Questões em Historiografia

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CONSELHO EDITORIAL:

Alexandre Cadilhe [UFJF]


Ana Cristina Ostermann [Unisinos/CNPq]
Ana Elisa Ribeiro [CEFET-MG]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Cleber Ataíde [UFRPE]
Clécio Bunzen [UFPE]
Francisco Eduardo Vieira [UFPB]
Irandé Antunes [UFPE]
José Ribamar Lopes Batista Júnior [LPT-CTF/UFPI]
Luiz Gonzaga Godoi Trigo [EACH-USP]
Márcia Mendonça [IEL-UNICAMP]
Marcos Marcionilo [editor]
Vera Menezes [UFMG]
Ronaldo de Oliveira Batista | Neusa Barbosa Bastos
(or g aniz aç ão)

Questões em
historiografia
da linguística
Homenagem a
Cristina Altman
Revisão: Dos Autores
Diagramação: Telma Custódio

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Q54
Questões em historiografia da linguística [recurso eletrônico] :
homenagem a Cristina Altman / [Pierre Swiggers ... [et al.] ; organização
Ronaldo de Oliveira Batista, Neusa Barbosa Bastos. - 1. ed. - São Paulo
: Pá de Palavra, 2020.
recurso digital

Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-65-88519-04-2 (recurso eletrônico)

1. Linguística. 2. Linguística - Brasil - História. 3. Linguística - Pesquisa


- Brasil. 4. Linguagem e línguas. 5. Livros eletrônicos. I. Swiggers, Pierre.
II. Batista, Ronaldo de Oliveira. III. Bastos, Neusa Barbosa.

20-67188 CDD: 410


CDU: 81’1

Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

Direitos reservados à
PÁ DE PALAVRA
Rua Dr. Mário Vicente, 394 - Ipiranga
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pabx: [11] 5061-9262
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qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação)
ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da editora.

ISBN: 9
 78-65-88519-04-2 (e-book)
© do texto: Ronaldo de Oliveira Batista & Neusa Barbosa Bastos, dezembro de 2020
SUMÁRIO

Historiografia da Linguística e Cristina Altman.......................................7


Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos

PARTE I – EM HOMENAGEM A CRISTINA ALTMAN


Tabula gratulatoria................................................................................ 17
“Historiographia Linguistica in Terra Brasiliensi”: Um depoimento
de Leuven para o Brasil.......................................................................... 19
Pierre Swiggers
Uma trajetória de projetos e cooperações............................................... 27
Otto Zwartjes

PARTE II - QUESTÕES EM HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA


História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação........... 33
Ronaldo de Oliveira Batista
Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto
de análise: considerações metodológicas................................................ 53
Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos
Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina
Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil........................... 77
Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande
O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos...... 97
Neusa Barbosa Bastos
Evolução e dinâmica da linguística: uma textura de “camadas”
Anotações meta-historiográficas......................................................... 117
Pierre Swiggers

5
A questão da metalinguagem na Historiografia da Linguística............ 125
Maria Carlota Rosa
O tema da influência em Historiografia da Linguística........................ 137
Ricardo Cavaliere

PARTE III: HISTORIOGRAFIA DA LINGUÍSTICA E SUAS CONFLUÊNCIAS


Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência.......................... 155
Ronaldo de Oliveira Batista
Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística....................... 167
José Borges Neto
Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais:
interdisciplinaridades e inter-relações................................................. 189
Alessandro Beccari
Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa:
da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva ............................ 215
Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros
Organizadores e autores....................................................................... 263

6 Questões em historiografia da linguística: homenagem a Cristina Altman


HISTORIOGRAFIA
1. Cristina Altman e um novo
campo de estudos no Brasil

DA LINGUÍSTICA
A coletânea de textos que se
apresenta é uma homenagem
a Cristina Altman. Seu nome,

E CRISTINA ALTMAN quando pronunciado ou lido,


produz, no Brasil, efeito de
autoridade no que diz respeito
. Ronaldo de Oliveira Batista aos estudos sobre a história do
Neusa Barbosa Bastos conhecimento produzido sobre
a linguagem ao longo dos tem-
pos. De uma motivação inicial
nos anos 1990 (período em que se localizam suas primeiras iniciativas na
pesquisa historiográfica), Cristina Altman chegou lá, como sentencia a afir-
mação comum. E chegar lá significa ser professora titular da disciplina His-
toriografia Linguística na universidade mais prestigiosa da América Latina, a
Universidade de São Paulo. E chegar lá significa ser reconhecida internacio-
nalmente e fazer parte do corpo editorial de séries de livros e periódicos. E
chegar lá significa ter formado pesquisadores que continuaram seus pionei-
ros trabalhos em Historiografia da Linguística. E chegar lá também significa
ter seus trabalhos citados em quase todo trabalho nacional que se faça na
área da Historiografia da Linguística.
Nos anos finais da década de 2010, Cristina Altman decidiu se aposen-
tar da vida acadêmica (colaborando esporadicamente como pesquisadora e
orientadora). Não foram poucos os sinais de desalento dos pesquisadores que
muito aprenderam com ela como compreender a linguagem a partir de uma
perspectiva que privilegia o conhecimento produzido sobre a linguagem, em
uma atividade metacientífica, que antes dos anos 1990 não tinha espaço no
Brasil em termos de pesquisa e institucionalização acadêmica.
O interesse de Cristina Altman pela história e pela linguagem vem des-
de sua juventude. Sua decisão por cursar letras na década de 1960 foi tomada
em meio a dúvidas de seguir ou não curso em ciências sociais. A efervescên-
cia política do período não lhe passou despercebida:

7
Os primeiros anos de minha formação coincidiram com fatos que marcaram
minha geração: as reviravoltas políticas dos anos sessenta, os movimentos de
contracultura, a urbanização desregrada das principais capitais do país e a po-
pularização dos voos internacionais, que colocou o mundo ao alcance de todos.
Dividida entre Alegria, Alegria, o descompromisso dos Beatles e o mistério dos
livros que começava a conhecer, logo tive contato com os valores que marcariam
o início da minha formação e despertariam a vocação e a dedicação à vida
acadêmica que eu desenvolveria mais tarde, na vida adulta.1

Esse interesse pelo aspecto social e histórico dos acontecimentos, como ela
mesma afirma, não se apagou por completo. Encontrou seu espaço na vida aca-
dêmica quando ela decidiu empreender uma pesquisa de doutorado na área da
Historiografia da Linguística. Para isso, aproximou-se de dois dos grandes nomes
da área, que reconhece serem seus mestres: Konrad Koerner e Pierre Swiggers.
Com eles, aprendeu os princípios teóricos que regem a disciplina e o
campo da linguística que procura descrever, analisar e interpretar a história
do conhecimento sobre a linguagem produzido ao longo dos tempos. Além
disso, compreendeu também os caminhos tortuosos que definem os proce-
dimentos metodológicos da pesquisa historiográfica, sempre na linha tensa e
tênue da subjetividade e da objetividade.
Desse aprendizado, uma obra fundamental nasceu: A pesquisa linguísti-
ca no Brasil (1968-1988). Livro publicado em 1998 (com 2a. edição em 2004)
pela Editora Humanitas, retomando sua tese de doutorado, que a inseriu
definitivamente na Historiografia da Linguística. Uma busca pelo nome de
Cristina Altman na internet revela facilmente a relevância desse trabalho,
citado por inúmeros pesquisadores.

Esse trabalho significou meu encontro com a historiografia linguística enquan-


to objeto legítimo de estudo e pesquisa acadêmica e, como não podia deixar
de ser, em um trabalho dessa natureza, um laboratório de reflexão sobre os
métodos de trabalho das ciências da linguagem e da sua historiografia. A ope-
racionalização dessa metodologia se concretizou na tentativa, relativamente

1
Os trechos em itálico e com recuo transcrevem textos de Cristina Altman apresentados no seu Memo-
rial para o Concurso de Professor Titular da Universidade de São Paulo (2007). O texto não foi oficial-
mente divulgado, mas tivemos acesso a ele pela cortesia de Cristina em nos enviar o texto. ALTMAN,
Cristina. Memorial. [Apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, como exigência parcial para o Concurso de Professor Titular junto ao Departamento de
Linguística, área de Historiografia da Linguística]. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007.

8 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


bem-sucedida, eu diria, de criar um grupo de estudos em historiografia lin-
guística com meus alunos.

Das primeiras incursões na Historiografia da Linguística nos anos 1990


resultou também a formação de importantes grupos que definitivamente ins-
titucionalizaram a pesquisa no campo no Brasil e fizeram com que o nome
Cristina Altman representasse a chancela definitiva para as pesquisas na área.
Reconhecida pela elegância de seu texto, pela eloquência arrebatadora
de suas conferências e palestras, pela primorosa didática em sala de aula,
mesmo que não evidente de imediato em seu trabalho, o que sempre moti-
vou a professora e a pesquisadora foi o senso político e social de sua atuação
profissional e intelectual.

Minha melhor contribuição política para a Universidade, e pela Universidade,


era o que fazia e dizia durante as aulas de linguística, de metodologia da pes-
quisa, de pragmática e de historiografia linguística, todas devidamente pensadas
dentro do que eu considero o contexto brasileiro e a responsabilidade do intelec-
tual para com ele. Foi na sala de aula que fiz o que sabia melhor e foi sempre lá
que exerci minha ação política. Com meus alunos reaprendi a formar e reformar
opiniões e a defendê-las quando necessário, o que não significa que nunca mais
tenha errado na mão, ou na dose. Pelo contrário. Com os alunos reconquistei aos
poucos o poder libertador da linguagem e as responsabilidades que disso decor-
rem. Foi principalmente convivendo com eles que me renovei, ao mesmo tempo
que resgatei muitos dos meus antigos valores pessoais e profissionais.

Resgate de valores pessoais e profissionais de extrema importância para


a comunidade científica e acadêmica nacionais, pois soube desenvolver pes-
quisas com rigor, baseando-se em grandes pesquisadores nacionais e inter-
nacionais e constituindo-se, dessa forma, numa cientista da linguagem de
valor irrefutável na área de Letras e Linguística e numa pesquisadora de uma
generosidade ímpar.
Essa última característica pode ser notada por sua atuação no Grupo de
Trabalho Historiografia da Linguística Brasileira vinculado à Associação Na-
cional de Pós-graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), que atraiu co-
legas cativados pela disciplina e pela organização apresentada nos encontros
em que ela deixava à mostra todo o seu potencial de pesquisa e manifestava
a disposição ao diálogo com outros colegas.

Historiografia da Linguística e Cristina Altman


9
Desses diálogos, nasceram interesses relacionados à Historiografia da
Linguística, e Cristina abriu as portas para que pesquisadores novos e antigos
estivessem reunidos na e pela pesquisa, o que foi feito pela aceitação de no-
vos membros para participarem do GT criado por ela. E assim, ela propagou
a Historiografia indicando caminhos investigativos para os pesquisadores
como o que ela anuncia abaixo:

Os textos de alcance teórico estudados pelo historiógrafo da linguística são


(explícita ou implicitamente) ladeados por práticas — ritos, jogos linguísticos,
atividades de ensino, atividades políticas e administrativas — que revelam a
natureza e a função desses textos. Nossa tendência a levar em conta apenas os
considerados grandes textos do passado, excluindo textos “menores” — manu-
ais escolares, dicionários práticos, informações encontradas em enciclopédias
e trabalhos de referência geral —, dificulta‑nos avaliar o papel que o back-
ground institucional, ou simplesmente pragmático, pode ter exercido sobre o
modo de produção daquele texto. A linguística, afinal, é uma ciência e uma
disciplina; consequentemente, sua história é parte da história geral das ciên-
cias e das [...]. (ALTMAN, 2019, p. 29-30)

Um desses caminhos foi adotado por professores/pesquisadores que se


voltaram para os textos presentes em manuais escolares, dicionários práticos
etc., na busca de introduzir tais materiais reveladores de que a observação
de um instrumento linguístico como material didático efetiva a prática de
tratamento de língua a partir de uma concepção definida por uma política
linguística o que pode contribuir para o conhecimento a respeito das con-
cepções de língua e linguagem, diretrizes educacionais e formas do ensino de
Língua Portuguesa, em diferentes épocas.
Um dos Grupos de Pesquisa por ela convidado a participar de seu grupo
de Historiografia da Linguística Brasileira, recém-constituído na ANPOLL,
foi o da PUC/SP que passou a seguir os caminhos da Historiografia de
Linguística (HL), acompanhando suas produções e a realização de eventos
científicos na USP e na PUC/SP que contaram com a presença de linguistas
brasileiros como por exemplo: Aryon Rodrigues (UnB, UFRJ, UNICAMP),
Evanildo Bechara (UERJ, UFF, ABL), Antônio Martins (UFRJ, UEMA, ABF),
e de estrangeiros como: Konrad Koerner (Universidade de Regensburg e Ot-
tawa) e Pierre Swiggers (Universidade Católica de Lovaina). Todos colabora-
ram com a formação e solidificação da HL no Brasil.

10 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


Com o rigor científico, a seriedade de um professor/pesquisador e a carac-
terística aglutinadora de colegas de todo o Brasil e do mundo, Cristina Altman
forma uma rede de pesquisadores nacionais e internacionais ligados à Historio-
grafia da Linguística, deixando sua marca indelével na Linguística Brasileira e
incentivando muitos acadêmicos a seguirem seus passos fortes e seguros.

1.1 A produção acadêmica de Cristina Altman


Textos escritos com elegância, objetividade e clareza foram a marca do
trabalho de Cristina Altman. Os leitores deste livro que, por acaso, não conhe-
cerem a fundo a obra da historiógrafa da linguística devem procurar ler suas
instigantes análises de parte da história do conhecimento produzido sobre a
linguagem no contexto brasileiro. A lista de títulos (apenas alguns, parte de
uma ampla produção) a seguir serve como um guia para a obra de Cristina.

