O Doido e A Morte Por Raul Brandão

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“O Doido e a Morte” por Raul Brandão

• Personagens da obra e caracterização:

- Sr. Milhões: Homem consciente da realidade e da condição humana

- Governador Civil: Homem inconsciente e preocupado com o estatuto social e o talento

- Mulher: Demonstra a emancipação da mulher


- Nunes, enfermeiros, policias

• A problemática existencial em “O Doido e a Morte”

“O Doido e a Morte” é uma obra-prima do nosso teatro e do teatro da literatura pelo


problema existencial, pela conceção e pelo clima tenso de lirismo.
Sofre então um confronto com Strindberg, Maeterlinck, Tchekov, Pirandello e
Fernando Pessoa sem se ver apoucada.
Esta farsa apresenta-se em tons contrastantes de grande intensidade e distorção.
Ligado ao expressionismo e pela expectativa inquietante e emocional com o teatro
simbólico- até porque as personagens - apesar de alguns traços de realismo verosimilhante-
são símbolos da inconsciência alienada e vulgar de viver - que têm relutância, mesmo
perante a morte, em encarar a verdade. E toda peça se processa em contrastes.
Centralmente entre a vida inútil, sem consciência cívica nem humana do governador
civil e a consciência do Doido sobre a condição humano.
Existente um contraste entre a mentira das máscaras sociais no cumprimento do
dever, no amor e no dia a dia- e a verdade lúcida do Doido.
Contraste ainda entre o discurso titubeante, realista, racional do governador civil e o
caudal lírico do Doido na primeira parte até ao clímax e depois na segunda entre a
desagregação caótico da máscara do governador civil e a inexorabilidade do destino,
cortante, assumida pelo Doido.

• Estrutura interna:

- A exposição da peça começa quando o Governador Civil está sentado à secretária,


e diz para Nunes que não quer qualquer tipo de visita e declara que não está disposto a
atender ninguém, até que aparece o Sr. Milhões. ("homem importante e severo, de grandes
suíças cuidadas e lunetas de aro de oiro.").

- Todo o conflito na peça de teatro tem origem quando o Sr. Milhões apresenta para
o Governador Civil um aparente negócio ou projeto importante, até que o Governador Civil
dá um pontapé na caixa e o Sr. Milhões refere que dentro da caixa está um negócio muito
grave, foi então que revelou que estava uma bomba dentro da caixa. (" O maior crime de
todas as épocas, a suprema tragédia de todos os tempos! Vamos estoirar dentro de vinte
minutos." ... " O que o senhor vê aqui nesta caixa é o mais formidável de todos os explosivos
SO3-HO4, cem vezes mais poderoso que a dinamite, o algodão-pólvora, e o fulminato de
mercúrio. Basta carregar nesta campainha para irmos todos pelos ares, eu, o senhor, o
prédio, o bairro, a capital.SO3-HO4." ..."O peróxido de azote".).
Assim que o Governador se apercebe do que está no interior da caixa entra em pânico, o
senhor Governador começa por chamar Nunes para lhe dar auxílio, para lhe salvar, mas
Nunes acaba por não aparecer. No entanto, o Governador começa por falar com o Sr.
Milhões de maneira que se pudesse safar desta situação ao tentar demonstrar as
consequências que o explosivo poderia ter, mas o Sr. Milhões acaba por não mudar de
ideias.

- O desenlace da peça ocorre quando se ouve um barulho no exterior. O Sr. Milhões faz
retinir a campainha e o Governador Civil cai na cadeira com gestos desordenados, depois
entram dois enfermeiros de casaco branco e resguardo e um deles acabo por destapar a
caixa e, por fim, descobrem que era apenas algodão em rama.

