Misterium Salutis IV-3 - Johannes Feiner
Misterium Salutis IV-3 - Johannes Feiner
Misterium Salutis IV-3 - Johannes Feiner
A IGREJA
3. As propriedades da Igreja
JOHANNES FE1NER
MAGNUS LOEHRER
MYSnfflM SALlinS
COMPÊNDIO DE D O G M Á TIC A
HISTÓRICO-SALVÍFICA
Volume I / publicado:
TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Tomo 1 — Conceito de História da Salvação e Revelação
Tomo 2 — Escritura e Tradição
Tomo 3 — Revelação e igreja
Tomo 4 — Revelação de Deus e Resposta do Homem
Volume II / publicado:
A HISTÓRIA SA LV IFIC A ANTES DE CRISTO
Tomo 1 — Deus Uno e Trino
Tomo 2 — A Criação
Tomo 3 — Antropologia Teológica
Tomo 4 — Angelologia e Teologia na História Pré-Crlstã
Volume IV / no prelo
A SGREJA (e m s e is SamesJ
Tomo 1 — Eclesioiogia Bfbllca
Tomo 2 — Igreia, povo de Deus e Sacramento Radical
Tomo 3 — As Propriedades da Igreja
I
Volume V / a sair
A MORAL CRISTA E A CONSUMAÇAO DA H ISTÓRIA SA LV IFIC A
LA N Ç A M E N T O D A
JOHANNES FEINER
E
MAGNUS LOEHRER
Colaboração de:
YVES CONGAR
PIETRO ROSSANO
( © ) by Benziger Verlag
Einsiedeln, Zürich, Köln
1972
Supervisão de:
DR. PE. FR E I LEONARDO BOFF, O.F.M.
Tradução de:
LU IZ JOÃO GAIO
IM PRIM ATUR
Imprimi potest
Petropoli, die 15 Januarii 1971
Mons. Francisco Gentil Costa
Vigário Geral
1. Vocabulário
diferente, que leva o autor a dar o nome de «sinais» àquilo que enten
demos por «notas».4
Nos séculos X V e X V I eneontra-se igualmente o termo signa,B
próximo daquele de nota e, às vezes, associado a ele.“ No século X V I
encontram-se os termos qualitates, índoles, ratio, praerrogativa, com
mais freqüência proprietates (Catecismo romano), tomado às vezes como
equivalente de notae, e, finalmente, nota (João Eck, Belarmino).’ Estes
últimos termos são os que prevaleceram.
Todavia, estes dois termos não são equivalentes.8 E ’ verdade que
a princípio distinguiram-se mais as duas coisas : assim aconteceu no
século X V I e, às vezes, ainda no século X V II.0 Foi a necessidade de
criticar os sinais reivindicados pelos protestantes, e depois a diferença
de argumentação, segundo esta fosse dirigida contra os protestantes ou
os libertinos, que levou à distinção entre sinais, propriedades e notas.
Estas últimas deviam preencher as seguintes condições: ser mais conhe
cidas do que a Igreja, acessíveis a todos os espíritos, ser próprias da
verdadeira Igreja e inseparáveis dela. As propriedades, por seu lado,
são certamente próprias da Igreja, mas não servem para tormá-laconhe
cida como instituição divina daqueles que a vêem de fora. Entre estas
propriedades encontram-se geralmente a de ser uma sociedade desigual
ou hierárquica, a visibilidade, a necessidade (para a salvação), a plena
independência de vida («sociedade perfeita»), a indefectibilidade, a
infalibilidade e, por último, nossas quatro notas, que primeiro são pro
priedades. Efetivamente, as notas não são mais do que propriedades
capazes de notificar ou de fazer reconhecer a Igreja.
Não é preciso ser especialista em história das doutrinas eclesioló-
gicas para perceber até que ponto a enumeração «clássica» das proprie
dades está ligada aos desenvolvimentos característicos do século X IX,
que se prolongaram no ensino escolar até a época pré-conciliar.
tantes. Fora disto, podemos ver esboçar-se uma argumentação pela apos-
tolicidade contra as seitas anti-eclesiásticas, no século X II e início do
século X I I I . 10 Na época patrística só se encontram argumentações par
ticulares, adaptadas a um adversário ou a uma conjuntura concreta:
recurso à sucessão apostólica e à legitimidade dos pastores em Ireneu
e Cipriano,31 à catolicidade em Agostinho, ” à universalidade e à anti
guidade em Vicente de Lérins.13
A questão das notas foi levantada quando a controvérsia eclesio-
lógiea se desenvolveu contra os hussitas e, sobretudo, contra os refor
madores protestantes, em correspondência com os elementos de comunhão
constitutivos da Igreja. Para os reformadores, o definitivo era a palavra
do evangelho e os sacramentos nele testificados.11 Alguns acrescentavam
a isso mais algum e le m e n to .P o r vezes, os teólogos protestantes ado
taram o quadro dos quatro atributos enunciados no Símbolo. “ O critério
protestante encontrou-se, evidentemente, com a crítica dos apologistas
católicos: estes julgavam que tais critérios não correspondiam à defi
nição de uma nota, sinal ou distintivo, que comporta o ser próprio da
Igreja verdadeira, facilmente perceptível por todos e mais imediatamente
cognoscível do que a própria Igreja. ”
Oa próprios apologetas abriram, às apalpadelas, o caminho da apo
logética sobre a Igreja «via notarum»: João Eck já em 1521, Estanis-
lau Hosius em 1553, Belarmino, que enumerava quinze notas (em 1591,
depois de dez anos de trabalho, Bózio enumerava nada menos do que
cem). Alguns catecismos contavam ainda quatorze ou dezenove notas
no século X V III, quando Toumély já tinha fixado, em 1726, para mais
de um século, o esquema da apologética pelas quatro notas.58 No decor
rer do século X IX deu-se conta da dificuldade que supunha manejar
eficazmente a argumentação das notas. Por isso, alguns (Dechamps)
acrescentavam a esta argumentação, ou mesmo preferiam a ela, a via
empírica (a Igreja como milagre moral por sua fecundidade em toda
classe de bens); 39 de outro lado, não poucos autores consolidavam a
“ G. T h i l s , op. cit., 77, 94 (n. 1), 133, 145, 197s, 204, 282.
“ E p. 93, 8, e 185, 9s. E ’ necessária, dizia ele, a perseguição pela ju s tiç a ...
" C arta de 19 de abril de 1874 a seu sobrinho J. B. Mozley, em W .
W a r d , I i f e of Card. Newm an, II, 572s.
“ D a í os três grandes grupos de testemunhos: 1) Confissão de Inocêncio
m para os valdenses reintegrados n a comunhão católica (D z 423; D S 792; cf.
a nota sobre o título do documento), texto tanto mais significativo pelo fato
de a palavra Rom anam não figu rar na profissão enviada por Leão I X a Pedro
de Antioquia, e que serviu de modelo para a profissão dos valdenses (D z 347;
D S 684). Cf. Inocêncio III, Reg., X I, 196; Moneta de C r e m o n a , Contra
Caíharos et Valdenses, livro V, cap. 2 (ed. Ricchini, Roma, 1743, 409), e Bento
de A l i g n a n o , Tractatus fidei (ca. 1260). 2) N o contexto da união com os
gregos e do Concílio de Florença (D z 703; D S 1330). 3) Frente à crítica da R e
form a: profissão de fé de Pio I V (D z 994 e 999; D S 1862 e 1868); poder-se-iam
citar Canísio, Belarm ino e numerosos catecismos a partir do século X V H .
M E ’ característica a alocução Singulari quadam, de 9 de dezembro de
1854 (D z 1647; falta em D S ).
“ Cf. M ansi 51, 105ss, 179-200, 351, 394-424; Th. G r a n d e r a t h , Constitu-
tiones dogmaticae S. Oec. Concilii Vaticani, Friburgo, 1892, 29-32; id., Geschichte
des Vatikam schen Konzils, II, Friburgo, 1903, 411-414, 464s; V. C o a z e m i u s
(ed.), Briefwechsel Dõlling-er-Acton, II, Munique, 1965, 311, 319 (Strossmayer),
324.
INDICAÇÕES PRELJ MINARES 9
A IGREJA É UNA
I. TEOLOGIA DA UNIDADE
a) Unidade de fé
63Pode-se 1er, com relação ao que segue: H.-M. F é r e t , I<a messe, ras
semblement de Ia communauté, em L a Messe et sa catéchèse, Paris 1947,
205-283; J.-M. R. T i l l a r d , I/Eueharistie I*âqne de l’Église, Paris, 1964.
64Cf. para Jesus H b r 10,õs; M t 18,14; Jo 6,38-40; Féret, ed. cit., 240-249.
32 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
pode fazê-lo e o faz. Deus nos faz participar do amor pelo qual ele
se ama a si mesmo e pelo qual nos ama, ao querer nossa proteção
e nossa felicidade.81 Porque, quem é este Deus? E ’ o Deus vivo sujeito
do amor no sentido do NT, isto é, sujeito desse amor pelo qual, tendo
criado o mundo, concebe e realiza-lhe um desígnio de salvação total,
salvação que contém, ao mesmo tempo, a glória de Deus e o cumpri
mento pela criatura de seu ser e de sua tendência mais profunda. “
O amor comum às três pessoas é atribuído ou apropriado ao Es
pírito Santo enquanto tem uma semelhança e uma conveniência par
ticular com seu modo de processão, isto é, com a maneira pela qual
ele subsiste como Deus e que o constitui como terceira pessoa. Assim,
embora Deus seja inteiramente amor pode-se dizer que o Espírito
Santo é, mais propriamente, o amor. Por isso na unidade de Deus
vivo tripessoal pode-se atribuir à sua pessoa tudo aquilo que nos é
comunicado como amor sobrenatural.
Também se pode e se deve atribuir tudo aquilo que é comunicado
como amor sobrenatural à inteligência e à vontade humana de Jesus
Cristo, que coopera como instrumento inteligente e livre em tudo aquilo
que Deus realiza para a nossa salvação, de acordo com o que expli
camos anteriormente.
Assim, o amor que une os cidadãos da cidade de Deus, os mem
bros da Igreja, está difundido neles, é-lhes dado e comunicado a partir
de uma fonte viva e de um centro pessoal. Este amor não é princípio
de unidade somente em razão da unidade do objeto ou da finalidade,
razão de unidade já muito profunda tratando-se de um objeto; mas
como princípio de vida total e absoluto, de uma finalidade última e
universal, o é em razão da unidade pessoal do motor supremo. Não
se trata só de músicos que tocam uma partitura harmonizada nem
sequer de uma partitura idêntica, mas de um mesmo artista que
interpreta todo o concerto, observando sempre que os «instrumentos»
de que se serve para esta interpretação sejam plenamente pessoais e
livres e que sua própria transcendência permita uma imanência tal
neles, que respeite, ou melhor, confirme a liberdade das pessoas. E ’
Deus, é o Espírito Santo, quem, por Jesus Cristo, opera em nós o
querer e o fazer, difunde em nossos corações o amor e distribui a
cada um os dons mais diversos para a utilidade e a construção de
todo o corpo.69
07 Cf. Tom ás de Aquino, S. Th., II-II, q. 23, a. 2 ad 1; a. 3. ad 3; q. 24,
a. 7; In Rom., c. 5, lect. 1, final. Quando Inácio de Antioquia chama a
Ig re ja ágape, entende com isso que reproduz a imagem de Deus, que é
agápe; cf. J. C o l s o n , A gap è chez S. Ignace d’Antioche, em Studia Patrís
tica, III/ l, Berlim, 1961, 341-355.
68Sobre esta coincidência da glória de Deus e a perfeição (ou a felici
dade) da criatura, cf. M. B 1o n d e 1, I/Ëtre et les êtres, Paris, 1936; H. de
L u b a c , L e motif de la création dans « L ’Ê tre et les êtres»: N R T h 65 (1938),
220-225; J. H u b y , Salut personnel et gloire de D ieu: «Etudes» n. 204 (1930),
513-523; H. B o u ë s s é, Théologie et doxologie: « L ’Année théolog.» 11 (1950),
193-212, 289-303; O.A. R a b u t , V aleur spirituelle du Profane, Paris, 1963.
Sobre a realidade da salvação, cf. Y. C o n g a r, Vaste monde, m a paroisse.
Vérité et dimensions du salut, Paris, 1959; J.-P. Jossua, R S P h T h 54 (1970),
24-45.
69 Os textos bíblicos são muito numerosos. Cada um tem seu contexto
exegético próprio, mas o conjunto é coerente. Deus opera em nós: Elp 2.13:
34 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
com estas diferenças. Isto introduz nela uma tensão entre o particular
e o total, o local e o universal. Porque o fato de que cada parte con
tenha a totalidade não faz com que ela seja esta totalidade; o fato
de que as comunidades ou igrejas locais sejam homogêneas com rela
ção ao todo não as exime de estar no todo e de concorrer para reali
zá-lo mediante aquilo que há em cada uma delas de singular e de
diferente. O mesmo se pode dizer das pessoas individuais.
A solução não é a uniformidade, como também não pode ser a
dispersão e o esfacelamento, o que suporia a vitória do egoísmo. A
solução deve ser procurada, em primeiro lugar, numa teologia da comu
nhão e, em segundo lugar, numa eclesiologia da Igreja universal em
sua condição itinerante.
