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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA

Serafim da Silva Neto (1917-1960) e a Filologia Brasileira:


Um Ensaio Historiográfico sobre o Papel da Liderança na
Articulação de um Paradigma em Ciência da Linguagem

Olga Ferreira Coelho

Dissertação apresentada à área de Pós-


Graduação em Semiótica e Linguística
Geral como requisito para a obtenção
do Título de Mestre em Linguística

Orientadora: Cristina Altman

São Paulo
1998
3

Coelho, Olga Ferreira. 1998. Serafim da Silva Neto (1917-1960) e a Filologia Brasileira. Um
Ensaio Historiográfico sobre o Papel da Liderança na Articulação de um
Paradigma em Ciência da Linguagem. Dissertação de Mestrado. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo:
São Paulo.
4

AGRADECIMENTOS

As pessoas que listo a seguir estiveram, de um modo ou de outro, envolvidas no

processo de elaboração deste trabalho. Entre as diferentes razões que me levam a lhes dizer

“muito obrigada”, destaco apenas as mais prosaicas e óbvias, já que, aquelas mais

importantes, a gente jamais consegue agradecer suficientemente.

Agradeço, então:

À Cristina Altman, pela orientação bastante próxima e constante e pelas

oportunidades frequentes de aperfeiçoamento que tem proporcionado, a mim e às demais

participantes do Grupo de Estudos em Historiografia da Linguística Brasileira da USP,

desde a sua criação, em 1993.

Ao CNPq e ao Departamento de Linguística desta Universidade.

Aos funcionários, Eunides, Carlos e Ana Paula, da Biblioteca Central da FFLCH-

USP, e Fátima, Érica e Ben Hur, do Departamento de Linguística, pela paciência e apoio

ininterruptos.

Ao amigo Marcelo Módolo, ao Prof. Dr. Bruno Fregni Basseto (USP), à Profa.

Sandra Bernini da Costa (do SEGRAU, PUC-SP), à Profa. Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva

(UFBA), ao Prof. Léo Bárbara Machado (UFRJ), ao Prof. Dr. José Borges Neto (UFPR), à

Profa. Dra. Hilma Pereira Ranauro (UFF-RJ), à senhora Carmen de Oliveira (do Setor de

Periódicos Antigos da Biblioteca Municipal de São Paulo (Arquivo João Dias)) e à Maria

Inez Oliveto (da Bibioteca de Letras da UFRJ), pela indicação, facilitação do acesso e

mesmo concessão de obras fundamentais.


5

Aos Professores Doutores Carlos Eduardo Falcão Uchôa (UFF—RJ) e Evanildo Bechara

(UERJ), pelas conversas que renderam dados essenciais à pesquisa, e ao Prof. Dr. Sílvio Elia,

que gentilmente se propôs a fazer o mesmo e, por motivos justificados, não o pôde.

Às Professoras Doutoras Ângela Cecília de Souza Rodrigues e Margarida Maria Taddoni

Petter (USP), e ao Prof. Dr. Konrad Koerner (Universidade de Otawa), pela atenção com que

analisaram (e avaliaram) o projeto e pelas contribuições para o seu desenvolvimento.

Aos Professores Doutores Cristina Altman e Carlos Alberto da Fonseca (DL-USP),

Carlos Guilherme Mota e Maria Amélia Mascarenhas Dantes (Departamento de História Social

da USP), Frederick Newmeyer (Universidade de Washington), Eugenio Coseriu (Universidade de

Tübingen) e Konrad Koerner, cujos cursos e indicações tornaram menos árduo o trabalho.

Aos amigos, Renato Lagrieca Siqueira, Kátia da Costa Valle Leitão, Maria Eulália

Ramicelli, Adriene Zigaib, Luciana Marquez da Cunha e Debra Logston, a ajuda técnica em

momentos decisivos.

Às companheiras do Grupo de Estudos, Ângela Maria Ribeiro França, Erani Stutz

Adamo, Luciana Gimenes Parada dos Santos, Telma Regina Bueno e Vânia Érika Parada, com

cuja convivência tenho crescido humana e intelectualmente.

O agradecimento é especialíssimo para a Luciana — com quem convivo e divido

problemas, pontos de vista, dúvidas, ansiedades e sucessos profissionais e pessoais desde o

período da graduação —, a Ângela e o (Prof. Dr.!) José Carlos Barreto de Santana (com os

quais convivo há menos tempo, mas divido, com a mesma intensidade, as mesmas “coisas”).

Por fim, mas principalmente, agradeço ao meu pai, Sebastião Coelho Vaz, às minhas

irmãs, Elza, Zilda, Maria, Neusa e Raquel, e ao meu irmão, Délson, pelo papel de sócios que

desempenharam neste trabalho e em todo o resto. Dedico esta dissertação a vocês, lamentando

que a Mamãe e o Tó não tenham podido esperar.


6

ÍNDICE DAS TABELAS

Tabela I: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos livros


e opúsculos publicados por Silva Neto (1938-1960)............................................45[46]

Tabela II: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos artigos


e ensaios publicados por Silva Neto (1938-1960)................................................48

Tabela III: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos prefácios


publicados por Silva Neto (1938-1960)................................................................51

Tabela IV: Levantamento e classificação por ordem cronológica das resenhas


e obituários publicados por Silva Neto (1938-1960)...........................................52[51]

Tabela V: Relação dos documentos a partir dos quais se estabeleceu o


conteúdo paradigmático da Filologia Brasileira entre 1940 e 1960...................57

Tabela VI: Suportes informacionais para a detecção de variáveis pertinentes


aos agentes, aos problemas e ao conteúdo da Filologia Brasileira
entre 1940 e 1960.................................................................................................63[61]

Tabela VII: Distribuição temática da produção linguística publicada


de Serafim da Silva Neto (1938-1960)..................................................................66[64]

Tabela VIII: Distribuição das áreas de trabalho privilegiadas pelo 'paradigma’


da Filologia Brasileira entre 1940 e 1960.........................................................126[122]

Tabela IX: Distribuição dos tipos de orientação privilegiados pelo ‘paradigma ’


da Filologia Brasileira entre 1940 e 1960.........................................................133[130]

Tabela X: Distribuição dos materiais preferenciais do 'paradigma ’ da


Filologia Brasileira entre 1940 e 1960..............................................................130[133]

Tabela XI: Distribuição do corpus com dados de LN, por tipos de


língua...........................................................................................................................140[138]

Tabela XII: Distribuição dos recortes privilegiados pelo 'paradigma'


da Filologia Brasileira entre 1940 e
1960............................................................................................................................143[141]
7

ÍNDICE DAS FICHAS, FIGURAS E REPRODUÇÕES

Ficha 1:
Ficha-modelo do tratamento analítico dado à produção
científica de Serafim da Silva Neto (1917-1960)..................................................68[67]

Reprodução 1:
Reportagens de “Letras e Artes”(1948)................................................82[entre 79/80]

Reprodução 2:
Quadros de membros e de colaboradores da Academia
Brasileira de Filologia..........................................................................96[entre 94/95]

Figura 1:
Filologia e Ciências Humanas, segundo S. Silva Neto.....................113[entre 111/112]

Figura 2:
Filologia e Linguística, segundo S. Silva Neto..................................117[entre 114/115]

Figura 3:
A Filologia no campo dos estudos científicos, segundo Silva Neto...124[entre 120/121]

Figura 4:
A metalinguagem de Silva Neto: Esquema dos níveis de linguagem
da língua portuguesa........................................................................146[entre 143/144]
8

ÍNDICE

AGRADECIMENTOS.......................................................................................................4
ÍNDICE DAS TABELAS..................................................................................................6
ÍNDICE DAS FICHAS, FIGURAS E REPRODUÇÕES...............................................7
INTRODUÇÃO................................................................................................................11

Capítulo 1
Circunscrição do Problema: A Formação de Comunidades Paradigmáticas..............16

1.1 Controvérsias científicas e a concepção de ‘teorias’


como produtos idiossincráticos..........................................................................17

1.2 A controvérsia entre Filologia e Lingüística na Europa:


separação e especificação dos campos...............................................................20

1.3 Filologia e Lingüística no Brasil: especificidades........................................25

1.4 Formação de grupos científicos....................................................................29

1.5 O modelo funcional: estágios na formação de um grupo.............................32

1.6 O modelo funcional: outras variáveis...........................................................34

1.7 O modelo de conflito: escolha de retórica....................................................35

1.8 De volta ao caso brasileiro...........................................................................38

Capítulo 2
Método. Procedimentos adotados....................................................................................40

2.1 Escolha do autor...........................................................................................41

2.2 Periodização.................................................................................................42

2.3 Estabelecimento dos corpora................................................................................44


2.3.1 Suportes informacionais do conteúdo paradigmático da Filologia
Brasileira entre 1940 e 1960.........................................................................45
2.3.2 Suportes informacionais para o estabelecimento dos agentes, dos
problemas e do conteúdo da Filologia Brasileira
9

entre 1940 e 1960.................................................................................61[60]

2.4 Parâmetros de organização e análise dos corpora........................................65[63]


2.4.1 Conteúdo programático: categorias para o delineamento das idéias e
das práticas de trabalho científico........................................................65[63]
2.4.2 Informações sócio-relacionais: tratamentos dos materiais..........70[68]

Capítulo 3
Cientistas exemplares...................................................................................................72[70]

3.1 A Geração de 20...........................................................................................74[73]


3.1.1 Representantes.............................................................................74[73]
3.1.2 Formação.....................................................................................75[74]
3.1.3 Atuação profissional....................................................................79[77]
3.1.4 Linhas de trabalho filológico......................................................83[80]
3.1.5 Inícios da profissionalização: a criação das primeiras
Faculdades de Filosofia na década de 30.............................................85[83]

3.2 A Geração de 40...........................................................................................87[85]


3.2.1 Representantes.............................................................................87[85]
3.2.2 Formação.....................................................................................88[86]
3.2.3 Atuação profissional....................................................................89[88]
3.2.4 Linhas de trabalho.......................................................................91[89]
3.2.5 Centros de estudo e periódicos especializados............................95[92]

3.3 Um percurso de sucesso...............................................................................97[94]

Capítulo 4
As “Boas idéias”...........................................................................................................109[108]

4.1 As ciências da linguagem, segundo Silva Neto..........................................110[109]


4.1.1 Filologia e Linguística: especificidades e afinidades................110
4.1.2 Outras disciplinas e seus papéis no campo: Etnografia,
Dialetologia........................................................................................116[114]
4.1.3Gramática...................................................................................121[119]

4.2 O conteúdo paradigmático do programa filológico: áreas, orientações,


materiais, recortes e temas...............................................................................123[120]
4.2.1 Áreas preferenciais de trabalho.................................................125[121]
A) As tarefas centrais e a macrotarefa de elaboração
de uma história da língua portuguesa...................................128[124]
B) As tarefas auxiliares e a macrotarefa de elaboração
de uma história da língua portuguesa...................................130[127]
4.2.2 Orientações................................................................................132[130]
A) Histórica..........................................................................133[131]
B) (Meta)teórica...................................................................131[134]
C) Uso/variação e Gramatical..............................................135[132]
10

4.2.3 Materiais e recortes preferenciais.............................................136[133]


A) Posicionamento teórico...................................................136[134]
B) Tradição e regionalismos................................................140[137]
C) O português como objeto ‘global’..................................142[140]
4.2.4 A metalinguagem: língua, linguagem, falar, dialeto
e seus sentidos mais usuais................................................................144[142]
4.2.5 Tema recorrente e teses polêmicas: estudos sobre o
português do Brasil............................................................................147[144]
A) Crioulo............................................................................147[144]
B) Unidade na diversidade, diversidade na unidade............149[147]
C) Conservadorismo............................................................151[149]
D) Indianismos e africanismos............................................152[150]

4.3 Uma obra ampla para uma ‘macrodisciplina’............................................153[151]

Capítulo 5
A Articulação do Paradigma da Filologia Brasileira..................................................157[154]

5.1 O legado da Geração de 20: institucionalização e tradição.......................157[155]


5.1.1 Instituições................................................................................160[158]
5.1.2 A manutenção das tradições .....................................................162[161]

5.2 O legado da Geração de 40........................................................................167[165]

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................171[170]
ÍNDICE DOS NOMES CITADOS...............................................................................176
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................179
11

INTRODUÇÃO
12

Introdução

Esta dissertação visa ao exame de fatores intelectuais e sociais relacionáveis ao

sucesso (e ao fracasso) de um ‘paradigma’ (Kuhn 1987[1962]) numa comunidade científica.

Constitui um estudo de caso, no qual focalizo o debate entre Filologia e Linguística no

Brasil entre 1940 e 1960, a partir da perspectiva dos filólogos, que, neste período,

compunham a elite acadêmica da área de estudos sobre a linguagem no país.

Para elaborá-lo, analisei a produção científica publicada de Serafim Pereira da Silva

Neto (1917-1960) — um estudioso de grande projeção, cuja obra foi tomada pela comunidade

científica a ele contemporânea como ‘exemplar’ (Kuhn 1987[1962]) — e informações

relativas à sua atuação no campo institucional.

Os dois tipos de análise tiveram o propósito de caracterizar sua função de ‘liderança

intelectual’, isto é, de provedor e defensor de ideias, e de ‘liderança organizacional’, ou seja,

de criador de meios para a difusão dessas ideias entre os membros da comunidade científica

(cf. Murray 1994), e, ainda, de avaliar a contribuição desse seu papel de líder para que o

‘paradigma’ filológico se consolidasse como a forma preferencial de conceber e conduzir os

estudos sobre a linguagem naquela época.

Como veremos adiante, ‘liderança intelectual’ e ‘liderança organizacional’ são

apontadas por Murray como essenciais para que um ‘paradigma’ seja bem-sucedido. Nossa

hipótese é a de que o caso em foco oferece fortes indícios para a confirmação dessa proposta.
13

Além da produção científica do filólogo e dos elementos que o situariam como uma

das ‘lideranças’ de seu grupo, visando à reconstrução do contexto de produção científica entre

os anos 1940 e 1960, a dissertação também leva em conta dados referentes ao meio

acadêmico-institucional em que a geração de Silva Neto atuou, assim como os tipos de

produção científica característicos da época, cotejando, sempre que possível, esses dados com

outros, de mesma ordem, referentes à geração imediatamente anterior (ou seja, aquela que,

grosso modo, conduziu os estudos sobre a linguagem no país entre os anos 1920 e 1939).

Com tais propósitos, este texto constitui-se de cinco capítulos, esta introdução e

algumas considerações finais.

No Capítulo 1, Circunscrição do Problema: a Formação de Comunidades

Paradigmáticas, delimito o quadro teórico em que se insere este texto — com ênfase nos

trabalhos de Kuhn (1987[1962]) e Murray (1994 [1983]), que mais fortemente o caracterizam

—, assim como o seu ‘problema’ específico.

No Capítulo 2, Método. Procedimentos Adotados, explicito as opções metodológicas

feitas durante a pesquisa, tais como as que fundamentaram os processos de escolha do autor,

de estabelecimento de uma periodização, de seleção e de tratamento dos materiais de análise.

O Capítulo 3, Cientistas Exemplares, tem a função de esboçar o contexto viabilizador

do programa da Filologia Brasileira (e do seu sucesso) naquele período e a condição de

‘liderança’ de Silva Neto.


14

É um capítulo de análise de dados, a partir dos quais busco reconstruir parte do

contexto de produção de conhecimento do filólogo, bem como recuperar traços

caracterizadores da tradição de pesquisa a que esteve vinculado.

No capítulo 4, As “Boas Idéias”, visando à depreensão dos fatores cognitivos que

colaboraram para o sucesso do ‘paradigma’ filológico, analiso, de acordo com os parâmetros

estabelecidos no capítulo do método, os trabalhos de Silva Neto definidos, também naquele

capítulo, como corpus para a detecção do conteúdo paradigmático da Filologia Brasileira

naquelas duas décadas.

Com esta análise, esboço, em grandes linhas, as práticas e ideias linguísticas do autor,

em seus traços mais marcantes e gerais, delineando um quadro indicativo dos tipos de

‘produtos científicos’ prestigiados pela comunidade acadêmica em foco.

Como é nosso propósito caracterizar tanto suas ‘ideias’ — ou seja, suas formulações a

respeito do que seria a ciência da linguagem e do que ela deveria tratar — quanto aquilo que

efetivamente produziu, procuramos partir daquelas para, em seguida, correlacioná-las com as

‘opções’ feitas pelo autor na condução do seu trabalho.

Desse modo, na primeira seção desse capítulo, que é o mais extenso deste trabalho,

procuro definir o pensamento do autor a respeito do campo de estudos da linguagem, das

disciplinas por ele responsáveis e das atribuições de cada uma delas na condução de tais

estudos, para, nas seções seguintes, apontar as suas áreas preferenciais de trabalho, as

orientações preferencialmente impressas às suas obras, os principais materiais e recortes, a

sua metalinguagem e alguns dos temas recorrentes em seus trabalhos, estabelecendo, ao final,

um paralelo entre essas suas ‘opções’ e aquelas suas ‘ideias’ apresentadas inicialmente.

No capítulo 5, A Articulação do Paradigma da Filologia Brasileira, coordeno as

informações apresentadas nesse capítulo 4 e no anterior com o modelo de formação de grupos


15

científicos proposto por Murray (1994). Recupero, dessa forma, o conjunto de elementos que,

por hipótese, teriam contribuído para a repercussão positiva de estudiosos como Silva Neto e

de tipos de produção científica como a sua, exemplarmente representativa do ‘paradigma’ de

sucesso no período.

O grupo de Silva Neto legitimou-se e ao seu ‘paradigma’ institucionalmente,

conferindo ao ambiente acadêmico o papel de principal cenário difusor/concentrador das suas

ideias. Daí a nossa ênfase consciente, nos Capítulos 3 e 5, nesta face do contexto que cercava

os estudos sobre a linguagem no Brasil do período — a acadêmico-institucional — em

detrimento de um tratamento mais pormenorizado de outros possíveis aspectos relevantes: o

que fizemos foi recortar, na gama de elementos que talvez pudessem ser associados aos

agentes e às práticas que enfatizamos, o que, para os nossos objetivos — fundamentalmente, o

de delinear o estado do debate entre Filologia e Linguística no momento a partir da percepção

dos filólogos — se configurou como essencial, ou, pelo menos, mais diretamente relacionado

ao nosso ‘problema’ central.

Em Considerações Finais, avalio brevemente as relações entre Filologia e Linguística

no Brasil entre 1940 e 1960 e a contribuição da variável ‘liderança’ para que a primeira dessas

disciplinas obtivesse, naquele período, maior sucesso.


16

CAPÍTULO 1

Circunscrição do Problema: A Formação de


Comunidades Paradigmáticas

“Constitui [...] grave lacuna de nossos estudos a falta de um


esboço histórico. Este assunto é da maior importância, uma
vez que, não só os principiantes, como os iniciados, precisam
conhecer o que já se fez e o que está ainda por fazer.”
(Silva Neto 1988[1957]:15)
17

Circunscrição do Problema: a Formação de

Comunidades Paradigmáticas

1.1 Controvérsias científicas e a concepção de ‘teorias’ como produtos

idiossincráticos

Controvérsias científicas são um instrumento importante para a historiografia das

ciências, se o historiógrafo as interpreta como manifestações da ‘não objetividade’ do saber

científico: se é possível aos cientistas elaborar teorias e atuar em um campo de investigação

de acordo com práticas diferenciadas de outras desse mesmo campo, isso muito

provavelmente significa que teorias e métodos científicos, por serem resultantes de elaboração

humana, não são objetivos e, por essa razão, não estão livres de contestações, reinterpretações

e concorrências. As controvérsias, ou disputas, neste sentido, tornam mais explícito aquilo

que a história social das ciências considera um fato: as teorias científicas são elaborações, ou

‘verdades construídas’ pelos cientistas (Pestre 1995) e, como tais, vinculam-se às suas

crenças, ideologias, que, por sua vez, são respaldadas por contextos particulares. São modos

de pensar, que, como os homens e as sociedades, estão sujeitos a mudanças de tempos em

tempos. Nesse sentido, são ‘verdades relativas’.


18

Compreendê-las dessa maneira impede que o historiógrafo, ao revisitá-las, julgue-as

segundo critérios absolutos. Ao contrário, se s teorias são formas de interpretar o mundo, seu

estudo histórico requer uma tentativa de compreender essas visões específicas dos fatos em

seus contextos, sempre específicos, de surgimento e desenvolvimento.

É deste prisma que Kuhn (1987[1962]:21) considera as ciências e suas mudanças,

quando afirma que uma teoria mais antiga, mesmo se descartada, não se torna, a princípio,

menos científica, nem menos o produto de idiossincrasias do que a que a sucede na

preferência da comunidade. O que se poderia dizer, em tais casos, é que a teoria nova

responde melhor às exigências do contexto dado, e isso não significa que esteja mais próxima

do real ou da verdade, mas que, em ambiente social e cultural específico, como ‘interpretação’

científica, tonou-se mais ‘convincente’ do que a predecessora na resolução de problemas

considerados relevantes pela comunidade. Em suma, o que dividiria os cientistas e propiciaria

controvérsias seria aquilo que entende como “a incomensurabilidade de suas maneiras de ver

o mundo e nele praticar a ciência” (Kuhn 1987[1962]:23) e o que determinaria o sucesso de

uma dessas ‘maneiras’ em uma controvérsia seria o poder de persuasão a ela conferido pelos

cientistas que a defendem.

Para Kuhn, além desse período de substituição de uma teoria científica antiga por uma

outra, que denomina período de ‘revolução científica’, verificam-se pelo menos outros dois na

dinâmica de desenvolvimento das ciências.

O primeiro deles, o período de ‘ciência normal’, seria marcado pela estabilidade de um

‘paradigma’ — isto é, uma teoria científica largamente reconhecida que, durante algum

tempo, fornece problemas e soluções modelares para a comunidade de praticantes de uma

ciência (cf. Kuhn 1987[1962]: 13) — de sucesso guiando as pesquisas da área. Os cientistas,

nesse estágio, não buscam, e até mesmo repelem, novidades: a comunidade interessa-se
19

unicamente pelo quadro de problemas postulados pelo ‘paradigma’ e pelas soluções por ele

propostas para tais problemas. Eles têm como parâmetros soluções elegantes — os chamados

‘exemplares’ — encontradas no bojo da tradição paradigmática. Sua principal referência,

portanto, são as realizações científicas de sucesso nascidas no interior do paradigma.

Quando algo é percebido por estes cientistas como uma anomalia, ou seja, como um

problema relevante para o quadro de pesquisa para o qual, reiteradamente, a teoria não

consegue apresentar solução adequada, inicia-se um novo período, o de 'crise':

O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam


que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos. (Kuhn
1987[1962]:105)

No período de crise, portanto, os cientistas sentem-se impelidos a rever as bases

em que era conduzida a ‘ciência normal’. É nesse período que pode ser instaurada uma

‘revolução científica’— sempre um episódio desintegrador da tradição à qual a atividade

da ‘ciência normal’ está ligada (Kuhn 1987[1962]:25). Uma 'revolução científica'

significa uma ruptura com a tradição, o coroamento de uma nova forma de pensar e conduzir

a ciência anteriormente guiada por outro ‘paradigma’ e, naturalmente, por outros indivíduos.

De fato,

A competição entre segmentos da comunidade científica é o único


processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria e
na adoção de outra. (Kuhn 1987[1962]:27)

Nessa ‘competição’, pois, os agentes são os cientistas. E o recurso à persuasão é

fundamental, uma vez que a aceitação de uma teoria como 'paradigmática’ deriva de seu

poder de convencimento: ela deve parecer melhor do que suas concorrentes, mostrando-se

mais bem equipada do que elas para a resolução de problemas que a comunidade de cientistas

reconhece como graves (cf. Kuhn 1987[1962]:38 e 44).


20

Uma ‘competição’ ou ‘controvérsia’ científica, assim, mais do que opor boas

teorias a outras sem esse qualificativo, expõe a relatividade de tais teorias ou, antes, a

sua relação de dependência com os contextos — sociais, políticos, intelectuais etc. — em que

se inserem.

1.2 A controvérsia antre Filologia e Linguística na Europa: separação e

especificação dos campos

Nas ciências da linguagem, tem sido apontada como uma das principais controvérsias

aquela verificada em meados do século XIX europeu ocidental, sobretudo na Alemanha, entre

Filologia e Linguística, que polarizou, grosso modo, um ponto de vista marcadamente

histórico-cultural, que por vezes incorporava problemáticas literárias, em relação a um outro,

mais vinculado às chamadas 'ciências naturais’, que propunha a análise das diferentes línguas

‘internamente’, segundo critérios, na visão dos novos cientistas, mais objetivos do que

aqueles estabelecidos pela outra tradição. O debate fortaleceu-se naquele período, no qual a

Linguística era estabelecida como disciplina autônoma (Koerner 1997:7-20; Amsterdamska

1987).

Para que isso ocorresse, teria sido fundamental o papel desempenhado por August

Friedrick Schleicher (1821-1868), que parece ter sido o primeiro scholar europeu a procurar

distinguir claramente os dois campos de atuação científica (Koerner 1997:12). Para ele, era

essencial diferenciar os dois tipos de estudo, já que, enquanto a Filologia, ciência humana, na

sua visão, relacionava a linguagem à cultura e ao pensamento do povo que a utilizava, a

Linguística, ciência natural, estudava a linguagem per se, abstraindo aquelas relações. Esse
21

modo de conceber (e tratar) a linguagem harmonizava-se com o ‘clima de opinião’ do período

(Koerner 1984): para a comunidade em questão, as ciências naturais pareciam, naquele

momento, corporificar a verdade e, devido a isso, vincular-se a elas era tornar sua disciplina,

por assim dizer, ‘mais científica’:

According to Schleicher, linguistics is a natural science. While


philology is concerned with the study of [...] the cultural side of
language, linguistics studies language as a natural organism whose
development is independent of human will and thought
[...]
The independence of language from human will and subjectivity
make the method of linguistics fall under the auspices of the natural
sciences, and not of the historical sciences, which deal with free will
and subjectivities, and whose methods must accordingly reflect this
situation. (Amsterdamska 1987:45)

Eram tentativas explícitas (Koerner 1997:13) de desvincular as novas práticas das

precedentes, de desvincular da tradição histórico-filológica, as novas investigações, ‘naturais’,

linguísticas ou glotológicas.1

A geração anterior à de Schleicher, em que se destacaram estudiosos como Franz

Bopp (1791-1867), Rasmus Kristian Rask (1787-1832) e Jacob Grimm (1785-1863), embora

já distanciasse suas práticas daquelas da Filologia ‘tradicional’ ou ‘clássica’, mais atrelada à

literatura e ao tratamento de textos antigos, não se opôs, tão claramente a ela, enquanto

representante de uma ‘nova’ tradição (Koerner 1997:10), evitando controvérsias. Schleicher e

seu grupo parecem ter inaugurado a tentativa de demarcar campos distintos para duas

disciplinas, a partir daí, consideradas independentes — de um lado, a Filologia e, de outro, a

1
O termo ‘Glotologia’ ou ‘Glótica’, em alemão, Glottik, foi eleito, pelo novo grupo, para nomear as novas
práticas, diferenciando-as das desenvolvidas na Filologia (Philologie) — para uma nova ciência, um novo
nome. Como é análogo, por exemplo, a Bottanik, a preferência pelo seu uso foi também interpretada por
Koerner (1997:12) como uma tentativa de situar os estudos sobre a linguagem nos domínios das ciências
da natureza.
22

Linguística ou Glotologia. Surgiam os primeiros embates entre essas disciplinas no contexto

ocidental.

Ao que tudo indica, faz parte da dinâmica de sucessão de ‘tradições’ em ciência a

negação de vínculos com a tradição precedente por parte daqueles que propõem novos

modelos (cf. Kuhn 1987[1962]). Para que uma nova teoria se firme como mais promissora, as

precedentes parecem dever ser rotuladas como obsoletas.

Embora a tendência nas ciências da linguagem não pareça ser a de ‘substituição’, para

usar a terminologia de Kuhn, de um ‘paradigma’ por outro, mas sim a de deslocamento de

ênfase sobre um ou outro tipo de estudo ao longo do tempo — com a

ascendência da Linguística, por exemplo, não deixaram de ser realizados estudos

filológicos, mas eles passaram a ter, paulatinamente, menos espaço nos chamados

'debates centrais’, ou seja, a Linguística passou a ser a forma mais praticada e

prestigiada pela comunidade de realizar ciência e a Filologia prosseguia como uma

tendência ‘marginal’ — no caso do embate entre filólogos e linguistas de meados do

século XIX, na Alemanha, essa tendência à ruptura parece ter sido fortemente acentuada,

uma vez que Schleicher e aqueles que mais tarde fundariam a Escola dos Neogramáticos

em Linguística propuseram não apenas uma nova teoria explicativa dos fatos de

linguagem, mas uma nova disciplina, autônoma, sem ligações de dependência com a longa

tradição de estudos já estabelecida no campo (Koerner 1997).

O vigor na defesa dessa distinção seria posteriormente mantido:

...Schleicher continuou a enfatizar a dicotomia entre ‘filologia’ e


‘linguística’, e a ciência linguística, a partir de então, sempre
procurou deixar clara tal distinção. (Koerner 1997:13)

Schleicher não negava valor à Filologia; ao contrário, considerava importante para o

linguista usar, esporadicamente, saberes filológicos, na mesma medida em que previa a


23

necessidade contrária, ou seja, a de o filólogo valer-se de conhecimentos linguísticos.

Contudo, propunha que ambas as disciplinas caminhassem separada e independentemente,

como a Biologia e a Química, por exemplo.

Curiosamente, a Linguística proposta para se contrapor à Filologia era, como esta,

uma disciplina histórica. Entretanto, haveria entre elas uma crucial diferença, uma vez que a

Linguística estaria destinada a reconstruir a evolução interna das línguas, com base em ‘leis’2

naturais, invariáveis de contexto para contexto, enquanto a Filologia procuraria um elo entre

língua, pensamento, cultura (inclusive literária) de um povo.

Assim, a ‘mudança científica’ introduzida por Schleicher e pelos Neogramáticos teve

como principal resultante o estabelecimento de duas disciplinas diferenciadas, mantida a

ênfase sobre os aspectos históricos, tomados de uma outra perspectiva, isto é, a história a ser

reconstruída não seria mais uma história culturalista da língua (filológica), mas uma história

naturalista (glotológica ou linguística). A concepção de que as mudanças nas línguas

ocorreriam em paralelo com as mudanças culturais e sociais perdia seu lugar de destaque para

a de que tais mudanças fariam parte da evolução natural dessas línguas.

Mais tarde, na mesma Europa Ocidental, a partir do Cours de linguistique générale

(1916), de Ferdinand de Saussure (1857—1913), e do desenvolvimento das chamadas Escolas

Estruturalistas, outra bipartição se verificou no campo. Dessa vez, entre uma Linguística

chamada ‘tradicional’, identificada com o século XIX, de orientação histórica (ou diacrônica),

e uma Linguística chamada ‘moderna’, predominantemente estática (ou sincrônica).

2
Segundo Koerner, que estudou a obra de Schleicher, este ‘glotólogo’ acreditava que as ‘leis’ fossem válidas
principalmente para o nível morfológico, muito raramente para o sintático e de modo quase improvável para o
estilístico. Era a morfologia o seu principal foco de interesse, tanto assim que é ele quem introduz o termo nos
estudos linguísticos, em 1859, numa clara alusão às ciências naturais nas quais a palavra já era empregada (v.
Koerner 1989:237).
24

A Linguística preferencialmente desenvolvida a partir de então abstraiu o fator

tempo, ênfase, sob aspectos diferenciados, das tradições filológica e linguística de estudos da

linguagem no século dezenove. Dos dois pontos de vista, diacrônico e sincrônico, em que,

segundo Saussure, poderia se colocar o investigador, o último passou a ter um certo primado

para a comunidade científica, e a Linguística histórica (como também a Filologia), a ser

afastada dos ‘debates centrais’ em ciência da linguagem (Koerner 1997:16).

É evidente que não se deixou de praticar Filologia ou Linguística histórica; mas a

maioria daqueles que passaram a atuar no campo optaram pela Linguística sincrônica. As

produções passaram a constituir, prioritariamente, e cada vez mais, descrições de estados de

línguas, com cada vez menores referências aos seus desenvolvimentos históricos.

A ruptura que se verificou, portanto, não foi apenas em relação à chamada Linguística

histórica ‘natural’— já que se instaurou uma espécie de cisão interna na disciplina entendida

como ‘Linguística’, que conquistara autonomia no século XIX, estremando uma modalidade

histórica de outra estática, com predomínio desta — mas em relação às tradições, filológica e

linguística, do século anterior.

Apesar da noção de língua como produto social e cultural, fundamental na longa

tradição de estudos filológicos ‘tradicionais’ (v. Ulhôa Cintra 1939; Basseto 1996), ser

também basilar para a Linguística inaugurada por Saussure e desenvolvida pelas Escolas

Estruturalistas do início deste século, existiria pelo menos uma diferença marcante entre

ambas, qual seja, a de que, em oposição à conjunção proposta pela Filologia entre os estudos

linguísticos e culturais, os novos cientistas da linguagem aglomeraram-se em torno do

consenso de que a língua, embora tomada como elemento social e cultural, devesse ser

estudada isoladamente.
25

1.3 Filologia e Linguística no Brasil: especificidades

No Brasil, o debate — que também se revela importantíssimo para a história dos

estudos sobre a linguagem locais — entre Filologia e Linguística, teve pelo menos duas

características peculiares.

Primeiramente, a distinção entre as disciplinas não foi aquela proposta por Schleicher

entre uma especialidade cultural e outra natural: sendo ponto pacífico tratar-

se de disciplinas inseridas no campo das ciências humanas, e não no das ciências da

natureza, no Brasil a diferenciação entre as duas disciplinas tendeu a ser estabelecida

sobretudo em relação ao ‘objeto’ e à ‘orientação’. A Filologia brasileira comportaria

estudos de uma língua, ou de um conjunto delas — incluindo, e por vezes destacando, sua(s)

modalidade(s) literária(s) — sob perspectiva predominantemente histórica (ou diacrônica); à

Linguística caberiam as análises mais teóricas que, mesmo se incorporassem dados de língua,

enfatizariam princípios linguísticos ‘gerais’.

Ser filólogo, assim, não significava estar restrito ao trabalho tradicional de tratamento

dos textos antigos, nem, muito menos, aos pressupostos dos estudos sobre a linguagem do

século XIX. Significava ter como tarefa o tratamento total da(s) língua(s) — incluindo-se aí

suas fases anteriores, sua expressão literária, suas variações contemporâneas, sobretudo as

regionais — com forte apelo à sua história.

Em vista disso, por muito tempo, estudos que, de alguma maneira, enfatizaram a

história (ou a diacronia) foram tomados como sinônimos de ‘Filologia’ e a expressão

‘Linguística histórica’, entendida como uma espécie de junção de dois termos contraditórios

(‘Linguística’ e ‘História’). A natureza da Linguística seria sincrônica e teórica. A da

Filologia, diacrônica e voltada para os dados de língua.


26

A segunda peculiaridade é cronológica: o debate entre essas formas distintas de

trabalho com a linguagem, apenas na década de 60 deste século (Altman 1995) começou a se

delinear com maior clareza, em vista do paulatino desenvolvimento de uma tradição

linguística brasileira — detonado, entre outros fatores pela institucionalização da Linguística,

que passava a ser disciplina obrigatória nos currículos de Letras. Duas décadas antes, Joaquim

Mattoso Câmara Júnior (1904-1970) havia publicado seus Princípios de Lingüística Geral

(1941) que, não obstante a circulação considerável nos meios acadêmicos, não conseguiu

alterar a opção predominante pelo ponto de vista filológico, como esboçado acima, na

condução do trabalho científico sobre a linguagem no país (Pinto 1981).

A manutenção, por tanto tempo — se considerarmos que o Estruturalismo se expandia

em outros países da Europa e da América, disseminando fortemente a opção pela sincronia —

da Filologia, com forte apelo histórico, como principal tendência nos estudos sobre a

linguagem brasileiros sinaliza um grande poder de persuasão deste 'paradigma’ na tarefa de

proposição e resolução de problemas durante toda a primeira metade deste século, já que,

mesmo conhecendo, e por vezes utilizando, conceitos e teorias ‘linguísticas’ na condução de

suas pesquisas, os estudiosos que dominavam o cenário dos estudos sobre a linguagem no

país até meados dos anos 60, reconheceram-se preferencialmente como filólogos e atuaram

tendo como parâmetros os pressupostos, as teorias e os métodos produzidos pela tradição de

estudos diacrônicos.