Artigos em periódicos nacionais e internacionais


ALTMAN, Cristina. Zeitgeist. Em homenagem a Evanildo Bechara por ocasião dos seus 90 anos.
Confluência, v. 55, p. 164-182, 2018.
ALTMAN, Cristina. Eugenio Coseriu entre a Filologia e a Linguística Brasileira (1950-1963). Revista
de la Academia Nacional de Letras, v. 13, p. 97-117, 2017.
ALTMAN, Cristina. Saussure e o (Des)encontro de duas Gerações Acadêmicas no Brasil. Signo y Seña
— Revista del Instituto de Lingüística, v. 30, p. 3-21, 2016.
ALTMAN, Cristina. A correspondência Jakobson-Mattoso Camara (1945-1968). Confluência, v. 49,
p. 9-42, 2015.
ALTMAN, Cristina. A descrição das línguas ‘exóticas’ e a tarefa de escrever a história da linguística.
Revista da Abralin, v. eletrônica, p. 209-230, 2013.
ALTMAN, Cristina. As partes da oração na tradição gramatical do Tupinambá/Nheengatu. Limite, v.
6, p. 11-51, 2012.
ALTMAN, Cristina. História, Estória e Historiografia da Linguística Brasileira. Todas as Letras, v. 14,
p. 14-378, 2012.
ALTMAN, Cristina. Colonialismo, Expedições Científicas e Linguística no Brasil do século XIX. Eu-
tomia, v. 2, p. 1, 2010.
ALTMAN, Cristina. Retrospectivas e Perspectivas da Historiografia Linguística no Brasil. Revista Ar-
gentina de Historiografia Linguistica, v. 1, p. 115-136, 2009.
ALTMAN, Cristina. A Conexão Americana: Mattoso Camara e o Círculo Linguístico de Nova Iorque.
DELTA, v. 20, p. 129-158, 2004.
ALTMAN, Cristina; HACHEROTT, Mercedes. Gel & Franchi: 30 anos juntos. Revista do GEL, São
Paulo, p. 11-14, 2002.
ALTMAN, Cristina. Meeting Vivien Law. Bulletin of the Henry Sweet Society for the History of Linguis-
tic Ideas, v. 39, p. 17-18, 2002.
ALTMAN, Cristina. The ‘Brazilian Connection’ in the History of North American Linguistics: The
Notebooks of Joaquim Mattoso Camara (1943-1944). Historiographia Linguistica, v. 26, n.3, p.
355-382, 1999.
ALTMAN, Cristina. Da Insula Vera Crux a Terra Brasiliensis. Continuidades e descontinuidades na
produção linguística brasileira. Linguistica, v. 11, p. 13-25, 1999.

Historiografia da Linguística e Cristina Altman


11
ALTMAN, Cristina. Memorias da Linguística na Linguística Brasileira. Revista da Anpoll, n.2, p.
173-189, 1996.
ALTMAN, Cristina. Thirty Years of Brazilian Linguistic Production. Languages of the World, p. 43-51, 1995.
ALTMAN, Cristina. Trinta Anos de Linguística Brasileira. Movimentos de Afirmação e Autoafirma-
ção Profissional. DELTA, v. 10, n.2, p. 389-408, 1994.

Livros publicados/organizados ou edições


ALTMAN, Cristina; Torelli, Lygia (Org.). Por ocasião do centenário do Curso de Linguística Geral
(1916). Cadernos do Centro de Documentação e Historiografia Linguística, n. 2. São Paulo: Hu-
manitas, 2017.
KEMMLER, Rolf; ALTMAN, Cristina (Org.). E.F.K. Koerner. Quatro décadas de historiografia linguís-
tica: estudos selecionados. Vila Real: Centro de Estudos em Letras, Univ. Trás-os-Montes e Alto
Douro, 2014.
ALTMAN, Cristina; BATISTA, Ronaldo de Oliveira (Org.). Dossiê de Historiografia Linguística. To-
das as Letras, v. 14, 2012.
ZWARTJES, Otto; ALTMAN, Cristina (Org.). Missionary Linguistics II/ Lingüística Misionera II. Or-
thography and Phonology. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins, 2005.
ALTMAN, Cristina. A pesquisa Linguística do Brasil (1968-1988). 2ª ed. São Paulo: Humanitas, 2004.
ALTMAN, Cristina. Em Homenagem a Mattoso Camara (1904-1970). Delta, no. especial, 2004.
ALTMAN, Cristina. A Pesquisa Linguística No Brasil: 1968-1988. 1. ed. São Paulo: Humanitas, 1998.
ALTMAN, Cristina. Unificação e Diversificação da Linguística. Pesquisa documental de produção lin-
guística brasileira contemporânea (1968-1988). Munique: Lincom Europa, 1995.

Capítulos de livros publicados


ALTMAN, Cristina. História, Estórias e Historiografia da Linguística Brasileira. In: Batista, Ronaldo
de Oliveira (Org.). Historiografia da Linguística. São Paulo: Contexto, 2019. p. 9-43.
ALTMAN, Cristina. Filologia e linguística brasileiras, mais uma vez. In: Sansone, Olga Coelho (Org.). A
Historiografia Linguística no Brasil (1993-2018). Memória, Estudos. São Paulo: Pontes, 2018. p. 43-64.
ALTMAN, Cristina. Uma pequena homenagem ao colega Luiz Antônio Marcuschi (1946-2016). In:
Baronas, Roberto Leiser et al. (Org.). As Ciências da Linguagem e a(s) voz(es) e o(s) silenciamento(s)
de vulneráveis: reflexo e práxis. Homenagem ao Prof. Luiz Antonio Marcuschi. São Paulo: Pontes,
2018. p. 27-34.
ALTMAN, Cristina. Saussure, the Historian of Linguistics. In: Beividas, Waldir; Lopes, Ivã Carlos;
Badir, Sémir (Org.). Cem anos com Saussure. Textos de Congresso internacional. Tomo II. São
Paulo: Annablume, 2016, v. II, p. 17-31.
ALTMAN, Cristina. Sobre Mitos e História: a visão retrospectiva de Saussure nos três Cursos de Lin-
guística Geral. In: Fiorin, José Luiz; Flores, Valdir do Nascimento; Barbisan, Leci Borges (Org.).
Saussure: a invenção da Linguística. São Paulo: Contexto, 2013. p. 21-32.
ALTMAN, Cristina. A herança missionária na tradição gramatical do tupinambá: notícias de um
projeto. In: Lagorio, Consuelo Alfaro; Rosa, Maria Carlota; Freire, José Ribamar Bessa (Org.).
Políticas de Línguas no Novo Mundo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p. 179-215.
ALTMAN, Cristina; COELHO, Olga. Por ocasião dos 40 anos da ABRALIN. In: da Hora, Dermeval;
Alves, Eliane Ferraz; Espíndola, Lucienne C. (Org.). ABRALIN: 40 anos em cena. João Pessoa:
Editora da UFPB, 2009. p. 261-283.
ALTMAN, Cristina. Os eternos gramáticos — algumas considerações sobre norma e prescrição lin-
guística. In: Palma, Dieli Vesaro; Hackerott, Maria Mercedes Saraiva; Bastos, Neusa Barbosa; Fac-
cina, Rosemeire Leão Silva (Org.). 80 anos — Homenagem a Evanildo Bechara. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008. p. 69-84.

12 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


ALTMAN, Cristina. Artigos e pronomes na tradição linguística missionária da língua mais falada na
costa do Brasil. In: Schrader-Kniffki, Martina; García, Laura Morgenthaler (Org.). La Romania
en interacción: entre historia, contacto y política. Frankfurt am Main: Vervuert, 2007. p. 837-854.
ALTMAN, Cristina. As línguas gerais sul-americanas e a empresa missionária: linguagem e represen-
tação nos séculos XVI e XVII. In: Freire, José Ribamar Bessa; Rosa, Maria Carlota (Org.). Línguas
Gerais Política Linguística e Catequese na América do Sul no Período Colonial. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2003. p. 57-83.
ALTMAN, Cristina. Between Structure and History: The Search for the Specificity and the Origi-
nality of Brazilian Linguistic Production. In: Joseph, John E.; Niederehe, Hans-Josef; Embleton,
Sheila (Org.). The Emergence of the Modern Language Sciences: Studies on the Transition from
Historical-Comparative to Structural Linguistics in Honour of E. F. Konrad Koerner. Amsterdam
& Philadelphia: John Benjamins, 1999. p. 245-257.
ALTMAN, Cristina. Fragmentos do século XX. Bibliografia cronológica e comentada sobre produção
linguística brasileira. In: Gärtner, Eberhard (Org.). Pesquisas linguísticas em Portugal e no Brasil.
Frankfurt/Main; Madrid: Vervuert: Iberoamericana, 1997. p. 41-78.
ALTMAN, Cristina. Linguistic Research in Brazil: 1968-1988. In: Jankowsky Kurt R. (Org.). Multiple
Perspectives on the Historical Dimensions of Language. Münster: Nodus Publikationen, 1996. p.
163-170.
ALTMAN, Cristina. Das ‘Lições’ aos ‘Princípios de Lingüística Geral’. Um momento de conversão
estruturalista em Mattoso Camara. In: Mari, Hugo; Domingues, Ivan; Pinto, Julio (Org.). Estrutu-
ralismo: Memória e Repercussões. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996. p. 27-38.

2. Um livro em homenagem a Cristina Altman


Este livro nasce do desejo de prestar uma homenagem à professora, à
pesquisadora, à colega, à orientadora.
Alguns professores passam pela vida acadêmica e marcam estudantes,
colegas, orientandos. Dessa marca, o sopro de esperança nas novas gerações
anima o que pensamos serem as possibilidades do futuro, mesmo que o pre-
sente possa nos parecer desanimador.
Pela sua contribuição para a Historiografia da Linguística no Brasil, a
homenagem já é mais do que justificada. Quando tivemos a ideia de orga-
nizar o livro, não houve nenhuma voz questionadora do propósito. Muito
pelo contrário. Um coro de vozes se estabeleceu querendo de algum modo
colaborar com a celebração de uma carreira tão vitoriosa e significativa.
Sendo assim, pensamos em uma obra que estivesse (tarefa difícil) à al-
tura do talento de Cristina Altman. Por isso organizamos não uma mera
coletânea de textos sem vínculo algum entre si, no qual os colaboradores ape-
nas mandassem textos sobre suas pesquisas. Não é isso que entendemos ser
uma homenagem justa. Este livro não é uma coletânea esparsa, como muitas
desnecessariamente existem. Este livro é configurado como um manual de
introdução à pesquisa em Historiografia da Linguística. Desse modo, procu-

Historiografia da Linguística e Cristina Altman


13
ramos recuperar um pouco do talento de Cristina Altman para a formação
de novas gerações de historiógrafos. O que os leitores encontrarão neste livro
são diretrizes da pesquisa em Historiografia da Linguística.
Para tanto, organizou-se a seguinte estrutura:
a) na primeira parte, há a justa homenagem à Cristina Altman. Pierre
Swiggers e Otto Zwartjes escrevem depoimentos sobre o contato uni-
versitário que tiveram com Cristina e de que modo essas trocas influen-
ciaram nas suas vidas. Sugestão do Professor Konrad Koerner, há uma
Tabula Gratulatoria, em que pesquisadores internacionais e nacionais de
renome indiscutível (além dos autores de capítulos deste livro) prestam
sua homenagem à Cristina;
b) na segunda parte, recuperando o título da tese de livre-docência de Cris-
tina (defendida em 2001), são apresentadas questões em Historiografia
da Linguística. Nessa seção do livro, os leitores encontram diretrizes e
procedimentos para a pesquisa na área;
c) na terceira parte, são propostas reflexões sobre confluências que a His-
toriografia da Linguística impõe pela própria natureza de suas preocu-
pações de pesquisa.
Os autores dos capítulos deste livro são pesquisadores de reconhecida
atuação na Historiografia da Linguística. Eles contribuíram não só com seu
talento e olhar afiado para as questões da área, como também para ajudar-
-nos a elaborar uma obra que tem em seu objetivo primeiro o de celebrar
uma carreira acadêmica impecável, como foi e é a de Cristina Altman.

Referências
ALTMAN, Cristina. Memorial. Apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, como
exigência parcial para o Concurso de Professor Titular junto ao Departamento de Linguística, área de
Historiografia da Linguística. São Paulo: Universidade de São Paulo, Ms., 2007.
ALTMAN, Cristina. História, estórias e Historiografia da Linguística brasileira. In: BATISTA, Ronaldo de
Oliveira (Org.). Historiografia da Linguística. São Paulo: Contexto, 2019. p. 19-43.