88 Cf. nosso etudo citado supra, nota 84. Recordemos os seguintes fatores:
a teologia agostiniana da catolicidade (contra o particularismo donatista);
o predomínio do papado a partir do século IX , e mais adiante a reform a
gregoriana, com suas conseqüências e as idéias que prolongaram sua ideo
logia; a existência e a eclesiologia dos Mendicantes no século X I I I ; a vitória
sobre as tendências conciliaristas, galicanas e episcopalistas; a crítica da
eclesiologia de comunhão proposta por Jurieu (cf. G. T h i l s , Les notes de
1’Ê g lis e ..1 6 7 -1 8 5 , 193s); o desenvolvimento d a teologia ultramontana e seu
triunfo sob Pio IX . O resultado último deste desenvolvimento na teologia
moderna foi um verdadeiro desconhecimento da qualidade eclesial das igre
jas locais: estas seriam apenas «sociedades imperfeitas», que carecem dos
meios necessários para realizar seu fim, que é a salvação eterna do homem.
Assim, L. B i l l o t , D e Ecclesia Christi, Roma, 61927, 451; Lercher-Schlagen-
haufen, Institutiones theologiae dogmaticae, I, Barcelona, 1945, 241; W . Bedard,
TTnitas Sacerdotalis: «Theol. Studies» 13 (1952), 583-587; Ch. Joumet, op. cit.,
II, 485.
42 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
Por isso o padre Nicolau Afanassieff, seguido hoje por grande núme
ro de teólogos ortodoxos, opõe aquilo que chama uma eclesiologia euea-
rísitica a uma eclesiologia da Igreja universal.82 Trata-se de uma ecle
siologia das igrejas locais que deveria prolongar-se numa eclesiologia
de sua comunhão. Mas se é verdade que é preciso manter as conside
rações positivas desta teologia sobre a igreja local como comunidade
eucarística, também é verdade que se deve superar a oposição crítica
estabelecida nela entre as duas eclesiologias : eucarística e universal.
Manter a primeira com exclusão da segunda representaria para a ecle
siologia um recuo, da mesma forma como ver só a segunda e esquecer
a primeira suporia um grave empobrecimento.
A esta eclesiologia eucarística, na medida em que se opusesse a
uma eclesiologia chamada universalista com o intuito de excluí-la, cre
mos dever propor três críticas mais importantes:
1) A pluralidade ou multiplicidade das igrejas locais constitui,
queiramos ou não, um todo que contém suas exigências próprias como
tal modo; a eucaristia e a caridade possuem, por natureza, uma inten
ção universal e criadora de uma comunhão que tende à universalidade.
Um todo, uma comunhão universal tem suas exigências próprias, que
exigem determinadas estruturas. A história mostra que os meios locais
de comunhão nem sempre foram suficientes para conservar a unidade
entre as partes, como já experimentara o próprio bispo Cipriano. A
totalidade introduz outra realidade além das sacramentais consideradas
no âmbito das igrejas locais. Existem dados eclesiológicos próprios
da Igreja total como tal.
2) Existe de fato uma tradição fundada na Escritura que vê na
função de Pedro, da qual é herdeira a sede de Roma, a principal peça
de uma estrutura ecumênica da Igreja enquanto Igreja universal. O
sucessor de Pedro é, como o foi tantas vezes Pedro, segundo os evan
gelhos e os Atos, uma expressão e uma espécie de personificação da
totalidade dos discípulos ou dos apóstolos. Também isso faz parte da
eclesiologia. Por isso o Concílio Vaticano II, que fala de maneira tão
positiva da igreja local e aplica às demais comunhões o título de
igrejas ou comunidades eclesiais, diz também que a Igreja, cuja direção
Cristo entregou a Pedro e aos demais apóstolos, «subsiste na» Igreja
governada pelo sucessor de Pedro e os bispos, que se encontram em
comunhão com ele (Lumen Geiitium, 8). A história mostra que em
Bizâncio a função de estruturar a vida social da Igreja no plano ècumê-
ris, 1938, 111, 114, 116, «F o rm ata» significava «documento» ou «passe» (cf.
A. D o 1d, «F o rm a » und «Form ata». Zw ei liturgiscfae B egriffe aus alten lateini-
schen Bischof sweihe-Riten : «Scriptorium » 5 [1951] 214-221).
ias T e r t u l i a n o : «Proban t unitatem communicatio pacis et appellatio
fratem itatis et contesseratio liospitalitatis. .. » (Praesc., 20, 8). Cf. W . Elert,
op. cit., 47, nota 1; D. G o r c e , Les Voyages, l ’hospitalité et le port des
lettres dans le monde chrétien des I V e et Ye siècles, Paris, 1925. Vejam-se
em K nos. 491 e 492 os cân. 1 e 2 do Concílio de Antioquia de 341.
1<KCf. J. D a n i é l o u , B ible et Liturgie, Paris, 1951, 182 (trad. espanhola:
Sacramentos y culto según los Santos Padres, Eds. Cristiandad, Madrid, 1964).
“ 'C f. W . Elert, op. cit., 131s; A. F r a n q u e s a, L a concélébration, rite
de l ’hospitalité ecclésiastique: «Paroisse et Liturgie» 37 (1955), 169-176; id.,
L a concelebración. Nuevos testimonios?, em Liturgica, I (Hom . Card. Sehu-
ster), Montserrat, 1956, 67-90.
103Cf. L. V o e 1k 1, ApophoretujïV. Eulogie und Fermentum al s Ausdrucks-
formen des friihchristJichen Communio, em Miscellanea Giorgio Beîvederi, V a
ticano, 1954^55, 391s; J. A. J u n g m a n n , Fermentum. E in Symbol kirchlicher
Einheit und sein Nachleben im Mittelalter, em Colligite fragm enta (Hom. A.
Dold), Beuron, 1932, 185-190. H á muitos outros estudos.
109Cf. L. Voelkl, cit. em nota precedente ; W . Elert, op. cit., 136.
110 Cf. o cân. 5 de N icéia e seu conteúdo em W . B right (Oxford, 1892);
Jean Launoi, Opera, 5/1, 72s; W . Elert, op. cit., 56 e 103s; Y . Congar, Schisme:
DThC XIV/1 (1939), 1288.
111 Tertuliano, D e virg. vel., 2 (Oehler, I, 885).
48 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA
eles fazem in Christo, não só daquilo que é semelhante, mas até mesmo
daquilo em que são diferentes. O Espírito é o motor último e o regu
lador da comunhão que inclina os cristãos, através de cada princípio
interno da caridade, a não comportar-se como mônadas isoladas, mas
de acordo com a presença mútua e o serviço recíproco que convém a
membros do mesmo corpo.
E ’ preciso chegar até o termo desta verdade sublime. Este espírito
é o mesmo que opera pessoalmente em Cristo para a salvação da hu
manidade, isto é, para sua reunião em Deus, na unidade pela comunhão
das três pessoas. Porque Jesus, concebido do Espírito, cheio do Espí
rito, levou a cabo pelo Espírito toda a sua obra messiânica. ™ O Espí
rito, que é o princípio sempre atual de nossa comunhão, é também
o mesmo que conduziu os apóstolos na fundação das igrejas, que faz
os santos e habita para sempre neles como em seu templo. E ’ o Espírito
que opera nos sacramentos e particularmente em nossas eucaristias.113
E ’ o Espírito que une todas as igrejas numa só.114 E ’ o Espírito, o
único e o mesmo Espírito que, termo da comunicação de vida em
Deus, é o princípio de toda a santidade nas criaturas, de toda vida,
de toda divinização, como o mostram Basílio ou Gregório Nazianzeno.135
Se seguirmos a teologia agostiniana do Espírito, laço de amor entre
o Pai e o Filho, poderemos dizer, com Agostinho, que Deus nos une
a si mesmo e entre nós pelo laço que une a sociedade das pessoas
divinas, arqüétipo, princípio e fim da Igreja.118 Qualquer que seja a
teologia trinitária que se adote, a unidade das três pessoas divinas é
para a Igreja fonte, modelo e fim: Ecclesia de Trirtitate, «de unitate
Patris et Pilii et Spiritus Sancti plebs adunata» ; ™ «que eles sejam um
como nós somos um» (Jo 17,22; cf. lJo 1,3); «undique vocatur in
termo da obra de Deus é apresentado como uma cidade «na qual tudo
forma um corpo»: Jerusalém, visão de paz.128
A Igreja, «povo messiânico» (Lumen Gentium, 9), é sinal e ins
trumento deste aspecto da salvação e do reino que se anuncia e começa
aqui na terra e que as palavras «unidade do gênero humano» expressam.
A Igreja o é, naturalmente, em seu plano próprio, que é o religioso e
sobrenatural. Mas deve sê-lo para o mundo, já que a salvação com
preende isso. E ’ claro que a Igreja trabalha neste sentido. Mas toda
realização humana, histórica, exige mediações proporcionadas de eficá
cia. A história conheceu neste sentido mediações sobretudo políticas e
jurídicas: as do Império e da cristandade tais quais conceberam e pro
moveram um João V III, um Inocêncio III. No Oriente esta mediação
tem sido sobretudo o Império. Tais mediações desapareceram; seus
longínquos ecos modernos mostraram-se pouco operativos; hoje em dia
tudo isso está superado. As mediações para o futuro devem ser as do
desenvolvimento econômico e cultural, que evidentemente encerra im
plicações políticas e jurídicas. O «povo messiânico» não pode deixar
de inscrevê-las em suas agendas se a Igreja quer ser eficazmente, em
Cristo, sinal e meio de unidade de todo o gênero humano.
II. AS RUPTURAS DA U N ID A D E 1
123A salvação como reunião: Jer 29,4; 30 e 31; E z 34,12s; Is 43,5s, etc.
Sobre o tipo e o mito escatológico de Jerusalém há numerosos estudos:
K. L. Schmidt, «E ran os Jahrbuch» 18 (1950), 207-248; A. Gelin, L. Bouyer,
O. Rousseau, V S 86 (1953) ; respectivamente, 353-366, 367-377, 378-388; K .
Werniemer, G u L 31 (1958), 331-340; J. C. Y o u n g , Jerusalem in the N T . T h e
Significance o f the City in the H istory of Redemption and in Escliatology,
Kampen, 1960; Fr. W u lf, G u L 34 (1961), 321-325; B. van Iersel, «Getuígenis»
6 (1961-62), 263-275; H . J u n k e r , Sancta civitas, Jerusalem nova, em Kkidesia
(Horn. M. W eh r), Tréveris, 1962, 17-33; R. Poelman, V S 108 (1963); G. W i n t e r ,
The N e w Creation as 'Metropolis, N o v a York, 1963; J. S c h r e i n e r , Sion-
Jerusalcm Jahwes Königssite;, 3 vols., Munique, 1963s.
1 Estudos de conjunto: J. A. M ö h l e r , D ie Einheit in der K ir c h e ..., ed.
por J. R. Geiselmann, Colônia, 1957; H. H e i l e r , Altkirchliciie Autonomie
und päpstlicher Zentralismus, Munique, 1941; C. H. T u r n e r , T h e P a tte m of
Christian Truth. A Study in the Relations between Orthodoxy and Heresy in
the E a rly Church, Londres, 1955.
2 J. de G u i b e r t , L a notion d’hérésie chez Saint Augustin: B L E (1920),
368-382 (cf. 370s); E. B u o n a i u t i , Scisma ed eresia nella primitiva letteratura
cristiana: «Atheneum » (1916) (repr. em Saggi sul cristianesimo, Città di Cas-
tello, 1923, 274-285) ; mas, sobretudo, S. L. G r e e n s 1a d e, Schism in the E arly
Church, Londres, 1953, 16-34 (nova edição em 1964 com a resposta à crítica
de B. C. B u tler); Ch. S a u m a g n e , D u mot aïoeoiç dans l’édit lieinien de 313:
Th Z 10 (1954), 376-387.
O cristianismo antigo concebia a separação da Igreja, a ruptura da uni
dade, mais na ordem espiritual e mística do que intelectual e social. A uni
dade da Ig re ja é considerada sobretudo como uma unidade na ordem da
santidade. O cismático é aquele que rompe a santidade da comunhão, que
falta à pureza da fé, à santidade da Igreja. N esta perspectiva, as condições
da ortodoxia e aquelas da comunhão eclesiástica estão mais fundidas do
que nos parece. A infalibilidade doutrinal é concebida no interior d a santidade
52 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA
1. O cisma“
“ Além dos estudos citados supra, notas 1-3, cf. nosso artigo Schisme:
D T h C X IV /1 (1939), 1286-1312 (bibliografia até 1938); M. P o n t e t , L a notion
de schisme d’après St. Augustin: 1054-1954, em L ’E glise et les Eglises, I,
Chevetogne, 1954, 163-180; J. P. K e l c h e r , Saint Augustine’s notion o f Schism
in the Donatist Controversy, Mundelein, 1961.
