Uma Análise Da Cerimônia de Apoteose Do Imperador Septímio Severo

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FUNUS IMPERATORUM: UMA ANÁLISE DA CERIMÔNIA

DE APOTEOSE DO IMPERADOR SEPTÍMIO SEVERO

Ana Teresa Marques Gonçalves*

Abstract
Our aim is to analyze the deification ceremony of the ·
emperor Lucius Septmius Severus, which occurred aftr.r his
death, as defined by the Roman tradition. Furthermor'e, we
intend to analyze what were the symbolic fun ctions of this
apotheosis and what were the political objectives of his sons
and successo rs, Geta and Caracalla, when they realized it.
The ce remony is described in detail in Herodianus ' work,
"History ofthe Roman Empire after Marcus Aurelius".

Segundo R. Huntington e P. Metcalf (1979: 122), os ritos funerários do


governante comportavam características especiais pelo fa to de que fmmavam
parte de um drama político, no qual estavam implicadas muitas pessoas. O fune-
ral do imperador, que era ao mesmo tempo general, legislador, chefe de Estado,
sacerdote e patrnno, apresentava implicações simbólicas e políticas de enmme
alcance. Implicações estas tão importantes que vários soberanos deixaram os
seus mandata de funere, ou seja, disposições escritas específicas sobre o funeral
que gostariam de ter. Conhecemos por Suetônio que Júlio César, por exemplo,
incluiu em seu testamento de 45 a .C. os mandata defunere, que gostaria de ver
aplicados (SUETÔNIO. A Vida dos Doze Césares 83.1).
Para o estudo destes fun erais imperiais, o hi storiador conta com al-
guns textos antigos fundamentais : Suetônio e Tácito para os fun erais de César
e Augusto; Dion Cássio para Augusto e Pertinax; e Herodiano para Septímio
Severo. Para J. Arce, o livro IV da obra de Herod iano , História do Império
Romano após Marco Aurélio, escrita por vol ta de 240 d.C., é um texto
paradigmático, pois é o mais completo que se tem sobre o tem a.

* Professora de História Antiga e Medieval da UFG . Doutora em História Econômica


pela USP.
E-mail: [email protected] .br

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Herodiano afinna, dirigindo-se aos seus leitores orientais, que entre
os romanos existia uma forma de homenagem póstuma ao soberano, uma
timé, que se chamava consecratio ou apotheosis (HERODIANO, IV.2).
Contudo, o que ele realmente relata é o funus imperatorum, isto é, a cerimô-
ni1:1 de cremação do soberano, e não a consecratio em si, que como veremos
era uma atitude senatorial posterior ao funeral que é narrado.
Vamos dividir a descrição de Herodiano em partes, para podermos
analisá-la mai~ detidamente. O autor começa afirmando que: "Por toda a
cidade apa,:p,cem demonstrações de luto em combinação com festas e ceri-
mônias religiosas" (HERODIANO IV.2.1).
· Era muito comum, desde a República, a realização da pompa circensis
e do oferecimento de jogos em honra do morto e, posteriormente, de um
banquete fúnebre (silicernium), para purificar a família do morto (ARCE,
1988: 175). No caso específico do funeral de Septímio Severo não há a cer-
teza de que aconteceram estas festas e cerimônias. Herodiano não especifi-
ca que festas foram estas.
Entretanto, sabe-se que o Senado costumava decretar o iustitium, situa-
ção de origem republicana na qual se suspendiam todas as atividades da
cidade, para que os magistrados pudessem assumir suas funções militares
no caso de um eventual tumulto, pela comoção popular. Ordenava-se o fe-
chamento dos mercados, das termas, das casas de espetáculos, e a suspensão
das atividades do próprio Senado. Com o tempo, ele foi sendo identificado
com o luctus pela morte dos imperadores. É importante lembrar que se trata
de umfunus publicum, realizado às expensas do Estado, integrando, portan-
to, parte do calendário cívico.
A seguir, de acordo com Herodiano, "enterram o corpo do imperador
morto ao modo do resto dos homens, ainda que com um funeral faustoso.
Porém, Jogo modelam uma imagem de cera, inteiramente igual ao morto, e a
colocam sobre um enorme leito de marfim coberto com roupas douradas,
que é exposto no alto do átrio do palácio. A imagem reflete a palidez de um
homem enfermo. O leito fica rodeado de gente a maior parte do dia. Os
Senadores em peso se situam no lado esquerdo, vestidos com mantos ne-
gros; à direita estão todas as mulheres às quais a dignidade de seus maridos
ou pais permitem que sejam partícipes desta alta honra. Nenhuma delas leva
ouro nem colares, e vestidas de branco e sem adornos, oferecem uma ima-
gem de dor. Esta cerimônia se cumpre durante sete dias. Cada dia os médi-

