Ética No Mundo Digital

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ÉTICA

Gisele Varani
Revisão técnica:

Wilian Junior Bonete


Graduado em História
Mestre em História Social

Marcia Paul Waquil


Assistente Social
Mestre e Doutora em Educação

E83 Ética [recurso eletrônico ] / Alessandro Lombardi


Crisostomo... et al.; [revisão técnica: Wilian Bonete,
Marcia Paul Waquil]. – Porto Alegre: SAGAH, 2018.

ISBN 978-85-9502-455-7

1. Serviço social. 2. Ética. I. Crisostomo, Alessandro


Lombardi.

CDU 177

Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin – CRB 10/2147


Ética no mundo digital
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Discutir sobre a ética na sociedade em rede.


„„ Analisar a questão ética nas redes sociais.
„„ Identificar o desafio ético relacionado ao acesso desigual à informação.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar a sociedade atual, na qual a famosa Era
do Conhecimento é tão explanada e debatida como unânime, mas, como
veremos, talvez não seja exatamente assim na realidade. Para isso, você
irá refletir sobre o mundo digital, a liberdade de interagir virtualmente
com os demais cidadãos do planeta e sobre as consequências dos atos,
ou a ausência delas, a partir de uma lógica de causalidade. Também irá
repensar seu comportamento ético em espaços de comunicação online,
vendo aplicativos de conexão a partir dos quais sua opinião, cultura e seus
conceitos ou “pré-conceitos” serão testados – assim, poderá rever a atitude
a tomar ou a que, como profissional da área social, deverá ter. Além disso,
você se aproximará de alguns conhecimentos sobre as desigualdades
ainda existentes no acesso à informação e seus desafios no ambiente real.

A ética e o mundo das redes sociais


“Tudo me é lícito (é permitido)”, mas nem tudo convém. “Tudo me é lícito”,
mas nem tudo edifica (1 Co 10: 23). Esta frase foi tirada da Bíblia, de modo
que podemos ter uma noção do quão antiga é a ideia sobre como tratar as
pessoas da comunidade, ou seja, a ética nas civilizações. Porém, mesmo que
se fale e debata, você acha que já temos um equilibrado convívio com nossos
iguais ou parece que cada vez mais nos distanciamos do que chamamos de
civilidade? Qual é a sua opinião sobre o assunto? Se você concorda com
a segunda alternativa, está pensando como a maioria dos brasileiros, que
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atestam, em pesquisas de opinião, que estão ocorrendo muitos conflitos entre


classes sociais diferentes, espaços de relacionamentos virtuais com excessiva
polarização de opiniões e constantes atritos por dificuldade em perceber as
diferenças que o outro tem – e até mesmo um despreparo para lidar com as
subjetividades ou verdades de cada um. Agora, vamos tentar compreender
a sociedade atual e o que significa o conceito de redes, redes sociais e redes
sociais digitais, mídias sociais e tudo o que envolve este universo virtual e o
que ele tem a ver com ética.

O homem é uma ilha?