Haveria, em outros termos, ou no conjunto de ideias filológicas, ou no contexto em

que tais ideias disputaram espaço com as linguísticas, ou ainda, em ambos, algo que teria

sustentado a predominância do paradigma filológico e a marginalidade do paradigma

linguístico em um período em que as lideranças intelectuais pareciam ter notícia do que


27

ocorria em termos de tendências nos centros Europeus e Norte Americanos, e, mais do que

isso, pareciam nutrir a preocupação de acompanhá-las.

Tendo notícias sobre o Estruturalismo, reconheceram na Filologia, associada à

diacronia e à prática de tratamento específico das línguas, e não na Linguística, associada à

sincronia e à teorização dos aspectos ‘gerais’, a principal responsável pelo conhecimento

produzido (e a ser produzido) sobre a linguagem.

De fato, durante as décadas de 40 e 50, a Filologia, fortemente estabelecida, dominava

os meios acadêmicos brasileiros, e a Linguística era, pela maioria dos cientistas, entendida

como uma disciplina de caráter geral, a guiar, auxiliarmente, os trabalhos filológicos:

A Lingüística é uma ciência de princípios gerais, aplicáveis a


quaisquer línguas. Nessa conformidade, não julgamos aconselhável
falar, por exemplo, em lingüística francesa, ou inglesa, com o fito de
referirmos estudos acerca dessas línguas. A lingüística parece-nos
sempre geral [...]. (Silva Neto 1988 [1957]:XII)

...é a Filologia Portuguesa árduo estudo, que exige preparação longa e


difícil. Em primeiro lugar, tão minucioso e completo quanto possível
o conhecimento prático da língua. Depois, os princípios básicos da
Lingüística, com que se há de orientar o estudo científico [...]. (Silva
Neto in Silva Neto & Chaves de Melo 1951:16)

O filólogo, que trataria das línguas em todas as suas extensões, a partir, sobretudo, de

um ponto de vista histórico, necessitaria, como vimos, conhecer a Linguística — ciência de

princípios gerais, “aplicáveis a quaisquer línguas” — para ter uma espécie de norte na

condução de seu trabalho científico. A Linguística, assim, forneceria um instrumental teórico

— básico e geral — para o tratamento adequado das questões da(s) língua(s).


28

Na mesma medida que noções de Linguística, seriam também úteis ao filólogo

conhecimentos a respeito da Dialetologia, disciplina que, por privilegiar os falares regionais,

ofereceria “a possibilidade de reconstruir, em base firme e com dados concretos, a história da

língua” (Silva Neto 1957[1955]:35), uma vez que esses falares, mais conservadores,

equivaleriam aos estágios mais antigos do português. Operando o ‘milagre’ de ser, a um

mesmo tempo, “sincronia e diacronia” (Silva Neto 1957[1955]:35) — pelo fato de, através de

material contemporâneo, possibilitar o conhecimento das etapas anteriores da língua — a

Dialetologia configurava-se, desse modo, como uma importante aliada da Filologia,

amparando-a na tarefa de tratar historicamente as línguas.

Com efeito, se admitirmos, ao menos como hipótese inicial de trabalho, que os textos

de Serafim Pereira da Silva Neto (1917-1960) citados anteriormente refletiam o ‘clima de

opinião’ entre os filólogos de sua geração — justamente aquela em que as duas disciplinas

passam a coexistir no contexto brasileiro —, as relações entre as disciplinas que, no Brasil das

décadas de 1940 e 1950, tomavam a linguagem e as línguas como objeto poderiam,

simplificadamenrte, resumir-se como: a Filologia detendo o status de principal disciplina a

tratar dos fatos linguísticos, aliando-se à Dialetologia, encarregada de verificar as hipóteses

históricas levantadas a respeito das línguas, e à Linguística, disciplina teórica encarregada de

fundamentar a prática filológica.

No topo da hierarquia sugerida estaria, evidentemente, a Filologia.

A partir dos anos 60, contudo, esse quadro, gradualmente, começou a se inverter no

cenário brasileiro, de tal modo que a Linguística passou a ocupar no país o lugar de excelência

antes pertencente à Filologia.

De fato, desde a ascensão da disciplina Linguística no cenário acadêmico brasileiro

dos anos 60, teorias e práticas de análise, prestigiadas nas décadas anteriores, foram relegadas
29

ao domínio do ‘ultrapassado’ em nome de outras teorias e práticas entendidas como mais

‘modernas’ em matéria de fazer ciência da linguagem (cf. Altman 1995).

Parece razoável admitir que essa troca de valores, assim como a persistência anterior

dos valores filológicos, não se devam apenas ao mérito intrínseco das teorias autorizadas, quer

pelo ‘paradigma’ da Filologia, quer pelo ‘paradigma’ da Linguística, mas resultem também de

fatores de natureza social, correlacionáveis ao sucesso (ou ao fracasso) de um paradigma entre

os membros de uma determinada comunidade científica (cf. Kuhn 1987[ 1962]; Murray

1994).

1.4 Formação de grupos científicos

Partindo do pressuposto de que mais do que a genialidade de indivíduos isolados, ou a

força ‘interna’ de persuasão de um conjunto promissor de ideias, o que conduz a ciência e

suas transformações — por meio de escolhas e negociações —, seja no estágio que Kuhn

denominou de ‘ciência normal’, seja no que denominou de ‘ciência revolucionária', são os

grupos de cientistas, em Theory groups and the study of language in the North America: a

social history (1994), Stephen Murray testou e propôs uma reorganização do modelo de

formação e manutenção de grupos científicos organizado, em 1972 por Griffith e Mullins.

O teste realizou-se, fundamentalmente, a partir do estudo histórico da Linguística

antropológica nos Estados Unidos, e verificou em que condições houve a formação de grupos

em torno de um (ou alguns) estudioso(s) e em que outras condições, esforços para a formação

e a manutenção de grupos falharam.

A premissa básica deste teste, naturalmente, era a de que, como sempre podem existir

formas diferentes de conceber e praticar uma ciência, devido ao próprio caráter relativo das

‘verdades’ que ela propõe, para que uma teoria alcance sucesso, é necessário que exista, para
30

defendê-la, um grupo bem articulado de cientistas, capaz de convencer a comunidade da

maior adequação e, mesmo, da superioridade dessa teoria. Para Murray, um cientista com

ideias promissoras, porém incapaz de articular um grupo em torno de si, dificilmente — pelo

menos é o que conclui para o caso norte-americano — conseguirá impor à comunidade

científica a supremacia de sua visão de mundo.

O teste, assim, visou ao delineamento do conjunto de fatores necessários para que um

grupo se articule em torno de determinados cientistas — e de suas ideias; fatores estes que,

por hipótese, se ausentes, inviabilizariam essa articulação. Em outros termos, Murray

procurou estabelecer o que era necessário para que um ‘grupo científico’ se consolidasse

enquanto tal, obtivesse respaldo da comunidade de cientistas e, por meio deste, sucesso em

sua área.

Os estudos de casos realizados levaram-no a confirmar que, em concordância com o

que propuseram Griffith e Mullins, é preciso, para formar um 'grupo científico’, ‘boas idéias’,

‘liderança intelectual’ e ‘liderança organizacional’. Apenas em presença desses três fatores,

grupos científicos, os verdadeiros condutores da ciência, teriam condições de se constituírem

e, eventualmente, obterem sucesso.

O primeiro dos três fatores, ‘boas idéias’, foi definido como um conjunto de idéias

aceitas como adequadas pelos cientistas para resolver problemas existentes ou para abrir

novas áres de investigação. Elas devem ser percebidas pelos cientistas como, pelo menos,

formas prováveis de solucionar (novas) questões de pesquisa. A qualidade de ‘boas’, desse

modo, seria historicamente relativa e atribuída às ideias pelos próprios pesquisadores e não

por filósofos ou epistemólogos. O que prevaleceria seria o poder de persuasão, não apenas das

ideias, mas também de quem as defende.


31

Porque sempre há ideias que parecem promissoras, um conjunto de ‘boas ideias’ não

seria, por si só, garantia de reconhecimento por parte da comunidade científica. Embora

necessárias, elas não são suficientes para isso. Sucesso na competição de ideias, para Murray,

dependeria mais de formação de um grupo do que da qualidade intrínseca (livre de contexto)

das ideias. E formação de grupo dependeria essencialmente de liderança, tanto para produzir

ideias e convencer a comunidade de sua pertinência — liderança intelectual — quanto para

assegurar àqueles que as propõem, possibilidades de divulgá-las e defendê-las no meio

científico — liderança organizacional.

Murray define como 'liderança intelectual’ um ou alguns cientistas da área que

assentem os fundamentos conceptuais para a linha de trabalho; expliquem as implicações de

pesquisa das ‘boas ideias’; aprovem as pesquisas efetuadas por outros como competentes e

relevantes para o quadro de trabalho definido. Faz também parte das atribuições da 'liderança

intelectual’ produzir um programa, especificando quais pesquisas devem ser feitas e como

cada pesquisa se ajusta na teoria básica, ou ainda, produzir trabalho que possa ser tomado

como ‘exemplar’, isto é, que mostre como se deve trabalhar.

Assim como 'boas ideias’, 'liderança intelectual’, apesar de necessária, não seria

suficiente. Um grupo, para ser articulado, não pode prescindir de ‘liderança organizacional',

cujas funções consistem em recrutar novos quadros, viabilizar tempo, fundos e facilidades

para a pesquisa; disponibilizar veículos para divulgá-la; criar espaços de atuação acadêmica

para aqueles que têm a pesquisa validada pelo(s) líder(es) intelectual(is).

O líder organizacional não precisa ser um cientista atuante, condição essencial para ser

um líder intelectual. Um indivíduo pode desempenhar, sozinho, as funções de liderança

intelectual e organizacional, mas pode haver, também, um cientista diferente para cada um

dos papéis. É possível, ainda, que haja um conjunto de lideranças intelectuais e outro de

lideranças organizacionais. O mais importante é que as tarefas sejam cumpridas.


32

Conjuntos de cientistas sem um desses três elementos — recorrentemente, ‘liderança

organizacional’, já que os outros dois estão mais ou menos implícitos à atividade de um

conjunto de cientistas — acabaram por não constituir grupos e, em função disso, por não

desempenhar, em determinados contextos, papel relevante na condução da ciência, e por não

obter destaque nem na tarefa de manter e aperfeiçoar antigas tendências — na terminologia de

Kuhn, condução da ciência normal —, nem na de introduzir rupturas — na terminologia de

Kuhn, implementação de uma ‘revolução científica'.

1.5 O modelo funcional: estágios na formação de um grupo

Haveria, segundo Murray, quatro estágios diferentes na formação efetiva de um grupo

científico. Entre estes, dois estágios que podem ser tomados como preliminares e dois outros

que de fato autorizam o emprego do termo ‘grupo’.

Primeiramente, os indivíduos começariam a se articular no que denomina de ‘estágio

normal'. Este primeiro estágio na escala de socialização do conhecimento é caracterizado pela

existência de poucas relações entre os pesquisadores, pela elaboração rara de trabalhos em co-

autoria e pela ausência de ataque sistemático a um problema de pesquisa bem definido. Nesse

estágio não haveria nem treinamento específico, nem coordenação de esforços individuais

para um objetivo comum.


33

O surgimento de lideranças que elaborem um programa de atuação ou um exemplar,

associado a algum sucesso intelectual ou social dos cientistas do ‘estágio normal' possibilita a

formação rudimentar de uma ‘rede’ de pesquisadores, na qual costuma haver ligação estreita

entre professores e alunos. Nesse novo estágio, o recrutamento — de cientistas estabelecidos

ou de estudantes — aumenta e, por consequência, o ‘embrião’ de grupo se avoluma.

Quando os integrantes de uma ‘rede’ se conscientizam de que formam um grupo,

ocorre a transição para o estágio denominado cluster. Neste terceiro estágio, que apresenta

altos níveis de coesão entre os membros, grandes quantidades de pesquisa são produzidas. Já

existe, de fato, um grupo, que geralmente possui alguns profissionais conceituados e vários

estudantes graduados.

O tipo de reação da comunidade científica ao novo grupo — especialmente, a

aceitação ou rejeição de seu trabalho por editores e referees dos periódicos especializados —

determina se ele se tornará uma ‘especialidade de elite’, aceita e assimilada pelas instituições

existentes, ou uma ‘especialidade revolucionária’, que, rejeitada, se sentirá forçada a formar

suas próprias contra-instituições, a conquistar as existentes, ou sucumbir.

Uma 'especialidade’ é um cluster especializado, que tende a se institucionalizar, a

constituir uma organização formal. A transição do estágio de cluster para o de especialidade

começa com os estudantes conquistando sucesso próprio. É o estágio acadêmico; a partir dele,

inicia-se uma fase de ‘ciência normal’.

Murray pondera que, evidentemente, esses estágios configuram um modelo de tipo

ideal. Na verdade, eles não seriam tão nitidamente limitados. Em decorrência disso, seria

necessário evitar o perigo de procurar, cegamente, retratar os estágios, ignorando outros

elementos relevantes de uma história científica concreta que não se ajustem ao modelo, assim

como o perigo de supor que um estágio irremediavelmente causará o próximo.


34

1.6 O modelo funcional: outras variáveis

Fatores apresentados por outros teóricos como decisivos para a coordenação e a

longevidade de um grupo, tais como uma ‘base institucional’, o ‘carisma’ do líder, ou a

existência de apenas ‘um centro’ articulador das atividades dos membros do grupo, foram

relativizados por Murray.

Para ele, a existência de uma ‘base institucional’ poderia ser decisiva apenas para o

destino das ideias, já que tornaria um conjunto delas mais disponíveis para os receptores,

potencializando a concentração de esforços para desenvolvê-las. Seria, em outros termos, um

importante instrumento para a sua divulgação e posterior consolidação. Não seria, porém, uma

garantia de sucesso na formulação de ideias, pois, como a própria história das ciências

comprova, diversas ideias excelentes provieram do trabalho realizado por cientistas afastados

de grandes instituições.

Em relação aos diferentes estágios, a importância das bases institucionais seria

particularmente grande no de ‘especialidade’, no qual é necessária uma comunidade científica

trabalhando em tempo integral com os problemas da disciplina: um tipo de comprometimento

como esse, que requer encontros regulares, se beneficiaria muito com a disponibilidade de

bases institucionais. Nos demais estágios, não seria indispensável.

‘Carisma’, para Murray, poderia ser útil para detonar a formação de grupos, mas não

se sustentaria como uma “dieta permanente”. Seria uma ferramenta importante para alcançar

uma posição de liderança, mas não uma forma eficiente de administrá-la, posto que, o que
35

normalmente se verifica com os grupos é que, com o passar do tempo e com o sucesso, a

autoridade carismática tende a ser ‘tradicionalizada’ (isto é, equiparada a outras) e avaliada a

partir de critérios mais ‘objetivos’, que levam em conta não tanto o carisma, mas

essencialmente a eficiência.

Quanto à existência de ‘um único centro’, Murray não encontrou, nos grupos

estudados, problemas em relação à multicentralidade: houve casos de grupos multicentrais

coerentes que sobreviveram (e têm sobrevivido) através de várias gerações. O que realmente

importa é liderança, e a existência de um único centro não garante isso, nem a existência de

mais de um o prejudica.

Se a dispersão geográfica dos pesquisadores em múltiplos centros não seria

exatamente fatal para a formação e manutenção de um grupo, a dispersão disciplinar

frequentemente o seria. Um status interdisciplinar, por exemplo, poderia tornar a formação do

grupo difícil: grupos interdisciplinares não seriam exclusivamente desenhados por uma

disciplina, o que facilitaria a dispersão teórica, metodológica e dos próprios componentes do

grupo. Seria, além disso, um fator que poderia desestabilizar até mesmo os grupos já

consolidados, pelas mesmas razões.

Se, para Murray, os fatores citados acima devem ter sua relevância

circunstancializada, caso por caso, ‘boas ideias’ e ‘liderança’ são fundamentais para a

formação, a coordenação e a longevidade de grupos.

1.7 O modelo de conflito: escolha de retórica

O modelo funcional proposto refere-se à articulação. Tanto de grupos de ‘elite’, que

trabalham no sentido de dar continuidade à tradição existente, quanto de grupos


36

‘revolucionários’, que procuram instaurar uma descontinuidade em relação àquela tradição.

Para as duas atitudes, a formação de grupo seria imprescindível e, o modelo, portanto,

aplicável. Entretanto, algo na constituição desses dois tipos de grupo, inegavelmente, é

diferenciado. Se não o fosse, as posturas de seus componentes em face da tradição não seriam

opostas.

A partir dessa constatação, Griffith e Mullins propuseram a complementação daquele

primeiro modelo, ‘funcional’, por um outro, denominado ‘modelo de conflito’, que daria

conta dos fatores que propiciariam a opção pela continuidade ou pela ruptura científica. A

propósito, Murray propõe a substituição do que Kuhn chamou de ‘ciência continuísta’ e

‘ciência revolucionária’, por ‘retórica de continuidade’ e ‘retórica de ruptura’. Assim, ao invés

de considerar certas teorias científicas como revolucionárias e outras como conservadoras,

Murray desloca o foco da questão sobre continuidade e descontinuidade em ciência para a

percepção dos cientistas de si mesmos e de suas teorias. O que passa a valer não são os feitos

científicos revolucionários ou de continuidade, mas a noção de valor (continuísta ou

revolucionário) que os cientistas têm de suas atividades e o modo como se posicionam diante

da tradição dominante. O deslocamento para o conceito de ‘retórica’, nesta medida, torna

pouco relevante a discussão sobre se determinadas ideias são ou não, epistemologicamente,

inovadoras em relação às antecedentes: o que se leva em conta é a autopercepção do cientista.

Após avaliar o poder explicativo das variáveis propostas por Griffith e Mullins como

decisivas para a escolha de retórica de um grupo, quais sejam, a ‘idade profissional’ dos

cientistas, sua ‘condição de elite’ — em termos de treinamento recebido durante a formação e

localização profissional em instituições centrais — e ‘acesso a reconhecimento’, a partir do

cotejo delas com os dados obtidos nos estudos de caso, Murray conclui que a variável ‘elite’

não traria consequências diretas para a escolha de retórica, já que existem rupturas (e

continuidades) propostas por grupos de 'elite' ou ‘marginais’; as variáveis realmente decisivas


37

para escolha de retórica — de ruptura ou de continuidade — seriam apenas a ‘idade

profissional’ e o ‘acesso ao reconhecimento’.

‘Idade profissional’ refere-se, principalmente, à distinção entre estudantes e cientistas

já consagrados. Retomando Kuhn, Murray entende que, quanto menores os

comprometimentos — intelectuais e sócio-institucionais — com um ‘paradigma’, menores

são as dificuldades de romper com ele.

‘Acesso a reconhecimento’ tem como principal termômetro a possibilidade de

publicação: se o principal prêmio para o cientista é o reconhecimento dos pares e se a

publicação é pré-requisito para esse reconhecimento, então a possibilidade, ou a

impossibilidade, de publicar resultados pode afetar diretamente os cientistas.

Para Murray, as duas variáveis estariam estreitamente relacionadas. Ele concluiu, de

seu estudo, que um grupo formado predominantemente por cientistas respeitáveis —

graduados e empregados e, portanto, com maior tempo de treinamento na área e maiores

comprometimentos com ela — que tenha acesso a reconhecimento, tenderá a produzir uma

retórica de continuidade.

Se o grupo é constituído prioritariamente por estudantes (com menor tempo de

treinamento e menores investimentos no paradigma) que percebam receptividade ao seu

trabalho pelas autoridades científicas existentes, tenderá, também, a produzir retórica

continuísta.

Apenas se um grupo tem como base, fundamentalmente, estudantes que percebem

uma rejeição não razoável e bloqueio de acesso ao reconhecimento de seu trabalho é que

haverá retórica de revolução.


38

Considerar a rejeição não-razoável é importantíssimo, pois, se os membros do grupo

considerarem a rejeição aceitável, provavelmente não haverá retórica de ruptura. Nesse caso,

o trabalho desenvolvido naquelas linhas consideradas improdutivas pelos editores e referees

será simplesmente abandonado. Somente quando a rejeição não é considerada justa, o grupo

tende a criar suas próprias contra-instituições e periódicos e a eleger suas próprias autoridades

para validar o seu trabalho, ignorando a autoridade estabelecida ou contestando sua

legitimidade.

Em resumo, Murray propõe como elementos necessários à formação de um grupo,

‘boas ideias’, ‘liderança intelectual’ e ‘liderança organizacional’. Para a sua ‘escolha de

retórica’, elege como elementos decisivos a ‘idade profissional’ e o ‘acesso a

reconhecimento’. Sua proposta deixa implícito que maior prestígio não está relacionado a

‘melhores’ ideias — se é que é possível avaliá-las assim. Outras forças, além das estritamente

intelectuais devem ser consideradas para a compreensão de um percurso de sucesso ou de

fracasso na competição de ideias. Nesse sentido, essa proposta vem ao encontro da concepção

de que as teorias científicas não têm apenas um valor inerente, mas também um valor sócio-

historicamente construído.

1.8 De volta ao caso brasileiro

Determinar as implicações específicas do contexto acadêmico-institucional sobre o

tipo de conhecimento preferencialmente produzido e prestigiado entre 1940 e 1960 no âmbito

do trabalho com a linguagem no Brasil constitui, provavelmente, um passo importante para a

compreensão das relações entre Filologia e Linguística no país.


39

Se é nossa premissa a legitimidade das duas formas de conceber e de praticar ciência,

o modelo de Murray torna-se bastante útil para interpretarmos aquelas relações, sobretudo a

partir da perspectiva filológica, já que, aplicadas todas as restrições do modelo, os filólogos,

ao que tudo indica, constituíam o único ‘grupo científico’ (de fato consolidado) dessas duas

décadas. Daí, talvez, o seu sucesso.

Por outro lado, não nos parece possível falar em ‘grupo’ linguístico e, possivelmente,

falhas na articulação de um ‘grupo’ em torno do linguista Mattoso Câmara, no período, são

uma das bases explicativas do quadro definido pela supremacia das ideias e do grupo

filológicos.

Se realmente liderança é fundamental para a articulação de grupo, e se um grupo é

imprescindível para o sucesso de um ‘paradigma’, Serafim da Silva Neto parece ter sido um

dos responsáveis pelo sucesso da Filologia no período, uma vez que se destacou como uma

das principais lideranças intelectuais e organizacionais de sua geração — justamente a que

começou a se projetar nos inícios dos anos 40.


40

CAPÍTULO 2

Método. Procedimentos Adotados

“Mergulhe, pois, na pesquisa..”.


(Silva Neto 1956q:256)
41

Método. Procedimentos adotados

2.1 Escolha do autor

A releitura do período compreendido entre os anos de 1940 e 1960 da vida acadêmica

brasileira, da perspectiva dos valores autorizados pelo ‘paradigma’ da Filologia, reiterou

nossa hipótese de que a comunidade cientificamente relevante do período teria reconhecido

em Serafim da Silva Neto um de seus ‘exemplares’. O filólogo, que iniciou precocemente sua

carreira, em 1936, com 19 anos, desempenhou papel de destaque no contexto dos estudos

sobre a linguagem no país, atuando em espaços centrais — como a Faculdade Nacional de

Filosofia da Universidade do Brasil, a Universidade de Lisboa e a Universidade Católica do

Rio de Janeiro; articulando projetos que contribuíram para a manutenção institucional do

grupo — tais como a fundação, em 1955, da Revista Brasileira de Filologia, ou do Centro de

Estudos em Dialetologia Brasileira, no Museu Nacional, em 1953 — e, principalmente,

compondo uma obra extremamente profusa e variada, fato que sinaliza ampla recepção às

suas ideias, ao menos no círculo ao qual ele pertencia.

De fato, podemos tomá-lo como um cientista ‘de sucesso’ no meio intelectual

brasileiro de então. Em seu curto período de vida, 43 anos, e carreira de rápida ascensão,

conquistou alto prestígio, destacando-se como um dos líderes intelectuais e organizacionais da

sua geração (Murray 1994), ao propor programas de pesquisa e ao conquistar espaços

institucionais para a produção e divulgação de suas ideias. Voltarei à questão da liderança de

Silva Neto mais detalhadamente no capítulo 4. O que aqui importa frisar é que, mesmo que

curta, a trajetória intelectual de Silva Neto parece ser um modelo dos padrões de
42

cientificidade cultivados como ideais no período que definimos como quadro principal (cf.

item 2.2 deste capítulo) de trabalho.

2.2 Periodização

Do ponto de vista privilegiado por esta dissertação, o início da década de 1940 seria

marcado pelo aparecimento da primeira obra inteiramente dedicada à Linguística geral 3 —

escrita por aquele que mais tarde seria considerado o ‘pai’ da Linguística brasileira (Pinto

1981:XL), o professor Mattoso Câmara Júnior — e, ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento

dos estudos filológicos, já estabelecidos no país, impulsionado, entre outros fatores, pela

criação das primeiras Faculdades de Filosofia, onde se iniciou o processo de

institucionalização acadêmica da Filologia e o de profissionalização daqueles que a ela se

dedicavam4. Com as Faculdades de Filosofia, a formação dos estudiosos, anteriormente

caracterizada pelo autodidatismo, passou a ser formalizada em cursos e currículos

especificamente desenvolvidos para este fim — o que, na percepção de um dos mais

destacados filólogos ‘autodidatas’ da geração anterior, colocava o Brasil, finalmente, na era

da ciência:

Com a criação da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade


do Brasil no corrente ano de 1939, considero inaugurado o quarto
período [da história dos estudos filológicos no Brasil], a que chamo
científico. [...]
Vai cessar o autodidatismo. A mocidade terá a seu dispor mestres
experimentados, livros, revistas e outros elementos de estudo. Tudo,
por conseguinte, se poderá esperar dela.
(Nascentes 1939: 45)

3
Princípios de linguística geral (1941, Rio: Briguiet), de Mattoso Câmara, anteriormente publicada nos volumes
da Revista de Cultura (Vozes), a partir de 1938, com o título de Lições de linguística geral (cf. França 1996a).
4
Em São Paulo, fundou-se em 1934 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP; no Rio, em 1935, a
Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal, extinta pelo governo Vargas, que
inauguraria em seu lugar, em 1939, a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.
43

O fato de existirem pelo menos duas disciplinas, com status acadêmico diferenciado

— uma Linguística incipiente e uma Filologia já consolidada — reivindicando a linguagem

como objeto, pode ser tomado como um dos fatores que apontam para o caráter ‘transitório’

do período. Nele começaria a tomar forma a distinção entre dois programas de investigação

científica: de um lado, o da Linguística, disciplina emergente, que se dedicaria a um estudo

mais internalista da linguagem, concentrado nas descrições linguísticas acrônicas e nos

aspectos teórico; de outro, o da disciplina científica mais fortemente estabelecida, a filológica,

que procuraria integrar o estudo da língua em um campo mais amplo, o de estudo da ‘cultura’,

inclusive em suas manifestações literárias, pendendo mais para uma abordagem histórica do

objeto língua.

A criação das Faculdades de Filosofia, detonando o iníco do processo de

profissionalização daqueles que se dedicavam às questões da linguagem, aliada ao fato de

essa década ser consensualmente apontada como a de início da coexistência desses dois

programas de investigação, que posteriormente se distinguiriam com maior clareza, levou-nos

a fixar os anos 40 como marco cronológico inicial do trabalho.

De modo análogo, a década de 1960 foi fixada como marco cronológico limite: ela

assinala um aumento do prestígio acadêmico da Linguística — institucionalizada e tornada

obrigatória nos currículos dos Cursos Superiores de Letras (1962) de um número já

considerável de Faculdades de Filosofia — em detrimento da Filologia, que, a partir deste

período, passa a perder a condição de principal disciplina a tratar dos problemas da

linguagem.

O período compreendido entre 1940 e 1960, portanto, é favorável à observação de dois

momentos importantes da história dos estudos sobre a linguagem no Brasil.

Embora nossa análise desse período tenha propiciado comentários que ultrapassam o

quadro de trabalho assim definido, seja retrospectivamente, em direção às décadas de 20 e 30


44

no Brasil, seja prospectivamente, em direção à década de 70, esta dissertação procurou

focalizar, por um lado, o período em que os problemas, as ideias e as práticas filológicos

experimentaram notável predomínio no campo de estudos da linguagem no Brasil — processo

com seu auge nos anos 40 — e, por outro, o dos inícios de sua paulatina perda de prestígio

neste mesmo campo em relação à ascendente Linguística, processo mais claramente

configurado a partir dos anos 60.

2.3 Estabelecimento dos corpora

Para delinear o contexto da produção científica brasileira sobre a linguagem no

período de 1940 a 1960, em seus traços ‘internos’ — isto é, quanto às formas de concepção e

tratamento do objeto linguagem — e em seus traços ‘externos’ — ou seja, quanto aos

elementos do contexto acadêmico-intelectual que teriam propiciado o desenvolvimento

preponderante de tais concepções e não de outras — utilizamos dois tipos de suportes

informacionais.

Do primeiro tipo, composto a partir da produção acadêmica publicada de Silva Neto,

procuramos depreender elementos que configurariam um trabalho científico padrão para a

época, ou, nos termos de Murray (1994), o ‘conteúdo paradigmático’ da Filologia Brasileira.

Do segundo, composto de materiais informativos variados sobre o meio intelectual,

principalmente o carioca, procuramos levantar variáveis que afetassem os agentes (Silva Neto

e o grupo filológico); os problemas (concepções, procedimentos) ou o próprio contexto

(valores, ideologias), nos termos de Swiggers (1992).


45

2.3.1 Suportes informacionais do conteúdo paradigmático da Filologia

Brasileira entre 1940 e 1960

Para definir o primeiro elenco de suportes informacionais, partimos da hipótese de que

toda a produção acadêmica publicada de Silva Neto — bastante variada e composta por 130

textos — pudesse ser relevante para a depreensão dos modos preferenciais de trabalho

científico filológico, entre 1940 e 1960. Em função disso, procuramos, no primeiro momento

da análise, classificar toda essa produção por tipos, em quatro grupos.

Em um deles (Tl), elencamos os livros e opúsculos, que, por sua própria natureza,

foram publicados em volumes independentes e poderiam, em princípio, ser submetidos a

análises autônomas, enquanto obras de maior fôlego. Este grupo compôs-se de 27 títulos. A

Tabela I os reúne:

Tabela I: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos livros e

opúsculos publicados por Silva Neto (1938-1960)

Tl: Livros e opúsculos


Data de 1.
Título Local Casa Editora
edição
Fontes do latim vulgar. O Appendix Probi
1938 [2. ed. 1946, Rio: Imprensa Nacional; 3. Rio de Janeiro ABC
ed., 1956, Rio: Acadêmica]
Gráfica Dias
1940 Miscelânea filológica Niterói
Vasconcelos
Divergência e convergência na evolução Gráfica Dias
1941a Niterói
fonética Vasconcelos
Que é latim vulgar? Tipografia do
1941b [Publicado como capítulo das Fontes do Petrópolis Patronato
latim vulgar, a partir da segunda edição] Cruzeiro
46

A formação do latim corrente Tipografia do


1941c [publicado como capítulo das Fontes do Petrópolis Patronato
latim vulgar, a partir da segunda edição] Cruzeiro
Manual de gramática histórica portuguesa
[posteriormente, daria origem à
1942a Rio de Janeiro Acadêmica
Introdução ao estudo da filologia
portuguesa (1956)]
1942b Post scriptum Rio de Janeiro Não localizado
1942c Rumos filológicos [polêmica] Rio de Janeiro Sem indicação
1942d Rusgas filológicas [polêmica] Rio de Janeiro Não Localizado
1943 Crítica serena [polêmica] Rio de Janeiro Não Localizado
Pontos de literatura (com antologia luso-
1945 brasileira. Para as três séries dos cursos Rio de Janeiro Nacional
clássico e científico)
Diferenciação e unificação do português
do Brasil
1946a Rio de Janeiro Dois Mundos
[publicado como parte da Introdução ao
estudo da língua portuguesa no Brasil]
Capítulos de história da língua portuguesa
no Brasil, [publicado como parte da Livros de
1946b Rio de Janeiro
Introdução ao estudo da língua portuguesa Portugal
no Brasil]
Mestre André de Resende. A santa vida
e religiosa conversação de Frei Pedro,
porteiro do Mosteiro de São Domingos de
1947 Évora [Edição fac-similada do único Rio de Janeiro Dois Mundos
exemplar conhecido, acompanhada de
transcrição, introdução e notas de Silva
Neto]
Diálogos de São Gregário. Fascículo I
1950a [Edição crítica organizada e prefaciada Coimbra Atlântida
por Silva Neto]

Introdução ao estudo da língua portuguesa


1950b no Brasil. [Nova tiragem em 1951; 2.ed. Rio de Janeiro INL
1963, Rio de Janeiro:MEC]

Conceito e método da filologia [Em co- Casa de Rui


1951 Rio de Janeiro
autoria com Gladstone Chaves de Melo] Barbosa
Manual de filologia portuguesa. História,
1952 problemas e métodos [2. ed., 1957, Rio de Rio de Janeiro Acadêmica
Janeiro: Acadêmica]
47

Faculdade
Guia para estudos dialetológicos .
1955 Florianópolis Catarinense de
[2.ed., 1957, Belém: INP da Amazônia ]
Filosofia

1956a Ensaios de filologia portuguesa Rio de Janeiro Nacional

Introdução ao estudo da filologia


1956b Rio de Janeiro Nacional
portuguesa

Textos medievais portugueses e seus Casa de Rui


1956c Rio de Janeiro
problemas Barbosa

1957a História do latim vulgar Rio de Janeiro Acadêmica

Livros de
1957b História da língua portuguesa Rio de Janeiro
Portugal
Bíblia medieval portuguesa I. Histórias
1958 d’abreviado Testamento Velho, segundo o Rio de Janeiro INL
mestre das histórias escolásticas

1960a Língua, cultura e civilização Rio de Janeiro Acadêmica

A língua portuguesa no Brasil. Problemas


[Publicado também na História da língua
1960b portuguesa a partir da segunda edição Rio de Janeiro Acadêmica
(1970:581-634) e na Revista Portuguesa de
Filologia 25:99-120 (v.T2)]

Total 27 documentos

Em um segundo grupo (T2), incluímos artigos e ‘"notas" em um total de 58 títulos. O

que diferenciou os trabalhos de Tl e T2 foi, meramente, a extensão e a apresentação formal

dos trabalhos.