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cos acodem e se aproximam do leito, simulando que examinam o enferm o, a
cada dia anunciando que está piorando" (HERODIANO , IV.2.2-3).
No caso específico de Septímio, ele moneu fora de Roma. Seu corpo
foi incinerado em York (Eburacum) , onde moneu durante as campanhas na
Bretanha. Seus restos foram postos numa urna de alabastro e transladados
para Roma, para serem depositados no Mausoléu dos Antonino s
(HERODIANO 3.15,7-8; DION CÁSSIO 76.15,4) . E a partir da chegada
das exéquias, começava um ritual bastante interessante. Como o corpo do
imperador não existia mais, transformava-se ofunus imperaturum numfunus
imaginarium, funeral do qual não participava o corpo, mas somente a im a-
gem feita de cera (imago), que era transportada pela cidade e queimada na
pira. No ritual a imagem de cera era o corpo do imperador, tanto que ela
recebia todos os cuidados dos médicos e das pessoas importantes da cidade.
Deste modo, o funeral se convertia numa preparação simbólica para predis-
por o povo e a aristocracia para a divinização. Apontava-se para a imortali-
dade, convertendo-se o funeral num instrumento de poder externo de impor-
tância excepcional.
Ainda não estamos no período histórico no qual se verá uma separa-
ção do corpo do soberano em dois (carne e imagem), como bem estuda E.
Kantorowicz, em sua obra Os Dois Corpos do Rei. Nesta passagem do se-
gundo para o terceiro século, a imagem de cera era o corpo imperial no
ritual , não era como na narração dos funerais dos reis franceses , como Fran-
cisco I em 1547, nos quais se colocava o corpo do rei num sarcófago, depoi s
de dez dias em exposição, e se colocava acima do sarcófago/caixão um a
imagem em tamanho natural com a coroa imperial, o cetro e os outros atri-
butos reais (KANTOROWICZ, 1998: 397-398). Sabia-se e aceitava-se que
era uma representação, uma substituição. Em Roma, ao contrário, chegava-
se a abanar o cadáver de cera para afastar as moscas, vendo-o como corpo
real (DION CÁSSIO 75.4-3 , sobre os funerais de Pertinax).
Percebe-se também que nem todos os cidadãos podiam se aproximar
do morto. Apenas os senadores e eqüestres tinham este privilégio, e, desta
forma, eles transformavam o funeral imperial num momento no qual mos-
travam a toda a cidade a sua dignitas. As vestimentas mudavam. Os senado-
res se vestiam de negro e se renunciava a objetos pessoais, como jóias e
insígnias. Trata-se de uma forma de expressar externamente o desespero por
1
causa da morte.

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Retomando a narrativa de Herodiano (IV.2,4-5):

"Logo que vêem que está morto, os membros mais nobres da or-
dem eqüestre e jovens escolhidos da ordem senatorial levantam o
leito, levam-no pela Via Sacra, e o expõe no foro antigo, no lugar
onde os magistrados romanos renunciam a seus cargos (a rostra).
Em ambos os lados se levantam estrados; de um lado se encontra
um coro de crianças de famílias nobres e patrícias; do outro lado
há um coro de mulheres de alta posição social. Cada coro entoa
hinos e cânticos em honra do morto(.,.)"