Desde os primórdios dos tempos, o homem é um ser de relações. Ele se constrói
a partir do outro: inicialmente, seu quadro é familiar e, à medida que cresce,
seu círculo vai aumentando. Percebe-se que o outro estabelece nossa identidade
na relação de troca; por exemplo, nos reconhecemos mais velhos a partir do
olhar que outra pessoa dá e, assim, identificamos a passagem do tempo quando
somos chamados pelos apelidos de “Tio/Tia”, “Senhor/Senhora”, “Vó/Vô”,
e assim por diante. Embora isso já seja senso comum, a consciência dessa
atitude externa vai transformando nosso comportamento ao longo da vida e
esses gestos vão formando as interações humanas.
O formato dessas relações tem sofrido transformações em um processo
dinâmico e evolutivo. Nota-se que não estávamos preparados para experen-
ciar a velocidade das mudanças: parece que entramos num gigante carrossel
e, sem querer, ele disparou, fazendo com que tenhamos que olhar o mundo
ao redor muito espaçadamente, de maneira distante e rápida. Há cinquenta
anos, havia praticamente apenas o relacionamento presencial, as visitas eram
feitas indo na casa da pessoa amiga, os relacionamentos afetivos aconteciam
em atividade social ou no ambiente doméstico – tudo era pensado para rela-
cionamentos presenciais ( face to face). Foi inquestionável o papel da família,
na qual preponderavam os valores e princípios passados de pai para filho, o
patriarcado não era rebatido e todo o aprendizado vinha de ensinos advindos
da escola e religião de origem.
E como é hoje? Muito diferente: a juventude nascida nas décadas de
1990/2000 já teve acesso à internet e nem questiona se o contato virtual ou
presencial causa desconforto; para esses jovens, falar via Skype ou pessoal-
mente tem o mesmo valor de comunicação. Provavelmente, eles questionam
a necessidade de atender o telefonema da mãe ou de parentes mais velhos em
uma época em que já existem aplicativos de comunicação mais efetivos. Se
comportamentos simples como o falar ao telefone ou namorar sofreram tantas
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modificações, como é transitar pelas redes sociais digitais para pessoas mais
velhas e para as mais jovens? Como é conciliar esses pensamentos, valores e
atitudes num mesmo instrumento de comunicação virtual mundial?
Vivíamos, nas décadas anteriores, em uma zona de conforto em que as
verdades não eram tão questionadas nas famílias, as hierarquias eram segui-
das, em sua maioria, por obrigatoriedade parental, e quase não se debatiam
conceitos ou pensamentos entre os de seu sangue. Já não é o que acontece na
atualidade. Agora, tudo está quase que completamente mudado, vivemos em
um mundo em que crianças de quatro/cinco anos já decidem quais produtos
comercializados consumir pelo excessivo acesso às diversas mídias sociais,
como TV, propagandas e publicações via internet. É uma realidade à que elas
têm acesso mesmo sem critérios de compreensão por idade ou outra condição
de exclusão, situação pouco explanada ou criticada nos grupos familiares.
Todas essas mudanças ocorridas ao longo dos tempos pela humanidade foram
sendo estudadas, debatidas e trazidas à luz do conhecimento por filósofos,
pensadores e pessoas críticas do cotidiano.
Os gregos foram pioneiros na teorização sobre os costumes e valores da
civilização ocidental e, por isso, toda a definição foi pedagogicamente classi-
ficada conforme a cultura grega. Constituiu-se a terminologia ética, que faz
parte de uma das três grandes áreas da filosofia

Filosofia: do grego: philo+sophia. Philo deriva de philia, que significa amizade, amor
fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra
sophos, sábio.

A ética está presente no nosso cotidiano o tempo todo, seja nas decisões
familiares, políticas, ou no trabalho, por exemplo – é um valor importante na
formação de caráter do ser humano. A ética é o estudo geral do que é bom ou
mau, correto ou incorreto, justo ou injusto, adequado ou inadequado (GLOCK;
GOLDIM, 2003). É, também, compreendida como um conjunto de valores e
princípios que norteiam a reflexão e a tomada de decisão sobre a ação.
Mas como saber o que é bom ou mau nesta sociedade em constante modi-
ficação? A que valores, conceitos e princípios estamos sendo expostos todos
os dias e como julgá-los procedentes para as nossas vidas? Ferreira (2011) traz
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o conceito do sociólogo Zygmunt Bauman (LINS, 2016) de “mundo fluido”,


um mundo atual caracterizado pela complexidade, sem divisões ou fronteiras,
mundo líquido, destituído de formas, sem a certeza, solidez, verdade absoluta
e concretude dos tempos anteriores. Agora, vivemos o

[...] dinamismo da relação entre as partes, sistemas abertos, imprevisibilidade,


não linearidade, auto-organização, adaptabilidade, criatividade, instabilidade,
emergência, incerteza, conectividade e fluxo [...] (FERREIRA, 2011, p. 208).

Essas marcas da contemporaneidade fazem sobressair a era da informação


e do conhecimento, na qual as redes emergem como elementos catalisadores
da realidade.

Afinal, o que são redes sociais?


