas) . Essas referências estão assim
nenhum dos aspectos dessa realidade complexa: a revela- repartidas: quatro referências ao Antigo Testamento; uma,
ção é uma ação divina, uma intervenção de Deus na história, à tradição sfoótica; catorze, a são Paulo; onze, a são João;
é uma história; é uma comunicação interpessoal na linha da uma, a são Pedro, uma, à Epístola aos hebreus 23 • Por si
palavra, um encontro com o Deus vivo, encontro que deter- mesma essa seqüência de textos já é um belo conjunto dou-
mina uma homenagem total da pessoa e um assentimento do trinal. Praticamente a maioria dos principais textos escritu-
espírito à mensagem da salvação. Evidencia também a con- rísticos sobre à revelação foi utilizada.
descendência de Deus que, para se revelar, escolhe os ca- 5. O texto foi concebido e redigido numa perspectiva
minhos da história e da carne: característica distintiva da
revelação cristã. 23 As referências do primeiro capítulo à Escritura são as seguintes:
2. Apesar de deficiências em alguns detalhes, a Gên 3,15;12,2-3; :Êx 33,11; Bar 3,38; Mt 11,27; Rom 1,5;1,19-20; 2,6-7;
16,26; 2Cor 3,16;4,6;10,5-6; Ef 1,9;1,3-14;2,18; Col 1,15; lTim 1,17;
construção é .sólida, o plano é claro e bem estruturado. Os 6,14; Tit 2,13; Hebr 1,1-2; Jo 1,3;1,14;1,17;1,1-18;3,34;'5,36;14,6;14,9;
títulos dos parágrafos vão escandindo a marcha dinâmica 15,14-15;17,1-3; 1Jo 1,2-3; 2Pdr 1,4. ·
r

402 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 403
trinitária. Esse aspecto, que já salientamos ao longo de Vaticano I Vaticano II
nossa análise, manifesta-se principalmente no procemium, Placuisse eius (Dei) sapien- Placuit Deo in sua bonitati
na primeira frase do parágrafo II ( sobre a natureza da re- tiae et bonitati, alia eaque et sapientia seipsum revela-
velação ) , na quarta frase do parágrafo IV ( sobre a eco- supernaturali via, seipsum ac re et notum facere sacra-
nomia da revelação pelo Cristo ) , no parágrafo VII ( sobre aeterna voluntatis suae de- mentum voluntatis suae, quo
a Tradição), no parágrafo IX ( sobre as mútuas relações creta humano generi reve- homines, per Christum, Ver-
entre Escritura e Tradição). lare. bum carnem factum, in Spi-
6. Essa ref~rência habitual às pessoas divinas na des- ritu Sancto acessum habent
crição da revelação contribui para dar ao conjunto do texto ad Patrem et divinae natu-
a ressonância personalista desejada pelos padres conciliares. rae consortes efficiuntur.
Os termos: palavra, conversação, diálogo, sociedade, comu-
nicação, participação, amizade, amor, que vão marcando o 8. Uma última característica da constituição é o lugar
avanço do texto, indicam claramente essa intenção. Apre- dado à Igreia. É na Igreja que o Evangelho se conserva in-
senta-se a revelação como uma iniciativa do Deus vivo, como tato e vivo (VII); é a Igreja que perpetua e transmite o
uma manifestação de seu mistério pessoal. Deus estabelece tesouro r~cebido dos apóstolos, por seu ensino, por
sua vida e por seu culto (VIII); . é a Igreja que,
com o homem contato de· pessoa para pessoa: o Eu divino in-
pela contemplação, pelo estudo e pela vida, tende
terpela o homem, fala-lhe, dialoga com ele, manifesta-lhe
para a plenitude de verdade da palavra de Deus
os mistérios de sua vida íntima para que possa ter uma co- (VIII); é com a Igreja, sua Esposa, que Deus mantém
municação de pensamento e de amor com as pessoas divinas. contínuo contato ao longo dos séculos, e é por ela que a
Pela fé o homem dá uma resposta a essa iniciatiya de amor palavra de Deus ressoa no universo (VIII); é a Igreja que,
e entrega-se totalmente. A revelação assim descrita, é ao por seu Magistério, interpreta a palavra de Deus, é sua
mesmo tempo personalizada e personalizante. serva, guarda-a santamente, expõe fielmente, propõe in°
7. O cristocentrismo foi outra característica procu- falivelmente.
rada pelos padres conciliares. É o Cristo que constitui a A revelação descrita pela constituição é verdadeira-
unidade da economia e do objeto da revelação. Esse objeto mente a revelação cristã, e não uma revelação qualquer,
é o próprio Deus que intervém na história do homem e se de tipo filosófico ou gnóstico.
lhe manifesta, em Jesus Cristo e por Jesus Cristo. Concre- O Cristo é seu Autor, seu Objeto, seu Centro, seu Apice,
tamente, o Mistério é o Cristo, autor e consumador de sua Plenitude, seu Sinal. O Cristo é o fecho da abóbada dessa
nossa fé, Revelador e Mistério revelado, assim como é tam- prodigiosa catedral cujos arcos são os dois Testamentos. É
bém Sinal da revelação. Esse cristocentrismo, já anuncia- todo o Antigo Testamento que o anuncia, prepara e deseja;
do no procemium, surge novamente no parágrafo II ( ho- todo o Novo Testamento é sua vinda, sua proclamação, refe-
mines per Christum; veritas in Christo illucescit), no pa- re-se todo a ele. Ao longo dos séculos, a Escritura e a Tradi-
rágrafo IV (locutus est in Filio; Jesus Christus Verbum ção exprimem esse único Objeto, esse único Mistério que é
caro factum), no parágrafo VII ( Christus in quo tota re- a vida da Igreja. Se o Cristo confiou à sua Esposa o ministé-
velatio consummatur) . Quanto a isso será útil comparar rio da palavra e do sacramento, é porque o Verbo de Deus,
duas frases semelhantes do Vaticano I e do Vaticano II no Cristo, nos foi dado sob a forma de palavra e de sacra-
sobre o próprio fato da revelação. Nota-se imediata- mento. É pela fé no Cristo e no seu Evangelho, é pela
mente o teocentrismo do Vaticano I e o cristocentrismo comunhão de seu corpo e de seu sangue que temos acesso
do Vaticano II: à vida do Pai, do Filho e do Espírito.
404 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 405

A revelação é, pois, iniciativa gratuita da benevolência divina


CONCLUSõES
para com o homem (D. 1636, 1785, Vat., ES), puro dom de
seu Amor, do mesmo modo toda a economia sobrenatural:
Devendo agora recolher os dados de nossa pesquisa, encarnação, redenção eleição. Deus revelou porque lhe aprou-
é preciso fazer uma observação. A Igreja, com as intervenções ve elevar o homem a um fim sobrenatural, fazê-lo participan-
de seu Magistério, não pretende declarar tudo que sabe sobre te de seus próprios bens, associá-lo à sua vida divina ( D.
um assunto. Não aparece nos textos oficiais, apesar de ela 1786, Vat. II). É desígnio de Deus que os homens, pelo
a conhecer e reconhecer, uma parte importante de sua dou- Cristo, Verbo encarnado, tenham acesso ao Pai, no Espírito,
trina elaborada e veiculada por seus doutores e teólogos, e participem da sociedade das Pessoas divinas ( Vat. II, ES) .
que não deixam jamais de explorar a Escritura e a Tradi-
ção. Cada documento tem uma finalidade precisa e bem deli- 2. Natureza da revelação
mitada. Nunca devemos esquecer esse aspecto circunstan-
cial das intervenções do Magistério. Os documentos nas- Essa comunicação entre o Deus transcendente e sua
cem num contexto histórico, ao qual devem suas perspecti- criatura, comunicação que chamamos revelação, a Igreja
vas e sua ressonância característica. Muitas vezes dirigidos descreve-a, com os termos da própria Escritura, como pa-
contra um erro especial, apresentam, na própria exposição da lavra de Alguém a alguém: Deus falou à humanidade. Di-
doutrina, uma acentuação característica que devemos perceber. rigiu-se ao homem, entrou em diálogo com ele ( Vat. II,
De modo algum pretendem expor de forma total a doutrina ES, D. 1636, 1785, MA). É esse fato que domina toda
que vive no coração da Igreja. Por isso, para penetrarmos a história. A religião de ambas as Alianças originou-se dessa
essa doutrina, mesmo em seus pontos essenciais, temos que palavra dirigida ao homem. A revelação é uma palavra, es-
considerar o conjunto dos documentos da Igreja 1 • pecificamente um testemunho, isto é, uma palavra de au-
toridade, qualificada pela infinita sabedoria e santidade da
1. Autor e finalidade da revelação Verdade incriada, onisciente, infalível e veracíssima. A essa
palavra que atesta corresponde, não a adesão de ciência,
A revelação é uma ação de toda a Trindade: o Pai, mas a plena homenagem da obediência da fé (D. 1637,
que tem a iniciativa; o Verbo que, por sua encarnação, é 1639, 1789, 2145, Vat. II).
o Mediador; o Espírito que torna a palavra do Cristo as- O Vaticano II é o único concílio a descrever a reve-
similável para a alma, que move o coração do homem e lação em sua realização concreta. Afirma que a revelação se
volta-o para Deus (D. 428-429, ES, Vat. II). Deus po- faz pela união íntima de gestos e. de palavras. As obras
deria não se ter revelado, deixando assim o homem entregue manifestam e corroboram a doutrina e o mistério significado
à simples luz da razão, ajudando-o apenas com a sua pro- pelas palavras, enquanto que as palavras proclamam e escla-
vidência ordinária (MA). Poder-se-ia ter manifestado só recem o mistério contido nas obras. Essa estrutura geral
pela criação (D. 17 85), pelo testemunho permanente que da economia da revelação aplica-se à revelação de ambas
em seu favor dá o universo criado (Vat. II). Aprouve, as Alianças, pois também a revelação trazida por Cristo se
porém, à sua bondade e à sua sabedoria manifestar-se também faz por palavras e por obras. Nele a economia da revelação
numa revelação positiva e sobrenatural (DB 1785, Vat. II). atinge seu ponto máximo de concentração. A revelação
1· Nestas conclusões usaremos estas siglas para designar os documen-
pelo Cristo, Verbo incarnado, usa todos os recursos da ex-
tos pontifícios mais recentes: MA ( Mortalium animas), MBS ( Mit bren- pressão humana para manifestar o Pai, de tal modo que o
nender Sorge), ASG (Ad Sinarum Gentem), HG (Humani Generis), MD Cristo é a epifania de Deus através da encarnação ( Vat. II ) .
(Munificentissimus Deus), ES (Ecclesiam Suam), Vat. II (Vaticanum II). Sua vida, suas obras, suas palavras, suas ações, sua paixão,
406 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 407
sua morte, sua ressurreição, ao mesmo tempo que são meios ocultos em Deus, que só podem ser conhecidos mediante uma
de revelação, apresentam-se também como testemunho divi- revelação positiva ( D. 1795), pois que transcendem, não
no que confirma que em em Jesus Cristo Deus está entre apenas a inteligência humana (DB. 1642, 1645, 1646, 1671,
nós para nos salvar e ressuscitar ( Vat. II ) .
1795), mas qualquer inteligência criada (D. 1673, 1796).
O Cristo é por si mesmo Sinal da revelação. Contudo, apesar de esses mistérios ultrapassarem a razão
humana, nem por isso a contradizem (D. 1649, 1797). E
3. . A história da revelação até podemos, mediante a analogia, chegar a ter deles um ceri:o
conhecimento proveitoso para nós ( D. 1796); jamais, po-
A atividade reveladora de Deus, iniciada na aurora da rém, mesmo depois de revelados poderemos compreendê-los
humanidade, constitui uma longa série de intervenções das como as verdades que são objeto de nosso conhecimento na-
qu,ais Çristo é o tema e o ponto culminante. Tendo-se mani- tural (D. 1795, 1797 ) , permanecerão velados para nós até
festado a nossos primeiros pais, dando-lhes ânimo com a pro- o dia da plena visão (D. 16 7 3, 1796 ) . Esses mistérios
messa de uma salvação, Deus falou a Abraão e aos patriar- são principalmente os que se referem à nossa elevação à vida
cas, a Moi~és e _aos profetas; por eles falou ao povo que sobrenatural e nosso comércio com Deus (D. 1671, 1786 ) ;
escolhera, mstrmndo-o e formando-o no conhecimento do são segredos que só o Espírito do Pai revela a quem ele
verdadeiro Déus ( Vat. II, D. 428-429). Em o Novo Tes- quer (D. 1644, 1795, MBS); Além dos mistérios, são
t~mento, Deus dirigiu-se à humanidade por seu próprio também objeto da revelação aquelas verdades referentes à
Filho, sua Palavra eterna que se fez carne para pronunciar religião, que por si não são inacessíveis à razão, mas que
as palavras de Deus. A revelação atingiu em Jesus Cristo Deus bondosamente quis revelar para que todos os homens
s~u termo e sua perfeição. O Cristo é ao mesmo tempo o Me- as conhecessem com certeza,· rapidamente e sem qualquer erro
diador e a Plenitude da revelação. Nele conhecemos a ver- (D. 1786, 1795, Vat. II).
dade de Deus, verdade que nos conduz à vida (D. 429,
792a, 2202, MBS, Vat. II). Sendo o Cristo a Palavra 5. A revelação e seus nomes
et~:na_de Deus, a economia por ele inaugurada é definitiva
e ~a n~o po~emos esperar outra revelação pública antes da A revelação em sua forma plena, pode ser chamada
epifama gloriosa do fim dos tempos (Vat. II, D. 2021 ). equivalentemente: a palavra de Deus (D. 1781, 1792, Vat.
Por ordem de Cristo os apóstolos pregaram e transmitiram II); a palavra divina ( D. 48); a palavra revelada ( D. 1793);
à Igreja o Evangelho por ele promulgado (D. 212, 783, a palavra pronunciada por Deus ( MBS ) ; a palavra atesta-
792a, 1785, Vat. II). da (D. 2145); a revelação (D. 1787, Vat. II); a revela-
ção imutável (MA); a revelação ou o depósito da fé (D.
4. Objeto da revelação 1836); o depósito da fé (D. 1836, 1967, 2204, 2313,
2314); o depósito revelado (D. 2314); a doutrina apos-
O objeto material da revelação pode ser considerado tólica (D. 3000); a doutrina da fé (D. 1800, 2145); a
de duas maneiras. Em si mesmo: Deus e o "mistério" de doutrina revelada ( D. 2314); as doutrinas reveladas (MA);
sua· vontade, tal como nos foi manifestado no Cristo e a doutrina sagrada (MA); a doutrina da fé ( D. 2325); a
~elo Cristo (MBS, D, 1785, Vat. II); ou, então, compara- verdade revelada (D. 2310, 2145); a verdade divinamen-
tivamente com a capacidade natural da. inteligência. criada te revelada ( D. 2307, 2308, 2311); o Evangelho prome-
(J:?. 1786, 1795, Vat. II) .. Nesse caso será preciso distin- tido, publicado e pregado (D. 783, Vat. II); o Evangelho
guir entre verdades acessíveis à razão humana e mistérios divinamente revelado ( ASG) ; a fé confiada aos apóstolos
(D. 93); a fé dada por Cristo. aos apóstolos (D. 212); a
408 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 409

verdade absoluta e imutável pregada pelos apóstolos (D. fiel e santamente o depósito da verdade que lhe foi con-
2147); a revelação· transmitida pelos apóstolos ou o de- fiado (D. 792a, 1781, 1800, 1836, 2145, Vat. II), guar-
pósito da fé (D.1836); o depósito da fé confiado à Igreja dá-lo íntegro e inviolado, a salvo de qualquer contamina-
(D. 2204, Vat. II); o depósito divino confiado à Igreja ção e novidade (D. 93, 159, 1679, 2204, MD, Vat. II);
(D. 1800); a verdadeira e sã doutrina do Cristo (D. 792a); deve também expor fielmente seu verdadeiro sentido, de-
a doutrina da salvação ( D. 428, 429). Palavra, Boa-nova clarar infalivelmente a doutrina revelada (D. 1781, 1800,
anunciada aos homens, doutrina, mensagem ça verdade, a 1836, HG, MD, Vat. II). Deve haurir na fonte viva da
revelação distingue-se de qualquer saber humano: é uma palavra de Deus tudo o que propõe à fé corrio divina-
doutrina de salvação (D. 428, 429 ), que conduz à vida mente revelado ( Vat. II). Deve, finalmente, proscrever
eterna e à visão do Pai ( D. 428 429), à sociédade com todos os erros que ameaçam a verdade revelada (D. 792a,
as pessoas divinas ( Vat. II); é uma mensagem que con- 1817, HG) . A revelação concluiu-se • com Cristo e os
tém promessas que acendem nossa esperança de salvação apóstolos (D. 2021, Vat. II). O depósito da verdade
(D. 798). revelada, que se encontra na Escritura e na Tradição . ( D.
783, 1787, Vat. II), não pode, como tal, receber nenhum
acréscimo. "Nenhuma invenção é introduzida, nada de novo
6. Revelação, Escritura, Tradição é acrescentado ao conjunto de verdades contidas pelo me-
nos implicitamente no depósito da revelação confiada à
A revelação chega até nós mediante a Tradição e a Igreja" (MA). Só pode ser aperfeiçoada. a percepção e a
Escritura, ambas estreitamente unidas e interdependentes. compreensão do depósito revelado (D. 1800, MA, HG,
Ambas derivam da mesma fonte divina, exprimem o mes- Vat. II). O Espírito Santo "dirige a Igreja universal para
.mo mistério e concorrem para um mesmo fim, a salvação da um conhecimento mais perfeito das verdades reveladas"
humanidade. Ambas são palavra de Deus: uma foi escrita (MD). Pode assim a Igreja explicitar o. implícito, escla-
sob a inspiração do Espírito; outra, confiada por Cristo recer o obscuro, "esclatecer e explicitar o que se encontrava
aos apóstolos e por eles transmitidas a seus sucessores (D. · apenas obscura e implicitamente no depósito da fé" (D.
783, Vat. II); 2314) . É pela pregação da Igreja, que recebeu a missão
de ensinar a todos os povos (ASG, MA, D. 2204), que a
7. RevelaçãO, Igreja, Magistério revelação se torna viva e atual ( Vat. II ) . Somente a Igre-
jâ, na tradição viva que recebeu do Cristo e dos apóstolos,
. .O depó~ito d~ revelação, formado pela Tradição e pela sabe como interpretar, assistida pelo Espírito, a verdade
Es~ritura, foi confiado à Igreja toda, isto é, ao povo cristão revelada. Quando se diz que ela é "guardiã da revelação"
unido a seus sacerdotes, para que. ela· viva desse depósito (D. 179 3 ) , não se fala de um conservadorismo humano,
e entre todos os fiéis haja união na profissão e exercício nem de um respeito puramente material pela letra. A pa-
da fé transmitida ( Vat. II); pertence, porém, unicamente lavra que ela conserva é a palavra viva do Cristo e dos
ao Magistério a função de interpretar o depósito da fé (Vat. apóstolos, assimilada numa contínua meditação e explica-
II, D. 2314). De modo geral, deve-se dizer que o Ma- da. ao povo cristão ( ES). Tradição, Escritura e Magistério
g~stério não está acima da palavra de Deus, mas a seu ser- não se podem separar: os três· juntos, cada qual a seu
viço ( Vat. II ) . De modo mais detalhado, é múltipla modo, concorrem eficazmente para a salvação das almas
a função do Magistério com relação à palavra de Deus. (Vat. II). . .
Primeiramente o Magistério ouve piedosamente a palavra
de Deus (Vat. II). Deve em seguida .guardar, conservar
410 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 411

8. Características da revelação senta como intervenção de Deus na história, intervenções


interligadas e tendo em vista um único desígnio de _salva-
Ainda que nem sempre explicitamente formuladas, essas ção. A revelação é acontecimento·da história e história. E: ~am-
características não são menos reais; pela sua maneira de bém histórica porque progrediu através do tempo. Imciada
se exprimir é evidente que a Igreja as supõe e subentende: nas origens do mundo, desenvolve-se em qualidade e em
quantidade ao longo de todo o Antigo Testamento e comple-
a) A revelação é interpessoal: ao contrário da r1::ve-
tou-se com o Cristo e os apóstolos (D. 428-429, 783, 1785,
lação natural, pela qual Deus se manifesta ao espírito como
2021, MBS, Vat. II). Inicialmente parcial, sucessiva e
objeto e se deixa antes deduzir como princípio e fim de
polimorfa, ela atinge em Cristo sua plenitude e seu termo
todas as coisas, a revelação sobrenatural é palavra de Deus,
diálogo e mensagem (D. 1785, ES, Vat. II). É Deus mes- ( D. 792a, MBS, Vat. II). Apresenta-se como uma eco~o-
mia, isto é como uma disposição sapientíssima, concebida
mo que, por iniciativa própria, vem até nós,_ entra em co-
municação pessoal conosco, como um sujeito com outro e realizad/ por Deus ao longo dos século_s. . .
e)· A revelação é encarnada: recebida numa mteh-
sujeito, como um eu com um tu. Sendo interpelação
gência humana, deve acomodar-se às condições da concep-
pessoal, a revelação exige também uma resposta pessoal: re-
ção humana. O objeto da revelação é o desígnio de Deus,
velação e fé são interpessoais.
mas é humano e limitado o modo de concepção e de ex-
b) A revelação é gratuita: livre iniciativa da bene- pressão desse desígnio. Por isso o homem recebe de ma-
volência de Deus que se inclina para o homem, iniciativa neira diversa e múltipla uma verdade que é sumamente
do desígnio de seu amor salvífico (D. 1636, 1785, MA). una e simples em Deus. É mediante a multiplicidade de
Nascida do amor, a revelação tem em vista uma obra de concepções, de proposições e de verdades particulares que
amor (ES, Vat. II). A revelação é graça, como também chegamos a conhecer o mistério de unidade do pensamento
é graça a acolhida que ela encontra, porque Deus, que co- divino ( multifarie multisque modis) . É pela carne do
munica o dom, dá também o poder de recebê-lo na fé (D. Cristo e pela carne das palavras que atingimos o teste-
180, 798, 1789, 1791, Vat. II). O ponto culminante munho de Deus ( Vat. II, ES).
dessa iniciativa é a encarnação do Verbo de Deus, do Filho f) A revelação é doutrinal e realista: em sua forma
que vem em pessoa revelar-nos o Pai e os desígnios mis- plena, a revelação não é pura ação de Deus que se oferece
teriosos de seu amor (D. 783, 792a, 1785, MBS, Vat. II). à amizade humana puro contato do Espírito conosco, pura
c ) A revelação é social: o homem criado por Deus experiência· intern~ sem conteúdo e sem doutrina· fixa. É
não é apenas indivíduo, mas sociedade. Assim também a uma mensagem promulgada pelo Cristo e transmitida pelos
revelação, que dissemos ser. interpessoal, é também social, apóstolos. Por isso a Igreja sempre fala da revelação, em
destinada a toda a humanidade. Dirige-se aos indivíduos, seu sentido objetivo, como de um ensinamento religioso, de
não, porém, como a unidades isoladas, fechadas umas às uma doutrina, de um depósito (D. 428-429, 783, 792a,
outras, mas como membros de uma coletividade, para que 1787 1800 2059, Vat. II). Não é preciso lembrar, porém,
todos estejam conscientes de sua comunhão na revelação, que ; fé nã~ tem por termo um simples enunciado, mas si~
nc amor, na salvação (D. 428, 429, 1785, Vat. II). A re- a realidade do próprio mistério. A doutrina, enquanto si-
velação, porém, é hierárquica: não se dirige a todos imedia- nal, é meio para o crente afirmar a doutrina enquanto reali-
tamente, mas mediante aqueles que Deus escolheu para dade significada. O que, de fato, nos é revelado é o pró-
serem suas testemunhas - os profetas e os apóstolos prio Deus (Vat. II), seus eternos decretos (D. 1785), seus
(D. 428-429, 783, Vat. II). mistérios (D. 1795), seu desígnio de salvação (Vat. II).
d) A revelação é histórica: primeiro porque se apre- g) A revelação .é salvífica: - é feita para a salva-
412 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO O VATICANO II E A CONSTITUIÇÃO "DEI VERBUM" 413
ção, para a salvação de todos os homens ( ES, Vat. II). Deus. É ainda ao Espírito que se deve atribuir o apro-
É um conhecimento que tem por finalidade a vida. Não fundamento da fé ( Vat. II).
é sabedoria humana, invenção filosófica, nem produto do
subconsciente, e sim sabedoria divina, essencialmente orde- 10. Conclusão
nada para a salvação (D. 1786, 2074, 2075, 2145). Deus
fala-nos para associar-nos à sua vida, à vida das pessoas Em resumo, podemos descrever a revelação, como a
divinas: Pai, Filho e Espírito (Vat. II). A revelação tende entende o Magistério da Igreja, como sendo a ação livre e
para a visão (D. 1786) e procura estabelecer o encontro, sobrenatural pela qual o Deus de amor e de sabedoria -
a comunhão com o Deus verdadeiro: "nisto consiste a para levar o homem ao seu fim sobrenatural, que é parti-
vida eterna: que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus, lhar da vida das Pessoas divinas - manifesta-se, no Cristo
e aquele que enviaste, Jesus Cristo" (Jo 17 ,3). Por isso e pelo Cristo, bem como manifesta também o desígnio de
a revelação é chamada doutrina da salvação (D. 429), Evan- salvação que concebeu para a humanidade. Ação que é de-
gelho da Salvação (D. 783). nominada palavra e diálogo de Deus, testemunho que recla-
ma a homenagem da fé. A revelação cristã, efeito dessa
9. A fé, resposta à revelação ação divina eterna, é a palavra de salvação anunciada pelos
profetas, promulgada pelo Cristo e pregada pelos apóstolos,
A fé, resposta à revelação, é ao mesmo tempo dom transmitida à Igreja para ser fielmente guardada e infa-
pessoal de todo o homem que livremente se entrega a Deus, livelmente proposta aos homens de todos os tempos. Pa-
numa homenagem total de sua inteligência e de sua vonta- lavra que nos é comunicada pela Tradição e pela Escri-
de, livre assentimento à verdade por Deus revelada ( Vat. tura, confiada à Igreja sob essa dupla forma, como um
II, D. 2145). Enquanto assentimento do espírito, a fé depósito que o magistério deve conservar, defender, ex-
consiste em ter como verdade tudo quanto Deus falou, ates- plicar e propor. A fé, resposta do homem à palavra de
tou, revelou, e agora nos propõe por sua Igreja (D. 2145, Deus, é entrega total do homem, asentimento do espírito
MBS ) . O crente não dá seu assentimento por ter chega- à mensagem revelada, sob a ação preveniente e adjuvante
do a uma evidência intrínseca da verdade, mas devido à do Espírito.
autoridade de Deus. que fala. Autoridade que se fundamenta
na ciência infinita e na veracidade de Deus (D. 1789, 2145).
Aderindo aos enunciados imediatamente propostos pela Igre-
ja, o crente está aderindo aos mistérios, à palavra - do pró-
prio Deus. Sua fé é resposta ao testemunho incriado: ho-
menagem total, adesão firmíssima que une o espírito .huma-
no à verdade infinita e lhe proporciona uma certeza absoluta,
uma participação na luz e na infalibilidade dessa mesma Ver-
dade. Essa resposta do homem não é . puro resultado de
uma atividade humana: é dom de Deus. Para crer, é preciso
uma ação da graça preveniente e adjuvante (D. 180, 797-
-798, 1789, Vat. II). É preciso o socorro do Espírito San-
to que orienta o coração do homem para Deus, ilumina a
inteligência, dá a suavidade da adesão e da crença na
verdade (D. 180, 1791, Vat. II). A fé é um dom de
quinta parte

REFLEXÃO TEOLÓGICA
A teologia é inteligência da fé, busca do espírito que
tem sede de compreender. A teologia procura penetrar o
mistério que já possui pela fé, procurando obter uma inte-
ligência mais viva. Prospecção que jamais chega ao termo,
pois que o mistério revela novas profundezas à medida que
o espírito se aventura. Se a teologia é ciência do objeto
da fé, ela deve primeiramente, como ciência, apossar-se
desse objeto, para depois se esforçar por compreendê-lo
numa etapa complementar. Portanto, a função reflexiva
da teologia não se justapõe à função positiva: é antes sua
decorrência homogênea. É inteligência, mas inteligência do
dado revelado.
A finalidade desta quinta parte é justamente estabe-
lecer uma reflexão que flua da contemplação do próprio
objeto da fé, colhido e sistematizado. Deverá ser uma reflexão
fiel ao dado revelado, levando em conta a contribuição teo-
lógica dos séculos passados, em seus elementos melhores,
levando também em conta os anseios e orientações da pes-
quisa atual. O magistério eclesiástico oferecerá uma norma
que permita orientar a pesquisa na direção exata.
O estudo do material bíblico e patrístico sobre a re-
velação levanta muitos problemas, decorrentes em sua
maioria da própria complexidade da realidade a ser consi-
derada. De fato, essa realidade é estreitamente relacionada
com outras, tais como a história, a encarnação, a Igreja,
a luz da fé, a economia dos sinais, que acompanham a re-
velação ou a constituem. Esse estreito relacionamento trans-
parece na própria maneira de falar. Diremos assim que a
história é revelação, que o Cristo é a revelação em pessoa,
que a luz da fé é revelação interior, que a Igreja é a revela-
ção concreta, que os milagres são revelação da salvação rea-
lizada. Por outro lado, criação e parusia enquadram a re-

14 • Teologia da revelação
r
1

418 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

velação da graça como tipos de manifestação divina que


lhe são estreitamente conexos. 1.
A multiplicidade da realidade ac~escenta-se a multipli~ A REVELAÇAO COMO PALAVRA,
cidade dos aspectos que fazem surgir contrastes, ou ate TESTEMUNHO E ENCONTRO
mesmo oposições aparentemente irredutíveis. Por exemplo,
como conciliar entre si aspectos tão diversos como os de
mistério, história, pessoa, dou~rina, depósito? A medida que
um aspecto é valorizado, outro corre o risco de ser menos-
prezado. Isso é fenômeno comum entre os protestantes e
uin. risco perene entre os católicos.
Finalmente, as analogias que servem para exp_rimir a
experiência da revelação não podem ser usadas incauta- Foi a partir do sentido que a palvra tem para as re-
mente. A Escritura fala de palavra e de testemunho. Ao lações humanas que Israel compreendeu a manifestação de
utilizarmos esses termos, podemos estar certos de não os Deus à humanidade que nós denominamos revelação. Con-
empobrecer, de lhes conservar toda a s~iva religiosa? Quan- siderada em sua totalidade, a revelação se apresenta como
do falamos do Cristo e de sua doutrina, estamos seguros um fenômeno de palavra, evidentemente com grande varieda-
de que a ressonância que o termo tomou ao longo dos sis- de de formas e de meios de comunicação 1 • No Antigo Testa-
temas filosóficos não estará afetando o caráter específico mento, os profetas apresentam-se como testemunhas e arau-
da doutrina do Mestre? tos da palavra de Deus 2 • Em Jesus Cristo essa analogia
da palavra recebe sua plena e estrita realização. Em Jesus
Nesta última parte, pois, queremos estudar os proble-
Cristo é o Filho que pessoalmente nos fala 3, prega 4, ensina 5,
mas levantados pelo próprio dado revelado. Su~ede~-se os
atesta o que viu e ouviu junto do Pai 6 • Os apóstolos, por
capítulos segundo a trípl~ce . via indicad~ pel_o pr~meiro co_n-
sua vez, como "testemunhas oculares e servidores da Pa-
cílio do Vaticano para atingirmos certa mtehgenc1a dos mis-
lavra" ( Lc 1,2), pregam 7 , ensinam 8 , testemunham tudo o
térios: a analogia ( capítulo I ) , a ligação entre os misté~ios
que o Cristo disse e fez 9 • O conteúdo dessa palavra e desse
( capítulos II-VIII), a finalidade ( capítulo IX). O último
testemunho é a mensagem da salvação, a Boa-nova por ex-
capítulo (X) será uma conclusão para todo o estudo.
celência: o Evangelho 10 • Pela fé na mensagem da palavra
dá-se o encontro com o Deus vivo, prelúdio da visão face
a face. Palavra, testemunho, encontro, são analogias que

1 A revelação como palavra designa seja o fenômeno da iluminação


interior que dá a conhecer ao profeta o pensamento divino, seja o teste-
munho do Cristo através de todos os meios da encarnação: ações palavras,
exemplos.
2 :Êx 4,15-16;7,l-2; Jer 1,9;18,18.
3 Hebr 1,1; Jo 1,18;8,26.38.40.
4 Me 1,14.39; Mt 4,17.23;9,35; Lc 8,1.
5 Me 1,21-22;6,6;14,49; Mt 4,23;5,1-2;7,28-29;9,35;26,55; Lc 4,31-32;
19,47 ;20,1 ;23,5.
6 Jo 3,11.32;8,26.38;18,37; Apoc l,5;3,14.
1 Me 16,20; At 5,42;8,25;9,20;20,25;28,31.
s At 2,42;4,2.18;5,25.42;11,26;18,11.
9 At 1,21-22;2,32;3,15;5,32;10,39;13,31.
10 Me 16,15; Ef 1,13; Rom 16,25.
r
REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 421
420
a reflexão teológica deve aprofundar e purificar, ~ar~. indi- lavra como a ação pela qual uma pessoa se dirige a outra,
car como e em que medida nos dão acesso ao m1ster10 da exprime-se, procurando uma comunicação 15 •
revelação (D. 1796). Primeiramente a palavra é encontro interpessoal. O
homem fala sobre o mundo, mas não fala ao mundo. A
palavra dirige-se a outra pessoa. Com os objetos o homem
I. REVELAÇÃO COMO PALAVRA mantém relação de eu para isso. A palavra, porém, se dá
entre um eu e um tu. Toda palavra dirige-se a outra pessoa.
1. Palavra humana Mesmo entre os profissionais do silêncio ( Montaigne, Des-
cartes, Vigny, Proust) a palavra é também a procura de
Comecemos pelo elemento genérico da revelação: a uma presença pessoal autêntica.
palavra. Quanto à noção de palavra é breve a análise feita Falar é dirigir-se a alguém. Antes de ser expressão
pelos escolásticos. Seguindo santo Tomás, diz~m qu~ f_al~t a palavra é interpelação. "Apresentar o pensamento a al-
é manifestar o pensamento a outra pessoa mediante srna1~ . guém é manifestá-lo numa interpelação, como objeto sobre
Acentuam-se a manifestação do pensamento e a comunica- o qual o interpelamos" 16 • Qualquer palavra é um apelo,
ção de conhecimento que se realizam pela palavra. É uma uma procura de reação. Ela tende, por seu próprio dinamis-
concepção principalmente estática. De Lugo é um dos pou- mo, a estabelecer um circuito de interpelação e de respos-
cos que salientam o caráter dinâmico da palavra e notam ta, para se tornar colóquio, diálogo. Geralmente subenten-
que ela, por sua própria essência se dirige a outro. A pala- dida, às vezes a interpelação aflora no discurso, principal-
vra não consiste apenas em pro-por um objeto de pensamen- mente quando se torna mais afetivo. Exprime-se então em
to; tende à comunicação desse objeto; implica o desejo de formas de sintaxe, desde o emprego do pronome até a in-
ser ouvida e compreendida 12 • A teologia contemporânea, aten- terrogação clara e a inversão dos membros da frase 17 • Tanto
ta aos dados da filosofia e da psicologia da linguagem 13 , in- a interpelação como a reação podem tomar diversas. for-
siste com razão no caráter interpessoal, existencial, dinâmico mas: à ordem corresponde a obediência; à prece, o atendi-
mento; à promessa, a confiança; à explicação, a atenção;
e ablativo da palavra.
Karl Bühler distingue três aspectos na palavra: l '?, a ao testemunho, a fé 18 •
palavra tem um conteúdo. Significa ou representa algu_ma Se qualquer palavra é procura de reação, deve-se ao
coisa, nomeia um objeto, formula um pensamento, um Jul- fato de a palavra tender à comunicação, mesmo que nem
gamento, narra um fato ( Darsetellung.) 29, a palavra é uma sempre a consiga. Pode variar a finalidade da comunica-
interpelação. Dirige-se a alguém e tende a provocar uma exprime ( primeira pessoa), interpela ( segunda pessoa), narra ( terceira
resposta, uma reação. É um apelo, uma provocação ( Appell, pessoa). ·
Auslosung). 3'?, a palavra, finalmente, é manifestação da 1~ Para se exprimir dispõe o homem de outros meios: mímica, gestos

pessoa, de sua atitude interior, de suas disposições (Aus- da. mao e. do corpo, modo~ 1e andar. É porém a palavra a expressão
mais per!etta d~ pessoa; prmc1palmente a pàlavra viva, quando o tom, a
druck, Kundgabe) 14. Em resumo: podemos definir a pa- acentuaçao, ? ritmo, o ~lhar, os gestos dão à expressão a riqueza, a cla-
reza, a plenitude que nao se encontram em nenhum outro meio.
16 "Adresser sa pensée à autrui, c'est la manifester au sein d'une
11 S. th., la, q. 107, a. 1. interpellation, c'est en faire la matiere au sujet de laquelle on interpelle
12 De Fide, disp. 1, sect. 10, n. 197 e n. 210.
13 Cfr., p.or exemplo, os estudos de K. BüHLER, H. NoACK, M. autrui", (H. DAHNIS, "Révélation explicite et implicite" Gregorianum
34 [1953]: 209-210). . ' '
HEIDEGGER, G. SIEWERTH, M. MERLEAU-PONTY, M. NÉDONCELLE, L. 17 Por exemplo: -
LAVELLE, G. GusooRF, H. DELACROIX, G. PARAIN, A. G. RoBLEDO, J. Eu lhe garanto... Não é fato?... Não se
lembra? ... Você viu ou não viu?... Mas, é assim que você pensa? ...
ELACR0IX, e outros. . 18 E. DHANIS, "Révélation explicite et implicite", Gregorianum 34
14 K. BüEHLER, Sprachtheorie (Jena, 1934), pp. 2, 28-33. A esse trí-
(1953): 210. . '
plice aspecto da palavra correspondem as três pessoas do verbo: a palavra
422 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 423
ção. Pode ser simplesmente utilitária, meio de ação a ser- nível, ela é sinal de amizade e de amor, é conseqüência e
viço do homo faber. É a linguagem pragmática das trocas expressão da liberdade que se abre ao outro e assim se doa.
de informações, das ordens, das mensagens, dos jornais, do O falar torna•se forma de doação de pessoa a pessoa. Cada
rádio, da televisão, da vida cotidiana, familiar, técnica, ju- qual se abre ao outro, dando-lhe hospitalidade no que de
rídica, profissional. É a mesma linguagem que se amplia melhor tem em si mesmo. Cada qual dá e se dá numa
na linguagem científica dos físicos, químicos, matemáticos. comunhão de amor.
Esse aspecto utilitário é o grau ínfimo de intenção e de Às vezes, porém, a palavra articulada não pode ex-
expressão humanas. Nesse nível a palavra é impessoal. O primir tudo: é então que intervém o gesto para apoiar a
Eu permanece neutro, fora da comunicação 19 • palavra e torná-la mais profunda. Quando o dom da pessoa
Em o nível mais elevado, a palavra não é simples in- pela palavra já não basta para exprimir totalmente o ser
formação ou instrução: torna-se expressão (no sentido em em sua profundidade, a palavra se completa . no dom da
que dizemos que um ato nos exprime), revelação da pessoa, pessoa pelo comprometimento da vida: é o que se dá no amor
testemunho sobre si mesma. A palavra encontra a pleni- conjugal e no apostolado. Às vezes uma série de palavras
tude de seu sentido na medida em que nós nos exprimi- e de ações culmina num gesto que de certo modo sintetiza
mos em nossa palavra, na medida em que nela nos coloca- plasticamente a intenção fundamental da pessoa: por exem-
mos, na medida em que nos comunicamos verdadeiramente plo, no martírio, quando o sacrifício da vida vem selar a
com o outro, em que o visamos em si mesmo como pessoa. profissão da palavra.
A palavra autêntica é aquela em que a pessoa, como tal,
na sua singularidade, se exprime a uma outra pessoa, visada 2. Palavra divina
em si mesma como pessoa. Expressão do mistério pessoal,
dirige-se ao mistério pessoal do outro. A palavra tanto mais Na revelação é o próprio Deus que se dirige ao ho-
realiza sua missão quanto mais o homem, à imagem de Deus mem, não o Deus abstração filosófica, mas o Deus vivo,
que se diz em seu Verbo, se coloca nà palavra para entre- o Onipotente, o três vezes Santo. Vem ser para o homem
gar o sentido profundo de seu ser 20 • Para que a comuni- um Eu que se dirige a um Tu, numa relação interpessoal
cação e o diálogo se tornem assim confissão mútua, revela- e vital, num desígnio de comunicação, de diálogo, de par-
ção, é preciso que de parte a parte haja respeito pelo outro ticipação. Essa palavra, que vem do mundo transcendente
em seu mistério pessoal, disponibilidade total, confiança da vida divina, interpela o homem e convida-o à obediên-
mútua, amizade que existe ou pelo menos se inicia 21 • cia da fé, em vista de uma comunhão de vida. Está prenhe
A palavra, em sua essência mais alta, é pois o meio da novidade inaudita da salvação oferecida à humanidade:
pelo qual duas interioridades se revelam mutuamente em o homem está salvo, o Reino dos céus está entre nós, reali-
vista de uma reciprocidade. Quando a palavra atinge esse za-se o desígnio de amor mantido por Deus desde toda a
19 ]. DELANGLADE, "Essai sur la signification de la parole", Signe et
eternidade. Pois a palavra de Deus não apenas fala e informa:
Symbole (Neuchâtel, 1946), pp. 22-24; G. GusooRF, La parole (Paris, ela realiza o que significa, muda a situação da humanidade,
1956); R. MEHL, La rencontre d'autrui (Neuchâtel, 1955), pp. 21-23. dá a Vida. A palavra de Deus é uma palavra ativa, eficaz
20 G. GusDORF, La parole, p. 55; H. NoACK, Sprache und Offenba- criadora.
rung (Gütersloh, 1960); C. LE CHEVALIER, La confidence et la personne
( Paris, 1960), p. 66. Se pela palavra Deus entra em comércio interpessoal
21 R. MEHL, La rencontre d'autrui, pp. 13-17; A. BRUNNER, La com o homem, isso não acontece com uma intenção meramen-
personne incarnée (Paris, 1947), p. 266; C. LE CHEVALIER, La confidence te utilitária. A palavra de Deus é palavra de amizade e de
et la personne humaine, pp. 40, 85-88, 179; G. MARTELET, "L'Homme
comme parole et Dieu comme révélation", Cahiers d'études biologiques, amor. O Verbo de Deus é um Verbo de Amor. Essa mani-
n. 6-7:167-168; G. Auzou, La parole de Dieu (Paris, 1960), p. 415. festação de amor desabrocha de múltiplas formas.
r
424 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 425
Primeiramente transparece no próprio fato da palavra. gredo divino por excelência, o segredo da intimidade divi-
Pela revelação Deus, pessoa incriada, dirige-se ao homem, na, conhecido somente das Pessoas divinas, pois que somente
simples criatura. Vence de certa forma a distância infinita elas o constituem: "ninguém conhece o Filho senão o Pai,
que o separa do homem e coloca-se diante dele. O Altíssi- nem ninguém conhece o Pai senão o Filho" ( Mt 11,27;
mo, o Transcendente torna-se o Deus próximo, o Deus co- Jo 1,18 ) . "Ninguém conhece os segredos de Deus, senão
nosco, o Emanuel. Esse gesto, pelo qual Deus sai de seu o Espírito de Deus" ( lCor 2,11 ). Revelando esse segredo,
mistério, condescende e se torna presente ao homem, só Deus inicia o homem no que há de mais íntimo em si mes-
pode significar para o homem salvação e amizade. Da parte mo: o mistério de sua vida, o coração de sua subsistência
de Deus, radica-se essa palavra na sua vontade gratuita de pessoal. Deus não pode revelar assim o segredo de sua vida,
estabeJecer laços de amizade com o homem. Com efeito, a não ser a alguém que lhe esteja unido pela amizade, ou a
se Deus quer revelar-se, não o pode fazer senão para es- alguém a quem ele se queira unir pela amizade. Convidan-
tabelecer .com o homem laços de amizade e de amor e para do-nos à mais surpreendente amizade com Deus, a revela-
associa-lo à sua própria vida. Doutra parte, se Deus ·quer ção da Trindade se nos apresenta como um começo de par-
estabelecer um relacionamento de amizade com o homem e ticipação na vida divina e constitui uma doação de Deus ao
associá-lo à sua própria vida, é porque se quer revelar. Em homem. A revelação é uma autodoação 23 •
Deus, o fato da revelação e o fato de nossa vocação sobrena- Deus leva até o excesso do amor essa doação que de
tural coincidem 22 • si mesmo faz ao homem pela palavra. Tendo exercido sua
A intenção de amor da palavra divina torna-se mais missão profética, isto é, tendo dado a conhecer o Nome
patente pelo fato de a criatura qu,e ele assim interpela e do Pai (Jo 17 ,6.26), a doutrina do Pai (Jo 7,16; 12,50),
chama para, desde agora, estabelecer com ele relações de o Cristo consuma pelo sacrifício de sua vida o dom feito
amizade, ser uma criatura inimiga que dele se afastou. por sua palavra. Completa pela paixão a caridade que
Pela amizade e pelo amor Deus se aproxima de uma cria- viera significar: "sabendo Jesus que chegara a hora de
tura que se revoltara contra ele. Ainda mais: leva sua con- passar deste mundo para. o Pai, ele que amara os
descendência até ao ponto de assumir a própria condição seus que estavam no mundo, amou-os até ao último ·
dessa criatura. Faz-se Deus solidário com o homem a ponto sinal ( do amor) " J o 13, 1 ) . Temos aqui a perfeição
de se encarnar, para atingir o homem em seu próprio nível. do mistério da palavra que se doa. A palavra articulada
Para se exprimir e exprimir seu desígnio salvífico, Deus torna-se palavra imolada. O Cristo na cruz manifesta (Jo
utiliza todos os recursos da encarnação: a ação, o gesto, o 1,18) a caridade do Pai até àquele grito inarticulado no
comportamento e principalmente a palavra. Em palavras hu- qual tudo se diz e se atesta. A palavra de Deus se esgota
manas que o ouvido pode entender e a inteligência pode assi- até ao silêncio. "O tempo da morte e do silêncio torna-se
milar, Cristo manifesta o mistério de sua pessoa e sua missão. a suprema manifestação do amor oferecido à humanidade 24 ".
A intenção de amor da palavra divina manifesta-se não Tudo quanto na manifestação divina era incomunicável, ex-
só no fato e na economia da revelação, mas também no prime-se nos braços estendidos e no corpo exangue, no co-
ração transpassado pela lança do centurião ( Jo 19 ,34). A
seu próprio objeto. Com efeito, o objeto da comunicação
divina não são apenas verdades religiosas de ordem natural, Palavra de amor entregou-se inteiramente aos homens. A
· revelação pela palavra consumou-se e foi selada pela reve-
mas também e principalmente os segredos da própria vida
lação-ação.
divina. Principalmente o mistério da Trindade: é o se-
23 J.
ALFARO, "Persona y gracia", Gregorianum, 41 (1960): 11.
22 J. Adnotationes in tractatum de virtutibus ( ad usum
ALFARO, 24 H. URS VON BALTHASAR, "Dieu a parlé un langage d'homme",
auditorum, Romae, PUG, 1959), pp. 99-100. Parole de Dieu et Liturgie (Paris, 1958), p. 90.
426 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 427