'■“ Cf. já Inácio de Antioquia: há um só altar como há um só bispo (Ign F il
4; Ign M agn 7, 2 ); depois, formalmente, Cipriano, Ep. 43, 5; 68, 2, 1 (Hartel,
594, 745) ; cf. D e Cath. Éccle. unit., 17 («hostis altaris, adversus sacrifieium
Christi rebellis»); Cânones apostoL ( = Const. Ap., V III, 47), c. 31 (ed. Punk,
1 [1905], 572: indica como fonte o Concílio de Antioquia do ano 341, can. 5);
Optato, 1, 15 e 19 (C S E L 26,18,5, e 26,21,13) ; Concílio de Antioquia de 341,
c. 5 (M ansi 2,1309s); Agostinho, Ps. adv. part. Donati, w . 23, 30, 80, 116, 174,
195 («altare sibi separare») ; Contra ep. Farm ., II, 5, 10 («altare sui schismatis
erexerunt») ; Ep. ad cath. de unit., 20, 54s; Pelágio I, Ep. 2 ad Narsetem ( P L
69,395, reproduzida em Graciano, c. 42, c. X X II, q. 5).
** Episódio de Coré, D atan e A biram (N ú m 16,1-33), freqüentemente evo
cado pelos Padres (D T h C XIV/1, 1305); o das tribos transjordanas sob Josué
(Jos 22,10s) ; e do altar ereto por Jeroboão em Betei (1RS 12,26-13, 5), amal
diçoado pelos profetas (A m 3,14) e finalmente destruído por Josias (2 R s 23,15).
24Cf. nosso artigo Schisme: D T h D XIV/1 (1939), 1288s.
33D e fato, nas inúmeras rupturas da unidade que o cristianismo conheceu
as separações começaram e se consumaram em relação com os «sacramentos».
56 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
28D er Platz des Papsttum s in der Kirchen!römmi gkeit der Reform er des
1L Jahrhunderts, em Sentire Ecclesiam (Hom. H . R ah ner), Priburgo, 1961,
196-217.
28C f. G. H a r t m a n n , D e r P rim at des römischen Bischofs bei Pseudo-
Isidor, Stuttgart, 1930. Parece-nos que esta obra resiste às críticas que lhe
foram dirigidas.
30C f. H. de L u b a c , Corpus mysticum. L ’Eucharistie et l'Église au Moyen-
Age, Paris, 21949.
58 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
35Cf. D T h C X IV / l, 1296.
30 Cf. Chrétiens désunis. Principes d’un Oecuménisme catohlique, Paris, 1987,
239s. P a ra Bossuet, cf. Hist. des Variations, lib. X V , § 70; Catéch. de Meaux,
I I parte, lec. IX .
60 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS D A IGREJA
pensar, orar, agir e viver, não na Igreja e segundo a Igreja, como uma
parte regulada pelo todo e pela autoridade que preside este todo, mas
como um ser autônomo. E isso não deve ser entendido só em relação
com o todo que é atualmente a Igreja, mas em relação com o todo
que a Igreja forma segundo sua existência histórica e a continuidade
de sua vida no tempo.17 Cayetano acrescenta — e isto é decisivo,
embora nós não insistamos neste ponto por tê-lo desenvolvido ante
riormente — que não se deve procurar outra causa para o movimento
que impulsiona interiormente os fiéis a agir ut partes, a não ser o
Espírito Santo, que é o agente pessoal da unidade pela comunhão de
todos, de acordo com a vocação de cada um.
MDie Einheit in der Kirche, § 46. Ch. Journet propõe traduzir Gegensatz
e W iderspruch por contraste e contradição, respectivamente (L'É glise du Verbe
Incarné, I, 59). Cf. sobre esta doutrina em Mohler, J. R. Geiselmann, op. cit.,
(nota 37), 143s, 146-166, e sua edição da Symboïik, 1958, (102)-(126). Cf. tam
bém Y. C o n g a r , V raie et fausse réforme dans l'Église, Paris, 1950 (21969),
231-246 (trad. espanhola: Falsas y verdade ras reform as de la Iglesia. Madrid,
1953).
62 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
® J. A. M o h i e r , Di e Ei nhei t . . § 46.
“ D õ l l i n g e r observa isso no começo de I/Êglie et les Églises; S. L.
Greenslade, op. cit., cap. III, 58-73.
“ Cf. Considérations sur le schisme d’Israël dans la perspective des divi
sions chrétiennes: «Proche Orient Chrét.» 1 (1951), 169-191, reproduzido em
Chrétiens en dialogue, Paris, 1964, 185-210.
48Cf. nosso etudo citado supra (nota 7), 11-70.
SECÇÃO I: A IGREJA fi U N A 63
a) História da idéia66
lado, fala-se com freqüência das heresias, designando com este termo
todas as «seitas», as separações causadas pelo espírito de orgulho e de
obstinação.58 E ’ normal que no princípio a fronteira entre aquilo que
posteriormente pareceu e é paia nós ortodoxia e heresia tenha sido às
vezes flutuante. Essa é a parte de verdade do livro de W. Bauer (cf.
nota 38). Mas parece-nos mais acertado C. H. Turner quando fala de
zona intermédio, de franja, de penumbra.
No clima e na ideologia da reforma gregoriana no Ocidente, quando
toda a vida eclesiástica estava relacionada à autoridade papal como à
sua norma, dava-se com freqüência o nome de heresia a toda desobe
diência a esta autoridade. Não só se utilizava amplamente a idéia de
«simoniaca haeresis» (cf. J. Leclercq, cit. nota 56), mas atribuía-se a
Ambrósio a fórmula tão repetida: «Haereticum esse qui se a romanae
ecclesiae in aliquo subtraxerit dictione».60 Pensava-se igualmente que o
anátema sancionava sempre uma heresia, o que evidentemente supunha
iima noção ampla de heresia.£1 Bastava que o anátema excluísse da
Igreja por um comportamento caracterizado por insubordinação. Esta
noção ampla de heresia, com ou sem referência à autoridade ponti
fícia, estava muito difundida na Idade Média. Nela dificilmente se dis
tinguia a heresia como negação de um ponto de fé da insubordinação
ou das faltas contra a disciplina da Igreja. “
tenendum tradidit, non catholicus vel fidelis, sed plane haeretieus existit» (PL.
139.462B ).
63Como o propôs L. G a r z e n d, L ’Inquisition et Hiéresie. Distinction de
l’hérésie théologique et de l’hérésie inquisitoriale. Ä propos de l’affaire Galilée,
b) Definição da heresia
75Cf. J. Madoz, citada supra, nota 56. Cf. Agostinho, Ep. 43 1 ( P L 33,160);
D e Civ. Dei, X V III, 51 ( P L 41,613): texto citado por Graciano; Tomás de
Aquino, S. Th., I, q. 32, a. 4; II-II, q. 2, a. 6 ad 2; q. 5, a. 3; a. 4 ad 1;
q. 11, a. 2, sed c. et ad 3; D e Maio, q. 8, a. 1 ad 7; In GaL, c. 1, lect.2;
Alberto Magno, I Sent., d. 11, q. 6; «E rr o r est dicere Spiritum Sanctum non
procedere a Filio, at defendere haeresis est». P a ra os autores modernos,cf.
D T h C VI/2,2223. P o r isso aqueles que estão dispostos a corrigir-se, caso to
mem consciência, não podem ser tidos como hereges: Agostinho, Ep. 43, 1
( P L 33,160); D e bapt., IV , 16, 23 ( P L 43,169); E n. in Ps., 30, 8 ( P L 36,244);
Contra mend., I l l, 4 ( P L 40,52).
™Agostinho precisa que p ara chegar a ser herege é necessário resistir
«contumaciter»: a mesma referência como na nota precedente e D e Gen. ad
litt., V II, 9,13 ( P L 35,160). João de Salisbury escreve no século X I I : «H aere-
ticum namque facit non ignorantia veri sed mentis elatio contumatiam
pariens et in contentionis et scismatis praesumptionem erumpans» (Hist. Pont.,
c. 9 [ed. R. L. Poole, Oxford, 1927, 22]). Cf. A. G o m m e n g i n g e r , Bedeutet
die Exkom m unikation Verlust der Kirchengliedschaft? Z k T h 73 (1951), 420.
” Praesc., 6, 2. O padre Refoulé (SourcesChr 46 [1957], 95, nota 2) dá estas
referências: Praesc., 42, 8; D e res. carnis, 40; Adv. Marc., I, Is (Oehler, III,
292, 3, e 236, 2).
™Strom., V II, 16 (P G 9,536).
Comm, in E p. ad Gal., 5, 20 ( P L 26,417): «AEdeoiç ab electione dicitur,
quod scilicet earn sibi unusquisque eligat disciplinam quam putat esse meliorem.
Quicumque igitur aliter Scripturam intellegit quam sensus Spiritus Sancti
flagitat, quo conscripta est, licet de Ecclesia non recesserit, tamen haereticus
appelari potest et de carnis operibus est, eligens quae peiora sunt»; A d Tit.,
1, 11 ( P L 26,518).
80D e bapt., V, 16 ( P L 43,186s); o texto do Contra Faustum foi freqüen
temente citado: «Q ui in Evangelio quod vultis creditis, quod non vultis non
creditis, vobis potius quam evangelio creditis» (c. X V II, 3 [ P L 42,342]). Cf.
também J. de Guibert, art. cit. (supra, nota 56), 372, que indica Contra
Eaustum man., I, 32, c. 17 ( P L 42,507); In J®., 5, 19, tr. 18 ( P L 35,1536). A
heresia como obstinação no erro, inclusive puramente interior: D e bapt., I, 4,
n. 23 ( P L 43,169).
81Etymol., V III, 3, 2ss ( P L 82,296C), que toma os termos de Tertuliano.
53D e clericomm instifc, lib. II, c. 58 ( P L 107,371).
70 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
81 Cf. H . Bremond, Newm an, I, 63; Newm an, Apologia, trad. de Michelin-
Deümoges, Paris, 1939, 294; Papiers New m an-Perrone: G r 16 (1935), 420 (n.
12), 443s; J. G u i t t o n , t a Philosophie de Newm an, Paris, 1933, 79s, 103s,
114s. Pode-se ver no mesmo sentido E . A. de P o u l p i q u e t , L e dogme,
source d'unité, Paris, 1912, 35, nota 1; A. R a d e m a c h e r , D ie W iederverelni-
gung der christlichen Kirclien, Bonn, 1937, 62s; A. A d a m , Spannungen und
Harmonie, Nurem berg, 1940 (21948), 21s, 60s.
ML ’É vangile et l’Église, 143; 21903, 187.
“ Pensées, ed. Brunschvicg, notas 862s. Textos muito numerosos no mes
mo sentido. Cf. J. G u i t to n, Pascal et Leibniz, Paris, 1951, cap. IV .
SECÇÃO I: A IGREJA É UN A 73
de Pelágio sobre Paulo com olhar inocente, crendo que eram de Jerô-
nimo;
— a fórmula mia physis em Cirilo de Alexandria e nos monofisitas;
— os textos de Agostinho sobre a ecclesia praedestinatorum, no
próprio Agostinho e em João Huss (cf. o que dizia Torquemada: Mansi
30, 1009);
— o cânon 22 do I I Concílio de Orange e as proposições 25 e 27
condenadas de Bayo (Dz 195 e 1025, 1027; DS 392 e 1925, 1927).
parte dos teólogos, sustenta que a maioria dos cismáticos e dos hereges
ocultos continuam sendo membros da Igreja. Efetivamente, embora te
nha perdido atualmente a raiz interior da vida sobrenatural, o herege
secreto continua socialmente dentro desse corpo que é a Igreja, segundo
a estrutura sacramental e jurídica do mesmo. Outros teólogos, ao con
trário, seguindo Suárez, pensam que não só o herege, mas o próprio
cismático oculto se excluiu dos membros da Igreja. E ’ verdade que
sua qualidade de membro sofreu consideravelmente; mas, a menos que
não se chame Igreja a Instituição pública e visível, de natureza ao
mesmo tempo sacramental e jurídica, à qual estes pecadores ainda estão
unidos segundo a ordem externa que rege esta instituição, deve-se-lhes
ainda reconhecer o caráter de membros desta instituição.
P) Tratando-se de cismáticos ou heréticos notórios, os teólogos,
unanimemente, declaram que deixaram de ser membros da Igreja, mes
mo continuando unidos a ela pelo caráter batismal, o que lhes permite
serem sujeitos de censuras e de discriminações canônicas, mas também
possíveis sujeitos de reconciliação e de reintegração. Geralmente, os
teólogos pensam até que não se requer um pecado formal de cisma
ou de heresia, isto é, com plena advertência da gravidade do ato,
mas que basta o pecado material. m
10 Cf. D T hC VI/2 (1S21), 2228; K . Rahner, op. cit., 17s, 21 (nota 18).
F ragh i (op. cit., 89s) mantém aqui, como em outros pontos, uma posigão
mais estrita.
N ão conhecemos um estudo que indique a origem d a distinção. Bento
X I V a utiliza, por exemplo, p ara justificar que se pode prestar culto a santos
mortos no cisma: D e serv. D e i ..., lib. III, c. 20, n. 7 (Opera, III, 201, n. 7).
M Cf. S. Fraghi, op. cit., 85s.
321Assim, por exemplo, J. U r b a n , D e iis quae theologi catholici praestare
possint ac debeant erga Ecclesiam russicam, em A cta I Cone. V e le h ra d ...,
Praga, 1908, 13-35; J. B. S á g m i i l l e r , Lehrbuch des katholischen Kirchen-
rechts, 1/1, Friburgo, *1925, 119.