A partir desse conceito da não linearidade em que vivemos, parece que a
definição de rede é algo novo, construído para esses tempos atuais, mas não
é bem assim. Hipócrates, considerado o pai da medicina, já trazia o conceito
de rede ao perceber, em seus estudos humanos, como era o circuito das veias e
artérias, no qual todas criavam emaranhados semelhantes a uma rede de pesca.
Embora fosse um início de pensamento intracorporal, já trazia o princípio da
relação da rede. Após isso, matemáticos utilizaram o mesmo processo para
decodificar problemas práticos de arquitetura nas vilas, assim como engenhei-
ros também criaram conceitos a partir das redes, entre outros. Na sociologia,
o termo também é trazido e é acrescido da palavra “social” para designar o
humano da relação. A partir dessa noção de rede, foram elaborados diversos
conceitos de redes sociais, um deles como:

[...] uma estrutura social composta por indivíduos, organizações, associa-


ções, empresas ou outras entidades sociais, designadas por atores, que estão
conectadas por um ou vários tipos de relações que podem ser de amizade,
familiares, comerciais, sexuais etc. (FERREIRA, 2011, p. 213).

Com isso, todos que participariam dessa teia desencadeariam movimentos e


fluxos nos quais partilhariam crenças, poder, conhecimentos, informações, etc.
Embora isso se configure como uma malha de relações sociais, ainda não
se está falando das redes digitais. Até a concepção da rede mundial de acesso
digital, no início da década de 1980 nos Estados Unidos e a partir da década
de 1990 no Brasil, as interações aconteciam de forma diferente da atual,
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mas eram eficazes, ou seja, o objetivo primordial de estabelecer conexões e


firmar relacionamentos já era feito independentemente da era digital. O que
se modificou foi a ferramenta de acesso e, com isso, foram abertos novos
horizontes, o mundo perdeu fronteiras e se tornou fluído, como dizia Bauman
(LINS, 2016). O planeta virou uma grande aldeia e as conexões não pararam de
acontecer, desde as relacionais até as mercadológicas, científicas, entre outras.
O conceito de globalização foi sendo construído e, hoje, é muito praticado no
modo de produção capitalista.
A partir do início desse século, a terminologia de redes sociais foi associada
ao conceito das interações feitas pelas ferramentas da Tecnologia da Informação
(TI). Os chamados aplicativos de relacionamento (networking social) eram
instrumentos particulares de alguma rede social ou comunidade mediados
por computadores (mídia social) e tinham como objetivo criar novas tramas e
teias independentemente da tecnologia. É claro que a melhoria nos processos
tecnológicos potencializa e evidencia os relacionamentos, sobretudo nos locais
em que há certa dificuldade de contato físico ou relação mais próxima, como
espaços pouco habitados da terra ou aqueles de difícil acesso. Embora o termo
utilizado seja somente na forma “redes sociais”, sabe-se que estamos falando
de redes sociais digitais, nas quais o computador e a internet são ferramentas
de conexão entre comunidades e pessoas.

Para entender melhor sobre rede e as transformações


sociais, conheça o sociólogo Manuel Castells. Acesse
o link ou o código a seguir.

https://goo.gl/RLaUfU

A questão ética nas redes sociais


Nosso foco, aqui, será na ética nas redes sociais digitais, pois é essa a que está
suscitando mais dilemas e questões para debate. As redes sociais presenciais
têm sido muito utilizadas, o que fez com que surgissem alguns desvios; por isso,
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a legislação existente está tentando dar conta de normatizar as relações virtuais.