O leito, kliné, é levado pelos jovens aristocratas até um carro fúnebre ,


que era um elemento a mais na representação funerária. Como se tratasse de
um imperador, ele era muito sofisticado, normalmente sendo adornado com
ouro e marfim , mas não tinha paredes, para que a população pudesse ver a
imagem imperial e acompanhar o cortejo. A translação do cadáver seguiu o
mesmo caminho até o IV século. Começava no Palatino, no palácio impe-
rial, e seguia pela Via Sacra, uma das principais de Roma, na qual se encon-
travam os mais sagrados templos da cidade (templo de Vesta, templo dos
deuses Lares) e a residência do Pontifex Maximus, e onde também se reali-
zavam as procissões de triunfo, prosseguindo até a Rostra. Neste momento,
se fazia a laudatio funebris, normalmente realizada pelo herdeiro/sucessor
do morto. Era um momento fundamental do funeral, ao menos em termos de
propaganda, pois nesta oração fúnebre, o herdeiro fazia o elogio do morto,
dava exemplos de sua boa conduta e reafirmava a continuidade do governo ,
no que ele havia tido de bom, além de enfatizar e renovar os laços de
patronato, que o morto passava ao seu sucessor. Após a oração, entoavam-
se hinos e, muitas vezes, faziam"se dramatizações teatrais de partes impor-
tantes da vida do morto, que serviam como exempla para os que acompa-
nhavam o cortejo. Segundo J. Scheid (1984 : 119), isto tinha dois propósi-
tos: para advertir aos que observavam o cortejo da contaminação que signi-
ficava a morte e para dar impulso ao morto para que ele alcançasse o seu
destino. O canto coral substituía a individualidade na lamentação, represen-
tando a comunidade. Também cantou-se no funus imaginarium de Pertinax
(HERODIANO IV.2,5) , cerimônia esta conduzida e proposta ao Senado pelo
próprio Septímio Severo, que se dizia e se intitulava o vingador de Pertinax ,
o reformulador da Guarda Pretoriana e o herdeiro dos Antoninos.

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"Em seguida, volta-se a levantar o fúnebre leito e o levam para
fora da cidade, para o Campo de Marte, onde já está erguido,, num
lugar mais aberto, uma construção quadrada de madeira parecida
com a armação de uma casa. Em seu interior, ela está cheia de
lenha e porfora é decorada com tecidos de ouro, estátuas de mar-
fim e pinturas diversas. Sobre este quadrado se levanta outro, se-
melhante em forma e decoração, mas menor e com portas e jane-
las abertas. Logo a seguir tem um terceiro e um quarto quadrados,
sempre menores, até que se chega ao último, o menor de todos. A
forma desta construção é comparável aos faróis que existem nos
portos, cujo fogo orienta de noite os navios, para estes atracarem
deforma segura( ... )" (HERODIANO, IV.2,6-8).

A representação da pira em degraus escalonados lembrava as antigas


pirâmides egípcias e os zigurates mesopotâmicos, na sua forma de escada
para facilitar a ascensão do homem ao mundo superior. É inegável, de acor-
do com J. Arce, a utilização de elementos orientais no funeral imperial
(ARCE, 1988:51). Interessante também é a comparação da pira com o farol ,
o que ilumina, o que indica, visto que após a apoteose o imperador, junto
aos deuses, ele iria continuar a guiar, a liderar, a mostrar caminhos para o
seu povo.
Além disso, havia portas e janelas abertas no segundo andar da pira,
como se fosse a representação de uma casa, a nova morada do soberano
entre as divindades . Segundo F. Cumont, era uma representação das portas
de Hades, que também apareciam nos sarcófagos romanos (CUMONT,
1945:64). O Mausoléu dos Antoninos também apresentava esta forma
escalonada da pira. A última morada terrena do imperador também o auxi-
liava, por sua forma, na sua ascensão aos céus.
As estátuas, que enfeitavam a pira, representavam normalmente o de-
funto ou os seus antepassados. O mesmo ocorria com as pinturas, que repre-
sentavam cenas vivenciadas pelo morto ou por seus ascendentes. A estética
ficava, assim, vinculada diretamente à propaganda dos atos da família que
estava no poder.
Uma condição essencial para que se declarasse a divinização do impe-
rador era que seu corpo tivesse sido incinerado (crematio), de forma real ou
através da imagem de cera. Desta forma, a pira tinha uma função primordial
na cerimônia. E muitos historiadores antigos e modernos identificam em sua

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forma elementos helenísticos. Por exemplo, o historiador Diodoro da Sicília,
escrevendo na época de Augusto, descreveu em sua "História Romana", um
monumento mandado construir por Alexandre, o Grande, em honra de seu
amigo Hefestion, morto em Ecbatana (Pérsia) no ano de 324 a.C. Este mo-
numento era uma pira funerária, com vários pisos escalonados, cada um
deles decorado de forma diferente, sendo esta a inspiração dos imperadores
romanos (DIODORO DA SICÍLIA, 17,115 apud: Arce, 1988:140). Deve-
se enfatizar que no caso de Alexandre era uma benesse póstuma que ele
oferecia a um amigo. No caso romano , a situação se invertia. Eram os sena-
, dores , que se consideravam fundamentalmente amigos e pares dos bons
imperadores, que lhe prestavam esta homenagem póstuma.
Continuando a narrativa de Herodiano, ao chegar na pira,

"sobem logo o féretro e o colocam no segundo compartimento.