que é o testemunho decisivo do Pai em favor do Filho. O Fi-


II. A REVELAÇÃO COMO TESTEMUNHO lho dá testemunho em favor do Espírito, já que promete en-
viá-lo como educador, consolador, santificador. E o Espírito
A revelação é uma palavra específica: é um testemunho. vem, e testemunha em favor do Filho, pois o relembra, o faz
Convida a uma reação específica: a fé. Em sua forma ativa conhecido, manifesta a plenitude de suas palavras, insinua-o
ou atuada é testemunho: ação ou depoimento de teste- nas almas. Assim pois, no comércio das três Pessoas di-
munhas. vinas com os homens vemos um intercâmbio de testemu-
A Escritura descreve a revelação com uma economia nhos que tem por finalidade propor a revelação e alimentar
de testemunhos. No Antigo Testamento, Deus escolheu a fé. São três que revelam ou testemunham, e os três
seres privilegiados que não são nem a verdade nem a luz, são um apenas. O testemunho é o elo secreto entre a eterni-
mas que testemunham a verdade. Esses homens falam em dade e o tempo, entre o céu e a terra. Do mesmo modo
nome de Deus dizendo: "Eis o que Deus me mandou di- que o Verbo repousa no seio do Pai, assim o apóstolo João
zer-vos. Sois convidados a aceitar minha palavra pela fé, reclinou-se sobre o peito do Cristo 25 •
pois minha palavra é sua palavra". Esses homens impõem- Os documentos do Magistério também descrevem a
-se pelo tom autoritário de sua palavra, por seu exemplo, revelação em termos de testemunho, quase sempre implicita-
por suas obras de poder e de misericórdia, por sua paciên- mente, apresentando a revelação como uma palavra autoriza-
cia na· perseguição e mesmo pelo martírio que é o supremo da: a palavra da Verdade incriada, infalível e veracíssima à
testemunho. Em o Novo Testamento apresenta-se o Cristo qual corresponde, não a adesão da ciência, mas a homena-
como a Testemunha por excelência. Narra o que viu e gem da fé (D. 1637, 1639, 1789). Apenas o juramento
ouviu junto ao Pai, e convida-nos à obediência da fé. Ele antimodernista diz que a revelação é uma palavra de teste-
mesmo forma um grupo de testemunhas, os apóstolos. Eles munho (D. 214 5 ) . Deus que revela é Deus que fala com
testemunham sobre a vida e o ensinamento de Cristo. Con- a autoridade da Testemunha cuja infabilidade e veracidade
vidam todos os homens para que acreditem no que eles vi- são absolutas.
ram, ouviram e experimentaram do Verbo de vida. Quem crê
Por seu lado, os teólogos definem igualmente a reve-
é introduzido, pelo batismo, em uma nova sociedade - lação: locutio Dei attestans. Para esclarecer a noção de tes-
a Igreja; participam do corpo e do sangue do Cristo, vivem temunho eles estabelecem uma oposição entre ensinamento
de sua vida. O que os apóstolos transmitem à Igreja é um e atestação. No ensino, o ouvinte aceita a exposição do
testemunho, um depoimento de testemunhas. Testemunho mestre pelos argumentos cujo valor intrínseco ele pode per-
que a Igreja acolhe, conserva e protege, mas que também ceber. No testemunho, pelo contrário, o ouvinte assente
propõe, explica, interpreta, assimila e entende sempre mais. devido à autoridade de quem fala; ele confia na palavra de
Assim como, através da história, o testemunho liga as quem fala, devido a sua ciência e veracidade. Em ambos
almas entre si, assim também liga o tempo à eternidade. A
os casos o espírito humano se enriquece com novas verda-
idéia de testemunho projeta sua luz sobre a encarnação e
des. A diferença essencial está no motivo que inspira o
sobre a própria Trindade. De fato, a Escritura descreve a assentimento: num caso é a evidência da demonstração; no
atividade reveladora da Trindade sob a forma de mútuos outro, a simples autoridade de quem fala. São exatos esses
testemunhos. O Filho mostra-se-nos como a Testemunha dados; poderiam, porém, ser mais elaborados.
do Pai, e como tal se dá a conhecer aos apóstolos. Mas,
também o Pai testemunha que o Cristo é o Filho, pela
atração que exerce sobre as almas, pelas obras que ele dá 25 J. GUITTON, Le probleme de ]ésus et les fondements du témoignage
ao Filho realizar, mas principalmente pela ressurreição chrétien (Paris, 1950), pp. 239-243.
428 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 429
1. Testemunho humano e a fidelidade humanas são sempre precárias. O homem é
uma identidade que sempre se deve reconquistar.
Essencialmente o testemunho é uma palavra pela qual Somente Deus pode dar à sua palavra uma garantia abso-
alguém convida outro a aceitar algo como verdadeiro con- luta, por sua identidade eterna e absoluta consigo ~esmo ..
fiando em seu convite como garantia próxima de verdade A fé humana jamais pode ser uma fé de pura e sunples
e em sua autoridade. como garantia remota. Esse convite autoridade 28 •
a crer, enquanto garantia de verdade, é o elemento especí- Sob esse aspecto o cohhecimento mediante o .teste-
fico do testemunho. Muitas vezes está explícito na própria munho é inferior ao conhecimento mediante a evidência; é,
maneira de falar: "Eu vos digo ... Creiam-me ... Eu vi porém, superior em vista dos valores que põe em jogo. A
com meus próprios olhos" 26 • O que se pede ser acreditada é demonstração apela para a inteligência. O testemunho, re-
a própria coisa atestada, o objeto do testemunho. A fé, res- clamando uma intensidade de confiança que se mede pelos va-
posta solicitada pelo testemunho, é "um julgamento que lores que se arriscam confiando nele, põe em jogo não apenas
aceita como verdadeiro o · que vem atestado, apoiando-se a inteligência, mas também, em graus diversos, a vontade
sobre ·o testemunho como garantia próxima da verdade" n. e o amor. A possibilidade de ·um relacionamento entre os
O testemunho é garantia próxima de verdade porque homens repousa, em última análise, nessa confiança recla-
a testemunha, pelo simples fato de convidar a crer, apela mada pela testemunha e na promessa tácita de não trair.
para a confiança e compromete-se a dizer a verdade; com- Temos, pois, dum lado o compromisso moral da testemunha;
promete-se a não trair. essa confiança e promete ser sincera doutro, a confiança que já é um início de amor, por parte
e veraz. O testemunho, pois, é mais uma realidade de or- de quem aceita o testemunho. . .
dem moral que de ordem intelectual. Atestar não é sim- Ainda mais, desde que abandonamos o universo das coi-
plesmente narrar: o testemunho compromete a testemunha. sas materi!l,is para atingir o das pessoas, abandonamos o pla-
Para quem não viu, sua palavra deve substituir a própria ex- no da evidência para entrar no do testemunho. Ao hÍvel da
periência. A fé no testemunho supõe assim certa demissão inter-subjetividade, que é o das pessoas, damos de encontro
da razão. Demissão legítima, porém, pois tem como motivo com o mistério. Ora, as pessoas não são problemas que
a sanidade mental ( ciência, perspicácia, espírito crítico) e, se deixem conter em fórmulas ou resolver epi equações.
principalmente, moral da testemunha. As pessoas, somente podem ser conhecidas por revela~ão.
Devemos notar que, se a fé humana se apóia na ates- Não temos acesso à intimidade pessoal a não ser pelo livre
tação atual da testemunha e na sua autoridade, essa auto- testemunho das pessoas. Elas não testemunham sobre si
ridade, contudo, não é de per si garantia última de verdade. mesmas senão levadas pelo amor. O conhecimento por
Falível por natureza, precisa sempre ser acompanhada de testemunho é pois um conhecimento de ordem inferior
indícios e de sinais objetivos que lhe indiquem o valor. quando, pela natureza do objeto, podemos conseguir uma
Essa apreciação da testemunha e de sua autoridade é uma ope- evidência direta e imediata do real. Mas não é inferior
ração complexa, como qualquer conhecimento de p~ssoas e, quando se trata do conhecimento de realidades que são
portanto, passível de erros e decepções. Mesmo quando o pessoas, quando o testemunho é a única maneira de entrar
Espírito, por um exame atento dos títulos da testemunha, em união com a pessoa e participar de seu mistério 29 •
conseguiu todas as garantias possíveis, jamais pode confiar de
modo absoluto no testemunho humano, .pois que a ciência .za J. ALFARO, Adnotationes in tractatum de virtutibus, pp. 310-314;
A. BRUNNER, La personne incarnée, pp. 257, 271, 279-281; R. LUQUET,
26 E. DHANIS, "Révélation explicite, et implicite" Gregorianum, 34 "L'acte de foi", Lumiere et vie, set. 1955, pp. 25-31.
( 1953): 210-211. 29 A. BRUNNER, La personne incarnée, pp. 255, 256, 268; J. DANIÉLOU,
27 Ibid., 211. Scandaleuse vérité (Paris; 1961), pp. 11-12, 97-99.
r
430 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALÀVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 431
2. Testemunho divino munho do Deus vivo; no depoimento dos apóstolos, a autên-
tica mensagem de Deus. A própria fé, porém, apóia-se
A revelação é justamente a revelação do mistério pes- no Testemunho divino incriado, fundamento último de ver-
soal de Deus. Deus que é interioridade por excelência, dade. Apóia-se o homem inteiramente numa Palavra que
Ser pessoal e soberano, cujo mistério só podemos conhec:er traz em si mesma sua garantia 31 •
por testemunho, isto é, por uma confidência espontânea O testemunho divino distingue-se ainda porque, da
que pede a nossa aceitação pela fé. O cristianismo é a reli- parte de Deus, o convite para crer se apresenta interna e
gião do testemunho, pois que é manifestação de pessoas, tes- externamente. Mediante os profetas, o Cristo e os apósto-
temunho que possibilita a comunicação interpessoal. O los, Deus notifica claramente aos homens seu desígnio de
Cristo fala, ensina, dá leis, como os outros fundadores de salvação e convida-os à fé: "Arrependei-vos e crede na
religião. Mas o que ele afinal ensina e comunica é o mis- Boa-nova" (Me 1,15; 16,15). O testemunho divino, po-
tério de sua pessoa. Funda uma religião que é iniciação ao rém, não se limita a essa manifestação extrerior que age
seu mistério pessoal. Os apóstolos testemunham sua inti- mediante a linguagem e os sinais de poder. Sua dimensão
midade com o Cristo, o Verbo de vida, o Filho que também mais profunda é uma ação totalmente interior. Diversaº
está em relação com o Pai e o Espírito, numa comunicação, mente do homem, que só dispõe da eficácia significativa e
porém, de tal modo particular que não permite partilha. psicológica da palavra, Deus pode agir diretamente sobre
Em seu conjunto o Evangelho se nos apresenta como uma a alma. Querendo descrever essa açãó, a Escritura fala em
confidência de amor, na qual o Cristo, progressivamente, revelação (Mt 11,25;16,17), em iluminação (2Cor 4,4-6;
revela o mistério de sua pessoa, o mistério da vida das Pes- At 16,14), em unção (2 Cor 1,21-22), em atração (Jo
soas divinas e o mistério de nossa condição de filhos. Os 6,44), em testemunho interior (Jo 15,37; lJo 5,6). Como
apóstolos são testemunhas do que o Cristo disse e fez, mas testemunha divina, Deus pode infundir no espírito humano
principalmente dão testemunho de sua Pessoa: sobre ela recai uma luz pela qual o atrai para que conforme seu conheci-
todo o peso de seu testemunho 30 • mento ao conhecimento divino, submetendo-se à Verdade
O testemunho divino é de uma espécie única, que o dis- primeira por uma homenagem à sua autoridade infinita,
tingue do testemunho humano, tanto no plano objetivo para que admita o Testemunho divino por causa dessa ex-
como no subjetivo. celência sem par que faz de Deus a garantia última e abso-
Inicialmente, tem isto de particular.que não só afirma a luta de sua verdade. Iluminado e movido pela luz divina
verdade do que propõe à fé, mas ao mesmo tempo afirma que invade seu espírito e se torna sua própria luz, o crente
a infalibilidade absoluta de seu testemunho. Quando Deus pode aderir pura e totalmente ao Testemunho divino em
afirma algo, afirma ao mesmo tempo sua própria infalibili- si mesmo e por si mesmo. A fé sobrenatural é a única fé
dade, pois que ele é o Testemunho subsistente, ô puro Teste- pura, totalmente baseada na autoridade.
munho, cuja atestação se identifica com o puro Ser. Deus
que atesta é por si mesmo o fundamento absoluto e último
III. A REVELAÇÃO COMO ENCONTRO
da verdade infalível de seu testemunho. É sua própria ga-
rantia. Na revelação cristã os sinais têm por finalidade
garantir a identificação da Testemunha, devem fazer re- Qualquer palavra supõe um Eu e um Tu. Implica tam-
conhecer na voz e na palavra humana do Cristo o teste- bém a intenção de ser captada por um tu. A palavra é uma
delegação existencial: um eu, carregado com a existência
. 30 J. Gu1TTON, Le probleme de Jésus et les fondements du temoignage
chrétien, pp. 153-164. 31 J. ALFARO, Adnotationes in t1·actatum de virtutibus, pp. 315-319
432 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 433
de quem o profere, parte à procura de um tu. A palavra não mina no encontro que culminará na visão. Já é, porém,
se torna realidade senão no encontro com esse tu. Encontro presença misteriosa de Deus, relacionamento vital do ho-
que pode atingir diversos graus de profundidade. Inicial- mem para com Deus, de pessoa a pessoa 34 • É assim que
mente tende a estabelecer o contato. Mas seu desígnio ex- a fé muitas vezes é descrita por são Paulo e por são João:
pontâneo é que a palavra e a resposta cheguem a ser um como uma atitude global de todo o homem que responde às
diálogo autêntico, reciprocidade, comunhão, comprometimen- propostas de Deus, como um todo indivisível, em que conhe-
to mútuo. A reciprocidade é condição para encontro efetivo. cimento e amor formam um só impulso espiritual da
Há encontros em que a reciprocidade é compreendida como pessoa. A fé que age pela caridade ( Gál 5 ,6) é conheci-
intercâmbio na igualdade; é porém no encontro de amor que mento e comprometimento de toda a pessoa: aceita toda
a reciprocidade pode ser completa. Reciprocidade que nas- a verdade de Deus e dá a Deus todo o coração do homem.
ce de uma revelação e de uma doação 32 • Devem-se notar as particularidades do encontro realiza-
Esse encontro que tende a ser um diálogo no amor, do pela fé. Primeiramente, é sempre Deus que tem a ini-
encontramo-lo no plano infinitamente mais elevado da re- ciativa. Sua infinita transcendência é também infinita con-
velação e da fé.
descendência. Todo encontro salutar é por ele antecipado:
Na revelação, dirige-se Deus ao homem, interpela-o e "não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos
comunica-lhe a Boa-nova da salvação. Porém, é somente amou" (1 J o 4, 1O) . Na revelação e na graça tudo é inicia-
na fé que existe verdadeiro e pleno encontro entre Deus tiva gratuita: a ação de Deus que sai de seu mistério, a
e o homem. Só assim a palavra do Deus vivo encontra economia da palavra, a mensagem da salvação, a capacidade
no homem acolhida e reconhecimento. A fé é o pri- de lhe dar uma resposta e de encontrar a Deus pela fé. É
tneiro e livre passo do homem em direção a Deus. Pela Deus, com efeito, que inicia em nós o movimento de re-
sua palavra Deus convida o homem a um relacionamento torno em sua direção; é Deus que imprime na inteligência
de amizade; pela fé o homem responde ao apelo de Deus. uma tendência, um impulso sobrenatural que a inclina para
Como primeiro encontro entre Deus e o homem, a fé equi- ele, Verdade primeira, como para seu bem supremo; é Deus
vale ao sorriso de amizade no diálogo humano. Quando o quem criou o fundamento ontológico a partir do qual, mes-
homem se abre a Deus que fala, comunga com seu pensa- mo permanecendo homens podemos fazer o ato teologal
mento, deixa-se conquistar e dirigir por ele, .Deus e o da fé. Portanto, essa ação divina não violenta a liberdade
homem se encontram e esse encontro se torna comunhão do homem. Permanecemos livres para aceitar ou não essa
de vida.
outra liberdade que se abre para nós. Somos, porém, con-
Revelação e fé são, pois, essencialmente interpessoais. vidados a criar em nós a disponibilidade para com a
Observa santo Tomás: "O que aparece como principal e palavra, convidados a assimilá-la para dela vivermos ( Mt
como tendo valor de fim em todo ato de fé, é a pessoa 13,23 ).
a cuja palavra se dá a adesão" 33 • .É a fé o encontro com
o Deus pessoal em sua palavra. Evidente que ela supõe a Segunda característica do encontro com a Palavra · é
adesão do espírito à mensagem de Deus. Pois, se Deus a gravidade da opção que ela solicita. Pois a palavra de
se manifesta como um Deus que fala, a fé deve ser assen- Deus questiona o sentido de nossa existência pessoal e o
timento ao que ele diz. Essa adesão mesma, porém, ter- 34 J. ALFARO, "Persona y grada", Gregorianum, 41 (1960): ll-12; J.
MouRoux, Je crois en toi (Paris, 1949), pp. 15-21; R. AuBERT, Le pro-
32 M. NÉDONCELLE, La réciprocité des consciences (Paris, 1942), pp. bleme de l'acte de foi, (Louvain, 1958, 3~), pp. 696-703; R. GuARDINI,
16-17; F. J. J. BuYTENDIJK, Phénoménologie de la recontre (Paris, 1953), Vom Leben des Glaubens (Mainz, 1935); C. CIRNE-LIMA, Der personale
p. 42; T. SornoN, La condition du théologien (Paris, 1953), pp. 82-87. Glaube (Innsbruck, 1959); W. BuLsT, Offenbarung (Düsseldorf, 1960),
33 S. Th., 2a 2ae, q. 11, a. 1, e.
p. 125.
434 REFLEXÃO TEOLÓGICA A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 435
sentido de toda a existência humana. Não se trata de mo- homem: "dei-lhes a conhecer o teu nome. . . para que o
dificar apenas pormenores em nosso sistema de valores: amor com que me amaste esteja neles e eu esteja neles"
trata-se de orientar diversamente todo o nosso ser. Se o (Jo 17 ,26). O Cristo que disse: "O Pai e eu somos um"
Cristo é Deus, a Verdade em pessoa, sua palavra se torna (Jo 10,30), diz também: "Que todos sejam um só, assim
o ponto de apoio, a norma, o critério de tudo. Pensamento como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, também eles
e comportamento do homem estão submetidos ao julgamen- sejam um em nós. . . para que sejam um como nós somos
to dessa palavra. É preciso optar por Deus ou pelo mun- um: eu neles e tu em mim, para chegarem à perfeita uni-
do, pela palavra de Deus ou pela palavra do homem. É dade" (Jo 17 ,21-23 ) . Devido à sua união com o Cristo e
preciso jogar tudo por tudo, inclusive a vida e a morte, à união do Filho com o Pai, os crentes estão unidos entre
o martírio violento ou o martírio humilde e paciente de si e unidos com o Pai, como o Pai está unido com o Filho.
toda uma vida. No sentido estrito, trata-se de ser ou de O Espírito de amor, que une o Pai e o Filho, faz que eles
não ser. vivam da própria vida das pessoas divinas. Por isso pode
É pois a fé uma decisão por Deus, e toda a vida deverá a primeira carta de são João repetir que nós estamos "em
girar em torno dessa decisão dramática que compromete comunhão com Deus" ( lJo 1,3.6), que estamos "em Deus"
o homem até o mais íntimo de seus desejos. Um tal compro- (lJo 2,5;5,20 ), que "permanecemos em Deus" ( lJo 2,6.
metimento é um desarraigar-se do eu humano e um arraigar-se 24;3,24;4,13.15.16). Nenhum encontro humano, por mais
no Cristo ( Ef 3, 17 ) . Essa morte a si mesmo, não se pode perfeito que seja, poderia atingir esse grau de intimidade,
obter pela simples contemplação intelectual da mensagem de comunhão, iniciado pelo encontro da fé que age pela
revelada: é preciso uma sedução que venha do amor. Assim caridade. ·
a palavra de Deus no Cristo tem um rosto e um coração de Assim pois, quer a encaremos como palavra, como
homem para seduzir o coração do homem. O que Deus nos testemunho ou como encontro, a · revelação faz ressoar
disse, foi seu Amor ( lJo 4,8.16). Mas, se essa palavra de sempre a mesma nota fundamental: Deus é amor ( lJo 4,
Deus consegue obter o consentimento do homem, é por ser 8-10) e sua palavra é palavra de amor. Não é pois a fé
uma palavra de amor revelado e manifestado até o supremo submissão ao arbítrio de um Deus que se compraz re-
sacrifício. A revelação como encontro não chega a ser acolhi- clamando a homenagem do espírito humano. É antes, da parte
da, diálogo e reciprocidade a não ser por essa sedução do homem, o reconhecimento do plano de amor de Deus e
de amor que se manifesta no Cristo e se completa pelo a livre inserção nesse plano; é abertura à amizade divina que
Espírito, que transforma o indócil coração do homem fa- nos convida a partilharmos de sua própria vida. Revela-
zendo-o coração de filho. ção e fé são obras de amor.
última característica desse encontro é a profundidade
da comunhão que ela estabelece entre Deus e o homem.
Quem recebe a palavra do Cristo e nela permanece, passa
da condição de servo à de filho e de amigo ( Gál 4,4-6; Rom
8,15; Jo 15.,15); entra em comunhão de amor com o Pai,
o Filho e o Espírito. Pela fé no Cristo, o homem é inicia-
do nos segredos do Pai, conhecidos apenas pelo Filho, que
está no seio do Pai (Jo 1,18; Mt 11,25-27), e pelo Es-
pírito que perscruta as profundezas do Pai ( lCor 1,10).
O próprio amor com que o Pai ama o Filho e com o qual o
Filho ama o Pai, está de agora em diante no coração do
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 437
2.
em sua ·história. A partir do Deus da história é que Israel
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO chegou ao Deus da criação, do Deus salvador ao Deus
criador 1• Com efeito, Javé não se revelou primeiramente
como Deus criador do céu e da terra, mas como o Deus sal-
vador que liberta seu povo da escravidão para com ele es-
tabelecer uma aliança. A fé do povo de Israel nasceu com
a experiência fundamental do :Êxodo e da Aliança, que
revelou um Deus de salvação, presente a seu povo, com
Revelação e criaçao, duas realidades freqüentemente todo seu poder. Também a idéia de criação estará sempre
postas em relação na Escritura, nos santos Padres, nos do- associada a esta idéia de salvação e de poder. A criação
cumentos do Magistério. A criação é apresentada como um mostra-se como a projeção para o passado do poder de
tipo de manifestação divina e até mesmo como uma palavra Deus manifestado na história e como o primeiro ato da
história da salvação.
d~ ~eus. Em que, pois, essa manifestação e essa palavra se
distinguem da revelação propriamente dita ou sobrenatural? Após o :Êxodo e a Aliança, Israel sabe que está na
Parece-nos que três questões devem ser consideradas no D?-ão poderosa de Javé. Pouco a pouco, através da histó-
estudo das relações entre criação e revelação. Primeira, ria de suas relações com Deus, descobre as dimensões desse
como o povo hebreu chegou a conhecer o Deus criador: poder; da experiência desse poder chega à consciência de
pelas obras da criação ou pelos acontecimentos da história? que é absoluto. A libertação do Egito e o estabelecimento
Segunda, como as obras da criação são uma manifestação em Canaã supõem que Deus seja o senhor da natureza e
de ?eus e qual a natureza dessa manifestação? Terceira, dos povos da terra; os prodígios do :Êxodo supõem que
quais os pontos de contato e quais os de divergência entre Deus,_. a seu critério, mobiliza a natureza para realizar a sal-
revelação natural e revelação sobrenatural? v~ção d~ seu_ povo. O poder cósmico de Javé, contudo,
ai1;1da nao e~ige necessariamente a afirmação de seu poder
criador. Foi num segundo passo que a reflexão inspirada
1. DO DEUS DA HISTóRIA AO DEUS DA CRIAÇAO compreendeu que, se Deus é o senhor de tudo e de tudo
pode dispor, é justamente porque tudo suscitou do nada.
Em teodicéia, a reflexão, a partir do mundo eleva-se A criação do mundo constitui a base de sua soberania sobre
até ao princípio último de explicação do univers;. Desco- as forças da natureza e sobre as nações.
bre que esse princípio é um espírito que transcende o mun- Lá pelo fim do exílio, a onipotência criadora de Javé se
do, que ele é pessoal. Continuando, a reflexão pode per- torna um tema central da mensagem profética. No Dêutero-
gut~.ta~-se s7 esse Deus pessoal, princípio do mundo, não -Isaías, a criação é invocada como garantia para as grandes
teria mtervmdo de uma maneira toda especial, isto é, não promessas de salvação. O novo :Êxodo, de Babilônia para
apenas pelo gesto silencioso da criação, mas também inter- Jerusalém, será um triunfo, pois que o mesmo poder de Javé
pelando e falando. que lançou os alicerces da terra e dos céus, vai manifestar-
No Antigo Testamento, o conhecimento de Deus se-
guiu um caminho inverso, como já o vimos. Cronologica- . 1 J. ,Mot;Roux, Le Mystere du temps (Paris, 1962); K. RA.HNER,
Écrzts theologiques (Bruges, 1959), 1: 34-35; A. FEUILLET, "La connaissance
mente, o Deus da Aliança foi conhecido antes do Deus da naturelle de Dieu par les hommes d'apres Rom. 1,-18-23", Lumiere et Vie,
criação. Israel não descobriu Deus por um processo de mars. 1954, p. 69; E. BEAUCAMP, La Bible et le sens religieux de l'univers
reflexão metafísica, mas através das intervenções de Deus (Paris, 1959), pp. 53-54; P. VAN IMSCHOOT, Théologie de l'Ancien
Testament, 1: 142.

438 R)i,:FLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 439
-se para salvar seu povo (Is 41,4;45,11-12;48,14-15;50,2). por meio de Israel 3• Estendendo assim até as origens do
Esse poder vai realizar uma nova criação histórica: "essa liber- mundo a teologia da Aliança, o Antigo Testamento univer-
tação que eu, Javé, vou criar" (Is 45,8). Porque Jave é salizou a Aliança; não apenas Israel, mas o mundo todo
criador de tudo, por isso age continuamente em natureza e é campo de ação de Javé. Essa teologia da criação desen-
dirige a história de Israel. volveu-se durante o exílio, justamente naqueles ambientes
A perspectiva histórica é . pois fundamental. A pers- em que Israel tomava claramente consciência de sua voca-
pectiva cósmica é invocada apenas para garantir a eficácia ção universal. Se Javé é o Javé das nações, é porque desde
da manifestação histórica. A oração dos salmos, a oração da o começo ele é o senhor absoluto das nações ( Is 45,
mãe dos Macabeus, correspondem a essa tomada de consciên- 18-24;51,5) 4.
cia do Dêutero-Isaías: Aquele que fez o céu e a terra e que Portanto, a criação é para Israel o primeiro capítulo
salvou Israel de seus inimigos, fá-lo-á ainda e sempre ( SI da história da salvàção. No começo, antes de Moisés, Abraão
18;104;102;136; · 2Mac 7,22-29) 2 • e Noé, Deus criou, e pela criação iniciou a obra da salva-
A criação, porque foi compreendida a partir da história ção. A criação é o primeiro dos grandes feitos de Deus.
da salvação, continuará sempre associada a essa história e ex- Os salmos que evocam as mirabilia Dei, relembram em pri-
plicada à sua luz, principalmente à luz do :Êxodo e da meiro lugar a criação ( SI 136,5-15). No Dêutero-Isaías, a
Aliança. criação aparece verdadeiramente como o initium salutis, in-
Assim como a salvação futura é anunciada e descrita trodução à obra da salvação. Pelo mesmo motivo o Gê-
como um novo :Êxodo, também a origem do mundo é con- nesis, cujo relato supõe longa meditação sobre dados mais
cebida com() uma espécie de êxodo pré-histórico, como uma antigos, abre-se com a visão da obra criadora. Finalmente,
primeira manifestação do poder de Deus e um penhor de para toda a tradição cristã há uma continuidade perfeita
'º suas futuras vitórias. Criação, :Êxodo, salvação escatológica, entre a palavra criadora e a palavra do Verbo encarnado.
constituem. três momentos de um mesmó triunfo de Javé, Criação, eleição, lei, profetas, encarnação, constituem as
três momentos que mutuamente se iluminam ( Is 44 ,24-28; etapas da salvação. A história da salvação não começa com
42,5-9;45,6-8). a eleição de Abraão, mas com o fiat criador 5 •
Compreende-se assim que Israel, contemplando a cria-
O :Êxodo, visto no contexto da criação, ganha um alcan-
ção através de sua fé no Deus vivo e salvador, descubra
ce universal; e, inversamente, a criação já aparece como uma
em toda a criação sua presença e ação. As criaturas nar-
intervenção do Deus salvador ( Is 51,9-10; SI 77,17-20;
ram o mistério de Deus, de sua sabedoria, de seu poder, de
Hab 3,8-13). O Deus criador aparece sob a mesma luz
seu amor, do mesmo modo que a voz do Sinai e dos profe-
que o Deus do :Êxodo: os prodígios da criação, como os
tas ( SI 19 ,2 ) . O exército dos céus evoca o poder de Javé
do :Êxodo, revelam Javé em seu poder e em seu amor.
que venceu o Egito e os monstros do mar. Todas as coisas
Assim como a Aliança é inseparável do :Êxodo, tam-
bém Aliança e criação articulam-se estreitamente. A cria- 3 E. JACOB, Théologie de l'Ancien Testament, pp. 110-112; G. VON
ção é o quadro, o Tempo da Aliança, o encaminhamen- RAo, "Das theologische Problem des Schõpfungsglauben", Beihefte zur
to para a Aliança, assim como o :Êxodo é finalizado A. T. Wissenschaft, 66 (1936): 138-147; testo reapresentado em Gesammel-
te Studien zum A. T. (1958); pp. 136-147. .
à Aliança. Ao criar o mundo, Deus já pensava na Aliança, 4 L. LEGRAND, "La création, triomphe cosmique de Yahvé", Nouvelle

isto é, no seu plano de amor e de salvação da humanidade Revue Théologique 83 (1961): 460-467.
5 Essa é a visão principalmente de santo Agostinho e de santo Irineu.
Cfr. J. DANIÉLOU, Essai sur le mystere de l'histoire (Paris, 1953 ), pp.
2 P. BIARD, La puissance de Dieu (Paris, 1960), pp. 63-.69);. G.
34-35; (Trad. portuguesa: Sobre o mistério da hist6ria [S. Paulo, 1964],
LAMBERT, "La créatidn dans la Bible", Nouvelle Revue Théologique, 75 pp. 30-31); E. EscouLA, "Le Verbe sauveur et illuminateur chez S. Irénée",
(1953): 274-277 Nouvelle Revue Theologique, 66 (1939): 551-556.
r
440 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 441
do mesmo modo que o povo eleito, devem su3: existência ao gênero humano também por um outro caminho, sobre-
à iniciativa de Javé que tudo suscitou do nada. Israel olha natural, a si mesmo e os desígnios eternos de sua vontade" 7 •
para o mundo como um crente que lê e interpreta o uni- Podemos concluir que o conhecimento de Deus mediante as
verso a partir de sua fé. É o Deus da história que ele con- criaturas e a razão é uma certa revelação ou manifestação
templa no Deus da criação. O mesmo se dá com o cristão, natural de Deus.
que contempla no universo a obra do Cristo, Verbo encar- O texto conciliar opõe-se a dois erros: o tradicionalis-
nado, em quem todas as coisas têm seu ser e consistência mo, que não admite outro meio de chegarmos ao conheci-
(Jo 1, 13; Col 1, 16 ) . Nossa fé na criação se insere em mento de Deus a não ser o ensinamento positivo recebido
nossa fé no Deus uno e trino. por revelação e transmitido por tradição, e o agnosticismo
que, sob a forma do criticismo kantiano ou sob a forma
II. A CRIAÇÃO COMO MANIFESTAÇÃO DE DEUS positivista, julga que a razão humana é incapaz de chegar
ao conhecimento certo de Deus 8 •
Não deixa. de ser verdade que, paralelamente a este Devemos precisar o alcance do texto conciliar: a) O
conheciment~ do Deus criador a partir do Deus da história concílio afirma a possibilid,ade, não o fato do conhecimento
e da fé, o magistério da Igreja, apoiado também na Escri- de Deus mediante as luzes da razão. b) A possibilidade
tura, fala de uma manifestação de Deus e de um autêntico desse conhecimento fundamenta-se na própria natureza hu-
conhecimento de Deus independentemente de qualquer re- mana. Compete ao homem independentemente da revela-
velação positiva. Antes, pois, de comparar essa manifesta- ção e da vocação à vida sobrenatural. Possibilidade que
ção com a revelação positiva, será conveniente examinarmos nunca cessa, mesmo com o pecado. c) É ·um conhecimento
sua natureza. Vejamos primeiro o ensinamento da Igreja. independente de qualquer forma de revelação pessoal de
O primeiro concílio do Vaticano distingue dois tipos Deus ao homem, seja por iluminação interior, seja por re-
de manifestação divina e, conseqüentemente, duas vias de velação histórica exterior. d) Não é uma experiência pura-
acesso ao conhecimento de Deus. O esquema prévio, redi-
mente irracional, da ordem dos sentimentos, que não se
gido por Franzelin e entregue aos padres conciliares, fala
possa exprimir conceptual e verbalmente. E um processo
da "manifestação natural" de Deus "pelas criaturas" ( T.
de ordem racional, mediante a causalidade, como vem pre-
416, n. 1) e de Deus "que se manifesta pela luz da razão
cisado no juramento antimodernista (D. 214 5 ) . e) Não pre-
humana" (T. 416, n. 1 ). Uma nota acrescentada ao esque-
ma opõe essa "manifestação objetiva de Deus, por meio tende o concílio que o conhecimento natural de Deus deva
das criaturas", à "revelação" 6 • Enquanto o projeto da cons- preceder o conhecimento pela fé, numa anterioridade de ori-
tituição fazia assim uma oposição entre manifestação natu- gem ou de tempo, mas que nele está ao menos logicamente
ral e revelação, o texto definitivo distingue entre conheci- implícito. f) O meio que permite à razão conhecer com certe-
mento natural de Deus e revelação sobrenatural de Deus: za a Deus, são as criaturas; não apenas as materiais e visíveis,
"Nossa Mãe e Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio mas todo ser contingente que nos levá a Deus .. g) Falan-
e fim de tudo, pode ser conhecido com certeza com a luz do de Deus princípio e firn de tudo, o concílio não_ pr~iende
natural da razão humana, mediante as criaturas. Com efeito,
7 "Eadem sancta mater Eccle~ia tenet et docet, Deü:m, ~erum omnium
desde a criação do mundo, graças às suas obras ( Rom 1,20), principium et finem, naturali humanae. rationis lumine· e rebus creatis
podemos contemplar pela inteligência o que nele é invisí- certo cognosci posse;• invisibilia el).im ipsius, !)·• creatura mtindi, per ea
vel. Aprouve contudo à sua sabedoria e bondade revelar quae facta sunt, intellecta, conspiçiuntur:- (Rom 1,20); attamen placuisse
ejus sapientiae et bonitati, alia eaque sup'ernaturali via seipsufu ac ae,terna
voluntatis suae decreta humano generi revelare" (D.• 1785). ·
6 MANSI, 50:76-77. 8 R. AUBERT, "Le concile du Vatican et la connaissance naturelle de
Dieu", Lumiere et Vie, mars 1954, pf 21,41. · ··· ··
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442 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 443
definir que a criação, no sentido estrito, possa ser demons- Assim, pois, a distinção que o Magistério faz entre a
trada pela razão. h) O concílio não diz se de fato esse co- revelação histórica de Deus e sua manifestação cósmica, in-
nhecimento é conseguido em virtude apenas da natureza hu- dependente de qualquer revelação positiva, é apoiada pela
mana. Não diz se de fato outras causas, como a graça so- própria Escritura que também distingue entre essas duas
brenatural, não agem também. Não diz qual é nesse pro- formas de manifestação divina. Ainda que habitualmente
cesso a parte do discurso racional e qual a parte da deci- a Escritura chegue ao Deus criador a partir da fé no Deus
são moral. i) O concílio fala, em seguiria, da revelação vivo, alguns textos contudo esboçam um processo racio-
sobrenatural como intervenção livre e amorosa que intro- nal do espírito em direção a Deus a partir da natureza.
duz o homem na intimidade de Deus e de seus desígnios. No livro da Sabedoria, aparece explicitamente esse pro-
Se, por sua natureza e pela natureza das coisas, o homem cesso que alhures ( Is 40,12-26) e apenas sugerido. O au-
já tem uma relação com Deus, então podemos compreen- tor, na parte consagrada à idoiatria culta (Sab 13,1-9), alu-
der melhor como a revelação é verdadeiramente uma graça: de aos doutos que divinizam as forças da natureza. Esses
não é uma manifestação que decorra naturalmente nem um pagãos, tão cultos, desconhecem a Deus por não terem se-
acontecimento que já estivesse na ordem natural das coisas, guido as indicações da natureza ( 13, 1 ) . Deveria esta tê-
nem algo constitutivo da natureza humana. Dirige-se a re- -los levado a reconhecer a existência de um Deus transcen-
velação a um ser que já está de posse de sua natureza, in- dente, autor do universo. São declarados "vãos" ( 13,1)
dependentemente dessa intervenção. j) O Deus natural- e "imperdoáveis" ( 13 ,8), pois sendo sábios e experimenta-
mente conhecido deve ser um Deus livre, pessoal trans- dos no conhecimento da natureza ( 13,9) não chegaram a
cendente ao homem. Caso contrário o homem não poderia descobrir o Senhor de ~miverso. Diante do espetáculo das
estar preparado para o silêncio de Deus nem para a sua criaturas, principalmente diante de sua beleza, .de sua grande-
intervenção pela história ou pela palavra. Caso contrário, za e de seu poder, deveriam ter-se elevado, pela analogia, até
ainda o homem não poderia ser acusado de se ter recusado a o autor dessa beleza e desse poder. Refletindo sobre as mara-
ouvir a palavra que lhe fosse pessoalmente dirigida. 1) Se vilhas da criação, deveriam ter concluído que existe um Ser
os padres conciliares declaram que a razão humana pode supremo que é a sua única fonte. Contudo, a Sabedoria só
chegar ao conhecimento natural de Deus, é indubitavel- indica, sem usá-lo. esse método do conhecimento por ana-
mente porque a negação dessa verdade leva ao ceticismo logia. Simplesmente afirma que, despertado pela beleza e pela
religioso. Mais ainda, porém, porque encontram essa verda- grandeza da natureza, o homem pode chegar ao Deus único,
de afirmada na Escritura e em toda a tradição patrística 9 • Autor e Senhor de tudo. O espírito humano é capaz de
Também o segundo concílio do Vaticano distingue uma chegar a essa verdade mediante um processo intelectual, se não
dúplice manifestação de Deus: uma, pelo testemunho do mun- expontâneo, pelo menos relativamente fácil, pois não se
do criado, que se dirige a todos os homens; outra, por reve- pode fazer calar o mundo que fala de seu autor. É, sem
lação histórica e pessoal. Afirma que o universo das criaturas dúvida, necessário que a alma tenha suficiente sensibilida-
constitui "um testemunho permanente" de Deus para a de para o belo e o bem 11 •
humanidade. Faz uma referência à Epístola aos romanos São Paulo lembra muitas vezes essa manifestação di-
(Rom 1,19-20) 10 • vina mediante a criação: diante dos pagãos de Listra, para
9 Sobre o texto do primeiro concílio do Vaticano e sobre seu exato
rebus c~eatis perenne sui testimonium hominibus praebet ( cfr. Rom
alcance, dr.: R. AUBERT, "Le concile du Vatican et la connaissance naturelle 1,19-20)". Cfr. a Constituição Dei Verbum sobre a Revelação, cap. J.
de Dieu", Lumiere et Vie, mars 1954, pp. 41-44; K. RAHNER, Écrits théolo- parági-afo 3.
giques, I: 17-23. u C. LARCHER, "De la nature à son auteur d'apres le Livre de la
10 "Deus, per Verbum omnia creans (dr. To 1,3) et conservans, in SagPsse", Lumiere et Vie, mars 1954, pp. 53-62.
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444 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 445
fazê-los perceber a bondade do Criador ( At 14,15-17); do que os olhos vêem, concebe o que eles não podem ver.
diante dos atenienses, para fazê-los compreender que NooúµEva., unido a um verbo que indica percepção, indica a
Deus é espírito ( At 17 ,22-29 ) ; em sua Carta aos roma~ natureza desse conhecimento 15 : os atributos divinos invisí-
nos, para fazer notar "seu eterno· poder e sua divindade"
(Rom 1,20 ). veis "tornam-se visíveis aos olhos da inteligência". Afir-
Na Carta aos romanos, volta-se o olhar de Paulo para ma-se assim que esse conhecimento é intelectual e que dá
a situação religiosa da humanidade e ali descobre a ne- plena certeza 16 •
cessidade de salvação para todos: judeus e gentios. Fora O que assim Deus manifesta de si mesmo é principal-
do Evangelho não há senão a cólera de Deus (Rom 1,18-3, mente seu poder ( 6úva.µLç) e sua divindade, ou seja, sua
20). Todos os homens precisam do Cristo e de sua reden- transcendência sobre o mundo, sua majestade divina que
ção, pois todos estão sob o império do pecado 12 • Mas como o homem deve adorar. A criação é para a humanidade
pode a cólera divina voltar-se contra os gentios, sem antes manifestação permanente de Deus e de suas perfeições.
constar que os gentios são verdadeiramente culpados? Con- Olhando para o mundo, os homens deveriam poder ali re-
.forme Paulo sua culpabilidade está em que eles, tendo tido conhecer o poder e a majestade de seu Autor: se não o en-
um verdadeiro conhecimento de Deus mediante a criação contram, são inescusáveis.
apesar disso o desconheceram. É esse o pecado primordial Tendo afirmado o princípio geral, que vale sempre,
dos gentios, do qual decorrem todos os outros (Rom l, são Paulo passa a examinar o fato histórico. Podemos pen-
24-32). Portanto, se Paulo fala da manifestação do Criador
através das criaturas e do conhecimento que os pagãos tive- sar com A. Feuillet que o Apóstolo descreve a queda ori-
ram de sua lei, é para afirmar que eles não têm escusa, as- ginal da humanidade, sua passagem histórica do monoteís-
sim como não têm escusa os judeus que transgrediram a mo à idolatria. Primitivamente, os homens, como coletivi-
Lei escrita que conheciam. Uns e outros são culpados 13 • dade, conheceram a Deus; seu orgulho, porém, fê-los per-
Paulo censura ·os pagãos, primeiramente por terem des- der o senso, tornou-os cegos e surdos para a linguagem da
conhecido o Criador que se lhes manifestava. Com efeito, criação. "Só os simples, os humildes, sabem ler a glória
Deus, tomando a iniciativa, manifestou-lhes ( iqJUvÉpwo-Ev) 14 de Deus no espelho da criação" 17 • Portanto, são Paulo
o que dele se pode conhecer ( Y\IWCT't'6ç), pois desde a cria- não afirma apenas a possibilidade de conhecer a Deus ( como
ção o mundo é como que um livro aberto onde sempre po- Sab 13 e o primeiro concílio do Vaticano ) , afirma concre-
demos ler as perfeições de Deus. Desde a criação, as perfei- tamente que os gentios conheceram •a Deus. Os pagãos
ções invisíveis de Deus ( à.6pa.'t'a.) tornam-se de certo modo tiveram de Deus o conhecimento que implica a obrigação
visíveis ( xa.8opã.'t'a.L) através das suas obras ( também nessa de reconhecer e venerar o Deus conhecido: eles conheceram
obra por excelência que é o homem): não por uma intui- a Deus, mas não o reconheceram como tal. Não o glorifi-
ção direta, mas por uma reflexão do espírito que, a partir
14 É o verbo das teofanias do Antigo Testamento. Essa manifesta-
12 Como nota Feuillet, são Paulo "se place toujours sur le plan ção ainda não é a revelação propriamente dita, mas corresponde a um ato
concret de l'histoire du salut, et ce qu'il veut mettre en lumiere, ce ~e . De~s. É tamanho o poder desse ato de Deus que seus atributos
qu'il cherche à exprimer de toutes les façons, c'est le grand tournant mv1síve1s tornam-se patentes. Deus tudo fez, até mesmo tornou visível
opéré dans cette histoire par le passage de Jésus sur la terre" (A. seu ser invisível: portanto, os homens não têm desculpa. Cfr. L. LIGIER,
FEUILLET, "La connaissance de Dieu par les hommes d'apres Rom. 1, Pécbé d'Adam et pécbé du monde (2 vol., Paris, 1960-1961, 2: 174-175).
18-23", Lumiere et Vie, mars 1954, p. 63). 15 Ibid., 2: 175.
13 S. LYONNET, Exegesis epistulae ad Romanos cap. I ad IV (Romae, 16 Ibid., 2: 175.
1960), pp. 118-119; J. FucHs, Le Droit naturel, essai tbéologique (Pa- 17 A. FEUILLET, "La Connaissance de Dieu par les hommes d'apres
ris-Toumai-New-York-Rome, 1960), pp. 18-19. _ Rom 1,18-23", Lumiere e-t Vie, mars, 1954, p. 75.
r
446 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 447
ficàram ( oõx É66!;a.aa:v: não reconheceram a sua excelência), manente de· Deus e de suas perfeições. Deus, pois, de dois
não lhe renderam graças ( oõx Tiôxa.pla-.T)aa.v: não lhe rende- modos, comunica-se, com o homem: pelas obras da criação
ram o. devido culto) u. Paulo censura os pagãos não apenas e pelos acontecimentos da história 20 •
por não terem conciliado sua conduta moral com seu co-
nhecimento de Deus ( religião e moral) ; cens1,1ra-os por não
terem conciliado sua religião ( louvor e ação de graças) com III. REVELAÇÃO NATURAL E REVELAÇÃO SOBRENATURAL
o seu conhecimento de Deus. Em seguida, como o livro
da Sabedoria, apresenta todas as desordens morais como Baseados assim na Escritura e no Magistério, geral-
uma conseqüência desse desconhecimento de Deus 19 • . mente os teólogos distinguem duas formas de revelação: a
O conhecimento de Deus de que fala são Paulo não natural, impropriamente chamada revelação, é a sobrenatural,
é, pois, fruto da revelação, judaica ou cristã, nem de uma revelação no sentido próprio. V1,1mos compará-las entre si.
revelação feita a Adão e transmitida a seus descendentes. 1. O conhecimento de Deus a partir do mundo já é,
É, antes, um conhecimento adquirido com as luzes da razão em certo sentido revelação; pois é um dom de Deus e uma
que reflete sobre as obras da criação. Sem dúvida, esse manifestação sua que leva o homem à homenagem religio-
conhecimento pode muito bem ser ajudado pela graça e sa. Primeiramente é um dom de Deus. Nesse conheci-
Paulo, mais que ninguém, sabe que judeus e pagãos estão mento tudo é dom: Deus é o autor do mundo, da natu-
sob a influência da graça do Cristo. Isso, porém, em nada reza humana, da luz que nos permite interpretar o mundo.
muda o fato que o conhecimento que os pagãos tiveram Se o nosso espírito se eleva para Deus, mais ainda Deus
de Deus e da necessidade de reconhecê-lo foi deduzido pela desce a nós pela criação. Dele vem a iniciativa dessa ma-
razão a partir da criação visível. Indicando a fonte ( o mun- nifestação, como o nota são Paulo: "Deus manifestou aos
do criado) e a força ( a razão) das quais procede esse co- homens o que dele se pode conhecer" ( Rom 1, 19 ) . A con-
nhecimento natural de Deus, são Paulo dá a entender, im- clusão é nossa; mas o sinal que provoca e permite a de-
plicitamente, que se refere a uin conhecimento natural de monstração, a luz que a garante, tudo isso vem de Deus. É
Deus, independente do Cristo e de seu Evangelho. E expli- Deus que nos faz um sinal. Mais ainda: normalmente essa
citamente ele afirma que a criação é uma manifestação per- iniciativa é acompanhada de graças atuais que facilitam a
interpretação e possibilitam perceber a Presença;;:
18 São os dois verbos que a Escritura habitualmente usa para expri- Ela é uma manifestação segura do Deus desconhecido.
mir o dever do homem para com Deus (Lc 17,16-18; At 12,21ss; Jo Pois o universo não é simplesmente uma coisa, mas uma
9,24; Rom 4,21). D. Dupont tem razão quando faz notar que são
Paulo distingue duas etapas ao falar dos pagãos. O conhecimento de criatura. É um sinal que aponta para seu autor: não um
Deus, obtido por inferência a partir das criaturas, deveria levar a um sinal artificial, forjado casualmente, por convenção. É sinal
segundo passo: prestar a Deus a glória e as ações de graça. Os pagãos natural, necessário, radicado numa relação objetiva entre o
não deram esse segundo passo: conheceram a Deus, mas não o honra-
ram como tal. Conseqüentemente chegaram a uma situação antinatural criador e a criatura. Não é arbitrariamente que Deus convi-
de separação entre o conhecimento de Deus e a homenagem religiosa da o homem a descobrir, nas obras visíveis da criação, suas
que é sua conseqüência natural e ·necessária. Evidencia-se assim a culpa- perfeições invisíveis. O convite fundamenta-se na relação
bilidade dos gentios (J. DuPONT, Gnosis, la Connaissance religieuse dans
les épitres de S. Paul, pp. 29-30). ontológica entre Deus e o mundo. Se Deus é o criador de
19 Sobre Rom 1,18-23, dr. S. LYONNET, Exegesis epistulae ad Ro- tudo, é impossível que não exista uma semelhança entre
manos, cap. I ad IV (Romae, 1960), pp. 118-122; Id., Quaestiones in a criatura e o criador, pois a criatura recebe todo o seu
epistolam ad Romanos (Romae, 1955), pp. 68-108; J. DuPoNT, Gnosis,
pp. 21-30; A. FEUILLET, "La connaissance naturelle de Dieu par les
hommes d'apres Rom. 1,18-23", Lumiere et Vie, mars, 1954, pp. 63-80; 20 J. FucHs, Le droit naturel, Essai théologique, pp. 18-19. .
L. LIEGER, Péché d'Adam et péché du monde, 2: 174-179. 21 H. DE LUBAC, Sur les chemins de Dieu (Paris, 1956), pp. 109-110.
448 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 449
ser da causa criadora. Se Deus é a plenitude do ser e da tade não como se lhe fosse manifestada, mas como implica-
perfeição, toda criatura necessariamente recebeu dessa ple- da numa ordem estabelecida. Sem dúvida, descobre um
nitude e dessa perfeição. Na criação material, o Deus es- Deus presente e pessoal, escapa-lhe, porém, o mistério dessa
piritual transparece, ainda que obscuramente. Pelo seu po- pessoa. Chega ao limiar do mistério, mas nele não pode
der, sua imensidade, sua ordem, sua beleza, o universo orien- penetrar. A presença pela criação é como a presença me-
ta-nos para seu autor, indica sua presença e deixa perceber diante um objeto fabricado, em oposição à presença me-
alguns traços de seu Ser, fonte dessas perfeições. Princi- diante o corpo vivo. É, sob muitos aspectos, uma presença
palmente o homem, espírito e vontade, mais ainda que o pálida e indeterminada. Para o homem concreto, pois, ela
mundo físico, reflete a perfeição de seu autor: leva em si permanece muitas vezes obscura, difícil, cheia de enigmas.
os traços de Deus, feito que foi à sua imagem. Ainda mais: Devido ao pecado do homem, ao seu orgulho, à fraqueza
tendo Deus criado essa sua imagem segundo uma natureza de- de seu coração, há sempre a tendência para confundir com
terminada, com determinadas relações para com Deus, com a natureza o seu autor.
o mundo e com os homens, por isso mesmo já está revelan- A revelação sobrenatural, pelo contrário, tem como
do sua vontade a respeito do homem. E o homem, ser es- princípio a iniciativa benévola e gratuita do Deus uno e
piritual e consciente, pode discernir, nas características pró- trino, autor da ordem sobrenatural. Tem por fim imediato
prias de seu ser, a expressão da vontade divina sobre a cria- a fé, mas mediante a fé tende para o encontro, a visão do
tura racional composta de corpo e alma. A vontade divina, Deus vivo. Sua luz é a luz profética ou a luz da fé. Tem
que se exprime nas leis físicas do mundo inanimado, expri- por objeto os próprios mistérios da vida íntima de Deus.
me-se para o homem na lei de sua natureza. O homem, Essa revelação inicia um diálogo, uma amizade, uma co-
como todo o universo que o cerca, é uma revelação divina munhão, uma partilha de bens entre Deus e sua criatura 23 •
em ação 22 • No contexto, porém, dessa revelação em ação, 3. Em última análise, o que distingue ambas as for-
que é uma linguagem implícita, Deus interpelou a humani- mas de revelação é que somente na revelação da graça se
dade com uma palavra explícita e pessoal, para sancionar, verificam no sentido estrito as noções de palavra e de teste-
explicar e completar essa primeira forma da manifestação. munho. Não há dúvida que o mundo existe como resul-
Finalmente, a manifestação de Deus pela criação traz tado de um ato livre de Deus, por ele pensado e querido,
para o homem a obrigação de render-lhe a homenagem reli- e como tal ele é proferido por Deus. Sem dúvida, também,
giosa que lhe é devida, pela glorificação e pela ação de na revelação natural o objeto ( a criação) e o sujeito
graças. São "inescusáveis" os que não reconheceram a Deus ( a razão humana) foram queridos por Deus para que seu
nem lhe renderam essa homenagem (Rom 1,20;2,14-16; encontro produzisse o conhecimento de Deus. Contudo,
Sab 13,1.8). esse conhecimento e essa vontade não bastariam para que
2. Contudo, há diferenças profundas entre revelação houvesse uma palavra e um testemunho propriamente ditos.
natural e revelação sobrenatural. O homem que contempla a criação não se sente interpela-
A revelação natural é assim denominada porque se do; não deve responder a um apelo, mas decifrar um objeto
insere na ordem das coisas, porque existe pelo simples fato ante ele colocado. A criação remete a Deus como à sua
da criação. Seu ponto de partida são as criaturas; sua luz, causa. Trai sua presença e manifesta suas perfeições. Ela
a luz inata da razão. Atinge a Deus como autor do mun-
do, em sua relação causal. Atinge a Deus na criatura, pela 23 Na revelação mediante a criação, tudo é obra de Deus: por isso

criatura, como fundamento da criatura. Descobre sua von- a ação divina dilue-se até certo ponto no anonimato das coisas comuns e
ordinárias. Pelo contrário, na revelação sobrenatural os homens percebem
uma iniciativa nova, gratuita, não exigida pela simples existência do
22 J. FucHs, Le droit naturel, Essai théologique, pp. 58-59. mundo.