Esse novo universo, chamado também de ciberespaço, apresenta um mundo
de novidades, em que todos somos parte, influenciadores e influenciados.
Como o tema é bastante relevante, comecemos por uma pergunta: você já
pensou sobre o quanto é mais informado do que seus familiares mais velhos?
Ao mesmo tempo, pode se questionar: a quantidade de informações obtidas
tão facilmente fez de você um ser mais inteligente ou moralmente melhor?
Nem todos param para pensar sobre o tema e talvez você nem questione a
dependência e total necessidade com as quais vivemos atualmente em relação
às Tecnologias da Informação. Deixar um smartphone em casa significa, hoje,
não ter agenda, e-mail, câmera fotográfica, rádio, filmes e séries, além, é claro,
do telefone. Toda essa dependência é fruto da modernização das ferramentas
e, assim, da individualização das informações e dos conhecimentos, pois não
dependemos mais de nossa família, comunidade escolar e demais pessoas
para obtermos dados sobre qualquer assunto e em qualquer idioma. Talvez
para você seja óbvio, mas essa possibilidade é muito recente: pessoas nascidas
nas décadas de 1960 e 1970 não tiveram os mesmos recursos que existem
atualmente e a lógica do conhecimento era outra.
Você pode estar se perguntando sobre o que isso tem a ver com a ética,
sobre como isso impacta a sociedade. Nem sempre temos resposta para tudo,
mas vamos fazer um giro por esse assunto, a partir do seu princípio. Quando
falamos em internet, rede social digital, gerações de computadores, ciberes-
paço (MONTEIRO, 2007) devemos lembrar que, antes disso, ocorreu uma
revolução das novas tecnologias: milhares de pessoas perderam seus postos de
trabalho quando iniciou a chamada “Terceira Revolução Industrial”, na qual o
modo de produção foi sendo automatizado e, com isso, as técnicas de trabalho
foram progredindo. Com esse processo em constante evolução, o advento do
computador trouxe ainda mais rapidez e, na década de 1990, a internet chegou
aos lares brasileiros, provocando verdadeiro tumulto no modus operandi dos
lares tradicionais de então. Essa onda gigantesca de sucessivas conexões só
aumentou e trouxe ainda mais individualidade, autonomia e facilidade aos
usuários da rede digital.
O que parecia uma esperança de um mundo feliz, moralizado e próspero
com a informação ao toque de dedos não se confirmou, e não é exatamente
isso que tem ocorrido em nossa sociedade. Temos visto exemplos de quebra de
privacidade, abuso de autoridade, mercantilismo e exposição dos públicos que
acessam as redes de comunicação, o que faz com que uma nova dúvida abra
espaço: a comunidade usuária tem se perguntado sobre a legitimidade das leis
já existentes e se essas conseguem dar conta das demandas do meio virtual.
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Talvez você já tenha ouvido falar de alguém que teve seu cartão de crédito
clonado, alguma fraude bancária ou então os seus dados privados expostos
na rede sem sua aprovação. Tudo isso não era visto há 30 anos, quando as
atividades ilegais dependiam da presença da pessoa para acontecer. A partir
do momento em que começam a ocorrer ações que fogem à nossa vontade e as
mesmas são praticadas em ambiente virtual, surgem novas formas de reação,
e isso tem sido bastante debatido na sociedade do conhecimento.
Chauí (2000) define que duas coisas são indispensáveis na vida ética:
consciência e responsabilidade. Para ela, ser um sujeito ético depende da
capacidade de refletir e reconhecer o outro como um ser igual, em que seus
desejos e impulsos não ultrapassam a sua individualidade, controlando e
orientando sentimentos, alternativas de vida, escolhas e, assim, admitindo as
consequências de suas atitudes, tomando as rédeas de sua conduta.
Essa assertiva parece não fazer eco no ambiente virtual, pois o usuário da
internet tem dificuldade de compreender que, embora se trate de um lugar
não presencial, deve sofrer as mesmas regras do presencial. Muitas vezes,
esse ambiente é tratado como se fosse uma “terra de ninguém”, onde se pode
fazer o que der vontade, mesmo que conflite com a privacidade e autonomia
do outro. O indiscriminado fornecimento de dados pessoais para as redes de
comunicação digital ou para empresas digitais em que o usuário está conec-
tado não tem protegido a privacidade das pessoas, fazendo com que surjam
diversas questões de natureza ética, o que foge do conceito de harmonia e
equilíbrio na grande rede mundial de computadores conectados (FUGAZZA;
SALDANHA, 2017).

Legislação que ampara o usuário conectado na Web


Os inúmeros conflitos éticos que os comportamentos têm gerado na socie-
dade ocidental provocara debates legislativos e da comunidade virtual. Com
isso, estão sendo utilizadas as legislações já existentes e têm surgido novas,
específicas para o tema do uso da informática na internet ou do mau uso dos
dados privados.
A mais expressiva garantia da proteção da privacidade dos cidadãos foi
construída na Declaração Universal dos Direitos das Nações Unidas, espe-
cialmente no artigo 19, que informa que:

[...] toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e
transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de
fronteiras [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009).
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O brasileiro, nesse sentido, conta com a Constituição de 1988, artigo 5º,


inciso X, que determina serem “[...] invioláveis a intimidade, a vida privada,
a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação [...]” (BRASIL, 1988); e,
no inciso XII do mesmo artigo, que:

[...] é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas,


de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
criminal ou instrução processual penal [...] (BRASIL, 1988).

