2020ci 1

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intro_22231

A compreensão da fisiologia da resposta ao trauma envolve o entendimento


sobre a composição do organismo. O corpo humano é constituído de uma
RESPOSTA ENDÓCRINA, METABÓLICA E fase não aquosa, composta de tecido adiposo, ossos, tendões, fáscias e

IMUNE AO TRAUMA colágeno, e uma fase aquosa, representada pelo volume sanguíneo
circulante (volume intravascular), pelo volume de líquido que banha os
tecidos (extracelular) e pela porção líquida no interior das células (líquido
INTRODUÇÃO
intracelular); esta última corresponde à maior parte dos líquidos corpóreos.
VIDEO_01_CIR3

O QUE É A MASSA CORPORAL CELULAR E A MASSA


CORPORAL MAGRA?
CONSIDERAÇÕES GERAIS
A massa corporal celular compreende as proteínas e a água intracelular,
A capacidade de responder a determinadas agressões, sejam elas de natureza
sendo um parâmetro pouco usado para a avaliação do estado nutricional. A
cirúrgica, traumática ou infecciosa é um componente fundamental
massa corporal magra corresponde à massa heterogênea de células do
apresentado pelos seres vivos. Essa é uma importante parte da reação de
organismo (incluindo as proteínas) e o meio ambiente aquoso sobre o qual
estresse que objetiva aumentar a probabilidade de um indivíduo sobreviver
elas repousam, excluindo o tecido adiposo (Figura 1). Em outras palavras, a
ao trauma. O resultado dessa resposta coordenada envolve a manutenção do
massa corporal magra é a porção do corpo isenta de gordura. Esse
fluxo sanguíneo e da oferta de oxigênio para tecidos e órgãos, além da
parâmetro é empregado com frequência em uma avaliação nutricional.
mobilização de substratos para utilização como fonte energética e para
auxílio ao processo de cicatrização de feridas.

Se o processo que levou à lesão tecidual é de pequena intensidade, a


resposta endócrina e imunológica tende a ser temporária e a restauração da
homeostase metabólica e imune prontamente ocorre. Todavia, uma lesão
grave, como observada em pacientes politraumatizados e em grandes
queimados, pode desencadear uma resposta de tamanha intensidade que
provoca deterioração dos processos reguladores do hospedeiro, além de
impedir a recuperação das funções celulares e de órgãos. Na ausência de
intervenção terapêutica adequada, essas alterações podem levar à falência
orgânica múltipla e ao óbito.

Embora a resposta biológica ao trauma tenha como princípio básico


preservar o organismo, agressões intensas e graves desencadeiam
uma resposta "maléfica", que pode levar o hospedeiro ao óbito.

Nas últimas décadas, diversos estudos realizados em pacientes críticos


demonstraram que a resposta ao trauma não é puramente endócrina, mas
também imune, representada por aumento da síntese e liberação de
mediadores humorais e da inflamação. Atualmente, estas substâncias FIG. 1 COMPOSIÇÃO DO PESO CORPORAL. A massa corporal celular
possuem importância fundamental em cirurgia, além de nos ajudar na não representada corresponde à massa corporal magra menos a água
extracelular. A água corporal total corresponde à água intracelular e à
compreensão de sinais clínicos encontrados em pacientes graves, que não água extracelular.
eram entendidos completamente. Os principais mediadores incluem
citocinas (ou citoquinas), como o fator de necrose tumoral e interleucinas,
radicais livres derivados de oxigênio, opioides endógenos, ácido
A massa corporal magra representa a parte funcional do organismo,
araquidônico e os produtos de seu metabolismo (prostaglandinas e
exemplificada por proteínas estruturais (músculo), proteínas sob a forma de
tromboxane) e complemento ativado.
enzimas (reações metabólicas fundamentais) e proteínas viscerais.

O trauma, determinado tanto por uma cirurgia quanto por uma lesão grave
COMPOSIÇÃO CORPORAL E SUA RESPOSTA
(politrauma, queimaduras), e o jejum prolongado desencadeiam
AO ESTRESSE CIRÚRGICO
modificações no ambiente hormonal e levam também à produção de
mediadores humorais. Essas alterações têm como um de seus objetivos a
mobilização de substratos, a partir da "quebra" de proteínas e gorduras, para
utilização como fonte de energia por diversas células.
O tecido adiposo (fase não aquosa) nos fornece uma reserva enérgica Os estímulos sensoriais provenientes da ferida operatória, já no momento da
considerável, uma vez que cada grama gera em torno de 9 kcal. A lipólise incisão, são os deflagradores iniciais da resposta endócrina. Quando esses
(lise ou "quebra" de gordura) nos fornece ácidos graxos livres, que estímulos alcançam o SNC (hipotálamo), provocam a liberação do
correspondem à principal fonte de energia utilizada pelo organismo durante hormônio liberador da corticotrofina (CRF); este, por sua vez, estimula a
o trauma. Outro elemento proveniente da "quebra" de gordura é o glicerol; síntese e secreção de hormônio adrenocorticotrófico ou corticotrofina
este é utilizado no fígado como substrato no processo de gliconeogênese. (ACTH) pela adeno-hipófise. Citocinas pró-inflamatórias, colecistoquinina,
hormônio antidiurético (ADH), peptídeo intestinal vasoativo,
As proteínas, além da função estrutural, geram alguma energia quando catecolaminas, dor e ansiedade, parecem também contribuir para o aumento
requeridas, porém em menor intensidade quando comparada aos lipídios. do ACTH.
Cada grama fornece cerca de 4 kcal. Apesar do baixo valor calórico, o
estresse provocado pelo trauma faz com que as proteínas musculares sofram O ACTH atua no córtex da suprarrenal estimulando a produção de cortisol,
um processo conhecido como proteólise (lise ou "quebra de proteínas") e elemento fundamental no trauma. As principais funções do cortisol incluem:
gerem Aminoácidos (AA), que servirão de substratos para a gliconeogênese
hepática. 1. Promoção de um efeito generalizado sobre o catabolismo tecidual,
mobilizando AA da musculatura esquelética. Os AA servirão de
Em traumatismos extensos associados a estresse catabólico importante, a substrato para gliconeogênese, para a cicatrização de feridas e para a
resposta hormonal e humoral é de tanta intensidade que grandes quantidades síntese hepática de proteínas de fase aguda (PTN-C reativa,
de proteína são perdidas por esse mecanismo… Caso nenhuma intervenção procalcitonina, fator 3 do complemento, fibrinogênio e ceruloplasmina);
nutricional seja empreendida, o paciente pode vir a falecer, por perda de
2. Estímulo à lipólise. Na verdade, o cortisol facilita a ação das
proteínas viscerais e estruturais. Em situações como essa, a perda de
catecolaminas no processo de lipólise. Haverá destruição do
proteínas nos primeiros cinco dias pode exceder a 2 kg.
triglicerídeo da gordura, com liberação de glicerol (que servirá de
substrato para a gliconeogênese) e de ácidos graxos livres (que serão
utilizados como fonte energética direta por alguns tecidos, como o
RESPOSTA ENDÓCRINA E METABÓLICA E
músculo esquelético).
IMUNE AO TRAUMA
VIDEO_02_CIR3 Os níveis de cortisol permanecem elevados de duas a cinco vezes o normal
O organismo frente ao trauma de qualquer origem se mobiliza totalmente por no mínimo 24 horas em cirurgias de grande porte, porém não
para a produção de glicose, no intuito de ofertá-la para tecidos que a complicadas.
utilizem preferencialmente como energia. A ferida operatória ou traumática,
as hemácias, os leucócitos recrutados para os sítios de lesão tecidual, o
Catecolaminas
sistema nervoso central e a medula adrenal, são tecidos e células que
utilizam a glicose como fonte energética primordial. O desajuste na circulação, mesmo que transitório, somado a estímulos
provenientes da ferida, provoca liberação de catecolaminas (epinefrina) da
A glicose tem como fonte de armazenamento principal o glicogênio medula da suprarrenal. Este neuro-hormônio tem a função de preservar a
hepático, que sob influência hormonal é rapidamente consumido em perfusão sanguínea através do compartimento intravascular, procurando
aproximadamente 12 a 24 horas, num processo conhecido como salvaguardar o organismo das perdas volêmicas.
glicogenólise.
A epinefrina, além de promover vasoconstrição, apresenta também funções
metabólicas, como estímulo à glicogenólise, à gliconeogênese e à lipólise.
BOM, SE APÓS O CONSUMO DE GLICOGÊNIO NÃO HÁ MAIS
As catecolaminas e os opioides endógenos são os responsáveis por atonia
GLICOSE, COMO GERAR "NOVA GLICOSE"?
intestinal pós-operatória; além disso, o neuro-hormônio adrenérgico leva à
É nesse momento que entra em cena a gliconeogênese (ou neoglicogênese), piloereção, à broncodilatação, ao aumento da frequência cardíaca e ao
um processo metabólico hepático que tem como princípio a produção de relaxamento esfincteriano.
glicose a partir de substratos não glicídicos; estes incluem aminoácidos
musculares (alanina e glutamina), glicerol (proveniente da quebra de tecido Para uma ação adequada das catecolaminas é necessária a presença de
adiposo) e lactato. Sendo assim, a resposta hormonal tem como um de seus glicocorticoides. Na presença de trauma, a insuficiência suprarrenal
principais objetivos o estímulo a gliconeogênese. inicialmente subclínica pode manifestar-se, sendo responsável por
hipotensão ou choque.

RESPOSTA ENDÓCRINA E METABÓLICA À


As catecolaminas urinárias permanecem elevadas por 48 a 72 horas após
CIRURGIA ELETIVA cirurgias eletivas não complicadas.
O Sistema Nervoso Central (SNC) influencia múltiplos órgãos através de
sinais endócrinos ou neuro-hormonais, sendo um importante regulador da Hormônio Antidiurético ou Arginina Vasopressina (ADH)
resposta endócrina ao trauma. Evidências de lesão tecidual ou de infecção
são reconhecidas pelo SNC através de estímulos aferentes, mediados pelo
nervo vago.

Cortisol e ACTH
Produzido pelo núcleo supraóptico do hipotálamo e armazenado pela neuro- O GH se eleva durante procedimentos cirúrgicos, anestesia e trauma. A
hipófise, o ADH tem sua secreção aumentada no trauma. Alterações da princípio, o aumento deste hormônio (classicamente anabólico) vem de
osmolaridade plasmática, da volemia (perdas de 10% ou mais), ato encontro à resposta catabólica que ocorre normalmente após o trauma.
anestésico, ação da angiotensina II e estímulos provenientes da ferida ENTÃO O GH NÃO EXERCE ANABOLISMO? Não. Sabemos que o
cirúrgica, são as principais condições que levam à elevação do hormônio. O GH exerce suas ações anabólicas por meio de um hormônio sintetizado no
ADH promove reabsorção de água pelo segmento medular dos túbulos fígado sob seu "comando", que é o fator de crescimento insulina-símile tipo
coletores. Sendo assim, é natural encontrarmos certa retenção hídrica no 1 (IGF-1). No trauma, os efeitos do IGF-1 são inibidos pelos altos níveis de
pós-operatório, justificando uma queda do débito urinário a despeito de Interleucina-1 (IL-1), de fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α) e de
hidratação adequada (oligúria funcional, com menos 30 ml/h de diurese) e Interleucina-6 (IL-6).
edema de ferida operatória. Em dois a quatro dias de pós-operatório, diurese
normal é reiniciada.
MAS AFINAL, QUAL É O EFEITO DO GH NA RESPOSTA AO
TRAUMA?
Na periferia, o ADH determina vasoconstrição esplâncnica. Este efeito é
mais significativo na lesão acidental e está relacionado a eventos de Por incrível que pareça, o GH acaba apresentando alguma função catabólica
isquemia (constrição da vasculatura intestinal somada à hipovolemia) nas fases iniciais da resposta ao trauma. Este peptídeo, em ação conjunta
seguida de reperfusão (quando a volemia é restaurada). O fenômeno – com as catecolaminas, promove lipólise.
isquemia-reperfusão – induz a produção de radicais livres derivados do
oxigênio, que alteram a integridade da barreira mucosa do tubo digestivo, Hormônio Estimulador da Tireoide (TSH) e Hormônios
condição que favorece translocação bacteriana. Os níveis elevados de ADH Tireoidianos
também estimulam dois importantes processos metabólicos: glicogenólise e
gliconeogênese. Em cirurgias não complicadas, o hormônio permanece Na resposta ao trauma, os níveis do TSH se encontram normais (achado
elevado por cerca de uma semana após o ato operatório. mais comum) ou discretamente reduzidos. Os níveis totais de T4 estão
diminuídos, embora a fração livre esteja preservada, o que faz com que o
paciente permaneça eutireóideo. A conversão periférica de T4 em T3 está
Aldosterona
reduzida, o que justifica os baixos níveis de T3 total. Níveis de T3 reverso
Mineralocorticoide sintetizado na zona glomerulosa da suprarrenal, a (rT3), uma fração desprovida de atividade biológica, estão aumentados. Este
aldosterona é liberada por ação da angiotensina II e por elevação do fenômeno tem a seguinte explicação: a enzima que transforma o T4 em T3
potássio no soro (lesões teciduais). em tecidos periféricos, e que se encontra inibida, é a mesma que degrada o
rT3.
A aldosterona atua na manutenção do volume intravascular, conservando
sódio e eliminando ora potássio ora hidrogênio. Sendo assim, existe no pós-
O quadro laboratorial dos hormônios tireoidianos e do TSH descrito pode
operatório uma tendência natural à alcalose metabólica. Em alguns
ser encontrado em doentes críticos e nas fases inicias da resposta ao trauma,
pacientes, a presença de drenagem nasogástrica (que acentua a alcalose
sendo conhecido como síndrome do eutireóideo doente.
metabólica), somada à hiperventilação anestésica e ao aumento da
frequência respiratória produzida pela dor, promove um fenômeno
Embora mediadores como citocinas e opioides endógenos sejam descritos
conhecido como alcalose mista do pós-operatório. Esta alteração é
um pouco mais a frente no capítulo, vale a pena observarmos algumas
diagnosticada com frequência na prática cirúrgica, sobretudo em pacientes
evidências clínicas que ocorrem em pós-operatórios, que são decorrentes de
que se submetem a operações de grande porte.
alterações hormonais e humorais (Tabela 1).

Glucagon

Produzido pelas células alfa do pâncreas endócrino, tem seus níveis TAB. 1 ALTERAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS OBSERVADAS
EM PÓS-OPERATÓRIOS E SUA ASSOCIAÇÃO COM
elevados no trauma, sendo o principal mediador responsável pela HORMÔNIOS E MEDIADORES HUMORAIS.
gliconeogênese hepática. O cortisol parece exercer um efeito permissivo à
Atonia intestinal Catecolaminas e opioides
ação do glucagon.
endógenos.
Oligúria funcional/edema de Hormônio antidiurético (ADH).
Insulina ferida operatória
Tem seus níveis reduzidos (muitas vezes indetectáveis) em pós-operatórios Alcalose mista Aldosterona, drenagem
de cirurgias eletivas. Reparem que toda a resposta ao trauma é catabólica. nasogástrica, hiperventilação
Desta forma, não parece haver lugar para insulina, um clássico hormônio anestésica e hiperventilação
anabólico. Se prestarmos atenção, veremos que diversos hormônios que se associada à dor no pós-
encontram elevados na resposta ao trauma são considerados operatório.
contrainsulínicos, como cortisol, epinefrina, glucagon etc. Hiperglicemia Elevação do glucagon, cortisol,
catecolaminas e GH.
Hormônio do Crescimento (GH) e Fator de Crescimento Insulina- Elevação discreta na IL-1
Símile (IGF-1) temperatura (37,8ºC)
Anorexia TNF-α
O QUE É UM BALANÇO NITROGENADO NEGATIVO?
FASES DE RECUPERAÇÃO CIRÚRGICA
Na presença não só de trauma, mas também de jejum prolongado ou de
sepse, existe todo um ambiente hormonal direcionado à produção de O conhecimento das alterações sequenciais no metabolismo de pacientes

glicose. Os AA musculares (alanina e glutamina) derivados da proteólise submetidos a cirurgias, ou em vítimas de traumas acidentais, é de

são substratos essenciais para a gliconeogênese. Na sua utilização pelo importância fundamental. Com essas informações bem sedimentadas, o

fígado, os AA são desaminados e o grupamento amino (nitrogênio) não é cirurgião e o intensivista são capazes de entender as modificações clínicas e

aproveitado no processo de gliconeogênese hepática, sendo eliminado na laboratoriais decorrentes da resposta ao trauma.

urina; este fenômeno se traduz por aumento na excreção urinária de ureia.


Dizemos então que o balanço nitrogenado é negativo, ou seja, mais Na presença de traumas acidentais graves (lesões multissistêmicas,
proteínas estão sendo consumidas do que sintetizadas. queimaduras) ou de complicações cirúrgicas (infecção, sepse), essas
alterações metabólicas podem ser prejudiciais a uma boa evolução. COMO

Concluímos que o período inicial após procedimentos cirúrgicos eletivos é


ASSIM? Essas situações descritas são acompanhadas por respostas

caracterizado por catabolismo proteico e lipídico. Independentemente da catabólicas intensas, que perduram muitas vezes por um tempo

origem do estímulo, a proteólise e o aproveitamento de AA pelo fígado indeterminado… Sendo assim, um planejamento nutricional antecipado e
conduzido de forma adequada será fundamental para reduzir morbidade e
determinarão nesta fase um balanço nitrogenado negativo.
mortalidade.

PARA QUE SERVEM AS PROTEÍNAS DE FASE AGUDA?


A seguir estão descritas as diferentes fases do metabolismo encontradas no
As proteínas conhecidas como de fase aguda são sintetizadas na vigência de pós-operatório e após traumatismos acidentais graves.
lesões teciduais. Estados inflamatórios outros também determinam seu
aumento. A IL-6 é um potente indutor para a síntese desses compostos. As Fase Adrenérgica-Corticoide
proteínas de fase aguda funcionam como marcadores bioquímicos de lesão
tecidual, sendo sintetizadas nos hepatócitos; algumas têm função protetora É o período inicial após procedimentos cirúrgicos. Nesta fase, as alterações
junto ao organismo. As antiproteases (alfa-1-antitripsina e alfa-2- promovidas pelas catecolaminas e pelo cortisol são mais intensas. A
macroglobulina) previnem a ampliação do dano causado pela liberação de detecção de mediadores pró-inflamatórios é máxima. A taxa de
enzimas provenientes dos tecidos lesados ou das células fagocitárias; a gliconeogênese, a síntese de proteínas de fase aguda, a atividade imune das
ceruloplasmina tem ação antioxidante expressiva; o fibrinogênio e a células de defesa e o balanço negativo de nitrogênio também atingem níveis
Proteína C-reativa (PTN-C reativa) auxiliam no reparo das lesões teciduais. insuperáveis.
Do ponto de vista clínico, somente a PTN-C reativa tem sido empregada
como marcador da resposta ao trauma. A lipólise também se encontra exacerbada, com liberação de ácidos graxos,
e sua posterior oxidação pelos tecidos, e glicerol, para ser utilizado como
substrato no processo de gliconeogênese.
É POSSÍVEL MODIFICAR AS RESPOSTAS PÓS-OPERATÓRIAS?

Sim, é possível. A cirurgia sem incisão aberta em cavidades (procedimento Esta fase dura cerca de seis a oito dias em cirurgias eletivas não
vídeo-assistido, como laparoscopias) produz uma resposta endócrina de complicadas. Na presença de complicações pós-operatórias ou de trauma
menor intensidade. Entretanto, é a resposta imunológica que menos se fará acidental, o período catabólico pode durar semanas.
marcante, com níveis de citocinas (IL-1) praticamente normais. Uma ferida
cirúrgica de menor dimensão é infiltrada por uma quantidade menor de
leucócitos; como são estas células que produzem os mediadores humorais… Fase Anabólica Precoce

Também chamada de fase de "retirada do glicocorticoide", a fase anabólica


Outro dado interessante consiste no bloqueio eficaz das vias aferentes com a precoce tem como característica um declínio na excreção de nitrogênio, com
anestesia epidural. Nesses pacientes, os valores de cortisol, ácidos graxos balanço nitrogenado tendendo ao equilíbrio. Observamos restauração do
livres (reflexo da lipólise) e aldosterona se encontram praticamente normais balanço de potássio, uma vez que este era inicialmente positivo (destruição
quando comparados aos valores observados em indivíduos submetidos à tecidual), e depois tendia a negatividade no decorrer de horas a dias (efeito
anestesia geral. Acredita-se que essas vias bloqueadas impeçam a da aldosterona).
propagação adequada de estímulos aferentes para o hipotálamo. O resultado
é uma diminuição da síntese e secreção de CRF, de ACTH e, indiretamente, A ação anabólica do IGF-1 começa a se fazer presente. A diminuição dos
de cortisol. Leia com atenção a Tabela 2. teores de ADH promove diurese de água retida. O paciente manifesta desejo
de se alimentar, fenômeno que reflete uma redução dos níveis de TNF-α.
Após um período variável, os pacientes entram em um balanço nitrogenado
TAB. 2 ASSOCIAÇÃO DE DETERMINADOS PROCEDIMENTOS
COM ATENUAÇÃO DA RESPOSTA ENDÓCRINA E
positivo, representado por síntese proteica e ganho de massa corporal magra
(até 100 g/dia) e peso.
IMUNOLÓGICA.

Cirurgia laparoscópica Diminuição da produção de


citocinas. Fase Anabólica Tardia

Cirurgia sob anestesia Atenuação da resposta Nesse período, o paciente apresenta um ganho ponderal mais lento,
peridural endócrina. principalmente à custa de tecido adiposo; este fenômeno é conhecido como
balanço positivo de carbono. A duração desta fase pode durar de meses a
anos.
VIDEO_03_CIR3 Com a restauração da volemia por meio de infusão de cristaloides (Ringer
lactato) e/ou hemoderivados, inaugura-se um novo período na resposta ao
trauma, conhecido como "refluxo" (Flow phase). Este é caracterizado por
RESPOSTA ENDÓCRINA E METABÓLICA AO um intenso hipermetabolismo, o qual suplanta, e muito, àquele observado
TRAUMA (LESÃO) ACIDENTAL em operações eletivas. É nesta fase que a febre pós-traumática ocorre, sendo
ocasionada por uma intensa produção de citocinas (principalmente IL-1); a
Quando falamos em trauma acidental, além de lesões multissistêmicas
temperatura pode atingir níveis de até 38,5°C.
(politrauma) e queimaduras, também é importante considerarmos qualquer
evento que ponha em risco a vida de pacientes, como sepse, hemorragias,
pancreatite necrosante etc. A reação do organismo a esta agressão será mais O metabolismo proteico altera-se, e a mobilização de aminoácidos a partir
significativa quanto mais grave for a intensidade da lesão. do músculo esquelético e tecidos periféricos se faz de modo intenso quando
comparada à resposta a cirurgia eletiva, caracterizando a proteólise
acelerada, já descrita. Os aminoácidos mobilizados são principalmente a
Com isso, a resposta endócrina e humoral (inflamatória) observada terá
alanina e a glutamina.
correlação direta com a extensão da lesão tecidual. Em casos graves, as
modificações hormonais e humorais descritas no item referente à "cirurgia
eletiva", amplificam-se e tendem a se perpetuar. É nesse momento que a Além de servir como substrato para a gliconeogênese hepática, a glutamina
resposta ao estresse acabará sendo deletéria para o hospedeiro. Sendo assim, apresenta outras funções, muitas delas "benéficas". Este aminoácido é
um suporte cirúrgico, nutricional e de terapia intensiva são essenciais para utilizado como combustível para os enterócitos. A glutamina também é
melhorarmos o prognóstico do paciente. captada pelos rins, onde contribui com o grupamento amônia (NH3),
favorecendo a excreção ácida (NH3 + H+ = NH4). A amônia por ser um
tampão ácido na urina, facilita a excreção do cátion hidrogênio para o lúmen
QUAIS SÃO OS EFEITOS DELETÉRIOS DESSA RESPOSTA
EXACERBADA? tubular. Esse fenômeno é extremamente benéfico, uma vez que
hipoperfusão tecidual difusa decorrente de hipovolemia pode ocorrer em
Em vítimas de lesões acidentais graves, o desgaste da proteína muscular é pacientes vítimas de lesões graves, o que pode gerar acidose láctica.
mais acelerado quando comparado a cirurgias eletivas não complicadas, ou
seja, o estado catabólico é mais intenso e "não tem hora para acabar".
A alanina proveniente do músculo é derivada do piruvato, que por sua vez,
é oriundo da glicose muscular. Durante a resposta ao trauma ou a cirurgias
A proteólise descontrolada leva a um comprometimento da musculatura eletivas, a proteólise faz com que a alanina seja liberada do músculo, ganhe
diafragmática (utilização contínua de aminoácidos para a gliconeogênese), a circulação e seja "transformada" no fígado em glicose – o ciclo de Felig.
fenômeno que traz prejuízo à dinâmica respiratória, e a perda de proteínas
viscerais. O processo de cicatrização de feridas também se encontra
Os níveis elevados de glicose estão frequentemente presentes no trauma. A
prejudicado.
gliconeogênese acelerada tende a relacionar-se com a extensão da lesão.
Como descrito antes, a glicose é preferencialmente utilizada pelo sistema
A persistência da lipólise pode determinar a formação de microêmbolos nervoso central, rins e por células especializadas (leucócitos, macrófagos e
gordurosos, agravada pelo decúbito dorsal e imobilidade do paciente. A fibroblastos) localizadas na região do trauma. Neste último local, a glicose é
acidose metabólica pode advir, após um período inicial de alcalose mista. consumida através de um metabolismo anaeróbico, dando origem ao lactato.
Este retorna ao fígado sendo utilizado como substrato para gliconeogênese –
A vasoconstrição microcirculatória mantida (aumento persistente do tônus o ciclo de Cori.
adrenérgico) pode ocasionar uma hipóxia plégica com abertura de shunts e
má perfusão celular. O empilhamento de hemácias, os fenômenos Na lesão acidental, sabemos que a principal fonte energética continua sendo
trombóticos e distúrbios da coagulação sanguínea podem se instalar. A os lipídios. Os ácidos graxos livres e o glicerol, provenientes da lipólise,
insuficiência renal e a síndrome do desconforto respiratório agudo são participam ativamente dessa nova fisiologia imposta pelo trauma. Os ácidos
complicações desta cascata de eventos. A disfunção de múltiplos órgãos graxos têm sua utilização acelerada como fonte de energia em tecidos como
aparece então como circunstância final de uma evolução prolongada de o músculo esquelético e o músculo cardíaco, enquanto o glicerol é utilizado
processos traumáticos graves e persistentes. como substrato para a gliconeogênese hepática. Com o tempo, caso o
paciente permaneça em jejum ou com os suprimentos calóricos abaixo de
suas necessidades diárias, sobrevém a cetose; os corpos cetônicos são
Fase de Baixo Fluxo Seguida de Re uxo (Ebb and Flow Phases)
utilizados pelos rins, músculo esquelético e cardíaco como fonte energética
Na fase inicial do trauma, conhecida como fase de baixo fluxo ou (ver a seguir).
simplesmente "fluxo" (Ebb phase), o débito cardíaco diminui, a
resistência vascular aumenta e o volume circulatório se encontra depletado.
Estas alterações são determinadas em grande parte por perda de volume do RESPOSTA ENDÓCRINA E METABÓLICA AO
compartimento intravascular. Embora os níveis de hormônios de estresse se JEJUM
encontrem elevados, ocorre queda na temperatura central e
hipometabolismo. É importante o conhecimento das alterações que ocorrem no organismo em
jejum, uma vez que alguns pacientes em pós-operatórios mal conduzidos
acabam realmente em dieta zero ou com uma ingesta calórica inadequada.
Um adulto saudável, de 70 kg, consome aproximadamente 1.700 a 1.800 No paciente em dieta zero, a administração de apenas 100 g de glicose ao
kcal/dia, derivada do metabolismo de lipídios, carboidratos e proteínas. dia, o que corresponde a 400 kcal (2.000 ml de soro glicosado a 5%), é
Como vimos antes, existem tecidos que utilizam a glicose como fonte capaz de sustar o processo de formação de corpos cetônicos no jejum
preferencial de energia, sendo também conhecidos como glicolíticos – os (cetose de inanição); o fornecimento de glicose exógena ao organismo e a
neurônios, as hemácias, os leucócitos e a medula suprarrenal. consequente elevação da insulina interrompe os processos de proteólise e
lipólise, além de inibir a gliconeogênese hepática.
O glicogênio (fonte de armazenamento de glicose) é consumido, em média,
nas primeiras 12 a 24 horas através da glicogenólise. A glicemia
inicialmente cai e os níveis de insulina são suprimidos. Elevam-se RESPOSTA IMUNE
hormônios como glucagon e GH (de forma transitória) e, em menor
VIDEO_04_CIR3
intensidade, as catecolaminas, o ADH e a angiotensina II. As catecolaminas,
A resposta endócrina é assunto extensamente estudado e revisado por
o glucagon, a angiotensina II e o ADH induzem a glicogenólise; o cortisol e
médicos e pesquisadores que atuam em áreas relacionadas a pacientes
o glucagon, por sua vez, promovem a gliconeogênese.
críticos. Nos últimos anos, vários trabalhos têm demonstrado a importância
da participação de mediadores humorais na resposta ao trauma.
Assim como na resposta ao trauma, a gliconeogênese hepática tem como
substratos a alanina e a glutamina (derivadas do músculo), o glicerol (do
Observou-se que mesmo após a atenuação da resposta endócrina, com
tecido adiposo) e o lactato. No jejum, o lactato é produzido em pequenas
diminuição dos níveis hormonais, a resposta inflamatória (imunológica)
quantidades no músculo esquelético, hemácias e leucócitos. Essa substância
persistia e, dependendo de sua intensidade, levava à alteração da função de
é convertida em glicose pelo fígado (ciclo de Cori).
vários órgãos e a falência de múltiplos sistemas, com elevada mortalidade.
Mais uma vez uma resposta inicialmente "benéfica", quando de grande
Os ácidos graxos livres que não servem como substrato para gliconeogênese intensidade, poderia trazer prejuízos importantes ao organismo. Quando
são oxidados diretamente por tecidos como o músculo esquelético, coração empregamos o termo "benéfico", estamos nos referindo à atuação,
e rim. sobretudo das citocinas, no combate a micro-organismos invasores e no
processo de cicatrização de feridas.
No jejum, a proteólise, bem menos intensa do que a observada no trauma,
promove uma excreção de nitrogênio que varia de 8 a 11 gramas nos Muitos dos mediadores da resposta imune apresentam íntima relação com a
primeiros cinco dias. Caso o jejum permaneça após este período, a resposta hormonal. Além disso, estas substâncias em níveis elevados
eliminação urinária de nitrogênio diminui e se estabiliza em 2 a 5 g/dia, justificam algumas manifestações clínicas apresentadas por pacientes
refletindo uma diminuição no ritmo da proteólise. cirúrgicos e por doentes críticos.

MAS, POR QUE A PROTEÓLISE DIMINUI O SEU RITMO SE O Podemos dividir a resposta imunológica em duas fases: a resposta inata e a
PACIENTE CONTINUA EM JEJUM? resposta adaptativa. A resposta inata é pouco específica, porém muito
rápida, sendo por isso responsável pela primeira linha de defesa do
Com os níveis persistentemente elevados de glucagon e baixos de insulina,
organismo contra estímulos nocivos, tais como trauma, queimadura,
os ácidos graxos provenientes da "quebra" de gordura são aproveitados no
infecção, neoplasias e presença de corpo estranho. Participam desta fase os
processo de beta-oxidação hepática: o resultado é a geração de corpos
receptores Toll-like, NOD e HMGB1 – responsáveis pela detecção do
cetônicos (acetoacetato e 3-hidroxibutirato), que começam a ser utilizados
estímulo nocivo e pela deflagração da resposta imunológica e inflamatória
como fonte energética por músculo cardíaco, músculo esquelético, córtex
–, e os agentes efetores, que são células específicas (neutrófilos,
renal e, especialmente, pelo cérebro após uma semana de jejum. Com isso, o
macrófagos, células NK e células dendríticas), sistema complemento,
tecido cerebral, que antes só utilizava glicose como fonte energética, passa
citocinas, quimiocinas e proteínas de fase aguda. Nesta fase, os principais
agora a se "alimentar" de corpos cetônicos. Gradualmente, caso o jejum
objetivos incluem: limitar o dano tecidual, combater micro-organismos e
persista, o acetoacetato e o 3-hidroxibutirato se tornam o principal
células tumorais e iniciar a resposta adaptativa.
combustível em 24 dias. A adaptação metabólica descrita é uma das mais
importantes e "inteligentes" desenvolvidas no jejum, pois permite uma
diminuição no ritmo de proteólise. A fase adaptativa é mais demorada e resulta em resposta humoral
(anticorpos) e celular (células T citotóxicas) específicas a um agente nocivo.
Ela é orquestrada pelo linfócito T helper. Dependendo das citocinas
Com o tempo, uma parte do ácido graxo que se dirige ao fígado é
produzidas na fase de resposta inata, a célula T helper pode se diferenciar
reesterificada em triglicerídeos, o que justifica a esteatose hepática
em quatro subtipos específicos, cada um com um padrão de liberação de
observada no jejum prolongado e em indivíduos desnutridos.
citocinas característico e resposta biológica diferente (Tabela 3).

Embora seja uma resposta "inteligente", não podemos deixar o


indivíduo desenvolver "de graça" uma cetose de jejum, não
concordam? Sendo assim, como evitar que esta alteração
ocorra?
TAB. 4 EFEITOS OBSERVADOS DAS CITOCINAS NA RESPOSTA
AO TRAUMA.

EFEITOS BENÉFICOS EFEITOS DELETÉRIOS


Participação no processo de Febre pós-operatória (IL-1) –
cicatrização de feridas. efeito deletério?
Resposta contra micro- Anorexia (IL-1).
organismos invasores.
Aumento da síntese de Caquexia e proteólise (TNF-
proteínas de fase aguda (IL-1 e alfa).
IL-6).
RESPOSTA MEDIADA PELAS CITOCINAS Estímulo à resposta imune. Falência orgânica múltipla (IL-6
e IL-1).
Durante a fase aguda do trauma, um grande número de monócitos e
Modulação da resposta imune Diminuição da resposta a
neutrófilos deixa a corrente sanguínea e migra em direção aos locais onde
(IL-10). micro-organismos invasores (IL-
há lesão tecidual. Nos tecidos, os monócitos rapidamente se diferenciam em
10).
macrófagos. Nesse contexto, sobressaem as Interleucinas (IL) produzidas
por macrófagos, linfócitos e leucócitos aderidos ao endotélio, e o fator de Ação anti-in amatória (IL-4). -
necrose tumoral (TNF), sintetizado preferencialmente por macrófagos Diferenciação de linfócitos T e -
ativados. produção de IFN-y (IL-12).

Além de agir na própria célula que as sintetiza (ação autócrina) e nas


vizinhas (ação parácrina), induzindo à reparação da lesão e a proliferação
celular local, as citocinas podem ser consideradas hormônios, com ações à
distância (endócrina).

Esses agentes pró-inflamatórios, representados nas fases iniciais pelas IL-1,


IL-2 e pelo TNF-α, levam as seguintes alterações: maior aderência
leucocitária ao endotélio vascular, ativação de macrófagos e linfócitos,
aumento da capacidade do neutrófilo em gerar radicais livres derivados do
oxigênio, elevação dos níveis de prostaglandinas (PGE2 e PGI2), aumento
da síntese de proteínas da fase aguda, aumento da degradação proteica
muscular e da lipólise sistêmica, estímulo à proliferação de células
hematopoiéticas e incremento na produção de fibroblastos e colágeno.

Esses efeitos, portanto, compreendem a retroalimentação do processo


inflamatório e podem se correlacionar a complicações evolutivas, como a
formação de fibrose pulmonar na SDRA. Observam-se ainda outras ações
sistêmicas. A febre é produzida por estimulação hipotalâmica associada à
interação entre a IL-1 (conhecida outrora como pirogênio endógeno ou fator
ativador de leucócitos) e a PGE2; a anorexia, o hipermetabolismo, com QUAIS SÃO AS INTERAÇÕES ENTRE HORMÔNIOS E
CITOCINAS?
degradação proteica e lipólise, o emagrecimento e a caquexia, podem ser
atribuídos a IL-1 e ao TNF. Os glicocorticoides geralmente aumentam a síntese e a liberação de IL-10,
uma citocina que regula e diminui a intensidade da resposta inflamatória.
O TNF-α é também conhecido como caquetina ou caquexina. Esse hormônio pode também induzir a apoptose (ver adiante) de linfócitos
Produzido principalmente pelos macrófagos e monócitos, causa choque, T. As interleucinas 1 e 6 e o TNF-α ativam o eixo hipotálamo-hipófise-
falência de múltiplos órgãos, isquemias viscerais, trombose venosa, suprarrenal, aumentando a liberação de ACTH e cortisol.
insuficiência respiratória, hipotensão arterial, anúria e acidose.
As catecolaminas diminuem a produção de TNF-α pelos macrófagos, um
Os recursos terapêuticos mais utilizados para bloquear a ação das efeito pouco observado em condições de agressão importante ao hospedeiro.
interleucinas e do TNF-α, com resultados variáveis, consistem no uso de
anticorpos monoclonais, anti-inflamatórios não esteroides e
Interferência na Morte Celular Programada (Apoptose)
glicocorticoides. Entretanto, nada suplanta a correção cirúrgica do problema
que desencadeou a liberação destes mediadores. A morte celular programada ou apoptose é um mecanismo que as células
senescentes deflagram para "morrer", sendo um fenômeno fisiológico.
Os efeitos mais significativos das citocinas na resposta ao trauma estão
descritos na Tabela 4 e as principais citocinas envolvidas estão na Tabela 5.
Sabemos que a morte das células se inicia quando substâncias provenientes Outra substância sintetizada e liberada pela célula endotelial é o fator de
do meio extracelular se ligam a receptores específicos nas membranas ativação plaquetária (PAF). Esse fosfolipídio estimula a produção de
celulares. TXA2, substância responsável por um aumento na agregação plaquetária e
vasoconstrição. Além disso, o próprio PAF é capaz de elevar de forma
Nos estados inflamatórios encontrados na resposta ao trauma e na sepse, por significativa a permeabilidade capilar e induzir hipertensão pulmonar,
exemplo, mediadores como Interleucinas (IL-1, IL-3, IL-6), interferon gama broncoconstrição, ativação e marginação de PMN, quimiotaxia e
(INF-γ), fator estimulante de colônias de granulócitos e macrófagos (GM- degranulação de eosinófilos, além de trombocitopenia.
CSF) e TNF, agem diminuindo a expressão de receptores associados à
apoptose nas membranas dos imunócitos (monócitos, macrófagos e
neutrófilos). Como consequência desse fenômeno, a sobrevida de uma MEDIADORES INTRACELULARES
grande quantidade de células da inflamação é prolongada, o que pode
Radicais Livres Derivados do Oxigênio
aumentar a intensidade e a duração da resposta imunológica.
Por definição, os Radicais Livres Derivados do Oxigênio (RLDO),
Os principais receptores envolvidos com a apoptose são para o TNF. Eles denominados também de metabólitos reativos de oxigênio ou
constituem uma superfamília de aproximadamente 15 proteínas espécies reativas de oxigênio, são moléculas que contêm elétrons não
transmembrana, que se encontram presentes em todas as células do emparelhados em seu orbital externo. Embora apresentem meia-vida de
organismo. Dentre esses receptores, destacam-se Fas/CD95, linfotoxina β, milissegundos, são capazes de exercer ação oxidativa citotóxica, inclusive
receptores para fatores de crescimento de células nervosas e DR-4. sobre micro-organismos agressores.

