Untitled
Untitled
Untitled
São Paulo
1998
3
Coelho, Olga Ferreira. 1998. Serafim da Silva Neto (1917-1960) e a Filologia Brasileira. Um
Ensaio Historiográfico sobre o Papel da Liderança na Articulação de um
Paradigma em Ciência da Linguagem. Dissertação de Mestrado. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo:
São Paulo.
4
AGRADECIMENTOS
processo de elaboração deste trabalho. Entre as diferentes razões que me levam a lhes dizer
“muito obrigada”, destaco apenas as mais prosaicas e óbvias, já que, aquelas mais
Agradeço, então:
USP, e Fátima, Érica e Ben Hur, do Departamento de Linguística, pela paciência e apoio
ininterruptos.
Ao amigo Marcelo Módolo, ao Prof. Dr. Bruno Fregni Basseto (USP), à Profa.
Sandra Bernini da Costa (do SEGRAU, PUC-SP), à Profa. Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva
(UFBA), ao Prof. Léo Bárbara Machado (UFRJ), ao Prof. Dr. José Borges Neto (UFPR), à
Profa. Dra. Hilma Pereira Ranauro (UFF-RJ), à senhora Carmen de Oliveira (do Setor de
Periódicos Antigos da Biblioteca Municipal de São Paulo (Arquivo João Dias)) e à Maria
Inez Oliveto (da Bibioteca de Letras da UFRJ), pela indicação, facilitação do acesso e
Aos Professores Doutores Carlos Eduardo Falcão Uchôa (UFF—RJ) e Evanildo Bechara
(UERJ), pelas conversas que renderam dados essenciais à pesquisa, e ao Prof. Dr. Sílvio Elia,
que gentilmente se propôs a fazer o mesmo e, por motivos justificados, não o pôde.
Petter (USP), e ao Prof. Dr. Konrad Koerner (Universidade de Otawa), pela atenção com que
Carlos Guilherme Mota e Maria Amélia Mascarenhas Dantes (Departamento de História Social
Tübingen) e Konrad Koerner, cujos cursos e indicações tornaram menos árduo o trabalho.
Aos amigos, Renato Lagrieca Siqueira, Kátia da Costa Valle Leitão, Maria Eulália
Ramicelli, Adriene Zigaib, Luciana Marquez da Cunha e Debra Logston, a ajuda técnica em
momentos decisivos.
Adamo, Luciana Gimenes Parada dos Santos, Telma Regina Bueno e Vânia Érika Parada, com
período da graduação —, a Ângela e o (Prof. Dr.!) José Carlos Barreto de Santana (com os
quais convivo há menos tempo, mas divido, com a mesma intensidade, as mesmas “coisas”).
Por fim, mas principalmente, agradeço ao meu pai, Sebastião Coelho Vaz, às minhas
irmãs, Elza, Zilda, Maria, Neusa e Raquel, e ao meu irmão, Délson, pelo papel de sócios que
desempenharam neste trabalho e em todo o resto. Dedico esta dissertação a vocês, lamentando
Ficha 1:
Ficha-modelo do tratamento analítico dado à produção
científica de Serafim da Silva Neto (1917-1960)..................................................68[67]
Reprodução 1:
Reportagens de “Letras e Artes”(1948)................................................82[entre 79/80]
Reprodução 2:
Quadros de membros e de colaboradores da Academia
Brasileira de Filologia..........................................................................96[entre 94/95]
Figura 1:
Filologia e Ciências Humanas, segundo S. Silva Neto.....................113[entre 111/112]
Figura 2:
Filologia e Linguística, segundo S. Silva Neto..................................117[entre 114/115]
Figura 3:
A Filologia no campo dos estudos científicos, segundo Silva Neto...124[entre 120/121]
Figura 4:
A metalinguagem de Silva Neto: Esquema dos níveis de linguagem
da língua portuguesa........................................................................146[entre 143/144]
8
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS.......................................................................................................4
ÍNDICE DAS TABELAS..................................................................................................6
ÍNDICE DAS FICHAS, FIGURAS E REPRODUÇÕES...............................................7
INTRODUÇÃO................................................................................................................11
Capítulo 1
Circunscrição do Problema: A Formação de Comunidades Paradigmáticas..............16
Capítulo 2
Método. Procedimentos adotados....................................................................................40
2.2 Periodização.................................................................................................42
Capítulo 3
Cientistas exemplares...................................................................................................72[70]
Capítulo 4
As “Boas idéias”...........................................................................................................109[108]
Capítulo 5
A Articulação do Paradigma da Filologia Brasileira..................................................157[154]
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................171[170]
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS...............................................................................176
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................179
11
INTRODUÇÃO
12
Introdução
Brasil entre 1940 e 1960, a partir da perspectiva dos filólogos, que, neste período,
Neto (1917-1960) — um estudioso de grande projeção, cuja obra foi tomada pela comunidade
de criador de meios para a difusão dessas ideias entre os membros da comunidade científica
(cf. Murray 1994), e, ainda, de avaliar a contribuição desse seu papel de líder para que o
apontadas por Murray como essenciais para que um ‘paradigma’ seja bem-sucedido. Nossa
hipótese é a de que o caso em foco oferece fortes indícios para a confirmação dessa proposta.
13
Além da produção científica do filólogo e dos elementos que o situariam como uma
das ‘lideranças’ de seu grupo, visando à reconstrução do contexto de produção científica entre
os anos 1940 e 1960, a dissertação também leva em conta dados referentes ao meio
produção científica característicos da época, cotejando, sempre que possível, esses dados com
outros, de mesma ordem, referentes à geração imediatamente anterior (ou seja, aquela que,
grosso modo, conduziu os estudos sobre a linguagem no país entre os anos 1920 e 1939).
Com tais propósitos, este texto constitui-se de cinco capítulos, esta introdução e
Paradigmáticas, delimito o quadro teórico em que se insere este texto — com ênfase nos
trabalhos de Kuhn (1987[1962]) e Murray (1994 [1983]), que mais fortemente o caracterizam
feitas durante a pesquisa, tais como as que fundamentaram os processos de escolha do autor,
Com esta análise, esboço, em grandes linhas, as práticas e ideias linguísticas do autor,
em seus traços mais marcantes e gerais, delineando um quadro indicativo dos tipos de
Como é nosso propósito caracterizar tanto suas ‘ideias’ — ou seja, suas formulações a
respeito do que seria a ciência da linguagem e do que ela deveria tratar — quanto aquilo que
Desse modo, na primeira seção desse capítulo, que é o mais extenso deste trabalho,
disciplinas por ele responsáveis e das atribuições de cada uma delas na condução de tais
estudos, para, nas seções seguintes, apontar as suas áreas preferenciais de trabalho, as
sua metalinguagem e alguns dos temas recorrentes em seus trabalhos, estabelecendo, ao final,
um paralelo entre essas suas ‘opções’ e aquelas suas ‘ideias’ apresentadas inicialmente.
científicos proposto por Murray (1994). Recupero, dessa forma, o conjunto de elementos que,
por hipótese, teriam contribuído para a repercussão positiva de estudiosos como Silva Neto e
sucesso no período.
ideias. Daí a nossa ênfase consciente, nos Capítulos 3 e 5, nesta face do contexto que cercava
que fizemos foi recortar, na gama de elementos que talvez pudessem ser associados aos
dos filólogos — se configurou como essencial, ou, pelo menos, mais diretamente relacionado
no Brasil entre 1940 e 1960 e a contribuição da variável ‘liderança’ para que a primeira dessas
CAPÍTULO 1
Comunidades Paradigmáticas
idiossincráticos
de acordo com práticas diferenciadas de outras desse mesmo campo, isso muito
provavelmente significa que teorias e métodos científicos, por serem resultantes de elaboração
humana, não são objetivos e, por essa razão, não estão livres de contestações, reinterpretações
que a história social das ciências considera um fato: as teorias científicas são elaborações, ou
‘verdades construídas’ pelos cientistas (Pestre 1995) e, como tais, vinculam-se às suas
crenças, ideologias, que, por sua vez, são respaldadas por contextos particulares. São modos
segundo critérios absolutos. Ao contrário, se s teorias são formas de interpretar o mundo, seu
estudo histórico requer uma tentativa de compreender essas visões específicas dos fatos em
quando afirma que uma teoria mais antiga, mesmo se descartada, não se torna, a princípio,
preferência da comunidade. O que se poderia dizer, em tais casos, é que a teoria nova
responde melhor às exigências do contexto dado, e isso não significa que esteja mais próxima
do real ou da verdade, mas que, em ambiente social e cultural específico, como ‘interpretação’
controvérsias seria aquilo que entende como “a incomensurabilidade de suas maneiras de ver
uma dessas ‘maneiras’ em uma controvérsia seria o poder de persuasão a ela conferido pelos
Para Kuhn, além desse período de substituição de uma teoria científica antiga por uma
outra, que denomina período de ‘revolução científica’, verificam-se pelo menos outros dois na
‘paradigma’ — isto é, uma teoria científica largamente reconhecida que, durante algum
ciência (cf. Kuhn 1987[1962]: 13) — de sucesso guiando as pesquisas da área. Os cientistas,
nesse estágio, não buscam, e até mesmo repelem, novidades: a comunidade interessa-se
19
unicamente pelo quadro de problemas postulados pelo ‘paradigma’ e pelas soluções por ele
propostas para tais problemas. Eles têm como parâmetros soluções elegantes — os chamados
Quando algo é percebido por estes cientistas como uma anomalia, ou seja, como um
problema relevante para o quadro de pesquisa para o qual, reiteradamente, a teoria não
em que era conduzida a ‘ciência normal’. É nesse período que pode ser instaurada uma
significa uma ruptura com a tradição, o coroamento de uma nova forma de pensar e conduzir
a ciência anteriormente guiada por outro ‘paradigma’ e, naturalmente, por outros indivíduos.
De fato,
fundamental, uma vez que a aceitação de uma teoria como 'paradigmática’ deriva de seu
poder de convencimento: ela deve parecer melhor do que suas concorrentes, mostrando-se
mais bem equipada do que elas para a resolução de problemas que a comunidade de cientistas
teorias a outras sem esse qualificativo, expõe a relatividade de tais teorias ou, antes, a
sua relação de dependência com os contextos — sociais, políticos, intelectuais etc. — em que
se inserem.
Nas ciências da linguagem, tem sido apontada como uma das principais controvérsias
aquela verificada em meados do século XIX europeu ocidental, sobretudo na Alemanha, entre
mais vinculado às chamadas 'ciências naturais’, que propunha a análise das diferentes línguas
‘internamente’, segundo critérios, na visão dos novos cientistas, mais objetivos do que
aqueles estabelecidos pela outra tradição. O debate fortaleceu-se naquele período, no qual a
1987).
Para que isso ocorresse, teria sido fundamental o papel desempenhado por August
Friedrick Schleicher (1821-1868), que parece ter sido o primeiro scholar europeu a procurar
distinguir claramente os dois campos de atuação científica (Koerner 1997:12). Para ele, era
essencial diferenciar os dois tipos de estudo, já que, enquanto a Filologia, ciência humana, na
Linguística, ciência natural, estudava a linguagem per se, abstraindo aquelas relações. Esse
21
momento, corporificar a verdade e, devido a isso, vincular-se a elas era tornar sua disciplina,
linguísticas ou glotológicas.1
Bopp (1791-1867), Rasmus Kristian Rask (1787-1832) e Jacob Grimm (1785-1863), embora
literatura e ao tratamento de textos antigos, não se opôs, tão claramente a ela, enquanto
seu grupo parecem ter inaugurado a tentativa de demarcar campos distintos para duas
1
O termo ‘Glotologia’ ou ‘Glótica’, em alemão, Glottik, foi eleito, pelo novo grupo, para nomear as novas
práticas, diferenciando-as das desenvolvidas na Filologia (Philologie) — para uma nova ciência, um novo
nome. Como é análogo, por exemplo, a Bottanik, a preferência pelo seu uso foi também interpretada por
Koerner (1997:12) como uma tentativa de situar os estudos sobre a linguagem nos domínios das ciências
da natureza.
22
ocidental.
negação de vínculos com a tradição precedente por parte daqueles que propõem novos
modelos (cf. Kuhn 1987[1962]). Para que uma nova teoria se firme como mais promissora, as
Embora a tendência nas ciências da linguagem não pareça ser a de ‘substituição’, para
filológicos, mas eles passaram a ter, paulatinamente, menos espaço nos chamados
século XIX, na Alemanha, essa tendência à ruptura parece ter sido fortemente acentuada,
uma vez que Schleicher e aqueles que mais tarde fundariam a Escola dos Neogramáticos
em Linguística propuseram não apenas uma nova teoria explicativa dos fatos de
linguagem, mas uma nova disciplina, autônoma, sem ligações de dependência com a longa
uma disciplina histórica. Entretanto, haveria entre elas uma crucial diferença, uma vez que a
Linguística estaria destinada a reconstruir a evolução interna das línguas, com base em ‘leis’2
naturais, invariáveis de contexto para contexto, enquanto a Filologia procuraria um elo entre
ênfase sobre os aspectos históricos, tomados de uma outra perspectiva, isto é, a história a ser
reconstruída não seria mais uma história culturalista da língua (filológica), mas uma história
ocorreriam em paralelo com as mudanças culturais e sociais perdia seu lugar de destaque para
Estruturalistas, outra bipartição se verificou no campo. Dessa vez, entre uma Linguística
chamada ‘tradicional’, identificada com o século XIX, de orientação histórica (ou diacrônica),
2
Segundo Koerner, que estudou a obra de Schleicher, este ‘glotólogo’ acreditava que as ‘leis’ fossem válidas
principalmente para o nível morfológico, muito raramente para o sintático e de modo quase improvável para o
estilístico. Era a morfologia o seu principal foco de interesse, tanto assim que é ele quem introduz o termo nos
estudos linguísticos, em 1859, numa clara alusão às ciências naturais nas quais a palavra já era empregada (v.
Koerner 1989:237).
24
tempo, ênfase, sob aspectos diferenciados, das tradições filológica e linguística de estudos da
linguagem no século dezenove. Dos dois pontos de vista, diacrônico e sincrônico, em que,
segundo Saussure, poderia se colocar o investigador, o último passou a ter um certo primado
maioria daqueles que passaram a atuar no campo optaram pela Linguística sincrônica. As
línguas, com cada vez menores referências aos seus desenvolvimentos históricos.
A ruptura que se verificou, portanto, não foi apenas em relação à chamada Linguística
histórica ‘natural’— já que se instaurou uma espécie de cisão interna na disciplina entendida
como ‘Linguística’, que conquistara autonomia no século XIX, estremando uma modalidade
histórica de outra estática, com predomínio desta — mas em relação às tradições, filológica e
tradição de estudos filológicos ‘tradicionais’ (v. Ulhôa Cintra 1939; Basseto 1996), ser
também basilar para a Linguística inaugurada por Saussure e desenvolvida pelas Escolas
Estruturalistas do início deste século, existiria pelo menos uma diferença marcante entre
ambas, qual seja, a de que, em oposição à conjunção proposta pela Filologia entre os estudos
consenso de que a língua, embora tomada como elemento social e cultural, devesse ser
estudada isoladamente.
25
estudos sobre a linguagem locais — entre Filologia e Linguística, teve pelo menos duas
características peculiares.