A Tabela II os reúne:
48

Tabela II: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos artigos e ensaios

publicados por Silva Neto (1938-1960)

T2: Artigos e Ensaios


Ano Título Veículo Vol./núm./pp.
1938 “Da influência das línguas Anuário Brasileiro de —: 282-294
itálicas no latim vulgar” Literatura
1941ª “Nugas lexicológicas” Revista de Cultura 173:265-268
1941b “Que é latim vulgar” Revista de Cultura 178:173-192
1941c “A formação do latim corrente” Revista de Cultura 179/80:249-260
“O português quinhentista e o
1941 d Revista Filológica 10:61-65; 11:48
português do Brasil”
Miscelânea de estudos
“O ensino da gramática
1941e em honra de Antenor 120-133
histórica”
Nascentes
1941f “A língua portuguesa no Brasil” Revista Filológica 8:14-25
1941g “A origem do dialeto brasileiro” Revista filológica 9:45-49
1941h “Res et verba” Revista Filológica 7:61-67
1941i “Filologia e realidade” Revista Filológica 4:67-86
16:278-280 e
1942ª “Apontamentos filológicos” Revista filológica 19:144-150
[continuação]
“Caracteres gerais da linguagem
1942b Revista de Cultura 182:77
corrente”
1942c “Como pronunciar o latim” Revista de Cultura 185:270

31:48-60;
“Diferenciação e unificação do
1942d Revista de Cultura 188:63; 189:127;
português no Brasil”
190:185

1942e “A formação do latim corrente” Revista de Cultura 181:33

1942f “A pronúncia do latim” Revista de Cultura 186:292


Boletim de Filologia
1946ª “Apontamentos lexicográficos” II:87-88
[Rio de Janeiro]
“Estudos lingüísticos na Boletim de Filologia
1946b II:89-95
Rússia” [Rio de Janeiro]
“Uma nova crônica de Fernão Boletim de Filologia
1946c IV:219-224
Lopes” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1946d “Habent sua fata libelli” I:31-32
[Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1946e “Gonçalo Fernandes Trancoso” I:23-28
[Rio de Janeiro]
49

Boletim de Filologia
1946f “A morte de Damião de Góis” I:29-30
[Rio de Janeiro]
“Um problema à margem de Boletim de Filologia
1946g I:33-36
Fernão Lopes” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947ª ‘Contato lingüístico” VI:67-81
[Rio de Janeiro]
‘Nota sobre a cronologia dos Boletim de Filologia
1947b VI:82-85
textos medievais” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947c “Apontamentos lexicográficos” VI:86
[Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947d “Apontamentos lexicográficos” VII:143-148
[Rio de Janeiro]
“Centenário da morte de Boletim de Filologia
1947e VII:149
Francisco Adolfo Coelho” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1947f “Bíblia medieval portuguesa” VII:139-142
[Rio de Janeiro]
“Gerações literárias no século Boletim de Filologia
1948ª VIII:225-229
XIX” [Rio de Janeiro]
“A propósito dos nomes do Boletim de Filologia
1948b VIII:231-232
Profeta” [Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1948c “Textos antigos portugueses” IX:233-248
[Rio de Janeiro]
Boletim de Filologia
1949ª “Estudos indígenas” IX:32-39
[Rio de Janeiro]
“A unidade lingüística Boletim de Filologia
1949b IX:.41-45
brasileira” [Rio de Janeiro]
1949c “O dialeto crioulo de Surinam” Cultura 2:57-70
“A propósito de um manuscrito Boletim de Filologia
1949d IX:47-51
medieval” [Rio de Janeiro]
?
Separata da
“Francisco Adolfo Coelho e a [Não localizado;
1949e Miscelânea Adolfo
filologia portuguesa” referência em Silva
Coelho I [livro]
Neto 1960a]
“Três inscrições do latim
1949f Humanitas III:67-80
vulgar”
1950ª “Falares crioulos” Brasília V:3-28

Separata do
Suplemento
“A língua portuguesa no Brasil
1950b Bibliográfico da 342-368
(1939 - 1948)”
Revista Portuguesa de
Filologia
50

“Breves notas para o estudo da


1951ª expansão da língua portuguesa Província de São Pedro 16:72-86
em África e Ásia”
“Dialetologia Brasileira”
Revista da
[Aula do curso de extensão
1951b Universidade de Minas 9:179-191
universitária realizado em Belo
Gerais
Horizonte, em janeiro de 1951]
“O arcaísmo na língua e na
1952ª Verbum IX:537-552
literatura”
“A formação da língua
1952b Ensaio 2:102-120
portuguesa”
“Le Portugais dans le Nouveau
1953ª Orbis II.1:143-156
Monde”
1953b “Notas etimológicas” Verbum X:240-247

1955ª “Bíblia medieval portuguesa” Revista Filológica 2(da II fase):3-10


? [Não localizado;
Miscelânea Oroz referência em Língua,
1955b “A base pirr em português”
[Santiago do Chile] cultura e
civilização(1960)]
“Regionalismo, arcaísmo e Revista Brasileira de
1955c I.1:23-26
fonética histórica” Filologia
Revista Brasileira de
1956ª “Breve nota filológica” II.2:202-204
Filologia
Revista Brasileira de
1956b “Notas sobre o balouço” II.1:41-50
Filologia
Miscelânea de estudos ? [Publicado também
1957ª “Nugas lexicológicas” em honra do prof. em Língua, cultura e
Hernani Cidade civilização:203-227]
“Duas preciosidades da
1957b Revista do Livros 7:191-196
Biblioteca Nacional”
?
Etymologica, dedicada [Publicado também em
1958ª “História da preposição até”
a Walter von Wartburg Língua, cultura e
civilização: 175 -191]
“As designações de fígado nas
1958b Revista de Portugal 23:339-346
línguas românicas”
? [Também publicado
“Um regionalismo luso- Omagiu Iorgu Iordan
1958c em Língua, cultura e
brasileiro” (Bucareste)
civilização: 91-99]
“A língua portuguesa no Brasil”
1960ª Revista de Portugal 25:99-120
[v. item 1960b, T1]
51

Revista Brasileira de
1960b “Regra de São Bento” V. 1:21-46
Filologia
Total 58 documentos

O terceiro (T3) apresentou diferenças mais qualitativas em relação aos dois primeiros

— na medida em que o formamos com os textos sobre obras de outros autores (prefácios, em

um total de 4) — e aproximou-se, quanto ao mesmo aspecto, do quarto (T4) — em que

reunimos resenhas, obituários e os comentários críticos (41 textos), isto é, avaliações sobre

autores e obras do período. Nos dois casos, mais do que produzir, o autor julgou

conhecimentos linguísticos produzidos. As Tabelas III e IV apresentam estes dois tipos de

textos.

Tabela III: Levantamento e classificação por ordem cronológica dos prefácios publicados

por Silva Neto (1938-1960)

T3: Prefácios
Ano Obra Prefaciada Páginas
Prefácio a Agostinho de Campos. Futuro da língua
1948 7-23
portuguesa .Rio de Janeiro
Prefácio a Antenor Nascentes. Dicionário Etimológico da
1952 língua portuguesa II (nomes próprios). Rio de Janeiro: v-vii
Francisco Alves/Acadêmica/Livros de Portugal/São José
Prefácio a Sílvio Elia. Orientações da lingüistica moderna.
1955 9-16
Rio de Janeiro: Acadêmica
Prefácio a Rocha Lima. Gramática normativa da língua
1957 5-7
portuguesa. Rio de Janeiro:Briguiet & Cia.

Total 4 documentos
52

Tabela IV: Levantamento e classificação por ordem cronológica das resenhas e obituários

publicados por Silva Neto (1938-1960)

T4: Resenhas e Obituários


Ano Título ou autor e obra resenhada Veículo VoL/Núm.:pp
Resenha a Mário Castanheda. Notas de Raul Revista
1941a 9:89
Soares à gramática de João Ribeiro Filológica
Revista
1941b Resenha a Sousa da Silveira. Trechos seletos 9:89
Filológica
Resenha a José Pereira Tavares. Como se Revista
1941c 9:90
devem ler os clássicos Filológica
Resenha a Aires da Mata Machado Filho. Revista
1941d 9:90
Problemas da língua Filológica
Resenha a N. S. Trubetzkoy. Grundzuge der Revista
1941e 10:87
Phonologie Filológica
Resenha a Friedrich Kainz. Psychologie du Revista
1941f 10:87-88
Sprache Filológica
1941g Resenha a Portugale (1940, vol. XIII) Revista 11:85-89
Filológica

1941h “Francisco Adolfo Coelho” Revista 13:1-5


Filológica

194li “José Leite de Vasconcelos” Revista de junho:298-


Cultura

194lj Resenha a Sousa da Silveira. Obras de Revista 13:93-94


Casimiro de Abreu Filológica

1941k Resenha à Revista Lusitana (1939, vol. 370) Revista 14:177-179


Filológica

1941l Resenha a Júlio Nogueira. Programa de Revista 16:343-344


Português Filológica

1941m Resenha a Jonas Correia. Estudos de português Revista 11:85-89


(ortografia e pontuação) Filológica

1942a Resenha a Miscelânea em honra de Antenor Revista de março:191


Nascentes Cultura
Resenha a Rodrigo de Sá Nogueira. Tentativa
Revista de
1942b de explicação dos fenómenos fonéticos em julho:61
Cultura
português

1942c Resenha a Joaquim Ribeiro. O folklore da Revista de julho:61


Restauração Cultura
53

1942d Resenha a Mansur Guérios. Pontos de Revista 19:259-260


gramática histórica portuguesa (2.ed.) Filológica

1942e Resenha a Daltro Santos. Fundamentação da Revista de out/nov:200-202


grafia simplificada Cultura

1946a Resenha a Hernâni Cidade. Luís de Camões. A Boletim de I:33-36


vida e obra lírica Filologia

1946b Resenha a Silveira Bueno. Antologia arcaica Boletim de II: 110-114


Filologia

1946c Resenha a W. von Wartburg. Die Entschung Boletim de III:161


der romanischen Volker Filologia

1946d Resenha a José Pedro Machado. Breve história Boletim de III:162-164


da lingüística Filologia

1946e Resenha a José Pedro Machado. O português Boletim de III:164-165


do Brasil Filologia

1946f Resenha à Academia Brasileira de Letras. Boletim de III:165-172


Arquivo camoniano Filologia

1946g Resenha a Alfredo Pimenta. Fuero Real de Boletim de III:172-179


Afonso X, o Sábio Filologia

1946h Resenha a Silveira Bueno. O auto das Boletim de III:179-185


regateiras de Lisboa Filologia

1946i “Júlio Cornu” Boletim de IV:201-218


Filologia

1946j Resenha a Silveira Bueno. Estudos de Filologia Boletim de IV: 111-113


Portuguesa Filologia

1947 Resenha a Miguel Nimer. Influências orientais Boletim de V:41-51


na língua portuguesa Filologia

1949a “Sobre a nova edição do Boosco Deleytoso” Boletim de X:100-107


Filologia

1949b “Sobre nova edição de um grande livro” Boletim de X:108-l10


filologia

1949c “Sobre a morte de Karl Vossler” Boletim de X: 111-113


Filologia

1952 “Jakob Jud” Brasília VII:209-226

1953 Resenha a Joseph M. Piel. Miscelânea de Jornal de 1:188-189


etimologia portuguesa e galega Filologia.
Revista
1955a “Manuel Said Ali” Brasileira de I.1:109-112
Filologia
54

Resenha a Edward Sapir. A linguagem. Revista


1955b Introdução ao estudo da fala [Trad. de Mattoso Brasileira de I.1:79-81
Câmara Jr.] Filologia

Resenha a Ernesto Faria. Fonética histórica do Revista


1955c Brasileira de 1.2:249-250
latim
Filologia

1956 “Rui de Almeida” Revista 5(da 11 fase):80


Filológica
Revista
1957 “Dr João da Silva Correia” Brasileira de III.1:121-128
Filologia

1958 Resenha a Sílvio Elia. O ensino do latim. Verbum XV.4:574-576


Doutrina e métodos

1959 Resenha a Maria Adelaide do Vale Cintra. Ibérida 2:157-161


Livro de solilóquio de Santo Agostinho

Total 41 documentos

Essa primeira classificação, posteriormente refinada, visou a uma separação das

produções propriamente linguísticas das de caráter fundamentalmente crítico, que explicitam

duas faces complementares da visão de trabalho com a linguagem do autor, em que se

vislumbram, por um lado, suas concepções do que isso devesse ser (T3 e T4) e, por outro, as

suas realizações ou fazeres efetivos neste campo (T1 e T2). A distribuição teve como

propósito facilitar a análise destes dois níveis complementares, o das concepções e o das

práticas — propósito, aliás, mantido (v. capítulo 4) após as redefinições do material a ser

efetivamente considerado.

Os grupos T1, T2, T3 e T4 que compõem as Tabelas I, II, III e IV, portanto, reúnem,

respectivamente, a produção de Silva Neto em forma de livros/opúsculos (27 documentos);

ensaios/artigos (58 documentos); prefácios (4 documentos) e resenhas/obituários (41

documentos), perfazendo um total de 130 documentos, organizados cronologicamente, a partir

da data de primeira edição.


55

Esta primeira abordagem teve como objetivo levantar e organizar o material

disponível, sem que se efetuassem, ainda, quaisquer seleções.

As primeiras leituras deste material, contudo, levaram-nos a uma redefinição do

corpus; elas permitiram identificar os trabalhos de T1 como o veículo mais representativo da

volumosa produção de Silva Neto. Com efeito, o grupo constituído pelos livros e opúsculos

fornece uma amostragem expressiva dessa produção, pois, além de sintetizar os principais

núcleos de interesse do autor (v. capítulo 4), melhor desenvolvidos nessas obras de maior

fôlego, em dois documentos — Ensaios de filologia portuguesa (1956a) e Língua, cultura e

civilização (1960a) — estão reunidos ensaios/artigos, comunicações/palestras proferidas e não

publicadas, notas e até mesmo resenhas dispersas em periódicos, e consideradas, pelo próprio

autor, como as mais relevantes. Esses dois livros fornecem, assim, de acordo com própria

visão de Silva Neto, uma amostragem representativa de seus trabalhos ‘avulsos’ (que

designamos genericamente por T2).

Além disso, as pré-análises que efetuamos do material, possibilitaram a comparação

de amostras dos documentos (ou seja, de T1, T2, T3 e T4) também quanto aos conteúdos.

Com essa comparação, verificamos que o número de títulos não corresponde exatamente à

quantidade de textos diferentes, visto que o autor reaproveitou-os com frequência, refundindo

ou republicando-os em coletâneas ou obras de síntese.

Como o objetivo central da pesquisa não era a análise exaustiva da produção publicada

do autor mas, a partir da utilização de uma amostra representativa desta produção,

desenhar, em grandes linhas, o conteúdo paradigmático da Filologia no Brasil entre

1940 e 1960, optamos pela consideração dos textos reunidos em T1, ou seja, livros e

opúsculos, como amostra suficientemente representativa da produção linguística de Silva


56

Neto e, por extensão, representativa do conteúdo paradigmático do programa da Filologia

Brasileira5.

Dado que as obras sofreram várias reedições, algumas delas póstumas, visando

preservar a versão ‘mais acabada’ das ‘ideias’ de Silva Neto, optamos pelo trabalho com a

última edição, revista pelo autor, de cada um dos livros/opúsculos ou edição a ela equivalente.

O mesmo procedimento foi adotado em relação a alguns títulos, pois, por exemplo,

Que é latim vulgar? e A formação do latim corrente, publicados como opúsculos em 1941(v.

Tabela I, 1941b e 1941c), foram republicados como capítulos das Fontes do latim vulgar (v.

Tabela I, 1938), a partir da edição de 1946.

Como adotamos o texto da última edição das Fontes, consideramos, por conseguinte,

nela, também as últimas edições daqueles dois opúsculos que passaram a ser capítulos desta

obra. Em outros termos, ao tomarmos a última edição das Fontes do latim vulgar, nos

desobrigamos de considerar também aqueles dois opúsculos, já que a última versão deles

apresentada por Silva Neto foi sob a forma de capítulos das Fontes.

O mesmo ocorreu com os Capítulos de história da língua portuguesa no Brasil e com

Diferenciação e unificação do português no Brasil (v. Tabela I, 1946a e 1946b), em relação à

Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil (1963[l.ed. 1950b]).

Com o Manual de gramática histórica portuguesa (1942a), o processo foi semelhante,

posto que o texto, segundo o próprio autor, muito modificado e acrescido, veio a dar origem,

em 1956, à Introdução ao estudo da filologia portuguesa (v. Tabela I, 1956b).

Como se tratasse de coletâneas, consideramos, em nossas análises, isoladamente cada

um dos trabalhos publicados nos Ensaios de filologia (1956a) e de Língua, Cultura e

civilização (1960a). Deles, foram, ainda, desconsideradas as pequenas notas e resenhas em

que o autor comentou obras/textos mais brevemente, sem discutir questões linguísticas. O

5
Para uma análise da produção de Silva Neto publicada em periódicos, ver a dissertação de Henriques 1993.
57

livro publicado em 1940 (Tabela I), que também reúne artigos, foi considerado integralmente

e como um único texto, dada a grande aproximação entre cada uma das partes que o

constituem.

O didático Pontos de literatura (com antologia luso-brasileira. Para as três séries dos

cursos clássico e científico), Tabela I, 1945, por sua própria natureza, afasta- se do objetivo

deste projeto, razão pela qual o excluímos do corpus.

O volume 1942c, Rumos filológicos, referente a uma polêmica, dada a quantidade de

informações contextuais que apresenta, foi deslocado para o segundo corpus (v. item 2.3.2

deste capítulo). Os opúsculos 1942b, 1942d e 1943 não foram localizados.

Em vista desses procedimentos, os documentos que constituem o grupo que

denominamos T1, definido como principal suporte informacional dos valores intelectuais do

programa da Filologia Brasileira, ficou circunscrito a 17 livros ou opúsculos.

Como tomamos unitariamente cada um dos textos ‘avulsos’ reunidos nas antologias

Ensaios de Filologia (1956a) e Língua, cultura e civilização (1960a), contabilizamos, entre

livros/opúsculos e textos avulsos (destes, sempre considerada a publicação em uma dessas

coletâneas (1956a ou 1960a)), 50 documentos.

Constituiu, assim, nosso corpus para a detecção do conteúdo paradigmático da

Filologia Brasileira, entre 1940 e 1960, o conjunto de textos elencados na Tabela V a seguir:

Tabela V: Relação dos documentos a partir dos quais se estabeleceu o conteúdo

paradigmático da Filolosia Brasileira entre 1940 e 1960

número
Local e Casa
Referência Título Páginas de
Publicadora
páginas
58

Niterói: Gráfica
1940 Miscelânea filológica Dias 1-62 62p
Vasconcelos
Niterói:Gráfica
Divergência e convergência na
1941 Dias 1-56. 56p
evolução fonética
Vasconcelos
Mestre André de Resende. A santa 217p
vida e religiosa conversação de (texto,
Frei Pedro. [Edição Fac-similada do Rio de Janeiro: introdução
1947 1-217
único exemplar conhecido, Dois Mundos e notas,
acompanhada de transcrição, sem fac-
introdução e notas de Silva Neto] símiles)
Diálogos de São Gregório. Fasc. I.
[Edição crítica organizada e Coimbra:
1950 1-67 67p
prefaciada por Serafim da Silva Atlântida
Neto]

Rio de Janeiro:
Conceito e método da filologia.
1951 Organização 1-92 92p
[Com Chaves de Melo]
Simões

Fontes do latim vulgar. O appendix Rio de Janeiro:


1956a 1-257 257p
Probi. 3. ed. Acadêmica
“O arcaísmo na língua e na Rio de Janeiro:
1956b literatura”. Ensaios de filologia Companhia 13-38 26p
portuguesa. Editora Nacional

“Le Portugais dans le Nouveau


1956c Idem 39-77 37p
Monde” e “Apêndice”. Idem

1956d “Mudança cultural”. Idem Idem 78-91 14p


“Três inscrições do latim vulgar”.
1956e Idem 92-100 9p
Idem
1956f “Jakob Jud”. Idem Idem 101-130 30p

1956g “Estudos Lingüísticos na Rússia”. Idem 131-145 15p


Idem

1956h “Nova edição de um grande livro”. Idem 146-150 5p


Idem
1956i “Karl Vossler”. Idem Idem 151-155 5p

l956j “Apontamentos lexicográficos” Idem 156-192 37p


Idem
l956k “Um problema à margem de Fernão Idem 193-199 7p
Lopes”. Idem
59

l956l “Uma nova crônica de Fernão Idem 200-209 8p


Lopes”. Idem
“Nova edição do Boosco
1956m Idem 210-222 13p
Deleytoso”. Idem

1956n “Habent sua fata libelli”. Idem Idem 223-224 2p

1956o “Gonçalo Fernandes Trancoso”. Idem 225-232 8p


Idem
1956p “A morte de Damião de Góis”. Idem Idem 233-235 3p

1956q “Etimologia e ortografia”. Idem Idem 236-280 45p

Textos medievais portugueses e seus Rio de Janeiro:


1956r Casa de Rui 1-182 183p
problemas
Barbosa
Introdução ao estudo da filologia Rio de Janeiro:
1956s Livros de l-220p 221 p
portuguesa
Portugal

1957 Guia para estudos dialetológicos. Belém: INP da 1-75 76


2.ed. Amazónia

Bíblia medieval portuguesa I.


Histórias d'abreviado Testamento Rio de Janeiro:
1958 1-420 421 p
Velho segundo o mestre das INL
histórias escolásticas

“Ferdinand de Saussure e seu


Rio de Janeiro:
1960a tempo”. Língua, cultura e 19-38 20p
Acadêmica
civilização

“A renovação da filologia 10p


1960b Idem 39-49
românica no século XX”. Idem

“As designações para ‘fígado’ nas


1960c Idem 51-66 16p
línguas românicas”. Idem
“Um traço de pronúncia caipira”.
1960d Idem 67-90 24p
Idem
“Um regionalismo luso-
1960e Idem 91-99 9p
brasileiro”. Idem
1960f “Notas sobre o balouço”. Idem Idem 101-118 18p

1960g “Pandorgas”. Idem Idem 119-126 8p

1960h “O crioulo de Surinam”. Idem Idem 127-153 27p


“Regionalismo, arcaísmo e
1960i Idem 155-163 9p
fonética histórica”. Idem
60

“Um novo incunábulo em


1960j português”. Idem 165-174 9p
Idem
“História da preposição ‘até’”.
1960k Idem Idem 175-191 17p

“A propósito da Vita Christi”.


1960l Idem Idem 193-202 10p

“Apontamentos lexicográficos”.
1960m Idem Idem 203-227 24p

“Notas sobre as onomatopéias”.


1960n Idem Idem 229-246 18p

“Problemas do português da
1960o América”. Idem Idem 247-274 37p

1960p “A batata”. Idem Idem 275-278 4p

1960q “André de Resende”. Idem Idem 279-283 5p

1960r “A propósito de poetas”. Idem Idem 285-289 5p


“A propósito de um manuscrito
1960s medieval”. Idem Idem 292-300 9p

A língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro:


1960t Problemas 1-50 51 p
Acadêmica
Introdução ao estudo da língua Rio de Janeiro:
1963 portuguesa no Brasil. 2. ed. 1-273 274p
INL
História da língua portuguesa.
2.ed.[desconsidero, aqui, A língua Rio de Janeiro:
1970[1957] portuguesa no Brasil tomado Livros de l-579p 580p
como obra independente (v. Portugal
1960t)]

Rio de Janeiro:
1977[1957] História do latim vulgar. 2.ed. Ao Livro l-255p 256p
Técnico
Manual de filologia portuguesa.
Rio/Brasília:
1988[1957] História, problemas e métodos. 4. 1-279 280p
ed. Presença/INL

Total 50 documentos 3647páginas

Na Tabela V, a coluna Referência organiza-se com base na data da edição

considerada na análise (última revista pelo autor ou equivalente). Foram acrescentadas


61

informações sobre o número de páginas de cada um dos 50 textos que, somadas,

totalizaram 3647.

Como se nota, as coletâneas que apareciam na Tabela I com as referências 1956a e

1960a, passaram a corresponder às referências de 1956b a 1956q (indicativas de textos

avulsos publicados em Ensaios de filologia portuguesa) e de 1960a a 1960s (indicativas de

textos reunidos em Língua, cultura e civilização).

Sendo o critério organizacional básico tomar cada obra em sua última versão revista

pelo autor, para a quantificação de nossos dados, analisamos em separado o opúsculo A língua

portuguesa no Brasil (1960t), apesar de o mesmo ter sido acrescentado, postumamente, à

História da língua portuguesa, a partir de sua segunda edição (1970[1957]), que, por sua vez,

foi aqui considerada sem esse acrescento.

Todas as referências às obras de Silva Neto encontradas nos demais capítulos deste

trabalho, a partir desta reorganização, passaram a seguir exclusivamente as indicações da

coluna Referência da Tabela V.

2.3.2 Suportes informacionais para o estabelecimento dos agentes, dos

problemas e do contexto da Filologia Brasileira entre 1940 e 1960

Para traçar a rede de relações socioculturais do período de atuação acadêmica de

Serafim da Silva Neto, utilizamos materiais variados publicados em periódicos da época (tais

como noticiários, apresentações/prefácios a revistas, bibliografias indicadas por elas);

prefácios e apresentações a obras de Silva Neto, bem como os escritos pelo autor para obras

de outros cientistas do período.

Além desses, consideramos um opúsculo e dois textos avulsos de Silva Neto referentes

a polêmicas, e as respectivas réplicas dos polemistas José de Sá Nunes e Almir da Câmara de


62

Matos Peixoto. Foram, ainda, considerados documentos inéditos, constituídos por 8 fitas com

entrevistas de estudiosos da linguagem (dois contemporâneos de Silva Neto e dois

pertencentes à chamada primeira geração de linguistas), que fazem parte do acervo do Projeto

Historiografia da Lingüística Brasileira (Altman 1994).

O opúsculo Rumos filológicos (v. Tabela I, 1942c), referente à polêmica mantida pelo

autor com Matos Peixoto, foi utilizado exclusivamente neste segundo corpus, do qual

procuramos extrair dados contextuais, diferenciando-se do artigo “Etimologia e ortografia”,

referente à polêmica com Sá Nunes (v. Tabela V, 1956q), que integra os dois corpora, ou

seja, este relativo ao contexto e aquele primeiro, relativo aos conteúdos intelectuais do

programa da Filologia Brasileira.

Os motivos para considerar o primeiro texto apenas para a detecção das ‘redes’ de

relações foram dois:

1) diferentemente do que ocorre com o segundo texto, “Etimologia e ortografia”, os

argumentos linguísticos nele apresentados pelo autor encontram-se também naqueles textos

selecionados para a análise dos aspectos cognitivos, tornando redundante sua reavaliação

nesta obra;

2) este texto, assim como “Etimologia e ortografia”, contém uma certa quantidade de

informações sobre as relações pessoais e acadêmicas estabelecidas pelo e no grupo de

filólogos do qual Silva Neto fazia parte, interessando-nos, portanto, mais em relação a esse

aspecto. A Tabela VI resume os dados sobre este segundo material informacional.


63

Tabela VI: Suportes informacionais para a detecção de variáveis pertinentes aos agentes,

aos problemas e ao contexto da Filologia Brasileira entre 1940 e 1960

Suporte informacional Referências


Boletim de Filologia (Rio de Janeiro). 1946: I
(l):67-72; I (2): 127-135; I (3):194-198; 1947:
“Noticiário” e “Bibliografia”
II (4):247-251; II(5):61-64; II(6): 125-128;
II(7): 191-192.
Boletim de Filologia (Lisboa). 1956, XVI (2):
“Vida do Centro”
408-412
“Academia Brasileira de Filologia”: Revista Filológica. 1955(2): página não
Quadro Acadêmico” enumerada
Revista Brasileira de Filologia. 1955 1(1):83-
85; 1956 l(2):281-284; 1956 2(1): 137-140;
“Notícias e comentários”
1956 2(2):307-312; 1957 3(1): 164-168; 1957
3(2):271-289
Revista Brasileira de Filologia. 1956 2(1): 131-
“Notas bibliográficas”
132
“Primeiro Congresso de’ Dialetologia e
Jornal de Filologia 1958 IV (3-4): 103-110
Etnografia”

Silva Neto. “À guisa de prefácio” Revista Brasileira de Filologia 1955 (1):10

Boletim de Filologia (Rio de Janeiro).


“Apresentação”
1946, I(1)
Silveira Bueno. “Apresentação” Jornal de Filologia. 1953(1)
Almeida Azevedo. “Um mestre português
Letras e Artes . 3/10/1948:13 (com continuação
da filologia em trânsito para o congresso
à p.15)
de Florianópolis”
Chaves de Melo. “Um novo manual de
ortografia e a questão ortográfica no Euclydes 1940 2(2):37-39.
Brasil”
Mansur Guérios. “Prof. Dr. Aryon
Letras 1959 (10):162-163
Dall’Igna Rodrigues”
Pinto de Almeida. “Um livro muito
Revista Filológica 1941 II(2):42-47
nocivo”
Silva Neto. 1947. A santa vida e religiosa
Jaime Cortesão. “Prefácio a A santa vida e conversação de frei Pedro. Porteiro do
religiosa conversação de frei Pedro” mosteiro de S. Domingos de Évora. Rio de
Janeiro: Dois Mundos, XIII-XXXIII
Ismael de Lima Coutinho. “Prefácio a Silva Neto. 1958. Bíblia medieval portuguesa I.
Bíblia medieval portuguesa” Rio de Janeiro: MEC-INL, 5-9
64

Magne. “Prefácio a Introdução ao estudo Silva Neto. 1950. Introdução ao estudo da


da língua portuguesa no Brasil” língua portuguesa no Brasil.3-4
1942. Novos Rumos em Filologia: a
Almir da Câmara de Matos Peixoto Imprestabilidade dos Velhos Quadros. Rio de
Janeiro: Z. Valverde
1943. Questões filológicas. Rio de Janeiro:
Artur de Almeida Torres
Irmãos Pongetti Editores.
Silva Neto. 1956. Textos medievais portugueses
Thiers Martins Moreira. “Prefácio a Textos
e seus problemas. Rio de Janeiro: MEC- Casa
medievais portugueses e seus problemas”
de Rui Barbosa, 9
Chaves de Melo & Silva Neto. 1951. Conceito
Sousa da Silveira. 1951. “Prefácio a
e método da filologia. Rio de Janeiro:
Conceito e método da filologia”.
Organização Simões, 7-8
Silva Neto. 1956. Introdução ao estudo da
Silva Neto. “Prefácio a Introdução ao
filologia portuguesa. São Paulo: Companhia
estudo da filologia portuguesa”
Editora Nacional, 7-8
Silva Neto. “Prefácio a Futuro da língua Agostinho de Campos. 1948. Futuro da língua
portuguesa” portuguesa. Rio, 7-23

Antenor Nascentes. 1952. Dicionário etimológico


Silva Neto. “Prefácio a Dicionário da língua portuguesa II (nomes próprios). Rio de
etimológico da língua portuguesa II” Janeiro: Francisco Alves/Acadêmica/Livros de
Portugal/São José, vii-viii

Silva Neto. “Prefácio a Orientações da Silvio Elia. 1955. Orientações da lingüística


lingüística moderna” moderna. Rio de Janeiro: Acadêmica, 9-16

Rocha Lima. 1957. Gramática normativa da


Silva Neto. “Prefácio a Gramática
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Briguiet &
normativa da língua portuguesa''
Cia, 5-7

1942. Rio de Janeiro: sem indicação de casa


Silva Neto. Rumos filológicos (polêmica)
publicadora.

2 fitas a serem incorporadas ao arquivo do


Depoimento pessoal 1 (Carlos Eduardo
CEDOCH-DL-USP após a defesa da
Falcão Uchôa)
dissertação

Depoimento pessoal 2 (Sílvio Elia) Fitas 7 e 8. Arquivo do CEDOCH- DL-USP

Depoimento pessoal 3 (Eugênio Coseriu) Fitas 5 e 6 do Arquivo do CEDOCH-DL-USP

Depoimento pessoal 4 (Aryon Rodrigues) Fitas 1 a 4 . Arquivo do CEDOCH-DL-USP

Total 30 documentos
65

2.4. Parâmetros de organização e análise dos corpora

2.4.1 Conteúdo programático: categorias para o delineamento das ideias e

das práticas de trabalho científico

Considerando o principal objetivo definido no capítulo introdutório em relação

aos aspectos cognitivos do paradigma filológico, isto é, o de examinar os elementos que

o caracterizariam internamente entre os anos 40 e 60 no Brasil, definimos, a partir de

Altman (1995), o seguinte conjunto de parâmetros para a análise do corpus distribuído

na Tabela V:

a) O tema ou a área principal de que tratam as obras.

Como nossa primeira forma de aproximação das obras, com o propósito de delinear as

principais áreas de interesse do autor, associamos os textos selecionados como corpus dessa

dissertação em grupos-tema. Estes grupos temáticos levaram em conta o(s) principal(is)

aspecto(s) focalizados pelo autor em cada trabalho. Assim, por exemplo, a História da língua

portuguesa (1970[1957]) contém um longo trecho dedicado à história do latim, mas, como

esta é inserida na obra para contextualizar aquela — sua principal ênfase —, o livro entrou no

grupo-tema 5, referente à história da nossa língua (v. Tabela VII a seguir). A mesma linha de

raciocínio nos levou a inserir as Fontes do latim vulgar. O Appendix Probi (1956a[l938])

entre os textos relativos ao latim vulgar, não obstante a detalhada edição crítica do Appendix

que compõe a obra.

O mesmo critério foi adotado para as categorias material, recorte, orientação (v.

itens b, c e d a seguir), ou seja, apenas foi destacado o que era central na organização dos

trabalhos.

Em vista disso, os grupos-tema foram:


66

Tabela VII: Distribuição temática da produção linguística publicada de

Serafim da Silva Neto (1917-1960)

Número de
Grupos-Tema Textos considerados
páginas
1: História e problemas do
1956a, 1956e, 1977[1957] 522
latim vulgar
2: O português arcaico e a 1947, 1950, 1956k, 1956l, 1956m, 1956n,
questão das edições de 1956o, 1956p, 1956r, 1958, 1960j, 959
textos antigos 1960l,1960q, 1960r
3: Ideias/autores autorizados
1951,1956f, 1956g, 1956h, 1956i, 1956s,
pelo paradigma (discussão e 690
1960a, 1960b, 1988[1957]
difusão)
4: Variação linguística,
1956b, 1956c, 1956d, 1957a, 1960d, 1960e,
língua portuguesa no Brasil 616
1960h, 1960i, 1960o, 1960r, 1960t, 1963
e Dialetologia
5: História da língua
1940, 1941, 1970[1957] 698
portuguesa
6: Questões vocabulares e/ou 1956j, 1956q, 1960c, 1960f, 1960g, 1960k,
162
etimológicas 1960m, 1960n, 1960p

6 grupos-tema 50 textos 3647 páginas

Dito de outra maneira, organizamos, tal como representa a Tabela VII, os 50 textos

que compõem o nosso corpus em seis grupos temáticos (G1, História e problemas do latim

vulgar; G2, Português arcaico e edições de textos antigos; G3, Ideias/autores autorizados

pelo paradigma, G4, Variação linguística, língua portuguesa no Brasil e Dialetologia;

G5, História da língua portuguesa; G6, Questões vocabulares/etimológicas), que cercam

os principais campos explorados pela produção acadêmica de Silva Neto. Este quadro

discrimina, ainda, o número de páginas dedicadas a cada um dos grupos.

b) O objeto material analisado na obra, cujas subcategorias foram teoria (T), quando

o texto teve como ênfase a discussão/elaboração de teorias ou aspectos delas, ou língua

natural (LN), quando o texto enfatizou o tratamento de dados de língua(s);


67

c) A orientação dada ao trabalho, que pode ser gramatical, se o objetivo do texto for

a análise da gramática ou de parte da gramática de uma língua; uso/variação, se for o estudo

de uso e/ou variação de formas linguísticas; (meta)teórica, se o trabalho discutir teorias ou

aspectos delas; histórica, se realizar um estudo diacrônico de formas de uma língua natural ou

reflexões teóricas acerca da história linguística. Incluíram-se sob esta última categoria todos

os trabalhos que trataram de história, mesmo que externa, das línguas (como, por exemplo, a

Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil (1963))

d) O recorte ou nível de análise privilegiado pela obra, que poder ser fonético-

fonológico, morfológico, semântico, sintático ou textual.

Em qualquer uma dessas categorias, exceto Tema/área, quando os textos exigiram,

foram consideradas as ‘combinações’, isto é, os casos em que mais de uma delas apareciam

como ênfases dos trabalhos. Assim, por exemplo, em relação à categoria recorte, algumas

obras tiveram suas análises resultando na indicação morfo/fono/lex, já que os três níveis

foram igualmente importantes para a análise do fenômeno/reflexão do autor. Contudo,

excluídos esses casos especiais, nossa postura foi a procurar destacar o principal foco,

desconsiderando, para efeitos de análise, os aspectos secundários do estudo levado a cabo

pelo autor.

Identificar objeto material, orientação e recorte foi relevante para o delineamento dos

modos de trabalho com a linguagem do autor. A análise dos documentos por essas categorias

permitiram presumir, como, na prática, as pesquisas linguísticas foram conduzidas.

Como tínhamos também a intenção de delinear o nível das ideias, além das categorias

acima, foi pertinente analisar o estatuto atribuído pelo autor às disciplinas Filologia e

Linguística e, paralelamente, à Dialetologia, Etnografia, Gramática — também inseridas no

debate que nos interessa mais de perto. De fato, as relações entre estas disciplinas e suas

práticas aparecem, em Silva Neto, relacionadas a questões de cientificidade e acientificidade,


68

de modo que seu estudo nos forneceu alguns indícios de como os filólogos — aqui

representados por um ‘exemplar’ — entenderam e formularam o debate entre a sua disciplina

e a disciplina concorrente.

Complementarmente, outras reflexões importantes para a compreensão das

concepções do autor e da atualidade destas no período — como as relativas a ‘língua’, ‘língua

portuguesa no Brasil’, ‘crioulos’, ‘dialetos’, ‘história da língua’ — entraram nas fichas de

análise como outras reflexões/conceitos. Estes dados nos forneceram as ideias do filólogo

sobre o objeto linguagem, completando a caracterização do seu pensamento científico.