78 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
pelo exercício. Por isso dizia o Apóstolo: «Convém que haja heresias».”“
Esta atitude é otimista. Orígenes é sensível ao aspecto de «escola»
como meio de conhecimento mais perfeito. A Celso, que apontava a
falta de unidade entre os cristãos, Orígenes responde que é bom que
haja na Igreja diferentes escolas (aloéoeiç), como há diferentes escolas
em medicina; é um sinal e um meio de enriquecimento.140
Se a heresia nos faz conhecer melhor a verdade, isso não significa
que a verdade não possa ser compreendida por si mesma, observa o
bispo Hilário.141 Isto é verdade, mas — repete constantemente Agostinho
— os católicos correriam o risco de dormir sobre o tesouro da Escritura
se as heresias não os forçassem a estudá-las. 142 Agostinho volta com
muita freqüência a este ponto. Deus não quer as heresias, mas tira o
bem do mal.143 As heresias são ocasião para aprofundar, precisar e
esclarecer melhor a verdade.144 De resto, se Agostinho se interessa sobre
tudo por este aspecto, até o ponto de entender o probatis de Paulo no
sentido de provar, pôr à prova,145 mais do que no sentido de aperfeiçoar,
conhece também este aspecto e sabe relacioná-lo com o precedente.148
A idéia agostiniana da heresia providencialmente permitida em or
dem a um melhor conhecimento da verdade aparece freqüentemente
durante a Idade Média; por exemplo, em Haimão de Auxerre e em
Hincmaro em meados do século I X , 141 em Mangold de Lauterbach em
fins do século X I , 148 em Ruperto de Deutz149 e Hugo de São V íctor159
no século X II. Em plena Reforma protestante, um dos melhores pole
mistas católicos, o franciscano Gaspar Schatzgeyer, dizia que do erro
luterano haviam saído muitos bons frutos, na medida em que os cató
licos se tinham visto forçados a ler mais assiduamente a Escritura,
a pregar coisas mais sérias e a voltar ao essencial do cristianismo.1®
Tomás de Aquino e Bossnet, espíritos tradicionalistas e sintéticos,
uniram os dois motivos cujo desenvolvimento acabamos de seguir. To*
3151Assim, Cipriano, D e cath. EccL unitate, 23; Ep. 44, 1; 73, 2; Optato,
II, 9 («intelligite vos esse filios impios, vos esse fractos ramos ad arbore,
vos esse abscissos palmites a vite, vos rivum concisum a fo n t e ...» [ P L 11,962;
C S E L 26,45]); Agostinho, Ps. contra partem Donatá, w . 234-237; Oontra Cresc.,
IV , 60, 79 ( P L 43,588); In Jo, tr. X III, 16 ( P L 35,1501), etc. Retórica usada
em nosso tempo por J. de Maistre, D a pape, lib. II, cap. I ; lib. IV .
m Pio X I, alocução de 9-1-1927 à Federação de Universitários Católicos
Italianos.
SECÇÃO X: A IGREJA B UN A 87
A IGREJA É SANTA
6Cf. L ev 11,44; 19,2; 20,7.26; 21,8; 22,32s; Jos 24,19; Dan 4,5; Os 11,9;
Javé é «o Santo de Israel»: Is 10,20; 17,7; 54,5. Também o nome de Deus
é santo: Am 2,7; E z 36,20, etc. Para Deus, jurar por sua santidade = jurar
por seu nome = jurar por si mesmo: cf. Am 2,7; 4,2; SI 89,35; 60,8; 108,8;
Ez 20,39; L ev 20,3.
’ Cf. D t 7,6; 14,2; 26,19; 28,9; Is 62,12; 63,18; Jer 2,3; Am 3,2; cf. Sab 17,2.
“ Cf. SI 105,42; Jer 23,9.
“ Sab 12,3.7; o lugar onde Deus se manifesta é santo: Gên 28,16s; Ê x
3,5; 10,12 ; L ev 17,1.
10SI 5,8; 11,4; 28,2; 65,5; 79,1; 138,2; Dan 3,53; Jon 2,5.8; Mal 3,1; Eclo 49,14.
11Sião, a montanha sagrada: SI 2,6; 43,3; Is 56,7.
13SI 132,B.16; o sumo sacerdote: Êx 28,36.
“ Cf. Ê x 30,29; Núm 18,9. E também os tempos do culto: Ê x 16,23; L e v 23,4.
“ Cf. Êx 12,16; L ev 23,2a (nove vezes); Núm 23,25. Cf. L. C e r f a ux ,
L a Théologie de l’Eglise suivant St. Paul, Paris, 1942, 95s (trad. espanhola:
L a Iglesia en San Pablo, Bilbao, 1863).
K Mc 1,24; Lc 1,35; 4,34; Jo 6,69; A t 3,14; 4,27.30; lJo 2,20; Apc 3,7.
MJo 1,51 (cf. Gên 28,10-17).
« J o 1,14.
18Jo 1,14; 2,21; 4,21s; Apc 21,22. E ' do lado de Jesus, como do lado
direito do templo (E z 47,1), que biota a água q te vivifica: Jo 7,37ss; 18,34.
Cf. Y. C o n g r .r , L e mystère du temple, Paris, 1S58 (21E63) (trad. espanhola:
E l m isteiio dei templo, Barcelona, 1£62).
“ Cf. H br; por exempîo, 7,26; 10,1-14.
94 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
C o n g a r , Jalons pour une théologie du Laïcat, Paris, “1954, cap. I I (am bas as
obras estão traduzidas para o espanhol).
“ P a ra os ref ormadores, cf. Y. C o n g a r, V raie et fausse réforme dans
l ’Eglise, Paris, 1950 (21968), I I I parte; E. B r u n n e r , D as Missverständnis
der Kirche, Zurique, 1951; id., Dogmatik, I I I : Die Lehre von der Kirche, vom
Glauben und von der Vollendung, Zurique, 1960.
44Pode-se muito bem fa la r de uma realidade, mesmo se não temos a
palavra. Ekklesia não se encontra em lP d r, nem em Jo, nem em lJo, nem
propriamente em H b r (C. Spicq, L ’Ép. aux Héb., Vol. I, 151). M as existem,
no N T , outras noções que interessam à eclesiologia: reino, esposa, mãe, mis
tério (no sentido p au lin o ). .. A Ig re ja é revelada também em imagens:
vinha, casa, cam po...
45Y . C o n g a r, V raie et fausse réforme, 467s. H. K ü n g, L a Iglesia, B ar
celona, 1969, parece-nos mostrar certa debilidade na visão d a Ig re ja como
mistério e realidade sacramental, em dependência do «mistério» de Cristo.
Cí. R S P h T h 53 (1969), 700s.
* Pensamos, por exemplo, em algumas páginas de L. N e w b i g i n ,
L ’Eglise, Peuple des Croyants, Corps du Christ, Temple de l’Esprit, Neuchâtel,
1958 (cf. 69s, 78s, 99), ou de J. J. von A i l m en, Prophétisme sacramentel,
Neuchâtel, 1963 (por exemplo, 134).
98 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
maneira de explicar este fato. Para isso nem todos usam as mesmas
categorias e idêntico vocabulário.
O cardeal Ch. Joumet manteve com intransigência a posição se
gundo a qual «a Igreja não existe sem pecadores, mas é sem pecado».07
Só se poderia atribuir algum pecado à Igreja se fosse considerada ma
terialmente, não formalmente ou segundo aquilo que a constitui em
sentido próprio. A Igreja como tal é sem pecado, já que se define e
é constituída pela união com Deus e os meios desta união. O pecado
não pertence senão aos membros da Igreja e, mais propriamente, en
quanto são infiéis à sua condição de membros e conservam em si algo
que não é da Igreja. Efetivamente, todos nós estamos como que divi
didos entre o que em nós é Igreja e o que ainda é mundo. Só a Vir
gem Maria realizou adequadamente em sua pessoa a santidade da
Igreja. Por isso ela é o tipo perfeito, seu «ícone e sc a to ló g ic o ».F o ra
da Virgem, «a Igreja não retém em seu seio mais do que aquilo que
de bom possa encontrar-se em seus membros e deixa fora de seu re
cinto tudo quanto possa existir de mau».59
Censurou-se, às vezes, esta explicação pelo fato de supor uma «v i
são substancialista», quase platonizante, da Igreja.“ Mas é certo que
não se pode dizer que a «Igreja» seja o sujeito de pecados propria
mente ditos no sentido de que ela mesma os tenha cometido: tal
sujeito só pode ser uma pessoa individual. E ’ igualmente certo que a
Igreja, por seus princípios formais e constitutivos, é inteiramente pura.
Mas basta considerá-la em seus princípios formais? A Igreja é uma
realidade histórica concreta; os homens são a matéria desta realidade
e eles são pecadores, espiritualmente cegos e duros, imperfeitos de mil
formas diferentes. O cardeal Joumet não o nega de forma alguma,
mas acrescenta: «Enquanto tais, não são Igreja; é preciso vê-los como
verticalmente separados e divididos entre a Igreja e o mundo». Mas
isso não é reificar um ponto de vista formal? Os homens não estão
dicididos verticalmente em duas partes: simplesmente a irradiação da.
santidade está, neles e na Igreja histórico-concreta, refratada e limi
tada. Os pecadores — e somos todos nós — pertencem inteiramente
à Igreja, mas com uma vida cristã ou uma santidade muito imper
feita. Seus pecados como tais estão fora da Igreja, mas aqueles que
os cometem estão na Igreja; e a ela pertencem em sua condição de
pecadores, ligados pela fé à instituição de graça, abertos à penitência
e à santificação. Quanto à Igreja, inteiramente santa em si mesma,;
pura em seus princípios formais e decidida, por sua orientação pro
funda, a chegar à pureza total, é conduzida por seus membros a rea
lizações históricas e concretas imperfeitas daquilo que ela é profunda
mente e daquilo que aspira chegar a ser.
™Parece que esta fórm ula é de Voetius, teólogo holandês de estrita obser
vância calvinista, no Sínodo de Dordrecht, 1618-19. Exposição e crítica da
noção protestante de reform a e de suas implicações: Y . C o n g a r , V raie et
fausse réforme dans 1’Êglise, Paris, 1950, I I I parte.
n Cap. II, n. 9: «P e r tentationes vero et tribulationes procedens Ecclesia
virtute gratiae D ei sibi a Domino promissa confortatur, ut in infirmitate
cam is a perfecta fidelitate non deficiat, sed Domini sui digna sponsa remaneat,
et sub actione Spiritus Sancti seipsam renovare non d esin at...». Cf. supra,
nota 51. O decreto sobre o ecumenismo, promulgado em 21 de novembro de
1964, fa la também expressamente de reformatio et renovatio (n. 6).
106 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
parte dos sancti (e sanctae), seria, pois, uma espécie de primeiro ana-
logado por referência ao qual se apreciaria toda outra santidade. Do
ponto de vista apologético, tratar-se-ia, pois, de entrar num processo
de argumentação relativa e comparativa que vários apologetas no pas
sado já seguiram.ra
Mas esta forma de proceder só se impõe se se quiser argumentar
partindo da santidade como milagre moral para mostrar que a Igreja
católica, não podendo explicar-se a não ser por uma intervenção ou
uma instituição formal de Deus, está justificada em sua pretensão de
ser a única Igreja verdadeira, instituída por Deus para ensinar aos
homens a verdade salvadora. Este é o ponto de vista da apologética
clássica. Existe, contudo, outro caminho no qual a nota de santidade
encontra não só toda a sua eficácia, mas também uma espécie de
primazia.
Neste caminho já não se trata de provar mostrando que só o poder
de Deus permite explicar fatos considerados como um milagre moral.
Trata-se antes de revelar uma aproximação de Deus, em Jesus Cristo
e na Igreja, que corresponda à necessidade e ao desejo profundo do
homem e que exorte energicamente à fé. O milagre já não é consi
derado como efeito do poder de Deus que obrigue a concluir a exis
tência da causa, mas como sinal da presença e do chamado divino que
nos convida à conversão. Nesta perspectiva, a Igreja é uma hagiofania,
que revela a existência de outro mundo no qual se pode entrar por
meio de um novo nascimento. A apologética é mais ostensiva do que
probativa.
Este caminho oferece grandes vantagens que conduzem eficazmente
à fé. Em primeiro lugar, a de encontrar no homem uma espécie de
convicção secreta. Os homens não se enganam a propósito da santidade.
Reconhecem-na logo, como que por instinto, e são por ela atraídos. A
santidade é sua própria prova sem argumentação crítica. De forma
direta e espontânea, da santidade deduzem a verdade do evangelho,
que suscitou e alimentou esta santidade. Isto sucede — é a segunda
vantagem — porque existe homogeneidade objetiva entre a santidade,
o evangelho e Deus. Já quando se trata dos milagres físicos aparece
algo semelhante: Deus não faz «prodígios» como os faquires; os mi
lagres que ele realiza têm uma relação com seu amor para com os
homens. M. Blondel sublinhou com acerto este fato. Mas, tratando-se
de milagres morais e de santidade, a relação é direta, total, imedia
tamente evidente.79 Se se trata não de um fato isolado, mas do conjunto
coerente dos fatos de santidade que aparecem na Igreja católica (sancti
e sanctae) e que nela se apresentam ligados a uma instituição (sancta),
este conjunto mostra que a Igreja não só é sacramento universal de
salvação, mas o sacramento do encontro, pelo qual se realiza a aliança
em plenitude. Sem necessidade de uma argumentação comparativa, este
fato apóia na razão a passagem à fé pelo novo nascimento.