14 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


PARTE I
EM HOMENAGEM
A CRISTINA ALTMAN
TABULA
Organizada por sugestão do Professor
Konrad Koerner (que por isso encabeça
a lista), esta Tabula Gratulatoria apre-

GRATULATORIA senta nomes de pesquisadores nacionais


e internacionais que manifestaram sua
vontade de homenagear Cristina Altman
e sua carreira.1
• Dr. Dr. h.c (mult.) E. F. Konrad Koerner (Berlim, Alemanha)
• Dr. Dr. h.c. (Em.) Adolfo Elizaincin, Universidad de la República, (Montevideo,
Uruguai)
• Alessandro Jocelito Beccari, Professor da Universidade Estadual Paulista (São
Paulo, Brasil)
• Andrew Linn, Professor da University of Westminster (Londres, Reino Unido)
• Ataliba Teixeira de Castilho, Professor Emérito da Universidade de São Paulo
(São Paulo, Brasil), Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas
(Campinas, Brasil)
• Carlos Assunção, Professor Catedrático da Universidade de Trás-os-Montes e
Douro (Vila Real, Portugal)
• Carlos Eduardo Falcão Uchôa, Professor Emérito e Titular da Universidade Fe-
deral Fluminense (Niterói, Brasil)
• Danilo Marcondes Filho, Professor Titular na PUC-RJ (Rio de Janeiro, Brasil) e
Professor Associado na Universidade Federal Fluminense (Niterói, Brasil)
• David Cram, Emeritus Fellow, Jesus College, Oxford University (Londres, Reino
Unido)
• Dieli Vesaro de Palma, Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (São Paulo, Brasil)
• Douglas Kibbee, Professor Emeritus, University of Illinois at Urbana-Champaign
(Estados Unidos)
• Emilio Ridruejo, Professor na Universidad de Valladolid (Valladolid, Espanha)
• Esmeralda Vailati Negrão, Professora Titular da Universidade de São Paulo (São
Paulo, Brasil)
• Evani Viotti, Professora Doutora na Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil)
• Evanildo Bechara, Titular da Academia Brasileira de Letras
• Franciso Eduardo Vieira, Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba
(João Pessoa, Brasil)

1
Os pesquisadores são indicados em ordem alfabética e são nomeados de acordo com suas indicações. To-
dos os nomes que aparecem nesta lista são de pesquisadores que autorizaram seu uso para a homenagem.
• Frederick J. Newmeyer, Professor da University of British Columbia, Simon Fra-
ser University e University of Washington (Canadá)
• Gerda Haßler, Professora da University of Potsdam (Potsdam, Alemanha)
• Gonçalo Fernandes, Professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
Centro de Estudos em Letras (Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal)
• John E. Joseph, Professor da University of Edinburgh (Londres, Reino Unido)
• José Borges Neto, Professor Titular da Universidade Federal do Paraná (Curitiba,
Brasil)
• Leonardo Gueiros, Professor da Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa, Brasil)
• Maria Carlota Rosa, Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Rio de Janeiro, Brasil)
• Maria Filomena Gonçalves, Professora Associada com Agregação, Universidade
de Évora (Évora, Portugal)
• Marli Quadros Leite, Professora Titular da Universidade de São Paulo (São Paulo,
Brasil)
• Marta E. Luján, Professor Emeritus, The University of Texas at Austin  (Austin,
Estados Unidos)
• Mercedes Saraiva Hackerott, Professora da Unip, Pesquisadora do IP/PUC-SP
• Miguel Cuevas-Alonso, Professor da Universidade de Vigo (Vigo, Espanha)
• Milagros Fernandéz Pérez, Professora Catedrática da Faculdade de Filologia, Uni-
versidade de Compostela (Santiago de Compostela, Espanha)
• Nancy dos Santos Casagrande, Professora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (São Paulo, Brasil)
• Neusa Barbosa Bastos, Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (São Paulo, Brasil) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São
Paulo, Brasil)
• Otto Zwartjes, Professor da Université Paris 7-Didérot (Paris, França)
• Pierre Swiggers, Professor da Katholieke Universiteit Leuven (Leuven, Bélgica)
• Piet Desmet, Vice-Reitor da Katholieke Universiteit Leuven (Leuven, Bélgica)
• Ricardo Cavaliere, Professor Associado da Universidade Federal Fluminense (Ni-
terói, Rio de Janeiro)
• Rogelio Ponce de León, Professor Associado Universidade do Porto (Porto, P­ ortugal)
• Rolf Kemmler, Professor Agregado do Centro de Estudos em Letras, Universida-
de de Trás-os-Montes e Alto Douro (Vila Real, Portugal), Sócio Correspondente
Estrangeiro da Academia das Ciências de Lisboa (Lisboa, Portugal)
• Ronaldo de Oliveira Batista, Professor Adjunto da Universidade Presbiteriana
Mackenzie (São Paulo, Brasil)
• Toon Van Hal, Professor da Katholieke Universiteit Leuven (Leuven, Bélgica)

TABULA GRATULATORIA
17
“HISTORIOGRAPHIA
1. Onde e quando tudo
começou: olhando para trás 1

LINGUISTICA IN
Tendo tido a oportunidade2
de contribuir para esta ma-
nifestação de apreço pelo

TERRA BRASILIENSI”: trabalho de Cristina Altman


— organização e promoção

UM DEPOIMENTO
de pesquisa e ensino — no
campo da historiografia da
linguística, gostaria de co-

DE LEUVEN meçar por refazer como e


quando os nossos caminhos
se cruzaram. No início de

PARA O BRASIL1 1990, Cristina me visitou


na Universidade de Lovaina
(KU Leuven, Leuven, Bélgi-
Pierre Swiggers ca) para discutir a possibi-
lidade de escrever uma tese
de doutorado no campo da
historiografia linguística. Cristina era então professora na Universidade
de São Paulo, com uma forte formação filológica. Ela havia recebido uma
formação completa em estudos literários e linguísticos, mas havia voltado
seus interesses para a historiografia e epistemologia da linguística. Além
disso, ela definitivamente queria iniciar um estudo sobre o passado recen-
te dos estudos linguísticos em seu país de origem. Durante esse primei-
ro encontro, falamos sobre seus planos, sobre a (possível) delimitação de
um tema de pesquisa de doutorado, e sobre a oportunidade de uma estada
de pesquisa de Cristina na Universidade de Leuven, já que tal estada lhe
permitiria ter discussões metodológicas comigo regularmente, e fazer uso
das possibilidades de pesquisa oferecidas pela nossa biblioteca de linguís-
tica. Também discutimos a questão de preparar com antecedência a base

1
Tradução de Ronaldo de Oliveira Batista (UPM, CNPq) e Antonio Ackel (PG-DLCV-USP).
2
Gostaria de agradecer a Ronaldo de Oliveira Batista o convite paraa contribuir neste empreendimento
coletivo em homenagem a Cristina.
de recursos documentais para a sua dissertação, especialmente uma grande
quantidade de artigos publicados em revistas brasileiras de linguística da
segunda metade do século XX.
Alguns meses depois, Cristina conseguiu obter uma bolsa do CNPq, o
que lhe permitiu passar um ano, ou até um pouco mais, em Leuven, a fim
de colocar sua pesquisa nos trilhos e avançar na análise de seus materiais
originais. Quando se estabeleceu em Leuven, acompanhada pela sua família,
Cristina já tinha constituído o corpus de textos-fonte para sua tese.

2. Mapeamento da produção linguística no Brasil entre 1968 e 1988


O projeto de doutorado de Cristina se transformou assim em um “estágio-
-sanduíche”, ou seja, um projeto de pesquisa dirigido por um supervisor da
universidade brasileira e por um supervisor no exterior. Do lado brasileiro,
Cristina pediu à professora Geraldina Porto Witter para ser a sua orientado-
ra; foi-me pedido para ser o lado belga do ‘sanduíche’. A tese foi concebida
como um estudo historiográfico da linguística ‘contemporânea’ brasileira,
abrangendo o período entre 1968 e 1988. O estudo foi enquadrado em uma
chave epistemológica: a ideia era examinar a tensão científico-teórico-socio-
lógica e ‘ideológica’ entre estruturalismo e pós-estruturalismo — gramática
gerativa, sociolinguística e linguística cognitivista precoce — tendências no
cenário contemporâneo da linguística brasileira. A posição a ser adotada por
Cristina foi a de uma observadora e analista crítica, como podemos ler na
introdução à sua tese3.
O projeto de tese tornou-se uma contribuição fundamental, da perspec-
tiva da historiografia linguística, para a história da ciência e para a sociologia
da prática científica e do ethos. Por um lado, Cristina esforçou-se por testar
alguns dos pontos de vista expostos em A Estrutura das Revoluções Científi-
cas4 — pontos de vista relativos aos ciclos da ciência normal e das revoluções,

3
V. Altman (1993, p. 5): “É nesta problemática que se situa o presente trabalho. A detecção das várias for-
mas em que se apresentou o conhecimento lingüístico no seu processo histórico; os principais meios de
difusão e propagação; as possíveis razões para seu sucesso ou fracasso; os critérios de seleção e solução de
problemas; as relações com práticas científicas e humanas mais gerais definem-se como os principais ei-
xos a partir dos quais se desenvolve a presente reflexão sobre a produção lingüística brasileira no período
1968–1988. Trata-se, pois, de conceber o trabalho historiográfico como interessado também pelo aspecto
dinâmico da produção do saber lingüístico e não só pelos seus resultados, pelo que está pronto e acaba-
do. A formulação, organização e recepção do trabalho lingüístico também fazem parte da sua história”.
4
V. KUHN (1962, 2. ed. 1970; trad. bras., 1987).

“Historiographia Linguistica in Terra Brasiliensi”: Um depoimento de Leuven para o Brasil


19
e relativos ao “conhecimento científico paradigmático”5; por outro lado, o
projeto de Cristina consistiu em explorar ideias sobre a “dimensão social”
da prática científica, tais como os conceitos de “formação de grupos” (cf.
MURRAY, 1983, edição revisada em 1994), cynosure (cf. HYMES, 1974), ou
liderança intelectual e social (cf. HYMES; FOUGHT, 1975, edição revisada:
HYMES; FOUGHT, 1981).
Para este empreendimento desafiador, Cristina estava idealmente equi-
pada. Por um lado, ela havia recebido sua formação acadêmica num contexto
marcado pela sucessão e, em certa medida, pela sobreposição, mas também pela
tensão entre diferentes tendências ‘paradigmáticas’ da linguística brasileira: uma
tendência inspirada na linguística estruturalista francesa, semiótica e pragmáti-
ca, e uma tendência inspirada na linguística gerativista americana (transforma-
cionalista). Além disso, durante a década de 1970, Cristina testemunhou os con-
frontos dentro da linguística pós-estruturalista, ou seja, entre linguística teórica
e sociolinguística, entre linguística gerativista chomskiana e semântica gerativa.
Essas tensões encontraram sua reflexão no Brasil, especialmente nos anos 1980,
quando a linguística cognitiva entrou em cena, sob a forma de discussões por
vezes acaloradas entre orientações ‘funcionalistas’ vs. ‘formalistas’ na linguística.6
Cristina percebeu que a melhor maneira de estudar os desenvolvimen-
tos da linguística brasileira contemporânea era seguir um caminho duplo:
por um lado, o do analista “distante” de posições defendidas em publicações
acadêmicas; por outro lado, o do “observador-participante”, obtendo infor-
mações “internas” dos atores-chave no campo. O duplo caminho escolhido
resultou em uma análise exaustiva dos artigos publicados (durante o perío-
do 1968-1988) nas quatro principais revistas brasileiras de linguística7, e em
uma série de entrevistas com proeminentes linguistas brasileiros daquele pe-
ríodo. Além disso, Cristina conduziu um estudo sobre a institucionalização
socioprofissional da linguística no Brasil, por meio de um exame atento dos
programas de pós-graduação em linguística (e dos vínculos com outras dis-
ciplinas das ciências humanas).
5
Cristina também explorou a noção de ‘crescimento do conhecimento científico’ (cf. os ensaios em
Lakatos; Musgrave (ed.), 1970; trad. bras., 1979).
6
As influências específicas e sua recepção por vezes idiossincrática, assim como sua aplicação ao por-
tuguês brasileiro e às situações linguísticas no Brasil constituem a “especificidade e originalidade” da
linguística brasileira; cf. Altman (1999a).
7
A saber: (i) Estudos Linguísticos. Revista brasileira de linguística teórica e aplicada; (ii) Revista brasileira
de linguística; (iii) Cadernos de linguística e teoria da literatura. Ensaios de linguística; (iv) Revista de
documentação de estudos em linguística teórica e aplicada.

20 Pierre Swiggers
3. A tese de doutoramento: olhando para além
Em maio de 1993, Cristina defendeu a sua tese8. Além da relevância de suas
conclusões sobre o status das ciências da linguagem no Brasil na segunda me-
tade do século XX9, o trabalho levantou questões fundamentais sobre a epis-
temologia da linguística e sobre a história e filosofia da ciência (por exemplo,
continuidade vs. descontinuidade de interesses; aplicabilidade das noções de
‘paradigma’ e ‘revolução’).
A pesquisa de doutorado de Cristina, e a tese resultante, marcou o iní-
cio da institucionalização da historiografia linguística no Brasil. O papel de
Cristina no processo foi crucial. Primeiro, seu trabalho ofereceu um modelo
de enquadramento metodológico e questionamento epistemológico na his-
toriografia da linguística brasileira contemporânea. Seguindo os passos de
Cristina, vários de seus alunos, assim como colegas de São Paulo e de ou-
tras universidades brasileiras, engajaram-se no estudo das tensões teóricas e
empíricas da história recente da linguística brasileira10. Além disso, a inicia-
tiva de Cristina de entrevistar importantes linguistas teóricos e descritivos
ou filósofos da linguagem foi acompanhada por ela mesma e por alguns de
seus alunos. Isso resultou no projeto de Depoimentos [Primeira Pessoa do
Singular], ou seja, relatos pessoais, baseados em entrevistas com linguistas
brasileiros, sobre sua carreira, seu ensino, suas estadas no exterior, sua visão
do campo da linguística, suas aspirações, seus enganos etc. Os Depoimen-
tos constituem documentos epi-historiográficos altamente interessantes, em
‘primeira pessoa do singular’,11 e são peças fascinantes da ‘memória-mosaico’
8
A tese (ALTMAN, 1993) contém XX + 342 pp. e vários apêndices não paginados. Os títulos dos capí-
tulos são: I. Unificação e diversificação na ciência da linguagem; II. Método; III. A Lingüística no Brasil
pré-68: Processos de institutionalização e cientifização; IV. Os lingüistas; V. Em busca da especialização
profissional. A instalação dos programas de pós-graduação; VI. Estudos lingüísticos. Revista brasileira de
lingüística teórica e aplicada; VII. Revista brasileira de lingüística; VIII. Cadernos de estudos lingüísticos;
IX. Cadernos de lingüística e teoria da literatura. Ensaios de lingüística; X. Revista de Documentação de
estudos em lingüística teórica e aplicada; XI. Os primeiros vinte e cinco anos da lingüística no Brasil. A
tese foi revista para publicação em livro (ALTMAN, 1998; 2. ed., 2004). Para uma boa apresentação em
inglês dos principais resultados da tese de doutorado, v. Altman (1996a).
9
A saber, como uma disciplina ‘policromada’, dividida entre uma tradição filológica, a influência du-
radoura do estruturalismo e a rápida sucessão de teorias e modelos pós-estruturalistas importados do
exterior, dando origem a duas posições estratégicas diversas, uma de polêmica e outra de (tentativa de)
reconciliação.
10
Ronaldo de Oliveira Batista, a quem devemos uma introdução bem documentada à historiografia da
linguística (BATISTA, 2013), conduz atualmente uma pesquisa sobre os debates ‘forma’ vs. ‘função’ na
linguística brasileira contemporânea.
11
Cf. o título do subprojeto de uma proposta mais ampla Histórica/Historiografia da Linguística Brasilei-
ra (1994): A Linguística no Brasil: estórias e histórias em primeira pessoa do singular.

