O Doido e A Morte Por Raul Brandão
O Doido e A Morte Por Raul Brandão
O Doido e A Morte Por Raul Brandão
• Estrutura interna:
- Todo o conflito na peça de teatro tem origem quando o Sr. Milhões apresenta para
o Governador Civil um aparente negócio ou projeto importante, até que o Governador Civil
dá um pontapé na caixa e o Sr. Milhões refere que dentro da caixa está um negócio muito
grave, foi então que revelou que estava uma bomba dentro da caixa. (" O maior crime de
todas as épocas, a suprema tragédia de todos os tempos! Vamos estoirar dentro de vinte
minutos." ... " O que o senhor vê aqui nesta caixa é o mais formidável de todos os explosivos
SO3-HO4, cem vezes mais poderoso que a dinamite, o algodão-pólvora, e o fulminato de
mercúrio. Basta carregar nesta campainha para irmos todos pelos ares, eu, o senhor, o
prédio, o bairro, a capital.SO3-HO4." ..."O peróxido de azote".).
Assim que o Governador se apercebe do que está no interior da caixa entra em pânico, o
senhor Governador começa por chamar Nunes para lhe dar auxílio, para lhe salvar, mas
Nunes acaba por não aparecer. No entanto, o Governador começa por falar com o Sr.
Milhões de maneira que se pudesse safar desta situação ao tentar demonstrar as
consequências que o explosivo poderia ter, mas o Sr. Milhões acaba por não mudar de
ideias.
- O desenlace da peça ocorre quando se ouve um barulho no exterior. O Sr. Milhões faz
retinir a campainha e o Governador Civil cai na cadeira com gestos desordenados, depois
entram dois enfermeiros de casaco branco e resguardo e um deles acabo por destapar a
caixa e, por fim, descobrem que era apenas algodão em rama.
- A peça de teatro "O Doido e a Morte" tem presente diversas situações cómicas que dão
vida a cada acontecimento. No início da peça podemos observar logo a mudança cómica de
atitude do Governador Civil, que começa por avisar a Nunes que não queria receber ninguém
e, no entanto, assim que o Sr. Milhões entra no escritório do Governador Civil muda logo de
ideias e de humor só pelo facto do Sr. Milhões ser um homem rico e de grande importância.
(" O Sr. Milhões? que entre... que vida esta! que país este! Exatamente no momento
psicológico, no momento e, que retomava. Nunes! Ai do Lusíada coitado... Isto não é um
país, é uma selva onde os homens de génio têm de ser ao mesmo tempo governadores
civis. O Sr. Milhões. Diz-lhe que entre, diz-lhe depressa que entre. É o próprio ministro que
recomenda o homem mais rico de Portugal."). Logo em seguida, quando o Sr. Milhões coloca
a caixa no chão, o Governador dá um pontapé e o Sr. Milhões repreende-o de imediato! O
Governador não fazia ideia do que poderia estar dentro da caixa!
Quando o Governador sabe que o explosivo está dentro da caixa, começa por chamar
Nunes bastante aflito, o que acaba por ser um momento cómico. (" Temos muito tempo. Ó
Nunes!").
Quando Ana Baltazar Moscovo sabe que um explosivo poderoso está no escritório, fica
constantemente a perguntar quanto tempo demora até o explosivo arrebentar, sem querer
dar muita importância ao facto do marido estar perante aquela situação! Entretanto, a
situação mais cómica é sem dúvida no final, quando o Governador descobre que afinal não
estava um explosivo na caixa, mas apena algodão em rama. O Governador Civil acaba por
insultar o Sr. Milhões insultando-lhe e utilizando uma expressão inapropriada. ("Ai o grande
filho da ****").
«Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me
arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno,
embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem
espanto, e acabo desconhecendo a vida, titubiando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho
tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.»
Com estas palavras escritas em janeiro de 1918 para o prefácio do 1.º volume das
suas Memórias, Raúl Brandão autodefine-se magistralmente.
Raúl Germano Brandão nasceu na Foz do Douro, a 12 de março de 1867, e morreu em
Lisboa a 5 de dezembro de 1930. Foi, portanto, contemporâneo de António Nobre, de Camilo
Pessanha, de Mendes dos Remédios, do músico e maestro Francisco Lacerda — o que quer
dizer que o devemos considerar pertencente à Geração de 90, que assumiu uma reação
idealista e antipositivista, na qual se radicam o Simbolismo e o Impressionismo.