Primeiramente, a distinção entre as disciplinas não foi aquela proposta por Schleicher
entre uma especialidade cultural e outra natural: sendo ponto pacífico tratar-
estudos de uma língua, ou de um conjunto delas — incluindo, e por vezes destacando, sua(s)
Linguística caberiam as análises mais teóricas que, mesmo se incorporassem dados de língua,
Ser filólogo, assim, não significava estar restrito ao trabalho tradicional de tratamento
dos textos antigos, nem, muito menos, aos pressupostos dos estudos sobre a linguagem do
século XIX. Significava ter como tarefa o tratamento total da(s) língua(s) — incluindo-se aí
suas fases anteriores, sua expressão literária, suas variações contemporâneas, sobretudo as
Em vista disso, por muito tempo, estudos que, de alguma maneira, enfatizaram a
‘Linguística histórica’, entendida como uma espécie de junção de dois termos contraditórios
trabalho com a linguagem, apenas na década de 60 deste século (Altman 1995) começou a se
que passava a ser disciplina obrigatória nos currículos de Letras. Duas décadas antes, Joaquim
Mattoso Câmara Júnior (1904-1970) havia publicado seus Princípios de Lingüística Geral
(1941) que, não obstante a circulação considerável nos meios acadêmicos, não conseguiu
alterar a opção predominante pelo ponto de vista filológico, como esboçado acima, na
da Filologia, com forte apelo histórico, como principal tendência nos estudos sobre a
proposição e resolução de problemas durante toda a primeira metade deste século, já que,
suas pesquisas, os estudiosos que dominavam o cenário dos estudos sobre a linguagem no
país até meados dos anos 60, reconheceram-se preferencialmente como filólogos e atuaram
estudos diacrônicos.
que tais ideias disputaram espaço com as linguísticas, ou ainda, em ambos, algo que teria
ocorria em termos de tendências nos centros Europeus e Norte Americanos, e, mais do que
os meios acadêmicos brasileiros, e a Linguística era, pela maioria dos cientistas, entendida
O filólogo, que trataria das línguas em todas as suas extensões, a partir, sobretudo, de
princípios gerais, “aplicáveis a quaisquer línguas” — para ter uma espécie de norte na
língua” (Silva Neto 1957[1955]:35), uma vez que esses falares, mais conservadores,
mesmo tempo, “sincronia e diacronia” (Silva Neto 1957[1955]:35) — pelo fato de, através de
Com efeito, se admitirmos, ao menos como hipótese inicial de trabalho, que os textos
opinião’ entre os filólogos de sua geração — justamente aquela em que as duas disciplinas
passam a coexistir no contexto brasileiro —, as relações entre as disciplinas que, no Brasil das
A partir dos anos 60, contudo, esse quadro, gradualmente, começou a se inverter no
cenário brasileiro, de tal modo que a Linguística passou a ocupar no país o lugar de excelência
dos anos 60, teorias e práticas de análise, prestigiadas nas décadas anteriores, foram relegadas
29
Parece razoável admitir que essa troca de valores, assim como a persistência anterior
dos valores filológicos, não se devam apenas ao mérito intrínseco das teorias autorizadas, quer
pelo ‘paradigma’ da Filologia, quer pelo ‘paradigma’ da Linguística, mas resultem também de
os membros de uma determinada comunidade científica (cf. Kuhn 1987[ 1962]; Murray
1994).
suas transformações — por meio de escolhas e negociações —, seja no estágio que Kuhn
grupos de cientistas, em Theory groups and the study of language in the North America: a
social history (1994), Stephen Murray testou e propôs uma reorganização do modelo de
antropológica nos Estados Unidos, e verificou em que condições houve a formação de grupos
em torno de um (ou alguns) estudioso(s) e em que outras condições, esforços para a formação
A premissa básica deste teste, naturalmente, era a de que, como sempre podem existir
formas diferentes de conceber e praticar uma ciência, devido ao próprio caráter relativo das
‘verdades’ que ela propõe, para que uma teoria alcance sucesso, é necessário que exista, para
30
maior adequação e, mesmo, da superioridade dessa teoria. Para Murray, um cientista com
ideias promissoras, porém incapaz de articular um grupo em torno de si, dificilmente — pelo
grupo se articule em torno de determinados cientistas — e de suas ideias; fatores estes que,
procurou estabelecer o que era necessário para que um ‘grupo científico’ se consolidasse
enquanto tal, obtivesse respaldo da comunidade de cientistas e, por meio deste, sucesso em
sua área.
que propuseram Griffith e Mullins, é preciso, para formar um 'grupo científico’, ‘boas idéias’,
O primeiro dos três fatores, ‘boas idéias’, foi definido como um conjunto de idéias
aceitas como adequadas pelos cientistas para resolver problemas existentes ou para abrir
novas áres de investigação. Elas devem ser percebidas pelos cientistas como, pelo menos,
modo, seria historicamente relativa e atribuída às ideias pelos próprios pesquisadores e não
por filósofos ou epistemólogos. O que prevaleceria seria o poder de persuasão, não apenas das
Porque sempre há ideias que parecem promissoras, um conjunto de ‘boas ideias’ não
seria, por si só, garantia de reconhecimento por parte da comunidade científica. Embora
necessárias, elas não são suficientes para isso. Sucesso na competição de ideias, para Murray,
das ideias. E formação de grupo dependeria essencialmente de liderança, tanto para produzir
pesquisa das ‘boas ideias’; aprovem as pesquisas efetuadas por outros como competentes e
relevantes para o quadro de trabalho definido. Faz também parte das atribuições da 'liderança
intelectual’ produzir um programa, especificando quais pesquisas devem ser feitas e como
cada pesquisa se ajusta na teoria básica, ou ainda, produzir trabalho que possa ser tomado
Assim como 'boas ideias’, 'liderança intelectual’, apesar de necessária, não seria
suficiente. Um grupo, para ser articulado, não pode prescindir de ‘liderança organizacional',
cujas funções consistem em recrutar novos quadros, viabilizar tempo, fundos e facilidades
para a pesquisa; disponibilizar veículos para divulgá-la; criar espaços de atuação acadêmica
O líder organizacional não precisa ser um cientista atuante, condição essencial para ser
intelectual e organizacional, mas pode haver, também, um cientista diferente para cada um
dos papéis. É possível, ainda, que haja um conjunto de lideranças intelectuais e outro de
conjunto de cientistas — acabaram por não constituir grupos e, em função disso, por não
científico. Entre estes, dois estágios que podem ser tomados como preliminares e dois outros
existência de poucas relações entre os pesquisadores, pela elaboração rara de trabalhos em co-
autoria e pela ausência de ataque sistemático a um problema de pesquisa bem definido. Nesse
estágio não haveria nem treinamento específico, nem coordenação de esforços individuais
associado a algum sucesso intelectual ou social dos cientistas do ‘estágio normal' possibilita a
formação rudimentar de uma ‘rede’ de pesquisadores, na qual costuma haver ligação estreita
ocorre a transição para o estágio denominado cluster. Neste terceiro estágio, que apresenta
altos níveis de coesão entre os membros, grandes quantidades de pesquisa são produzidas. Já
existe, de fato, um grupo, que geralmente possui alguns profissionais conceituados e vários
estudantes graduados.
aceitação ou rejeição de seu trabalho por editores e referees dos periódicos especializados —
determina se ele se tornará uma ‘especialidade de elite’, aceita e assimilada pelas instituições
começa com os estudantes conquistando sucesso próprio. É o estágio acadêmico; a partir dele,
ideal. Na verdade, eles não seriam tão nitidamente limitados. Em decorrência disso, seria
elementos relevantes de uma história científica concreta que não se ajustem ao modelo, assim
existência de apenas ‘um centro’ articulador das atividades dos membros do grupo, foram
Para ele, a existência de uma ‘base institucional’ poderia ser decisiva apenas para o
destino das ideias, já que tornaria um conjunto delas mais disponíveis para os receptores,
importante instrumento para a sua divulgação e posterior consolidação. Não seria, porém, uma
garantia de sucesso na formulação de ideias, pois, como a própria história das ciências
comprova, diversas ideias excelentes provieram do trabalho realizado por cientistas afastados
de grandes instituições.
como esse, que requer encontros regulares, se beneficiaria muito com a disponibilidade de
‘Carisma’, para Murray, poderia ser útil para detonar a formação de grupos, mas não
se sustentaria como uma “dieta permanente”. Seria uma ferramenta importante para alcançar
uma posição de liderança, mas não uma forma eficiente de administrá-la, posto que, o que
35
normalmente se verifica com os grupos é que, com o passar do tempo e com o sucesso, a
partir de critérios mais ‘objetivos’, que levam em conta não tanto o carisma, mas
essencialmente a eficiência.
Quanto à existência de ‘um único centro’, Murray não encontrou, nos grupos
coerentes que sobreviveram (e têm sobrevivido) através de várias gerações. O que realmente
importa é liderança, e a existência de um único centro não garante isso, nem a existência de
mais de um o prejudica.
grupo difícil: grupos interdisciplinares não seriam exclusivamente desenhados por uma
grupo. Seria, além disso, um fator que poderia desestabilizar até mesmo os grupos já
Se, para Murray, os fatores citados acima devem ter sua relevância
circunstancializada, caso por caso, ‘boas ideias’ e ‘liderança’ são fundamentais para a
diferenciado. Se não o fosse, as posturas de seus componentes em face da tradição não seriam
opostas.
primeiro modelo, ‘funcional’, por um outro, denominado ‘modelo de conflito’, que daria
conta dos fatores que propiciariam a opção pela continuidade ou pela ruptura científica. A
percepção dos cientistas de si mesmos e de suas teorias. O que passa a valer não são os feitos
revolucionário) que os cientistas têm de suas atividades e o modo como se posicionam diante
Após avaliar o poder explicativo das variáveis propostas por Griffith e Mullins como
decisivas para a escolha de retórica de um grupo, quais sejam, a ‘idade profissional’ dos
cotejo delas com os dados obtidos nos estudos de caso, Murray conclui que a variável ‘elite’
não traria consequências diretas para a escolha de retórica, já que existem rupturas (e
comprometimentos com ela — que tenha acesso a reconhecimento, tenderá a produzir uma
retórica de continuidade.
continuísta.
uma rejeição não razoável e bloqueio de acesso ao reconhecimento de seu trabalho é que
considerarem a rejeição aceitável, provavelmente não haverá retórica de ruptura. Nesse caso,
será simplesmente abandonado. Somente quando a rejeição não é considerada justa, o grupo
tende a criar suas próprias contra-instituições e periódicos e a eleger suas próprias autoridades
legitimidade.
reconhecimento’. Sua proposta deixa implícito que maior prestígio não está relacionado a
‘melhores’ ideias — se é que é possível avaliá-las assim. Outras forças, além das estritamente
fracasso na competição de ideias. Nesse sentido, essa proposta vem ao encontro da concepção
de que as teorias científicas não têm apenas um valor inerente, mas também um valor sócio-
historicamente construído.
o modelo de Murray torna-se bastante útil para interpretarmos aquelas relações, sobretudo a
ao que tudo indica, constituíam o único ‘grupo científico’ (de fato consolidado) dessas duas
Por outro lado, não nos parece possível falar em ‘grupo’ linguístico e, possivelmente,
uma das bases explicativas do quadro definido pela supremacia das ideias e do grupo
filológicos.
imprescindível para o sucesso de um ‘paradigma’, Serafim da Silva Neto parece ter sido um
dos responsáveis pelo sucesso da Filologia no período, uma vez que se destacou como uma
CAPÍTULO 2
em Serafim da Silva Neto um de seus ‘exemplares’. O filólogo, que iniciou precocemente sua
carreira, em 1936, com 19 anos, desempenhou papel de destaque no contexto dos estudos
compondo uma obra extremamente profusa e variada, fato que sinaliza ampla recepção às
brasileiro de então. Em seu curto período de vida, 43 anos, e carreira de rápida ascensão,
Silva Neto mais detalhadamente no capítulo 4. O que aqui importa frisar é que, mesmo que
curta, a trajetória intelectual de Silva Neto parece ser um modelo dos padrões de
42
cientificidade cultivados como ideais no período que definimos como quadro principal (cf.
2.2 Periodização
Do ponto de vista privilegiado por esta dissertação, o início da década de 1940 seria
escrita por aquele que mais tarde seria considerado o ‘pai’ da Linguística brasileira (Pinto
dos estudos filológicos, já estabelecidos no país, impulsionado, entre outros fatores, pela
da ciência:
3
Princípios de linguística geral (1941, Rio: Briguiet), de Mattoso Câmara, anteriormente publicada nos volumes
da Revista de Cultura (Vozes), a partir de 1938, com o título de Lições de linguística geral (cf. França 1996a).
4
Em São Paulo, fundou-se em 1934 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP; no Rio, em 1935, a
Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal, extinta pelo governo Vargas, que
inauguraria em seu lugar, em 1939, a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.
43
O fato de existirem pelo menos duas disciplinas, com status acadêmico diferenciado
como objeto, pode ser tomado como um dos fatores que apontam para o caráter ‘transitório’
do período. Nele começaria a tomar forma a distinção entre dois programas de investigação
que procuraria integrar o estudo da língua em um campo mais amplo, o de estudo da ‘cultura’,
inclusive em suas manifestações literárias, pendendo mais para uma abordagem histórica do
objeto língua.
essa década ser consensualmente apontada como a de início da coexistência desses dois
De modo análogo, a década de 1960 foi fixada como marco cronológico limite: ela
linguagem.
Embora nossa análise desse período tenha propiciado comentários que ultrapassam o
com seu auge nos anos 40 — e, por outro, o dos inícios de sua paulatina perda de prestígio
período de 1940 a 1960, em seus traços ‘internos’ — isto é, quanto às formas de concepção e
informacionais.
época, ou, nos termos de Murray (1994), o ‘conteúdo paradigmático’ da Filologia Brasileira.
principalmente o carioca, procuramos levantar variáveis que afetassem os agentes (Silva Neto
toda a produção acadêmica publicada de Silva Neto — bastante variada e composta por 130
textos — pudesse ser relevante para a depreensão dos modos preferenciais de trabalho
científico filológico, entre 1940 e 1960. Em função disso, procuramos, no primeiro momento
Em um deles (Tl), elencamos os livros e opúsculos, que, por sua própria natureza,
análises autônomas, enquanto obras de maior fôlego. Este grupo compôs-se de 27 títulos. A
Tabela I os reúne:
Faculdade
Guia para estudos dialetológicos .
1955 Florianópolis Catarinense de
[2.ed., 1957, Belém: INP da Amazônia ]
Filosofia
Livros de
1957b História da língua portuguesa Rio de Janeiro
Portugal
Bíblia medieval portuguesa I. Histórias
1958 d’abreviado Testamento Velho, segundo o Rio de Janeiro INL
mestre das histórias escolásticas
Total 27 documentos
dos trabalhos.
A Tabela II os reúne:
48
Tabela II: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos artigos e ensaios
31:48-60;
“Diferenciação e unificação do
1942d Revista de Cultura 188:63; 189:127;
português no Brasil”
190:185
Boletim de Filologia
1946f “A morte de Damião de Góis” I:29-30
[Rio de Janeiro]
“Um problema à margem de Boletim de Filologia
1946g I:33-36
Fernão Lopes” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947ª ‘Contato lingüístico” VI:67-81
[Rio de Janeiro]
‘Nota sobre a cronologia dos Boletim de Filologia
1947b VI:82-85
textos medievais” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947c “Apontamentos lexicográficos” VI:86
[Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947d “Apontamentos lexicográficos” VII:143-148
[Rio de Janeiro]
“Centenário da morte de Boletim de Filologia
1947e VII:149
Francisco Adolfo Coelho” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947f “Bíblia medieval portuguesa” VII:139-142
[Rio de Janeiro]
“Gerações literárias no século Boletim de Filologia
1948ª VIII:225-229
XIX” [Rio de Janeiro]
“A propósito dos nomes do Boletim de Filologia
1948b VIII:231-232
Profeta” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1948c “Textos antigos portugueses” IX:233-248
[Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1949ª “Estudos indígenas” IX:32-39
[Rio de Janeiro]
“A unidade lingüística Boletim de Filologia
1949b IX:.41-45
brasileira” [Rio de Janeiro]
1949c “O dialeto crioulo de Surinam” Cultura 2:57-70
“A propósito de um manuscrito Boletim de Filologia
1949d IX:47-51
medieval” [Rio de Janeiro]
?
Separata da
“Francisco Adolfo Coelho e a [Não localizado;
1949e Miscelânea Adolfo
filologia portuguesa” referência em Silva
Coelho I [livro]
Neto 1960a]
“Três inscrições do latim
1949f Humanitas III:67-80
vulgar”
1950ª “Falares crioulos” Brasília V:3-28
Separata do
Suplemento
“A língua portuguesa no Brasil
1950b Bibliográfico da 342-368
(1939 - 1948)”
Revista Portuguesa de
Filologia
50
Revista Brasileira de
1960b “Regra de São Bento” V. 1:21-46
Filologia
Total 58 documentos
O terceiro (T3) apresentou diferenças mais qualitativas em relação aos dois primeiros
— na medida em que o formamos com os textos sobre obras de outros autores (prefácios, em
reunimos resenhas, obituários e os comentários críticos (41 textos), isto é, avaliações sobre
autores e obras do período. Nos dois casos, mais do que produzir, o autor julgou
textos.
Tabela III: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos prefácios publicados
T3: Prefácios
Ano Obra Prefaciada Páginas
Prefácio a Agostinho de Campos. Futuro da língua
1948 7-23
portuguesa .Rio de Janeiro
Prefácio a Antenor Nascentes. Dicionário Etimológico da
1952 língua portuguesa II (nomes próprios). Rio de Janeiro: v-vii
Francisco Alves/Acadêmica/Livros de Portugal/São José
Prefácio a Sílvio Elia. Orientações da lingüistica moderna.
1955 9-16
Rio de Janeiro: Acadêmica
Prefácio a Rocha Lima. Gramática normativa da língua
1957 5-7
portuguesa. Rio de Janeiro:Briguiet & Cia.
Total 4 documentos
52
Tabela IV: Levantamento e classificação por ordem cronológica das resenhas e obituários
Total 41 documentos
vislumbram, por um lado, suas concepções do que isso devesse ser (T3 e T4) e, por outro, as
suas realizações ou fazeres efetivos neste campo (T1 e T2). A distribuição teve como
propósito facilitar a análise destes dois níveis complementares, o das concepções e o das
práticas — propósito, aliás, mantido (v. capítulo 4) após as redefinições do material a ser
efetivamente considerado.
Os grupos T1, T2, T3 e T4 que compõem as Tabelas I, II, III e IV, portanto, reúnem,
volumosa produção de Silva Neto. Com efeito, o grupo constituído pelos livros e opúsculos
fornece uma amostragem expressiva dessa produção, pois, além de sintetizar os principais
núcleos de interesse do autor (v. capítulo 4), melhor desenvolvidos nessas obras de maior
publicadas, notas e até mesmo resenhas dispersas em periódicos, e consideradas, pelo próprio
autor, como as mais relevantes. Esses dois livros fornecem, assim, de acordo com própria
visão de Silva Neto, uma amostragem representativa de seus trabalhos ‘avulsos’ (que
de amostras dos documentos (ou seja, de T1, T2, T3 e T4) também quanto aos conteúdos.
Com essa comparação, verificamos que o número de títulos não corresponde exatamente à
quantidade de textos diferentes, visto que o autor reaproveitou-os com frequência, refundindo
Como o objetivo central da pesquisa não era a análise exaustiva da produção publicada
1940 e 1960, optamos pela consideração dos textos reunidos em T1, ou seja, livros e
Brasileira5.
Dado que as obras sofreram várias reedições, algumas delas póstumas, visando
preservar a versão ‘mais acabada’ das ‘ideias’ de Silva Neto, optamos pelo trabalho com a
última edição, revista pelo autor, de cada um dos livros/opúsculos ou edição a ela equivalente.
O mesmo procedimento foi adotado em relação a alguns títulos, pois, por exemplo,
Que é latim vulgar? e A formação do latim corrente, publicados como opúsculos em 1941(v.
Tabela I, 1941b e 1941c), foram republicados como capítulos das Fontes do latim vulgar (v.