Os RLDO promovem alterações metabólicas das proteínas, dos carboidratos


MEDIADORES DAS CÉLULAS ENDOTELIAIS e dos lipídios. Ações deletérias são observadas na morfologia celular
(citoesqueletólise), na estrutura do ácido nucleico e na bomba de transporte
Além de participar da coagulação e regular o tônus vasomotor, as células
iônico transmembrana.
endoteliais, sob estímulo de diversas citocinas, são capazes de sintetizar e
liberar mediadores humorais, como o fator de ativação plaquetária (PAF), a
Nos lipídios celulares ocorre a peroxidação de todas as membranas,
IL-1, as Prostaglandinas (PGI2 e PGE2), o GM-CSF, o óxido nítrico e
inclusive das organelas celulares. Nas estruturas orgânicas proteicas há
pequenas quantidades de tromboxane A2.
inativação enzimática. Nos compostos de carboidratos verifica-se a
despolimerização dos polissacarídeos. No ácido nucleico instala-se a
O endotélio, quando ativado, sintetiza colagenase, que é capaz de digerir a oxidação de bases nitrogenadas, o que fragiliza as cadeias do DNA.
sua própria membrana basal. Esse fenômeno permite um remodelamento de
pequenos vasos e neovascularização, o que facilita o trânsito de imunócitos
Os RLDO são gerados pela cadeia respiratória de transporte de elétrons,
e a difusão de oxigênio para sítios de lesão tecidual.
onde em condições fisiológicas somente 2% do oxigênio molecular captado
na mitocôndria forma esses elementos. Todavia, os processos de isquemia
O TNF-α e a IL-1 fazem com que as células endoteliais expressem um seguidos pela reperfusão visceral (choque, transplantes,
receptor em sua membrana, conhecido como E-Selectina; este permite a revascularizações) e os estados in amatórios sistêmicos, aumentam
adesão de neutrófilos (leucócitos Polimorfonucleares – PMN). Uma vez de forma importante a formação dos RLDO.
aderidos, os PMN aumentam a permeabilidade capilar e favorecem a sua
passagem e a de outros leucócitos para o tecido lesado. Embora traga
Na hipoperfusão tecidual, estabelece-se, em nível celular, bloqueio da
benefícios ao hospedeiro, esse fenômeno, quando exacerbado, pode
enzima citocromo-oxidase da cadeia respiratória de transporte de elétrons.
ocasionar síndrome da angústia respiratória, além de facilitar o
Paralelamente, advém a anaerobiose e a degradação das bases purínicas.
aparecimento de lesões decorrentes do processo de isquemia-reperfusão;
Instala-se a acidose intracelular. Quando há restabelecimento reperfusão
nesse caso, os PMN liberam quantidades excessivas de espécies reativas de
visceral, a xantina oxidase e a hipoxantina (um dos produtos da degradação
oxigênio.
do ATP) catalisam, junto com o oxigênio que chega ao tecido, uma reação
capaz de incorporar elétrons. Disso resulta a síntese do radical superóxido
O óxido nítrico e a prostaciclina (PGI2) possuem ação vasodilatadora e (O2-), que através de sucessivas reduções monovalentes e mais a captação
diminuem a função plaquetária, estando ambas as substâncias aumentadas de novos elétrons e de hidrogênio, forma outros radicais livres, como o
no trauma e no choque séptico. peróxido de hidrogênio (H2O2) e o mais deletério deles, o ânion
hidroxila (OH-), que requer a presença do ferro como catalisador da reação
Os níveis de Endotelina (ET), um potente vasoconstritor produzido pelo que o produz. A liberação de ferro é comum após agressão tecidual, seja ela
endotélio, se encontram elevados no choque e no trauma. Seus valores de origem traumática ou infecciosa.
possuem correlação direta com a magnitude da lesão. A ET apresenta um
efeito constritor sobre a vasculatura, cerca de dez vezes superior ao da
angiotensina II. Existem normalmente três receptores para esse mediador:
ETA, ETB e ETC. De forma até certo ponto paradoxal, o receptor ETB,
quando ativado, produz prostaciclina e óxido nítrico, substâncias
vasodilatadoras.
Existem mecanismos de defesa intracelular capazes de inativar esses Os leucotrienos são potentes quimiotáxicos para os neutrófilos ativados;
radicais (superóxido dismutase, catalase e sistema glutation), porém estas seus principais efeitos incluem aumento da permeabilidade vascular,
reservas biológicas naturais esgotam-se quando há manutenção prolongada contração da musculatura lisa do trato gastrointestinal, diminuição do débito
do agente agressor. O superóxido dismutase é encontrado na matriz cardíaco, broncoconstrição e vasoconstrição pulmonar. Dentre os
mitocondrial e no espaço citosólico de todas as células. Paradoxalmente, o leucotrienos, o LTB4 tem sido o mais pesquisado, embora os
superóxido dismutase catalisa a formação do peróxido de hidrogênio, sulfidoleucotrienos (LTC4, LTD4, LTE4) pareçam também exercer
elemento este inativado pela catalase. Essa enzima é encontrada no citosol atividades importantes na resposta inflamatória.
de quase todas as células. O peróxido de hidrogênio é também transformado
em água por intermédio de inativadores tais como o glutation e o
glutation peroxidase. A ação agressiva do anionte hidroxila advém da SISTEMA DA CALICREÍNA
incapacidade orgânica de inativá-lo, em face da ausência de varredor CININAS
(scavenger) específico. No meio extracelular, os inativadores do
A calicreína é uma serina protease (enzima) que se encontra inativa no
metabolismo oxidativo são as hemácias e a ceruloplasmina.
interior das células. Sob estímulos variados, como a presença do fator XII
da coagulação, tripsina e lesão tecidual, esta enzima age sobre o
Proteínas de Choque Térmico (Heat-Schock Proteins – HSP) cininogênio, produzindo bradicinina.

As HSP são produzidas no interior das células e têm como objetivo proteger
estruturas celulares dos danos causados pelo estresse derivado do trauma. A bradicinina aumentada é observada nas queimaduras, na endotoxemia,
Os principais estímulos para síntese das HSP incluem calor, hemorragias e nas hemorragias, na sepse e no trauma. Esta substância aumenta a
hipóxia. A produção de HSP é sensível ao ACTH e parece declinar com a permeabilidade capilar e o edema tecidual, promove dor, inibe a
idade. A participação dessas proteínas na resposta sistêmica ao trauma ainda gliconeogênese e leva a broncoconstrição. Essas observações possuem
não se encontra bem definida. correlação clínica direta com a magnitude da lesão tecidual e com a
mortalidade.

DERIVADOS DO ÁCIDO ARAQUIDÔNICO OU


EICOSANOIDES HISTAMINA E SEROTONINA

Os mediadores lipídicos são liberados por ação dos RLDO, tanto em A histamina se encontra elevada em queimaduras graves, choque

processos de isquemia/reperfusão como em estados inflamatórios. hemorrágico, endotoxemia e sepse. Este mediador é armazenado em
plaquetas, mastócitos, basófilos, pele, mucosa gástrica e neurônios. Altos
níveis de histamina promovem aumento da permeabilidade capilar e
Uma vez ativada, a fosfolipase A2 degrada o ácido araquidônico (principal
hipotensão, além de diminuição do retorno venoso e falência miocárdica.
ácido graxo poliinsaturado nas membranas celulares) por duas vias
enzimáticas principais: a ciclo-oxigenase e a lipo-oxigenase. A via da ciclo-
A serotonina é um neurotransmissor derivado do triptofano, sendo
oxigenase induz a síntese de prostaglandinas e tromboxane, enquanto a ação
encontrado em células cromafins da mucosa gastrointestinal e também em
da lipo-oxigenase promove o surgimento de mediadores como leucotrienos
plaquetas. Promove vasoconstrição, broncoconstrição e agregação
e ácidos hidroxieicosatetranoicos (5-HETE).
plaquetária. Embora seja liberada em locais de lesão tecidual, seu papel na
resposta ao trauma permanece ainda pouco conhecido.
Como vimos antes, a PGI2 é sintetizada pelo endotélio, enquanto as demais
prostaglandinas são produzidas por todas as células nucleadas, com exceção
dos linfócitos. O TXA2 é sintetizado pelas plaquetas. OPIOIDES ENDÓGENOS

Os opioides endógenos são considerados neuropeptídios (endorfinas e


Existem inúmeras prostaglandinas conhecidas. Em 95% dos casos, essas
encefalinas), atuando nos mesmos receptores cerebrais e medulares da
substâncias são inativadas nos pulmões. As PGE2 e PGI2 parecem exercer
morfina; são liberados pela hipófise anterior em resposta a estímulos
uma função inibitória da quimiotaxia, da adesão dos leucócitos e da geração
provenientes da região do trauma. Hipovolemia e infecção também levam a
de radicais livres, apresentando, portanto, ações anti-inflamatórias. Além de
liberação desses mediadores.
exercer essas funções, a PGE2 inibe a gliconeogênese e a lipólise.

Em níveis elevados, os opioides endógenos promovem atonia intestinal,


Em nosso organismo existe um equilíbrio homeostático entre a PGI2 (efeito depressão miocárdica e vasoconstrição, com aumento da resistência
vasodilatador e de antiagregação plaquetária) e o TXA2 (vasoconstrição e periférica. O naloxone é um bloqueador específico de receptores opioides.
agregação plaquetária). A lesão endotelial pelo processo inflamatório e/ou
traumático reduz a presença de prostaglandina sintetase, o que faz VIDEO_05_CIR3
predominar as ações do TXA2. A ruptura desse mecanismo pode causar
ações nocivas às vísceras e ao endotélio.
Sabemos que o prognóstico de uma vítima de queimadura vai depender da
extensão da Superfície Corporal Queimada (SCQ), da profundidade e
localização da lesão, da presença ou não de doenças crônicas associadas e
da idade do paciente (mais grave em crianças e idosos).

O termo grande queimado é usado para designar vítimas de


queimaduras graves, sendo pouco encontrado na literatura
internacional. Muitos serviços em nosso país empregam o termo para
toda a vítima de queimadura que necessita de atendimento em CETQ
(ver adiante a Tabela 2)...

Por outro lado, a American Burn Association define uma grande


queimadura (major or severe burn) quando observamos qualquer um
dos seguintes:

● Envolvimento maior ou igual a 25% de SCQ em faixa etária de 10 a


40 anos;

● Envolvimento maior ou igual a 20% de SCQ em crianças com


menos de dez anos ou em adultos com mais de 40 anos;
envolvimento de 10% ou mais de SCQ em queimaduras de terceiro
grau (espessura total);

● Qualquer queimadura envolvendo olhos, ouvidos, face, mãos, pés


ou períneo que resulte em comprometimento funcional;

● Queimaduras elétricas de alta voltagem;

QUEIMADURAS ● Toda queimadura complicada por trauma grave ou lesão por


inalação;
VIDEO_06_CIR3
● Todos os pacientes queimados que apresentam comorbidades
Definimos queimadura como uma lesão tecidual decorrente de trauma graves.
térmico, elétrico, químico ou radioativo, que destrói parcialmente ou
totalmente a pele e seus anexos, podendo alcançar camadas mais profundas A queimadura de primeiro grau deve ser sempre excluída, pois não

como o tecido celular subcutâneo, músculos, tendões e ossos. traz repercussões sistêmicas nem funcionais (queimadura solar, por
exemplo).

Nos Estados Unidos, aproximadamente dois milhões de indivíduos sofrem


queimaduras anualmente. Destes, aproximadamente 100.000 necessitarão
de internação hospitalar, com 5.000 óbitos. No Brasil ainda não dispomos
de um banco de dados nacional com informações sobre queimaduras e as TAB. 2 INDICAÇÕES DE ADMISSÃO EM CETQ (FONTE: ATLS).
estatísticas oficiais não apresentam números consistentes. O que sabemos é
que em nosso país a maioria das vítimas é do sexo masculino,
predominantemente adultos jovens entre 20 e 29 anos e crianças menores de
dez anos.

Embora em alguns casos a lesão tenha efeito devastador, observamos


principalmente em países desenvolvidos uma discreta redução na
mortalidade nas vítimas de queimaduras. Este fenômeno é resultado de
diversos fatores, tais como um melhor atendimento pré-hospitalar, com uma
correta abordagem da via aérea e o início precoce de reposição volêmica, e
um melhor entendimento das alterações humorais e metabólicas que doentes
graves desenvolvem. O tratamento em Centro Especializado em Tratamento
de Queimados (CETQ) tem contribuído também para a redução no número
de óbitos.

A ótima qualidade do tratamento do paciente queimado não implica


somente em uma melhora na sobrevida, mas também na recuperação da
funcionalidade do segmento atingido e na manutenção do aspecto cosmético
da área comprometida. Sendo assim, a participação de uma equipe de
cirurgia plástica habituada a lidar com esses pacientes é de fundamental
importância.
1. Queimadura de espessura parcial (2º grau) maior do que 10%. 1. Queimaduras cervicais ou faciais.

2. Queimadura envolvendo a face, olhos, ouvidos, mãos, pés, 2. Chamuscamento dos cílios e vibrissas nasais.
genitália, períneo ou a pele envolvendo grandes articulações.
3. Depósitos de carbono e alterações in amatórias agudas na
3. Queimadura de espessura total (3º grau) de qualquer tamanho orofaringe.
em qualquer faixa etária.
4. Escarro carbonado.
4. Queimaduras elétricas graves, incluindo acidentes com raios
5. Rouquidão.
(acometimento de tecidos profundos pode levar à insu ciência
renal ou a outras complicações). 6. História de confusão mental e/ou con namento no local do
incêndio.
5. Queimaduras químicas importantes.
7. História de explosão com queimaduras de cabeça e tronco.
6. Lesão por inalação da via aérea.
8. Níveis sanguíneos de carboxi-hemoglobina > 10%. A
7. Pacientes com doenças prévias, que podem di cultar o
intoxicação por monóxido de carbono deve ser suspeitada em
tratamento, prolongar a recuperação ou aumentar a
queimaduras em recintos fechados.
mortalidade de um episódio de queimadura.

8. Toda a vítima de queimadura associada a trauma. Caso o


De acordo com a American Burn Life Support, a intubação
trauma imponha um maior risco de morbidade e mortalidade,
endotraqueal precoce deve ser realizada nos seguintes casos: (1) sinais de
a vítima deve ser tratada primeiro em um Centro de Trauma e,
obstrução da via aérea, como rouquidão, estridor, uso de musculatura
após estabilização, ser transferida para um CETQ. Em casos
acessória ou retração esternal; (2) SCQ estimada > 40-50%; (3)
onde a queimadura impõe um maior risco de morbidade e
queimaduras faciais profundas e extensas; (4) queimaduras no interior da
mortalidade, o tratamento inicial deve ser em um CETQ.
boca; (5) edema significativo ou risco para edema; (6) dificuldade na
9. Crianças vítimas de queimaduras atendidas em hospitais sem deglutição; (7) sinais de comprometimento respiratório, como incapacidade
equipe quali cada e sem material e equipamento adequados. de clarear secreções, fadiga respiratória ou oxigenação/ventilação
insuficientes; (8) rebaixamento do nível de consciência; e (9) transferência
10. Queimadura em pacientes que necessitem intervenções
de grande queimado com equipe de transporte não treinada para acesso
especiais sociais, emocionais ou reabilitação prolongada.
imediato à via aérea, caso necessário.

A mortalidade em pacientes queimados apresenta distribuição bimodal,


À exceção das queimaduras elétricas ou dos casos de intoxicação grave por
ocorrendo imediatamente após a lesão (principal causa) ou semanas mais
monóxido de carbono (CO), raramente há necessidade de manobras de
tarde, neste caso tendo como etiologia mais frequente a falência
ressuscitação cardiorrespiratória imediatas no momento do primeiro
multiorgânica, geralmente associada à sepse grave ou ao choque séptico.
atendimento.

As queimaduras térmicas, por chama ou por líquidos ou sólidos


Após o controle das vias aéreas, o próximo passo é interromper o processo
superaquecidos, são as mais frequentes. Geralmente a lesão por escaldos é
de queimadura. Toda a roupa do doente deve ser removida, uma vez que
mais encontrada na população pediátrica, ao passo que os acidentes com
determinados tecidos sofrem combustão com grande facilidade; joias e
chama são mais observados em adultos. No final do capítulo estudaremos
anéis devem ser retirados de imediato devido ao edema tecidual que se
também as queimaduras químicas e elétricas.
instala rapidamente. A área queimada deve ser irrigada. Contudo, existe
uma controvérsia na literatura quanto a temperatura do fluido a ser
utilizado. O livro-texto Sabiston Textbook of Surgery, 20ª edição, cita
PRIMEIRO ATENDIMENTO À VÍTIMA DE
água à temperatura ambiente, empregada nos primeiros 15 minutos do
QUEIMADURA
acidente; a 10ª edição do ATLS recomenda descontaminar a área queimada
VIDEO_07_CIR3 lavando-a com salina morna; e alguns textos descrevem o uso de água fria
Nunca devemos esquecer que a vítima de queimadura grave é considerada para queimaduras térmicas não tão graves, acompanhada de compressas de
uma vítima de trauma e, portanto, seu atendimento deve obrigatoriamente salina a 12ºC, por 15 a 30 minutos.
seguir uma ordem, ser sistematizado.
O uso de gelo está contraindicado, uma vez que pode aumentar a área
Em pacientes que sofreram queimaduras em incêndios, o nosso passo inicial queimada e/ou provocar hipotermia. O paciente então deve ser recoberto por
é afastar a vítima das chamas, naturalmente. A seguir, a atenção deve ser lençóis limpos e secos para que se evite a hipotermia.
dada à via aérea. De acordo com o ATLS, existem algumas evidências que
nos indicam alta probabilidade de comprometimento dessa estrutura A etapa seguinte é o acesso venoso, que deve ser obtido com cateter
(Tabela 1). calibroso em veia periférica (no mínimo 16G), de preferência em membros
superiores. Na presença de grande superfície acometida, a punção sobre
área queimada é permitida. Na inviabilidade de se obter uma veia adequada

TAB. 1 EVIDÊNCIAS DE ENVOLVIMENTO DA VIA AÉREA NO


PRIMEIRO ATENDIMENTO.
em membros superiores, o acesso venoso em membros inferiores (safena)
deve ser empreendido, através de dissecção; contudo, em doentes
queimados, o acesso em safena tem maior associação a flebites. A punção
de veia profunda seria a nossa terceira opção…
Embora a infusão intraóssea seja hoje em dia permitida em adolescentes e
COMPROMETIMENTO DA VENTILAÇÃO
adultos em situações especiais, nas vítimas de queimaduras, esta
modalidade de acesso se encontra restrita a crianças com menos de seis anos
LESÃO TÉRMICA, LESÃO PULMONAR POR
de idade, em caráter temporário. INALAÇÃO, INTOXICAÇÃO POR MONÓXIDO DE
CARBONO, INTOXICAÇÃO POR CIANETO E
Exceto nas queimaduras de primeiro grau, todas as vítimas com lesões mais RESTRIÇÃO A EXPANSÃO TORÁCICA
graves, com mais de 20% de SCQ, devem receber volume o mais rápido
Muitos autores incluem no termo lesão por inalação, tanto a lesão térmica
possível, através de infusão de cristaloides (Ringer lactato). A quantidade
da via aérea superior quanto a lesão pulmonar por inalação.
inicialmente administrada no atendimento pré-hospitalar, geralmente
obedece à seguinte fórmula: peso estimado do paciente (kg) × SCQ
estimada/8, por hora. Se possível, um cateter vesical deve ser instalado para A lesão por altas temperaturas da via aérea geralmente se estende até as
aferição da diurese. cordas vocais e, menos frequentemente, vai até a bifurcação traqueal. Os
indivíduos em risco são aqueles com envolvimento de face e pescoço por
queimaduras que ocorrem em ambiente fechado. Na via aérea superior, o
Sendo assim, em um paciente de aproximadamente 70 kg, com cerca de
edema da mucosa e submucosa, assim como sangramento e ulcerações de
40% de SCQ, a infusão de cristaloide será de 70 × 40/8, o que é igual a 350
faringe, laringe e cordas vocais, são fatores que podem comprometer
ml/h.
agudamente a ventilação. Como vimos antes, a presença de rouquidão ou
estridor são indicações de acesso definitivo à via aérea. O termo lesão
Caso um CETQ localize-se a mais de 30 minutos de carro do local do
térmica dos pulmões é inapropriado, uma vez que raramente ocorre, pois o
acidente, é recomendável que o atendimento intra-hospitalar inicial seja
calor se dispersa na faringe…
realizado em serviço de emergência próximo. A Tabela 2 nos fornece as
principais indicações de admissão em CETQ.
A lesão pulmonar por inalação ocorre quando a fumaça produzida pela
combustão de elementos que se encontram no ambiente em chamas alcança
a via aérea infraglótica, ocasionando lesão em brônquios, bronquíolos e
TAB. 2 INDICAÇÕES DE ADMISSÃO EM CETQ (FONTE: ATLS).
alvéolos. Alterações sugestivas incluem sibilos e/ou produção excessiva de
muco e escarro carbonáceo. As vítimas habitualmente se encontram em
1. Queimadura de espessura parcial (2º grau) maior do que 10%.
recinto fechado. A evolução para insuficiência respiratória é a complicação
2. Queimadura envolvendo a face, olhos, ouvidos, mãos, pés, mais temida, geralmente não ocorrendo antes das primeiras 24 horas do
genitália, períneo ou a pele envolvendo grandes articulações. acidente.
3. Queimadura de espessura total (3º grau) de qualquer tamanho
em qualquer faixa etária. A intoxicação pelo monóxido de carbono (CO) deve ser suspeitada
em todo o indivíduo que inalou fumaça; mais uma vez, existe história de
4. Queimaduras elétricas graves, incluindo acidentes com raios
queimadura por chama em locais fechados. Sabemos que o CO possui uma
(acometimento de tecidos profundos pode levar à insu ciência
afinidade pela hemoglobina 240 vezes superior ao do oxigênio. As
renal ou a outras complicações).
manifestações clínicas da intoxicação estão na dependência dos níveis de
5. Queimaduras químicas importantes. Carboxi-Hemoglobina (COHb) no sangue, que por sua vez, estão
6. Lesão por inalação da via aérea. diretamente relacionados ao tempo de exposição a fumaça:

7. Pacientes com doenças prévias, que podem di cultar o


tratamento, prolongar a recuperação ou aumentar a
COHb < 20% Não há sintomas
mortalidade de um episódio de queimadura.
COHb entre 20 e 30% Cefaleia e náusea
8. Toda a vítima de queimadura associada a trauma. Caso o
COHb > 30 até 40% Confusão mental
trauma imponha um maior risco de morbidade e mortalidade,
a vítima deve ser tratada primeiro em um Centro de Trauma e, COHb > 40 até 60% Coma
após estabilização, ser transferida para um CETQ. Em casos COHb > 60% Óbito
onde a queimadura impõe um maior risco de morbidade e
mortalidade, o tratamento inicial deve ser em um CETQ.
A coloração vermelho-cereja da pele raramente é encontrada. Quando
9. Crianças vítimas de queimaduras atendidas em hospitais sem suspeitamos de intoxicação, devemos administrar imediatamente oxigênio a
equipe quali cada e sem material e equipamento adequados. 100%, em alto fluxo, através de máscara unidirecional, sem recirculação. A

10. Queimadura em pacientes que necessitem intervenções medida da PaO2 não é fidedigna para nos dar o diagnóstico;

especiais sociais, emocionais ou reabilitação prolongada. aproximadamente 1 mmHg de pressão parcial de CO resulta em níveis de
carboxi-hemoglobina de 40%. O oxímetro de pulso não é capaz de sugerir a
exposição ao CO, uma vez que não consegue diferenciar a COHb da
Na chegada ao CETQ ou a uma Emergência, os médicos responsáveis
oxiemoglobina.
devem reavaliar a via aérea e a hemodinâmica do paciente, tendo
conhecimento do volume de líquidos infundido até o momento. Após essas
etapas, a atenção deve ser voltada para a área queimada (ver adiante).
A intoxicação por cianeto é ocasionada por fumaça derivada da A descompressão gástrica é recomendada para o transporte devido ao íleo
combustão de alguns elementos no meio ambiente em chamas (poliuretano, paralítico (catecolaminas e opioides endógenos) e decorrente distensão
náilon, lã e algodão). O cianeto inibe o metabolismo aeróbico e pode abdominal.
resultar rapidamente em óbito. As manifestações clínicas da exposição ao
cianeto são totalmente inespecíficas e seus níveis não podem ser aferidos O controle da dor, principalmente em queimaduras de segundo grau, é de
com precisão de forma rápida. Sendo assim, seu tratamento deve ser suma importância. Podemos empregar a morfina em doses intravenosas de 2
empírico, ou seja, mediante suspeita (rebaixamento do nível de consciência a 5 mg até o alívio sintomático, sendo importante a observação das
em queimados em recintos fechados…). A conduta é a administração de variações da pressão arterial. As queimaduras de terceiro grau costumam
tiossulfato de sódio e hidroxicobalamina. causar mais ansiedade que propriamente dor, estando indicado nesses casos
o emprego de benzodiazepínicos.
As queimaduras de espessura total (terceiro grau) deixam a área queimada
com uma textura semelhante a um couro, ou seja, há perda completa da
elasticidade no local acometido. Quando toda ou quase toda a circunferência AVALIAÇÃO DA ÁREA QUEIMADA
do tórax é envolvida por esta lesão, sobrevém insuficiência respiratória por
VIDEO_08_CIR3
restrição à expansão torácica. Esta situação, que representa outra
A determinação do percentual da SCQ é de importância fundamental, sendo
causa de comprometimento agudo da ventilação, tem que ser reconhecida
este valor diretamente proporcional à gravidade da lesão, funcionando como
imediatamente. O tratamento instituído é a escarotomia da lesão, ou seja, a
índice prognóstico. Vários são os diagramas e fórmulas para sua
incisão da área queimada até o subcutâneo; este procedimento restabelece
determinação, mas uma regra simples, "a regra dos nove de Wallace",
de imediato a expansibilidade do tórax.
permite avaliação rápida e segura da área queimada em adultos. O corpo de
um adulto é dividido em regiões anatômicas que representam 9%, ou
múltiplos de 9%, da superfície corporal total.
RESSUSCITAÇÃO VOLÊMICA NA SALA DE
EMERGÊNCIA
Sendo assim, cada membro superior corresponde a 9% da superfície
Em pacientes com SCQ superior a 20%, ocorre uma intensa produção de corporal total (4½ região anterior e 4½ região posterior), cada membro
citocinas pela área queimada capaz de promover resposta sistêmica inferior 18% (9% região anterior e 9% região posterior), o tronco 36% (18%
inflamatória, com aumento importante da permeabilidade capilar e perda região anterior e 18% região posterior), cabeça e o pescoço 9% (4½ região
generalizada de fluidos e proteínas do intravascular para o terceiro espaço. anterior e 4½ região posterior) e o períneo e a genitália, juntos, 1%. Vale
A perda de líquidos do compartimento intravascular leva a uma redução do lembrar que nas crianças, a cabeça corresponde ao percentual maior (duas
Débito Cardíaco (DC), que somada ao aumento do tônus adrenérgico (ver vezes maior do que a de um adulto normal) e os membros inferiores
capítulo 1), promove hipoperfusão de pele e vísceras. A diminuição da apresentam valores menores do que os encontrados em adultos.
perfusão cutânea pode agravar a área queimada, aumentando sua
profundidade. A redução do DC resulta em hipoperfusão do sistema Outra forma de calcular porcentagem da SCQ, sobretudo em queimaduras
nervoso central e pode ocasionar, em indivíduos com baixa reserva de distribuição irregular, é considerar como 1% da superfície corporal a área
coronariana, infarto agudo do miocárdio. correspondente da palma da mão e dedos estendidos do paciente,
transferindo essa medida para as regiões afetadas.
A reposição volêmica, se ainda não iniciada no atendimento pré-hospitalar,
deve começar com Ringer lactato conforme a fórmula: peso × SCQ/8, por O diagrama de Lund e Browder nos fornece uma avaliação mais detalhada
hora. É aconselhável passagem de cateter vesical de Foley para a medida da (de acordo com diferentes faixas etárias), sendo empregado em muitos
diurese horária, que representa o melhor parâmetro para CETQ (ver Figura 1 e Tabela 3).
acompanharmos a reposição de volume. O débito urinário deve ser mantido
em torno de 0,5 a 1 ml/kg/h e em 1 ml/kg/h em crianças com 30 kg ou
menos.

Sítios ideais para punção venosa localizam-se nos membros superiores,


sendo preferível a punção em região de pele íntegra. Em queimaduras
extensas é permitida a punção através de pele queimada para não atrasar a
reposição volêmica.

Uma vez admitido em CETQ, o cálculo da SCQ é mais preciso. Nesse


momento, a infusão de líquido deve continuar, porém tendo como base
outras fórmulas preestabelecidas (ver adiante).

OUTRAS MEDIDAS

Uma dose de reforço do toxoide tetânico (0,5 ml) deve ser aplicada em
todos os pacientes com área queimada superior a 10%, sobretudo quando
não está disponível história de imunização.
FIG. 1 Método de Wallace (regra dos nove), de acordo com o ATLS.
Muita atenção, pois no livro-texto Sabiston Textbook of Surgery (20ª
edição), em adultos, o 1% relativo ao períneo é "transferido" para o
pescoço.

FIG. 2 A: pele normal; B esquema representativo das camadas da pele,


relacionando-as às queimaduras.

As queimaduras de primeiro grau (Figura 3) ou superficiais, são


limitadas à epiderme e manifestam-se clinicamente através de eritema,
secundário à vasodilatação, e dor moderada, não ocorrendo bolhas nem
comprometimento dos anexos cutâneos (folículos pilosos, glândulas
sudoríparas e sebáceas). Não há fibrose na sua resolução, sendo essas lesões
tratadas através de analgesia com anti-inflamatórios orais e soluções tópicas
Torna-se necessária a determinação da profundidade da queimadura que, hidratantes. Exemplo clássico é a queimadura por exposição ao sol. As
juntamente com a extensão da superfície queimada e a idade, é o principal queimaduras de primeiro grau não possuem significado fisiológico de
determinante da mortalidade (ver Figura 2). impacto (exceto nos extremos da idade), não sendo consideradas em
cálculos de SCQ.
FIG. 3 QUEIMADURA DE PRIMEIRO GRAU: observe o eritema da
epiderme. A derme é poupada aqui.

As queimaduras de segundo grau super ciais (Figura 4) caracterizam-se


por comprometer toda a epiderme até porções superficiais da derme
(camada papilar), apresentando-se muito dolorosas, com superfície rosada,
úmida e com presença de bolhas. Estas surgem em 12 a 24h, o que pode nos
levar à classificação errônea de queimadura de primeiro grau no
atendimento inicial. Não ocorrendo infecção, essas lesões tendem a
cicatrizar em até três semanas com resultado estético bom, sendo raras as
cicatrizes hipertróficas.

FIG. 4 QUEIMADURA DE SEGUNDO GRAU: comprometimento da derme


com formação de bolhas.

As queimaduras de segundo grau profundas acometem toda a


espessura da epiderme e se estendem pela derme envolvendo sua camada
reticular. A pele apresenta-se seca com coloração rosa pálido e, dependendo
do grau de comprometimento da vascularização, a dor é moderada. Quando
ocorre alteração na sensibilidade, observa-se diminuição da sensibilidade
tátil com preservação da sensibilidade à pressão (barestésica). Estas lesões
costumam cicatrizar entre três a nove semanas, sendo comum a formação de
cicatrizes não estéticas e risco razoável de cicatrização hipertrófica,
principalmente em afrodescendentes e crianças.
O ATLS não cita essa classificação da queimadura de segundo grau que Queimaduras de quarto grau acometem toda a espessura da pele,
acabamos de estudar. Em seu texto, as queimaduras de segundo grau, tecido celular subcutâneo e alcançam tecidos profundos como músculo e
independente se superficiais ou profundas, são chamadas de queimaduras de ossos. Exemplo típico é a queimadura elétrica.
espessura parcial.
A determinação da profundidade da lesão geralmente é feita através dos
Nas queimaduras de terceiro grau (espessura total de acordo com o sinais e sintomas descritos acima. Atualmente, métodos complementares
ATLS – Figura 5), ocorre comprometimento de toda a espessura da como a fluorometria com fluoresceína, a fluxometria com Doppler, o
epiderme, da derme e parte do tecido celular subcutâneo (hipoderme). A ultrassom e a ressonância magnética aumentam a precisão diagnóstica.
área queimada pode apresentar-se pálida e esbranquiçada (como uma cera)
ou mesmo enegrecida ou vermelho-amarelada, podendo ser visto na sua
base vasos coagulados. Sua textura é firme, semelhante ao couro, e a RESPOSTA ENDÓCRINA E HUMORAL À
sensibilidade tátil e a pressão encontram-se diminuídas. A cicatrização só QUEIMADURA
ocorre à custa de contração importante da ferida ou através de enxerto
cutâneo. Na resposta ao trauma, diversos mediadores inflamatórios são liberados da
área queimada, levando a aumento da permeabilidade capilar local e à
distância. Este fenômeno ocasiona perda de líquido do meio intravascular
para o terceiro espaço. Como vimos no capítulo 1, os níveis de hormônios
catabólicos persistentemente altos somados à elevação de determinadas
citocinas promovem hipermetabolismo intenso.

Não havendo infecção, as manifestações circulatórias geralmente


desaparecem em 24 horas, entretanto, o estado de hipermetabolismo persiste
até a reepitelização da ferida, que pode levar algumas semanas.

CHOQUE DA QUEIMADURA

Este é um termo empregado para descrever o aumento significativo da


permeabilidade capilar em áreas queimadas e não queimadas, que ocorre
logo após o acidente. O aumento da permeabilidade capilar é reflexo de uma
disfunção da microcirculação. Os principais mediadores responsáveis por
este distúrbio incluem histamina, bradicinina, prostaciclina (PGI2) e
prostaglandina E2 (PGE2).

HIPERMETABOLISMO

Com a elevação de citocinas e de hormônios que promovem catabolismo


tecidual (cortisol, catecolaminas, glucagon etc.), a taxa metabólica basal
pode aumentar em 200% acima do normal. Como vimos no capítulo 1,
ocorre intensa proteólise e lipólise. Na ausência de suporte nutricional, as
reservas proteicas rapidamente se esgotam, levando à desnutrição e à perda
de tecido muscular ativo.

As catecolaminas representam o principal mediador endócrino do


hipermetabolismo, sendo o cortisol hormônio permissivo para sua ação.

Ao contrário de uma cirurgia eletiva, os níveis de insulina se encontram


aumentados. Todavia, este fenômeno não interfere em nada na resposta
FIG. 5 QUEIMADURA DE TERCEIRO GRAU: comprometimento de toda a metabólica, que se caracteriza por resistência periférica a esse hormônio e
derme e parte do subcutâneo também.
produção basal de glicose elevada.

Em resposta à lipólise, os ácidos graxos são liberados dos depósitos de


Como vimos antes, as queimaduras de terceiro grau com disposição
gordura e se dirigem ao fígado onde são reesterificados como triglicerídeo,
circunferencial em tórax podem determinar insuficiência respiratória.
promovendo esteatose. Curiosamente a maior parte não é oxidada para ser
Quando dispostas circunferencialmente em um dos membros, por exercer
utilizada como fonte energética.
compressão, pode determinar hipoperfusão distal importante. O tratamento
para todos os casos é a escarotomia. Nos membros, escarotomias do tipo
longitudinal medial devem ser realizadas.
As necessidades calóricas podem ser fornecidas por diversas fórmulas. A
RESPOSTA IMUNE À QUEIMADURA
desenvolvida por Curreri, por exemplo, recomenda 25 kcal/kg/dia somada a
40 kcal por área de SCQ, por dia. Outra fórmula, empregada nos pacientes Ocorre na área queimada aumento na produção de fator de necrose tumoral-
com 40% ou mais de SCQ, multiplica por dois o resultado dos cálculos da alfa (TNF-α), Interleucina-1 (IL-1) e Interleucina-6 (IL-6). Estas citocinas
fórmula clássica de gasto energético basal de Harris-Benedict. Muitos ganham a circulação e promovem efeitos sistêmicos. A IL-1 e a IL-6
autores recomendam o cálculo da taxa metabólica basal através da funcionam como fatores quimiotáticos para neutrófilos. A IL-6 é um
calorimetria indireta. A este valor multiplica-se 1,4 para estimarmos as potente estimulador da síntese de proteínas de fase aguda pelo fígado. Os
necessidades calóricas a serem ofertadas para esses doentes. níveis de IL-2 se encontram deprimidos, o que pode justificar um deficit
transitório na imunidade celular.
A composição ideal da dieta contém cerca 1 a 2 g/kg/dia de proteína, com
esses valores suprindo as necessidades sintéticas do paciente e ao mesmo Além de uma disfunção na resposta imune de origem celular, o paciente
tempo atenuando a proteólise que ocorre no tecido muscular ativo. As queimado apresenta imunidade humoral alterada, com diminuição na
calorias não proteicas podem ser administradas sob a forma de carboidratos produção de Imunoglobulina G (IgG). Observa-se também alteração na
e/ou gorduras. A via enteral é a preferida, com a dieta sendo administrada função de macrófagos e neutrófilos.
através de sonda em posição pós-pilórica (nasojejunal). O suporte
nutricional parenteral por veia central apresentou uma maior taxa de A depressão global na função imune prolonga muitas vezes a sobrevida de
complicação e óbito. Embora essas sejam as recomendações descritas no aloenxertos e coloca a vítima de queimaduras extensas em risco aumentado
livro-texto Sabiston Textbook of Surgery, a European Society for de desenvolver complicações infecciosas, como pneumonias bacterianas,
Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN) recomenda para o infecções virais e fúngicas e infecção da área queimada.
paciente grande queimado a oferta proteica de 1,5 a 2 g/kg/dia, em adultos,
e 1,5 a 3 g/kg/dia, em crianças.
REPOSIÇÃO VOLÊMICA NO PACIENTE
Existem algumas drogas que podem ser administradas com o intuito de QUEIMADO
reduzir o hipermetabolismo desses pacientes. Os betabloqueadores, usados
VIDEO_09_CIR3
para baixar em 20% a frequência cardíaca, foram capazes de reduzir a perda
de massa corporal de 9% para 1%. O uso de propranolol representa uma das
terapias mais eficazes contra o hipercatabolismo de doentes queimados. A
RESSUSCITAÇÃO VOLÊMICA
droga reduz a infiltração hepática por gordura (por diminuir a lipólise
periférica), o que previne o aumento do fígado (evitando assim a disfunção Como vimos antes, a reposição volêmica adequada é crucial no tratamento
do diafragma); trabalhos demonstraram também que o propranolol reduz o do paciente com mais de 20% de SCQ. A infusão de líquidos deve ser
desgaste da musculatura esquelética e aumenta a massa corporal magra no iniciada, de preferência, já no ambiente pré-hospitalar. Em CTQ, após um
período pós-queimadura. Curiosamente, observa-se a presença de síntese cálculo mais preciso da área envolvida, a administração de líquidos obedece
proteica mesmo em um ambiente francamente catabólico, com lipólise e a fórmulas mais rigorosas, que descreveremos a seguir. É importante que o
proteólise. As necessidades de insulina para controle da hiperglicemia volume prescrito até este momento seja também contabilizado (ambiente
também se reduzem nas vítimas betabloqueadas. A dose de propranolol pré-hospitalar mais emergência, por exemplo).
sugerida é de 4 mg/kg nas 24 horas. A dose ideal deve reduzir a frequência
cardíaca basal em 15-20%. A experiência clínica demonstrou que o uso de coloides é desnecessário nas
primeiras 24 horas, uma vez que a permeabilidade capilar intensa permite a
O uso de oxandrolona, um esteroide anabolizante, foi capaz de aumentar a passagem de grandes moléculas para o espaço extravascular, aumentando a
síntese proteica e a mineralização óssea, sobretudo em crianças. Estudos osmolaridade deste compartimento. Essa diferença osmótica faz com que o
demonstraram que a administração de oxandrolona, na dose de 10 mg a meio extracelular "puxe" mais líquido do intravascular.
cada 12 horas, foi capaz de diminuir o tempo de internação hospitalar.