• Evolução da relação entre as personagens:

- Durante toda a peça de teatro, especialmente no conflito, podemos nitidamente reparar


que existe uma evolução da relação entre as personagens. O Governador Civil que
supostamente tinha Nunes sempre a seu dispor, acabou por não ter o seu auxílio quando
necessitara, no mundo em que soube do que estava no interior da caixa. Ao longo do diálogo
que o Governador tem com o Sr. Milhões, o Governador telefona para a sua mulher, D. Ana
de Baltazar Moscovo, para lhe fazer as suas últimas disposições. Quando D. Ana de Baltazar
Moscovo entrara no escritório e soubera do que estava no interior da caixa, quis de imediato
sair do prédio, fugir sem se preocupar com Governador Civil. Podemos reparar que após
todo este acontecimento o Governador toma consciência que Ana não gostava tanto dele
como ele pensava, pois Ana dissera anteriormente ao Governador que quando ele morresse,
ela morreria ao seu lado. Ana utiliza uma desculpa que não é segundo a sua religião morrer
queimada e sai do prédio. (" Adeus! Morrer queimada, não! (À porta, como quem lhe atira
pazadas de terra). Morre em paz! Descansa em paz! Jaz em paz!
O Sr. Milhões tenta levar o Governador á razão, dizendo que a sua mulher o engana. Ao
longo da peça, o Governador fica cada vez mais impaciente e á medida que o tempo vai
passando deixa de tentar fazer com que o Sr. Milhões mude de ideias, mas começa a ficar
furioso e a tentar enganado para puder fugir. ("Maldito sejas tu por toda a eternidade. Tenho
medo! tenho medo! Espere! é um pecado morrer com desespero. Dói-me a barriga.... Peço
licença para ir lá fora fazer o que tenho a fazer.").
E por fim, quando realmente descobre que tudo o que o Sr. Milhões dizia era uma farsa,
acaba por insultá-lo.
• Presença do cómico de situação:

- A peça de teatro "O Doido e a Morte" tem presente diversas situações cómicas que dão
vida a cada acontecimento. No início da peça podemos observar logo a mudança cómica de
atitude do Governador Civil, que começa por avisar a Nunes que não queria receber ninguém
e, no entanto, assim que o Sr. Milhões entra no escritório do Governador Civil muda logo de
ideias e de humor só pelo facto do Sr. Milhões ser um homem rico e de grande importância.
(" O Sr. Milhões? que entre... que vida esta! que país este! Exatamente no momento
psicológico, no momento e, que retomava. Nunes! Ai do Lusíada coitado... Isto não é um
país, é uma selva onde os homens de génio têm de ser ao mesmo tempo governadores
civis. O Sr. Milhões. Diz-lhe que entre, diz-lhe depressa que entre. É o próprio ministro que
recomenda o homem mais rico de Portugal."). Logo em seguida, quando o Sr. Milhões coloca
a caixa no chão, o Governador dá um pontapé e o Sr. Milhões repreende-o de imediato! O
Governador não fazia ideia do que poderia estar dentro da caixa!
Quando o Governador sabe que o explosivo está dentro da caixa, começa por chamar
Nunes bastante aflito, o que acaba por ser um momento cómico. (" Temos muito tempo. Ó
Nunes!").
Quando Ana Baltazar Moscovo sabe que um explosivo poderoso está no escritório, fica
constantemente a perguntar quanto tempo demora até o explosivo arrebentar, sem querer
dar muita importância ao facto do marido estar perante aquela situação! Entretanto, a
situação mais cómica é sem dúvida no final, quando o Governador descobre que afinal não
estava um explosivo na caixa, mas apena algodão em rama. O Governador Civil acaba por
insultar o Sr. Milhões insultando-lhe e utilizando uma expressão inapropriada. ("Ai o grande
filho da ****").

➢ Raul Brandão- Biografia

«Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me
arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno,
embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem
espanto, e acabo desconhecendo a vida, titubiando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho
tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.»