A IGREJA Ë CATÓLICA1
I. CATOLICIDADE DA IGREJA
1. Perspectiva histórica
2. Teologia da catolicidade
vontade pela qual mantém seu desígnio de êxito final apesar do pe
cado, o meio universal de salvação que é Cristo e, pelo mesmo dina
mismo com que realiza a missão do Verbo encarnado, quer a Igreja
e a dota de tudo o que é necessário para que seja eficazmente o sacra
mento universal de um êxito que, depois do pecado, se deve chamar
redenção e salvação.
P) Jesus Cristo, com efeito, é por natureza (união de uma natu
reza humana individual com a hipóstase da segunda pessoa) e é cons
tituído por designação divina princípio universal de salvação. Que
significa «de salvação»? Significa «de redenção» do pecado.44 Deus
mantém seu desígnio de aliança apesar do pecado, e este desígnio de
aliança abrange o mundo inteiro, por meio dos homens, que arrastam
o cosmos em seu destino. Mas a salvação não é só «salvamento» da
perdição. Significa que a criatura atinge a meta para a qual foi feita;
significa a consumação daquilo a que aspira sendo incapaz de dá-lo
a si mesma. Natureza e graça não podem ser separadas; é justamente
a natureza o que a graça cura e eleva; é a natureza que o dom
gratuito e «sobrenatural» faz chegar àquilo que esta natureza deseja
obscuramente sem poder dá-lo a si mesma. Não se pode separar a
salvação sobrenatural dos filhos de Deus pela graça e a consumação
do cosmos conforme seu anelo profundo: cf. Rom 8,19-23.
Em Cristo e por Cristo Deus se comprometeu definitivamente a
propiciar à totalidade da humanidade e do mundo, apesar do pecado
que exige satisfação, a plenitude do cumprimento de suas aspirações
profundas. Por isso Paulo fala da missão da obra de Cristo em termos
de totalidade: «Porque aprouve a Deus fazer habitar nele toda a ple
nitude e reconciliar por ele todas as coisas (tà jtávra), na terra e nos
céus, pacificando-as pelo sangue de Jesus» (Col 1,19-20) ; «o mistério
de sua vontade ( . . . ) : recapitular em Cristo todas as coisas (xò. jtávra)
tanto celestes como terrenas» (E f 1,9.10). Este processo, cujo fim é
a própria escatologia, já começou e está definitivamente comprome
tido em Jesus Cristo.®
A realeza sacerdotal de Cristo é total; de seu exercício pleno
surgirá o reino. Essa realeza só se exerceu na terra parcialmente,
primeiro no plano espiritual, entre os homens que a acolheram na fé,
e no plano cósmico, de maneira miraculosa, como sinal da verdade
da promessa, que nos foi feita, de uma restauração universal.48 A
Igreja participa do poder real de Cristo segundo sua condição terrena;
participa segundo aquilo que lhe foi dado e só enquanto mediadora,
ao passo que Cristo, mesmo quando não exerce a plenitude de seu
Tudo isso procede de Cristo, dotado por Deus das energias com
as quais pode ser, para a humanidade inteira e, a seu modo, para
todo o cosmos, tà jcávxa, um princípio de existência conseguida segundo
o plano de Deus, no natural e no sobrenatural. Em Cristo e por Cristo
foi constituída uma espécie de tesouro objetivo de existência salva
dora. Cristo é, por sua plenitude de graça, por seu poder real e sa
cerdotal, por seu caráter de novo Adão e de cabeça, o fundamento da
catolicidade da Igreja.
7 ) O Espírito Santo foi enviado aos apóstolos e dado à Igreja
como sua alma. Não realiza uma obra diferente da de Cristo, mas a
leva a termo dentro de cada pessoa. O Espírito, idêntico em todos,
concede a cada um a riqueza de Cristo e faz com que os diversosi dons,
as iniciativas de cada um e de todos colaborem na unidade. O Espírito
não só coloca no interior de cada um o tesouro de vida constituído
segundo Deus em Jesus Cristo e nas «relíquias» eclesiais de sua encar
nação redentora, mas proporciona aos demais membros, fazendo-os
confluir para a construção de todo o corpo, os dons pessoais de todos
e de cada um, mesmo daqueles que não pertencem visivelmente ao corpo
eclesial; porque o Espírito penetra o mundo inteiro e suscita nele a
verdade e o bem.48 Assim, pelo Espírito Santo a catolicidade assume
as particularidades sem destruí-las; a catolicidade é, pois, mais do
que a extensão indefinida de uma unidade monista; é a assunção dos
frutos da pluralidade dos indivíduos pelo caminho da comunhão. Pelo
Espírito Santo, a fonte da catolicidade deste mundo se encontra e se
une com sua fonte que vem do alto.
3. A realização da catolicidade
Igreja, até mesmo local. Mais ainda: cada fiel é «católico». Isto su
põe, evidentemente, para uma comunhão verdadeira, ativa e profunda,
uma presença do universal e do todo em cada realização particular do
único cristianismo (vejam-se as referências dadas na página 39, nota
85). Esta relação ao universal distingue a Igreja da seita, porque o
que constitui a seita não é o número reduzido como tal; algumas, com
efeito, têm meios muito superiores aos da Igreja. O que constitui a
seita é a falta de referência à totalidade: falta de referência de textos
bíblicos particulares ao conjunto e ao centro da revelação, segundo a
«analogia da fé » ; não se situam alguns fatos particulares da vida
numa estrutura de conjunto; a relação entre a Igreja não é observada
como ordem sagrada de santidade e de salvação, com o mundo, a
cultura, a história humana, que se procura assumir e salvar. Existe
certa tensão na Igreja entre as exigências da santidade, que a situam
à parte, e a chamada ao universalismo, que exige viver no mundo,
pelo mundo e, em certo sentido, para o mundo.15 A seita sacrifica esta
segunda realidade à primeira, geralmente interpretada de maneira dis
cutível. A Igreja aparece sempre, toda ela, como instituição santa, onde
quer que exista, e com um dinamismo de alcance universal. A Igreja
sabe-se chamada à totalidade. Isto é que se exprime de forma cada
vez mais clara na idéia, assumida pela constituição Lumen Gentium,
da Igreja como sacramento universal de salvação. “ Assim, pois, a
Igreja, quer esteja em situação de diáspora ou de permanência, de
começo ou de presença longa e fecunda, é sempre um germe de vocação
universal.
A expansão universal entre todos os povos foi-lhe prometida nos
anúncios proféticos do A T ,67 e foi-lhe designada como tarefa pelo Se
nhor ressuscitado.“ Tal universalidade está sempre em vias de reali
zação, já que a humanidade não deixa de cresecr e de revelar, como
o próprio mundo, novas dimensões, profundidades ainda não explora
das. Isso mostra que, quanto à sua matéria, a catolicidade qualitativa
b) Ecumenismo e catolicidade
69E m nota citam-se vários dos textos patrísticos seguintes: Ireneu e sua
doutrina d a recapitulação (cf. G. N y g r e n, Manniskan och Incarnationem
enlight Ireneus, Lund, 1947 trad, inglesa: M an and the Incarnation. A Study
in file Biblical Theology of Irenaeus, Edimburgo, 1959); Hipólíto, D e Anti-
christo, 3: «Omnes volens omnesque salvare desiderans, omnes Dei filios
praestare volens sanctosque omnes in unum hominem perfectum v o c a n s ...»
(P G 10,732); Benedictiones Iacob, c. 7 (T U 38/1, p. 18, linhas 4 s ); Origenes,
In Io, tom. I, n. 16: «Turn enim cognoseendi Deum una erit actio eorum
qui ad Deum pervenerint, duce eo Verbo quod est apud Deum : ut sic sint
in cognitione Patris formati omnes accurate filii, ut nunc solus Filius novit
Patrem » (P G 14.49D); Gregório de N issa disse que ao criar Adão, Deus
tinha em mente o Cristo total (D e hominis opificio, 22, e In Os, tr. II, 9
P G 44,205A-208A e 528A). «O que foi é o que será» (In Eccl., I P L 44,632D-
633C); um a razão p ara admitir a apocatástase é que, sem isso, a
ficaria imperfeita e o corpo de Cristo jamais conseguiria sua plenitude (In
íllud: Tunc ipse Filius subicietur P L 44,1313A-1320A). Agostinho, D e sermone
Dom ini in monte, I, 41: «D iligam us quod nobiscum potest ad illa regna
perduci, ubi nemo dicit: Pater meus, sed omnes uni Deo: Pater noster»
( P L 34,1250). Cirilo de Alexandria, In Io, I: «Sumus enim omnes in Christo
et communis humanitatis persona in ipsum reviviscit. N am et novissimus
A dam idcirco nuneupatus est. . . H abitavit enim in nobis, qui per naturam
Pilius est ac Deus ideoque in eius Spiritu clamamus: Abba, Pater! Habitat
autem Verbum in omnibus in uno templo scilicet quod propter nos et ex
nobis assumpsit, ut omnes in seipso habens, omnes in iino corpore, sicuti
Paulus ait, reconciliaret P a tri» (P G 73,161C; 161D-164A).
70N . 4, § 10. E ’ a mesma tese de nossa obra CSirétiens desunis. Príncipes
d’un «oecuménisme» catholique, Paris, 1937. Cf. também as duas obras de
M. J. L e Guillou citadas na nota 1.
SECÇÃO III: A IGREJA Ê CATÕLICA 129
mos e, por isso, atestamos e vos anunciamos a Vida eterna, que estava
junto do Pai e nos apareceu, o que vimos e ouvimos, anunciamo-lo
também a vós, para estardes, vós também, em comunhão conosco. A
nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo; e vos
escrevemos isso, para que a nossa alegria seja completa». Nesta pas
sagem encontra-se o germe de toda a missão no panorama de seu
desenvolvimento. «O que existia desde o princípio» (ân’ áoxnç) não é
senão o «Logos da vida», presente desde a eternidade no mistério
de Deus uno e trino. Num ponto do tempo, a Palavra se manifestou
(êqxxveeíóôri), veio ao mundo (Jo 1,9), foi «enviada» pelo Pai (AjtÉaxsitev,
Jo 3,17; 11,42; 17,8.21.23.25; etc.) e transmitiu sua missão aos apósto
los (cf. Jo 17,18; 20,21), os quais, depois de terem sido testemunhas
de vista, ouvidos e outros sentidos, a anunciam (ã m . y y É k lo i J , E v ) aos ho
mens para que, aceitando-a, participem da vida eterna (Çarrv rfrv alómo-v)
e cheguem a ter comunhão (wwvwvmx) com os apóstolos e entre si por
meio de Jesus Cristo, que os une com o pai: assim poderão sair da
solidão existencial e pregustar já nesta vida o «gozo» de uma comu
nhão humana e divina.9 A eternidade e a história estão unidas por
uma ponte cujas arcadas são a missão do Filho e a missão dos após
tolos. Através desta ponte transmite-se à humanidade a promessa de
Deus de que fala toda a Bíblia, desde a vocação de Abraão até a
última página do Apocalipse.
Assim, pois, o Vaticano I I situa-se perfeitamente nesta linha quan
do baseia a ação missionária da Igreja no colégio dos bispos, suces
sores dos apóstolos, «sob a direção de Pedro» (cf. AG 38,6; LG 22;
CD 6).
2) No texto citado da primeira carta de São João, o dom divino
que se comunica recebe o nome de «vida eterna». No A T designa-se
com os termos «bênção», «promessa», «luz», «salvação», «libertação»,
«redenção», etc. Mas é fácil perceber que a bênção e a promessa outor
gadas a Abraão são destinadas a «todas as famílias da terra» (Gên
12,3), porque Abraão é chamado a ser «pai de uma multidão de povos»
(Gên 17,5; Eclo 44,19-22). O misterioso Servo de Javé, mediador das
promessas divinas, é «constituído em aliança para o povo (de Israel)
e em luz para as nações, a fim de que abra os olhos dos cegos e
liberte do cárcere os prisioneiros, da prisão os que habitam nas trevas»
(Is 42,6s). Porque «E ’ pouca coisa que sejas meu Servo para restaurar
as tribos de Jacó e conduzir os supérstites de Israel; mas eu te ponho
para farol das nações, para levares a minha salvação até os confins
da terra» (Is 49,6). A tradição profética anuncia para o fim dos
tempos a peregrinação e a subida dos povos à nova Jerusalém: ali
tomarão parte, junto com o Israel renovado e purificado, no banquete
da salvação (cf. Is 25,6ss), caminharão na luz de Deus (Is 60,3) e
o invocarão todos juntos (cf. Is 66,23; SI 65,4; Sof 3,9). E’ certo que
não se trata de uma missão no sentido estrito, mas é evidente o movi
mento «centrípeto» para Deus, provocado pelo próprio Deus, no qual
dias tudo isso costuma ser indicado com a expressão homo religiosus;
mas é evidente que a dimensão religiosa inscrita no sujeito humano se
dá necessariamente na categoria da historicidade e socialidade, a qual
subsiste objetivada nos grandes sistemas cultuais e religiosos que dis
tinguem a humanidade desde as origens da história. A esta espessa
trama histórico-cultural, pela qual os homens vivem mais do que nunca
em mútua companhia e dependência, acrescenta-se, de um lado, a rela
ção física com o cosmos (em virtude do corpo), e de outro, uma pro
jeção essencial para o futuro, de modo que o homem não encontraria
forças para viver se não pudesse «pensar» no amanhã.21 O sujeito
humano é realmente um nó de relações cujo desenvolvimento harmo
nioso dá lugar à perfeição e beleza da pessoa.
