Mágda Rodrigues Da Cunha
Mágda Rodrigues Da Cunha
Mágda Rodrigues Da Cunha
da reconexão e do
esquecimento
RESUMO
As investigações sobre a memória tornam-se mais complexas em
um cenário onde as conexões entre os sujeitos e as informações
em circulação existem em escala abundante. Mais do que uma
dimensão linear, onde existem passado, presente e futuro e cada
um deles permanece no seu lugar, a memória transforma-se agora
em uma multiplicidade de perspectivas. Neste texto, o objetivo é
analisar os paradoxos que envolvem a memória múltipla, coletiva,
e que não mais pode ser considerada a memória de um tempo
passado. Horizontes históricos acumulados, por intermédio de
registros digitais ou redes sociais, invadem a vida dos indivíduos
que, sendo também narradores, abastecem esta larga rede. O
elevado grau de complexidade desta construção desordenada é,
ao mesmo tempo, a investigação sobre o esquecimento.
PALAVRAS-CHAVE: Memória. Comunicação. Esquecimento.
Conexão.
103
1 Introdução
Os estudos e perguntas em torno da memória sempre foram
instigantes para a ciência. Passando por áreas diversas, muitos
investigam sobre os motivos pelos quais os indivíduos guardam ou
descartam informações, lembranças e vivências. Muitas pesquisas
já compreendem melhor as estratégias cerebrais para isso. Mas as
questões voltadas à memória sempre trazem outras dimensões até
então impensadas. Se em um determinado momento da história,
a memória estava diretamente ligada ao registro e armazenamento
de informações, hoje isso assume um grau de complexidade ele-
vado, pois no período pós-Internet armazenar e reter conteúdos
passou a ser um problema menor e ao mesmo tempo maior pela
diversidade de informações ao alcance de um toque na tela. Se
antes, as lembranças estavam organizadas por categorias pessoais,
profissionais, entre outras ainda mais detalhadas, hoje todos os
formatos coexistem. E ainda, se concluir ciclos da vida como
colégio, universidade, relacionamentos de qualquer ordem signi-
ficava o encerramento real da conexão com as pessoas envolvidas
no processo, atualmente, com as redes sociais, este passado volta
com uma força semelhante à intensidade de quando aconteceu
pela primeira vez.
Nessa linha, poderíamos afirmar que memória nunca mais
será memória, como conhecemos dentro de um princípio li-
near de pensamento – passado, presente e futuro – mas estará
permanentemente conectada à realidade deste tempo e sendo
atualizada pelos fatos do passado que voltam a nos encontrar.
Esse permanente retorno ao passado, proporcionado pelas redes
sociais, nas comunidades em que as pessoas reencontram antigos
colegas e amigos, por exemplo, é um fenômeno capaz de remexer
o presente. O que passou torna-se atual, alterando de certa forma
o processo de construção da memória. As mesmas redes sociais
possibilitam o registro coletivo e o compartilhamento de ima-
gens, percepções, pensamentos, opiniões e sugestões a respeito de
lugares o mais impensados. Muitos espaços transformam-se em
Em Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 103-117, jul./dez. 2011.
104
uma comunidade. Muitos mais passarão a fazer parte delas por
intermédio de fotografias de sala de aula, formaturas, registros,
informações, boletins escolares, enfim, tudo o que seja capaz de
reconstruir um tempo que pode ter sido bom ou não. Mas é um
tempo que retorna para o presente e passa a influenciá-lo.
A humanidade passa a viver em situação de reconexão. Se
afirmarmos que nunca estivemos tão conectados, já é possível
concluir que também nunca vivemos tão reconectados. Reconec-
tados com colegas de colégio, cursos, empregos anteriores, um
curso rápido de culinária. Isto pouco importa. O determinante
neste momento é que muitos desejam registrar e reter essas memó-
rias, trazer para o presente o que foi bom, mas também atualizar
e talvez até melhorar o que não foi tão positivo no passado. Por
conta disso, é possível saber que fisionomias assumiram os colegas
de colégio, que deixamos de ver há 30 ou 40 anos. Somos todos
obrigados a um reencontro com nosso passado.