Espalham, então, todo tipo de incensos e perfumes da terra, mon-
tes de frutas , ervas e aromas. Não é possível encontrar ninguém de
certa categoria na cidade (. .. ) que não envie, com a intenção de
distinguir-se, dons em honra do imperador. Quando se empilhou a
enorme montanha de produtos aromáticos (. .. ), começa uma ca-
valgada em torno da pira, e toda a ordem eqüestre cavalga' em
círculo(. .. ). Também giram carros em f ormação semelhante, com
seus aurigas vestidos com togas bordadas em púrpura. Nos carros
vão imagens com máscaras de ilustres generais e imperadores ro-
manos" (HERODIANO, IV.2,9-10).

Este era outro momento fundamental do ritual. Em primeiro lugar, mais


uma vez, os aristocratas tinham a chance de mostrarem a sua dignitas e a sua
riqueza, a sua proximidade com o imperador que seria divinizado e com o
seu herdeiro, ao oferecer dons para o morto. Em segundo lugar, ressaltava-
se a função de general do morto. Era o momento do exército demonstrar o
seu luto, girando a cavalo em torno do cadáver.
J. CI. Richard é o maior defensor da similitude do funus imperatorum
com a procissão do triunfo. Ele cita, principalmente, Sêneca, que, em sua
obra Consolação a Minha Mãe Hélvia, afirma que o funeral de Druso, o
Velho foi muito parecido a um triunfo (SÊNECA, III. l) . Todavia, no
triumphus , o general vencedor se sente semelhante a um deus por um dia,
sendo associado e assimilado a Júpiter (Richard, 1966: 313 e Richard ,

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1978: 1121-1134),já a procissão funerária é a preparação para a consecratio.
Esta continha elementos militares de honra ao imperador, chefe supremo
das tropas, que eventualmente levava à vitória na guerra. O exército estava
presente porque o Imperador era por definição o líder dos exércitos. Havia
relações de patronato e de fidelidade entre o soberano e os militares que
obrigavam a sua presença na cerimônia.

"Cumpridas estas cerimônias, o sucessor do Império pega uma


tocha e a aplica na torre, e os restantes acendem o fogo ao redor
da pira. O fogo se espalha facilmente e tudo arde sem dificuldade
pela grande quantidade de lenha e de produtos aromáticos acu-
mulados. A seguir, (. ..) uma águia é solta(. ..). Os romanos acredi-
tam que ela leva a alma do imperador da terra para o céu.· E a
partir desta cerimônia o imperador passa a ser venerado com o
resto dos deuses" (HERODIANO, IV.2, 10-11).

Note-se que o sucessor não acendia o fogo sozinho. Ele apenas inicia
o processo. Elementos das ordens eqüestre e senatorial e do exército au xi-
liavam o novo soberano a homenagear o imperador morto, e com isso refor-
çavam os laços de patronato, fidelidade e amizade que passavam a uni-los a
partir de·então.
Apesar de Herodiano não citar, era comum também se fazer um corte-
jo de imagens enquanto o corpo imperial queimava. Entre estas imagens
aparecia o próprio defunto representado em diversas atitudes de sua vida
(como legislador, como general) e as de seus antepassados.
A presença do sucessor/herdeiro imediatamente atrás do leito fune-
rário constitui-se num costume habitual e era um gesto político de afirma-
ção da legitimidade da sucessão. Septímio, Caracala e Geta acompanha-
ram o féretro de seus antecessores (DION CÁSSIO, 75.4,1 - Septímio no
de Pertinax; IV.1 ,3 Geta e Caracala no de Septímio). A partir desta ceri-
mônia, eles se transformavam em herdeiros de um divus, aumentando a
sua legitimidade, garantindo sua auctoritas e reconstruindo laços de
patronado e de amizade.
Com relação à águia, Dion Cássio também narra a sua soltura nos
funerais de Pertinax (DION CÁSSIO, 56.42,3). Parece ser uma característi-
ca original da passagem do século segundo para o terceiro d.C., pois apesar
I das águias aparecerem em muitos relevos fúnebres de altares e sarcófagos,
I