Como adotamos o texto da última edição das Fontes, consideramos, por conseguinte,
nela, também as últimas edições daqueles dois opúsculos que passaram a ser capítulos desta
obra. Em outros termos, ao tomarmos a última edição das Fontes do latim vulgar, nos
desobrigamos de considerar também aqueles dois opúsculos, já que a última versão deles
apresentada por Silva Neto foi sob a forma de capítulos das Fontes.
posto que o texto, segundo o próprio autor, muito modificado e acrescido, veio a dar origem,
que o autor comentou obras/textos mais brevemente, sem discutir questões linguísticas. O
5
Para uma análise da produção de Silva Neto publicada em periódicos, ver a dissertação de Henriques 1993.
57
livro publicado em 1940 (Tabela I), que também reúne artigos, foi considerado integralmente
e como um único texto, dada a grande aproximação entre cada uma das partes que o
constituem.
O didático Pontos de literatura (com antologia luso-brasileira. Para as três séries dos
cursos clássico e científico), Tabela I, 1945, por sua própria natureza, afasta- se do objetivo
informações contextuais que apresenta, foi deslocado para o segundo corpus (v. item 2.3.2
denominamos T1, definido como principal suporte informacional dos valores intelectuais do
Como tomamos unitariamente cada um dos textos ‘avulsos’ reunidos nas antologias
Filologia Brasileira, entre 1940 e 1960, o conjunto de textos elencados na Tabela V a seguir:
número
Local e Casa
Referência Título Páginas de
Publicadora
páginas
58
Niterói: Gráfica
1940 Miscelânea filológica Dias 1-62 62p
Vasconcelos
Niterói:Gráfica
Divergência e convergência na
1941 Dias 1-56. 56p
evolução fonética
Vasconcelos
Mestre André de Resende. A santa 217p
vida e religiosa conversação de (texto,
Frei Pedro. [Edição Fac-similada do Rio de Janeiro: introdução
1947 1-217
único exemplar conhecido, Dois Mundos e notas,
acompanhada de transcrição, sem fac-
introdução e notas de Silva Neto] símiles)
Diálogos de São Gregório. Fasc. I.
[Edição crítica organizada e Coimbra:
1950 1-67 67p
prefaciada por Serafim da Silva Atlântida
Neto]
Rio de Janeiro:
Conceito e método da filologia.
1951 Organização 1-92 92p
[Com Chaves de Melo]
Simões
“Apontamentos lexicográficos”.
1960m Idem Idem 203-227 24p
“Problemas do português da
1960o América”. Idem Idem 247-274 37p
Rio de Janeiro:
1977[1957] História do latim vulgar. 2.ed. Ao Livro l-255p 256p
Técnico
Manual de filologia portuguesa.
Rio/Brasília:
1988[1957] História, problemas e métodos. 4. 1-279 280p
ed. Presença/INL
totalizaram 3647.
Sendo o critério organizacional básico tomar cada obra em sua última versão revista
pelo autor, para a quantificação de nossos dados, analisamos em separado o opúsculo A língua
História da língua portuguesa, a partir de sua segunda edição (1970[1957]), que, por sua vez,
Todas as referências às obras de Silva Neto encontradas nos demais capítulos deste
Serafim da Silva Neto, utilizamos materiais variados publicados em periódicos da época (tais
prefácios e apresentações a obras de Silva Neto, bem como os escritos pelo autor para obras
Além desses, consideramos um opúsculo e dois textos avulsos de Silva Neto referentes
Matos Peixoto. Foram, ainda, considerados documentos inéditos, constituídos por 8 fitas com
pertencentes à chamada primeira geração de linguistas), que fazem parte do acervo do Projeto
O opúsculo Rumos filológicos (v. Tabela I, 1942c), referente à polêmica mantida pelo
autor com Matos Peixoto, foi utilizado exclusivamente neste segundo corpus, do qual
referente à polêmica com Sá Nunes (v. Tabela V, 1956q), que integra os dois corpora, ou
seja, este relativo ao contexto e aquele primeiro, relativo aos conteúdos intelectuais do
Os motivos para considerar o primeiro texto apenas para a detecção das ‘redes’ de
argumentos linguísticos nele apresentados pelo autor encontram-se também naqueles textos
selecionados para a análise dos aspectos cognitivos, tornando redundante sua reavaliação
nesta obra;
2) este texto, assim como “Etimologia e ortografia”, contém uma certa quantidade de
filólogos do qual Silva Neto fazia parte, interessando-nos, portanto, mais em relação a esse
Tabela VI: Suportes informacionais para a detecção de variáveis pertinentes aos agentes,
Total 30 documentos
65
na Tabela V:
Como nossa primeira forma de aproximação das obras, com o propósito de delinear as
principais áreas de interesse do autor, associamos os textos selecionados como corpus dessa
aspecto(s) focalizados pelo autor em cada trabalho. Assim, por exemplo, a História da língua
portuguesa (1970[1957]) contém um longo trecho dedicado à história do latim, mas, como
esta é inserida na obra para contextualizar aquela — sua principal ênfase —, o livro entrou no
grupo-tema 5, referente à história da nossa língua (v. Tabela VII a seguir). A mesma linha de
raciocínio nos levou a inserir as Fontes do latim vulgar. O Appendix Probi (1956a[l938])
entre os textos relativos ao latim vulgar, não obstante a detalhada edição crítica do Appendix
O mesmo critério foi adotado para as categorias material, recorte, orientação (v.
itens b, c e d a seguir), ou seja, apenas foi destacado o que era central na organização dos
trabalhos.
Número de
Grupos-Tema Textos considerados
páginas
1: História e problemas do
1956a, 1956e, 1977[1957] 522
latim vulgar
2: O português arcaico e a 1947, 1950, 1956k, 1956l, 1956m, 1956n,
questão das edições de 1956o, 1956p, 1956r, 1958, 1960j, 959
textos antigos 1960l,1960q, 1960r
3: Ideias/autores autorizados
1951,1956f, 1956g, 1956h, 1956i, 1956s,
pelo paradigma (discussão e 690
1960a, 1960b, 1988[1957]
difusão)
4: Variação linguística,
1956b, 1956c, 1956d, 1957a, 1960d, 1960e,
língua portuguesa no Brasil 616
1960h, 1960i, 1960o, 1960r, 1960t, 1963
e Dialetologia
5: História da língua
1940, 1941, 1970[1957] 698
portuguesa
6: Questões vocabulares e/ou 1956j, 1956q, 1960c, 1960f, 1960g, 1960k,
162
etimológicas 1960m, 1960n, 1960p
Dito de outra maneira, organizamos, tal como representa a Tabela VII, os 50 textos
que compõem o nosso corpus em seis grupos temáticos (G1, História e problemas do latim
vulgar; G2, Português arcaico e edições de textos antigos; G3, Ideias/autores autorizados
os principais campos explorados pela produção acadêmica de Silva Neto. Este quadro
b) O objeto material analisado na obra, cujas subcategorias foram teoria (T), quando
c) A orientação dada ao trabalho, que pode ser gramatical, se o objetivo do texto for
aspectos delas; histórica, se realizar um estudo diacrônico de formas de uma língua natural ou
reflexões teóricas acerca da história linguística. Incluíram-se sob esta última categoria todos
os trabalhos que trataram de história, mesmo que externa, das línguas (como, por exemplo, a
d) O recorte ou nível de análise privilegiado pela obra, que poder ser fonético-
foram consideradas as ‘combinações’, isto é, os casos em que mais de uma delas apareciam
como ênfases dos trabalhos. Assim, por exemplo, em relação à categoria recorte, algumas
obras tiveram suas análises resultando na indicação morfo/fono/lex, já que os três níveis
excluídos esses casos especiais, nossa postura foi a procurar destacar o principal foco,
pelo autor.
Identificar objeto material, orientação e recorte foi relevante para o delineamento dos
modos de trabalho com a linguagem do autor. A análise dos documentos por essas categorias
Como tínhamos também a intenção de delinear o nível das ideias, além das categorias
acima, foi pertinente analisar o estatuto atribuído pelo autor às disciplinas Filologia e
debate que nos interessa mais de perto. De fato, as relações entre estas disciplinas e suas
de modo que seu estudo nos forneceu alguns indícios de como os filólogos — aqui
e a disciplina concorrente.
análise como outras reflexões/conceitos. Estes dados nos forneceram as ideias do filólogo
estatutos/conceitos de
F: “Por mais nobre que seja a defesa das formas vernáculas, a Filologia é outra
coisa. Para ela a língua é uma expressão da cultura e, como tal, a estuda. Interessam-lhe,
assim, os falares das sociedades não alfabetizadas tanto quanto a expressão artística dos
grandes escritores.”(p. 15)
“Como se vê, é bem larga e extensa a seara da Filologia Portuguesa: abarca todos
os falares regionais de Portugal, Brasil e Colônias, abrange toda a vasta literatura em
língua portuguesa - dos Cancioneiros ao século XX -, compreende todos os vastíssimos
problemas culturais e ergológícos relativos ao léxico.
Cumpre-nos, ainda, encarar como intimamente relacionadas a história da língua e
a história da literatura...”(pp. 16-17)
F/L (por Chaves de Melo):
“Rigorosamente, há que distinguir entre Lingüística Portuguesa e Filologia
Portuguesa. Numa discriminação apurada, teremos de afirmar que o objeto formal da
69
Filologia é estabelecer, explicar e comentar textos, tarefa à primeira vista fácil e pobre,
mas que, na verdade, exige larga soma de conhecimentos e grande acuidade mental. A
fixação dos textos e sua exegese reclamam conhecimentos lingüísticos, paleográficos,
históricos, mitológicos, numismáticos, heráldicos, religiosos, de Poética, e outros mais.
Então, propriamente, Filologia Portuguesa seria o estudo largo e profundo dos textos de
nossa língua para atingir em cheio a mensagem intelectual ou artística nele contida. Já a
Lingüística Portuguesa seria o estudo da língua portuguesa como tal, como produto
histórico-social realizado de mil maneiras através do tempo e do espaço, sendo que todas
essas mil facetas constituem objeto de interesse igual para o lingüista.” (p.55).
Outros conceitos/reflexões
[língua e fala]: “A ‘langue’é um sistema, é um fato social exterior ao indivíduo e que se
lhe impõe; a ‘parole’ é a educação da ‘langue’ pelo indivíduo: tem, pois, caráter
psicológico.”(p.29)
[LP no Brasil]: “Sois [Chaves de Melo] também de opinião que o português do Brasil
apresenta ‘notável unidade relativa, apreciável uniformidade’... e que o
‘conservadorismo’ é um dos seus caracteres mais frisantes...” (p. 25)
as principais opções de Silva Neto na elaboração dos seus trabalhos. A intenção foi a de
selecionamos tudo o que, qualitativamente, teria dado forma às reflexões do autor; em outros
termos, os conceitos centrais na constituição de sua obra, tomada ‘globalmente’; os que foram
mais reiteradamente defendidos pelo autor; os que mereceram, mais insistentemente, sua
atenção, vindo a ser, assim, no nosso entender, suas principais ‘ideias’. A seleção, neste caso,
foi até certo ponto subjetiva — o que talvez tenha acarretado ausências ou excessos — mas
não aleatória, já que baseada no exame minucioso das obras e consistente com o quadro de
trabalho construído.
70
menos rigidamente fixados do que aqueles estabelecidos para a análise da obra de Silva Neto
Basicamente, a ele aplicamos o princípio da ‘triangulação’ (Murray 1994), que vem a ser o
confronto da mesma informação em pelo menos três fontes diferentes, que, não apresentando
contextualizações e para informações biográficas que permitissem situar o autor como um dos
trabalho, sobretudo nos capítulos 3 e 5, como índices comprobatórios dessa condição de Silva
Três últimas notas em relação aos procedimentos adotados para a elaboração deste
estudo:
diferenças consideráveis.
Muitas das obras citadas nesta dissertação apresentam, ao lado da data da edição que
Sempre que nos foi possível dispor das informações, fizemos acompanhar a primeira
citação de cada antropônimo — quando esta se referia à pessoa e não às suas obras— as datas
vezes, para efeitos de fixação, como, por exemplo, em ‘'Serafim Pereira da Silva Neto (1917-
1960)”.
72
CAPÍTULO 3
Cientistas Exemplares
“Todo investigador, por mais original que seja a sua obra, está
preso ao seu tempo e às idéias em voga na época de sua formação
universitária. Os eruditos, mais ainda que os artistas, estão
indissoluvelmente ligados aos mestres, cujos métodos por vezes
renovam, mas cujas idéias absorvem, desenvolvem ou submetem a
uma crítica rigorosa e fecunda. Enfim, é certo que todo estudioso
está muito dependente das doutrinas que aprendeu na sua
mocidade.”
(Silva Neto 1960a:19)
73
Cientistas Exemplares
bem como sobre as formas de condução do trabalho científico com esse objeto que tomamos
compreendido entre as décadas de 1940 e 1960, já faziam, nesta época, parte de uma tradição
Essa tradição, em nosso país, desenvolvia-se, até os inícios dos anos 40, fora dos
as questões da língua.
Para esta condição inicial, era decisiva a inexistência de cursos superiores de Letras,
que sinalizava, por um lado, um não reconhecimento oficial da especificidade dos problemas
com que lidavam tais estudiosos e, por outro, a constituição mais ou menos aleatória, posto
que fruto de autodidatismo, de sua competência para lidar com tais problemas.
deste século no Brasil apresentavam-se apenas tenuamente configurados, de tal forma que
parece ter cabido à geração do autor o papel de transformadora desse conjunto de estudiosos
geração de Silva Neto, cujos representantes, assim como os predecessores, não provieram de
cursos de Letras, começou a produzir conhecimento ao mesmo tempo em que surgiam, com
púlpitos onde precisamente se devem debater os grandes temas da Ciência e os centros onde
intelectuais na área, seja pela criação de associações específicas da classe (como a Academia
74
instituições).
de filólogos dos anos 40 no Brasil (seção 1, A Geração de 20), passando pelo próprio grupo
de Silva Neto, que desenvolveria maior consciência de sua posição e tarefas no contexto dos
estudos sobre a linguagem no país e definiria, mais claramente, seus ‘pares’ científicos (seção
delinearmos o perfil acadêmico ‘exemplar’ de Silva Neto, procurando pôr em relevo traços
3.1 A Geração de 20
3.1.1 Representantes
É possível recuperar parte do contexto que precede a geração de Silva Neto a partir do
como “mestres”, que, nas primeiras décadas deste século, trabalhando isoladamente,
acabaram por lançar bases para a constituição de uma tradição de trabalho com a linguagem
no Brasil.
75
Said Ali Ida (1861-1953); Amadeu Amaral (1875-1929); Otoniel Mota (1878-1951); José
1967); Antenor Veras Nascentes (1886-1966); Augusto Magne S.J. (1887-1966); Ismael de
Lima Coutinho (?-1965), Clóvis do Rego Monteiro (1898-?)6, ainda que individualmente,
com o fato concreto de terem sido, em alguns casos, professores dos representantes da
geração seguinte — para a articulação posterior de um grupo (do qual alguns deles ainda
outras palavras, já nos anos 20, eram lançadas, por estes estudiosos que isoladamente
empreendiam trabalhos científicos com a linguagem, bases para a configuração do grupo que,
nas décadas posteriores, conferiria ares profissionais à tarefa de tratar das línguas,
principalmente a portuguesa, em todas as suas facetas internas, bem como em suas interfaces
3.1.2 Formação
Parece existir algum consenso entre as crônicas sobre a produção linguística brasileira
6
A rigor, cronologicamente, esses autores poderiam compor duas ou até três gerações. O fato de tomá- los
como uma única liga-se ao de terem sido referências diretas da geração seguinte, a de Silva Neto, que mais
de perto nos interessa. Parece ser uma característica da ciência no século XX, a velocidade com que
surgem novas gerações, sem que as anteriores se afastem dos processos de condução da ciência e da vida
académica. Em vista disso é que, por exemplo, um estudioso como Said Ali, nascido em 1861, continua a
ter um papel relevante no contexto científico-acadêmico dos estudos da linguagem no Brasil quando
outros, como Sousa da Silveira (22 anos mais jovem), obtêm grande prestígio. O mesmo pode ser dito em
relação aos anos 40, em que esses dois grupos-gerações e mais o de Silva Neto encontram-se atuantes no
mesmo contexto, não obstante os 56 anos a separar, por exemplo, Silva Neto e Chaves de Melo de Ali, ou
os 34 a separá-los de Silveira.
76
àqueles que, sem sair do seu país, pretendessem se dedicar às questões linguísticas, construir
por si próprios sua competência científica nesta área. Por conta disso, nossos primeiros
Foi somente naquele século que, com a fuga de Dom João VI para o Brasil (1808),
passado o surgimento dos seguintes cursos e escolas oficiais: 1808 — Academia Real Militar,
Janeiro; 1809 — foram acrescentados Cursos de Medicina aos Cursos de Cirurgia da Bahia e
que formaria, além de oficiais, engenheiros civis e militares; 1812 — Curso de Arquitetura na
Bahia; 1814 — Agricultura, no Rio de Janeiro; 1816 — Escola Real de Ciências, Artes e
1817 — Química na Bahia, Desenho e História, Retórica e Filosofia em Minas Gerais; 1827
— Curso de Ciências Jurídicas e Sociais de São Paulo (a partir de 1854, Faculdade de Direito
de São Paulo); Curso de Ciências Jurídicas e Sociais de Olinda (a partir de 1854, transferido
daquele Estado; 1874 — Escola politécnica do Rio de Janeiro (originada na Academia Militar
(1810), transformada em Escola Militar (1842), Escola Central (1858) e, finalmente, Escola
7
Ver, entre outros, Nascentes 1939; Elia 1975[1967?]; Mattoso Câmara 1972; Coscriu 1972; Naro 1972;
Altman 1995; França 1998a.
77
Politécnica); 1875 — Escola de Minas de Ouro Preto (MG); 1893 — Escola Politécnica de
São Paulo.
alteradas ou expandidas durante o início deste século, não deve causar estranhamento o fato,
por exemplo, de João Ribeiro ter cursado alguns anos de Medicina e ter se formado em
Direito; de Sousa da Silveira ter sido um engenheiro, e Antenor Nascentes e Clóvis Monteiro,
advogados.