Os fichamentos, portanto, focalizaram esses aspectos da produção de Serafim da Silva

Neto, como exemplifica a ficha-modelo seguinte:

Ficha I: Ficha-modelo do tratamento analítico dado à produção científica de Serafim da

Silva Neto (1917-1960)

Título: Conceito e método da filologia* Tema: G3


Tipo: I (opúsculo) ed. 1. data: 1951 n. p. 92p
local e editora: Rio de Janeiro: Organização Simões
material: T
recorte: -
(há exemplificações que incluem desde vocábulos e expressões, até considerações
genéricas sobre a evolução da LP no Brasil).
orientação: Histórica/metateórica

estatutos/conceitos de
F: “Por mais nobre que seja a defesa das formas vernáculas, a Filologia é outra
coisa. Para ela a língua é uma expressão da cultura e, como tal, a estuda. Interessam-lhe,
assim, os falares das sociedades não alfabetizadas tanto quanto a expressão artística dos
grandes escritores.”(p. 15)
“Como se vê, é bem larga e extensa a seara da Filologia Portuguesa: abarca todos
os falares regionais de Portugal, Brasil e Colônias, abrange toda a vasta literatura em
língua portuguesa - dos Cancioneiros ao século XX -, compreende todos os vastíssimos
problemas culturais e ergológícos relativos ao léxico.
Cumpre-nos, ainda, encarar como intimamente relacionadas a história da língua e
a história da literatura...”(pp. 16-17)
F/L (por Chaves de Melo):
“Rigorosamente, há que distinguir entre Lingüística Portuguesa e Filologia
Portuguesa. Numa discriminação apurada, teremos de afirmar que o objeto formal da
69

Filologia é estabelecer, explicar e comentar textos, tarefa à primeira vista fácil e pobre,
mas que, na verdade, exige larga soma de conhecimentos e grande acuidade mental. A
fixação dos textos e sua exegese reclamam conhecimentos lingüísticos, paleográficos,
históricos, mitológicos, numismáticos, heráldicos, religiosos, de Poética, e outros mais.
Então, propriamente, Filologia Portuguesa seria o estudo largo e profundo dos textos de
nossa língua para atingir em cheio a mensagem intelectual ou artística nele contida. Já a
Lingüística Portuguesa seria o estudo da língua portuguesa como tal, como produto
histórico-social realizado de mil maneiras através do tempo e do espaço, sendo que todas
essas mil facetas constituem objeto de interesse igual para o lingüista.” (p.55).

Outros conceitos/reflexões
[língua e fala]: “A ‘langue’é um sistema, é um fato social exterior ao indivíduo e que se
lhe impõe; a ‘parole’ é a educação da ‘langue’ pelo indivíduo: tem, pois, caráter
psicológico.”(p.29)
[LP no Brasil]: “Sois [Chaves de Melo] também de opinião que o português do Brasil
apresenta ‘notável unidade relativa, apreciável uniformidade’... e que o
‘conservadorismo’ é um dos seus caracteres mais frisantes...” (p. 25)

* Em co-autoria com Gladstone Chaves de Melo

Reunidos os dados a partir desses critérios e categorias em fichas como a reproduzida

na página anterior, contabilizamos os passíveis de análises mais objetivas (tema, material,

recorte, orientação) e os consideramos sobretudo quantitativamente, com vistas a identificar

as principais opções de Silva Neto na elaboração dos seus trabalhos. A intenção foi a de

identificar, numericamente, como o filólogo, na prática, preferiu trabalhar.

Com as reflexões, conceitos, o procedimento foi o oposto, isto é, desse material

selecionamos tudo o que, qualitativamente, teria dado forma às reflexões do autor; em outros

termos, os conceitos centrais na constituição de sua obra, tomada ‘globalmente’; os que foram

mais reiteradamente defendidos pelo autor; os que mereceram, mais insistentemente, sua

atenção, vindo a ser, assim, no nosso entender, suas principais ‘ideias’. A seleção, neste caso,

foi até certo ponto subjetiva — o que talvez tenha acarretado ausências ou excessos — mas

não aleatória, já que baseada no exame minucioso das obras e consistente com o quadro de

trabalho construído.
70

2.4.2 Informações sócio-relacionais: tratamento dos materiais

Os parâmetros para a análise do segundo tipo de material, mais heterogêneo, foram

menos rigidamente fixados do que aqueles estabelecidos para a análise da obra de Silva Neto

visando à depreensão dos padrões de trabalho científico com a linguagem no período.

Basicamente, a ele aplicamos o princípio da ‘triangulação’ (Murray 1994), que vem a ser o

confronto da mesma informação em pelo menos três fontes diferentes, que, não apresentando

grandes discrepâncias, autorizam o pesquisador a presumir que a informação seja válida.

As informações colhidas por meio deste procedimento foram utilizadas para

contextualizações e para informações biográficas que permitissem situar o autor como um dos

lideres intelectuais e organizacionais da comunidade científica considerada e aparecem, neste

trabalho, sobretudo nos capítulos 3 e 5, como índices comprobatórios dessa condição de Silva

Neto neste grupo.

Três últimas notas em relação aos procedimentos adotados para a elaboração deste

estudo:

Em todas as citações de textos do período focalizado atualizamos a ortografia, que,

principalmente nos textos da primeira década (1940) ou a ela anteriores, apresentava

diferenças consideráveis.

Muitas das obras citadas nesta dissertação apresentam, ao lado da data da edição que

utilizamos, a data da primeira edição entre colchetes, para facilitar eventuais

contextualizações por parte do leitor.

Sempre que nos foi possível dispor das informações, fizemos acompanhar a primeira

citação de cada antropônimo — quando esta se referia à pessoa e não às suas obras— as datas

de nascimento, ou de nascimento e morte. Algumas dessas datas foram reiteradas diversas


71

vezes, para efeitos de fixação, como, por exemplo, em ‘'Serafim Pereira da Silva Neto (1917-

1960)”.
72

CAPÍTULO 3

Cientistas Exemplares

“Todo investigador, por mais original que seja a sua obra, está
preso ao seu tempo e às idéias em voga na época de sua formação
universitária. Os eruditos, mais ainda que os artistas, estão
indissoluvelmente ligados aos mestres, cujos métodos por vezes
renovam, mas cujas idéias absorvem, desenvolvem ou submetem a
uma crítica rigorosa e fecunda. Enfim, é certo que todo estudioso
está muito dependente das doutrinas que aprendeu na sua
mocidade.”
(Silva Neto 1960a:19)
73

Cientistas Exemplares

As concepções sobre o objeto linguagem, sobre as disciplinas por ele responsáveis,

bem como sobre as formas de condução do trabalho científico com esse objeto que tomamos

como representativas do conceber e do fazer ciência da linguagem ‘legítimos’ no período

compreendido entre as décadas de 1940 e 1960, já faziam, nesta época, parte de uma tradição

luso-brasileira de estudos filológico-diatelógicos.

Essa tradição, em nosso país, desenvolvia-se, até os inícios dos anos 40, fora dos

domínios universitários, guiada por interesses espontâneos de estudiosos no sentido de tratar

as questões da língua.

Para esta condição inicial, era decisiva a inexistência de cursos superiores de Letras,

que sinalizava, por um lado, um não reconhecimento oficial da especificidade dos problemas

com que lidavam tais estudiosos e, por outro, a constituição mais ou menos aleatória, posto

que fruto de autodidatismo, de sua competência para lidar com tais problemas.

Os laços de articulação de grupo entre os estudiosos da linguagem dos anos 20 e 30

deste século no Brasil apresentavam-se apenas tenuamente configurados, de tal forma que

parece ter cabido à geração do autor o papel de transformadora desse conjunto de estudiosos

autodidatas em um ‘grupo’ (Murray 1994) profissionalizado de cientistas da linguagem: a

geração de Silva Neto, cujos representantes, assim como os predecessores, não provieram de

cursos de Letras, começou a produzir conhecimento ao mesmo tempo em que surgiam, com

as Faculdades de Filosofia, as primeiras oportunidades de atuação em Universidades — “os

púlpitos onde precisamente se devem debater os grandes temas da Ciência e os centros onde

se deve fomentar a pesquisa” (Silva Neto 1956s:7-8) — e, associando-se à anterior, trabalhou

muito claramente no sentido de definir sua especialidade, seja através de produções

intelectuais na área, seja pela criação de associações específicas da classe (como a Academia
74

Brasileira de Filologia ou os centros de filologia e dialetologia em universidades e outras

instituições).

Neste capítulo pretendemos, a partir de um conjunto de traços referentes às

condições/preferências de formação, atuação profissional e produção, esboçar os

desenvolvimentos dessa tradição filológico-dialetológica no Brasil, partindo dos filólogos

que, nas décadas anteriores à de fundação das Faculdades de Filosofia, desenvolveram

trabalhos em nosso campo de estudos, contribuindo diretamente para a formação da geração

de filólogos dos anos 40 no Brasil (seção 1, A Geração de 20), passando pelo próprio grupo

de Silva Neto, que desenvolveria maior consciência de sua posição e tarefas no contexto dos

estudos sobre a linguagem no país e definiria, mais claramente, seus ‘pares’ científicos (seção

2, Os filólogos de 40), para, finalmente, em face dessas duas primeiras caracterizações,

delinearmos o perfil acadêmico ‘exemplar’ de Silva Neto, procurando pôr em relevo traços

pessoais e profissionais que o teriam alçado à condição de liderança intelectual e

organizacional neste contexto (seção 3, Um percurso de sucesso).

3.1 A Geração de 20

3.1.1 Representantes

É possível recuperar parte do contexto que precede a geração de Silva Neto a partir do

rastreamento das condições/opções de atuação de certos estudiosos, posteriormente tomados

como “mestres”, que, nas primeiras décadas deste século, trabalhando isoladamente,

acabaram por lançar bases para a constituição de uma tradição de trabalho com a linguagem

no Brasil.
75

Estudiosos como João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860-1934); Manuel

Said Ali Ida (1861-1953); Amadeu Amaral (1875-1929); Otoniel Mota (1878-1951); José

Rodrigues Leite de Oiticica (1882-1957); Álvaro Ferdinando de Sousa da Silveira (1883-

1967); Antenor Veras Nascentes (1886-1966); Augusto Magne S.J. (1887-1966); Ismael de

Lima Coutinho (?-1965), Clóvis do Rego Monteiro (1898-?)6, ainda que individualmente,

contribuíram — seja com a inauguração/desenvolvimento de linhas de pesquisa no país, seja

com o fato concreto de terem sido, em alguns casos, professores dos representantes da

geração seguinte — para a articulação posterior de um grupo (do qual alguns deles ainda

participariam ativamente, por décadas) que, tomando-os como “mestres” ou referenciais no

ofício de tratar a linguagem, nos parece ter consolidado, profissionalmente, a atividade. Em

outras palavras, já nos anos 20, eram lançadas, por estes estudiosos que isoladamente

empreendiam trabalhos científicos com a linguagem, bases para a configuração do grupo que,

nas décadas posteriores, conferiria ares profissionais à tarefa de tratar das línguas,

principalmente a portuguesa, em todas as suas facetas internas, bem como em suas interfaces

com outros elementos culturais.

3.1.2 Formação

Parece existir algum consenso entre as crônicas sobre a produção linguística brasileira

em tomo da caracterização desses estudiosos da linguagem pré-Faculdades de Filosofia como

6
A rigor, cronologicamente, esses autores poderiam compor duas ou até três gerações. O fato de tomá- los
como uma única liga-se ao de terem sido referências diretas da geração seguinte, a de Silva Neto, que mais
de perto nos interessa. Parece ser uma característica da ciência no século XX, a velocidade com que
surgem novas gerações, sem que as anteriores se afastem dos processos de condução da ciência e da vida
académica. Em vista disso é que, por exemplo, um estudioso como Said Ali, nascido em 1861, continua a
ter um papel relevante no contexto científico-acadêmico dos estudos da linguagem no Brasil quando
outros, como Sousa da Silveira (22 anos mais jovem), obtêm grande prestígio. O mesmo pode ser dito em
relação aos anos 40, em que esses dois grupos-gerações e mais o de Silva Neto encontram-se atuantes no
mesmo contexto, não obstante os 56 anos a separar, por exemplo, Silva Neto e Chaves de Melo de Ali, ou
os 34 a separá-los de Silveira.
76

essencialmente autodidatas7. Inexistindo cursos superiores de Letras no Brasil, de fato, restava

àqueles que, sem sair do seu país, pretendessem se dedicar às questões linguísticas, construir

por si próprios sua competência científica nesta área. Por conta disso, nossos primeiros

gramáticos-filólogos-linguistas provieram, quando os realizaram, de cursos superiores como

os de Direito (ou “Ciências Jurídicas e Sociais”), Medicina e mesmo Engenharia — já

existentes desde o século XIX.

Foi somente naquele século que, com a fuga de Dom João VI para o Brasil (1808),

foram criados os primeiros cursos superiores.

Cronologicamente, (cf. Fávero 1977:19-30; Santos 1997:19-59), tivemos no século

passado o surgimento dos seguintes cursos e escolas oficiais: 1808 — Academia Real Militar,

Curso de Cirurgia e Curso de Economia, na Bahia, e Curso de Cirurgia e Anatomia no Rio de

Janeiro; 1809 — foram acrescentados Cursos de Medicina aos Cursos de Cirurgia da Bahia e

do Rio, e criado o de Matemática Superior em Pernambuco; 1810 — Academia Real Militar,

que formaria, além de oficiais, engenheiros civis e militares; 1812 — Curso de Arquitetura na

Bahia; 1814 — Agricultura, no Rio de Janeiro; 1816 — Escola Real de Ciências, Artes e

Ofícios, transformada, em 1820, na Real Academia de Pintura, Escultura e Arquitetura Civil;

1817 — Química na Bahia, Desenho e História, Retórica e Filosofia em Minas Gerais; 1827

— Curso de Ciências Jurídicas e Sociais de São Paulo (a partir de 1854, Faculdade de Direito

de São Paulo); Curso de Ciências Jurídicas e Sociais de Olinda (a partir de 1854, transferido

para Recife como Faculdade de Direito de Recife); 1832 — os Cursos de Medicina e

Farmácia (recém criado) do Rio agrupam-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o

mesmo acontecendo com os da Bahia, que passam a se concentrar na Faculdade de Medicina

daquele Estado; 1874 — Escola politécnica do Rio de Janeiro (originada na Academia Militar

(1810), transformada em Escola Militar (1842), Escola Central (1858) e, finalmente, Escola

7
Ver, entre outros, Nascentes 1939; Elia 1975[1967?]; Mattoso Câmara 1972; Coscriu 1972; Naro 1972;
Altman 1995; França 1998a.
77

Politécnica); 1875 — Escola de Minas de Ouro Preto (MG); 1893 — Escola Politécnica de

São Paulo.

Em vista das possibilidades de formação superior oferecidas, que pouco foram

alteradas ou expandidas durante o início deste século, não deve causar estranhamento o fato,

por exemplo, de João Ribeiro ter cursado alguns anos de Medicina e ter se formado em

Direito; de Sousa da Silveira ter sido um engenheiro, e Antenor Nascentes e Clóvis Monteiro,

advogados.

A formação, diversificada, do ‘homem de Letras’ não estava nem mesmo restrita aos

cursos superiores da área de ‘humanidades’ — aqui entendida em seu sentido lato, incluindo,

por exemplo, a formação em Direito ou Artes, mais distanciadas das de caráter ‘natural’ e

‘exato’ — o que pode sinalizar tanto a inexistência de um conjunto definido de habilidades

para se efetuar o trabalho de tratar a linguagem, estando, portanto, todo o indivíduo ‘culto’, a

princípio, apto a efetuá-lo, quanto a existência de um ensino superior que, mesmo quando

dirigido a áreas mais técnicas, como a de Engenharia, teria uma acentuada característica

‘filosófica’ ou humanista, favorecendo a manifestação de tais vocações. Parece-nos que as

duas hipóteses, somadas a inclinações pessoais, sejam importantes subsídios para entender a

constituição da competência para o estudo linguístico no período pré-Faculdades de Filosofia,

ao que tudo indica, marcado por uma despreocupação oficial com o desenvolvimento das

‘ciências desinteressadas’ e com o seu ensino. Os interesses, de fato, pareciam ser mais

utilitários, pragmáticos, atrelados a necessidades mais práticas:

...o primeiro curso federal de Letras é de 1940 [sic] e foi fundado com
a Faculdade Nacional de Filosofia, nem era de Letras. Aí é que
começou a formação de professores de um modo geral, porque até
então era a formação de médicos, advogados; não havia cursos para
professores [...]. (Elia, em depoimento pessoal inédito)
78

Ao lado dessas possibilidades de formação, havia ainda, como sempre houve, a

oferecida por instituições religiosas: Otoniel Mota, por exemplo, além de ter frequentado a

Faculdade de Direito de São Paulo, concluiu o curso de Teologia oferecido pela Igreja

Presbiteriana deste Estado (1900), recebendo ordens sacras no ano seguinte (cf. Silveira

Bueno 1951)8.

A formação em Letras só passaria a ser oferecida em meados da década de 30, com a

fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934) e

da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal (1935). Assim,

sobretudo nos períodos mais afastados dos anos 30, os estudiosos da linguagem destacavam-

se em função de esforços individuais, formando-se e atualizando-se por conta própria em

nossa área de estudos.

Existiram alguns paliativos para esta situação. No Rio de Janeiro, por exemplo, o

Colégio Pedro II, modelo de instituição de ensino no país e de onde sairiam alguns nomes

representativos da história da nossa disciplina, terminado o tempo exigido para a formação

secundária regular de seus alunos (ou seja, 5 anos), fornecia, aos que lá permanecessem por

mais um ano, um curso que hoje chamaríamos de “técnico” em Letras, que os tomava

‘bacharéis’ nesta área (Ranauro 1997). A este, normalmente, seguia-se um dos cursos de

terceiro grau existentes, como o de Direito ou o de Medicina, dada a ausência do de Letras.

Silveira Bueno (1951) dá, ainda, notícia de uma Faculdade Paulista de Letras, que

funcionou nesta capital entre 1931 e 1934 e na qual Otoniel Mota teria atuado como professor

de língua e literatura gregas. Era, no entanto, uma instituição livre de ensino — uma

faculdade oficial só surgiria em 1934. É possível que também em outros Estados hajam

existido faculdades como a Paulista, contudo, nosso levantamento, até o momento, não nos

permite afirmá-lo.

8
Augusto Magne,francês, era padre jesuíta, mas formou-se na Itália, vindo para o Brasil posteriormente (cf.
Elia 1975).
79

3.1.3 Atuação profissional

Porque não existiam cursos de terceiro grau em Letras, aqueles que atuaram como

professores o fizeram em instituições de ensino médio. Os colégios e as chamadas “Escolas

Normais”, que formavam os professores do curso primário, sobretudo da rede oficial, tinham

suas cadeiras de português, de latim, literatura, disputadas em rigorosos concursos para os

quais frequentemente se exigiam teses, além da realização de provas. Portanto, lecionar em

uma dessas instituições e, ainda mais, ser o catedrático de uma disciplina, significava

reconhecimento ao saber constituído. Nas décadas de 20 e 30, assim, eram os Colégios e as

Escolas Normais que faziam as vezes das nossas atuais Faculdades e entre eles destacava-se o

já tradicionalíssimo Colégio Pedro II, na Capital da República:

Até aí [a fundação das Faculdades de Filosofia], os melhores


professores de Letras do Rio de Janeiro, e naquela ocasião se pode
dizer do Brasil, estavam no Colégio Pedro II. (Elia, em depoimento
pessoal)

Praticamente todos os filólogos dessa Geração de 20, bem como os da seguinte,

participariam de concursos e lecionariam no que hoje chamamos de cursos de segundo grau.

Até onde investigamos, Said Ali teria lecionado no Colégio Militar; Otoniel Mota, no Ginásio

Estadual de Campinas e no de Ribeirão Preto; Lima Coutinho e Sousa da Silveira, na Escola

Normal do Distrito Federal; Said Ali (História do Brasil), João Ribeiro (História Geral),

Nascentes, Oiticica e Monteiro, no Pedro II.

Em alguns casos, a essa atividade docente somavam-se outras de prestígio equivalente,

como a manutenção de colunas gramaticais ou de vulgarização de questões filológico-

linguísticas em jornais. Said Ali, que colaborou em vários números do Jornal do Comércio,
80

assim como Otoniel Mota em O Estado de S. Paulo e Folha da Manhã, ou ainda João Ribeiro

em Correio da Manhã e Jornal do Brasil, exemplificam esse tipo de atuação.

A propósito, folheando jornais de grande circulação durante a primeira metade deste

século no Brasil, fica-se com a impressão de que as questões filológicas e mesmo gramaticais

despertavam maior interesse do público em geral do que atualmente. O jornal A Manhã, por

exemplo, mantinha um caderno semanal dedicado aos problemas da língua, da literatura e de

áreas afins, o “Letras e Artes”. Este mesmo periódico, inclusive, deu lugar à polémica,

espalhada também pelos diários A Noite e Jornal do Comércio, e pela Rádio Nacional,

estabelecida entre Silva Neto e Sá Nunes, em torno da questão ortográfica em 1948.

Isso sugere que as questões sobre a língua eram uma preocupação do homem culto

‘comum’ e, mais do que isso, que os problemas e a metalinguagem utilizada para abordá-los,

dado o menor grau de especialização da(s) disciplina(s) neste momento, eram mais acessíveis

a este homem —- o que não ocorre atualmente, não apenas quando levamos em conta esse

‘homem culto comum’, como também quando consideramos grupos diferentes de estudiosos

da linguagem: o grau de especialização é tão alto que por vezes se toma impraticável, por

exemplo, a um sociolinguista ler e compreender a metalinguagem de um gerativista e vice-

versa, ficando, na maior parte das vezes, os problemas e os códigos restritos aos ‘iniciados’,

que escrevem para seus pares.

Veja, na página seguinte, reproduções, a título de ilustração, de algumas das

reportagens publicadas no “Letras e Artes” em 1948.

Esses filólogos autodidatas dos anos 20 foram, sem dúvida, autoridades linguísticas do

período, condição reiterada pelas atividades citadas acima, assim como, por exemplo, por

episódios como convocações para fazerem parte de comissões oficiais de ortografia9, como

9
A questão ortográfica foi um tema relevante para os estudiosos da época, que debatiam a pertinência de
simplificá-la, assim como a de uniformizá-la ou não em relação a Portugal (discussão que persiste). Até
meados dos anos 40, é possível encontrar variações ortográficas expressivas entre textos e autores diferentes.
O tema ‘reforma’, em vista disso, acendia grandes polêmicas e motivava alguns filólogos a publicar manuais
81

foi o caso de Magne, Nascentes e Sousa da Silveira em 1936 (cf. Chaves de Melo 1940:37),

ou para ocuparem cargos políticos, como Ismael de Lima Coutinho, que em 1946 assumiu o

cargo de Secretário da Educação do Rio de Janeiro (Boletim de Filologia 1946(IV):249,

‘‘Noticiário”), função também exercida por Clóvis Monteiro.

A conquista desse status de especialista não era feita a partir de instrução superior

específica; construía-se a partir da atividade direta de um erudito com a língua e seus

problemas.

dirigidos à população em geral, mergulhada na confusão ortográfica, como A ortografia simplificada ao


alcance de todos (1940), de Antenor Nascentes.
82
83

3.1.4 Linhas de trabalho filológico

Entre as principais linhas de trabalho desenvolvidas por estes filólogos autodidatas, a

Geração de 20, contam-se a edição de textos antigos (Said Ali, Sousa da Silveira, Magne, por

exemplo); a gramática (histórica ou normativa) da língua ou de partes dela (João Ribeiro; Said

Ali; Otoniel Mota; Oiticica; Lima Coutinho; Monteiro, Sousa da Silveira);

dialetologia/estudos da variação brasileira do português (João Ribeiro; Amaral; Nascentes;

Monteiro); etimologia, lexicografia/terminografia (João Ribeiro; Nascentes; Magne);

estilística (Said Ali; Souza de Silveira; Oiticica); crítica/história da literatura (João Ribeiro;

Monteiro).

Embora autodidata, essa geração de 20 não desconhecia tendências internacionais em

voga à época. O conhecimento, mesmo que não uniforme, existia: alguns estudiosos, por

iniciativa própria, entraram, desde muito cedo, em contato com trabalhos de ‘mestres’

europeus, sintonizando-se com estudos científicos contemporâneos realizados no exterior. Um

exemplo já bastante tradicional disso é o fato de Said Ali, já em 1919, data de publicação da

2. edição de suas Dificuldades da língua portuguesa, ter feito menção ao Curso de lingüística

geral (1916), de Ferdinand Saussure (v. Elia 1975:130-131).

Entre as mais constantes referências estrangeiras desse grupo-geração

estiveram autores portugueses, franceses, italianos e alemães. Alemanha, França e

Itália eram grandes centros dos quais se irradiavam as principais tendências em Filologia

a esta época. Portugal, por sua vez, além de uma fonte em si, constituía também um

elo entre o que se produzia em outros países europeus, sobretudo na Alemanha, e os

estudiosos brasileiros. Acima de tudo isso, tinha uma tradição bastante sólida (e natural) na
84

área de maior interesse para os estudiosos brasileiros: a língua

portuguesa. Interesse que, aliás, parece manter-se até os nossos dias.10

Em função disso, tanto essa Geração de 20 quanto a Geração de 40 de

filólogos brasileiros, de uma forma geral, procuram manter-se em constante interação

intelectual e também sócio-relacional com os lusitanos, tomados como modelos.

Entre os autores da tradição portuguesa de maior aceitação — tanto pela geração de 20

quanto pela posterior — e usados para abalizamento de opiniões em discussões sobre a língua

portuguesa, estiveram Francisco Adolfo Coelho (1847-1919), Carolina Michaëlis de

Vasconcelos (1851-1926, nascida na Alemanha) e José Leite de Vasconcelos (1858-1941).

Talvez essa recorrência se devesse ao fato de terem sido dos mais versáteis filólogos de

Portugal.

Adolfo Coelho, por exemplo, considerado o primeiro filólogo ‘moderno’ daquele país,

atuou em áreas diversas, que se estenderam de questões teóricas (filológicas ou glotológicas)

até estudos sobre história da língua, passando pelo português do Brasil, por estudos

dialetológicos; pela lexicografia/etimologia, e pelos estudos/formulações de teorias sobre

crioulos11.

Leite de Vasconcelos12, por sua vez, foi dialetólogo, filólogo-linguista geral, filólogo-

gramático da língua portuguesa, etimologista e, apesar de tê-lo feito apenas em textos avulsos,

10
Veja, por exemplo, os resultados da pesquisa de Altman et al. 1995, que confirmam esta
tendência entre aqueles que apresentaram comunicações de pesquisa nos Seminários do Grupo de
Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo (GEL): no período de 1978(74) a 1992, os estudos
que focalizaram a língua portuguesa corresponderam a 83,1% do total de trabalhos que trataram de
línguas naturais.
11
Publicou, entre outros, A língua portuguesa: noções de glotologia geral e especial portuguesa
(1868), Teoria da conjugação (1871), Questões da língua portuguesa (1874), Dicionário etimológico
(1895), Os ciganos em Portugal (1892). (cf. Silva Neto 1988[1957])
12
Publicou, entre outros, Estudos de filologia mirandesa (1900), Esquisse d’une dialectologie
portugaise (1901), Lições de filologia (1911), Antroponímia portuguesa (1928). (cf. Silva Neto
1988[1957])
85

historiador da língua. Dona Carolina Michaëlis dedicou-se principalmente aos problemas da

literatura medieval/edição de textos, a estudos sobre Camões e Gil Vicente e à etimologia13.

Em função dessa amplitude de interesses e de realizações científicas, funcionaram

como referências básicas, praticamente obrigatórias, nas áreas de estudo, filológico ou

dialetológicos, em que produziram os representantes dessa geração14.

3.1.5 Inícios da profissionalização: a criação das primeiras Faculdades de

Filosofia na década de 30

Em 1920 foi criada a primeira universidade brasileira, a Universidade do Rio

de Janeiro, resultante da junção, apenas no nível burocrático, de faculdades já

existentes na Capital, a saber, a Faculdade de Medicina, a de Direito e a Escola

Politécnica. Esta existência apenas burocrática se confirma, entre outros fatores,

pelo motivo de sua criação: possibilitar a concessão do título de Doclor Honor is

Causa ao rei da Bélgica, Alberto I, que visitava o país naquela ocasião (sem uma

universidade, isso não seria possível). A Universidade do Rio de Janeiro teria, assim,

existido “apenas no papel” (cf. Fávero 1977; Ranieri 1991, Witter 1984).

Em 1937, como resultado de intensas reformulações no projeto que criara esta

universidade do Rio de Janeiro, fundou-se a Universidade do Brasil, que, por sua vez, passou

a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1963 (Fávero 1977).

13
Teve publicados, entre outros, Fonética e notas gramaticais a respeito da redação espanhola da
lenda de Crescência (1867), Poesias de Francisco de Sá de Miranda (1885), edição de Os Lusíadas
(1908), Cancioneiro da Ajuda (1904) , A infanta dona Maria de Portugal (1921), Estudos camonianos
I (1922) e II (1924), Notas vicentinas (1922), Der portugiesiste Infinitiv (1891), Romances velhos em
Portugal (1936), Lições de filologia portuguesa (1946). (cf. Silva Neto 1988f 1957]).
14
Também com notável prestígio, aproximadamente do mesmo período, podem-se citar os
portugueses Aniceto dos Reis Gonçalves Viana (1840-1914); Augusto Epifânio da Silva Dias
(1841-1916); José Joaquim Nunes (1859-1932); Antônio Augusto Cortesão (1854-1927). Para um
estudo biobibliográfico detalhado, v. Silva Neto (1988[1957]: “História”).
86

Nos inícios dos anos 30, portanto, ainda inexistiam as chamadas Faculdades de

Filosofia oficiais e, por conseguinte, também os cursos de Letras. Esta situação apenas foi

alterada em 1934, quando, juntamente com a Universidade de São Paulo, foi fundada a sua

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. No ano seguinte, por iniciativa de Anísio Spínola

Teixeira (1900-1971), organizou-se a Universidade do Distrito Federal, que fundia uma

Faculdade de Filosofia e Letras, uma de Educação, uma de Ciências, outra de Economia e um

Instituto de Artes. Esta Universidade, devido ao seu caráter julgado progressista em excesso

para o período (v. Fávero 1977) e ao choque inevitável deste caráter com a política repressora

de Getúlio Dorneles Vargas (1883-1954) durante o Estado Novo, manteve-se apenas até 1938,

quando foi dissolvida.

Já em 1937, o Governo Federal havia criado a Universidade do Brasil, que incluía a

Faculdade Nacional de Filosofia. Desse modo, no segundo semestre de 1939, quando se

iniciaram as atividades nesta Faculdade, professores e alunos da Faculdade de Filosofia e

Letras, bem como os da de Educação da Universidade do Distrito Federal transferiram-se para

o novo espaço acadêmico, que, para os governantes, deveria ser tomado como modelo

(Fávero id. ibid.; Ranieri 1991).

Dos estudiosos de que tratamos nesta seção, atuou na Universidade de São

Paulo, Otoniel Mota; na Universidade do Distrito Federal, Sousa da Silveira; na

Universidade do Brasil, Sousa da Silveira e Augusto Magne.

Em período posterior, Coutinho atuaria na Faculdade Fluminense de Filosofia;

Nascentes, na Universidade do Estado da Guanabara, e Monteiro nas Universidade Católicas

do Rio de Janeiro e do Estado da Guanabara (cf. Elia 1975).

Começava a ser institucionalizada a profissão de professor-cientista da área de Letras

no Brasil e os atores designados para detonar este processo no campo compreendido pelos

estudos filológicos foram os autodidatas dos 20, aos quais se juntariam professores
87

estrangeiros, como o francês Georges Millardet (1876-1953), na Universidade do Distrito

Federal, e Francisco da Luz Rebelo Gonçalves (1907-?), na Universidade de São Paulo, e

ainda alguns dos jovens representantes da geração seguinte.

3.2 A Geração se 40

3.2.1 Representantes


Identificando a Geração de 20 como uma geração de mestres”, uma nova

geração de estudiosos da linguagem começou a produzir ciência entre os finais da

década de 30 e os inícios da de 40. Entre os representantes dessa geração, que

chamaremos Geração de 40, estiveram estudiosos como Joaquim Mattoso Câmara

Júnior (1904-1970); Ernesto de Faria Júnior (1906-1962); Teodoro Henrique

Maurer Júnior (1906-1979); Rosário Farani Mansur Guérios (1907-1987); Francisco da

Silveira Bueno (1898-1989); Celso Ferreira da Cunha (1917-1989); Serafim Pereira da Silva

Neto (1917-1960); Sílvio Edmundo Elia (n.1913); e Gladstone Chaves de Melo (n.1917).

Esta nova geração pôde contar, apenas parcialmente, com as Faculdades de

Filosofia: embora tais estudiosos ainda tivessem formação superior nos cursos

existentes antes da criação dessas Faculdades, já que chegariam à idade de frequentá-

los ou nos últimos anos da década de 20 ou nos primeiros anos da década de 30, lecionariam

nesses estabelecimentos de ensino. Dessa forma, se os cursos oferecidos pelas Faculdades

ainda não serviriam para que se bacharelassem em Letras, constituiriam espaços novos para a

atuação profissional e possibilitariam uma especialização posterior, que em muitos casos

resultaria em doutoramentos em Letras. Com efeito,


88

A fundação das Faculdades de Filosofia proporcionou o


aproveitamento de vocações para o ensino superior, as quais, sem
essas escolas superiores, ficariam limitadas e como que estagnadas no
ensino secundário. De fato, o ensinar numa Faculdade impõe ao
professor a obrigação de aperfeiçoar-se continuamente, adquirindo
livros, pondo-se a par do que se faz nos grandes centros universitários
da Europa e dos Estados
Unidos, alargando, enfim, o âmbito de seus interesses
intelectuais. (Silva Neto in prefácio a Elia 1955:9)

O grau de especialização na área de Letras, portanto, tendeu a aumentar.

Sílvio Elia (1975), em função disso, definiu sua geração como ‘"transitória” nos

estudos da linguagem no país: quase toda ela lecionou em cursos de Letras, sem tê-

los cursado. A criação das Faculdades de Filosofia teria, de fato, alcançado essa

geração quando ela já lidava com o ensino no nível secundário. No Rio de Janeiro, por

exemplo:

Eles criaram a Faculdade de Filosofia, [...] não tinham professores, os


professores já estavam todos trabalhando, ou no Pedro II, ou... eles
tiraram os professores do curso secundário, do Instituto de Educação,
ou do Colégio Militar, que eram os principais estabelecimentos [...]
(Elia, em depoimento pessoal inédito)

A Geração de 40, portanto, ainda não estaria totalmente isenta do autodidatismo,

localizado tanto na formação quanto nos primeiros passos dados no exercício do magistério

no nível superior. Mas encontraria um contexto mais favorável à especialização e ao

aperfeiçoamento, sistemático e oficial, na área.

3.2.2 Formação

As formações de origem dos representantes desta geração foram tão diversificadas

quanto as da geração anterior. Entre os cursos procurados pelos filólogos de 40 estiveram o de

Direito, cursado por Silva Neto, Sílvio Elia, Mattoso Câmara (cf. Guérios 1970), e Celso
89

Cunha, por exemplo; Teologia, cursado por Silveira Bueno. Houve ainda formações mais

técnicas, como a de Mattoso Câmara em Arquitetura.

Ao que tudo indica, além de Mattoso, desta geração, e Sousa da Silveira (engenheiro),

da anterior, poucos outros filólogos teriam formação superior básica em cursos mais afastados

da área de humanidades. Cursos como o de Direito, e mesmo de Teologia, embora não

tenham sido exclusividade (v. seção 3.1.2), foram mais procurados pelos filólogos que se

bacharelaram anteriormente à fundação das Faculdades de Filosofia, talvez por que,

manifestada uma propensão para os estudos linguísticos, estas fossem algumas das melhores

alternativas para deles se aproximar, dadas as exigências de trato contínuo e de manipulação

da linguagem nas duas carreiras.

Ainda que não fossem seguidas, a própria formação nessas áreas pressupunha, como

ainda hoje parecem pressupor, um bom domínio de conteúdos humanísticos e linguísticos.

Interferindo mais diretamente, contudo, havia razões práticas, muito mais palpáveis:

Eu fiz um curso superior. Mas [...] não havia Faculdades de Letras,


isso só foi criado em 1940 [sic]. Então eu fiz um curso de Direito e
terminei em 1936. (Elia, em depoimento pessoal inédito)

A situação em relação à formação, portanto, ainda para esta geração não se alterara, ao

contrário da situação profissional, que, mesmo que parcialmente, começava a se modificar.