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não há informações da soltura de águias nos funerais em outros documentos
textuais, que não as obras de Herodiano e de Dion Cássio. A águia er;;i res-
ponsável por transportar a alma dos imperadores para o céu. Esta crença
estava presente em certas teorias das escolas filosóficas helenísticas, órficas
e pitagóricas, e penetrou no mundo romano no período republicano
(WEINSTOCK, 1971 :359). A águia associada aos monumentos funerários
parece ter suas raízes no Oriente, mais precisamente na Síria (ROES,
1950:129-146). Não é de se estranhar que apareça com tanta ênfase no
período severiano, pois Júlia Domna era síria e a influência oriental no pe-
ríodo foi marcante (TURCAN, 1978:1007). No caso específico das divae,
como a própria Júlia Domna e a sua irmã Júlia Mesa, a alma das imperatri-
zes era levada para o céu por um pavão (ARCE, 1988: 139).
No que se refere à consecratio ou à apotheosis propriamente dita, ela
ocorria após os funerais descritos por Herodiano. No entender de E.
Bickerman, os funerais eram a preparação para a divinização. Para que um
imperador romano conseguisse atingir a categoria de divus era necessário
um acordo do Senado, isto é, um acordo das forças políticas, que intervi-
nham depois da morte e cremação do príncipe. O ato da divini zação não era
um ato automático e imediato. Ele estava em relação jurídica direta com o
comportamento do imperador morto, e principalmente, com o comporta-
mento do governante atual. Era um ato político, uma ação interessada
(BICKERMAN, 1973:3-25). Era o resultado da boa vontade e do reconhe-
cimento do sucessor, que entrava em entendimento com os senadores para
que eles concedessem o caráter de divindade ao morto e de herdeiro de um
deus ao reinante. A consecratio era uma decisão senatorial, uma homena-
gem àqueles que, de alguma forma, auxiliaram na manutenção dos interes-
ses senatoriais, uma declaração pública de adesão.
Para tanto, era necessário também que existisse um iurator, ·ou seja,
uma pessoa que declarasse publicamente ter visto a imagem do imperador
subido aos céus. Porém, isto era providenciável. A História Augusta revela
que Júlia Mesa teria pago um milhão de sestércios para que um iurator
confirmasse ter visto a alma de Caracala ter subido aos céus durante os seus
funerais (História Augusta, Vida de Heliogábalo, 17.6).
No Feriale Duranum, calendário militar conservado em um papiro
por uma guarnição romana estacionada no deserto da Síria, aparecem
registrados dez divi, que deveriam ser cultuados: Augusto, Cláudio, Trajano,

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Adriano, Antonino Pio, Marco Aurélio, Cômodo, Pertinax, Septímio Seve-
ro e Caracala. Já Eutrópio, em seu Breviário, indica a existência de. 16 divi.
Aos dez anteriores, acrescentam-se os nomes de Vespasiano, Tito , Nerva ,
Lúcio Vero, Filipe, o Árabe, Cláudio II, o Gótico, Constâncio Cloro e Juliano.
Percebe-se como estas listas são muito variáveis e na maior parte das vezes
lacunares e enganosas.
Após a consecratio, o imperador morto podia ser cultuado como um
deus. Mudava, assim, o caráter do culto imperial que lhe era prestado. Rece-
bia um templo específico, sacerdotes para o seu serviço de culto, celebra-
ções, comemorações e honras próprias, que inseriam o soberano morto na
memória oficial dos romanos.
Tanto Septímio Severo quanto Caracala e Júlia Domna foram
divinizados e suas cinzas foram guardadas no Mausoléu dos Antoninos, pois
se diziam sucessores diretos destes imperadores (SYME, 1971 :78-88). Para
eles, foram construídos vários templos e erguidas muitas estátuas pelo terri-
tório do Império. Foram, deste modo, divinizados , seguindo-se o que Cícero ,
na obra Da República, já havia indicado como adequado: "Todos os que
preservaram, ajudaram ou engrandeceram a pátria têm preparado um lu -
gar especial para eles no céu, onde podem gozar de uma eterna vida de
felicidades " (CÍCERO, 6.13) (vide: LIOU-GILLE, 1993: I 11-1 I 2).
Portanto , o funeral se convertia, desta forma, numa preparação simbó-
lica e psicológica para predispor o povo e o corpo político governante em
direção à divinização do soberano morto (ARCE, 1988:34). Ele tornou-se
cada vez mais espetacular, apresentando símbolos que apontavam para a
imortalidade e para a divindade. Era um instrumento de propaganda, que
reunia elementos militares, de honra ao imperador, chefe supremo das tro-
pas; elementos de dramatização, que reconstruíam publicamente a vida do
morto, servindo de modelo e exemplo; e estruturas simbó li cas, que garan-
tiam a submissão de todos os súditos.

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