“Historiographia Linguistica in Terra Brasiliensi”: Um depoimento de Leuven para o Brasil


21
da linguística brasileira.12 Eles mostram como a história anda de mãos dadas
com pequenas histórias, ou ‘estórias’ (cf. ALTMAN, 2012).
Como parte de seus esforços para institucionalizar a historiografia da lin-
guística no Brasil, Cristina investiu tempo e energia consideráveis na fundação,
em 1993, na Universidade de São Paulo (USP), de um grupo de estudo sobre
historiografia linguística; em 1994, criou o Centro de Documentação em His-
toriografia Linguística, CEDOCH. O Centro logo se tornou a força motriz do
trabalho histórico-linguístico no Brasil, por meio da organização de encontros
regulares13 e do seu envolvimento na publicação de números de revistas temá-
ticas dedicadas à historiografia da linguística. Desde sua criação, o CEDOCH
publicou boletins; recentemente foi criada uma série de monografias (Cadernos
do CEDOCH).

4. Da linguística brasileira ao estudo das línguas brasileiras


Além disso, Cristina explorou novos domínios de pesquisa em historiogra-
fia linguística para si própria e para um número cada vez maior de alunos
(e, mais tarde, alunos dos seus alunos). De 2000 a 2004, Cristina dirigiu o
projeto de pesquisa Historiografia da Linguística Brasileira: ‘Nossa língua e
essoutras’: uma historiografia da diversidade linguística; e em 2006 iniciou
um projeto bem definido sobre a historiografia de um tema linguístico-des-
critivo, ou seja, a história do substantivo em linguística brasileira (A emer-
gência do sintagma nominal na tradição americanista brasileira. Projeto de
documentação linguística e historiográfica).
Os interesses de pesquisa de Cristina não se limitaram à linguística dos
séculos XIX e XX. Profundamente ligada ao seu país de origem e à impressio-
nante riqueza de seu patrimônio linguístico, e profundamente marcada pela
leitura da literatura linguístico-antropológica sobre as línguas nativas do Bra-
sil, Cristina embarcou na historiografia do estudo das línguas indígenas do
Brasil. Em 1996 ela apresentou um artigo piloto na 7a. Conferência Interna-
cional sobre História das Ciências da Linguagem (ICHoLS) em Oxford: “From
‘Insula Vera Crux’ to ‘Terra Brasiliensis’. History, (Hi)stories and Historiography
of Brazilian Linguistics” (cf. ALTMAN, 1999b), e em 2004 organizou, na USP,

12
V. Altman (1996b) para uma apresentação geral; para exemplos de Depoimentos, v. Altman ( 1999c,
2000, 2001, 2002).
13
Especialmente os regulares “MiniEnapol de Historiografia Linguística”.

22 Pierre Swiggers
o segundo “International Conference on Missionary — Colonial Linguistics
(1492-1850)”, no qual foram apresentados muitos trabalhos sobre a história
do estudo das línguas nativas do Brasil14. Em 2005-2006, Cristina dirigiu o
projeto de pesquisa Para uma história das práticas linguísticas. A descrição das
línguas gerais sul-americanas abriu o caminho para um projeto abrangente
de documentação e pesquisa, coordenado por Cristina e Olga Coelho: Docu-
menta Grammaticae et Historiae. Projeto de documentação linguística e histo-
riográfica. O folheto de uma exposição15 descreve o projeto da seguinte forma:

O Documenta Grammaticae et Historiae: Projeto de Documentação Linguís-


tica e Historiográfica (XV-XIX) destina-se à constituição de um banco de
dados que reúna: 1) versões eletrônicas de textos representativos da tradição
gramatical ibérica; 2) um conjunto de dados externos que contextualizem es-
ses textos; e 3) a metalinguagem que, historicamente, tem caracterizado essa
tradição. Organizando-se em torno de seis línguas descritas ao longo de cinco
séculos, seja na Ibéria ou em territórios colonizados da África, da América
e da Ásia, o projeto Documenta tem requerido, por um lado, um acurado
processo de seleção, localização, organização, digitalização e contextualiza-
ção das fontes e, por outro, o desenvolvimento de soluções (tecnológicas e
historiográficas) que viabilizem a elaboração de um dicionário de metatermos
gramaticais extraídos dos textos-fonte.

No Memorial apresentado por ocasião de seu concurso de Professor Titu-


lar em 2007 (ALTMAN, 2007), Cristina já podia relatar os primeiros resultados
importantes obtidos nesse domínio de investigação recentemente explorado
(que pertence ao campo recentemente estabelecido da linguística missionária
[e colonial]; cf. Altman, 2008). Nessa altura, os esforços de Cristina para ins-
titucionalizar a historiografia linguística tinham recebido o devido reconheci-
mento sob a forma de ‘apoio logístico’: o CEDOCH recebeu espaço para re-
cursos bibliotecários e administração na Casa de Cultura Japonesa na USP.16
O projeto de documentação linguística e historiográfica é hoje um esforço
coletivo no qual participam vários colegas e ex-alunos de Cristina. O projeto,
14
Os textos da conferência foram publicados em Altman; Zwartjes (ed., 2005).
15
V. abaixo nota 16. Uma descrição completa do projeto pode ser vista em Altman (2007).
16
Na Casa de Cultura Japonesa, entre 17-19 de outubro de 2017, uma celebração (com apresentações e
sessões de comunicação) foi organizada em homenagem a Cristina; o evento foi uma iniciativa de Olga
Coelho.

“Historiographia Linguistica in Terra Brasiliensi”: Um depoimento de Leuven para o Brasil


23
ainda em andamento, é um empreendimento de longo prazo (ALTMAN; COE-
LHO, 2006-), dada a quantidade de documentação a ser reunida e analisada.17

5. Conclusão
É certo que é um pouco inapropriado falar de uma “conclusão” sobre o ensino
e a pesquisa de Cristina: professora inspiradora, orientadora de dissertações e
teses e organizadora científica, colega infalivelmente solidária e pesquisadora
estimulante do pensamento, Cristina explora continuamente, e exorta estu-
dantes e colegas a explorar, mais e melhores caminhos de pesquisa. Desde o
seu trabalho de doutorado, sua pesquisa, que beira a historiografia linguística,
a história cultural, a metodologia e a epistemologia da ciência, tem avançado
muito além do Brasil18, e muito além do período contemporâneo, chegando ao
início do Período Moderno. Além disso, o trabalho de Cristina está presente
de forma proeminente no de seus ex-alunos e colegas de trabalho. É indiscu-
tível que o seu ensino e a sua pesquisa já têm uma história própria.

Referências
ALTMAN, Cristina [Altman, Maria Cristina Fernandes Salles]. Unificação e diversificação na linguística:
pesquisa documental de produção linguística brasileira contemporânea (1968—1988). Tese apresentada
à área de Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1993.
ALTMAN, Cristina. A Pesquisa Linguística no Brasil (1968—1988). São Paulo: Humanitas, 1998. [2. ed., 2004]

17
Um dos destaques do projeto de divulgação científica (em interação com o CEDOCH) foi a organi-
zação de uma exposição sobre “O conceito de gramática na tradição de descrição ibero-americana do
século XV ao XIX”, com cópias originais de obras que foram marcos na história da linguística latino-
-americana, e em particular da linguística luso-brasileira, a saber:
Elio Antonio de Nebrija, Gramática castellana, 1492.
Fernão de Oliveira, Grammatica da Linguagem portugueza, 1536.
João de Barros, Grammatica da língua portugueza, 1540.
José de Anchieta, Arte de grammatica da lingua mais usada na costa do Brasil, 1595.
Amaro de Roboredo, Método grammatical para todas as linguas, 1619.
Pedro Dias, Arte da lingua de Angola, 1697.
Jerónimo Contador de Argote, Regras da lingua portugueza, espelho da lingua Latina, 1721.
Antonio José dos Reis Lobato, Arte da grammatica da lingua portugueza, 1770.
Antonio de Morais Silva, Epitome da Grammatica Portugueza, 1806.
Jerónimo Soares Barbosa, Grammatica philosophica da lingua portugueza, 1822.
Andrés Bello, Gramática de la lengua castellana destinada al uso de los americanos, 1847.
Julio Ribeiro, Grammatica Portugueza, 1881.
Maximino Maciel, Grammatica Descriptiva, 1894.
18
Cristina coorganizou a conferência paulista sobre o legado do pensamento de Saussure, realizada
em São Paulo em outubro de 2013; recentemente, ela organizou, com Lygia Testa-Torelli, um volume
temático sobre o Cours de Linguistique Générale de Saussure (ALTMAN; TESTA-TORELLI (ed.), 2017).

24 Pierre Swiggers
ALTMAN, Cristina. Linguistic Research in Brazil (1968—1988). In: Jankowsky, K. (Ed.). Multiple Perspecti-
ves on the Historical Dimensions of Language. Münster: Nodus, 1996a. p. 163-170.
ALTMAN, Cristina. Memórias da Linguística na Linguística Brasileira. Revista da ANPOLL, n. 2, p. 173-
189, 1996b.
ALTMAN, Cristina. 1999a. Between Structure and History: The Search for the Specificity and the Originali-
ty of Brazilian Linguistic Production. In: Joseph J.; Niederehe, H.-J.; Embleton, S. (Ed.). The Emergence
of the Modern Language Sciences: Studies on the Transition from Historical-Comparative to Structural
Linguistics in Honour of E.F. Konrad Koerner. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1999a. p. 245-257.
ALTMAN, Cristina. From ‘Insula Vera Crux’ to ‘Terra Brasiliensis’. History, (Hi)Stories and Historiography
of Brazilian Linguistics. In: Cram, D.; Linn, A.; Nowak, E. (Ed.). History of Linguistics 1996. Amster-
dam/Philadelphia: J. Benjamins, 1999b. p. 71-80.
ALTMAN, Cristina. Sílvio Elia, por Sílvio Elia. [Editado a partir de entrevista concedida por S.E.]. Boletim
do CEDOCH, n. 4, p. 33-46, 1999c.
ALTMAN, Cristina. Aryon Rodrigues, por Aryon Rodrigues. [Editado a partir de entrevista concedida por
A.R.]. Boletim do CEDOCH, n. 5, p. 9-28, 2000.
ALTMAN, Cristina. Ataliba de Castilho, por Ataliba de Castilho. [Editado a partir de entrevista concedida
por A. de C.]. Boletim do CEDOCH, n. 6, p. 11-53, 2001.
ALTMAN, Cristina. Depoimento de Carlos Franchi em ‘primeira pessoa do singular’. [Editado a partir de
duas entrevistas concedidas por C.F.]. Revista do GEL, nº especial Em memória de Carlos Franchi (1932-
2001), p. 23-35, 2002.
ALTMAN, Cristina. Memorial. [Apresentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Univer-
sidade de São Paulo, como exigência parcial para o Concurso de Professor Titular junto ao Departamento
de Linguística, área de Historiografia da Linguística]. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007.
ALTMAN, Cristina. Colonialism, Scientific Expeditions and Linguistics in 19th-century Brazil. In: Kibbee,
D. (Ed.). History of Linguistics 2005. Amsterdam: J. Benjamins, 2008. p. 212-227.
ALTMAN, Cristina. História, estórias e historiografia da linguística brasileira. Todas as Letras, n. 14, v.1, p.
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ALTMAN, Cristina; COELHO, Olga. Documenta Grammaticae et Historiae. Projeto de documentação lin-
guística e historiográfica (séculos XVI—XIX). São Paulo: CEDOCH — USP, 2006, [www.fflch.usp.br/dl/
documenta].
ALTMAN, Cristina; TESTA-TORELLI, Lygia (Ed.). Por ocasião do centenário do Curso de Linguística Geral
(1916) (= Cadernos de Historiografia Linguística do CEDOCH, vol. 2). São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2017.
ALTMAN, Cristina; ZWARTJES, Otto (Ed.). Missionary Linguistics II / Lingüística Misionera II. Orthogra-
phy and Phonology. Amsterdam: J. Benjamins, 2005.
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ed. 1970]
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Paulo: Perspectiva, 1987.
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LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. (Ed.). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. Trad.: Octavio
Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1979.
MURRAY, Stephen O. Group Formation in Social Science. Carbondale-Edmonton: Linguistic Research, Inc., 1983.
MURRAY, Stephen O. Theory Groups and the Study of Language in North America: A Social History. Ams-
terdam-Philadelphia: J. Benjamins, 1994.