3.2.3 A atuação profissional

Os representantes desta geração ainda encontraram nos estabelecimentos de ensino

secundário um espaço privilegiado para a atuação profissional. Desse modo, seguindo os

passos da geração anterior, lecionaram nesses estabelecimentos, entre os quais, os públicos

continuavam a deter maior status.


90

Temos informações exatas a respeito de estabelecimentos específicos em que

trabalharam Ernesto Faria (Pedro II); Silva Neto (Liceu Nilo Pessanha (Niterói) e Instituto de

Educação de Campos); Celso Cunha (Pedro II) e Sílvio Elia (Instituto de Educação do Distrito

Federal e Pedro II), embora, nas crônicas que se referem à biografia de praticamente todos os

autores citados como representantes desta geração haja referências à atuação no segundo grau.

Este, portanto, era ainda um importante campo de atuação profissional:

...Naturalmente, então, eu fiz concurso para escolas secundárias,


porque não havia faculdades no Distrito Federal. E foi de língua
portuguesa que eu fiz. Foi aí que eu comecei a minha carreira no
magistério, como professor de ensino secundário de escolas da antiga
Prefeitura do Distrito Federal do Rio de Janeiro. (Elia, em
depoimento pessoal inédito)

Vinculadados ao ensino secundário, os filólogos de 40, ao mesmo tempo, iniciavam

suas atividades nas Faculdades de Filosofia, alguns como assistentes, outros como

responsáveis por cadeiras.

Ernesto Faria, por exemplo, foi, a partir de 1946 (cf. Boletim de Filologia

1946(III):135), o responsável pela cadeira de Língua e Literatura Latinas na Faculdade

Nacional de Filosofia.

Silva Neto, por sua vez, assim como Sílvio Elia, comporia, a partir de 1943, o corpo

de professores-fundadores da Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde lecionou

Filologia Românica. Mais tarde, a partir de 1957, ocuparia ainda a catedra de Filologia

Românica na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

Elia, além da cátedra de Didática do Latim na Universidade Católica, foi o assistente,

já a partir de 1940, de Sousa da Silveira em Língua Portuguesa na Faculdade Nacional, sendo

sucedido por Chaves de Melo e Celso Cunha. Este último, a partir de 1956, assumiria a

cátedra, substituindo a Sousa da Silveira.


91

Maurer, a partir de 1947, sucedendo ao Rebelo Gonçalves, foi catedrático de Filologia

Românica na Universidade de São Paulo, enquanto Silveira Bueno, a partir de 1939, ocuparia

a cátedra de Filologia Portuguesa na mesma universidade, sucedendo a Otoniel Mota.

As perspectivas de atuação profissional expandiam-se e tenderiam, com o tempo, a

restringir-se apenas ao ensino superior, mais estreitamente vinculado às atividades científicas.

Na mesma medida, começavam a se diversificar as linhas de pesquisa e a procedência dos

autores tomados como referenciais.

3.2.4 Linhas de pesquisa

A Geração de 40 trabalhou em algumas das áreas em que a geração anterior trabalhara.

Afinal, esta teria exercido influência direta sobre os novos filólogos.

Deste modo, fizeram parte dos temas tratados pela geração de Silva Neto, a edição de

textos (Cunha, Silva Neto), os estudos sobre a língua portuguesa no Brasil (Chaves de Melo,

Elia, Silva Neto), os estudos dialetológicos (Silva Neto, Celso Cunha), a lexicografia (Faria),

a lexicografia científica (Mattoso Câmara), os estudos sobre o latim (Faria, Elia, Maurer,

Silva Neto), sobre Filologia românica (Maurer, Silva Neto). Nestas linhas, há importantes

contribuições teóricas e metodológicas, como, por exemplo, no caso da dialetologia, com a

incorporação do método geográfico.

A maior novidade a ser introduzida por esta geração, contudo, coube a Mattoso

Câmara Jr., com o seu manual (1941) de linguística sincrônica estruturalista. Seria esta a

primeira tentativa no sentido de somar à Filologia, à Dialetologia, que “naturalmente” fariam

parte dos currículos dos cursos superiores de Letras, uma outra disciplina que lhes conferiria a

“boa orientação necessária às investigações” (Boletim de Filologia 1946 (I): “Apresentação”

(não assinada)).
92

A posição da disciplina e de seu introdutor no contexto acadêmico-institucional em

que surgiram seria, no entanto, ‘periférica’: embora participasse das agremiações, contribuísse

constantemente nos periódicos filológicos, e atuasse também como um dos ‘organizadores’ do

grupo, Mattoso Câmara, que lecionaria na Universidade do Distrito Federal (1938), na

Universidade Católica de Petrópolis e na Faculdade Nacional de Filosofia (a partir de 1950),

não conquistaria, nem para si, nem para a sua disciplina uma cátedra nas universidades

oficiais: a Linguística permaneceria como disciplina optativa na Faculdade Nacional e o

linguista, pleiteando a cátedra de Língua Portuguesa nesta mesma faculdade, seria preterido,

em favor de Celso Cunha:

Sua [de Mattoso Câmara] Linguística não estava


institucionalizada e ele ficava fora do grupo. Também não tinha
uma cadeira na Universidade. Ele tinha assim uns cursos.
(Coseriu, em depoimento pessoal inédito)

Se a Linguística de fato foi encarada pelo grupo carioca como uma disciplina que se

somava à Filologia, auxiliando-a (v. capítulo 4), provavelmente questões pessoais, mais do

que as acadêmicas e mesmo científicas, determinaram esse quadro, que dá conta de que a

Linguística não encontrou, institucionalmente, o mesmo destaque conferido aos estudos

filológicos, à época ‘centrais’ no contexto dos estudos da linguagem no país.

Ainda em relação às linhas e modos de trabalho com a linguagem característicos da

Geração de 40 de estudiosos da linguagem no Brasil, destaca-se a execução de manuais

introdutórios às ciências da linguagem, destinados aos estudos de nível superior: nos anos 40

e, principalmente, 50, foi elaborada uma quantidade considerável de manuais introdutórios à

Linguística (Mattoso (1941); Elia (1955)); à Filologia (Silveira Bueno (1946); Chaves de

Melo (1951); Silva Neto (1956s, 1988[1957]); Cunha (1954)), à Dialetologia (Silva Neto

(1957)).
93

Esta geração, portanto, acrescentou uma tentativa de sistematizar, ainda que com fins

didáticos ou de divulgação, a história, as teorias, os métodos das disciplinas linguísticas, ou

seja, às produções que visavam à divulgação dos ‘produtos' do fazer ciência, ou dos modos de

se utilizar o idioma, procurou acrescentar produções que orientassem, teórica e

metodologicamente, o caminho a ser percorrido para se chegar a tais ‘produtos’.

Parecia ser aquele um momento de definir e explicitar as próprias práticas e

convicções, o que pode, em um nível mais geral, isto é, do contexto acadêmico- científico

brasileiro, sinalizar um amadurecimento da especialidade ‘cientista da linguagem’, que

passava a ser percebida como tal e levava os ‘especialistas’ a separarem-se mais claramente

de outros — também claramente percebidos como diferentes — delimitando o seu campo

específico. Em um nível mais particular, interno ao próprio campo das ciências da linguagem,

poderia sinalizar uma necessidade de estabelecer os primeiros limites entre ‘especialidades’

que começavam a se diferenciar e que não estariam, para os próprios estudiosos, tão

claramente compartimentadas, separadas: não sendo muito evidente a distinção, por exemplo,

entre Filologia e Linguística, seria essencial refletir sobre o que, a rigor, as diferenciaria, tão

aproximadas estariam as práticas do filólogo e do linguista. De fato, quase todos os manuais

do período, e ainda o Dicionário... de Mattoso, procuraram definir, uma em oposição à outra,

Filologia e Linguística (v. Coelho 1996). Se a diferenciação fosse evidente, qual a

necessidade de formalizá-la deste modo?

De toda forma, parecia estar clara a percepção de que a prática de tratamento da

linguagem passava a conquistar um novo estatuto, próprio, e a ter um caráter específico. O

novo ‘homem de Letras’ teria a possibilidade de especializar-se e profissionalizar-se, formal e

oficialmente, e os manuais, neste novo contexto, tornariam explícito o que viria a ser esta

nova ‘especialidade’ oficial, difundindo-a para uma potencial ‘nova geração’, a de estudantes

universitários. Funcionariam, enfim, como instrumentos de iniciação metodológica e teórica


94

até bem pouco tempo raros no país. O momento parecia ser de ‘organização’ e busca de

autodefinição dos grupos de cientistas da linguagem, que começavam a dar demostrações

mais explícitas de estarem procurando marcar a existência da(s) especialidade(s).

3.2.5 Centros de estudo e periódicos especializados

Esta geração, associando-se à anterior, ainda plenamente ativa, preocupou-se também

com a criação e a manutenção de periódicos especializados, voltados principalmente para os

estudos de Filologia, sobretudo portuguesa. Foram alguns dos periódicos especializados

criados neste período, no Rio de Janeiro, a Revista

Filológica. Arquivo de estudos de Filologia, História, Etnografia, Folclore e Crítica

Literária (1940-1956), fundada pelo professor do Colégio Militar, tenente-coronel e

deputado Rui de Almeida (?-1956), e transformada, em 1944, em “órgão oficial” da

Academia Brasileira de Filologia, da qual o professor fazia parte; o Boletim de

Filologia (1946-1949), organizado por Antenor Nascentes, Ernesto Faria, Mattoso

Câmara, Silva Neto e Sílvio Elia, com o intuito de tratar de filologia portuguesa,

dialetologia e linguística; e a Revista Brasileira de Filologia (1955—1961), criada por

Serafim da Silva Neto, nos moldes da Revista Portuguesa de Filologia, seguindo os mesmos

propósitos do Boletim. Em São Paulo, foi criado por Silveira Bueno o Jornal de Filologia

(1953-1961). Em Curitiba, Letras: Revista dos cursos de Letras (1953-hoje), por Mansur

Guérios.

Outra atitude foi a de organizar centros especializados de estudos. Em 1953, por

exemplo, foi criado, por Silva Neto o Centro de Estudos de Dialectologia Brasileira no Museu

Nacional. O mesmo Museu, a partir de 1958, abrigaria um Centro de Estudos Linguísticos,


95

organizado por Mattoso Câmara. Nas próprias faculdades de Letras começavam a surgir

centros, sobretudo filológicos.

Dentro desse espírito de ‘agremiação’ entre os intelectuais dedicados às ciências da

linguagem — que gradualmente atingiam níveis mais elevados de profissionalização e

buscavam reconhecimento de sua especialidade — os filólogos cariocas ainda organizariam,

em 1944, a Academia Brasileira de Filologia.

Segundo Torres (1971:76-83), apesar de existir a Academia Brasileira de Letras, para

os ‘cientistas da linguagem’ era necessário criar uma agremiação mais específica, direcionada

às preocupações “técnicas” com a linguagem e não às de cunho “artístico”, isto é, literário,

atribuídas à Academia já existente. Assim, foi fundada a Academia Brasileira de Filologia,

com 40 membros efetivos, entre estudiosos já com grande prestígio em 1944 e representantes

da nova geração que começavam a se destacar. Reunindo, acima de tudo, o próprio grupo

carioca, a Academia contou ainda com um corpo de sócios-correespondentes, de diferentes

partes do Brasil, de Portugal e de outros países, como mostram os quadros, à página seguinte,

reproduzidos da Revista Filológica (1955(1): 1, à esquerda) e de Littera (1974(2):81, à

direita).

Em vista dessas realizações, podemos afirmar que as décadas de 40 e 50, nas quais

emergia a geração de Silva Neto, ficaram marcadas por um impulso ‘organizador’: os

filólogos daquele período, a partir do caminho aberto pelos predecessores e em conjunto com

eles, que ainda exerciam papéis centrais, firmaram os estudos sobre a linguagem como uma

especialidade oficialmente reconhecida e, naquele momento, sinônima de Filologia, disciplina

que agregava o maior número de adeptos na comunidade que, ao organizar periódicos,

associações, se denominou, preferencialmente, “filológica”.


96
97

3.3 Um percurso de sucesso

Seguindo uma trajetória comum aos ‘Homens de Letras’ de sua época, Serafim da

Silva Neto concluiu em 1934 o curso colegial (no Colégio Batista do Rio de Janeiro) e

ingressou na Faculdade de Direito. Bacharel, em 1939 prestou concurso — com a tese

Divergência e convergência na evolução fonética — para a cadeira de língua portuguesa no

Liceu Nilo Pessanha, de Niterói (v. Silva Neto 1942: “Prefácio”). Professor secundário e

autodidata egresso de uma das carreiras mais procuradas por aqueles que se dedicavam aos

estudos da linguagem, a partir da criação das Faculdades de Filosofia, lecionaria também em

cursos superiores de Letras. Sua trajetória reuniu, portanto, traços característicos do perfil

padrão do ‘filólogo-linguista’ de sua geração.

Tendo o perfil padrão dos representantes de seu grupo, o que chama a atenção em seu

percurso é a precocidade com que se introduziu e destacou no meio científico: nascido na

Capital da República em 06 de junho de 1917, já em 1935, quando tinha 18 anos, escreveu os

textos que comporiam o seu livro Fontes do latim vulgar: o Appendix Probi, publicando-os

no ano seguinte, semanalmente, no jornal Voz de Portugal (Rio). Em 1937, esta obra foi

contemplada, em 3º lugar, com o prémio “Francisco Alves” da Academia Brasileira de Letras

(Silva Neto 1946[1938]). No ano seguinte, apresentada ao público no formato de livro,

despertou interesse de filólogos renomados, brasileiros e estrangeiros, tais como Antenor

Nascentes, Leite de Vasconcelos, Georges Millardet, Maria Rosa Lida e Amado Alonso (cf

Silva Neto 1942; Matos Peixoto 1942).

O início era, assim, promissor:

A estréia o elevou de chofre ao primeiro plano da Filologia Brasileira


e ensejou a um outro professor, também jovem e em plena ascensão,
o atualmente consagrado latinista Ernesto Faria, a oportunidade de
98

convidá-lo para assistente de sua cadeira na Faculdade Nacional de


Filosofia. (Elia 1960:10)

Segundo Silva Neto (Prefácio a Ensaios de Filologia portuguesa), na verdade a estréia

foi anterior à publicação desta obra que o projetou: já entre dezembro de 1934 e janeiro de

1935, ou seja, quando tinha 17 anos, publicara alguns textos, que tratavam do português do

Brasil, na revista Vitória (Rio), sem que tivessem o mesmo impacto que as Fontes. De todo

modo, quando as publicou pela primeira vez em forma de livro, em 1938, ainda tinha 20 anos

e, não obstante a pouca idade, passou imediatamente a ser reverenciado como uma autoridade

no meio:

O professor Serafim Silva Neto é hoje bastante conhecido em nossos


meios filológicos.
A despeito de sua pouca idade, pois, segundo suponho, ainda não
entrou na casa dos trinta anos, conseguiu firmar a sua reputação de
conhecedor da nossa língua com o muito interessante trabalho
intitulado Fontes do latim vulgar, trabalho que a Academia Brasileira
de Letras teve o bom senso de premiar recentemente. (Torres
1943:27)

De acordo com Murray (1994), a variável “precocidade” pode levar ao

desenvolvimeto, pelo jovem cientista, tanto a uma trajetória de ruptura quanto de

continuidade em relação ao ‘paradigma’ em que se insere: se ele tem suas contribuições

rejeitadas pela elite acadêmica, tende a romper com ela e com o seu corpo de “boas ideias”; se

aprovadas, tende a desenvolver uma postura intelectual continuísta. A posição de Murray,

portanto, relativiza a de Kuhn (1987[1962]), segundo a qual cientistas mais ‘jovens’, em

termos etários ou em termos profissionais (isto é, com menos experiência na área), estariam,

por este fator, mais suscetíveis a rupturas com o ‘paradigma’, já que os modos de ver

propostos por este estariam neles menos entranhados do que em cientistas mais experientes e

mais comprometidos.
99

Cientista precoce e, desde o princípio, aceito pela ‘elite’, mesmo sendo conhecedor da

literatura ‘linguística’ de sua época, que citava em suas obras, Silva Neto sempre vinculou sua

produção ao paradigma ‘filológico’, encarando essa literatura como instrumento para otimizar

seu trabalho de filólogo, na sua concepção, o cientista responsável pelo estudo da língua em

toda a sua amplitude. Aprovadíssimo, foi incorporado ao grupo e incorporou os projetos da

elite acadêmica.

Para Matos Peixoto (1942) — autor que manteve com ele uma polêmica em torno da

tese apresentada para o concurso de 1939 no Liceu Nilo Pessanha (v. Coelho 1997) — cada

vez mais, posicionar-se contrariamente ao jovem filólogo, mesmo que em questões

“técnicas”, significava atrair a ira dos “velhos quadros” da Filologia no Brasil. No extenso

trecho que citamos a seguir, Matos Peixoto descreve as sanções recebidas devido “à ousadia

de criticar” a tese na Revista Filológica, e acaba por testemunhar a experiência de quem

esteve do “outro lado”, isto é, a do jovem estudioso à margem do grupo de elite:

Na redação da ‘Revista’ — informou-me o próprio diretor, o Sr.


Rui de Almeida — choveram, daqui e dos Estados,
reclamações repetidas: cartas, telefonemas, ameaças de
suspensão das assinaturas, etc. Foi um pandemônio.
O Sr. diretor [...] viu-se azucrinado e maldisse a hora em que deu à
estampa ‘aquela’ minha crítica e, ó terror!, ‘aquela’ minha
classificação15. Até imposições lhe fizeram [...]. E, logo no n. 3 da
‘Revista’, saiu, contra mim, uma nota desinfamante, assinada
pela redação, onde se fala na ‘ingenuidade do jovem prof. Almir
de Matos Peixoto’, na sua ‘irreverência’: a nota dá mesmo a
entender ser o cúmulo do desaforo haver eu tido a ousadia de
expender ‘aqueles’ conceitos em artigo ‘acolhido’ nas próprias
páginas confiantes da ‘Revista’[...]
Pois os ‘consagrados’ ainda não estavam satisfeitos! No n.4, veio a
resposta à minha crítica [...] do punho do próprio criticado. Foi
um arrasamento em regra: não tenho "ética’, nem ‘espirito’, nem
‘cultura’[...] sou confuso, não ‘percebo’ as cousas, não ‘entendo’,

15
Em sua crítica à tese Divergência e convergência na evolução fonética, Matos Peixoto classifica os
“especialistas” em linguagem brasileiros em gramáticos-puristas, que, sem preparo científico, buscam nos
clássicos as boas formas de dizer, e filólogos-linguistas, que, sem conhecer a língua, “se intoxicam das
novidades, novas... e antigas..., dos tratadistas estrangeiros,[...] constróem no vácuo ou se espraiam [...] em
campos propícios a aplicações teóricas de conhecimentos teóricos". Há ainda os “especialistas não
diferenciados”, que são uma e outra coisa, e os “ curiosos”, “que não são ‘gramáticos’ e ‘puristas’, nem
‘filólogos’ e ‘lingüistas’, embora se presumam uma e outra cousa",(cf. Matos Peixoto 1942:XIII).
100

etc, etc, num carrilhão badalante pelas 20 páginas da ‘resposta’;


depois, eu tivera o topete de criticar o criticado, jovem já
‘consagrado’ até por vários ‘consagrados’ estrangeiros!

Isso ainda não bastava. Ficou logo assentado que eu não teria
direito a tréplica. De fato, a ‘Revista’ a recusou.[...]
O diretor bem que merecia, agora, plácido repouso. Puro engano.
Rodavam as máquinas na impressão do n.5 da ‘Revista’ quando
outra imposição lhe adveio. Um dos colaboradores exigia, sob a
sanção de retirar o seu artigo já impresso, entrasse o nome do
meu criticado para a colaboração efetiva da ‘Revista’: lá está
ele na página 4 desse n. 5.
O meu ‘castigo’ era ‘tremendo’, e a ‘Revista’ e os velhos
quadros ficariam impunes. Tinha era, mesmo, de calar-me [...] E
o ‘castigo’ foi bem calculado: a ‘Revista Filológica’ é, no género, a
única publicação existente atualmente no Brasil. Cerceamento, e
em assuntos técnicos, da mais elementar liberdade de exame e
de idéias! (Matos Peixoto 1942: XV- XVII, grifos meus)

Para Matos Peixoto, fazer parte do restrito grupo de “consagrados”, supunha conduzir

seus trabalhos ou como “gramático-purista” ou como “filólogo-linguista” (v. rodapé da página

anterior), o que, pelo que deixa implícita a sua classificação dos "especialistas em linguagem”

no Brasil, não fazia. De fato, em sua resposta, Silva Neto toma-o como não-especialista,

afirmando que sua crítica não tinha valor e que a ele (Silva Neto) só interessavam “as vistas

dos filólogos”, isto é, dos pares, que já o tinham aprovado. Talvez por não ter encontrado a

mesma receptividade a suas obras, que Silva Neto classifica de “filosóficas”, Peixoto não

restringiu sua crítica à tese (e à pessoa) do novo ‘eleito’ pelos “velhos quadros”, mas a

ampliou para esse grupo dominante e sua política seletiva. A essa postura oposicionista, os

“consagrados” teriam respondido com as sanções descritas no trecho citado acima.

O trecho e a obra em que se insere (Novos rumos em filologia: a imprestabilidade dos

velhos quadros (destaque meu)), assim, mesmo que tomemos em conta as reduzidas

proporções do episódio, procuraram denunciar um círculo: trabalho em desacordo com o que

seria esperado receberia julgamento negativo, que geraria um sentimento de não-pertinência e

levaria a uma postura de clara crítica ou ruptura, que, por sua vez, relegariam o cientista-

rebelde a uma situação de marginalidade.


101

Na época da polêmica (1940 a 1942), Matos Peixoto, como Silva Neto, formado em

Direito, era professor de português, “por concurso, do Departamento de Educação Técnico

Profissional” do Rio de Janeiro (cf. Matos Peixoto 1942). Apesar disso,

Segundo me referiram, um professor oficial ajuizou, assim, da


contenda: ‘Não! O Matos Peixoto não tem competência moral para
criticar o Serafim’!! (Matos Peixoto 1942:24, rodapé(1). O grifo é do
autor)

Segundo a lista apresentada em seu livro O elemento-primeiro em linguística (1952),

além deste e dos textos que integraram a polêmica, o marxista Matos Peixoto foi autor, na

nossa área, de Dicionário geográfico, gramatical e biográfico ilustrado (1943); Sistema

fonético árabe para a filologia arábico-portuguesa (1949) e “Relações sintagmáticas

(sintagmas) e associativas na linguagem” (s.d.) — textos dos quais, assim como o que se

verifica com o autor, a maioria dos representantes das novas e novíssimas gerações de

cientistas da linguagem não teríamos sequer notícias.

Diferentemente, o linguista Mattoso Camara Jr. que a princípio estaria introduzindo

neste mesmo período (1941) uma ruptura em relação aos “velhos quadros” a que se refere

Peixoto — parece ter sido incorporado à estrutura organizacional existente: os Princípios de

Mattoso foram apresentados, em sua primeira edição, por um prefácio elogioso de um dos

ícones da Geração de 20, Sousa da Silveira, e o linguista, se não obteve em sua carreira

académica uma cátedra na Faculdade Nacional, fez parte do corpo docente da mesma, assim

como do corpo de membros efetivos da Academia Brasileira de Filologia e, ainda, do corpo

de diretores-editores do Boletim de Filologia e da Revista Brasileira de Filologia; além disso,

seus textos eram acolhidos em todos os periódicos em que também publicavam os filólogos.

Portanto, se a sua posição no grupo não foi das mais destacadas, não foi também o que se

pode chamar com exatidão de ‘marginal’, como parece ter sido, naquele momento, a de Matos

Peixoto.
102

Essa comparação entre duas trajetórias mais ‘periféricas’ pode nos levar a considerar

como válida a proposta de Murray (1994) de ‘acesso a reconhecimento’ como um dos fatores

decisivos para a ‘escolha de retórica’. A ‘retórica’ de Mattoso, neste momento, não era de

ruptura; o que talvez se credite ao reconhecimento, pelo menos parcial, a que teve acesso.

Voltando ao percurso de sucesso de Silva Neto, ainda precocemente e, como outros

representantes de sua geração, formado em uma das especialidades possíveis antes da

existência das Faculdades de Letras, ingressou em 1942, com 26 anos, na Universidade

Católica do Rio de Janeiro, como catedrático fundador da cadeira de Filologia Românica. Em

1957, com 39 anos, assumiu também a cátedra de Filologia Românica da Universidade do

Brasil, na época a mais prestigiada do Rio de Janeiro e, por ser esta a capital política e cultural

do país, das de maior prestígio no Brasil e em Portugal.

A ascensão a esta cátedra resultou de um concurso realizado no ano anterior, no qual

concorreram Silva Neto e o interino, Augusto Magne, filólogo da Geração de 20

respeitadíssimo no meio e então com 69 anos. De acordo com depoimentos, ambos obtiveram

os conceitos máximos em todas as provas e Magne, por ser o interino e o mais velho, assumiu

a cátedra, para aposentar-se no ano seguinte, quando completou 70 anos. Aposentando-se,

Silva Neto assumiu.

Esse episódio leva-nos a supor que, em 1957, Silva Neto já teria, pelo menos, o

mesmo nível de aprovação pela comunidade do “mestre” que o antecedia. Aos 39 anos,

portanto, teria o status de um dos principais especialistas da área no país:

Em 56 ele já era a figura dominante. Ele já tinha começado a publicar


a História da língua portuguesa, ele já tinha publicado muitas coisas
e era também o homem que tinha a maior biblioteca de Linguística.
Tinha uma coisa enorme de biblioteca. [...] Era a biblioteca melhor de
toda a América Latina e não só de Linguística românica ou
Linguística portuguesa. Ele tinha muitíssimo de Linguística geral e,
coisas que ninguém tinha, ele tinha pessoalmente, porque comprava
na Europa, nas viagens. E tinha manuscritos... ele tinha uma coisa
incrível! (Coseriu, em depoimento pessoal inédito)
103

Condições pessoais favoráveis, como a citada acima em relação a viagens

internacionais e aquisições de livros, periódicos, manuscritos, para a sua “incrível” biblioteca,

posteriormente doada para a UFRJ, talvez tenham facilitado o afloramento precoce e a

manutenção de seus talentos, que nos finais dos anos 50 pareciam ser indiscutíveis, tanto para

seus contemporâneos, quanto para os representantes da Geração de 20:

[Quando fui aluno da Faculdade Nacional de Filosofia], sempre


tinha algum outro professor assistindo às aulas dele. Ele era
tremendamente reverenciado, diria até paparicado, pelos filólogos.
(Uchôa, em depoimento pessoal inédito)

Complementando o aumento de seu prestígio com a conquista da cáteara na Faculdade

Nacional, foi também em 1957 que apresentou a primeira publicação completa da sua

História da língua portuguesa, por muitos considerada sua principal obra. Este ano, deste

modo, figura como pico de sua ascensão acadêmica e fixação como um dos principais

expoentes da sua geração nos meios acadêmicos brasileiro e lusitano.

Em decorrência desse seu destaque, entre 1958 e 1960, lecionou, como professor

convidado, Filologia Portuguesa na Universidade de Lisboa, que, ainda em 1960, lhe conferiu

o título de doutor Honoris Causa.

Foi, a propósito, durante toda a sua carreira, notória a sua proximidade dos meios

filológicos portugueses, que se traduziam em viagens de estudos patrocinadas pelas

“associações da Colônia Portuguesa”, em os convites para proferir palestras e conferências,

em contatos estreitos com estudiosos como Manuel de Paiva Boléo (1904-?) e José Pedro

Machado (1914), por exemplo, ou na referência e reverência constantes a José Leite de

Vasconcelos, a quem dedica a sua História e sua primeira aula na Universidade de Lisboa.

Nas revistas do período, há, por exemplo, os seguintes registros:


104

Partiu para Lisboa no dia 19 de abril pelo avião Bandeirante, da


frota da Panair do Brasil, nosso redator, prof. Serafim Silva Neto,
que foi a Portugal em viagem de estudos subvencionada pelas
associações da colônia portuguesa do Rio de Janeiro e com apoio
do Governo Português. (“Noticiário”, Boletim de Filologia 1947
11(5): 19 (grifos do original)) 16

ou,

Em outubro de 1957, o professor Serafim da Silva Neto, da


Universidade do Brasil e da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, deu, na Faculdade de Letras de Lisboa, uma série
de lições sobre ‘O português do Brasil: conceito, história e
expansão literária’. (Boletim de Filologia (Lisboa) 1958 (2):412).

A ‘boa’ Filologia, ainda para esta geração de filólogos e, muito explicitamente, para

Silva Neto, encontraria nos autores portugueses uma referência de grande peso.

O prestígio intelectual obtido já a partir de 1938 e crescente até 1960, ano em que

faleceu, permitia-lhe apontar caminhos para a sua disciplina — o que, como identificamos na

análise de sua obra (v. capítulo 4), se manifestou no tom programático de muitos de seus

textos.

Paralelamente a esta condição que, no modelo de Murray (1994), identificaríamos

como de ‘liderança intelectual’, ao mesmo tempo o autor ascendia como um dos ‘líderes

organizacionais’, executando e propondo realizações que beneficiariam seu grupo. Essa

atuação organizacional concentrou-se sobretudo nos anos 50, embora já durante a década

anterior o autor estivesse envolvido nos projetos do grupo, como se constata pela sua

participação na direção do Boletim de Filologia (1946-1949), ou, como um dos fundadores

da Academia Brasileira de Filologia em 1944. O interesse em criar meios para agregar os

filólogos, principalmente os do Rio, e encontrar instrumentos institucionais para que este

grupo manifestasse suas ‘boas ideias’ parecia recorrente.

16
Refere-se à primeira viagem de estudos do autor a Portugal, naquele ano de 1947.
105

E foi com vistas ao desenvolvimento de uma das principais novas frentes de trabalho

desse grupo, isto é, o desenvolvimento dos estudos dialetológicos com base nos métodos da

Geografia Linguística que,

No dia 14 de novembro de 1953, na 1ª Reunião Brasileira de


Antropologia, realizada no Museu Nacional, fundou-se, por
proposta de Serafim da Silva Neto (votada unanimemente), o
Centro de Estudos de Dialetologia Brasileira.[...] (Revista
Brasileira de Filologia 1955(1 ):83, “Noticiário”)

Seu escopo era criar “mentalidade dialetológica, fomentando pesquisas, sobretudo as

de campo”, que proporcionassem um melhor conhecimento dos falares brasileiros. A criação

desse Centro, que acabaria por não se desenvolver efetivamente (v. Mattoso in Naro

1972:57), foi apenas uma das atitudes do autor no sentido de divulgar os métodos linguístico-

geográficos e a necessidade de se incentivar os estudos dialetológicos. Coordenou-se, assim,

à verdadeira cruzada por ele empreendida pelas faculdades do país. Sua ideia era a de que,

criando-se a “mentalidade dialetológica” entre os que começavam a constituir uma novíssima

geração, isto é, os estudantes de Letras das 44 Faculdades de Filosofia existentes no Brasil

em 1955 (cf. Silva Neto 1957[1955]), em 20 ou 25 anos seria possível elaborar o Atlas

Linguístico Nacional. Este Atlas deveria ser composto a partir da elaboração anterior de Atlas

Regionais, daí derivando a necessidade de espalhar pelo país o interesse pelos falares locais.

O próprio autor testemunhou o seu percurso com vistas à execução desta tarefa:

Desde 1943 dedicamos grande atenção à Dialetologia, seus


problemas e métodos, nos nossos cursos da Universidade
Católica. Em 1950, em breve comunicação oral apresentada em
Washington, no I Colloquium internacional de Estudos Luso-
brasileiros, tivemos oportunidade de frisar a importância e, mais
do que isso, a urgência, de se organizar o Atlas Linguístico-
Etnográfico de Portugal e Ilhas, bem como de se desenvolverem
no Brasil as pesquisas de campo. Em 1951, a convite da
Universidade de Minas Gerais, demos, em Belo horizonte, um
Curso de Extensão Universitária que teve a Dialetologia por
assunto. Em 1954, como professor visitante da Universidade do
106

Rio Grande do Sul, tivemos ocasião de dar ênfase ao problema, ao


mesmo tempo em que aproveitávamos para fazer algumas
sondagens acerca da fala gaúcha. Em janeiro de 1955 demos, na
Faculdade Nacional de Filosofia, um Curso de Extensão sobre a
técnica de monografias dialetais; em fevereiro do mesmo ano
fizemos, em Belo Horizonte, uma conferência sobre o mesmo
assunto. Em 1953, ao ensejo da Primeira Reunião de
Antropologia, fundamos no Museu Nacional, o Centro de Estudos
de Dialetologia Brasileira. No ano seguinte, no II Colloquium de
Estudos Luso-brasileiros, realizado em São Paulo, assim
terminávamos a nossa comunicação, aprovada unanimemente:
‘Desejo aproveitar o feliz ensejo da reunião deste Colloquium, que
congrega a maior parte das Universidades Brasileiras, para
acentuar a necessidade e a urgência de se estudarem os nossos
falares [...]. (Silva Neto 1957[1955]:5)

Ainda em outra ocasião, no III Colloquium de Estudos Luso-brasileiros (Lisboa,

setembro de 1957), o autor insistiria no tema, apresentando, com Celso Cunha, outro

entusiasta dos estudos dialetológicos no Brasil — que posteriormente se engajaria no Projeto

NURC (de descrição da norma urbana culta) — a comunicação “Atlas linguístico-etnográfico

do Brasil (por regiões): o problema das áreas culturais”.

Os lugares aos quais o autor não compareceu pessoalmente não foram excluídos de

seus planos: paralelamente, uma parcela da sua produção intelectual perseguia também essa

meta. Exemplo muito explícito disso, o Guia para estudos dialetológicos (1957[1955])

procurou indicar como proceder em pesquisas, explicando e exemplificando, como selecionar

a comunidade a ser estudada, como selecionar os informantes, como elaborar um

questionário, conduzir um inquérito, e tratar os materiais colhidos de acordo com o método

geográfico-linguístico.

O ‘clima de opinião’ no país, já desde os anos 20, era favorável aos estudos

‘brasileiros’. Desde a literatura, tanto dos anos 20, com os primeiros modernistas, quanto

com os de segunda geração, até as esferas mais ‘científicas’, já desde os anos 30, com

Gilberto Freyre (1900-1982), Caio Prado Jr. (1907-1987) e Sérgio Buarque de Holanda
107

(1902-1982), por exemplo, investigavam-se raízes de questões nacionais, muitas vezes de um

ponto de vista sócio-histórico que privilegiava o ‘regional’.

No campo dos estudos sobre a linguagem, os inícios do século também foram

frutíferos no que diz respeito às discussões sobre a existência ou não de uma língua brasileira

— haja vista a profusão de obras sobre o tema entre os anos 20, 30 e mesmo 40 — e aos

estudos dialetológicos, nos moldes inaugurados por Amadeu Amaral (1920).

Daí que procurar as razões para a configuração do elemento cultural ‘língua’ em suas

raízes históricas e ao mesmo tempo procurar conhecer a cultura por meio dele, como

apregoavam as teorias das “Palavras e Coisas”, que empolgavam Silva Neto, era um projeto

mais do que bem situado no período, despertando realmente interesse, como se deduz, por

exemplo, do número de convites recebidos pelo filólogo para discorrer sobre o assunto em

diferentes pontos do país e em Portugal, ou do curto período entre as duas edições do Guia

(1955 e 1957).

Um outro empreendimento do autor foi a Revista Brasileira de Filologia, que dirigiu

de 1955, quando a fundou, a 1958, quando iniciou suas aulas em Lisboa.

A revista, publicada pela Acadêmica (Rio de Janeiro), editora na qual se publicaram

muitas das obras filológicas no período, inclusive de Silva Neto, teve como molde a Revista

Portuguesa de Filologia, dirigida por Manuel de Paiva Boléo, da Universidade de Coimbra.

Entre os objetivos da RBF estavam o desenvolvimento dos estudos de Filologia e,

evidentemente, dos estudos sobre o português (leia-se, dos seus ‘falares rurais brasileiros).

Das mais regulares e destacadas no país, teve 6 volumes de 1955 a 1961, dos quais os

dois últimos foram dirigidos pela comissão formada por Antenor Nascentes, Ismael de Lima

Coutinho, Sílvio Elia e Mattoso Câmara. Elia (1975), Coseriu (1967) e Boléo (1960)

consideraram-na o melhor periódico da especialidade produzido no Brasil nesta época.