A formação, diversificada, do ‘homem de Letras’ não estava nem mesmo restrita aos
cursos superiores da área de ‘humanidades’ — aqui entendida em seu sentido lato, incluindo,
por exemplo, a formação em Direito ou Artes, mais distanciadas das de caráter ‘natural’ e
para se efetuar o trabalho de tratar a linguagem, estando, portanto, todo o indivíduo ‘culto’, a
princípio, apto a efetuá-lo, quanto a existência de um ensino superior que, mesmo quando
dirigido a áreas mais técnicas, como a de Engenharia, teria uma acentuada característica
duas hipóteses, somadas a inclinações pessoais, sejam importantes subsídios para entender a
ao que tudo indica, marcado por uma despreocupação oficial com o desenvolvimento das
‘ciências desinteressadas’ e com o seu ensino. Os interesses, de fato, pareciam ser mais
...o primeiro curso federal de Letras é de 1940 [sic] e foi fundado com
a Faculdade Nacional de Filosofia, nem era de Letras. Aí é que
começou a formação de professores de um modo geral, porque até
então era a formação de médicos, advogados; não havia cursos para
professores [...]. (Elia, em depoimento pessoal inédito)
78
oferecida por instituições religiosas: Otoniel Mota, por exemplo, além de ter frequentado a
Faculdade de Direito de São Paulo, concluiu o curso de Teologia oferecido pela Igreja
Presbiteriana deste Estado (1900), recebendo ordens sacras no ano seguinte (cf. Silveira
Bueno 1951)8.
sobretudo nos períodos mais afastados dos anos 30, os estudiosos da linguagem destacavam-
Existiram alguns paliativos para esta situação. No Rio de Janeiro, por exemplo, o
Colégio Pedro II, modelo de instituição de ensino no país e de onde sairiam alguns nomes
secundária regular de seus alunos (ou seja, 5 anos), fornecia, aos que lá permanecessem por
mais um ano, um curso que hoje chamaríamos de “técnico” em Letras, que os tomava
‘bacharéis’ nesta área (Ranauro 1997). A este, normalmente, seguia-se um dos cursos de
Silveira Bueno (1951) dá, ainda, notícia de uma Faculdade Paulista de Letras, que
funcionou nesta capital entre 1931 e 1934 e na qual Otoniel Mota teria atuado como professor
de língua e literatura gregas. Era, no entanto, uma instituição livre de ensino — uma
faculdade oficial só surgiria em 1934. É possível que também em outros Estados hajam
existido faculdades como a Paulista, contudo, nosso levantamento, até o momento, não nos
permite afirmá-lo.
8
Augusto Magne,francês, era padre jesuíta, mas formou-se na Itália, vindo para o Brasil posteriormente (cf.
Elia 1975).
79
Porque não existiam cursos de terceiro grau em Letras, aqueles que atuaram como
Normais”, que formavam os professores do curso primário, sobretudo da rede oficial, tinham
uma dessas instituições e, ainda mais, ser o catedrático de uma disciplina, significava
Escolas Normais que faziam as vezes das nossas atuais Faculdades e entre eles destacava-se o
Até onde investigamos, Said Ali teria lecionado no Colégio Militar; Otoniel Mota, no Ginásio
Normal do Distrito Federal; Said Ali (História do Brasil), João Ribeiro (História Geral),
linguísticas em jornais. Said Ali, que colaborou em vários números do Jornal do Comércio,
80
assim como Otoniel Mota em O Estado de S. Paulo e Folha da Manhã, ou ainda João Ribeiro
século no Brasil, fica-se com a impressão de que as questões filológicas e mesmo gramaticais
despertavam maior interesse do público em geral do que atualmente. O jornal A Manhã, por
áreas afins, o “Letras e Artes”. Este mesmo periódico, inclusive, deu lugar à polémica,
espalhada também pelos diários A Noite e Jornal do Comércio, e pela Rádio Nacional,
Isso sugere que as questões sobre a língua eram uma preocupação do homem culto
‘comum’ e, mais do que isso, que os problemas e a metalinguagem utilizada para abordá-los,
dado o menor grau de especialização da(s) disciplina(s) neste momento, eram mais acessíveis
a este homem —- o que não ocorre atualmente, não apenas quando levamos em conta esse
‘homem culto comum’, como também quando consideramos grupos diferentes de estudiosos
da linguagem: o grau de especialização é tão alto que por vezes se toma impraticável, por
versa, ficando, na maior parte das vezes, os problemas e os códigos restritos aos ‘iniciados’,
Esses filólogos autodidatas dos anos 20 foram, sem dúvida, autoridades linguísticas do
período, condição reiterada pelas atividades citadas acima, assim como, por exemplo, por
episódios como convocações para fazerem parte de comissões oficiais de ortografia9, como
9
A questão ortográfica foi um tema relevante para os estudiosos da época, que debatiam a pertinência de
simplificá-la, assim como a de uniformizá-la ou não em relação a Portugal (discussão que persiste). Até
meados dos anos 40, é possível encontrar variações ortográficas expressivas entre textos e autores diferentes.
O tema ‘reforma’, em vista disso, acendia grandes polêmicas e motivava alguns filólogos a publicar manuais
81
foi o caso de Magne, Nascentes e Sousa da Silveira em 1936 (cf. Chaves de Melo 1940:37),
ou para ocuparem cargos políticos, como Ismael de Lima Coutinho, que em 1946 assumiu o
A conquista desse status de especialista não era feita a partir de instrução superior
problemas.
Geração de 20, contam-se a edição de textos antigos (Said Ali, Sousa da Silveira, Magne, por
exemplo); a gramática (histórica ou normativa) da língua ou de partes dela (João Ribeiro; Said
estilística (Said Ali; Souza de Silveira; Oiticica); crítica/história da literatura (João Ribeiro;
Monteiro).
voga à época. O conhecimento, mesmo que não uniforme, existia: alguns estudiosos, por
iniciativa própria, entraram, desde muito cedo, em contato com trabalhos de ‘mestres’
exemplo já bastante tradicional disso é o fato de Said Ali, já em 1919, data de publicação da
2. edição de suas Dificuldades da língua portuguesa, ter feito menção ao Curso de lingüística
Itália eram grandes centros dos quais se irradiavam as principais tendências em Filologia
a esta época. Portugal, por sua vez, além de uma fonte em si, constituía também um
estudiosos brasileiros. Acima de tudo isso, tinha uma tradição bastante sólida (e natural) na
84
quanto pela posterior — e usados para abalizamento de opiniões em discussões sobre a língua
Talvez essa recorrência se devesse ao fato de terem sido dos mais versáteis filólogos de
Portugal.
Adolfo Coelho, por exemplo, considerado o primeiro filólogo ‘moderno’ daquele país,
até estudos sobre história da língua, passando pelo português do Brasil, por estudos
crioulos11.
Leite de Vasconcelos12, por sua vez, foi dialetólogo, filólogo-linguista geral, filólogo-
gramático da língua portuguesa, etimologista e, apesar de tê-lo feito apenas em textos avulsos,
10
Veja, por exemplo, os resultados da pesquisa de Altman et al. 1995, que confirmam esta
tendência entre aqueles que apresentaram comunicações de pesquisa nos Seminários do Grupo de
Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo (GEL): no período de 1978(74) a 1992, os estudos
que focalizaram a língua portuguesa corresponderam a 83,1% do total de trabalhos que trataram de
línguas naturais.
11
Publicou, entre outros, A língua portuguesa: noções de glotologia geral e especial portuguesa
(1868), Teoria da conjugação (1871), Questões da língua portuguesa (1874), Dicionário etimológico
(1895), Os ciganos em Portugal (1892). (cf. Silva Neto 1988[1957])
12
Publicou, entre outros, Estudos de filologia mirandesa (1900), Esquisse d’une dialectologie
portugaise (1901), Lições de filologia (1911), Antroponímia portuguesa (1928). (cf. Silva Neto
1988[1957])
85
Filosofia na década de 30
Causa ao rei da Bélgica, Alberto I, que visitava o país naquela ocasião (sem uma
universidade, isso não seria possível). A Universidade do Rio de Janeiro teria, assim,
existido “apenas no papel” (cf. Fávero 1977; Ranieri 1991, Witter 1984).
universidade do Rio de Janeiro, fundou-se a Universidade do Brasil, que, por sua vez, passou
13
Teve publicados, entre outros, Fonética e notas gramaticais a respeito da redação espanhola da
lenda de Crescência (1867), Poesias de Francisco de Sá de Miranda (1885), edição de Os Lusíadas
(1908), Cancioneiro da Ajuda (1904) , A infanta dona Maria de Portugal (1921), Estudos camonianos
I (1922) e II (1924), Notas vicentinas (1922), Der portugiesiste Infinitiv (1891), Romances velhos em
Portugal (1936), Lições de filologia portuguesa (1946). (cf. Silva Neto 1988f 1957]).
14
Também com notável prestígio, aproximadamente do mesmo período, podem-se citar os
portugueses Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1840-1914); Augusto Epifânio da Silva Dias
(1841-1916); José Joaquim Nunes (1859-1932); Antônio Augusto Cortesão (1854-1927). Para um
estudo biobibliográfico detalhado, v. Silva Neto (1988[1957]: “História”).
86
Nos inícios dos anos 30, portanto, ainda inexistiam as chamadas Faculdades de
Filosofia oficiais e, por conseguinte, também os cursos de Letras. Esta situação apenas foi
alterada em 1934, quando, juntamente com a Universidade de São Paulo, foi fundada a sua
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. No ano seguinte, por iniciativa de Anísio Spínola
Instituto de Artes. Esta Universidade, devido ao seu caráter julgado progressista em excesso
para o período (v. Fávero 1977) e ao choque inevitável deste caráter com a política repressora
de Getúlio Dorneles Vargas (1883-1954) durante o Estado Novo, manteve-se apenas até 1938,
o novo espaço acadêmico, que, para os governantes, deveria ser tomado como modelo
no Brasil e os atores designados para detonar este processo no campo compreendido pelos
estudos filológicos foram os autodidatas dos 20, aos quais se juntariam professores
87
3.2 A Geração se 40
3.2.1 Representantes
“
Identificando a Geração de 20 como uma geração de mestres”, uma nova
Silveira Bueno (1898-1989); Celso Ferreira da Cunha (1917-1989); Serafim Pereira da Silva
Neto (1917-1960); Sílvio Edmundo Elia (n.1913); e Gladstone Chaves de Melo (n.1917).
Filosofia: embora tais estudiosos ainda tivessem formação superior nos cursos
los ou nos últimos anos da década de 20 ou nos primeiros anos da década de 30, lecionariam
ainda não serviriam para que se bacharelassem em Letras, constituiriam espaços novos para a
Sílvio Elia (1975), em função disso, definiu sua geração como ‘"transitória” nos
estudos da linguagem no país: quase toda ela lecionou em cursos de Letras, sem tê-
los cursado. A criação das Faculdades de Filosofia teria, de fato, alcançado essa
geração quando ela já lidava com o ensino no nível secundário. No Rio de Janeiro, por
exemplo:
localizado tanto na formação quanto nos primeiros passos dados no exercício do magistério
3.2.2 Formação
Direito, cursado por Silva Neto, Sílvio Elia, Mattoso Câmara (cf. Guérios 1970), e Celso
89
Cunha, por exemplo; Teologia, cursado por Silveira Bueno. Houve ainda formações mais
Ao que tudo indica, além de Mattoso, desta geração, e Sousa da Silveira (engenheiro),
da anterior, poucos outros filólogos teriam formação superior básica em cursos mais afastados
tenham sido exclusividade (v. seção 3.1.2), foram mais procurados pelos filólogos que se
manifestada uma propensão para os estudos linguísticos, estas fossem algumas das melhores
Ainda que não fossem seguidas, a própria formação nessas áreas pressupunha, como
Interferindo mais diretamente, contudo, havia razões práticas, muito mais palpáveis:
A situação em relação à formação, portanto, ainda para esta geração não se alterara, ao
trabalharam Ernesto Faria (Pedro II); Silva Neto (Liceu Nilo Pessanha (Niterói) e Instituto de
Educação de Campos); Celso Cunha (Pedro II) e Sílvio Elia (Instituto de Educação do Distrito
Federal e Pedro II), embora, nas crônicas que se referem à biografia de praticamente todos os
autores citados como representantes desta geração haja referências à atuação no segundo grau.
suas atividades nas Faculdades de Filosofia, alguns como assistentes, outros como
Ernesto Faria, por exemplo, foi, a partir de 1946 (cf. Boletim de Filologia
Nacional de Filosofia.
Silva Neto, por sua vez, assim como Sílvio Elia, comporia, a partir de 1943, o corpo
Filologia Românica. Mais tarde, a partir de 1957, ocuparia ainda a catedra de Filologia
sucedido por Chaves de Melo e Celso Cunha. Este último, a partir de 1956, assumiria a
Românica na Universidade de São Paulo, enquanto Silveira Bueno, a partir de 1939, ocuparia
Deste modo, fizeram parte dos temas tratados pela geração de Silva Neto, a edição de
textos (Cunha, Silva Neto), os estudos sobre a língua portuguesa no Brasil (Chaves de Melo,
Elia, Silva Neto), os estudos dialetológicos (Silva Neto, Celso Cunha), a lexicografia (Faria),
a lexicografia científica (Mattoso Câmara), os estudos sobre o latim (Faria, Elia, Maurer,
Silva Neto), sobre Filologia românica (Maurer, Silva Neto). Nestas linhas, há importantes
A maior novidade a ser introduzida por esta geração, contudo, coube a Mattoso
Câmara Jr., com o seu manual (1941) de linguística sincrônica estruturalista. Seria esta a
parte dos currículos dos cursos superiores de Letras, uma outra disciplina que lhes conferiria a
(não assinada)).
92
que surgiram seria, no entanto, ‘periférica’: embora participasse das agremiações, contribuísse
não conquistaria, nem para si, nem para a sua disciplina uma cátedra nas universidades
linguista, pleiteando a cátedra de Língua Portuguesa nesta mesma faculdade, seria preterido,
Se a Linguística de fato foi encarada pelo grupo carioca como uma disciplina que se
somava à Filologia, auxiliando-a (v. capítulo 4), provavelmente questões pessoais, mais do
que as acadêmicas e mesmo científicas, determinaram esse quadro, que dá conta de que a
introdutórios às ciências da linguagem, destinados aos estudos de nível superior: nos anos 40
Linguística (Mattoso (1941); Elia (1955)); à Filologia (Silveira Bueno (1946); Chaves de
Melo (1951); Silva Neto (1956s, 1988[1957]); Cunha (1954)), à Dialetologia (Silva Neto
(1957)).
93
Esta geração, portanto, acrescentou uma tentativa de sistematizar, ainda que com fins
seja, às produções que visavam à divulgação dos ‘produtos' do fazer ciência, ou dos modos de
convicções, o que pode, em um nível mais geral, isto é, do contexto acadêmico- científico
passava a ser percebida como tal e levava os ‘especialistas’ a separarem-se mais claramente
específico. Em um nível mais particular, interno ao próprio campo das ciências da linguagem,
que começavam a se diferenciar e que não estariam, para os próprios estudiosos, tão
claramente compartimentadas, separadas: não sendo muito evidente a distinção, por exemplo,
entre Filologia e Linguística, seria essencial refletir sobre o que, a rigor, as diferenciaria, tão
oficialmente, e os manuais, neste novo contexto, tornariam explícito o que viria a ser esta
nova ‘especialidade’ oficial, difundindo-a para uma potencial ‘nova geração’, a de estudantes
até bem pouco tempo raros no país. O momento parecia ser de ‘organização’ e busca de
Câmara, Silva Neto e Sílvio Elia, com o intuito de tratar de filologia portuguesa,
Serafim da Silva Neto, nos moldes da Revista Portuguesa de Filologia, seguindo os mesmos
propósitos do Boletim. Em São Paulo, foi criado por Silveira Bueno o Jornal de Filologia
(1953-1961). Em Curitiba, Letras: Revista dos cursos de Letras (1953-hoje), por Mansur
Guérios.
exemplo, foi criado, por Silva Neto o Centro de Estudos de Dialectologia Brasileira no Museu
organizado por Mattoso Câmara. Nas próprias faculdades de Letras começavam a surgir
os ‘cientistas da linguagem’ era necessário criar uma agremiação mais específica, direcionada
com 40 membros efetivos, entre estudiosos já com grande prestígio em 1944 e representantes
da nova geração que começavam a se destacar. Reunindo, acima de tudo, o próprio grupo
partes do Brasil, de Portugal e de outros países, como mostram os quadros, à página seguinte,
direita).
Em vista dessas realizações, podemos afirmar que as décadas de 40 e 50, nas quais
filólogos daquele período, a partir do caminho aberto pelos predecessores e em conjunto com
eles, que ainda exerciam papéis centrais, firmaram os estudos sobre a linguagem como uma
Seguindo uma trajetória comum aos ‘Homens de Letras’ de sua época, Serafim da
Silva Neto concluiu em 1934 o curso colegial (no Colégio Batista do Rio de Janeiro) e
Liceu Nilo Pessanha, de Niterói (v. Silva Neto 1942: “Prefácio”). Professor secundário e
autodidata egresso de uma das carreiras mais procuradas por aqueles que se dedicavam aos
cursos superiores de Letras. Sua trajetória reuniu, portanto, traços característicos do perfil
Tendo o perfil padrão dos representantes de seu grupo, o que chama a atenção em seu
textos que comporiam o seu livro Fontes do latim vulgar: o Appendix Probi, publicando-os
no ano seguinte, semanalmente, no jornal Voz de Portugal (Rio). Em 1937, esta obra foi
Nascentes, Leite de Vasconcelos, Georges Millardet, Maria Rosa Lida e Amado Alonso (cf
foi anterior à publicação desta obra que o projetou: já entre dezembro de 1934 e janeiro de
1935, ou seja, quando tinha 17 anos, publicara alguns textos, que tratavam do português do
Brasil, na revista Vitória (Rio), sem que tivessem o mesmo impacto que as Fontes. De todo
modo, quando as publicou pela primeira vez em forma de livro, em 1938, ainda tinha 20 anos
e, não obstante a pouca idade, passou imediatamente a ser reverenciado como uma autoridade
no meio:
rejeitadas pela elite acadêmica, tende a romper com ela e com o seu corpo de “boas ideias”; se
termos etários ou em termos profissionais (isto é, com menos experiência na área), estariam,
por este fator, mais suscetíveis a rupturas com o ‘paradigma’, já que os modos de ver
propostos por este estariam neles menos entranhados do que em cientistas mais experientes e
mais comprometidos.