“Historiographia Linguistica in Terra Brasiliensi”: Um depoimento de Leuven para o Brasil


25
UMA TRAJETÓRIA
Quando terminei minha tese de
doutorado na Universidade de Nij-
megen, em 1995, mudei meu foco da

DE PROJETOS E poesia bilíngue andaluza medieval


para a História da Linguística, prin-

COOPERAÇÕES
cipalmente a obra do padre espanhol
1 Pedro de Alcalá, autor do primeiro
dicionário e gramática missioná-
ria impressa. Para contextualizar os
Otto Zwartjes seus escritos, a sua metodologia e as
suas abordagens, precisei alargar o
meu foco. Incluí no meu corpus as
primeiras gramáticas escritas em espanhol e português de línguas “exóticas”,
como o Quechua (1560), escrito por Domingo de Santo Tomás, Aymara, com-
posto por Ludovico Bertonio (1603 e 1612), Nahuatl, de Andrés de Olmos
(1547), Alonso de Molina (1571), Antonio del Rincón (1595), e a gramática
de José de Anchieta do Tupinambá (1595), a língua indígena mais usada na
costa do Brasil.
Durante um workshop organizado na Universidade de Nijmegen por
Kees Versteegh, fiquei impressionado com outros estudiosos que trabalha-
vam com diferentes tradições (árabe, hebraico, copta, siríaco, greco-latina),
e para mim era óbvio que compartilhávamos tantas questões de pesquisa.
Como eu era um recém-chegado neste período comecei a conversar com
um dos participantes, Adel Sidarus (Universidade de Évora) que me sugeriu
um nome de uma estudiosa brasileira que trabalhava nesta área e que já ti-
nha estabelecido seu nome durante vários eventos pioneiros, sessões especiais
dedicadas à linguística missionária no ICHOLS, mas também com contribui-
ções para outras conferências importantes dos anos 1990 do século XX, como
ANPOLL, ALFAL, NAAHoLS, Henry Sweet Society, SEHL, e muitas outras.
O nome desta brasileira era Cristina Altman. Depois do meu projeto de
pós-doutorado na Universidade de Nijmegen, mudei-me para a Universidade
de Oslo em 1999. Já tinha contato regular por correio com Cristina Altman
há alguns anos, mas em 22 de maio de 2000, ela me convidou para visitar a
1
Tradução de Ronaldo de Oliveira Batista (UPM, CNPq) e Antonio Ackel (PG-DLCV-USP).
Universidade de São Paulo, a fim de dar uma palestra, intitulada “As gramáti-
cas das línguas do Brasil nos séculos XVI e XVII e as gramáticas hispânicas”.
Na Noruega trabalhei de perto com Even Hovdhaugen, mas, geralmen-
te, o número de estudantes participantes dos meus seminários de pesquisa
nunca ultrapassou o número de cinco. Quando vim para São Paulo, fiquei
impressionado, não só pelo número de alunos e colegas, mas também pelo
entusiasmo do grupo, suas boas perguntas, o nível, a sólida formação em me-
todologia e, por fim, mas não menos importante, o bom ambiente e a atitude
aberta dos membros do grupo paulistano. É óbvio que o clima positivo foi o
resultado do entusiasmo de sua coordenadora, Cristina Altman, que fundou
esse grupo de estudos em historiografia linguística em 1994.
Com o próprio Hovdhaugen, que visitou a Universidade de São Paulo
várias vezes, comecei a trabalhar no que resultou na fundação do OsProMil
(Projeto Oslo de Linguística Missionária), visando diversos projetos de mes-
trado, doutorado e pós-doutorado, financiado pelo Conselho Norueguês de
Pesquisa. Uma das ideias foi organizar uma conferência internacional em
Oslo em 2003, onde estudiosos apresentaram comunicações sobre fontes mis-
sionárias em todo o mundo. O futuro ainda não estava claro, mas quando
terminei meu discurso após o jantar no centro de conferências Holmenkol-
len, de repente vi Cristina Altman de pé, pronunciando as palavras que ja-
mais esquecerei: “Próximo ano em São Paulo”. Eu coorganizei com Cristina
Altman a Segunda Conferência Internacional sobre Linguística Missionária
(Colonial) (os trabalhos selecionados desta conferência apareceram na série
SiHoLS de John Benjamins em 2005). Graças ao entusiasmo de Cristina, esta
iniciativa teve um futuro; estas conferências ainda existem.
Logo depois, comecei a trabalhar mais de perto com Cristina Altman,
que veio para Amsterdã como pesquisadora visitante. Como coordenado-
ra do Centro de Documentação em Historiografia Linguística (CEDOCH/
USP) desde 1994, Cristina Altman teve a experiência em documentação his-
toriográfica, que foi posteriormente estabelecida e desenvolvida em um de
seus projetos intitulado Documenta Grammatica et Historiae (Projeto de do-
cumentação linguística e historiográfica), que, entre outros objetivos, visa a
criação de um corpus de textos representativos acessível eletronicamente. O
grupo de pesquisa de Cristina Altman e OsProMil compartilham interesses
comuns: entre esses, avançar no estudo, análise e compreensão das primeiras
descrições modernas das línguas não industriais no mundo colonial espanhol

Uma trajetória de projetos e cooperações


27
e português. Os grupos de pesquisa concentram-se na pesquisa de todos os
aspectos das fontes linguísticas missionárias (gramáticas, dicionários), des-
crevendo e analisando as técnicas descritivas subjacentes ao pensamento lin-
guístico e avaliando as possibilidades e as deficiências do modelo gramatical
tradicional greco-romano.
Durante o seu período sabático de investigação como visitante na Uni-
versidade de Amsterdã, tive a oportunidade de trabalhar em estreita colabo-
ração com Cristina Altman no projeto ROLD (Revitalising Older Linguistic
Documentation), que inclui não só fontes missionárias, mas também qual-
quer fonte pré-moderna que seja relevante para a história da linguística e em
um projeto sobre terminologia linguística.
Quando os alunos se aproximam de mim com o plano de escrever sua
tese sobre Linguística Missionária, eu geralmente lhes dou uma lista de fontes
secundárias. Na lista de estudos recomendados, incluo sempre os artigos de
Altman “Da Insula Vera Crux”, “Artigos e pronomes na tradição linguística”,
“Colonialismo, expedições científicas”, entre outros. É óbvio que as atividades
de Cristina Altman não se referem exclusivamente à Linguística Missionária.
Ela ensinou, investigou e publicou também trabalhos em outras áreas, como
linguística geral, pragmática e história da linguística brasileira.
Quando fui convidado em 2018 novamente para o grupo de pesqui-
sa (MINI-ENAPOL), foi para mim um grande prazer ver que o entusiasmo
nunca diminuiu. Na plateia, pude ver bons colegas que já havia conhecido em
2000, os “Nachwuchs” de Cristina Altman, mas também alunos dos alunos
de Altman, e a mesma atmosfera positiva na sala de aula.
Nunca esquecerei o conselho de Adel Sidarus para entrar em contato
com Cristina Altman, que resultou numa cooperação sempre frutífera e esti-
mulante no passado, no presente e no futuro.

28 Otto Zwartjes
PARTE II
QUESTÕES
EM HISTORIOGRAFIA
DA LINGUÍSTICA
HISTÓRIA E
Introdução
Ao abrir as reflexões e dire-

HISTORIOGRAFIA DA
trizes propostas neste livro,
o mapa de orientação que
se oferece aos leitores tem

LINGUÍSTICA: UM
como objetivo apresentar o
que se compreende como o
campo da Historiografia da

MAPA DE ORIENTAÇÃO Linguística ou Historiogra-


fia Linguística (nos termos
correntes em inglês Histo-
Ronaldo de Oliveira Batista riography of Linguistics ou
Linguistic Historiography1).
Esse ramo dos estudos da
ciência da linguagem (ins-
titucionalizado de fato a partir da década de 1970 por autores americanos e
europeus) tem como objetivo elaborar narrativas interpretativas e críticas (pelo
menos como ideal) a respeito da elaboração, do desenvolvimento e da recepção
de ideias sobre a linguagem humana e as línguas2.
O objeto analítico da Historiografia da Linguística (doravante HL) é a
história da linguística, entendida esta como as evidências que nos conduzem
a eventos que constituem um amplo e diversificado conjunto de reflexões
sobre a linguagem e as línguas (seja na forma de instrumentos linguísticos3
como gramáticas e dicionários, seja na forma de especulações filosóficas ou
mesmo de saberes populares, entre outras possibilidades)4.

1
Como afirma Batista (2013, p. 16): “Não é isenta de discussões a nomeação da área como Historiografia da
Linguística. [...] Tal discussão não é aqui retomada [...], e considera-se a denominação da área de pesquisa
que aqui se explicita como de fato Historiografia Linguística ou Historiografia da Linguística sem fazer dis-
tinções entre as duas formas de nomeação, como faz Koerner (1995) ao comentar sobre os termos Linguistic
Historiography e Historiography of Linguistcs. A perspectiva que se procura delinear articula-se em diálogos
com estudos que se denominam parte de áreas reconhecidas como História das Ideias Linguísticas, História
da Linguística, História dos Estudos sobre a Linguagem ou, ainda, História do Conhecimento Linguístico”.
2
Para informações sobre a constituição histórica do campo da HL, v. Altman (1998, 2019), Batista (2013),
Swiggers (2019).
3
A expressão instrumentos linguísticos refere-se a obras que têm por finalidade, em perspectiva des-
critiva, histórica, pedagógica ou explicativa (sem que uma necessariamente exclua a outra), descrever,
analisar, interpretar, catalogar dados e fenômenos linguísticos sobre as línguas.
4
“História e Historiografia da Linguística têm, pois, estatutos e dimensões diferentes. Principalmente
não são coextensivas. Suas relações são comparáveis àquelas existentes entre uma gramática descritiva
Para essa apresentação introdutória do campo que pretende reconstruir
interpretativamente (e não apenas descrever em forma de crônica5) as ideias
linguísticas6, este capítulo compreende a seguinte trajetória, configurando
o mapa pretendido: em primeiro lugar, trata-se do conceito polissêmico de
história e da questão interpretativa do registro historiográfico; em segundo
lugar, trata-se da noção de ciência e, especificamente, da ciência da lingua-
gem; na sequência, definições e modos de procedimento metodológico da
pesquisa em HL são explicitados; uma conclusão reflete sobre a necessidade
e importância da HL como disciplina e campo do conhecimento7, principal-
mente na formação dos profissionais de letras, dos estudos da linguagem/
comunicação e da filosofia da linguagem.

1. História: ninguém entra num arquivo desarmado8


Palavra polissêmica, história pode referir-se a diversos significados, desde aquele
mais restrito a um termo conceitual até aqueles de uso mais popular (como a
referência a um acontecimento cotidiano quando alguém nos diz: “preciso te
contar uma história”). Desde um dos marcos da reflexão historiográfica ociden-
tal, o grego Heródoto (485-425 a.C.), a polissemia da palavra tem sido objeto de
considerações, nas quais o posicionamento mais adotado é assumir essa instabi-
lidade semântica e entender que o significado de história que nos interessa aqui
é o de conjunto de fatos e eventos situados num espaço e num tempo.
Para dar conta de outro alcance semântico da palavra, como descrição,
relato e narração de acontecimentos, será adotado o termo historiografia, que
em sua constituição morfológica retoma a noção de escrever sobre a história.

e a língua que ela descreve [...]. Assim como o linguista não esgota (nem pretende esgotar) a língua sob
descrição em toda sua complexidade, o historiógrafo também efetua um recorte sobre o continuum his-
tórico, cujos fatos procura compreender e reconstruir.” (ALTMAN, 2019, p. 38)
5
Para uma discussão em língua portuguesa sobre essa distinção, v. Batista (2013) e diferentes textos em
Batista, org. (2019).
6
Sem vinculação teórica e metodológica restrita com a área reconhecida como História das Ideias Lin-
guísticas, entende-se por ideias linguísticas reflexões, descrições e explicações sobre dados e fenômenos
linguísticos. Para uma explanação sobre os campos, v. Leite (2019).
7
“Olhando para o passado recente da pesquisa historiográfica em linguística, pode-se dizer que muito
trabalho tem sido feito no campo, nas últimas décadas, no sentido de criar as condições necessárias ou
suficientes para uma compreensão (mais) adequada das formas de conteúdo (dos tipos de textos, tipos de
técnicas e abordagens), das configurações contextuais (ou seja, autores, instituições, entidades políticas,
contextos socioculturais e político-econômicos, situações linguísticas) e da dimensão dinâmica [...] do
conhecimento linguístico.” (SWIGGERS, 2019, p. 73)
8
A nomeação do item retoma, com substituição lexical, a expressiva afirmação de Aviezer Tucker, em
Our Knowledge of the Past, de que um historiador nunca entra nu em um arquivo (TUCKER, 2004).

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


31
Não é demais lembrar que historiadores clássicos que fundaram nossa
reflexão ocidental sobre o passado, como os gregos Heródoto e Tucídides (c.
460-400 a.C.), talvez tenham resolvido o problema ao apontar que a história
mesmo só existe quando é narrada.

1.1 O trabalho do historiador/historiógrafo9

Na feliz metáfora de Foucault em A arqueologia do saber (2008[1969]), recu-


perada pelo historiógrafo da linguística Pierre Swiggers (1991), o historiador/
historiógrafo é uma figura intelectual que compartilha algo do arqueólogo
no exercício de sua função. Em termos gerais (e correndo o risco da sim-
plificação), o arqueólogo é aquele que a partir de fragmentos (como o de
um vaso, de um afresco, de uma habitação) reconstrói interpretativamente
modos de vivência de uma sociedade e sua cultura. De algo que parece ser
sem importância, depositado há séculos debaixo de camadas de solo, terra,
ruínas, o arqueólogo ilumina nosso conhecimento do passado, com suas pre-
missas teóricas e ferramentas metodológicas, interpretando tendo por base as
evidências que coletou.
Pois bem, a tarefa do historiador/historiógrafo é, mutatis mutandis, seme-
lhante. A partir de dados e evidências concretas, que ele encontra nos arquivos
e fontes históricas (em uma documentação escrita, visual ou oral que lhe é sua
matéria-prima de reflexão) uma trajetória histórica é delineada em tom interpre-
tativo. Do que ficou do passado se reconstroem possibilidades de compreensão
dos fatos e eventos característicos de uma época que tiveram, de alguma manei-
ra, impacto (seja no passado, seja no presente daquele que analisa a história).

1.2 A narrativa historiográfica


A elaboração de uma narrativa historiográfica é feita quando o historiador/
historiógrafo, a partir de suas fontes (que devem ser o mais diversificadas
possível para dar conta da complexidade dos fatos históricos e não assumir

9
Para seguir com rigor a distinção feita no parágrafo precedente, o historiógrafo (termo a par de histo-
riografia) é aquele pesquisador que descreve e interpreta a história. No entanto, não se pode ignorar o
massivo uso do termo historiador para caracterizar essa figura intelectual. Em nossas reflexões, como
é costume na HL, vamos manter a distinção entre história (conjunto de fatos e eventos) e historiografia
(trabalho de construção de uma interpretação sobre fatos e eventos históricos). Assim, também como
usual na HL, adotaremos o termo historiógrafo para aquele envolvido na atividade historiográfica. Antes
de delinear especificamente o campo historiográfico em linguística, usaremos o par historiador/histori-
ógrafo para referência ao pesquisador.