Com estas palavras escritas em janeiro de 1918 para o prefácio do 1.º volume das
suas Memórias, Raúl Brandão autodefine-se magistralmente.
Raúl Germano Brandão nasceu na Foz do Douro, a 12 de março de 1867, e morreu em
Lisboa a 5 de dezembro de 1930. Foi, portanto, contemporâneo de António Nobre, de Camilo
Pessanha, de Mendes dos Remédios, do músico e maestro Francisco Lacerda — o que quer
dizer que o devemos considerar pertencente à Geração de 90, que assumiu uma reação
idealista e antipositivista, na qual se radicam o Simbolismo e o Impressionismo.
É ainda um período agitado para Portugal: O Ultimato, o Regicídio, a Revolução
Republicana. E um período complicado para o mundo também: a 1.ª Guerra Mundial, a
atmosfera de profundo sentimento de decadência do Homem, de fuga para a Arte ou para o
Anarquismo, um período de um humanitarismo universalista e compassivo de Tolstoi, de
conflitualidade profunda como o documenta Dostoievsky, de compaixão e apelo para a
condição dos pobres e desgraçados à maneira de Gorki. O próprio Raúl Brandão escreveu
sobre este tempo:
«Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica de novo
predomina e a asa do Sonho outra vez toca os espíritos deixando-os alheados e absortos.
A necessidade do desconhecido de novo se estabelece.»
E acrescenta:
«De tudo isto, da fadiga produzida pelo exaspero crescente da luta pela vida devem nascer
criaturas singulares, aberrações extraordinárias, curiosos cérebros cheios de sonho, nervos,
capazes de sentir o que por ora é do domínio do sonho.»
Entre todas estas confluências finisseculares, Raúl Brandão, emotivo, de uma sensibilidade
quase exagerada, contemplativo, sem grandes apetências para a erudição nem para uma
vida de glórias sociais, é um exemplo muito pessoal na Literatura Portuguesa, abrindo sem
o saber, caminhos diversos para a prosa moderna. Brandão, no trânsito do século XIX para
o século XX está, afinal, como o disse Vergílio Ferreira «no limiar de um mundo».
A infância e a adolescência têm uma grande influência no homem, por impregnação, das
primeiras experiências e embates da vida. A luz dourada e o azul do céu da Foz do Douro
ficaram-lhe para sempre. A vida dos pescadores, de quem é descendente, deu-lhe um
paradigma existencial de disponibilidade para o risco, de trágica aceitação do Destino e da
Morte. Os Pescadores, de 1923, têm uma dedicatória:
«à memória do meu avô, morto no mar».
A escola não foi um encontro lúdico para Raúl Brandão. O mundo «atroz e brutal» —
palavras suas — com que se depara no Colégio de São Carlos no alto da Rua de Fernando
Tomás marcou-o negativamente com medo aos castigos. Esta experiência dura foi talvez o
primeiro estímulo para o sonho, a evasão, a quimera interior, que ele tanto valoriza.
Terminado o Liceu matricula-se no Curso Superior de Letras, onde convive com Sampaio
Bruno, Joaquim de Araújo e Basílio Teles, sem esquecer os seus amigos de adolescência:
António Nobre e Justino Montalvão. A influência do grupo portuense de boémios nefelibatas,
entusiasta do simbolismo decadente, notar-se-ia em História de Um Palhaço, de 1896.
Porém, o primeiro livro de Raúl Brandão surge em 1890: Impressões e Paisagens. Trata-se
de um conjunto de escritos de índole realista e que não condizem nem com o que já escrevia
de mais «avançado» em Portugal nem com a sensibilidade de Raúl Brandão. Também com
pouco significado são Vida de Santos e os Nefelibatas, que assinou com o pseudónimo de
Luís de Borja. Em 1891, talvez por pressão familiar, talvez por sustento, Raúl Brandão troca
o curso de Letras pela Escola do Exército. Tinha 24 anos. Viria a ser, sem convicção e com
horror à férrea disciplina da caserna, um militar de carreira, reformando-se em 1911, aos 44
anos.
«O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior.»
Escreveria ele em Vale de Josafat — publicado postumamente.
Conheceu Maria Angelina, sua mulher e companheira dedicada até à morte, em Guimarães,
onde foi colocado aquando da sua promoção a alferes. Maria Angelina e Raúl Brandão
constituem um par exemplar e ambos deixaram testemunhos memorialísticos desse raro
caso de entendimento e dedicação. Leia-se, por exemplo, o texto «O Silêncio e o Lume», de
Raúl Brandão, publicado em Memórias, e Um Coração e Uma Vontade, um volume em que