99
Cientista precoce e, desde o princípio, aceito pela ‘elite’, mesmo sendo conhecedor da
literatura ‘linguística’ de sua época, que citava em suas obras, Silva Neto sempre vinculou sua
produção ao paradigma ‘filológico’, encarando essa literatura como instrumento para otimizar
seu trabalho de filólogo, na sua concepção, o cientista responsável pelo estudo da língua em
elite acadêmica.
Para Matos Peixoto (1942) — autor que manteve com ele uma polêmica em torno da
tese apresentada para o concurso de 1939 no Liceu Nilo Pessanha (v. Coelho 1997) — cada
“técnicas”, significava atrair a ira dos “velhos quadros” da Filologia no Brasil. No extenso
trecho que citamos a seguir, Matos Peixoto descreve as sanções recebidas devido “à ousadia
15
Em sua crítica à tese Divergência e convergência na evolução fonética, Matos Peixoto classifica os
“especialistas” em linguagem brasileiros em gramáticos-puristas, que, sem preparo científico, buscam nos
clássicos as boas formas de dizer, e filólogos-linguistas, que, sem conhecer a língua, “se intoxicam das
novidades, novas... e antigas..., dos tratadistas estrangeiros,[...] constróem no vácuo ou se espraiam [...] em
campos propícios a aplicações teóricas de conhecimentos teóricos". Há ainda os “especialistas não
diferenciados”, que são uma e outra coisa, e os “ curiosos”, “que não são ‘gramáticos’ e ‘puristas’, nem
‘filólogos’ e ‘lingüistas’, embora se presumam uma e outra cousa",(cf. Matos Peixoto 1942:XIII).
100
Isso ainda não bastava. Ficou logo assentado que eu não teria
direito a tréplica. De fato, a ‘Revista’ a recusou.[...]
O diretor bem que merecia, agora, plácido repouso. Puro engano.
Rodavam as máquinas na impressão do n.5 da ‘Revista’ quando
outra imposição lhe adveio. Um dos colaboradores exigia, sob a
sanção de retirar o seu artigo já impresso, entrasse o nome do
meu criticado para a colaboração efetiva da ‘Revista’: lá está
ele na página 4 desse n. 5.
O meu ‘castigo’ era ‘tremendo’, e a ‘Revista’ e os velhos
quadros ficariam impunes. Tinha era, mesmo, de calar-me [...] E
o ‘castigo’ foi bem calculado: a ‘Revista Filológica’ é, no género, a
única publicação existente atualmente no Brasil. Cerceamento, e
em assuntos técnicos, da mais elementar liberdade de exame e
de idéias! (Matos Peixoto 1942: XV- XVII, grifos meus)
Para Matos Peixoto, fazer parte do restrito grupo de “consagrados”, supunha conduzir
anterior), o que, pelo que deixa implícita a sua classificação dos "especialistas em linguagem”
no Brasil, não fazia. De fato, em sua resposta, Silva Neto toma-o como não-especialista,
afirmando que sua crítica não tinha valor e que a ele (Silva Neto) só interessavam “as vistas
dos filólogos”, isto é, dos pares, que já o tinham aprovado. Talvez por não ter encontrado a
mesma receptividade a suas obras, que Silva Neto classifica de “filosóficas”, Peixoto não
restringiu sua crítica à tese (e à pessoa) do novo ‘eleito’ pelos “velhos quadros”, mas a
ampliou para esse grupo dominante e sua política seletiva. A essa postura oposicionista, os
velhos quadros (destaque meu)), assim, mesmo que tomemos em conta as reduzidas
levaria a uma postura de clara crítica ou ruptura, que, por sua vez, relegariam o cientista-
Na época da polêmica (1940 a 1942), Matos Peixoto, como Silva Neto, formado em
além deste e dos textos que integraram a polêmica, o marxista Matos Peixoto foi autor, na
(sintagmas) e associativas na linguagem” (s.d.) — textos dos quais, assim como o que se
verifica com o autor, a maioria dos representantes das novas e novíssimas gerações de
neste mesmo período (1941) uma ruptura em relação aos “velhos quadros” a que se refere
Mattoso foram apresentados, em sua primeira edição, por um prefácio elogioso de um dos
ícones da Geração de 20, Sousa da Silveira, e o linguista, se não obteve em sua carreira
académica uma cátedra na Faculdade Nacional, fez parte do corpo docente da mesma, assim
seus textos eram acolhidos em todos os periódicos em que também publicavam os filólogos.
Portanto, se a sua posição no grupo não foi das mais destacadas, não foi também o que se
pode chamar com exatidão de ‘marginal’, como parece ter sido, naquele momento, a de Matos
Peixoto.
102
Essa comparação entre duas trajetórias mais ‘periféricas’ pode nos levar a considerar
como válida a proposta de Murray (1994) de ‘acesso a reconhecimento’ como um dos fatores
decisivos para a ‘escolha de retórica’. A ‘retórica’ de Mattoso, neste momento, não era de
ruptura; o que talvez se credite ao reconhecimento, pelo menos parcial, a que teve acesso.
Brasil, na época a mais prestigiada do Rio de Janeiro e, por ser esta a capital política e cultural
respeitadíssimo no meio e então com 69 anos. De acordo com depoimentos, ambos obtiveram
os conceitos máximos em todas as provas e Magne, por ser o interino e o mais velho, assumiu
Esse episódio leva-nos a supor que, em 1957, Silva Neto já teria, pelo menos, o
mesmo nível de aprovação pela comunidade do “mestre” que o antecedia. Aos 39 anos,
manutenção de seus talentos, que nos finais dos anos 50 pareciam ser indiscutíveis, tanto para
Nacional, foi também em 1957 que apresentou a primeira publicação completa da sua
História da língua portuguesa, por muitos considerada sua principal obra. Este ano, deste
modo, figura como pico de sua ascensão acadêmica e fixação como um dos principais
Em decorrência desse seu destaque, entre 1958 e 1960, lecionou, como professor
convidado, Filologia Portuguesa na Universidade de Lisboa, que, ainda em 1960, lhe conferiu
Foi, a propósito, durante toda a sua carreira, notória a sua proximidade dos meios
em contatos estreitos com estudiosos como Manuel de Paiva Boléo (1904-?) e José Pedro
Vasconcelos, a quem dedica a sua História e sua primeira aula na Universidade de Lisboa.
ou,
A ‘boa’ Filologia, ainda para esta geração de filólogos e, muito explicitamente, para
Silva Neto, encontraria nos autores portugueses uma referência de grande peso.
O prestígio intelectual obtido já a partir de 1938 e crescente até 1960, ano em que
faleceu, permitia-lhe apontar caminhos para a sua disciplina — o que, como identificamos na
análise de sua obra (v. capítulo 4), se manifestou no tom programático de muitos de seus
textos.
como de ‘liderança intelectual’, ao mesmo tempo o autor ascendia como um dos ‘líderes
atuação organizacional concentrou-se sobretudo nos anos 50, embora já durante a década
anterior o autor estivesse envolvido nos projetos do grupo, como se constata pela sua
16
Refere-se à primeira viagem de estudos do autor a Portugal, naquele ano de 1947.
105
E foi com vistas ao desenvolvimento de uma das principais novas frentes de trabalho
desse grupo, isto é, o desenvolvimento dos estudos dialetológicos com base nos métodos da
desse Centro, que acabaria por não se desenvolver efetivamente (v. Mattoso in Naro
1972:57), foi apenas uma das atitudes do autor no sentido de divulgar os métodos linguístico-
à verdadeira cruzada por ele empreendida pelas faculdades do país. Sua ideia era a de que,
em 1955 (cf. Silva Neto 1957[1955]), em 20 ou 25 anos seria possível elaborar o Atlas
Linguístico Nacional. Este Atlas deveria ser composto a partir da elaboração anterior de Atlas
Regionais, daí derivando a necessidade de espalhar pelo país o interesse pelos falares locais.
O próprio autor testemunhou o seu percurso com vistas à execução desta tarefa:
setembro de 1957), o autor insistiria no tema, apresentando, com Celso Cunha, outro
Os lugares aos quais o autor não compareceu pessoalmente não foram excluídos de
seus planos: paralelamente, uma parcela da sua produção intelectual perseguia também essa
meta. Exemplo muito explícito disso, o Guia para estudos dialetológicos (1957[1955])
geográfico-linguístico.
O ‘clima de opinião’ no país, já desde os anos 20, era favorável aos estudos
‘brasileiros’. Desde a literatura, tanto dos anos 20, com os primeiros modernistas, quanto
com os de segunda geração, até as esferas mais ‘científicas’, já desde os anos 30, com
Gilberto Freyre (1900-1982), Caio Prado Jr. (1907-1987) e Sérgio Buarque de Holanda
107
frutíferos no que diz respeito às discussões sobre a existência ou não de uma língua brasileira
— haja vista a profusão de obras sobre o tema entre os anos 20, 30 e mesmo 40 — e aos
Daí que procurar as razões para a configuração do elemento cultural ‘língua’ em suas
raízes históricas e ao mesmo tempo procurar conhecer a cultura por meio dele, como
apregoavam as teorias das “Palavras e Coisas”, que empolgavam Silva Neto, era um projeto
mais do que bem situado no período, despertando realmente interesse, como se deduz, por
exemplo, do número de convites recebidos pelo filólogo para discorrer sobre o assunto em
diferentes pontos do país e em Portugal, ou do curto período entre as duas edições do Guia
(1955 e 1957).
muitas das obras filológicas no período, inclusive de Silva Neto, teve como molde a Revista
evidentemente, dos estudos sobre o português (leia-se, dos seus ‘falares rurais brasileiros).
Das mais regulares e destacadas no país, teve 6 volumes de 1955 a 1961, dos quais os
dois últimos foram dirigidos pela comissão formada por Antenor Nascentes, Ismael de Lima
Coutinho, Sílvio Elia e Mattoso Câmara. Elia (1975), Coseriu (1967) e Boléo (1960)
para a admiração de seus pares parecia existir em Silva Neto: o carisma pessoal.
CAPÍTULO 4
As “Boas Ideias”
As “Boas Ideias”
Em diversos trechos de suas obras, Silva Neto procurou conceituar as disciplinas que,
segundo ele, comporiam o campo de estudos da linguagem, na maior parte das vezes,
“gramatiquice”, modo que o autor considerou não científico e, portanto, oposto aos
linguagem.
A visão do autor a respeito das ciências linguísticas, ou, mais genericamente, das
ciências humanas, tendeu para uma busca de coordenar e integrar as diferentes disciplinas e
Silva Neto conceitua a Filologia como a ciência responsável pelo estudo completo de
uma língua — ou um conjunto delas — e de sua(s) literatura(s). Por estudo completo de uma
perspectiva histórica (ou diacrônica), quer em perspectiva estática (ou sincrônica). Entre as
segundo ele, o estudo da ‘linguagem corrente’, ou “para usar uma nomenclatura hoje
Sendo a literatura “a expressão artística da língua” (Silva Neto 1963[1950]: 16), ela e
sua história seriam objetos para o filólogo, que deveria conhecer a língua “em toda a sua
amplitude”. Pelo mesmo motivo, importaria também o estudo dos ‘falares’, com especial
Além de estudar amplamente as línguas, aos estudos filológicos não poderia estar
As línguas não deveriam, portanto, ser estudadas isoladamente, mas inseridas em seus
etnológica etc. e tornando-se, para eles, “ora um fim, ora um meio” (cf. Silva Neto
Natureza”.
À Filologia, dentro do vasto campo do estudo pleno da língua em suas relações com a
sociedade/cultura, só não caberiam, de acordo com o autor, a “defesa das formas vernáculas”
estudiosos da linguagem. Eles, sim, veriam a língua separadamente dos fatores que a cercam,
tomando-a como algo imutável, sobre o qual os indivíduos e as sociedades não poderiam, nem
deveriam, atuar.
caberia tanto o estudo tradicional, “de gabinete”, com os textos antigos, quanto o trabalho “de
17
Segundo a Bíblia, Jesus visitou uma aldeia, na qual moravam as irmãs Marta e Maria, hospedando-se em sua
casa. Durante o período de “visita”, enquanto a primeira se ocupava com diferentes serviços domésticos, a
segunda permanecia sentada junto a Ele, ouvindo-Lhe as palavras. Queixando-se dessa situação, Marta ouviu de
Cristo que Maria havia escolhido a “boa parte” e que esta não lhe seria tirada, (cf. Lucas 10, versículos 38-42)
113
114
campo” ou “de gabinete”, línguas inseridas em seus contextos sociais e tomadas como
linguagem, que, tendo caráter eminentemente teórico, forneceria aos filólogos a preparação
básica para efetuar, em padrões científicos, o seu trabalho de tratamento direto e exaustivo
18
Hermann Paul (1846-1921)
19
Iorgu Iordam (1988-?)
20
Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1926)
21
Franz Bopp (1791-1867)
115
deveria recorrer para conduzir seu trabalho; entretanto, para elaborar esse saber ‘geral’, e
Filologias portuguesa, românica, latina etc. Desse modo, assim como ao filólogo seriam
Filologia, sugere o trecho citado acima, não se produziriam resultados gerais, mas os válidos,
seriam produzidos resultados especificamente voltados para fatos verificados em uma língua
ou em um grupo delas: seus resultados tenderiam para o geral, para o que fosse verificável em
todas as línguas.
116
Essa parece ser a fronteira mais rígida estabelecida por Silva Neto entre as duas
disciplinas, já que, para ele existiriam tanto Linguística quanto Filologia sincrônica e
diacrônica.
autónomas, na medida em que ambas teriam interesses — pelas línguas ou pela linguagem —
pelo autor como fundamentais para os estudos da linguagem e como estreitamente ligadas à
da língua portuguesa no Brasil (1963 [1950]) — seria extremamente útil para a realização
dos estudos de ‘história externa’22, respondendo pelo delineamento dos traços socioculturais
de um grupo de falantes de uma língua. A Dialetologia, disciplina mais restrita aos fatos
estudar o português do Brasil (v. o item “Temas” adiante), seria — sobretudo quando
linguagem que mais o entusiasmariam e estaria inserida, em sua visão, no projeto geral da
22
Para Silva Neto, “história externa” é uma história da língua fundamentada nos elementos políticos,
econômicos, sociais, etnológicos que envolvem esta língua e contribuem para os seus desenvolvimentos;
“história interna”, por sua vez, é uma história da língua que enfatiza as transformações por que passaram as suas
formas. Com efeito, na terminologia do autor, “interno” refere-se às coerções internas ao sistema linguístico,
enquanto que “externo” refere-se aos fatores que podem nele interfer, como, por exemplo, os fatores políticos e
econômicos. Neste trabalho, sempre que nos reportamos às expressões “externo” e “interno”, com vistas à
presevação da metalinguagem do autor, mantivemos essa distinção, ainda que, atualmente, ela não seja objeto de
um amplo consenso.
23
“É preciso distinguir dois ramos nos estudos brasileiros: a história externa, de cunho etnográfico-social, e a
história interna, que é propriamente a dialetologia, de cunho filológico-lingüístico”. (Silva Neto 1963[1950]:6)
119
responsabilizando-se por uma das principais tarefas modernas de tais estudos, que seria o
Estes falares preservariam traços dos mais antigos, devido ao afastamento dos grandes
centros — inovadores — e poderiam, em função disso, ser úteis para a constituição das
histórias das línguas. Daí a inexistência, para o filólogo, de um conflito entre a ‘clássica’
pela Dialetologia:
Como em sua definição a Filologia lidaria com uma determinada fase da língua ou
com o conjunto de todas as suas fases — “traçando-lhe a história, desde o início até a fase
atual”, ou seja, tanto com a sincronia quanto com a diacronia — não haveria sentido em um
Geografia Linguística, encaixavam-se com perfeição no que era previsto como estudo
legitimamente filológico.
120
Disso, talvez, o entusiasmo do autor pelo método, que, no estudo das variações
quanto a reconstituição de antigas fases, pois a distribuição geográfica atual das palavras
possibilidade que o autor admitiu precária, por necessitar da atuação de não especialistas
na pesquisa — ou in loco, pelo próprio pesquisador que, “ao vivo”, poderia fazer
adequadamente transcrito em termos fonéticos, posto que deveria registrar, por escrito,
Recolhido, este material, composto essencialmente por palavras, poderia servir de base
linguísticas, cartas ou mapas linguísticos, e estes, por sua vez, poderiam constituir um atlas
24
Por isso a necessidade de interação com os etnógrafos e antropólogos: língua e cultura aparecem novamente
entrelaçadas.