32 Ronaldo de Oliveira Batista


uma única perspectiva em sua interpretação10), define quais são as premissas
de seu trabalho: o objetivo de seu olhar analítico sobre o objeto selecionado;
as perguntas que fará para suas evidências; o conjunto heterogêneo de fontes
que buscará; a seleção de materiais secundários que irão referendar ou con-
frontar seus posicionamentos críticos.
Esse conjunto de premissas coloca em jogo uma velha questão histo-
riográfica: a objetividade e a subjetividade dos registros e interpretações dos
eventos que constituem uma história (cf., entre outros, SCHAFF, 1995[1971];
PUCCI, 2016; TUCKER, 2004; PROST, 2012).
A disciplina história — como todas as disciplinas, ciências e campos do
conhecimento — passou por transformações ao longo do tempo, motivadas
por vários fatores. Entre eles, o diálogo com o clima de opinião (a atmosfera
social, política, econômica, intelectual e cultural) de cada época em que se
constituíram fundamentos teóricos e práticos para a atividade de reconstru-
ção do passado (e mesmo do presente).
Na tradição do século XIX, que de fato institucionalizou (em termos aca-
dêmicos como se compreende atualmente) a história como campo de conhe-
cimento das ciências humanas e disciplina educacional, o registro de fatos do
passado e a interpretação histórica eram considerados sob uma perspectiva
positivista e objetiva11. O registro histórico deveria obedecer com rigor à busca
pela verdade dos fatos e por um retorno objetivo, sem interferência do ponto
de vista do historiador/historiógrafo, aos eventos que se consideraram funda-
mentais para a trajetória de uma nação, de uma sociedade e de uma cultura.
A historiografia moderna do século XX, principalmente após a década
de 1960, reviu esse pressuposto objetivo do registro histórico, sempre em
busca de uma verdade incontestável12. Passou-se, então, a compreender o

10
Sobre a problemática das fontes, v. Schaff (1995[1971]) e, em específico na História das Ciências, Kragh
(2001).
11
Para uma reflexão crítica, cabe retomar Pucci (2016, p. 49-50): “Ajena al positivismo en cualquiera de
sus versiones, la disciplina histórica construyó sus normas epistémicas en paralelo con el desarollo de la
ciencia y de las ideas modernas, a partir de la revolución científica de los siglos XVI y XVII. La ruptura
epistemológica que marcó ese renacimiento de la historia como disciplina moderna implicó la sustición de
una epistemologia basada en el principio de autoridad, o en la fe, por una epistemología fundada en la do-
cumentacíon”. [“Sem conhecer o positivismo em nenhuma de suas versões, a disciplina histórica construiu
suas normas epistêmicas paralelamente ao desenvolvimento da ciência e das idéias modernas, a partir da
revolução científica dos séculos XVI e XVII. A ruptura epistemológica que marcou esse renascimento da
história como uma disciplina moderna implicava a substituição de uma epistemologia baseada no princípio
da autoridade, ou na fé, por uma epistemologia fundamentada na documentação”, tradução livre]
12
O limite temporal na década de 1960 não implica que jamais tenha havido em tempos anteriores refle-
xões sobre a natureza objetiva ou subjetiva das interpretações historiográficas.

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


33
registro e a interpretação de fatos do passado e do presente por meio de
um posicionamento que destaca o papel ativo do historiador/historiógrafo,
que não seria mais um mero observador dos fatos, extremamente vinculado
a uma suposta verdade das fontes. Ressaltando um diálogo interdisciplinar
com diferentes campos das ciências humanas e revigorando a história por
meio do resgate de fatos não canônicos, negados pela pressão de uma história
política e nacional (como a história das mulheres, dos cidadãos comuns, das
ideias, da imprensa, entre outras), uma nova forma de interpretar o passado
e o presente surgiu.
Entrou em cena a consideração de que o historiador/historiógrafo não
atua em termos de objetividade, mas impelido (ora mais, ora menos) por sua
formação, seus interesses e seus recortes seletivos na busca pela interpretação
dos fatos históricos. A interpretação é localizada em um ponto de vista, que
consequentemente faz com que uma história, no sentido de narração inter-
pretativa, seja apenas mais uma em meio a tantas outras possíveis.
Na esteira desse posicionamento, o questionamento das fontes e evidên-
cias passa a ser crucial. Não se considera mais o documento histórico como o
único detentor de uma verdade, e a variedade de fontes coloca-se como uma
das premissas do trabalho historiográfico13.
De qualquer modo, se há a busca por uma verdade do relato, uma vez
que os discursos historiográficos não são ficção nem narrativa literária, há
também uma tensão a respeito dos limites dessa mirada, em meio a olhares
sobre a história, essencialmente resultantes de um ponto de vista assumido a
partir de determinados pressupostos norteadores da análise historiográfica.
Cabe lembrar que a noção de historiografia como narrativa (narrar im-
plica um ponto de vista) coloca-se em possível oposição em relação a uma
visão do processo histórico sem uma ancoragem definida em pressupostos
explícitos. Dessa maneira, a verdade passa a ser um elemento importante
quando o historiógrafo articula seu trabalho em direção à objetividade, e foi
essa a visão histórica construída sobre o historiador e seu ofício, como pon-
tua Dosse (2003, p. 23) ao afirmar que na constituição histórica da atividade

13
“El modelo de conocimiento histórico se funda en una vasta gama de documentos que combinam
al mismo tiempo todas las gradaciones de la opacidad y de la claridad, y nos permiten construir un
conocimiento nunca perfecto del pasado, pero el único posible.” (PUCCI, 2016, p. 51) [“O modelo de
conhecimento histórico é baseado em uma vasta gama de documentos que combinam todas as gradações
de opacidade e clareza ao mesmo tempo e nos permitem construir um conhecimento nunca perfeito do
passado, mas o único possível.”, tradução livre]

34 Ronaldo de Oliveira Batista


se imprimiu ao ethos daquele que trata da história a perspectiva da verdade
e da objetividade: “O historiador é então um verdadeiro clínico cuja qualidade
de diagnóstico é proporcional à proximidade que ele pode reivindicar com seu
objeto de estudo”.
No entanto, essa objetividade é discutível, pois parte de um lugar dis-
cursivo definido. O que podemos dizer é que a reconstrução historiográfica
do processo histórico, tendo em vista sua interpretação, se dá em meio aos
efeitos de sentido da objetividade, em nome de uma análise possível de se
sustentar de forma autônoma e coerente.
De qualquer modo, reconhece-se, como o fez Schaff (1995[1971]), que
haverá sempre uma tensão, de natureza talvez insolúvel, entre a oposição sub-
jetivo vs. objetivo na elaboração das narrativas históricas, exigindo do histo-
riador/historiógrafo olhar atento diante de possíveis desvios e incongruências
de julgamentos por demais pessoais e enviesados.
Compreende-se que a elaboração de uma narrativa historiográfica é
circunscrita a seu momento histórico e aos objetivos do historiador/historió-
grafo. Essa perspectiva implica ressaltar o caráter de narratividade de uma
análise e de um texto históricos, produtos da seleção e da interpretação de
um historiador que operou recortes e definiu parâmetros de análise.
Uma atividade historiográfica, portanto, que precisa ser compreendida
em meio ao discursivo da produção intelectual (resultante de um ponto de
vista) e à necessidade de critérios metodológicos de observação que garan-
tam a natureza científica e não enviesadamente pessoal de uma interpretação
sobre eventos da história.
Há, portanto, uma construção dinâmica de um fato histórico (elabora-
do no discurso do historiador/historiógrafo), selecionado e legitimado pela
narrativa historiográfica. Essa visão considera essa narrativa como produto
discursivo, elaborado e construído a partir de propósitos variados daquele
que se coloca na posição do historiador/historiógrafo. Faz-se eco, por conse-
guinte, à reflexão — destacada por Schaff (1995[1971], p. 141) — de Jean-Ja-
cques Rousseau (1712-1778) no Emílio ou Da Educação (1762), para quem
“é inevitável que os fatos descritos na história não sejam a imagem exata dos
mesmos fatos tais como aconteceram: mudam de forma no pensamento do his-
toriador, moldam-se aos seus interesses, tomam a cor dos seus preconceitos”14.

14
Algumas considerações retomam o que foi por mim apresentado em Batista (2018, p. 147-149).

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


35
Seguindo Pucci (2016), pode-se considerar que a historiografia, como
interpretação e crítica, caracteriza-se como atividade intelectual em meio a
uma objetividade relativa, definida a partir dos pontos de vista que vêm a ser
delineados e assumidos por aquele que se dedica a reconstruir eventos e fatos
de uma determinada sociedade e cultura em um eixo temporal definido15.
Com esse posicionamento, evita-se a noção de subjetividade do traba-
lho historiográfico (que muitas vezes nos leva a uma caracterização negativa
desse posicionamento). Em vez do subjetivo, entra em cena a noção da ob-
jetividade relativa, assegurada pelo acesso a fontes e documentos confiáveis
e diversificados. O recurso a uma documentação isenta o historiador/histo-
riógrafo de um aspecto negativo, pois o que interpreta deverá ser legitimado
por suas fontes e pela comunidade intelectual e científica de que faz parte16.
Não se está, desse modo, de maneira alguma no terreno da ficção, mas do
trabalho intelectual sério e controlado teórica e metodologicamente.

2. A ciência e a ciência da linguagem: atividade humana


e pluralidade teórica
A natureza do conhecimento científico não é fixa e imutável. Cada época
histórica elabora suas maneiras próprias de compreender o que é científico e
como se define a prática científica. Não há ciência, portanto, fora de um eixo
temporal essencialmente histórico, por mais que a visão corrente de ciência
como algo objetivo e fruto de momentos de descobertas isoladas ainda per-
maneça no imaginário comum.
De qualquer modo, é possível definir algumas características do tipo de
conhecimento que se considera como científico, principalmente depois da
modernidade, que definiu nos séculos XVII e XVIII concepções de ciência
que, com algumas modificações, ainda se mantêm na contemporaneidade.

15
“Têm surgido muitas propostas no sentido de estabelecer uma definição de objectividade que seja apro-
priada à história. Alguns autores, incluindo pensadores tão diferentes como Max Weber e Karl Popper, têm
defendido um ponto de vista ‘perspectivista’, cujo fulcro é que a formulação de um problema – as questões que
são colocadas, as fontes que são seleccionadas, os factos que são aceites como sendo históricos, etc. – é subjec-
tiva e inacessível a uma crítica racional. Porém, os postulados que têm sido formulados podem ser avaliados
objectivamente, sem que seja necessário aceitar a pespectiva que lhes deu origem.” (KRAGH, 2001, p. 64)
16
“La información está en las fuentes, o no está; en ningún caso el historiador puede inventar la informa-
ción acerca del pasado; puede, sí, llegar a inferir – siguiendo las reglas de la lógica – otros datos a partir
de los datos que proporcionan las fuentes, pero no puede inventar libremente.” (PUCCI, 2016, p. 63) [“A
informação está nas fontes, ou não; em nenhum caso o historiador pode inventar informações sobre o
passado; pode sim inferir — seguindo as regras da lógica — outros dados dos dados fornecidos pelas
fontes, mas não pode inventar livremente.”, tradução livre]

36 Ronaldo de Oliveira Batista


Uma explicação científica é aquela derivada de uma observação de da-
dos e fenômenos, a partir de pressupostos teóricos (reconhecidos como es-
senciais para um grupo de especialidade teórica) e de diretrizes que delimi-
tam o procedimento científico adequado para a teoria em questão.
Recusando uma ideia de ciência como produto de um gênio em seu
momento eureka!, entendemos ciência também como um componente de
uma sociedade e de uma cultura. Os cientistas fazem parte de um organismo
social, reúnem-se em grupos, participam de eventos científicos, articulam-se
entre si em termos de oposição ou contribuição17. A ciência é social no sen-
tido de que endossar ou refutar um procedimento científico é algo que parte
de uma comunidade.
Seguindo com essa perspectiva, ciência não é empreendimento neces-
sariamente relacionado à noção de verdade indiscutível, ainda que o senso
comum insista na atribuição dessa característica à prática científica. Não à toa,
diferentes revistas dedicadas ao conhecimento científico têm denunciado prá-
ticas científicas predatórias (com impacto social) e também práticas científicas
falsas (eliminando, assim, a implicação automática entre ciência e verdade)18.
Nesse espírito é que se compreende a linguística, tal como delineada a
partir de Ferdinand de Saussure no início do século XX (para muitos histo-
riógrafos da linguística esse aspecto científico já estaria presente nos anos
1800), como empreendimento científico. Essa ciência da linguagem tem suas
especificidades, uma vez que se constituiu em muitos de seus campos como
prática científica de diálogo com as ciências humanas, biológicas e exatas.
Essa abertura para confluências contribuiu para que o pluralismo teórico fos-
se uma das marcas mais incisivas da linguística contemporânea.
Entender a linguagem de um ponto de vista científico é estar atento para
essa configuração dinâmica que assumem os diferentes campos da ciência que

17
Batista (2019c) discute como a ciência e os pronunciamentos discursivos dos cientistas definem uma
retórica própria do fazer científico.
18
Podemos citar como exemplo, volumes da revista Pesquisa – Fapesp, publicada pela Fundação de Am-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo. No volume de novembro de 2019, ano 20, número 285, as páginas
iniciais da revista apresentam reportagem sobre legados acadêmicos contestados. O destaque vai para
a prestigiosa instituição inglesa King’s College, que afirmou, após análise de comitê de investigação,
que trabalhos de um de seus mais respeitados pesquisadores (morto há mais de 20 anos) não apresen-
tam resultados confiáveis. O volume de março de 2020, ano 21, número 289, da mesma revista, discute
boas práticas acadêmicas questionando citações manipuladas que têm por objetivo inflar o número de
citações para nomes de pesquisadores. Esses exemplos nos fazem desconfiar de que a ciência é sempre
feita com honestidade, integridade e confiabilidade. Ao contrário, ciência é empreendimento social, em
que os pesquisadores estão em busca de reconhecimento e legitimidade social, mesmo que isso implique
práticas científicas altamente reprováveis.