Em abril de 2013, entrou em vigor a primeira lei brasileira específica para


o ambiente virtual, a Lei nº 12.737/2012, com o apelido de “Lei Carolina
Dieckmann”, que modifica o Código Penal para tipificar como infrações uma
série de condutas no ambiente digital, em especial o vazamento dos dados.
Outra conquista da legislação demarcatória do ambiente virtual no Brasil
foi conquistada em 2014, considerada uma das melhores legislações sobre o
tema da Internet e denominada Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/2014,
que garante, em seu artigo 3º, incisos II e III, respectivamente, a “proteção à
privacidade” e a “proteção aos dados pessoais”.

Assista o vídeo de Leandro Karnal sobre a solidão nas redes sociais no link a seguir.

https://goo.gl/AMh1NN

Além disso, você pode se informar sobre o que são os crimes cibernéticos e como
se precaver. A reportagem do site Brasil Econômico, disponível no link a seguir, dá
algumas dicas.

https://goo.gl/fBSnxc

O acesso desigual à informação – desafios éticos


A grande conquista humana da contemporaneidade que é o acesso ao co-
nhecimento e às informações via conexão formada pela rede mundial de
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computadores não é tão democrática nem liberada como alguns representantes


mundiais querem fazer crer. O fato de algumas regiões do mundo ainda não
proporcionarem aos seus habitantes o acesso traz à tona o fato de que as
questões político-econômicas caminham juntas com as sociais, e isso reflete
na desigualdade aos mecanismos de informação existentes nas comunidades
mais ricas.
Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou um rela-
tório denominado Revolução de Dados para o Desenvolvimento Sustentável,
criado por um Grupo Consultivo de Especialistas Independentes, que destacou
a invisibilidade de alguns temas e a desigualdade do acesso à informação
como os dois grandes desafios globais. O Grupo destacava propostas para
tentar erradicar essas lacunas, tais como: incentivo à inovação; a mobilização
de recursos para superar as desigualdades entre países desenvolvidos/em
desenvolvimento e entre ricos e pobres; a coordenação necessária para que a
revolução de dados realize a concretização do desenvolvimento sustentável
aos povos vulneráveis.
No final de 2017, a ONU, por meio da UNICEF, seu braço para a infância e
juventude, publica o estudo The State of the World’s Children 2017: Children in
a digital world, no qual se demonstra como a tecnologia digital está afetando
a vida das crianças e dos jovens no mundo, identificando as oportunidades de
vida e os perigos que a rede mundial apresenta. Os benefícios que poderiam
oferecer às crianças mais vulneráveis, aquelas que crescem na pobreza ou
são afetadas por emergências humanitárias, seria a possibilidade de melhoria
do conhecimento, habilidades para o trabalho digital, a sua conexão e a co-
municação de seus pontos de vista. Por outro lado, a realidade é muito cruel,
pois praticamente um terço da juventude mundial – 346 milhões – não está
online, exacerbando as desigualdades e reduzindo a capacidade das crianças de
participar em uma economia cada vez mais digital. Além disso, não é somente
a impossibilidade de participar que é negativa: percebeu-se a ausência de
supervisão dos responsáveis, o que torna mais perigosa a participação online.
Também se viu, por meio do relatório, como o uso da internet amplifica a
vulnerabilidade de jovens e crianças, que têm perdas em sua privacidade, mau
uso das informações, recebem informações advindas de conteúdos prejudiciais
a um crescimento saudável e um exacerbado ciberbullying (que são práticas
de agressão moral organizadas por grupos, contra uma determinada pessoa, e
alimentadas via internet) (TODA MATÉRIA, c2018). Se tudo isso já não fosse
muito ruim para a infância já prejudicada, há redes digitais que exploram e
abusam, tais como a Dark Web e as criptografias, que possibilitam o tráfico
e o abuso sexual infantil “feito sob encomenda” (UNICEF, 2017).
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A reprodução digital das desigualdades