Somados, redes sociais, com imagens, registros, narrati-
vas, que falam de pessoas e lugares, conectados à digitalização
permanente de documentos, o mundo vive um tempo em que a
memória organizada em rede constitui uma grande e larga me-
mória. A pergunta agora é torno da apropriação que está sendo
feita de tantas possibilidades. Paralelamente, com a abundância
de informação em circulação, alguns autores apontam para uma
era do esquecimento. Uma evidência, porém, é clara: examinar
a constituição da memória é investigar encontros, desencontros,
reencontros e ainda uma multiplicidade de informações, arma-
zenadas em larga escala, num cenário cercado de paradoxos entre
a super informação e a amnésia.
105
de esquecimento, uma vez que um acontecimento, que chama
atenção durante alguns dias, desaparece repentinamente das
telas, logo das memórias. Isto até o dia em que ressurge repen-
tinamente. “Certo número de acontecimentos tem, assim, uma
existência eclíptica, esquecidos, familiares e surpreendentes ao
mesmo tempo.”
O pensamento do autor é relevante, pois descreve o grau de
complexidade do cenário no que diz respeito à informação. Fatos
surgem e desaparecem rapidamente. Se pensada a dimensão da
mídia, muitos acontecimentos podem ser alimentados enquanto
forem capazes de manter um elevado nível em índices de audi-
ência, mas na mas com a mesma velocidade podem desaparecer
para dar lugar a outros. Na mesma medida, a narrativa da mídia
convive com as percepções manifestadas pelos muitos narradores
por intermédio das redes sociais. Assim, um fato aparece e desa-
parece, mas é alimentado também pelo público.
106
determinado local implica uma relação entre lugares e dispositivos
móveis digitais até então inédita.
As redes sociais na Internet movimentam atualmente mais
de 500 milhões de pessoas, como o Facebook (FACEBOOK...,
2010) e, entre essas, 200 milhões por intermédio de tecnologias
móveis. Recuero (2009) afirma que entre as mudanças que a In-
ternet trouxe à sociedade, a mais significativa é a possibilidade de
expressão e sociabilização através das ferramentas de comunicação
mediada pelo computador. Tais ferramentas proporcionam que
atores possam construir-se, interagir e comunicar com outros
atores, deixando na rede de computadores rastros que permitem
o reconhecimento dos padrões de suas conexões e a visualização
de suas redes sociais. Em termos concretos, conexões de sujeitos
via Foursquare, Twitter, Facebook, Orkut, Youtube, entre outros,
já resultaram em mobilizações sociais, queda de governos ou
correntes solidárias.
Tapscott (2011) afirma que não existe mais um debate em
curso sobre o poder transformador das redes sociais e da colabo-
ração online. O autor entende que revoluções em série como na
Tunísia, no Egito, na Líbia e em outros países do Oriente Médio
não teriam ocorrido sem a força das mídias sociais. A inovação se
dá nas formas de relacionamento da população com o governo,
na sua capacidade de pressionar e exigir mudanças e também de
organizar rebeliões. Ele ressalta que nestas revoluções as pessoas
criam uma narrativa inteiramente nova do conflito.
Se na dimensão conhecida da mídia tradicional, o entendi-
mento sempre foi de distribuição a partir de um centro, o novo
cenário se encaminha na direção do compartilhamento, na me-
dida em que muitos são autores. Chega-se, em certa medida, ao
ponto descrito por Chartier (1998) para quem, neste mundo, um
produtor de texto pode ser imediatamente o editor, no sentido
daquele que dá forma ao texto e daquele que o difunde diante de
um público de leitores. Na rede eletrônica esta difusão é imediata.
Chartier (1998, p.117) descreve esta transformação a partir
Em Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 103-117, jul./dez. 2011.
4 As Estratégias do cérebro
Em Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 103-117, jul./dez. 2011.
108
se acumulam e que resultam em camadas históricas que agora
podem ser reveladas. Esta revelação, porém, emerge de forma
desordenada, não-linear e encontra sujeitos muitas vezes surpre-
endidos pelas suas próprias memórias e narrativas que, desejem
eles ou não, invadirão o seu cotidiano.