121
regional ou, ampliado, nacional. Neste último caso, num trabalho que demandaria algo em
Com efeito, a difusão do método geográfico, a descrição dos falares rurais e o plano de
uma ulterior composição de um Atlas Linguistico Nacional (v. capítulo 3) levaram o filólogo
em preocupações de primeira ordem para ele, sobretudo a partir dos anos 50, quando elaborou
as duas edições do Guia para estudos dialeíológicos (1955 e 1957) — resultantes dessa
Filologia ampla, que se propunha o estudo completo das línguas, responsabilizando-se pelos
breves estudos, como aqueles sobre o balouço (Silva Neto 1960f) e a pandorga (Silva Neto
1960g) — sendo a tarefa realizada por ele principalmente esta de difundir a ‘nova frente’, à
4.1.3 Gramática
base nos clássicos da literatura, teria um papel também importante no contexto dos estudos da
linguagem, na medida em que contribuiria fortemente para a preservação das “boas” formas
seria produtivo, mas que paradoxalmente poderia ser um obstáculo a se opor, de modo
busca de um equilíbrio, de tal modo que a Gramática não se afastasse demasiadamente dos
“fatos da língua”.
o bom senso de cultivar a “boa” linguagem e, ao mesmo tempo, prestigiar “os brasileirismos
teria de descrever e interpretar fatos da língua ao invés de procurar moldá-los às suas noções,
Em vista disso, sua opinião a respeito do ensino gramatical no Brasil de seu tempo,
segundo ele, dominado pela “gramatiquice” e afastado dos preceitos científicos da Filologia,
A Gramática, portanto, necessitaria ser subsidiada pela Filologia, que lhe forneceria
também entre as práticas científicas com a linguagem e não mais entre as especulações
puristas ou gramatiqueiras. Também neste caso, a concepção do autor nos parece estar
Etnografia e com todas as outras ciências humanas, deveria, para Silva Neto, ocupar-se com o
estudo da(s) língua(s) em todas as suas dimensões, níveis e modalidades, seja em perspectiva
Esse entendimento amplo da disciplina, assim como a definição dos seus variados
objetos de estudo, contribuiu para que o autor, provavelmente visando cobrir uma parcela
A ampla gama de temas tratados pelo filólogo, assim como as diferentes orientações
Silva Neto elaborou obras cujos temas se referem, se não a todas, pelo menos à
maioria das áreas aceitas pelo seu grupo como filológicas. Encontramos em sua produção
desde trabalhos filológicos stricto sensu — isto é, edições de textos antigos — até
vulgar.
assinalada por outros autores, que o levava a manter, em várias áreas do campo de
Nem todas as áreas a que se dedicou foram desenvolvidas com a mesma ênfase ou
constância. Mas a abrangência temática foi um dos fatores que permitiram tomar sua obra
como exemplar, já que representativa de várias das possibilidades de atuação autorizadas nas
pesquisas da área.
a vários focos e de desenvolver-se de modo não uniforme em cada uma das suas direções —
se levássemos em conta apenas dados quantitativos, teríamos uma distribuição temática como
25
Um testemunho recorrente entre aqueles que com ele conviveram dá conta dessa sua compulsão pe la
aquisição e leitura de livros, que o teria levado a formar uma das mais completas bibliotecas filol ógicas
do país, hoje incorporada ao acervo da Faculdade de Letras da UFRJ. Também em função desse hábito,
seus trabalhos concentram muitas referências e citações, de tal modo que, a julgar por elas, Silva Neto
estaria largamente familiarizado com a bibliografia filológica, mais antiga ou contemporânea, bem como
com textos dos chamados primeiros linguistas ‘modernos’. Nas Fontes do latim vulgar...(Silva Neto 1938),
por exemplo, o autor citou, ao lado de Francisco Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Wilhelm
Meyer-Lübke (1861-1936), Hugo Schuchardt (1842-1927), Jules Gilliéron (1854-1926), entre outros,
Ferdinand de Saussure, Antoine Meillet (1866-1936), Nikolaj Trubetzkoy (1890-1938), Joseph Vendryes
(1875-1936) e Roman Jakobson (1896-1982).
126
NÚMERO DE
TEMA/ÁREA26 %
PÁGINAS
Para termos uma melhor avaliação das preferências temáticas do autor, entretanto, a
esse levantamento quantitativo da sua produção foi preciso contrapor elementos como
26
De acordo com Tabela VII, com a distribuição temática da produção publicad a de Silva Neto, capítulo 2
desta dissertação.
127
alguns desses temas, sob esse enfoque quantitativo, se destacaram (por exemplo, ‘português
arcaico e edição de textos’), outros se firmaram como centrais, ou pela constância com que
foram tratados, ou pelo tratamento mais detalhado que receberam, ou ainda pelo destaque a
ele conferido pelo filólogo em seu programa de pesquisa. Um exemplo deste último caso é a
‘história da língua portuguesa’. Tratar desse tema, na própria percepção do autor, era uma das
tarefas de primeira ordem nos estudos de Filologia portuguesa, como declarou no prefácio à
sua História:
Combinadas essas duas instâncias, configurou-se-nos como uma distribuição temática mais
vocabulares/etimológicas’.
que destacasse suas preocupações mais fundamentais, embora nos fosse óbvio que, se autor se
128
dedicou a todos esses temas-áreas, tomou-os, a todos, como objetos legítimos, dignos de
língua portuguesa
língua portuguesa (Silva Neto 1970[1957]), além de longos anos de preparação, concentrou
grande parte das preocupações do autor. Ele foi publicado primeiramente em fascículos, pela
editora Livros de Portugal, entre 1952 e 1957 e, neste ano, em primeira edição no formato de
livro (cf. Cunha 1970:I-II; Elia 1992:1). É bastante provável que estes cinco anos
transcorridos para que a obra se publicasse integralmente correspondam a apenas uma parte
do tempo real de preparação, uma vez que o autor, já no início dos anos 40 (v., por exemplo,
Rumos filológicos 1942:19), declarava estar desenvolvendo seu projeto de elaboração de uma
Para este longo período de elaboração do estudo, além das dificuldades que o mesmo
deveria oferecer, concorreram, nos anos 50, questões de ordem pessoal, como o falecimento
esse percurso de produção e o seu resultado — a primeira e, até hoje, uma das principais
sínteses sobre o assunto — reconhecemos neste tema-área um dos ‘problemas’ mais constante
O estudo da ‘história da língua’ caminhou lado a lado com o das questões relativas à
‘língua portuguesa no Brasil’ e, em ambos os casos, com especial interesse pelos fatores
‘externos’ ao do sistema linguístico (v. nota de rodapé 6), tais como os sociais e etnográficos.
129
Brasil (Silva Neto 1963 [1950]), obra que o autor classificou como etnográfica, por ater-se
Brasil (Silva Neto 1963 [1950]: 11-15). Dessa modalidade de estudo sairia também
sobretudo aquela preservada nas áreas mais isoladas, seria mais conservadora do que a
dois temas, portanto, pareciam ter uma direção comum: a de composição de uma história
as Fontes (Silva Neto 1956a[1938]) e mesmo a História do latim vulgar (Silva Neto
1977[1957]). Ele também convergiu para a preocupação com o estudo da história da língua
implicaria o domínio das questões que envolvem o latim 'corrente’ — como o autor preferia
nomear o chamado latim “vulgar”27. Para Silva Neto, a principal motivação para os estudos
sobre o latim corrente parecia ser justamente essa de subsidiar estudos sobre a história da
língua portuguesa, a julgar pelo que declara no prefácio à segunda edição das Fontes:
desembocaria na história deste idioma, sendo mais uma das chaves para a sua compreensão.
27
"Como se sabe, a expressão latim vulgar é imprópria e até mesmo incorreta, pois além de poder
exprimir ‘ordinário, ‘reles’(o que de nenhum modo é o caso), engloba num bloco uma série de matizes e
de formas de língua. E depois sempre se apresentou um ‘latim vulgar’ atópico e acrônico, isto é, com
abstração de lugar e de tempo. Assim considerado, ele, afinal de contas, ficava sendo um fantasma, uma
língua artificial. Era um manequim a serviço dos romanistas que, com ele (feito à sua vontade e de
acordo com as suas necessidades) explicavam os fatos românicos... "(Silva Neto 1977[1957J:39)
130
ciência foi também tema constante em Silva Neto, que elaborou dois manuais de introdução à
Filologia (Silva Neto 1988[1957] e 1956s), além de dois outros, aqui considerados nos grupos
textos (Silva Neto 1956r). Além disso, em diversos textos avulsos, resenhou autores e suas
disciplina.
Desta introdução aos métodos, problemas e bases teóricas fazia parte uma incursão
pela história da disciplina. Com efeito, além de ter escrito biobibliografias (geralmente,
inteiramente dedicada a isso, mas há boas amostras na primeira seção do Manual de filologia
portuguesa (Silva Neto 1988[1957]), em vários textos publicados em periódicos (cf. Tabela
Para o autor, seria importante conhecer a história da disciplina para se saber o que foi
feito e o que resta fazer, aprender com os erros e acertos dos “antepassados” científicos e
espelhar-se em seu exemplo de trabalho e dedicação à língua (cf. Silva Neto 1988[1957]:15).
língua portuguesa
As ‘edições de textos’28 foram igualmente conceituadas pelo autor como uma das
28
No capítulo metodológico, justificamos o fato de termos considerado as Fontes (1956a[1938]), juntamente
com a História do latim vulgar (1977[1957]), em um grupo-tema específico, sobre o latim, apesar da edição
cuidadosa do Appendix Probi na primeira obra.
131
A importância atribuída a essa tarefa o levou, inclusive, a adquirir para seu acervo
particular manuscritos dos mais raros (v. capítulo 3). No entanto, comparando o trecho citado
acima àquele em que o autor se refere à ‘história da língua’, notamos que ele parece ter
de outros trabalhos, mesmo que, a princípio, dedicados a outras questões, como a ‘história e
Há, com este tema, um documento, Textos medievais portugueses e seus problemas
(Silva Neto 1956r), no qual o filólogo procurou exemplificar procedimentos para o trabalho
filológico desta natureza. Esse volume pretendia explicitar a metodologia para a elaboração de
edições de textos antigos, estabelecendo e demonstrando o que e como fazer neste campo, de
tal modo que também indicia sua propensão a (meta)teorizar ou, ao menos, ‘discutir/difundir
teorias e métodos’.
tratamos nesta seção ao qual o autor não dedicou livros inteiros. Afirmava o filólogo que
pretendia, com seus textos, avulsos, apenas fornecer algumas contribuições para que se
organizasse um grande dicionário etimológico da língua portuguesa (v. Silva Neto 1956j:157
e 192), diferentemente do que ocorreu com o projeto de elaboração de uma história da língua
— igualmente complexo — que se propôs executar. Para ele, todos os que pudessem
deveriam, como ele, publicar suas contribuições para um futuro dicionário-museu da língua,
que tomaria as palavras e sua história em conexão com a história cultural e material.
132
como referência primordial o português e seu desenvolvimento histórico: foi a partir desse
foco, parece-nos, que se configuram seus estudos acerca do latim “corrente” — berço das
línguas românicas e, sintomaticamente, não sobre o clássico; dos falares rurais brasileiros, que
mais conservador do que o lusitano; da edição de textos em português arcaico, que serviria de
portuguesa.
Mesmo quando tratando destes outros temas, o autor não perdeu de vista a língua
Preocupação esta que perpassa as faces social e cultural da língua e leva o filólogo a
realizar trabalhos que denominou filológicos, dialetológicos e até etnográfico, como vimos.
4.2.2 Orientações
Histórica 20 40
Histórica-metateórica 10 20
Metateórica 8 16
Uso/variação 7 14
Gramatical 5 10
TOTAIS 50 100
Ter as orientações histórica e metateórica como predominantes em sua obra sugere que
ela esteve voltada, preferencialmente, por um lado, para a consideração dos problemas de
A) Histórica
De fato, em relação a este aspecto, aquilo que afirmava ser um preceito elementar a ser
seguido por aqueles que se dispusessem a estudar a história das línguas, qual seja, o de que a
história de uma língua deveria ser a “história dos homens que a falam” (Silva Neto
1970[1957]:54), aparece, no que aqui consideramos como seus ‘produtos’ científicos, isto é,
nas suas obras, como um esforço recorrente. Em outros termos, a tentativa de relacionar a
língua com elementos concernentes à constituição das comunidades que as utilizam (ou
utilizavam) foi um traço caracterizador de seus trabalhos, sobretudo quando a perspectiva foi
histórica.
Desse modo, sua história não teve como ênfase a demonstração, passo a passo, das
perspectiva sociocultural.
B) (Meta)teórica
outro momento da história da disciplina — ter ele mesmo o hábito de formular hipóteses
explicativas dos fatos/teorias estudados, assim como de tentar sistematizar o que seriam as
tarefas de sua disciplina, elaborando, neste caso, trechos e mesmo textos inteiros, com caráter
135
programático, isto é, estabelecendo como proceder na área29. Para este último aspecto, em
nível de terceiro grau, à disciplina30. Nestas obras, a tendência a definir o que vinha a ser,
quais os objetos e as tarefas das disciplinas foi acentuada, dado o caráter “didático” dos
textos.
tratamento gramatical.
Com esta última orientação, foram tratados aspectos como homonímia, polissemia,
Nos textos com orientação para uso/variação foram investigados pelo filólogo tanto
no sentido de cobrir, sob diferenciados pontos de vista, o objeto língua. Por sua vez, a
preponderância da orientação histórica, que do modo como concebida pelo autor, reivindica
29
É o caso, por exemplo, do Guia para estudos dialetológicos e dos diversos trechos, de vários de seus textos,
nos quais o filólogo opina sobre quais seriam os atributos e tarefas da Filologia, da Dialetologia (e da
Geografia Linguística, método dialetológico que parecia melhor satisfazer suas expectativas), da Linguística.
30
Caso dos manuais (Silva Neto 1956s; 1988[1957]); do Guia para estudos dialetológicos (Silva Neto
1957[1955]).
136
necessário quando as fronteiras entre disciplinas científicas não parecem tão rígidas.
teorias: na maioria dos estudos foram tratados dados de língua, como ilustra a Tabela X:
Teoria (T) 9 18
TOTAIS 50 100
A) Posicionamento teórico
modalidade de textos mas de toda a sua obra, e são muito acentuadamente marcadas pelo
socioculturalismo.
É assim, por exemplo, que, esclarecendo que foi seu “escopo encontrar apoio na
Neto 1963[1950]:11), Silva Neto iniciou a sua Introdução ao estudo da língua portuguesa no
Brasil.
a nelas usar, com frequência, dados que convencionamos chamar “extralinguísticos” (v. nota
6), além de permitir-lhe um bom trânsito por teorias e conceitos “da Linguística” ou “da
técnicos que teriam propiciado à área, na sua visão, tomaram as línguas isoladamente, ao
Seu posicionamento em relação a essa tendência linguística era o de que deveriam ser
Mas,
Essa sua visão sobre a Linguística de Schleicher e dos Neogramáticos, sobre seu
conceito naturalista de língua e sobre as leis fonéticas, parecia comum a praticamente toda a
linguagem como instituição social. Para Silva Neto, conceber as línguas como “organismos
tendência “fossilizada”.
31
Edward Sapir (1884-1939)
139
caráter etnográfico, da escola alemã das Palavras e das Coisas (Wörter und Sachen)32, dos
exemplo, bem como com os da Filologia em um de seus mais amplos conceitos, qual seja, o
relacionados34.
Também era assim que os textos antigos, em sua perspectiva, testemunhavam uma
época da língua e da cultura portuguesas35; que a história da língua tinha de ser estudada em
paralelo com a história social, política e cultural dos povos; que os estudos dialetológicos,
em sua gênese e posteriores desenvolvimentos, de acordo com o uso dos homens, ao longo do
Pareceu-nos, enfim, ter sido esta noção de língua como produto sociocultural um dos
principais nortes para a formulação dos seus demais conceitos e de aspectos dos produtos
32
Segundo esta corrente, também chamada de Objetologia, o estudo das ‘coisas’ (Sachen) seria um
instrumento fundamental para a compreensão das palavras (Wörter). A cultura material dos povos (isto é, as
‘coisas’) poderia explicar a cultura espiritual (as palavras), já que ambas comporiam um todo intimamente
relacionado — a ‘cultura’, de um modo geral.(v. Silva Neto 1988[1957], entre outros)
33
A Geografia Linguística, método de estudo das variações linguísticas criado por Jules Gilliéron,
organizador do Atlas Linguistique de la France (publicado entre 1902 e 1910), “... pressupõe o registro em
mapas especiais de um número relativamente elevado de formas ling üísticas (fônicas, lexicais ou
gramaticais) comprovadas mediante pesquisa direta e unitária numa rede de pontos de determinado
território, ou que, pelo menos, tem em conta a distribuição das formas no espaço geográfico
correspondente à língua, às línguas, aos dialetos ou os falares estudados". (Coseriu 1982:79)
34
v. Ulhôa Cintra 1939.
35
N’A Santa vida e religiosa conversação..., por exemplo, reforçando este traço, soma-se ao prefácio- estudo de
Jaime Cortesão (1884-1960) — que, filho do filólogo português Antônio Augusto Cortesão (1854- 1927), e
historiador de grande prestígio em Portugal e no Brasil em sua época, apresenta Silva Neto aos leitores
portugueses — uma detalhada análise do próprio filólogo (Introdução, pp. 37-89) sobre André de Resende, sua
época e seu papel na sociedade/cultura portuguesas, de modo a contextualizar o livro em relação ao período e em
relação à obra do humanista.