A última edição do ATLS (10ª) recomenda uma reposição inicial de volume,


O emprego de hormônio do crescimento recombinante humano (rhGH) nas primeiras 24 horas, de 2 ml de Ringer lactato × peso do paciente
mostrou-se inicialmente benéfico. Agindo através de seu mediador (em kg) × SCQ. Metade do volume infundido nas primeiras oito horas, a
produzido no fígado, a IGF-1 (Insulin Growth Factor do tipo 1), esta contar do momento do acidente, e a outra metade nas 16 horas
droga reduziu a intensidade do catabolismo proteico e demonstrou atenuar o subsequentes. Esta equação foi finalmente estabelecida após consenso da
estado hipercinético das vítimas (reduzindo o DC). Contudo, estudos American Burn Association.
recentes demonstraram uma intensificação da resistência insulínica e da
hiperglicemia em doentes queimados graves que usaram o rhGH. Outros É importante termos em mente que o resultado inicial desse cálculo
trabalhos (Branski e cols.) citaram um aumento na morbidade e mortalidade representa o volume que será iniciado; posteriormente, a infusão deverá ser
de pacientes que receberam altas doses do hormônio. ajustada (para mais ou para menos), com o objetivo de manter um débito
urinário, em adultos, de 0,5 ml/kg/h e, em crianças ≤ 30 kg, de 1 ml/kg/h;
Mais recentemente, o emprego de IGF-1 recombinante demonstrou atenuar nesta população pediátrica, recomenda-se a administração de solução
o catabolismo proteico e melhorar a integridade da mucosa intestinal, tanto glicosada juntamente com o Ringer. A Tabela 4 descreve as recomendações
em crianças como adultos com queimaduras graves. Não foram observadas da American Burn Association descritas no ATLS.
complicações semelhantes as do uso do rhGH.
A área queimada deve ter curativos trocados duas vezes ao dia. O curativo
oclusivo pode ser aplicado em quatro camadas: atadura de tecido sintético
(rayon) ou morim contendo antibiótico tópico, gaze absorvente, algodão
hidrófilo e atadura de crepe. Face e períneo devem receber curativo exposto.
Os antimicrobianos tópicos podem ser o acetato de mafenida a 5%, o nitrato
de prata a 0,5% ou a sulfadiazina de prata a 1% e o nitrato de cério a 0,4%.
Todos são eficazes na prevenção de infecção.

A sulfadiazina de prata a 1% não produz dor na aplicação; apresenta


como reação adversa neutropenia, geralmente reversível. É inativa contra
Um volume administrado insuficiente resulta em hipoperfusão e lesão várias cepas de Pseudomonas aeruginosa e Enterococcus spp.
orgânica; por outro lado, uma infusão excessiva de líquidos pode agravar o Muitos serviços empregam a sulfadiazina de prata como primeira escolha;
edema, fenômeno que tem como consequências: (1) progressão da geralmente, a medicação é associada ao nitrato de cério a 0,4% nos
queimadura para planos mais profundos e (2) síndrome compartimental de primeiros três dias e depois empregada de forma isolada.
abdome ou extremidades.
A mafenida caracteriza-se por ampla atividade contra Gram-negativos,
Agora, é importante termos em mente que os principais livros-texto e, principalmente Pseudomonas spp. Tem indicação precisa nas feridas
sobretudo, muitas questões de residência médica, ainda adotam a famosa infectadas e com tecido necrótico, pois penetra bem nas escaras e evita a
fórmula de Parkland! É o que vocês podem encontrar ainda nas provas que proliferação bacteriana. O principal efeito indesejável é a dor desencadeada
estão por vir. Esta fórmula recomenda a administração nas primeiras 24 por sua aplicação. A acidose metabólica, resultante da inibição da anidrase
horas de um volume de Ringer lactato correspondente a 4 ml × peso do carbônica, pode surgir como efeito colateral. Na prática, a mafenida é pouco
paciente (em kg) × SCQ. Metade é infundido nas primeiras oito horas, a utilizada.
contar do momento em que ocorreu o acidente, e a outra metade nas 16
horas restantes. Outras fórmulas, como de Brooke e Galveston (fórmula
O nitrato de prata apresenta amplo espectro antimicrobiano e é indolor à
pediátrica), ainda se encontram presentes na última edição do livro-texto
aplicação, porém não consegue grande penetração na queimadura. Pode
Sabiston Textbook of Surgery (20ª). A Tabela 5 descreve estas
levar à perda de sódio, potássio e cloretos através da área queimada,
fórmulas que acabamos de citar. ocasionando distúrbios hidroeletrolíticos. A mupirocina é indolor e a mais
efetiva contra Staphylococcus aureus.

Nas queimaduras de segundo grau superficiais, muitos serviços optam pelo


uso de curativos biológicos ou sintéticos enquanto se aguarda a
cicatrização da ferida. Estes devem ser aplicados nas primeiras 24 horas da
queimadura, antes que uma alta taxa de colonização bacteriana apareça; não
são empregados antimicrobianos tópicos. Os curativos biológicos podem ser
de pele de cadáver (aloenxertos) ou de porco (xenoenxertos); os curativos
sintéticos são constituídos geralmente de silicone e colágeno (alguns
possuem fatores de crescimento) e podem auxiliar no processo de
CUIDADOS COM A QUEIMADURA epitelização da área queimada.

VIDEO_10_CIR3 As queimaduras de segundo grau profundas e as de terceiro grau são


A realização de desbridamento com retirada de corpos estranhos e tecidos tratadas com excisão da área queimada e substituição por enxerto retirado
desvitalizados e a limpeza da ferida (água e clorexidina degermante a 2%) de áreas doadoras do próprio paciente. Atualmente essa tem sido a primeira
são medidas obrigatórias. Hoje em dia, a imensa maioria dos serviços opção no manejo dessas lesões. O procedimento usualmente é realizado
recomenda a remoção de bolhas e mesmo de tecidos remanescentes de dentro da primeira semana da queimadura e só é recomendado quando os
bolhas já rompidas; sabemos que as bolhas aumentam a probabilidade de parâmetros hemodinâmicos do paciente se encontram estabilizados.
infecção e diminuem a superfície de contato dos antimicrobianos tópicos
com a área queimada. Contudo, a literatura é conflitante: o ATLS, por
exemplo, não recomenda a remoção das bolhas… COMPLICAÇÕES NO PACIENTE QUEIMADO

Após o desbridamento, um curativo oclusivo deve ser aplicado como As principais complicações das queimaduras são a infecção e a sepse,
tratamento inicial. Os principais objetivos dessa medida incluem: proteção representando a principal causa de morte neste grupo de doentes.

do epitélio lesado, redução da colonização bacteriana ou fúngica,


imobilização do segmento atingido para manter a posição funcional
desejada e redução da perda calórica através da evaporação. INFECÇÃO E SEPSE
Mesmo com os avanços nos cuidados da vítima de queimadura, a maioria Como vimos antes, a vítima de queimaduras extensas se encontra em risco
dos óbitos nessa população ocorre devido à infecção. Sabemos que estes de surgimento de processos infecciosos em outros sítios, além da área
pacientes apresentam condições favoráveis à instalação de processos queimada. Pneumonia (complicando a lesão pulmonar por inalação),
infecciosos, tais como perda da integridade cutânea, imunodepressão, sinusite (sondas nasoentéricas de permanência) e sepse (a partir de cateteres
predisposição à translocação bacteriana a partir do trato digestivo e presença vasculares centrais) estão entre as principais infecções descritas. A atrofia
de dispositivos invasivos (ventilação mecânica, cateteres venosos de células da mucosa intestinal ocorre aproximadamente 12 horas após a
profundos, sonda vesical de demora). queimadura e é diretamente proporcional à extensão da área queimada. O
aumento da permeabilidade intestinal resultante favorece a translocação
O emprego de curativos sintéticos e biológicos e o uso de curativos bacteriana, outro fator determinante de sepse.
tradicionais, com gaze e antibióticos tópicos, reduziu expressivamente o
risco de infecção da queimadura. Os antimicrobianos locais não esterilizam De acordo com os principais livros-texto de cirurgia, as fontes mais comuns
a área queimada, apenas mantém o número de micro-organismos sob de sepse são a infecção invasiva da área queimada e os pulmões
controle. Todavia, em pacientes com mais de 30% de SCQ e naqueles onde (pneumonia).
ocorreu falência de enxerto cutâneo, esse equilíbrio pode ser rompido,
propiciando o surgimento de infecção invasiva e sepse. É importante termos
QUAIS SÃO AS MEDIDAS QUE DEVEMOS ADOTAR PARA
em mente que os antibióticos profiláticos (sistêmicos) de infecção de área
REDUZIR A INCIDÊNCIA DE COMPLICAÇÕES INFECCIOSAS?
queimada não devem ser recomendados rotineiramente, uma vez que
promovem pressão seletiva da flora com o surgimento de bactérias
multirresistentes. Todavia, a antibioticoprofilaxia deve ser prescrita em Existem algumas condutas que obrigatoriamente devem ser tomadas. A
casos de desbridamento e enxertia, no período perioperatório, não devendo vigilância constante da área queimada é fundamental e um tratamento
ser utilizada por mais de 24 horas. agressivo é recomendado na presença de infecção invasiva. Nos pacientes
que não desenvolveram infecção, antibióticos profiláticos perioperatórios
devem ser usados em desbridamento e trocas de curativos em centro
O diagnóstico precoce de infecção é fundamental! A área queimada deve ser
cirúrgico.
mantida sob vigilância constante na busca de sinais clínicos. Muitas vezes
febre e leucocitose (sem uma piora do aspecto da área queimada) podem ser
achados não confiáveis, sendo ocasionados apenas pela síndrome de A higiene das mãos, manipulação adequada de cateteres profundos e o
resposta sistêmica inflamatória. As principais evidências de processo posicionamento da cabeceira do leito a 30º a 45º são medidas a serem
infeccioso incluem: (1) evolução de área de queimadura de segundo grau adotadas pela equipe assistencial. A nutrição enteral precoce reduz a
para necrose de toda a espessura da derme; (2) surgimento de focos de probabilidade de translocação bacteriana a partir do trato gastrointestinal,
hemorragia, escuros ou negros; (3) aparecimento de lesões sépticas na pele preservando a integridade da mucosa intestinal.
íntegra em torno da queimadura, como o ectima gangrenoso (característico
da infecção por Pseudomonas), ou surgimento de celulite em áreas Hoje em dia, sabemos que um controle glicêmico adequado (e não mais
adjacentes à queimadura. rigoroso) deve ser empreendido em pacientes críticos. Níveis mantidos entre
140 e 180 mg/dl parecem os ideais.
A propedêutica precisa ser complementada pela avaliação microbiológica.
O diagnóstico definitivo de infecção de área queimada exige biópsia
quantitativa da lesão suspeita; na área queimada a biópsia demonstrará LESÃO PULMONAR POR INALAÇÃO
invasão bacteriana da derme e contagem de 104 a 10⁷ UFC/g de tecido Como vimos antes, em vítimas de queimaduras térmicas confinadas, a
queimado. Quando não é possível a realização de biópsia, os achados inalação de fumaça tóxica proveniente da combustão de alguns elementos
clínicos da ferida associados a uma piora da contagem de leucócitos e da que se encontravam no meio ambiente em chamas pode causar
curva térmica podem ser elementos suficientes para o diagnóstico. traqueobronquite e pneumonite químicas, determinando uma entidade
conhecida como lesão pulmonar por inalação.
Felizmente, a incidência de infecções invasivas, geralmente por
Pseudomonas aeruginosa, vem diminuindo nas últimas décadas; hoje As principais evidências que levam a suspeita de lesão pulmonar por
em dia, essa complicação é mais observada em crianças e ocorre inalação incluem queimaduras em cabeça e pescoço, chamuscamento das
tardiamente na evolução clínica dos pacientes. Entretanto, houve um vibrissas nasais, hiperemia da orofaringe (este o mais confiável, pois
aumento proporcional na importância das infecções fúngicas, com coexiste lesão térmica da via aérea), tosse com escarro carbonáceo,
Candida sp. sendo o agente mais comum, e Aspergillus sp. como o rouquidão, sibilos, broncorreia e hipoxemia sem causa aparente. A presença
responsável por quadros mais graves. Os vírus pouco contribuem, sendo o de rouquidão e sibilos expiratórios evidenciam edema grave da via aérea e
herpes simples tipo 1 o mais encontrado. O tratamento das infecções intoxicação por fumaça (CO). A ausência de escarro carbonáceo e produção
invasivas da área queimada envolve o início de antibioticoterapia sistêmica excessiva de muco não afastam a presença de inalação.
e excisão da região infectada, com abordagem cirúrgica agressiva.
O primeiro evento na resposta à inalação é o aumento do fluxo sanguíneo Na presença de infecções pulmonares, está indicada antibioticoterapia
nas artérias brônquicas, com formação de edema e aumento da linfa sistêmica. Os esquemas devem apresentar cobertura tanto para
pulmonar. O edema está associado ao aumento do número de neutrófilos Staphylococcus aureus resistentes à meticilina quanto para Gram-
locais. Essas células produzem elastase e radicais livres derivados do negativos, principalmente Pseudomonas aeruginosa e Klebsiella spp.
oxigênio, mediadores responsáveis pela lesão pulmonar. Posteriormente, as
células epiteliais ciliares se separam da membrana basal e ocorre a formação
O diagnóstico clínico de pneumonia inclui duas das seguintes alterações: (1)
intensa de exsudato. Este coalesce e forma "rolhas" de fibrina, que obstruem
surgimento de nova imagem radiológica, que pode ser infiltrado, cavitação
a via aérea, funcionando como uma espécie de válvula de direção única: o
ou consolidação; (2) presença de sepse; e (3) alterações recentes no aspecto
ar durante a inspiração passa por esta "rolha" e alcança as vias aéreas distais
do escarro (ou presença de escarro purulento) e/ou na cultura quantitativa.
e na expiração ocorre uma redução do calibre da via aérea e o ar é
aprisionado (air trapping). O aprisionamento predispõe ao barotrauma
durante a ventilação mecânica. OUTRAS COMPLICAÇÕES

Nos primeiros três dias, um intenso broncoespasmo e a própria lesão As complicações gastrointestinais mais relevantes são o íleo adinâmico,
térmica da via aérea (esta de forma mais imediata), podem levar à quase sempre presente nos primeiros dias após a queimadura, ulceração
insuficiência respiratória aguda. Na evolução dos pacientes com lesão por aguda do estômago e duodeno (úlcera de Curling), rara com o uso
inalação, podemos encontrar entre 72 e 96 horas após a queimadura, quadro profilático de bloqueadores H2, e a síndrome de Ogilvie, conhecida
clínico e radiológico semelhante à Síndrome do Desconforto Respiratório como pseudo-obstrução colônica.
Agudo (SDRA), com infiltrados lobares difusos, resultado do aumento da
permeabilidade capilar alveolar e exsudação para sua luz. Podem ocorrer Graus variados de insuficiência hepatocelular, com queda de atividade de
microatelectasias difusas por perda de surfactante. fatores de coagulação e hipoalbuminemia são encontrados em pacientes
graves. O prejuízo da etapa de excreção da bilirrubina conjugada leva à
Posteriormente, broncopneumonia secundária à colonização da árvore hiperbilirrubinemia, outro achado laboratorial nesses casos. O tratamento é
traqueobrônquica pode complicar ainda mais o quadro clínico. A de suporte.
pneumonia antes de cinco a sete dias tem como principal agente
Staphylococcus resistente a meticilina; após este período, os micro- A colecistite alitiásica pode complicar pacientes graves, sendo o tratamento
organismos mais encontrados são os Gram-negativos, sobretudo inicial a drenagem percutânea da vesícula (colecistostomia) associada à
Pseudomonas aeruginosa. antibioticoterapia. A terapia definitiva envolve a realização de
colecistectomia.

A radiografia de tórax é muito pouco sensível, sendo necessária a utilização


de recursos diagnósticos mais sofisticados. A broncofibroscopia permite a Uma coagulopatia pode surgir por diminuição de síntese dos fatores de
visualização de inflamação e/ou ulceração da árvore traqueobrônquica além coagulação e/ou trombocitopenia. A queda de atividade de fatores está
do depósito de partículas de carbono; a cintilografia de ventilação com ¹³³Xe relacionada à coagulação intravascular disseminada, fenômeno que pode
evidencia aprisionamento do radiofármaco, indicando obstrução segmentar complicar a evolução de doentes graves. A presença de traumatismo
das vias aéreas, consequência da lesão por inalação. craniano concomitante aumenta ainda mais o risco de coagulopatia. A
quebra da barreira hematoencefálica libera lipídios neuronais que ativam a
cascata de coagulação.
O tratamento depende do grau de disfunção respiratória determinada pela
lesão. Nos pacientes com quadros leves a moderados, o uso de oxigênio a
100% umidificado associado à fisioterapia para o tratamento da broncorreia Vítimas de queimaduras de espessura total (terceiro grau) podem
são suficientes. desenvolver, dentro de 24 a 48 horas da lesão, hemólise intravascular
intensa, com mioglobinúria. A destruição de hemácias ocorre de forma
assustadora, muitas vezes com perda de 30% ou mais da massa eritrocitária
Os casos graves são abordados com intubação endotraqueal seguida de
circulante. Os pacientes em risco são aqueles com > 15% de SCQ. O efeito
ventilação mecânica. As indicações de acesso definitivo à via aérea
direto da lesão térmica sobre as hemácias parece ocasionar essa
incluem: (1) PaO2 < 60 mmHg; (2) PaCO2 > 50 mmHg; (3) relação PaO2
complicação.
/FiO2 < 200 (SDRA); e (4) sinais de desconforto respiratório. Valores da
relação PaO2 /FiO2 inferiores a 350 são preocupantes, com esses pacientes
A úlcera de Marjolin é um carcinoma de células escamosas que ocorre na
necessitando de reavaliações constantes. Atualmente, a ventilação com
cicatriz da queimadura, complicação desenvolvida muitos anos após a fase
baixo volume corrente e de alta frequência demonstrou reduzir a
aguda (média de 35 anos) do trauma. Geralmente, o tumor possui
mortalidade. Os parâmetros utilizados incluem uma pressão platô < 30
comportamento agressivo, com 35% dos pacientes apresentando metástases
cmH2O e um volume corrente de 4 a 6 ml/kg de peso ideal. A PEEP deve
nodais à época do diagnóstico.
ser titulada a uma pressão suficiente para manter os alvéolos abertos e com
mínima repercussão hemodinâmica.
OUTROS TIPOS DE QUEIMADURA
Outras medidas incluem toalete pulmonar agressivo, remoção periódica
VIDEO_11_CIR3
(através da broncofibroscopia) de debris e "rolhas" de fibrina da via aérea
distal e nebulização regular com heparina, alfa-miméticos ou polimixina B.
Os broncodilatadores (β-2-agonistas) devem ser usados na presença de
QUEIMADURA ELÉTRICA
hiperreatividade brônquica.
As queimaduras elétricas têm como característica acometimento mais A extensa lesão muscular que complica a queimadura de alta voltagem pode
significativo de tecidos profundos quando comparado a lesões térmicas. A levar à lesão renal aguda (necrose tubular aguda) por mioglobinúria. Na
pele apresenta maior resistência à corrente elétrica quando comparada a prevenção do comprometimento dos rins secundário à mioglobinúria, estes
estruturas como nervos, vasos sanguíneos e músculos. Usualmente a pacientes devem receber hidratação generosa com solução salina isotônica.
corrente penetra pelas mãos, "caminha" por áreas de baixa resistência dentro Como vimos na Tabela 4, a reposição inicial de Ringer lactato deve ser de 4
do corpo (músculo esquelético, músculo cardíaco, nervos e vasos ml × peso do paciente (em kg) × SCQ, com o volume sendo
sanguíneos), e deixa o corpo por uma área aterrada, geralmente os pés. administrado nesse ritmo até a urina tornar-se clara; o ideal é que o débito
urinário mantenha-se em 1-1,5 ml/kg/h até a urina clarear.
Embora a pele apresente uma resistência mais alta, observa-se
habitualmente no sítio de contato da corrente (a porta de entrada)
queimadura grave, com acometimento de toda a espessura da pele (terceiro
grau) com ou sem envolvimento de músculos e ossos (quarto grau).

Em uma avaliação rápida, as lesões cutâneas da queimadura elétrica


parecem ser as únicas que o paciente apresenta. Entretanto, a pele representa
apenas "a ponta do iceberg"… O acometimento de tecidos profundos pela
corrente elétrica coloca em risco a integridade de órgãos e membros,
fenômeno que pode levar a vítima ao óbito. São afetados feixes
neurovasculares e músculos, e um edema profundo em direção à fáscia é
extremamente comum. Trabalhos científicos recentes não têm comprovado um real benefício na
alcalinização da urina como forma de prevenção de Necrose Tubular Aguda
Felizmente, as queimaduras de baixa voltagem são semelhantes às (NTA) na rabdomiólise. Contudo, os textos ainda recomendam a
queimaduras térmicas, não existindo transmissão para tecidos profundos. As alcalinização em pacientes sem hipocalcemia, que estejam urinando e que
correntes domiciliares (110 a 220 volts) produzem esse tipo de lesão. apresentem um pH < 7,5 e um bicarbonato sérico < 30 mEq/L. A solução
para infusão contínua endovenosa consiste em bicarbonato de sódio 8,4%,
150 ml (três ampolas), diluído em 1 litro de soro glicosado a 5%,
As queimaduras de alta voltagem (> 1.000 volts) são caracterizadas por
administrado na velocidade de 200 ml/h. Estudos científicos não têm
graus variados de lesões cutâneas (nos sítios de entrada e saída da corrente)
demonstrado um real benefício no uso de manitol (um diurético osmótico)
associadas à destruição "invisível" de tecidos profundos. A corrente
na prevenção de NTA em vítimas de rabdomiólise.
alternada é mais perigosa do que a contínua, uma vez que "prende" o
indivíduo à fonte de eletricidade, além de causar contrações musculares
repetidas, o que pode comprometer também a coluna vertebral. A porta de entrada da corrente, local onde queimadura grave pode ser
observada, deve ser desbridada, com este procedimento repetido após um
período em torno de 24 horas. Muitas vezes uma área mais extensa de
O atendimento inicial de um indivíduo vítima da síndrome de queimadura
necrose é encontrada nesta segunda revisão.
de alta voltagem deve seguir o ABCDE do trauma. Nesses pacientes, a
ausência de pulso femoral ou carotídeo no momento da primeira abordagem
significa parada cardiorrespiratória, ou por fibrilação ventricular ou por Uma complicação tardia da lesão elétrica por alta voltagem é o surgimento
assistolia, o que requer início imediato das manobras de ressuscitação. de catarata, fenômeno observado em até 30% dos casos, geralmente entre
um a dois anos após o acidente. Um acompanhamento oftalmológico deve
ser realizado periodicamente.
Arritmias sérias podem ocorrer mesmo depois que um ritmo cardíaco
estável tenha sido obtido, sendo desta forma necessária rigorosa
monitoração cardíaca durante as primeiras 24 horas. Muitos autores Alterações neurológicas são complicações descritas. Podem ser precoces ou
recomendam a monitorização eletrocardiográfica de rotina, mesmo na encontradas até nove meses após o acidente. Encefalopatia cortical,
ausência de envolvimento cardíaco inicial. Não é rara a presença de lesões hemiplegia, mielite transversa, afasia e disfunção do tronco cerebral estão
associadas, como fraturas de vértebras, decorrentes do espasmo tetânico de entre as manifestações centrais. O sistema nervoso periférico também pode
grupamentos musculares por eletrocussão, e lesões de cabeça e pescoço, ser afetado (polineuropatias), com manifestações motoras sendo mais
resultantes de queda de grandes alturas (o que ocorre com frequência no frequentes do que as sensitivas. Esse fenômeno pode ocorrer tanto em locais
eletrocutado). afetados pela corrente elétrica como em sítios distantes da lesão.

A lesão de maior significado encontra-se em tecidos profundos. Edema


QUEIMADURA QUÍMICA
muscular, agravado pela ressuscitação volêmica, pode acontecer e levar, por
compressão vascular, à síndrome compartimental. O tratamento dessa A queimadura química, ao contrário da lesão térmica, causa dano
síndrome é a fasciotomia de urgência. Sendo assim, em todo paciente progressivo e contínuo à pele e tecidos subcutâneos, até que a substância
bem ressuscitado, a ausência de pulso arterial em um dos membros sugere a seja inativada por reação tecidual ou diluída por lavagem mecânica do local.
presença dessa complicação. Sendo assim, a precocidade do tratamento inicial (irrigação das áreas de
contato) é central na determinação do prognóstico. Os acidentes industriais
são os mais preocupantes e os acidentes domiciliares com desinfetantes
caseiros, os mais comuns. As lesões causadas por agentes químicos são
consideradas queimaduras de segundo ou terceiro graus.
A gravidade de uma queimadura química é determinada pelo tipo de Como vimos antes, a irrigação precoce da área comprometida é
substância, concentração e tempo de contato. Assim, diferente dos outros fundamental, volumes de água fresca de até 15 a 20 litros devem ser
tipos de queimadura, o cuidado com a ferida é prioritário, antecedendo a empregados. Os pacientes devem ser monitorizados, uma vez que podem
avaliação do ABCDE. As queimaduras com álcalis costumam ser mais desenvolver distúrbios metabólicos e eletrolíticos. Por exemplo, a
graves do que as ocasionadas por ácidos. A maior penetração do álcali nos queimadura com ácido hidrofluorídrico pode determinar hipocalcemia
tecidos e sua inativação mais tardia justificam esse fenômeno. grave, enquanto as queimaduras por ácido fórmico levam à acidose
metabólica, insuficiência renal, hemólise intravascular e SDRA.
Na presença de queimadura química devemos remover imediatamente todas
as vestimentas do paciente e iniciar irrigação copiosa da área queimada com Além da irrigação da região queimada, muitas vítimas vão necessitar de
água. O uso de substâncias neutralizantes não se mostrou superior à ressuscitação volêmica, com acompanhamento cuidadoso do débito
irrigação com água, podendo até ser deletéria; neutralização intensa pode urinário. O desbridamento da superfície queimada, quando indicado, é
gerar grande quantidade de calor e provocar queimadura térmica. realizado assim que o paciente estabilizar clinicamente.

A regeneração é a restauração por completo da arquitetura de um tecido,


ou seja, não há formação de cicatriz. Os únicos tecidos onde a cicatrização
"caminha" para a regeneração são os embrionários e aqueles pertencentes a
órgãos internos, como fígado e osso.

CLASSIFICAÇÃO

As feridas podem ser divididas em agudas e crônicas. No primeiro caso,


o processo cicatricial ocorre de forma ordenada e em tempo hábil,
determinando resultado anatômico e funcional satisfatório; nas feridas
crônicas (como as úlceras venosas e de decúbito), a cicatrização não ocorre
de forma ordenada, estacionando na fase inflamatória, o que impede sua
resolução e a restauração da integridade funcional do tecido lesado.

Quanto ao mecanismo de cicatrização, as feridas podem ser classificadas


em:

Fechamento primário ou por primeira intenção (Figura 1): a ferida


é fechada por qualquer um desses mecanismos: (1) aproximação de seus
bordos através de sutura; (2) utilização de enxertos cutâneos; ou (3)
emprego de retalhos. Caracteriza-se por rápida epitelização e mínima
formação de tecido de granulação, apresentando o melhor resultado estético.
A cicatrização por primeira intenção é recomendada em ferida sem
contaminação e localizada em área bem vascularizada;

CICATRIZAÇÃO DE FERIDAS
VIDEO_12_CIR3
A cicatrização compreende a uma sequência de eventos moleculares e
celulares que interagem com o objetivo de restaurar o tecido lesado. Embora FIG. 1 Cicatrização por primeira intenção.
os avanços recentes em biologia molecular tenham esclarecido muitas
etapas do processo cicatricial, problemas como infecção e cicatrização
insuficiente ou excessiva ainda estão presentes na rotina do cirurgião. Fechamento secundário ou por segunda intenção ou
espontâneo (Figura 2): a ferida é deixada propositadamente aberta,
Como vimos, a cicatrização de feridas limita o dano tecidual e permite o sendo a cicatrização dependente da granulação e contração para a
restabelecimento da integridade e função dos tecidos afetados. Todavia, não aproximação das bordas. O fechamento secundário é recomendado em
há retorno por completo ao estado prévio, uma vez que o processo tem algumas situações como biópsias de pele tipo punch, cirurgias em canal
como característica deposição de tecido conjuntivo específico. A cicatriz anal ou margem anal e feridas com alto grau de contaminação;
permanecerá indefinidamente…
Durante a lesão tecidual aguda, o dano vascular resulta inicialmente em
intensa vasoconstrição de arteríolas e capilares, seguida de vasodilatação e
aumento da permeabilidade capilar. O estímulo que deflagra o processo de
cicatrização é a lesão do endotélio vascular, com exposição de fibras
subendoteliais de colágeno do tipo IV e V que promovem adesão
plaquetária, seguida de ativação e agregação. As plaquetas ativadas pela
trombina liberam várias citocinas presentes em seus grânulos. Os grânulos
FIG. 2 Cicatrização por segunda intenção. alfa são organelas que contêm fator de crescimento derivado de plaquetas
(PDGF), fator de crescimento e transformação beta (TGF-β) e fator de
crescimento insulina-símile tipo 1 (IGF-1). A ativação plaquetária também
Fechamento primário tardio ou por terceira intenção (Figura 3): a libera grânulos densos, ricos em serotonina. Os mastócitos aderidos a
ferida inicialmente é deixada aberta, geralmente por apresentar superfície endotelial também liberam serotonina, além de histamina. Estes
contaminação grosseira. Em seguida, a infecção local é tratada com mediadores levam a vasodilatação e a um aumento da permeabilidade
desbridamentos repetidos, somados ou não à antibioticoterapia. Após alguns capilar, fenômenos que facilitam a migração de células inflamatórias para a
dias, a ferida é fechada mecanicamente através de sutura, enxertos cutâneos ferida.
ou retalhos. O resultado estético obtido é intermediário.
Ocorre também ativação do sistema de coagulação, tanto pela via intrínseca
como pela extrínseca. A ativação das proteínas de coagulação tem como
objetivo formar a fibrina, que envolve e estabiliza o tampão plaquetário. A
"malha" de fibrina servirá de sustentação para as células endoteliais, células
inflamatórias e fibroblastos.

FIG. 3 Cicatrização por terceira intenção.

PROCESSO DE CICATRIZAÇÃO

Para uma melhor compreensão, o processo cicatricial será descrito em fases,


o que sugere uma cronologia rígida… Entretanto, todas essas fases
apresentam grande sobreposição, ou seja, uma mesma ferida pode FIG. 4 Fase inflamatória: observamos a formação do coágulo (fibrina +
plaquetas), a chegada de neutrófilos e depois de macrófagos à lesão.
apresentar regiões em diferentes estágios.
Produção de mediadores inflamatórios.

As três fases da cicatrização de feridas são a in amatória, a proliferativa


e a de maturação. A resposta imediata à lesão consiste em inflamação, Após a hemostasia ser atingida com a formação do trombo, componentes do
também conhecida como fase reativa, que tem como objetivo inicial limitar complemento (C5a) e leucotrieno B4 promovem aderência e quimiotaxia de
o comprometimento do tecido. Em seguida, entra em cena a fase neutró los (Polimorfonucleares – PMN) para a ferida. Nesse momento,
proliferativa, também chamada de regenerativa ou reparadora, caracterizada mediadores inflamatórios produzidos pelo endotélio e monócitos, como
por reparação da lesão, com proliferação de fibroblastos, neoformação de Interleucina-1 (IL-1) e fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), vão estimular
vasos etc. Na fase de maturação ou de remodelamento ocorre contração da ainda mais à aderência neutrofílica ao endotélio. O aumento da
cicatriz devido a ligações cruzadas de colágeno, e redução do edema local. permeabilidade capilar facilita a passagem dos PMN para o sítio da lesão.

A partir de agora, vamos estudar com maior riqueza de detalhes cada uma Os PMN são responsáveis pela "limpeza" de debris celulares e pela
dessas etapas. fagocitose de bactérias presentes naquele microambiente; essas células
exercem suas funções através da liberação de proteases (como elastase e
colagenase), radicais livres derivados do oxigênio e substâncias
FASE INFLAMATÓRIA bactericidas, como a catepsina G (que age desestabilizando a parede celular
bacteriana). Além disso, os PMN são capazes de produzir citocinas
A fase inflamatória é dominada por dois processos: hemostasia,
fundamentais para o processo cicatricial.
fenômeno mais precoce, e resposta in amatória aguda. Ambos têm
por objetivo limitar a extensão da lesão tecidual através da interrupção do
sangramento, do combate à contaminação bacteriana e do controle do Quanto maior o número de PMN atraídos para a ferida, maior a produção de
acúmulo de debris celulares. Em feridas não complicadas por infecção, citocinas e substâncias citotóxicas. Assim, o desbridamento precoce de
esta fase dura de um a quatro dias. feridas infectadas diminui o estímulo quimiotáxico, fenômeno que resulta
em um menor recrutamento de neutrófilos; com uma menor quantidade
destas células, a resposta inflamatória passa a ser mais branda e o resultado
é uma cicatrização mais rápida e com melhor resultado estético.
A partir de 24 a 48 horas da lesão, os monócitos circulantes são recrutados É na fase proliferativa que ocorre a formação do tecido de granulação, que
da circulação para participar do processo de reparo das lesões teciduais. consiste em leito capilar, fibroblastos, macrófagos e um arranjo pouco
Uma vez no sítio lesado, diferenciam-se em macrófagos, células consistente de colágeno, fibronectina e ácido hialurônico.
fundamentais no controle da fase inflamatória e proliferativa. Este
fenômeno ocorre na época em que os neutrófilos desaparecem da ferida. Na A proliferação de células endoteliais, com a formação de rica
realidade, os macrófagos induzem apoptose dos PMN. neovascularização (angiogênese), é um processo de fundamental
importância para dar suporte a todo o ambiente que envolve a cicatrização.
Os macrófagos são considerados o tipo celular predominante na fase Esses novos vasos é que fazem parte do tecido de granulação. A lesão
inflamatória. Estas células dão continuidade às funções de "limpeza" da celular e a hipóxia parecem ser indutores de potentes fatores angiogênicos
ferida operatória e também são responsáveis pela liberação de diversas no sítio da ferida, principalmente do fator de crescimento do endotélio
citocinas que regulam o processo de síntese dos componentes do tecido vascular e seus receptores (VEGF). Macrófagos, células endoteliais,
cicatricial. Como veremos adiante, esses mediadores influenciarão plaquetas e fibroblastos são os principais produtores do VEGF. Outras
significativamente as fases seguintes da cicatrização. As principais citocinas citocinas envolvidas na neoformação vascular incluem TGF-β, fator de
incluem IL-1, TNF-α, IL-6, TGF-α TGF-β, fator de crescimento derivado de crescimento de fibroblastos (FGF) e IL-8.
fibroblastos (FGF), fator de crescimento da epiderme (EGF) e IGF-1.
A broplasia é caracterizada pela migração, ativação e proliferação de
A IL-1 é uma citocina pró-inflamatória de fase aguda, se comportando fibroblastos, responsáveis pela síntese de Matriz Extracelular (MEC),
como pirogênio endógeno e ocasionando uma resposta febril. Além disso, principalmente colágeno. O fibroblasto, considerado o principal tipo celular
aumenta a atividade da colagenase, regula as moléculas de adesão e da fase proliferativa, tem origem a partir da diferenciação de células
promove quimiotaxia. A IL-1 age também na fase proliferativa, mesenquimais do tecido conjuntivo, o que leva cerca de três a cinco dias
promovendo o crescimento de fibroblastos e queratinócitos e estimulando a para acontecer. A MEC é inicialmente rica em ácido hialurônico e colágeno
síntese do colágeno. TNF-α é detectado na ferida por volta de 12 horas e tipo I e tipo III, principalmente este último.
atinge um pico por volta de 72 horas. Seus efeitos incluem estímulo à
aderência dos PMN ao endotélio, estímulo à hemostasia, aumento da O colágeno é uma macromolécula de estrutura complexa, uma tripla hélice
permeabilidade capilar e aumento da proliferação endotelial. Assim como a cuja estabilidade é conseguida através da ligação entre Aminoácidos (AA)
IL-1, produz febre. característicos das fibras de colágeno: a hidroxiprolina e a hidroxilisina.
Esses AA sofrem hidroxilação durante a "montagem" da fibra de colágeno,
A IL-6 leva à ativação de linfócitos, regula a síntese hepática de proteínas reação comandada por hidroxilases que utilizam ácido ascórbico (vitamina
de fase aguda e age sinergicamente com IL-1 e TNF-α; também é um C) como cofator. A síntese desse importante componente da MEC é
potente estimulador da proliferação de fibroblastos. TGF-α e TGF-β são estimulada pela TGF-β e IGF-1 e inibida por INF-γ e glicocorticoides. O
citocinas que estimulam o crescimento da epiderme e a angiogênese, etapas TGF-β é o mediador mais potente no estímulo à fibroplasia. Em
também da fase proliferativa. Um isômero do TGF-β, TGF-β1, tem aproximadamente duas a três semanas após o início do processo cicatricial o
participação importante na cicatrização de anastomoses gastrointestinais. acúmulo de colágeno é máximo.

O linfócito T é recrutado para a ferida por volta do quinto dia da lesão, Outros componentes da MEC sintetizados incluem glicosaminoglicanas,
estando em maior quantidade em sete dias. Essas células são encontradas ácido hialurônico e fibronectina; esses elementos servem como suporte para
em grande número em feridas com contaminação bacteriana importante, as células envolvidas no processo cicatricial, além de facilitar a interação
com presença de corpos estranhos ou com grandes quantidades de tecido entre as citocinas e suas células-alvo.
desvitalizado. Normalmente, o macrófago processa antígenos (bacterianos
ou proteínas do hospedeiro degradadas enzimaticamente) e as apresenta ao Com a evolução do processo, ocorre modificação bioquímica da MEC. A
linfócito. Como resposta, ocorre proliferação linfocítica e produção de composição do colágeno se altera, com diminuição na proporção de
citocinas por essas células, destacando-se o INF-γ. Esse mediador estimula colágeno tipo III em relação ao tipo I, aproximando-se da constituição da
os macrófagos a liberarem uma grande quantidade de citocinas, como a IL-1 derme normal, onde predomina o colágeno tipo I. Esse fenômeno é intenso
e o TNF-α. Curiosamente, o INF-γ diminui a síntese de prostaglandinas, e macroscopicamente visível na cicatrização por segunda intenção, sendo
substâncias que amplificam os efeitos de mediadores inflamatórios. discreto, do ponto de vista clínico e funcional, no fechamento por primeira
intenção.
Por inibir a síntese do colágeno, o INF-γ é um importante mediador
humoral encontrado nas feridas abertas, crônicas, e que não evoluem, ou A epitelização já é encontrada em 24 horas nas feridas fechadas por
evoluem lentamente, para a cicatrização. Sua presença reforça a hipótese primeira intenção sendo caracterizada por ativação dos queratinócitos, que
que os linfócitos T estejam envolvidos em processos cicatriciais arrastados. migram a partir da epiderme residual e do epitélio que reveste a parte mais
profunda dos apêndices da derme. É observada proliferação da camada
basal da epiderme, com migração dos queratinócitos por sobre a MEC.
FASE PROLIFERATIVA Estas células sintetizam laminina e colágeno do tipo IV, formando a
membrana basal. Na cicatrização por primeira intenção, o processo de
Assim que a fase inflamatória começa a se resolver, entra em cena a fase
epitelização pode se completar em 48 horas.
proliferativa, caracterizada por angiogênese, fibroplasia e epitelização. É
durante esta fase da cicatrização que a continuidade tecidual é restabelecida.
As células endoteliais e os fibroblastos são os últimos tipos celulares a
infiltrarem a ferida.
Os queratinócitos então assumem configuração mais colunar e iniciam
proliferação em direção vertical (de baixo para cima), arrastando consigo
tecidos necróticos e corpos estranhos, separando-os da ferida. Assim que a
integridade da camada epitelial da ferida é alcançada, as células formam
hemidesmossomas (junções firmes e impermeáveis) e iniciam a produção
de queratina.