15 - Teologia da revelação
450 REFLEXÃO TEOLÓGICA

fala de Deus, mas Deus mesmo não fala, não entra em 3.


diálogo. Deus é como alguém presente que se mantém ca-
lado. O encontro do homem com o universo não chega ao HISTÓRIA E ·REVELAÇÃO
assentimento da fé, mas a uma atitude existencial: home-
nagem e adoração. Pelo contrário, na revelação sobre~a-
tural Deus intervém pessoalmente, num ponto dado d~, his-
tória e do espaço. Estabelece com o homem um dialogo
de amizade, descobre-lhe o mistério de sua vida íntima e
seu desígnio de salvação, convida-o à comunhão pessoal _de
vida e de bens. Pela fé o homem, assim diretamente in-
terpelado, responde livremente ao apelo pessoal d:, Deus Na teologia protestante contemporânea há uma forte cor-
e entra em Aliança com ele. A revelação natural nao tem rente de pensamento que tende a levantar uma oposição en-
essa característica de palavra e de testemunho. Por isso se tre revelação-ação e uma revelação-doutrina, entre uma r~-
lhe dá o nome de revelação impropriamente dita. Estamos velação-acontecimento-da-salvação e uma revelação-aconteci-
diante de duas formas de manifestação divina e de duas mento · e, portanto, também uma oposição entre um Deus
ordens de conhecimento: "A Igreja católica, diz o primeiro que age e um Deus que fala. Essa corrente de pensamen!o
concílio do Vaticano, sempre afirmou unanimemente, e_ a~n- salienta que Javé é um Deus· que intervém no campo da his-
da o afirma, que há duas ordens de conhecimento, di~tln- tória humana e que a revelação se apresenta antes de tudo
tos não só por seu princípio, mas também por seu obJeto. como uma série de acontecimentos cujo sujeito é Deus. A
Por seu princípio: pois numa é a razão natur_al; noutra, a revelação é a gesta de Deus. na história 1• G. E. Wright
fé divina que nos faz conhecer. Por seu obJeto_: J?orque, observa que a Bíblia, mais do que a Palavra de Deus, é
além das verdades que a razão natural pode atingir, nos relato dos atos de Deus 2 •
são propostos a crer os mistérios ocultos em Deus, que não É verdade que o Deus do Antigo e do Novo Testamen-
podem ser conhecidos se não forem revelados do alto_. É to é um Deus que irrompe no campo da história humana
por isso que o Apóstolo, que testemunha que Deus foi co- e que ali se manifesta pelas grandes obras que realiza. O
nhecido pelos gentios através de suas obras ( Rom 1,20), Antigo Testamento narra as mirabilia Dei em favor de seu
quando fala da "graça e da verdade dadas por Jesus Cristo" povo. Os profetas a elas se referem continuamente, os sal-
(Jo 1,17 )declara: "Nós pregamos a sabedoria de Deus no mos as celebram e as festas litúrgicas as comemoram. O
mistério, sabedoria escondida, que, antes1os séculos, Deus Novo Testamento é a Boa-nova do que aconteceu em Jesus
já havia predestinado para a nossa glória. Nenhum dos
príncipes deste mundo a conheceu . . . a nós Deus o revelou t Textos expressivos dessa maneira de pensar encontram-se em: J.
BAILLIE The Ideal of Revelation in Recent Thought (New York and
por meio do Espírito, porque o Espírito perscruta todas as London: 1956), pp. 50-62ss; K. S. KANTZER, "Revelation a~d Inspiration
coisas, até as profundezas de Deus" ( 1Cor 2, 7-8 .1 O) 24 • in Neo-Orthodox Theology", Bibliotheca Sacra. A Theolog1cal Quarterly,
115 (1958): 120-127, 218-228. Diversos protestantes, po~ém, _ reagem
fortemente contra essa concepção unilateral de uma revelaçao-açao. Por
ex: H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation in the Old Testame?tt
(Oxford 1956), pp. 43, 45; A. RICHARDSON, Christian Apologetzcs
(Londo~, 1955), p. 145; D. B. KNox, "Propositiohal Revelation the only
Revelation", The Reformed Theological Review, 19 (1960): 1-9; C._~-
Donn, La Bible au;ourd'hui (Tournai-Paris, 1957), p. 58. Sobre a J?Ostçao
católica, cfr.: R. ScHNACKENBURG, "Zum Offenbarungsgedanken m der
Bibe!", Biblische Zeitschrift, 7 (1963): 2-13.
24 D. 1795. 2 G. E. WRIGHT, God who acts (London, 1952), p. 107.
r
452 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E REVELAÇÃO 453
Cristo. É inegável essa historicização, e a teologia católica mas não é centrado; é um tempo infecundo 4 • Mesmo o
sublinha-a. Mesmo assim, porém, seria inevitável uma dis- helenismo, em seu conjunto, permanece preso a uma con-
junção entre o Deus que age e o Deus que fala? Estaria cepção cíclica das coisas. O tempo grego é um tempo de-
objetivamente fundamentada, apoiada na Escritura? Ou, sesperador: sem origem, sem momento privilegiado, sem
levantando doutro modo a questão, quais são as relações significação, sem nexo com a liberdade e a salvação do ho-
entre a história e a revelação? Há uma oposição entre histó- mem. A história, como concebida por Heródoto e Tucí-
ria e doutrina? dides, é, sem dúvida, um movimento, não, porém, uma
teleologia. Para fugir ao ciclo fatal que arrasta os próprios
I. A HISTóRIA, LUGAR DA REVELAÇÃO
deuses, é preciso que o homem se liberte do tempo. A sal-
vação, para o grego, não pode resultar de um acontecimento
da história 5 •
Atualmente é quase um lugar comum afirmar que os he-
breus foram os primeiros a opor uma concepção linear do Israel foi o primeiro a romper o círculo fatídico das
tempo a uma sua concepção cíclica, os primeiros também estações e das repetições que cercava o mundo antigo: rom-
a valorizar a história como epifania de Deus 3 • Em Israel, peu com a mudança que nada mais é que contínuo reco-
meçar. Para Israel, o tempo é linear: tem um começo e um
pela primeira vez, deu-se o encontro entre a revelação e a
fim. A salvação realiza-se numa história temporal: está ligada
história. Quase não se encontra, fora de Israel, solidamente
afirmada a idéia de uma sucessão contínua de acontecimentos a uma sucessão de acontecimentos, que se desenrolam segun-
temporais abraçando o passado, o presente e o futuro, en- do um plano divino, e que se encaminham para um fato
cadeados segundo uma direção e uma meta. Entre os an- único: a morte e a ressurreição do Cristo 6 • Israel vive em
tigos povos politeístas volta-se a atenção primariamente a natureza, mas a história é o centro de sua atenção. O que
para a natureza. Atento ao ritmo dos astros e das estações tem importância não é o ciclo anual em que tudo recomeça:
( ritmo de nascimento e de morte), o homem procura sua o importante é o que Deus, faz, fez e fará segundo suas
segurança integrando-se nesse ritmo e na sua repetição anual. promessas. Promessa e realização constituem o dinamismo
As religiões da índia, da China e da Pérsia estão centra- desse tempo de tríplice dimensão. O presente inicia o fu-
das muito mais numa sabedoria que numa história. O turo anunciado e prometido no passado 7 • As festas anuais
tempo indiano é um tempo cíclico. Mais precisamente, M.
4 M. ELIADE, Images et Symboles (Paris, 1952), cap. 11; J. Mou-
Eliade distingue no tempo indiano três planos: o tempo R0UX, Le mystere du temps ( Paris, 1962), pp. 49-50; L. SILBlJRN, Instant
individual, fluxo contínuo de instantes irreais; o tempo et cause (Paris, 1955); J. MONCHANIN, "Le temps selon 1'hindouisme
cósmico, eterna repetição de um mesmo ritmo ( criação, et le christianisme", Dieu Vivant, n. 14 (1949), pp. llss.
5 O. CuLLMANN, Cbrist et le temps (Neuchâtel, 1957), pp. 36-37;
destruição, recriação), ritmo que por sua vez se insere em G. E. WRIGHT, God who acts, pp. 39-42; J. MouRoux, Le mystere du
cíclos enormes, com números espantosos; finalmente, o ins- temps, pp. 48-49; C. MuGLER, Deux thémes de la cosmologie grecque:
tante intemporal, fora do tempo, imóvel, eterno presente. devenir cyclique et pluralité des mondes ( Paris, 1953); J. MoREAU, L'idée
O importante é que o· homem se liberte do tempo cósmico, d'univers dans la pensée antique (Turin, 1953); C. PuECH, "La gnose
et le temps", Eranos Jabrbuch, 20 ( 1951): 60-76: M. ELIADE, Le mythe
transcendendo-o. Com isso o tempo é desvalorizado ante a de l'éternel retour (Paris, 1949).
eternidade; mais ainda: é um obstáculo que o homem deve 6 O CuLLMANN, Christ et le temps, pp. 22-23. Sobre o tempo bíbli-

suplantar para ser libertado. O tempo indiano é escandido, co, cfr.: G. Prnoux, "A propos de la notion biblique du temps", Revue
de théologie et de pbilosopbie, 3° série II (1952), pp. 120-125; R. MAR-
TIN-ACHARD, "La signification du temps dans l'Ancien Testament", R1?vue
3 M. ELIADE, Le mythe de l'éternel retour (Paris, 1949), pp. 154- de théologie et de pbilosopbie, 3° série IV ( 1954), pp. 137-140.'
-155; P. GRELOT, Sens chrétien de l'Ancien Testament (Paris, 1962), 7 E. DARDEL, "Magie, mythe et histoire", Journal de psycologie, 43
p. 114. (1950): 217-221.
454 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E REVELAÇÃO 455
( Páscoa, na primavera e Tabernáculos no outono) são mais tar 12 • Em segundo lugar, a idéia duma revelação na histó-
lembranças dos atos salvadores de Deus do que atos do ria dá à revelação uma intensa característica de atualização.
drama cíclico da natureza. Deus é aquele que a ·todo instante pode intervir e mudar
Israel pode romper com a concepção cíclica do tempo o curso dos acontecimentos: está próximo, está aqui, im-
porque encontrou a Deus na história. Proclama Israel que previsível em suas intervenções como em seus efeitos. É
Deus interveio em sua história, que esse encontro acon- preciso estar sempre atento à sua vinda.
teceu um dia e transtornou sua existência. Seu Deus não
está mergulhado em a natureza: é. um Deus vivo, pessoal,
soberanamente livre, que se manifestou exatamente onde II. A HISTORIA DA REVELAÇÃO
se manifesta a vontade, isto é, nos acontecimentos. A re-
velação veterotestamentária não acontece no tempo mítico, Sobre as intervenções de Deus na história nada pode-
"no instante extratemporal do começo", mas sim na dura- mos dizer nem predizer. Tudo depende de sua livre deci-
ção do tempo histórico 8 • Moisés recebeu a Lei em certo são. Em Deus nada existe que exija que ele intervenha
lugar e em certa data: é um .acontecimento irreversível, que neste momento e não naquele outro, que intervenha mais
não se repetirá. O mesmo se dá com as outras manifesta- vezes ou menos. Nem tampouco há no homem algo que
ções de Deus 9 • A história é,· pois, o lugar da revelação. O exija que Deus se lhe dirija. A revelação é um aconteci-
judaísmo, o cristianismo e o islamismo são as únicas re- mento livre e gratuito. As intervenções divinas sucedem-
ligiões que reivindicam assim uma revelação que tem por -se através de vários séculos. Deus não disse nem fez tudo
base a história 10 • Nessa concepção de um Deus vivo que de uma só vez; interveio nos momentos oportunos, por ele
se revela na história está o essencial da fé de Israel em escolhidos. O tempo do Antigo Testamento é escandido
Deus 11• por momentos significàtivos. "Não são todos os pontos da
Essa concepção de uma revelação na história tem duas linha contínua do tempo que formam a história da salvação
conseqüências. Primeira, valoriza a história. Se Deus in- propriamente dita, são os kairoi, esses pontos isolados no
tervém na história para através dela manifestar sua von- conjunto do curso do tempo" 13 • Há, portanto, uma histó-
tade, os próprios acontecimentos históricos adquirem nova ria da revelação, história que não coincide com a história
dimensão: tornam-se portadores das intenções de Deus e universal. A revelação constituiu-se pouco a pouco, pro-
dão à história um sentido, uma direção. Os outros povos, grediu em quantidade e qualidade, à medida que os séculos
porque não conheceram o Deus da história, não têm pos- vão passando e que Deus intervém ( Hebr 1, 1 ) . As inter-
sibilidade de interpretar a história; são inconscientes de seu venções de Deus constituem, na história universal, como
papel e, nos momentos de crise, já não sabem como se orien- que afloramentos do divino no tempo. Mas por isso não
são pontos isolados, não relacionados entre si: as interven-
8 M. ELIADE, Le mythe de l'éternel retour, pp. 156-157. ções divinas guardam uma coerência íntima. De Abraão
9 Não repetimos nem a Páscoa nem a Aliança: .nós as celebramos. a Jesus Cristo, traça-se uma linha, pouco a pouco transpa-
Como o nota J. Mouroux, o cristianismo é a religião do Epaphax, não
da repetição. A redenção atualiza-se, aplica-se, mas não se repete. (J. rece um desígnio que é o plano divino, a economia da sàl-
MouRoux, Le mystere du temps, p. 219). vação. Nenhuma das intervenções divinas se compreende
10 H. W. ROBINSON, Redemption and Revelation (London, 1947),
p. 162. 12 G. E. WRIGHT, God who acts, pp. 24-26; M. ELIADE, Le mythe
11 J. DANIÉLOU, Essai sur le mystere de l' histoire ( Paris, 1953),
de l'éternel retour, pp. 154-155.
pp. 9ss). Sobre a história (São Paulo, 1964), pp. 7ss); G. Auzou, La 13 O. GULLMANN, Christ et le temps, p. 28; K. RAHNER, Écrits
Parole de Dieu (Paris, 1960), p. 169; TH. C. VRIEZEN, An Outline of
Old Testament Theology (Oxford, 1958), pp. 29-30. théologiques (Bruges, 1959), 1:25-26; J. MouRoux, Le mystere du temps,
p. 85; P. GRELOT, Sens chrétien de l'Ancien Testament, p. 112.
r
456 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E REVELAÇÃO 457
a não ser como parte dessa economia. Esse desígnio, ini- criará a Igreja. Israel foi salvo de graça para ser o povo
cialmente restrito ·a Israel, alarga-se às proporções da hu- de Javé 18 • Deus forma para si um povo, e para marcar bem
manidade, e depois na Igreja tende a englobar os homens a intimidade dessa associação, revela-lhe seu Nome, isto é,
de todos os tempos 14 • seu ser pessoal. Revela-se Deus como uma pessoa que pode
Se Deus interveio em momentos determinados, pode- ser invocada e que responde ao apelo do homem. Assim
mos traçar unia história da revelação, ou seja, dessas suces- a Aliança inaugura entre Deus e seu povo relações inter-
sivas intervenções de Deus. Qual é essa história que é pessoais. Ela comporta também um regime de obrigações
propriamente a história da salvação? baseado na libertação 19 • Israel compromete-se a ser fiel às
No começo da revelação veterotestamentária estão pri- cláusulas da Aliança, isto· é, a obedecer à Lei de Javé ( :E:x
meiramente os acontecimentos que marcaram o nascimento 19 ,3-6; Dt 7, 7-14). A fidelidade à Lei fará de Israel um povo
de Israel como povo e que revelaram Deus como o Deus santo, consagrado a Javé (Dt 7,6;26,17-19), chamado a
da história, agindo na história 15 • São os fatos do :Êxodo, glorificar seu nome entre as nações 20 • A entrada na Terra
da Aliança, da entrada na Terra prometida. Acontecimen- prometida completa o que Deus começara no Egito. É o
tos estreitamente ligados entre si. O fato primordial é a cumprimento da promessa feita a Abraão ( Gên 17 ,3-8) e
libertação de Israel, tirado da servidão do Egito. .Liberta- o primeiro testemunho da fidelidade de Javé à sua Aliança.
ção que é obra de Javé, pois ele forçou o faraó, pelas pragas Nesse primeiro encontro de Javé com seu povo tudo é
do Egito, a libertar Israel ( :Êx 12 ,31-3 2 ) , foi ele que no graça: a libertação, a Aliança, o dom da Terra prometida.
refluxo do· mar Vermelho completou a derrota dos egípcios Se a esses acontecimentos, que constituem o germe da re-
J:E:x 14,27-28). Por ocasião do :Êxodo mostrou-se Deus velação veterotestamentária, acrescentamos a monarquia e
como todo-poderoso e salvador ( :E:x 14,31). A experiência o messianismo real, o templo e a presença de Javé, o exílio
desse primeiro encontro com Deus marcou profundamente e a restauração, teremos então o essencial dos acontecimen-
a consciência de Israel; e já desde o começo também marcou tos que não cessarão de alimentar a reflexão religiosa de
a revelação como histórica 16 • Jamais Israel deixará de se Israel 21 • Tudo o mais é apenas o seu desenvolvimento orgâ-
considerar como o povo da libertação-operada-por-Javé. nico e sua conseqüência homogênea. Principalmente a reve-
A libertação e a segregação têm em vista um desígnio. lação profética simplesmente retoma e aplica ao desenrolar
As tradições referentes ao Sinai ( :E:x 19-25 ) mostram que da história as implicações do regime da Aliança. Os profetas,
a libertação foi feita tendo em vista a Aliança. A eleição, o
:Êxodo, e mesmo o dom da Terra prometida, acontecem para 18 Ibid., p. 25.
a Aliança. Essa é que dá sentido ao :Êxodo e que faz das tri- 19 Ibid., pp. 37, 43. A aliança mosaica recebeu sua estrutura lite-
rária da estrutura literária dos tratados hititas. Nesses tratados há um
bos que saíram do Egito uma comunidade religiosa e polí- prólogo com dois aspectos: a) um aspecto ético: o rei lembra ao cliente
tica 17 • Deus associa a si um povo que ele literalmente os favores que lhe fez, para lhe suscitar o reconhecimento e o desejo
criou ( :E:x 16,1-9), como criara Adão, como mais tarde de servir a um tal senhor; um aspecto jurídico: os favores conferem ao
rei o direito de impor as obrigações estipuladas no contrato. Encontra-
mos essa mesma estrutura na Aliança de Javé com Israel: são relembra-
14 J. MouRoux, Le mystere du temps, pp. 18-19; R. Schnackenburg, dos os benefícios divinos (Jos 24; Dt 6,10-19), enumeram-se as obriga-
"Zum Offenbarungsgedanken in der Bibel", Biblische Zeitschrift, 7 ções da Aliança e as bênçãos de Javé. O Bxodo é o acontecimento sal-
(1963): 3-7. vífico por excelência que dá a Javé o direito de exigir o serviço de Israel
15 W. E!CHRODT, "Offenbarung und Geschichte im Alten Testament", e que leva este a fazer a Aliança. Cfr. W. MORAN, "De foederis mosaici
Theologische Zeitschrift, 4 ( 1948): 321-322. traditione", Verbum Domini, 40 (1962): 3-17.
16 W. ErCHRODT, op. cit., p. 322; G. E. WRIGHT, God who acts, 20 P. VAN IMSCHOOT, Théologie de l'Ancien Testament, I: 237-259.
p. 44. 21 Entre os temas secundários devemos acrescentar: a criação, subor-
17 G. E. MENDENHALL, Law and Covenant in Israel and the Ancient
dinada também à eleição e à aliança, o tempo dos patriarcas, subordinado
Near East (Pennsylvania, 1955), p. 5. à aliança mosaica.
r
458 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E. REVELAÇÃO 459
exprimindo a vontade, de Deus sobre os acontecimentos de pela história é preciso que duas realidades estejam unidas:
seu tempo, à 1uz da Aliança e do Espírito, fazem crescer e o acontecimento e a palavra.
aprofundam o conhecimento de Deus. Continuamente evocam Os acontecimentos podem ser de natureza muito di-
o primeiro encontro de Javé com seu povo. No tempo do exí- versa. Podem ser verdadeiros milagres, como convém ao
lio, principalmente, Ezequiel e o Dêutero-Isaía~ retomam estabelecimento de uma religião sobrenatural; mas podem
o tema do f:xodo e da Terra prometida. Havera um novo ser também acontecimentos que resultam do simples jogo das
deserto, um novo pastor, um novo Moisés, a libertação será causas naturais, que como tais não vão além da ação divina
um novo f:xodo seguido de uma nova Aliança 22 • Como vemos, ordinária. O acontecimento pode ser ao mesmo tempo mi-
é uma revelação muito concreta. Por isso também são muis lagre e acontecimento providencial, ambos os elementos
to concretas as confissões de fé de Israel. Os mais antigos mesclando-se de maneira inextricável. Por exemplo, no caso
"Credos" do Antigo Testamento são apenas relatos sucintos do f:xodo. A êsse tipo de acontecimento de ordem física
dos atos salvadores de Deus 23 • É sempre o mesmo tema devemos acrescentar ainda acontecimentos de ordem polí-
essencial: Deus escolheu nossos pais e prometeu-lhes a terra tica, social ou moral, como as vitórias ou derrotas dos exér-
de Canaã· a descendência de Abraão tornou-se· um grande citos, crimes e obstinação dos reis, infidelidades coletivas
povo, ma~ depois de longa estada no Egito esse povo foi que são para Deus ocasiões para manifestar sua vontade.
reduzido à escravidão; Deus teve compaixão de seu povo e
libertou-o; com maravilhas de poder, conduziu-o pelo de- Realmente existe um agir divino objetivo na história
( providencial ou miraculoso)·, e é fato também que a re-
serto e introduziu~o na Terra prometida. São os fatos con-
velação veterotestamentária se apresenta como a experiência
fessados no Dt 26,5-9;6,20-24;24,2-13. Também os salmos,
da ação dum poder soberano que dirige o curso da história
que são a oração de Israel, tomam· muitas vezes a forma
e da existência individual. Ação, contudo, que não se torna
narrativa. Israel incorpora à sua oração sua própria histó-
plenamente compreensível como revelação a não ser que
ria e encontra nessa lembrança um motivo de contempla-
venha acompanhada pela palavra que exprime o sentido do
ção, de confiança, de reconhecimento, de contrição ( SI 78;
105;107;77;114;136;44 }. agir divino. Deus ao mesmo tempo. faz o acontecimento
de salvação e explica sua significação; Deus intervém na
história e diz o sentido de sua intervenção; Deus age e co-
menta sua ação.
III. A REVELAÇÃO PELA HISTORIA Israel, no começo de sua história, viveu um certo número
de acontecimentos: libertação da escravidão, marcha pelo
Assim Deus age na história; revela-se pela história. deserto, entrada em Canaã. Mas, o que seriam esses aconte-
Essa afirmação deve ser explicitada. Em que· sentido pode~ cimentos sem a palavra que Deus em ·segredo dirige a Moi-
mos falar da história enquanto revelação? Inicialmente di- sés (f:x 3-4;6,1 ), e sem a palavra de Moisés que em nome
gamos que por história não entendemos_ o simples curso dos de Deus manifesta a Israel o sentido dessa história e lhe
acontecimentos e o seu registro material, mas somente os descobre sua dimensão sobrenatural? Sem dúvida que a saída.
acontecimentos que, em razão de sua importância para a do Egito não seria nada mais que uma migração de povos,
comunidade hebraica, merecem ser conservados. Mas não basta uma entre tantas outras; não se teria tornado fato tão fun-
essa primeira distinção. Para podermos falar de revelação damental sem a interpretação de Moisés (1;:x 14,31) 24.
Essa própria interpretação transformou-se num aconteci-
22 E. JACOB, Tbéologie de l'Ancien Testament, pp. 156-157.
23 G. E. WRIGHT, God who acts, pp. 28, 70-72; G. VON RA» Tbeolo-
gie des Alten Testaments (München, 1957), I: 117-118, 135-137. 24 H. W. ROBINSON, Inspiration and Revelation t'n- the Old Testa•
ment, pp. 43,45; E. JACOB, Tbéologie de l'Ancien Testament, p. 167.
460 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E REVELAÇÃO 461
mento que dirigiu a história ulterior. Através da interpre- testemunho divino. É a complementariedade do acimteci-
tação de Moisés, Deus revelou-se aos contemporâneos e às mento histórico e do acontecimento da palavra ( palavra de
gerações futuras 25 • A estrutura da revelação é sacramental: Deus ao profeta e palavra do profeta ao povo de Israel)
os fatos e acontecimentos são iluminados pela palavra. que faz a revelação crescer. Os momentos reveladores da
O profeta é o testemunho e o intérprete qualificado história são sempre marcados pela aparição de um ou de
da história, aquele que lhe descobre a significação sobrenatu- vários profetas. A simples presença de profetas significa
ral. No Antigo Testamento encontramos duas linhas comple- que Deus está agindo na história 28 •
mentares: a linha dos acontecimentos e a linha dos profetas, Em o Novo Testamento a estrutura da revelação não
que interpretam os acontecimentos, proclamando em nome difere da do Antigo Testamento. O Cristo é aquele que
de Deus o seu significado. Revela-se Deus pela história, veio, que realizou a obra do Pai, e que por isso foi exalta-
mas pela história divinamente interpretada pelos profetas. do à sua direita. Os primeiros "Credos" do cristianismo
A história somente se manifesta como história da salvação são a afirmação de fatos históricos e do seu alcance salvífico.
quando comentada autoritativamente pela palavra do pro- As formas mais simples referem-se à ressurreição do Cristo
feta, que descobre para Israel a presença e o conteúdo da e à sua exaltação como Senhor e Filho de Deus ( 1Cor 12,
ação divina. A ação divina ocúlta no acontecimento histó- 3; Rom 10,9; At 8,37). As formas mais elaboradas narram
rico exige, para ser plenamente apreendida, a palavra que a como o Cristo viveu, morreu e ressuscitou para operar a
completa. É pelos profetas que Israel toma consciência da salvação do gênero humano. A profissão de fé litúrgica de
ação divina salvífica na história. O acontecimento histórico,
como revelação de Deus, precisa receber seu sentido da pa- 28 Não é muito diversa a explicação de santo Tomás para o conhe-
cimento profético. Segundo ele o conhecimento profético tem os seguin-
lavra viva do profeta (Am 3,7; Is 42,9) 26 • Devemos, pois, tes elementos: uma matéria, uma iluminação, um julgamento. A maté-
distinguir: o acontecimento histórico ( real, objetivo) e o ria do julgamento pode ser dada pelos fatos exteriores, os acontecimen-
acontecimento da palavra ( real, objetivo) que acompanha o tos da história, ou pelas experiências anteriores do profeta. Para santo
Tomás o essencial da revelação profética está na ilumin:;tção que dá ao
acontecimento histórico. É preciso salientar que é o acon- profeta poder pronunciar sobre os acontecimentos ( ext~riores ou inte-
tecimento da palavra que consagra o acontecimento histó- riores) um julgamento conforme a intenção divina. A amendoeira de
Jeremias, a invasão de Senaquerib, o sonho do faraó não seriam reve-
rico como acontecimento revelador, pois é a palavra do pro- lação sem o julgamento ou a interpretação do profeta. Em si mesmo o
feta que esclarece o acontecimento e o propõe à fé como acontecimento não é a revelação; nem tampouco a percepção do acon-
acontecimento de salvação, atestado por Deus 27 • tecimento. A revelação consiste na manifestação do sentido divino desse
acontecimento. No acontecimento, o que interessa é a finalidade para a
O processo revelador compõe-se, em sua totalidade, qual ele se orienta conforme o desígnio divino; isso é dado pelo julga-
dos seguintes elementos: a) o acontecimento histórico; b) mento iluminado do profeta que mostra a inteligibilidade do aconteci-
a revelação interior que dá ao profeta a compreensão do mento (S. th. 2a 2ae, q. 173, a. 2, c.; De Verit. q. 12, a. 1, ad 2; V.
WHITE, "Le concept de révélation chez S. Thomas", L'Année théologique,
ac~ntecimento, ou pelo menos reflexão do profeta, dirigida 11 (1950): 123-125). Quanto aos grandes escolásticos, devemos reco-
e iluminada por Deus; c) . a palavra do profeta que apre- nhecer, preocupam-se _menos que nós com os vínculos históricos e con-
senta o acontecimento e sua significação como objetos do cretos da revelação, menos atentos à matéria que lhe é fornecida pela
história. Estão mais interessados na etapa final da revelação do que nas
etapas preparatórias. Para eles, a revelação é primariamente um fenômeno
25 H. W. ROBINSON, Redemption and Revelation, pp. 182-183. interior, de ordem cognoscitiva: é comunicação da verdade divina me-
26 E. ScHILLEBEECKX, "Parole et sacrement", Lumiere et Vie, 9 diante a iluminação. Pelo aumento de luz que recebe, o profeta julga
(1960): 27-28; H. M. Féret, Connaissance biblique de Dieu (Paris 1955) com certeza e sem erro os objetos presentes à sua consciência. Essa insis-
pp. 36-40; A. Liége, "Le ministere de la parole: du kérygme à '1a caté'. tência, um tanto unilateral, sobre o elemento formal da revelação tem
chese", em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Paris, 1961), p. 171; afinal conseqüências menos graves que a insistência unilateral do neopro-
N. Dunas, "Pour une proposition kérygmatique de l'Évangile aujourd'hui", testantismo atual sobre a revelação-acontecimento. Como dizem os esco-
em: L'annonce de l'Évangile aujourd'hui (Paris, 1962), p. 243. lásticos: a revelação total se compõe da história e da palavra; de uma
27 K. Rahner, Écrits théologiques, I: 26. matéria (fatos, representações, acontecimentos) e de um julgamento.
462 REFLEXÃO TEOLÓGICA
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 463
1Tim 3,16 resume em uma só fórmula as principais fases se corthecia a palavra humana do Filho enunciando em ter-
da história da salvação. Assim também os discursos de Pe- mos humanos o plano salvífico do Pai. Por isso ali domina
dro, nos Atos, enunciam os fatos principais que fundamen- o aspecto histórico. A encarnação do Filho precipita o
tam o cristianismo ao mesmo tempo que lhes dão significa- ritmo da história: Deus de uma só vez se exprime total-
ção sobrenatural (At 2,23-36;3,12-26;10,34-43 ). J. Schmitt mente ( Hebr 1,1).
observa que a primeira pregação apostólica tem como objeto Tanto em o Novo Testamento, pois, como no An-
uma história vista sob a luz do Espírito 29 • A substância do tigo, a revelação chega até nós sob a forma da história,
quérigma primitivo está contida nos seguintes pontos: foi mas história cuja plenitude de sentido não pode ser capta-
inaugurado por Cristo o tempo da plenitude anunciado pelos
da senão mediante o acontecimento da palavra. O aconte-
profetas; a salvação chegou por sua morte e ressurreição,
cimento da cruz e o do :Êxodo só se tornam plenamente
conforme as Escrituras; o Cristo, por sua ressurreição, foi reveladores pela palavra que os interpreta e os propõe à fé.
exaltado à direita do Pai como Cristo e Senhor, e a exis-
Sem esse testemunho, ao mesmo tempo sobre o aconteci-
tência atual da Igreja testemunha a vinda do Espírito; por
mento e sobre seu alcance salvífico, não existe revelação
isso, todos devem arrepender-se, receber o batismo e o Es- no sentido pleno da palavra.
pírito que inaugura uma vida nova. O que é pregado pelos
apóstolos é a história da Salvação pela vida, morte e ressur-
reição do Cristo. Nele terniina e culmina a história da Sal- IV. AS IMPLICAÇÕES DE UMA REVELAÇÃO NA HISTóRIA
vação. Doravante o Cristo é o eixo da hist6ria: da história E PELA Hls:fóRIA
sagrada, sem dúvida, mas também de toda a história, pois
que a vinda de Deus em pessoa em nossa história sacraliza
também a história profana. Admitir que a revelação nos atinge principalmente na
história e pela história, implica em certo número de conse-
A característica de acontecimento da revelação em o qüêndas que devemos examinar.
Novo Testamento é bem evidenciada pelo fato de a obra 1. Refere-se a primeira à natureza e ao progresso da
salvífica do Cristo ser descrita com o vocabulário do An- revelação. Não se dá a revelação como um sistema de pro-
tigo Testamento. O Cristo é o novo Adão, o novo Moisés, posições abstratas referentes a Deus: vem incorporada aos
o Rei segundo o coração de Javé, o Servo sofredor, o filho acontecimentos da história. Deus, seus atributos, seu de-
do homem de Daniel, o Sacerdote segundo a ordem de sígnio tornam-se-nos conhecidos, mas através dos aconteci-
Melquisedec. Sua obra é uma libertação da servidão do pe- mentos da história. Desde logo vemos em que sentido po-
cado ( Col 1, 13-14 ) . Seu sangue derramado sela a nova demos falar de uma história ao mesmo tempo que de uma
Aliança ( Sinóticos) . Seus milagres renovam as maravilhas doutrina. Apresenta-se a doutrina sob a forma de aconte-
do :Êxodo ( são João). Mas, enquanto no Antigo Testa- cimentos significativos que indicam Deus e seu desígnio;
mento, a revelação aparece como que difusa ao longo dos não deriva de simples especulação sobre Deus. A Escritura
acontecimentos de vários séculos, ela como que se contrai não fixou um sistema filosófico, mas acontecimentos con-
e condensa na vida e nas ações do Cristo. Tudo completa- cretos aos quais se prende uma significação religiosa, sobre-
-se no único acontecimento de Cristo; tudo é ·dito na pala- natural. Recitar o Credo, é recapitular o que Deus fez para
vra do Filho. No Antigo Testamento aparece menos clara- salvar a humanidade. Os acontecimentos dessa história têm
mente o caráter doutrinal da revelação, porque então não tal dimensão e tal plenitude de sentido que os proclamar é
o mesmo que enunciar toda a economia da salvação, é ex-
29 J. SCHMITT, Jésus ressuscité dans la prédication apostolique (Pa-
ris, 1949), pp. 5-22.
por a doutrina do cristianismo, isto é, o que ele professa
e ensina.
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464 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E REVELAÇÃO 465

Contudo, seria inexato sustentar que a história e a cumpram as obrigações impostas ( Am 5,14; Is 28,15). De-
sua interpretação exaurem- todo o conteúdo da revelação. Se pois, as múltiplas infidelidades de Israel, em contraste com
é inegável a característica histórica de uma parte do objeto a fidelidade constante de Javé, fazem descobrir a gratui-
de fé, também igualmente certo que esses objetos contêm dade da Aliança, disposição inteiramente amorosa de Deus
longas exposições cujas conexões históricas são menos ime- em favor da humanidade. Finalmente, sob o peso das des-
diatas, por exemplo: o ensinamento dos livros poéticos e graças, a concepção da Aliança espiritualiza-se e passa a ser
sapienciais, o ensinamento moral do Cristo, como o encon- uma aliança com o coração do homem. A nova Aliança anun-
tramos desenvolvido no sermão da montanha. A revelação ciada por Ezequiel será uma regeneração dos corações se-
do mistério trinitário dá-se mais pela palavra do que pela guida do dom do Espírito ( f:x 36 ,23-28 ) . Já não se fará
história. Mesmo assim, a historicização permanece o traço e1a com um so• povo, mas com as naçoes, - n.
característico, dominante, da revelação cristã. Já vimos que Israel chegou à idéia de criação a partir
Também o progresso da revelação está ligado à histó~ da história. Aquele que se mostrara Senhor das forças anár•
ria. Vejamos, por exemplo, os atributos divinos: no :Êxodo, quicas da natureza (mar Vermelho, pragas do Egito, mar-
revela-se Deus como o Deus pessoal e salvador na conquista cha através do deserto) ; aquele que se manifestara como o
de Canaã, como o guerreiro todo-poderoso; insistem os pro- Senhor dos povos, utilizando-os como instrumentos, para
fetas nos atributos espirituais e morais ( amor, justiça, san- em seguida castigar-lhes o orgulho, deve ser também o Cria-
tidade), reagindo contra o nacionalismo interno e o natu- dor dos povos e do cosmos. Só a criação pode ser a base
ralismo externo. O .exílio põe Israel em contato com as duma dominação assim soberana.
nações: Deus, no Dêutero-Isaías, revela-se como o Deus Também o conceito de Resto é frutp duma reflexão
das nações e Israel toma consciência de sua vocação mis- sobre a história. Israel sobrevivera à servidão no Egito,
sionária. É sempre através da história que se aprofunda sobrevivera ao deserto, às guerras de ocupação, ao exílio e
e purifica o conhecimento de Deus 30 • Os acontecimentos à dispersão. Viu nesse fato a ação divina que poupa e salva
do :Êxodo, dá Aliança, da conquista, da monarquia, são como um resto da nação.
que protótipos das relações de Javé com seu povo, chave Finalmente, na doutrina do messianismo, é de se notar
de toda interpretação profética ulterior. como cada estrutura social da história de Israel criou uma
Israel, a partir desses fatos, não cessa de refletir sobre figura messiânica: o Rei, na época da monarquia; o Ser-
sua história, na qual descobre sempre novas dimensões. vidor, no profetismo; o Sacerdote, na teocracia sacerdotal
Essa reflexão dirigida, é claro, pelo profetismo, faz que a após o exílio 32 • Mas sempre, é bom insistir, esse progredir
revelação progrida quantitativa e qualitativamente. A sal- da ·revelação só se torna possível graças à palavra que acom-
vação, é inicialmente a libertação do Egito; depois, dos ini- panha a história e lhe exprime o alcance salvífico.
migos fronteiriços. Pouco a pouco, porém, os castigos que 2. Uma segunda implicação diz respeito ao particula-
atingem Israel fazem-no descobrir uma servidão mais pro- rismo da revelação. É inaceitável para alguns espíritos que
funda: a injustiça social, a infidelidade que está no cora- Deus se tenha revelado a um povo particular: aos judeus,
ção do homem. A Aliança, é entendida inicialmente como antes que aos egípcios, aos gregos ou aos romanos. Toynbee,
um pacto que garante a proteção de Javé, desde que se
31 P. VAN lMSCHOOT, Théologie de l'Ancien Testament, I: 237-259;
30 TH C. VRIEZEN, An Outline of Old Testament Tbeology, pp. J. LEVIE, La Biblé, parole humaineet message de Dieu (Paris, 1958),
31-34; W. E1cHRODT, "Offenbarung und Geschichte im Alten Testament" p. 285. A Bíblia, mensagem de Deus em palavras humanas (São Paulo,
Tbeologísche Zeitschrift, 4 (1948): 322-323; P. GRELOT, Sens cbrétien 1963, p. 219).
de l'Ancien Testament, pp, 129-130; 259, 267, 273, 279; P. BENOIT, "Ré- 32 A. GELIN, art. "Messianisme", Suppl. au Dict. de la Bible, 5:
vélation et Inspiration", Revue Biblique, 70 ( 1963): 338-340. col. 1168.
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466 REFLEXÃO TEOLÓGICA HISTÓRIA E REVELAÇÃO 467


por exemplo, não recusa a idéia de uma revelação, resiste, a todos os homens. Ela vem por Jesus Cristo, mas o Cristo,
porém, à idéia de uma revelação a um povo privilegiado. por sua morte e ressurreição, torna-se o centro de uma co-
A encarnação de Deus, única e definitiva num povo, pare- munidade que rompe as fronteiras do tempo e do espaço.
ce-lhe arbitrária e inaceitável 33 • A revelação opera-se em Israel, tendo em vista, porém, sua
Não é nova essa dificuldade. Caricaturando, Celso já extensão às nações; concentra-se em Jesus Cristo, tendo em
fazia os cristãos dizerem: "É a nós que Deus se revela vista, porém, sua universalização 31 • Deve o Evangelho ser
e tudo manifesta. Não se importa com o resto do mundo. pregado a toda a criatura.
Somos os únicos com os quais mantém comércio" 34. Ini- Essa economia de mediação, de indivíduos e de povos,
cialmente devemos responder que se os fatos testemunham é uma constante na ação divina para que os homens es-
uma revelação a favor de· um povo antes que a outro, deve- tejam conscientes de sua comunhão na revelação e na sal-
mos registrá-los para sermos fiéis à história. Não compete a vação. Notemos ainda que a eleição de Israel, como media-
nós decretar a priori o que Deus deve fazer ou não fazer na dor da revelação, é principalmente eleição para uma respon-
economia da salvação. Ora, precisamente a tradição de sabilidade. No plano material, a eleição não trouxe para
Israel coloca-nos diante de um fato absolutamente único Israel ( a não ser num breve período) se não bem poucas
da história dos povos: o fato do profetismo e de um deter- vantagens. Israel não teve a potência dos grandes impérios:
minado profetismo. O contínuo progresso religioso de Is- conheceu, porém, a perseguição, a deportação., o exílio, o
real, durante séculos, sob a influência dos profetas, não ódio. A eleição de Israel como depositário e testemunha
encontra paralelos nos anais religiosos da humanidade; assim da Palavra significa principalmente obediência à Palavra.
como também o fato do Cristo e da Igreja, que se prendem· Privilégio pouco procurado por uma humanidade terrestre
ao fato do profetismo 35 • e carnal. Em seu conjunto, Israel mostrou-se infiel à Pa-
Realmente, o escândalo do particularismo da. revelação lavra. A esposa de Javé caiu em adultério. E o amor de
é inseparável de sua historicização. Se a revelação chega até Javé que brilhara na escolha de Israel, brilhou também em
nós pela história e na história, como um acontecimento, se- sua misericórdia para com a esposa infiel. A eleição não
gue-se que esse acontecimento está submetido às condi- é um escândalo, mas um mistério da graça.
ções da história: acontece aqui e não ali, agora e não de- 3. Uma terceira implicação é a validade duma revelação
pois, neste grupo e não naquele. Com a encarnação, parti- dada no tempo. Uma revelação que nos foi dada através
culariza-se mais ainda a revelação: não apenas acontece nesta da história, como poderá ser válida para todos os homens
comunidade, mas também nesta pessoa que viveu na Pales- e para todos os tempos? Como pode escapar ao relativismo da
tina e morreu no tempo de Pilatos 36 • Que o acontecimento, história? Mesmo afirmando que ela vem de Deus, será
porém, tenha acontecido em Israel e não no Egito ou na necessariamente recebida nas categorias de uma época, de
Grécia, isso permanece um mistério gratuito, que não se uma mentalidade. Portanto, como poderá entrar na histó-
explica nem pelo gênio religioso de Israel nem por sua fide- ria, a não ser mutilada, deformada, exposta a todas as vicis-
lidade às condições da Aliança ( Is 1,4). Acrescenta-se ainda situdes da história, que bem conhecemos? Parece ser essa
que a eleição é feita essencialmente em vista de um serviço. necessariamente a situação de uma revelação histórica 38 •
A revelação é confiada a Israel, mas por Israel deve chegar
33 A. ToYNBEE,
37 Ibid., pp. 111-114.
An Historian's Approach to Religion (New York 38 R. AUBERT assim apresenta essa objeção contemporânea: "Na
and London, 1956), pp. 135- 1 44.
34 ÜRÍGENES, Contra Celsum, IV, 23. idéia de verdade revelada, imutável, definitiva, vê-se um perigo para aquilo
35 A. RICHARDSON, Christian Apologetics (London, 1955), pp. 139-145. que é a grandeza e a força do humanismo atual, ou seja: para a percepção
quase trágica da complexidade da verdade, da imperfeição do pensamento
.36 C. H. Doun, La Bible au;ourd'hui, pp. 111-112.
humano. da necessidade de continuamente recriar o mundo dos valores
468 REFLEXÃO TEOLÓGICA
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 469
A objeção é grave e praticamente não teria resposta se guarda a sua palavra como um depósito que ela medita e
estivéssemos falando de uma doutrina humana. Por hipóte- continuamente assimila, sob a luz do Espírito. Concedemos
se, porém, não se trata de uma doutrina humana, mas de uma facilmente que sem esse Magistério divinamente estabeleci-
doutrina divina. Continua verdade, porém, que uma doutrina, do e sem essa assistência especial do Espírito, seria impos-
ainda que divina, se nos chega na história e pela histó- sível conceber uma doutrina, ainda que de origem divina,
ria, é afetada pelas condições da história. A revelação surge, que pudesse escapar às flutuações da história. .
porém, em condições tais que parece ter Deus previsto e O papel da Igreja é particularmente discermr na
resolvido essas dificuldades. revelação concreta o que é propriamente matéria revelada
Muito tempo antes preparou Deus o espírito do ho- e o que é elemento relativo implicado em qualquer expres-
mem que ele deve fecundar: pela eleição de um povo que são histórica. A doutrina sendo expressa mediante concep-
será o depositário da revelação, por uma longa, paciente ções de uma época, será preciso distinguir a verdade de seu
e progressiva preparação desse povo; pela intervenção con- meio de apresentação: é o que se dá com a doutrina da cria-
tínua de uma longa seqüência de profetas; por uma longa ção proposta mediante as concepções cosmológicas do hagió-
elaboração e purificação dos conceitos que servirão para grafo. Será necessário levar em conta o gênero literário usa-
exprimir a mensagem divina. Basta pensar nas noções de rei- do: é o que se dá com a doutrina do juízo final, apresen-
no, messias, aliança, salvação, justiça, pecado, lei etc. Sécu- tada através de descrições do gênero apocalíptico. Uma
los de história prepararam as categorias da revelação. E, expressão oratória dos profetas não pode ser tratada como
principalmente, a plenitude da revelação não nos foi dada uma expressão estritamente didática. A Igreja compete ex-
pelo intermédio, relativamente ordinário, de um profeta, mas plicar, interpretar a doutrina revelada segundo sua autên-
pelo meio extraordinárío do Verbo Encarnado. O Cristo é o tica significação e também aplicá-la para cada geração, de
Homem-Deus, perfeitamente conaturalizado, tanto com a modo que seja sempre autêntica e contudo sempre atual_.
linguagem humana como com o pensamento divino. Como Sem dúvida que um tal condicionamento é inaudito, úmco.
criador, domina o homem e não desconhece nenhuma de Mas o cristianismo e o Cristo não são casos únicos na his-
suas molas psicológicas, nenhum de seus recursos; domina tóri~? Se, pois, é verdade que uma revelação na história e
a história cujos meandros todos conhece. É ele, o Homem- pela história não poderia fugir às vicissitudes do vir ~ ~er
-Deus, que escolhe as analogias que valem como símiles do histórico, devemos contudo levar em conta as condiçoes
mistério divino. Ainda mais, não deixa sua doutrina entregue totalmente particulares dessa revelação: em sua preparação
aos acasos da história e da interpretação individual. Primei- ( eleição ) , em seu progresso (profetismo), em sua comu-
ramente protege sua transmissão com um carisma especial, o nicação definitiva ( O Cristo, Verbo encarnado), em sua
de inspiração; confia-a depois à Igreja munida do carisma transmissão (inspiração) e na sua conservação ( Igreja, ca-
da infalibilidade para conservar, defender, propor e interpre- risma da infalibilidade). A especificidade da revelação cristã
tar autênticamente a revelação. A Igreja, Esposa do Cristo, impede-nos assimilá-la às doutrinas humanas.
para adaptá-lo às novas possibilidades que surgem conforme a mudança
da situação e do mundo. O cristão parece ser, por vocação, reacionário V. CONCLUSÕES
e conservador. Ainda mais. Porque nós cristãos pretendemos ser os
únicos a possuir a verdade, e porque o erro não tem direitos, somos
acusados de intolerância e de simpatias para com a ditadura. A fé em Terminando, especifiquemos os diversos sentidos em
Deus destruiria em nós o senso da historicidade, levando-nos ao fixismo
do pensamento e à morte da consciência" (R. AUBERT, "Questioni attuali que podemos falar de revelação histórica:
intorno all'atto di Fede", em: Problemi e Orientamenti di Teologia 1. A revelação não acontece fora do tempo, nem num
Dommatica [2 vol., Milano, 1957], 2: 675-676). tempo mítico, no instante extratemporal dos primórdios: é
470 REFLEXÃO TEOLÓGICA

um a~ontecimento localizável no tempo. Pela revelação, 4.