108

Além da produção intelectual influente e do espírito empreendedor, um outro atrativo

para a admiração de seus pares parecia existir em Silva Neto: o carisma pessoal.

Extremamente comunicativo, teria, segundo depoimentos, conversa agradável e um humor

aguçado (“um piadista exímio”).

Somava-se, dessa forma, ao respeito -— pela sua obra e atuação organizacional — a

simpatia de filólogos brasileiros e estrangeiros.

Quando faleceu, em 23 de setembro de 1960 (prematuramente, aos 43 anos), bem

sucedido e muito carismático, já há mais de uma década, havia se tornado

...de fato um guia de sua geração, que o respeitava, admirava e


seguia. (Sílvio Elia 1992:1)
109

CAPÍTULO 4

As “Boas Ideias”

“Desta ou daquela maneira, num ou noutro campo, o que importa


é trabalhar. O que importa é trabalhar pela dignidade de nossa
Ciência e firmar-lhe a posição no grupo das Ciências do Homem.
É coisa evidente que devemos conjugar os métodos, fazendo-os
convergir para o esclarecimento dos problemas. Há que lançar
mão de todos os recursos, para poder interpretar os fatos da
língua.
Todos os meios são bons, desde que concorram para a
reconstituição de um fenômeno lingüístico — fenômeno de
natureza complexa, que tem suas raízes no cérebro dos falantes e
está intimamente entrelaçado com a objetologia e com a vida
social.”
(Silva Neto 1988[1957]]:259)
110

As “Boas Ideias”

4.1 As ciências da linguagem, segundo Silva Neto

Em diversos trechos de suas obras, Silva Neto procurou conceituar as disciplinas que,

segundo ele, comporiam o campo de estudos da linguagem, na maior parte das vezes,

aproximando-as em torno do objetivo comum de explicar os fatos linguísticos.

Embora, em certos momentos, parecesse estabelecer hierarquias, foram raríssimos

aqueles em que se posicionou contrariamente a alguma das formas de se tratar a linguagem.

Quando isso aconteceu, a crítica dirigiu-se ao “naturalismo” — de Schleicher e dos

Neogramáticos, que identificou como tendência fossilizada e ao “purismo”, ou à

“gramatiquice”, modo que o autor considerou não científico e, portanto, oposto aos

tratamentos filológico, linguístico, etnográfico, dialetológico e mesmo gramatical da

linguagem.

A visão do autor a respeito das ciências linguísticas, ou, mais genericamente, das

ciências humanas, tendeu para uma busca de coordenar e integrar as diferentes disciplinas e

seus métodos. Essa visão conciliatória redundou em um entendimento abrangente da sua

própria disciplina, a Filologia, que, tendo múltiplas tarefas, desempenharia um papel de

destaque entre as ciências humanas e sociais.

4.1.1 Linguística e Filologia: especificidades e afinidades

Silva Neto conceitua a Filologia como a ciência responsável pelo estudo completo de

uma língua — ou um conjunto delas — e de sua(s) literatura(s). Por estudo completo de uma

língua, o autor entende o estudo de todas as suas variações e modalidades, quer em


111

perspectiva histórica (ou diacrônica), quer em perspectiva estática (ou sincrônica). Entre as

principais tarefas da Filologia, portanto, ao lado da descrição histórica da língua, figuraria,

segundo ele, o estudo da ‘linguagem corrente’, ou “para usar uma nomenclatura hoje

consagrada, a preeminência dos estudos sincrônicos” (Silva Neto 1988[1957]:223).

Sendo a literatura “a expressão artística da língua” (Silva Neto 1963[1950]: 16), ela e

sua história seriam objetos para o filólogo, que deveria conhecer a língua “em toda a sua

amplitude”. Pelo mesmo motivo, importaria também o estudo dos ‘falares’, com especial

interesse pelos rurais.

Além de estudar amplamente as línguas, aos estudos filológicos não poderia estar

ausente o enfoque cultural, pois

...com o progresso das Ciências do Homem, já não se justifica a


pesquisa restrita aos fatos puramente lingüísticos. E que estes
encontram a sua razão de ser nos próprios seres que compõem as
várias comunidades, o que exige uma sondagem mais ampla, que
englobe as variadas manifestações do espírito, a fim de que desse
harmonioso conjunto mais nitidamente possam ressaltar os fatos da
linguagem. (Silva Neto 1963[1950]:226)

As línguas não deveriam, portanto, ser estudadas isoladamente, mas inseridas em seus

contextos. Em consequência, os estudos filológicos estariam entre aqueles que comporiam as

“Ciências do Homem” — formando um todo com os de natureza sociológica, psicológica,

etnológica etc. e tornando-se, para eles, “ora um fim, ora um meio” (cf. Silva Neto

1988[1957]:66) — e apartados de outros, como os pertencentes ao conjunto das “Ciências da

Natureza”.

Esquematicamente, teríamos algo como o ilustrado com a Figura 1, à página seguinte.

À Filologia, dentro do vasto campo do estudo pleno da língua em suas relações com a

sociedade/cultura, só não caberiam, de acordo com o autor, a “defesa das formas vernáculas”

ou a preocupação “com a míope fiscalização dos galicismos, dos barbarismos ou solecismos”,


112

tarefas pertinentes aos “puristas” e “gramatiqueiros”, atores equivocados do elenco de

estudiosos da linguagem. Eles, sim, veriam a língua separadamente dos fatores que a cercam,

tomando-a como algo imutável, sobre o qual os indivíduos e as sociedades não poderiam, nem

deveriam, atuar.

No que se refere ao tipo de ‘prática’ de trabalho com as línguas, ao moderno filólogo

caberia tanto o estudo tradicional, “de gabinete”, com os textos antigos, quanto o trabalho “de

campo” com os falares contemporâneos:

Nas atividades filológicas, há Marta e há Maria 17.


Há a atividade fremente e ansiosa dos estudos de campo, daqueles
que exigem longas peregrinações e estreito contato com a vida. São
os modernos estudos dialetológicos.
Há, por outro lado, a meditação sossegada dos trabalhos de gabinete,
em que o estudioso concentra o pensamento e a análise num antigo
texto da língua, ou nas várias fases evolutivas dela.

17
Segundo a Bíblia, Jesus visitou uma aldeia, na qual moravam as irmãs Marta e Maria, hospedando-se em sua
casa. Durante o período de “visita”, enquanto a primeira se ocupava com diferentes serviços domésticos, a
segunda permanecia sentada junto a Ele, ouvindo-Lhe as palavras. Queixando-se dessa situação, Marta ouviu de
Cristo que Maria havia escolhido a “boa parte” e que esta não lhe seria tirada, (cf. Lucas 10, versículos 38-42)
113
114

No século XIX, como é sabido, houve exagerada preponderância dos


estudos históricos, a qual chegou a ficar corporificada na célebre frase
de Hermann Paul18: ‘não há outro estudo científico da língua senão o
histórico’.
[...]
Em sua erudita síntese de história dos estudos lingüísticos e
filológicos, Iorgu Iordam19 caracteriza, como tendência moderna, o
estudo da língua viva, dos falares.
Pensamos, todavia, que são igualmente perniciosos os extremos. Não
deve haver predomínio de Marta, nem de Maria. (Silva Neto
1988[1957]:17)

Esta Filologia ampla, que estudaria, histórica e estaticamente, em trabalhos “de

campo” ou “de gabinete”, línguas inseridas em seus contextos sociais e tomadas como

elementos de cultura, manteria relações estreitas com a Linguística, ciência geral da

linguagem, que, tendo caráter eminentemente teórico, forneceria aos filólogos a preparação

básica para efetuar, em padrões científicos, o seu trabalho de tratamento direto e exaustivo

dos problemas das línguas, tomadas amplamente:

[O filólogo] Há que empreender excursões de estudos, há que


pesquisar os objetos da cultura material, há que estudar as mais
variadas profissões para lhes poder penetrar a essência dos termos
técnicos.
Assim, podemos dizer que a Filologia Portuguesa — na definição
que reputamos aceitável de D. CAROLINA MICHAËL1S 20 — é o
estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em
toda a sua amplitude, não só quanto à gramática (fonética,
morfologia, sintaxe) e quanto à etimologia, semasiologia, etc.,
mas também como órgão da literatura e como manifestação do
espírito nacional. Nos tempos greco-romanos a Filologia era
apenas o estudo dos textos, já que ainda não se havia descoberto a
importância capital do estudo das falas populares. Hoje,
entretanto, com o desenvolvimento científico iniciado por Bopp 21
e outros sábios, a Filologia abrange, além da perspectiva histórica
da língua, até os assuntos puramente sincrônicos, isto é, as
descrições de estados de língua.
[...]
Para terminar, diremos que há duas disciplinas intimamente
relacionadas com a Filologia Portuguesa. Trata-se da Filologia
Latina, que estuda cientificamente o latim (baseando estudos das
línguas românicas) e da Lingüística Geral, ciência de princípios

18
Hermann Paul (1846-1921)
19
Iorgu Iordam (1988-?)
20
Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1926)
21
Franz Bopp (1791-1867)
115

gerais, aplicáveis a quaisquer línguas, que serve de preparação


inicial. (Silva Neto 1956s: 16)

O linguista produziria as ‘sínteses’, os saberes a que todo o estudioso da linguagem

deveria recorrer para conduzir seu trabalho; entretanto, para elaborar esse saber ‘geral’, e

mesmo genérico, teria de se valer do conhecimento produzido no nível ‘particular’, pelas

Filologias portuguesa, românica, latina etc. Desse modo, assim como ao filólogo seriam

necessários os ‘princípios gerais’ — e mais ‘abstratos’ — ao linguista seriam imprescindíveis

os conhecimentos específicos — e mais ‘concretos’ — produzidos, a partir de línguas ou

conjuntos delas, nos domínios da Filologia:

A Lingüística parece-nos sempre geral.


A Filologia, sim, encerra todos os estudos possíveis acerca de
uma língua ou grupo de línguas; Filologia Portuguesa, Filologia
Indo- européia...
[...]
Cumpre-nos, ainda, deixar claro que, para a resolução dos
problemas filológicos, é necessária e, até, indispensável a base
geral lingüística. [...]
Por sua vez, porém, o lingüista tem de conhecer a história de
várias línguas, para poder alcançar os princípios gerais. É com
orgulho que os romanistas, por exemplo, salientam a contribuição
que, nestes últimos cinqüenta anos, a sua ciência tem prestado à
Lingüística Geral. (Silva Neto 1988[1957]:16)

À Linguística (disciplina geral) caberia fornecer bases — mais ‘teóricas’ — sobre a

linguagem, que auxiliariam a Filologia (disciplina específica) no tratamento — mais

‘aplicado’ — das línguas, e nenhuma delas poderia prescindir da outra. No campo da

Filologia, sugere o trecho citado acima, não se produziriam resultados gerais, mas os válidos,

no máximo, para grupos determinados de línguas, enquanto no campo da Linguística não

seriam produzidos resultados especificamente voltados para fatos verificados em uma língua

ou em um grupo delas: seus resultados tenderiam para o geral, para o que fosse verificável em

todas as línguas.
116

Essa parece ser a fronteira mais rígida estabelecida por Silva Neto entre as duas

disciplinas, já que, para ele existiriam tanto Linguística quanto Filologia sincrônica e

diacrônica.

Na Figura 2 (página seguinte), procuramos esquematizar essas reflexões do autor

sobre as relações entre as duas disciplinas.

Reconhecidas como modos legítimos e, em certo sentido, complementares de se

estudar as problemáticas linguísticas, Filologia e Linguística seriam, claramente, distintas e

autónomas, na medida em que ambas teriam interesses — pelas línguas ou pela linguagem —

propósitos — mais práticos ou mais teóricos — e tarefas — tratar amplamente línguas ou

sintetizar fatos comuns a todas elas — diferenciados.

4.1.2 Outras disciplinas e seus papéis no campo: Etnografia e Dialetologia

Etnografia e Dialetologia foram outras duas disciplinas científicas a serem tomadas

pelo autor como fundamentais para os estudos da linguagem e como estreitamente ligadas à

Filologia, assim como entre si.


117
118

A primeira — ciência da cultura, à qual afirmou pertencer a sua Introdução ao estudo

da língua portuguesa no Brasil (1963 [1950]) — seria extremamente útil para a realização

dos estudos de ‘história externa’22, respondendo pelo delineamento dos traços socioculturais

de um grupo de falantes de uma língua. A Dialetologia, disciplina mais restrita aos fatos

‘próprios’ de língua, responderia por traços da história interna23.

Esta última disciplina, particularmente interessante para o propósito do autor de

estudar o português do Brasil (v. o item “Temas” adiante), seria — sobretudo quando

conduzida pelo método da Geografia Linguística — uma das correntes de estudos da

linguagem que mais o entusiasmariam e estaria inserida, em sua visão, no projeto geral da

Filologia — tradicionalmente guiada pelo método comparatista como uma complementação,

mais ou menos natural. Assim,

Ao contrário, pois, do que a princípio julgavam alguns romanistas


da escola ‘clássica’ e alguns jovens dialetólogos — a lingüística
geográfica não é algo fundamentalmente diferente do
comparatismo, mas, ao contrário, representa um aperfeiçoamento
do velho método. Não se trata de um método independente, mas
de um progresso do comparatismo. Além da comparação pura e
simples de uma língua literária, empreendeu-se a comparação, no
tempo e no espaço, de grandes massas lingüísticas. Trata-se de
uma ampliação e não de uma limitação [...]. (Silva Neto
1988[1957]:174)

Dito de outro modo, a Dialetologia e o seu produtivo método linguístico- geográfico

complementariam o quadro ‘clássico’ de estudos filológicos, centrados na língua literária,

22
Para Silva Neto, “história externa” é uma história da língua fundamentada nos elementos políticos,
econômicos, sociais, etnológicos que envolvem esta língua e contribuem para os seus desenvolvimentos;
“história interna”, por sua vez, é uma história da língua que enfatiza as transformações por que passaram as suas
formas. Com efeito, na terminologia do autor, “interno” refere-se às coerções internas ao sistema linguístico,
enquanto que “externo” refere-se aos fatores que podem nele interfer, como, por exemplo, os fatores políticos e
econômicos. Neste trabalho, sempre que nos reportamos às expressões “externo” e “interno”, com vistas à
presevação da metalinguagem do autor, mantivemos essa distinção, ainda que, atualmente, ela não seja objeto de
um amplo consenso.
23
“É preciso distinguir dois ramos nos estudos brasileiros: a história externa, de cunho etnográfico-social, e a
história interna, que é propriamente a dialetologia, de cunho filológico-lingüístico”. (Silva Neto 1963[1950]:6)
119

responsabilizando-se por uma das principais tarefas modernas de tais estudos, que seria o

tratamento dos falares contemporâneos, sobretudo os rurais.

Estes falares preservariam traços dos mais antigos, devido ao afastamento dos grandes

centros — inovadores — e poderiam, em função disso, ser úteis para a constituição das

histórias das línguas. Daí a inexistência, para o filólogo, de um conflito entre a ‘clássica’

tradição histórico-comparatista em Filologia e os ‘modernos’ métodos geográficos oferecidos

pela Dialetologia:

No primeiro quartel deste século a Filologia Românica foi


sacudida por uma pendência tão descabida quanto estéril.
De um lado, um grupo de jovens romanistas, justamente
embevecidos com os surpreendentes resultados da Lingüística
Geográfica, afetava desprezar os textos literários, tendo-os como
inúteis. De outro, os velhos romanistas (não todos, é certo)
reagiram violentamente contra os dialetólogos, considerando de
menor importância os materiais recolhidos nos falares.
[...]
Ora, a disputa é estéril. O que se deve é conjugar os métodos e os
materiais, e não dissociá-los.
[...]
Em nossa época é tempo de sobrepujarmos esta querela entre os
adeptos da sincronia e os ferrenhos defensores da diacronia [...].
(Silva Neto 1988[1957]:258)

Ambos os métodos, geográfico e comparativo, e, consequentemente, as disciplinas

diretamente relacionadas a cada um deles — Dialetologia e Filologia — comporiam um só

quadro de trabalho e conciliariam as geralmente dissociadas sincronia e diacronia.

Como em sua definição a Filologia lidaria com uma determinada fase da língua ou

com o conjunto de todas as suas fases — “traçando-lhe a história, desde o início até a fase

atual”, ou seja, tanto com a sincronia quanto com a diacronia — não haveria sentido em um

conflito: a Dialetologia e, principalmente, a sua tendência metodológica denominada

Geografia Linguística, encaixavam-se com perfeição no que era previsto como estudo

legitimamente filológico.
120

Disso, talvez, o entusiasmo do autor pelo método, que, no estudo das variações

dialetais, propunha a elaboração dos chamados atlas linguísticos, conjuntos de mapas

com a distribuição geográfica das formas de uma língua em um determinado território.

Estes atlas, de acordo com Silva Neto, permitiriam tanto o comparatismo

sincrônico — porque representariam ‘cortes’ linguísticos contemporâneos justapostos

quanto a reconstituição de antigas fases, pois a distribuição geográfica atual das palavras

e das formas poderia possibilitar situá-las cronologicamente, relacioná-las, determinar-

lhes a gênese: a Geografia e os seus atlas, portanto, operariam o “milagre” de oferecer,

simultaneamente, uma visão “sincrônica e diacrônica” (Silva Neto 1957[1955]) indispensável

aos “modernos estudos filológicos”.

Para alcançar tal milagre, seria necessário ao filólogo/dialetólogo realizar trabalho de

campo. Este se iniciaria com a elaboração de questionários que tentariam delinear os

conjuntos de palavras através dos quais seriam verbalizados os principais traços de

organização (sócio-etnoculturais) do grupo de falantes considerado24.

Feitos os questionários, deveriam ser aplicados, ou por correspondência —

possibilidade que o autor admitiu precária, por necessitar da atuação de não especialistas

na pesquisa — ou in loco, pelo próprio pesquisador que, “ao vivo”, poderia fazer

adaptações à versão inicial do questionário, caso percebesse essa necessidade ao

confrontá-lo como a ‘realidade linguística’, assim como recolher um material mais

adequadamente transcrito em termos fonéticos, posto que deveria registrar, por escrito,

tentando aproximar-se da realização fonética, o que fosse ouvindo.

Recolhido, este material, composto essencialmente por palavras, poderia servir de base

para a elaboração de vocabulários, estudos onomasiológicos, monografias etnográfico-

linguísticas, cartas ou mapas linguísticos, e estes, por sua vez, poderiam constituir um atlas

24
Por isso a necessidade de interação com os etnógrafos e antropólogos: língua e cultura aparecem novamente
entrelaçadas.
121

regional ou, ampliado, nacional. Neste último caso, num trabalho que demandaria algo em

torno de vinte ou vinte cinco anos (v. Silva Neto 1957[1955]).

Dessa demanda de tempo derivaria a necessidade de treinar as gerações seguintes para

a nova frente de trabalho.

Com efeito, a difusão do método geográfico, a descrição dos falares rurais e o plano de

uma ulterior composição de um Atlas Linguistico Nacional (v. capítulo 3) levaram o filólogo

a percorrer algumas das Faculdades de Filosofia existentes no país à época e converteram-se

em preocupações de primeira ordem para ele, sobretudo a partir dos anos 50, quando elaborou

as duas edições do Guia para estudos dialeíológicos (1955 e 1957) — resultantes dessa

peregrinação — e criou, no Museu Nacional (Rio de Janeiro), o Centro de Estudos em

Dialetologia Brasileira (1953).

A Dialetologia passava, assim, a constituir claramente uma das ramificações daquela

Filologia ampla, que se propunha o estudo completo das línguas, responsabilizando-se pelos

‘falares’, principalmente regionais.

O autor, no entanto, não chegou a realizar trabalhos práticos — excetuando-se, talvez,

breves estudos, como aqueles sobre o balouço (Silva Neto 1960f) e a pandorga (Silva Neto

1960g) — sendo a tarefa realizada por ele principalmente esta de difundir a ‘nova frente’, à

qual precisariam ser engajados os mais jovens.

4.1.3 Gramática

A Gramática, no sentido estrito de tratamento e descrição da linguagem culta, com

base nos clássicos da literatura, teria um papel também importante no contexto dos estudos da

linguagem, na medida em que contribuiria fortemente para a preservação das “boas” formas

linguísticas, desacelerando o processo evolutivo — um conservadorismo que, neste sentido,


122

seria produtivo, mas que paradoxalmente poderia ser um obstáculo a se opor, de modo

intransigente, às inovações naturais da linguagem (Silva Neto 1956s:12). Caberia, assim, a

busca de um equilíbrio, de tal modo que a Gramática não se afastasse demasiadamente dos

“fatos da língua”.

Desse modo, ao gramático, e à Gramática, da língua portuguesa, por exemplo, caberia

o bom senso de cultivar a “boa” linguagem e, ao mesmo tempo, prestigiar “os brasileirismos

respeitáveis” (Silva Neto 1963[1950]:266). O gramático deveria evitar portar-se como

“linguagista”, “gramatiqueiro”, atendo-se muito detidamente a questões de menor relevancia;

teria de descrever e interpretar fatos da língua ao invés de procurar moldá-los às suas noções,

por vezes equivocadas, de boa linguagem.

Em vista disso, sua opinião a respeito do ensino gramatical no Brasil de seu tempo,

segundo ele, dominado pela “gramatiquice” e afastado dos preceitos científicos da Filologia,

não poderia ser outra a não ser a de que:

[...] Já estamos em tempo de reformar o ensino, apresentando aos


estudantes não as opiniões dos gramáticos, mas os fatos da língua.
Estes hão de ser julgados e interpretados com raciocínio filológico e
não sob o deformante prisma da gramatiquice (Silva Neto 1963
[1950]:265)

A Gramática, portanto, necessitaria ser subsidiada pela Filologia, que lhe forneceria

interpretações verdadeiramente científicas dos fatos de língua, permitindo-lhe, assim, situar-se

também entre as práticas científicas com a linguagem e não mais entre as especulações

puristas ou gramatiqueiras. Também neste caso, a concepção do autor nos parece estar

sustentada pelo intuito de integração.

A Figura 3 (página seguinte) procura esquematizar as relações entre disciplinas

científicas abordadas em toda esta seção.


123

4.2 O conteúdo paradigmático do programa filológico: áreas, orientações,

materiais, recortes, tema

De acordo a seção anterior, podemos afirmar, resumidamente, que a Filologia, ciência

do Homem, que incorpora a Dialetologia e se relaciona intimamente com a Linguística, com a

Etnografia e com todas as outras ciências humanas, deveria, para Silva Neto, ocupar-se com o

estudo da(s) língua(s) em todas as suas dimensões, níveis e modalidades, seja em perspectiva

histórica, seja em perspectiva estática.

Esse entendimento amplo da disciplina, assim como a definição dos seus variados

objetos de estudo, contribuiu para que o autor, provavelmente visando cobrir uma parcela

considerável das possibilidades de produção científica previstas pelo paradigma, elaborasse

obra bastante variada e abrangente.

A ampla gama de temas tratados pelo filólogo, assim como as diferentes orientações

impressas às suas produções parecem confirmar esta hipótese.


124
125

4.2.1 Áreas preferenciais de trabalho

Silva Neto elaborou obras cujos temas se referem, se não a todas, pelo menos à

maioria das áreas aceitas pelo seu grupo como filológicas. Encontramos em sua produção

desde trabalhos filológicos stricto sensu — isto é, edições de textos antigos — até

dialetológicos, com passagens pela etimologia, história da língua portuguesa e do latim

vulgar.

Como sugerimos, o largo espectro de interesses de Silva Neto provavelmente está

relacionado com o seu entendimento amplo da disciplina e de suas tarefas; parece-nos,

também, estar associado a uma característica pessoal — a ‘‘bibliolatria” (Elia 1967:255) — já

assinalada por outros autores, que o levava a manter, em várias áreas do campo de

investigações sobre a linguagem, leituras e estudos atualizados 25.

Nem todas as áreas a que se dedicou foram desenvolvidas com a mesma ênfase ou

constância. Mas a abrangência temática foi um dos fatores que permitiram tomar sua obra

como exemplar, já que representativa de várias das possibilidades de atuação autorizadas nas

pesquisas da área.

Tomando sua produção — ‘múltipla’ e ‘heterogênea’, no sentido de estar direcionada

a vários focos e de desenvolver-se de modo não uniforme em cada uma das suas direções —

se levássemos em conta apenas dados quantitativos, teríamos uma distribuição temática como

a esboçada no Tabela VIII a seguir:

25
Um testemunho recorrente entre aqueles que com ele conviveram dá conta dessa sua compulsão pe la
aquisição e leitura de livros, que o teria levado a formar uma das mais completas bibliotecas filol ógicas
do país, hoje incorporada ao acervo da Faculdade de Letras da UFRJ. Também em função desse hábito,
seus trabalhos concentram muitas referências e citações, de tal modo que, a julgar por elas, Silva Neto
estaria largamente familiarizado com a bibliografia filológica, mais antiga ou contemporânea, bem como
com textos dos chamados primeiros linguistas ‘modernos’. Nas Fontes do latim vulgar...(Silva Neto 1938),
por exemplo, o autor citou, ao lado de Francisco Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Wilhelm
Meyer-Lübke (1861-1936), Hugo Schuchardt (1842-1927), Jules Gilliéron (1854-1926), entre outros,
Ferdinand de Saussure, Antoine Meillet (1866-1936), Nikolaj Trubetzkoy (1890-1938), Joseph Vendryes
(1875-1936) e Roman Jakobson (1896-1982).
126

Tabela VIII: Distribuição das áreas de trabalho privilegiadas pelo ‘paradigma’ da

Filologia Brasileira entre 1940 e 1960

NÚMERO DE
TEMA/ÁREA26 %
PÁGINAS

História/problemas do latim vulgar 522 14,3


Português arcaico/edições de textos
959 26,3
antigos
Ideias/autores autorizados pelo
690 18,9
paradigma
Variação linguística, língua
616 16,8
portuguesa no Brasil e Dialetologia
História da língua portuguesa 698 19,2

Questões vocabulares/etimológicas 162 4,5

TOTAIS 3647 100

Ou seja, levando em conta apenas os dados quantitativos, teríamos como temas

preferenciais do autor, na produção selecionada como nosso corpus, sequencialmente. 1) o

português arcaico e as edições de textos antigos em português (26,3% ou 959pp.); 2) a história

da língua portuguesa (19,2% ou 698pp.); 3) a discussão/difusão de ideias ou de autores

autorizados pelo ‘paradigma’ (18,9% ou 690pp.); 4) o português do Brasil e/ou estudos

dialetológicos (16,8% ou 616pp.); 5) a história e os problemas do latim vulgar (14,3% ou

522pp.), e 6) questões vocabulares/etimológicas (4,5% ou 162pp.).

Para termos uma melhor avaliação das preferências temáticas do autor, entretanto, a

esse levantamento quantitativo da sua produção foi preciso contrapor elementos como

‘recorrência do tema’, ‘detalhamento’ e ‘importância a ele atribuída pelo autor’. De fato, se

26
De acordo com Tabela VII, com a distribuição temática da produção publicad a de Silva Neto, capítulo 2
desta dissertação.
127

alguns desses temas, sob esse enfoque quantitativo, se destacaram (por exemplo, ‘português

arcaico e edição de textos’), outros se firmaram como centrais, ou pela constância com que

foram tratados, ou pelo tratamento mais detalhado que receberam, ou ainda pelo destaque a

ele conferido pelo filólogo em seu programa de pesquisa. Um exemplo deste último caso é a

‘história da língua portuguesa’. Tratar desse tema, na própria percepção do autor, era uma das

tarefas de primeira ordem nos estudos de Filologia portuguesa, como declarou no prefácio à

sua História:

No estado atual da Filologia Portuguesa impõem-se três tarefas


indispensáveis: o Dicionário Museu, o Atlas Lingüístico e a História
da Lingua.
Para o primeiro — que deve abranger toda a língua no espaço e no
tempo — temos bons materiais avulsos e uma rigorosa síntese no
Dicionário Etimológico de Antenor Nascentes.
O Atlas Linguístico de Portugal e Ilhas já começou a ser
organizado pelo Prof. da Universidade de Coimbra, Manuel de Paiva
Boléo [...]
A História da língua portuguesa, para a qual existem, é verdade,
numerosos materiais esparsos, esperava ainda quem se abalançasse à
primeira síntese. (Silva Neto 1970[1957]:9)

Em vista dessas mudanças, combinamos aqueles dados quantitativos com os

qualitativos, ‘recorrência do tema’; ‘detalhamento’ e ‘importância a ele atribuída pelo autor’.

Combinadas essas duas instâncias, configurou-se-nos como uma distribuição temática mais

adequada, uma que contivesse, em um primeiro bloco, de temas-áreas mais centrais, 1)

‘história da língua’; 2) ‘dialetologia/estudos sobre o português do Brasil’; 3)

‘divulgação/elaboração de teorias/autores’ e a 4) ‘história/problemas do latim vulgar’, e em

um segundo, de temas auxiliares, a 5) ‘edição de textos antigos’ e 6) ‘questões

vocabulares/etimológicas’.

Esta distribuição visou sobretudo ao estabelecimento de uma hierarquia entre as áreas,

que destacasse suas preocupações mais fundamentais, embora nos fosse óbvio que, se autor se
128

dedicou a todos esses temas-áreas, tomou-os, a todos, como objetos legítimos, dignos de

tratamento, no quadro de trabalho em que atuou.

A) As tarefas centrais e a macrotarefa de elaboração de uma história da

língua portuguesa

O principal trabalho de Silva Neto a tratar de história da língua, o livro História da

língua portuguesa (Silva Neto 1970[1957]), além de longos anos de preparação, concentrou

grande parte das preocupações do autor. Ele foi publicado primeiramente em fascículos, pela

editora Livros de Portugal, entre 1952 e 1957 e, neste ano, em primeira edição no formato de

livro (cf. Cunha 1970:I-II; Elia 1992:1). É bastante provável que estes cinco anos

transcorridos para que a obra se publicasse integralmente correspondam a apenas uma parte

do tempo real de preparação, uma vez que o autor, já no início dos anos 40 (v., por exemplo,

Rumos filológicos 1942:19), declarava estar desenvolvendo seu projeto de elaboração de uma

história para a nossa língua.

Para este longo período de elaboração do estudo, além das dificuldades que o mesmo

deveria oferecer, concorreram, nos anos 50, questões de ordem pessoal, como o falecimento

do filho do filólogo em 25 de janeiro de 1954, e o subsequente agravamento de seus

problemas de saúde, que o levariam à morte em 23 de setembro de 1960. Considerado todo

esse percurso de produção e o seu resultado — a primeira e, até hoje, uma das principais

sínteses sobre o assunto — reconhecemos neste tema-área um dos ‘problemas’ mais constante

e detalhadamente tratados em sua obra.

O estudo da ‘história da língua’ caminhou lado a lado com o das questões relativas à

‘língua portuguesa no Brasil’ e, em ambos os casos, com especial interesse pelos fatores

‘externos’ ao do sistema linguístico (v. nota de rodapé 6), tais como os sociais e etnográficos.
129

Com este segundo tema, destaca-se a Introdução ao estudo da língua portuguesa no

Brasil (Silva Neto 1963 [1950]), obra que o autor classificou como etnográfica, por ater-se

principalmente à história “sócio-etnográfica” dos desenvolvimentos da língua portuguesa no

Brasil (Silva Neto 1963 [1950]: 11-15). Dessa modalidade de estudo sairia também

beneficiado o projeto de história do português, como um todo, já que a variação brasileira,

sobretudo aquela preservada nas áreas mais isoladas, seria mais conservadora do que a

lusitana, fornecendo, assim, subsídios importantes para a compreensão histórica da língua. Os

dois temas, portanto, pareciam ter uma direção comum: a de composição de uma história

abrangente da língua portuguesa, em paralelo com as das sociedades que a utilizam.

Também o estudo do latim vulgar mereceu tratamento pormenorizado, como atestam

as Fontes (Silva Neto 1956a[1938]) e mesmo a História do latim vulgar (Silva Neto

1977[1957]). Ele também convergiu para a preocupação com o estudo da história da língua

portuguesa, já que o conhecimento desta língua, em suas variações, e de sua história

implicaria o domínio das questões que envolvem o latim 'corrente’ — como o autor preferia

nomear o chamado latim “vulgar”27. Para Silva Neto, a principal motivação para os estudos

sobre o latim corrente parecia ser justamente essa de subsidiar estudos sobre a história da

língua portuguesa, a julgar pelo que declara no prefácio à segunda edição das Fontes:

Este livro é o primeiro de uma vasta série que idealizo, destinada


a construir minha História da língua portuguesa. (Silva Neto
1946[193 8]: 14)

O tratamento do latim vulgar, portanto, como o da variação brasileira do português,

desembocaria na história deste idioma, sendo mais uma das chaves para a sua compreensão.

27
"Como se sabe, a expressão latim vulgar é imprópria e até mesmo incorreta, pois além de poder
exprimir ‘ordinário, ‘reles’(o que de nenhum modo é o caso), engloba num bloco uma série de matizes e
de formas de língua. E depois sempre se apresentou um ‘latim vulgar’ atópico e acrônico, isto é, com
abstração de lugar e de tempo. Assim considerado, ele, afinal de contas, ficava sendo um fantasma, uma
língua artificial. Era um manequim a serviço dos romanistas que, com ele (feito à sua vontade e de
acordo com as suas necessidades) explicavam os fatos românicos... "(Silva Neto 1977[1957J:39)
130

A ‘difusão das bases teóricas, históricas e metodológicas’ em que se firmava a sua

ciência foi também tema constante em Silva Neto, que elaborou dois manuais de introdução à

Filologia (Silva Neto 1988[1957] e 1956s), além de dois outros, aqui considerados nos grupos

relativos ao trabalho dialetológico (Silva Neto 1957[1955]) e ao trabalho com edições de

textos (Silva Neto 1956r). Além disso, em diversos textos avulsos, resenhou autores e suas

teorias, demonstrando interesse em divulgar ideias filológicas e introduzir os mais jovens à

disciplina.

Desta introdução aos métodos, problemas e bases teóricas fazia parte uma incursão

pela história da disciplina. Com efeito, além de ter escrito biobibliografias (geralmente,

pequenos obituários) de autores brasileiros, portugueses e de outros países, elaborou

panoramas sobre momentos da história da Filologia e da Linguística. Nenhuma obra foi

inteiramente dedicada a isso, mas há boas amostras na primeira seção do Manual de filologia

portuguesa (Silva Neto 1988[1957]), em vários textos publicados em periódicos (cf. Tabela

II, capítulo 2) e trechos dispersos em muitas de suas outras produções.

Para o autor, seria importante conhecer a história da disciplina para se saber o que foi

feito e o que resta fazer, aprender com os erros e acertos dos “antepassados” científicos e

espelhar-se em seu exemplo de trabalho e dedicação à língua (cf. Silva Neto 1988[1957]:15).

B) As tarefas auxiliares e a macrotarefa da elaboração de uma história da

língua portuguesa

As ‘edições de textos’28 foram igualmente conceituadas pelo autor como uma das

principais tarefas da Filologia:

28
No capítulo metodológico, justificamos o fato de termos considerado as Fontes (1956a[1938]), juntamente
com a História do latim vulgar (1977[1957]), em um grupo-tema específico, sobre o latim, apesar da edição
cuidadosa do Appendix Probi na primeira obra.
131

Estou certo de que uma das tarefas mais urgentes e frutuosas da


Filologia Portuguesa é a publicação de textos comentados. Esse é o
passo inicial, indispensável aos futuros estudos lexicográficos,
gramaticais ou estilísticos. (Silva Neto 1988[ 1957]: 18)

A importância atribuída a essa tarefa o levou, inclusive, a adquirir para seu acervo

particular manuscritos dos mais raros (v. capítulo 3). No entanto, comparando o trecho citado

acima àquele em que o autor se refere à ‘história da língua’, notamos que ele parece ter

estabelecido uma hierarquia entre os temas: a ‘edição de textos’, trabalho fundamentalíssimo,

serviria de base para outros estudos, gramaticais, lexicográficos, estilísticos, enquanto a

elaboração de uma ‘história da língua portuguesa’ requereria, também, a soma, a coordenação

de outros trabalhos, mesmo que, a princípio, dedicados a outras questões, como a ‘história e

os problemas do latim vulgar’ ou a ‘formação da língua portuguesa no Brasil’.