FASE DE MATURAÇÃO

O último passo no processo de cicatrização é a formação do tecido


cicatricial propriamente dito, que histologicamente consiste em tecido
FIG. 5 Surgimento das diferentes células durante a cicatrização.
pouco organizado, composto por colágeno e pobremente vascularizado. O
Neutrófilos (com pico em dois dias) e macrófagos (com pico em três
processo de remodelamento da ferida implica no equilíbrio entre a dias) são predominantes durante a fase inflamatória. Os linfócitos
síntese e a degradação do colágeno, na redução da vascularização e na aparecem mais tardiamente e têm seu pico em sete dias da lesão. Os
fibroblastos são as células predominantes durante a fase proliferativa.
diminuição da infiltração de células inflamatórias, até que se atinja a
maturação da ferida.

O processo descrito é longo, e pode ser avaliado clinicamente através da


força tênsil da ferida, indicador da quantidade de tração que o tecido CITOCINAS E CICATRIZAÇÃO
cicatricial consegue suportar. Em torno da terceira semana, uma ferida
cutânea atinge 30% da força tênsil da pele normal, aumentando rapidamente O estudo das citocinas, substâncias responsáveis pela orquestração de todas
até a sexta semana; a partir de então, o ganho é bem menos pronunciado, as fases descritas, representa grande avanço na compreensão do processo
atingindo, no máximo, 80% da força da pele íntegra. Tecidos diferentes cicatricial. Hoje em dia, trabalhos experimentais e ensaios clínicos vêm
apresentam velocidades de maturação distintas, como por exemplo, a sendo conduzidos com o uso desses mediadores. Um exemplo é a
bexiga, que em três semanas alcança 95% de sua força tênsil prevista. administração de INF-γ em pacientes com queloides (ver adiante).

A contração da ferida é um dos principais eventos da fase de maturação. Todavia, o entendimento por completo de todo o mecanismo de cicatrização
Este fenômeno ocorre por movimento centrípeto de toda a espessura da pele ainda está longe de ser atingido, uma vez que as citocinas são em grande
em torno da ferida, aproximando progressivamente suas bordas e reduzindo número e apresentam diversas interações e funções, além de várias células-
a quantidade de cicatriz desorganizada. alvo. Na Tabela 1, encontram-se resumidas as principais citocinas com suas
funções mais relevantes.
Miofibroblastos parecem ser os responsáveis por esse movimento. Estas
células são fibroblastos presentes no tecido de granulação que sofrem
diferenciação, apresentado estruturas com actina-miosina (presentes nas
células musculares). Como vimos no início do capítulo, a cicatrização por
segunda intenção depende inteiramente do fenômeno de contração.

Em alguns casos, a contração da ferida pode levar a deformidade estética e


funcional, fenômeno conhecido como contratura; esta complicação pode ser
observada em cicatrizações de queimaduras e em cicatrização da pele
adjacente a articulações.

Após o estudo das fases do processo cicatricial, observem a Figura 5 que


representa os principais tipos celulares predominantes em cada período.

A principal citocina presente na cicatrização é a TGF-β, uma vez que é


identificada em todas as fases do processo cicatricial.
A infecção bacteriana prolonga a fase inflamatória e interfere nos processos A deficiência de zinco compromete a fase de epitelização da ferida. Este
de epitelização, contração e deposição de colágeno. Clinicamente oligoelemento atua como cofator para RNA polimerase e DNA polimerase.
manifesta-se através de sinais flogísticos acompanhados, geralmente, de A carência de zinco é rara, estando presente em queimaduras extensas,
drenagem purulenta. A conduta envolve exposição da ferida, com retirada trauma grave e cirrose hepática. Embora o ferro seja um cofator necessário
das suturas, cuidados locais e administração de antibióticos, quando para a transformação de prolina em hidroxiprolina, ainda é controverso se
indicados (ver volume 2). sua deficiência traz real prejuízo à cicatrização.

FATORES QUE INTERFEREM NA HIPÓXIA TECIDUAL E ANEMIA


CICATRIZAÇÃO
A cicatrização de feridas é caracterizada por atividade sintética intensa,
VIDEO_13_CIR3 fenômeno que exige um aporte contínuo e adequado de oxigênio. Quando a
Diversos fatores comprometem o processo de cicatrização de feridas, sendo PO2 cai abaixo de 40 mmHg, a síntese de colágeno é intensamente
importante seu conhecimento para um manejo adequado do paciente prejudicada.
cirúrgico.
A perfusão tecidual depende basicamente de três fatores: volemia adequada,
quantidade de hemoglobina e conteúdo de oxigênio no sangue arterial.
INFECÇÃO

A causa mais comum no atraso do processo cicatricial é a infecção da ferida Doença cardiopulmonar prejudica a cicatrização de feridas, principalmente
operatória. Contaminação bacteriana, representada por mais de 105 em pacientes com insuficiência cardíaca descompensada, condição onde o
unidades formadoras de colônia (CFU) por miligrama de tecido, ou tônus adrenérgico se encontra elevado, ocasionando vasoconstrição de leitos

presença de estreptococo beta-hemolítico na ferida, são fatores que arteriais.


impedem a evolução do processo cicatricial. Nesses casos, a cicatrização
não acontecerá mesmo com auxílio de enxertos cutâneos ou retalhos. Anemia prejudica o processo cicatricial. Redução da infiltração de
leucócitos na ferida, diminuição de fibroblastos e da produção de colágeno e
redução da angiogênese são alterações observadas em anêmicos. O valor de
DESNUTRIÇÃO hematócrito abaixo do qual esses distúrbios ocorrem parece ser de 15% (Hb
entre 5 e 6 g/dl).
A ingesta calórica inadequada leva a um aumento da degradação de
proteínas (proteólise), o que interfere no processo cicatricial. Curiosamente
Por aumentar o teor de monóxido de carbono no sangue e ocasionar
apenas níveis de albumina inferiores a 2,0 g/dl prejudicam a cicatrização e
vasoconstrição, o tabagismo também interfere na cicatrização. A nicotina
se relacionam a uma maior probabilidade de deiscências. O início de uma
inibe a produção de prostaciclina plaquetária; o tabaco prejudica a função de
dieta adequada com reposição proteica reverte essas complicações.
células endoteliais e fibroblastos, além de interferir negativamente na
atividade da óxido nítrico sintetase e na produção de VEGF. Por isso
A carência de ácido ascórbico (vitamina C), conhecida como escorbuto, recomenda-se, no geral, que o tabagismo seja interrompido cerca de 4-6
prejudica a cicatrização. Sabemos que esta vitamina atua como cofator em semanas antes de cirurgias eletivas.
reações envolvidas na síntese de colágeno. O processo é interrompido na
fase de fibroplasia. Doses de 10 mg/dia até não mais do que 2.000 mg/dia
corrigem a deficiência. DIABETES MELLITUS

A vitamina A (ácido retinoico) exerce funções benéficas no processo Todas as fases da cicatrização estão prejudicadas em pacientes diabéticos.
cicatricial. As principais alterações incluem: aumento na resposta Os principais fatores que contribuem para isso são a neuropatia autônoma, a

inflamatória (por desestabilizar a membrana de lisossomos), aumento no aterosclerose e a maior predisposição a processos infecciosos.
influxo de macrófagos para a ferida (com sua posterior ativação) e aumento
na síntese de colágeno. A administração de vitamina A melhora a evolução A neuropatia diabética, que afeta fibras sensitivas e motoras, predispõe a
da cicatrização em diabéticos, em vítimas de lesões graves e em pacientes traumas repetidos com muitos episódios não percebidos pelo paciente. A
submetidos à radioterapia ou quimioterapia; além disso, é capaz de reverter aterosclerose acelerada leva ao estreitamento do lúmen arterial com
os efeitos prejudiciais dos glicocorticoides sobre a cicatrização. Concluímos hipoperfusão tecidual. Quimiotaxia reduzida, somada a resposta
que a deficiência desta vitamina causa prejuízo em quase todas as etapas do inflamatória atenuada e incapacidade de atuar sobre micro-organismos
processo de cicatrização. Entretanto, dois efeitos são mais evidentes: agressores, justifica a maior probabilidade de infecção.
diminuição da ativação de monócitos e macrófagos e distúrbios nos
receptores de TGF-β. Além do envolvimento arterial pela aterosclerose, diabéticos apresentam
também doença da microcirculação; esta tem como uma de suas
A vitamina K é um cofator na síntese de determinados fatores de características espessamento da membrana basal dos capilares, com prejuízo
coagulação (protrombina ou fator II, fator VII, fator IX e fator X). Sua na liberação de oxigênio para a ferida.
deficiência é encontrada em pacientes com síndromes colestáticas, em
desnutridos e em cirróticos. A primeira fase da cicatrização pode ser
prejudicada por níveis reduzidos desta vitamina. Carência de vitaminas do IDADE AVANÇADA
complexo B parece não interferir no processo cicatricial.
Os idosos apresentam um processo de cicatrização mais lento quando As cicatrizes hipertróficas permanecem nos limites da lesão inicial, podendo
comparados a indivíduos mais jovens. Deiscência de ferida operatória é surgir em feridas cirúrgicas, em áreas de laceração, em queimaduras ou na
uma complicação mais encontrada na idade avançada, uma vez que presença de condições inflamatórias ou infecciosas da pele (acne, foliculite,
qualidade e quantidade das fibras colágenas pioram com o tempo. vacinações etc.); se desenvolvem dentro de quatro semanas da agressão
inicial e tendem a regredir nos próximos 12 a 18 meses. As cicatrizes
Diminuição da epitelização, da angiogênese e da síntese de colágeno são hipertróficas geralmente ocorrem em áreas de tensão da pele e em
distúrbios observados experimentalmente, mas acredita-se que ocorram em superfícies flexoras. Não existe um componente genético que predisponha a
humanos senescentes. Outros fenômenos encontrados em idosos incluem seu desenvolvimento.
infiltração tardia da ferida por macrófagos e diminuição da ação fagocítica
dessas células, distúrbios que alteram a fase inflamatória. Os queloides são lesões elevadas, levemente dolorosas (muitos pacientes se
queixam de queimação) e pruriginosas; se caracterizam por ultrapassar os
limites da ferida original (Figura 6). São 15 vezes mais comuns em
GLICOCORTICOIDES, QUIMIOTERAPIA E afrodescendentes, em hispânicos, em asiáticos e em qualquer indivíduo que
RADIOTERAPIA tenha a tonalidade da pele mais pigmentada. Não existe predominância por
sexo, porém essa forma anormal de cicatrização é mais encontrada em
Devido a seu efeito anti-inflamatório, estabilizando a membrana indivíduos jovens. Parece existir um componente genético, com alguns
lisossômica de fagócitos, os glicocorticoides prejudicam intensamente a estudos demonstrando uma herança autossômica dominante, com
primeira fase da cicatrização. Todavia, não é só a fase inflamatória que é penetração incompleta e expressão variável.
comprometida pela droga. Distúrbios na síntese de colágeno, na epitelização
e na contração da ferida são fenômenos observados. A administração de
glicocorticoides após três a quatro dias de pós-operatório parece afetar com
menor intensidade o processo cicatricial.

A administração de vitamina A parece reverter, em parte ou totalmente, a


ação dos corticosteroides sobre a membrana dos lisossomos.

Por comprometer o fenômeno de divisão celular, a quimioterapia citotóxica


interfere em todas as fases do processo cicatricial. Sendo assim, ocorre
prejuízo importante na proliferação de fibroblastos, de endoteliócitos, de
macrófagos de queratinócitos e de outros tipos celulares.

Ciclofosfamida, metotrexato, BCNU e adriamicina (doxorrubicina) são as


medicações que mais prejudicam a cicatrização; essas drogas devem ser
evitadas nos primeiros cinco a sete dias do pós-operatório, período crítico
na evolução do processo cicatricial.

O tamoxifen é um agonista parcial do estrogênio, que funciona como


antagonista estrogênico nas células do câncer de mama; é empregado com
frequência no tratamento desta neoplasia maligna. A droga interfere na
cicatrização, reduzindo a proliferação celular e a produção de TGF-β; este
último efeito está envolvido na diminuição da força tênsil da cicatriz.

Além de seus efeitos negativos no processo cicatricial semelhantes à


quimioterapia, a radioterapia traz prejuízo à cicatrização por causar FIG. 6 Queloide em lobo da orelha.

endarterite. Esta condição leva a obliteração de pequenos vasos, com


isquemia e fibrose de tecidos.

CICATRIZAÇÃO ANORMAL QUELOIDES CICATRIZES HIPERTRÓFICAS


Estendem-se além dos limites Permanecem nos limites da
CICATRIZES PROLIFERATIVAS da ferida. ferida.
QUELOIDES E CICATRIZES HIPERTRÓFICAS Não regridem. Regridem espontaneamente.

Os queloides e as cicatrizes hipertró cas resultam de um distúrbio no Apresentam predisposição Sem predisposição genética.
processo cicatricial, caracterizado por proliferação anômala de fibroblastos genética
somada à síntese excessiva e degradação insuficiente de colágeno.
Mais frequentes em tronco Mais frequentes em áreas de Para lesões > 0,5 cm, a triancinolona intralesional (40 mg/ml) é a terapia de
(região pré-esternal e dorsal tensão da pele e em primeira escolha para o controle da dor e prurido, além de reduzir o volume
superior), cabeça e pescoço superfícies exoras. da cicatriz e melhorar sua plasticidade. Medidas adjuvantes incluem o 5-FU
(em especial a orelha) e em intralesional e a crioterapia intralesional. Para grandes queloides do lobo da
ombros. orelha, que ocasionam alterações cosméticas consideráveis, a abordagem
inicial é sempre a excisão cirúrgica, combinada à terapia perioperatória com
corticosteroide, compressão ou radiação (radiação externa ou braquiterapia).
Os queloides podem se desenvolver em ferida cirúrgica, queimaduras ou em
Embora o tratamento cirúrgico dos queloides em algumas séries apresente
qualquer região onde exista agressão à pele, mesmo que mínima (colocação
recorrência elevada, de 45-100%, a abordagem combinada vem reduzindo
de brincos e piercings, tatuagens, picadas de inseto, áreas de vacinação
de forma considerável esse percentual sombrio…
etc.); em alguns casos não é identificado um elemento deflagrador. O tempo
de aparecimento da lesão vai desde os primeiros três meses até
Livros-texto citam o uso experimental intralesional de INF-γ em queloides,
aproximadamente um ano após o trauma; ao contrário das cicatrizes
com redução de até 30% da espessura da cicatriz. Esta citocina agiria
hipertróficas, os queloides não regridem e podem aumentar de tamanho com
reduzindo a síntese de colágeno e inibindo a produção de TGF-β.
o tempo. As lesões são mais encontradas em tronco (região pré-esternal e
parte superior do dorso), em cabeça e pescoço (em especial a orelha,
principalmente o lobo) e em ombros. Mais raramente, ocorrem em
FERIDAS CRÔNICAS QUE NÃO CICATRIZAM
pálpebras, genitália, regiões palmares e plantares ou na pele sobre
articulações. Estudos realizados em feridas crônicas de difícil cicatrização, como as
úlceras de pressão, têm demonstrado alguns achados interessantes. Por
Como vimos antes, existem em ambas as condições uma produção exemplo, níveis de citocinas pró-inflamatórias persistem nessas lesões,
excessiva de colágeno (principalmente nos queloides) e prejuízo em sua como o TNF-α, a IL-1 e a IL-6. Geralmente o que ocorre em feridas com
degradação. Os níveis de metaloproteinases, – como a colagenase boa evolução é a queda nos níveis desses mediadores à medida que a
(MMP-1) e a gelatinase (MMP-9), esta última envolvida em remodelação cicatrização evolui normalmente.
tecidual – se encontram reduzidos.
Evidências recentes nos mostram que degradação proteolítica mantida,
A TGF-β participa de forma menos clara, mas também parece implicada na provavelmente estimulada por TNF-α, é uma característica de feridas que
gênese de queloides e cicatrizes hipertróficas. Fibroblastos de cicatrizes não cicatrizam. Nessas lesões, encontramos níveis de MMP elevados; estas
queloides possuem quantidade aumentada dessa citocina. Além disso, existe são enzimas que degradam diversos componentes da MEC. Além disso,
uma resposta mais acentuada na produção de colágeno quando fibroblastos inibidores dessas proteinases estão reduzidos, principalmente o inibidor
de queloides ou de cicatrizes hipertróficas (principalmente em áreas tecidual das MMP (TIMP).
queimadas) são expostos à TGF-β.
A proteólise excessiva provoca liberação de componentes do tecido
Estudos com anticorpos dirigidos contra a TGF-β estão em andamento; essa conjuntivo que, por si só, estimulam a inflamação, mantendo esse círculo
terapia, quando plenamente desenvolvida, facilitará o manejo futuro de vicioso. Concluímos que a inflamação persistente impede que o processo
cicatrizes hipertróficas e queloides. cicatricial evolua.

O tratamento das cicatrizes hipertróficas resultantes de cirurgia ou trauma Um detalhe importante: feridas cronicamente inflamadas predispõem ao
envolve o emprego de bandagens com gel de silicone ou de dispositivos que surgimento de carcinoma de células escamosas. Um exemplo clássico é a
exerçam pressão sobre a cicatriz, a chamada terapia de pressão. Como úlcera de Marjolin em queimaduras (ver capítulo 2). Outras lesões que
estratégia de segunda linha, podemos utilizar triancinolona intralesional, também apresentam esse risco incluem úlceras de estase venosa (Figura 7),
laser ou excisão cirúrgica. Esta última se encontra indicada em casos de úlceras de pressão, hidradenite e até mesmo osteomielite.
não resposta à terapia conservadora.

A abordagem de pequenos queloides (< 0,5 cm) pode ser feita com
triancinolona intralesional, como fármaco de primeira linha, geralmente
associada ao uso de bandagens de gel de silicone ou a terapia de pressão;
tratamento de segunda linha envolve o uso de 5-Fluoracil (5-FU)
intralesional em combinação com crioterapia ou laser.
O processo de epitelização ocorre em uma velocidade maior em fetos. Além
disso, os fibroblastos induzem o epitélio a formar os apêndices da derme,
como folículos pilosos e glândulas. Este fenômeno não está presente em
crianças e adultos.

À medida que conhecemos mais a cicatrização fetal, novos horizontes vão


se abrindo para o cirurgião. Em um futuro próximo, esse aprendizado
poderá nos ajudar a controlar e a intervir, de maneira conscienciosa, em um
processo cicatricial anômalo.

CICATRIZAÇÃO DO TRATO
GASTROINTESTINAL

Um processo cicatricial adequado do Trato Gastrointestinal (TGI) é de suma


importância na cirurgia abdominal, pois dele depende o sucesso das
anastomoses digestivas. Como vimos na apostila "Cirurgia 2", uma
cicatrização insuficiente do tubo digestivo leva a deiscência de
anastomoses, com formação de fístulas e/ou abscessos intracavitários; por
outro lado, uma cicatrização excessiva pode resultar em redução do lúmen
intestinal, ocasionando estenoses segmentares e quadros obstrutivos.

O TGI tem um padrão uniforme de organização tecidual em toda sua


extensão. É formado por camadas concêntricas: a mucosa, mais interna, a
submucosa (rica em colágeno), duas camadas musculares e uma camada de
FIG. 7 A úlcera de estase venosa.
revestimento externo, formada pela serosa. Nos extremos do TGI (esôfago e
reto distal) não observamos camada serosa.

Na cicatrização das anastomoses digestivas, duas camadas são muito


CICATRIZAÇÃO DE FERIDAS EM FETOS importantes, a submucosa – que pela sua grande quantidade de colágeno
é a principal responsável pela força tênsil da sutura – e a serosa,
A cicatrização em fetos abaixo de 20 semanas evolui para regeneração, responsável por "impermeabilizar" a sutura, ou seja, impedir a passagem de
ou seja, não há cicatriz formada e o tecido retorna por completo a sua conteúdo intestinal (líquido) através da linha de sutura. Os segmentos do
estrutura anterior a cirurgia. Muitos pesquisadores estudam essa evolução TGI que não possuem serosa apresentam uma maior incidência de
até certo ponto "mágica". deiscências anastomóticas e fístulas complicando procedimentos cirúrgicos.

Atualmente, algumas diferenças marcantes entre a cicatrização fetal e a de


crianças e adultos já foram identificadas… CURATIVOS E OUTRAS TERAPIAS

A cicatrização em fetos apresenta uma fase inflamatória mais atenuada.


CURATIVOS
Existe uma diminuição local do número de neutrófilos, além de uma
Inicialmente, os curativos eram tidos como "cuidados caseiros" e sem muita
infiltração tardia da ferida por um menor número de macrófagos.
relevância científica, até que o primeiro curativo antisséptico foi introduzido
nos cuidados médicos, utilizando gazes embebidas em ácido carbólico. A
Um menor número de células da inflamação tem como consequência partir daí, vários outros foram criados e os curativos foram se sofisticando
redução dos níveis de fatores de crescimento, como TGF-β e FGF. Este com o passar dos anos.
fenômeno justifica em parte uma quantidade diminuída de tecido cicatricial.

O sucesso do processo cicatricial depende de uma série de fatores e


Sabemos que uma das principais citocinas que estimulam um aumento na características encontradas nos ferimentos, sendo os mais importantes: o
produção de tecido cicatricial é a TGF-β. O ambiente relativamente ambiente úmido, a remoção do excesso de exsudato, as trocas gasosas, a
hipoxêmico no qual os fetos sobrevivem, explica parcialmente a diminuição atuação como barreira contra contaminação de partículas e bactérias, a
nos níveis desse mediador. Outra teoria é que isoformas diferentes de TGF- proteção mecânica, a facilidade de uso e o custo-efetividade.
β, ou seja, algumas não relacionadas à proliferação da cicatriz, estariam
presentes nessas feridas.

A presença de ácido hialurônico no líquido amniótico estimula a função e


mobilidade de fibroblastos. Estas células produzem um colágeno mais
frouxo e menos denso do que o observado em adultos. Em fetos, o colágeno
predominante no processo de regeneração é o tipo III. A relação colágeno
tipo III com o tipo I é maior do que a observada em crianças e adultos.
Para escolher o curativo ideal, devemos atentar para dois fatores em
OXIGENOTERAPIA HIPERBÁRICA (OHB)
especial: a oclusão e a absorção. Foi comprovado que a taxa de epitelização
em curativos oclusivos e úmidos é duas vezes mais rápida do que em feridas A isquemia da ferida é a causa mais comum de falência na cicatrização. A
abertas e secas. Isso porque sob um curativo oclusivo encontramos um pH hipóxia tecidual (PO₂ < 30 mmHg) prejudica de forma significativa a
levemente ácido e baixa tensão de oxigênio, ou seja, condições ideais para a atividade metabólica normal e diminui o processo cicatricial,
proliferação de fibroblastos e formação de tecido de granulação. Por outro comprometendo a proliferação de fibroblastos, a síntese de colágeno e a
lado, o excesso de exsudato aumenta o risco de contaminação da ferida por epitelização. A administração de O₂ estimula a angiogênese, melhora a
permitir uma maior proliferação bacteriana. Nesses casos, o ideal é a função de leucócitos e fibroblastos e normaliza os reflexos microvasculares
utilização de um curativo com característica absortiva e que previna a cutâneos.
maceração da pele ao redor da ferida.
A Oxigenoterapia Hiperbárica (OHB) é uma modalidade terapêutica que
Agora falta sabermos um pouco sobre os diversos tipos de curativo consiste na oferta de oxigênio puro (FiO2 = 100%) em um ambiente
utilizados na prática médica. Basicamente podemos dividi-los em quatro pressurizado a um nível acima da pressão atmosférica (1.9 a 2.5 atm); cada
classes: os tecidos não aderentes, os absortivos, os oclusivos e os sessão dura em média 90 a 120 minutos, sendo recomendada uma
cremes/pomadas/soluções. Segue uma descrição sucinta sobre cada uma das periodicidade de cinco a seis vezes por semana. O tratamento é
classes: administrado em uma câmara com capacidade para um ou mais pacientes. A
avaliação do suprimento vascular na área comprometida é passo de
1. Tecidos não aderentes: curativo feito com uma gaze simples fundamental importância; sendo assim, a revascularização é um pré-
combinada com uma substância para aumentar a capacidade oclusiva requisito essencial antes do início da OHB!
do curativo e suas habilidades anti-bacterianas. Ex.: gaze com
vaselina, Scarlet Red, Xeroform, etc; As principais indicações de OHB incluem: (1) feridas crônicas que não
2. Absortivos: usados para feridas que produzem uma quantidade cicatrizam, como úlceras isquêmicas de pé diabético, úlceras de membro
aumentada de exsudato. Seu poder cicatricial é menor do que os inferior de outras etiologias, escaras de decúbito; (2) retalhos ou enxertos
oclusivos por absorver as citocinas e reduzir a migração dos comprometidos; (3) síndrome de Fournier e outras infecções necrosantes de
queratinócitos. Ex.: gaze aberta isolada e as espumas; partes moles, como fasciíte; (4) lesões por radiação, como
osteorradionecrose; (5) queimaduras térmicas ou elétricas de difícil
3. Oclusivos: possui um maior poder cicatricial por garantir uma maior
resolução; (6) osteomielites; e (7) embolia gasosa ou doença
umidade do meio, proteção mecânica e servir como barreira anti-
descompressiva. Estudos randomizados demonstraram que a OHB é um
bacteriana. Podem ser divididos em não biológicos e biológicos. Ex.:
tratamento adjuvante útil para as úlceras isquêmicas de pés diabéticos,
homoenxerto, âmnio, hidrocoloide, alginato e hidrogel;
reduzindo a taxa de amputação da extremidade!
4. Cremes, pomadas e soluções: são os ideais para feridas com
sinais de infecção presentes, como aumento da taxa de exsudação, O barotrauma do ouvido médio é a complicação mais comum, porém outras
celulite associada e cultura positiva. condições são descritas, tais como pneumotórax (particularmente o
hipertensivo), toxicidade do sistema nervoso levando a convulsões,
A Tabela 2 descreve os principais representantes de cada classe com suas toxicidade pulmonar pelo oxigênio (ocasionando tanto traqueobronquite
respectivas características e funções, além de comentários. quanto síndrome do desconforto respiratório) e miopia transitória. As
principais contraindicações a OHB são: pneumotórax não controlado,
tratamento atual ou recente com drogas que levam a toxicidade pulmonar ou
cardíaca (bleomicina ou doxorrubicina) e terapia com dissulfiram (aumenta
o risco de toxicidade pelo oxigênio).

TERAPIA COM PRESSÃO NEGATIVA (TERAPIA


COM CURATIVO A VÁCUO)

A terapia com pressão negativa ou Terapia com Curativo a Vácuo (TCV) é


uma forma de tratamento ativo da ferida que promove sua cicatrização em
ambiente úmido, através de pressão subatmosférica controlada e aplicada
localmente, de forma contínua ou intermitente. É um método empregado em
muitos casos de feridas complexas, sejam elas agudas ou crônicas.

Apesar de ser um assunto, por vezes, pouco estudado pelos médicos,


sabemos que os diversos tipos de curativos de feridas vêm crescendo em
número e importância (tanto na prática, quanto nas provas de residência).
A TCV é composta por um material de interface (espuma ou gaze), por As principais contraindicações são descritas a seguir: (1) exposição de
meio do qual a pressão subatmosférica é aplicada e o exsudato é removido. estruturas vitais na ferida (órgãos expostos, vasos sanguíneos, enxertos
Esse material fica em contato com o leito da ferida com objetivo de cobrir vasculares); (2) aumento do risco de erosão tecidual, o que pode levar a
toda sua extensão. O material de interface é coberto por uma película fístulas entéricas e a hemorragia; (3) presença de tecido desvitalizado e
adesiva transparente que oclui totalmente a ferida em relação ao meio necrótico (ainda não desbridado); (4) tecido maligno, uma vez que a pressão
externo. A seguir, um tubo de sucção é conectado a esse sistema e ao negativa promove crescimento de tumores; (5) fragilidade cutânea (idade,
reservatório de exsudato, que é adaptado a um dispositivo computadorizado. uso crônico de corticosteroide); (6) feridas isquêmicas, que geralmente não
Esse dispositivo pode permitir a programação de parâmetros para fornecer obtém benefício; e (7) presença de osteomielite.
uma pressão subatmosférica no leito da ferida.

A TCV tem sido aplicada em várias situações, incluindo abdome aberto,


após desbridamento cirúrgico de feridas agudas e crônicas (por exemplo,
cirurgias ortopédicas, infecções necrosantes, úlceras de pressão), em úlceras
de pé diabético e em cirurgias reconstrutoras (queimaduras, enxertos
cutâneos, retalhos musculares). A remoção do edema da ferida, um aumento
do fluxo sanguíneo local e o estímulo a formação de tecido de granulação
são descritos como possíveis efeitos benéficos da TCV.
O significado da palavra inglesa shock (em português, "choque") é
proveniente de um erro de tradução, ocorrido no século XVIII. Um
cirurgião francês chamado Le Dran, ao escrever um tratado sobre feridas
por armas de fogo, em 1737, cunhou o termo choc como indicativo de um
"forte impacto". Ao traduzir este termo (choc para shock), o médico inglês
Clarke, em 1743, mudou o seu significado ao defini-lo como "uma súbita
deterioração das condições clínicas do paciente após um grande trauma".
Este termo então foi popularizado por Edwin Morris em 1867,
relacionando-o sempre a eventos pós-traumáticos.

O conceito de choque foi inicialmente desenvolvido no estudo do trauma –


na verdade, tratava-se do choque hemorrágico. Passou então a constituir um
importante tema da "medicina de guerra". Antes de morrer no campo de
batalha, o soldado geralmente entrava no "estado de choque" – um
prenúncio da fatalidade... À medida que foram ocorrendo as guerras do
século XX, foram-se aprimorando as teorias fisiopatológicas sobre o
choque, o que levou a diversas e sucessivas modificações da definição desse
termo. O choque passou a ser classificado em diversos tipos, como choque
hipovolêmico, séptico e cardiogênico. O termo choque cardiogênico foi
introduzido em 1934 por Fishberg ao descrever um paciente com infarto
agudo do miocárdio fulminante.

DEFINIÇÃO DE CHOQUE – "LEIA COM ATENÇÃO"


Segundo os conceitos atuais, choque é um estado de hipoperfusão
orgânica efetiva generalizada – uma verdadeira "isquemia"
generalizada. Em última análise, as células não recebem o aporte de
oxigênio necessário para manter a sua homeostase. A perfusão

CHOQUE efetiva de um órgão ou tecido depende de dois fatores: (1) fluxo


sanguíneo total para este órgão; (2) distribuição adequada deste fluxo
através do órgão ou tecido, de forma que todas as suas células
INTRODUÇÃO recebam um suprimento adequado de oxigênio.

HISTÓRICO E DEFINIÇÃO

Choque não é sinônimo de hipotensão arterial!


Quando dizemos "hipotensão arterial" nos referimos a uma PA sistólica Imagine o sistema circulatório como um circuito fechado contendo um
inferior a 90 mmHg. Nem todo paciente hipotenso encontra-se chocado. Por fluido – o sangue (Figura 1). Esse fluido é bombeado pelo coração, de
exemplo, é possível nos depararmos com uma pessoa que tem uma PA = 85 modo a circular pelos órgãos e tecidos. O fluxo total de sangue produzido
x 50 sem apresentar sinais de hipoperfusão orgânica. Esta situação não é pela bomba cardíaca é denominado débito cardíaco. O sangue bombeado
rara em mulheres jovens. Por outro lado, nem todo paciente com choque passa pelo sistema arterial, ganha o leito capilar e retorna ao coração através
tem PA sistólica < 90 mmHg. Podemos encontrar um paciente com sinais do sistema venoso. Para que o sangue perfunda adequadamente o leito
francos de hipoperfusão orgânica sistêmica, mas com PA = 100 x 60. Isto capilar dos órgãos e tecidos, é preciso que a Pressão Arterial Sistêmica
pode ocorrer nos hipertensos e idosos com aterosclerose cerebral. Média (PAM) se mantenha em um nível adequado (geralmente entre 60-
120 mmHg), o que é garantido pelo produto do Débito Cardíaco (DC) pela
Resistência Vascular Sistêmica (RVS).
TIPOS DE CHOQUE

O choque pode ser classificado em quatro categorias de acordo com o


mecanismo predominante responsável pela hipoperfusão orgânica
generalizada. Veja a descrição na Tabela 1 abaixo.

TAB. 1 TIPOS DE CHOQUE.

1 - Choque Hipovolêmico – devido à redução do volume


sanguíneo em relação ao espaço vascular total, levando à queda
das pressões e volumes de enchimento diastólico ventricular.
2 - Choque Cardiogênico – devido à falência da bomba cardíaca,
seja pela perda contrátil, seja por um problema estrutural
intracardíaco, levando ao aumento das pressões e volumes de
enchimento diastólico ventricular.
3 - Choque Obstrutivo Extracardíaco – devido a um fator
estrutural extracardíaco que di culte a circulação de sangue, tal
como o tamponamento cardíaco, o pneumotórax hipertensivo e o
tromboembolismo pulmonar maciço.
4 - Choque Distributivo – devido à perda do controle vasomotor
e ao distúrbio microcirculatório, levando à vasodilatação arteriolar
e venular inapropriadas que, após a reposição de uidos, evolui
para um estado de alto débito cardíaco e baixa resistência
vascular sistêmica. Estão incluídos nesta categoria os choques
séptico, sirético, ana lático e neurogênico (TCE, AVE etc.).

FISIOPATOLOGIA – PRINCÍPIOS GERAIS E


ESPECÍFICOS

ALTERAÇÕES HEMODINÂMICAS

No choque surgem diversas alterações hemodinâmicas que devem ser muito FIG. 1 O sistema circulatório como um circuito fechado – o sangue
bem compreendidas. O padrão hemodinâmico do choque pode inclusive bombeado pelo coração para as artérias, ganha a microcirculação
banhando arteríolas, capilares e vênulas pós-capilares. Em seguida,
categorizá-lo em seus diversos tipos. Alguns princípios fisiológicos devem retorna para as veias e daí para o coração.
ser primeiramente entendidos para que em seguida possamos explicar as
alterações fisiopatológicas do choque. Estes conceitos serão explicados de
uma forma bem simplificada, mas sem omitir o principal...
PAM = DC x RVS

ENTENDENDO OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DE


HEMODINÂMICA...
A RVS é determinada pelo tônus muscular das arteríolas, de modo que a
vasoconstricção arteriolar aumenta a RVS, enquanto a vasodilatação
arteriolar reduz a RVS. A maioria dos órgãos e tecidos (pele, subcutâneo,
musculoesquelético, vísceras) funciona como principais reguladores da
RVS, pelo tônus de suas arteríolas, de forma a garantir a pressão necessária
para manter a perfusão dos órgãos nobres (cérebro e miocárdio).
O sistema venoso é de suma importância em todo esse contexto, pois
funciona como o grande armazenador de sangue – cerca de 70% da volemia
encontra-se no leito venoso, enquanto que apenas 20% está no leito arterial
e 10% no leito capilar. Quando as veias dilatam (venodilatação ou
venoplegia), chega menos sangue ao coração, isto é, diminui o retorno
venoso e, portanto, o débito cardíaco. Quando contraem (venoconstricção),
o retorno venoso se eleva.

O DC é determinado basicamente por quatro fatores: (1) pré-carga; (2) pós-


carga; (3) contratilidade miocárdica; (4) frequência cardíaca. Os três
primeiros determinam o volume de sangue bombeado a cada batimento – o
débito sistólico. A pré-carga representa o retorno venoso que, em
última análise, determina o volume de enchimento diastólico do ventrículo
– quanto maior esse volume, maior será o débito sistólico. A pós-carga FIG. 2 O cateter de Swan-Ganz.
representa a "dificuldade" imposta à ejeção ventricular, determinada pela
própria RVS, pela impedância da aorta e pela geometria ventricular. O
aumento da pós-carga prejudica o esvaziamento ventricular, portanto, reduz À medida que é introduzida no sistema venoso, a extremidade distal do
o débito sistólico. A contratilidade miocárdica é a capacidade contrátil cateter atinge primeiramente a veia cava superior e, em seguida, o átrio
intrínseca ao músculo cardíaco, independente da pré e pós-carga. O débito direito, o ventrículo direito e, finalmente, a artéria pulmonar. O médico
cardíaco é o produto do Débito Sistólico (DS) pela Frequência Cardíaca responsável pelo procedimento pode saber exatamente em que posição está
(FC). o cateter, de acordo com o padrão da curva de pressão apresentado na tela
do monitor (Figura 3). O lúmen distal tem a sua abertura na ponta do
cateter – quando está desinsuflado, a pressão medida corresponde à Pressão
DC = DS x FC Arterial Pulmonar (PAP) e quando é insuflado com 1,5 ml de ar, desliza e
"impacta" em um ramo distal da artéria pulmonar. Nesse momento, temos a
medida da Pressão Capilar Pulmonar (PCP), também conhecida como
pressão de oclusão da artéria pulmonar (PAOP) – Figura 3.
Nas taquiarritmias com frequência muito elevada (> 200 bpm), o tempo de
Dizemos que o balonete está encunhado na artéria pulmonar (Figura 4) –
enchimento diastólico é tão encurtado, que o débito sistólico "despenca",
daí também chamarmos a PCP determinada pelo Swan-Ganz de pressão
tendo como resultado a queda do débito cardíaco, ao invés do seu aumento
encunhada da artéria pulmonar (PWP – Pulmonary Wedge
(como esperado pela fórmula acima...). Nas bradiarritmias, o tempo de
enchimento diastólico fica maior, aumentando o volume diastólico e, Pressure). A PCP geralmente é semelhante à PAP diastólica.

portanto, o débito sistólico. Porém, se a frequência cardíaca estiver muito


baixa (< 40 bpm), o débito cardíaco geralmente cai significativamente
(respeitando a fórmula acima).

MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA – O
CATETER DE SWAN-GANZ

O cateter de Swan-Ganz (Figura 2) foi um grande avanço na avaliação


hemodinâmica dos pacientes com choque. Trata-se de um cateter
introduzido por uma veia profunda (jugular interna ou subclávia) até uma
das artérias pulmonares. Para realizar as suas funções, ele precisa ter: (1)
um lúmen distal para medir a Pressão da Artéria Pulmonar (PAP); (2) um
lúmen proximal para medida da pressão atrial direita (que corresponde a
FIG. 3 À medida que o cateter progride, identificamos as curvas de
PVC); (3) um balonete na extremidade distal (Figura 2), para permitir a
pressão do átrio direito, ventrículo direito e artéria pulmonar; a curva
medida da Pressão Capilar Pulmonar (PCP) ou pressão de oclusão de artéria da PCP também é mostrada.
pulmonar (PAOP); e (4) um termômetro na extremidade distal para o
cálculo do DC pelo método da termodiluição (mensuração intermitente).
Nos últimos anos, os cateteres têm apresentado um quinto lúmen contendo
dois filamentos de fibra óptica, utilizados para mensurar de forma contínua
a saturação venosa de oxigênio obtida de sangue colhido em artéria
pulmonar (SvO2). Novas técnicas têm nos permitido medir continuamente o
DC.
Nos choques hipodinâmicos, o débito cardíaco, por definição, está
comprometido, seja por uma redução primária do retorno venoso
(hipovolêmico), seja por um defeito na bomba cardíaca (cardiogênico), seja
uma obstrução mecânica à circulação de sangue (obstrutivo). Quando o DC
se reduz, a tendência é para a queda da PAM, prejudicando a perfusão
orgânica; contudo o estímulo imediato dos baroceptores, localizados nas
carótidas, átrios e ventrículos, determina uma hiperativação neuro-humoral,
representada pelo sistema nervoso simpático e medula adrenal. As
catecolaminas elevam-se nas fendas sinápticas do coração e vasos
sanguíneos (noradrenalina), bem como na própria circulação (adrenalina).
As catecolaminas aumentam a contratilidade e a frequência cardíaca
(receptores beta-1), promovem vasoconstrição arteriolar e venosa
(receptores alfa). Como resultado temos: (1) a RVS se torna elevada pela
vasoconstrição – evitando a queda da PA; (2) o DC se eleva mais um pouco,
pelo efeito direto das catecolaminas no coração e pelo aumento do retorno
venoso – venoconstrição. Acabamos de descrever a fase compensada do
distúrbio que mais tarde poderá levar ao choque... O choque irá se instalar
quando esses mecanismos compensatórios forem insuficientes, ou seja, não
FIG. 4 Cateter de Swan-Ganz encunhado na artéria pulmonar.
mais capazes de manter uma pressão arterial mínima para garantir a
perfusão dos órgãos e tecidos. Os primeiros órgãos que sofrem isquemia
são: pele, subcutâneo, musculoesquelético, vísceras. Em segundo lugar, os
IMPORTANTE!!
rins. Por último, o cérebro e o miocárdio.
A Pressão Capilar Pulmonar "encunhada" (PCP) reflete as pressões de
enchimento do coração esquerdo, enquanto que a Pressão Venosa
Central (PVC) reflete as pressões de enchimento do coração direito. TAB. 2
VALORES NORMAIS DOS PARÂMETROS DO SWAN-GANZ
O DC é mensurado indiretamente pelo método da termodiluição. Ao injetar Débito Cardíaco (DC) 4,5-6,5 L/min
10 ml de soro frio (em torno de 25o C) pelo lúmen proximal, este líquido Índice Cardíaco* (IC) 2,8-4,2 L/min/m2
ganha o átrio direito, sendo logo em seguida "diluído" pelo sangue do RVS 500-1.500
paciente (em torno de 37o C) que chega pelas veias cava. Como é de se Índice de RVS* (IRVS) 1.300-1.930
esperar, a temperatura da ponta do cateter na artéria pulmonar inicialmente PCP ("encunhada") 4-12 mmHg
cai e depois volta a subir, desenhando uma curva na tela do monitor. A PAP média 10-20 mmHg
curva de temperatura é utilizada para a determinação do DC. Quanto maior PVC 1-5 mmHg
o débito cardíaco, mais rápido é o retorno da temperatura a 37ºC – "curva *O termo "índice cardíaco" significa "débito cardíaco" em relação à "superfície corporal". O
pequena". Como vimos antes, a medida contínua deste parâmetro já é índice cardíaco é mais confiável do que o débito cardíaco, pois os mesmos valores podem ser
utilizados como referência, independente da idade e do tamanho do paciente. O Índice de RVS
possível atualmente. (IRVS) é calculado com o IC, ao invés do DC.

Quando falarmos sobre as alterações hemodinâmicas do choque,


eventualmente iremos nos referir aos parâmetros do Swan-Ganz (débito
cardíaco, PVC, PAP e PCP). A monitorização com esse cateter deve ser
acompanhada pela monitorização da pressão arterial média sistêmica,
através de um pequeno cateter na artéria radial ou femoral – denominada
PAM invasiva. Digitando-se no monitor o valor da PAM, da PVC e do DC,
o programa calcula um parâmetro hemodinâmico fundamental – a
Resistência Vascular Sistêmica (RVS).

ALTERAÇÕES HEMODINÂMICAS NO CHOQUE

Em relação às alterações hemodinâmicas, podemos dividir o choque em


dois grandes grupos, de acordo com o DC e a RVS: (1) os choques
hipodinâmicos – relacionados ao baixo débito cardíaco e aumento da
RVS (vasoconstrição); (2) os choques hiperdinâmicos – relacionados a
um alto débito cardíaco e redução da RVS (vasodilatação). Os primeiros são
representados pelos choques hipovolêmico, cardiogênico e obstrutivo
extracardíaco. Os últimos são representados pelos choques distributivos
(séptico, sirético, anafilático, neurogênico).
A determinação das pressões pelo Swan-Ganz (PCP, PAP e PVC) é
fundamental para diferenciarmos entre os diversos tipos de choque
hipodinâmico... No choque hipovolêmico, por definição, as pressões de
enchimento de ambos os ventrículos são baixas, pois o retorno venoso está
primariamente comprometido. Como resultado, teremos uma redução da
PVC, PAP diastólica e PCP. No choque cardiogênico, por definição, as
pressões de enchimento ventricular estão elevadas. Se o comprometimento
principal for do ventrículo esquerdo (mais comum), teremos um aumento de
O choque séptico então tem uma fase inicial em que a hipovolemia relativa
PCP (> 16 mmHg) e da PAP diastólica. Se o comprometimento for do
(venodilatação) e absoluta (perda hídrica para o terceiro espaço)
ventrículo direito, teremos um aumento da PVC, enquanto que as pressões
"escondem" a sua natureza hiperdinâmica. A partir da reposição volêmica,
de enchimento do coração esquerdo (PCP e PAP diastólica) encontram-se
as suas características hemodinâmicas aparecem.
normais ou baixas. No choque obstrutivo do tamponamento cardíaco, os
parâmetros hemodinâmicos são muito sugestivos – as pressões de
enchimento do coração esquerdo (PCP, PAP diastólica) e direito (PVC) Além do "componente hipovolêmico", o choque séptico também tem o seu
estão equalizadas. No pneumotórax hipertensivo, pela compressão da veia "componente cardiogênico". A lesão miocárdica decorrente dos chamados
cava, os parâmetros hemodinâmicos são os mesmos do choque "fatores de depressão miocárdica da sepse" provoca uma disfunção sistólica
hipovolêmico, apesar do paciente apresentar uma turgência jugular do ventrículo esquerdo, justificando um aumento das pressões de
patológica bem marcada. No choque obstrutivo do tromboembolismo enchimento ventricular. Ele encontra-se dilatado (aumento de seus volumes
pulmonar, as pressões de enchimento do coração direito estão elevadas sistólico e diastólico), mas com fração de ejeção reduzida. Apesar de existir
(PVC), juntamente com a Pressão Arterial Pulmonar (PAP), enquanto que a disfunção miocárdica, o DS encontra-se elevado, pois o coração trabalha
PCP encontra-se normal ou baixa. Sempre que a Resistência Vascular contra uma pós-carga muito baixa (vasodilatação arteriolar), facilitando a
Pulmonar (RVP) estiver aumentada, a PAP diastólica aumenta ejeção ventricular. Em pequeno número de pacientes (cerca de 15-20%)
consideravelmente em relação à PCP. Os principais exemplos são o com choque séptico, o grau de disfunção miocárdica é grave, havendo
tromboembolismo pulmonar e a hipertensão arterial pulmonar primária ou redução do DC, mesmo na presença de uma RVS baixa. Esses são os
secundária crônica. Leiam com calma e analisem a Tabela 3. pacientes com cardiopatia prévia ou aqueles que estão infectados por
agentes que "atacam" diretamente o miocárdio (ex.: bacilo da difteria,
meningococo, leptospira etc.).

ALTERAÇÕES MICROVASCULARES E DO
METABOLISMO CELULAR

MICROVASCULATURA NO CHOQUE

As alterações microvasculares são comuns a todos os tipos de choque,


porém são caracteristicamente mais precoces no choque séptico. Estas
alterações são decorrentes da ação de toxinas bacterianas, citocinas, PAF
Nos choques hiperdinâmicos, como o choque séptico – o principal (fosfolipídio ativador plaquetário), óxido nítrico, bradicinina,
representante deste grupo – existem dois problemas primários: (1) uma prostaglandinas e leucotrienos, sistema complemento, sistema de
intensa vasodilatação sistêmica que compromete os leitos arterial e venoso; coagulação, ativação de leucócitos e plaquetas etc. Como veremos abaixo,

e (2) uma má distribuição do fluxo a nível microvascular – ver adiante. No essas substâncias elevam-se precocemente no choque séptico, porém podem
choque séptico, desde o início do quadro, observa-se um ambiente se elevar nas fases tardias dos outros tipos de choque, estimuladas pela
microvascular totalmente "corrompido"... Veja o que acontece: dilatação própria lesão tecidual hipóxica. A célula endotelial lesada pode ser uma das
inapropriada de vasos arteriolovenulares que desviam o sangue dos fontes produtoras destas substâncias.
capilares (microshunts), fenômeno exacerbado pela obstrução de
capilares por plugs de neutrófilos, hemácias e microtrombos. A constrição Vasodilatação inapropriada de microshunts arteriolovenulares, obstrução
dos esfíncteres pós-capilares, em conjunto com o aumento da de capilares por plugs celulares (leucócitos, hemácias, plaquetas) ou
permeabilidade do endotélio, provoca um extravasamento de fluidos para o trombóticos, constrição do esfíncter pós-capilar e aumento da
espaço intersticial. Esta perda de fluidos do intravascular para o interstício permeabilidade endotelial, ambos levando ao extravasamento de líquido
associa-se a outros tipos de perda hídrica comuns na sepse (hiperpneia, para o espaço intersticial – todos exemplos das alterações microvasculares
vômitos, diarreia, peritonite, pleurite, distensão intestinal etc.). Uma do choque. No choque hipovolêmico hemorrágico, por exemplo, essas
importante venodilatação ocorre precocemente na sepse. Um sistema alterações costumam aparecer quando a reposição volêmica é atrasada por
venoso dilatado aliado à perda de fluidos do intravascular acarreta numa algumas horas. Nesse caso, mesmo repondo cristaloide, coloide ou
redução significativa do retorno venoso e, portanto, do débito cardíaco nas concentrado de hemácias, esse líquido pode ir para o terceiro espaço e não
fases iniciais do choque séptico – uma espécie de "componente mais corrigir o distúrbio hemodinâmico. Por isso, a correção de um choque
hipovolêmico". Após a reposição vigorosa de fluidos, o retorno venoso é hemorrágico nunca pode ser postergada!
corrigido, permitindo a expressão completa da natureza hiperdinâmica do
choque séptico. Nesse momento, teremos um choque com um DC elevado e
METABOLISMO CELULAR NO CHOQUE
RVS bastante deprimida (ver Tabela 4).
Esta é a "pedra mestra" do choque! Não existe choque sem alteração do
EXTRAÇÃO TECIDUAL DE OXIGÊNIO NO
metabolismo celular... As células para sobreviverem precisam produzir
CHOQUE
energia. Para isso, utilizam a combustão da glicose ou de ácidos graxo que,
via ciclo de Krebs e fosforilação oxidativa mitocondrial, produzem Um conceito que tem que estar bem sedimentado em "nosso cérebro": no
trifosfato de adenosina (ATP), dióxido de carbono (CO₂) e consomem choque, o resultado final é a falta de O₂ às células, levando-as a perder as
oxigênio (O₂) e água (H₂O) – é o processo de aerobiose. Sem oxigênio,
reservas de energia (ATP) e produzir ácido lático. A hipóxia celular
não há fosforilação oxidativa, nem ciclo de Krebs – o metabolismo da
sobrevém por um dos seguintes mecanismos: (1) não há oferta suficiente de
mitocôndria para. O produto final da glicólise – o piruvato, que antes era
oxigênio aos tecidos; (2) os tecidos não estão mais extraindo o oxigênio de
utilizado para produzir acetil-CoA, alimentando o ciclo de Krebs, agora se forma adequada. Vamos entender isto melhor...
acumula no citoplasma e é convertido em lactato. Os estoques de ATP da
célula caem vertiginosamente, pois o ATP agora é fornecido apenas pelo
A oferta de oxigênio aos tecidos é representada pela DO₂, que mede a
processo de glicólise (anaerobiose). Enquanto a anaerobiose produz
quantidade de O₂ que chega aos tecidos na unidade de tempo – depende do
apenas 2 ATPs por molécula de glicose, a aerobiose forma 36 ATPs por
débito cardíaco, do teor de hemoglobina do sangue e da saturação de
molécula de glicose "queimada".
oxigênio arterial. Valor normal = 700-1.200 ml/min. Uma queda
expressiva da DO₂ caracteriza os choques hipodinâmicos (hipovolêmico,
O ATP é o principal armazenador de energia celular. A atividade metabólica cardiogênico, obstrutivo). Nem a hipoxemia nem a anemia costumam ser os
da célula usa a energia do ATP, ao "quebrar" a ligação de alta energia do responsáveis isolados por uma queda expressiva da DO₂, pois a hipoxemia
terceiro fosfato, transformando-o novamente em ADP (difosfato de geralmente estimula o aumento da hemoglobina (policitemia) e a anemia
adenosina). Essa reação libera um H+, que então se liga ao lactato estimula o aumento do DC.
acumulado, transformando-o em ácido lático. O ácido lático então sai da
célula através de um carreador específico de membrana e ganha o espaço
O consumo tecidual de oxigênio é representado pelo VO₂, que mede a
extracelular e o plasma. Como resultado, teremos a acidose lática – a causa
quantidade de O₂ extraída pelos tecidos na unidade de tempo. Valor
mais comum de acidose metabólica. O aumento dos níveis de lactato (> 2,5
normal = 180-280 ml/min. A taxa de extração tecidual de oxigênio
mM) e o aparecimento de um deficit de bases (base excess negativo) são os
– representada pela TEO₂ – é o percentual do O₂ ofertado aos tecidos que é
primeiros indícios de que um paciente está em choque. Nesse momento, a efetivamente extraído, ou seja, quantos por cento do que é ofertado (DO₂) é
pressão arterial ainda pode encontrar-se na faixa normal, já que o sistema
consumido (VO₂).
neuro-hormonal já está ativado (ver anteriormente).

O lactato não é apenas um "grande vilão"... Ele também tem a sua TEO₂ = VO₂/DO₂ x 100
importância fisiológica no choque, ao servir como substrato energético para
o músculo cardíaco. Já está bem documentado que, excetuando-se os casos
de choque cardiogênico por fenômenos de isquemia ou infarto miocárdico,
Em condições normais, a TEO₂ está entre 25 e 35%, ou seja, vai de 0,25 a
o tecido miocárdico não libera lactato – pelo contrário, consome-o. O
0,35. Quando a DO₂ começa a cair, como na hipovolemia ou na
grande produtor de lactato no choque é o musculoesquelético e, em segundo
insuficiência cardíaca, o consumo tecidual de O₂ (VO₂) permanece
lugar, as vísceras. A reutilização do lactato para formar piruvato, que então
inalterado à custa de uma maior TEO₂. À medida que a DO₂ vai caindo,
pode ser convertido em glicose (gliconeogênese) ou utilizado no ciclo de
chega num ponto crítico (na faixa de 500 ml/min), no qual a TEO₂ tornou-se
Krebs, é denominada ciclo de Cori.
máxima (em torno de 70% ou 0,70) – a partir daí, qualquer queda adicional
da DO₂ levará a uma redução proporcional do consumo (VO₂). É o que
COMO ESTÃO OS HORMÔNIOS NO CHOQUE? acontece nos choques hipovolêmico, cardiogênico e obstrutivo. Essa queda
da VO₂ proporcional à queda da DO₂ é chamada dependência
Como vimos no capítulo 1, o estresse isquêmico e inflamatório estimula a
siológica da DO₂ e é a responsável pela hipóxia tecidual nos choques
liberação de cortisol e adrenalina pela suprarrenal e de glucagon pelo
hipodinâmicos.
pâncreas – são os hormônios contrarreguladores da insulina. Eles
promovem glicogenólise (quebra do glicogênio) e gliconeogênese no
fígado, lançando mais glicose no sangue – razão da hiperglicemia E NO CHOQUE SÉPTICO?
frequentemente encontrada nas fases iniciais do choque, da sepse e do
Nesse tipo de choque, a taxa de extração de oxigênio pelos tecidos está
trauma. A supressão insulínica permite o efeito da adrenalina e do cortisol
comprometida, isto é, a TEO₂ encontra-se abaixo de 0,25. Mesmo com uma
no tecido adiposo, promovendo a liberação de ácidos graxos (lipólise), que
DO₂ alta (o que é comum nos estados de alto débito cardíaco), o consumo
serão utilizados como principal substrato metabólico para o
(VO₂) está baixo, apesar de uma demanda tecidual elevada de O₂. As células
musculoesquelético. Ao agir sobre os receptores beta-2 do
precisam de oxigênio, mas parece que há algum tipo de "bloqueio" em sua
musculoesquelético, a adrenalina promove o influxo de potássio, levando à
extração ou consumo. Nestes pacientes observamos que o ponto crítico da
hipocalemia (achado também frequente no choque, sepse ou trauma). O
DO₂ é maior que o esperado – o VO₂ começa a cair antes da DO₂ atingir 500
sistema renina-angiotensina-aldosterona também se encontra ativado,
ml/min. A isto denominamos dependência patológica da DO₂. Essa é a
auxiliando as catecolaminas a "proteger" a hemodinâmica do paciente,
razão da hipóxia tecidual no choque séptico. A razão desse "bloqueio" da
devido ao efeito vasoconstritor e retentor de sal e água da angiotensina II e
TEO₂ pode ser o desarranjo microvascular, a disfunção endotelial ou ainda
aldosterona, respectivamente.
uma disfunção celular metabólica.

SATURAÇÃO VENOSA DE OXIGÊNIO


Nos choques hipodinâmicos, vimos inicialmente que uma DO₂ reduzida Os fatores relacionados ao choque estimulam macrófagos a produzir e
acaba deflagrando um aumento compensatório na TEO₂ pelas células. Se liberar uma citocina – o fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), talvez um
formos "olhar" a microcirculação com calma veremos que este fenômeno dos mais importantes mediadores inflamatórios do choque. O seu papel já
faz passar um sangue com menor quantidade de O₂ do capilar para vênula está bem documentado no choque séptico (a endotoxina dos Gram-
pós-capilar, e daí para as veias, o que levará a uma queda da saturação negativos e o ácido teicoico dos Gram-positivos podem induzir a sua
venosa de O₂ obtida da artéria pulmonar, também conhecida como saturação liberação). O TNF-α estimula a invasão de leucócitos aos tecidos, ao
de O₂ do sangue venoso misto (SvO₂). Lembrem-se que o sangue da artéria aumentar a formação de neutrófilos na medula óssea (leucocitose) e ao
pulmonar é venoso. mesmo tempo promover a expressão endotelial de moléculas de adesão
leucocitária (ICAM-1, VCAM-1, P-selectina). Os neutrófilos podem ser os
Outros fatores além do aumento da TEO₂ reduzem a SvO₂. Os principais responsáveis diretos pela lesão tecidual – quando ativados, liberam radicais
incluem: queda no conteúdo de O₂ no sangue arterial, diminuição do DC, livres derivados do oxigênio, N-cloraminas e enzimas proteolíticas –
redução da Hemoglobina (Hb) e aumento da VO₂. substâncias de um alto poder lesivo.

Em pacientes sem monitorização invasiva com cateter de Swan-Ganz O TNF-α também estimula leucócitos a produzir e liberar citocinas (IL-1,
(somente com cateter profundo e medidas da PVC) a saturação venosa de IL-6, IL-8 e o próprio TNF-α) importantes na manutenção e exacerbação do
O₂ pode ser medida diretamente de sangue colhido da veia cava superior, processo inflamatório. Diversos mediadores inflamatórios são liberados por
sendo chamada de ScvO₂. efeito direto ou indireto das citocinas: PAF (um dos mais potentes),
prostaglandinas, leucotrienos, bradicinina, fatores quimiotáticos do sistema
complemento (C3a, C5a). A Interleucina-6 (IL-6) age no fígado,
COMO FICA A SVO₂ NA SEPSE GRAVE E NO CHOQUE SÉPTICO? estimulando a liberação de proteínas da fase aguda, como a Proteína C-
Vai depender do momento de evolução do paciente. Embora a TEO₂ esteja Reativa (PCR) e o amiloide A. Existe no choque séptico um estado pró-
diminuída, esta alteração não ocorre de imediato. Lembrem-se que nas fases coagulante, que tem como características uma redução dos níveis de
iniciais da sepse grave e do choque séptico o que temos é um paciente com proteínas anticoagulantes, como as proteínas C e S e a antitrombina, e um
extrema hipovolemia relativa (os vasos dilatam e o sangue em seu interior aumento do inibidor do ativador do plasminogênio do tipo 1 (PAI-1), o que
acaba sendo "insuficiente"). Dessa forma, a TEO₂ vai se comportar como dificulta a lise da malha de fibrina. Além disso, a ativação de plaquetas e
nos choques hipodinâmicos, estando aumentada, o que vai justificar uma dos fatores de coagulação é fenômeno encontrado em fases avançadas de
SvcO₂ baixa. Quando repomos volume no doente inauguramos a fase todos os tipos de choque, justificando, dentre outros achados, a formação de
hiperdinâmica e esta, por coincidência ou não, vem acompanhada dos reais microtrombos na rede capilar, o que contribui para o distúrbio
distúrbios microcirculatórios, ou seja, TEO₂ reduzida e, por isso, um microcirculatório. O TNF-α é um importante inotrópico negativo, à medida
aumento gradual na SvcO₂. Esta, que estava reduzida, tende inicialmente à que estimula a produção do lipídio esfingosina que, por sua vez, bloqueia a
normalidade. O mesmo raciocínio se aplica naturalmente à SvO₂... saída de cálcio do retículo sarcoplasmático do miócito cardíaco.

O TNF-α age sobre o endotélio, induzindo a formação de um tipo especial


MECANISMOS DE LESÃO CELULAR NO da enzima óxido nítrico sintetase. Essa enzima é capaz de sintetizar níveis
CHOQUE 100 vezes maiores que o normal de óxido nítrico (NO) – um potente
vasodilatador e um dos principais fatores incriminados na vasodilatação do
O mecanismo do êxito letal no choque é a Disfunção de Múltiplos choque séptico. Em altas concentrações no tecido hipóxico, o NO pode
Órgãos e Sistemas (DMOS). Seria muito bom para o paciente se o reagir com o ânion superóxido (O₂-) para gerar o radical peroxinitrito
choque fosse apenas um distúrbio hemodinâmico, microvascular e
(ONOO-), altamente lesivo para as mitocôndrias. O NO também é um
metabólico... Ele seria simplesmente reversível na maioria dos casos e não
importante inotrópico negativo – aumenta os níveis de GMPc do miócito,
haveria morte. Pois é... Infelizmente, essa não é a realidade... O aspecto
levando à desfosforilação dos canais L de cálcio da membrana (um efeito
mais importante do choque, na verdade, é a evolução para uma fase tardia,
oposto ao AMPc). Como resultado, o influxo sistólico de cálcio,
caracterizada pela lesão orgânica múltipla. Nesse momento, a letalidade
determinante da contratilidade miocárdica, encontra-se reduzido.
torna-se bastante elevada, mesmo se o distúrbio hemodinâmico for
corrigido.
Outro aspecto da lesão tecidual é a lesão de reperfusão. A hipóxia
prolongada depleta progressivamente os estoques de ATP das células. À
A hipóxia celular, o trauma e a sepse são fatores capazes de ativar o sistema
medida que vai sendo utilizado, o ATP volta a ser ADP. O ADP pode seguir
inflamatório. A inflamação é um processo fisiológico localizado, definido
um caminho metabólico, convertendo-se sequencialmente em AMP,
pela vasodilatação (calor e rubor) e aumento da permeabilidade capilar
adenosina, inosina e hipoxantina. O resultado é o acúmulo de hipoxantina
(edema) desencadeados por mediadores químicos que, em última análise,
no citoplasma da célula depletada em ATP. A hipoxantina, na presença de
têm o intuito de atrair neutrófilos e monócitos para o local – células estas
O₂, sofre ação da xantina oxidase, que transforma a hipoxantina em xantina
que possuem a função de matar micro-organismos e induzir o reparo
e o O₂ em O₂- (ânion superóxido). Esse radical livre sofre ação da
tecidual. No choque, entretanto, o estímulo inflamatório pode ocorrer em
superóxido dismutase, se convertendo em H₂O₂ (peróxido de hidrogênio)
vários órgãos e tecidos ao mesmo tempo, culminando em lesão orgânica
que logo libera o radical hidroxila (OH), altamente reativo. Em resumo,
generalizada.
quando reperfundimos um tecido depletado previamente em ATP, podemos
aumentar mais ainda a lesão a suas células, pois o O₂ fornecido acaba sendo
transformado em radicais livres altamente citotóxicos.
Os eventos acima descritos podem culminar na morte celular. Depletada de Um paciente masculino acima de 40 anos ou feminino acima de 50 anos que
ATP e com a queda do pH citoplasmático, a célula vai perdendo a ação de apresentou um quadro de dor torácica súbita, evoluindo com choque, leva a
suas enzimas, como a Na+ K+- ATPase e a Ca++- ATPase, permitindo a três importantes hipóteses diagnósticas: (1) infarto agudo do miocárdio com
excessiva entrada de líquido e de cálcio. A peroxidação dos fosfolipídios choque cardiogênico; (2) dissecção aórtica aguda, com rotura de aorta para
pelos radicais livres derivados do O₂ contribui para a disfunção da o pericárdio, pleura ou peritônio; (3) tromboembolismo pulmonar maciço.
membrana celular e para a morte das mitocôndrias. Os lisossomas se No choque cardiogênico por infarto extenso de Ventrículo Esquerdo (VE)
rompem no citoplasma, liberando suas hidrolases ácidas, responsáveis pelo ou de VD podemos encontrar turgência jugular patológica, assim como no
processo de autólise. Nesse momento, a morte celular já se instalou. Se o hemopericárdio consequente a uma dissecção aguda de aorta ou no
processo se generalizar entre os diversos órgãos e sistemas, a morte do tromboembolismo pulmonar maciço. A taquidispneia e a cianose são
organismo sobrevém. achados bastante proeminentes neste último. A estertoração pulmonar e a
ortopneia franca podem ocorrer no choque cardiogênico. O hemopericárdio
também pode ser decorrente da rotura da parede livre do VE, no contexto de
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS um Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) – essa é uma das complicações
mecânicas do IAM. Elas são raras (< 5% dos casos) e costumam aparecer
CHOQUES HIPODINÂMICOS entre o 1o e 5o pós-IAM.

Os pacientes com choque hipodinâmico se apresentam com "fáscies de


No choque cardiogênico, é importante a avaliação do ritmo cardíaco.
sofrimento" (em inglês, ill appearance), palidez cutâneo-mucosa,
Algumas taquiarritmias muito rápidas ou bradiarritmias muito lentas podem
sudorese fria e pegajosa, principalmente nas extremidades, taquicardia,
desencadear o choque e devem ser prontamente revertidas. A fibrilação
taquipneia, com pulsos radiais finos ou impalpáveis, oligúria e hipotensão
atrial com alta resposta ventricular, a taquicardia ventricular sustentada e
arterial. Como vimos, a hipotensão arterial (definida como PA sistólica < 90
alguns casos raros de taquicardia supraventricular paroxística e flutter atrial
mmHg) não é um critério obrigatório. Na Tabela 5, estão os principais
podem levar à instabilidade hemodinâmica. O tratamento de escolha é
critérios para o diagnóstico empírico de choque. Esses critérios se encaixam
cardioversão elétrica sincronizada. As bradiarritmias que podem levar ao
perfeitamente nos choques hipodinâmicos, mas podem ser também
choque geralmente são o Bloqueio Atrioventricular de segundo grau (BAV
utilizados para o diagnóstico de outros tipos de choque, como o choque
de 2o grau) Mobitz tipo II e o Bloqueio Atrioventricular Total (BAVT) com
séptico.
ritmo de escape baixo. Nesses casos está indicado um marca-passo
provisório transvenoso.

TAB. 5 CRITÉRIOS EMPÍRICOS PARA O DIAGNÓSTICO DE


CHOQUE. Um tipo especial de choque cardiogênico é o infarto de VD. Geralmente
associado ao IAM de parede inferoposterior, pode levar a uma grave
1 "Fácies de sofrimento" ou alteração do estado mental.
disfunção sistólica do VD, provocando baixo DC, aumento das pressões de
2 Taquicardia (FC > 100 bpm). enchimento do VD (como a PVC), aumento da RVS e choque. Como o VD
3 Taquipneia (FR > 22 ipm) ou PaCO2 < 32 mmHg. costuma tolerar bem a infusão de volume, esse choque costuma ter uma boa
resposta à infusão volêmica, mas quase sempre é necessário o uso de
4 Base excess < - 5 mEq/L ou lactato sérico > 4 mM.
inotrópicos.
5 Débito Urinário < 0,5 ml/kg/h.
6 Hipotensão arterial (PA sistólica < 90 mmHg) por um período >
É importante destacar que muitos pacientes hipotensos ou mesmo chocados
20min.
na fase aguda do IAM podem ter uma excelente resposta à reposição
*Para confirmar o diagnóstico da síndrome, quatro critérios desses seis devem ser
preenchidos.
volêmica, afastando como principal hipótese o choque cardiogênico. No
contexto do IAM, ele é definido por uma PA sistólica < 90 mmHg e/ou
sinais de disfunção orgânica não responsivos à reposição de fluidos.
O restante do quadro depende da causa do choque. Por exemplo, um Devemos lembrar que a prova terapêutica com volume só está indicada se o
politraumatizado com história de perda sanguínea aguda ou que apresenta paciente não estiver com sinais típicos de congestão pulmonar (ortopneia,
sinais de hemorragia interna – hemotórax, hemoperitônio, hematoma estertores pulmonares etc.).
muscular de grande monta – nos fala a favor de um choque hemorrágico. A
mesma hipótese pode ser constatada quando há história de hemorragia
digestiva aguda (hematêmese, melena, hematoquezia). Devemos lembrar SOBRE O CHOQUE CARDIOGÊNICO...
que os pacientes idosos e os previamente doentes (cardiopatas, nefropatas,
cerebropatas) toleram menos o sangramento do que os jovens previamente
hígidos.

No trauma torácico, devemos lembrar, além do hemotórax, de outras causas


de choque que necessitam de uma rápida abordagem intervencionista, como
o pneumotórax hipertensivo e o tamponamento pericárdico agudo, por
hemopericárdio. Nesses dois casos, o paciente encontra-se chocado e com
turgência jugular patológica. A assimetria respiratória entre os hemitóraces,
com hipertimpanismo de um deles sugere muito o pneumotórax
hipertensivo, enquanto o abafamento completo de bulhas aponta para o
diagnóstico do hemopericárdio.
A causa mais comum de choque cardiogênico é o IAM. Esse
diagnóstico deve ser suspeitado mesmo na ausência de dor torácica.
Por isso, o ECG é um exame mandatório nesses casos, pois é ele que
confirmará a princípio o diagnóstico de IAM, ao revelar um
supradesnível do segmento ST em mais de uma derivação
consecutiva. O mais comum é o IAM de parede anterior, que acomete
as derivações precordiais (V1 a V6). Outras causas possíveis de
choque cardiogênico são: miocardite aguda, endocardite infecciosa
aguda com insuficiência aórtica ou mitral graves, complicações
mecânicas do IAM (rotura de músculo papilar, rotura de septo
interventricular) ou uma cardiomiopatia crônica grave
descompensada por um fator desencadeante ou pela própria
evolução da doença – fase terminal.

Outro escore, rápido de ser avaliado à beira do leito, tem sido preconizado
É de extrema importância, que, diante de um quadro de choque, o clínico
em pacientes fora de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e inclui três dados:
tenha decisões rápidas – enquanto já começa a monitorizar e tratar o
FR ≥ 22 irpm, alteração do estado mental e PA sistólica ≤ 100 mmHg; este
paciente empiricamente, já está pensando e avaliando o diagnóstico
escore, conhecido como quick SOFA, identifica, com bom valor preditivo,
etiológico, através de uma rápida anamnese com o paciente ou seus
pacientes com infecção que apresentam mau prognóstico (pontuação ≥ 2).
familiares, um exame físico sumário, um ECG, uma radiografia de tórax,
Vejam a Tabela 8.
uma gasometria arterial e, eventualmente, até um ecocardiograma
transtorácico ou transesofágico.

TAB. 8 QUICK SOFA.

CHOQUES HIPERDINÂMICOS
Frequência respiratória ≥ 22 irpm.
Choque Séptico Alteração do estado mental.

Em 2016 foi realizado o Terceiro Consenso Internacional para a Definição PA sistólica ≤ 100 mmHg.
de Sepse e Choque Séptico (Sepsis-3), que modificou alguns conceitos
importantes (Tabela 6). Nesse texto, sepse é definida pela presença de O termo sepse grave foi abandonado... Muitos autores criticam o SOFA
disfunção de órgãos ameaçadora à vida, sendo ocasionada por uma resposta acusando-o de omitir dados importantes, como a dosagem sanguínea do
inflamatória desregulada do hospedeiro à infecção. A partir de então, a lactato, por exemplo.
gravidade da disfunção de órgãos passou a ser avaliada por um escore
conhecido como SOFA (Sequential [Sepsis-Related] Organ Failure
Nesse consenso, o termo Síndrome da Reposta Sistêmica Inflamatória
Assessment Score), descrito na Tabela 7. Na realidade, disfunção de (SIRS) não foi mais relacionado à sepse. Os critérios de SIRS não
órgãos passou a ser caracterizada por uma mudança aguda no escore SOFA necessariamente implicam em uma resposta inflamatória desregulada e
≥ 2 pontos consequente à infecção. A disfunção, quando presente, encerra ameaçadora à vida. Estes critérios podem estar presentes em muitos
uma mortalidade hospitalar global de aproximadamente 10%. pacientes hospitalizados, incluindo aqueles que jamais desenvolverão um
processo infeccioso, e em muitos casos, nem apresentarão um prognóstico
adverso...
TAB. 6 DEFINIÇÕES DE INFECÇÃO, BACTERIEMIA, SEPSE E
CHOQUE SÉPTICO.
Contudo, muitos autores citam que os sinais e sintomas da sepse continuam
(1) Infecção é de nida por invasão de tecido normalmente estéril sendo pouco específicos e incluem diversas combinações dos seguintes: (1)
por micro-organismos. sintomas direcionados a uma fronte infecciosa (tosse e dispneia podem
(2) Bacteriemia é a presença de bactérias viáveis na corrente sugerir pneumonia, dor e exsudato purulento em uma ferida operatória
sanguínea ou crescimento de bactérias na hemocultura. podem indicar infecção de sítio cirúrgico); (2) hipotensão arterial
(hipotensão arterial sistólica < 90 mmHg ou PAM < 70 mmHg); (3)
(3) Sepse é de nida pela presença de disfunção de órgãos
temperatura > 38,3ºC ou < 36ºC; (4) FC > 90 bpm; (5) taquipneia (FR > 20
ameaçadora à vida, sendo ocasionada por uma resposta
irpm); (6) alteração do estado mental; (7) íleo adinâmico; e (8) tempo de
in amatória desregulada do hospedeiro à infecção. A disfunção
enchimento capilar prolongado, cianose ou livedo (cianose mosqueada).
de órgãos encontra-se presente quando há elevação aguda ≥ a 2
pontos no escore SOFA consequente à infecção.
O choque séptico passou a ser uma variedade da sepse, situação em que o
(4) Choque séptico pode ser considerado um subtipo da sepse;
indivíduo permanece hipotenso e com níveis de lactato > 18 mg/dl (> 2
é de nido como a persistência de hipotensão e lactato sérico
mmol) a despeito de uma ressuscitação volêmica adequada; esses pacientes
elevado (> 18 mg/dl ou > 2 mmol/L) apesar de uma ressuscitação
obrigatoriamente necessitarão de aminas vasopressoras para manter uma
volêmica adequada em pacientes com sepse. Estes pacientes
PAM ≥ 65 mmHg. Nesses casos, a mortalidade hospitalar é de
necessitam obrigatoriamente do uso de aminas vasopressoras
aproximadamente 40%.
para manter uma PAM ≥ 65 mmHg.
Após a reposição volêmica, o choque séptico se transforma em um quadro Choque Neurogênico
hiperdinâmico; como vimos antes, na ausência de aminas, a PA se encontra
É um tipo de choque hiperdinâmico, semelhante ao choque séptico. Pode
surpreendentemente baixa (< 90 mmHg), com oligúria e alteração do estado
ser desencadeado por condições como traumatismo cranioencefálico grave
mental; há indubitavelmente disfunção de órgãos. Além da hiperlactatemia,
ou Trauma Raquimedular (TRM). Todo o fluxo simpático é interrompido de
o laboratório apresenta leucocitose com desvio à esquerda, que se torna
forma brusca e o paciente evolui rapidamente com uma intensa vasoplegia,
importante (desvio até bastões, metamielócitos ou mielócitos) em casos de
acometendo os leitos arterial e venoso. A venoplegia reduz o retorno venoso
infecção por bactérias piogênicas, Gram-negativas ou positivas. Não há
e, portanto, o DC. A dilatação arteriolar é responsável pela queda da RVS.
diferença clínica entre o choque séptico causado por Gram-negativos
daquele ocasionado por micro-organismos Gram-positivos.
O quadro clínico é de um paciente chocado e, curiosamente, com
extremidades quentes e FC tendendo a bradicardia. Em situações de
Alguns pacientes com choque séptico encontram-se hipotérmicos (TAx <
politrauma, por exemplo, uma FC reduzida e as extremidades aquecidas
36o C), enquanto outros apresentam leucopenia inferior a 4.000
frente à instabilidade hemodinâmica afastam, a princípio, a perda
células/mm³. Estes achados funcionam como sinais de mau prognóstico e
hemorrágica como a causa da alteração pressórica. O tratamento consiste
são mais comuns na presença de comorbidades (doença renal crônica,
em ressuscitação volêmica para "preencher espaço" nos vasos
câncer, uso de quimioterapia citotóxica, doença cerebrovascular avançada
extremamente dilatados, somada ao uso de aminas vasopressoras como a
etc.) e nos idoso acima de 70 anos.
noradrenalina ou a fenilefrina (efeito somente alfa).