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


37
procura descrever e explicar dados e fenômenos linguísticos. As concepções de
linguagem/língua e os métodos que permitem chegar a explicações coerentes e
coesas são variados, a ponto de escolas e linguistas demarcarem posicionamen-
tos teórico-metodológicos muitas vezes opostos na linha do confronto.
Naturalmente que mesmo diante dessa pluralidade teórica (que muitas
vezes ecoa em multiplicidade de métodos), há elementos em comum que
permitem conferir unidade para a ciência da linguagem: a descrição e expli-
cação de dados e fenômenos linguísticos a partir de um ponto de vista que
se distancia sobretudo de uma perspectiva prescritivista. Está na esfera de
preocupação dos linguistas a necessidade de compreender o que é a lingua-
gem humana e como ela se manifesta concretamente em diferentes línguas
(em seus sistemas e modos de funcionamento).
A definição da linguística como ciência, no entanto, para a HL, especifi-
camente, não implica a exclusão de um conjunto variado de reflexões, descri-
ções e explicações que foram propostas antes dos séculos XIX e XX. Sob o ter-
mo linguística, agrupam-se abordagens variadas. Teremos, assim, de conside-
rar uma linguística stricto sensu (como a ciência dos séculos XIX, XX e XXI)
e uma linguística lato sensu (toda reflexão/descrição/explicação, em qualquer
domínio intelectual, que tenha por objeto a linguagem e as línguas)19.

3. A Historiografia da Linguística (HL)20


Podemos aprofundar, neste momento, a definição inicial de HL dada na in-
trodução deste capítulo.
O campo e a disciplina dos estudos linguísticos que se preocupa em des-
crever, analisar e interpretar as abordagens (de naturezas diversas, em diferen-
tes materiais, em recortes temporais e sociais diversificados) sobre a lingua-
gem humana e as línguas podem ser mais acuradamente descritos21 como22:

19
“O estatuto de uma disciplina está estreitamente ligado a seu domínio próprio e à constituição, através
da história, desse domínio. Sua delimitação é tanto mais complexa quanto maior for a dificuldade de
se atribuir à disciplina um limite máximo e um limite mínimo de inclusão [...]. Com efeito, a primeira
dificuldade daquele que se lança à tarefa de escrever a história da linguística é estabelecer o que deve ser
incluído no escopo do termo ‘linguística’ – e suas variantes – sem o que qualquer tentativa de historiciza-
ção não encontra seu(s) objeto(s) material(is) de observação e qualquer tentativa de periodização se torna
inexequível. O primeiro desafio do historiógrafo da linguística reside, pois, na explicitação dos limites do
seu domínio e na enumeração dos seus objetos possíveis.” (ALTMAN, 2019, p. 26)
20
Esta seção retoma, com modificações e acréscimos, reflexões presentes em Batista (2013, 2017a/b,
2019b).
21
A indicação desses aspectos já esteve presente em outros textos meus.
22
“Como uma disciplina cientificamente ‘fundamentada’ [...], a Historiografia da Linguística tem de
cumprir princípios, regras e condições de pesquisa científica, assegurando (a) controle dos procedimen-

38 Ronaldo de Oliveira Batista


a) um estudo sistemático, crítico e interpretativo de seu objeto, uma vez que
orientado por critérios metodológicos que devem ser explicitados pelo
historiógrafo da linguística23. A HL caracteriza-se por sua interdisciplina-
ridade, já que para estudar a história do conhecimento sobre a linguagem
é necessário levar em conta um conjunto complexo e variado de saberes
que auxiliem a busca pelo ideal crítico e interpretativo do campo;
b) esse objeto da HL24 é constituído por todo e qualquer conhecimento
elaborado sobre a linguagem e as línguas transmitido por meio de fontes
selecionadas pelo historiógrafo, os seus documentos históricos25. Esse
conhecimento revelado pelas fontes é provisório (já que sujeito a pro-
cessos de recepção ao longo do desenrolar histórico) e contextualizado
historicamente: o conhecimento depende de um contexto específico que
permite que ideias floresçam, circulem e sejam legitimadas no interior
de comunidades específicas;
c) o objeto é captado em quatro dimensões que necessariamente devem
ser articuladas em um trabalho de fôlego e consistente: a produção, o
desenvolvimento, a circulação e recepção das ideias linguísticas;
d) as ideias linguísticas não existem num vácuo absoluto (como muitas
vezes as tradicionais histórias da linguística — com raízes no século XIX
— parecem considerar), pois elas são produto de um agente situado em
um contexto histórico específico em diálogo (em termos de ruptura ou
continuidade) com outros agentes dos saberes sobre a linguagem;
e) o pensamento elaborado sobre a linguagem está sempre circunscrito a
um horizonte de retrospecção e a um clima de opinião específico, isto

tos de investigação, (b) transparência na comunicação dos resultados de pesquisa e (c) verificabilidade
dos resultados formulados.” (SWIGGERS, 2019, p. 56)
23
A partir deste momento, refiro-me ao pesquisador da HL apenas como um historiógrafo, como cor-
rente no campo.
24
“O objeto da Historiografia Linguística é construído, no sentido de que é uma representação dos conhe-
cimentos que temos a respeito da história, com que mantém uma relação de iconicidade parcial. Conse-
quentemente, o objeto varia conforme nossos conhecimentos da história – das diferentes épocas históricas
e dos meios sociais e étnicos diferentes. A pertinência e o valor do acontecimento são funções não apenas do
objeto selecionado, mas, igualmente, do historiógrafo que opera a seleção.” (ALTMAN, 2019, p. 40)
25
“A natureza de uma historiografia linguística, não poderia ser de outra maneira, está diretamente
ligada ao(s) tipo(s) de material a partir do qual se erige. Uma das estratégias, portanto, para circunscre-
vermos seu domínio seria interrogar-nos sobre quais tipos de materiais poderiam lhe servir de fonte. E
esses ultrapassam em muito as formas de conhecimento sobre a linguagem que tradicionalmente se de-
signam por gramáticas, vocabulários ou textos teóricos metalinguisticamente elaborados. Malkiel (1969)
chamou a atenção para autobiografias, memoriais, prefácios, correspondências, resenhas, elenco ao qual
Swiggers (1982) ainda acrescentou os arquivos orais e fotográficos, especialmente no que concerne aos
séculos XIX e XX.” (ALTMAN, 2019, p. 28-29)

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


39
é, relaciona-se com ideias anteriores a seu momento e com demandas
intelectuais, culturais, científicas, pedagógicas de uma época; eventual-
mente, as ideias linguísticas podem estar relacionadas a políticas públi-
cas e fomentação à cultura apropriadas a cada período histórico. Essa
especificidade do campo necessita de um historicismo moderado, pois
o contexto que interessa à HL deve ser considerado em um limite que
auxilie o historiógrafo, que deve ter olhar atento para que não se trate de
aspectos históricos que não colaboram diretamente para interpretações
pertinentes para uma história das ideias sobre a linguagem e as línguas;
f) a HL trabalha com documentos históricos, que constituem a sua evi-
dência26 para as abordagens descritivas e analíticas; esses documentos
são textos escritos tradicionalmente, mas com os avanços tecnológicos
podem também se constituir em material visual e audiovisual.
Em diálogo com o que afirmamos sobre o trabalho em história em geral,
entende-se que essa historiografia, a narrativa sobre a história, é múltipla em
sua configuração, pois diferentes historiógrafos, ao interpretar determinados
documentos, podem optar por diferentes perspectivas de análise27.
O esquema a seguir, apresentado em Batista (2017a/b) e aqui retoma-
do com modificações, auxilia-nos a compreender essa definição do trabalho
do historiógrafo, que recorta aspectos do conjunto de evidências históricas28
para definir seu trabalho interpretativo29:

26
“Historiographic evidence as well comes in all shapes and sizes, including factual, explanatory, and
general propositions found in documents, statistical records, and material objects, such as artifacts or
the boundaries of fields. There are no observation sentences of history in historiography. Historians do
not observe historical events. Historiography is not a study of the past as such, but of the presence effects
(traces, remains, etc.) of the past.” (TUCKER, 2004, p. 92-93) [“A evidência historiográfica também vem
em todas as formas e tamanhos, incluindo proposições factuais, explicativas e gerais encontradas em
documentos, registros estatísticos e objetos materiais, como artefatos ou limites de campos. Não existem
frases de observação da história na historiografia. Os historiadores não observam eventos históricos. A
historiografia não é um estudo do passado como tal, mas dos efeitos da presença (vestígios, restos, etc.)
do passado.”, tradução livre]
27
Como sutilmente aponta Tucker (2004, p. 11): “All historians and reasonable people would agree that
the French Revolution took place in 1789, but their interpretation of it may depend on their nationali-
ty and political opinions”. [“Todos os historiadores e pessoas razoáveis concordariam que a Revolução
Francesa ocorreu em 1789, mas sua interpretação pode depender de sua nacionalidade e opiniões políti-
cas.”, tradução livre]
28
“O essencial [...] é que se tem de estabelecer uma distinção entre ‘factos do passado’ e ‘factos históricos’.
Enquanto no primeiro grupo se inclui tudo o que realmente aconteceu no passado, o segundo respeita
aos dados aceites pelo historiador como sendo fiáveis e de interesse de forma a figurarem na literatura
histórica. Só algumas ocorrências do passado atingem o estatuto ‘histórico’. Esse estatuto é-lhes atribuí-
do pelo historiador. Os dados históricos, em si, não se vão encontrar no passado, mas antes são resultado
de uma interpretação.” (KRAGH, 2001, p. 48)
29
Nesse sentido, o alerta de Aviezer Tucker é bastante relevante: “Historiography makes no observation
of historical events, but presents descriptions of such events in the presence of evidence. There are no gi-

40 Ronaldo de Oliveira Batista


evidências históricas historiografia
- a história —
(captadas pelos documentos o olhar do historiógrafo (a narrativa interpretativa
históricos) (aquele que vai escrever que se escreve sobre as
a narrativa interpretativa evidências históricas,
sobre a história) problematizando-a)

Coloca-se como função, então, interpretar saberes sobre a linguagem


tanto em sua dimensão interna (o que os textos — os documentos históricos
— dizem, como dizem, por que o dizem), quanto em sua dimensão externa
(o contexto histórico em que esses textos são legitimados como parte de um
processo científico e/ou intelectual)30. Em HL, essas dimensões recebem a
denominação de parâmetros internos e parâmetros externos de análise.
Ao primeiro tipo de parâmetro — o interno — interessa a visão de lín-
gua presente nos documentos históricos: o que os agentes de produção, cir-
culação e recepção de ideias linguísticas delimitavam como sua concepção
de língua, sua compreensão dos fenômenos da linguagem e suas práticas de
análise. Seguindo Schlieben-Lange (1993), essa história de feição interna tra-
ta, na verdade, de textos (ou outra materialidade pertinente ao documento
histórico selecionado) e de seus processos de transmissão de conteúdos. Ao
historiógrafo interessam quais questões foram consideradas problemas em
determinada época e quais dessas foram (e como foram) configuradas como
problemas científicos, educacionais, descritivos, filosóficos em recortes tem-
porais específicos.
O segundo tipo de parâmetro — o externo — se preocupa com movi-
mentos dinâmicos de uma prática científica, intelectual, pedagógica (entre
outras) inserida em comunidades de pesquisadores, com diferentes processos
de institucionalização dos saberes e suas vinculações com o clima de opinião
de uma época e sua inserção cultural, social e política mais ampla. Ainda com

ven historical facts that historians can select to compose their narratives more or less objectively. [...] The
immediate, primary, subject matter of historiography is evidence and not events” (TUCKER, 2004, p. 17).
[“A historiografia não faz observação de eventos históricos, mas apresenta descrições de tais eventos na
presença de evidências. Não há fatos históricos que os historiadores possam selecionar para compor suas
narrativas de maneira mais ou menos objetiva. [...] O assunto imediato, primeiro e primário da historio-
grafia é evidência e não eventos.”, tradução livre]
30
“Pessoalmente, não consigo separar a reflexão epistemológica, ou metodológica, sobre o conhecimento
linguístico do momento histórico e do contexto intelectual e social em que ele foi formulado e se desen-
volveu. Tal perspectiva me faz entender como tarefa básica da Historiografia Linguística, por consequ-
ência, a descrição (não normativa) dos princípios e métodos (bem ou malsucedidos) em determinado
momento, inevitavelmente histórico.” (ALTMAN, 2019, p. 32)