Na medicina, conforme Izquierdo (2002), os estudos apon-
tam que os mecanismos da memória se saturam. É necessário
esquecer ou pelo menos manter longe da evocação muitas memó-
rias. Izquierdo (2006, p.1) aponta que há várias formas de esque-
cimento, como a extinção, a repressão, popularizada por Freud.
Existem memórias que não ultrapassam poucos segundos, e ficam
na memória de trabalho. Outras não ultrapassam a memória de
curta duração (e não ficam na memória de longa duração). Outras
memórias duram poucos dias e depois desaparecem. Por último:
há o esquecimento real: memórias que desaparecem por falta de
uso, com atrofia sináptica.
110
das raízes pelo conhecimento pessoal da história. E mais, por
meio da história política e social ensinada nas escolas, as crianças
são levadas a compreender e a aceitar o modo pelo qual o sistema
político e social sob o qual vivem acabou sendo como é e de que
modo e a força e o conflito têm desempenhado e continuam a
desempenhar um papel nessa evolução.
Thompson (1998) fala de uma técnica de investigação.
Técnica essa que possibilita as revelações guardadas na memória
dos cidadãos comuns. Guardadas as proporções, as narrativas e
a construção da memória por intermédio das redes sociais pro-
porcionam na mesma medida, mas por metodologia diferente,
a reconstrução da história por intermédio das falas de qualquer
um que tenha acesso a uma tecnologia para compartilhar a sua
narrativa e deixá-la para que outro venha a acessá-la. É um re-
positório em desordem, capaz de ser acionado por mecanismos
de busca. A narração da história passa a ser a soma de todos esses
conteúdos depositados por anônimos que podem compartilhar
suas memórias ou percepções presentes.
Ong (1998, p.17) indica que ver a linguagem como um
fenômeno oral parece ser inevitável e óbvio. Os seres humanos,
afirma, comunicam-se de inúmeras maneiras, fazendo uso de
todos os seus sentidos: tato, paladar, olfato e especialmente visão,
assim como audição. Para ele, o som articulado tem valor capital
e a oralidade básica da linguagem é constante. “Os seres, nas cul-
turas orais primárias, não afetadas por qualquer tipo de escrita,
aprendem muito, possuem e praticam uma grande sabedoria,
porém não estudam.” Eles aprendem pela prática, participando
de um tipo de retrospecção coletiva. Em sua obra, Ong eviden-
cia a preocupação permanente entre oralidade e cultura escrita
e como essas estratégias humanas, por assim dizer, resultam na
transmissão, retenção das informações e consequentemente no
registro e na memória. “A expressão oral pode existir – na maioria
das vezes existiu – sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem
a oralidade.” (ONG, 1998, p.16)
Em Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 103-117, jul./dez. 2011.
111
uma memória do texto, há memórias de imagens, há memórias
de narrativas, há memórias de dados.
Há uma variedade sem fim de diferentes tipos de coisas que podem
ser lembradas. E, na verdade, em níveis técnicos nos sitemas de
computador, eles se transformam em diferentes tipos de estrutura
de dados que explicitam muitas representações sociais e culturais.
Acho que o que temos visto tecnologicamente é o constante
enriquecimento dos tipos de memórias que se tornam culturais.
112
pelas sociedades orais, um espaço onde foi possível tomar
conhecimento de mensagens escritas por pessoas situadas a
milhares de quilômetros de distância, ou mortas há séculos, ou
ainda desde culturas e sociedades estrangeiras.
113
novos paradigmas de comunicação. Turkle (2006, p.290) também
aborda uma dimensão múltipla das possibilidades oferecidas pela
internet: o fato de as pessoas exercerem diferentes papéis.
As pessoas vêem e experimentam muitos aspectos delas mesmas,
estão em contato com essa multiplicidade de formas muito
poderosas. Nesse sentido, a vida online pega algo do cotidiano
e a leva para um “poder maior”. Todos temos uma experiência
diária de viver diferentes aspectos do eu: acordar como amante,
tomar café da manhã como uma mãe, e dirigir para o trabalho
como uma advogada.