Choque Ana lático


OUTROS TIPOS DE CHOQUE
Trata-se de um tipo especial de choque hiperdinâmico. O choque anafilático
é desencadeado pela exposição a um determinado alérgeno, que pode ser Alguns tipos menos frequentes (mas não menos importantes) de choque
um medicamento ou uma substância presente nos alimentos (frutos do mar, devem ser citados. Neste grupo colocamos os "choques endócrinos", que
leite e derivados, nozes, amêndoas etc.). Outras condições que podem são complicações conhecidas e documentadas da crise tireotóxica, do coma
precipitar uma reação anafilática incluem veneno de insetos da ordem mixedematoso, da insuficiência adrenal aguda e da apoplexia hipofisária.
Hymenoptera (abelhas e vespas), exercício (associado a alimentos ou Vamos comentar apenas as principais características desses choques. O
isoladamente), imunoterapia (aplicação terapêutica de alérgenos) e látex e choque tireotóxico é semelhante ao choque séptico, apresentando-se
transfusão de plasma (< 1% dos casos). A reação anafilática se baseia no desde o início com um intenso hiperdinamismo circulatório – alto DC,
princípio da alergia – uma reação de hipersensibilidade imediata (tipo I), queda da RVS, taquicardia, taquipneia, aumento dos diâmetros
dependente da liberação de grandes quantidades de histamina pelos ventriculares, terceira bulha, sopro sistólico funcional. Estes pacientes
mastócitos, além de outros mediadores importantes, como PAF, leucotrienos podem se apresentar hipertensos, mas evoluir para choque se a crise
e bradicinina. tireotóxica não for prontamente diagnosticada e tratada. Os indivíduos
geralmente têm bócio, exoftalmia e sintomas prévios de tireotoxicose, sendo
quase sempre portadores da doença de Basedow-Graves. O ritmo de
Essa reação é mediada por IgE. Uma exposição prévia ao antígeno
fibrilação atrial com alta resposta ventricular é muito comum nesses casos.
(sensibilização) estimula a síntese de IgE específica, que então se liga à
O tratamento deve ser feito com propiltiouracil em altas doses, lugol,
membrana dos mastócitos, presentes no tecido conjuntivo da pele,
prednisona e, se a PA sistólica não estiver inferior a 90 mmHg,
subcutâneo, brônquios e vasos sanguíneos. A ligação entre o antígeno e o
betabloqueadores administrados cuidadosamente. Os hormônios
IgE dos mastócitos numa segunda exposição desencadeia a degranulação
tireoidianos em excesso aumentam o efeito adrenérgico sobre o miocárdio.
em massa dessas células.
Isso por um lado aumenta o DC, mas por outro lado pode ser tóxico aos
miócitos.
Na anafilaxia, o indivíduo pode apresentar dor abdominal, vômitos, prurido,
lesões cutâneas do tipo urticária, angioedema de face e, nos casos mais
O choque mixedematoso é um choque hipodinâmico, caracterizado por
graves, edema de glote, broncoespasmo e choque. O choque anafilático é
um baixo débito cardíaco, bradicardia sinusal acentuada, hipotermia,
um choque hiperdinâmico, desencadeado por uma vasodilatação
bradipneia e um aumento da RVS (vasoconstrição). O choque adrenal
generalizada inapropriada. Pode ser revertido prontamente com o uso de
(apoplexia adrenal – complicação da sepse ou da meningococcemia) é
adrenalina. A droga inicialmente é administrada pela via intramuscular, no
muito semelhante ao choque da apoplexia hipofisária (hemorragia da
vasto lateral da coxa (dose de 0,3 mg para adultos e 0,15 mg em crianças <
hipófise, geralmente dentro de um macroadenoma) – choque hipo sário.
50 kg), com uma ou duas doses repetidas; em pacientes que já
A perda aguda do efeito glicocorticoide leva a um tipo de choque
desenvolveram hipotensão significativa ou naqueles que não responderam
hipodinâmico, com características semelhantes às da hipovolemia.
ao uso intramuscular, a adre-nalina venosa deve ser iniciada, na dose de 2 a
Hiponatremia refratária e hipoglicemia são achados frequentes. A
10 μg/min (em crianças 0,1 a 1 μg/kg/min), em infusão contínua. Os anti-
hipercalemia e a acidose metabólica hiperclorêmica só ocorrem na
histamínicos utilizados são tanto os bloqueadores H1 (difenidramina)
insuficiência adrenal primária, por conta do hipoaldosteronismo (e não do
quanto os bloqueadores H2 (ranitidina); estas medicações promovem uma
hipocortisolismo). Devemos lembrar que a zona glomerulosa da suprarrenal
resolução mais rápida da urticária, sem influenciar nos níveis de pressão
só é destruída ou atrofiada na insuficiência primária da glândula, pois não
arterial ou em outros sintomas. Os corticosteoides são recomendados de
existe relação desta região com hormônios hipofisários. Por esse motivo,
forma empírica, com o objetivo de atenuar possíveis reações tardias. As
não encontramos os distúrbios eletrolíticos e acidobásicos descritos na
drogas mais empregadas são a metilprednisolona e a prednisona. O
apoplexia hipofisária.
glucagon endovenoso pode ser administrado em pacientes não responsivos à
adrenalina, principalmente naqueles que utilizam rotineiramente os
betabloqueadores.
A intoxicação exógena por drogas ilícitas ou medicamentos também pode A resposta mais comum do choque relativa aos pulmões é a taquipneia e
levar ao choque. As substâncias mais incriminadas são: antagonistas do hiperpneia, propiciada pela ativação direta de receptores do interstício
cálcio, betabloqueadores, sedativos, narcóticos, antidepressivos, agentes pulmonar ou pela acidose metabólica. Na ausência de acidose metabólica
anestésicos, estimulantes do SNC etc. Em sua maioria, acarretam choques prévia, a hiperpneia leva à alcalose respiratória. Substâncias liberadas na
vasoplégicos e com depressão miocárdica. Além das medidas de suporte sepse podem estimular diretamente o centro respiratório provocando
interessadas a todos os choques (ver adiante), algumas dessas drogas alcalose respiratória. Uma das disfunções orgânicas mais temidas do choque
exigem o uso de antídotos (gluconato de cálcio para os antagonistas do e da sepse/SIRS é a lesão pulmonar – a Síndrome do Desconforto
cálcio; glucagon para os betabloqueadores; flumazenil para os Respiratório Agudo (SDRA) ou Síndrome da Angústia
benzodiazepínicos e naloxone para os opioides narcóticos). Respiratória Aguda (SARA). Caracteriza-se pelo acúmulo de neutrófilos
aderidos ao endotélio alveolar, que liberam mediadores e substâncias
oxidantes e proteolíticas. Uma grave lesão alveolar então se instala,
DISFUNÇÃO ORGÂNICA NO CHOQUE marcada pela formação de uma membrana hialina revestindo o interior dos
alvéolos, edema alveolar não cardiogênico (por aumento da permeabilidade
Os diversos tipos de choque podem causar variados graus de disfunção
capilar) e perda do surfactante por lesão dos pneumócitos tipo II. Sem o
orgânica. Se o distúrbio hemodinâmico não for prontamente controlado e o
surfactante, diversos alvéolos entram em colapso, como se fossem múltiplas
fator etiológico não for corrigido, a tendência é que o processo evolua para
atelectasias. O resultado final é um grave distúrbio de troca gasosa, levando
a síndrome de Disfunção de Múltiplos Órgãos e Sistemas (DMOS), definida
à hipoxemia refratária e necessidade de ventilação mecânica com altos
como a presença de três ou mais comprometimentos orgânicos.
níveis de PEEP (pressão positiva no final da expiração).

Vamos agora descrever sumariamente as principais alterações apresentadas


pelos diversos órgãos e sistemas no choque. Algumas delas são decorrentes RINS
da hipóxia tecidual; outras do efeito de substâncias inflamatórias ou
Os rins são órgãos de "prioridade intermediária" na homeostase
oxidantes, incriminadas na lesão celular; por fim, outras são resultados
cardiovascular. Costumam ser mais poupados que as vísceras, a musculatura
apenas da resposta compensatória cardiovascular e respiratória ao choque
esquelética e a pele/subcutâneo, mas são lesados muito antes do cérebro e
por intermédio da ativação neuro-humoral.
do coração. A autorregulação do fluxo renal não é tão eficaz quanto a
cerebral e cardíaca. A taxa de filtração glomerular começa a se reduzir
CÉREBRO quando a PAM está inferior a 70 mmHg. Inicialmente, o paciente
desenvolve uma insuficiência pré-renal, que pode levar à oligúria e
Por ser um órgão nobre, o cérebro é protegido da isquemia por uma alta azotemia, prontamente responsiva à reposição de fluidos. Porém, uma
capacidade de autorregulação do seu fluxo sanguíneo. A isquemia cerebral isquemia renal prolongada, especialmente na sepse e no trauma, pode levar
só ocorre quando a PAM está abaixo de 50-55 mmHg (PAM = PAs + 2 x à lesão renal – sob a forma de Necrose Tubular Aguda (NTA). A NTA
PAd / 3) em indivíduos sem doença cerebrovascular prévia. Porém, nos isquêmica também se manifesta com oligúria e azotemia, mas difere da pré-
idosos e indivíduos com patologia vascular cerebral prévia, a isquemia renal por não responder à reposição volêmica. A diferenciação laboratorial
cerebral pode ocorrer com PAM mais alta. No choque séptico e sirético, entre azotemia pré-renal e NTA foi amplamente revista no módulo de
mediadores inflamatórios sistêmicos podem inibir diretamente a função "Nefrologia". Nos casos mais graves, o paciente evolui com uremia,
neuronal, determinando o que chamamos de encefalopatia séptica. Os necessitando de diálise. Se houver melhora do choque ou da sepse, a
distúrbios tóxicos, eletrolíticos e metabólicos também podem contribuir tendência é para a recuperação da função renal, com poliúria, após 7-21
para uma disfunção cerebral em pacientes com choque. dias. Raramente, a necrose estende-se para o córtex renal (necrose cortical
aguda), tornando a disfunção renal irreversível.

CORAÇÃO
TRATO GASTROINTESTINAL
Assim como o cérebro, o coração é um órgão nobre, sendo protegido da
isquemia por seu alto poder de autorregulação do fluxo coronariano. A As vísceras abdominais estão entre os órgãos mais acometidos no choque
resposta cardíaca mais comum ao choque é decorrente da ativação neuro- pela hipoperfusão, já que são um dos primeiros a sofrerem vasoconstrição
humoral (sistema adrenérgico), levando à taquicardia, aumento da por ação adrenérgica. Este fenômeno leva a diversas consequências como
contratilidade, arritmogênese. Entretanto, mediadores inflamatórios gastrite isquêmica, lesão aguda da mucosa gástrica (causa importante de
sistêmicos, liberados especialmente no choque séptico, podem inibir a hemorragia digestiva em pacientes críticos), colecistite acalculosa,
contratilidade miocárdica – são os "fatores depressores miocárdicos da pancreatite, íleo metabólico, isquemia mesentérica aguda não oclusiva e
sepse". O principal candidato é o TNF-α. Este mediador age diretamente ou colite isquêmica (levando à hematoquezia). Uma consequência grave da
através da produção excessiva de NO pelo endotélio (ver anteriormente). agressão a mucosa intestinal é a translocação de toxinas provenientes das
Em pacientes com doença coronariana prévia, o choque pode realmente bactérias da microbiota ileocolônica. A endotoxina é uma das principais,
levar à isquemia miocárdica, prejudicando gravemente a função ventricular. sendo incriminada no desenvolvimento da DMOS.

PULMÕES FÍGADO
A hepatite isquêmica é uma entidade bem documentada, manifestando-se A não ser que o paciente esteja congesto (ortopneia, terceira bulha,
pelo aumento das aminotransferases, fosfatase alcalina e bilirrubinas, bem estertores pulmonares) ou sabidamente hipervolêmico, o primeiro passo no
como pela disfunção hepática. A função sintética do fígado pode ser tratamento do choque é a reposição de fluidos. Além de ser a principal
comprometida, levando à hipoalbuminemia e ao alargamento do tempo de medida no choque hipovolêmico, é parte fundamental do tratamento do
protrombina, pela deficiência de fatores da coagulação. Em alguns casos, choque séptico e pode ajudar em alguns casos de choque cardiogênico,
especialmente no choque séptico, as aminotransferases podem subir a níveis quando existe um componente de hipovolemia (pelo uso prévio de
semelhantes aos da hepatite viral. Esses casos cursam com também diuréticos etc.). Neste momento, um cateter de Foley uretral deve ser
acentuada hiperbilirrubinemia, com predomínio de bilirrubina direta. O instalado, para a monitorização do débito urinário. A melhora da diurese é
histopatológico mostra uma extensa lesão centrolobular. Se o paciente se um excelente parâmetro de sucesso terapêutico.
recuperar do choque, a tendência é a melhora do hepatograma após 5-10
dias. Entretanto, na maioria dos casos de choque ou sepse, o
comprometimento hepático é leve, caracterizando-se apenas por uma AMINAS INOTRÓPICAS E VASOPRESSORAS
discreta elevação de aminotransferases, bilirrubinas e fosfatase alcalina, de
As aminas vasopressoras mais utilizadas na prática do choque em nosso
caráter transitório.
meio são a dopamina, a noradrenalina e, menos frequentemente, a
adrenalina. Uma amina vasopressora está indicada em todos os casos de
SISTEMA HEMATOLÓGICO choque refratário à reposição volêmica ou outras medidas iniciais, quando a
PA sistólica estiver abaixo de 80 mmHg ou a PAM invasiva abaixo de 65-70
Um estímulo à medula óssea a produzir e liberar leucócitos é comum, mmHg. Estas drogas agem através da vasoconstrição, aumentando a RVS
especialmente na sepse e no trauma, explicando a leucocitose e o desvio e, portanto, a PAM. Com isso, melhoram a perfusão dos órgãos nobres,
para a esquerda. Nas fases avançadas do processo, o paciente pode evoluir como o cérebro e o coração e, eventualmente, os rins. Para isso, têm que
com insuficiência medular, levando a uma espécie de "esgotamento promover vasoconstrição do leito arteriolar dos órgãos não nobres, como as
hematológico" – expressando-se como pancitopenia. A síndrome da vísceras, a musculatura esquelética, a pele e o subcutâneo. No choque
Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD) é comum na sepse e nas séptico, as aminas vasopressoras têm indicação precisa, pois agem no
complicações obstétricas. A ativação da hemostasia (primária e secundária) principal distúrbio hemodinâmico deste choque – a vasodilatação
leva à formação de trombos na microcirculação, o que agrava a perfusão inapropriada, corrigindo (pelo menos em parte) a queda da RVS.
tecidual. Uma vez consumidos plaquetas e fatores de coagulação,
principalmente o fibrinogênio, sobrevêm manifestações de sangramento
As aminas inotrópicas sem efeito vasopressor são representadas pela
(sítios de punção, petéquias, equimoses, sangramentos em cavidades etc.).
dobutamina (ver adiante). As aminas dopamina, noradrenalina e adrenalina
No choque hemorrágico, a politransfusão pode causar plaquetopenia e
são ao mesmo tempo inotrópicas e vasopressoras.
coagulopatia dilucionais.

DOPAMINA
ABORDAGEM TERAPÊUTICA
Em doses entre 3 a 5 µg/kg/min, a dopamina tem apenas efeito
MEDIDAS GERAIS dopaminérgico, isto é, são agonistas dos receptores dopaminérgicos do tipo
D2, presentes na vasculatura renal, esplâncnica, coronariana e cerebral. O
Os pacientes com o diagnóstico clínico de choque devem ser prontamente efeito principal é a vasodilatação renal e esplâncnica. O estímulo aos
atendidos. Antes de mais nada, devem ser instalados o monitor cardíaco, o receptores D1 possui um efeito natriurético independente da vasodilatação
oxímetro de pulso e o paciente deve ser colocado no oxigênio em máscara renal. Contudo, a maioria dos estudos não demonstra benefício da dopamina
de Hudson. Em seguida, punciona-se um acesso venoso periférico com um em baixas doses ("doses renais") em termos de prognóstico do choque e da
jelco no 16 ou no 18. Nos pacientes vítimas de trauma ou choque insuficiência renal aguda.
hemorrágico, é de praxe a instalação de dois acessos venosos periféricos
para aumentar a capacidade de reposição de fluidos. Não se esqueçam da Em doses mais altas, entre 5 a 10 µg/kg/min, a dopamina tem efeito
tríade inicial para todo paciente grave: OXIGÊNIO – VEIA – MONITOR. cronotrópico (aumenta a frequência cardíaca) e inotrópico (aumenta a
contratilidade ventricular), por agir sobre os receptores beta-1 adrenérgicos
O sangue do paciente deve ser prontamente coletado para tipagem, do nódulo sinusal e do miocárdio, respectivamente. Na realidade, a
bioquímica, hemograma, gasometria arterial, enzimas cardíacas, lactato e dopamina é mais cronotrópica do que inotrópica, além de ser bastante
PCR. Em certos casos suspeitos, os hormônios tireoidianos e o cortisol arritmogênica. As verdadeiras doses vasoconstritoras são ainda mais altas, a
devem ser dosados. Nos casos em que há sinais de insuficiência ventilatória partir de 10 µg/kg/min. Nessas doses, os receptores alfa vasculares são os
(esforço ventilatório intenso, respiração agônica, redução do nível de mais estimulados, promovendo vasoconstrição arteriolar (aumentando a
consciência) o indivíduo deve ser prontamente intubado e colocado em RVS) e venoconstrição (aumentando o retorno venoso e as pressões de
ventilação mecânica. Devemos tomar cuidado com o uso dos sedativos, enchimento cardíacas).
uma vez que estas drogas podem piorar a instabilidade hemodinâmica. A
pressão positiva do ventilador também é um fator potencialmente deletério
NORADRENALINA
para a hemodinâmica do paciente, pois reduz o retorno venoso. A reposição
volêmica pode corrigir esse problema. A princípio, os pacientes com
instabilidade hemodinâmica não devem ser submetidos a uma PEEP alta (>
10 cmH2O). A saturação de O2 deve ser mantida acima de 92%.
Trata-se de uma catecolamina com um potente efeito alfa vascular, isto é, A vasopressina (ADH) é hormônio liberado na resposta ao trauma e em
uma importante ação vasoconstritora e venoconstritora. Apresenta um efeito situações de estresse. Esta medicação é capaz de restaurar o tônus vascular
menos pronunciado sobre os receptores beta do coração. É a amina de em estados vasoplégicos, como no choque séptico. Embora um trabalho
escolha na manutenção da pressão arterial e perfusão tecidual no choque recente (Vasopressin and Septic Shock Trial – VASST) tenha
séptico, já que o principal objetivo neste caso é a vasoconstrição, para demonstrado um efeito benéfico da droga, semelhante ao da noradrenalina,
corrigir a queda da RVS. Apesar de ter potente efeito vasoconstritor, não em casos de choque séptico, a vasopressina, neste contexto, continua sendo
promove queda do DC. Além disso, não leva a aumento da frequência encarada como amina vasopressora de segunda linha. A dose inicial é de
cardíaca. A dose situa-se entre 0,1 até 1,0 µg/kg/min. Todavia, em pacientes 0,01 a 0,03 U/min. Doses acima de 0,04 U/min podem causar
com choque hipovolêmico, esta amina não deve ser usada, pois apresentou vasoconstrição coronária e redução da excreção de água livre e consequente
maior incidência de isquemia renal. hiponatremia.

ADRENALINA DROGAS DE USO MENOS FREQUENTE

É a catecolamina com efeito inotrópico e vasopressor mais potente. É Os inibidores da fosfodiesterase, como a amrinone e a milrinone, têm sido
utilizada nos casos de choque cardiogênico ou séptico refratário a outras utilizados com menor frequência atualmente. A dopexamina é um análogo
aminas. Alguns pacientes em fase avançada de choque só melhoram a PAM da dopamina com efeitos dopaminérgicos e alfa-2 adrenérgicos. Alguns
com a infusão de adrenalina – são os que têm um péssimo prognóstico. A estudos demonstraram aumento do índice cardíaco e da perfusão
adrenalina (ou epinefrina) age com grande potência sobre os receptores alfa, esplâncnica em doentes chocados.
beta-1 e beta-2 adrenérgicos. A dose situa-se entre 0,1 a 1 µg/kg/min. Em
doses baixas (1-8 µg/min) o seu efeito já é bastante expressivo. O principal
problema da adrenalina é o seu alto poder arritmogênico. CHOQUE HEMORRÁGICO

A maioria dos pacientes com perdas hemorrágicas avaliados por um


DOBUTAMINA cirurgião apresenta uma das duas condições: politrauma ou hemorragia
digestiva.
É uma amina de grande potência inotrópica e um leve efeito vasodilatador
arteriolar. Age sobre os receptores beta-1 do miocárdio, tendo um efeito
Na abordagem inicial desses casos, o controle da via aérea é fundamental.
inotrópico mais proeminente que o cronotrópico. O aumento do inotropismo
Evidências de rebaixamento do nível de consciência e/ou suspeita de
pela estimulação beta-1 advém do aumento dos níveis citoplasmáticos de
aspiração geralmente indicam acesso definitivo à via aérea.
AMPc que, em última análise, fosforilam os canais L de cálcio, facilitando a
entrada celular deste íon na sístole ventricular.
No choque hemorrágico é importante que se defina o grau de perda,
principalmente nos casos de hemorragia aguda, uma vez que este parâmetro
Ao contrário da dopamina, a dobutamina reduz as pressões de enchimento
servirá para determinar a gravidade das manifestações e auxiliar na
ventricular, pois, além de melhorar a contratilidade do miocárdio, ela reduz
reposição volêmica inicial. Assim, as hemorragias podem ser classificadas
a pós-carga (dilatando arteríolas por ação dos receptores beta-2 periféricos)
em quatro graus, conforme o quadro clínico apresentado pelo paciente
e otimiza a pré-carga (aumentando o retorno venoso através da
(Tabela 9).
venoconstrição mediada por receptores alfa).

Além disso, tem a característica especial e particular de aumentar a perfusão


coronariana, acompanhando o aumento da demanda miocárdica de O₂.
Enquanto isso, a dopamina aumenta a demanda miocárdica de O₂, sem
alterar a perfusão coronariana. É menos arritmogênica que a dopamina e a
adrenalina. A sua principal indicação é no choque cardiogênico (de VE ou
VD), uma vez que a PAM encontra-se acima de 70 mmHg (ou a PA sistólica
acima de 80 mmHg). Não pode ser feita isoladamente no choque com PA
abaixo desses valores, devido ao seu leve efeito dilatador arteriolar. A dose
varia de 3 até 20 µg/kg/min. Alguns autores preconizam o uso da
dobutamina no choque séptico em situações especiais (sempre associada à
noradrenalina), para manter um índice cardíaco (DC/superfície corpórea)
elevado (> 4,0 L/min/m²), de forma a otimizar a DO₂.

VASOPRESSINA
As hemorragias classe I se acompanham de pouca repercussão clínica, uma
vez que os pacientes apresentam perda de menos de 15% da volemia e
assim, não necessitam de reposição volêmica. Nesta situação, os
mecanismos compensatórios orgânicos conseguem restabelecer a
normovolemia em, no máximo, 24 horas.
As perdas classificadas como classe II correspondem às hemorragias que O desenvolvimento de acidose láctica requer, de acordo com alguns
comprometem entre 15 e 30% do volume circulante (750 a 1.500 ml). No trabalhos, a administração de bicarbonato quando o pH arterial esteja menor
exame físico já identificamos taquicardia, taquipneia e diminuição da do que 7,1. Para este fim, utilizam-se soluções tampões fisiológicas
pressão de pulso (diferença entre pressão arterial sistólica e diastólica). A (physiologically buffered fluids) contendo salina a 0,45% e 75 mmol
pressão de pulso é mais fiel na avaliação dos indivíduos com sangramento de bicarbonato de sódio.
ativo, pois inicialmente ocorre elevação da pressão diastólica devido ao
excesso de catecolaminas circulantes, o que promove vasoconstrição e A ideia de que os níveis de hemoglobina e hematócrito nos momentos
aumento da pressão diastólica (elevação do tônus adrenérgico com aumento iniciais do sangramento não nos permitem estimar a perda sanguínea não é
da RVS). A diurese ainda está preservada, na faixa de 20 a 30 ml/h. um conceito totalmente correto, pois vai depender se já foi iniciada ou não a
Dificuldades que encontramos para seguir à risca esta tabela proposta pelo administração de fluidos. Sabemos que em vítimas ressuscitadas
ATLS incluem variações da frequência cardíaca impostas pela dor e volemicamente, tanto a hemoglobina quanto o hematócrito têm seus valores
ansiedade, por exemplo, e a dificuldade em estabelecermos a PA normal reduzidos de forma rápida...
prévia do paciente.

As principais indicações de transfusão incluem: (1) queda da pressão


As perdas de volumes significativas, (aproximadamente 2.000 ml no arterial; e (2) sinais clínicos e hemodinâmicos compatíveis com baixa oferta
adulto), são classificadas como classe III. Os pacientes apresentam sinais e de oxigênio aos tecidos, tais como, extremidades frias e úmidas,
sintomas clássicos de choque hipovolêmico – taquicardia e taquipneia rebaixamento do nível de consciência, anúria, acidose láctica, taxa de
acentuadas, oligúria e alterações do nível de consciência. De acordo com o extração de oxigênio > 0,3 e oferta de oxigênio (DO 2) < 10 a 12
ATLS, em casos não complicados, este é o menor volume de perda ml/kg/min.
sanguínea que provoca sistematicamente queda da pressão sistólica. O
tratamento desses pacientes envolve não só a reposição de cristaloide, mas
A transfusão geralmente é realizada com concentrado de hemácias, com
também de sangue.
cada unidade contendo um volume de 300 ml, sendo 200 ml de hemácias;
sangue total é raramente utilizado, sendo recomendado somente em casos
Os pacientes classe IV apresentam sangramentos geralmente acima de de transfusão maciça, para que se evite uma coagulopatia dilucional
2.000 ml (comprometendo mais de 40% do volume sanguíneo). O quadro (administração excessiva de concentrados de hemácias provoca diluição de
clínico é de choque hemorrágico franco: obnubilação ou coma, diminuição plaquetas e fatores de coagulação).
significativa da pressão sistólica e pressão diastólica não mensurável, e
anúria. Essa situação exige início de reposição volêmica vigorosa, com
O sangue administrado teoricamente deveria ser submetido a todas as
soluções salinas e hemoderivados, além de intervenção cirúrgica imediata.
provas cruzadas. Todavia, este procedimento inicialmente é inviável devido
Perdas superiores a 50% determinam ausência de pulso e a pressão arterial
à sua duração. Desta forma, sangue tipo específico (compatível pelos
não consegue ser aferida. Esses indivíduos se encontram inconscientes.
sistemas ABO e Rh) é recomendado a tipagem (leva em torno de dez
minutos para ser feita). Quando o sangue tipo específico não se encontra
Veias periféricas de ambos os membros superiores devem ser puncionadas disponível, devemos prescrever concentrado de hemácias tipo O e, em
e, no adulto, uma infusão imediata de um a dois litros de solução salina mulheres em idade fértil, tipo O e Rh negativo.
isotônica é mandatória. Na criança, este valor inicial é de 20 ml/kg. O uso
de noradrenalina não é recomendado, uma vez que pode agravar ainda mais
Em pacientes não submetidos à monitorização hemodinâmica invasiva, a
a hipoperfusão tecidual.
resposta à reposição é mais bem avaliada pela diurese, com um volume
adequado estando em 0,5 ml/kg/h em adultos e em 1 ml/kg/h em crianças.
As soluções cristaloides, em particular a salina isotônica, são tão eficazes
quanto os coloides em expandir o volume plasmático, embora 1,5 a 3 vezes
Em vítimas de trauma que receberam grande quantidade de volume em sua
mais de salina devam ser administrados devido à sua distribuição
ressuscitação, podemos esperar duas complicações: a hipotermia e a
extravascular. Contudo, este fenômeno não representa uma desvantagem em
coagulopatia. Esta última se deve tanto à trombocitopenia dilucional, quanto
relação aos coloides, uma vez que a perda de volume também se acompanha
à diluição de fatores de coagulação. Sendo assim, é necessário que o
de deficit de líquido intersticial. Além disso, o amido hiperoncótico, um
cirurgião exerça a estratégia da cirurgia de controle de danos, que
coloide, tem sido associado a maior mortalidade, maior taxa de injúria renal
descrevemos no volume 1.
aguda e maior necessidade de terapia de substituição renal em doentes
hipovolêmicos graves.
Outra consequência da administração excessiva de volume é o surgimento,
em alguns casos, da síndrome de compartimento do abdome, assunto que
A reposição de fluidos deve continuar enquanto a PA sistólica estiver baixa
também abordamos no volume 1.
– sendo que em vítimas de trauma que não obtiveram controle da
hemorragia, uma PA sistólica no limite inferior da normalidade ou uma
"discreta" hipotensão é permitida (ressuscitação balanceada – volume
TRATAMENTO DO CHOQUE CARDIOGÊNICO –
1). Sinais clínicos como a pressão arterial, o nível de consciência, o débito
PARTICULARIDADES
urinário e a perfusão periférica são suficientes para nos guiar na
ressuscitação. Edema periférico é frequente e se deve à hipoalbuminemia
dilucional... A medida da Pressão Venosa Central (PVC) encontra-se
indicada no doente que não respondeu de forma imediata à infusão de
fluidos; a monitorização hemodinâmica invasiva deve ser empreendida na
presença de doença cardiopulmonar.
A causa mais comum de choque cardiogênico é a síndrome coronariana
aguda, mais precisamente o IAM extenso. São pacientes que aparecem no
pronto-socorro com um quadro de dor torácica súbita, sudorese, vômitos,
um ECG mostrando supradesnivelamento de ST em várias derivações, e que
evoluem em 6 a 24 horas para estado de choque refratário à reposição
volêmica. A letalidade desses pacientes oscila em torno de 40 a 70%,
mesmo com a máxima terapia de suporte medicamentoso.

Pacientes em choque cardiogênico necessitam de monitorização


hemodinâmica invasiva (cateter de Swan-Ganz), uma conduta fundamental
que nos auxilia na infusão adequada de volume e no uso de inotrópicos
positivos e vasopressores. Após uma infusão cuidadosa de líquidos para
aumentarmos as pressões de enchimento ventricular, objetivando uma PCP
> 20 mmHg, devemos iniciar vasopressores e inotrópicos. A PCP com seus
níveis além dos valores de referência faz com que o ventrículo esquerdo FIG. 5 Reparem que o balão intra-aórtico de contrapulsação insufla na
diástole (melhorando a perfusão coronária) e "encolhe" na sístole,
trabalhe teoricamente com a melhor pré-carga e pós-carga. reduzindo a pós-carga a ejeção ventricular.

Uma perfusão tecidual adequada exige uma PA sistólica de pelo menos 90


mmHg. Como vimos antes, agentes vasopressores podem e devem ser Em resumo, o uso do BIAC é a única maneira de se aumentar o DC e a
utilizados para esse fim. A noradrenalina é iniciada na dose de 2 a 4 pressão arterial diastólica, sem vasodilatar o paciente. Apesar de flagrantes
μg/kg/min, com aumentos progressivos. Além de vasoconstritores, drogas benefícios com o uso do BIAC, um estudo científico recente (IABP-
inotrópicas são prescritas, com a dobutamina sendo a mais comum, com SHOCK II) randomizou 600 pacientes em choque cardiogênico na fase
doses que variam de 2 a 10 μg/min. aguda do IAM nos quais uma estratégia de revascularização era planejada.
Nessas condições, o balão, apesar de seguro, não reduziu a mortalidade em
Duas medidas podem ajudar a salvar o paciente em choque cardiogênico 30 dias ou em 12 meses... O BIAC é contraindicado na insuficiência aórtica
por comprometimento isquêmico importante do miocárdio ventricular (por aumentar a regurgitação diastólica pela valva aórtica) e em pacientes
esquerdo: com doença arterial grave dos membros inferiores.

(1) Balão Intra-Aórtico de Contrapulsação (BIAC); ECMO (Extracorporeal Membrane Oxygenation) consiste em um
(2) Angioplastia primária. circuito de circulação extracorpórea capaz de oxigenar o sangue e retirar gás
carbônico por meio de um oxigenador. Esse dispositivo é recomendado em
pacientes em choque cardiogênico que não respondem ao tratamento inicial
O BIAC é um dispositivo de assistência circulatória de curta permanência
convencional, sendo utilizado somente em centros com experiência na
que contém um longo balão na extremidade de um cateter, introduzido pela
técnica. Dispositivos cirúrgicos implantáveis podem ser empregados em
artéria femoral. O balão deve ficar posicionado no nível da aorta
pacientes selecionados, como ponte para o transplante.
descendente torácica, um pouco abaixo da origem da subclávia esquerda
(Figura 5). O seu lúmen está conectado em um sistema de gás hélio que é
capaz de insuflá-lo com 30-60 ml. O balão deve ser rapidamente insuflado A melhor maneira de salvar um paciente com IAM em choque cardiogênico
na diástole ventricular e desinsuflado na sístole ventricular. O aparelho é a obtenção da reperfusão miocárdica através da angioplastia primária. Está
ligado ao balão é programado para manter esta importante sincronia. Ao ser indicada até um delta-tempo de dor de 24 horas. O paciente deve ser levado
insuflado na diástole, o balão aumenta a PA diastólica, tornando-se ainda à sala de hemodinâmica após a colocação de um BIA. É então submetido à
maior que a PA sistólica (Figura 5). Com isso, ele aumenta a perfusão coronariografia que geralmente irá revelar uma oclusão coronariana – a
coronariana e cerebral. Ao ser rapidamente desinsuflado na sístole, por um responsável pelo IAM. Em seguida, o hemodinamicista abre a oclusão pelo
fenômeno de vácuo, reduz a pós-carga ventricular, facilitando a ejeção e, uso do balão de angioplastia e coloca um stent. O paciente deve ser
portanto, aumentando o débito sistólico. mantido com heparinização plena, AAS e inibidores da glicoproteína
IIb/IIIa. Os estudos mostraram que a angioplastia primária reduziu a
letalidade desses pacientes de 80% para 40-50%. Os trombolíticos são
pouco eficazes no IAM com choque cardiogênico. A maioria dos trabalhos
não mostra benefício do uso dessas drogas em relação à letalidade desses
pacientes. Mesmo assim, se você estiver em um local que tenha
trombolítico (mas não tenha serviço de hemodinâmica disponível para
angioplastia primária) e chegar um paciente com IAM e choque
cardiogênico, com delta-tempo de dor menor de 12 horas, o trombolítico
deve ser feito.
Outras causas de choque cardiogênico importantes são: pós-operatório de Nos últimos anos, uma diretriz conhecida como Surviving Sepsis
cirurgia cardíaca (devido à cardioplegia), miocardite aguda, endocardite Campaign (SSC) foi elaborada em uma tentativa de padronizar o
infecciosa com lesão valvar grave, cardiomiopatia grave descompensada. O atendimento e aumentar a sobrevida de doentes em sepse e choque séptico.
BIA é útil na maioria desses casos, menos na insuficiência aórtica Inicialmente, Rivers e cols, confeccionaram um protocolo denominado
relacionada à endocardite ou nos cardiomiopatas crônicos em fase terminal, Early Goal Directed Therapy (EGDT), em que se valorizava a infusão
não candidatos a transplante cardíaco. de grande quantidade de líquidos nas primeiras seis horas; na época, este
protocolo demonstrou os benefícios de tal conduta.

TRATAMENTO DA ACIDOSE LÁCTICA


RESSUSCITAÇÃO VOLÊMICA INICIAL E USO DE
Sabemos que os níveis de lactato são considerados um marcador de AMINAS
gravidade e mortalidade no choque, com sua redução associada a uma
melhora clínica durante o tratamento. A última revisão do SSC, de 2016, preconiza uma abordagem inicial com a
administração de cristaloide em um volume 30 ml/kg nas primeiras três
A acidose láctica do choque é decorrente da anaerobiose celular precipitada horas; a prova inicial de volume deve ser repetida enquanto observamos
pelo desequilíbrio entre a oferta de substrato metabólico (glicose, ácido melhora hemodinâmica. A albumina pode ser acrescentada ao cristaloide
graxo) e o suprimento de O2. Nas células que não recebem oxigênio, o em doentes que necessitam de grandes quantidades de volume
produto do metabolismo desses substratos é o ácido lático. Esta substância é (recomendação fraca). Nessa abordagem inicial, os níveis de lactato devem
responsável pela acidose intracelular e extracelular (já que se difunde para o ser solicitados.
plasma).
Caso a PAM continue inferior a 65 mmHg, se encontra indicado o início de
A primeira ação de muitos médicos quando se deparam com uma acidose aminas vasopressoras (diagnóstico de choque séptico). A noradrenalina é a
metabólica é administrar ao doente bicarbonato de sódio. No caso da droga de escolha, na dose inicial de 0,01 μg/kg/min. Caso exista
acidose láctica (a causa mais comum de acidose metabólica), isso é um necessidade de outro vasopressor, a adrenalina ou a vasopressina podem ser
grande erro! recomendadas.

Os desavisados que defendem a reposição de bicarbonato alegam que a A dobutamina deve ser iniciada em casos de disfunção miocárdica (pressões
correção da acidemia melhora a contratilidade miocárdica e reduz a de enchimento cardíaco elevadas ou baixo débito cardíaco) ou em situações
vasoplegia. Os estudos recentes provaram que isso não ocorre na maioria de hipoperfusão mantida mesmo com a reposição volêmica e PAM
das vezes, já que apenas uma acidemia tão grave quanto um pH < 6,80 é adequadas. Nesse último caso podemos citar como exemplo um paciente em
que tem um efeito inotrópico negativo e vasoplégico significantes. Além choque séptico que apresenta uma PAM dentro dos parâmetros da
disso, o bicarbonato administrado no choque acaba sendo convertido em normalidade acompanhada de uma SvcO₂ persistentemente reduzida,
mesmo após administração de volume adequada e uso de aminas
CO₂, ao consumir o excesso de H+. O CO₂ se difunde facilmente para o
interior das células, piorando a acidose intracelular – essa é a acidose celular vasopressoras...

paradoxal do bicarbonato de sódio. Entretanto, ainda é aceito a conduta de


se utilizar bicarbonato de sódio (NaHCO₃) venoso em pacientes com A instalação de cateter que afere a PAM se encontra indicada em doentes
acidose lática e pH plasmático inferior a 7,00-7,10. que necessitam de noradrenalina.

Atualmente, uma droga conhecida como trometamina (Tris-Hidroximetil- O SSC recomenda o uso de parâmetros dinâmicos para acompanharmos a
Amino-Metano – THAM) tem sido estudada como alternativa ao resposta à ressuscitação volêmica, com destaque para a normalização do
bicarbonato na terapia da acidose láctica. Contudo, a eficácia clínica do lactato.
THAM ainda não foi demonstrada de forma consistente.

DIAGNÓSTICO DO AGENTE INFECCIOSO,


TRATAMENTO DA SEPSE E CHOQUE SÉPTICO ANTIBIOTICOTERAPIA E ABORDAGEM DA
FONTE DE INFECÇÃO
Os pacientes com sepse e choque séptico se encontram hipovolêmicos e
extremamente vasodilatados. Como vimos antes, esta é uma hipovolemia Devemos obter culturas adequadas antes de iniciarmos os antimicrobianos,
relativa, ou seja, a vasodilatação é tamanha que o conteúdo do intravascular se essas culturas não causarem um atraso significativo (> 45 minutos) ao
passa a ser insuficiente para perfundir tecidos. Nas fases iniciais, antes da início da administração dessas drogas. Para otimizarmos a identificação dos
reposição de fluidos, muitos pacientes apresentam dados hemodinâmicos micro-organismos causadores, o ideal é a obtenção de pelo menos dois
semelhantes aos encontrados nos choques hipodinâmicos. No entanto, após conjuntos de hemoculturas (em frascos para aeróbios e anaeróbios). Uma
a infusão de líquidos, sobrevém a fase hiperdinâmica da doença. coleta deve ser por via percutânea e outras através de cada dispositivo de
acesso vascular. Com base na nossa suspeita clínica, culturas de outros
líquidos corporais (urina, secreções respiratórias etc.) também podem ser
realizadas. Os antibióticos devem ser administrados dentro de 60 minutos
do reconhecimento do choque séptico.
Caso ocorra crescimento do mesmo agente em duas amostras de Apesar da "defesa" da prescrição do hormônio no parágrafo anterior, a
hemoculturas, é muito provável que este seja o causador da sepse. Se última revisão do EGDT recomenda que se evite o uso de glicocorticoide
houver crescimento primeiro na hemocultura de sangue colhido de acesso caso a hemodinâmica do paciente estabilize com a infusão de volume e o
central, provavelmente estamos lidando com infecção de cateter. O uso do uso de vasopressores no choque séptico. Contudo, se o paciente permanecer
Gram é útil principalmente em infecções do trato respiratório. Exames de instável após estas medidas (PA sistólica < 90 mmHg por mais de uma
imagem podem e devem ser feitos para diagnosticar a fonte infecciosa. hora), recomenda-se um breve curso de hidrocortisona (200-300 mg ao dia,
intravenosa) por sete dias ou até o suporte vasopressor não ser mais
necessário.
Após rastreamento microbiológico, é mandatória a prescrição
antibiótica empírica. As drogas antimicrobianas trazem realmente um Embora a hidrocortisona, nesses casos, acelere a recuperação clínica, a
grande benefício quando iniciadas dentro da primeira hora de droga não demonstrou aumentar a sobrevida em longo prazo.
instalação, seja da sepse ou do choque séptico, levando a uma
diminuição da mortalidade.
SUPORTE GERAL

Pacientes com sepse e choque séptico, como qualquer outro doente crítico,
A escolha do antibiótico pode ser complexa e geralmente leva em devem ter seus níveis glicêmicos controlados, uma vez que a hiperglicemia
consideração a história do paciente, uso de antibióticos recentes, grave está associada a prognóstico adverso. Todavia, um controle glicêmico
comorbidades, tipo de infecção (se nosocomial ou comunitária) e padrões rigoroso (glicemia < 110 mg/dl), como era preconizado há algum tempo
de resistência local. No geral, a seleção dos antimicrobianos deve ser atrás, não é mais recomendado, uma vez que se associa a um maior número
suficientemente ampla para cobrir todos os prováveis patógenos, podendo de episódios de hipoglicemia, o que é mais prejudicial do que eventuais
incluir fungos e vírus. escapes hiperglicêmicos. Recomenda-se que nos pacientes em sepse, os
níveis de glicemia fiquem na faixa de 140 a 180 mg/dl.
Na presença de focos de infecção passíveis de intervenção, a
antibioticoterapia deverá ser acompanhada de abordagem cirúrgica ou de A insulina endovenosa contínua deve ser iniciada caso seja observado dois
procedimentos que envolvam radiologia intervencionista. O momento de níveis consecutivos de glicemia > 180 mg/dl. Pacientes em uso de insulina
intervir deve ser o mais breve, dentro das primeiras 6-12 horas. O ideal é contínua devem ter suas glicemias monitoradas de hora em hora; nesses
que se realize um procedimento o menos invasivo possível como, por casos, torna-se necessário aporte calórico sob forma de glicose para
exemplo, abordagem de abscessos intra-abdominais por punção percutânea evitarmos episódios de hipoglicemia.
guiada por tomografia computadorizada.