Deus mtervém na história humana, e essa intervenção pode ENCARNAÇAO E REVELAÇAO
ser datada. A ação reveladora faz história.
2. A revelação não se apresenta como um ponto único
no desenrolar do tempo, mas como uma sucessão de inter-
venções descontínuas. É um acontecimento progressivo: a
revelação tem uma história, a história das iniciativas divinas
que fazem progredir a revelação, quantitativa e qualitativa-
mente, até a morte do último apóstolo. Nessa história, en-
contramos um ápice que é a vinda de Deus entre nós na A teologia contemporânea insiste muito na necessidade
pessoa do CristQ.. Apice que é um acontecimento incom- de estabelecer um nexo estreito entre a revelação e a Pessoa
preensívei a não ser em sua preparação através dos séculos. do Cristo. H. de Lubac: "Em Jesus Cristo, tudo nos foi
Os acontecimentos medem-se, e também se preparam mutua- ao mesmo tempo dado e revelado" 1 • L. M. Dewailly: "Je-
m~nte. Durante séculos Deus se aproxima do homem e o sus Cristo é a Palavra de Deus feita carne. . . Ele é, em
vai trazendo para . perto de si. A história da revelação é sua própria pessoa, a revelação de Deus, não apenas nos trou-
u~~ economia, uma disposição, um desígnio da sabedoria xe a revelação" 2 • G. Sohngen: "Jesus Cristo ... é sim-
d1vma. Tende para um fim, é uma teleologia. plesmente a própria Revelação, o próprio Deus revelado" 3•
· 3. A revelação realiza-se pela história, mas com a in- K. Rahner: O Cristo t "a epifania de Deus" em nossa his-
terpretação_ da pal~vr~. f\presenta-se como um complexo tória 4. J. Mouroux: Ele é "a epifania existencial de Deus" 5•
de aconte:imentos mdicat1vos de Deus e de seus desígnios R. Guardini: "O Cristo está no mundo como a epifania
d~ ~a~vaçao. Segue-se que a revelação é ao mesmo tempo do Pai" 6 • A teologia reclama também uma fidelidade mais
historia e doutrina. É doutrina sobre Deus mas uma dou- autêntica ao realismo da encarnação, uma fidelidade levada
trina constituída a partir de ações de Deus' na história. É às últimas conseqüências. Se a natureza humana do Cristo
um conhecimento essencialmente concreto. não é um disfarce, mas a "auto-expressão de Deus quando
Afinal, se a revelação, tanto no Antigo como no Novo seu Verbo é proferido com amor em o nada absoluto e sem
Testamento, chega até n?s na hi~tória e pela história, é por- Deus" 7 , se. pela encarnação houve verdadeira "in-humaniza-
que a palav~a de De1;1s e essencialmente uma palavra eficaz ção" de Deus 8, então é o homem enquanto homem que se
e sempre ativa. Realiza o que diz; cumpre o que promete. torna expressão do mistério de Deus. Segue-se que "todas
Se ~eus revela à humanidade seu plano de salvação, ele 0 as dimensões do homem, conhecidas e desconhecidas, de-
realiza ao mesmo _tempo. .(\. ordem noética é acompanhada
1 H. DE LUBAC, "Le probleme du développement du dogme", Recher-
pela ordem da açao e da vida. A Palavra vem sempre com
o poder do Espírito. _he de .science religieuse, 35 ( 1948): 157-158.
2 L.-M. DEWAILLY, Jésus-Christ, Parole de Dieu (Paris, 1945), p. 28.
3 G. SõHNGEN, Die Einheit in der Theologie (München, 1952), pp.
(1952), pp. 316, 354s, 359.
4 K. RAHNER, Écrits théologiques, I: 164.
5 J. MouRoux, L'expérience chrétienne (Paris, 1952), p. 193.
6 R. GuARDINI, Essence du christianisme ( trad. Lorson, Paris,
1947), p, 74.
7 K. RAHNER, "Réflexions théologiques sur l'Incarnation", Sciences
Ecclésiastiques, 12 ( 1960): 15.
8 H. URs VON BALTHASAR, "Dieu a parlé un langage d'homme", em
Parole de Dieu et liturgie (Paris, 1958), p. 73.
472 REFLEXÃO TEOLÓGICA
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 473
verão ser assumidas e utilizadas para servir de expressão à ao homem mediante encarnação, essa inteligibilidade apa-
Pessoa absoluta" 9 • É por suas ações, seus gestos, sua atitude, rece evidente, quer consideremos o mistério do ponto de
seu comportamento global, tanto quanto por suas palavras, ·vista de Deus, quer do ponto de vista do homem.
que o Cristo é perfeitamente revelação de Deus 10 • Primeiramente, Deus exprime a si mesmo, em si mes-
No Antigo Testamento, para a compreensão da revela- mo, para si mesmo: Ele se conhece em seu Verbo. E quan-
ção o problema central é o das relações entre revelação e his- do Ele se exprime ad extra, então essa expressão é a expressão
tória. Em o Novo Testamento, o problema central é o das desse Verbo imanente. Aquele que no seio da Trindade
relações entre encarnação e revelação, entre o Cristo e a já é a Palavra eterna de Deus é também quem a exprime
revelação. Qual é pois a relação entre o Cristo e .a revela- aos homens 12 • Aquele que no seio da Trindade já é o Filho,
ção? E, mais precisamente, como o Cristo utilizou os ca- isto é, puro dom de si mesmo ao Pai, é também quem tem
minhos da encarnação para revelar-nos Deus e seus desígnios a missão de manifestar aos homens sua condição de filhos.
de salvação? Nessa economia, qual a situação do Cristo, Que outra pessoa mais bem poderia revelar o Pai, senão
dos apóstolos, da Igreja? Há oposição entre revelação da essa Pessoa que é a perfeita Imagem do. Pai, a Palavrá que
pessoa e revelação da verdade? esgota o conhecimento que o Pai tem de si mesmo? E como
outra pessoa, que não o Filho, poderia revelar-nos nossa ati-
I. INTELIGIBILIDADE DE UMA ECONOMIA tude filial e ensinar-nos a adorar o Pai? Era sumamente con-
DE ENCARNAÇÃO PARA A REVELAÇAO veniente que à Verbo de Deus fosse o seu Revelador, que ·
o Filho do PaL seu Amém, iniciasse o homem em sua vida
Falando da economia de encarnação com relação à re- filial. Também os Padres gregos, como Justino, Irineu,
velação, santo Tomás declara tranqüilamente: da mesma ma- Clemente de Alexandria, Origines, vêem no Verbo, não só
neira que o homem, para comunicar seu pensamento, o re- o único Revelador de Deus, mas, em certo sentido, o único
veste de certo modo, com letras e sons, "assim também Revelador possível. Mais: sendo a revelação, revelação de
Deus, querendo manifestar-se aos homens, revestiu de car- pessoas e não de problemas, como salientamos anterior-
ne, no tempo, seu Verbo concebido desde toda a eternida- mente, somente uma pessoa poderia introduzir-nos no co-
de" 11 • Não é possível exprimir mais simplesmente a sobe- nhecimento do mistério trinitário.
rana conveniência duma economia de encarnação para a Por outro lado, o homem, carne e espírito, em
revelação. seu nível somente se pode comunicar mediante a corporei-
Demonstrar a conveniência de um mistério é manifes- dade. Convinha que Deus atingisse o homem nesse nível e
tar sua inteligibilidade, isto é, sua harmonia, sua coerência se dirigisse a ele mediante os sinais do corpo. Pela encar-
interna. Ora, em se tratando de uma revelação de Deus nação Deus tomou o suporte material que nos era neces-
sário para que sua presença nos fosse acessível. No Cristo
9 Ibid., p. 73. Deus tornou-se presente para nós de maneira humana, ao
1 º H. NIEBECLER, W esen und W irklichkeit der übernatürlichen Offen- mesmo tempo que se manifestava como Deus. O papel
barung, p. 155; H. URs VON BALTHASAR, La théologie de l'histoire (Pa-
ris, 1955), p. 193; R. GUARDINI, Essence du christianisme, p. 48; Id., desempenhado pelo gesto e pela palavra na presença ordi-
Die Offenbarung, ihr W esen und ihre Formen (Würzburg, 1940), pp. nária, foi desempenhado pela encarnação na ordem sobrena-
78-79; L.-M. DEWAILLY, Jésus"Christ, Parole de Dieu, p. 28;" P. BENOIT,
"Révélation et Inspiration", Revue Biblique, 70 ( 1963) : 340. tural da revelação. Em Jesus Cristo e por Jesus Cristo,
11 "Et sicut homo volens revelare se verbo cordis, quod profert ore, aquele que em Deus é a Verdade e o Amém do Pai, inter~
induit quodammodo ipsum verbum litteris vel voce, ita Deus, volens se
manifestare hominibus, Verbum suum conceptum ab aeterno, carne induit 12 K. RAHNER, "Réflexions théologiques sur l'Incarnation", Sciences
in tempore" (ln Jo., e. 14, lect. 2). Ecclésiastíques, 12 ( 1960): 14-15.
474 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 475

preta para nós o Pai (Jo 1,8) em palavras e gestos huma- A natureza humana .é a expressão do próprio Deus, "a auto-
nos: A Palavra eterna faz-se Evangelho. O Cristo diz hu- -expressão de Deus-para-fora-de-si-mesmo" 16 • O Cristo é Fi-
manamente o que Deus quer dizer de si mesmo. Do mes- lho de Deus até em sua humanidade. A segunda pessoa da
mo modo como percebemos a pessoa nos gestos e princi- ·Trindade é pessoalmente homem; esse homem é pessoalmen-
palmente nas palavras, assim também na vida, nos gestos te Deus. O Cristo é Deus de maneira humana e é homem
e nos ensinamentos do Cristo nós podemos ter acesso à de maneira divina. Deus é Caridade, mas é enquanto ho-
sua pessoa de Verbo, e por ele temos acesso ao Pai e. ao mem que ele o demonstra. Seu amor humano é a forma
Espírito. Nele conhecemos os mistérios da vida pessoal e humana do amor redentor de Deus, "vinda visível do amor
íntima de Deus 13 • de Deus" 17 • As palavras do Cristo são palavras humanas
Finalmente era muito conveniente que Deus le- de Deus; os atos do Cristo são os atos de Deus em forma
vasse a termo em o Novo Testamento essa economia de de manifestação humana. O Filho de Deus, com uma pa-
·encarnação que inaugurara de certo modo no Antigo Testa- lavra humana dirige-se ao homem, de pessoa· a pessoa.
mento, ao usar como instrumentos de sua revelação a pala- Entre os homens, todos os encontros espirituais reali-
vra e o psiquismo dos profetas. Com efeito, como com- zam-se mediante o corpo. É pelo éorpo e no corpo que o
preender que Deus tenha realmente podido falar pelos pro- homem se torna presente aos outros homens. O ·corpo é
fetas, se não pretendia inaugurar assim uma economia na o sinal que ao mesino tempo cobre e descobre a ·interiori-
qual usasse não apenas a palavra, mas todo o s~r do homem dade humana. Para os contemporâneos de Jesus, o encon-
que tem na palavra sua expressão mais perfeita? Se Deus tro pessoal com ele era pois o encontro com o Deus vivo.
usou realmente a linguagem do homem é que a economia Aquele que eles podiam ouvir e ver, mediante o sinal_ do
profética era a primeira etapa de uma economia de encar- corpo, era pessoalmente o Filho de Deus. O Cristo não era
. nação na qual Deus fosse pessoalmente assumir o que é pró- um Outro, era Deus. Atingir o Cristo pela sua humanida-
prio do homem. O mistério de Deus que usa os lábios e as de é atingir o Verbo de Deus. Era assim que são João po-
palavras dos profetas é. o mistério de Deus que começa entre dia testemunhar de sua experiência do Verbo de Vida ( lJo
os homens seu aprendizado de Verbo encarnado 14 • A en- 1,1-3 ). O Verbo apareceu, pois se encarnou; graças ao
carnação completa assim a economia de revelação do An- sinal de sua humru;iidade, João pode ouvir, ver, contemplar,
tigo Testamento 15 • tocar o Deus vivo.
Deus mesmo, em pessoa, concretamente se revelou no
II. PLENITUDE E REALISMO DA ENCARNAÇÃO Cristo: tal é o fato inaudito, decisivo que o Novo Testa-
mento proclama e se esforça por traduzir pela plenitude
É preciso insistir na plenitude e no realismo da en- de suas fórmulas nas quais o Cristo e o conhecimento de
carnação. A humanidade do Cristo não é uTT}a · simples apa- Deus estão indissoluvelmente ligados: "Deus, nestes últi- ·
rência, uma espécie de personagem da qual se servisse para mos tempos, falou a nós no Filho" ( Hebr 1,2). "A Deus
manifestar sua presença e dissimulá-la ao mesmo tempo. ninguém jamais viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus,
que está no seio do Pai" (Jo 1, 18 ) . "Nisto consiste a
13 A. BRUNNER, La personne incarnée, pp. 272-273; E. R ScHLLE- vida eterna: que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus,
BEECKX, Le Christ, sacrement de la recontre de Dieu ( Paris, 1960), pp.
40-41, 55, (Trad. Cristo Sacramento do Encontro com Deus [Petrópolis, e a aquele que enviaste, Jesus Cristo" (Jo 17 ,3). A graça
1967], pp. 22-23, 35-36); W. TEMPLE, Nature, Man and God (London,
1956), p. 319. 16 K. RAHNER, "Réflexions théologiques sur L'lncarnation •, Sciences
14 b.ENAEUS, Adversus Haereses, IV, 12, 4. . Ecclésiastiques, 12 (1960): 15. ·
15 G. MARTELET, "L'homme comme parole et Dieu comme révélation" . 17 E. H. ScHILLEBEJ;CKX, Le Christ, sacrement de la ,encontre de
Cahiers d'études biologiques, n. 6-7 (1960), pp. 177-180. ' Dieu, p. 39, (Cristo Sacramento do Encontro com Deus, 20).
476 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 477
de Deus "manifestou-se agora pela aparição de nosso Sal- concretamente entendida - é a revelação do Filho e, por
vador, Cristo Jesus, que destronou a morte e fez resplan- ele, do Pai.
decer a vida e a imortalidade por meio do Evangelho"
( 2Tim 1, 1O) . Realiza-se a salvação "pelo conhecimento de
Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo" (2Pdr 1,2; Tit 2,11; III. REVELAÇÃO MEDIANTE A ENCARNAÇÃO
lTim 3,16). Também no Cristo apareceu a agape de Deus
( Rom 5,8; lJo 4,9), isto é, "a bondade de Deus nosso Sal- Se o Filho se encarna para revelar, devemos afirmar
vador e seu amor pelos homens" "apareceu" para nós ( Tit que todos os recursos da natureza humana serão assumidos
3 ,4). Foi necessária a realidade do Cristo para que esse por ele para servirem de expressão à sua Pessoa de Filho
amor estivesse efetiva e propriamente presente entre nós. de Deus. Portanto, as palavras do Cristo, seu ensinamento,
No Cristo, Deus mesmo deu-se ao homem sem reservas e e também suas ações, suas atitudes, seu comportamento,
por meios humanos: seu amor divino veio até nós em um toda sua existência humana será perfeitamente utilizada para
coração humano. É essa plenitude da encarnação que os revelar-nos as profundezas do mistério divino.
santos Padres exprimem em sua forma ao mesmo tempo Essa afirmação está de acordo com o modo concreto
concisa e concreta: "O conhecimento de Deus é Jesus Cris- de agir do próprio Cristo. O método que o Mestre adotou
to", diz santo Inácio de Antioquia 18 • Ou ainda: "Não exis- para formar seus apóstolos foi o dos doutores da Pales-
te senão um Deus, manifestado por Jesus Cristo seu Filho, tina. O discípulo não abandonava seu mestre; ligava-se a
que é a Palavra saída de seu silêncio" 19 • Conforme santo ele, observava-o, gravava na memória suas atitudes, suas res-
Irineu, a revelação é a epifania do Pai através do Verbo postas, seus conselhos. Não perdia nenhum gesto, nenhuma
encarnado: "Pelo Filho, feito visível e palpável, apareceu palavra. O Cristo não introduziu inovações. Aceitou a tra-
o Pai" 20 • dição do ambiente. Principalmente guardou o contato, a
Isso, porém, não quer dizer que a revelação se iden- vida em comum do mestre com seus discípulos. Os apósto-
tifique com o simples acontecimento objetivo da encarna- los estão sempre com ele: acompanham-no nas viagens, as-
ção do Verbo. O mero fato do aparecimento de Deus en- sistem aos milagres, participam em sua ação. Ouvem sua
carnado em nosso mundo, ainda não é a revelação. Redu- palavra, pois que ele é o Mestre que fala com autoridade:
zir assim a revelação da história seria declarar inútil a eco- explica-lhes a lei, descobre-lhes o sentido das parábolas,
nomia duma revelação mediante a Encarnação. Semelhan- inicia-os nos mistérios de sua pessoa e no conhecimento
te revelação seria apenas uma ação, sem qualquer nexo com do Pai. As ações e os gestos, porém, acompanham e su-
a nossa consciência: permaneceria incognoscível. Mais pro- blinham o ensinamento como um comentário contínuo. O
priamente, a encarnação é o caminho escolhido por Deus Cristo ensina aos apóstolos que eles são filhos do Pai e
para revelar e se revelar. Tem por fim tornar possível, ao que se devem comportar como tais na oração, no jejum,
nível do homem, o conhecimento de Deus e de seu desígnio na provação, na perseguição, e mesmo quando caem e quan-
de salvação. É dada para que Deus exprima ao homem, em do se levantam. Mas, ao mesmo tempo, por sua atitude
todas as dimensões humanas - em tempos humanos e em ges- quando reza, por sua submissão constante à vontade do Pai,
tos humanos - o conhecimento e o amor do único Verdadei- mostra de maneira visível e vivida o comportamento que
ro. Portanto, é legítimo dizer que a encarnação do Filho - lhes ensina. A misteriosa inclinação do amor de Deus para
com os pequenos, com os pobres, e os pecadores, aparece
claramente nas parábolas do Cristo. Muito mais concreta-
18 Ef 17,2.
19 Magn. 7,2. mente, porém, em seus gestos de bênção, de cura, de per-
20 Adversus Haereses, IV, 6, 6. dão, em suas tentativas junto aos publicanos e às pecado-
478 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 479

ras. Os princípios da moral hova ( humildade, doçura, pa- seu alcance salvífico e os manifesta aos apóstolos como
ciência, caridade, perdão) iluminam-se com os gestos do Mes- objeto do testemunho divino.
tre, manso e humilde de coração, que serve a seus discí- A palavra do Cristo é pois o elemento formal neces-
pulos e lava-lhes os pés, em seu olhar cheio de amor para sário da revelação. Isso por diversos títulos. Primeiro
Pedro e Judas, em sua paciência e doçura sob os escar- porque Deus, assumindo a ht1manidade, assume ao mesmo
ros e os ultrajes, e principalmentt! em sua paixão e morte. tempo a palavra como expres.são privilegiada entre os ho-
"Ele passou fazendo o bem" (At 10,38). "Dei-vos o exem- mens: a mais espiritual e a mais perfeita. Assim Deus nos
plo" (Jo 13,15). diz com palavras inteligíveis o que está realizando. Segundo,
A revelação, portanto, realiza-se seguindo uma dupla porque estando a verdade no juízo, e não na simples apre-
sentação dos acontecimentos, é pela palavra que se expri-
linha de manifestação: por palavras e por ações, por pala-
m~ o juízo, que une sujeito e predicado. Terceiro, porque
vras e por gestos; as palavras explicitando os gestos,
obJeto da revelação não são apenas os fatos históricos,
as ações, descobrindo seu mistério profundo; os gestos e as
mas também os mistérios: mistérios da Trindade, da filia-
ações, por sua vez, encarnam as palavras e lhes dão um
ção divina do Cristo, de nossa participação na vida da Trin-
valor de vida. Nessà _ação conjunta do facere e do docere
dade. Todos esses mistérios podem ser atestados apenas
a serviço da revelação devemos dizer que é a palavra que
tem o primado, assim como na expressão humana. É a pel~ palavra. Quarto, porque as ações, os gestos, os acon-
palavra humana do Cristo, que nos fala pata se explicar, que tecimentos, os mistérios da vida do Cristo não podem ser
cridos com fé divina a não ser que sejam apresentados como
nos manifesta o acontecimento e o sentido da encarnação.
O Cristo é ao mesmo tempo acontecimento e intérprete objeto do testemunho divino. Atestação que é feita pela
palavra do Cristo.
do acontecimento. O mistério de sua pessoa, e de sua mis-
são, Cristo declara-o progressivamente, cóm muito tato, mas
o fato de ele ser Deus e enviado de Deus é atestado por IV. PROPOSIÇÃO HUMANA E VERDADE DIVINA
sua palavra humana. Que adiantariam os gestos de Cristo
na ceia, sem as palavras que mostram o seu valor de re- A encarnação parece resolver a mais grave e aparen-
denção? É por suas ações e por seus gestos, mas princi- tement~ única dificuldade da revelação, ou seja, a de uma
palmente por suas palavras, que o Cristo testemunhou a comurilcação autêntica do desígnio divino para o espírito
respeito do Pai e de si mesmo. As ações do Cristo são, etn humano. Com efeito, o Cristo é a Testemunha qualificada
o Novo Testamento, correspondentes aos acontecimentos dos mistérios divinos, pois sua revelação deriva da própria
da história na revelação profética. Não se tornam plena- visão que o Filho tem do Pai. E também Ele que vê, é ao
mente reveladoras a não ser pela palavra do Cristo que lhes mesmo tempo Deus e homem, conaturalizado tanto com o
declara o sentido e as interpreta. O acontecimento da encar- modo humano de falar como com o pensamento divino.
nação, que podemos chamar revelação "em primeiro grau", Verbo_ de Deus, não fala a nossa linguagem; fala somente
deve completar-se pela revelação-palavra que é seu comen- ao Pai; mas o Verbo encarnado pode falar-nos. E é a mes-
, . 21 . A reve1ação como acontecimento supõe
, . necessano
t ano ma Pessoa que vive no seio do Pai e exprime em ter-
a revelação como palavra 22 • Fatos, ações, gestos, compor- mos humanos o que sabe. A união de naturezas na uni-
dade da Pessoa possibilita a passagem do plano divino ina-
tamento do Cristo, dependem de sua palavra que exprime
c~ssíyel, ao plano humano e ao mesmo .• tempo gara~te a
21 E. ScHILLEBEECKX, "Parole et sacrement dans l'~glise", Lumiere
fidelidade da transmissão. O Cristo é o perfeito Vidente-
et Vie, 9 (janv.-mars 1960): 28-29. -Deus que exprime em linguagem humana o que vê. Efe-
22 E essa palavra é também acontecimento. tua-se pois a passagem da visão divina à expressão humana.
480 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 481
Mas, de fato, essa resposta apenas levanta outra difi- cio 26 • A analogia nega ao mesmo tempo que a palavra di-
culdade, mais fundamental ainda. Se a revelação chega até vina seja da mesma natureza da palavra humana, e que
nós mediante noções e proposições humanas, como podem seja ·uma palavra sem qualquer relação com a palavra hu-
essas noções e proposições dar-nos acesso ao mistério di- mana, incapaz, portanto, de estabelecer qualquer diálogo
vino? Como é que uma proposição humana, congenital- verdadeiro .
mente composta de termos tomados ao mundo das criaturas, . Porque Deus fei todas as coisas e particularmente a
pode pretender conter, e de certa forma "encarcerar", uma natureza humana, como um reflexo de sua própria perfeição,
verdade divina e dizer: isso é, ou isso nãó é? Com outras todas as coisas têm sua fonte em Deus, e porque por isso
palavras: como pode Deus garantir a verdade duma afir- é possível uma relação entre Deus e o homem. A revelação
mação essencialmente composta de ingredientes humanos? 23 pela palavra pressupõe a linguagem da criação feita por
Karl Barth responde que a verdade da afirmação hu- Deus, do mesmo modo como a graça tem seu apoio em a
mana, isto é, a correspondência entre o discurso humano e natureza intelectual e espiritual do homem. Portanto, não
a realidade divina, é garantida apenas pela graça da revela- é apenas porque foram escolhidos pelo Cristo que nossos
ção. Nossos conceito e nossos termos humanos, enquanto nos 0
conceitos e nossos termos humanos são válidos para enunciar
sos, são inteiramente incapazes de exprimir a Deus e seu mis- o mistério: é antes porque eles têm uma relação com o Ser
tério. Sua aptidão a serem verdadeiros vem apenas da re- Divino que o Cristo os pôde utilizar.
velação 24 • Essa resposta não resolve o problema. Tem ra- Não há dúvida que a revelação mediante a encarnação re-
zão o P. H. Bouillard quando observa: "Apoiados ou não presenta um caso privilegiado. Em Jesus Cristo o próprio
pela revelação, conceitos e termos que atribuímos a Deus Deus se manifesta a nós como vivendo em nosso mundo,
são nossos, são humanos. Trata-se de saber como um dis- como unia pessoa que podemos conhecer e com quem po-
curso humano, mesmo baseado na Bíblia, pode referir-se a demos comunicar diretamente como com qualquer outra
Deus. Dizer que se refere em virtude da revelação, isso é pessoa humana. Por isso as palavras do Cristo trazem a
responder à pergunta com a mesma pergunta. . . A ten- marca da visão direta, interior (Jo 1,18; Lc 10,22; Jo 5,20).
tação seria dizer que o autor superpõe uma unívocidade por Para o Cristo, o conhecimento de Deus é um bem de família,
graça à equivocidade natural" 25 • que divide com o Pai e o Espírito, que ele comunica a quem
A revelação, mesmo feita por Cristo, não é imaginável ele quer.
a não ser que tenha por base a analogia, com seu processo de No conhecimento natural de Deus o ponto de partida
negação e superação. Quem não aceita a analogia deve tam- está na criatura como tal. No Cristo, porém, o conheci-
bém recusar a revelação. Pois a revelação supõe dois ter- mento de Deus procede da própria Pessoa de Deus: "o Pai
mos ( Deus e o homem) que ao mesmo tempo se aproximam e eu somos um" (Jo 10,27-30;14,6;8,58). É a partirdes-
e se distinguem. Se é impossível a distinção entre Deus e se conhecimento que o Cristo condescende, isto é, desce
o homem, estamos reduzidos ao monismo. Se, pelo contrá- ao nível daquele que ele quer atingir, escolhendo em nosso
rio, for impossível a aproximação entre Deus e o homem, mundo as realidades que têm valor de símiles para o mis-
então estamos reduzidos ao agnosticismo absoluto ou ao
transcendentalismo absoluto que condena Deus ao silên- 26 H. W. ROBINSON observa com justeza: "If, in our desire to exalt
God, we make Him the "altogether other", we leave it impossible for
23 A. Durand. "Incarnation et christocentrisme", Nouvelle Revue théo-
Him to communicate with man. However transcendent God is, the point
at which He reveals Himself to us must be a point at which He becomes
logique, 69 (1947): 482-483; P. RousSELOT, art. "lntellectualisme", Dic- intelligible to us, that is, a point at which there is a kinship between His
tionnaire apologétique de la Foi catholique, 2: 1075-1076. nature and ours. This is a principle which some theologies have ignored
24 H. BoUILLARD, Karl Barth (3. vol., Paris, 1957), 3: 210.
25 Ibid., 3: 210.
or denied, notably the present-day Barthianism" (Redemption and Reve-
lation (London, 1947), p. 165).

16 • Teologia da revelação
482 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 483
tério divi~o. Por exemplo: o Cristo, contemplando as ri- mem pode apenas receber .o testemunho daquele que em
quezas da vida divina, que comunic,a t?da sua r~ali~ade ~em si manifesta a glória de Javé no esplendor dos sinais.
nada se reservar, a não ser a propna comumcaçao, disso Portanto, se a afirmação humana do Cristo pode pre-
encontra nas criaturas uma imagem longínqua, mas real: a tender "conter" a verdade divina, deve-se isso à analogia que
comm;iicação orgânica que constitui a um pai e a outro fi~ho. autoriza o emprego de noções humanas e à presença entre
Paternidade e filiação: duas analogias reveladas, escolhidas nós daquele cujo conhecimento nasce da visão e que com
pelo Cristo, que, têm, portanto, o caráter necessário e nor- exclusividade pode dizer: est e non est; É a analogia que
mativo de analogias impostas pelo próprio Deus. Essas legitima o uso dos termos da proposição; é a qualidade de
analogias reveladas despertam a reflexão humana que pro- Filho do Pai que permite ao Cristo uni-los em juízos con-
cura purificá-las e transfigurá-las para poder entrever algu- formes à realidade do mistério divino.
ma coísa das profundezas da vida divina. Trabalho que é
. •
feito sob a direção d a IgreJa que aprova, corrige ou recusa .
27

O fato é que as noções escolhidas pelo Cristo para in- V. SITUAÇÃO DO CRISTO
troduzir-nos no mistério divino são noções humanas. O
Cristo tomou-as da linguagem humana, da ime_nsa varie~a- A encarnação estabelece entre o Cristo, os apóstolos
de das realidades criadas. É a partir dessas realidades, obJe- e a Igreja, com referência à revelação, relações que devemos
tos da experiência humana, que se operam a purificação e agora definir. O Cristo é ao mesmo tempo Deus que re-
a ampliação provocadas pelo impulso da revelação .. Se essas vela e Deus revelado, caminho e sinal da revelação, res-
realidades, ainda que deficientes, não tivessem ~enhuma re- posta à revelação.
lação com o mistério do Ser divino, então, o diálogo entre O Cristo é Deus que revela, pois o Verbo de Deus,
Deus e o homem seria, de fato, apenas dois monólogos o Filho, Jesus Cristo, é tudo uma só realidade. ":Êle é a
paralelos, sem nenhum ponto de contato possível. O Cristo imagem do Deus invisível" (Col 1,15; 2Cor 4,4), "irra-
pôde utilizar todos os recursos do universo criado para nos diação do seu esplendor e cunho da sua substância" ( Hebr
fazer conhecer Deus e os hábitos divinos, porque a palavra 1,3), ontologicamente qualificado para revelar o Pai, de
criadora precedeu e fundamentou a palavra revel~dor~, por- quem é, de certa forma, a eterna revelação. O Cristo é
que ambas têm como princípio a mesma Palavra mterior de causa e autor da revelação, pois a revelação origina-se tanto
Deus. A revelação do Cristo supõe a verdade da analogia 28 • do Cristo como do Pai e do Espfrito. É ele a luz que bri-
A revelação do Cristo não se compõe apenas de ana- lha e faz ver (Jo 8,12;9,5;1,9). Deus, Verbo de Deus,
logias reveladas: compreende também juízos que ligam es- Palavra de Deus, Filho único do Pai, ele nasceu para re-
sas· analogias entre si. Por exemplo: O Pai e o Filho são velar, para dar ao mundo a plenitude da revelação 29 •
um. A verdade desse juízo escapa completamente à evi- O Cristo, sendo o Deus que revela, é ao mesmo tempo
dência ou à demonstração humana. Uma tal perfeição não é o Deus revelado. O Deus verdadeiro que ele ensina é o Deus
participada nem participável por nenhuma criatura. O ho- por ele anunciado e nele reconhecido, assim que ao confessar
21 C. DE MoRÉ-PONTGIBAUD, Du fini à l'infini (Paris, 1957), pp.
o Filho confessamos também o Pai. O Cristo é ao mesmo
121-131; M.T.-L. PENIDO, Le róle de l'analogie en théologie. dogmat~q1:'e tempo o Deus que fala e o Deus do qual se fala, a testemunha
(Paris 1931) pp. 244-247, (A Fúnção da analogia em te()logza dogmatzca e o objeto do testemunho, autor e objeto da revelação, aque-
(Petrópolis, Í946), Y. CoNGAR, art. "Théologie", DTC 15: col. 473-474;
Id., La foi et la théologie (Tournai, 1962).
28 Evidentemente supõe também que o espírito humano é apto para 29 Observa santo Tomás: "Christus enim est ipsum Lumen com-
conhecer e significar a realidade objetiva das coisas, para abrir-se a tudo ~rehe1;1dens, i~mo ipsum Lumen existens. Et ideo Christus perfecte tes-
aquilo que tiver valor de ser e de verdade. t1mo01um perhibet et perfecte manifestat veritatem" (ln ]o., c. 1, lect. 4).

1

484 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 485


le que revela o mistério e o próprio mistério em Pessoa. tempo transparecer aos nossos olhos a transformação da
Enquanto Verbo encarnado, ele é a expressão que revela; humanidade, realizada pela invasão da graça. É, em Pessoa,
enquanto Verbo ~e Deus, é em Pessoa ~ Verdade que _ele o Homem novo que ele anuncia, totalmente vivificado pelo
prega e ensina. E a verdade que nos liberta da mentira, Espírito.
o Amor que nos livra da solidão de nosso egoísmo. "Ele • Finalmente, o Cristo é a perfeita Resposta que a hu-
é a Verdade e a Vida" (Jo 14,6), a Verdade que nos en- manidade dá à revelação. Ao movimento descendente da
sina (Tit 2,12). "Ouvi-o", diz-nos o Pai (Mt 17,5). revelação corresponde um movimento ascendente, que vai
Sob esse ponto de vista, o Cristo não pode ser comparado com do Cristo ao Pai. O Cristo é ao mesmo tempo revelação
Buda Confúcio Maomé ou qualquer outro fundador de do amor do Pai e resposta a esse amor. É a realização pro-
religião. Nas o~tras religiões ~ doutrina e, s~u objeto 1is- totípica, suprema, perfeita da resposta humana de amor ao
tinguem-se do fundador. Aqui, pelo contrario; ~ dou~rma apelo divino do Pai. O Cristo estabelece com o Pai esse
do Cristo tem o Cristo por obJeto. Nossa fe e a fe no diálogo harmonioso que é a norma de toda resposta e de
Cristo como Deus. A salvação é uma opção a favor ou con- todo encontro com Deus. Por seu comportamento humano de
tra o Cristo. "Jesus Cristo, dizia Pascal, é o objeto de tudo, Filho que faz sempre a vontade do Pai, ele é o protótipo
o centro para o qual tudo tende" 30 • da atitude filial da humanidade adotada pelo Pai. É o per"
O Cristo é o caminho da revelação (Jo 14,5-6; Mt 11, feito adorador do Pai.
27), isto é, o meio escolhido por Deus para nos manifes- O Cristo é, pois, a Plenitude da revelação. Nele culmi-
tar o que ele é ( Pai, Filho e Espírito) e o que nós somos na a revelação como ação, como economia, como mensagem
( pecadores chamados à vida) . Ele é o caminho que nos e como encontro.
revela a vida e o caminho da vida. No Antigo Testamento
Deus utilizou-se do psiquismo dos profetas para se fazer co-
nhecer; agora, une-se hipostaticamente à natureza hum~na VL SITUAÇÃO DOS APóSTOLOS
e manifesta seu desígnio de vida pelas palavras, açoes,
gestos, atitudes, comportamento do Cristo. Em Jesus Cris-
to a Palavra eterna e interior de Deus ressoa para fora e Na economia da encarnação da revelação os apóstolos
se' faz ouvir pelo homem mediante a carne. De agora em ocupam lugar único com relação ao Cristo e à Igreja 31 •
diante todo o conhecimento do verdadeiro Deus e toda sal- São as testemunhas privilegiadas, "de antemão desig-
vação, chega-nos mediante o Cristo. nadas" (At 10,41 ), "escolhidas" (Rom 1,1) para serem
O Cristo é o Sinal da revelação: sinal ao mesmo tempo 31 Nota PH.-H. MENOUD: "II ne suffit pas, pour sauver le monde,
confirmativo ( motivo de credibilidade) e figurativo ( sím- que Jésus soit mort et ressuscité; il faut, que Jésus des témoins et
bolo) . A glória do Deus onipotente e três vezes santo re- ·que ces témoins parlent. S'il s'agit de propager une religion philosophique
pousa sobre o Cristo e designa-o como aquel: que se dec_lara comme l'était la sagesse stoicienne commune de l'âge hellénistique, des
prédicateurs et des maitres suffiraient à la tâche. Pour annoncer aux
igual ao Pai. Pela sublimidade de sua doutr~na, relo brilho hommes qu'ils sont suavés, non par une doctrine intemporelle, mais par
de sua santidade, pelo poder de suas obras, 1st~ e, p_elo_ res- une intervention de Dieu dans l'histoire, par des faits qui ont eu liéu une
plendor de seu ser e de seu agir, o Cristo faz sinal, md1can- fois pour toutes, à un mom.ent donné et en un lieu donné, il faut des té-
moins, c'est-à-dire des honunes qui étaient présents lorsque ces faits sont sur-
do que é verdadeiramente o que pretende ser: Deus entre venus et dont la prédication se fonde sur ces mots: "Nous avons vu". La
os homens, e que seu testemunho é verídico. É em Pessoa, révélation chrétienne comporte clone nécessairement ces deux faces: d'une
part, l'oeuvre rédemptrice accomplie par Jesus et, d'autre part, le témoignage
o motivo de credibilidade por excelência. Deixa ao mesmo rendu au Ressuscité par ses disciples ... C'est clone dire que l'Église est
fondée à la fois sur l'oeuvre du Christ et sur le témoignage des apôtres"
30 BRUNSCHVICG, fr. 556. ("Jésus et ses témoins", Église et Tbéologie, juin 1960, p. 1).
486 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 487
"ministros da palavra" ( Lc 1,2) e "fundamento" da Igreja objeto o Cristo vivo, é essencial que a recebamos do pró-
(Ef 2,20,21 ). São Doze, como os doze patriacas e as doze prio Cristo e de suas testemunhas vivas. Os apóstolos são
tribos de Israel. Constituem o germe do novo povo que o os que viram, ouviram, tocaram o Cristo, antes e depois
Cristo conquistou com seu sangue, e desse povo eles serão os de sua ressurreição (At 10,41 ), que estiveram com ele
pastores (Jo 21,15-17; Mt 10,6; lPdr 5,2-3; lCor 9,7). "desde o começo" (Jo 15 ,27 ) , desde o batismo de João até
O Cristo chamou-os, reuniu-os, para que estejam com êle: a ressurreição ( At 1,22). Essa primeira experiência tor-
companheiros de viagem, ouvintes de sua palavra, teste- nou-se mais profunda com a vinda e o dom do Espírito.
munhas de suas ações. Os apóstolos seguiram-no (Mt 1,29); Num primeiro tempo, os apóstolos, de olhos carnais e ain-
ficaram com ele em meio às tentações ( Lc 22,28), mesmo da mal abertos, caminharam com o Cristo de Nazaré sem
quando os outros o abandonavam ( Jo 6,66). O Cristo compreendê-lo bem. Depois, num segundo tempo, sob a
fez deles seus colaboradores íntimos, confiou-lhes seus pode- luz do Espírito, releram todos os acontecimentos antes vi-
res e sua missão. Filho do Pai, deu-lhes a conhecer tudo que vidos em sua companhia (Jo 14,20.26;16,12-13 ). Com-
aprendera de seu Pai (Jo 15,15). Manifestou-lhes o nome preenderam então o que lhes fora impossível compreender
do Pai, deu-lhes as palavras e a doutrina do Pai ( Jo 17 ,6. antes da paixão, da ressurreição e da efusão do Espírito. O
8.14). Assim como fora enviado pelo Pai para pregar, que agora transmitem à Igreja são as palavras e as ações
expulsar os demônios e curar toda enfermidade, assim tam- do Cristo, com a compreensão, porém, que lhes vem da
bém enviou seus apóstolos para pregarem e expulsarem ação iluminadora do Espírito e da experiência da própria
os demônios ( Me 3, 13-15 ) , curando toda enfermidade ( Mt vida da Igreja 33 • É tudo isso, palavras e ações do Cristo
10 ,40-41; Lc 10, 16) . Sua missão é uma participação na mis- compreendidas progressivamente pelos apóstolos, que tem
são que o próprio Cristo recebera dó Pai. Já Clemente de para nós valor de revelação e constitui o objeto de nossa
Roma, em sua Carta, apresentava assim essa continuidade fé. Desde o início de nossa fé acreditamos naquilo que,
entre a missão do Cristo e a dos apóstolos: "O Cristo vem para os apóstolos, foi o termo de uma reflexão. Partici-
de Deus e os apóstolos vêm do Cristo" (42,1-4 ). Tertu- pamos do conhecimento pleno ao qual chegaram pelo Es-
liano fala da doutrina que "as Igrejas receberam dos após- pírito Santo.
tolos; os apóstolos, do Cristo; o Cristo, de Deus" 32 • Ninguém pode rivalizar com os apóstolos no conheci-
O Cristo não veio para escrever um livro ou criar um mento do Cristo. Momento único na história da revelação.
novo sistema filosófico. Veio para fundar uma religião Plenitude e frescor do primeiro amanhacer da nova cria-
cujo centro e objeto é ele mesmo em pessoa. Se a revela- ção 34 • Evidente que os apóstolos não tiveram o conhe-
ção realizou-se pelo encontro com o Deus vivo, em Jesus cimento explícito que a Igreja tem atualmente. Em
Cristo, então somente poderão ser mediadores autênticos compensação, porém, pela intensidade, profundidade, ri-
da revelação os que foram testemunhas de sua vida, inicia- queza de intuições, e totalidade, o seu conhecimento do
dos no. mistério de sua Pessoa. Sem eles não podemos
atingir o Cristo. Quem se separa deles perde o contato com 33 Tiveram assim os apóstolos completo conhecimento conceptual da
o Cristo. revelaçJ<?, de um mo~o ª.l?ropriado_ à sua missão de comunicar à Igreja
Ora, só os apóstolos tiveram do Cristo uma experiên- o deposito total da fe. Tiveram amda uma compreensão privilegiada do
depósito, graças à iluminação do Espírito que os fazia penetrar até às
cia viva, direta. Se o Cristo tivesse escrito um livro, os profundezas divinas (lCor 2,10).
homens teriam deixado o Cristo e os apóstolos por seu 34 Esse pensamento foi expresso pelos Santos Padres: Irineu (Adv.

livro. Como, porém, a Boa-nova tem como autor e como Haer., III, 1-2), Tertuliano (De Praescr., 22), Epifânio (Haer., 66, n. 61),
e também por Sto. Tomás: "Qui fuerunt propinquiores Christo vel ante
sicut Joannes Baptista, vel post, sicut apostoli, plenius mysteria fidei cogno'.
32 De praescr., 21, 4. verunt" (la 2ae, q. 106, a. 4; 2a 2ae, q. 1, a. 7, ad 4; q. 171, a. 1, ad 1).
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488 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 489

Cristo e da revelação supera todo conhecimento . atual ou senão o testemunho de quem viveu com ele. Daí essa pro-
futuro. Como afirma C. Journet, eles tiveram um· "conhe- clamação solene do apóstolo: ele dá um testemunho para
cimento supremo, excepcional, que englobava, numa intuição fazer que os homens participem de sua experiência pessoal
superior o sentido explícito imediatamente perceptível do do Cristo, Filho do Pai, e possam, através dessa experiên-
depósito por eles entregue à Igreja primitiva"; conheci- cia, participar .do mistério da vida eterna: "O que era des-
mento que "superava também tudo que a Igreja, assistida de o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos
pelo Espírito, poderia descobrir ao longo dos séculos, expli- olhos, o que contemplamos e tocamos com as nossas mãos,
citando e desenvolvendo esse primeiro depósito" 35 • ou seja, o Verbo da vida, - porque a Vida apareceu e nós
Dessa plenitude de experiência, os apóstolos não trans- a vimos e, por isso,. atestamos e vos anunciamos a Vida
mitiram tudo, nem o podiam transmitir. Sua pregação não eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu - o que
podia "esgotar" aquilo que há de inefável em qualquer · vimos e ouvimos, anunciamos também a vós, para ·estardes,
encontro pessoal. Tanto mais que não quiseram transmitir vós também em comunhão conosco" ( 1Jo 1,1-3 ). Graças
tudo (Jo 20,30 ). Transmitiram pelo menos o essencial das ao sinal da humanidade do Cristo, são João pôde ouvir,
palavras e das ações do Cristo: aquilo que propriamente ver, contemplar o Deus vivo. Como poderiam os cristãos
constitui a economia da salvação ( res fidei et morum). participar dessa experiência?. Mediante o testemunho apos-
Transmitiram o ensinamento do Cristo com a máxima fide- tólico e a fé nesse testemunho (Jo 1,3;4,14-15; Jo 19,35).
lidade humanamente possível ( o que não quer dizer trans- É através da pregação objetiva do apóstolo, subjetivamente
missão "estenográfica" ) , no contexto de uma· comunidade acolhida pela fé e praticada pelos mandamentos, que os cris-
cristã viva, para quem a doutrina do Cristo é uma doutrina tãos entrarão em comunhão com o Verbo da Vida. Como
de vida, capaz de esclarecer situações novas, de resolver observa Ph.-H. Menoud, os apóstolos são "os intermediá-
problemás imprevistos. Transmitiram as ações do Cristo rios obrigatórios entre o Cristo vivo e os homens desti-
com probidade e fidelidade ( o que não quer dizer fideli- nados a terem parte na salvação realizada pela vida, morte
dade fotográfica), levando em conta os ouvintes e os e ressurreição de Jesus. Mesmo quando essas testemunhas
. ambientes. inauguram o tempo da Igreja, pregando segundo sua voca-
A ação que dá a existência ao objeto de nossa fé e o ção, pertencem elas ainda ao tempo da revelação pelo nexo
constitui, isto é, lhe permite ser para ser crido, é o teste- especial que as une ao Cristo. Seu ministério é o último
munho apostólico, o depoimento dos que viram e ouviram ato da revelação anunciada por João Batista" 36 •
o Cristo e atestam o que dele viram e ouviram, sua morte A experiência que os apóstolos tiveram do Cristo é
e sua ressurreição ( At 4 ,3 3 ) , mas também toda sua vida levada ao conhecimento dos homens pelo testemunho e
(At 10,39) e toda sua obra de salvação (At 5,31ss;10,42). pelo quérigma apostólico. O conteúdo desse testemunho
é a Boa-nova, a mensagem da salvação, a palavra de ver-
dade, a palavra, ou simplesmente o Cristo. A ação que
VII. A SITUAÇÃO DA IGREJA corresponde à de testemunhar, pregar, evangelizar, é a de
É pois diversa a condição dos apóstolos e a da Igreja. 36 " •.• les intermédiaires obligés entre le Christ vivant et les hommes
Essa diferença de condição aparece claramente na primeira destinés à avoir part au salut réalisé · par la víe, la mort et la résurrection
Carta de são João. Os Cristãos aos quais ele se dirige não de Jesus. Alors même que ces témoin.s inaugurent le temps de l'Église
en prêchant selon leur vocation, jls appartiennent encore au temps de
conheceram a Jesus; não têm outro meio de conhecê-lo la révélation par le lien unique qui les unit au Christ. Leur ministere
est le dernier acte de la révélation annoncée par Jean-Baptiste" ( PH.-H.
MENOUD, "Jésus et ses témoins", Église et théologie, junho 1960, p. 9).
35 C. JouNET, L'Eglise du Verbe incarné (Bruges, 1955, 2~), I: 168-170.
490 REFLEXÃO TEOLÓGICA ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 491
ouvir com fé ( At 18,8; Rom 10,17). O que se propõe ação, com exclusão prática de qualquer doutrina; estrita-
primeiramente à fé da Igreja ( a revelação em sua forma mente, não existe a não ser no encontro existencial da fé 38 •
atual, realizada) não é, pois, a experiência concreta, viva, A teologia católica é a primeira a declarar que a re-
intuitiva da Pessoa do Cristo como a puderam ter os após- velação é uma ação, um acontecimento, um encontro que
tolos mediante a encarnação, mas é o testemunho apósto- transtorna a existência do homem e o convida a uma de-
lico sobre o facere e o docere do Cristo: testemunho que se cisão, a um comprometimento de toda a pessoa. Ajunta, po-
dirige "ex auditu" à inteligência que, internamente ilumi- rém, fiel até ao fim ao realismo da encarnação, que o en-
nada pelo Espírito, assimila o que os ouvidos ouviram. Tra- contro do Cristo e de seu mistério se dá pela audição do
ta-se, contudo, de um testemunho concreto ( não apenas testemunho. apostólico, transmitido pela Igreja e consigna-
verbal, mas real), que inclui também exemplos ou manei- d': n~ Escritura. É pela adesão à doutrina apostólica que
ras de agir, ritos e instituições. A revelação mediata trans- atingimos a Deus e seu mistério; é mediante a fragilidade
mitida à Igreja está totalmente contida nesse testemunho dos sinais - gestos e palavras - que chegamos à própria
apostólico, isto é: na palavra dos apóstolos que nos convi- realidade do Cristo: não apenas pelos sinais, mas com o
dam a crer o que o Cristo disse e fez. O objeto da fé é socorro e o poder de penetração da luz da fé. A adesão
o Cristo, suas palavras e gestos, maneiras de agir, toda a ao quérigma, à mensagem é meio de encontro e de comu-
nhão com a Pessoa 39 • A revelação é uma ordem de conheci-
pessoa, enquanto, porém, propostos na doutrina dos após-
mento que tem por finalidade uma ordem de vida. Se Deus
tolos sobre· o Cristo. É essa doutrina, confiada à Igreja
nos fala, é para associar-nos à sua vida ( D. 1786). Caminha-
como um depósito, que são Paulo exige que seja conservada mos da mensagem para a vida, como caminhamos do conhe-
( 1Tim 6,20; 2Tes 2,15). cimento para o amor, da fé para a caridade. A doutrina
Portanto, os documentos do Magistério estão confor- não tem por finalidade garantir a fidelidade de pensamento
me aos dados da Escritura e da tradição quando equivalen- a uma ~rtodoxia por si mesma; deve garantir um encontro,
temente falam de doutrina apostólica ( D. 300), de doutri- uma união na verdade com o Deus verdadeiro. Nossa ade-
na revelada (D. 2314 ), de revelação transmitida pelos após- são ao Cristo é mediatizada enormalizada pela nossa adesão
tolos ou de depósito da fé (D. 1836), de depósito da fé ao testemunho e à doutrina dos apóstolos: uma doutrina de
confiada à Igreja (D. 2204). A revelação, em sua forma salvação, uma palavra de vida.
atual, objetiva, é o testemunho apostólico depositado na Essa maneira de ver nada tem de ofensivo para o es-
memória da Igrt' ja. pírito humano. Se admitimos que Deus pôde escolher uma
A teologia protestante atual resiste à idéia de uma re- economia de encarnação para se revelar, devemos pensar
velação concebida como dispensação de verdades divina- que Deus foi lógico até o fim de seu desígnio: é pelos ges-
mente garantidas 37 • Vê na revelação principalmente um ato t?s e pelas palavras do Cristo, é pelo testemunho apostó-
divino, um acontecimento: a ação do Deus vivo que irrom- lico que temos acesso ao Mistério. A Palavra de Deus se
pe na existência do homem e o convida a uma opção que reveste com a carne do Cristo, com a carne das palavras,
salva. Conseqüentemente, a fé é principalmente acolhida da
epifania divina, encontro existencial de Deus em Jesus 38 R. BULTMANN, L'interpretation du Nouveau Testament (Trad
Cristo. Para Bultmann, a revelação tende a ser apenas uma O. Laffoucriere, Paris, 1955), pp. 203-214. Encontramos a mesma ten:
dência no artigo "à:itoicaÀ.Ú1t-i-w" de A. ÜEPKE, Theol. Worterbuch
zum N.T., 3: 575, 586.
37 J. BA1LLIE, The Idea of Revelation in Recent Thought (New 39 Com muita razão observa santo Tomás que a fé não tem por fim
York and Lortdon, 1956), pp. 29, 32; G. E. WRIGHT, God who acts os ~onceitos, mas a realidade (2a 2ae, q. 1, a. 2, ad 2; q. 11, a. 1; De
(London, 1958), pp. 35-38, 57-58, 83, 107, 109. Vertt., q. 14, a. 8).
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492 REFLEXÃO TEOLÓGICA

dos sinais sacramentais. Encobrimento e descobrimento de


Deus, dialética essencial de uma revelação que ainda não é 5.
visão. A resistência contra uma revelação entendida como REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ
doutrina procede, em muitos protestantes atuais, do de-
sejo de marcar ainda mais a característica personalista, _exis-
tencial, "fatual" da revelação; em outros, porém, procede
da recusa clara ou disfarçada da encarnação.