Há, com este tema, um documento, Textos medievais portugueses e seus problemas

(Silva Neto 1956r), no qual o filólogo procurou exemplificar procedimentos para o trabalho

filológico desta natureza. Esse volume pretendia explicitar a metodologia para a elaboração de

edições de textos antigos, estabelecendo e demonstrando o que e como fazer neste campo, de

tal modo que também indicia sua propensão a (meta)teorizar ou, ao menos, ‘discutir/difundir

teorias e métodos’.

As questões vocabulares/etimológicas foram o único entre os grupos-tema de que

tratamos nesta seção ao qual o autor não dedicou livros inteiros. Afirmava o filólogo que

pretendia, com seus textos, avulsos, apenas fornecer algumas contribuições para que se

organizasse um grande dicionário etimológico da língua portuguesa (v. Silva Neto 1956j:157

e 192), diferentemente do que ocorreu com o projeto de elaboração de uma história da língua

— igualmente complexo — que se propôs executar. Para ele, todos os que pudessem

deveriam, como ele, publicar suas contribuições para um futuro dicionário-museu da língua,

que tomaria as palavras e sua história em conexão com a história cultural e material.
132

Resumidamente, em relação à categoria tema-área, diríamos que sua produção teve

como referência primordial o português e seu desenvolvimento histórico: foi a partir desse

foco, parece-nos, que se configuram seus estudos acerca do latim “corrente” — berço das

línguas românicas e, sintomaticamente, não sobre o clássico; dos falares rurais brasileiros, que

conservariam traços dos mais antigos da língua; da caracterização do português do Brasil,

mais conservador do que o lusitano; da edição de textos em português arcaico, que serviria de

base para outros estudos (históricos) sobre a língua; ou da difusão/estabelecimento de

princípios teórico-metodológicos, úteis para conduzir os estudos de Filologia (diacrônica)

portuguesa.

Mesmo quando tratando destes outros temas, o autor não perdeu de vista a língua

portuguesa, elaborando trabalhos nos quais as múltiplas preocupações e áreas de interesse

convergiram para a preocupação e interesse centrais de descrever e interpretar as diferentes

fases da formação e desenvolvimento da língua portuguesa.

Desta forma, se há um fio a perpassar a variada e ampla rede temática da produção de

Silva Neto e a destacar-se como um núcleo central, em nossa interpretação é a língua

portuguesa, ou antes, a preocupação histórica com ela.

Preocupação esta que perpassa as faces social e cultural da língua e leva o filólogo a

realizar trabalhos que denominou filológicos, dialetológicos e até etnográfico, como vimos.

4.2.2 Orientações

Entre as orientações predominantemente adotadas nos trabalhos de Silva Neto, de

acordo com o nosso corpus, estiveram a histórica (40%) e a combinação histórico-


133

metateórica (20%). A orientação apenas metateórica apareceu em 16%; a orientação para

uso/variação em 14% e a gramatical, em 10%, como resume a Tabela IX, a seguir:

Tabela IX: Distribuição dos tipos de orientação privilegiados pelo ‘paradigma’ da

Filologia Brasileira entre 1940 e 1960

ORIENTAÇÃO NUMERO DE TEXTOS %

Histórica 20 40

Histórica-metateórica 10 20

Metateórica 8 16

Uso/variação 7 14

Gramatical 5 10

TOTAIS 50 100

Ter as orientações histórica e metateórica como predominantes em sua obra sugere que

ela esteve voltada, preferencialmente, por um lado, para a consideração dos problemas de

língua no tempo e, por outro, à discussão e ao estabelecimento tanto de conceitos quanto de

teorias e métodos no campo.

A) Histórica

No grupo de textos com orientação histórica, notamos a inclusão de fatores “mais

externos” às línguas, tais como a constituição e distribuição étnica, a localização geográfica


134

mais central ou periférica, a estruturação política (principalmente quando tratou do latim), a

estrutura educacional etc. “dos povos” que as falam.

De fato, em relação a este aspecto, aquilo que afirmava ser um preceito elementar a ser

seguido por aqueles que se dispusessem a estudar a história das línguas, qual seja, o de que a

história de uma língua deveria ser a “história dos homens que a falam” (Silva Neto

1970[1957]:54), aparece, no que aqui consideramos como seus ‘produtos’ científicos, isto é,

nas suas obras, como um esforço recorrente. Em outros termos, a tentativa de relacionar a

língua com elementos concernentes à constituição das comunidades que as utilizam (ou

utilizavam) foi um traço caracterizador de seus trabalhos, sobretudo quando a perspectiva foi

histórica.

Desse modo, sua história não teve como ênfase a demonstração, passo a passo, das

mudanças linguísticas, mas a consideração dessas e das diferentes fases da língua em

perspectiva sociocultural.

B) (Meta)teórica

Quanto à adoção do ponto de vista metateórico, observamos estar relacionada à prática

do autor de — além de difundir teorias e métodos desenvolvidos no campo linguístico ou

apresentar/discutir um número elevado de trabalhos relacionados a cada um dos temas de que

tratou em seus estudos, posicionando-se em relação a variadas tendências em voga em um ou

outro momento da história da disciplina — ter ele mesmo o hábito de formular hipóteses

explicativas dos fatos/teorias estudados, assim como de tentar sistematizar o que seriam as

tarefas de sua disciplina, elaborando, neste caso, trechos e mesmo textos inteiros, com caráter
135

programático, isto é, estabelecendo como proceder na área29. Para este último aspecto, em

alguns casos, contribuiu o fato de os trechos estarem em obras destinadas à iniciação, em

nível de terceiro grau, à disciplina30. Nestas obras, a tendência a definir o que vinha a ser,

quais os objetos e as tarefas das disciplinas foi acentuada, dado o caráter “didático” dos

textos.

C) Uso/ variação e gramatical

Os documentos que procuraram destacar a variação linguística tiveram como material

de análise central a língua portuguesa, neste aspecto igualando-se àqueles destinados ao

tratamento gramatical.

Com esta última orientação, foram tratados aspectos como homonímia, polissemia,

ortografia, por exemplo.

Nos textos com orientação para uso/variação foram investigados pelo filólogo tanto

usos literários (25%) quanto — e principalmente — regionais (75%).

A multiplicidade de orientações impressas às obras indicaria um esforço do filólogo

no sentido de cobrir, sob diferenciados pontos de vista, o objeto língua. Por sua vez, a

preponderância da orientação histórica, que do modo como concebida pelo autor, reivindica

incursões pela área das humanidades, possibilitaria a realização de estudos filológicos de

espectro mais amplo. Complementarmente, a orientação metateórica, o poria em face de uma

de suas principais questões: situar a disciplina filológica entre as Ciências do Homem,

29
É o caso, por exemplo, do Guia para estudos dialetológicos e dos diversos trechos, de vários de seus textos,
nos quais o filólogo opina sobre quais seriam os atributos e tarefas da Filologia, da Dialetologia (e da
Geografia Linguística, método dialetológico que parecia melhor satisfazer suas expectativas), da Linguística.
30
Caso dos manuais (Silva Neto 1956s; 1988[1957]); do Guia para estudos dialetológicos (Silva Neto
1957[1955]).
136

compreendendo e sistematizando as suas relações com as demais — algo extremamente

necessário quando as fronteiras entre disciplinas científicas não parecem tão rígidas.

4.2.3 Materiais e recortes preferenciais

Do ponto de vista do material, entre os documentos selecionados para análise, houve

preponderância do tratamento de línguas naturais em oposição à proposição/discussão de

teorias: na maioria dos estudos foram tratados dados de língua, como ilustra a Tabela X:

Tabela X: Distribuição dos materiais preferenciais do ‘paradigma’ da Filologia Brasileira,

entre 1940 e 1960, quanto à natureza

MATERIAL NUMERO DE TEXTOS %

Teoria (T) 9 18

Línguas naturais (LN) 41 82

TOTAIS 50 100

A) Posicionamento teórico

Os textos que, em nossa tipologia, denominamos teóricos, isto é, aqueles em que o

autor enfatizou a discussão/elaboração de teorias ou aspectos delas, representam apenas 18%

do total. Neles, ou o autor apresentou/discutiu teorias linguísticas, ou elaborou crônicas

históricas a respeito das disciplinas/personalidades das ciências da linguagem. Esses textos

‘teóricos’ estão concentrados, principalmente, no grupo temático referente à

‘divulgação/discussão de ideias/autores autorizados pelo paradigma’.


137

As suas posturas teóricas gerais, contudo, se depreendem não apenas dessa

modalidade de textos mas de toda a sua obra, e são muito acentuadamente marcadas pelo

socioculturalismo.

É assim, por exemplo, que, esclarecendo que foi seu “escopo encontrar apoio na

história do Brasil, na formação e crescimento da sociedade brasileira para colocar a língua no

seu verdadeiro lugar: expressão da sociedade, inseparável da história da civilização” (Silva

Neto 1963[1950]:11), Silva Neto iniciou a sua Introdução ao estudo da língua portuguesa no

Brasil.

Este entendimento de língua como um elemento imbricado à estrutura da sociedade

apareceria, diretamente enunciado ou subentendido, reiteradamente em suas obras e o levaria

a nelas usar, com frequência, dados que convencionamos chamar “extralinguísticos” (v. nota

6), além de permitir-lhe um bom trânsito por teorias e conceitos “da Linguística” ou “da

Filologia” nos quais esta noção é pressuposta.

A língua teria sentido enquanto forma de expressão de um grupo e seu estudo

requereria a consideração dessa sua dimensão sociológico-etnográfica. Em função disso,

estiveram excluídos de seus referenciais teóricos preferenciais, por exemplo, os pressupostos

e métodos ‘naturalistas’ de Schleicher e dos Neogramaticos, que, não obstante os progressos

técnicos que teriam propiciado à área, na sua visão, tomaram as línguas isoladamente, ao

concebê-las como organismos naturais:

Os começos da Lingüística Geral estão, como se sabe, ligados ao


grande desenvolvimento das Ciências Naturais. Não surpreende,
por isso, que Schleicher e outros de seu tempo considerassem a
língua como um organismo vivo que nascia, crescia e morria. Só
pouco a pouco é que se foi reagindo contra essa visão naturalista
de um fenômeno que é, na realidade, uma instituição social. As
línguas são o que delas fazem as sociedades que as empregam
[...]. Assim a história de uma língua corre parelhas com a história
política e social dos homens que a falam. (Silva Neto 1960a: 19)
138

Seu posicionamento em relação a essa tendência linguística era o de que deveriam ser

utilizadas as ‘leis’ ou ‘correspondências’ fonéticas, em sua maior parte formuladas por

Neogramáticos, como um dos instrumentos a garantir a segurança das hipóteses históricas

que, contudo, deveriam estar abalizadas pelos contextos:

... as ‘leis fonéticas’, melhormente designadas por


‘correspondências fonéticas’, representam apenas um meio prático
para investigações. [...] e o filólogo não pode prescindir delas.
(Silva Neto 1970[1957]:51)

Mas,

[A língua] Não está obrigada a prosseguir sua trajetória, de


acordo com leis determinadas, porque as línguas seguem o destino
dos que a falam, são o que delas fazem as sociedades que as
empregam. (Silva Neto 1963:17-18)

Essa sua visão sobre a Linguística de Schleicher e dos Neogramáticos, sobre seu

conceito naturalista de língua e sobre as leis fonéticas, parecia comum a praticamente toda a

comunidade cientificamente relevante. De Sousa de Silveira a Mattoso Câmara, todos

reconheciam naquela tendência algo superado no campo de estudos da linguagem, no

momento já mais vinculados às ciências sociológicas, humanas, e, portanto, tomavam a

linguagem como instituição social. Para Silva Neto, conceber as línguas como “organismos

naturais” e as ciências da linguagem como “Ciências da Natureza”, tratava- se de uma

tendência “fossilizada”.

No pólo oposto de sua preferência estiveram as teorias, conceitos e métodos daqueles

que, em alguma instância, correlacionaram língua e sociedade/cultura. Assim é que se utilizou

das saussurianas langue e parole, da ‘deriva’ de Sapir31, coordenando-as aos conceitos, de

31
Edward Sapir (1884-1939)
139

caráter etnográfico, da escola alemã das Palavras e das Coisas (Wörter und Sachen)32, dos

estudos dialetológicos de Schuchardt e do método geográfico- linguístico33 de Gilliéron, por

exemplo, bem como com os da Filologia em um de seus mais amplos conceitos, qual seja, o

de disciplina responsável pelo estudo da língua e de todos os diferentes fatores a ela

relacionados34.

Também era assim que os textos antigos, em sua perspectiva, testemunhavam uma

época da língua e da cultura portuguesas35; que a história da língua tinha de ser estudada em

paralelo com a história social, política e cultural dos povos; que os estudos dialetológicos,

preferencialmente conduzidos pelo método da Geografia Linguística, deveriam dar conta de

particularidades histórico-culturais que geraram especificidades (variações) no tecido

linguístico; que o português do Brasil e suas peculiaridades se explicariam, também, por

fatores etno-geográfico-históricos do país, do mesmo modo que as palavras seriam explicadas,

em sua gênese e posteriores desenvolvimentos, de acordo com o uso dos homens, ao longo do

tempo e em face de fatores como sua localização e distribuição geográfica, grau de

‘civilização’ daqueles que as utilizam(vam) etc.

Pareceu-nos, enfim, ter sido esta noção de língua como produto sociocultural um dos

principais nortes para a formulação dos seus demais conceitos e de aspectos dos produtos

32
Segundo esta corrente, também chamada de Objetologia, o estudo das ‘coisas’ (Sachen) seria um
instrumento fundamental para a compreensão das palavras (Wörter). A cultura material dos povos (isto é, as
‘coisas’) poderia explicar a cultura espiritual (as palavras), já que ambas comporiam um todo intimamente
relacionado — a ‘cultura’, de um modo geral.(v. Silva Neto 1988[1957], entre outros)
33
A Geografia Linguística, método de estudo das variações linguísticas criado por Jules Gilliéron,
organizador do Atlas Linguistique de la France (publicado entre 1902 e 1910), “... pressupõe o registro em
mapas especiais de um número relativamente elevado de formas ling üísticas (fônicas, lexicais ou
gramaticais) comprovadas mediante pesquisa direta e unitária numa rede de pontos de determinado
território, ou que, pelo menos, tem em conta a distribuição das formas no espaço geográfico
correspondente à língua, às línguas, aos dialetos ou os falares estudados". (Coseriu 1982:79)
34
v. Ulhôa Cintra 1939.
35
N’A Santa vida e religiosa conversação..., por exemplo, reforçando este traço, soma-se ao prefácio- estudo de
Jaime Cortesão (1884-1960) — que, filho do filólogo português Antônio Augusto Cortesão (1854- 1927), e
historiador de grande prestígio em Portugal e no Brasil em sua época, apresenta Silva Neto aos leitores
portugueses — uma detalhada análise do próprio filólogo (Introdução, pp. 37-89) sobre André de Resende, sua
época e seu papel na sociedade/cultura portuguesas, de modo a contextualizar o livro em relação ao período e em
relação à obra do humanista.
140

científicos (obras) elaborados a partir deles. Entendida a língua em perspectiva sociocultural,

os demais conceitos passam a ser daí derivados.

B) Tradição e regionalismos

Se o material foi Teoria em 18% dos textos analisados, nos 82% restantes a ênfase

recaiu sobre dados de língua. Entre estes, contamos 58,8% com dados de língua portuguesa

(LP); 31,7% com dados de língua portuguesa e latim (LP + L)ou língua portuguesa e latim e

outras línguas/dialetos românicos (LP + L + R) e 9,8% privilegiando o latim (L), como expõe

o Tabela XI.

Por ela, é possível notar a ocorrência predominante da língua portuguesa e, em

seguida, do latim — com as línguas românicas ou isoladamente — como materiais mais

tratados nas obras de Silva Neto. Esta ocorrência, provavelmente, relaciona-se à sua opção

predominante pelo ponto de vista histórico: o recurso ao latim e às outras línguas românicas

parece vincular-se estreitamente à opção pela história, sobretudo do português, que requer o

estabelecimento de relações entre estes domínios linguísticos.

Tabela XI: Distribuição do corpus com dados do LN,

por tipo de língua

NUMERO DE
LINGUA(S) %
TEXTOS
Língua portuguesa 24 58,5
Língua portuguesa + latim
ou língua portuguesa +
13 31,7
latim + outras
línguas/dialetos românicos
141

Latim 4 9,8

TOTAIS 41 100

Frisamos, novamente, termos levado em conta no nosso processo de análise os

materiais privilegiados em cada obra (cf. capítulo 2), o que não significa que outros nelas não

aparecessem em um plano secundário. Neste plano, além de outras línguas românicas,

apareceram nas obras do filólogo exemplos do grego e mesmo de línguas como o basco.

Todavia, como nos interessavam as ênfases, destacamos as ocorrências mais significativas em

cada texto basicamente nos três grupos que compõem a Tabela XI.

Quanto às modalidades de língua, o autor afirmou em diversas passagens que todas36

elas, desde a linguagem literária até o falar regional, seriam objetos da Filologia e igualmente

importantes para a constituição de uma história da língua. A respeito desta última, o filólogo

declarou que:

Ao contrário do que se poderia pensar, é grande a importância dos


regionalismos para a história da língua e para a pesquisa
etimológica. Geograficamente confinados e socialmente
desprestigiados — se vistos à luz do presente — ganham imenso
valor, se encarados sob a perspectiva histórica. É que antes da
constituição da língua comum não há senão regionalismos, e o
vocabulário daquela é constituído, precisamente, de regionalismos
de todas as partes do país. Logo, sob o prisma histórico, o
regionalismo hoje relegado — precede o vocabulário da língua
comum. Uma correta interpretação deste só se pode fazer, por
isso, à luz dos regionalismos. (Silva Neto 1970[1957]:307)

Os regionalismos, em seu processo de produção acad^êmica, de fato, fizeram parte do

material com o qual trabalhou. No entanto, em alguns momentos, o filólogo utilizou-os

filtrados pela criação literária (v., por exemplo, os trechos de Gil Vicente utilizados em Silva

36
"Por mais nobre que seja a defesa inteligente das formas vernáculas, a Filologia é outra coisa. Para
ela a língua é uma expressão da cultura e, como tal, a estuda. Interessam-lhe, assim, os falares das
sociedades não alfabetizadas tanto quanto a expressão artística dos grandes escritores. "(Silva Neto
1951:15)
142

Neto 1963[1950] e 1970[1957]). Embora reconhecidas pelo filólogo como literárias, as

representações foram acolhidas como exemplos daquela linguagem e da popular.

Curiosamente, também em sua História da língua portuguesa (Silva Neto

1970[1957]), sobretudo nos últimos capítulos, o autor acabou por restringir-se à consideração

da linguagem literária, tomando-a como representação de todo o estágio da língua em cada

uma das diferentes épocas (neste caso, dos diferentes séculos). Os fatores para a explicação do

longo período de elaboração desta obra, como o falecimento de seu filho, provavelmente

também contribuíram para isso, já que é nítida a defazagem entre o início da obra e seu final.

Talvez, ainda, devessem ser consideradas as maiores facilidades oferecidas pelo trabalho “de

gabinete” com textos literários (já compendiados) do que pelo trabalho “de campo”, com os

falares que ainda necessitavam ser colhidos e descritos. Como os trabalhos “de gabinete” e os

“de campo” seriam, para o autor, igualmente lícitos, não haveria demérito em optar pelo

primeiro e esta, portanto, não seria uma questão pertinente. Todavia, importa notar que,

considerando a hipótese de ter sido necessária uma opção, ela, na prática, independentemente

dos fatores que a justifiquem, foi feita em favor da linguagem literária, quando, segundo as

próprias palavras (ou idéias formalizadas) do autor, as outras teriam a mesma relevância para

a constituição da história da língua. Para usar termos do filólogo, no trabalho prático de

constituição da história da língua predominou “Maria”.

C) O português como ‘objeto global’

Do ponto de vista dos recortes a partir dos quais, preferencialmente, os dados de

língua foram apresentados nos textos, verificou-se uma maior fluidez em comparação com as

demais categorias até o momento analisadas — o que talvez reflita uma tendência a tomar a
143

língua de um modo globalizante — no que se refere à combinação: na maioria de seus

trabalhos, o filólogo considerou mais de um nível de análise linguística.

Foram poucos os textos em que apenas um dos níveis foi levado em conta: entre os

textos, apenas 4% tratam exclusivamente de fonética; 18%, do nível do texto; 12%, do nível

lexical. Em contrapartida, 32% combinam a análise dos níveis morfológico/lexical; 26%

fonético/morfológico; 8% os níveis fonético/ morfológico/lexical/sintático/textual.

Tabela XII: Distribuição dos recortes privilegiados pelo ‘paradigma’ da Filologia

Brasileira entre 1940 e 1960

NÚMERO DE
RECORTE %
TEXTOS
Fonético/fonológico 2 4

Lexical 6 12

Textual 9 18

Morfo/lex 16 32

Fon/morfo 13 26

Fon/morfo/lex/sin/tex 4 8

TOTAIS 50 100

O limite principal parece ter sido o da palavra: a fonética, a morfologia e a lexicologia,

ao lado da etimologia (que efetivamente combina a origem mórfica e semântica dos termos e

o estudo de sua evolução — fonética, morfológica, semântica) foram as análises mais

constantes. Nos casos em que o objeto foram textos editados — este estudo das palavras

frequentemente foi acrescentado.


144

4.2.4 A metalinguagem: língua, linguagem, falar, dialeto e seus sentidos

mais usuais

Há um acatamento, por parte do autor, da distinção saussuriana entre ‘língua’ —

sistema — e ‘fala’ — realização do sistema. No entanto, na prática da escrita, por vezes o

conceito de língua equivale ao de ‘linguagem’ e este, por outro lado, às vezes equivale ao de

‘uso’, ‘falar’. Dificilmente o autor se refere à ‘linguagem’ tomando-a como uma instância

mais geral, ou abstrata, reportando-se a ela como faculdade comunicativa humana. Ela tem,

preferencialmente, o sentido de ‘estilo’, ou ‘linguajar’, isto é, de variação, em nível de uso

individual de um sistema. Assim; o termo mais geral, em oposição ao mais específico

‘falares’, foi, frequentemente, ‘língua’ — línguas portuguesa, latina, como expressões dessas

culturas.

À parte essas especificidades no ‘uso’ (ou na ‘linguagem’) do autor que talvez

refletiriam uma maior inclinação de seu trabalho para o tratamento de dados de língua do que

para a consideração abstrata, teórica, de problemas linguísticos —, a distinção de pelo menos

dois níveis, o da ‘língua’, sistema a fornecer as regras para a comunicação em sociedade, e o

de seus diferentes matizes (isto é, os ‘falares’, ‘usos’,‘linguagens’) configurou-se como

importante para a compreensão, sobretudo, de suas teorias a respeito do português no Brasil e

de sua “unidade na diversidade e diversidade na unidade”.

Para Silva Neto, toda língua, expressão da cultura humana, conteria pelo menos os

seguintes níveis:

1) O da ‘linguagem padrão’ — que seria a norma, utilizada em situações mais

tensas, pelas pessoas cultas;

2) O da ‘linguagem familiar’ — utilizada pelas mesmas pessoas, em situações

menos tensas;
145

3) O da ‘linguagem popular’, em que se incorporam as gírias, utilizada por

pessoas menos instruídas, e

4) O da ‘linguagem regional’ — que, diferentemente dos três primeiros níveis,

seria utilizada por pessoas que vivem na zona rural e marcada por especificidades locais.

Esta classificação resultaria de uma primeira tripartição entre:

1) ‘Linguagem literária’, representada pelas produções artísticas;

2) ‘Linguagem corrente’ ou ‘comum’ — uma espécie de média linguística que

engloba os níveis 1, 2, 3 e 4 acima, e

3) ‘Linguagens regionais’ — que, apresentando diferenciações ou particularidades

locais, tenderiam a tê-las aplainadas, sobretudo por intermédio da educação escolar,

pela‘linguagem corrente’ ou ‘comum’.

Ilustrativamente, reproduzimos o esquema geral do autor para o caso da língua

portuguesa (Silva Neto 1963[1950]:30) à página seguinte (Figura 4).

As linguagens regionais foram ainda chamadas de ‘falares’ (regionais ou rurais), e foi

com esse termo que o autor se referiu ao que teria sido, em sua visão, a primeira fase da

formação do português do Brasil — um ‘falar crioulo’.

O termo ‘dialeto’, para o autor, não seria muito preciso. Segundo ele, 'dialeto’ seria um

termo especificamente criado para referir uma situação da língua grega, que não se

reproduziria nas demais. O termo foi, assim, poucas vezes empregado e em quase todas, com

a ressalva de que um termo melhor seria falar/falares, para dar conta das variações de uma

língua.
146
147

4.2.5 Tema recorrente e teses polêmicas: estudos sobre o português do

Brasil

A) Crioulo

Uma das mais discutidas teses incorporadas por Silva Neto é a relativa à formação de

um ‘crioulo’ português nos inícios da expansão da língua pelo Brasil. Encontrando apoio em

Adolfo Coelho que teria sido o primeiro a propor princípios gerais para o crioulo português

(Silva Neto 1970[1957]:437; Petter 1998:779) e em acordo com o conceito deste fenômeno

linguístico elaborado por Hugo Schuchardt (1842-1927), julgou que, no princípio da

colonização portuguesa, passada a fase de predomínio das comunicações na chamada Língua

Geral, teria sido estruturada uma linguagem portuguesa bastante tosca — e coexistente com o

português, de padrão europeu, falado pelos brancos — que serviria de meio de comunicação

para negros, índios e mestiços. Tratar-se-ia de uma adaptação da língua européia, sendo

caracterizada por acentuada simplificação das formas, sobretudo das conjugações.

Modo de expressão daqueles povos “de civilização inferior” (Silva Neto 1963[1950];

1970[1957]), o crioulo formara-se a partir de uma confluência de fatores, sobretudo de

natureza ‘externa’:

Para o filólogo, o colonizador, ao transmitir sua língua, simplificou-a ao máximo para

se fazer entender pelos aloglotas e pelos seus compatriotas vindos de outras regiões. Os

aloglotas, por sua vez, obrigados a aprender (e rapidamente) a língua devido à situação de

submissão, deturparam-na ainda mais. De fato, para ele,

Os crioulos são falares de emergência, com caracteres definidos e vida


própria, que consistem na deturpação e simplificação de uma língua,
quando imperfeitamente transmitida e aprendida por gente de
civilização inferior. (Silva Neto 1970[1957]:436).
148

No caso brasileiro, esse falar deturpado concorreria com o dos brancos. Como estes

proviriam das mais diferentes regiões de Portugal e como, na visão do autor, a linguagem

variaria conforme o local e os grupos que delas se utilizam, comumcavam-se de acordo com

normas distintas. Reunidos no novo território, para facilitar o contato e a interação, teriam

eliminado de suas falas os traços mais regionais, dando origem a uma ‘língua comum’ —

média dos diferentes ‘falares’ portugueses — que inicialmente ficou concentrada nas regiões

costeiras, espalhando-se depois pelo interior do país.

Com o passar do tempo e a “elevação do nível das massas”, principalmente por meio

da educação escolar, o crioulo teria sido, pelo menos parcialmente, encoberto pela língua

européia, gerando, neste caso, o que se poderia chamar ‘semicrioulo’:

Nos crioulos há vários graus de aprendizagem, pois, segundo as


circunstâncias, o primitivo falar xacoca mantém-se ou é aos
poucos renovado pelo sangue novo da língua européia. De
geração em geração, graças sobretudo à escola, vai-se
aperfeiçoando e enriquecendo a primitiva fala de emergência [...]
Daí o admitir-se a existência do semicrioulo, ou seja, um estágio
mais aperfeiçoado da primitiva aprendizagem. Ele exemplifica-
nos o choque entre o falar europeu e o crioulo. Este vai sendo,
pouco a pouco, invadido por palavras e giros da fala das pessoas
mais bem dotadas. O semicrioulo encerra, pois, formas e torneios
semicultos. (Silva Neto 1970[1957]:437)

No Brasil, passada também esta segunda fase, “semiculta”, resquícios dos falares

crioulos teriam permanecido apenas nas áreas rurais — nos chamados ‘falares regionais’ —

dada a maior força da língua européia — símbolo de uma “civilização superior” que teria

sobrepujado aqueles falares “xacocas”, relegando-os, em alguns de seus traços, às áreas mais

isoladas do país:

Pouco a pouco, no contato com os brancos e ao sopro das luzes das


escolas, negros, índios e mestiços de toda a espécie foram
aperfeiçoando a sua linguagem. (Silva Neto 1963[1950]:122)
149

O autor sintetiza sua hipótese sobre a formação do português do Brasil do seguinte

modo:

1) O português do Brasil não é um todo, um bloco uniforme. É


preciso distinguir-lhe os vários matizes, de acordo com as
ocasiões, as regiões e as classes sociais. Assim, temos: 1) uso
literário, culto; 2)uso corrente (familiar, popular, gíria); 3) uso
regional.
[...]
2) Os colonizadores vinham de todas as partes de Portugal, de
modo que, em contato e interação, se fundiram num denominador
comum, de notável unidade.
3) Acompanhando o destino dos homens, o português primeiro
se fincou no litoral. Aí se constituiu, nos dois primeiros séculos
da colonização, um falar de marcante unidade, uma koiné, em
suma. E foi essa koiné falada na costa, que invadiu o interior com
as bandeiras e as entradas. Daí, evidentemente, as raízes das
características do português brasileiro: a unidade e o
conservadorismo.
4) É indispensável distinguir, desde os tempos mais antigos, os
estratos sociais da língua portuguesa usada no Brasil. Por isso
estabelecemos que os portugueses da Europa e seus filhos
falariam um português de notável unidade, enquanto os
aborígenes, os negros e os mestiços se entendiam num crioulo ou
semicrioulo. A proporção que se ia afirmando a civilização, o
português, graças ao seu prestígio de língua dos colonizadores e
de língua literária, foi se irradiando. (Silva Neto 1963[1950]:14-
15)

A ‘linguagem’ portuguesa que aqui se desenvolveu, a partir daí, teria traços de

superfície que a distinguiriam da européia, tratando-se, porém, da mesma língua, em essência.

B) Unidade na diversidade, diversidade na unidade

O português do Brasil teria unidade, proporcionada, já nos princípios de sua formação,

pelo estabelecimento de uma média linguística das diferentes variações lusitanas, e teria

também diversidade, uma vez que esta média, a língua comum, resultaria de diferentes tons,

que um atlas linguístico nacional, se executado, demonstraria.


150

É preciso ter na devida conta que unidade não é igualdade; no


tecido linguístico brasileiro há, decerto, gradações de cores.
Minucioso estudo de campo determinaria, com segurança, várias
áreas. O que é certo, porém, é que o conjunto dos falares
brasileiros se coaduna com o princípio da unidade na diversidade e
da diversidade na unidade. (Silva Neto 1963[1950]:271)

Haveria, em suma, variações locais, que, contudo, não comprometeriam a unidade

linguística nacional. Além disso, a mesma língua seria utilizada em Portugal, onde, por sua

vez, também apresentaria variações internas, específicas deste território.

Se para Silva Neto uma língua é o que dela fazem os diferentes grupos humanos,

inseridos em diferentes contextos, é uma decorrência lógica ter assumido que a língua

portuguesa varia, já que, considerados Brasil, Portugal e as demais (ex)colônias portuguesas

ou cada um isoladamente, os grupos e os contextos também o fazem.

Não obstante esse reconhecimento das diferenças entre as linguagens ou falares

brasileiros em relação aos portugueses, a hipótese de existência de uma língua brasileira é

totalmente inaceitável para ele:

Em resumo: a língua portuguesa é falada em Portugal e no Brasil.


Tanto de um lado como de outro há diferença de lugar e de classe
social para classe social. Temos os falares do português de
Portugal e os falares do português do Brasil. (Silva Neto
1963[1950]:117)

Esta a síntese de sua proposição de “unidade na diversidade e diversidade na unidade”:

aqui e lá, a mesma língua com diferentes gradações num ponto e no outro. As diferenciações,

entretanto, seriam manifestadas em superfície, como na pronúncia, no vocabulário, em

torneios sintáticos. A ‘linguagem literária’, por exemplo, teria, no Brasil, independência 37, já

que o estilo, “jóia da criação pessoal”, naturalmente varia; a essência da ‘língua’ estaria,

37
“Esse espírito brasileiro não se caracteriza pelo anseio de independência l ingüística, mas realiza o
ideal de independência literária. "(Silva Neto 1963[1950]:268)
151

contudo, preservada nos “irmãos”, Portugal e Brasil, que por isso utilizariam,

indiscutivelmente, a mesma e única língua portuguesa.

Língua brasileira é, assim, desculpa de insuficiência e bandeira de


cômodo nacionalismo. (Silva Neto 1963[1950]:263)

Nada, para ele, justificaria admitir-se uma língua nacional.

Algo a ser notado em relação a esse posicionamento sobre a existência de uma língua

brasileira é que o autor, apesar de afirmar em mais de uma passagem que esta “querela” da

“língua nacional” estaria superada, insista em discutir o assunto e em negar a validade dessa

tese, nisso também representando exemplarmente a sua geração (v., por exemplo, Elia (1940)

ou Chaves de Melo (1946)). O assunto assim, dada a recorrência, pareceu-nos, mais do que

superado, ter sido objeto de um certo consenso entre os membros da comunidade científica.

O ponto da discussão não era o de ignorá-lo — atitude mais comum em face de

problemas irrelevantes — mas acentuar o “acordo” existente em relação a ele.

C) Conservadorismo

A língua portuguesa, nas suas variações usadas no Brasil, além de unitária, era para

Silva Neto, conservadora, sobretudo nos seus falares regionais. Esse conservadorismo, que

como a unidade, seria uma característica comum às línguas ‘transplantadas’ para áreas

diferentes daquelas em que se originaram, também teria explicações ‘externas’ (v. novamente

nota 6).

Uma delas seria o fato de a língua ter se desenvolvido em localidades e comunidades,

por vezes isoladas, que, não estando em contato com outras, tenderiam à conservação de suas

próprias tradições, entre as quais, as linguísticas. Essas comunidades seriam, geralmente,


152

reduzidas, havendo, em função disso, reiterados contatos entre os mesmos indivíduos — uma

outra razão para serem menores os “germens” de evolução e de transformação.

Estabelecendo-se a língua portuguesa primeiramente no litoral e só depois se estendendo para

o interior do país, neste ela seria mais arcaizante, posto que as províncias, colonizadas

posteriormente, “são áreas conservadoras” (Silva Neto 1963[1950]:271). Além disso, durante

a Colonização, teria sido “reiterado e constante o esforço do poder público” para a difusão e o

estudo escolar da língua escrita, mais conservadora do que a oral. Complementando essa

atuação dos colonizadores, a elite colonial brasileira teria, desde os primórdios, manifestado a

vontade falar e escrever português, imitando os cânones gramaticais da Metrópole (v. Silva

Neto 1963[1950]), por razões de prestígio ou ascensão social.

Assim confirmado o seu conservadorismo, o estudo do português do Brasil,

principalmente de seus falares de caráter rural, seria extremamente importante para a

compreensão da história da língua, uma vez que, preservando alguns traços mais arcaicos,

poderia ser útil para a confirmação de hipóteses sobre as transformações por que passou ao

longo do tempo a língua. Atestaria, no presente, tendências linguísticas do passado.

D) Indianismo e africanismo

Quanto ao peso das influências negra ou indígena na nossa modalidade do português,

o autor afirmava ser muito menor do que o estimado até a sua época:

Durante muito tempo foi moda multiplicar exemplos de influência


indígena em nossa linguagem. Fez parte do indianismo
filológico... Mais tarde entrou em cena o negro. E logo se lhe
transferiram muitas responsabilidades...
A verdade, porém, é que a maior parte dos fatos alegados não
passava de interpretações sem base, fantasiosas ou precipitadas.
Além da falta de conhecimentos de línguas americanas e
africanas, a muitas das pessoas que advogavam teses indiófilas e
153

negrófilas faltava a indispensável base da cultura lingüística e


românica. (Silva Neto 1956s:121)

Para Silva Neto, o exagero poderia, em parte, ser explicado também por “razões

psicológicas”: haveria, nos indiófilos e negrófilos, um desejo de exaltar nossa riqueza

vocabular ou de demonstrar uma extrema diferença entre o nosso e o português usado em

Portugal, o que levaria ao reconhecimento de uma língua brasileira. Somadas essas razões à

ignorância linguístico-filológica, estariam equacionados os excessos na consideração das

influências indígenas e africanas (Silva Neto 1963[1950].128).