Uso de métodos dialíticos, como hemodiálise intermitente ou hemofiltração


USO DE IMUNOMODULADORES venovenosa contínua, são necessários para suporte renal ou em casos de
sobrecarga de volume.
Estudos observaram que em doentes críticos, sobretudo os que desenvolvem
choque séptico, a atividade glicocorticoide é insuficiente para o grau de O início precoce de suporte nutricional enteral, a administração de
intensidade da infecção e da resposta sistêmica apresentada. Este fenômeno, profilaxia para trombose venosa profunda e o uso de medicações para a
conhecido como Critical Illness-Related Corticosteroid Insufficiency prevenção de úlceras de estresse são medidas de suporte essenciais.
(CIRCI), é ocasionado com maior frequência por disfunção do eixo
hipotálamo hipófise combinado a resistência periférica à ação do cortisol.
Contudo, dano estrutural à glândula suprarrenal também tem sido descrito
como causa de CIRCI.
No capítulo 1, observamos que a resposta ao trauma é eminentemente
catabólica e hipermetabólica. Se a agressão for intensa, o consumo de
SUPORTE NUTRICIONAL proteínas e gordura pode levar o indivíduo rapidamente à desnutrição (ou
agravar uma desnutrição preexistente), caso uma terapia nutricional
Alterações do estado nutricional são frequentemente encontradas em adequada não seja instituída a tempo.
pacientes cirúrgicos e podem ser tanto consequência da doença que motivou
a cirurgia (lesões multissistêmicas, queimaduras, câncer etc.) quanto de
outras condições já apresentadas pelo doente por um período de tempo Desnutrição pode ser definida como um estado de deficiência
variável (como insuficiência renal, insuficiência hepatocelular etc.). energética, de proteínas e de micronutrientes, que altera não só a
estrutura tecidual, mas também a função de órgãos e sistemas.
Além dessas causas, muito se tem falado sobre a influência do tempo de
internação no estado nutricional. Dessa forma, quanto maior a permanência
no hospital, maior parece ser a influência de fatores negativos no estado Em avaliações pré-operatórias do estado nutricional de diversos pacientes é
nutricional; dentre estes citamos a negligência com a alimentação, o tempo comum identificarmos graus variados de desnutrição. Os doentes
prolongado de jejum para que determinados procedimentos sejam realizados oncológicos, por exemplo, são comumente desnutridos, com a caquexia
(alguns exames de imagem, endoscopias, biópsias etc.) e a suspensão, neoplásica e muitas vezes a incapacidade de ingerir nutrientes de forma
muitas vezes intempestiva, da nutrição aos primeiros sinais de complicações adequada (neoplasia de esôfago, estômago etc.), sendo as principais causas.
(diarreia, aumento do volume do resíduo gástrico etc.).
Desde o início do século passado, os cirurgiões têm conhecimento que a A proteólise libera aminoácidos e a lipólise, degradando triglicerídeos da
deficiência nutricional está associada a um impacto negativo na evolução gordura, libera glicerol e ácidos graxos para a corrente sanguínea.
pós-operatória, como veremos a seguir. Aminoácidos e glicerol são utilizados como substratos no processo de
gliconeogênese hepática. Os ácidos graxos não são "aceitos" na via
Nas últimas décadas, os avanços nas mais diversas técnicas cirúrgicas e o metabólica da gliconeogênese, porém são utilizados diretamente por
cuidado de doentes críticos não seriam tão bem-sucedidos caso não diversos tecidos como fonte de energia.
houvesse uma melhora concomitante na terapia nutricional. Sabemos que
nutrir o paciente de forma adequada, tanto no pré como no pós-operatório, Com a persistência do jejum e a elevação dos níveis de glucagon somada à
melhora de forma inquestionável sua evolução, reduzindo a taxa de supressão da insulina, ácidos graxos livres começam a se dirigir ao fígado,
complicações, a mortalidade e o tempo de internação hospitalar. onde são transformados em corpos cetônicos (acetoacetato e 3-
hidroxibutirato) na via de betaoxidação. Após uma semana de jejum, o
A terapia nutricional é dividida basicamente em três formas, de acordo com cérebro, que antes utilizava glicose como combustível primordial, passa a
sua via de administração: nutrição via oral, nutrição enteral e nutrição utilizar corpos cetônicos como fonte energética. Na realidade, o tecido
parenteral. neuronal com esta alteração em seu metabolismo acaba lentificando o
processo de proteólise (pois esta via fornece aminoácido para se transformar
em glicose na gliconeogênese).
ADAPTAÇÕES METABÓLICAS
Embora a cetogênese de alguma forma "salve" o indivíduo
CONSEQUÊNCIAS DA DESNUTRIÇÃO EM temporariamente, o processo leva à cetoacidose. Sendo assim, a melhor
CIRURGIA conduta é não deixarmos que o paciente chegue a esse ponto, ou seja, temos
que oferecer, pelo menos, glicose...
A desnutrição é frequente em doenças crônicas e agudas, ocorrendo em
aproximadamente 50% dos pacientes hospitalizados, o que contribui para
Uma ingesta de 400 kcal (2.000 ml de soro glicosado a 5%) – o que está
aumento da morbimortalidade neste grupo.
abaixo das necessidades calóricas diárias do paciente – é o suficiente para
impedir o processo de cetogênese, mas será insuficiente para extinguir
Um grande número de condições clínicas leva à desnutrição, seja por totalmente as alterações hormonais e metabólicas descritas. O influxo
anorexia, por elevação de mediadores da inflamação, por obstrução constante de ácidos graxos para o fígado faz com que esses elementos
mecânica do trato gastrointestinal ou por redução da superfície absortiva de (agora não mais utilizados na betaoxidação) sejam reesterificados a
nutrientes (síndrome do intestino curto, doença de Crohn, doença celíaca triglicerídeos, fenômeno que pode justificar a esteatose hepática encontrada
etc.). em desnutridos.

Nos pacientes cirúrgicos, complicações como cicatrização anormal,


saiba mais
deiscência de ferida operatória, deiscência de anastomoses e maior
probabilidade de infecção podem ocorrer quando uma avaliação nutricional A absorção de nutrientes (proteínas, carboidratos, gordura,
e/ou um suporte nutricional não são realizados ou prescritos de forma oligoelementos e vitaminas) se dá no intestino delgado, que no adulto
incorreta. mede aproximadamente 270 a 290 cm de comprimento. O duodeno
corresponde a 20 cm ("doze dedos"), o jejuno a 100 a 110 cm e o íleo, maior
segmento, perfazendo os últimos 150 a 160 cm. A síndrome do intestino
Além disso, o desgaste muscular – como resultado da proteólise da resposta
curto ocorre quando grandes segmentos do delgado ou segmentos vitais
ao trauma –, pode dificultar o "desmame" da ventilação mecânica em
no processo absortivo são ressecados, sendo a isquemia mesentérica a
doentes desnutridos. A pneumonia associada à ventilação eventualmente se
causa mais comum. Duas situações levam à síndrome do intestino curto:
desenvolve em indivíduos em assistência ventilatória prolongada.
(1) ressecção de mais de 70% do delgado ou (2) ressecção de 2/3 do íleo
distal com válvula ileocecal envolvida.

ADAPTAÇÕES FISIOLÓGICAS AO JEJUM

As alterações endócrinas e as modificações no metabolismo que ocorrem no


SEPSE E INFLAMAÇÃO
jejum se assemelham muito com as da resposta ao trauma, porém em menor
intensidade. Na sepse, na presença de politraumatismo e em estados inflamatórios
agudos ou arrastados, encontramos um intenso hipermetabolismo, com
Em indivíduos que não se alimentam, observamos níveis de insulina aumento de até 50% da taxa metabólica basal. A proteólise incessante faz
suprimidos acompanhados de elevação nos níveis de glucagon, de com que ocorra perda proteica esquelética e visceral e consequente
catecolaminas e de cortisol. O glicogênio pode ser armazenado no fígado, desnutrição. Aminoácidos provenientes da proteólise, além de serem
em até 65 g/kg de tecido, sendo a primeira reserva energética utilizada aproveitados no processo de gliconeogênese, também são utilizados pelo
durante o jejum. Na ausência de nutrientes, estoques hepáticos de fígado para a síntese de proteínas de fase aguda, como ceruloplasmina,
glicogênio são totalmente esgotados em 48 horas. As alterações hormonais fibrinogênio, PTN C-reativa etc. A lipólise também está aumentada, porém
descritas também estimulam a lipólise e a proteólise, com o objetivo de os ácidos graxos são menos aproveitados para a geração de energia. Este
fornecer substratos ao fígado para o processo de gliconeogênese. Isto ocorre fenômeno justifica o achado de hipertrigliceridemia e elevação de ácidos
porque sistema nervoso central, hemácias, leucócitos e medula adrenal graxos livres no sangue de doentes críticos.
utilizam somente glicose como fonte energética.
Nesses pacientes, a elevação constante de hormônios contrainsulínicos O estado de kwashiorkor-marasmático se encontra presente quando um
(cortisol, glucagon, catecolaminas) e o aumento da resistência periférica à indivíduo com marasmo é acometido por um processo agudo como trauma,
insulina fazem com que o processo de gliconeogênese não sofra sepse, estresse cirúrgico etc. Infecções intercorrentes podem ser graves e
interrupção, nem atenuação, independentemente da oferta de nutrientes! complicar a evolução clínica.
Com isso, é muito comum o surgimento ou agravamento de hiperglicemia
no início da terapia nutricional, sendo necessário um controle glicêmico
rígido para reduzir a morbimortalidade em pacientes graves internados em FUNDAMENTOS DA NUTRIÇÃO ARTIFICIAL
terapia intensiva.
NECESSIDADES NUTRICIONAIS

DESNUTRIÇÃO NO CÂNCER Os constituintes da dieta fundamentais para a vida incluem certos


aminoácidos, ácidos graxos essenciais, vitaminas e minerais. Os
Pacientes com câncer frequentemente se apresentam com perda ponderal e carboidratos devem ser consumidos diariamente para a manutenção das
desnutrição. Como vimos antes, diversos fatores agem isoladamente ou em atividades metabólicas e permitir a biossíntese de outros compostos
conjunto para que isso aconteça. A redução da ingesta calórica pode ocorrer essenciais para a função normal do organismo.
por fatores obstrutivos (câncer do trato gastrointestinal, de cabeça e pescoço
etc.), por vômitos repetidos (como consequência da quimioterapia) ou por
anorexia induzida por alguns mediadores humorais. Constituintes Calóricos da Dieta: gordura, proteínas e carboidratos.

Em determinadas neoplasias, a taxa metabólica basal se encontra Constituintes Não Calóricos: água, vitaminas e oligominerais
aumentada, fenômeno que também faz o doente emagrecer e desnutrir. (micronutrientes).
Citocinas, como o fator de necrose tumoral (TNF), a Interleucina-1 (IL-1), a
Interleucina-6 (IL-6) e o Interferon Gama (IFN-γ), podem ter participação.
Alguns tipos de câncer produzem um mediador conhecido como fator
PROTEÍNAS
indutor de proteólise.
Em um adulto saudável, que não se encontra em estresse infeccioso ou
cirúrgico de qualquer espécie, a necessidade diária de proteína é de
VARIEDADES CLÍNICAS DE DESNUTRIÇÃO aproximadamente 0,8 g/kg (46-56 g/dia). Contudo, na presença de estresse,
a degradação proteica faz com que o indivíduo perca massa corporal magra;
O marasmo, também conhecido como estado de privação calórica, é
nesses casos, as proteínas devem corresponder a 20% do valor calórico total
caracterizado por consumo de toda a reserva corporal de gordura do
ofertado para limitar essa perda. Sendo assim, as necessidades de proteínas
paciente. Este distúrbio resulta de um tempo prolongado de inanição, como
em pacientes cirúrgicos, em jejum, deve ser de 1,5 a 2,0 g/kg/dia.
em pacientes portadores de anorexia nervosa. Um componente de marasmo
Habitualmente, as soluções preparadas para pacientes cirúrgicos contêm
é encontrado na caquexia, situação onde observamos perda de massa
aproximadamente 1 g de nitrogênio para cada 150 kcal (1:150). Lembrando
corporal magra decorrente de estados inflamatórios crônicos e indolentes.
que cada grama de proteína fornece 4 kcal.
Tanto no marasmo quanto na caquexia, temos um indivíduo com aspecto
consumido... Outros achados incluem prega cutânea diminuída, o que traduz
perda de gordura, e circunferência do braço também reduzida, o que reflete Existem fórmulas específicas para hepatopatias, ricas em aminoácidos de
consumo proteico. A presença de perda muscular interóssea e em região cadeia ramificada (leucina, isoleucina e valina); em pacientes com
temporal tem relação direta com catabolismo (destruição) de proteínas em insuficiência renal em tratamento conservador, soluções contendo
órgãos como coração, fígado e rins. aminoácidos essenciais acrescidos de histidina são as recomendadas.

Os achados laboratoriais incluem um índice creatinina/altura reduzido, o LIPÍDIOS


que reflete a perda proteica (quanto menos proteína temos, menos creatinina
excretamos), e albumina diminuída, não chegando a valores inferiores a 2,8 São nutrientes fundamentais, constituindo fonte de energia e de ácidos
g/dl na ausência de inflamação. Curiosamente, a função imune e a graxos essenciais. Auxiliam no controle glicêmico, uma vez que permitem a
capacidade de cicatrizar feridas não se encontram prejudicadas. redução da oferta de calorias sob forma de carboidratos, medida importante
principalmente no suporte parenteral. Neste último, os lipídios não devem

O kwashiorkor (desnutrição proteicocalórica) é encontrado em indivíduos ultrapassar a 30-40% da oferta calórica total não proteica. Quando emulsões
portadores de uma doença aguda intercorrente (politrauma, sepse) ou em lipídicas são utilizadas pela via parenteral, os valores plasmáticos de
indivíduos com doenças crônicas onde predomina uma resposta inflamatória triglicerídeos devem ser monitorados, com níveis aceitáveis de até 300
exuberante. Nesses casos, ocorre consumo proteico significativo e de rápida mg/dl. Cada grama de lipídio fornece aproximadamente 9 kcal.
evolução; os principais achados incluem edema, cabelos que se destacam
facilmente, pele quebradiça, prejuízo à cicatrização de feridas e maior CARBOIDRATOS
probabilidade de deiscência de feridas cirúrgicas.
Na nutrição parenteral, representam 40-70% da oferta calórica diária não
As alterações laboratoriais de maior relevância consistem em proteica, com a glicose sendo a fonte padrão. Quando se utiliza a glicose
hipoalbuminemia (< 2,8 g/dl), queda nos níveis de transferrina (< 150 hidratada, ela fornece 3,4 kcal/g.
mg/dl), linfocitopenia e diminuição de resposta a testes cutâneos (o que
traduz prejuízo à imunidade celular).
As necessidades diárias de tiamina na presença de doença intercorrente
ÁGUA
grave chegam a 25 mg. A carência desta vitamina pode ser encontrada em
As perdas hídricas do organismo ocorrem através da evaporação e exalação, diversas condições, sobretudo no alcoolismo. O álcool interfere diretamente
as chamadas perdas insensíveis (500-1.000 ml/dia), fezes (50-100 ml/dia) e com a absorção de tiamina e com a síntese de tiamina pirofosfato. A
1.000 ml/dia ou mais na urina, na dependência da carga de solutos. Para deficiência de tiamina leva a um distúrbio conhecido como beribéri, que
cada grau centígrado de elevação na temperatura corporal na faixa febril, tem como manifestações insuficiência cardíaca de alto débito, acidose
aumenta-se a perda de água em 200 ml. láctica refratária (simulando a sepse), confusão mental, hiperbilirrubinemia,
trombocitopenia, nistagmo e paresia isolada nos músculos oculares. O
tratamento é feito com dose de 25 a 100 mg/dia de tiamina. Em todo o
Em indivíduos normais, o consumo de 1-1,5 ml de água por cada kcal de
paciente alcoólatra que receberá glicose ou será realimentado, é
energia consumida (cerca de 35 a 40 ml/kg) é o suficiente para permitir
fundamental a reposição de tiamina, caso contrário, poderá ser precipitada a
variações normais no nível de atividade física, na carga de solutos e na
clínica da deficiência desta vitamina.
sudorese.

Em alguns alcoólatras, pode ser observada também uma síndrome


VITAMINAS E MINERAIS neurológica na presença de deficiência de tiamina, conhecida como
encefalopatia de Wernicke. As manifestações incluem nistagmo horizontal,
A desnutrição e a alimentação artificial restrita levam à deficiência de
oftalmoplegia (fraqueza da musculatura ocular) e ataxia cerebelar. Quando
vitaminas e oligominerais. Se não identificadas, essas condições podem
além das alterações descritas existe perda de memória somada à psicose
acarretar doenças tão graves quanto as que levaram a necessidade do
confabulatória, a síndrome passa a ser chamada de Wernicke-Korsakoff.
suporte nutricional. Listamos algumas dessas deficiências e seus respectivos
tratamentos. A Tabela 1 nos mostra as manifestações e o diagnóstico das
principais hipovitaminoses. Vitamina D

As necessidades diárias de vitamina D na presença de doença intercorrente


podem chegar a 400 µg. Fora de insultos agudos, uma ingesta de 15 µg/dia
(600 UI/dia) a 20 µg/dia (800 UI/dia, para idosos), é o suficiente. A
deficiência de vitamina D pode ser encontrada em alguns pacientes em
nutrição parenteral prolongada, onde a vitamina não tenha sido acrescida na
formulação. Outras condições que conferem um maior risco para o
surgimento de carência incluem má absorção intestinal – a vitamina D é
lipossolúvel, portanto, absorvida juntamente com a gordura –, baixa
exposição solar e idade avançada. O tratamento deve ser realizado de
preferência com a administração oral de cerca de 50.000 UI/semana, por
seis a oito semanas, seguida de 800 UI/dia até a obtenção de níveis
plasmáticos adequados.

Vitamina K

As necessidades diárias de vitamina K em doenças intercorrentes são de 10


mg. Existem duas formas naturais, uma proveniente de vegetais e animais
(vitamina K1 ou filoquinona) e outra sintetizada pela flora intestinal, sendo
encontrada no tecido hepático (vitamina K2 ou menaquinona). A principal
função da vitamina K é servir como cofator na reação de gama-carboxilação
presente na síntese hepática de determinados fatores de coagulação (II, VII,
IX e X) e de proteínas anticoagulantes (proteínas C e S).

As principais condições que levam à deficiência de vitamina K incluem


síndromes colestáticas, hepatopatias graves, doença do intestino delgado
(Crohn, doença celíaca), antibioticoterapia de amplo espectro e ressecções
intestinais extensas. É importante lembrarmos que pacientes em nutrição
parenteral exclusiva devem receber, por via venosa, dose semanal de 10 mg
da vitamina.

Zinco
Tiamina (Vitamina B1) Em doenças intercorrentes graves, as necessidades diárias de zinco situam-
se entre 10 a 20 mg. A deficiência deste oligomineral ocorre na presença de
extremo catabolismo, na má absorção intestinal ou em casos de diarreia
excessiva. Outras condições associadas incluem diabetes mellitus, aids e
anemia falciforme.
Dermatite generalizada (a que chama mais a atenção), alopécia, pústulas Embora parâmetros laboratoriais sejam recomendados na avaliação
perorais, cicatrização deficiente, imunossupressão, cegueira noturna ou nutricional, nada substitui uma anamnese e um exame físico adequadamente
fotofobia e anosmia, são as principais manifestações da deficiência de conduzidos.
zinco.

HISTÓRIA CLÍNICA
O diagnóstico laboratorial muitas vezes é difícil na presença de estresse
intercorrente, uma vez que nestes casos os níveis séricos do oligoelemento A desnutrição é encontrada com maior frequência em pacientes que na
não correspondem diretamente com a presença ou não de sua deficiência. história clínica apresentam um ou mais desses achados: perda ponderal,
Sendo assim, podemos ter valores dentro da normalidade e, mesmo assim, a anorexia, incapacidade de realizar atividades habituais e presença de
carência estar presente. Em indivíduos com perdas normais de zinco pelas condições que interferem na alimentação.
fezes, o tratamento envolve a administração diária de 3 a 6 mg de zinco
elementar, enquanto doses de 12 a 20 mg/dia são requeridas em casos de
Perda ponderal involuntária superior a 10-15% do peso habitual em seis
diarreia intensa ou síndrome do intestino curto.
meses, ou superior a 5% em um mês e/ou necessidade de jejum prolongado
são dados que fortemente indicam o início de uma terapia nutricional.
Cobre Outros parâmetros também utilizados são peso 20% abaixo do peso
corpóreo ideal (ideal body weight), IMC < 18,5 kg/m², doença catabólica
Na presença de doenças graves, as necessidades diárias de cobre se
(queimadura, sepse e pancreatite) e previsão de reservas calóricas
encontram entre 0,5 a 2 mg. Sua deficiência pode ocorrer em poucos
insuficientes por pelos menos sete a dez dias no período perioperatório.
pacientes que recebem nutrição parenteral prolongada sem a suplementação
adequada deste oligoelemento. As principais manifestações da carência de
No exame físico, devemos pesquisar achados clínicos que denotam carência
cobre são anemia microcítica, osteopenia, pancitopenia e despigmentação
nutricional importante, tais como edema corporal (hipoproteinemia), perda
da pele. A anemia microcítica pode ser confundida com aquela causada pela
de massa muscular e lipídica (consumo de gordura de Bichart e temporal),
deficiência de piridoxina. A reposição de cobre em soluções de nutrição
fraqueza muscular aos mínimos esforços e palidez. Pacientes com qualquer
parenteral deve ser feita na dose de 2 mg por dia de sulfato de cobre.
uma das características descritas na Tabela 2 estão em alto risco de
apresentar desnutrição.
Cromo

Na presença de doenças graves, as necessidades diárias de cromo situam-se


entre 15 a 20 µg. Sua deficiência pode ocorrer em indivíduos em nutrição TAB. 2 PACIENTES DE ALTO RISCO PARA DESNUTRIÇÃO.

parenteral exclusiva e prolongada, nos quais este micronutriente não esteja


(1) Índice de Massa Corpórea (IMC)* < 18,5 ou perda ponderal >
sendo reposto de maneira correta. A carência de cromo provoca um
10% do peso habitual em seis meses;
distúrbio na utilização de glicose pelas células; o resultado é o aparecimento
(2) Ingesta insu ciente de alimentos ou jejum por mais de sete a
súbito de um quadro de diabetes mellitus, com glicemias de difícil
dez dias;
controle, associado à neuropatia periférica e encefalopatia. O tratamento é
feito com a reposição de 150 µg de cromo/dia, por vários dias. (3) História de doenças associadas à má absorção, fístulas
entéricas, abscessos drenados, complicações graves da
ferida operatória;
Molibdênio
(4) Estados hipermetabólicos: sepse, queimadura, febre
Este oligomineral está presente como cofator das enzimas xantina oxidase e prolongada, trauma e pancreatite;
superóxido dismutase. Sua deficiência leva ao acúmulo de aminoácidos (5) Abuso de álcool ou uso de medicações que prejudiquem a
sulfúricos e encefalopatia. Além de lesões em sistema nervoso, são ação de nutrientes ou provoquem hipercatabolismo:
encontradas alterações musculoesqueléticas. glicocorticoides, antimetabólitos (metotrexato),
imunossupressores, agentes antitumorais;

Selênio (6) Péssimas condições de habitação e higiene, isolamento,


idade avançada.
As necessidades diárias de selênio situam-se entre 75 e 150 µg. Sua
(*) Obtemos o IMC dividindo o peso (kg) pela altura (m) ao
deficiência é extremamente rara. Os principais distúrbios apresentados quadrado. O resultado é fornecido em kg/m2.
incluem miopatia esquelética, cardiomiopatia, perda da pigmentação
cutânea e macrocitose eritrocitária.

ANÁLISE DE COMPOSIÇÃO CORPORAL


AVALIAÇÃO NUTRICIONAL
Existem diversos métodos para análise corporal, como bioimpedância,
A determinação do estado nutricional deve ser considerada parte essencial análise de troca de íons, análise de ativação de nêutrons, ressonância
da avaliação de doentes cirúrgicos. Aplicada de maneira correta, é capaz de magnética e tomografia computadorizada. Citaremos os mais utilizados no
estabelecer a maneira ideal de se nutrir o paciente, tanto antes da cirurgia dia a dia.
quanto no pós-operatório.

Medidas Antropométricas
Nos informam sobre a massa muscular e as reservas de gordura. São
aferidas pregas cutâneas (como a do tríceps) e medidas da circunferência da Equação de Harris-Benedict
parte média do braço, além do peso ideal para idade e altura.
Homem GEB = 66,5 + (13,75 × peso em kg) + (5,003 × altura em cm) –
(6.775 × idade em anos)
A espessura da prega cutânea é importante para avaliarmos as reservas
corporais de gordura, uma vez que pelo menos metade da gordura em nosso
Mulher GEB = 65,5 + (9,563 × peso em kg) + (1.850 × altura em cm) –
corpo se encontra no subcutâneo. A espessura da prega nos permite (4,676 × idade em anos)
diferenciar massa adiposa de massa muscular. Um valor inferior a 3 mm
indica exaustão das reservas de gordura.

O resultado obtido com essa fórmula pode ser multiplicado por uma
O peso atual do paciente é um dos parâmetros nutricionais mais úteis. Perda
constante que varia de 1,1 (ausência de estresse fisiológico) até por 1,95
ponderal na vigência de doença aguda ou crônica reflete perda de massa
(grande queimado, por exemplo).
muscular magra (proteína muscular e órgãos), especialmente se for rápida e
na ausência de diurese expressiva.
A Calorimetria Indireta (CI) vem se mostrando um método mais confiável
de calcularmos o GEB, principalmente em doentes hipermetabólicos, em
Estudo da Função Muscular pacientes obesos e em indivíduos nos extremos da idade.

Através do cálculo de força, frequência e recuperação muscular após


estímulo elétrico, somos capazes de avaliar disfunção proteicocalórica, A CI é realizada à beira do leito, inclusive em pacientes em ventilação
parâmetro útil que pode nos guiar na realização de intervenções anabólicas. mecânica invasiva, com um medidor do volume de gases expirados, dentre
eles o O2 e o CO2. Qual é o princípio básico da CI? Toda vez que um
nutriente calórico é consumido pelas células com objetivo de gerar energia
Proteínas Séricas (Viscerais) para as mesmas (sob forma de Adenosina Trifosfato – ATP) é consumido
Níveis de albumina devem ser avaliados com muita cautela. Em primeiro também Oxigênio (O2), uma vez que estes nutrientes necessitam ser
lugar, estados inflamatórios e condições graves podem interferir na síntese oxidados para que o fenômeno ocorra.
desta proteína e não refletir, necessariamente, desnutrição. Em segundo
lugar, por ter meia-vida prolongada (18 a 20 dias), níveis de albumina Esta energia é utilizada para as funções vitais do organismo como, por
podem se manter dentro da normalidade em indivíduos com desnutrição exemplo, manutenção de gradiente eletroquímico transmembrana,
recente. Contudo, níveis plasmáticos de albumina têm sido superiores às funcionamentos dos sistemas cardiovascular e respiratório, síntese de alguns
medidas antropométricas em predizer morbidade e mortalidade de pacientes componentes e manutenção da temperatura corporal. Essas reações de
cirúrgicos. oxidação geram, além do próprio ATP, dióxido de carbono (CO2) e água.
Com a análise dos gases inspirados e expirados, a CI consegue estimar o
A pré-albumina, por possuir uma meia-vida menor (três dias), é utilizada quanto de O2 está sendo consumido, ou seja, o quanto de energia nossas
para nos indicar deficit nutricionais recentes. Além da albumina e pré- células estão gerando (para posteriormente ser gasta); esta medida,
albumina, outras proteínas dosadas são a transferrina (meia-vida de dez acrescida de 10-20% para estimar as flutuações de atividade da taxa
dias) e a proteína ligadora de retinol (meia-vida de 12 a 24 horas). metabólica, reflete o GEB. Veja a fórmula utilizada para o cálculo abaixo:

Função Imunológica
GEB (kcal/dia) = 1,44 [3,9 VO2 (ml/min) + 1,1 VCO2 (ml/min)]
Testes cutâneos são empregados na avaliação da imunidade celular, que
usualmente está comprometida na desnutrição grave. Sabemos que
indivíduos desnutridos que desenvolvem linfocitopenia (< 1.000
linfócitos/mm³) apresentam diminuição na reatividade a essas provas. AVALIAÇÃO DO CATABOLISMO PROTEICO E DO
Atualmente, os testes cutâneos são utilizados no acompanhamento BALANÇO NITROGENADO
nutricional, sendo realizados na admissão e repetidos no decorrer da
internação hospitalar. Estudos demonstraram que vítimas de trauma que É frequente estimarmos a taxa de catabolismo proteico. Esta medida tem
apresentam anergia a testes cutâneos têm maior mortalidade intra-hospitalar. maior importância nos doentes já em terapia nutricional e tem por função
nos informar se nosso tratamento (sobretudo a quantidade proteica
administrada) está sendo bem-sucedido.
CÁLCULO DO GASTO ENERGÉTICO BASAL
O catabolismo proteico (proteólise) libera aminoácidos para o processo de
O cálculo do Gasto Energético Basal (GEB), ou taxa metabólica basal, é de
gliconeogênese hepática. O grupamento amino destes aminoácidos não é
fundamental importância para determinarmos a necessidade calórica total
utilizado, sendo excretado na urina sob forma de ureia (Nitrogênio Ureico
nas 24 horas a ser reposta ao paciente em terapia nutricional.
Urinário [NUU]). Sendo assim, quanto maior for o NUU, maior está sendo
o catabolismo tecidual e, portanto, menos eficaz está sendo nossa terapia. O
Um dos métodos mais empregados é o cálculo do GEB através da equação
NUU é obtido multiplicando-se a ureia urinária por 0,47. Um valor superior
de Harris-Benedict:
a 15 indica catabolismo intenso.
A taxa catabólica de proteína nos informa o quanto de proteína está (6) Alteração na curva pediátrica de crescimento e
sendo perdido diariamente e, com isso, as necessidades a serem repostas desenvolvimento (< percentil 5).
adicionalmente. A quantidade de proteína excretada é obtida pela
(7) Albumina sérica < 3,0 g/dl ou transferrina < 200 mg/dl, na
multiplicação do NUU por 6,25 (cada 6,25 g de proteína contém 1 g de
ausência de estado in amatório, disfunção hepática ou renal.
nitrogênio). A taxa catabólica de proteína apresenta a seguinte fórmula:
(8) Previsão de que o paciente não será capaz de atender aos
requisitos calóricos basais por no período de sete a dez dias
do peroperatório.
Taxa catabólica de PTN (g/dia) = NUU (g) + 4 x 6,25 (g de PTN/g de
nitrogênio) (9) Trato gastrointestinal não funcionante.
(10) Doença hipercatabólica (queimaduras ou trauma, sepse e
pancreatite).
O número 4 é um fator que representa o valor de perda estimada de (*)O IBW é estimado pelas seguintes equações de acordo com o
sexo: homens – 48 kg para 152 cm de altura + 2,7 kg para cada 2,54
nitrogênio não medido na urina (creatinina, ácido úrico) e em outras fontes cm a mais de altura. Mulheres – 45 kg para 152 cm de altura + 2,3
como suor, fâneros (cabelo), pele e fezes. kg para cada 2,54 cm a mais de altura.

Outra medida corriqueira, porém menos precisa que a taxa catabólica de Mesmo naqueles pacientes onde a nutrição parenteral tem indicação
proteínas, é o balanço nitrogenado, obtido pela diferença entre o inquestionável, o ideal é que se administre pelo menos 20% das
nitrogênio ingerido e aquele eliminado; este último é representado necessidades calóricas totais pela via enteral para que se mantenha o "tônus
principalmente por perdas urinárias e, em menor quantidade, a partir de imunológico", evitando a atrofia dos enterócitos. O trato gastrointestinal
outras fontes. abriga 50% de todo o tecido linfoide do organismo e é responsável por 80%
das imunoglobulinas produzidas. Dessa forma, quanto maior for a atrofia da
mucosa enteral, menor será a produção de imunoglobulinas, o que contribui
Balanço nitrogenado = nitrogênio ingerido - nitrogênio perdido (urina para a incidência aumentada de infecções nosocomiais em pacientes
90%, fezes 5%, tegumento 5%) desnutridos que não utilizam o trato gastrointestinal. Nesses casos, assim
que o trato gastrointestinal recuperar sua plena função, a administração de
nutrientes passará a ser totalmente realizada pela via entérica.
Para sabermos o quanto de nitrogênio está sendo ingerido, basta dividirmos
a quantidade de proteínas ingeridas por 6,25, não é mesmo? O nitrogênio
eliminado na urina representa o NUU. Desta forma, o balanço nitrogenado é DIETA ENTERAL
determinado da seguinte maneira:
A dieta enteral, quando passível de administração, é sempre melhor do que
a parenteral, e deve ser iniciada precocemente, isto é, em 24 a 48 horas da
admissão. Trabalhos comparando as vias de administração de suporte
Balanço nitrogenado = PTN ingerida/6,25 - NUU - 2 (perdas por fezes
nutricional em pós-operatório demonstraram diminuição nas taxas de
e pele) - 2 (perdas por outras fontes não ureicas)
infecção. Todavia, estudos não evidenciaram benefício da dieta enteral,
comparada a simples administração de soluções glicosadas, quando
utilizada nos primeiros dias de pós-operatório em pacientes bem nutridos
(albumina ≥ 4,0 g/dl).
ABORDAGEM À NUTRIÇÃO ARTIFICIAL

A decisão em iniciar terapia nutricional (ou terapia médica nutricional) tem A alimentação enteral mantém a função imunológica intestinal, a atividade
como base parâmetros como história, níveis de proteínas viscerais, neuronal e promove a síntese e liberação de hormônios gastrointestinais,
magnitude da perda ponderal e demais fatores (Tabela 3). O que sabemos como o fator de crescimento epidérmico; este último aumenta o trofismo
hoje em dia é que a nutrição enteral apresenta uma eficácia superior à dos enterócitos (células epiteliais pertencentes à mucosa do delgado). A
parenteral, principalmente em doentes sépticos ou em vítimas de prevenção da atrofia da mucosa entérica reduz a probabilidade de
queimaduras extensas. A utilização do trato digestivo é benéfica, pois translocação bacteriana. Nos doentes em nutrição enteral observa-se uma
mantém o trofismo da mucosa e ainda permite o funcionamento adequado menor taxa de síntese de proteínas de fase aguda...
do fígado. É só lembrarmos que tudo que é absorvido pelo delgado "cai na
circulação porta" e chega aos hepatócitos. O intestino delgado, principal sítio de absorção de nutrientes, não tolera
soluções com osmolaridade aumentada. Quando nos alimentamos, o bolo
alimentar permanece no estômago, sofre a ação do ácido clorídrico e de

TAB. 3: CONDIÇÕES QUE SUGEREM INÍCIO DE SUPORTE


NUTRICIONAL.
outras secreções gástricas, e só é "liberado" para o duodeno após tornar-se
iso-osmótico. Sendo assim, devemos utilizar apenas soluções hipo ou iso-
(1) História pregressa: desnutrição grave, doença crônica etc. osmolares quando a administração da dieta é feita diretamente no delgado.

(2) Perda de peso involuntária > 10-15% em seis meses.


(3) Perda de peso involuntária > 5% em um mês.
(4) Previsão de perda sanguínea > 500 ml durante a cirurgia.
(5) Peso 20% menor que o peso corpóreo ideal (Ideal Body
Weight – IBW)* ou IMC < 18,5 kg/m².
As maiores complicações decorrentes da alimentação enteral, além das São assim chamadas devido à presença de proteína intacta em sua
mecânicas (como veremos adiante), são diarreia, desidratação, distúrbio formulação (caseína, soro de leite ou soja). Os carboidratos estão na forma
hidroeletrolítico e hiperglicemia, todas relacionadas a aumento da de dissacarídeos, oligossacarídeos ou polissacarídeos; os lipídios se
osmolaridade da solução. Uma alimentação hiperosmolar contínua pode apresentam como mistura de ácidos graxos poli-insaturados de cadeia média
levar também a complicações catastróficas, como necrose intestinal e e longa. Estas fórmulas são isotônicas, portanto não apresentam elevada
perfuração. osmolaridade.

Pacientes instáveis hemodinamicamente não devem receber suporte enteral,


Fórmulas Oligoméricas
uma vez que a perfusão esplâncnica prejudicada interfere na absorção de
nutrientes. A dieta enteral será iniciada (ou reiniciada) após estabilização do Apresentam hidrolisados proteicos ao invés da proteína intacta. A solução
quadro hemodinâmico. possui osmolaridade mais elevada.

As necessidades calóricas diárias são calculadas tendo como base o GEB do Fórmulas Monoméricas ou Elementares
paciente, calculado tanto pela CI (mais preciso), quanto pela fórmula de
Harris-Benedict. Geralmente, se encontra em torno de 25 a 30 kcal/kg/dia. A "proteína" se encontra sob forma de aminoácidos. São preparados
Na maioria dos doentes críticos uma relação de 80 a 100 kcal/g de hiperosmolares, além de mais caros. A absorção intestinal é facilitada.
nitrogênio ofertado é o suficiente.

Fórmulas Especiais
FÓRMULAS ENTERAIS São preparações específicas direcionadas para algumas doenças de base,
como insuficiência renal, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC),
A distribuição calórica (Valor Calórico Total ou VCT) é determinada da
insuficiência hepática etc. Por exemplo, pacientes renais devem receber uma
seguinte forma: proteínas correspondem a cerca de 10 a 15% do VCT;
composição pobre em potássio, magnésio e fósforo; além disso, os
carboidratos representam 50 a 60% do VCT; e lipídios aproximadamente 25
aminoácidos administrados devem ser essenciais.
a 35% do VCT.

Na DPOC, o percentual calórico total em forma de gordura deve aumentar


O estado funcional do trato gastrointestinal determinará o tipo de dieta a ser
para 50%, como uma forma de compensar a redução da oferta de
usado. Paciente com intestino sem alterações suporta dieta enteral completa.
carboidratos; o metabolismo dos carboidratos leva a um aumento na
Entretanto, pacientes com distúrbios, como má absorção e doença
produção de CO2.
inflamatória intestinal, toleram apenas dietas mais elementares.

Em hepatopatas crônicos, a proteína deve ser ofertada principalmente sob


Outro fator determinante na escolha do tipo de fórmula enteral empregada é
forma de aminoácidos de cadeia ramificada, pois nutre o paciente e reduz a
a presença ou não de disfunções orgânicas, como doença hepática,
incidência de encefalopatia.
pulmonar, renal etc.

Os tipos básicos de fórmulas podem ser classificados de acordo com a sua IMUNONUTRIÇÃO
composição nutricional em:
Alguns aminoácidos apresentam importante função imunomoduladora,
sendo fundamental sua prescrição em fórmulas enterais, sobretudo em
Completas pacientes críticos.