Durante muito tempo, na tradição escolástica, os teó-


logos designavam com o termo revelação duas realidades:
a comunicação ao homem, do pensamento divino sob a for-
ma de doutrina, de mensagem; a graça interior que move
o homem a dar seu assentimento àquela palavra exterior.
Geralmente esse modo de .falar baseava-se nos textos
da Escritura que mencionam, paralelamente à pregação ex-
terior do Cristo e dos apóstolos, uma revelação, um ensina-
mento, uma iluminação,· uma atração, um testemunho in-
teriores. São Boaventura, por· exemplo, atribui a fé prin-
cipalmente a uma audição interior, a uma revelação ( Mt
16,17), a uma atração do Pai (Jo 6,44). Santo Tomás não
usa habitualmente o termo revelação para designar essa ação
interior, fala, porém, de instinto interior, 1 de um apelo
interior 2, de uma atração interior 3. Trata-se de uma graça
que convida para crer, que move à fé. Após a crise do
protestantismo, certo número de teólogos, principalmente
Cano e Bafíes, continuam a designar com o termo revela-
ção a ilumin~ção interior da graça da fé. A exemplo de
Suárez e de De Lugo, porém, é mais comum reservar o
termo para a proposição do objeto da fé, por Cristo e pelos
apóstolos. Os teólogos, porém, nunca deixam de notar a
ação conjunta da palavra exterior e da palavra interior.
Scheeben principa!niente, no século XIX, refere-se a uma
palavra e a uma: audição interiores, a um ensinamento, a
uma abertura do coração que correspondem à palavra exte-
1 III Sent., d. 23, q. 3, a. 3; IV Sent., d. 17, q. 1, a. 1 sol. 2; Quodl.
2, q. 4, a. 6; ln Jo., e. 6, lect. 5; 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3; a. 3, ad 2;
q. 10, a. 1, ad 1; Rom., e. 8, lect. 6.
2 Quodl., 2, q. 4, a. 6.
3 ln Jo., e. 6, lect. 5.
494 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 495
rior e a vivificam. A teologia do século XX é particular- EncQntramos_ a mesma expressão em Mt 16,17: Após
mente atenta a essa dimensão interior que dá à palavra a confissão de Pedro em Cesaréia, diz Jesus: "Bem-
divina sua característica específica. Qual é, pois, a natu- · -aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a
reza dessa revelação interior, qual o seu relacionamento com carne e o sangue que to revelou mas meu Pai que está
a palavra exterior? A que título .entra em a noção de re- nos céus". O que vem a ser essa revelação? Evidentemen-
velação? Rigorosamente, qual o nome que lhe conviria dar? te não se trata de uma manifestação distinta e autêntica
do Pai, que se acrescentasse às declarações do Cristo, e indi-
1. AS BASES ESCRITURfSTICAS casse a Pedro quem é o Cristo. Pelo contrário, é tão pouco
distinta essa revelação que o próprio Cristo deve chamar
1. Os teólogos e santos Padres constantemente in- a atenção de Pedro para a ação da qual foi objeto,- pois
vocam duas passagens dos Sinóticos quando denominam que ele não se dera conta de estar sendo interpelado interna-
revelação a iluminação interior da graça da fé. O primeiro mente. A revelação de que fala Cristo deve ser antes assimila-
pertence a uma dupla tradição: "Eu te louvo e agradeço, ó da à ação interior do Pai da qual se fala em Mt 11,25, que
Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas dá a Pedro, como aos humildes e pequenos, a possibilidade de
aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos simples" ( Mt se abrir à pregação exterior e de confessar o Cristo 5 • Con-
11,25; Lc 1O,22). O texto opõe à dos pequenos a con- fessando que Jesus é o "Cristo" (Marcos), "O Cristo, o
dição dos sábios e sagazes. Eles são os escribas e os fari- Filho de Deus vivo" (Mateus), Pedro não obedece apenas
seus (Mt 23,1-12) e os que lhes são semelhantes, os que aos sonhos messiânicos dos judeus de seu tempo, nem ape-
pretendem bastar-se a si mesmos, que não compreendem
que na ordem do Reino tudo é dom. Os pequenos são os Synoptiques", em L'Evangile de Jean (Louvain, 1958), pp. 147-159; Id.;
que, com toda simplicidade e humildade, como os discípu- "Les sources scripturaires de Mt 11,25,30", Eph. theol. lov., 31 (1955):
334ss; L. CHARLIER, "L'action de grâces de Jésus (Mt 1125-30)" Bible
los, reconhecem sua insuficiência diante de Deus e se abrem et Vie chrétienne, 1957, pp. 87-99; A. FEUILLET, "Jésus' et la ~agesse
à sua palavra. Sua sabedoria vem, não deles mesmos, mas i1vine d'apres les Évangiles synoptiques", Revue biblique, 1955, pp.
de Deus. A estes, Deus revelou os mistérios do Reino, 161-196.
5 Ao que parece, Mateus apresenta essa confissão de Pedro como
tudo que o Cristo tinha por missão comunicar aos homens, confissão da divindade: "Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo" (Mt
principalmente quem é o Pai e quem é o Filho. Tudo isso, 16,16). Marcos, porém, na passagem paralela diz simplesmente: "Tu
pelo contrário, foi escondido aos sâbios e aos sagazes da és o Messias" (Me 8,29). Se levarmos em conta que essa confissão vem
após o m~istério na Galiléia, centralizado sobre a messianidade de Jesus,
terra. Não há dúvida que a revelação de que se fala e se considerarmos também o modo totalmente humano de os apóstolos
aqui é uma ação interior do Pai, e não a simples proposição até a ressurreição, considerarem a função messiânica de Jesus, podemo~
exterior da doutrina, pois que esta foi feita tanto aos sábios supor que o texto de Mateus é uma releitura do acontecimento "em fun-
ção de uma fé mais evoluída" (P. BENOIT, "La divinité de Jésus dans
como aos pequenos. É uma ação divina que se refere an- les Synoptiques", Lumiere et Vie, n. 9 [abril 1953], pp. 58-59, 53). A
tes à aceitação da doutrina do que à sua comunicação. Para interpretação proposta por D. M. Stanley, ainda que nos pareça menos
provável, merece ser citada. O progresso da fé nos apóstolos, diz ele, é pa-
que __se possa reconhecer a missão do Cristo e a verdade de ralelo ao da revelação que o Cristo faz do mistério de sua pessoa: revela-
sua mens_agem, é preciso uma iluminação interior, que -se inicialmente como rabino e mestre, depois como Messias, finalmente
é obra do Pai. Ao Cristo, Filho do Pai, compete manifestar como Filho glorioso do Pai. Neste crescimento contínuo dos apóstolos
na fé, podemos compreender que haja momentos privilegiados. É pos-
o Pai e seus segredos; compete, porém, ao Pai fecundar sível pois que em Cesaréia, quando a proclamação do mistério do Cristo
essa palavra. exterior para que o homem possa dar-lhe a ainda não eta completa, Pedro tenha sido levado pela graça acima de
adesão da fé 4. seu conhecimento atual. "Profissão de fé na divindade oculta, ainda não
percebida conscientemente, mas já pré-aceita" (D. M. STANLEY, Études
4 L. CERFAux, "L'Bvangile de Jean et le logion johannique des 5/
rª?~é;;res 61 )~nfession de Pierre à Césarée", Sciences Ecclésiastiques,
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496 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 497


nas aos sentimentos de admiração que ele tem por seu mes- Paulo denomina iluminação, unção, é designada por são
tre, mas adere docilmente ao testemunho do Pai que está João como atração, testemunho, ensinamento. "Ninguém po-
nos céus: abre-se ele a uma luz que vem do alto. de vir a mim, se não o atrair o Pai, que me enviou ... Todo
2. Há um texto dos Atos, muitas vezes citado, que aquele que ouviu o Pai e recebeu o seu ensinamento vem a
salienta como os cristãos são gerados para a fé pela pala- mim" (Jo 6,44-45). Isaías 54,13 e Jeremias 31,33ss anun-
vra apostólica e pela ação interior de Deus. Lídia, negocian- ciaram o dia em que todos seriam instruídos pelo próprio
te da cidade de Tiatira, ouvia a pregação de Paulo. "O Deus. Esse tempo chegou. Deus fala por seu Filho (Jo
Senhor abriu-lhe o coração de sorte que aderiu ao que Paulo 1, 18 ) . É preciso ouvir Aquele que viu a Deus e vem de
dizia" (At 16,14 ). "Abrir o coração"., na mentalidade se- Deus. Mas, para aderir à palavra do Cristo não basta ter
mítica significa esclarecer a inteligência 6 • Enquanto Paulo ouvido sua pregação (Jo 6,21-41), nem ter visto seus mi-
propunha a mensagem divina, a graça agia secretameate em lagres (Jo 6,1-21): é necessária também uma atração interior,
Lídia para iluminá-la e bem dispor. dom do Pai (Jo 6,66). A adesão à fé depende de um
3. Em suas cartas aos coríntios Paulo fala de ilumi- princípio dado pelo Pai, mediante uma inclinação que ele
nação e de unção divinas. Numa primeira passagem ( 2Cor 4, suscita em nós, uma sedução, uma atração sobrenatural que
4-6 ) , são Paulo compara a iluminação por ele recebida com ele exerce sobre nós, à qual consentimos, livremente, po-
a fé, no momento de suas conversão e de sua vocação apos- rém. Assim pode o Cristo dizer que o Pai lhe dá aqueles
tólica (Gál 1,15-16; At 26,18), com a criação da luz na que acreditam em sua palavra (Jo 6,39;17,9-11,24;10,29).
primeira manhã do universo 7• A glória de Deus, que ou- O Pai que atraí os homens e os dá ao Cristo, é tam-
trora brilhara na face de Moisés, brilha agora na face do bém o Pai que testemunha. Testemunha em favor do Filho
Cristo; para reconhecê-la, porém, •é preciso que Deus ilumine pelas obras de poder que lhe concede realizar (Jo 5 ,3 7 ) ,
nossos corações: "O Deus que disse à luz que brilhasse no pelas Escrituras que anunciam sua vinda (Jo 1,45;5,47 ),
seio das trevas, brilhou ele próprio em nossos corações, e também por um testemunho mais íntimo e pessoal (Jo
para fazer resplandecer o conhecimento de sua glória, na 5,37;6,44). Em sua primeira Carta são João volta a esse
face de Jesus Cristo" ( 2Cor 4,6) 8• Em 2Cor 1,21-22, tema, agora, porém, mencionançlo expressamente a ação do
Paulo usa o. termo unção para designar a ação divina que Espírito. Numa seção totalmente dominada pelo tema da
suscita a fé no coração dos que ouvem a verdade: "aquele fé (lJo 5,5-12), declara: "É o Espírito que dá testemunho,
que nos fortifica em Cristo, juntamente convosco, e que porque o Espírito é a verdade" ( lJo 5,6). O Espírito tes-
nos concedeu a unção, é Deus, o qual também nos marcou temunha enquanto age no interior da alma para · que ela
com o seu selo e colocou o Espírito em nosso coração como reconheça a verdade do Cristo e confesse que ele é o Filho
arras ". O Deus que fortalece Paulo e os cristãos na fé, de Deus. Aquele que acredita, rende-se ao testemunho do
é aquele que, por sua uncão, os levou a crer 9 • Espírito qu nele age para fazê-lo aceitar a palavra do Cris-
4. A intervenção divina na origem da fé, que são to 10 • É também o Espírito que grava a palavra do Cristo
para que permaneça na alma como uma força viva e ativa:
p. 1:/· CERFAUX ET J. DuPONT, Les Actes des ap6tres (Paris, 1953), é o princípio da assimilação contínua da palavra recebida
7 Também a Epístola aos hebreus diz que aqueles que receberam a na fé ( lJo 2,27).
fé foram "iluminados" pelo Espírito Santo (Hebr 6,4). Em todas essas passagens, fala-se de uma ação interior
8 J. DuPONT, Gnosis, La connaissance religieuse dans les épitres de
S. Paul (Louvain et Paris, 1949), pp. 36-37; D. MoLLAT, "Nous avons que acompanha a palavra exterior. Ação descrita como atração,
vu sa gloire", CHRISTUS, n. 11 (1956), p. 316. ·
9 I. DE LA PoTTERIE, "L'onction du chrétien par la foi" Bíblica
10 I. DE LA PoTTERIE, "La notion de té~;ignage dans S. Jean", em
40 (1959): 24,27. ' '
Sacra Pagina, (Paris, 1959), pp. 205-206.
498 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 499
iluminação,· testemunho, ensinamento, revelação, unção. Há atração interior 12 • Essa atração divina produz na alma uma
em nós alguém que age primeiro: numa iniciativa sobera- inclinação como que natural 13 • Instinto, inclinação, atração:
na que nos convida a crer na palavra do Cristo que ressoa termos que bem se adaptam à realidade.
externamente. A resposta é livre, brota, porém, da inicia- Na ordem natural, a faculdade de conhecimento, sen-
tiva divina. Na atração da graça já está como que em ger- sível ou espiritual, tende para seu objeto formal como para
me a reação, ou seja, a rs:sposta do homem à palavra de seu bem próprio, com um impulso inato, isto é, por sua pró-
Deus. A vida cristã começa com essa primeira passividade pria estrutura ontológica, por sua constituição e seu dinamismo
à conquista divina. A palavra vem acompanhada pelo sopro . interno. Mesmo antes de qualquer exercício atual de sua
do Espírito que vem para fixá-la definitivamente. capacidade inata, o olho está destinado a perceber a cor
Os santos Padres, por sua vez, retomam as expressões e a inteligência é apta para a percepção do ser. O objeto
da Escritura. Podemos dizer que entre eles existe uma ver- formal, portanto, age sobre a faculdade como causa final:
dadeira tradição do magistério interior. Os documentos da atrai. Na ordem da fé, o homem é dotado de um novo
Igreja não usam o termo revelação para designar a atração princípio de conhecimento, de um novo objeto formal. Deus,
interior que convida a crer . na mensagem evangélica. O elevando a inteligência humana, imprime-lhe uma ten-
Concílio de Orange fala de uma "iluminaçã<\. e inspiração dência, um impulso sobrenatural que a inclina para ele, Ver-
do Espírito Santo que dá a todos a suavidade ·da adesão e dade primeira, como para seu Bem supremo. Obscuramen-
da crença . na verdade" (D. 180). A expressão é retoma te Deus atrai para si· a inteligência, convidando-a a con-
da pelo primeiro Concílio do Vaticano ( D. 1791 ) . O con- formar seus pensamentos aos pensamentos divinos, seu co-
cílio de Trento fala de uma graça-"excitante" (D. 798), nhecimento ao conhecimento do próprio Deus, Verdade
de uma "iluminação" com a qual Deus "toca o coração do pessoal e subsistente.
homem", "excita", "chama" (D. 797, 814). O concílio Acreditar é abandonar-se voluntariamente à solicitação di-
do Vaticano fala de uma inspiração da graça ( D. 1789), vina e procurar apoio no próprio Deus, como soberana-
de um "auxílio" vindo do alto. Deus, por sua graça "excita" mente infalível e veraz. Santo Tomás diz que essa tendência,
os que procuram a verdade (D. 1794). Essa graça acom• inscrita na atividade intelectual como um instinto primeiro
panha a pregação da mensagem evangélica (D. 180), a pa- e profundo, como se fosse uma inclinação natural, é neces-
lavra exterior (D. 7 9 8 ) . sária. Isso porque, na fé, a inteligência deve renunciar ao seu
modo conatural de conhecer baseado na evidência e apoiar-
II. NATUREZA E FUNÇÃO DA ATRAÇÃO INTERIOR -se, como num Absoluto, no testemunho incriado do Deus
Partindo das indicações da Sagrada Escritura e do Ma- Pere Rousselot ( Paris, 1946); A. STOLZ, Glaubensgnade und Glaubenslicht
gistério, vamos procurar precisar as características dessa re- nach Thomas von Aquin ( Studia Anselmiana, I, Romae, 1933); H. LANG,
Die Lehre des hl. Thomas von Aquim von der Gewiss heit des überna-
velação ou atração interior. türlichen Glaubens historisch untersucht und systematisch dargestellt
1. Diversas vezes santo Tomás observa que Deus ( Augsburg, 1929); 'Id., Die Entfaltung des apologestischen Problems in
convida o homem para crer, não apenas com um ensinas der Scholastik des Mittelalters (Freiburg, 1962). M.-D. CHENU, "Pro
fidei supernaturalitate illustranda" Xenia Thomistica, III (Romae, 1925),
mento exterior, mas também por um instinto interior 11 • O pp. 297-307; Id., "La psycologie de la foi dans la théologie du ~IIl 0
Pai atrai os homens pela palavra de seu Filho e por uma siecle", em Études d'histoire littéraire et doctrinale du XIJJe stecle,
deuxieme série ( Paris, 1932), pp. 163-191; R. Tucc1, "La soprannatura-
lità della fede per rapporto al suo oggetto formale secondo S. Tommaso
11 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3; q. 10, a. 1, ad 1. Sobre a teologia e a
d'Aquino", Aloisiana, II (Napoli, 1961), pp. 1-95; R. AuBERT, Le pro-
psicologia da fé em santo Tomás, cfr. principalmente: B. DuROUX, La bleme de l'acte de foi (Louvain, 1958, 3~), pp. 43-71.
psycologie de la foi chez Saint Thomas d'Aquin (Fribourg, Suisse, 1956); 12 ln ]o., e. 6, lect. 5.
T. DE WoLF, La justification de ta foi cez Saint Thomas d'Aquin et le 13 2a 2ae, q. 1, a. 4, ad 3; III Sent., d. 23, q. 2, a. 1, ad 4.
500 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 501
que ela não vê. É uma passagem da autonomia à teonomia. dica que Deus está convidando à fé; indica-o, porém, obscu-
Essa rendição da inteligência é psicologicamente impossível ramente como tendência que, por seu exercício mesmo, de-
sem uma conaturalização do espírito com o mundo superior ao signa o objeto ou o termo de seu impulso. Essa atração age
qual acede. Assim, sob a ação de Deus que a inclina e como inspiração e não como expressão. Precisa de uma
atrai, a inteligência pode dar um assentimento total ao mis- determinação posterior que lhe vem da palavra explícita
tério da vida íntima de Deus e de seu desígnio, como vem de Deus, ou seja, da mensagem da salvação. Contudo, sua
apresentado na mensagem cristã 14 • influência é real e decisiva no assenso da fé, pois é ela
O convite à fé não se reduz à manifestação exterior que dá à inteligêrn;ia a capacidade de apoiar-se na Ver-
pela linguagem e pelos sinais de poder; tem também uma dade primeira, em si e por si mesma. Dá o poder aderir
di,mensão ma~s profunda, obra do Espírito. Deus não apenas ao Evangelho e ao Deus do Evangelho. Ela, porém, não
da, pelo Cnsto, o Evangelho; dá-nos também a força é o Evangelho nem uma nova palavra. É a primeira na
para a adesão. Enquanto a pregação do Cristo, dos após- ordem da eficiência, como o Evangelho é o primeiro na or-
tolos e da Igreja ressoa externamente, anunciando clara- dem da expressão. Não pode, estritamente, ser chamada
mente o ~e~ígnio salvífico de Deus, nosso espírito é interna- revelação: convida para crer, permanecendo, porém, o ano-
mente solicitado por Deus para que aceite como verdadeira nimato. É antes uma inspiração ou iluminação do Espírito
a nova ordem proposta pela Igreja 15 • Santo (D. 180, 1791) 16 .
2. Atração interior e palavra exterior estão estreita- 3 . A atração interior pode mais exatamente ser
mente ligadas, mas a atração não é uma revelação. Estrita- designada como testemunho. Isso porque indica "obs-
me1?-t~, só P?~emos falar de revelação quando há uma pro- curamente o Deus de verdade . como pedindo um assen-
P?siçao ~xphc1ta de um conteúdo de pensamento, um con- timento .... que se apóie em Deus, que atrai ou convida,
vite. exohc1to Para acreditar nesse conteúdo de oensamento, como garantia incomparável de verdade" 17 • Ora, pelo visto
percepção explícita desse conteúdo de pensamento e desse anteriormente, o convite para crer, como garantia de ver-
convite para crê-lo como autenticamente de Deus. Ora na dade, é o elemento específico do testemunho. Deus, prin-
atração interior Deus age interiormente, mas sua ação per- cípio e termo da atração interior da graça da fé, pode ser
manece indistinta. É antes pelas fontes da revelação do designado, em senso lato, mas não impróprio, cerno um Deus
que pela reflexão psicológica sobre a experiência vital de que testemunha. EsS(! testemunho, porém, não é uma re-
nossa fé que conhecemos a existência dessa atração divina. velação no s,entido estrito, pois continua indistinto e obs-
_ A· atração do verum e a atração do Verut_n pessoal es- curo. Está totalmente ordenado para a mensagem da sal-
tao de tal modo uni~as no dinamismo intelectual que, a não vação, para cuja aceitação e assimilação ele dispõe a alma 18 •
s~r _nos. casos de vida mística extraordinária, é impossível
disttngm-las pela consciência reflexa. A atração divina in- III. AS DUAS DIMENSÕES DA PALAVRA DE DEUS

. . 14 A mesm!' tendê~cia é chamada inclinação relativamente à sua causa Não podemos falar de testemunho exterior e de tes-
ef1c1ente; atraçao, relativamente à sua causa final.
15 E. DHANIS, "Révélation explicite et implicite", Gregorianum, 34 temunho interior sem que logo surja a questão: qual a rela-
(1953): ~29-231; J. ALFARO, Adnotationes in tractatum de Virtutibus
(~urs~ m11:1eografado, Roma, 1959), pp. 140-155; L. MALEVEZ, "Théolo- 16 E. DHANIS, "Revélation explicite et implicite", Gregorianum, 34
g1e d!alectlque1 . théologie catholique et théologie naturalle", Recherches ( 1953): 203; J. ALFARO, Adnotationes in tractatum de Virtutibus, pp.
d<; sczence relzgzeuse, 28 (1938): 527-540; M.-L. DES LAURIERS Dimen- 157-163.
st~ns de la, foi (2 vo~., Paris,. 1951), 2: 253-269; R. AuBERT,' Le Pro- 17 E. DHANIS, "Révélation explicite et implicite", Gregorianum, · J4
bleme d~ lacte d<; foz (Louvam, 1958, 3~); B. DuRoux, La psycologie ( 1953): 231.
de la foz chez Saznt Thomas d~Aquin, pp. 32-38. 18 Ibid., p. 231 e p. 203, nota 40.
r
502 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 503
ção entre ambas essas realidades que .a Escritura, a Tradi- dessa graça, procuram tateantes, pressentindo vagamente um
ção e os documentos do Magistério emparelham constante- mistério de salvação.
mente? Como é que o Cristo histórico que anuncia a Boa- Na economia atual, contudo, essa iniciativa da graça
-nova e o Espírito que age interiormente se integram na está ordenada ao Evangelho que ela prepara e que não é
unidade de nosso encontro com Deus? J ulgâmos que são simples sugestão confusa de um mistério de salvação, mas
duas realidades complementares, mutuamente ordenadas, for- sim manifestação distinta do desígnio salvífico de Deus.
mando como que duas dimensões da palavra de Deus. O Espírito está à ·espera da palavra para a fecundar e fazer
1. Deus interpela e convida à fé mediante a mensa- frutificar. Na ordem do conhecimento, que é o da reve-
gem que o Cristo, os apóstolos e a Igreja anunciam exter- lação, a mensagem, isto é, o Evangelho, tem um primado
namente; complementariamente interpela e convida median- sobre a atração.
te a inclinação e a atração internas que produz na alma. Há A atração é dada para dispor o homem para ouvir a
uma ação conjunta do anúncio exterior e da atração interior. mensagem, para conaturalizá-lo com o mistério divino e dar-
A atração adapta-se ao testemunho exterior, que ela sub- -lhe a força de aceitar como verdadeira a nova ordem do
entende, assume, vivifica e fecunda. A graça in-spira o que Reino de Deus. A revelação interior feita a Pedro refere-se
a pregação exterior ex-prime e pro-clama. O Cristo e os às afirmações do Cristo sobre sua missão. A iluminação
apóstolos declaram o que o Espírito• insinua e fixa nas al- dada a Lídia, abre-lhe o espírito para a mensagem ouvida.
mas. Deus testemunha pelos sinais conceptuais e por um A atração de que fala são João está em relação com o en-
apelo interior. Exteriormente a mensagem da salvação nos sinamento do Cristo sobre o pão da vida (Jo 6,21-41):
atinge numa manifestação distinta e solidamente garantida, destina-se a fecundar a palavra do Cristo. A inspiração
convidando-nos a crer, enquanto interiormente a graça nos para crer está. a serviço da mensagem. No fundo, mesmo
faz perceber a mensagem e o apelo exterior como uma palavra na experiência contemplativa e mística, encontramos sem-
viva pessoalmente dirigida a nós. A atração interior move- pre essa conformidade com a palavra de Deus, e11quanto
-nos a dar o· assentimento da fé à Verdade primeira, en- proposta pela Igreja. É essa conformidade que garante re-
quanto, porém, significada pelos conceitos e pelos enuncia- tidão e autenticidade à nossa busca e ao nosso encontro da
dos. Num ato único dizemos sim à Igreja e a Deus. Mas verdade. A experiência da fé permanece submetida à dou-
a força para pronunciar este sim e para nos abandonar a trina que a julga. A graça age sempre em dependência da
Deus por causa dele mesmo, vem da ação interior da graça. doutrina. Portanto, se no plano da revelação déssemos o
Sem ela jamais poderíamos crer com fé teologal. primeiro posto à experiência inefável da Palavra secreta-
2. De certo modo podemos dizer que a atração tem mente dirigida à alma, estaríamos falseando as perspectivas
um primado sobre a apresentação objetiva da mensagem, da Escritura e do Magistério. Na ordem da revelação, a
pois na inclinação sobrenatural produzida por Deus já está missão do Espírito completa e termina a missão do Cristo.
como que pre-significado o objeto da tendência. A atração A atração está a serviço do Evangelho. O Cristo, os após-
está à espera de seu objeto. Isso é mais· visível no caso dos tolos, a Igreja proclamam a mensagem da salvação, enquan-
povos que ainda não ouviram a pregação do Evangelho. to o Espírito fecunda a audição da palavra e dá à alma a
Antes mesmo que recebam a mensagem, a graça já está agin- força para aderir-lhe. É uma ação conjunta para um efeito
do. Neles a atração da graça obscuramente designa o Deus único: a fé. A manifestação dos desígnios divinos é feita
de verdade como o objeto soberanamente capaz de saciar pelo Evangelho; a eficiência ( disposição para ouvir, capa-
a inteligência que anseia pela verdade. Deus, por essa atra- cidade de aprender) é obra da atração.
ção, já se dá incoativamente, infundindo uma inclinação que Devido a essa dimensão da graça, a revelação é pala-
leva a ele, Verdade suprema.· Os homens, sob a influência vra única na sua espécie. À sua eficácia de palavra exte-
504 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 505
rior acrescenta-se uma eficácia particular que lhe vem da Nesse primeiro e dramático encontro de Deus e do
ação divina que penetra o íntimo de nossa atividade in- homem, que é a opção da fé, Deus, pela palavra fecundada
telectual e volitiva para dar começo em nós à resposta da pelo Espírito, solicita a adesão do homem, sem, porém, vio-
fé. Essa graça é um socorro atual que age sobre o espírito, lentar sua livre decisão. Se a revelação é acolhida pela fé,
movendo, excitando, chamando, prevenindo, como o ensinam leva aos sacramentos, que supõem a· fé como condição para
os documentos do Magistério. sua recepção frutuosa; sem a fé os sacramentos nada mais
seriam que sinah:, vazios e sem eficácia.
IV. REVELAÇÃO E SACRAMENTO Aquilo que se anuncia pela revelação, realiza-se pelo
sacramento. A salvação anunciada, manifesta-se no sacra-
A ,palavra da revelação tem, pois, uma ana- mento. A revelação excita para a obediência da fé na salvação
logia com os sacramentos. Ela também pode ser conside- que o sacramento realiza entre nós. Pelo sacramento torna-se
rada palavra eficaz, num sentido, porém, que se deve precisar. e
presente a salvação notificada pela revelação reconhecida pe-
. De modo geral, revelação e sacr~mentos podem ser la fé2°. "Proclamai a Boa-nova (quérigma) a toda a criatura .
considerados como formas diversas e análogas da vasta eco- Quem crer (fé) e for batizado (sacramento) será salvo"
nomie. divina segundo a qual a salvação nos é dada me- ( Me 1, 16 ) . "Depois de terdes ouvido a palavra da verda-
diante os sinais. Nessa economia, a sacramentalidade for- de - diz são Paulo aos efésios ( Ef 1,13) - a Boa-nova
ma como que círculos concêntricos numa ordem decres- da vossa salvação (quérigma), e terdes acreditado (fé), fos-
cente de eficácia: a) encarnação do Verbo, fonte de toda tes marcados com um selo pelo Espírito da Promessa" (Sa-
graça; b) sacramentos propriamente ditos; e) palavra re- cramento do batismo) 21 • Revelação, fé, sacramento estão
velada 19 • A revelação, enquanto palavra divina, tem eficá- estreitamente ligados. A revelação tem em vista a fé; esta,
cia própria, superior à da palavrà humarui, inferior à dos por sua vez, é necessária para receber o sacramento. Essa
s~cramentos. A palavra humana pode soljçitar apenas exte- ligação faz-nos compreender que o sacramento não é um
-r1ormente, enquanto que a palavra divina, pelo auxílio que rito mágico: exige-se do homem a fé na salvação anunciada
a· acompanha, atinge o íntimo das faculdades. por Deus. O mesmo acontece no Antigo Testamento, onde
Re':elação e sacramentos ordenam-se para a salvação, a promessa de Javé e a fé de Abraão levam a um rito de
de maneua diversa, porém. A revelação tem por fim a obe- Aliança ( Gên 17; Rom 4,11), onde um rito sangrento ra-
diênci_a da fé, que é o "começo da salvação, o fundamento tifica a revelação do Sinai e a obediência de Israel ( :Êx 24).
e, a raiz da justificação" (D. 801);. não a produz, po- Assim, também o sacramento conclui o que foi começado
rem, ex opere operato, como o faz o sacramento. É eficaz pela revelação e pela fé. Foi por isso que Cristo confiou
porque o auxílio atual, que constitui a sua dimensão inte- à sua Igreja o duplo ministério da palavra e do sacramento.
rior, excita, chama, atrai realmente para a aceitação da men- O verbo foi-nos dado inicialmente sob a forma de palavra,
sagem, e desenvolve realmente na alma uma força de per- para ser finalmente recebido sob a forma de eucaristia. Véu
cepção capaz de chegar à adesão de fé, se o homem livre- das palavras, véu das espécies: pelos sinais avançamos para
mente aceita os prevenientes convites da graça. Da parte o Deus da visão.
de . Deus nada falta, se o homem não foge à graça; a efi-
cácia da palavra está assim condicionada à livre resposta do
homem.
20 E. ScHILLEBEECKX, ibid., pp. 32-39; G. DAVIS, "The Theology
19 E. ScHILLEBEECKX, "Parole et sacrement dans l'Église", Lumiere of Preaching", The Clergy Review, 45 (1960): 354-358.
et Vie, 9 ( 1960): 33-35. 21 Cfr. 2Cor 1,21-22.
MILAGRE E REVELAÇÃO 507
6. tantas realidades cristas, age ao mesmo tempo em diversos
MILAGRE E REVELAÇÃO níveis, indica direções diversas. É nos Evangelhos que mais
aparece essa multiplicidade de aspectos, pois que os mila-
gres do Cristo são como que arquétipos do verdadeiro mi-
lagre. Os milagres dos santos participam desse esplendor
sem jamais esgotá-lo. Vamos pois tomar como ponto de
referência os milagres evangélicos para estudarmos as re-
lações entre revelação e· milagre.

'' Para que a homenagem de nossa fé fosse conforme I. POLIVALÊNCIA DO MILAGRE


à razão, quis Deus acrescentar aos auxílios inter~os E~- ?º
pírito Santo as provas exteriores de sua revelaçao? isto e, 1. Sinal da agape de Deus
fatos divinos principalmente milagres e profecias, que
demonstrando' abundantemente a onipotência e infinita sa-
Até para os menos atentos os milagres do Cristo mos-
bedoria de Deus, são sinais certíssimos da revelação, ao
tram-se primeiramente como obras de misericórdia e de bon-
alcance da inteligência de todos" 1 • • •
dade. Se Deus, no Cristo, vem até o homem e se inclina
O primeiro concílio do Vaticano denomina os mila-
para ele, como poderia essa presença não ser graça e salva-
gres fatos divinos, provas, sinais. Sua função é estabele~er
ção para o homem? No Cristo "apareceu a benígnidade de
solidamente "a origem divina da religião cristã" 2 • Assim
Deus, nosso Salvador, e seu amor pelos homens" ( Tit 3 ,4 ) .
o magistério da Igreja põe em destaque uma função impor-
Os milagres do Cristo são as manifestações da agape de
tante do milagre - seu papel comprobatório: ap_r~vação, -~e-
lo de Deus sobre uma palávra que pretende ser divina. Ahas, Deus, isto é, de sua caridade, ativa e compassiva, que se
inclina sobre a miséria humana.
o concílio cita explicitamente o texto de Marcos sobre a
As vezes, a iniciativa é do próprio Cristo que se adian-
missão dos apóstolos: "Então eles partiram a pregar P?r
toda parte com a cooperação do Senhor que lhes confir- ta à súplica do homem. No milagre da multiplicação, foi
o Cristo que primeiro "teve dó" da multidão, "porque eram
mava a paÍavra com os milagres que a acompanhavam" ( Me
como ovelhas sem pastor" ( Me 6,34;8,1-13). Conta Lucas
16,20). Pelo milagre Deus garante que está com seu envi~-
que o "Senhor teve compaixão" da viúva de Naim e ressus-
do, que a sua palavra é realmente palavra de Deus. Evi-
citou seu filho ( Lc 7,13). No milagre do homem que
dente que o concílio; insistindo nessa função co11:1pr??ªt~-
ria do milagre, não quis excluir outras funções sigmhcatl- tinha uma mão ressequida ( Lc 6,6-7), na cura da mulher
recurvada ( Lc 13, 11-12 ) , do enfermo da piscina de Be-
vas. Como tantas outras vezes o magistério afirma sem
excluir. tesda (Jo 5 ,5-9), é sempre o Cristo que tem a iniciativa.
Realmente, o milagre é um sinal polivalente. Como Outros milagres, porém, apresentam-se como resposta
do Cristo a uma prece, às vezes clara, outras muda, implí-
1 Ut nihilominus fidei nostrae obsequium rationi consentaneum (Rom cita num gesto, numa atitude. Os cegos de Jericó pedem
12 1 ) esset voluit Deus cum internis Spiritus Sancti auxiliis externa que seus olhos se abram ( Mt 20,29-34). A cananéia con-
ju~gi revel;tionis suae argumenta, _facta . scilicet_ divin~, _a~que ~pri!Dis segue a cura depois de muito insistir ( Mt 15 ,21-28).. É
miracula et prophetiae, quae cum Dei omn(Pº!entl~ et mfimtam. sc!entlam
luculenter commonstrent, divinae revelatioms s1gna sunt certlssima et ajoelhado que o leproso implora (Me 1,40-41 ). O. cen-
omnium intelligentiae accommodata (D. 1790). turião (Lc 7,3), Jairo (Lc 8,40-42), o pai do menino epi-
2 Ibid., nn. 1813, 2145, 2305, 1638, 1639. léptico ( Lc 9 ,38-42), Marta e Maria (Jo 11,3 ) supHcam
508 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 509
a intervenção de Jesus. A hemorroíssa, porém ( Me 5 ,27 ) , mente que seus milagres o indicam como Aquele que deve
e o povo do país de Genesaré ( Mt 14,36), apenas tocam vir (Lc 4,16-22) 5 ,
a orla do manto de Jesus e são curados. Pedro, no seu discurso a Cornélio, resume a carreira
Todas essas curas e ressurreições são gestos de amor. de Jesus dizendo que no batismo ele foi ungido "de Espí-
Deus visita-nos no meio de nossas enfermidades. Compade- rito Santo e de força" para curar e libertar os que tinham
ce-se, comove-se, perturba-se em seu coração de homem ( Mt caído sob o poder de Satanás ( At 10,38). Na vida de Cris-
11,28 ) . Em seu aspecto mais evidente os milagres são a to as curas e os exorcismos estão intimamente ligados à sua
resposta da agape de Deus ao apelo da miséria humana. obra de :::alvação. Estão igualmente ligados aos poderes
Deus é Amor, diz são João ( lJo 4,8). No Cristo esse amor que ele conferiu a seus apóstolos: Cristo deu-lhes autori-
toma forma humana, coração humano, para chegar à misé- dade para pregar, para curar e para expulsar os demônios ( Mt
ria do homem e mostrar-lhe a intensidade do amor divino. 1O, 1 ; Me 3, 14; Lc 9, 1 ) . Isso porque existe uma estreita rela-
ção entre o pecado, a doença e a morte. Por detrás de quem
2. Sinal da chegada do reino redentor está doente, possesso ou morto, está sempre Satanás, o Ini-
migo, homicida e mentiroso desde a origem, cujo Reino
Os profetas do Antigo Testamento anunciaram a era Cristo veio destruir 6 • Satanás reina pelo pecado e estende
messiânica e os sinais dessa era·. Será um tempo de mila- seu império até a carne mediante a doença e a morte. Es-
gres. "Então - proclama Isaías - abrir-se•ão os olhos craviza a humanidade, como aquela mulher que mantinha
aos cegos, e os ouvidos aos surdos descerrar-se-ão. Então ligada havia dezoito anos ( Lc 13,16). Aquele que deve
o c9xo saltará como cervo e desatar-se-á em cânticos a língua vir, o Messias, para destruir o reino de Satanás deve triun-
do mudo" (Is 35,5-6;29,18); então "reviverão os mortos, far também da doença e da morte. Curas ( Is 35,5-6) e li-
ressuscitarão seus cadáveres" (Is 26,19). No pensar dos bertação do pecado (Jer 31,34; Ez 36,25), milagres e exor-
profetas, a era messiânica reproduzirá, mais grandiosamen- cismos devem marcar a chegada do Reino messiânico 7 •
te ainda, as maravilhas do :Êxodo. Os evangelistas vêem Ora, o Cristo apresenta-se justamente como aquele que
nos milagres do Cristo a realização dessas profecias, o cum- vem destruir o Reino de Satanás. Toda sua vida pública
primento das promessas de Deus, a irrupção no mundo da está dominada pela consciência de dever manter um com-
salvação anunciada 3 • Até parece que o tema do cumpri- bate pessoal contra Satanás. "Para isso aparece o Filho
mento das Escrituras guiou são João na escolha de seus de Deus: para desfazer as obras do diabo" (lJo 3,8). Ten-
milagres: sinais da água viva, do maná, da luz, da vida 4 • tação no deserto, polêmicas com os fariseus cegos e obsti-
Sob _esse aspecto, pois, os milagres do Cristo ligam-se ao
tema mais vasto do cumprimento das Escrituras. Signifi- 5 Portanto, no contexto judaico, os milagres do Cristo têm duplo

cam que o Reino de Deus, anunciado pelos profetas du- valor de demonstração: 1? em virtude de sua função jurídica, tradicional;
2? como realização das Escrituras.
rante séculos, chegou finalmente. Em Jesus de Nazaré está 5 PH. H. MENOUD, "La signification du miracle dans le Nouveau

presente o Messias. O acontecimento, tão esperado, reali- Testament", Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 1948-1949,
n. 3, p. 180.
zou-se. Na sinagoga de Nazaré o Cristo declara explidta- 7 Era idéia corrente da linha apocalíptica judaica que ao chegar o
Reino de Deus os demônios seriam aprisionados: "En ces jours-là, on les
3 A. RICHARDSON, The Miracle Stories of the Gospels (London, amenera dans l'abl:me de feu, dans les tourments, et ils seront pour
1956), pp. 134-135. toujours enfermés dans la prison" (Livre d'Hénoch 10,3 trad. F. MARTIN,
4 D ..M~LLAT, "Le Semdon johannique", em Sacra Pagina (Mis- Paris, 1906). Le Testament de Lévi 18,12, diz sobre o novo sacerdote
cellanea b1bhca congressus internationalis catholici de re biblica, Paris et suscitado por Deus: "Et Belial sera lié par lui et il donnera pouvoir
Gemloux, 1959), p. 214. à ses fils de fouler les esprits mauvais" (J. BoNSIRVEN, La Bible apo-
cryphe en marge de l' Ancien Testament, Paris, 1953, p. 130).
T
510 REFLEXÃO TEOLÓGICA
MILAGRE E REVELAÇÃO 511
nados, encontros com qs possessos, incompreensão e aban-
sobre Satanás. Deus continua fiel à divina filantropia da En-
dono por parte das multidões, traiçã~ ~e Judas: sem~r~, carnação 9 •
sob formas diversas encontra-se a resistencia de Satanas .
O Cristo, porém, é' aquele mais forte de que fala a pará-
bola (Lc 11,17-22; Mt 12,29), que abate o forte, acor-
3. Sinal da missão divina
renta-o e liberta os cativos que estavam sob seu poder.
Dá-se a mudança da situação profetizada por Isaías (Is 49, Em toda a tradição bíblica o milagre tem como função
25 ) . Palavras e ações do Cristo estão carregados de um garantir uma missão como divina. É um gesto de Deus
poder que expulsa Satanás e instaura o Reino de .Deus: que garante a autenticidade de uma missão por ele confiada.
"Se eu expulso os demônios pela virtude do Espírito de Sob esse aspecto, tem um valor de certo modo -jurídico: é a
Deus, então já chegou a vós o Reino de Deus" (Mt _12,~8~. credencial do enviado de Deus 10 • Do profeta que se apre-
Voltando de sua missão, alegram-se os setenta e dois disci- senta em nome de Deus, os judeus exigem provas. .Moisés
pulos porque dominaram até o demônio: "Eu via Satanás pede e recebe de Javé o sinal que lhe prove que Javé "está
cair do céu como um raio", respondeu Jesus ( Lc 1O, 17-18 ) . com ele" e que "sua missão vem dele" C~x 3, 12 ) . Os pro-
Ao mesmo tempo que o pecado recuam também seus ef~i- dígios realizados por Moisés farão que · seja ouvido entre
tos: a doença e a morte. Por isso Cristo responde aos os seus, provarão que Javé "apareceu-lhe" realmente, que
enviados de João Batista: "cegos recuperam a vista, coxos é preciso "acreditar nele e escutá-lo" ( Ex 4,1), que é o
andam, leprosos ficam limpos, surdos ouvem, mortos ressus- enviado de Deus. Tendo saído do Egito e atravessado o
citam aos pobres é anunciada a Boa-nova" ( Lc 7 ,22). mar Vermelho, o povo "acredita em Javé é em Moisés, seu
Cura; e exorcismos significam que o reino de Satanás é servo" por causa dos prodígios que tinha visto (Ex 14,31 ).
Através de toda a história do profetismo é o milagre cons-
destruído e que o Reino de Deus chegou. O Cri_sto. está
tantemente invocado para fazer a separação entre os ver-
dotado de um poder único, irreprimível, que aniquila ~
dadeiros e falsos profetas. Elias, que ressuscita o filho da
Adversário e tudo renova, os corpos e as almas. Onde esta
viúva de Sarepta e faz descer o fogo do céu sobre o monte
o Cristo, ali está agindo o poder de salvação e de vida do Deus
Carmelo, mostra que Javé é o verdadeiro Deus ( lRs 18,
vivo: triunfa da doença e da morte, do pecado e ,de Sata-
37-39), que ele mesmo é seu "servo" (lRs 18,36) e que
nás. O Cristo é o mais forte porque a Mva.µ,Lç de Deus nele
a "palavra de Javé em sua boca é verdade" ( 1Rs 17 ,24 ) 11 •
habita a seu inteiro dispor (Mt 28,18).
Para que os judeus possam compreender que os orá- 9 Sobre esse aspecto do milagre, ver principalmente: C. DUMONT,
·culos dos profetas estão sendo cumpridos, que Satanás é "Unité et divetsité des signes de la révélation", Nouvelle Revue Théolo-
vencido e que o Reino de Deus chegou, Cristo faz que uma gique, 80 (1958): 136-137; P. BrARD, La Puissance de Dieu (Paris,
libertação física acompanhe a libertação espiritual que ele 1960), pp. 117-120; L. MONDEN, Le Miracle, signe de salut, pp. 127-132;
F. TAYMANS, "Le miracle, signe du surnaturel", Nouvelle Revue théolo-
traz. De um homem submetido a Satanás ele faz um homem gique, 77 (1955): 230-231; A. GEORGE, "Les miracles de Jésus dans
livre e justificado; para que os olhos possam testemunhar les Évangiles synoptiques", Lumiere et Vie, n. 33, juillet 1957, pp. 18-20;
a salvação concedida, de um paralítico ele faz um ??mem PH. Ho. MENOUD, "La signification du miracle dans le Nouveau Testa-
ment" Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 1948-1949, n. 3,
válido ( Me 2 ,3-12 ) . O milagre torna sensível e vmvel a pp. 177-181; A. RICHARDSON, The Miracle Stories of the Gospels (Lon-
renovação espiritual e invisível. Torna visível a presença don, 1956), pp. 38-58. ·
10 Segundo R. BuLTMANN, o milagre responde à Legitimationsfrage
e a ação salvífica do Cristo. Sua vitória sobre a doença e (Das Evangelium des Johannes [Gottingen, 1950], pp. 88-89).
sobre a morte é penhor e figura de sua vitória sobre o pecado e 11 Não é porém o milagre o único critério do profeta verdadeiro.
Há outros critérios: a fidelidade do profeta à religião tradicional ( Dt
13;2-6), o cumprimento de suas predições (Jer 28, 9; 32, 6-8; lRs 22,28),
8 L. MONDEN, Le mirade, signe de salut (Burges, 1960), p. 130. o testemunho do próprio profeta sobre a sobrenaturalidade de sua voca-
512 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 513
"Os judeus pedem sinais" ( 1Cor 1,22). É mais exi- 16,20; Hebr 2,4). Nos Atos diz-se que os apóstolos com
gência humana que simples reflexo tradicional. O ho- "grande poder" . . . "davam testemunho da ressurreição do
mem, antes de comprometer sua vida por uma palavra pro- Senhor Jesus" ( At 4 ,3 3 ) . O poder miraculoso• .dos apósto-
cura um apoio para sua razão: quer saber a quem se confia. los é um testemunho dado por Deus: "o Senhor confir-
Quando o Cristo se apresentou, teve que enfrentar essa mava a pregação da sua graça, operando sinais e prodígios
exigência. Por duas vezes é intimado a fornecer sinais que por suas mãos" ( At 14,3). A intervenção de Deus confir-
justifiquem suas ações e suas pretensões de enviado de Deus ma a pregação apostólica e o seu objeto, isto é, que Jesus
· (Jo 2,18;6,30). Também na cura do paralítico (Me 2,10), ressuscitou e que tem o poder de salvar os que nele
na ressurreição de Lázaro (Jo 11,41-42), nas apóstrofes acreditam 13 •
contra Betsaida e Corozaín ( Mt 11,21 ) apela explicitamen-
te para seus milagres como garantias de sua missão e de 4. Sinal da glória do Cristo
seus poderes. Para quem os recebeu, os milagres são sinais,
Essa função jurídica do milagre aparece principalmen- mas do ponto de vista do Cristo, são mais pro-
te no Evangelho de são João. Observa o evangelista que, priamente obras do Filho. Considerados como obras, os mi-
"à vista dos sinais" de Jesus, muitos judeus acreditaram lagres prendem-se à consciência que o Cristo tem do mis-
nele (Jo 2,23). Nicodemos reconhece que o Cristo "vem tério de sua filiação divina e à revelação desse mistério 14.
da parte de Deus'', porque ninguém poderia fazer os sinais São testemunho do Pai em favor daquele que é maior que
que ele realiza "se Deus não estiver com ele" (Jo 3 ,2). O Jonas e Salomão ( Mt 12,41-42), maior que Moisés e Elias
cego de nascença invoca, contra os fariseus que o acossam, (Me 9,2-10), maior que Davi (Me 12,35-37 e João Ba-
o argumento tradicional: "se ele não viesse de Deus nada tista ( Lc 7 ,18-28), elevado acima dos profetas como o
teria podido fazer" (Jo 9,33 ). Para muitos já a grande Filho acima dos servos ( Me 12,1-12). Os milagres enquan-
multidão de milagres é um sinal: "O Messias, quando vier, to obras do Cristo são a sua atividade propriamente divina
fará acaso mais milagres do que ele faz? " (Jo 7 ,31 ) . Se- de Filho de Deus entre os homens. Devem garantir sua
gundo João, a entrada triunfal em Jerusalém foi diretamen- missão de Enviado de Deus, não, porém, como simples
te provocada pela ressurreição de Lázaro (Jo 12, 18 ) 12 • Os profeta ou Messias humano, mas como Filho do Pai, igual
milagres do Cristo atestam, pois, que ele é o Enviado de ao Pai, que partilha com o Pai o conhecimento ( Mt 11,27 )
Deus. Depois de Pentencostes, Pedro dirá aos judeus refe- e a onipotência (Mt 28,18; Jo 3,35). Confirmam a pre-
rindo-se ao Cristo: esse "homem comprovado por Deus tensão central do testemunho do Cristo, isto é: ser Filho
junto de vós pelos milagres, prodígios e sinais que operou" de Deus vivo.
( At 2,22). Se o Cristo realizou curas e expulsou demônios Com efeito, o Pai "ama o Filho e todas as coisas en-
é porque "Deus estava com ele" (At 10,38). tregou em sua mão" (Jo 3 ,.3 5). Se pois o Pai entrega ao
O mesmo se diga dos milagres feitos pelos apóstolos: Filho sua onipotência, os milagres são os sinais manifestos
são sinais que atestam · a autenticidade de sua missão ( Me da aprovação do Pai. São o selo inimitável da onipotência
divina no testemunho de quem se apresenta como o Filho
ção (Am 3,8; Is 8,11; Jer 1,4-6), mantido mesmo na perseguição e no do Pai. Apresentam-no em sua glória de Filho unigênito.
martírio. Com eles o Pai atesta que o Cristo é veraz (Jo 6,27). Tan-
12 D. MoLLAT, "Le Semeion johannique", Sacra Pagina, pp. 211-212;
L. CERFAUX, "Les miracles, signes messianiques de Jésus et oeuvres de 13 J. DUPONT, "Repentir et conversion d'apre les Actes des apôtres",
Dieu", em L'Attente du Messie ( Coll. "Recherches bibliques", Louvain, Sciences Ecclésiastiques, 12 (1960): 160,162.
1958), p. 134; R. FoRMESYN, "Le semeion johannique et le semeion 14 H. VAN DEN BusscHE, "La structure de Jean 1-XII", em L'Évan-
hellénistique", Eph. theol. lov., 38 (1962): 883-890. gile de Jean (Coll. Recherches bibliques", Louvain, 1958), p. 89.