O que outros chamariam de influências, seriam, para Silva Neto, “cicatrizes” daquela

aprendizagem tosca da língua portuguesa nos inícios de sua expansão pelo Brasil (daquele

‘falar crioulo’) e situar-se-iam apenas em seus níveis mais superficiais (prosódico, vocabular e

sintático).

4.3 Uma obra ampla para uma ‘macrodisciplina’

A visão sobre as ciências da linguagem e seus objetos, de Silva Neto, pareceu-nos

estar fundamentalmente marcada pela compreensão dos fatos em um nível global, amplo, que

pode tê-lo levado a essa tentativa de síntese, de conciliação, entre vários elementos — mesmo

que por ele percebidos como diferenciados —, unindo-os em outros maiores, observada neste

capítulo.

Assim, em relação aos temas tratados, pareceu-nos ter havido o objetivo essencial de,

multifacetando e subdividindo os estudos, estar com eles contribuindo para o estabelecimento

de uma adequada história da língua; quanto aos recortes, a tentativa pareceu-nos também ser a

de, estudando combinadamente diferentes níveis, tratar da língua amplamente, em variados

aspectos; do mesmo modo as orientações, mais pendentes para o historiar e o metateorizar,


154

procurando dar conta de grandes problemas

da Filologia (portuguesa) — como o da elaboração de uma história (necessariamente

complexa) para a língua e o do desenvolvimento de seus níveis teórico e metodológico

— de modo a fixá-la no campo das disciplinas científicas a tratarem da linguagem. Os

materiais, amplos e heterogéneos, obedeceriam ao mesmo princípio verificado na

articulação do nível temático — fechando um ciclo coerente de opções de condução do

trabalho com a linguagem.

As suas ‘noções’ sobre os objetos e os estudos possíveis nos domínios da

linguagem, na mesma medida nos reportariam a um macroentendimento de Filologia,

disciplina responsável por um campo muitíssimo amplo, o da línguas em relação com a

cultura e com as sociedades, que, por conta disso, auxiliaria e seria auxiliada por outras

disciplinas, não havendo, portanto, também neste nível, fronteiras muito rígidas a

apartarem componentes de um todo indissociável — os estudos do Homem.

O seu trabalho, enfim, pareceu-nos tender para o todo e isso se coadunaria com a

concepção de uma Filologia que respondesse amplamente pelo estudo das línguas (e dos

homens que as falam). Uma Filologia com objetos e tarefas, desse ponto de vista,

ilimitados.

Como já ressaltamos em outro momento, de acordo com Murray (1994), um

conjunto de ideias é reconhecido como promissor não por seus traços intrínsecos, livres

de contexto, mas pelo fato de um grupo relevante de cientistas assim o conceber,

tornando-o, posteriormente, o mais convincente para a maioria dos indivíduos que atuam

no campo.

As ideias que rastreamos nas obras de Silva Neto, desta forma, não eram

necessariamente ‘melhores’, mas se configuravam como boas no contexto em que surgiam e

se opunham a outras que não recebiam, contextualmente, o mesmo qualificativo. É desta


155

perspectiva que tomamos como ‘boas’ as ‘ideias’ e as ‘opções’ de trabalho do filólogo, que,

em sua época, tiveram o status de adequadas ao campo das ciências da linguagem, do qual a

Filologia parecia ser o sinônimo mais próximo.


156

CAPÍTULO 5

A Articulação do Paradigma da Filologia Brasileira

“...Hoje a Filologia tem novos aspectos e, em certa medida, novos


anseios.” (Silva Neto 1988[1957]:66)
157

A Articulação do Paradigma da Filologia Brasileira

5.1 O legado da Geração de 20: institucionalização e tradição

Por diferentes motivos, é possível considerar o período compreendido entre os anos

1940 e 1960 como decisivo para a história dos estudos sobre a linguagem no Brasil. O

principal deles talvez seja o papel ‘organizador’ que, visto em retrospecto, eles parecem ter

desempenhado nesta história: durante esses anos, os cursos de Letras formaram suas primeiras

turmas; criou-se um número considerável de associações e periódicos especializados; a

profissão de estudioso da linguagem, em função desses processos, adquiriu status próprio e,

principalmente, os estudiosos começaram a organizar o quadro das suas tarefas, seja elegendo

um elenco próprio de atribuições, seja procurando estabelecer fronteiras entre áreas diferentes

de investigação — procedimento que, mais tarde, se converteria em separação de disciplinas e

de grupos de estudiosos. Foi, em síntese, um momento de realizações que, por um lado,

redundaram na profissionalização do homem de Letras e, por outro lado, ensejaram

importantes reflexões sobre a prática de tratamento de questões linguísticas e sobre as

disciplinas que começavam a se individualizar no campo.

Como agentes, nesse processo de especialização, estiveram tanto os representantes da

Geração de 20 quanto os da Geração de 40.

De fato, como vimos, a Geração de 20 continuou atuante durante o período que

enfocamos, isto é de 1940 a 1960, e teve papel crucial na configuração do novo quadro em

que se inseriam os estudos da linguagem no Brasil, seja pela participação ativa e, pelo menos
158

até os anos 1940, de muito maior peso do que o da Geração de 40 na criação de ‘instituições’,

seja, como foi o caso, por exemplo, de Sousa da Silveira, pela aglutinação em torno de si

daqueles que seriam os representantes da geração seguinte, contribuindo para o aumento da

coesão do grupo e para a continuidade das tradições de pesquisa.

Coube à Geração de 20 firmar certas linhas de trabalho que, simplesmente mantidas,

ampliadas ou revistas, ajudaram a compor o programa de investigação proposto pela geração

de Silva Neto. Além disso, os estudiosos dos anos 1920 legariam aos filólogos brasileiros da

geração seguinte os valores das escolas alemã, italiana, francesa e portuguesa no domínio

teórico e nos modos de conduzir os trabalhos.

Segundo Koerner (1997:16),

Muitos países, especialmente aqueles com longa tradição de


estudos em lingüística histórico-comparativa indo-européia, como
aqueles de língua alemã ou a Itália (mas também a França e
outros), não aceitaram com entusiasmo a ‘lingüística sincrônica’
antes de meados da década de sessenta [...]

Talvez pelo vínculo com tais tradições, os filólogos, apesar de conhecerem a ‘nova’

Linguística sincrônica, permaneceram, durante o período do qual tratamos, dentro do quadro

de trabalho das tradições linguísticas históricas ou diacrônicas, que, no Brasil, foram durante

um longo tempo reunidas sob o rótulo de ‘Filologia’. Assim como nos centros aos quais se

vinculavam, a Geração de 40 resistiu à prática da Linguística sincrônica, acompanhando,

basicamente, as pesquisas que se desenvolviam na linha de

estudos históricos.

Durante os anos 1940 e 1950, a Filologia era um ‘paradigma’ estável no Brasil e,

de acordo com Kuhn (1987[1962]), nesse estágio, que denominou de ‘ciência normal’,

os cientistas não buscam novidades. O interesse está dirigido ao quadro de problemas e


159

às soluções propostas pelo ‘paradigma’. Talvez por isso, as referências continuaram a ser

aquelas provenientes das tradições diacrônicas.

Ainda com respeito a esses vínculos intelectuais, é importante observar que a

Geração de 40 talvez tenha sido a última, pelo menos até o momento atual, a ter laços

intelectuais mais estreitos com Portugal. Esses laços que, num primeiro momento, resumiam-

se em acatar as tendências que lá estivessem em voga, posteriormente, sobretudo a partir dos

anos 40/50, se converteriam em diálogos de igual para igual entre

as duas partes.

De fato, foi extremamente grande o prestígio, entre os membros da comunidade

científica portuguesa deste período, de brasileiros como Celso Cunha, Mattoso Câmara, Sílvio

Elia e Serafim da Silva Neto, por exemplo — o que, pelo menos em parte, deve estar

relacionado à nova configuração que os estudos linguísticos assumiam no Brasil em face da

especialização cada vez maior de seus estudiosos e de suas instituições.

Depois da Geração de 40, a maioria dos estudos da linguagem no Brasil passariam à

esfera de influência da nova Linguística, sincrônica, europeia e, posteriormente, também da

norte-americana — o que talvez esteja relacionado com uma importante mudança de ênfase:

enquanto o trabalho das Gerações de 20 e 40 dirigiu-se prioritariamente ao tratamento

histórico dos dados de língua e, entre eles, privilegiaram os de língua portuguesa (o que

tornava, até certo ponto, inevitável um maior contato com pesquisadores que se dedicassem às

mesmas questões — os lusitanos), por razões semelhantes, mudada a ênfase para questões

sincrônicas e mais teóricas, gerais — mesmo quando aplicadas ao tratamento de dados de

língua — com o desenvolvimento da Linguística sincrônica no país, a ligação passa a ser mais

estreita com os centros supridores de ‘novidades’ teóricas do novo paradigma.

Os passos dados pela Geração de 20, portanto, na esfera institucional ou na intelectual,

foram em essência continuados pela Geração de 40.


160

5.1.1 Instituições

No campo institucional, como demonstraram nossos dados, verificou-se que, criados

alguns dos primeiros núcleos a partir do prestígio dos veteranos representantes da Geração de

20 — como foi o caso da Academia Brasileira de Filologia, ou da Revista Filológica — a

nova geração procuraria contribuir para a criação de outras, tomando nestes casos a dianteira,

como, por exemplo, na criação do Boletim de Filologia, da Revista Brasileira de Filologia, ou

do Centro de Estudos Linguísticos, no Museu Nacional.

Realmente, no que se refere aos processos de profissionalização do cientista e

institucionalização da área, nota-se que, à coincidência feliz de ter começado a atuar no

campo ao mesmo tempo em que as autoridades governamentais começavam a investir nas

chamadas “ciências desinteressadas” por meio da criação das Faculdades de Filosofia, a

Geração de 40 juntou seu próprio empenho — e facilidades até então indisponíveis — em

criar associações, centro de estudos, periódicos etc., os quais, em conjunto com as instituições

universitárias, viriam a favorecer o desenvolvimento da Filologia, que, por estar em posição

privilegiada, teria ainda melhores condições de expansão e recrutamento de novos quadros.

A Geração de 40, portanto, encontrou situação favorável que aumentou tanto as suas

perspectivas profissionais na área, anteriormente restritas ao ensino formal de língua no nível

médio, quanto as possibilidades de aperfeiçoamento de suas habilidades, até então totalmente

dependentes dos resultados do esforço autodidático.

Um outro benefício desse novo contexto de produção foi a maior possibilidade de

contatos pessoais e de um paulatino estreitamento de laços proporcionado pela existência de

centros universitários, associações e publicações específicas, que, direta ou indiretamente,

congregavam os estudiosos.
161

As atividades reconhecidas como filológicas, desse modo, se já constituíam o

paradigma preferencial para a comunidade atuante durante os anos 20, neste período em que

também o contexto adquiria nova compleição, encontraram-se beneficiadas, uma vez que,

evidentemente, foram os filólogos, estudiosos de maior prestígio, aqueles que nestas

instituições e associações ocuparam postos centrais e, por conta disso, conferiram à sua

disciplina esta mesma posição de destaque no campo de estudos sobre a linguagem.

Para Murray (1994), como vimos, a condição de ‘elite’ acadêmica, como era o caso do

‘grupo’ da Filologia Brasileira, não é exatamente uma garantia de sucesso na formulação de

‘boas ideias’, que podem surgir em ambientes menos privilegiados. Contudo, o fato de existir

uma ‘base institucional’ poderia, segundo o autor, influenciar o destino dessas ideias pois,

para a sua divulgação e posterior consolidação, estariam disponibilizados importantes

instrumentos. Para um grupo que, como o filológico neste período, tem a estrutura de uma

‘elite de especialidade’, isto é, de um grupo institucionalizado, formalmente reconhecido

como tal, é extremamente produtiva a existência de “bases institucionais”, porque elas, à

medida em que podem disponibilizar toda uma estrutura de meios físicos e humanos,

beneficiam o desenvolvimento e a consolidação de um ‘paradigma’.

Ainda com relação aos aspectos institucionais, cabe ressaltar o fato de as instituições

de ensino terem tido, como ainda hoje têm, uma função relevante para o desenvolvimento dos

estudos da linguagem no período. A área de conhecimento esteve frequentemente associada

ao ensino e, devido a isso, encontrou nos meios educacionais uma de suas mais privilegiadas

esferas de legitimação e desenvolvimento: o estudioso da linguagem teve nesses meios um

espaço constante para a atuação profissional e, por vezes, enfatizou em sua produção aspectos

linguístico-pedagógicos.

Em função disso, resoluções como a de 1962 que institucionalizou a Linguística como

disciplina obrigatória no currículo mínimo de Letras ou a retirada do latim do currículo


162

obrigatório dos cursos de nível intermediário, tiveram, como não poderiam deixar de ter,

impacto sobre o contexto de estudos da linguagem, notadamente, sobre a hegemonia da

Filologia.

No primeiro caso porque a disciplina passou, progressivamente, a dividir o status de

principal ciência no campo de estudos sobre a linguagem com a Linguística e, como sabemos,

as posições dessas duas disciplinas se inverteram relativamente pouco tempo depois desse

incentivo oficial ao desenvolvimento dos estudos de Linguística.

No segundo caso, porque tal medida privou as novas gerações do domínio de uma das

ferramentas básicas do trabalho filológico, especialmente latino, românico e português,

ênfases dos estudiosos brasileiros no período: sendo uma das tarefas primordiais do

‘paradigma’ da Filologia Brasileira a reconstrução histórica da língua portuguesa, a menor

familiaridade dos novos estudiosos com o latim atingiria o desenvolvimento da disciplina. É

certo que os cursos universitários de Letras continuaram (e continuam) a oferecer latim.

Contudo, em períodos anteriores, era possível ao futuro filólogo, desde os estudos

secundários, ir adquirindo essa competência para posteriormente apenas aperfeiçoá-la.

Os dois eventos, que primeiramente se situaram no ambito do ensino-educação,

combinados, tiveram, dada face pedagógica do fazer ciência da linguagem, impacto decisivo e

direto nos desdobramentos do debate; mais precisamente com relação ao enfraquecimento da

tradição filológica enquanto principal linha de trabalho na área de estudos sobre a linguagem

até então no Brasil.

5.1.2 A manutenção das tradições

No campo intelectual, além da questão de ter delineado um diálogo com tradições

estrangeiras que seria mantido pela Geração de 40, em certa medida, a Geração de 20 também
163

delineou as linhas segundo as quais seria dirigida a produção dos representantes da nova

geração.

Dessa forma, a postura geral em relação a tais predecessores pode ser caracterizada

como ‘continuísta’, tal como propôs Murray (1994): não houve, por parte da Geração de 40,

incluindo-se nela o futuro linguista Mattoso Câmara, uma postura conflituosa em relação aos

estudos e estudiosos dos anos 20. Com acesso às publicações, a postos de trabalho e a

aprovação por parte daqueles que, nos inícios dos anos 40, ainda constituíam o corpo de

autoridades reconhecidas no campo, os jovens estudiosos da nova geração tenderam a adotar a

postura de continuadores da tradição da qual já faziam parte os predecessores.

Essa nova geração, talvez justamente em função de sua ‘retórica de continuidade’

(Murray 1994), foi incluída nos projetos da comunidade científica relevante e, mesmo quando

introduziu questões que mais tarde seriam interpretadas como ‘novidades’, foi incentivada por

ela (como se verifica, por exemplo, com o caso do prefácio de Silveira aos Princípios... de

Mattoso).

Não houve, de fato, elementos que opusessem o que produziu a Geração de 20 ao que

produziam seus sucessores. Existiram, é certo, alguns traços que singularizaram as produções

de ambos os grupos, muito provavelmente em função dos contextos em que elas surgiam.

Em relação às similaridades, é suficiente reiterar que, como demonstramos no capítulo

3, as principais linhas de trabalho da Geração de 20 foram mantidas pela de 40.

Foi assim, por exemplo, com o desenvolvimento de pesquisas dialetológicas que,

inauguradas no país com o Dialeto Caipira (1920) de Amadeu Amaral38 — ao qual se seguiu

38
"Segundo o prof, Nascentes, coube a Antônio Pereira Coruja inaugurar a nossa Dialetologia. Refere- se o
ilustre filólogo à Coleção de Vocábulos e Frases usados na Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul,
publicado no tomo XV, 1852, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 2.ed. Londres, 1856..."
(Elia 1975:123). É comum uma autofiliação desses estudiosos a linhas de trabalho com a linguagem que
remontam ao século XIX brasileiro. Esse é um dos elementos que nos fazem considerar, embora desconhecendo
a produção de gerações anteriores, que, mesmo sem aparato institucional, uma tradição de pesquisa filológica
luso-brasileira se constituía no país desde, pelo menos, o século passado.
164

um considerável número de monografias de mesma linhagem 39 — seria mantida como uma

das principais frentes de trabalho da Geração de 40. A Dialetologia seria, aliás, um dos

principais pilares de todo o programa dos estudiosos da primeira metade deste século e teria

em um representante da Geração de 20, Antenor Nascentes, um de seus mais destacados

pesquisadores.

Observações similares poderiam ser feitas em relação ao trabalho de edição de textos

avulsos etc.

Um diferencial entre os dois tipos de produção talvez possa ser estabelecido por meio

da comparação entre a maior ou menor ênfase conferida por cada uma das duas gerações às

produções ‘linguístico-pedagógicas’ e às produções ‘programáticas’.

Há, realmente, no amplo quadro de estudos da Geração de 20, uma quantidade

considerável de trabalhos ‘linguístico-pedagógicos’. Certamente o fato de a principal

atividade na área desses estudiosos ter sido o trabalho com o ensino de nível médio contribuiu

para isso: a questão de ensino linguístico era um problema com o qual lidavam no dia-a-dia.

E assim que praticamente todos os estudiosos, neste primeiro período, elaboram

gramaticas, pedagógicas ou não, manuais ortográficos ou de análise gramatical, livros

destinados ao ensino de línguas e literaturas, ou seja, obras cuja função primordial seria a de

tornar acessível a um público não especializado questões de uso da linguagem e/ou de história

literária. Como exemplos, podem ser citados os textos de Said Ali (1905; 1919[1908]; 1930;

1937); Mota (1935[1915]; 1937[1915]); Sousa da Silveira (1952[1923]); Magne (1919; 1927;

1935; 1941); Nascentes (1929; 1940).

Para esta geração, portanto, existiram dois tipos paralelos de publicação sobre a

linguagem: um destinado aos pares (as edições de textos, os trabalhos etimológicos, os

dialetológicos, os estudos de língua portuguesa etc.) e outro destinado àquele público não

39
v. a respeito Silva Neto (1963 [1950]), onde essa produção é revista.
165

especializado (a produção ‘linguístico-pedagógica’), e este segundo tipo foi tão relevante

quanto o primeiro em função das condições de exercício da profissão nesse período pré-

Faculdades de Filosofia.

Os representantes da Geração de 40, de sua parte, escreveram também diversos textos

‘linguístico-pedagógicos’ que, contudo, parecem ter tido menor destaque entre os outros tipos

de produção: se em relação aos anos 20 por vezes a principal obra de um autor pode ser uma

produção dessa natureza, raramente a principal obra de um representante da geração de 40

tem esse cunho.

Por outro lado, como enfatizamos no capítulo 3, um outro género de produção

mereceu bastante destaque nesse período pós-Faculdades de Filosofia: os manuais

introdutórios às ciências da linguagem, destinados aos estudantes de nível superior.

Tais manuais não deixavam de ser ‘didáticos’ no sentido de também se prestarem à

instrução. Entretanto, as informações agora enfatizadas passavam a ser as de como agir no

campo, com base em quê, isto é, passou a haver uma preocupação mais dirigida à formação

científica das novas gerações.

O destaque conferido à elaboração de manuais introdutórios às disciplinas linguísticas

pode sinalizar o início de uma separação entre as funções de professor de língua e as de

especialista em língua/linguagem. Como ao público especializado ‘autodidata’, juntava-se um

público em especialização — o dos Cursos de Letras — os filólogos dos anos 1940, e

posteriormente também os linguistas, passaram a escrever cada vez mais para os ‘pares’, e a

produção ‘linguístico-pedagógica’, em função disso, começou a ser deslocada do eixo central

de interesses.

Se com isso ocorreu uma redução do público para quem se produzia, por outro lado,

ocorreu também uma sofisticação paulatina da produção mais específica, já que, com a

confecção dos manuais, foram acrescentadas ao tratamento das questões propriamente


166

linguísticas — que, como vimos, já se desenvolvia em períodos anteriores — o tratamento de

questões relativas às próprias disciplinas linguísticas, aos seus métodos, às teorias autorizadas

para o trabalho na área.

Essas novas questões passavam a constituir, muito nitidamente, uma das ênfases do

trabalho científico com a linguagem de então e a mudança de status por que passou a carreira

de especialista em linguagem a partir dos anos 1940, novamente, parece estar relacionada a

isso: assim como o contexto acadêmico-institucional passava, durante esses anos, por um

rearranjo que, grosso modo, se traduzia em profissionalização do especialista em linguagem,

ao mesmo tempo esses especialistas tentavam organizar o campo de estudos, seja por meio da

sistematização das relações entre as disciplinas linguísticas, seja pela determinação das tarefas

a serem cumpridas por elas, seja, ainda, pela proposição mais explícita e direta de critérios

teórico-metodológicos para a atuação na área — tentativas que encontraram nos manuais

introdutórios os seus principais veículos.

Dessa forma, é um aspecto a ser necessariamente considerado nesta interface

profissionalização/produção científica, que, ampliado seu espectro de atuação, antes restrita

apenas ao ensino médio, a Geração de 40 ampliou também o feixe de problemas com os quais

passou a lidar. Ela passou a enfocar questões até então menos relevantes, como as

metateóricas.

No caso brasileiro, portanto, maior especialização teria ocasionado complexificação

das tarefas e atividades. Ao mesmo tempo, teria também propiciado reflexões sobre o papel

do cientista e da sua disciplina em relação às novas questões, notadamente, as de natureza

teórica e metodológica.

Começou, com muita clareza, a existir preocupação com a formação das novas

gerações de acordo com certas linhas — e não outras — autorizadas pela tradição.
167

5.2 O legado da Geração de 40

Em vista desses processos de organização do campo em níveis institucionais e

intelectuais, não é de se estranhar que neste período se concentrem também os inícios do

debate entre Filologia e Linguística no país: no instante em que se construía entre os cientistas

e perante a sociedade uma identidade oficial para a atividade de tratar a linguagem, tornava-se

“natural” o surgimento de preocupações com a determinação do papel e do lugar de

disciplinas que afloravam no campo como distintas. O impulso ‘organizador’ deste período

estendeu-se, pois, à determinação do que seriam Linguística, Filologia, Dialetologia.

Com preocupações dessa ordem, em 1951, Chaves de Melo notava, referindo-se às

disciplinas Linguística e Filologia, que:

... não é fácil ainda nesta altura dos acontecimentos apurar melhor os
conceitos e separar as duas disciplinas. Nossa luta ainda não chegou
nessa frente. Fere-se ainda numa outra bem mais próxima, em que
forcejamos por distinguir os estudos linguísticos de orientação científica
das enganosas e fátuas especulações dos gramatiqueiros e forjicadores
de regrinhas gratuitas (Chaves de Melo in Silva Neto e Chaves de Melo
1951:57)

No momento, parecia ser mais importante, antes de mais nada, determinar o que era

ciência e o que não era, uma vez que a nova geração se constituía por indivíduos com status

de estudiosos especializados ou, em outros termos, cientistas.

Apenas se começava a perceber diferenças e a tentar equacioná-las.

Mas, apesar de estarem — como, de resto, permaneceriam — indefinidos os limites

entre as duas disciplinas, já era possível aos cientistas compreender que havia dois modos

complementares e, ao menos parcialmente, distintos, de tomar o mesmo objeto linguagem e

que, portanto, as atividades e responsabilidades de um linguista e de um filólogo no campo

deveriam, em alguma medida, se diferenciar.


168

Os manuais traduziram essa percepção da Geração de 40 definindo uma disciplina em

função da outra (cf. capítulo 3). Ou seja, para conceituar, tornava-se imprescindível separar

disciplinas que ainda pareciam emaranhadas.

Em vista deste quadro, compreende-se o tom programático de Silva Neto em suas

obras — verificável, aliás, também em outros autores contemporâneos — que o levava a

propor tarefas para a sua disciplina e limites entre ela e as demais. Pareceu necessário à sua

geração tornar mais evidente, até para ela mesma, do que tratava, que propósitos tinha a sua

disciplina e em que campo ela se inseria.

Há, na obra do autor, uma tendência associativa em relação às outras disciplinas da

área — define-se Filologia, Linguística, Dialetologia tendo em vista um todo em que elas se

complementariam (uma responsabilizando-se pela teoria, outra pela prática, outra por um dos

aspectos dessa prática) — como também em relação às demais ciências humanas — a

Filologia necessariamente complementaria e seria completada pela Etnografia, História,

Sociologia, Psicologia etc., já que, afinal, todas tratariam do Homem e de sua cultura, na qual

a linguagem tem papel destacado.

A visão da disciplina é já por este traço bastante ampla: os conceitos de Silva Neto,

difundidos e aceitos entre a comunidade de estudiosos brasileira do período, apontam para

uma Filologia com uma certa feição interdisciplinar, útil a diferentes esferas do pensamento

‘humano’ sobre o homem e, na mesma medida, utilizadora daquelas diferentes esferas.

Em função disso, a postura em relação ao debate sobre o qual nos debruçamos assume

ares conciliatórios, apesar do papel central conferido à Filologia: não se discute a legitimidade

dos estudos linguísticos, nem a sua utilidade e nem, muito menos, se enxergam estes estudos

como opostos ou contraditórios aos filológicos; eles seriam, sim, complementares, auxiliares,

e esta compreensão das relações entre as duas disciplinas deriva da própria concepção de
169

Filologia que, de tão ampla, não sustentaria uma relação em mesmo nível com as demais da

área de estudos sobre a linguagem.

De fato, nossa análise demonstrou que, em síntese, para Silva Neto (e por extensão,

também para o grupo que liderava), a Filologia seria a disciplina, inserida no campo das

ciências humanas, responsável pelo estudo completo de uma língua, ou conjunto delas, e da(s)

sua(s) literatura(s). Nesse estudo, não se poderia perder de vista as relações dessa língua com

a cultura e a sociedade em que ela está inserida, daí advindo as inevitáveis interpenetrações

entre esse estudo e outros de natureza humana.

O estudo completo de uma língua seria entendido como o tratamento de todos os seus

níveis — dos falares populares até a linguagem literária; dos textos antigos até a linguagem

corrente contemporânea — em abordagens sincrônica ou diacrônica. Existiria, ainda, uma

“Filologia de gabinete”, concentrada nos textos antigos e no estudo das diferentes fases da

língua, e uma “Filologia de campo”, responsável pelo tratamento dos seus falares rurais.

A Dialetologia, assim, como já frisamos, estaria subordinada à Filologia,

encarregando-se de uma das suas principais tarefas: a coleta e descrição dos falares rurais. E a

Linguística seria concebida como uma disciplina de caráter unicamente teórico e geral — e,

em função disso, o linguista não lidaria com línguas específicas, mas com questões gerais,

válidas para todas as línguas. Ela teria fundamentalmente, a função de orientar, em termos

teóricos, o tratamento completo das línguas, cuja natureza seria filológica.

Dada a sua concepção de Filologia, o papel atribuído por Silva Neto e, supomos,

também pelo seu ‘grupo’ às outras disciplinas da área com as quais ela se relacionasse não

poderia deixar de ser relativamente secundário: se a Filologia seria a responsável pelo estudo

de praticamente todos os assuntos linguísticos, diacrônicos e sincrônicos (ainda que na pratica

os primeiros fossem privilegiados), restaria pouco a ser feito pela Linguística.


170

A visão do debate era, pois, conciliatória, mas, ao mesmo tempo, era também

hierárquica. À Filologia, ‘paradigma’ mais amplamente aceito, caberia o centro no quadro

interdisciplinar composto pelos conceitos de Silva Neto.

É possível relacionar o seu conceito abrangente de Filologia ao direcionamento

impresso aos seus trabalhos, do modo como esboçamos no capítulo 4: os dados da pesquisa

apontam que, tanto em relação aos temas tratados, quanto aos materiais, aos recortes, às

orientações, houve uma diversificação dos estudos que, no entanto, tomados em conjunto,

poderiam delinear o escopo daquela disciplina abrangente que idealizara. Como seu conceito

de Filologia comporta estudos de natureza variada, sua obra dispersa-se por diferentes áreas,

sem que, com isso, seja perdida a finalidade central de reconstruir a ‘história da língua

portuguesa’.

Com efeito, para Silva Neto, esse tema seria o mais amplo entre todos pelos quais a

Filologia se responsabilizaria, requerendo incursões por diferentes áreas, já que ‘língua’ e

‘história’ cobririam uma gama vastíssima de subtemas ‘humanos’. Por ser um tema central,

exigiria da disciplina a mesma amplitude, o mesmo nível de interrelações com outras

disciplinas e outras áreas.

Difícil, mas também inútil, é determinar o início do círculo; todavia, na configuração

do programa da Filologia Brasileira no período de 1940 a 1960, de acordo com a análise da

obra de Silva Neto que realizamos, o pluralismo da produção; a tarefa de recompor a história

da língua portuguesa e o conceito amplo e abrangente de Filologia estiveram estreitamente

relacionados. Apenas uma disciplina amplíssima daria conta de tamanha tarefa (ou se proporia

uma tarefa assim), que, por sua vez, dependeria da execução de outras tantas.
171

CONSIDERAÇÕES FINAIS
172

Considerações Finais

A concepção de Silva Neto de Filologia e das relações entre ela e a Linguística eram

hegemônicas entre os membros da comunidade científica considerada. Não eram, porém,

únicas, nem, necessariamente, melhores.

O seu conceito de Filologia, por exemplo, é parcialmente equivalente ao de

Linguística de Mattoso Câmara, para quem esta disciplina trataria de todos os assuntos

teóricos e práticos das línguas e da linguagem e a Filologia trataria apenas de textos literários

(cf. Mattoso Câmara 1981, verbetes “Linguística” e “Filologia”, respectivamente).

Contudo, as ‘ideias’ de Silva Neto foram interpretadas como ‘boas’ neste contexto e o

mesmo não ocorreu com as de Mattoso.

Silva Neto, desde o princípio de sua carreira, foi aceito e estimulado pela ‘elite’

filológica então contemporânea, entre outros motivos, porque sempre se identificou como

filólogo e como continuador do trabalho das gerações precedentes na Filologia Brasileira e

Portuguesa.

Foi assim que, mesmo sendo conhecedor da Linguística sincrônica europeia e

americana de sua época, que citava circunstancialmente em suas obras, sempre vinculou sua

produção ao paradigma filológico e sempre, como convinha à sua tradição, atribuiu àquela

literatura a função de instrumento otimizador de seu trabalho de filólogo.

A sua função de ‘liderança’ nessa comunidade foi exercida, como vimos, tanto no

nível intelectual — por meio de uma produção que, ampla e heterogênea, foi tomada como
173

‘exemplar’, e de uma postura programática em várias de suas obras — quanto no

organizacional — entre outros feitos, através da criação daquela que seria tomada pelas

crônicas históricas como a principal revista do gênero no período.

Esse perfil, em que sobressaem tanto traços de ‘liderança intelectual’ como de

‘liderança organizacional’, parece ter contribuído para o sucesso das suas ‘ideias’ tanto

filológicas quanto sobre a Filologia e sobre as suas relações com a Linguística.

Se, de fato, Filologia e Linguística foram reconhecidas como formas legítimas de

conceber e de praticar ciência da linguagem no período e se realmente ‘liderança’ é

fundamental para o sucesso de um paradigma, Silva Neto foi um dos responsáveis pelo

sucesso da Filologia no período de 1940 a 1960 no Brasil, uma vez que se destacou como uma

das principais ‘lideranças’ de sua geração em um período em que a Filologia desfrutou de

maior sucesso.

Por outro lado, o insucesso da Linguística poderia estar relacionado à ausência, neste

período, de uma figura com perfil semelhante a guiá-la como ‘paradigma’: nesse momento,

Mattoso Câmara, com ideias que posteriormente foram reconhecidas como ‘boas’, adequadas,

não alcançou o mesmo destaque, talvez por não ter marcado tão claramente uma postura

continuísta em relação à tradição filológica luso-brasileira, como o fez Silva Neto. Tradição

que, afinal, era aquela cujos representantes estiveram à frente dos processos de

‘organização’— da área de estudos e das instituições — que tão acentuadamente

caracterizaram o período na história dos estudos sobre a linguagem no Brasil.

A valorização dos processos de profissionalização do ‘Homem de Letras’ neste texto,

nesta medida, não pretendeu ter a conotação de que, antes deles, o desenvolvimento dos

estudos linguísticos não tivesse sido relevante — contra este não-argumento, pesa, pelo

menos, toda a produção dos estudiosos pré-Faculdades de Filosofia.


174

O papel destacado conferido às instituições e principalmente às Faculdades de

Filosofia deveu-se à importância que tiveram para o grupo específico do qual tratamos — os

filólogos de sucesso no período de 1940 a 1960. Foi a partir e dentro desses novos espaços

que esses estudiosos puderam exercer com maior força o seu prestígio.

O fato, por exemplo, de ocupar ou não uma cátedra nas universidades mais centrais foi

tomado como um diferencial entre os cientistas desta geração, o que nos levou a considerar a

criação dos cursos, para este caso, como essencial: além de terem propiciado o

aperfeiçoamento e a profissionalização do especialista em estudos sobre a linguagem, foi um

dos símbolos essenciais do status científico à época — fato que se mantém.

É assim que, quando se observa, por exemplo, a trajetória de Mattoso Câmara durante

as duas décadas de que tratamos, percebe-se, como procuramos explicitar no capítilo 3, que

ele esteve inserido neste grupo de sucesso à medida em que compôs, com os demais, o corpo

de redatores da Revista Filológica, de diretores do Boletim de Filologia e, depois da morte de

Silva Neto, também da Revista Brasileira de Filologia, e de colaboradores dos demais

periódicos ‘filológicos’; esteve entre os membros fundadores da Academia Brasileira de

Filologia; manteve, no campo intelectual, relações cordiais com os membros do grupo de elite

(cf. França 1998b).

Contudo, faltou-lhe (e à Linguística) a cátedra em uma das faculdades de primeira

linha — ponto em que parece estar a raiz da sua consideração, pelas crônicas sobre a história

da Linguística deste período, como cientista marginalizado à sua época.

Por isso a necessidade de termos, no capítulo 3, recorrido à figura de Matos Peixoto e

à sua situação (específica para o caso) no conflito com Silva Neto em torno da tese

Divergência e convergência na evolução fonética (1940): era nossa intenção, nuançar, ou

relativizar, o grau de ostracismo a que esteve submetido Mattoso Câmara, pois, se é fato

incontestável que a Linguística sincrônica não foi, para esse grupo, a forma preferencial de
175

conduzir estudos sobre língua/linguagem, por outro lado, é necessário reconhecer que a

alegada não-integração de Mattoso Câmara ao grupo de elite parece ter sido apenas parcial, ou

ainda, para sermos mais claros, “catedrática”. E mesmo em relação à disciplina, é necessário

salientar que os filólogos, como bem exemplifica a obra de Silva Neto, conheceram e

utilizaram — desde, pelo menos, Said Ali (1919[1908]) — a literatura chamada “linguística”.

Não houve aversão ou repulsa à outra disciplina, que, aliás, ainda nem era claramente

percebida por eles como uma concorrente, segundo o que nos relata Chaves de Melo (1951),

assim como parece não ter havido também ao seu principal defensor.

Houve, sim, a opção pela Filologia, que no momento satisfazia melhor às necessidades

da maioria da comunidade científica que se dedicava ao tratamento das questões de

língua/linguagem.

Não se conferia a mesma relevância à Linguística, dado o megapapel atribuído à

Filologia no campo, o que não implicava desconhecer a Linguística ou ignorar seus

benefícios, mas enxergar na Filologia uma disciplina capaz de tratar completamente das

questões linguísticas e utilizar, apenas para complementações, a Linguística como ciência

instrumental.

Essa concepção se estendeu também aos currículos universitários: na disposição das

disciplinas dos cursos superiores de Letras, até 1962, a Linguística seria um acrescento, uma

complementação aos estudos linguísticos centrais — os de natureza filológica.


176

ÍNDICE DOS NOMES CITADOS

A E

Alberto I. p. 83 Elia, Sílvio Edmundo (n. 1913). p.74;


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