É ainda um período agitado para Portugal: O Ultimato, o Regicídio, a Revolução
Republicana. E um período complicado para o mundo também: a 1.ª Guerra Mundial, a
atmosfera de profundo sentimento de decadência do Homem, de fuga para a Arte ou para o
Anarquismo, um período de um humanitarismo universalista e compassivo de Tolstoi, de
conflitualidade profunda como o documenta Dostoievsky, de compaixão e apelo para a
condição dos pobres e desgraçados à maneira de Gorki. O próprio Raúl Brandão escreveu
sobre este tempo:
«Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica de novo
predomina e a asa do Sonho outra vez toca os espíritos deixando-os alheados e absortos.
A necessidade do desconhecido de novo se estabelece.»
E acrescenta:
«De tudo isto, da fadiga produzida pelo exaspero crescente da luta pela vida devem nascer
criaturas singulares, aberrações extraordinárias, curiosos cérebros cheios de sonho, nervos,
capazes de sentir o que por ora é do domínio do sonho.»
Entre todas estas confluências finisseculares, Raúl Brandão, emotivo, de uma sensibilidade
quase exagerada, contemplativo, sem grandes apetências para a erudição nem para uma
vida de glórias sociais, é um exemplo muito pessoal na Literatura Portuguesa, abrindo sem
o saber, caminhos diversos para a prosa moderna. Brandão, no trânsito do século XIX para
o século XX está, afinal, como o disse Vergílio Ferreira «no limiar de um mundo».
A infância e a adolescência têm uma grande influência no homem, por impregnação, das
primeiras experiências e embates da vida. A luz dourada e o azul do céu da Foz do Douro
ficaram-lhe para sempre. A vida dos pescadores, de quem é descendente, deu-lhe um
paradigma existencial de disponibilidade para o risco, de trágica aceitação do Destino e da
Morte. Os Pescadores, de 1923, têm uma dedicatória:
«à memória do meu avô, morto no mar».
A escola não foi um encontro lúdico para Raúl Brandão. O mundo «atroz e brutal» —
palavras suas — com que se depara no Colégio de São Carlos no alto da Rua de Fernando
Tomás marcou-o negativamente com medo aos castigos. Esta experiência dura foi talvez o
primeiro estímulo para o sonho, a evasão, a quimera interior, que ele tanto valoriza.
Terminado o Liceu matricula-se no Curso Superior de Letras, onde convive com Sampaio
Bruno, Joaquim de Araújo e Basílio Teles, sem esquecer os seus amigos de adolescência:
António Nobre e Justino Montalvão. A influência do grupo portuense de boémios nefelibatas,
entusiasta do simbolismo decadente, notar-se-ia em História de Um Palhaço, de 1896.
Porém, o primeiro livro de Raúl Brandão surge em 1890: Impressões e Paisagens. Trata-se
de um conjunto de escritos de índole realista e que não condizem nem com o que já escrevia
de mais «avançado» em Portugal nem com a sensibilidade de Raúl Brandão. Também com
pouco significado são Vida de Santos e os Nefelibatas, que assinou com o pseudónimo de
Luís de Borja. Em 1891, talvez por pressão familiar, talvez por sustento, Raúl Brandão troca
o curso de Letras pela Escola do Exército. Tinha 24 anos. Viria a ser, sem convicção e com
horror à férrea disciplina da caserna, um militar de carreira, reformando-se em 1911, aos 44
anos.
«O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior.»
Escreveria ele em Vale de Josafat — publicado postumamente.
Conheceu Maria Angelina, sua mulher e companheira dedicada até à morte, em Guimarães,
onde foi colocado aquando da sua promoção a alferes. Maria Angelina e Raúl Brandão
constituem um par exemplar e ambos deixaram testemunhos memorialísticos desse raro
caso de entendimento e dedicação. Leia-se, por exemplo, o texto «O Silêncio e o Lume», de
Raúl Brandão, publicado em Memórias, e Um Coração e Uma Vontade, um volume em que
ela o evoca.