Mas não se esgota aqui a dimensão do sujeito humano enquanto
destinatário da missão da Igreja. A revelação dos dois Testamentos
e a reflexão teológica dos últimos decênios, que está ligada a impor
tantes filões patrísticos e medievais, pôs em destaque os componentes
sobrenaturais da antropologia. A humanidade jamais existiu in puris
naturalibus. Na origem do eu humano está a palavra criadora de Deus,
em virtude da qual o homem passa à existência como «imagem de
Deus», «estirpe divina», criado em Cristo e destinado à comunhão com
Deus uno e trino. “
A vocação cristã está inscrita no próprio chamamento de todo
homem ao ser. O Vaticano I I não duvidou em empregar afirmações
como «secreta presença de Deus», «participação no mistério pascal»,
«influxo do espírito de Deus» em todo homem comprometido existen-
cialmente com uma realidade última que, tirando-o de si, o faz «ser
para» um Absoluto que o transcende. No âmbito destas afirmações,
os autores da presente obra geralmente estão de acordo em admitir
que entre os existenciais permanentes do homem se dá uma autêntica
comunicação sobrenatural, embora seja absolutamente diferente dos cons
titutivos essenciais da natureza humana. Esta comunicação divina, al
cançando o horizonte da consciência, imprimiria aos dinamismos psico
lógicos do homem, em sua projeção para o termo último, o caráter de
uma fé, uma esperança, uma caridade «implícita», que eu preferiria
chamar inicial, incoativa, germinal. Agindo em sintonia com ela, todo
homem tem certamente a possibilidadede receber uma justificação
que o habilita para a comunhão final com Deus (ef. LG 16).
Mas a imagem do sujeito não-cristão ficaria incompleta, — su
jeito que é destinatário da missão, — se não tivéssemos a coragem
de reconhecer e denunciar que nele se observa também o poder nefasto
e devastador do pecado. O domínio universal do pecado, consignado
com toda a clareza no A T e no NT, pesa gravemente sobre a huma-
3. Finalidade da missão
■
“ E sta concepção dialético-eseatológica da missão aparece substancialmente
em K . Barth, K. Hartenstein, H . Kraem er, W . Holsten e outros. Cf. L.
W iedenm ann, op. cit., 191s.
43 A esta tendência pertencem exegetas como E. Lohmeyer e J. Jeremias,
e teólogos como G. Rosenkranz e P. Althaus. Cf. L. W i e d e n m a n n ,
op. cit., 193.
* Assim, entre os exegetas, O. Cullmann, H. Schlier; entre os teólogos,
K . Hartenstein e W . Freytag.
* Como tentativas de tais sínteses podem ser consideradas as principais
obras de W . Andersen, H . J. M argull e G. Vicedom. Cf. L. Wiedenmann, 194.
SECÇÃO H l: A IGREJA fi CATÓLICA 149
em Deus: «Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai que está nos
céus» (M t 5,48).
Os traços desta plenitude que descrevemos revelam uma dimensão
essencialmente comunitária. Já o paralelo lucano de Mt 5,48, «sede mi
sericordiosos, como misericordioso é vosso Pai» (L c 8,36), aponta para
o horizonte da perfeição evangélica pondo-o na entrega aos homens;
mas Paulo é ainda mais taxativo no tema: «O vinculo da perfeição
é o ágape» (Col 3,14). Assim chegamos a outro termo indicativo da
missão cristã, a xowmno. ou comunhão. Da mesma forma que o exis
tente analisado no Dasein heideggeriano, orientado para o desespero
e a morte, é elevado à soteria, e da mesma forma que o indivíduo
descrito por Jaspers como «existência possível» aberta à transcendência
é chamado à «plenitude de Deus» (E f 3,19), assim o sujeito humano,
em sua constitutiva dimensão interpessoal, é introduzido pela missão
cristã numa comunhão perfectiva que lhe é oferecida pela Igreja. A
superação da solidão e a unidade na comunhão não são simplesmente
o desejo secreto de todo homem, mas o objetivo do plano de Deus.
E também o eixo desta comunhão é a pessoa de Cristo ressuscitado:
o cristão é chamado à comunhão com ele (IC or 1,9), uma comunhão
espontaneamente compartilhada com os irmãos (cf. A t 2,42). Trata-se
de uma comunhão que não elimina a distância do Senhor em frente
à sua criatura, mas que é princípio de uma relação nova, de um
intercâmbio que gera vida, alegria, força. Esta relação funda-se na
participação. E durante todo o tempo da história encontra seu «cume
e fonte» no sacramento da e u ca r i st i a . E st a comunhão vivida na
Igreja não nega nem debilita os vínculos humanos, mas os assume
e fortalece, sendo elemento sustentador de toda forma de comunhão
e germe de fraternidade humana universal a que o mundo de hoje
aspira. A consciência do dever de promover a unidade e a concórdia
entre os homens induziu os padres do Vaticano I I a olhar para além
da atividade missionária propriamente dita no intuito de fomentar o
diálogo e a disponibilidade da Igreja diante de todas as religiões (cf.
LG 13; N A 1).
Outra tarefa da missão é a liberdade (ètevfteeía), cuja mensagem
se inscreve na mais típica temática messiânica anunciada pelos pro
fetas no A T e repetida por Jesus e pela Igreja: «O Espírito do Se
nhor está sobre mim, porque me conferiu a unção; a anunciar a boa-
nova aos pobres me enviou, a anunciar a libertação aos cativos, e o
dom da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a promulgar
um ano de graça da parte do Senhor» (L c 4,18-19). Como o servo
de Javé, Jesus continua na Igreja o anúncio da liberdade. Paulo a
reivindicou sobretudo diante da economia da Lei; o Apocalipse, em
face do império teomorfo; as primeiras gerações cristãs, na linha da
tradição profética, lutaram para libertar o mundo das imagens do
divino imanentes ao mesmo, desmitizando-o em nome da criação e da
cação divina, exige não só uma reta hermenêutica que vise o passado
mas também o futuro, isto é, que pressuponha uma reta inteligência
do homem. Isto obriga a Igreja a um estudo e a uma atenção incan
sáveis a todas as formas e manifestações do sujeito humano. Segundo
uma expressão de Paulo V I , 58 incumbe à Igreja o dever de ser «ex
perta em humanidade»; nada do que é humano lhe pode ser alheio.
Só com esta condição poderá descobrir a inesgotável densidade de
significado inscrita na mensagem bíblica em forma humana e será
uma dispensadora idônea dos mistérios de Deus. Se, como aconteceu,
o conhecimento do sujeito humano avançou neste último século, a
Igreja deve levar em conta estas aquisições com vistas à sua missão.
Uma concepção equivocada ou insuficiente do homem tiraria a missão
de sua passagem e a impediria de alcançar sua meta, esterilizando-a
em formas abstratas e alheias à vida. Se a imagem contemporânea do
homem — enraizada, além disso, nas mais puras fontes da tradição
clássica e cristã — conta entre seus componentes não somente o binô
mio alma e corpo, vontade e inteligência, eternidade e tempo, fini-
tude e infinitude, necessidade e liberdade, mas também os elementos
de consciente e inconsciente, subjetividade e alteridade, identidade e
comunhão, passado e futuro, independência diante do cosmos e imersão
nele, criatividade de estruturas e dependência com relação a elas; toda
esta gama de relações e polaridades deve estar presente sempre que
se pensar em termos bíblicos referentes à missão ou se pretender pro-
jetá-los diretamente sobre a existência. Qualquer opção unívoca e anti-
tética tem como conseqüência o descuido de algum aspecto da reve
lação e termina por repercutir negativamente sobre o próprio homem,
desprezado em sua viva complexidade, debilitando — quando não
desviando — o sentido e o fim da missão.
Mas não poderíamos terminar estas notas sobre o fim da missão
sem aludir ao horizonte último que ela persegue ao colaborar na rea
lização do plano de Deus.07 Segundo a carta aos Efésios, a obra da
criação, encarnação e missão da Igreja culmina no «louvor da glória
da graça de Deus» (E f 1,6).® Paulo, com um olhar profético sobre
o significado da presença operativa de Cristo na história, assinala co
mo seu fim «a presença de Deus em todos e em tudo»: iva r\ ó 0eòç t «
rama êv jrâmv (IC or 15,28). Os capítulos 21 e 22 do Apocalipse revelam
«in mysterio» o fim último da missão da Igreja. A segunda carta de
Pedro considera a ação cristã como «a espera e o apressuramento da
parusia» (2Pdr 3,12). Embora este tema tenha sido organizado e de
senvolvido univocamente pela escola escatológica protestante, visto em
sua integridade está muito longe de ser alheio à missão da Igreja na
época que precede a parusia. A esperança cristã não implica um conhe
cimento do futuro da história nem as palavras da revelação permitem
BIBLIOGRAFIA
Comentários ao decreto conciliar «A d Gentes»
A IGREJA É APOSTÓLICA
A apostolicidade1 é a propriedade mercê da qual a Igreja conserva
através dos tempos a identidade de seus princípios de unidade como
os recebeu de Cristo na pessoa dos apóstolos e são indicados em Mt
28,19s e A t 2,42. Estes princípios são os mesmos que estudamos no
capítulo da unidade: unidade pela comunhão na doutrina, nos sacra
mentos e na forma social da vida na Igreja sob a direção dos pastores,
que herdaram seu ministério dos apóstolos.
I. A APOSTOLICIDADE D A IGREJA
2. História da idéia
3. Teologia da apostolieidade
a) A sucessão apostólica™
O que dissemos até aqui e o que falta dizer mostra que a apos
tolicidade da Igreja não se reduz ao problema da sucessão apostólica.
Todavia, ambas as coisas estão estreitamente associadas. Não há dú
vida de que o ponto nevrálgico do atual debate ecumênico tem sua
raiz no lugar em que se articula esta associação. Assim, pois, abordar
o problema da sucessão apostólica na perspectiva da apostolicidade
é ir ao fundo do problema.
Que os bispos sejam «os sucessores dos apóstolos» é um fato afir
mado de tal forma pela tradição e pelo magistério extraordinário, que
se impõe como um dado de fé .a Todavia, a fórmula exige algumas
precisões, de resto comumente admitidas pela teologia católica.
ressante estudo, do qual nos servimos aqui em parte, sem evocar este
texto: W . Zoellner e W . Stahlin (eds.), D a s W o rt Gottes und die apostolische
Sukzession, Berlim, 1937, 187-203. Sobre esta idéia de representação e viea-
riedade (to m ar presente e ativo), cf. A. von H arnack, op. cit. (nota 35).
Observar-se-á que não recorremos à noção, bastante controvertida, de saliah.
A parte certa de verdade que comporta inscrever-se-ia, evidentemente, aqui:
o enviado representa (to m a presente) quem o enviou. A s expressões patrís-
ticas e medievais vicem agere, agere in persona, etc., têm o mesmo valor.
Seriam necessárias muitas páginas para dar as referências a este propósito.
Remetemos somente ao começo do estudo de M. M a c c a r r o n e , V icaiius
Christi. Storia dei titolo papale, Roma, 1952.
38Referências em Y . C o n g a r , Tradition, I I (nota 27), 45, 276s.
170 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
vidade de São Paulo, circunstância que faz com que só se possa obter
uma relativa claridade a partir dos textos do NT. Repitamos, de resto,
esta observação importante: os textos do N T procedentes dos após
tolos logicamente só nos falam da situação existente durante sua
vida. Procurar neles enunciados formais sobre posteriores situações
seria tomá-los como textos constitucionais, coisa que não são, e pedir-
lhes indicações que naturalmente não podem dar. A aplicação neste
caso de um princípio como a Scriptura sola é fatalmente decepcionante
em virtude da própria natureza das coisas que se ventilam. Em todo
caso, os católicos sustentamos que a realidade supera os textos, so
bretudo quando estes são tão ocasionais como as epístolas. Operou-se
uma transmissão total da realidade dos ministérios que estruturam a
Igreja, para além daquilo que os textos possam indicar-nos sobre o
tema. Esta transmissão se realizou, como ainda se verifica agora,
segundo um modo real, que pertence mais à tradição do que à Escri
tura. 43
Qualquer que seja a data em que foram fixados, os textos de
Mt 28,18ss e A t 1,8 traduzem a consciência que a Igreja tinha de
realizar uma missão recebida nos Doze e mais tarde de modo par
ticular também em Paulo por um mandato do Senhor. O mandato ou
a missão comporta uma tarefa a realizar, acompanhada dos meios
necessários para seu cumprimento. Estes meios estão fundamentados
no poder (êlouoía) de Cristo e em sua presença com os apóstolos. A
presença durará até o fim da história, já que a tarefa supera o espaço
e o tempo. Quais seriam este espaço e este tempo? Mesmo se o tempo
tivesse que ser breve, o espaço exigiria uma multiplicação da autori
dade pastoral. Assim vemos que Paulo estabelece presbíteros nas co
munidades que funda em Listra, Icônio, Antioquia (A t 14,23) e talvez
também em Éfeso (20,17.28). Vemo-lo também cuidar de que alguns
ministros supervisionem o andamento de um conjunto de comunidades
locais em nome e no lugar do Apóstolo, de quem estes ministros são
associados e delegados. Tal parece ser a função de Tíquico, de Arte-
mas, de Epafras, de Tito em Creta e de Timóteo em Éfeso.41
“ Sobre isto cf. Y . C o n g a r, op. cit. (nota 27), sobretudo II, 111-136.