140
B) Tradição e regionalismos
Se o material foi Teoria em 18% dos textos analisados, nos 82% restantes a ênfase
recaiu sobre dados de língua. Entre estes, contamos 58,8% com dados de língua portuguesa
(LP); 31,7% com dados de língua portuguesa e latim (LP + L)ou língua portuguesa e latim e
outras línguas/dialetos românicos (LP + L + R) e 9,8% privilegiando o latim (L), como expõe
o Tabela XI.
tratados nas obras de Silva Neto. Esta ocorrência, provavelmente, relaciona-se à sua opção
predominante pelo ponto de vista histórico: o recurso ao latim e às outras línguas românicas
parece vincular-se estreitamente à opção pela história, sobretudo do português, que requer o
NUMERO DE
LINGUA(S) %
TEXTOS
Língua portuguesa 24 58,5
Língua portuguesa + latim
ou língua portuguesa +
13 31,7
latim + outras
línguas/dialetos românicos
141
Latim 4 9,8
TOTAIS 41 100
materiais privilegiados em cada obra (cf. capítulo 2), o que não significa que outros nelas não
apareceram nas obras do filólogo exemplos do grego e mesmo de línguas como o basco.
cada texto basicamente nos três grupos que compõem a Tabela XI.
elas, desde a linguagem literária até o falar regional, seriam objetos da Filologia e igualmente
importantes para a constituição de uma história da língua. A respeito desta última, o filólogo
declarou que:
filtrados pela criação literária (v., por exemplo, os trechos de Gil Vicente utilizados em Silva
36
"Por mais nobre que seja a defesa inteligente das formas vernáculas, a Filologia é outra coisa. Para
ela a língua é uma expressão da cultura e, como tal, a estuda. Interessam-lhe, assim, os falares das
sociedades não alfabetizadas tanto quanto a expressão artística dos grandes escritores. "(Silva Neto
1951:15)
142
1970[1957]), sobretudo nos últimos capítulos, o autor acabou por restringir-se à consideração
uma das diferentes épocas (neste caso, dos diferentes séculos). Os fatores para a explicação do
longo período de elaboração desta obra, como o falecimento de seu filho, provavelmente
também contribuíram para isso, já que é nítida a defazagem entre o início da obra e seu final.
Talvez, ainda, devessem ser consideradas as maiores facilidades oferecidas pelo trabalho “de
gabinete” com textos literários (já compendiados) do que pelo trabalho “de campo”, com os
falares que ainda necessitavam ser colhidos e descritos. Como os trabalhos “de gabinete” e os
“de campo” seriam, para o autor, igualmente lícitos, não haveria demérito em optar pelo
primeiro e esta, portanto, não seria uma questão pertinente. Todavia, importa notar que,
considerando a hipótese de ter sido necessária uma opção, ela, na prática, independentemente
dos fatores que a justifiquem, foi feita em favor da linguagem literária, quando, segundo as
próprias palavras (ou idéias formalizadas) do autor, as outras teriam a mesma relevância para
língua foram apresentados nos textos, verificou-se uma maior fluidez em comparação com as
demais categorias até o momento analisadas — o que talvez reflita uma tendência a tomar a
143
Foram poucos os textos em que apenas um dos níveis foi levado em conta: entre os
textos, apenas 4% tratam exclusivamente de fonética; 18%, do nível do texto; 12%, do nível
NÚMERO DE
RECORTE %
TEXTOS
Fonético/fonológico 2 4
Lexical 6 12
Textual 9 18
Morfo/lex 16 32
Fon/morfo 13 26
Fon/morfo/lex/sin/tex 4 8
TOTAIS 50 100
ao lado da etimologia (que efetivamente combina a origem mórfica e semântica dos termos e
constantes. Nos casos em que o objeto foram textos editados — este estudo das palavras
mais usuais
conceito de língua equivale ao de ‘linguagem’ e este, por outro lado, às vezes equivale ao de
‘uso’, ‘falar’. Dificilmente o autor se refere à ‘linguagem’ tomando-a como uma instância
mais geral, ou abstrata, reportando-se a ela como faculdade comunicativa humana. Ela tem,
‘falares’, foi, frequentemente, ‘língua’ — línguas portuguesa, latina, como expressões dessas
culturas.
refletiriam uma maior inclinação de seu trabalho para o tratamento de dados de língua do que
Para Silva Neto, toda língua, expressão da cultura humana, conteria pelo menos os
seguintes níveis:
menos tensas;
145
seria utilizada por pessoas que vivem na zona rural e marcada por especificidades locais.
com esse termo que o autor se referiu ao que teria sido, em sua visão, a primeira fase da
O termo ‘dialeto’, para o autor, não seria muito preciso. Segundo ele, 'dialeto’ seria um
termo especificamente criado para referir uma situação da língua grega, que não se
reproduziria nas demais. O termo foi, assim, poucas vezes empregado e em quase todas, com
a ressalva de que um termo melhor seria falar/falares, para dar conta das variações de uma
língua.
146
147
Brasil
A) Crioulo
Uma das mais discutidas teses incorporadas por Silva Neto é a relativa à formação de
um ‘crioulo’ português nos inícios da expansão da língua pelo Brasil. Encontrando apoio em
Adolfo Coelho que teria sido o primeiro a propor princípios gerais para o crioulo português
(Silva Neto 1970[1957]:437; Petter 1998:779) e em acordo com o conceito deste fenômeno
Geral, teria sido estruturada uma linguagem portuguesa bastante tosca — e coexistente com o
português, de padrão europeu, falado pelos brancos — que serviria de meio de comunicação
para negros, índios e mestiços. Tratar-se-ia de uma adaptação da língua européia, sendo
Modo de expressão daqueles povos “de civilização inferior” (Silva Neto 1963[1950];
natureza ‘externa’:
se fazer entender pelos aloglotas e pelos seus compatriotas vindos de outras regiões. Os
aloglotas, por sua vez, obrigados a aprender (e rapidamente) a língua devido à situação de
No caso brasileiro, esse falar deturpado concorreria com o dos brancos. Como estes
proviriam das mais diferentes regiões de Portugal e como, na visão do autor, a linguagem
variaria conforme o local e os grupos que delas se utilizam, comumcavam-se de acordo com
normas distintas. Reunidos no novo território, para facilitar o contato e a interação, teriam
eliminado de suas falas os traços mais regionais, dando origem a uma ‘língua comum’ —
média dos diferentes ‘falares’ portugueses — que inicialmente ficou concentrada nas regiões
Com o passar do tempo e a “elevação do nível das massas”, principalmente por meio
da educação escolar, o crioulo teria sido, pelo menos parcialmente, encoberto pela língua
No Brasil, passada também esta segunda fase, “semiculta”, resquícios dos falares
crioulos teriam permanecido apenas nas áreas rurais — nos chamados ‘falares regionais’ —
dada a maior força da língua européia — símbolo de uma “civilização superior” que teria
sobrepujado aqueles falares “xacocas”, relegando-os, em alguns de seus traços, às áreas mais
isoladas do país:
modo:
pelo estabelecimento de uma média linguística das diferentes variações lusitanas, e teria
também diversidade, uma vez que esta média, a língua comum, resultaria de diferentes tons,
linguística nacional. Além disso, a mesma língua seria utilizada em Portugal, onde, por sua
Se para Silva Neto uma língua é o que dela fazem os diferentes grupos humanos,
inseridos em diferentes contextos, é uma decorrência lógica ter assumido que a língua
aqui e lá, a mesma língua com diferentes gradações num ponto e no outro. As diferenciações,
torneios sintáticos. A ‘linguagem literária’, por exemplo, teria, no Brasil, independência 37, já
que o estilo, “jóia da criação pessoal”, naturalmente varia; a essência da ‘língua’ estaria,
37
“Esse espírito brasileiro não se caracteriza pelo anseio de independência l ingüística, mas realiza o
ideal de independência literária. "(Silva Neto 1963[1950]:268)
151
contudo, preservada nos “irmãos”, Portugal e Brasil, que por isso utilizariam,
Algo a ser notado em relação a esse posicionamento sobre a existência de uma língua
brasileira é que o autor, apesar de afirmar em mais de uma passagem que esta “querela” da
“língua nacional” estaria superada, insista em discutir o assunto e em negar a validade dessa
tese, nisso também representando exemplarmente a sua geração (v., por exemplo, Elia (1940)
ou Chaves de Melo (1946)). O assunto assim, dada a recorrência, pareceu-nos, mais do que
superado, ter sido objeto de um certo consenso entre os membros da comunidade científica.
C) Conservadorismo
A língua portuguesa, nas suas variações usadas no Brasil, além de unitária, era para
Silva Neto, conservadora, sobretudo nos seus falares regionais. Esse conservadorismo, que
como a unidade, seria uma característica comum às línguas ‘transplantadas’ para áreas
diferentes daquelas em que se originaram, também teria explicações ‘externas’ (v. novamente
nota 6).
por vezes isoladas, que, não estando em contato com outras, tenderiam à conservação de suas
reduzidas, havendo, em função disso, reiterados contatos entre os mesmos indivíduos — uma
o interior do país, neste ela seria mais arcaizante, posto que as províncias, colonizadas
posteriormente, “são áreas conservadoras” (Silva Neto 1963[1950]:271). Além disso, durante
a Colonização, teria sido “reiterado e constante o esforço do poder público” para a difusão e o
estudo escolar da língua escrita, mais conservadora do que a oral. Complementando essa
atuação dos colonizadores, a elite colonial brasileira teria, desde os primórdios, manifestado a
vontade falar e escrever português, imitando os cânones gramaticais da Metrópole (v. Silva
compreensão da história da língua, uma vez que, preservando alguns traços mais arcaicos,
poderia ser útil para a confirmação de hipóteses sobre as transformações por que passou ao
D) Indianismo e africanismo
o autor afirmava ser muito menor do que o estimado até a sua época:
Para Silva Neto, o exagero poderia, em parte, ser explicado também por “razões
Portugal, o que levaria ao reconhecimento de uma língua brasileira. Somadas essas razões à
O que outros chamariam de influências, seriam, para Silva Neto, “cicatrizes” daquela
aprendizagem tosca da língua portuguesa nos inícios de sua expansão pelo Brasil (daquele
‘falar crioulo’) e situar-se-iam apenas em seus níveis mais superficiais (prosódico, vocabular e
sintático).
estar fundamentalmente marcada pela compreensão dos fatos em um nível global, amplo, que
pode tê-lo levado a essa tentativa de síntese, de conciliação, entre vários elementos — mesmo
que por ele percebidos como diferenciados —, unindo-os em outros maiores, observada neste
capítulo.
Assim, em relação aos temas tratados, pareceu-nos ter havido o objetivo essencial de,
de uma adequada história da língua; quanto aos recortes, a tentativa pareceu-nos também ser a
cultura e com as sociedades, que, por conta disso, auxiliaria e seria auxiliada por outras
disciplinas, não havendo, portanto, também neste nível, fronteiras muito rígidas a
O seu trabalho, enfim, pareceu-nos tender para o todo e isso se coadunaria com a
concepção de uma Filologia que respondesse amplamente pelo estudo das línguas (e dos
homens que as falam). Uma Filologia com objetos e tarefas, desse ponto de vista,
ilimitados.
conjunto de ideias é reconhecido como promissor não por seus traços intrínsecos, livres
tornando-o, posteriormente, o mais convincente para a maioria dos indivíduos que atuam
no campo.
As ideias que rastreamos nas obras de Silva Neto, desta forma, não eram
perspectiva que tomamos como ‘boas’ as ‘ideias’ e as ‘opções’ de trabalho do filólogo, que,
em sua época, tiveram o status de adequadas ao campo das ciências da linguagem, do qual a
CAPÍTULO 5
1940 e 1960 como decisivo para a história dos estudos sobre a linguagem no Brasil. O
principal deles talvez seja o papel ‘organizador’ que, visto em retrospecto, eles parecem ter
desempenhado nesta história: durante esses anos, os cursos de Letras formaram suas primeiras
principalmente, os estudiosos começaram a organizar o quadro das suas tarefas, seja elegendo
um elenco próprio de atribuições, seja procurando estabelecer fronteiras entre áreas diferentes
enfocamos, isto é de 1940 a 1960, e teve papel crucial na configuração do novo quadro em
que se inseriam os estudos da linguagem no Brasil, seja pela participação ativa e, pelo menos
158
até os anos 1940, de muito maior peso do que o da Geração de 40 na criação de ‘instituições’,
seja, como foi o caso, por exemplo, de Sousa da Silveira, pela aglutinação em torno de si
de Silva Neto. Além disso, os estudiosos dos anos 1920 legariam aos filólogos brasileiros da
geração seguinte os valores das escolas alemã, italiana, francesa e portuguesa no domínio
Talvez pelo vínculo com tais tradições, os filólogos, apesar de conhecerem a ‘nova’
de trabalho das tradições linguísticas históricas ou diacrônicas, que, no Brasil, foram durante
um longo tempo reunidas sob o rótulo de ‘Filologia’. Assim como nos centros aos quais se
estudos históricos.
de acordo com Kuhn (1987[1962]), nesse estágio, que denominou de ‘ciência normal’,
às soluções propostas pelo ‘paradigma’. Talvez por isso, as referências continuaram a ser
Geração de 40 talvez tenha sido a última, pelo menos até o momento atual, a ter laços
intelectuais mais estreitos com Portugal. Esses laços que, num primeiro momento, resumiam-
as duas partes.
científica portuguesa deste período, de brasileiros como Celso Cunha, Mattoso Câmara, Sílvio
Elia e Serafim da Silva Neto, por exemplo — o que, pelo menos em parte, deve estar
norte-americana — o que talvez esteja relacionado com uma importante mudança de ênfase:
histórico dos dados de língua e, entre eles, privilegiaram os de língua portuguesa (o que
tornava, até certo ponto, inevitável um maior contato com pesquisadores que se dedicassem às
mesmas questões — os lusitanos), por razões semelhantes, mudada a ênfase para questões
língua — com o desenvolvimento da Linguística sincrônica no país, a ligação passa a ser mais
5.1.1 Instituições
alguns dos primeiros núcleos a partir do prestígio dos veteranos representantes da Geração de
nova geração procuraria contribuir para a criação de outras, tomando nestes casos a dianteira,
criar associações, centro de estudos, periódicos etc., os quais, em conjunto com as instituições
A Geração de 40, portanto, encontrou situação favorável que aumentou tanto as suas
congregavam os estudiosos.
161
paradigma preferencial para a comunidade atuante durante os anos 20, neste período em que
também o contexto adquiria nova compleição, encontraram-se beneficiadas, uma vez que,
instituições e associações ocuparam postos centrais e, por conta disso, conferiram à sua
Para Murray (1994), como vimos, a condição de ‘elite’ acadêmica, como era o caso do
‘boas ideias’, que podem surgir em ambientes menos privilegiados. Contudo, o fato de existir
uma ‘base institucional’ poderia, segundo o autor, influenciar o destino dessas ideias pois,
instrumentos. Para um grupo que, como o filológico neste período, tem a estrutura de uma
medida em que podem disponibilizar toda uma estrutura de meios físicos e humanos,
Ainda com relação aos aspectos institucionais, cabe ressaltar o fato de as instituições
de ensino terem tido, como ainda hoje têm, uma função relevante para o desenvolvimento dos
ao ensino e, devido a isso, encontrou nos meios educacionais uma de suas mais privilegiadas
espaço constante para a atuação profissional e, por vezes, enfatizou em sua produção aspectos
linguístico-pedagógicos.
obrigatório dos cursos de nível intermediário, tiveram, como não poderiam deixar de ter,
Filologia.
principal ciência no campo de estudos sobre a linguagem com a Linguística e, como sabemos,
as posições dessas duas disciplinas se inverteram relativamente pouco tempo depois desse
No segundo caso, porque tal medida privou as novas gerações do domínio de uma das
ênfases dos estudiosos brasileiros no período: sendo uma das tarefas primordiais do
combinados, tiveram, dada face pedagógica do fazer ciência da linguagem, impacto decisivo e
tradição filológica enquanto principal linha de trabalho na área de estudos sobre a linguagem
estrangeiras que seria mantido pela Geração de 40, em certa medida, a Geração de 20 também
163
delineou as linhas segundo as quais seria dirigida a produção dos representantes da nova
geração.
Dessa forma, a postura geral em relação a tais predecessores pode ser caracterizada
como ‘continuísta’, tal como propôs Murray (1994): não houve, por parte da Geração de 40,
incluindo-se nela o futuro linguista Mattoso Câmara, uma postura conflituosa em relação aos
estudos e estudiosos dos anos 20. Com acesso às publicações, a postos de trabalho e a
aprovação por parte daqueles que, nos inícios dos anos 40, ainda constituíam o corpo de
(Murray 1994), foi incluída nos projetos da comunidade científica relevante e, mesmo quando
introduziu questões que mais tarde seriam interpretadas como ‘novidades’, foi incentivada por
ela (como se verifica, por exemplo, com o caso do prefácio de Silveira aos Princípios... de
Mattoso).
Não houve, de fato, elementos que opusessem o que produziu a Geração de 20 ao que
produziam seus sucessores. Existiram, é certo, alguns traços que singularizaram as produções
de ambos os grupos, muito provavelmente em função dos contextos em que elas surgiam.
inauguradas no país com o Dialeto Caipira (1920) de Amadeu Amaral38 — ao qual se seguiu
38
"Segundo o prof, Nascentes, coube a Antônio Pereira Coruja inaugurar a nossa Dialetologia. Refere- se o
ilustre filólogo à Coleção de Vocábulos e Frases usados na Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul,
publicado no tomo XV, 1852, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 2.ed. Londres, 1856..."
(Elia 1975:123). É comum uma autofiliação desses estudiosos a linhas de trabalho com a linguagem que
remontam ao século XIX brasileiro. Esse é um dos elementos que nos fazem considerar, embora desconhecendo
a produção de gerações anteriores, que, mesmo sem aparato institucional, uma tradição de pesquisa filológica
luso-brasileira se constituía no país desde, pelo menos, o século passado.
164
das principais frentes de trabalho da Geração de 40. A Dialetologia seria, aliás, um dos
principais pilares de todo o programa dos estudiosos da primeira metade deste século e teria
pesquisadores.
avulsos etc.
Um diferencial entre os dois tipos de produção talvez possa ser estabelecido por meio
da comparação entre a maior ou menor ênfase conferida por cada uma das duas gerações às
atividade na área desses estudiosos ter sido o trabalho com o ensino de nível médio contribuiu
para isso: a questão de ensino linguístico era um problema com o qual lidavam no dia-a-dia.
destinados ao ensino de línguas e literaturas, ou seja, obras cuja função primordial seria a de
tornar acessível a um público não especializado questões de uso da linguagem e/ou de história
literária. Como exemplos, podem ser citados os textos de Said Ali (1905; 1919[1908]; 1930;
1937); Mota (1935[1915]; 1937[1915]); Sousa da Silveira (1952[1923]); Magne (1919; 1927;
Para esta geração, portanto, existiram dois tipos paralelos de publicação sobre a
dialetológicos, os estudos de língua portuguesa etc.) e outro destinado àquele público não
39
v. a respeito Silva Neto (1963 [1950]), onde essa produção é revista.