ela o evoca.
Depois de aceitar uma colocação no Porto, Raúl Brandão vai para Lisboa interessado em
aceitar colaborações em jornais. Raúl Brandão, com a sua sensibilidade ao mundo e ao meio
que o rodeava tinha de facto vocação jornalística. Colaborou com várias publicações: O
Século, O Dia, Gente Lusa, Seara Nova entre tantas outras. Conviveu com Columbano
Bordalo Pinheiro que lhe pintou dois quadros. Ele próprio dedicou-se à pintura como amador
e dessa sensibilidade dá conta em obras como Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas.
Repare-se neste verdadeiro quadro impressionista do amanhecer, da luz que vai romper,
retirado das páginas de Os Pescadores:
«É da terra que vem a luz. Um livor indeciso e depois um chuveiro. […] farrapos e névoas
esparsas que flutuam, sobem, deixam-se cair em véus moles sobre as águas. Escondem o
mar […]. Uma vaga, uma ondulação verde, outra ainda…. Mais névoa… Luz… um grande
farrapo desgrenhado.»
O amor de Raúl Brandão à Natureza e às árvores — para ele o verdadeiro paradigma do
mistério da vida — levava-o a permanecer todas as vindimas nos arredores de Guimarães,
onde construiu a célebre «Casa do Alto», no lugar da Nespereira.
Em 1906 Raúl Brandão viajou pelo Norte de África e por várias cidades europeias. Esteve
na Itália, na Suíça, visitou Paris e Londres, sem praticamente deixar vestígios na sua obra.
Fez também uma viagem à Madeira e aos Açores, em 1924, e daí resultou o livro As Ilhas
Desconhecidas.
Raúl Brandão publicou contos, livros de viagens, peças de teatro, memórias e estudos
históricos. Entre as suas obras avultam títulos como: Os Pobres, Húmus, Memórias em três
volumes, Os Pescadores, O Pobre de Pedir, e as peças de teatro O Gebo e a Sombra e O
Doido e a Morte. Muitas obras seriam dignas de menção, como A Farsa, El-Rei Junot, A
Conspiração de Gomes Freire, O Rei Imaginário, O Avejão ou As Ilhas Desconhecidas.
Aliás, na obra de Raúl Brandão podemos distinguir duas facetas. Uma é a do escritor de
viagens e paisagens, da luz e da cor, do azul que predomina e que Raúl Brandão ama acima
de todas as cores.
«Este azul que nos envolve e penetra e que desaba em correntes»
A outra faceta é a dos desgraçados, dos pobres, dos que sofrem, do mundo da Dor, da
natureza humana, do sonho — ideia fundamental em toda a obra brandoniana.
Note-se, aliás, as várias gradações do conceito de sonho na obra de Brandão: Em História
de um Palhaço o sonho é «a quimera de artista frustrado»; n’A Farsa «é a vontade de poder
de uma alma rudimentar»; n’Os Pobres é «a evasão dos humildes» e em Húmus o sonho é
«a beleza pressentida».
Este enigmático Húmus, espécie de diário escrito ao longo de um ano, é muito
provavelmente a obra prima de Raúl Brandão. Nela há que assinalar as influências não só
do autor dos Irmãos Karamazov como de Kafka, de Camus e de Sartre. Esta é também a
obra na qual Brandão mais carrega com o peso do espanto.
Para finalizar o programa de hoje podemos dizer que tanto o autor de Os Pobres, como de A
Farsa, com a sua capacidade de se emocionar com os desgraçados e com a ambição
recalcada que alimenta a sua luta da vida – o Sonho – como o autor de Húmus ou o
historiador «caótico» e impressionista de El-Rei Junot e da Conspiração de Gomes Freire,
ou ainda o escritor-pintor d’Os Pescadores e d’As Ilhas Desconhecidas são um documento
humano de alta vibratilidade emocional, de arrebatamento, de extática contemplação do
mundo, da vida e da cor. Só a emoção pode levar alguém a escrever:
«A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada.»
Raúl Brandão faleceu em Lisboa a 5 de dezembro de 1930. Tinha 63 anos.

Livros sobre Raúl Brandão publicados pela Imprensa Nacional:


Cinzento e Dourado. Raul Brandão em Foco, nos 150 Anos do Seu Nascimento
Autor: Vasco Rosa
Coleção: Fora de Coleção
O Essencial sobre Raúl Brandão (N.º 46)
Autor: António M. Machado Pires
Coleção: Essencial
Raul Brandão – Do Texto à Cena
Autor: Rita Martins
Coleção: Estudos e Temas Portugueses
Vida e Obra de Raul Brandão
Autor: Guilherme de Castilho
Coleção: Estudos e Temas Portugueses

Nota: esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Raúl Brandão, de autoria de
António Machado Pires.

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