Repitamos mais um a vez uma observação importante. O princípio da Scriptura
sola dá forçosamente e com prioridade a palavra aos exegetas. Estes certa
mente têm muito a nos ensinar. Todavia, estão apegados às palavras e cor
rem o risco de não querer nada além das próprias palavras. Ora, às vezes
sucede que uma realidade está presente sem a palavra pela qual a desig
namos: «g ra ç a » ('/ápiç) nunca aparece nos evangelhos, nos lábios de Jesus;
«Ig r e ja » não se encontra em l P d r . .. Assim, por exemplo, K . H . R e n g s t o r f ,
op. cit. (nota 37), não cita M t 28,18ss a propósito de nosso problema: as
palavras não se encontram no texto, mas sim na realidade.
1,4«Parece que a presença de um ou outro destes delegados apostólicos
é indispensável, já que Tito não poderá deixar seu posto em Creta e reunir-
se com Paulo a não ser quando Ãrtemas ou Tíquico tiverem vindo para
substituí-lo (T i 3,12), e Paulo, ao chamar Timóteo paxa que se reúna com
ele, tem o cuidado de enviar Tíquico em seu lugar a Éfeso (2Tim 4,9.12).
Notemos tam bém que E pafras, companheiro de serviço (oúvôouXoç) de Paulo
e que ajuda ou supre o Apóstolo entre os colossenses (Col 1,7), vela tam
bém sobre as comunidades de Laodicéia e de Hierápolis (Col 4,12s). Já é o
embrião de um a função geral na linha de Timóteo, Tíquico ou Ártemas.
D a mesma forma, o autor d a carta aos Hebreus, colega de Timóteo (13,23),
172 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
48Sobre este texto, cf., além dos estudos citados supra (nota 42): A. M.
J a v i e r r e , E s apostólica Ia prim era «diadochè» de la Patrística (1 Cl 44,2)?:
«Salesianum » 19 (1857), 83-113; id., L a prim era «diadochè’ de la prim era par-
trística y los «ellógim oi» de Clemente Romano, Turim, 1958. Discute-se a quem
sucedem os homens provados de 42,2 (ellógimoi), aos apóstolos ou aos
ministros estabelecidos por estes. N esta perspectiva em que nos situamos e
com as explicações que seguem, basta a resposta minimalista (sucessão do
episcopado local). E sta é a resposta que Javierre admite.
174 CAP. Y: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
314, cân. 20. Os cânones apostólicos, redigidos pelo ano de 400 (eân. 1 =
Const. apost., V III, 47), exigem dois ou. três (a restrição a dois inspira-se,
sem dúvida, em Hipólito, Trad. apost., 2). A constituição Sacramentam Or-
dinis, de 30-11-1944, precisa que estes bispos são verdadeiramente co-consa-
grantes; a constituição do Vaticano I I sobre a liturgia estende esta possibi
lidade de co-consagrar a todos os bispos presentes (76). A constituição dog
mática Lum en Gentium vê nesta disposição tradicional um sinal de colegia-
lidade episcopal (22). Cf. L. Mortari, op. cit. (nota 63).
75Adv. haer., III, S, 2 (P G 7,848; Harvey, II, 9).
™IT ím 4,14; Hipólito, Trad. apost., 2.
w lC lem 44,3.
78Ireneu, Adv. haer., IV , 33, 8 (P G 7,1077; H arvey, II, 262). Sobre a inser
ção da sucessão local na continuidade de toda a Igreja, cf. B. Botte, art.
cit., em nota 29.
78E. S c h l i n k , Die Apostolische Sukzession, en D e r kommende Christus
und die K iichlichea Traditionen, Gottingen, 1961, 160-195.
80 Cf. L. M. D e w a i 11 y, L a personne du ministre ou l ’objet du ministère?:
R S P h T h 46 (1962), 650-657; U . V a l e s k e , Votxun Ecclesiae, I, Munique, 1962,
147 ; J. J. von A 11 m e n, L e saint ministère selon la conviction et la volonté
des Réform és du X V I e siècle, Neuchâtel, 1968, 192s.
“ Cf. o Relatório de Montréal de 1963 sobre «Cristo e a Ig re ja »: «V erbum
Caro» (1964), 1-29.
œCf., por exemplo, P. E v d o k i m o v , L ’Orthodoxie, Neuchâtel, 1965, 133.
180 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
4. Sentido da apostolicidade
82 Cf. lJ o 4,3.6. Paulo l’emete à autoridade dos ministros tanto para jul
gar os espíritos na Ig re ja (IC o r 14,37s) como para pôr de sobreaviso as
comunidades contra os perigos do erro: A t 20-28-31; E f 4,11-16; IT im l,3s; 4;
6,2bs; 2Tim 2,14; 4,1-8; Ti 3,9ss; cf. Apc 2. Diante destes perigos, a reação
dos apóstolos é exortar à vigilância aqueles que têm o encargo da èiaomitr).
“ Cf. Ireneu, de quem é a fórm ula: Adv. haer., III, 3, ls (P G 7,848);
H arvey, II, 8s; Sagnard, lOlss; Tertuliano, Praesc., 20, 2ss ( P L 2,32; Preu-
schen, 15); 32 (P D 2,44; Preuschen, 24); Cf. outros textos de Hipólito, Ci-
priano, Eusébio, Agostinho, etc., em A. M. J a v i e r r e , loc. cit. (nota 42), em
L ’É piscopat.. 185-188, 208ss. Cf. também os estudos de alguns anglicanos
como H. B. S w e t e , The H o ly Catholic Church, Londres, 1915, 41-49; P.
C a r r i n g t o n , The E a rly Christian Church, I, Cambridge, 1957, 464.
01 A. M. Javierre reuniu um a documentação exaustiva sobre este princípio
form al de sucessão no pensamento e na sociedade pré-cristã: II tema (nota
40) ; sobre Fílon, 274s.
85Const. Apost., V III, 16, 3 (Funk, 522) ; citado por A. M. J a v i e r r e ,
L ’Épiscopat et l’Eglise universelle, 210 (nota 2).
SECÇÃO IV: A IGREJA E APOSTÓLICA 183
dos poderes e dos carismas necessários para cumpri-lo que foram da
dos para isso aos apóstolos: Mt 28,18ss; A t 1,8; cf. Mt 16,19; 18,18;
Jo 20,23. Aqueles que foram enviados podem e devem enviar outros
depois de si. Porque a missão devia durar, ao passo que o próprio
João devia morrer (Jo 21,22s). Se a missão se limitasse à pessoa dos
apóstolos, nós nem sequer deveríamos batizar, observava já Paciano
de Barcelona ( ca. 390).96 O que foi confiado aos apóstolos só pode
realizar-se por meio dos ministérios herdados ou derivados do seu.
Da mesma forma, constitui-se um só corpo, uma só realidade, uma
só pessoa moral de missão e de poder sagrado, a «hierarquia»: «Unum
corpus propter unitatem iuris» . m Os homens passam, a missão e a
autoridade permanecem idênticas: «O rei morreu. Viva o rei!» A mes
ma idéia da identidade de um mesmo sujeito de direito que permanece
no transcurso dos anos foi freqüentemente expressa em termos de
herança.118 De fato, nós dizemos «uma sucessão» para designar uma
herança; é praticamente o mesmo. De um ponto de vista um pouco
diferente, é também o que tem de válido a idéia judia do saliah, que
traduz o princípio da identidade da missão, cuja autoridade passa de
quem envia a quem é enviado.“ Este princípio certo tornará a apare
cer em nossa reflexão ulterior.
Com a apostolicidade trata-se, em última análise, de chegar aos
homens e ao mundo através da imensidade de sua dilatação espacial
e temporal para relacioná-los com o único evento Cristo, no enviado
único do Pai, em quem se realiza a passagem de Deus aos homens
e dos homens a Deus (Jo 1,18; 1,51; Gên 28,10-17; ITim 2,5). A
economia salvífica exige que fatos ocorridos uma vez, num ponto con
creto da terra e da história, sejam comunicados a todos os homens,
para os quais estes fatos constituem graça e verdade com vistas à
salvação, que consiste na comunhão com Deus. A comunhão com Deus
realiza-se por meio de Jesus Cristo ; a comunhão com Jesus Cristo, por
meio dos apóstolos (lJ o l, ls s ): daí a comunicação de missão por cuja
evocação começamos. Não se trata de introduzir um princípio legalista
no evangelho da graça, mas de realizar justamente este evangelho nas
condições em que Deus realmente o deu aos homens.
Essas condições são as da entrada na história pelo caminho da
encarnação, isto é, tomando um corpo nessa história. A palavra fez-se
carne. Cristo constituiu um corpo eclesial estruturado cuja formação
ele mesmo começou a partir dos apóstolos e através de seu ministério
acompanhado da ação de seu Espírito. E ’ verdade que Cristo continua
agindo do alto do céu, e a tradição mais eclesiástica é apresentada
por São Paulo como procedente do Senhor.“ ° Não há continuidade
histórica, horizontalidade, instituição que não seja acompanhada de uma
atualidade, de uma ação vertical, de «acontecimentos» espirituais. As
consagrações segundo a sucessão no ministério provocam uma inter
venção atual de Deus; assim ocorre com as eleições, a designação dos
ministros e todas as ações sacramentais, as decisões absolutas em ma
téria de doutrina, de culto ou de costumes. Para todas elas é neces
sária uma «epiclese» e uma vinda do Espírito Santo que a teologia
refere às «missões divinas». A atribuição de tudo isso a Deus como a
seu sujeito supremo e decisivo e a idéia de um perpétuo atualismo
de sua ação constituem a parte de verdade contida no protesto dos
reformadores do século X V I e até a construção, de resto insustentável,
de um R. Sohm. Respiguemos, de uma documentação considerável que
reunimos sobre o atualismo da operação divina, este texto tirado da
fórmula de profissão de fé de um arcediácono romano eleito e consa
grado papa: «Sanctae tuae Ecclesiae quam hodie tuo praesidio regendam
suscepi, quod verae fidei rectitudine, Chrísto autore tradente, per succes-
sores tuos. . . » . m Todavia, a economia dos dons de Deus segue uma
lógica diferente, não consiste de acontecimentos espirituais que caíssem
em gotas do céu onde Cristo reina. O que se atualiza no tempo de
pende inteiramente, ao mesmo tempo, do Cristo glorificado e do Cristo
encarnado, morto e ressuscitado. A questão pendente entre a Reforma
e a Igreja primitiva é a de saber como estamos vinculados, hoje e
todos os dias até o íim do mundo, ao iato único da encarnação e da
morte redentoras de Jesus Cristo. A visibilidade da Igreja é somente
material, dependente dos homens que a compõem, ou iormal, chegando
mesmo àquilo que a constitui como Igreja, isto é, aos meios de sal
vação e aos ministérios que derivam do Verbo encarnado?
A continuação é, positis1 ponendis, homogênea a seu princípio. A
Igreja é um corpo, o corpo de Cristo, constituído por um elemento
“ E p. 232, 3 ( P L 32,1028; citado por A. Seumois, op. cit., 98, nota 31).
SEOCAO IV: A IGREJA E APOSTÓLICA 189
letzten dreissig Jahre = Ntl. Abh. 21, Münster, 1960, onde mostra que a
metade dos exegetas protestantes alemães admite a autenticidade do logion.
A maior parte deles reconhece que Pedro recebeu uma verdadeira «Vorm acht-
stellung, mas de ordem pessoal, e que lhe conferiu um a autoridade moral,
limitada no tempo e intransmissível. O livro de O. Cullmann (ef. nota 113)
não superou o tratamento excessivamente negativo que os protestantes da
vam a nosso texto a não ser estabelecendo uma nova form a de recusar aa
conseqüências eclesiológicas que os católicos tiram do texto. Levantou-se uma
última dificuldade, relativa não ao conjunto da passagem, mas aos versículos
18s: Justino e Ireneu os ignoram, ao passo que Tertuliano e Orígenes os co
nhecem. Portanto, diz-se, teriam sido introduzidos pelo ano de 190. M as onde,
por quem e como? GE. W . ; L, D u í i è r e , L a .péricope súr le «P o u voir des
clés»: « L a Nouvelle Cllo» 6 (1954);,'íQ-90.-
SECÇÃO IV: A IGREJA S APOSTÕLJCA 193
E ’ então que, anunciando sua morte, que não deve ser um fim, mas
um germe, dá a entrever o porvir de sua obra. E é no meio da in
compreensão das massas e da oposição dos notáveis, que suscita e recebe
o primeiro ato de fé; vê aflorar o primeiro alicerce do edifício que
deve ser sua comunidade messiânica.