Depois de aceitar uma colocação no Porto, Raúl Brandão vai para Lisboa interessado em
aceitar colaborações em jornais. Raúl Brandão, com a sua sensibilidade ao mundo e ao meio
que o rodeava tinha de facto vocação jornalística. Colaborou com várias publicações: O
Século, O Dia, Gente Lusa, Seara Nova entre tantas outras. Conviveu com Columbano
Bordalo Pinheiro que lhe pintou dois quadros. Ele próprio dedicou-se à pintura como amador
e dessa sensibilidade dá conta em obras como Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas.
Repare-se neste verdadeiro quadro impressionista do amanhecer, da luz que vai romper,
retirado das páginas de Os Pescadores:
«É da terra que vem a luz. Um livor indeciso e depois um chuveiro. […] farrapos e névoas
esparsas que flutuam, sobem, deixam-se cair em véus moles sobre as águas. Escondem o
mar […]. Uma vaga, uma ondulação verde, outra ainda…. Mais névoa… Luz… um grande
farrapo desgrenhado.»
O amor de Raúl Brandão à Natureza e às árvores — para ele o verdadeiro paradigma do
mistério da vida — levava-o a permanecer todas as vindimas nos arredores de Guimarães,
onde construiu a célebre «Casa do Alto», no lugar da Nespereira.
Em 1906 Raúl Brandão viajou pelo Norte de África e por várias cidades europeias. Esteve
na Itália, na Suíça, visitou Paris e Londres, sem praticamente deixar vestígios na sua obra.
Fez também uma viagem à Madeira e aos Açores, em 1924, e daí resultou o livro As Ilhas
Desconhecidas.
Raúl Brandão publicou contos, livros de viagens, peças de teatro, memórias e estudos
históricos. Entre as suas obras avultam títulos como: Os Pobres, Húmus, Memórias em três
volumes, Os Pescadores, O Pobre de Pedir, e as peças de teatro O Gebo e a Sombra e O
Doido e a Morte. Muitas obras seriam dignas de menção, como A Farsa, El-Rei Junot, A
Conspiração de Gomes Freire, O Rei Imaginário, O Avejão ou As Ilhas Desconhecidas.
Aliás, na obra de Raúl Brandão podemos distinguir duas facetas. Uma é a do escritor de
viagens e paisagens, da luz e da cor, do azul que predomina e que Raúl Brandão ama acima
de todas as cores.
«Este azul que nos envolve e penetra e que desaba em correntes»
A outra faceta é a dos desgraçados, dos pobres, dos que sofrem, do mundo da Dor, da
natureza humana, do sonho — ideia fundamental em toda a obra brandoniana.
Note-se, aliás, as várias gradações do conceito de sonho na obra de Brandão: Em História
de um Palhaço o sonho é «a quimera de artista frustrado»; n’A Farsa «é a vontade de poder
de uma alma rudimentar»; n’Os Pobres é «a evasão dos humildes» e em Húmus o sonho é
«a beleza pressentida».
Este enigmático Húmus, espécie de diário escrito ao longo de um ano, é muito
provavelmente a obra prima de Raúl Brandão. Nela há que assinalar as influências não só
do autor dos Irmãos Karamazov como de Kafka, de Camus e de Sartre. Esta é também a
obra na qual Brandão mais carrega com o peso do espanto.
Para finalizar o programa de hoje podemos dizer que tanto o autor de Os Pobres, como de A
Farsa, com a sua capacidade de se emocionar com os desgraçados e com a ambição
recalcada que alimenta a sua luta da vida – o Sonho – como o autor de Húmus ou o
historiador «caótico» e impressionista de El-Rei Junot e da Conspiração de Gomes Freire,
ou ainda o escritor-pintor d’Os Pescadores e d’As Ilhas Desconhecidas são um documento
humano de alta vibratilidade emocional, de arrebatamento, de extática contemplação do
mundo, da vida e da cor. Só a emoção pode levar alguém a escrever:
«A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada.»
Raúl Brandão faleceu em Lisboa a 5 de dezembro de 1930. Tinha 63 anos.
Nota: esta biografia teve por base o livro O Essencial sobre Raúl Brandão, de autoria de
António Machado Pires.