17 - Teologia da revelação
514 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 515

to que o Cristo, ante seus ouvintes e contraditores, sempre realize os milagres como obras próprias 16 • A glória do Pai
apresenta seus milagres como testemunho do Pai em seu fa- e a glória do Filho estão indissoluvelmente ligadas. "Assim
vor. "As obras que o Pai me deu para realizar, essas mes- como o Pai desperta e reaviva os mortos, assim também o
mas obras que faço, atestam, a meu respeito, que o Pai me Filho dá a vida àqueles que quer" (Jo 5 ,21 ) . "As obras
enviou" (Jo 5,36-37;10,25). É preciso acreditar no Cristo, que o Pai me deu para realizar, essas mesmas obras que
se não por suas palavras, ao menos por causa de suas obras . faço ... " (Jo 5,36). Portanto, ver a atividade do Cristo
(Jo 1O,37-38). Esse testemunho do Pai em favor do Filho, é ver o Pai presente no Filho, exercendo através das obras
pelas obras de poder, tira aos judeus qualquer desculpa: é do Filho sua atividade criadora e salvífica (lo 14,9-10); é,
culpável sua oposição ao Cristo. "Se eu, entre eles, não tivesse num só olhar, ver o Filho e o Pai que ele manifesta 17 •
realizado obras, como nenhum outro realizou, não teriam O fato de o Pai entregar assim ao Filho seu poder e
culpa; mas agora, não obstante tenham visto, odeiam a suas obras, a tal ponto que as obras sejam ao mesmo tempo
mim e a meu Pai" (Jo 15 ,24, 9 ,41 ) . Assim como Cristo do Pai e do Filho, isso mostra entre o Pai e o Filho uma alian-
se esforçou por levar os judeus a compreender sua filia- ça única, uma perfeita união na ação e no amor; mais ainda,
ção divina, assim também se esforçou para levá-los a ver uma unidade no amor, um mistério de amor. Os milagres re-
nos milagres não apenas prodígios, mas as obras do pró- velam que o Pai está no Filho e o Filho no Pai, unidos num
prio Filho, vivo e agindo em seu meio 15 • Contudo, essa mesmo Espírito. O Cristo diz a Filipe: "Não acreditas que eu
revelação das obras do Filho, bem como a de sua pessoa, estou no Pai e que o Pai está em mim? ... o Pai que está
terminou com um fracasso (Jo 10,31-34 ). Destinava-se, po- em mim, ele faz as obras. Crede em mim: eu estou no Pai e
rém, a manifestar nas obras do Cristo sua glória de Filho o. Pai está em mim. Ao menos crede-o por causa das obras
único (Jo 1,14;2,11;11,40), pois o Cristo está entre os ho- mesmas" (Jo 14,10-11;10,37-38). "O Pai e eu somos um"
mens com o· Poder de Javé. O milagre é a manifestação (Jo 10,30;17,11.22).
evidente desse Poder, é o gesto do Verbo de Deus feito Portanto, os milagres do Cristo devem ser postos em
carne. paralelo com as grandes obras de Deus na história de Israel,
a criação e os prodígios: magnalia Dei, ao mesmo tempo
5. Revelação do mistério trinitário obras de poder e de salvação, reveladoras do mistério de
Deus. Devemos, porém, lembrar que suas virtualidades de
Na perspectiva do quarto Evangelho, os milagres-obras
revelação não se mostram claramente senão à luz · da pa-
não são apenas o selo do Pai sobre a palavra do Filho; intro-
lavra que as acompanha. As obras do Cristo são revelado-
duzem também no próprio mistério trinitário. Obras co-
ras da vida trinitária, isso porém enquanto unidas ao teste-
muns do Pai e do Filho, eles manifestam a unidade pro-
munho de Jesus sobre si mesmo e sobre sua missão 18 •
funda que os une.
De fato, as obras do Cristo são ao mesmo tempo suas 16 A. VANHOYE, ''L'oeuvre du Christ, don du Pere", Recherches de
obras (Jo 5,36;7,21;10,25) e obras do Pai (Jo 9,3-4;10, science religieuse, 48 (1960): 404-405; Observa Vanhoye: "Que le Pere
32 .3 7; 14, 10 ) . O Cristo recebe-as do Pai de quem tudo donne à Jésus son oeuvre, cela signifie qu'il lui fait connattre sa volonté
et le charge de l'exécuter, mais aussi qu'il lui fait confiance pour la
recebe, de quem é sempre a iniciativa (Jo 5,19-20.30;14, réalisation de son dessein de salut, cela signifie, d'autre part, qu'il confere
10), e que lhe confia a sua realização (Jo 5,36). Essas à Jésus le pouvoir de la réaliser personnellement" (lbid., p. 1408). Cfr.
obras, porém, são ao mesmo tempo do Filho, porque o tb. A. VANHOYE, "Opera Jesu, donum Patris", Verbum Domini, 36 ( 1958):
83-92; H. VAN DEN BusscHE, "la structure de Jean 1-XII", em L'Évan-
Pai entregou ao Filho todo seu poder para que o Filho gile de Jean, pp. 92-93.
17 L. CERFAUX, "Les miracles, signes messianiques de Jésus et oeuvres
IS H. VAN DEN BusscHE, "La structure de Jean 1-XII", em L'Évan- de Dieu", em L'Attente du Messie, pp. 1.36-137.
18 Quanto a isso observa H. VAN DEN BusSCHE: "Le miracle . ..
gile de Jean, pp. 94-96.
516 REFLEXÃO TEOLÓGICA
MILAGRE E REVELAÇÃO 517
Cristo vem salvar, libertar do pecado. Para atestar a pre-
6. Símbolo da economia sacramental
sença dessa atividade salvífica, Cristo prolonga-a na saúde
corporal. Em primeiro lugar sua ação atinge a raiz do mal,
Estaríamos falseando a Escritura se reduzíssemos o
o pecado; mas a atividade salvífica sensível simboliza, ao
milagre apenas a seu valor comprobatório ou jurídico. O me~mo tempo que a garante, a atividade salvífica espiri-
milagre está intrinsecamente ligado à mensagem. Não apenas
tual. Esta é mais importante e tem a precedência: "O que
acompanha e autentica a palavra, mas também, a seu modo,
é mais fácil dizer ao paralítico: teus pecados são perdoa-
manifesta a sua natureza profunda. Como diz santo Agos-
dos, ou dizer-lhe: levanta-te?" (Me 2,9) 20 • A cura sensí-
tinho: "Perguntemos aos milagres o que eles nos tê~ a
vel "é a indicação do pecado perdoado, não por simbolismo
dizer sobre o Cristo; para quem os compreende, os mila-
arbitrário e puramente artificial, mas na identidade do mes-
gtes têm sua linguagem. Com efeito, o Cristo sendo o
mo fato salvífico: o perdão é seu aspecto invisível, a visão
Verbo de Deus, cada ação do Verbo é também uma palavra
do paralítico curado é seu reflexo imediato e perceptível
que nos é dirigida" 19 •
em a natureza sensível" 21 • A cura do leproso (Me 1,40-45)
A vinda de Cristo inaugura um mundo novo, o mun- simboliza o retorno do pecador para a sociedade do Reino de
do da graça; faz uma revolução, a da salvação pela cruz.
Deus, sinal tanto mais expressivo pelo fato de a lepra afas-
O milagre manifesta, como que por transparência, a trans-
tar o homem da sociedade, assim como o pecado o exclui
formação operada. Ê a imagem expressiva dos dons es-
da sociedade divina. O prodígio da figueira que secou ( Me
pirituais oferecidos aos homens na pessoa do Cristo. As
11,12-14) é uma parábola dramatizada: indica e condena a
maravilhas operadas na ordem física são figuras, símbolos
esterilidade do povo judeu. A mulher recurvada havia de-
das maravilhas da graça, do esplendor e da diversidade de
seus dons. zoito anos ( Lc 13, 16), atada por Satanás e libertada pelo
Cristo, evoca a escravidão e a libertação da humanidade.
Já nos Sinóticos se delineia o simbolismo dos mílagres.
A libertação dos possessos de Gerasa, cujos espíritos maus
Em Lucas, a pesca milagrosa é sinal, sem dúvida, da ex-
se apoderam de uma vara de porcos que se precipitam no
pansão espiritual da Igreja mediante a evangelização: "do-
mar, significa o poder de destruição do pecado, ao mesmo
ravante ficarás a pescar homens" (Lc 5,10). A cura dopa-
tempo que o poder do Cristo que vem aniquilar a força de
ralítico confirma, em primeiro lugar, a veracidade das pala-
Satanás ( Mt 8 ,28-34). A cura dos doentes pela imposição
vras do Cristo: "Teus pecados são perdoados" ( Me 2 ,5 ) . O
das mãos ( Mt 9 ,18; Lc 13, 13 ) , as unções com óleo que
n'est compris comme oeuvre du Pere que par l'explication de Jésus, qui,
os apóstolos fazem nos doentes ( Me 6,13) são sinais pre-
elle, est à son tour garantie par le miracle. Miracle et discours ne font figurativos da· unção sacramental que a Igreja faz em nome
qu'un seul procédé de révélation. Le miracle se prolonge en discours et do Cristo (Me 16,18; Tg 5,14-16). Para os judeus, que
le discours fait comprendre le miracle" (La structure de Jean I-XII", percebem o nexo profundo que une pecado, sofrimento e
em L'Evangíle de Jean, p. 93).
19 "Interrogemus ipsa miracula, quid nobis loquantur de Christo; morte, esse simbolismo já de per si é muito eloqüente.
habent enim, si intelligantur, linguam suam. Nam quia ipse Christus Mesmo se o Cristo nem sempre insiste na relação, o contex-
Verbum Dei est, etiam factum Verbi verbum nobis est" (Aug. In Jo.
tract. 24, 6: PL 35 col. 1953). Os milagres são: "l'expression signifi- to total de sua doutrina e de seu comportamento sugerem-na
cative d'une oeuvre divine, langage surnaturel, parole de salut qui s'adresse suficientemente.
à nous en actes intelligibles. Tous les grands themes de l'Évangile: libé-
ration du peché, intimité avec Dieu par le sacrement de son Verbe in- 20 R. ScHNACKENBURG, Gottes Herrschaf t und Reieh
carné, sen rédempteur de la croix, gloire promise et gloire déjà présen~e, ( Freiburg,
tous ces themes se traduisent en action dans les miracles de J ésus, ils 1959), pp. 59-62; A. ScHLIER, Machte und Gewalten im Neuen Testa-
ment (Freiburg, 1958), pp. 37-49.
deviennent images vécues et symboles chargés de sens" ( L. MoNDEN, 21 C. DUMONT, "Unité et diversité des signes de la Révélation",
Le miracle, signe de salut, pp. 102-103).
Nouvelle Revue théologique, 80 (1958): 137.
r
518 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 519
É, porém, no Evangelho de João que principalmente se Em primeiro lugar, o mliagre é sinal da libertação e
manifesta o simbolismo dos gestos miraculosos do Cristo. da glorificação dos corpos. O Cristo ressuscitou como "pri-
Seu Evangelho é propriamente o Evangelho dos sinais. Ali mogênito dos redivivos" ( Col 1, 18 ) , como "príncipe da
os milagres são prefigurativos da economia sacramental. A vida" ( At 3,15): "ele destruiu a morte" ( 2Tim 1,10).
transformação da água em vinho em Caná ( J o 2 ) inaugura Ora, pela ressurreição, o Espírito, que é vida e princípio
a nova criação. Nas vasilhas de pedra, que serviam para vivificante, foi dado aos homens. Se esse Espírito que em
· as purificações legais, o Cristo coloca o vinho novo, melhor nós habita pela graça ( lCor 3,16) "ressuscitou Jesus den-
que o velho, e reservado até o fim. Esse vinho novo é tre os mortos", "vivificará também nossos corpos mor-
sinal da Nova Aliança no sangue do Cristo, sinal das núpcias tais" ( Rom 8, 11 ) . Invisível agora, essa transformação apa-
do Cristo e da sua Igreja, sinal de nosso ingresso na socie- recerá na parusia, quando o corpo será glorificado. "É, de
dade nova pela água e pelo sangue, isto é, pelo batismo e fato, necessário que este corpo corruptível se revista da
pela eucaristia 22 • A cura do paralítico (Jo 5) pela pala- incorruptibilidade. e que este corpo mortal se revista da
vra do Cristo que perdoa os pecados (Jo 5, 14 ) e pela água imortalidade " ( 1Cor 15 ,5 3 ) .
da piscina é símbolo da regeneração do homem pelas pa- Os milagres do Cristo já anunciam essa ação do Espí-
lavras e pela água do batismo. A cura do cego de nascença, rito sobre toda a carne. A vitória sobre a doença corporal
na piscina de Siloé (Jo 9), é sinal do batismo como ilumi- manifesta o triunfo da vida. A vida subitamente reencon-
nação: o Cristo é a luz do mundo (Jo 9,5;1,9;8,12). O trada é o sinal da vida que· o Cristo dá em abundância.
batismo é ao mesmo tempo purificação e iluminação, novo Principalmente a ressurreição do Cristo é o penhor e o tipo
nascimento pela água e pelo espírito (Jo 3,5). A cura do de nossa própria ressurreição. O corpo transformado do
filho do oficial real manifesta o poder da palavra de Jesus ~risto, o corpo de Maria já associado à sua glória, signi-
e da fé nessa palavra (Jo 4,50). Na multiplicação dos ficam que o Senhor "transformará o nosso corpo miserável,
pães (Jo 6), o Cristo convida a reconhecer o sinal do ver- tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude
dadeiro pão, do "pão de Deus que desce do céu e dá a vida daquele poder com que pode sujeitar ao seu domínio todas
ao mundo" (Jo 6,32): símbolo evidente da ceia euca- as coisas': (Flp 3,21 ). Quando tudo se tiver cumprido, a
rística. Finalmente, a ressurreição de Lázaro (Jo 11, 1-44) carne sera transformada em glória.
apresenta o Cristo como a ressurreição e a vida, uma vida . O milagre é também sinal anunciador da redenção do
que pode vivificar o que está morto. Simboliza a vitória umverso. Na mentalidade bíblica, há uma íntima solidarieda-
total do Cristo sobre a morte e prefigura nossa ressur- de entre o homem e o universo físico. O homem e a terra da
reição e a sua. qual foi tirado ( Gên 2,7) partilham do mesmo destino.
A palavra de Deus, julgamento ou salvação, dirige-se ao
7. Sinal das transformações do mundo escatológico hom_e1:1-no-mundo, Todo o universo, arrastado pelo homem,
participa de seu pecado e de sua redenção. Ora, segundo
O milagre, finalmente, é sinal prefigurativo das trans- o Gênesis, a harmonia da criação foi destruída pelo peca-
formações que se devem operar no fim dos tempos, no cor- do de Adão. A Aliança foi rompida entre o homem e seu am-
po humano e no universo físico. Pois a redenção não se biente; começa existir uma luta silenciosa entre ele e os ani-
restringe ao mundo do espírito: deve tomar conta do cos- mais, entre ele e a terra (Os 4,2-3: Gên 3,17-18; Jer 5,6).
mos todo com a sua luz e o seu poder, deve renovar tudo quan- A desordem é universal, no mundo físico e nas consciências.
to foi atingido pelo pecado.
BouRASSA, "Themes bibliques du baptême", Sciences Ecclésiastiques, 10
22 D. MoLLAT, "Le Semeion Johannique", Sacra Pagina, p. 212; F. (1958): 429.
r
1

520 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 521

O homem faz a aprendizagem do trabalho, da dor, da doen- gundo são Paulo, o universo não está destinado a ser ani-
ça, da morte ( Gên 3,19). quilado; deverá ser transformado, glorificado; o como, po-
Mas o Cristo, por sua morte e sua ressurreição, veio res- rém, dessa transformação, não o conhecemos 24.
tabelecer a ordem onde reina o pecado. A redenção deve É de se notar que os últimos capítulos do Apocalipse
estender seus benefícios até o universo material, que reen- retomam os primeiros capítulos do Génesis. Quando tudo
contrará seu esplendor primitivo. A presença de Deus en- se tiver cumprido, a carne será transfigurada na glória. A
tre os homens era o princípio de harmonia no paraíso. A morte será vencida. Já não haverá choro, gritos, sofrimen-
paz entre Deus e o homem era a fonte de paz entre o homem tos, (Apoc 21,4). Haverá, porém, "novo céu, nova terra"
e o mundo. O pecado, rompendo a intimidade entre Deus (Apoc 21,1; 2Pdr 3,12-13 ). O Rio de água viva jorrará
e o homem, destruiu essa harmonia. Com o Cristo, porém, sem cessar; suas margens estarão cobertas de frutos sabo-
Deus novamente habita entre os filhos dos homens (Jo rosos (Apoc 22,1-2). Entre o Gênesis e o Apocalipse, tem-
1, 14). E a criação toda está novamente submetida ao novo po de Israel e da Igreja, o milagre é uma réstea de luz que
Adão. A natureza torna-se de novo maleável e obediente. prefigura a luz plena. Manifesta que o corpo glorificado do
Os profetas tinham anunciado que os tempos da sal- Cristo trabalha para restituir à criação seu esplendor per-
vação messiânica trariam uma vólta à paz do paraíso, à dido. Anuncia e inicia a transformação definitiva do univer-
harmonia perfeita entre o homem, a terra e os animais ( Is so, quando o poder de Deus, destruídos a morte e o pecado,
11,5-9;35,l-2.5-9;41,18-19; Am 9,13; Jl 4,18-19; Os 2, estabelecerá to.das as coisas como perpetuamente novas. San-
23-24; Ez 34,25-27; SI 91,13;85,13; Jó 5,22-23 ). Ora, os to Ambrósio diz com muita precisão: "Resurrexit in eo
pães já se multiplicam entre as mãos do Salvador ( Me 6, [ Christo] mundus, resurrexit in eo coelum, resurrexit in eo
30-45); o mar e os ventos obedecem-lhe ( Me 4,39); as terra. Erit enim coelum novum et terra nova" 25 •
ondas tornam-se firmes sob seus pés (Me 6,49); os filhos
24 S. LYONNET, "La rédemption de l'univers", Lumiere et Vie, n. 48,
da nova criação, os apóstolos, seguram as serpentes, tomam juillet-aout 1960, pp. 43-62.
veneno e nada sofrem ( Me 16 ,1 7-18 ) . Esses milagres cós- 25 De Fide resurrectionis, segundo noturno do quinto domingo de-
micos são sinais prenunciadores das transformações do mun- pois da Páscoa. Ver também: H. HoLSTEIN, "Le miracle, signe de la
do escatológico, da renovação que deve marcar o termo da Présence", Bible et Vie chrétienne, n. 38, mars-avril 1961, pp. 56-58;
L. MONDEN, Le miracle, signe du salut, pp. 36-37. O P. DE GRANDMAISON
história da salvação 23 • faz uma magnífica exposição desse aspecto do milagre. Mostra que, no
Em Rom 8,19-21, são Paulo vê o homem e o universo mundo do pecado, o milagre é o sinal da presença do Filho de Deus.
Sob a ação de seu Criador que vem refazer e resgatar o que o pecado tinha
arrastados pelo movimento da redenção para sua glorifica- escravizado e destruído, o mundo reencontra seu esplendor inicial. Os
ção final. "A criação atende ansiosamente a revelação dos milagres são o sinal dessa transformação, desse retorno ao esplendor ori-
filhos de Deus", esperando ser libertada "da escravatura da ginal. "Singes de réalités plus hautes, spirituelles, éternelles, oeuvres de
lumiere et de bonté, ils sont encore des oeuvres de puissance et, comme
corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de tels, ils commencent d'instaurer le royaume de Dieu qu'ils représentent
Deus" (Rom 8,19-20). O universo é chamado para de certa au vif. Par leur éclat, ils tirent les regards de ceux qui sont plus éloignés
de croire, plus indolents ou plus frivoles. Mais ils vont aussi à promouvoir
forma participar da glória dos filhos de Deus. Será liber- l'oeuvre de relévement. Les esprits malins sont humiliés, contredits,
tado de seu atual estado que é "vaidade, servidão, corrup- chassés; les infirmités, les tares, les miseres du pécl1é d'origine sont
ção", para passar a uma nova situação que Paulo chama mitigées, éloignées, vaincues. Le mal sous toutes ses formes, recule.
L'empire heureux exercé par le premier homme au temps de l'innocence
de "liberdade do estado glorioso". O universo atual sofre du monde, et l'image incllantait comme un beau rêve les yeux de l'huma-
as dores de parto de um estado melhor ( Rom 8 ,22 ) . Se- nité vieillie, reparait soudain comme un premier trait d'aurore, humble
début du redressement total, gage du jour ou les âmes et ensemble les
corps seront sauvés, pour vivre à Dieu" (Jésus-Christ, [Paris, 1928], t.
23 E. BEAUCHAMP, La Bible et le sens religieux de t-'univers (Paris,
2, p. 368).
1959) pp. 187-192.
522 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 523
é apenas traço, vestígio de uma presença, de uma ação, mas
II. REVELAÇÃO E FUNÇÕES DO MILAGRE exprime uma intenção de intercâmbio pessoal. É sinal de al-
guém para alguém, no sentido em que dizemos: "fazer sinal
Em resumo, segundo a Escritura os milagres do Cristo para alguém". Apresenta-se como uma interpelação ou uma
mostram-se primeiro como manifestações da Agape de Deus· resposta de Deus. Pelo milagre, Deus se dirige ao homem, fa-
que responde à miséria do homem. Depois, no contexto do la-lhe, faz-lhe sinal em a natureza, por algum motivo 26 • · Evi-
anúncio profético do Messias e de seu Reino, significam que dentemente, o conteúdo dessa palavra deve ser definido con-
o Reino anunciado chegou finalmente e que Jesus de Nazaré forme o contexto. Antes, porém, de qualquer determinação•
é o Messias esperadq: os milagres cumprem as Escrituras. o milagre é um sinal expressivo da benevolência de Deus
Considerados à luz de uma longa tradição que vê no mila- para com o homem. Com efeito, se Deus intervém extraor-
gre um dos principais critérios para garantir a autenticidade dinariamente a favor do homem, para curá-lo, ressuscitá-lo,
de uma missão divina, eles certificam-nos que o Cristo é o então essa intervenção pode significar apenas a benevolência
Enviado de Deus e que sua palavra é verdadeira; garantem- extraordinária do Deus de amor. Blondel diz que o mila-
-nos, ainda mais, que ele é o Filho do Pai, pois o milagre, gre "manifesta analogicamente a derrogação real que a or-
posto em relação com essa afirmação central da mensagem dem da graça e da caridade introduz nas relações entre o
do Cristo, garante-a como verdadeira. O milagre manifesta homem e Deus" n.
que Deus está presente e age no Cristo; a glória de Deus A maioria dos milagres do Cristo são curas e ressur-
pertence ao Cristo e qualifica o seu ser. Os milagres, ao mes- reições, gestos de misericórdia e de bondade. Antes de
mo tempo que confirmam o Cristo como Filho de Deus, eles qualquer mensagem particular eles já são palavra de graça, ex-
nos manifestam a natureza profunda de sua mensagem; mos- pressão de amor. São como que saudação amiga e aten-
tram sensivelmente as maravilhas invisíveis do novo Reino; ciosa que dispõe para o diálogo. O Evangelho vai abrindo
sãó os símbolos do mundo da graça e dos sacramentos. Fi- seu caminho com a caridade. Quanto à revelação pois, a
nalmente, deixam entrever antecipadamente a ordem gloriosa primeira função do milagre é significar a presença e a be-
da ressurreição dos corpos e da transformação do cosmos névola iniciativa do Deus de amor e dispor · a alma para
no fim dos tempos. ouvir a Boasnova.
Esses diversos aspectos não são independentes entre si. 2) A segunda função do milagre é comprobatória ou
Implicam-se e esclarecem-se mutuamente; de um a outro há jurídica. Por sua transcendência física e pelo contexto re-
uma transição que mal se percebe. A análise obriga-nos a fazer ligioso em que se manifesta, o milagre apresenta-se como
cortes na realidade, para podermos perceber sua riqueza; de- um sinal de Deus. Explicitamente invocada em favor de uma
vemos, porém recompor o que a análise distinguiu, sem per- mensagem que se pretende revelada, significa que Deus
dermos de vista que as cores decompostas pelo prisma pro- a aprova, sanciona e garante. O conteúdo dessa palavra de
vêm do mesmo foco luminoso. Se, porém, queremos agrupar aprovação é radicalmente diverso do conteúdo daquela pa-
e sistematizar os. dados da Escritura, parece que podemos lavra que chamamos revelação. O enviado de Deus afir-
reduzir a três as funções essenciais do milagre com referên- ma: "Eis o que Deus vos convida a acreditar". O milagre afir-
cia à revelação: o milagre 1) dispõe, 2) comprova juridi- ma: "Este homem é realmente meu enviado; fala em meu
camente, 3 ) figura e simboliza.
1 ) O milagre dispõe para ouvir a mensagem, pois é um 26 E. DHANIS, "Qu'est-ce qu'un miracle?", Gregorianum, 40 (1959)
sinal de benevolência, é uma palavra de graça. Pois o mila- 228.
gre é uma espécie de palavra. Inclui-se entre os sinais usa- 27 "Miracle" Vocabulaire philosophique de LALANDE (Paris, 1951),
p. 632. '
dos pelas pessoas para manifestarem seus pensamentos. Não
524 REFLEXÃO TEOLÓGICA MILAGRE E REVELAÇÃO 525
nome: o que ele diz é verdade; acreditai em suas palavras". A encontro inaudito entre Deus e o homem: confiou-lhe Deus
revelação é comunicação da mensagem e convite para crer a missão de significar esse mistério, infinitamente maior
nessa mensagem. O milagre é o selo divino sobre a men- que o mistério atestado pela ordem das leis naturais 28 • Ainda
sagem, garantia de sua origem divina; não é a mensagem, mais que o milagre, pela multiplicidade de suas formas, é
mas o que dá creden,ciais à testemunha e autoriza sua pa- apto para sugerir a riqueza e a diversidade dos aspectos da
lavra. É o sim de Deus pa:ra uma palavra que apela para economia da graça e dos sacramentos. O alcance de signi-
ele. Devemos, porém, notar os matizes desse sim conforme os ficação da analogia do milagre com o universo da graça ga-
títulos de quem fala. O profeta pede a Deus sinais que nha consistência, precisão e maior riqueza de conteúdo
confirmem sua missão de mensageiro divino: nesse caso pela mensagem. Assim o milagre, selo divino da mensagem,
o milagre recomenda o profeta como enviado de Deus e sua já não se apresenta como algo estranho à mensagem, mas
palavra como palavra de Deus. O Cristo, porém, declara-se afim.
não apenas como mensageiro de Deus, mas como Filho do Pai
e seu igual. Já agora o sim de Deus confirma essa verdade Mas também a mensagem recebe do milagre um acom-
panhamento contínuo no plano sensível. O milagre é a di-
central de sua mensagem, ou seja, que é Deus; com isso ga-
mensão carnal da mensagem espiritual. Ele, numa economia
rante também toda sua mensagem. A Igreja pretende ser
de encarnação, visualiza a palavra e lhe dá relevo 29 • Diz-
a continuadora do Cristo-Deus: historicamente ( apostolici-
dade), moralmente (santidade), doutrinalmente ( continui- -nos o Evangelho que o Cristo veio salvar a humanidade,
dade na fé). Em seu caso, o milagre atesta que Deus re- libertá-la do pecado, purificá-la e vivificá-la eternamente.
conhece a verdade dessa sua continuidade com o Cristo e O milagre, curando os corpos, ressuscitando-os, torna visível
com Deus; atesta a origem divina de sua doutrina e de seu essa libertação e essa ressurreição espiritual. Ele é, em a natu-
poder de santificação. reza, o reflexo do mistério da salvação. Delineia a nova cria-
Em sua função confirmativa, pois, o milagre é palavra ção que sé inicia e que espera sua plena glorificação. O mila-
comprobatória de Deus; é o selo da onipotência divina gre demonstra também que a palavra da salvação não é uma
aposto a uma palavra que se pretende divina. Ainda mais: se, palavra ôca, mas sim uma palavra-energia, uma palavra-ato,
como no caso de Cristo e da Igreja são milagres que foram a palavra eficaz do Deus vivo. Milagre e revelação caminham
preditos, então eles são comprobatórios por dois tí~ulos: paralelamente: são como as duas faces, visível e invisível,
do mistério.
enquanto milagres e enquanto cumprimento de profecias. O
argumento jurídico completa-se com o argumento profético. Portanto, o milagre dispõe para a revelação; autenti-
3 ) A função comprobatória do milagre pareceria po- ca-a como palavra divina; é a sua figuração sensível. Essas
bre se isolada de ambas as outras. Com efeito, enquanto três funções são inseparáveis e estão a serviço da mesma
palavra o milagre, sinal de aprovação divina, não poderia realidade.
competir com uma mensagem expressa em linguagem huma-
na: não tem nem. a mesma riqueza nem a mesma precisão.
Acontece, porém, que a função comprobatória do milagre é
inseparável de sua função figurativa ou simbólica. O milagre
tem estreita afinidade com a própria mensagem. Sua parado-
xal transcendência, na ordem da natureza, torna-o maravilho-
samente apto para sugerir o mistério de nossa elevação à or- 28 E. DHANIS, "Qu'est-ce qu'un miracle?", Gregorianum, 40 (1959):
dem sobrenatural, já que é a analogia sensível do mistério 232-233; L. MoNDEN, Le miracle, signe de salut, p. 30.
29 F. TAYMANS, "Le miracle, signe surnaturel", Nouvelle Revue
revelado. Pela revelação tornou-se o universo ó lugar do théologique, 77 ( 1955): 234-235.
IGREJA E REVELAÇÃO 527
7. gélica, convocada pela palavra. Desde o começo 1 a vida da
IGREJA E REVELAÇÃO Igreja depende dessa palavra que a gera e nutre .
Na maneira de falar dos Sinóticos é a palavra de Deus
que funda o novo Reino ( Mt 13, 19). As parábolas nada
mais fazem senão descrever a história dessa fundação. Na
parábola do semeador, a palavra é semeada nos corações
para que os homens ouçam e compreendam ( Mt 13 ,23),
isto é: para que acreditem (Me 4,9; Mt 11,15; Lc 14,35)
e produzam frutos de vida ( Mt 13 ,23 ) . Como, o !erm~n-
Com o Cristo e os apóstolos, suas testemunhas, está to, a palavra tende a unir os homens em um so pao vivo
concluída. a revelação. Deus não nos dirige outra palavra, (Mt 13,33 ).
mas continua a dirigir-nos a palavra que disse uma vez para Os Atos dos apóstolos mostram-nos a comunidade cris-
sempre. A Igreja, que nasceu da pala~ra do C~isto, co~- tã primitiva suscitada e alimentada pela palavra. É pela
serva essa palavra e não cessa de a meditar, repetir e expli- pregação de Pedro que nasce a comunidade de Jerusalém,
car aos homens de todos os séculos. Entre a Igreja e a re- que acolhe a palavra e se deixa batizar ( At 2,41-42).
velação, entre a Igreja e a palavra, existe doravante múlti- Os judeus da Samaria, ouvindo a pregação de Filipe que
plo e vital relacionamento. A Igreja depende da palavra e "anunciava a Boa-nova do Reino de Deus e do nome de
a palavra depende da Igreja. Queremos agora examinar esse Jesus Cristo", também recebem a palavra e são batizados
relacionamento. Explicitamente, qual é a relação entre a pa- ( At 8,12.14). Nesses primeiros tempos da Igreja, a
lavra e o mistério da Igreja e de seu crescimento? Como a palavra manifesta tal dinamismo que os Atos a represen-
Igreja está a serviço da palavra? De que natureza é sua tam como uma espécie de ser pessoal: "a palavra de Deus
ação quanto à mensagem da salvação e quanto aos homens crescia e se multiplicava" (At 12,24); "a palavra do Se-
aos quais se dirige essa mensagem? nhor espalhava-se por toda a região" ( At 13 ,4 9 ) .
Segundo são Paulo a Igreja é a assembléia suscitada pela
convocação divina expressa na mensagem cristã ( Rom 1,6;
I. A PALAVRA CONVOCA E GERA A IGREJA
1Cor 1,2 ) . Está fundada sobre a pregação dos apóstolos ( Ef
2,20). A Igreja de Corinto nasceu da pregação de Paulo
Foi a palavra do Cristo que deu aos apóstolos a ini- ( 2Cor 3,3). Os efésios foram incorporados ao povo de
ciação nos segredos do Pai, foi ela que fundou a Igreja Deus porque acreditaram na palvra da verdade, na Boa-nova
dando aos apóstolos o tríplice poder de pregar, de santi- da salvação ( Ef 1,13). A palavra de Deus frutifica e de-
ficar e governar. Foi da palavra do Cristo que os apóstolos senvolve-se em todo o mundo (Col 1,6; lTes 1,8); desti-
receberam a missão de convidar os homens para a fé e de in- na-se à edificação do corpo do Cristo que é a Igreja, à cons-
corporá;los, pelo batismo, à sociedade do Pai e do Filho tituição do Homem perfeito, do Cristo total, cabeça e
em um mesmo Espírito: uma fé, um batismo, um Espírito membros (Ef 4,11-13 ).
( Ef 4,5). Num sentido, pois, podemos afirmar que a Igre-
São João refere-se a Cristo como ao Bom Pastor que
ja é convocada e gerada pela palavra. "Fui eu que, por meio
chama todas as suas ovelhas para que não haja senão urp
do Evangelho, vos gerei em Cristo Jesus", diz são Paulo
só rebanho e um só pastor (Jo 1O, 16 ) . A grande preocupa-
( 1 Cor 4,15). Os cristãos são chamados pelo Evangelho
ção do Cristo é a convocação dos homens pela palavra: "Eu
do Cristo ( Rom 1,6). Antes de ser uma comunidade euca-
rística e batismal, a Igreja deve ser uma comunidade evan- 1 T. SOIRON, La condition du théologien (Paris, 1953), pp. 111-120.
528 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 529
comuniquei-lhes [ aos apóstolos] a tua palavra. . . Consa- a Igreja quasi concreta est revelatio 3 • Pela Igreja a reve-
gra-os na verdade: a tua palavra é a verdade. . . Não rogo lação está sempre presente e sempre agindo ( Lc 10,16; Mt
só por eles, mas também por aqueles que vão crer em 10,40). O tempo da Igreja é o tempo em que o Evange-
mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam um, lho é dado a conhecer a toda criatura ( Me 16 ,15 ) ; é o
assim como tu ó Pai, estás em mim e eu em ti, também "tempo favorável", o tempo da conversão ( At 3 ,20; Hebr
eles sejam um em nós" (Jo 17,14.17.20-21). A palavra 3,7-10;4,7). No Apocalipse a Igreja é apresentada como o
do Cristo quer prolongar entre os homens a unidade do lugar da última revelação de Deus. No tempo a Igreja é
Filho e do Pai, em um mesmo Espírito de amor e de o Templo em que não cessa de ressoar a palavra de Deus
verdade. (Ef 2,19-20). É o paraíso em meio do qual, como fonte
Essa edificação da humanidade à imagem da sociedade inesgotável e pura, jorra a palavra que fertiliza toda a ter-
trinitária é obra da graça. A palavra, em união com o Es- ra 4. É a Esposa do Cristo que, tendo recebido a palavra do
pírito, convoca e gera a Igreja. De Pentecostes à Parusia, Esposo, não cessa de meditá-la para repeti-la aos homens,
a palavra e o Espírito agem inseparavelmente para edificar viva e fiel como no primeiro dia 5.
o corpo do Cristo. É "o Espírito Santo em união com o Para a Igreja a pregação da palavra não é apenas uma
ministério apostólico ou a instituição eclesial, o agente reali- honra, mas uma missão, que deriva de um mandamento ex-
zador da obra do Cristo" 2 • Enquanto os apóstolos e a Igre- presso do Senhor ( Mt 28,18-20; Me 16,15-16; Jo 17,18-
ja agem visivelmente, o Espírito opera invisivelmente no co- -20). O ministério da palavra procede do Cristo histórica,
ração dos homens. Isso por uma necessidade intrínseca, pois jurídica e ativamente. Para a Igreja, pregar, evangelizar é
a palavra deve edificar "uma raça eleita, um sacerdócio real, uma obrigação. Pois a Igreja é a Igreja da palavra tanto quan-
uma nação santa" ( lPdr 2,9). O povo de Deus constitui- to a Igreja dos sacramentos. O dever do apóstolo é anunciar
-se a partir de dois apelos: a pregação do Evangelho ( Rom o Evangelho, pois que ele é ministro da palavra do mesmo
10,14-17; 2Tes 2,13-14) e o convite da graça (At 16,14; modo que ministro dos sacramentos. Os Atos principiam
Jo 6,44; 2Cor 1,21-22;4,5-6). A vocação, ato divino con~ com as palavras do Cristo que constitui os apóstolos como
secutivo à eleição, externamente manifesta-se pela palavra; suas testemunhas ( At 1,8) e terminam com são Paulo pre-
internamente, por uma ação do Espírito. Assim a Igreja, gando e eQsinando ( At 28,31). Os apóstolos, devendo esco-
corpo de Cristo, está em contínuo crescimento até a revela- lher entre vários ministérios, optam pelo serviço da palavra
ção final dos filhos de Deus. Esse mistério de crescimento ( At 6,2-4). São Paulo declara: "O Cristo não me enviou para
é fruto da palavra da revelação fecundada pelo Espírito. batizar mas para anunciar o Evangelho" ( 1Cor 1, 17 ) . "O
Senhor assistiu-me e encheu-me de força para que, por mim,
II. A IGREJA "PRESENCIALIZA" A PALAVRA a mensagem fosse proclamada e chegasse aos ouvidos de
todos os pagãos" ( 2Tim 4, 17 ) .
A palavra de Deus convoca e gera a Igreja. A Igreja, Na atual economia da salvação, a pregação é necessá-
por sua vez, "presencialíza" a palavra para os homens de ria e insubstituível, pois a fé é necessária para a salvação
todos os tempos. Pela Igreja o Cristo interpela os homens e a fé repousa sobre a pregação da salvação. Para que o Cristo
em cada gera<,:ão., dá-lhes a conhecer seu desígnio de salva- seja conhecido e o Pai glorificado, é preci1'o que haja lábios
ção e os convida insistentemente à conversão (Me 1,14-15). que anunciem a palavra. Mas, como invocarão a Deus "em
Como dizia Mons. Martin no primeiro concílio do Vaticano,
3 MANSI, .51: 314 B.
2 Y. M.-J. CoNGAR, Esquisses du mystere de l'Église ( Paris, 1953), 4 lRENAEus, Adversus Haereses, V, 20, 2: PG 7, col. 1177-1178.
p. 155 (Introdução ao Mistério da Igreja, São Paulo, 166, p. 128). 5 D. 1800.
530 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 531
quem não crêem? E como hão de crer naquele de quem minou e transformou sua própria vida. Conseqüentement~,
não ouviram falar? E como hão de ouvir falar dele, se o ouvinte da palavra espera ver nele um reflexo dessa és-
não houver quem pregue?... A fé, portanto, vem da pre- perança. Ele prega o Cristo, que é o Tudo de sua viela.
gação e a pregação é feita por mandato de Cristo" ( Rom
1O, 14-1 7 ) . O ministério da palavra pertence à própria es-
Deve pois sua- vida mostrar que o Evangelho é capaz éf~.\ 4
transf~rmar a existência ~mmana; é vi~endo do Espírit~ \ ....,.,., """' .~,,,<;;
trutura da Igreja. Se a Igreja se calar, se a palavra já não do Cristo que ele prega eficazmente o Cristo. ''···~ s,;:: 1\1\'ilt./
soar, morrerá o mundo na ignorância da salvação que lhe A verdadeira .pregação deve ser ao mesmo tempo um ···
é oferecida. Pregar a palavra pertence à missão profética serviço e um testemunho, palavra que brota de um compro-
da Igreja. Assim como os profetas do Antigo Testamento metimento, credenciada pela santidade da vida. Caso contrá-
eram a boca de Deus em Israel, assim a Igreja é a boca rio o próprio serviço da palavra manifestará sinais de can-
do Cristo e o instrumento do Espírito para a proclama- saço, como se fosse um peso. O servidor da palavra deve
ção do Evangelho. Não cessa de anunciar o acontecimen- anunciar o Cristo no poder do Espírito que nele habita e ne-
to da salvação, para que toda a humanidade, tendo ouvi- le testemunha. Esse comprometimento da pessoa permite
do a palavra de Deus e tendo dado sua adesão pela fé, parti- contemplar o Evangelho vivido e demonstra, ao mesmo
cipe eternamente da intimidade da vida trinitária. tempo, sua verdade e sua eficácia. Semelhante· espetáculo
Essa tarefa de presencialização da revelação realiza-se desperta no ouvinte o desejo de comungar desse universo de
principalmente pela pregação, e pela pregação viva, encar- valores que lhe é revelado pela palavra. Desse desejo, fe-
nada. A palavra falada não poderia ser substituída pelo cundado pelo Espírito, poderá nascer a fé 8 •
texto escrito. Não há dúvida que a palavra de Deus Essa exigência de uma pregação autenticada pela vida
tem de per si uma eficácia intrínseca objetiva, em analogia impõe-se também pelo fato de o essencial da mensagem
com o sacramento 6 • Contudo, na pregação mais que no cristã ser a revelação do amor de Deus através do amor do
sacramento, a pessoa do pregador desempenha uma função. Cristo. A pregação deve iniciar o ouvinte no mistério do amor
O que o pregador transmite não é um sistema de pensa- infinito que se manifesta no Cristo. Ora, como introduzir
mento ( matéria de ensino que poderia transmitir sem se com- no amor por alguém, se não for por um contágio de amor?
prometer pessoalmente), mas uma mensagem de salvação, li- Como conseguir que os homens se abram para o amor que se
gada a um acontecimento que muda o sentido da existência oferece, a não ser pelo contato de alguém já conquistado
humana, em primeiro lugar a existência do próprio prega- pelo amor? É preciso que o amor do Cristo tenha inva-
dor 7 • Na brecha aberta pela miséria do pecado o Cristo in- dido o coração do apóstolo para que as almas vejam,
troduziu a esperança. Veio como a Luz e a Vida (Jo 14,5; no pregador, a Deus que é amado e Deus que ama. É pre-
9,5). Pela sua morte e pela ressurreição fez-nos filhos do ciso que a palavra ouvida desperte a reflexão dos discípulos
Pai, chamados a participar de sua vida e de sua glória. de Emaús: "Não nos ardia o coração no peito, quando
O que o pregador anuncia como Boa-nova e o que ates- ele nos falava pelo caminho, enquanto nos explicava as
ta como a Verdade do homem, é justamente a realidade da Escrituras?" ( Lc 24,32).
qual é o primeiro beneficiário. Prega a esperança que ilu-
Ili. A IGREJA SERVA, GUARDA E INTÉPRETE DA PALAVRA
6 Quanto às relações entre revelação e sacramento, cfr. o capítulo Com os apóstolos terminou a revelação (D. 2021 ) . De
V desta V parte, parágrafo 4.
. 7 D. DEDEN, "Le mystere paulínien", Ephemerides theologicae lo- uma vez para sempre Deus, pelo Cristo e pelos apóstolos,
vamens~s, 13 (1936): 420-423; D. GRASSO, "II kerigma e la predicazione",
Gregorzanum, 41 (1960): 439-440; C. Dono, The Apostolic Preaching 8 A pregação do Evangelho é, pois, duplamente eficaz: a) devido à
and its Developments (London, 1956, 8~), pp. 7-35. dimensão de graça que vem unida ao anúncio exterior da mensagem; b)
532 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 533
manifestou a mensagem da salvação. A doutrina da fé cons- vêem na Igreja católica um absoluto que sucede ao Cristo,
titui-se definitivamente pelo depoimento das testemunhas ligando-se a ele simplesmente pela história, sem dever se preo-
oficiais. Mas também é verdade que a palavra de Deus cupar nem com a Escritura nem com a Tradição. 2'? Para a
deve continuar tão viva como no princípio. O homem do Igreja, a volta às fontes não é como o pensava L. Charlier uma
século XX deve sentir-se atingido por ela tão vivamente atitude de interesse principalmente histórico, uma vez que o
como o judeu, o grego ou o romano do primeiro século. Mes- depósito se encontraria apenas no presente da Igreja 13 • É bem
mo sendo palavra dirigida a um ambiente determinado, a um diferente a maneira de a Igreja falar sobre si mesma: de-
determinado momento da história, ela deve ir ao encontro fine-se ela referindo-se ao depósito da fé, do qual se pro-
dos homens de todos os tempos, atingi-los em sua situação clama simplesmente serva ( Vat. II), guardiã e intérprete
histórica, sempre única, dar resposta às suas questões, às (D. 1793, 1800, 1836, 2145, 2307). A palavra chega até
suas inquietudes, para encaminhá-los para Deus. Com isso no- nós pela Escritura, pela Tradição e pelo Magistério, os três
vamente enfrentamos o problema da historicização da reve- estreitamente ligados entre si. Ouvir a Igreja é ouvir a
lação. Como poderá a palavra adaptar-se às sucessivas ge- palavra escrita e transmitida, mas enquanto compreendida
rações, sem que jamais se desvie, mude de sentido, ou se e explicada pela Igreja. Neste sentido, o Magistério é para
contamine? Através da sucessão ou do encontro das civi- os fiéis a norma próxima e universal da verdade (D. 2313 ).
lizações, ao longo·, das mudanças de estruturas políticas, so- Não é norma constitutiva da fé, mas norma diretiva quan~
ciais ou econômicas, como poderá a palavra continuar sem- to à palavra recebida dos apóstolos 14 •
pre idêntica e contudo sempre nova, tão atual como na Os documentos da Igreja atribuem ao Magistério três
manhã de Pentecostes? Essas questões lev~~-nos a precisar funções ante o depósito da fé. Deve guardar, conservar
a função do Magistério com relação ao de.pósito da fé. santa e fielmente, como um depósito, a doutrina recebida
Como depositária do Evangelho a Igreja recebeu a do Cristo e dos apóstolos (D. 792a, 1793, 1800, 1836, ·
missão de pregá-lo e interpretá-lo autênticamente. .Foi dota- 2145, 2307, 2313, 2315). Deve protegê-la e defendê-la
da com a capacidade de compreendê-lo com um frescor sem- contra o erro ( D. 792a, 1871, 2313). Deve fielmente ex-
pre novo e poder assim dar resposta às questões de cada por a doutrina revelada, declarar o seu verdadeiro sentido,
geração 9 • interpretá-la autenticamente (D. 1800, 1836, 2313, 2314,
Tentando compreender a função do Magistério deve- 2307). A autoridade doutrinal da Igreja tem como finali-
mos evitar dois excessos: l'? A Igreja não substitui as fon- dade essa obra de conservação, defesa, interpretação. É
tes, como o pensam muitos protestantes atuais, por exemplo: exercida pelo Magistério ordinário ( ensinamento unânime
G. Ebeling 10 , W. Von Loewenich 11 , W. Schweitzer 12 • Eles dos bispos e dos doutores da Igreja universal) ou pelas de-
devido à santidade do pregador, que age sobre o ouvinte como um motivo finições do Magistério extraordinário ( o concílio ecumênico
de credibilidade, como um sinal que atesta a origem divina da palavra ou o papa falando ex cathedra).
ouvida.
9 K. RAHNER, "Zur Frage der Dogmenentwicklung", Schriften zur Como Israel no Antigo Testamento, a Igreja é depo-
Theologie (Einsiedeln, 1956), 1: 57-58; G. DEJAIFVE, "Bible, tradition sitária da palavra de Deus e deve primeiramente conservar
et Mag-istere dans la théologie catholique", Nouvelle Revue théologique,
78 (1956): 145-146. o depósito que lhe foi confiado. Conservar o depósito quer
10 G. EBELING, Die Geschichtlickeit der Kirche und ihrer Verkün- dizer guardá-lo íntegro, não deixar que nada seja esquecido,
digung als theologisches Problem in drei Vorlesungen (Tübingen, 1954), ·
pp. 44-50. '• ·
11 W. VON LOEWENICH, Der Moderne Katholizismus (Witten, 1955), 13 L. CHARLIER, Essai sur le probleme théologique (Thuillies, 1938),
pp. 160-166. . p. 64.
12 W. ScHWEITZER, Schrift und Dogme in der Oekumene (Gütersloh, 14 C. BAUMGARTNER, "Tradition et Magistere", Recherches de science
1953),_pp. 32-52. religieuse, 41 (1953): 171-174.
534 REFLEXÃO TEOLÓGICA
IGREJA E REVELAÇÃO 535
mas também quer dizer nada acrescentar ao conjunto das mação: o Verbo fez-se carne (Jo 1,14), encontram-se im-
verdades atestadas, não introduzir novidade, nada inventar.
plícitas as seguintes verdades: o Cristo tem natureza huma-
Defender a palavra revelada é protegê-la dando resposta às difi-
na; tem corpo e alma, inteligência e vontade humanas; a hu:
culdades que lhe são feitas e também imediatamente pros~re- manidade de Cristo, seu coração, podem ser adorados. Aqm
ver os erros, condená-los, indicar os desvios. Expor, declarar,
se opera o progresso mediante simples desdobramento de
interpretar: é o trabalho de crescente assimilação da palavra.
uma verdade explicitamente afirmada pela Escritura. Ou,
Pois a Igreja que recebeu a palavra, conserva-a como um ser
então, o Magistério esclarece o que estava obscuramente
vivo cujo princípio de assimilação é o Espírito Santo. A
nas fontes da revelação. Assim, partindo dos dados da
Igreja não a recebeu como um tesouro inerte a ser conser-
Escritura referentes aos privilégios de Maria, penetrando
vado como uma jóia familiar, mas como palavra viva; não
sempre mais as relações que ligam Maria a Eva, a Crist? e
um tesouro improdutivo, como o talento que o servo pre-
à Igreja, refletindo assiduamente na grandeza e na santida-
guiçoso enterrou, mas fonte de água viva, à qual vêm be-
de de Maria, a Igreja atingiu e definiu mais claramente os
ber os homens de todos os tempos. Como a Virgem fiel
pontos luminosos que pressentia desde o começo. Percebeu
que tudo conservava e meditava em seu coração, a Igreja
mais claramente certos fatos fundamentais ( Maria é mãe
não cessa de meditar a palavra recebida. A Esposa do Cris-
de Deus, é a nova Eva, está associada ao Cristo na vitória
to em uma alma contemplativa: medita sempre a palavra do
sobre o pecado e a morte) e definiu a Imaculada Concei-
Cristo, seu esposo, assimila-a, aprofunda-a, graças ao ilimi-
ção e a Assunção de Maria. Não se trata propriamente de
tado discernimento que lhe vem do Espírito, pois que essa pa-
um raciocínio linear; é antes uma convergência de perspecti-
lavra é infinitamente rica ( D. 2314): indefinidamente soli-
vas, uma percepção mais precisa de traços já existentes,
cita o coração e a inteligência. Não é um domínio cuja ex-
graças a uma luz mais penetrante.
ploração pudesse estar um dia terminada, é um abismo que
se aprofunda à medida que os olhos se acostumam à sua O que se aperfeiçoa, pois, não é o depósito da fé,
profundeza. objetiva e definitivamente constituído, mas sim a inteli-
Querendo descrever êsse dinamismo de assimilação da gência da revelação ( quoad nos ) mediante uma assimilação
palavr~, essa tomada de consciência sempre mais plena das que se exerce no interior do objeto da fé. Não _há dúv!da
riquezas . da .rt:;velação, a Igreja refere-se a uma passagem que as verdades são apresentadas sempre mais precisa-
do implícito ao explícito 15 , do obscuro ao claro (D. 2314). mente, de forma, porém, sempre homogênea com a verda-
Na encíclica H umani Generis encontramos reunidas ambas de primitiva, sempre no interior do objeto da fé, sem, portan-
as expressões. "Às fontes da revelação, Deus. . . acrescen- to, qualquer passagem da ordem das verdades salvíficas
tou o Magistério vivo para iluminar e particularizar o que para verdades de qualquer outra ordem, ainda que conexas
se encontra apenas obscura e como que implicitamente no com o próprio dogma 17 . Assim, o movimento da revelação
depósito da fé" 16 • que se constitui ao longo do Antigo Testamento até Cristo
O Magistério explica o que se encontrava apenas im- e os apóstolos, é continuado pelo movimento que faz pro-
plicitamente nas fontes da revelação. Por exemplo, na afir- gredir, não a revelação, mas a inteligência e a sua posse
mediante formulações cada vez mais claras e explícitas.
15 "Nullum sane inventum inducitur, nec quidquam additur novi ad
A Igreja foi dotada de um carisma para conservar e
earum summam veritatem, quae in deposito revelationis, Ecclesiae tradito,
saltem implicite continentur" (Pius XI, Mortalium animas, AAS 20 declarar autenticamente a revelação. O Espírito Santo as-
[ 1928]: 14). siste-lhe na sua missão de custos et magistra verbi revelati
16 "Una enim cum sacris ejusmodi fontibus Deus Ecclesiae suae Ma-
gisterium vivum dedit, ad ea quoque illustranda et enucleanda, quae in
fidei deposito nonnisi obscure ac velut implicite continentur" (D. 2314). 17 E. DHANIS, "Révélation explicite et implicite", Gregorianum, 34
(1953): 197.
r
536 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 537