165
quanto o primeiro em função das condições de exercício da profissão nesse período pré-
Faculdades de Filosofia.
‘linguístico-pedagógicos’ que, contudo, parecem ter tido menor destaque entre os outros tipos
de produção: se em relação aos anos 20 por vezes a principal obra de um autor pode ser uma
campo, com base em quê, isto é, passou a haver uma preocupação mais dirigida à formação
posteriormente também os linguistas, passaram a escrever cada vez mais para os ‘pares’, e a
de interesses.
Se com isso ocorreu uma redução do público para quem se produzia, por outro lado,
ocorreu também uma sofisticação paulatina da produção mais específica, já que, com a
questões relativas às próprias disciplinas linguísticas, aos seus métodos, às teorias autorizadas
Essas novas questões passavam a constituir, muito nitidamente, uma das ênfases do
trabalho científico com a linguagem de então e a mudança de status por que passou a carreira
de especialista em linguagem a partir dos anos 1940, novamente, parece estar relacionada a
isso: assim como o contexto acadêmico-institucional passava, durante esses anos, por um
ao mesmo tempo esses especialistas tentavam organizar o campo de estudos, seja por meio da
sistematização das relações entre as disciplinas linguísticas, seja pela determinação das tarefas
a serem cumpridas por elas, seja, ainda, pela proposição mais explícita e direta de critérios
apenas ao ensino médio, a Geração de 40 ampliou também o feixe de problemas com os quais
passou a lidar. Ela passou a enfocar questões até então menos relevantes, como as
metateóricas.
das tarefas e atividades. Ao mesmo tempo, teria também propiciado reflexões sobre o papel
teórica e metodológica.
Começou, com muita clareza, a existir preocupação com a formação das novas
gerações de acordo com certas linhas — e não outras — autorizadas pela tradição.
167
debate entre Filologia e Linguística no país: no instante em que se construía entre os cientistas
e perante a sociedade uma identidade oficial para a atividade de tratar a linguagem, tornava-se
disciplinas que afloravam no campo como distintas. O impulso ‘organizador’ deste período
... não é fácil ainda nesta altura dos acontecimentos apurar melhor os
conceitos e separar as duas disciplinas. Nossa luta ainda não chegou
nessa frente. Fere-se ainda numa outra bem mais próxima, em que
forcejamos por distinguir os estudos linguísticos de orientação científica
das enganosas e fátuas especulações dos gramatiqueiros e forjicadores
de regrinhas gratuitas (Chaves de Melo in Silva Neto e Chaves de Melo
1951:57)
No momento, parecia ser mais importante, antes de mais nada, determinar o que era
ciência e o que não era, uma vez que a nova geração se constituía por indivíduos com status
entre as duas disciplinas, já era possível aos cientistas compreender que havia dois modos
função da outra (cf. capítulo 3). Ou seja, para conceituar, tornava-se imprescindível separar
propor tarefas para a sua disciplina e limites entre ela e as demais. Pareceu necessário à sua
geração tornar mais evidente, até para ela mesma, do que tratava, que propósitos tinha a sua
área — define-se Filologia, Linguística, Dialetologia tendo em vista um todo em que elas se
complementariam (uma responsabilizando-se pela teoria, outra pela prática, outra por um dos
Sociologia, Psicologia etc., já que, afinal, todas tratariam do Homem e de sua cultura, na qual
A visão da disciplina é já por este traço bastante ampla: os conceitos de Silva Neto,
uma Filologia com uma certa feição interdisciplinar, útil a diferentes esferas do pensamento
Em função disso, a postura em relação ao debate sobre o qual nos debruçamos assume
ares conciliatórios, apesar do papel central conferido à Filologia: não se discute a legitimidade
dos estudos linguísticos, nem a sua utilidade e nem, muito menos, se enxergam estes estudos
como opostos ou contraditórios aos filológicos; eles seriam, sim, complementares, auxiliares,
e esta compreensão das relações entre as duas disciplinas deriva da própria concepção de
169
Filologia que, de tão ampla, não sustentaria uma relação em mesmo nível com as demais da
De fato, nossa análise demonstrou que, em síntese, para Silva Neto (e por extensão,
também para o grupo que liderava), a Filologia seria a disciplina, inserida no campo das
ciências humanas, responsável pelo estudo completo de uma língua, ou conjunto delas, e da(s)
sua(s) literatura(s). Nesse estudo, não se poderia perder de vista as relações dessa língua com
a cultura e a sociedade em que ela está inserida, daí advindo as inevitáveis interpenetrações
O estudo completo de uma língua seria entendido como o tratamento de todos os seus
níveis — dos falares populares até a linguagem literária; dos textos antigos até a linguagem
“Filologia de gabinete”, concentrada nos textos antigos e no estudo das diferentes fases da
língua, e uma “Filologia de campo”, responsável pelo tratamento dos seus falares rurais.
encarregando-se de uma das suas principais tarefas: a coleta e descrição dos falares rurais. E a
Linguística seria concebida como uma disciplina de caráter unicamente teórico e geral — e,
em função disso, o linguista não lidaria com línguas específicas, mas com questões gerais,
válidas para todas as línguas. Ela teria fundamentalmente, a função de orientar, em termos
Dada a sua concepção de Filologia, o papel atribuído por Silva Neto e, supomos,
também pelo seu ‘grupo’ às outras disciplinas da área com as quais ela se relacionasse não
poderia deixar de ser relativamente secundário: se a Filologia seria a responsável pelo estudo
A visão do debate era, pois, conciliatória, mas, ao mesmo tempo, era também
impresso aos seus trabalhos, do modo como esboçamos no capítulo 4: os dados da pesquisa
apontam que, tanto em relação aos temas tratados, quanto aos materiais, aos recortes, às
orientações, houve uma diversificação dos estudos que, no entanto, tomados em conjunto,
poderiam delinear o escopo daquela disciplina abrangente que idealizara. Como seu conceito
de Filologia comporta estudos de natureza variada, sua obra dispersa-se por diferentes áreas,
sem que, com isso, seja perdida a finalidade central de reconstruir a ‘história da língua
portuguesa’.
Com efeito, para Silva Neto, esse tema seria o mais amplo entre todos pelos quais a
‘história’ cobririam uma gama vastíssima de subtemas ‘humanos’. Por ser um tema central,
obra de Silva Neto que realizamos, o pluralismo da produção; a tarefa de recompor a história
relacionados. Apenas uma disciplina amplíssima daria conta de tamanha tarefa (ou se proporia
uma tarefa assim), que, por sua vez, dependeria da execução de outras tantas.
171
CONSIDERAÇÕES FINAIS
172
Considerações Finais
A concepção de Silva Neto de Filologia e das relações entre ela e a Linguística eram
Linguística de Mattoso Câmara, para quem esta disciplina trataria de todos os assuntos
teóricos e práticos das línguas e da linguagem e a Filologia trataria apenas de textos literários
Contudo, as ‘ideias’ de Silva Neto foram interpretadas como ‘boas’ neste contexto e o
Silva Neto, desde o princípio de sua carreira, foi aceito e estimulado pela ‘elite’
filológica então contemporânea, entre outros motivos, porque sempre se identificou como
Portuguesa.
americana de sua época, que citava circunstancialmente em suas obras, sempre vinculou sua
produção ao paradigma filológico e sempre, como convinha à sua tradição, atribuiu àquela
A sua função de ‘liderança’ nessa comunidade foi exercida, como vimos, tanto no
nível intelectual — por meio de uma produção que, ampla e heterogênea, foi tomada como
173
organizacional — entre outros feitos, através da criação daquela que seria tomada pelas
‘liderança organizacional’, parece ter contribuído para o sucesso das suas ‘ideias’ tanto
fundamental para o sucesso de um paradigma, Silva Neto foi um dos responsáveis pelo
sucesso da Filologia no período de 1940 a 1960 no Brasil, uma vez que se destacou como uma
maior sucesso.
Por outro lado, o insucesso da Linguística poderia estar relacionado à ausência, neste
período, de uma figura com perfil semelhante a guiá-la como ‘paradigma’: nesse momento,
Mattoso Câmara, com ideias que posteriormente foram reconhecidas como ‘boas’, adequadas,
não alcançou o mesmo destaque, talvez por não ter marcado tão claramente uma postura
continuísta em relação à tradição filológica luso-brasileira, como o fez Silva Neto. Tradição
que, afinal, era aquela cujos representantes estiveram à frente dos processos de
nesta medida, não pretendeu ter a conotação de que, antes deles, o desenvolvimento dos
estudos linguísticos não tivesse sido relevante — contra este não-argumento, pesa, pelo
Filosofia deveu-se à importância que tiveram para o grupo específico do qual tratamos — os
filólogos de sucesso no período de 1940 a 1960. Foi a partir e dentro desses novos espaços
que esses estudiosos puderam exercer com maior força o seu prestígio.
O fato, por exemplo, de ocupar ou não uma cátedra nas universidades mais centrais foi
tomado como um diferencial entre os cientistas desta geração, o que nos levou a considerar a
criação dos cursos, para este caso, como essencial: além de terem propiciado o
É assim que, quando se observa, por exemplo, a trajetória de Mattoso Câmara durante
as duas décadas de que tratamos, percebe-se, como procuramos explicitar no capítilo 3, que
ele esteve inserido neste grupo de sucesso à medida em que compôs, com os demais, o corpo
Filologia; manteve, no campo intelectual, relações cordiais com os membros do grupo de elite
linha — ponto em que parece estar a raiz da sua consideração, pelas crônicas sobre a história
à sua situação (específica para o caso) no conflito com Silva Neto em torno da tese
relativizar, o grau de ostracismo a que esteve submetido Mattoso Câmara, pois, se é fato
incontestável que a Linguística sincrônica não foi, para esse grupo, a forma preferencial de
175
conduzir estudos sobre língua/linguagem, por outro lado, é necessário reconhecer que a
alegada não-integração de Mattoso Câmara ao grupo de elite parece ter sido apenas parcial, ou
ainda, para sermos mais claros, “catedrática”. E mesmo em relação à disciplina, é necessário
salientar que os filólogos, como bem exemplifica a obra de Silva Neto, conheceram e
utilizaram — desde, pelo menos, Said Ali (1919[1908]) — a literatura chamada “linguística”.
Não houve aversão ou repulsa à outra disciplina, que, aliás, ainda nem era claramente
percebida por eles como uma concorrente, segundo o que nos relata Chaves de Melo (1951),
assim como parece não ter havido também ao seu principal defensor.
Houve, sim, a opção pela Filologia, que no momento satisfazia melhor às necessidades
língua/linguagem.
benefícios, mas enxergar na Filologia uma disciplina capaz de tratar completamente das
instrumental.
disciplinas dos cursos superiores de Letras, até 1962, a Linguística seria um acrescento, uma
A E
BIBLIOGRAFIA
Mota, Otoniel de Campos. 1935[1915]. O meu idioma. 7,ed. São Paulo: Nacional.
----------1937[1915]. Lições de português. 7. ed. São Paulo: Nacional.
----------1916. O pronome ‘se’. Campinas: Typologia da Casa Genoud.
Murray, Stephen O. 1994. Theory groups and the study of language in North America: a
social history. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins.
Naro, Anthony J. 1972. Tendências atuais da linguística e da filologia no Brasil. Rio de
Janeiro: Francisco Alves.
Nascentes, Antenor Veras. 1929. Noções de estilística e literatura. Rio de Janeiro:
Francisco Alves.
----------1939. Estudos filológicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
----------1940. Ortografia simplificada ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
----------1954. Elementos de filologia românica. Rio de Janeiro: Organizações Simões.
Nogueira, Júlio. s.d. “Um didata escritor”. In Barbadinho Neto, Raimundo (org.) s.d.
Estudos em homenagem a Cândido Jucá (filho). Rio de Janeiro. Organizações
Simões, pp, 141-145.
Pacheco, Elza. 1947. Resenha a Silva Neto, Fontes do latim vulgar. O Appendix Probi.
In Revista da Faculdade de Letras de Lisboa (XIII):74-75.
----------1947. Resenha a A santa vida e religiosa conversação de frei Pedro. In Revista
da Faculdade de Letras de Lisboa (XIII): 102-103.
Percival, W. Keith. 1976. “The applicability of Kuhn’s paradigms to history of
linguistics”. In Language 52(2):285-294.
Pestre, Dominique.(org.). 1992. “L’étude sociale de sciences. Bilan des anées 1970 et
1980 e consequences pour le travail historique”. Paris: Ed. Centre de Recherches
en Histoire des Sciences et Techniques.
----------1995. “Pour une histoire sociale et culturelle des sciences”. In Annales (Histoire,
Sciences Sociales). 50e année (3):487-522.
Petter, Margarida Maria Tacfcni. 1998. “A presença de línguas africanas no português
do Brasil”. In Estudos Linguísticos XXVII. Anais de Seminários do GEL. São
José do Rio Preto: UNESP-IBILCE, pp. 777-783.
Pinto, Edith Pimentel. (1981). O português do Brasil. Textos críticos e teóricos. Fontes
para a teoria e a história.Vol. 2. Rio de Janeiro/São Paulo: Livros Técnicos e
Científicos/EDUSP
Pinto de Almeida, (?). 1941. “Um livro muito nocivo”. In Revista filológica II(2):42-47.
Polanco, Xavier. 1989. “Une science-monde: la mundialisation de la Science européene
et la création de traditions scientificques locales”.In: POLANCO (org.).
Naissance et développement de la science-monde. Paris: La Découvert: 10-53.
Rajagopalan, Kanavilil 1989. “Sobre a indissociabilidade do historiar da linguística do
próprio fazer da linguística”. In D.E.L.T.A. 5 (2):225-240.
Ranauro, Hilma Pereira. 1997. Contribuição à historiografia dos estudos científicos da
linguagem no Brasil (Sílvio Elia e João Ribeiro). Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro/FEUC.
Raniere, Nina. 1994. Autonomia universitária: as universidades públicas e a
Constituição A Federal de 1988. São Paulo: EdUSP.
Ribeiro, João. 1933[1921]. A língua nacional. São Paulo: Nacional.
Robins, Robert 1990, “Contraints and intentions in the organization of linguistics”. In y
Hüllen,Werner (ed.). Understanding the historiography of linguistics. Problems
and Projects. (Symposium at Essen, 23-25 november 1989). Múnster: Nodus
Publikationem.
Rodrigues, Ada Natal. 1988. “A linguística na Universidade de Brasília pré-64: uma
resistência particular”. In Boletim da ABRALIN (9): 62-63.
Rodrigues, Aryon Dall’Igna 1988. “A linguística na Universidade de Brasília antes de
1964”. In Boletim da ABRALIN (9):57-61.
Said Ali, Manuel. 1905. Vocabulario orthographico das regras concernetes as
principaes difficuldades orthographicas da nossa lingua. Rio de Janeiro:
Laemmert Companhia.
----------1919[1908], Dfficuldades da língua Portugueza. 2.ed. São Paulo: Bemard.
----------1930. Grammatica histórica da língua Portugueza. São Paulo: Melhoramentos.
----------1937. Grammatica secundaria da língua Portugueza. São Paulo:
Melhoramentos.
Saldaña, J.J (ed.) 1986 . El perfil de la ciência en America. Mexico: Ed. Cuadernos de
Quipu.
Santos, Maria Cecília Loschiavo dos. 1997. Universidade de São Paulo. Alma mater
paulista (63 anos). São Paulo: EDUSP
Saussure, Ferdinand 1989[1916], Curso de linguística geral. [Trad. bras. de José Paulo
Paes e António Cheline
do original francês]. 15.ed. São Paulo: Cultrix.
Schlieben-Lange, B. 1989. “Reflexões a respeito do escrever sobre a história da
linguística'”. In História do falar e história da linguística. [Trad. bras. Fernando
Tarallo e Ute Bárnet-Fiirst]. Campinas: Editora da UNICAMP, pp.135-149.
Silveira Bueno, Francisco da. 1951. “Prof. Otoniel Mota”. In Jornal de Filologia (l):63-
66.
----------1954a. Estudos de filologia portuguesa. 2.ed. São Paulo: Saraiva.
----------1954b. Crítica a Manual de filologia portuguesa. In Jornal de Filologia
l.II(l):77-89.
----------1956. Crítica a Dicionário de fatos gramaticais, de Mattoso Câmara Jr. In
Jornal de filologia 10.IV(l):70-73.
----------1960. “Prof. Dr. Serafim da Silva Neto”. In Jornal de Filologia 5(l):53-54.
Sousa da Silveira, Álvaro Ferdinando de. 1952[ 1923]. Lições de português. 5.ed. Rio de
Janeiro: Livros de Portugal.
Spina, Segismundo. 1994. Introdução à edótica. Crítica textual. 2.ed. Revista e
atualizada. São Paulo: EdUSP/Ars Poética.
Swiggers, Pierre. 1981. “The history writing of linguistics: a methodological note”. In
General Linguistics 21(1):11-16.
----------1983. “La méthodologie de 1’historiographie de la linguistique”. In FLH (4):55-
79
----------1990. Refletions on (models for) linguistic historiography. In: Hüllen, Werner
(ed). 1990. Understanding the historiography of linguistics. Problems and
projects. Symposium at Esses, 23-25 November 1989. Munster: Nodus
Publikationen. pp. 21- 34.
----------1992. “Linguistic theory and epistemology of linguistics”. In Martin Pütz (ed.).
Thirty years of linguistic evolution: studies in honour of René Dirven on the
occasion of his sixtieth birthday. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins,
pp. 573-589.
185