Composta de todos os nutrientes, como proteínas, gorduras, carboidratos,


oligominerais e vitaminas, além de fibras. A glutamina é o aminoácido mais abundante do organismo. Funciona como
fonte energética oxidativa para enterócitos, colonócitos (células epiteliais da
mucosa colônica) e linfócitos. Sua deficiência está associada à atrofia
Incompletas ou Dietas Modulares
progressiva da mucosa intestinal e maior probabilidade de translocação
São apresentadas na forma de módulos que podem conter apenas um bacteriana. Em vítimas de trauma e queimadura, a glutamina é capaz de
nutriente como, por exemplo, os módulos de aminoácidos ou de gorduras reduzir as taxas de complicações infecciosas. Contudo, estudos científicos
(constituído por triglicerídeos de cadeia média). Os módulos podem ser recentes têm demonstrado que o uso de glutamina em pacientes críticos
acrescidos a uma fórmula de nutrição enteral preestabelecida. esteve relacionado à maior mortalidade em 28 dias. Alguns textos nacionais
recentes ainda recomendam esse aminoácido no suporte enteral de grandes
queimados, porém citam que a suspensão deve ser imediata caso os
De acordo com a complexidade dos macronutrientes (componentes
pacientes evoluam para disfunção orgânica.
calóricos), as fórmulas enterais também podem ser classificadas em:

Fórmulas Poliméricas
A arginina é um aminoácido que estimula a função de linfócitos T, auxilia
no processo de cicatrização de feridas e é um importante secretagogo para
diversos hormônios, como glucagon, prolactina e GH. Todavia, estudos
científicos recentes empregando o uso de soluções enterais ricas em
arginina têm demonstrado resultados contraditórios; alguns ainda descrevem
benefício com o uso destas soluções em pacientes críticos (principalmente
queimados), enquanto outros citam uma não redução de complicações
infecciosas ou até mesmo um aumento na mortalidade...

ROTAS DE ADMINISTRAÇÃO DA DIETA


ENTERAL

Sonda Nasogástrica

Essa via é a que possui o melhor custo-benefício de todas e, possivelmente,


a melhor para prevenir complicações pós-operatórias, como a gastroparesia.
Para evitar o refluxo e o risco de broncoaspiração deve-se manter a
cabeceira do leito elevada a 45° e não deixar o volume de infusão
ultrapassar 50 ml/hora.

Sonda Nasoentereal

É a forma mais utilizada em nutrição enteral, principalmente em pós-


operatório abdominal. A extremidade distal da sonda pode ser posicionada
tanto no duodeno como no jejuno. FIG. 1 Sonda de Dobbhoff posicionada no brônquio.

Sonda de Dobbhoff
O livro-texto Sabiston Textbook of Surgery afirma que não existe
É utilizada mais frequentemente devido ao seu menor calibre e maior diferença na incidência de broncoaspiração entre a alimentação nasogástrica
conforto. Uma vez passada, pode ser progredida distalmente ao piloro com e a nasoentérica pós-pilórica, argumentando que o esfíncter esofagiano
auxílio da endoscopia digestiva alta. Pacientes com gastroparesia e aqueles inferior permanentemente aberto pela sonda seja o principal mecanismo
com pancreatite aguda deverão receber obrigatoriamente suporte enteral em gerador do refluxo (e consequente aspiração). Todavia, outro livro-texto de
posição pós-pilórica. Em casos de pancreatite aguda, o ideal é que a sonda cirurgia, Schwartz Principles of Surgery, afirma categoricamente que a
seja posicionada além do ângulo de Treitz (junção do duodeno com o extremidade distal da sonda em intestino delgado reduz a incidência de
jejuno), para que se reduza o estímulo à produção de secreções pelo broncoaspiração em 25%. Em um fato todos concordam: a elevação da
pâncreas, mantendo o órgão "em repouso". cabeceira da cama em um ângulo de, pelo menos, 45°, reduz a incidência de
broncoaspiração.
Diversas complicações podem surgir com o uso das sondas nasoentéricas:
pneumotórax, sinusite, erosões gástricas e esofágicas, estenose de esôfago,
Gastrostomia
bradiarritmias, broncoaspiração e erro em posicionamento da extremidade
distal (Figura 1), estenose de esôfago, bradiarritmias e broncoaspiração. Pacientes com previsão de nutrição enteral prolongada (> 4 semanas) devem
ser submetidos à gastrostomia; esta pode ser realizada tanto por via
cirúrgica quanto endoscópica percutânea (Figura 2). Devido a um menor
custo e morbidade, a Gastrostomia Endoscópica Percutânea (GEP) tem sido
o procedimento de escolha na maior parte dos pacientes. Todavia, este
método não demonstrou diminuição nas complicações quando comparado
ao acesso cirúrgico. Um fator que pode limitar a escolha da via percutânea é
história de cirurgia prévia no abdome superior, condição que aumenta o
risco do surgimento de falsos trajetos. Existem algumas contraindicações
absolutas e relativas à GEP (Tabela 4).
A Nutrição Parenteral (NP) é recomendada em pacientes com trato
gastrointestinal não funcionante ou em situações onde este necessite de
repouso, com jejum previsto para um período de sete dias ou mais. A NP
também está indicada em indivíduos que possuam a via entérica
parcialmente funcionante, sendo, portanto, incapazes de receber um volume
de dieta correspondente às necessidades calóricas diárias.

Instabilidade hemodinâmica é uma contraindicação à NP. Outra


contraindicação óbvia é a presença de uma via enteral funcionante, capaz de
receber todo volume e calorias necessários. Pacientes em quimioterapia e/ou
radioterapia para tratamento de neoplasias malignas não devem receber NP
devido ao aumento de taxa de infecções e de trombose de cateter.

FIG. 2 Gastrostomia endoscópica percutânea. Quando calculamos a solução de NP, temos como base a quantidade de
proteína a ser administrada, uma vez que é este o componente fundamental
em nosso organismo que está sendo degradado pela resposta à agressão. A
partir de então, completamos a solução acrescentando carboidratos e
lipídios em devidas proporções, na dependência da cada situação metabólica

TAB. 4: CONTRAINDICAÇÕES ABSOLUTAS E RELATIVAS DA


GASTROSTOMIA ENDOSCÓPICA PERCUTÂNEA.
ou doença subjacente.

CONTRAINDICAÇÕES ABSOLUTAS A NP (solução nutricionalmente completa – NPT) é administrada através de


veia central, sendo a veia subclávia a de escolha, pelo menor índice de
Impossibilidade de acesso endoscópico.
infecção. Lembrando que o cateter empregado deve ser exclusivo para NP
Coagulopatia grave. (não se pode coletar sangue, realizar medidas hemodinâmicas nem ministrar
Obstrução gástrica distal. medicamentos através deste). O uso de bombas de infusão é obrigatório,
Sobrevida < 4 semanas. para o controle do tempo de infusão, para evitar distúrbios hidroeletrolíticos
e metabólicos agudos.
Impossibilidade de aproximação do estômago e parede
abdominal.
Hoje em dia, a NP administrada por veia periférica é pouco empregada e
CONTRAINDICAÇÕES RELATIVAS
tem como base o uso de lipídios como principal fonte calórica. Para sua
Impossibilidade de transiluminação através da parede abdominal. utilização é necessário que a fórmula possua baixa osmolaridade e seja
Varizes gástricas. prescrita por um curto espaço de tempo. No geral, as veias periféricas
Câncer gástrico difuso. desenvolvem flebite em um período de três a quatro dias...

Ao contrário do que muitos pensam, a GEP pode ser realizada nos seguintes INDICAÇÕES CLÍNICAS DA NUTRIÇÃO
casos: ascite previamente drenada, gastrite na parede anterior (resolvida PARENTERAL
com tratamento), presença de derivação ventriculoperitoneal, presença de
diálise peritoneal e cirurgia abdominal prévia. Devido às suas diversas complicações e elevado custo, a NP não é prescrita
para todos os pacientes que possuam deficit nutricional. Uma indicação
comum é a prescrição de NP em indivíduos que não conseguem atingir suas
Jejunostomia
metas calóricas totais utilizando apenas a via enteral, como em casos de
Indivíduos em nutrição enteral prolongada devem se submeter à distúrbios absortivos e de processos inflamatórios intestinais. Contudo,
gastrostomia ou à jejunostomia. Pacientes com retardo no esvaziamento existem situações onde a NP deve ser recomendada de forma exclusiva, ou
gástrico, refluxo frequente e episódios de aspiração devem ter a seja, o paciente apresenta contraindicações à nutrição enteral (Tabela 5).
jejunostomia como método de escolha. A jejunostomia pode ser cirúrgica
(mais frequente) ou ser realizada através de via percutânea – como uma
extensão da gastrostomia, com a sonda sendo posicionada por via
TAB. 5: INDICAÇÕES DE USO EXCLUSIVO DE NUTRIÇÃO
PARENTERAL.
endoscópica distalmente ao ângulo de Treitz.

● Vômitos ou diarreias intratáveis.


Pacientes com sondas em posição jejunal, inclusive os com jejunostomia, Íleo paralítico prolongado.

devem ter sua dieta administrada de forma contínua e lenta, pois o jejuno
● Fístulas digestivas de alto débito.
não acomoda grandes volumes. A fórmula em pacientes críticos deve
obrigatoriamente ser hipo ou, no máximo, iso-osmolar. Nesses casos, dietas ● Obstrução ou suboclusão do trato gastrointestinal.
hiperosmolares podem levar a complicações graves e fatais, como ● Fases iniciais de adaptação de síndrome do intestino curto.
pneumatose intestinal, isquemia e perfuração do intestino.

Nesse momento, vamos rever algumas indicações gerais de NP (utilizada


exclusivamente ou em associação ao suporte enteral):
NUTRIÇÃO PARENTERAL
Fístulas Gastrointestinais O maior benefício da NP pré-operatória foi evidenciado somente em
indivíduos desnutridos com neoplasias malignas do trato gastrointestinal
A alimentação oral ou enteral nesses doentes estimula um aumento na
superior; nesses doentes, a NP também deve ser prescrita por um período de
produção de secreções pelo trato digestivo, fenômeno que perpetua e
sete a dez dias antes do tratamento cirúrgico.
promove um aumento de débito pela fístula. Por levar a repouso intestinal, a
NP diminui o débito da fístula e, assim, aumenta a probabilidade de
fechamento espontâneo. Caso não ocorra o fechamento, os pacientes pelo PRINCIPAIS COMPLICAÇÕES DA NUTRIÇÃO
menos estarão em melhores condições nutricionais para suportar uma PARENTERAL
intervenção cirúrgica. Nesse momento, é aconselhável uma revisão do
assunto no capítulo de Complicações em Cirurgia do volume 2. Sepse por Cateter

Como a Nutrição Parenteral (NP) é realizada através de veia central, os


Síndrome do Intestino Curto pacientes estão sujeitos a complicações como infecção e sepse provenientes
do cateter. Indivíduos com cateteres centrais que recebem suporte
Pacientes cujo grande segmento do delgado foi ressecado necessitam de
nutricional parenteral têm uma maior probabilidade de infecção sistêmica
terapia parenteral por um longo período de tempo, em alguns casos de
quando comparados a pacientes com cateteres centrais que não estão em uso
forma permanente (NP domiciliar).
de NP.

Queimaduras Atualmente, os principais micro-organismos envolvidos em infecção


sistêmica são fungos (quatro a cinco vezes mais frequentes) e bactérias,
A NP é indicada em vítimas de queimaduras extensas porque o suporte
como Staphylococcus aureus, Staphylococcus coagulase negativo e
enteral não é capaz de fornecer a quantidade ideal de calorias para
Gram-negativos. Cuidado inapropriado do cateter, colostomia,
suplementação. Nesses pacientes, a terapia enteral precoce, dentro das
traqueostomia, desnutrição, uso recente de antibióticos de largo espectro,
primeiras três horas, leva a uma diminuição na mortalidade. Assim, é
uso de glicocorticoides, quimioterapia e neutropenia são fatores
comum encontrarmos o grande queimado recebendo terapia nutricional
relacionados a uma maior probabilidade de surgimento de processo
pelas duas vias (enteral e parenteral).
infeccioso.

Falência Hepática Na presença de infecção, o acesso venoso central deverá ser retirado e
Pacientes hepatopatas têm grande deficiência de nutrientes, devido a abuso devem ser coletadas amostras de hemocultura pela via central do cateter e
de álcool e diminuição da ingesta de alimentos. A NP enriquecida com por veia periférica. Caso persistam sinais clínicos de processo infeccioso e a
aminoácidos de cadeia ramificada é capaz de melhorar o quadro de hemocultura seja positiva, a terapia específica deve ser iniciada.
encefalopatia, sendo tão eficaz quanto à lactulose e à neomicina. Além
disso, seu uso perioperatório pode ser benéfico na diminuição das Complicações Metabólicas
complicações decorrentes de ressecções hepáticas.
Hiperglicemia e hiperosmolaridade plasmática podem ser observadas.
Comumente são ocasionadas pelo excesso de dextrose ou por situações de
Enterite Aguda por Radiação estresse metabólico (ex.: sepse). É sempre importante, em qualquer doente
A NP deve ser ofertada a esses pacientes até que a mucosa intestinal tenha em terapia nutricional, que a glicemia seja controlada de forma rigorosa. É a
se recuperado por completo. Glutamina enteral pode ser administrada para mesma regra que empregamos em pacientes críticos. Níveis maiores que
tratamento dessa condição. Todavia, só podemos utilizar este aminoácido se 400 mg/dl obrigam a interrupção da NP. A hipoglicemia também pode
a probabilidade de cura da neoplasia maligna for alta, uma vez que a ocorrer, sendo relacionada à administração excessiva de insulina ou
glutamina também funciona como "combustível" para células do câncer. interrupção brusca da infusão de NP.

Outras complicações metabólicas que podem surgir no decorrer do uso de


Íleo Prolongado
NP são hipomagnesemia, hipofosfatemia, hipopotassemia, hipocalcemia e
Pós-operatórios de grandes cirurgias abdominais (pancreatectomia, hipertrigliceridemia (valores aceitáveis < 400 mg/dl).
gastrectomia, colectomia etc.) podem evoluir com íleo paralítico. A NP
pode ser ofertada até a reversão do quadro clínico. Pacientes em NP exclusiva eventualmente desenvolvem carências
vitamínicas quando um ou mais destes elementos não são repostos de forma
adequada. Vimos anteriormente as principais deficiências.
Pré-operatório de Grandes Cirurgias

Pacientes que perderam involuntariamente > 10-15% do peso corporal nos


Outras Complicações
últimos seis meses (ou > 5% nos últimos 1-3 meses) ou que possuam
albumina sérica < 3 g/dl apresentam maior probabilidade de complicações Trombose de veia central onde o cateter estava posicionado pode ocorrer em
pós-operatórias, assim como maior mortalidade relacionada ao alguns pacientes. Complicações relacionadas à punção de veia profunda
procedimento cirúrgico. A NP, por um período de sete a dez dias no pré- incluem pneumotórax, lesões de vasos, lesão de plexo braquial, lesão de
operatório, mostrou-se benéfica principalmente em operações em andar ducto torácico, dor crônica, embolia gasosa, lesão de átrio e
superior do abdome (esofagectomia e gastrectomia). hidropneumotórax.

Câncer
As principais alterações gastrointestinais são encontradas em fígado e Ao administrarmos nutrientes de forma intempestiva, alteramos
vesícula biliar. bruscamente o metabolismo. Com o retorno da dieta, ocorre de forma súbita
uma verdadeira hipersecreção pancreática de insulina somada à produção de
NP prolongada pode levar a alterações em provas laboratoriais hepáticas. energia; o resultado é o retorno do funcionamento das bombas de
Existe aumento de enzimas como a gama Glutamil Transpeptidase (gama membrana, impulsionando o fosfato e o potássio de volta ao meio
GT) e a fosfatase alcalina. O significado dessas alterações é incerto. O intracelular, fenômeno que leva a hipofosfatemia e a hipocalemia.
aumento dos níveis de gama GT ocorre já na primeira semana de instituição
da dieta, com elevação progressiva até a quarta semana. A fosfatase alcalina A redução intensa do fosfato plasmático promove destruição de hemácias na
começa a se elevar por volta da segunda semana, porém em níveis microcirculação, um quadro de disfunção orgânica e morte em
proporcionalmente menores quando comparados aos da gama GT. Muitos aproximadamente 60% dos casos. Insuficiência cardíaca, arritmias graves,
destes pacientes apresentam achados a ultrassonografia compatíveis com disfunção diafragmática com insuficiência respiratória, alterações
esteatose do fígado. funcionais hepáticas, rebaixamento do nível de consciência, mioclonias,
delírio e convulsões são encontrados em combinações variadas. Muitos
A distensão da vesícula biliar é encontrada em pacientes em NP exclusiva. desnutridos já apresentam deficiência de tiamina (vitamina B1). Com a
Sabemos que a contração da vesícula (e seu esvaziamento) é estimulada realimentação, a tiamina passa a ser utilizada e consumida no interior das
pela presença de alimentos em delgado. A distensão permanente do órgão células, fenômeno que precipita sua carência de forma aguda, ocasionando
pode estar associada ao desenvolvimento de processos como colecistite encefalopatia de Wernicke. Uma vez instalada, a síndrome de realimentação
aguda alitiásica, sobretudo em doentes críticos. muitas vezes é irreversível, mesmo com a reposição tardia desses eletrólitos.

A prevenção da síndrome de realimentação consiste na administração mais


SÍNDROME DE REALIMENTAÇÃO cautelosa de nutrientes; é comum a oferta inicial de 50% do que é planejado
para o peso atual do paciente. Muitos autores recomendam o início de dieta
A síndrome de realimentação é caracterizada por alterações agudas em
contendo 20 kcal/kg, com aumentos do valor calórico total em 100 a 200
líquidos e eletrólitos corporais, como consequência da administração de
kcal por dia. Monitorização constante dos eletrólitos, suplementação de
nutrientes de forma rápida e excessiva em pacientes com desnutrição grave
tiamina e uso de compostos contendo fosfato são medidas aconselháveis.
e prolongada (marasmo). Esta complicação potencialmente fatal pode
ocorrer nos primeiros dois a quatro dias após a introdução do suporte
nutricional de qualquer espécie (embora seja mais observada com a
administração de NP).

Um paciente intensamente desnutrido apresenta baixos níveis de insulina e


baixa atividade de bombas de membrana; sendo assim, seus níveis
intracelulares de fósforo (fosfato) e potássio se encontram reduzidos,
embora os níveis séricos possam estar dentro da normalidade.

CIRURGIA REPARADORA

CIRURGIA PLÁSTICA FECHAMENTO DE FERIDAS


Embora a cirurgia plástica para leigos esteja unicamente relacionada à Uma ferida pode ser causada de forma intencional, quando ocorre em uma
beleza e à juventude, isso de forma alguma representa a realidade... cirurgia planejada, ou acidental, decorrente de traumatismos ou exposição a
determinados agentes.
Sabemos que muitos residentes de cirurgia sonham em se tornar um
cirurgião plástico, sinônimo de status em nossa sociedade, sobretudo pelo As feridas cirúrgicas e acidentais são denominadas de agudas, ou seja,
retorno financeiro que acompanha os procedimentos estéticos. No entanto, apresentam resolução seguindo as três fases da cicatrização: inflamatória,
diferente do que muitos pensam, a formação deste profissional é longa e fibroplasia e maturação. A ferida crônica é toda aquela em que o processo
desgastante, e tem na cirurgia reparadora (reconstrutora) o verdadeiro cicatricial não evolui espontaneamente para a resolução; nesses casos, a
estado de arte da especialidade. reparação tissular ineficiente é determinada por um conjunto de fatores
como etiologia da lesão, doenças associadas e estado físico do paciente. As
É inegável que o conhecimento estético deve estar "impregnado" na alma do feridas que não apresentam resolução em três a quatro meses são
cirurgião. Este verdadeiro dom é usado no dia a dia tanto para as cirurgias consideradas crônicas.
estéticas propriamente ditas, quanto para as cirurgias reconstrutoras.
Dizemos que uma ferida é complexa quando apresenta qualquer uma das
O ato de reconstruir ou reparar exige uma profunda integração entre seguintes características: (1) necessita de métodos especiais para sua
princípios básicos de anatomia e as mais diversas técnicas cirúrgicas. Só resolução; (2) acomete áreas extensas; (3) ameaça a viabilidade de um
assim somos capazes de restaurar não só a forma de um tecido, mas também membro; ou (4) revela evolução imprevisível. Como exemplo, citamos as
sua função. úlceras de pressão, as lesões em membros inferiores de diabéticos, as
úlceras por estase venosa e as feridas por exposição à radioterapia.

Neste texto, vamos nos dedicar ao estudo da cirurgia reparadora, que


inegavelmente é o assunto solicitado em provas de residência médica.
Como vimos no capítulo 3, a ferida operatória pode ser fechada através de
suturas, processo conhecido como fechamento primário. Áreas com
queimaduras de segundo grau profundas e de terceiro grau são fechadas
com uso de enxertos cutâneos, o que representa também fechamento por
primeira intenção.

Em casos de infecção de sítio cirúrgico e em determinadas operações


(hemorroidectomia, por exemplo) a ferida é deixada cicatrizar por segunda
intenção.

COMO PROCEDER QUANDO NOS DEPARAMOS COM UM


FERIMENTO DECORRENTE DE TRAUMA CORTOCONTUSO?

O primeiro passo é prevenir a infecção. A lavagem do ferimento deve ser


feita com soro fisiológico de forma abundante e, nessa mesma etapa,
realizamos a retirada mecânica de corpos estranhos. Em seguida, devemos
proceder à antissepsia e à assepsia, utilizando agentes antimicrobianos
tópicos, como a iodopovidona e a clorexidina (lembrando de não usar iodo
em pessoas alérgicas).

A anestesia obrigatoriamente deve ser considerada antes do fechamento.


Esta pode ser realizada de forma local ou através de bloqueios regionais.
Em crianças, pode ser necessária anestesia geral.

Por último, sempre que possível, devemos fechar a ferida, considerando-se


inicialmente procedimentos mais simples. A sutura primária deve ser a
primeira opção de fechamento, uma vez que não necessita de incisões ou
descolamentos amplos.

No planejamento de suturas (e também de incisões), é importante que o


cirurgião conheça as linhas de força da pele (linhas de Langer), como
mostradas na Figura 1. A realização de suturas seguindo essas linhas FIG. 1 Linhas de Langer.
diminui a tensão sobre a ferida e o resultado é uma cicatriz com uma melhor
forma estética.
Acabamos de descrever as feridas cortocontusas. Todavia, existem situações
no dia a dia do cirurgião onde procedimentos como suturas simples jamais
devem ser cogitados para fechamento adequado de uma ferida. Já citamos o
exemplo das queimaduras. As feridas classificadas como complexas
necessitam de intervenções como enxertos e retalhos para fechamento e
reconstrução dos defeitos.

ENXERTOS

Podemos definir enxerto como uma transferência de um tecido (pele,


gordura, cartilagem etc.) de determinada área do corpo, conhecida como
área doadora, para outra região, denominada de área receptora. O tecido
transferido não leva consigo sua vascularização original. Desta forma, a
nutrição do enxerto será realizada exclusivamente pela área receptora.
Nesse tópico vamos abordar apenas os enxertos cutâneos.

Escolhemos a área doadora de pele de acordo com as características da


região receptora (cor da pele e espessura da mesma) para que o resultado
estético seja mais satisfatório. Sendo assim, o ideal é que a área doadora
esteja em posição simétrica com a receptora. Na impossibilidade disto,
optamos por regiões doadoras as mais próximas possíveis das áreas
receptoras.

Quanto à sua origem, os enxertos podem ser classi cados em:


Autoenxertos ou Isoenxertos

São aqueles retirados, ou seja, excisados do próprio receptor ou de um


gêmeo univitelínico. Este tecido pode ser excisado tanto de pele sã quanto
de regiões restauradas. Neste último caso, temos os enxertos provenientes
de uma área de pele curada após uma queimadura de segundo grau ou de
uma área receptora de um enxerto há algum tempo.

Homoenxertos ou Aloenxertos

São excisados de indivíduos da mesma espécie, funcionando muitas vezes


como curativos biológicos, enquanto a região receptora se prepara para a
autoenxertia. Os aloenxertos preservados em glicerol não possuem células
vivas e muitas vezes se comportam como uma verdadeira matriz dérmica,
sendo incorporados com o tempo à área receptora. Nesses casos, o
autoenxerto, que virá em um segundo momento, será constituído
basicamente de epiderme. FIG. 2 Utilização de faca de Blair para retirada do enxerto.

Heteroenxertos ou Xenoenxertos
Como não é necessário o fechamento da área doadora, poderemos retirar
São provenientes de seres de espécies diferentes e funcionam apenas como uma quantidade maior de tecido de diversas regiões do corpo. Sendo assim,
curativos biológicos de caráter transitório. os enxertos parciais são muito úteis quando precisamos cobrir áreas
extensas, como no paciente grande queimado e nas úlceras de pressão.
Além disso, podemos aumentar ainda mais a dimensão do enxerto, bastando
De acordo com a sua espessura, os enxertos são divididos em:
apenas utilizá-lo sob a forma de malha. Para que isso aconteça, o enxerto
retirado da área doadora é processado em um aparelho específico que o
Enxertos de Pele Total ou Enxertos Totais
transforma em uma espécie de "rede" (Figura 3).

Estes levam toda a epiderme e a derme da área doadora. Geralmente, são


empregados em áreas nobres e de menor extensão como a face, em que a
área doadora costuma ser a região retroauricular. Outros possíveis sítios
doadores incluem fossa supraclavicular, abdome e pálpebras superiores. A
área doadora é fechada através de suturas.

Por serem formados por toda a espessura da pele, os enxertos totais


apresentam um melhor resultado estético e funcional, com pouca retração
tecidual após sua retirada. Todavia, devido à maior espessura, possuem uma
vascularização mais deficiente.

Enxertos de Pele Parcial

Representam o tipo mais comum de enxertos, sendo constituídos por


epiderme e parte da derme. Estes podem ser obtidos através da utilização de FIG. 3 Retirada do enxerto parcial com dermátomo e utilização do
bisturi, de facas especiais (Figura 2) ou, mais frequentemente, através do mesmo sob forma de malha.
uso de um dermátomo elétrico, o qual determinará com precisão a espessura
do enxerto a ser utilizado: fino, médio ou grosso.
A área doadora da pele de enxerto é cicatrizada através da derme
remanescente; como os anexos cutâneos são preservados, o processo
cicatricial se dá de forma eficaz. Apenas um curativo oclusivo empregando
gaze é aplicado sobre a região.

COMO O ENXERTO SE INTEGRA À ÁREA RECEPTORA?

Quando colocamos um enxerto sobre uma área cruenta (a área receptora), o


exsudato proveniente desta última, forma uma espécie de malha de fibrina
que torna o tecido enxertado aderente à superfície receptora.
O enxerto absorvendo o exsudato que veio da área cruenta aumenta seu Os enxertos de pele total apresentam maior contração primária, ocorrendo
peso em até 40% no primeiro dia, fenômeno conhecido como embebição. redução de sua área logo após a coleta. Este fenômeno é explicado pela
Esta é a forma que o tecido enxertado obtém seus nutrientes nas primeiras maior quantidade de derme, ou seja, maior quantidade de fibras elásticas.
48 horas após o procedimento. Para que isso aconteça, é necessário um Todavia, o enxerto de pele total possui menor contração secundária, uma
contato total e íntimo entre o enxerto e a área cruenta. vez que esta maior quantidade de derme permite um processo de integração
mais eficiente. Com os enxertos parciais ocorre justamente o contrário: o
A partir de 48 a 72 horas, vasos provenientes da área receptora penetram no menor conteúdo de fibras elásticas leva a uma menor contração primária;
enxerto (neovascularização) e a completa revascularização do mesmo se dá por outro lado, observamos maior contração secundária. Desta forma,
em torno do quarto ao sétimo dia. Neste momento, podemos dizer com quando empregamos um enxerto em áreas receptoras que exigem um
segurança que o "enxerto pegou". resultado estético ótimo (como face, por exemplo), o ideal é o uso de
enxerto de pele total, onde observamos menor contração secundária. Em
áreas de dobras e articulações o ideal é a utilização também de enxerto de
Dizemos que o "enxerto integrou" quando apresentar características mais
pele total. Na inviabilidade deste, podemos empregar enxertos de pele
próximas possíveis da pele normal, principalmente a reinervação. Esta tem
parcial espessa, onde a maior espessura da derme retirada resulta em uma
início entre a segunda e quarta semana. Contudo, o ganho de uma
menor contração secundária...
sensibilidade adequada pode levar até 12 meses.

RETALHOS
Como a pele transferida não possui vascularização própria, todo
enxerto deve ser colocado sobre uma área de boa vascularização. Os retalhos são muito utilizados para reconstruções em cirurgia plástica.
Ausência de tecidos desvitalizados e de infecção na região receptora Podemos caracterizá-los como transplantes pediculados de tecidos que
são outros fatores essenciais para o sucesso do enxerto. possuem seus próprios vasos, não dependendo, portanto, da vascularização
da área receptora.

A falha na "pega" de um enxerto cutâneo pode ser consequência também de


sua mobilização e da formação local de hematoma (causa mais comum). Em outras palavras, quando "transportamos" um tecido de uma área
doadora para uma área receptora levando com ele seu suprimento
vascular, isso é um retalho.
O hematoma impede que ocorra um total contato entre a superfície cruenta
vascularizada e o enxerto de pele; sem essa íntima relação, o processo de
formação de novos vasos não ocorre de forma adequada.
Os retalhos são essenciais para a cobertura de feridas complexas com
grande perda tecidual, onde há exposição de tecidos nobres (tendões, ossos
A mobilização provoca rompimento de neovasos e consequente perda do
etc.) ou leito vascular de qualidade duvidosa. Lesões mais simples e
enxerto. Sendo assim, o tecido enxertado deve ser mantido imobilizado e
superficiais, como aquelas causadas por ressecções de tumores de pele,
com moderada compressão por quatro a cinco dias, evitando assim a
também necessitam frequentemente de retalhos para seu fechamento.
formação de espaço morto que possa acumular sangue.

A forma como esses defeitos (ou feridas) são tratados depende de sua
O QUE É O FENÔMENO DE CONTRAÇÃO DO ENXERTO? localização e de seu tamanho; outros fatores que devem ser levados em

O enxerto, após sua retirada da área doadora, sofre um fenômeno conhecido consideração incluem a morbidade funcional que acarretará o retalho, a

como contração. A contração primária ocorre logo após esta retirada, sendo qualidade estética da reconstrução, as comorbidades subjacentes e o desejo

as fibras elásticas presentes na derme do enxerto as estruturas responsáveis. do paciente.

A contração secundária se desenvolve durante o processo de


integração/cicatrização do enxerto, sendo ocasionada por contração de Vamos dar um exemplo: após uma mastectomia, existem diversas opções de
miofibroblastos da área receptora. reconstrução mamária, mas os retalhos mais utilizados são o retalho de
grande dorsal e o retalho transverso de músculo reto abdominal (TRAM) –
Figura 4. Todavia, a indicação de qual procedimento a ser realizado vai
depender de diversos aspectos, como áreas disponíveis para confecção do
retalho, irradiação prévia, história de tabagismo, presença ou não de
obesidade, comorbidades e vontade da paciente. Sendo assim, a escolha do
retalho é feita de forma individualizada.
FIG. 6 Retalhos de avanço e rotação, respectivamente. A região escura
FIG. 4 Retalho transverso de músculo reto abdominal (TRAM) para representa o defeito que será corrigido. As setas representam o sentido
reconstrução mamária. Partes do músculo reto abdominal e do tecido de movimentação do retalho cutâneo. Observe que incisões extras são
cutâneo do abdome inferior são transpostas por um túnel subcutâneo feitas para que ocorra mobilização do retalho.
no abdome para reconstrução da região mamária. O defeito gerado no
abdome inferior é fechado por tração do tecido remanescente.

O retalho bilobado é um tipo de retalho de transferência, utilizado


principalmente em defeitos no nariz (Figura 7).
A classificação dos retalhos tem como base três diferentes aspectos: sua
composição, forma de transferência e vascularização.

COMPOSIÇÃO

Retalhos Simples

São formados pela pele (epiderme e derme) e tecido celular subcutâneo


(Figura 5).

FIG. 7 Retalho bilobado. Na primeira figura temos: uma lesão a qual


será ressecada e o planejamento do retalho. Na segunda figura, temos o
retalho feito. A região P cobriu o defeito da ressecção, enquanto a área
S cobriu o defeito gerado pela rotação da área P.

A zetaplastia é realizada em áreas de retração cicatricial: consiste na


realização de dois retalhos triangulares, os quais são transpostos. Quanto
maior o ângulo entre os retalhos, maior o aumento da cicatriz e, como
resultado, menor sua retração e sua tensão. Na zetaplastia (ou plástica em
"Z") com ângulos de 30º conseguimos um aumento em 25% da área que
queremos alongar; zetaplastia com ângulos de 45º determina um
alongamento de 50%; já a zetaplastia com ângulos de 60º promove um
FIG. 5 A imagem da esquerda representa um retalho simples contendo alongamento de 75% da cicatriz (Figura 8). O retalho V-Y é de avanço;
epiderme, derme e subcutâneo. A imagem da direita representa um
retalho composto contendo epiderme, derme, subcutâneo e músculo. nesse procedimento, o cirurgião confecciona o retalho em forma de V
invertido, utilizando uma região de pele acima da ferida, e avança esse
retalho para recobrir todo o defeito.

Retalhos Compostos

Possuem além de pele e subcutâneo, outra estrutura, como músculo, fáscia,


osso ou cartilagem. Sendo assim, os retalhos compostos são classificados de
acordo com o tipo de tecido que foi integrado: retalho fasciocutâneo,
musculocutâneo ou osteocutâneo.

FORMA DE TRANSFERÊNCIA

De acordo com o formato e o tipo de transferência, os retalhos podem ser


classificados em de avanço, de rotação, de transposição ou de
interpolação (Figura 6). Alguns tipos de transferências recebem
epônimos: zetaplastia, romboide, V-Y, bilobado etc.
FIG. 10 No retalho axial existe uma artéria de grosso calibre permitindo
uma excelente vascularização com retalho de maior extensão. No
retalho livre, os vasos são seccionados e reanastomosados em uma
região distante. O retalho randomizado tem a vascularização
FIG. 8 Zetaplastia com ângulos de 60º. subdermal, são retalhos de menores extensões.

Os retalhos axiais são baseados em uma artéria. Por apresentarem uma


vascularização confiável podem ser utilizados para cobrir defeitos de maior
extensão. São utilizados, por exemplo, para recobrir feridas com exposição
óssea ou tendinosa.

Os retalhos livres ou microcirúrgicos são utilizados da seguinte forma:


o retalho é seccionado na sua base e é transferido para uma área receptora,
inicialmente semelhante a um enxerto. Todavia, o cirurgião realiza
imediatamente anastomoses entre os vasos da área receptora e o tecido do
retalho, um procedimento executado com auxílio de microscópio cirúrgico.

Os retalhos randomizados são vascularizados principalmente pelo


plexo subdermal, não havendo participação de artéria importante. Estes são
os retalhos mais utilizados na reconstrução de defeitos ocasionados por
ressecção de tumores de pele.

FIG. 9 Paciente com defeito em face sendo tratado com retalho de ÚLCERAS DE PRESSÃO
rotação.
Como vimos antes, as Úlceras de Pressão (UP) são consideradas feridas
complexas. São conhecidas como úlceras de decúbito ou simplesmente
escaras. Todavia, o termo úlcera de decúbito não traduz completamente a
realidade, uma vez que estas lesões ocorrem também em pacientes não
Vascularização
acamados. Muitos autores também não consideram o termo escara como
A vascularização do retalho pode ser feita de forma axial, livre (por sinônimo de UP. Para estes, escara significa apenas tecido desvitalizado ou
microcirurgia) ou randomizada (Figura 10). necrose seca.

A úlcera de pressão corresponde a uma área de morte tecidual


(partes moles) que ocorre quando este tecido é comprimido, por um
determinado período de tempo, entre uma proeminência óssea e uma
superfície rígida.

Os indivíduos em maior risco para a formação de UP são aqueles que


utilizam cronicamente cadeiras de rodas, os acamados e pacientes
internados por longos períodos em enfermarias ou em unidades de terapia
intensiva. A Tabela 1 descreve os principais fatores que predispõem a esta
complicação.
TAB. 1 FATORES DE RISCO PARA FORMAÇÃO DE ÚLCERAS.

● Limitação de movimentos.

● Desnutrição.

● Idade avançada.

● Alteração de nível de consciência.

● Perda de sensibilidade.

● Umidade local.

Como vimos antes, as lesões se desenvolvem em partes moles que se


encontram constantemente em contato com proeminências ósseas. Estas
correspondem às regiões sacra, isquiática e occipital, os cotovelos, o
FIG. 11 Desbridamento cirúrgico de escara sacra.
calcâneo e o trocanter. Quando a pressão sobre essas áreas excede a pressão
arterial capilar (32 mmHg), começam a ocorrer alterações teciduais, que vão
desde eritema e edema até isquemia e necrose. Se medidas preventivas não
forem tomadas, como mudança de decúbito e cuidados com a pele, essas
alterações serão irreversíveis, levando à morte tecidual.

O acometimento tecidual tem caráter progressivo. A classificação mais


simples das UP, também conhecida como classificação de SHEA, tem como
base esses aspectos (Tabela 2).

TAB. 2 CLASSIFICAÇÃO DAS ÚLCERAS DE PRESSÃO.

CLASSIFICAÇÃO DAS ÚLCERAS DE PRESSÃO (SHEA)

Úlcera grau I Reação in amatória da pele, sem ulceração,


com eritema não empalidecido.
Úlcera grau II Ulceração super cial, com perdas parciais da FIG. 12 Úlcera sacra com necrose.
pele, envolvendo epiderme e/ou derme:
apresenta-se sob a forma de abrasão, bolha ou
cratera rasa. O estado nutricional deve ser avaliado em todos os pacientes. Os
Úlcera grau Ulceração profunda, com necrose da espessura desnutridos não terão evolução satisfatória, apesar dos cuidados
III total da pele e tecido celular subcutâneo, mas dispensados. Como vimos no capítulo 3, as deficiências proteicas e de
sem se estender pela fáscia. Pode incluir determinadas vitaminas e oligoelementos (vitaminas A e C, zinco)
descolamento e túneis. prejudicam a cicatrização. Sendo assim, a suplementação nutricional é de
Úlcera grau Úlcera complexa, com extensa destruição, fundamental importância para o sucesso do tratamento.
IV podendo comunicar-se com outras úlceras e
envolver tecido muscular e ósseo. Outras medidas para uma boa evolução incluem: mudança de decúbito do
Frequentemente inclui descolamento e túneis. paciente a cada duas horas e utilização de apoios que diminuam a pressão
sobre a ferida (como colchões tipo "caixa de ovo" e assentos infláveis).

O tratamento bem-sucedido deve ser multidisciplinar, envolvendo medidas


cirúrgicas, clínicas e preventivas. A resolução da úlcera pode ter sucesso apenas com medidas de suporte,
sobretudo nos indivíduos que não mais permanecerão imobilizados após
resolução de sua doença de base.
Na presença de necrose tecidual, está indicado desbridamento cirúrgico de
todo o tecido desvitalizado (Figura 11). A área de necrose sob a pele pode
ser muito maior do que aparenta inicialmente, sobretudo quando há Contudo, os pacientes acamados por tempo indeterminado ou os que se
acometimento de tecidos musculares, que são mais vulneráveis à isquemia utilizam de cadeiras de rodas indefinidamente necessitarão de abordagem
(Figura 12). O material desbridado deve ser enviado à cultura e, na cirúrgica para o fechamento da úlcera. Após a resolução do processo
presença de infecção, a antibioticoterapia deve ser instituída de acordo com infeccioso, um retalho deverá ser utilizado tanto para fechamento da ferida
o antibiograma. (Figura 13), quanto para formação de um coxim sobre as áreas de apoio,
evitando a formação de nova úlcera. Entretanto, mesmo após todas essas
medidas, a recidiva da úlcera é frequente, uma vez que a correta adesão ao
tratamento proposto é pequena.
FIG. 13 Retalho musculocutâneo para fechamento da úlcera sacra.

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