( D. 1793), dando-lhe um socorro atual especial para con- suas testemunhas, chegou a plenitude dos tempos. A Igre-
servar, defender e interpretar o depósito da fé. Assistên- ja não pode contar com novas revelações para fundamen-
cia infalível, que não é meramente negativa, mas ativa, pois tar o seu ensinamento; sua missão é conservar a revelação
esse carisma intervém como fator de progresso dogmático. dada uma vez para sempre. A assistência que lhe é dada
O Espírito, não apenas preserva a Igreja do erro, mas também é análoga à inspiração da luz da fé. Em ambos os casos o
a guia para a plenitude da verdade. A Igreja é sempre Espírito age por atração e por inclinação. Jamais o socor-
"ensinada pelo ~spírito Santo" 18 , que age sobre ela, "suge- ro da graça se faz sentir como uma palavra distinta de Deus
rindo" (D. 783a, 792a), e a "dirige infalivelmente para que convidasse a crer um novo conteúdo de pensamento:
um conhecimento mais perfeito das verdades reveladas'' 19 • permanece oculto como as graças da ordem da inspiração.
O Magistério se refere evidentemente às passagens de são Por'tanto, há progresso na compreensão da palavra,
João onde se diz que o Espírito Santo "ensinará" aos após- sempre mais profunda, mais detalhada, mais precisa,
tolos e lhes "trará à lembrança" tudo quanto lhes disse o sem, porém, nova mensagem ou novo mistério. Há inter-
Cristo (Jo 14,26). É o Espírito Santo que os "guiará para pretação da revelação, sem nenhuma mudança de sentido.
a verdade plena" (Jo 16,12-13) e "dará testemunho" sobre A Igreja descobre pouco a pouco as dimensões do mistério
o Cristo (Jo 15 ,26). Esses textos, à luz da promessa que revelado. Cada época traz um novo esclarecimento, graças ao
o Cristo fez de assistir aos seus "até o fim do mundo" ( Mt qual pontos obscuros se tornam manifestos, um particular
28,20) e de enviar-lhes um Paráclito, o Espírito da Ver- oculto se manifesta. Quanto mais, porém, se descobre,
dade, que estará com os apóstolos "para sempre" (Jo 14, mais se encontra a mesma realidade: como um rosto que
16-17 ) , não se compreendem plenamente a não ser que a as- da penumbra vem para a luz. ·
sistência prometida primeiramente aos apóstolos continue Ocasiões para esse desenvolvimento dogmático podem
tambéin com seus sucessores e, portanto, com a Igreja de ser os ataques contra a Igreja, as heresias ( docetismo, aria-
todos os tempos 20 • nismo, nestorianismo, protestantismo), as controvérsias en-
Contudo, o trabalho de assimilação e de interpretação tre os teólogos, as dificuldades práticas, os problemas pró-
da revelação continuado pelo Magistério sob a assistência prios de uma época, o progresso das ciências, as revelações
do Espírito, não implica em uma nova revelação. Diz o pri- particulares. Os fatores positivos são: 1) a pesquisa teo-
meiro concilio do Vaticano: "O Espírito Santo não foi pro- lógica, 2) as sugestões do Espírito na consciência dos fiéis
metido aos sucessores de são Pedro para que êle1:1, em vir- e do Magistério, 3) o carisma da infalibilidade.
tude de uma revelação desse Espírito manifestem uma nova A pesquisa teológica é a inteligência da fé que se exer-
doutrina. Foi-lhes dado para que, sob sua assistência, con- ce sob a direção da Igreja. Essa pesquisa usa de todos os
servem santamente e fielmente exponham a revelação trans- recursos do raciocínio humano. Quando feita em condições
mitida pelos apóstolos" 21 • Com o Cristo e os apóstolos, ideais, isto é, quando o teólogo ~ ao mesmo tempo doutor
e confessor, ela possui, ainda mais, um poder de penetra-
18Prns 1x, Ineflabilis Deus, Coll. Lac., t. VI, col. 836. ção superior, fruto da fé viva e dos dons do Espírito. Prin-
19"Universa Ecclesia, in qua viget veritatis Spiritus qui quidem eam cipalmente o dom da inteligência torna o espírito mais agu-
ad revelatatum perficiendam veritatum cognitionem infallibiliter dirigit"
( Prns XII, Munificentissimus Deus, AAS 42 1950 768). çado para penetrar as verdades da fé 22 • O dom da sabedoria
20 Muitos exegetas católicos admitem que as três passagens: Jo 14, infunde na alma do teólogo uma conaturalidade afetiva com
16-17; 15,26;16,12-13, se aplicam não apenas aos apóstolos, mas também
à Igreja. Cfr. E. DHANIS, "Révélation explicite et implicite", Gregorianum,
34 (1953): 206-207, n. 52. per apostolos revelationem seu fidei depositum sancte custodirent et fide-
21 "Neque enim Petri successoribus Spritus Sanctus ptomissus est, ut liter exponerent" (D. 1836).
eo revelante novam doctrinam patefacerent, sed ut, eo assistente, traditam 22 S. Thomas, S. Th., 2a 2ae, q. 8, a. 1.
538 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 539

o objeto da fé, que lhe permite um julgamento correto, as profecias ( D. 1790). Conservam esses sinais todo seu
segundo o pensamento divino 23 • Como amigo que, graças valor para estabelecer o fato da revelação. Normalmente,
a uma sintonia afetiva, mais penetra nos pensamentos de porém, a fé contemporânea, mais que sobre os milagres da
seu amigo, assim o teólogo tem em si a unção do Cristo Escritura, apóia-se no sinal sempre atual da Igreja. A Igre-
que, como instinto seguro, dirige e vivifica seus passos, ja, pois, ao mesmo tempo recolhe e atualiza os sinais an-
faz que seus pensamentos coicidam com os do Cristo, cap- tigos e, por sua presença sempre contemporânea, "faz sinal"
tando-lhe corretamente suas implicações e seus prolongamen- mostrando que sua missão e sua doutrina vêm de Deus.
tos ( lCor 2,10-16;6,17). Segundo o primeiro concílio do Vaticano: "Somente à
A inspiração do Espírito age conforme as funções de Igreja católica pertencem todos esses sinais, tão numerosos
cada um: tanto na Igreja discente quanto na docente. Essa e tão admiravelmente dispostos por Deus para fazer aparecer
atividade do Espírito no povo fiel é real e poderosa. Acon- claramente a credibilidade da fé cristã. Ainda mais: a Igreja
tece mesmo que, sob a moção do Espírito, a intuição dos por sua admirável. propagação, por sua eminente santidade,
fiéis antecipa-se de certo modo às análises e conclusões do por sua inesgotável fecundidade em todos os bens, por sua
labor teológico. É o caso dos dogmas da Imaculada Con- unidade católica e· por sua invicta estabilidade, é de per si
ceição e da Assunção. O papa constatou que essas ver- um grande e perpétuo motivo de credibilidade e um teste-
munho irrefutável de sua missão divina. Por isso ela, como
dades eram parte da fé da Igreja universal e com o seu um estandarte erguido entre as nações (Is 11,12), convoca
carisma de infalibilidade sancionou essa fé universal. us que ainda não acreditaram, e aumenta em seus filhos a
O fator principal e determinante do progresso dogmá- certeza de que a sua fé repousa sobre sólidos fundamentos" 24.
tico é a declaração infalível do Magistério. É o carisma de A Igreja, por si mesma, é um milagre moral 25 • Assim como
infalibilidade dado à Igreja para conservar, defender e pro- o Cristo fazia-sinais aos contemporâneos pela irradiação de
por a doutrina da fé que, de modo definitivo, nos garante toda sua personalidade ( doutrina, sabedoria, santidade, mi-
que a verdade apresentada como revelada não é fruto de lagre), também a Igreja, pela irradiação de todo seu ser
iluminismo dos fiéis nem uma fosforescência da imaginação ( expansão, unidade, estabilidade, santidade, fecundidade),
dos pesquisadores, mas verdade verdadeiramente atestada por faz-sinal aos homens de todos os tempos, mostrando que
Deus e contida no depoimento das testemunhas apostólicas. recebeu do próprio Deus sua missão e sua mensagem. Par-
ticipa da glória do Cristo.
Esse aspecto da Igreja, que a torna um sinal da teve-
IV. A IGREJA, SINAL DA REVELAÇÃO
24 "Ad solam enim catholicam Ecclesiam ea pertinent omnia quae ad
evidentem fídei christianae credibilítatem tam multa et tam mira' divinitus
A Igreja torna a revelação sempre presente pela sua s1;1nt disposita .. Quin etia_m. Ecclesia per se ipsa, ob suam nempe admira-
pregação; propõe-na e interpreta autenticamente para cada bilem propagatlonem, eximiam Sanctitatem et inexhaustam in omnibus
banis foecunditatem, ob catholicam unítatem invictamque stabilitatem
geração. Mas não só isso. A Igreja, por si mesma consti- magnum quoddam et perpetuum est motivum credibilitatis et divinae suae
titui um grande e perpétuo motivo de credibilidade em fa- legati<;>nis te_stimonium irrefragabíle. Quo fít ut ipsa veluti signum leva-
vor da revelação. Deus, para fazer reconhecida sua pala- tum m nauones (Is 11,12) et ad se invitet qui nondum crediderunt
et filias suas certiores faciat, firmíssimo niti' fundamento fídem qua~
vra, nunca a separou dos sinais que a garantissem como profítentur" (D. 1794). '
25 Para nós, ~ílagre moral é um modo de agir, individual ou cole-
divina. Desde o início, a proclamação do Evangelho esteve .
tivo, que se mamfe_sta num contexto religioso, e de tal modo supera o
ligada aos sinais do Reino, principalmente os milagres e comportamento habitual dos homens, que sua única razão suficiente é
uma intervenção especial de Deus: mediante essa intervenção Deus signi-
23 S. Thomas, S. Th., 2a 2ae, q. 45, a. 2, c. fica a instauração do Reino de Deus entre os homens. '
540 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 541
lação, não é uma descoberta do primeiro concílio do Va- meu-é teu e o que é teu é meu" (Jo 17,10). O Cristo, por
ticano. O argumento é tradicional na Igreja. Os santos sua vez, ama o Pai com um amor sem limites. A vontade
Padres, desde os primeiros tempos, principalmente Irineu, do Pai é seu alimento, isto é, sua vida (Jo 4,32-33). É a
Tertuliano, Orígenes, Agostinho, para defender o cristianis- lei do seu ensinamento (Jo 7, 16; 12 ,5 O) , de sua missão (Jo
mo apelam para sua miraculosa expansão, para a constân- 6,38-40;7,28;8,42), do seu sacrifício (Jo 10,17-18;12,27-
cia dos mártires, para o brilho de sua santidade. O argu- -28;14,30-31;19,30). O Cristo é o Amém do Pai, que
mento é retomado por Savonarola no século XV, por Bossuet sempre lhe diz ita (Hebr 10,5-7; Lc 10,21 ). Em são João,
e por Pascal no século XVII, por Fénelon no século XVIII, exprime-se essa intimidade de vida com fórmulas de "in
por Balmes, Lacordaire, Baut,ain e Deschamps no século esse" mútuo: "o Pai está em mim e eu no Pai" (Jo 10,38).
XIX, e logo antes do Concílio é apresentado por J. Kleutgen "Eu e o Pai somos um" (Jo 10,30). O Espírito é a efusão
e J. B. Franzelin 26 • Contudo, o magistério da Igreja, san- do amor mútuo e comum do Pai e do Filho.
cionando com sua autoridade o valor desse argumento, con- Deus, pelo Cristo, quis introdu;ir os homens nessa so-
sagrou-o definitivamente e deu início a uma reflexão teoló- ciedade de amor. Quis que os homens dispersos, divididos,
gica muito fecunda 27 •
filhos da cólera e da iniquidade, estejam juntos e unidos
A Igreja, como sinal da revelação, pode ser considera- entre si na caridade, à imagem da sociedade trinitária: "que
da dogmática e apologeticamente. A visão dogmática; à luz eles sejam um como nós" (Jo 17, 11 ) ; quis que o elemento
da própria fé, procura o segredo da glória exterior da Igre- de coesão fosse o próprio amor pelo qual o Pai dá ao Filho
ja. A visão apologética, contemplando inicialmente o bri- tudo quanto ele mesmo possui, e o Filho, por sua vez dá
lho exterior da Igreja, procura sua fonte, procura uma ao Pai tudo o que tem: "Dei-lhes a conhecer o teu nome ...
explicação proporcionada ao fenômeno dessa sociedade ex- para que o amor com que me amaste esteja neles e eu es-
cepcional. São duas considerações complementares e não teja neles" (Jo 17,26). "Que assim como eu vos amei,
opostas. O mistério ilumina o que há de espantoso nos vós também vos ameis uns aos outros. E nisto precisa-
fatos, enquanto que o milagre desperta para a presença mente todos reconhecerão que sois meus discípulos: se ti-
do mistério 28 • verdes amor uns pelos outros" (Jo 13,34-35;15,12.17; lJo
Vejamos primeiro o que nos mostra a visão dogmática 3,l l.18;4,7-8.11-12.20-21 ;5,1-2).
ou descendente. A primeira das sociedades, o protótipo e a A passagem da humanidade, da dispersão e do ódio à
fonte de todas as outras, é a sociedade das Pessoas divinas. unidade da caridade, é fruto da morte do Cristo, imolado
Nessa sociedade é perfeita a unidade do Pai e do Filho em para "reunir os filhos de Deus que andavam dispersos" ( Jo
um mesmo Espírito. "O Pai ama o Filho e tudo entregou em 11,52). O Cristo é o único Pastor (Jo 10,16) e a única Porta
suas mãos" (Jo 3,35;5,21.26.36;17,4.8.11). "Tudo quanto o (Jo 10,7.9) do aprisco. Por sua morte e por sua ressurreição
Pai tem é meu", diz o Cristo (Jo 16,15). Tudo o que é deu aos homens tornarem-se filhos do Pai ( Ef 1,5; Rom
8,29; lJo 3,11.18;5,20), achegarem-se ao Pai em um só Es-
26 M. GRAND'MAISON, L'Église par elle-même motif de crédibilité
(Rome, 1961), pp. 7-9; J. T. TSENG, De Apologetica methodo quae "via pírito ( Ef 2,18), poderem dizer: "Abba, Pai", com o Es-
empírica" audit (Hong Kong, 1960), pp. 2-5; S. PESCE, La Chiesa cattolica, pírito do Filho ( Gál 4,6), ·. e amarem os homens como
perenne motivo di credibilità (Catania, 1960), pp. 144-160. o Cristo e o Pai os amam (lJo 3,11.18).
TT Bibliografia completa em M. GRAND'MAISON, L'Église par elle-
-même motif de crédibilité. Histoire de l'argument: 1870-1960 (Rome, A Igreja que ele fundou, Cristo deu-lhe como elemen-
1961), pp. 45-51. Cfr. tb. H. HOLSTEIN, "L'Église, signe parmi les Nations", to de coesão e de expansão, o Espírito que une entre si o
Études, 315 (oct. 1962) pp. 45-59.
28 C. JoURNET, L'Église du Verbe incarné (2 vol., Paris, 1941, 1951), Pai e o Filho. Podemos assim compreender que a socieda-
2: 875-876. de eclesial, animada por esse princípio, transcenda os limi-
1
1

542 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 543


. tes do espaço do tempo e dos particularismos huma-
29 , 30
para da Igreja, pelo cisma ou pela heresia imediatamente ex-
nos 31 • Retomando os termos do primeiro concílio do Va- perimenta a divisão, as variações doutrinais, e freqüente-
ticano ( D. 1794), podemos dizer que a Igreja triunfa da mente se dissolve e desaparece 32 •
divisão interior (unidade) e da divisão exterior, efeito do
Essa unidade é dinâmica e cat6lica: conquista o espaço
particularismo humano ( unidade católica) ; triunfa dos lim~- e convoca os homens de toda a terra. Nessa expansão da
tes do tempo e da história ( invicta estabilidade), dos 1~- Igreja, o que mais importa não é o próprio fenômeno, mas
mites do desgaste, do envelhecimento e da morte ( santi- a sua qualidade. É, com efeito, uma expansão que provoca
dade, fecundidade) . Por força do princípio divino que a
uma conversão radical dos espíritos e uma transformação
vivifica, que é o Espírito de Deus, a Igreja constitui, já profunda dos costumes; não pela força armada ou pela
na terra, como que um esboço da Jerusalém celeste, como pressão moral, mas por uma pura sedução de amor, o amor
que uma antecipação do Reino dos santos.
de Deus manifesto no Cristo. E isso apesar de todos os
A presença de semelhante sociedade, imersa nas socieda- obstáculos interiores e exteriores.
des humanas, atrai os olhares com seu brilho insólito. Tendo
contemplado o foco donde partem os raios ( visão dogmática), A expansão católica triunfa de todas as. divisões do
vejamos agora como os raios nos levam de volta ao foco espírito e do sangue. Transcende a comunidade biológica,
( visão apologética). Na sociedade eclesial, como se nos ma- de laços tão fortes, da família, do clã, da nação; transcende
nifesta ·exteriormente, quais são esses fatos observáveis que a comunidade política e cultural. Esforça-se por constituir
fazem da Igreja, entre as sociedades humanas, uma socie- a comunidade dos filhos de Deus, no Cristo e pelo Cristo.
dade miraculosa cuja existência não se explica sem uma Procura construir, por sobre a geografia terrestre, uma
intervenção extraordinária de Deus? nova geografia, tão ampla quanto a terra, que reúna todos
os homens sem distinção de· cor, de língua, de raça, de
O primeiro fato é a unidade da Irgeja. Não uma un~- instítuições, de culturas 33 • Edifica o corpo do Cristo, no
.dade qualquer, superficial, mas uma unidade na complexi- qual já não há judeu, nem grego, nem escravos, nem ho-
dade ( de doutrina, de culto, de governo), que se mantém mens livres, mas filhos do Pai, "tendo todos bebido de um
há dois mil anos e conseguiu incorporar multidões de ho- mesmo Espírito" ( lCor 12,13). Edifica-se a Igreja não
mens. O pertencer à Igreja traz consigo uma integração pro- contra, mas em união de amor com todos os homens. Essa
funda das personalidades. Atinge o íntimo das consciências difusão na unidade, essa unidade na diversidade, essa uni-
e estabelece entre os membros da Igreja - ainda que des- versalidade na indivisibilidade e na caridade, essa vitória
conhecidos, isolados no espaço e no tempo - uma solida- sobre todos os particularismos, constitui um grande paradoxo.
riedade e uma comunhão sem par. Testemunham todos os fiéis
que o elemento de coesão dessa sociedade é o Cristo e seu A Igreja é estável. Atravessa a história, transcende,
porém, as vicissitudes da história. Conserva seu equilíbrio
Espírito. A Igreja, como um imenso organismo, cresce,
interior apesar das oposições internas ( erros conscientes ou
sem perder, porém, sua coesão interna. Penetra as estru-
inconscientes, paixões individuais ou coletivas) e externas
turas humanas, sem se deixar absorver por elas. Há tam- ( perseguições, imperialismo multiforme). Enquanto as re-
bém um fenômeno interessante: logo que um ramo se se-
ligiões, com o passar do tenipo, mudam, desintegram-se,
29 "Quando o Espírito Santo tiver descido sobre vós, recebereis
morrem ou cedem ao sincretismo mais condescendente, e por
vigor e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda isso mesmo mais nivelador, a Igreja conserva incontamina-
a Judéia e Samaria, e até às extremidades da terra" (At 1,8).
30 ''E eis ·que eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo" 32 C. JoURNET, L'Église du Verbe incarné, 2: 1269'.1278.
(Mt 28,20). 33 C. DuMON, "Unité et diversité des signes de la révelation",
31 "Ide, pois, ensinai todas as gentes" (Mt 28,19). Nouvelle Revue théologique, 80 (1958): 148.
r"
1

544 REFLEXÃO TEOLÓGICA IGREJA E REVELAÇÃO 545


do um conjunto doutrinal muito complexo e, sobretudo, con- Aquino, de Vicente de Paulo, do Cura d'Ars pertencem à
trário às paixões humanas. Ainda mais que essa estabilidade História. '
não é imobilismo, mas permanência, no equilíbrio, de um ser
vivo que sempre cresce e progride. Finalmente, essa estabili-
!o1os podem. perceber. a sua i_ntensidade, plenitude,
constancia e fecundidade. Pois a IgreJa é fecunda "em toda
dade é perpétua, coextensiva com o tempo. Comprometida espécie de bens", com a fecundidade da caridade que se
no contexto da história e das estruturas políticas, que amea- expande em gestos e obras de beneficência, não para fazer
çam continuamente sufocá-la ( império romano, mundo feudal, concor!ênc!a à socie1~de civil, mas simplesmente porque
estados modernos ) , acaba sempre se libertando 34 • Como a IgreJa vive do Espmto de Deus e reflete assim a fecun-
Israel que, pelo profetismo, viveu e sobreviveu entre as didade e a superabundância da vida divina sempre renova-
forças de ocupação, apesar dos assaltos do naturalismo e do da no amor. A Igreja, vivendo da caridade do Cristo, "passa
nacionalismo, assim também permanece a Igreja segura da faze~do o bem" como ~le (At 10,38). Numa palavra, é a
eternidade, numa invicta estabilidade. Essa estabilidade pe- santidade que tudo exphca. Pois sem a caridade não existe
rene mostra-se como uma espécie de participação na imuta- a uniã~, só ? cisma; ?~º existe o universalismo, só o egoís-
bilidade divina, postula um princípio vital que transcenda mo; nao existe estabilidade, só a mudança e a morte.
o tempo e a história 35 • To~ados em conjunto, esses traços tornam a Igreja
A Igreja é santa: em sua doutrina, em sua missão, em uma sociedade excepcional entre as sociedades humanas.
seus meios de santificação ( leis, sacramentos). Age na so- C_?mo ? testemunham a. história, a sociologia e a psicologia,
ciedade humana como um fermento de contínua renovação nao existe nenhuma sociedade que como a Igreja apresente
moral e espiritual, infundindo-lhe continuamente justiça, ca- esse espetáculo simultâneo de unidade interna e externa de
ridade, humildade, pureza. Não cessa de propor o altíssimo universalidade, de perpetuidade, de estabilidade, de san{ida-
ideal da perfeição evangélica, convidando os mais generosos de, de fecundidade. Tudo isso, se o considerarmos conjunta~
a viver plenamente, desde agora, a vida de filhos ado- qualitativamente, transcende o comportamento normal das
sociedades humanas.
tivos de Deus, totalmente consagrados a ele pelo abandono
Esses fa_tos exigem uma explicação, uma razão suficien-
das riquezas (pobreza) , e por uma aliança íntima, exclusiva,
te e proporcionada. De onde recebe a Igreja essa energia,
do coração e do espírito com o coração e o espírito de Deus esse po1er de coes~~' de assimilação, de santificação, de per-
( castidade, obediência). manencia na estabilidade? Como explicação de si mesma a
A Igreja leva consigo uma pesada massa de pecadores Igreja propõe sua _origem e sua missão divinas. Atesta que
e não cessa de implorar para eles o perdão de Deus. Ela, todo seu ser e _agir procedem de uma intervenção especial
porém, abrange também uma grande massa de membros que de Deus no Cristo, ~e!bo encarnado. Afirma que é, por
vivem numa santidade comum. E mais ainda, em todos os vontade de Deus, o umco caminho de salvação para todos
tempos, ela conta em suas fileiras homens de uma santidade os _homens. Não se pode rejeitar essa afirmação sem exame,
heróica, recrutados de todas as classes sociais. Todos pode- pois que parece ser justamente a única explicação adequada
mos encontrar-nos com essa santidade, se não pessoalmente, dos fatos observados. Se o admitimos, tudo se esclarece e se
pelo menos através da histqria. A santidade de Agostinho, torna compreensível, mesmo o heroísmo dos santos e dos
de Xavier, de Bernardo, de Francisco de Assis, de Tomás de mártires. Caso contrário, a Igreja continua sendo o enigma.
Levando em conta as características e a importância dos
34 J. GUITTON, L'Église et l'Évangile (Paris, 1959), p. 383.
fatos observados, será prudente reconhecer como verdadeiro
35 A. SERTILLANGES, La miracle de l'Église (Paris, 1933), pp. 9 o testemunho que a Igreja dá sobre si mesma: sua missão
e 224. e sua doutrina vêm de Deus.
18 • Teologia da revelação
546 REFLEXÃO TEOLÓGICA

É tanto mais razoável essa conclusão quanto maior a 8.


harmonia maravilhosa entre os fatos observados e a dou-
trina proposta pela Igreja. Com efeito, a Igreja ensina REVELAÇAO E VISAO
que o Cristo é o Filho de Deus que veio até nosso meio
para iniciar na terra o Reino de Deus, para renovar o ho-
mem individual e social. Ora, o caráter miraculoso da
Igreja manifesta visivelmente essa transformação anunciada.
Onde está a Igreja, ali o poder santificador do Espírito está
agindo e renovando os corações. No santo aparece um tipo no-
vo de humanidade, um filho de Deus que vive e age sob o do-
mínio do Espírito. Surge uma sociedade nova, a Igreja, ci- O Deus da Nova Aliaµça, como o Deus da Antiga, per-
dade de Deus entre as cidades humanas, que deixa transpa- manece um Deus oculto: "Ninguém jamais viu a Deus" (Jo
recer desde agora alguns traços da Jerusalém celeste: uni- 1, 18 ) . Somente o Cristo, "que vem de Deus . . . viu a
dade, estabilidade, santidade, fecundidade,· eternidade. Por- Deus" (Jo 6,46). As revelações e arrebatamentos de Paulo
tanto, a vida admirável da Igreja é ao mesmo tempo sinal continuam ainda dentro dos limites da fé ( 2Cor 12,1-4).
confirmativo e figurativo da revelação: atesta a origem di- "Caminhamos pela fé e não pela visão" ( 2Cor 5 ,7 ) . Vive-
vina da revelação ( sinal confirmativo ) e ao mesmo tempo mos ainda na economia da palavra e da audição, do tes-
simboliza a nova criação anunciada pela revelação ( sinal temunho e da fé. Só pela mediação de sinais temos acesso
figurativo). até Deus: o sinal da carne do Cristo e os sinais de sua pa-
Assim, pois, Igreja e revelação, Igreja e palavra são lavra humana. A revelação continua sendo um conheci-
duas realidades indissoluvelmente unidas e que mutuamente mento indireto, imperfeito, parcial, obscuro. Subsiste sem-
se vivificam. A Igreja ao mesmo tempo convoca e é con- pre um hiato entre o enunciado e a realidade, entre o tes-
vocada. Nasceu da Palavra, está a serviço da palavra, é temunho e a presença, entre a revelação revelada e a reve-
sinal da palavra. A Esposa recebeu a palavra do Esposo e lação revelante. Acreditamos que Deus é Pai, Filho e Es-
jamais ã poderá esquecer. Ela vive dessa palavra, espe- pírit?; a visão, porém, do Pai, do Filho e do Espírito,
rando a volta do Esposo. contlm~a. sendo ?bjeto de nossa esperança. Por enquanto,
o Ser divino continua sendo trevas para nós. A revelação defi-
nitiva, que será visão direta, só depois da morte.

I. A FÉ, COMEÇO DA VISÃO

. A visão, porém, já preludia desde agora. Pela eco-


nomia da palavra e da fé, progressivamente passamos à
economia da visão, esperando a plena luz do encontro face
a ~~ce. com .o Pai. Pois a fé, se orienta para a ex-
perien~ia lummo~a do Deus vivo, possuído desde agora na
obscuridade. Orienta-se totalmente para a visão. Aspira
a contemplar claramente aquele que ela reconhece como a
sua felicidade. Na fé existe um apetite de visão, intensifi-
548. REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E VISÃO 549
cado pela própria fé que é "prelibação da v1sao futura" 1 - ganar nem se enganar. Apoiando-se assim na palavra de
De vários modos podemos perceber que a fé é um começo Deus mesmo, esse conhecimento escapa à fraqueza natural
de visão: do conhecimento humano e· participa da infalibilidade do
1. O próprio fato de Deus sai: de seu mistério, di- conhecimento divino, entra na imutabilidade da visão. Por-
rigir-se ao homem, falar-lhe, tem se~t1do para. Deus ~omen- tanto, sem a visão a fé não teria finalidade e seu impulso
te se ele tiver a intenção de comunicar-se mais plenamente seria barrado. Por seu objeto material e por seu motivo
com o homem concluindo pelo encontro o intercâmbio 101- ela pertence ao mundo da visão.
ciado pela pal~vra. Uma vez que a rev~lação ~ essencial- 3. A fé preludia a visão devido à atração para Deus
mente palavra de amizade, não tem sentido a nao ser que que a graça da fé imprime em nós. Como vimos, a Verdade
Deus queira consumar essa amizade com o homem num primeira infunde na atividade intelectual uma tendência ( in-
dom mais completo de si mesmo na presença e na v1sao. clinação ou atração) que age como um instinto primário
Deus, pelo simples fato de revelar e se revelar, co':1:ç~ a e profundo. Nessa tendência é pressentido o Deus da visão,
se dar com a intenção de um dia dar-se plena e defm1tiva- de maneira dinâmica, como objeto. e termo do movimento
mente. E a fé, que é adesão à palavra de Deus q~e co~- do espírito, do mesmo modo como o impulso precede e de-
vida à amizade e à doação, suscita no homem o deseJo legi-' signa a meta. A ação da graça determina uma tensão dinâ-
timo de chegar à plenitude dessa amizade e dessa Aoação mica na direção do Deus da visão. O próprio Deus não
que se deve realizar na _união t~ansformant~ e _beatif1can~e é visto, e o espírito continua conhecendo-o apenas media-
da visão. Revelação e visão, pois, nada mais sao que dois tamente. Mas, todo o dinamismo da fé tende a ultrapas-
momentos de uma mesma manifestação e comunicação de sar esse modo de conhecimento e indica como termo de seu
Deus ao homem. A visão consuma o que a revelação inaugura. movimento o próprio Deus que atrai para a visão de sua
2. A fé inicia a visão enquanto é uma participação real, essência. É, pois, a graça da fé um começo de visão, não
ainda que imperfeita e obscura, no conheciment~ que De_us como visão imperfeita, mas enquanto inscreve no dinamis-
tem de si mesmo. A palavra de Deus, com efeito, º?s. i_n- mo intelectual e volitivo da alma um impulso totalmente
troduz nos mistérios de sua vida íntima, faz a nossa micia- orientado para a visão. É visão incoativa como inclinação
ção num conhecimento que é próprio, do Pai, do Filh? e ativa, infusa, sobrenatural, em direção ao Deus da visão 2 •
do Espírito. Conhecimento que nmguem pode c_oi:isegu1r a 4. Finalmente a fé, enquanto animada pela caridade,
não ser por uma iniciativa gratuita das Pessoas divmas ( Mt torna-se princípio de visão. O cumprimento da vontade
11 25-27· lCor 2 7-10). A fé é começo, prelúdio de visão, de Deus atrai os olhares do Cristo que se manifesta a seu
pois que 'seu obje~o material é a mesma realidade misteriosa discípulo. Se alguém guarda os mandamentos do Cristo,
que ela conhecerá na visão: a essência divina subsistente em o Cristo manifesta-se-lhe (Jo 14,21 ). A imanência nele
três pessoas, a essência divina subsistente na pessoa do ,.Ve:- do Cristo, até então velada, começa a manifestar-se, ao mes-
bo hipostaticamente unida à natu~eza _h:1m~na, .a essenc1~ mo tempo que se manifesta a imanência do Pai no Filho
divina atuando intencionalmente a mtehgenc1a criada na vi- (Jo 14,9-10). O Espírito, que prescruta as profundezas
são: numa palavra, os três mistérios fundamentais do c:is- divinas ( lCor 2,10), torna sempre mais penetrante o es-
tianismo. O conhecimento da fé, pelo fato de captar im- pírito do crente e mais luminoso o próprio objeto da fé.
perfeita e obscuramente seu objeto, deve amadurecer : desa- Pelo dom da sabedoria infunde na alma de quem ama uma
brochar num. conhecimento pleno e completo. E mais, seu consonância afetiva que é fonte de inteligência. Quem faz
motivo é a própria autoridade daquele que não pode nem en-
2 Tomamos do P. ALFARO, Adnotationes in tractatum de Virtutibus,
1 Ill Sent., d. 23, q. 2, a. 1, ad 4. pp. 236-238, a substância destas três primeiras considerações.
REVELAÇÃO E VISÃO 551
550 REFLEXÃO TEOLÓGICA
vemos por meio de um espelho [ per speculum], num enig-
a vontade do Cristo, capta-lhe o pensamento, partilha de ma [ in aenigmate] ; então veremos face a face". Agora,
seus gostos e inclinações. O Espírito d~ Cristo ~az que isto é, no conhecimento da fé, temos de Deus apenas um
ele viva do pensamento e do amor do Cristo. Assim, me- conhecimento imperfeito: vemos num espelho, de maneira
diante a economia da fé, entramos progressivamente na indireta; num enigma, obscura e simbolicamente. A visão em
economia da visão: se recebemos e guardamos a palavra do imagem não percebe a realidade em si mesma, só em sua ima-
Cristo, recebemos o Espírito do Cristo que nos dá a inteli- gem; a visão num enigma dá apenas uma imagem confusa.
gência do Pai e do Filho. Se lhe apraz, Deus pode co~- No final dos tempos, pelo contrário, o conhecimento será
ceder a alguns privilegiados uma ampliação desse c?nh~ci- às claras, face a face, um conhecimento imediato, intuitivo,
mento da fé viva até às graças místicas extraordinárias. direto e claro. Essa visão face à face é a esperança suprema
Jamais, porém, enquanto aqui vive, poderá a alma romper do mundo que há de vir 4 •
os véus que a separam do seu Amado. Em sua primeira Espístola, são João estabelece um
nexo entre a visão de Deus e a nossa filiação divina: "Ago-
II. A REVELAÇÃO DEFINITIVA: VISÃO E ENCONTRO ra somos filhos de Deus, e ainda não se tornou manifesto
o que haveremos de ser; Sabemos, porém, que, quando
A revelação por excelência pertence à escatologia. Será se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o :vere-
então que se realizará em sua plenitude "à revelação de mos tal qual é" ( lJo 3,2). A primeira revelação, imper-
nosso Senhor Jesus Cristo" ( 1Cor 1,7; 2Tes 1,7 ) e de sua feita, suscitou, na fé, o começo de nosso ser cristão; a se-
glória (lPdr 1,7.13;4,13 ). Então, também se manifestará gunda revelação, perfeita, suscitará, na visão, a plena reali-
a glória de todos os configurados ao Cristo ( 1Pdr 1,5; zação de nossa condição de filhos. No estado atual de nossa
Rom 8,18.29; lCor 1,9). filiação permanece dupla obscuridade: obscuridade quanto
Querendo descrever essa revelação definitiva que unirá ao que somos na presente economia da fé e obscuridade
Deus e seus eleitos numa só felicidade, o Cristo usa imagens quanto ao que seremos quando irromper a visão. Nosso
tradicionais: reino, terra prometida, paraíso, núpcias, ban- atual conhecimento é imperfeito porque imperfeito é o
quete, tesouro, recompensa, salvação, vida, ressurreição, gló- nosso ser; é também imperfeito porque Deus ainda não se
ria etc. Contudo, através dessas imagens, vai-se manifestando revelou na visão. Quando Deus se manifestar plenamente,
um pensamento novo: a beatitude do reino consistirá essen- nós o veremos tal qual é, e à luz dessa revelação veremos
cialmente na visão e na fruição de Deus. A visão de Deus, o que somos. A visão de Deus, a nossa transformação ·nele,
impossível para o homem enquanto aqui vive ( :E:x: 33 ,20 ) , a revelação de nossa condição filial serão uma só realidade 5 •
privilégio do FHho (Jo 6,46;1,18) e dos anjos (Mt 18,10) Finalmente, no Apocalipse lemos que "os servos de Deus ...
será partilha dos eleitos: "Felizes os corações puros porque
vetão a Deus" (Mt 5,8). O face a face, a descoberta do 4 J. DuPONT, Gnosis, La connaissance religieuse dans les epitres de
semblante sagrado; tanto tempo procurado no Antigo Tes- S. Paul (Louvain et Paris, 1949), pp. 105-148; N. HuGEDÉ, La métaphore
du miroir dans les épitres de S. Paul aux Corinthiens (Neuchâtel-Paris,
tamento, caracterizará a vida eterna 3• 1957), pp. 98-150.
Em lCor 13,12, são Paudo faz uma oposição entre o 5 Também se pode entender o texto de João como se referindo ao

conhecimento que no estado presente temos de Deus e o Cristo. Significaria então: quando aparecer o Cristo, seremos semelhantes
a ele, pois que o veremos tal como é. Referir-se-ia o texto ao Cristo se-
que teremos na felicidade escatológica. "No presente nós gundo a divindade, em sua glória de Filho de Deus (Jo 1,18;17,5.24;
Apoc 22,3 ). Cfr. J. MouRoux, L'expérience chrétienne (Paris, 1952),
3 A. GEORGE, "Le bonheur promis par Jésus d'apres le Nouveau
pp .. 171-172.
rP•
Testament", Lumiere et Vie, n. 52 (avril-mai 1961), 36-37.
552 REFLEXÃO TEOLÓGICA
REVELAÇÃO E VISÃO 553
verão sua face" ( Apoc 22 ,4 ) . Essa visão é apresentada
como sendo a suprema beatitude dos eleitos. é ser comensal do Cristo ( Lc 14,15 ;22,30) e ser por ele
servido (Lc 12,37).
O magistério da Igreja indicou precisamente o objeto S-ao Pau1o, a " permanecer na carne ", pref ere "'ir-se " ,
e o modo dessa revelação definitiva. O objeto, da visão morrer, pois que a morte lhe permitirá ir para junto de Cris-
será a "essência divina" (D. 530), "do próprio Deus, uno to, "estai com o Cristo" (Flp 1,21-24), "permanecer jun-
e trino, tal como ele é" (D. 693). O Deus que a visão to do Senhor" ( 2Cor 5 ,8). Para os cristãos, o essencial da
nos manifestará, e com o qual desde agora temos comunhão felicidade final será '' estarem sempre com o Senhor" ( 1Tes
pela fé, é o Deus vivo e verdadeiro, Pai, Filho e Espírito, 4,17), "viverem unidos com ele" ( 1Tes 5,10: 2Tes 2,1),
o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus que falou "reinarem com ele" ( 2Tes 2, 12 ) . Será pessoalmente que
com Moisés como amigo, o Deus ao mesmo tempo temível cada um estará com o Cristo, fruirá de sua sociedade, de sua
e fascinante, separadd e familiar, transcendente e muito pró- felicidade, de seu amor. Em são João, a atenção concen-
ximo. Vê-lo-emos "numa visão intuitiva, face a face, sem me- tra-se ainda mais na pessoa do Cristo, que é em pessoa a
diação de qualquer criatura" que se· interponha entre a es- vida, a salvação, a glória (Jo 3,15-16; 5,24-26; 11,26;12,
sência divina e a inteligência humana: a essência divina ma- 50). O Cristo quer que os seus estejam "onde ele estiver"
nifestar-se-á "imediatamente, a descoberta" (D. 530). É, (Jo 14,3), "com ele" (Jo 17,24).
pois, um conhecimento imediato e intuitivo de Deus, que
Numerosos textos, finalmente, insistem no aspecto co-
atinge diretamente a própria essência divina percebida como
munitário desse encontro e dessa visão. Assim como a pri-
presente. Essa visão será fonte de fruição e de felicidade meira revelação é dirigida à humanidade como tal ( Mt 28,
eternas (D. 530). 19; Me 16,15), para formar o corpo do Cristo que é a
Não é bastante dizer que a revelação escatológica será Igreja (Ef 1,22;4,16;5,23.30), assim também a revelação
uma visão da essência divina: ,a visão anunciada pela fé escatológica se apresenta como uma experiência coletiva,
realiza-se não como um simples espetáculo, de tipo platô- como uma alegria compartilhada. Essa idéia aparece prin-
nico; antes, como a presença mútua de dois amigos que cipalmente no tema do festim escatológico (Lc 14,15), tão
se encontram, como a presença de um Pai que vem ao caro aos sinóticos. Esse festim é uma refeição comunitá-
encontro do filho. O estar face a face, anulará todas ria que reúne todos os justos ao redor do Senhor ( Mt
as distâncias; já não haverá tensão entre a palavra e a pre- 8, 11-12 ) . "Comereis e bebereis à minha mesa no meu
sença. A Palavra em pessoa será Presença. Deus então se Reino", promete o Cristo aos apóstolos ( Lc 22,30; Mt 26,
dará claramente num encontro e numa comunhão interpes- 29). O Apocalipse apresenta a Jerusalém celeste como sen-
soais. A visão de Deus será conhecimento e reconhecimento do a sociedade dos eleitos "reunidos" em torno do Cordeiro
mútuos, livremente aceitos, entre Deus e o homem, na mais (Apoc 14,1-4) e com ele reinando (Apoc 22,4;1,6.9) 6 •
plena reciprocidade: "Conhecerei como sou conhecido", diz A oposição que a Escritura e o Magistério evidenciam
são Paulo ( lCor 13,12). entre a economia da fé e a economia da visão não significa, po-
Segundo os Sinóticos, a felicidade prometida aos que rém, que com o encontro e a visão de Deus desaparecerá todo
tudo deixaram para acompanhar o Cristo, será a comunhão mistério. O homem, vendo a Deus, torna-se-lhe semelhante
com ele em seu Reino ( Mt 19 ,28). O Cristo termina a ( lJo 3,2), mas não igual. O conhecimento que Deus tem
Ceia marcando um encontro com os seus à mesa do ban- de si mesmo, além de intuitivo é exaustivo. O nosso co-
quete escatológico (Mt 26,29; Me 14,25). A felicidade é nhecimento, mesmo sendo imediato, continuará sendo conhe-
entrar na alegria do Senhor (Mt 25,21.23 ); é estar com
o Cristo, com o Esposo no salão das núpcias (Mt 25,10); 6 J. DuPONT, L'Union avec le Christ suivant S. Paul (Bruges, 1952),
pp. 79-100.
554 REFLEXÃO TEOLÓGICA REVELAÇÃO E VISÃO 555

cimento de criatura finita, limitada. Jamais poderia, pois, ex- existe, ou seja, o mistério de sua própria vida e o misterioso
aurir a essência divina. A visão será o encontro com o Misté- desígnio de comunicar ao homem essa vida. A iniciação
rio em Pessoa, e não mais apenas mediante testemunho e fé. num tal segredo é uma doação de Deus ao homem. Na
O próprio Deus inefável será o objeto de nossa visão; jamais, revelação da glória, o· próprio Deus torna-se presente e doa-
porém, mesmo na revelação final, a nossa inteligência do -se completamente, sem nenhuma mediação.
mistério poderá ser totalmente exaustiva. A vida eterna 5. Cada grau de revelação implica que também da parte
será como que uma imersão no abismo que sempre mais se do homem haverá uma doação cada vez maior de si mes-
aprofunda. Avançaremos de claridade em claridade, mas mo. A revelação natural corresponde a homenagem da glo-
também de abismo em abismo. O mistério já não será co- rificação e da ação de graças. A revelação sobrenatural cor 0

nhecido mediante sinais, continuará, porém, sempre mis- responde a fé, opção do homem que imprime à sua vida
tério. A visão será iniciação sem fim no Mistério de Deus. uma nova orientação, apoiando-se total e unicamente na pa-
lavra de Deus. Na revelação da glória, à plena doação de
Deus corresponde a plena doação do homem 7 • Conquistado
III. REVELAÇÃO DA NATUREZA, DA GRAÇA E DA GLóRIA
pelo conhecimento e pelo amor de Deus, o homem livre e
Tendo examinado as relações entre revelação natural plenamente, com a força do próprio Deus, corresponde a esse
e revelação da graça, entre revelação da graça e revelação conhecimento e a esse amor.
da glória, deveremos examinar agora o nexo existente entre 6. Princípio de cada uma dessas revelações é o Cristo,
essas três formas de revelação, pois que de uma a outra há Verbo de Deus. Todas as coisas foram criadas pelo Verbo
progresso e aprofundamento. e no Verbo, de modo particular a luz da razão que Deus
1. Na revelação natural o meio objetivo de manifesta- colocou no homem como em sua imagem. O Cristo é o prin-
ção é a obra da criação; na revelação sobrenatural, é a pa- cípio da revelação da graça, pois que ele é o Filho que está no
lavra e o testemunho de Deus; na revelação escatológica, é se~o do Pai e veio manifestar o Pai (Jo 1, 18 ) , é o ca-
a própria essência divina. minho único que leva ao conhecimento do Pai (Jo 5,36-
2. Uma luz subjetiva, cada vez maior, acompanha 40;8,15-20;12,44-50;15,20-25;16,3); e sua missão é glo-
essa manifestação objetiva; luz da razão, na revelação natu- rificar o Pai manifestando o seu nome isto é revelando-o
ral; luz profética e luz da fé, na revelação da graça; luz (Jo 17,4.6.26). Fínalmente, como o 'cristo foi na terra,
da glória, na visão beatífica. em sua condição de escravo, o revelador do Pai, assim tam-
3. A cada nível de revelação corresponde um conhe- b~m o Cri~to glori~so será no céu o único revelador da gló-
cimento cada vez mais profundo de Deus: na revelação na- ria do Pa1. O Cristo, em sua oração sacerdotal pede ao
tural, Deus é conhecido como princípio e fim do universo; Pai a plena manifestação de sua glória de Filho para que os
na revelação sobrenatural, conhecemos os mistérios de sua ho,~ens, ven~o a glória do Filho, vejam ao mesmo tempo a
vida íntima e seu desígnio de salvação; na revelação da gló- gloria do Pa1 (Jo 17 ,1.5 .24.26). Nessa manifestação de
ria, veremos claramente a Deus, no face a face da visão sua glória escatológica o Cristo manifestará, revelará aos ho-
de sua essência. mens a glória do Pai. Prolongará assim o Crísto na eter-
4. Cada forma de revelação é, da parte de Deus, nidade a sua função de Palavra encarnada: será o revelador
uma comunicação e uma doação de si mesmo cada vez maio- do Pai para os homens glorificados. Assim como sobre a terra
res. Na revelação natural, Deus deixa o sinal e dá a facul- "revelou o nome" do Pai (Jo 17,26.6), assim há de "reve-
dade que permite ao homem elevar-se até ele e discernir lá-lo" na eternidade gloriosa (Jo 17,26). "Dei-lhes a conhecer
sua presença no universo. Na. revelação sobrenatural, por
sua palavra Deus inicia o homem no que de mais íntimo nele 7 J. ALFARO, "Persona y grada", Gregorianum, 41 (1960): 11-13.
556 REFLEXÃO TEOLÓGICA

o teu nome e dar-lho-eia conhecer ainda" (Jo 17,26). Esse 9.


versículo resume toda a atividade reveladora do Cristo: re-
velador e glorificador do Pai aqui na terra (Jo 17,4.6.8.14. FINALIDADE DA REVELAÇÃO
22.26), continuará sua obra na . eternidade gloriosa (Jo
17 ,26). Durante sua vida terrestre revelou o Pai sob o
véu dos sinais e na obscuridade da fé; na eternidade, o
Cristo glorificado manifestará e comunicará a plenitude de
sua glória escatológica aos homens que lhe foram dados
pelo Pai e assim manifestará e glorificará o Pai. Jo 1,14
e Jo 17,24 relacionam-se 8 como a antecipação temporal, in-
completa e a consumação escatológica e eterna da mesma A via da finalidade é a terceira vía sugerida pelo pri-
realidade, que é a manifestação e a comunicação da glória meiro concílio do Vaticano para entrarmos progressivamen-
do. Cristo aos homens. O Cristo glorioso será eternamente te na compreensão dos mistérios cristãos. Agora a inte-
o revelador do Pai, o caminho para o Pai 9 • ligibilidade do mistério será procurada em sua causa final.
7. Cada um dos graus da revelação prepara ou pelo me- Podemos considerar a finalidade da revelação seja do
nos supõe o outro. Antes que o homem aceite a palavra é ponto de vista do homem, seja do ponto de vista de Deus.
preciso que possa reconhecer a existência de Deus, criador Numa perspectiva teocêntrica diremos que a revelação é
e senhor da ordem moral. Caso contrário, como poderia a feita em vista da glória de Deus. Numa perspectiva antro-
palavra mostrar-se-lhe ao mesmo tempo como gratuita e exi- pológica diremos que é feita em vista da salvação do ho-
gindo aceitação? Normalmente a economia da palavra pre- mem. É apenas uma questão de perspectiva, pois que glorifi-
cede a economia da visão, pois convém que o homem ouça cando a Deus o homem realiza sua salvação, e realizando sua
falar de Deus e se decida por ele antes de fruir de sua pre- salvação glorifica a Deus.
sença. A graça supõe a natureza e é por sua vez o funda-
mento e o penhor da glória.
. _8. Cada_ um dos graus está ordenado ao grau superior: a I. A REVELAÇÃO É PARA A SALVAÇÃO DO HOMEM
cr1açao em vista da palavra e a palavra em vista da visão. A
revelação explicita e amplia a linguagem implícita da cria- A revelação ordena-se à fé, e a própria fé ordena-se à
ção; a glória confere o gue foi anunciado pela palavra. salvação. O escopo da revelação, do ponto de vista do ho-
9. A revelação da graça é como um meio termo mem, é a salvação do homem. Ou em termos mais positi-
entre ~ revelação natural e a revelação da glória. Supõe e vos: é a visão, a participação na vida divina.
aperfeiçoa a primeira; prepara a última, à qual aspira. Par- É bom insistir: a revelação é uma obra essencialmente
ticipa ?ª imperfeição da primeira, e da perfeição da última. salvífica. Deus não revela para satisfazer nossa curiosidade
Aproxima-se, porém, mais da glória, pois que pertence, ou para aumentar nossos conhecimentos, mas para tirar
como a glória, à ordem da graça incomparavelmente acima o homem da morte do pecado e fazê-lo viver de uma vida
dl:I natureza. eterna .. Suscitada pelo Deus vivo, a palavra revelada, pregada
8 Jo 1,14: "E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós; e nós fomos e receb1d_a pela fé, gera seres vivos, filhos de Deus, participan-
espectadores de ~ua glória". J? 17,24: , "Pai, os que me deste, quero tes na vida das três pessoas divinas. Privar a revelação de
que, onde eu estiver, eles esteJam tambem comigo, para verem a minha seu caráter salvífico seria privá-la de uma de suas dimen-
glória, que tu me deste".
9 J. ALFARO, "Cristo glorioso, Revelador del Padre", Gregorianum, sões fundamentais; seria também dar razão aos que acusam
39 (1958): 234-239. os católicos de reduzirem a revelação a um conjunto de
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558 REFLEXÃO TEOLÓGICA