Uma pesquisa do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia, Projeto do
Observatório das Metrópoles, analisou, por meio da Pesquisa Nacional por
Amostras de Domicílio (PNAD) do IBGE (2014), o acesso aos computadores
e à internet nos anos de 2000 a 2009 nas regiões metropolitanas do Brasil. Na
análise dos dados, verificou-se a influência das questões de desigualdades de
renda, de educação dos entrevistados e do espaço de moradia no momento
da ascensão, ou não, dos resultados. Os grupos menos abastados ainda têm
grande dificuldade na compra de microcomputadores em domicílio: no período
estudado, 54% dos domicílios não tinham computadores, ou seja, mais do que
a conexão na web em si, muitos brasileiros ainda não têm poder de compra
para a máquina.
Além disso, verificou-se que o acesso é estratificado, depende da quanti-
dade de anos de estudo, renda, classe e local de moradia. As desigualdades de
acesso e capacidade de usos das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs) reproduzem a problemática socioeconômica em que as desigualdades
de oportunidades, as condições de moradia, as dificuldades no acesso ao
mercado de trabalho digno se somam aos dados das dificuldades no uso das
tecnologias digitais (RIBEIRO, et al., 2011).
De acordo com a 12ª edição da pesquisa TIC Domicílios, divulgada em
setembro de 2017 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por
meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade
da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto
BR (NIC.br), 36,7 milhões de domicílios, ou seja, 54% do total brasileiro,
têm acesso à internet. No entanto, essa parcela é desigual, já que depende da
esfera social à qual o indivíduo pertence. A proporcionalidade dos acessos
continua estratificada por classe social, área e região em que se vive, isto é,
pelas condições de vida. Para as classes mais ricas, é uma realidade o acesso
à internet (a classe A tem 98% dos lares com internet e a B, 91%); na classe C,
60% dos domicílios têm internet e na D/E, apenas 23%. A alteração:

[...] atinge também as regiões. No Nordeste, 40% dos domicílios (ou 7,2 mi-
lhões) estão conectados, bem abaixo do Sudeste, que segue com a maior pro-
porção (64% ou 18,8 milhões) de lares conectados, seguido do Centro-Oeste
(56% ou 2,9 milhões) e do Sul (52% ou 5,4 milhões). No Norte, são 46% (ou
2,4 milhões de domicílios) [...] (PRESCOTT, 2017).
Ética no mundo digital 11

A internet, no Brasil, continua restrita a uma faixa abastada da população


ou a espaços públicos mantidos por prefeituras ou microempresas, como os
telecentros e as lan houses, o que continua gerando uma exclusão digital de
determinados cidadãos de menor renda socioeconômica (Figura 1).

Figura 1. A charge explicita a realidade de muitos brasileiros no que diz respeito à exclusão
digital.
Fonte: Matiuzzi (2011).

1 CARTA AOS CORÍNTIOS, cap. 10, vers. 23. In: BÍBLIA ONLINE. [S.l.: s.n., 2018]. Disponível
em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/10/23>. Acesso em: 25 fev. 2018.
BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal
de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 -
Código Penal; e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2012.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.
htm>. Acesso em: 25 fev. 2018.
12 Ética no mundo digital

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos


e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília: Presidência da República, 2014.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.
htm>. Acesso em: 25 fev. 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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Ética no mundo digital 13

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Desigualdade no acesso à informação continua


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Acesso em: 14 dez. 2017.
TODA MATÉRIA. Cyberbullying. [S.l.]: Toda Matéria, 2017. Disponível em: <https://www.
todamateria.com.br/cyberbullying>. Acesso em: 27 dez. 2017.
UNICEF. The state of the world’s children 2017: children in a digital world. [S.l.]: UNICEF,
2017. Disponível em: <https://www.unicef.org/publications/index_101992.html>.
Acesso em: 16 dez. 2017.

Leitura recomendada
RIBEIRO, L. C. Q. et al. Desigualdades digitais: acesso e uso da internet, posição so-
cioeconómica e segmentação espacial nas metrópoles brasileiras. Análise Social,
Lisboa, n. 207, p. 288-320, abr. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0003-25732013000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso
em: 16 dez. 2017.

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