7 Rememorando
Com o pensamento de Virilio, que denomina a memória
como um utensílio, evidenciamos o grau de complexidade das
investigações em torno do tema, conforme as hipóteses que
nortearam esta reflexão. Em seu momento inicial, apontavam
para o grau de complexidade que podem estar revestidas hoje
os estudos em torno da memória. Se anteriormente estudar a
memória significava estudar a história, seus registros e lembranças
de alguns sujeitos mais destacados em qualquer sociedade, hoje
investigar a memória é descascar algumas camadas históricas que
são escritas no tempo presente. É o tempo do novo constante, mas
também do eterno retorno. Inicialmente pensamos em memória
e sua relação com as bibliotecas, com o armazenamento de infor-
mações, retenção e registro. A humanidade talvez nunca tenha
imaginado que seria responsável, permanentemente, por escrever
suas memórias em um tempo presente que fica já organizado em
escala coletiva e planetária, mesmo que em um modelo não-linear.
Os indivíduos narram dos mais diferentes lugares onde quer
que estejam e acessam essas mesmas informações remotamente.
O que abastece é o mesmo que localiza e reabastece. Mesmo o
passado assume forma de novo e de tempo presente. Se começa-
mos aqui falando em paradoxos e esquecimento, concluímos que
a construção da memória coletiva, em um tempo de existência
em rede, energizada pelas tecnologias de comunicação e redes
sociais, é ainda mais universal sem ser totalizante. Assim como na
construção da memória pela história oral, muito mais vozes parti-
cipam da reconstrução da história e muito mais vozes auxiliam a
partir de suas reminiscências individuais. A história se reconstrói
quase na sua completude, já que pode iluminar muitas facetas.
Muito há para lembrar, atualizar e muito há para esquecer,
Em Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 103-117, jul./dez. 2011.
115
O mais importante é o caráter multifacetado e coletivo da
construção da memória, a retroalimentação permanente pelo
abastecimento do novo e do passado que chega associado a for-
matos novos. O passado assume importância capital, como forma
de confirmação do presente cada vez mais acelerado. Vivemos em
plena reconfiguração do tempo presente, por intermédio de uma
memória que nunca esteve tão viva e em permanente atualização.
Referências
116
FACEBOOK passa dos 500 milhões de usuários.
2010. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/
noticia/2010/07/facebook-passa-dos-500-milhoes-de-usuarios.
html. Acesso em: 10 fev.2011.
FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e
procedimentos. São Paulo: Humanitas, 2002.
IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: ArtMed, 2002.
IZQUIERDO, Iván; BEVILAQUA, Lia R. M.;
CAMMAROTA, Martín. A Arte de esquecer. Estudos
Avançados, São Paulo, v. 20, n. 58, p. 289-296, set./dez.
2006.
LEMOS, André. Mídia locativa e territórios informacionais.
In: SANTAELLA, Lúcia. ARANTES, Priscila (Org.). Estéticas
tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: Educ, 2008.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2006
MANOVICH, Lev. The Language of new media.
Cambridge: MIT Press, 2001.
MITCHELL, William. Diálogo com William J. Mitchelll.
Lugares, arquiteturas e memórias. In: CASALEGNO,
Federico. Memória cotidiana: comunidades e comunicação na
era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.
RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre:
Sulina, 2009. (Coleção Cibercultura). Disponível em: http://
www.redessociais.net Acesso em: 28 out. 2010.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas, SP:
Papirus, 1998.
TAPSCOTT, Don. A Revolução será tuitada. Amanhã:
gestão, economia, negócios. Porto Alegre, v. 24, n. 274, maio
2011. Entrevista com o escritor e consultor especializado em
inovação e estratégia corporativa.
THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1998.
TURKLE, Sherry. A memória na tela. In: CASALEGNO,
Federico. Memória cotidiana: comunidades e comunicação na
era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.
VIRILIO, Paul. Diálogo com Paul Virilio: o paradoxo da
memória do presente na era cibernética. In: CASALEGNO,
Federico. Memória cotidiana: comunidades e comunicação na
era das redes. Porto Alegre: Sulina, 2006.
Revistas
Amanhã. A revolução será tuitada. Entrevista com Don
Em Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 103-117, jul./dez. 2011.
117