FINALIDADE DA REVELAÇÃO 559
proposições às quais o espírito humano estivesse obrigado da história, trazida aos homens pelo Ungido de Deus, que
a aderir. salvará Israel e toda a humanidade mediante Israel.
A idéia de salvação dirige e domina todo o Antigo O Cristo é aquele em quem se produz o acontecimen-
Testamento. Israel é o povo que Deus adquiriu, salvando-o to anunciado. Nele, a bondade salvífica de Deus torna-se
do Egito, do mar Vermelho, do deserto e dos habitantes presente à humanidade,· estabelece com ela uma aliança e
de Canaã. A revelação do Nome de Deus prende-se a essa dá aos homens um coração filial ( Gál 4,6). Jesus quer
libertação. A mensagem de Moisés é ao mesmo tempo o dizer Javé-Salvador, ou Salvação de Javé. Jesus é o Se-
anúncio da libertação e a comunicação do Nome liberta- nhor que vem realizar a salvação: êle é o Salvador ( Mt 1,
dor: ambos os aspectos são inseparáveis. A proclamação _d~ 21; Lc 2,11.30) e não existe outro Nome no qual sejamos
decálogo começa: "Eu sou Javé, teu Deus, que te t1re1 salvos (At 4,12; Rom 10,9).
da terra do Egito e da casa da escravidão" ( Ex 20 ,2 ) . O Segundo os Sinóticos, a pregação de Cristo tem por
:Êxodo e o Nome divino são uma só realidade (f:x 3,10-15). finalidade a instauração dó Reino de Deus. Esse Reino,
Lembrar o Nome· de Javé é lembrar o acontecimento deci- começado agora pela pregação do Evangelho ( Me 1, 14-15 ) ,
sivo, a graça capital da libertação (Os 12,10;13,4; Ez 20, pela libertação do pecado ( Me 2, 10-11; 14 ,24 ) e do Reino
5-6; Lev 22 ,3 3 ) . Javé será para sempre o Deus-que-salva. de Satanás (Me 5,1-20; Mt 12,28 ), pela fundação da Igre-
Que também castiga, mas que, em última análise, o faz ja (Mt 16,18), terá sua perfeição no céu onde os homens,
para salvar e fazer viver 1. O sacrifício da Páscoa (f:x 12, participantes do banquete eterno (Lc 22,24-30;12,37; Me
1-4) é o memorial da salvação, da passagem de Deus que 10,43-45), partilharão da vida do Pai (Mt 25,34-41). O
salvou e sempre salva. Cristo veio chamar os pecadores (Mt 9,13; Lc 5,32) e sal-
Em geral a espectativa messiânica tem suas raízes nessa var o que estava perdido (Lc 4,18; Mt 9,12). A salvação
fé no Deus da Aliança que jamais abandona o povo que é dada aos que acreditam na Boa-nova e são batizad~s:
adotou. A expectativa de um Messias pessoal abebera-se "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda cria-
na mesma fonte; com esta diferença, que a promessa de tura. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer
Natan a Davi coloca sobre Davi e sua descendência a espe- será condenado" ( Me 16, 15-16 ) . Esse versículo exprime
rança de Israel ( 2Sam 7,16). Apesar de o povo e seus prínci- claramente a finalidade da revelação: o Evangelho em vista
pes serem infiéis às condições da Aliança, mesmo assim Javé da fé, e a fé em vista da salvação.
continua fiel e sempre pronto para salvar. À medida que a re- Nos Atos, os apóstolos dão testemunho da obra de
velação progride, aprofunda-se também a idéia de salvação. salvação realizada pela morte e pela ressurreição do Cristo
Inicialmente, a salvação é concebida de forma muito ma- (At 5,30;10,39-40). Sua palavra versa sobre a salvação
terial: vitória sobre os inimigos, paz e prosperidade. Pouco trazida por Jesus Cristo (At 4,12;10,36;11,14;13,26.47;
a pouco, sob o influxo dos profetas e como conseqüên- 15,11;16,17.30.31) ou sobre a vida (At 3,15;5,20;11,18;
cia das desgraças, Israel chega a compreender que a salva- 13,46.48). Surgem daí as expressões: "todas as palavras
ção verdadeira é em primeiro lugar libertação do pecado e dessa vida" ( At 5 ,20), "mensagem de salvação" ( At 13 ,26),
de todas as formas do mal. A salvação anunciada pelos pro- "o Evangelho da graça" (At 20,24 ). O próprio Cristo é
fetas será uma redenção dos pecados ( Is 44,22;45,8;53,8). o "Príncipe da vida" (At 3,15), "Salvador" (At 5,31;13,
A Nova Aliança será estabelecida com os corações purifi- 23 ). Fora dele não existe salvação (At 4,12;5,31;10,43 ).
cados (Jer 24,7; Ez 36,23-28; Zac 13,9), e todos os povos Anunciar o Cristo é a mesma coisa que anunciar a Boa-nova
partilharão a salvação. A salvação será um acontecimento da salvação. Salvação que é concedida aos que acolhem a
palavra do Evangelho pela fé e se fazem batizar (At
1 G. Auzou, De la servitude au service (Paris, 1961), 124'. 2,41;18,8).
560 REFLEXÃO TEOLÓGICA FINALIDADE DA REVELAÇÃO 561
Em são Paulo, o tema da salvação oferecida aos ho- que todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida
mens pela fé no Evangelho é o assunto da Epístola aos ro- eterna; porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para
manos. O Evangelho é uma "força de Deus para a salvação condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por
de todo o crente: primeiramente do judeu, depois do gen- sua obra. Quem nele crê não será condenado, mas aquele
tio" ( Rom 1,16). Já no Antigo Testamento, a salvação que não crê já está condenado, porque não creu no nome
prende-se à palavra de Deus ( Is 40,8;44,26-28;55,10-ll). do Filho unigênito de Deus" (Jo 3,16-18). O essencial
Assim também em o Novo Testamento são Paulo faz a sal- do testemunho de Deus ou da revelação consiste nisto:
vação depender da força divina da palavra que ele tem por "Deus nos deu a vida eterna, e essa vida está em seu Filho"
missão anunciar ( Rom 1, 16). Pois que é no Evangelho que ( lJo 5,11). Pelo Cristo, que é seu Filho, sua Palavra, o
se manifesta a justiça de Deus, ou seja, sua vontade misericor- Pai mostra-nos o caminho que leva à vida, pois o Cristo
diosa, fiel às suas promessas de salvação. Afirma são Paulo é a Luz (Jo 9,5;12,35-36) e o Caminho (Jo 14,6)
que só no Evangelho se manifesta finalmente de forma que leva à Vida (Jo 12,50). Os homens são convi-
clara essa justiça dinâmica, que deve restabelecer a ordem dados a ouvir e a guardar a palavra do Filho: pela fé nessa
no mundo convulsionado pelo pecado; justiça cujos efei- palavra terão a vida (Jo 12,46-50). O Cristo é o Bom
tos o homem recebe pela fé ( Rom 1, 17 ) 2 • · Pastor: ele dá a vida eterna (Jo 10,27-28) às ovelhas que
O cristianismo não é uma metafísica abstrata, mas sim ouvem sua palavra.
uma história da salvação, orientada segundo um plano di- A doutrina da Escritura é retomada pelo Magistério da
vino. A Epístola aos efésios desenvolve as maravilhas desse Igreja, às vezes com os mesmos termos. O concílio de La-
plano. Em seu desígnio de amor, Deus estabeleceu o Cristo trão declara que a Santíssima Trindade "deu ao gênero hu-
princípio único de salvação para os judeus e para os gentios. mano uma doutrina de salvação" 3 e que o Cristo "indi-
Esse plano, inicialmente oculto em Deus como um segredo, cou-nos ... o caminho da vida" 4. O concílio de Trento,
anunciado depois aos homens, é essencialmente um plano referindo-se explicitamente a Me 16,15-16, diz que o Evan-
de salvação: deve fazer-nos filhos do Pai, co-hetdeiros do gelho é "a fonte de toda a verdade salvífica" 5• Diz tam-
Cristo (Ef 1,5-10;3,6; Col 1,25-28; Rom 16,25-27). Os bém que pela fé acreditamos "na verdade da revelação e
efésios, que ouviram a "palavra da Verdade, a Boa-nova das promessas divinas, principalmente que Deus justifica
da. salva.ção" e que "acreditaram" (Ef 1,13 ), receberam o o ímpio por sua graça, mediante a redenção que está no
Espírito que "é o penhor de nossa herança" ( Ef 1, 14 ) . Cristo Jesus" 6 • Finalmente, o primeiro concílio do Vati-
Pata são Paulo o Cristo é essencialmente o Mediador e o
Salvador que reconcilia os homens com Deus (Rom 4,25;· 3 "Haec Sancta Trinitas ... , primo per Moysen et sanctos Prophetas

2Cor 5,18-20; Gál 4,4-6). Assim também a palavra de aliosque famulos suos, juxta ordinatissimam dispositionem temporum,
doctrinam humano generi tribuit salutarem" (D. 428).
Paulo é uma palavra de "reconciliação" ( 2Cor 5 ,20). 4 "Et tandem unigenitus Dei Filius Jesus Christus ... viam vitae ma-
Pode ser assim enunciado o tema central do Evangelho nifestius demonstravit" (D. 429).
5 "Sacrosancta oecumenica et generalis Tridentina Synodus. . . hoc
e das epístolas de são ] oão: o Filho do Pai encarnou-se para sibi perpetuo ante oculos proponens, ut sublatis erroribus puritas ipsa
revelar e comunicar aos homens a vida eterna. Vida eter- Evangelii in Ecclesia conservetur, quod... Dominus noster Jesus Christus
na é como são João chama a salvação. "Com efeito, Deus proprio ore primum promulgavit, deinde per suos Apostolas, tanquam
fontem omnis et salutaris veritais et morum disciplinae omni creaturae
amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito para praedicari jussit" ( D. 783).
6 "Disponuntur autem ad ipsam justitiam, dum excitati divina gratia
2 A. FmJILLET, "Le plan salvifique de Dieu dans l'épJ:tre aux Ro- et adjuti, fidem ex auditu concipientes, libere moventur in Deum, cre-
mains", Revue biblique, 57 (1950): 338-340; S. LYONNET, "L'histoire dentes vera esse quae- divinitus revelata et promissa sunt, atque íllud in
du salut selon le chapitre VII de l'épitre aux Romains", Bíblica 43 (1962): primis a Deo justificari impium per gratiam ejus, per redemptionem quae
117-151. ' est in Christo Jesu" (D. 798).
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562 REFLEXÃO TEOLÓGICA FINALIDADE DA REVELAÇÃO 563


cano afirma que a revelação é "absolutamente necessária" Revelando-nos a Trindade, Deus inicia-nos no segredo de
porque Deus, "em sua infinita bondade destinou o homem sua vida íntima; esta iniciação, que já é por si mesma uma
a um fim sobrenatural, à participação dos bens divinos" 7 • incrível manifestação de amizade, é feita em vista de uma
Deus qui~ adotar o homem como filho, chamado a parti- participação na vida divina. A revelação da encarnação mos-
lhar da vida da Trindade. Mas, porque o homem é um ser tra-nos em Jesus Cristo, Verbo encarnado, a economia de
dotado de inteligência e de vontade Deus manifestou-lhe amor que Deus escolheu para comunicar-nos essa vida divi-
seu desígnio de amor para que o h~mem, cônscia e livre- na. Finalmente, a revelação de nossa filiação indica-nos a
~ente, escolha por si mesmo sua condição de filho e chegue natureza dessa comunicação: é uma certa extensão da vida
livremente à visão 8 • das pessoas divinas para a criatura humana. Deus reengendra
A intenção salvífica da revelação deduz-se não apenas em ,nós seu próprio Filho e insufla-nos seu próprio Espírito.
das d;claràções ~xplícitas da Escritura e do Magistério, mas Essa elevação da criatura até o seio e o coração de Deus
tambe1;1 a partir das duas considerações seguintes, que é essencialmente um mistério de salvação para a criatura,
bastara lembrar sucintamente, pois que já foram desenvolvi- pois que a faz participar em a natureza de Deus. Se o homem,
das nos capítulos precedentes: 1\') A intenção salvífica mos- pela fé, adere ao mistério que lhe é revelado, e vive uma
tra-se no próprio fato da revelação ou da palavra de Deus vida de filho, totalmente inspirada pelo Espírito comum
para a humanidade. Pela revelação Deus vem ao encontro do Pai e do Filho, ele realiza sua salvação e glorifica a Deus.
de uma criatura, e criatura pecadora. Semelhante iniciativa
pode apenas significar, da parte de Deus, amizade e salva-
ção. Deus que fala é já um Deus-conosco, Deus com seu poder II. A REVELAÇÃO É PARA A GLóRIA DE DEUS
de salvação. Antes mesmo de ser umá mensagem clara, a re-
velação já é_ um acontecimento salvífico. 2\') A própria O fim último da revelação é a glória de Deus. Tanto
mensagem, hgada a esse acontecimento salvífico manifesta em sua forma ativa quanto em sua forma acabada, a reve-
ainda mais a intenção salvífica da revelação. Com efeito, lação é toda em vista da glória de Deus.
os mistérios essenciais que Deus nos revela são os misté- Na sua oração sacerdotal o Cristo diz ao Pai: "Eu
rios da Trindade, da encarnação, de nossa filiação divina. glorifiquei-te na terra, consumando a obra que me deste
a fazer" (Jo 17,4). E acrescenta: "Manifestei o teu Nome
. 7 "Revelatio. abs?lute ~ecessaria ~cenda est. . . quia Deus ex infinita
aos homens" ( Jo 17 ,6). O Cristo veio à terra para dar
b~~1tate sua orc:\i~av1t hommem ad finem supernaturalem, ad participanda a conhecer aos homens a Pessoa do Pai ( Jo 17,3), a dou-
sc1hcet hona divina, quae humanae mentis intelligentiam omnino su- trina do Pai (Jo 7,16), as palavras do Pai (Jo 17 ,8). Ele
perant" (D. 1786).
8 ('i. co~sideração da fin~lidade da revelação tem como conseqüência "deu testemunho" do Pai (Jo 18 ,3 7 ) e "revelou seu Nome"
a cons1deraçao da s~a necessidade. De fato, se Deus decretou a elevação ( Jo 17 ,26). Para o Cristo, dar testemunho ao Pai, manifes-
do h3mem a ~m fim sobrenatural, será absolutamente necessária a re- tar o seu Nome, revelar o seu Nome, é o mesmo que glori-
yela~ao desse _fim e dos meios proporcionados para atingi-lo. Criatura
mtehgente e hvre, o homem deve tender para seu fim conhecendo-o e ficá-lo. Os apóstolos, por sua vez, tendo ouvido as palavras
querendo-o. Or_a,, es_se fim, sendo sobrenatural,. ultrapassa totalmente as e o testemunho de Cristo, acreditaram nele: "transmiti-lhes
f,o~as e _as ex1genc1as de qualquer natureza criada. A revelação é 0 as palavras que tu me comunicaste, e eles receberam-nas, e
U_?1co meio . para que o homem conheça esse fim e os meios que lhe
sao 1Jroporc1onados. Não se dá o mesmo com as verdades religiosas conheceram verdadeiramente que eu saí de ti e creram que
de ordem natural. O homem pode, por si conhecê-las pois que para isso tu me enviaste" (Jo 17 ,8 ) . É por isso que o Cristo pode
tem _capacidade natural· (D. 1807, 1782,' 1795, 2305). Contudo, a re- dizer ao Pai: "glorifiquei-te na terra, consumando a obra
~t:laçao dessas . ver~ades é , moralmente necessária para que o homem,
na P!esente s1tuaçao do genero humano", possa conhecê-las "facilmente, que me deste a fazer" (Jo 17,4). No Cristo e nos após-
com firme certeza e sem mescla de erro" (D. 1789). tolos a revelação atinge plenamente sua finalidade. O Cris-
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564 REFLEXÃO TEOLÓGICA FINALIDADE DA REVELAÇÃO 565


to, enquanto revelador, glorificou o Pai, pois que manifestou nerosidade do Pai e revelar o Pai aos pequenos, transfor-
aos homens o desígnio de graça do Pai. Doutra parte, o mando-os em filhos do Pai, capazes também eles de reco-
Cristo e o Pai foram glorificados pelos apóstolos, pois que nhecer o Pai e render-lhe ações de graças como filhos:
eles reconheceram o dom da revelação e da salvação em "Abba, Pai" (Gál 4,6). Com esse reconhecimento e amor
Jesus Cristo: "eles acreditaram. Neles eu sou glorificado", os homens participam da perfeição de Deus que é Amor
diz o Cristo (Jo 17,10). e Verdade: eles glorificam a Deus.
A glória de Deus indica, em primeiro lugar, o próprio Maria glorifica o Senhor, pois acolhe na obediência
Deus, na perfeição de seu Ser e na irradiação de sua per- da fé a palavra do anjo (Lc 1,27) e reconhece que o Senhor
feição. Essa perfeição expande-se primeiro no interior da fez grandes coisas por ela ( Lc 1,49). Em são Paulo, a ação
Trindade, comunicando-se depois às criaturas em graus e de graças é um reflexo habitual e espontâneo da alma: "con-
ordens diversas de participação. A seu modo o universo ma- tinuamente dou graças a Deus", diz ele ( 1Cor 1,4; Ef 1,
nifesta o poder, a sabedoria, a majestade do Criador. 16; Col 1,3; lTes 1,2; 2Tes 1,3 ). Paulo dá graças a Deus
O homem, podendo conhecer e amar, reflete a imagem de porque em Jesus Cristo fomos escolhidos para sermos sal-
Deus, infinitamente perfeito em seu entender e querer. De vos ( 2Tes 2, 13; 1Cor 4-5 ) .. Dá graças também porque os
modo ainda mais sublime, a revelação da Trindade, da en- fiéis de suas Igrejas, os tessalonicenses e os efésios, acredi-
carnação e da filiação divina, manifesta a infinita caridade taram quando ouviram a palavra da verdade, a Boa-nova
de Deus.
da salvação ( 1Tes 2, 13; Ef 1, 13 ) . O cristão glorifica a
A glória de Deus, se a consideramos do ponto de vista Deus quando adere, pela fé, ao plano de salvação e leva
da criatura espiritual, significa o reconhecimento da exce- uma vida condizente com essa fé. O homem glorifica a Deus
lência de Deus e de seus dons. Os homens são convidados pela fé, comunhão de espírito com o Pensamento de Deus,
a glorificar a Deus, que se manifesta através das criaturas, e pela caridade, que insere no seu coração o próprio Amor
e a prestar-lhe a homenagem de seu agradecimento ( Sab de Deus. É vivendo como filho, segundo o desígnio de Deus
13,1-9; Rom 1,18-21). Ainda mais: são convidados a glori- revelado pelo Filho, que o homem atinge a finalidade última
ficar a Deus na sua obra de graça, isto é, no desígnio de sal- da revelação: fazer que o homem participe da perfeição da
vação que estabeleceu desde toda a eternidade. A Epístola vida trinitária. Assim, ao mesmo tempo, glorifica a Deus
aos efésios, em estrofes muito densas e perpassadas de gra- e realiza sua salvação; pois, vivendo plenamente a vida de
tidão e admiração, enumera todos os dons da salvação: filho, realiza sua salvação que é também a glória de Deus.
predestinação, filiação, redenção, revelação, eleição de Is-
rael, vocação dos gentios. São Paulo repete insistentemente
que todos esses dons, inclusive o da revelação, ordenam-se
ao "louvor da glória da sua graça" (Ef 1,6.12.14 ).
Também sob esse aspecto o Cristo é o perfeito glori-
ficador do Pai. No seu hino de júbilo ( Mt 11,25-27; Lc
10,17-22), o Cristo dá graças ao Pai por ser o seu Filho
unigênito, único a participar da intimidade do Pai, e ao mes-
mo tempo, por ser aquele em quem o Pai manifesta aos
pequenos as insondáveis riquezas dessa intimidade. A ação
de graças do Cristo brota da contemplação da generosidade
do Pai que revela e comunica aos pequenos as riquezas de
sua vida. Essa ação de graças consiste em reconhecer a ge-
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 567
10.
nidade, decreta salvar o homem, intervir na sua história e
UNIDADE E COMPLEXIDADE manifestar-se-lhe num desígnio de glória. Ao dizermos que o
DA REVELAÇÃO motivo da fé é o próprio Deus que se revela, queremos di-
zer que a fé se apóia sobre o ato transcendental da palavra di-
vina: palavra onisciente, infalível, veracíssima. Em Deus
a revelação é uma ação livre, porque Deus revela por amor,
sem nenhuma necessidade que o obrigue. É ação imanente:
é uma decisão interior ao próprio Deus; apenas o seu
termo é exterior. É ação eterna, como todas as ações divinas.
Como todas as grandes realidades cristãs, a revelação É idêntica à substância de Deus, pois que o desígnio de reve-
mostra-se como extremamente complexa aos olhos do teólogo lação de Deus é o próprio Deus que se revela. Na revelação
que procura aprofundá-la. Essa complexidade manifesta-se nos Deus se compromete totalmente, é ação do Deus de verda-
paradoxos da revelação, na sua multiplicidade de estados, de e de amor. Por isso a revelação é ao mesmo tempo
de aspectos e de propriedades, na variedade dos meios de noética e dinâmica.
comunicação e de modos de expressão. E, contudo, essa com- 2. A revelação é acontecimento da história e história:
plexidade mesma leva à harmonia. A revelação, como a o termo da ação divina, eterna, imanente e livre é um efeito
Trindade que é sua fonte, é um mistério de unidade e de temporal. A revelação realiza-se sob a forma de intervenções
complexidade. Como conclusão, gostaríamos de salientar am- na história, que vão balizando o tempo. A ação reveladora
bas essas características da revelação. de Deus manifesta-se em acontecimentos cujo conteúdo atual
de revelação deve ser explicitado pelos enviados de Deus.
A ação divina está no princípio dos acontecimentos ( :Êxodo,
I. OS ASPECTOS DA REVELAÇÃO acontecimento da cruz etc.) e no princípio da interpreta-
ção desses acontecimentos. O acontecimento total compreen-
Na revelação há uma multiplicidade de aspectos. Há sem- de o fato hist6rico e sua interpretação, o acontecimento e
pre o perigo de a teologia exagerar alguns e subestimar ou- a interpretação profética que, graças à luz recebida, mani-
tros, ou estabelecer entre eles antagonismo irredutível. As- festa a inteligibilidade do acontecimento. Esses aconteci-
sim acontece que se faça oposição entre uma revelação-dou- mentos não são isolados entre si; têm um sentido e mani-
trina e uma revelação-acontecimento, uma revelação-encon- festam um desígnio. Cada etapa liga-se à precedente, reto-
tro e uma revelação-verdade. Em vez de tornar irredutíveis ma-a, torna-a mais precisa, leva-a para a frente. A reve-
essas oposições, é preciso reconhecer a diversidade de lação é uma economia. À medida que a história progride, o
aspectos da revelação, conforme as consideramos em Deus, tempo da salvação torna-se mais rico. Sobe lentamente
em seu termo temporal ou em sua maneira de atingir o em direção ao ponto de plenitude e de concentração que é
homem. Podemos assim distinguir, parece, quatro aspectos Jesus Cristo. De todos os acontecimentos da história da
essenciais da revelação: ela é ação de Deus, acontecimento salvação, o acontecimento da Encarnação é o mais pleno de
da história, conhecimento, encontro. Todos esses aspectos sentido: acontecimento que tem como sujeito o próprio Deus
devem convergir para uma apresentação sintética e har- e cuja significação é por ele mesmo expresso. A revelação,
moniosa. como acontecimento e como história, culmina em Jesus
1. A revelação é primeiramente mistério e ação di- Cristo. Nele completa-se a revelação.
vina: ação transcendente pela qual Deus, desde toda a eter- 3. A revelação é conhecimento: testemunho, mensa-
gem, palavra, doutrina. Em seu desígnio de amor, Deus
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 569
568 REFLEXÃO TEOLÓGICA
Cristo, os profetas, os apóstolos) e ao conteúdo da revela-
quer associar o homem à sua vida: Tendo, porém, feito
ção. Finalmente, uma revelação considerada apenas como
o homem inteligente e livre, à sua imagem, dá-lhe a conhe-
ação divina não teria ligação com a consciência humana:
cer seu desígnio de salvação para que ele livremente o aceite.
seria mais um contato do que uma comunicação interpes-
Deus, sendo Espírito da verdade, dirige-se à inteligência do
soal do Deus da verdade.
homem. A revelação é um sistema de conhecimento orien-
tado para um sistema de vida ..É um conhecimento do verda-
deiro Deus e de seu desígnio de salvação. No profeta, a ação II. OS PARADOXOS DA REVELAÇÃO
de Deus é uma iluminação do espírito, uma luz projetada so-
bre os acontecimentos da história, para que ele possa perceber
o alcance divino desses acontecimentos. O Cristo. exprime- A própria multiplicidade dos aspectos da revelação fa-
-se de forma inteligível: fala, prega, ensina, testemunha. zem dela uma realidade cujos traços muitas vezes são pa-
Também os apóstolos testemunham, pregam, ensinam. radoxais: é, ao mesmo tempo, transcendência e imanência,
O objeto de seu testemunho e de sua pregação denomina-se unidade e multiplicidade, exposição da verdade e ato salví-
o Evangelho, a Boa-nova, a palavra da verdade, a mensagem fico, testemunho doutrinal e manifestação pessoal, histó-
da salvação. Em sua forma passiva a revelação apresenta-se ria progressiva e verdade definitiva, acontecimento passado
como o conteúdo de uma palavra, de um testemunho: como e presença sempre atual, realização e expectativa 1•
o depoimento de testemunhas, como mensagem doutrinal. 1. A revelação é transcendência e imanência. É pa-
Mensagem, porém, que nunca deve ser separada da pessoa lavra eterna do Deus vivo e incriado, do Deus três vezes
do mensageiro, que nunca se pode tornar realidade inde- santo e totalmente outro, que habita em luz inacessível, in-
pendente, a ser aproveitada independentemente da Pessoa finitamente acima de sua criatura humana. Ao mesmo tem-
que a proferiu. Finalmente, mensagem que sempre se deve po, porém, é acontecimento da história, diálogo humano
, referir ao ato do próprio Deus que testemunha sobre si com os homens, utiliza o psiquismo dos profetas e expri-
mesmo. me-se com os sinais da linguagem. Vem de Deus, mas di-
4. A revelação é encontro. Pela revelação Deus di- !ige-se ao homem; é recebida pelo homem, proclamada pelo
rige-se ao homem, interpela-o, abre-se-lhe, numa confidência homem. Dois exageros ameaçam continuamente a revela-
amorosa, falando sobre sua vida pessoal e sobre seu desígnio ção: exagero de uma teologia que dilui a transcendência da
de salvação. Essa comunicação de Deus ao homem só atinge relação no mundo dos homens, que degrada e naturaliza a
sua finalidade se terminar na fé, que é o encontro com o palavra de Deus, como o fizeram o protestantismo liberal e
Deus vivo e pessoal em sua palavra. Esse primeiro en- o modernismo. Ou então o exagero de uma teologia que,
contro, que preludía o face a face da visão, é o resultado para não pôr em perigo a soberania de Deus, o mantém
ao mesmo tempo da liberdade humana e da graça divina. numa transcendência inacessível, como K. Barth, e suprime
Todos esses aspectos da revelação devem ser levados qualquer comunicação real entre Deus e o homem, entre o
em conta e jamais esquecidos, caso contrário a realidade ato de Deus e suas manifestações na história. Nesse caso,
sairá empobrecida e falseada. Se unilateralmente apresen- a palavra não se consegue exprimir nem o homem a pode
tarmos a revelação como doutrina, haverá o perigo de des-
1 A essas características da revelação poderíamos acrescentar muitas
personalizarmos a revelação e rompermos seus nexos outras que, diversas vezes, já salientamos no decorrer deste estudo: a
com_ a história. Mas, também uma teoria por demais ex- revelação é gratuita, interpessoal, social, hierárquica, salvífica, eclesial,
0

clus1v~ de revelação-acontecimento levaria rapidamente a progressiva, histórica, definitiva, escatológica. Para não repetir, queremos
neste capítulo estabelecer um paralelo entre algumas características cujo
uma mterpretação meramente historicizante da revelação, contraste espanta e às vezes, traz dificuldades.
sem que se desse importância ao papel das testemunhas ( o
570 REFLEXÃO TEOLÓGICA
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 571
perceber: Deus e o homem estão reduzidos a monólogos
paralelos. A teologia católica mantém ao mesmo tempo, adesão da fé e dá à pessoa a força de se entregar ao Deus
sem l\S corromper, a transcendênda e a .imanência da reve- vivo, nele e por ele mesmo. Para Deus, _não há distân-
lação. São possíveis um encontro e um diálogo entre Deus cia entre a intenção e a realização. O que ele diz acontece, p~lo
e o homem, pois a analogia entre o mundo divino e o mun- simples fato de ele o ter dito. A palavra de Deus realiza
do criado, a receptividade ou a capacidade do homem, auto- o que ela significa. É ativa e criadora. T~a~s~orma ta?to
rizam o diálogo. a existência individual como o curso da historia. Destina-
2. A revelação é unidade e multiplicidade. A revela- -se a dar a vida, a salvação e a graça. Tem por finalida~e
ção, em Deus, é um mistério de unidade. É uma só. ação reunir os homens para constituir o reino de· Deus, a IgreJa,
do Pai, do Filho e do Espírito; é uma só a economia da o povo santo, a Jerusalém celeste. É a palavra do Deus
salvação por eles decretada. São três que testemunham, vivo. É suscitada pelo Espírito de amor, sustentada p~r
mas os três são um só. Mas, por outro lado, a reve- ele, penetrada pelo seu sopro e, portanto, dotada de efica-
lação destinando-se ao homem, deve adaptar-se às condi- cia própria. . .
ções do homem. Portanto, o homem recebe de forma di- 4. A revelação é testemunho doutrinal e manifesta-
versa e múltipla uma verdade sumamente una e simples ção pessoal. Só pelos sinais temos acesso ao mistério d~
em Deus. Disso decorre a multiplicidade dos meios de comu- Deus: pelo conceito, pela imagem, pela palavra, _p_ela escri-
nicação: acontecimentos, pessoas, visões, imagens, símbolos, tura. Em sua plena realização, o testemunho divino apre-
intuições, sonhos, êxtase, arrebatamentos. E também a mul- senta-se como um conjunto estruturado de noções e de pro-
tiplicidade de modos de expressão ou de gêneros literários: posições sobre Deus e sobre seu desígnio salvífico. Ir contra
história, poesia, autobiografia, reflexão sapiencial. E, final- esse fato seria negar o fato do homem e o fato da encar-
mente, a multiplicidade de proposições e de verdades par- nação. Sob um aspecto, a revelação é testemun12o sobre
ticulares que servem para exprimir a unidade do misté- Deus: não existe revelação de Deus sem revelaçao sobre
rio divino. Deus sem doutrina portanto. Sob outro aspecto, porém,
3. A revelação é enunciação da verdade e ato salví- a re;elação é manif~stação da própria realidade divina. Si-
fico do Deus vivo. É luz e poder. O dabar divino, sob nais e proposições voltam-se para as ~ealidades s~gn!f~cadas.
esse aspecto, é mais amplo que a realidade que nós ordi- A revelação é revelação do Deus vivo, dos misterios de
nariamente designamos como palavra, de ressonância mais sua vida íntima, de seu desígnio de salvação. A me1?sa-
noética do que dinâmica. Sem dúvida, a palavra divina é gem coloca-nos em diálogo com o próprio Deus. Correl~tiv~-
comunicação do pensamento e do desígnio de Deus ao ho- mente o termo da fé não são os enunciados, mas a propria
mem. Essa palavra, porém, é dotada de poder. No profeta Pessoa: é resposta do homem ao Deus que fala. .
ou no apóstolo ela age como fogo devorador: o enviado de 5. A revelação é história progressiva e verdade defi-
Deus não pode deixar de testemunhar. Ela não apenas nitiva. .A revelação não é nem mítica nem intemporal, é
anuncia a salvação: ela realiza a salvação. O Cristo procla- parte da história. Chega-nos ~m, f?rma de ~contecime?t~s
ma a Boa-nova da salvaçãb, mas no mesmo tempo muda a si- que se inserem na trama da historia e constituem a histo-
tuação da humanidade, institui os meios que a salvam ( Igre- ria da salvação. É uma história homogênea que se apresen_ta
ja e sacramentos). A palavra de eleição, de perdão, de vida como uma economia, isto é, como o resultado de uma dis-
. nova, realiza o que diz. A palavra de Deus convida à obe- posição da sabedoria divina. O centro dessa economia é o
diência da fé pela mensagem explícita do Cristo, dos após- Cristo preparado, anunciado e revelado pouco a pouco. Por
tolos ou da Igreja. Essa proclamação exterior, porém, é outro lado essa revelação, que é comunicada mediante a
acompanhada pela ação interior da graça que convida à história e, ~ob esse aspecto, está incorporada à história e liga-
da às suas condições, essa revelação uma vez terminada, apre-
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 573
572 REFLEXÃO TEOLÓGICA

senta-se como a verdade absoluta sobre o homem e sobre do Esposo e a manifestação gloriosa das realidades que já
Deus. No plano das relações entre Deus e o homem ( não existem ocultas sob os véus da. fé.
no plano dos valores meramente terrestres e humanos) a re-
velação declara-se como a verdade definitiva imutável vá- III. A REVELAÇÃO COMO AÇÃO TRINITARIA
lida para todos os homens e para todos os 'séculos; v'erda-
de que a Igreja tem por missão propor, aprofundar, interpre- A complexidade da revelação não é cabalmente com-
tar, mas não modificar ou suprimir. preendida a não ser relacionada com a teologia das missões
6. A revelação é acontecimento passado e presença trinitárias e com a doutrina da apropriação.
atual. Enquanto série de acontecimentos em que é propos- A revelação é obra de toda a Trindade: Pai, Filho e
ta e como depoimento das testemunhas escolhidas, a reve- Espírito. A fecu11:didade espiritual da Trindade expande-se
lação encerrou-se. Mas, esse "uma vez" dos acontecimentos na linha do pensamento e do amor: o Verbo é proferido e
da salvação não exclui o "agora", o "hoje" da ação divina o Espírito é espirado. O proferir ad intra continua num pro-
que solicita nossa fé e nosso amor. O ·apelo de Deus con- ferir ad extra: é a revelação. Esta locução é uma locução
tinua ressoando, tão vivo, tão presente como no tempo de de amor, como a locução ad intra. A palavra do Cristo tem
Cristo e dos apóstolos. Permanece em sua verdade e em ~ua origem na comunhão de vida do Pai e do Filho, e por
sua eficácia. A palavra está consignada na Escritura, é pre- isso é palavra de Deus. O Espírito continua a missão do
gada na Igreja para atingir os homens de todas as gerações. Cristo, não porém, falando: ilumina a palavra do Cristo
Deus, pela voz de sua Esposa, nunca deixa de nos interpe- em comunhão de vida com o Filho, que por sua vez está
lar. A palavra foi escrita para durar, não para sedimen- em comunhão com o Pai. A palavra do Espírito é a do Filho,
tar e morrer. A cada instante do tempo ela irrompe com e a palavra do Filho é a do Pai. A única palavra de Deus per-
o frescor da primeira manhã, sempre contemporânea, sem- tence ao Pai, ao Filho e ao Espírito .. Tem sua origem na
pre atual. É . por isso que a liturgia sempre repete: unidade de vida da Trindade. Não é a verdade de uma
hoje nasceu o Cristo, hoje o Cristo morreu por nossos pe- pessoa, mas das três pessoas. Está enraizada na comunidade
cados, hoje o Cristo ressuscitou. Pela Igreja Deus interpela de vida das três pessoas e manifesta essa comunidade.
cada homem em particular para introduzi-lo e associá-lo ao Ainda que_ o Pai, o Filho e o Espírito sejam um só
mistério da salvação. Hoje a palavra ressoa para cada um e o mesmo princípio da revelação, nem por isso podemos
de nós; hoje se realiza para cada um de nós o que ela concluir que a Trindade como tal não influa de modo algum
anuncia. na revelação. Cada uma das pessoas age segundo os efeitos
7: A revelação é realização e expectativa. Com Je- que misteriosamente corresponde àquilo que, respectiva-
sus Cristo a revelação atingiu sua plenitude: o acontecimento mente, são o Pai, o Filho e o Espírito no seio da Trindade.
decisivo_ já está no centro da história, o Evangelho cumpre Como sempre, é o Pai que tem a iniciativa, pois o Fi-
as Escrituras. A revelação já não é algo que se deva es- lh~ tudo recebe do Pai, natureza e missão. É gerado pelo
perar, mas algo que se deve proclamar como uma Boa-nova, Pai, da substância do Pai, verdadeiro Deus de Deus ver-
algo ,qu~ dev~ .s~r acol~ido pela fé. A palavra da Igreja é dadeiro, consubstancial ao Pai. É o Pai que envia o Filho
o anu~cio dehmtivo e eficaz da salvação. E, contudo, a Igreja como revelador de seu desígnio de amor ( lJo 4,9-10; Jo
anuncia sempre que o Senhor vem, que há de vir. Isso 3,16); é o Pai que testemunha em favor do Filho e de
porque o último ato da revelação ainda não aconteceu: sua missão de revelação, pelas obras que ele dá ao Filho
a epifania do Cristo, em sua glória de Filho de Deus e de realizar (Jo 10,25;5,36~37;15,24;9,41); é também o Pai
Salvad?r, e a manff~stação dos filhos do Pai, conquistados qu~ atrai os homens em direção ao Filho pela atração in-
pelo Filho do Espmto de amor. Espera a Igreja o retorno terior que produz nos seus corações (Jo 6,44).
-574 REFLEXÃO TEOLÓGICA UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 575

Sendo que o Filho já é, no seio da Trindade, a Palavra O Espírito interioriza. E também atualiza a revelação.
eterna do Pai, a Palavra incriada na qual o Pai adequada- Nada inova, mas tudo leva à plena realização. Não traz
mente se exprime, está ontologicamente qualificado para nova revelação, mas possibilita penetrar a primeira reve-
ser entre os homens a revelação suprema do Pai e de seu lação em toda ~ sua profundidade. Ele é que deu aos após-
desígnio salvífico. Sendo o Filho do Pai, aquele que sem- tolos a memória viva e a compreensão das palavras do Cristo
pre faz a vontade do Pai e em quem o Pai se compraz, (Jo 14,26; 16,12-13). Pela assistência que ele presta à Igre-
ele é ontologicamente indicado para iniciar os homens na ja, atualiza para cada geração a revelação do passado. Ex-
sua vida de filhos. O Cristo é, pois, o perfeito Revelador. plicita constantemente o que é do Cristo. Ele, Espírito do
(?ra, o des~gnio do Pai é estender à humanidade a própria Cristo, cuja missão é servir à palavra do Cristo, que garante
vida da Trindade. Pelo Cristo, o Pai quer associar-nos às a continuidade e a fidelidade dessa penetração sempre maior,
relações de filiação e espiração da vida trinitária. Quer tornando patente aquilo que a Igreja ainda não tinha obser-
reengendrar seu próprio Filho em cada homem, insuflar-lhe o vado, indicando como as novas realidades se prendem às
seu Espírito ~ uni-lo a si na mais íntima comunhão, para antigas. Às questões de cada época o Espírito responde
que todos seJam um, como o Pai e o Filho são um, em com suas sugestões; é o presente que nos faz.
um mesmo Espírito de amor. O Filho vem, ele que teste- É assim que o Pai, pela ação conjunta do Verbo e do
munha sobre o Pai e seu desígnio de amor: "Deus amou Espírito, como se fossem dois braços de amor, se revela à
tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito para que humanidade atraindo-a a si. O movimento de amor pelo
todo aquele que crê nele não pereça mas tenha a vida qual o Pai, pelo Cristo, se manifesta aos homens, e o amor
eterna " (Jo 3,16). Se acolhemos o testemunho
' que o Pai que os homens lhe retribuem pela fé e pela caridade, mos-
nos apresenta mediante o Filho, o Pai faz de nós filhos tram-se como que imersos no fluxo e refluxo de amor que
seus: "A quantos o [Verbo] receberam deu-lhes o poder une o Pai ao Filho no Espírito. A revelação é uma ação
de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1, 12 ) . Mediante a ao mesmo tempo da Trindade e da humanidade, ação que
geração do Filho em nós, recebemos um espírito de filhos estabelece um ininterrupto diálogo entre o Pai e seus filhos,
um esp1r1to'. de amor: "Deus enviou aos vossos · corações' conquistados pelo sangue de Cristo. Desenvolve-se, ao mes-
o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai" ( Gál 4,6). mo tempo, no plano dos acontecimentos históricos e no
Enquanto o Filho "faz conhecer" o Espírito "inspi- plano da eternidade. A revelação começa pela palavra e
ra " 2. É . º, ~op~o e o calor do pensamento
' divino: dá po- culminará na visão, no encontro face a face.
der e ef1cac1a a palavra. O Cristo estabeleceu a realidade
objetiva da graça e da verdade, da salvação e da revelação.
O ~spírito no-la aplica, no-la interioriza. Torna a palavra
solu_:v~l na alma pela unção que lhe infunde, pois, sem o
Es~mto que transforma a inteligência e o coração, como po-
deria b homem abrir-se a algo que lhe é estranho? O Cris-
to propõe a palavra de Deus: o Espírito repete-a insinua-a
f a-, 1a penetrar e permanecer. Torna efetivo o dom ' da re-'
velação.

• 2 Ob~e~va Sto. Tomás: "Spiritus Sanctus est Spiritus veritatis. . . his


qmbus m1tt1tur inspirat veritatem, sicut et Filius a Patre missus notificat
Patrem" (ln Iam ad Cor., e. 2, lect. 2).
BIBLIOGRAFIA

1. Livros
Livros que tratam especificamente da revelação ou que lhe consagram
pelo menos o equivalente de um ou mais capítulos. As obras, bastante
numerosas que tratam da revelação de modo ocasional, já foram indica-
das ao longo dos capítulos, em notas no rodapé. A esta lista devem-se
acrescentar todos os tratados ou manuais De Revelatione utilizados nos
cursos de teologia ..
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WoRDEN, T., "Revelatiori and Vatican II", Scripture, 29 (1967): 54-62. 27 3. Revelação cósmica e revdação histórica
29 4. A revelação profética
34 5. Objeto da revelação
36 6. Resposta do homem à revelação
37 7. Traços característicos da revelação
40 8. Conclusão

41 Capítulo segundo: A revelação em o Novo Testamento


42 1. A tradição sinótica
42 1. Os vocábulos
43 2. Cristo como pregador
45 3. Cristo como doutor
47 4. Cristo como Filho do Pai
48 5 . A fé, resposta do homem
49 6. Conclusão
49 2. Atos dos Apóstolos
50 1 . Os apóstolos testemunham
53 2. Os apóstolos proclamam a Boa-nova
56 3. Objeto do testemunho e da pregação
57 4. A fé, resposta do homem
58 5. Conclusão
59
59
3 . São Paulo
1. Os termos
1 132
135
3. Santo Atanásio
4. S. Cirilo de Alexandria
60 .2 . O mistério paulino
62 3. As etapas na revelação do mistério 13 7 2 . Os Capadócios
65 4. A resposta do homem 138 1. S. Basílio
66 5. Aprofundamento do mistério 139 2. S. Gregório de Nissa
67 6. Revelação histórica e revelação escatológica 141 3. S. João Crisóstomo
68 7. Finalidade do mistério
69 8. Conclusão 145 Capítulo quarto: Testemunhas da Igreja Latina
69 4 . Epístola aos hebreus 145 1 . Tertuliano
70 1 . Revelação da Antiga e da Nova Aliança 150 2. São Cipriano
73 2 . Grandeza e exigências da Palavra de Deus 151 3. Santo Agostinho
74 3 . Conclusão 158 Conclusões
75 5. São João
75 1. Jesus Cristo, Palavra de Deus e Filho de Deus TERCEIRA PARTE
76 2. A Gesta do Logos A NOÇÃO DE REVELAÇÃO
77 . 3. A revelação no vocabulário joanino NA TRADIÇÃO TEOLOGICA
79 4. O Cristo, Testemunha do Pai
80 5. O testemunho do Pai 169 Capítulo primeiro: A Escolástica do século XIII
82 6. O Cristo, Deus que revela e Deus revelado
83 7. Características da revelação 169 1. São Boaventura
84 8. Conclusão · 169 1. Revelação e economia da revelação
172 2 . A revelação profética
174 3. Fé e revelação
SEGUNDA PARTE
176 4. Conclusão
O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES 176 2. Santo Tomás de Aquino
91 Capítulo primeiro: Primeiras Testemunhas 177 l. A revelação como operaçã? salvífica . , .
178 2. A revelação como acontecimento da htstor1~
91 1. Os Padres apostólicos 181 3 .· Revelação profética como carisma de conhecimento
94 2. Os Apologetas 188 4. A revelação como palavra .
94 1. São Justino 190 5 . A revelação· pelo Cristo e pelos apóstolos
98 2. Atenágoras 192 6. Revelação, Escritura, Igreja
99 3. São Teófilo de Antioquia 194 7. Da revelação à .fé
100 4. Epístola a Diogneto 196 8 . Revelação como grau no conhecimento de Deus
197 9 . Conclusões
103 Capítulo segundo: Santo Irineu 199 3 . Duns Scot
114 Capítulo terceiro: Testemunhas da Igreja Grega 200 1 . Necessidade e economia da revelação
201 2. A Escritura e o costume
114 1. Os Alexandrinos 202 3 . Profetas e apóstolos
114 1 . Clemente de Alexandria
122 2. Orígenes 205 Capítulo segundo: Escolásticos pos-tridentinos

j
205 1. Melchior Cano e Domingos Bafies 314 Capítulo terceiro: A crise modernista
208 2. Francisco Suarez 314 1 . Ascendência liberal do modernismo
209 1. Revelação no sentido estrito 322 2. Os pródrornos da crise
211 2. Iluminação ou revelação do objeto e da potência 332 3. Documentos antimodernistas
213 3. João de Lugo
213 346 Capítulo quarto: O período contemporâneo
1. A revelação corno palavra
215 2. Revelação e hábito ou auxílio da fé 346 1 . No pontificado de Pio XI
216 354 2. No pontificado de Pio XII
4. Os carmelitas de Salamanca
357 3. No pontificado de Paulo VI
218 Capítulo terceiro: A renovação escolástica do século XIX 366 Capítulo quinto: O segundo concílio do Vaticano e a
218 1. João Mohler constituição "Dei Verbum"
221 2. H. J. Domingos Denzinger 368 1. Texto e comentário
222 3. J. B. Franzelin
370 2. Capítulo I: A revelação
226 4. J. Henrique Newman
387 3 . Capítulo II: A · transmissão da revelação divina
229 5. M. J. Scheeben
399 4. Observações gerais
404 Conclusões
234 Capítulo quarto: Teologia da revelação no século XX
234 1 . A doutrina comum no começo do século XX QUINTA PARTE

241 2. Fatores da renovação e orientações atuais REFLEXÃO TEOLÓGICA


242 1 . Ponto de partida: insatisfações e queixas
244 2. Teologia protestante 419 Capítulo primeiro: A revelação como palavra, testemunho
246 3 . Renovação bíblica e patrística e encontro
249 4 . · Reflexão sobre a teologia 420 1 . A revelação como palavra
256 5. Teologia querigmática 420 1 . Palavra humana
261 6. O problema teológico da pregação 423 2. Palavra divina
265 7. Desenvolvimento do dogma
270 8. Teologia da revelação e da fé 426 2. A revelação como testemunho
277 Conclusões 428 1. Testemunho humano
430 2. Testemunho divino
QUARTA PARTE
431 3. A revelação como encontro
NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO
ECLESIASTICO 436 Capítulo segundo: Revelação e criação

289 Capítulo primeiro: O concílio de Trento e o Protestantismo 436 1. Do Deus da história ao Deus da criação
440 2 . A criação como manifestação de Deus
296 Capítulo segundo: O primeiro concílio do Vaticano e o 44 7 3 . Revelação natural e revelação sobrenatural
Racionalismo
451 Capítulo terceiro: História e revelação
296 1 . A ação da Igreja no seu contexto
301 2. A constituição dogmática sobre a fé católica 452 1. A história, lugar da revelação

J
45 5 2 . A história da revelação 547 1. A fé, começo da visão
458 3. A revelação pela história 550 2. A revelação definitiva: visão e encontro
463 4. As implicações de uma revelação na história e pela 554 3. Revelação da natureza, da graça e da glória
história
469 5. Conclusões 557 Capítulo nono: Finalidade da revelação
4 71 Capítulo quarto: Encarnação e revelação 557 1. A revelação é para a salvação do homem
563 2. A revelação é para a glória de Deus
472 1. Inteligibilidade de uma economia de encarnação para
a revelação 566 Capítulo décimo: Unidade e complexidade da revelação
474 2. Plenitude e realismo da encarnação
477 3. Revelação mediante a encarnação 566 1 . Os aspectos da revelação
479 4. Proposição humana e verdade divina 569 2. Os paradoxos da revelação
483 5. Situação do Cristo 573 3. A revelação como ação trinitária
485 6 . Situação dos apóstolos
488 7. Situação da Igreja 577 Bibliografia
índice dos nomes próprios
493 Capítulo quinto: Revelação e luz da fé
índice de matérias
494 1. As bases escriturísticas
498 2. Natureza e função da atração interior
501 3. As duas dimensões da palavra de Deus
504 4 . Revelação e sacramento

506 Capítulo sexto: Milagre e revelação


507 1. Polivalência do milagre
507 1 . Sinal da agape de Deus
508 2. Sinal da chegada do reino redentor
511 3. Sinal da missão divina
513 4. Sinal da glória do Cristo
514 5. Revelação do mistério trinitário
516 6. Símbolo da economia sacramental
518 7. Sinal das transformações do mundo escatológico
522 2. Revelação e funções do milagre

526 Capítulo sétimo: Igreja e revelação


526 1. A palavra convoca e gera a Igreja
528 2. A Igreja "presencializa" a palavra
531 3. A Igreja serva, guarda e intérprete da palavra
5 38 4. A Igreja sinal da revelação

547 Capítulo oitavo: Revelação e visão

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Impresso na gráfica das Edições Paulinas, 1972


Via Rapôso Tavares, km. 18,5 - 01000 São Paulo

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