Por isso declara Jesus a Pedro, que confessa sua messianidade e,
profeticamente, sem ainda dar às palavras seu sentido pleno, sua filia
ção divina: «Tu és Rocha, e sobre esta rocha edificarei a minha
Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela». Existe
grande número de antecedentes bíblicos, rabínicos e, atualmente, essê-
nios que permitem ilustrar a idéia do templo ou da comunidade mes
siânica edificados sobre a rochada verdade: Abraão, o crente, era
assim um rochedo, um alicerce sobre o qual descansava o povo esco
lhido. 118 Nessa construção, a solidez que cabe à comunidade da ver
dade (cf. os usos do verbo ’aman) será como que a continuação e a
irradiação desse primeiro apoio na verdade graças à qual, crendo (sem
pre o verbo ’aman), Pedro foi declarado Rocha. O próprio Jesus tinha
comparado aquele que escuta a palavra e a põe em prática a um
homem que não edifica sua casa sobre areia, mas sobre pedra: Mt
7,24-27; Lc 6,47ss. Estamos no âmbito de uma solidez que um edifí
cio recebe daquilo sobre o qual se apóia: a Igreja terá a solidez
daquilo que Cristo edificar sobre este rochedo que é Pedro no momento
em que, por uma graça recebida do alto, este confessa sua fé em
Jesus Messias e Filho de Deus.
Os apóstolos poderão ser chamados «fundamentos da Igreja» (E f
2,20; Apc 21,14): Pedro é designado, em razão de sua fé, como
sendo o solo rochoso sobre o qual repousam os próprios alicerces.
Isto qualifica de maneira singular sua própria condição de apóstolo.
Mas o texto continua: «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que
ligares sobre a terra será ligado no céu e o que desatares sobre
a terra será desatado no céu».
As chaves significam a autoridade de administração de uma casa
ou de um território. Se se trata de uma casa, será a função de mor
domo ou administrador; se se trata de um reino, a de primeiro mi
nistro ou vizir. A referência clássica para este caso é a história de
Seba, substituído em seu cargo de vizir por Eliaquim, a quem é en
tregue «a chave da casa de Davi: se ele abre, ninguém fechará;
se ele fecha, ninguém abrirá» (cf. Is 22,19-22). Portanto, as chaves
designam o poder que um lugar-tenente recebe de seu senhor para
administrar sua posse em seu nome e lugar (cf. no NT, em resposta
Mt Lc
As portas do inferno (lutam) Satanás vos procurou para vos joeirar
Eu te digo Eu roguei por ti
Tu és pedra A fim de que tua fé não desfaleça
E sobre esta pedra Tu, uma vez convertido,
Edificarei minha Igreja Confirma teus irmãos
falam dele, já que o plano de São Lueas nos Atos comporta uma dis
tinção de funções entre Pedro e Paulo, de maneira que, salvo no cap.
15, não se fala mais de Pedro depois do misterioso v. 17 do cap. 12.
De nossa parte, pensamos — e o testemunho mais tardio de escritos
não-canônicos“6 poderia confirmar esta convicção — que Pedro conti
nuou sendo, depois de sua partida «para outro lugar», o que tinha
sido até então: um apóstolo qualificado pela representatividade e ini
ciativa, isto é, um chefe no apostolado. Em todo caso, os doze primeiros
capítulos dos Atos no-lo mostram assim. Pedro preside, levanta-se,
fala (1,15; 2,14; 15,7); sua palavra é a do testemunho (cf. 2,41);
Ananias e Safira depositam seus haveres «aos pés dos apóstolos» (5,
12), mas é Pedro quem os castiga. Mencionam-se os milagres dos
apóstolos, mas ainda aqui dirige-se a atenção para Pedro (5,15). Ele
é impelido pelo Espírito Santo, antes de qualquer outro, a abrir a porta
da Igreja aos pagãos, e quando o assunto é discutido sinodalmente,
depois de um longo debate (15,7), Pedro fala e a «assembléia fica em
silêncio» (v. 12).
g) Como aparece Pedro nas cartas de Paulo? Não insistamos no
testemunho que dariam de sua autoridade passagens como ICor 1,12
(cf. 3,3-8.22) e detenhamo-nos em Gál 1,12-2,14, onde alguns admiti
ram ver um dos mais decisivos testemunhos do primado de Pedro, m
ao passo que outros encontraram enunciada uma situação que exclui
a verossimilhança de tal primado.
Não que o «incidente de Antioquia» (Gál 2,11-14) cause realmente
•dificuldade. Na medida em que estamos bem informados por Lucas (que
tende a atenuar as divergências) é evidente que Pedro e Paulo man
tinham a mesma doutrina: ambos pensavam que, para o bem das almas
e da paz, era preciso realizar compromissos e fazer concessões. Ne
nhum apóstolo estava teologicamente tão próximo de Paulo como Pe
dro. KS Eclesiologicamente, Pedro estava de acordo com Paulo sobre a
evangelização dos gentios e sua entrada na Igreja por meio unicamente
do batismo;120 no fundo, este acordo se estendia às atitudes práticas
que deviam ser mantidas em matéria de pureza ou de contaminação
pelas carnes oferecidas aos ídolos ou por qualquer outra prática rela
tiva aos alimentos.1™ Mais: Paulo, que havia proclamado: « A circun
cisão para nada serve», circuncidará Timóteo «por causa dos judeus»
131 P a ra Pedro, cf. A t 2,38s; 10; 11,5-18; 15,7s; lP d r 1,1; 2,10. O «como
Pedro da circuncisão» de Gál 2,7 tem, segundo A. Vogtle, um simples sentido
de anterioridade. Paulo reivindica ter, p ara os pagãos, um a vocação análoga
à que se viu Pedro exercer entre os judeus: D e r Petrus der Verheissung
und der E rfü llun g: M T h Z 5 (1954), 1-47 (esp. 40s).
200 CAP. V : P R O P R IE D A D E S E S S E N C IA IS DA IG R E J A
pelas condições do judaísmo, Paulo fez tudo quanto pôde para conser
var a unidade, respeitando sua condição de apostolicidade tal como
esta era representada sobretudo por Cefas. De outra forma, ele o reco
nhecia, teria corrido em vão (cf. Gál 2,2; 1,18) : œ «A seguir, depois
de três anos (na ‘Arábia’ e em Damasco), subi a Jerusalém para visitar
Cefas e permaneci com ele quinze dias». Haviam dito a Paulo que
era preciso estar de acordo com Pedro, que, mais uma vez, incorporava
ou representava o apostolado. Jerusalém, a cidade dos apóstolos e dos
«santos», continuaria a ser para Paulo uma espécie de norma concreta
(cf. ICor 11,16; 14,33b; ITes 2,14); entre as comunidades pagão-
cristãs e estes «santos», a coleta de que Paulo tanto se preocupou seria
um sinal tangível da comunhão e de certa distensão. ™ As apreensões
de São Paulo sobre a acolhida que se prestará à sua oferenda (cf.
Rom 15,31), os termos que emprega para falar dela, indicam a medida
da importância e do sentido que ele lhe dava. Tratava-se em tudo
isso de sua comunhão de apóstolo (no estilo do Vaticano I I falar-se-ia
de «comunhão hierárquica») com o apostolado e a instituição surgidos
da encarnação.
Que podemos concluir do conjunto dos textos rapidamente estuda
dos? 1) Em primeiro lugar, que o corpo ou colégio apostólico dos
Doze está estruturado. Tem uma cabeça, um «corifeu».134 Pedro é o
primeiro naquilo mesmo que constitui o apostolado. 2) E ’ o primeiro
não só nas prerrogativas intransmissíveis dos apóstolos, como a de
ser testemunha da ressurreição, mas também na autoridade, que con
verte os apóstolos em chefes da Igreja: poder de ligar e desligar, tes
temunho ou ensinamento sobre Cristo, ofício pastoral; portanto, em
tudo aquilo para o qual Cristo está com os apóstolos até o fim dos
332Paulo tem interesse em assinalar a conformidade de seu ensinamento
com o dos apóstolos: IC or 15,11. Todavia, não se deve exagerar o alcance
de Gál 1,18, onde krtogfjaai significa «conhecer a».
133Sobre este alcance eclesiológico d a coleta, cf. L. C e r f a u x , I*es
«saints» de Jérusalem: E T h L 2 (1925), 510-529 = Recueil L. Cerfaux, II, Gem-
bloux, 1954, 389-413; id„ S t P a u l et l’unité de 1’É glise: N R T h 53 (1926), 657-
673; B. A l i o , L a portée de Ia collecte pour Jérusalem dans les plans de
saint P a u l: R B 45 (1936), 529-537; F. R e f o u l é , Saint P a u l et l’unité de
l’Église: «Irénikon» 28 (1955), 5-18; J. D u p o n t , Saint Paul, témoin de la
collégialité apostolique et de la primauté de saint Pierre, em L a Collégialité
épïscopale, Paris, 1965, 11-39.
Eusébio, Hist. B cd ., II, 14: «o poderoso e grande entre os apóstolos,
aquele que por sua virtude é o porta-voz de todos os dem ais»; E frém (cf.
a citação em Bento X V , enc. Principi Apostolorum, 5-10-1920 [A A S 457s] );
Cirilo de Jerusalém, Cat., II, 19: «o corifeu e o primeiro dos apóstolos» (P G
33,408); X I, 3: «Pedro, o primeiro dos apóstolos, e o arauto-corifeu da Ig re ja »;
X V II, 27; Epifânio, Haer., L I, 17; Archegos; L IX , 7: Koryphaiôtatos; Gre-
gório Nazianzeno, D e Seipso, 222: «Pedro, cabeça dos discípulos»; Crisósto
mo, In Jo, hom. 88, 1: «sê o chefe de teus irm ãos» (P G 59,478) ; In Act.
Apost., hom. 3, 1: «Pedro levantou-se no meio dos irmãos e disse com vee
mência, como aquele a quem Cristo confiou o rebanho e como o primeiro do
coro» (P G 60,33); In illud hoc scitote, 4: «Pedro, corifeu do coro, boca de
todos os apóstolos, cabeça dessa fraternidade, príncipe de toda a oikum ene.. . » ;
m ais textos em Batiffol, Cathedra Petri, Paris, 1938, 185 (nota 24), e sobre
tudo A. Rimoldi, op. cit. (nota 113), 307s; Nicéforo de Constantinopla, ApoL
pro S. Imag., c. 25 e 36. Os papas às vezes em pregaram o termo «corifeu»;
por exemplo, Gregório I I na carta ao imperador de Constantinopla (cf. P.
Dvom ik, citado in fra [nota 136], 83). P a ra outros títulos ainda mais fortes
dados a Pedro (princips, principatus, etc.), cf. A. Rimoldi, op. cit. (nota 113),
301-309.
SECÇÃO IV: A IGREJA £ APOSTÓLICA 201
tempos (M t 28,20). Por outro lado, não se deve separar muito, embora
seja preciso distinguir, o transmissível e o intransmissível na pessoa
apostólica de Pedro. O importante para nosso tema é que, no colégio
dos Doze, Pedro foi colocado pelo Senhor na posição de cabeça.
Isto significa que, se a apostolicidade é a permanência da Igreja,
não só na doutrina dos apóstolos, mas também na forma de ministério
herdada deles, o que se realiza na sucessão apostólica, esta comportará
uma estrutura colegial na qual a função de Pedro como o primeiro,
como representante do corpo, conhecerá uma permanência. 'No N T a
Igreja é considerada como uma adesão de numerosos fiéis aos apósto
los (A t 2,41s.47); a Igreja consiste em estar com eles. Mas eles mes
mos são apresentados várias vezes como os que estão com Pedro (cf.
supra, nota 118): tal é a estrutura de unidade que realiza uma aposto
licidade também estruturada. E ’ verdade que não se fala expressamente
de uma sucessão de Pedro em sua posição de primeiro quanto à ini
ciativa e representação. E ’ preciso deduzi-la mediante um raciocínio;
os textos que fundamentam esta prerrogativa de Pedro apontam para
um futuro e entram no estatuto de promessa e cumprimento que é
próprio da economia salvífica. Trata-se em tudo isso da duração da
Igreja, como se pode inferir de Jo 21,15-17 e, mais expressamente ainda,
de Mt 16,18 («as portas do inferno não prevalecerão contra ela»).
Outros dogmas fundamentais também supõem um raciocínio, como o
da divindade pessoal do Espírito Santo. E ’ necessário admitir que a
revelação se explicita na Igreja. E ’ a história, guiada por Deus, que
constitui o lugar onde se revela a lei de fé e de vida da Igreja.
Durante os últimos decênios realizou-se um progresso considerável
no sentido de um amplo acordo entre católicos e protestantes em
terreno exegético. Mas subsiste uma diferença de alcance geral: en
quanto os católicos descobrem, nas palavras do Senhor, uma intenção
institucional, os protestantes não vêem nas mesmas passagens mais do
que um episódio de alcance simplesmente histórico e pessoal. Ambas
as posições parecem dar por resolvida uma questão prévia: Jesus quis
e fundou uma Igreja? Ou, pelo contrário, a Igreja é obbra do Espírito
Santo?
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3. Santidade
4. Catolicidade
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212 CAP. V: PROPRIEDADES ESSENCIAIS DA IGREJA
1. Vocabulário 5
2. Breve resumo histórico da problemática das notas 6
3. Relação das notas entre si e com o mistério de Cristo e da Igreja 9
4. Apreciação do uso apologético das propriedades-notas. Verdade da
Igreja 11
I. Teologia da unidade 14
1. As formas da unidade 18
a. Unidade de fé 20
b. Unidade no culto e pelos sacramentos 25
c. Unidade de vida social orientada e governada pela caridade 32
1. O cisma 55
a. Em que consiste o ato do cisma 55
b. Como se produz um cisma e como se conserva a unidade 60
2. A heresia 65
a. História da idéia 65
b. Definição da heresia 68
c. Como se chega à heresia? 69
214 ÍNDICE
Bibliografia 154
Bibliografia 209