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


41
Schlieben-Lange (1993), essa história de feição externa preocupa-se essen-
cialmente com as comunidades argumentativas, com os modos pelos quais
os agentes de produção e recepção de conhecimentos circunscrevem-se em
instituições (e outros modos de convivência) que validam ou não os saberes
em um recorte histórico específico. O aspecto social da produção do conhe-
cimento entra em destaque, em uma articulação permanente entre ideias,
sociedade e história.
Nessa perspectiva de observação, o historiógrafo pode chegar a inter-
pretações que evidenciam como as ações da conduta investigativa e especu-
lativa na ciência, nos estudos gramaticais e lexicográficos, nas concepções
populares correntes em uma época, nas pedagogias e didáticas de ensino de
língua e na filosofia relacionam-se em cadeia implicativa, na qual um po-
sicionamento conduz a outro, ao mesmo tempo em que anula aqueles que
se circunscrevem a outras esferas sociais de prática científica, intelectual e
pedagógica (entre outras).
Como afirmado em Batista (2013, 2017a/b, 2019b), para uma reconstru-
ção historiográfica das ideias linguísticas, pode-se teoricamente considerar
que a história é sucessão alternada de continuidades e descontinuidades31.
Há, portanto, a compreensão de que o desenvolvimento de estudos sobre
a linguagem ao longo do tempo possibilitou a formação de tradições de
pensamento, no sentido de que o conhecimento sobre línguas e linguagem
configurou-se em perspectivas diversas, congregando intelectuais, cientistas,
filósofos em diferentes grupos, promovendo, consequentemente, embates em
torno da manutenção de modos de pensamento.
Assim, um eixo de continuidades históricas se forma quando há adesão
a saberes validados dentro de um campo e que têm reconhecimento de uma
comunidade de pesquisadores (mesmo que não institucionalizados no senti-
do contemporâneo). Constrói-se, desse modo, uma tradição de pensamento.
O processo histórico, nessa perspectiva, constitui-se em termos de preserva-
ção e circulação de uma memória.
31
“A história da linguística divide também nesse ponto a essência da história no geral ao estabelecer que
ela não é nem pura constância, nem pura transformação. Trata-se de algo semelhante, constante que se
modifica, se transforma, se converte no decorrer da história. Nesse piscar de olhos é também considerada
a controvérsia que o escrever da história da linguística dominou nos últimos anos, a saber: se o escrever
da história da linguística deve ser descrito predominantemente sob o ponto de vista da continuidade ou
da ruptura superfluamente. [...] Distinguem-se, assim, atualmente três tipos de história da linguística ou
três histórias parciais: de um lado, as histórias da continuidade em meio das quais se deve novamente
distinguir entre as que neutra e imparcialmente relatam os avanços da ciência [...], e de outro lado, his-
tórias de rupturas [...] que na verdade são levadas a efeito muito parcialmente.” (SCHLIEBEN-LANGE,
1993, p. 136-137)

42 Ronaldo de Oliveira Batista


De maneira complementar, há um eixo de descontinuidades históricas, no
qual prevalecem a diferença, a oposição e a ruptura dentro de um campo de
investigação científica, pedagógica, gramatical ou filosófica (entre outros). Nes-
se caso, o processo histórico se dá em termos de esquecimento e apagamento.
A observação e a análise de movimentos de continuidades e desconti-
nuidades na história dos estudos sobre a linguagem podem nos conduzir à
reafirmação de que paradigmas científicos, propostas pedagógicas e didáticas,
abordagens gramaticais e lexicográficas e teorias filosóficas (e mesmo opiniões
do senso comum) são construções teóricas e especulativas em busca de expli-
cações a respeito da natureza e do funcionamento da linguagem humana.
A imagem a seguir, apresentada em Batista (2017a/b) mas que agora
tem sua configuração visual explicitada em termos explicativos, procura uma
representação visual do que concebemos como o modo de descrever, analisar
e interpretar a história do conhecimento sobre a linguagem.

Essa configuração sintetiza em termos visuais e implicativos elementos que


são considerados em uma pesquisa em HL. Vamos esclarecer esses elementos32:
• A HL [1] se propõe a descrever, analisar, interpretar e narrar (como
produto da atividade historiográfica), a partir da seleção de suas fontes
(os documentos históricos que revelam uma camada documental33 do

32
A indicação dos elementos já esteve presente em outros textos meus sem, no entanto, acompanhar em
termos explicativos a configuração visual proposta.
33
Swiggers (2019, 2020 e também em capítulo neste livro) apresenta o conceito e os tipos de camada per-
tinentes para uma análise em HL.

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


43
conhecimento sobre a linguagem, isto é, o tipo de informação linguís-
tica presente no material sob análise [1.1]), ideias linguísticas (teorias,
descrições, análises, especulações, compilações, entre outras possibilida-
des de formatação de conhecimentos sobre a linguagem e as línguas),
que constituem evidências de fatos de uma história da linguística [2].
• Essa história da linguística pode ser captada em sua dimensão interna
pela observação e análise dos programas de investigação [2.1], termo de
Swiggers (2019), que são modelos abrangentes de compreensão da lin-
guagem e seus fenômenos. Esses programas caracterizam-se pela visão de
língua que assumem (em diálogo constante com a formação de comuni-
dades de pesquisadores que defendem e praticam essa visão) e pela utili-
zação de métodos que permitem captar as características da linguagem e
das línguas. Os programas revelam que o conhecimento sobre a lingua-
gem é formatado em camadas: uma que dá conta dos aspectos teóricos de
uma abordagem linguística (em sentido amplo) — camada teórica; outra
que dá conta dos aspectos técnicos dessas abordagens, a camada técnica.
• As evidências de fatos de uma história da linguística circunscrevem-se a
um contexto externo, mas permanentemente relacionado, às ideias lin-
guísticas. Esse contexto é complexo [2.2], permeado de fatores históricos,
sociais, intelectuais e culturais, que formam uma camada contextual, a
partir da qual se podem analisar aspectos externos que possibilitam a
produção, circulação e recepção de ideias linguísticas. Nessa dimensão
externa, localizam-se as análises sobre as comunidades de pesquisado-
res, denominadas, a partir de Murray (1994), de grupos de especialidade
teórica [2.3], isto é, congregações de pesquisadores e intelectuais per-
tencentes a diferentes centros de investigação e ensino (ainda que seja
possível a existência de pesquisadores independentes) que possibilitam
a institucionalização dos saberes. Esses grupos são comunidades argu-
mentativas, no sentido de que de suas manifestações discursivas consti-
tuem-se como retóricas [2.4] de continuidade ou de ruptura em meio a
necessidades de reconhecimento e validação dos saberes produzidos em
espaços sociais específicos.
• Todos esses elementos só fazem sentido, a nosso ver, em uma historio-
grafia que se caracteriza pelo ideal de problematização [3]. Uma história
de problemas é a que interessa à HL. Nessa perspectiva, os saberes sobre
a linguagem são considerados em suas instâncias de produção, circula-
ção e recepção.

44 Ronaldo de Oliveira Batista


Como alertado em Batista (2013, 2017a/b, 2019b), a reconstrução histo-
riográfica deve estar acompanhada de argumentos que recuperem práticas de
tratamento linguístico, sempre tendo em vista a observação analítica, e não
apenas registros que fazem paráfrases de outras obras, e, desse modo, não
vão além de recontar o que um autor fez, deixando de lado a contribuição
essencial da historiografia: um olhar interpretativo que procura entender as
razões de determinado trabalho apresentar as características que o definem.

4. A HL e seus métodos de análise


A rigor não se pode falar de uma única diretriz metodológica para a rea-
lização de pesquisas em HL. É possível apontar alguns procedimentos que
permitem que o historiógrafo chegue a contento ao ideal de uma historio-
grafia problematizadora. Esta coloca em observação analítica seu documento
histórico, considerado em permanente relação com seu clima de opinião e os
agentes de produção e recepção dos saberes.
Em consonância com o que determina Swiggers (2019), uma pesquisa
em HL delineia-se a partir de três procedimentos globais:
a) a fase heurística: na qual o historiógrafo procura, seleciona e hierarquiza
seus documentos históricos, a partir da definição de um tema e de uma
periodização34, para a constituição de um objeto de análise, acompanhados
de uma seleção de fontes secundárias que servem de apoio para a pesquisa;
também nessa fase os instrumentos metodológicos para a interpretação
são definidos, assim como os limites e alcances do clima de opinião são
estabelecidos para que se possa prosseguir com a próxima fase35;

34
“El conocimiento histórico se propone explicar los eventos del pasado en el tiempo, dimensión tempo-
ral que impone la técnica narrativa de exposición, pese a que algunos filósofos sostuvieran que el tiempo
es una ilusión: el tiempo, con su ineluctable dirección desde el pasado hacia el futuro, gobierna la vida
humana y toda la materia animada e inanimada en el cosmos. Pero no se trata tan sólo de la direcionali-
dad de la flecha del tiempo inscripta en las cosas mismas, puesto que el tiempo interviene en otro sentido
para producir inteligibilidad de los acontecimientos pasados [...].” (PUCCI, 2016, p. 121) [“O conheci-
mento histórico se propõe a explicar os eventos do passado no tempo, uma dimensão temporal imposta
pela técnica narrativa da exposição, apesar de alguns filósofos sustentarem que o tempo é uma ilusão:
o tempo, com sua direção inelutável do passado para futuro, governa a vida humana e toda a matéria
animada e inanimada do cosmos. Mas não se trata apenas da direcionalidade da flecha do tempo inscrita
nas próprias coisas, uma vez que o tempo intervém em outro sentido para produzir inteligibilidade dos
eventos passados [...].”,
​​ tradução livre]
35
“El historiador nunca debe apegarse a una sola fuente primaria, a menos que esté obligado por la ine-
xistencia de otras, circunstancia lamentable que habrá de afectar la calidad del conocimiento producido.
Por el contrario, debe ocuparse de corroborar y contrastar la información obtenida mediante la apelación

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


45
b) a fase hermenêutica: a partir da correlação de vários tipos de conhe-
cimento (em nome do aspecto interdisciplinar do campo), nessa fase
o historiógrafo estabelece, a partir de seus documentos históricos, as
interpretações apropriadas de seu objeto de análise36;
c) a fase expositiva: momento em que o historiógrafo vai definir o formato
de exposição de sua análise; o formato mais comum é o da narrati-
va historiográfica (em termos de relações de causalidade, implicação
e explicações), ainda que outros modos de exposição (a depender dos
interesses e mesmo da criatividade37 do pesquisador) sejam possíveis.
Inseridos nessas três fases gerais, podem ser definidos procedimentos
metodológicos para a pesquisa em HL, que sempre deverá ser construída
atenta à articulação e à interpenetração de parâmetros internos e externos de
análise, assim como às relações dinâmicas de continuidade e descontinuidade
dos saberes localizados historicamente.
As tarefas a seguir permitem o estabelecimento desses procedimentos38
(e não devem ser consideradas em sentido normativo): a) mapeamento de
um problema e a consequente definição do tema de pesquisa; b) seleção de
uma periodização, o que implicará o estabelecimento de unidades de trabalho

a otras fuentes. La habilidad técnica del historiador consiste, entre otras cosas, en ocuparse de saber cómo
llegó a existir una fuente determinada, quién la produjo y para qué, así como los códigos particulares de
sua lenguaje.” (PUCCI, 2016, p. 77) [“O historiador nunca deve se ater a uma única fonte primária, a me-
nos que esteja condicionado à inexistência de outras, uma circunstância infeliz que afetará a qualidade
do conhecimento produzido. Em vez disso, deve se preocupar em corroborar e contrastar as informações
obtidas através do apelo a outras fontes. A habilidade técnica do historiador consiste, entre outras coisas,
em como uma determinada fonte surgiu, quem a produziu e para quê, bem como os códigos específicos
de sua linguagem.”, tradução livre]
36
“Explicar los acontecimientos históricos implica entretejer los argumentos interpretativos con la des-
cripción de esos acontecimientos, lo que suele denominarse como narrativa, que no es una simple for-
ma de exposición, sino además una explicación. La narración histórica verdaderamente satisfactoria es
aquella que guarda un armónico equilibrio entre interpretación e información, sin proliferar en elabo-
raciones abstractas carentes de contenido empírico.” (PUCCI, 2016, p. 109) [“Explicar eventos históricos
envolve entrelaçar argumentos interpretativos com a descrição desses eventos, o que geralmente é cha-
mado de narrativa, que não é uma forma simples de exposição, mas também uma explicação. A narrativa
histórica verdadeiramente satisfatória é aquela que mantém um equilíbrio harmonioso entre interpre-
tação e informação, sem proliferar em elaborações abstratas sem conteúdo empírico.”, tradução livre]
37
Barros (2019) faz uma interessante provocação a respeito dos desafios para a historiografia do novo mi-
lênio. Entre esses, está a necessidade de rever em termos criativos os modos de exposição historiográfica.
38
As diretrizes metodológicas foram propostas por Cristina Altman para o desenvolvimento de vários
projetos de pesquisa no CEDOCH-DL-USP, grupo do qual fiz parte durante minha formação, desde o
ano 2000, no mestrado e no doutorado (que se encerrou em 2007). Retomar essa proposta de método é
mais uma forma de homenagear o trabalho intenso de Altman na elaboração de projetos inovadores e
originais e também na formação de jovens pesquisadores. Minha retomada, no entanto, não é exata-
mente uma citação do que Altman propõe, pois acrescentei ou modifiquei pequenos elementos que não
alteram de modo algum a ideia original dela.

46 Ronaldo de Oliveira Batista


historiográfico; c) seleção das fontes primárias e das secundárias apropriadas
para a interpretação historiográfica pretendida; d) circunscrição das fontes
primárias em contexto histórico e social, a partir da reconstrução adequada
do clima de opinião em que ideias linguísticas foram elaboradas, circula-
ram e foram recebidas; e) descrição e organização dos dados linguísticos (de
diferentes tipos e com diferentes objetivos de proposição) fornecidos pelas
fontes primárias; f) definição dos parâmetros de análise que vão orientar a
interpretação historiográfica; g) análise interpretativa tendo em vista uma
síntese e uma correlação de resultados, que podem ser considerados a par-
tir de movimentos de continuidade e descontinuidade em relação a fatos da
história dos estudos sobre a linguagem.

5. Das razões para a pesquisa em HL


Revisitar nossa história é algo do humano. Buscamos reminiscências em ar-
tefatos variados, imprimimos nossas imagens e nossas ações em fotografias,
divulgamos diários de nossa vida nas redes sociais na tentativa de construção
de uma narrativa de nós mesmos que não deixa de ser histórica em sua es-
sência. Ir atrás de origens é tarefa humana.
No entanto, mesmo parte de nossa constituição, a busca histórica como
atividade científica e intelectual (seja em qualquer época que se tenha cons-
tituído como tal) muitas vezes ainda precisa ser justificada. Cada vez mais,
a investigação do humano e suas especificidades parece necessitar de defesa
em uma época em que impera o pragmatismo das ações e necessidades da
vida cotidiana. Muitas vezes, o alerta de Nietzsche (1844-1900) em 1874
ao nos apontar que “precisamos da história para a vida” parece não causar
efeito produtivo.
No âmbito científico, em específico, tal como se configurou principal-
mente nos séculos XIX e XX, o retorno a um passado de uma ciência foi
muitas vezes considerado como entrave para o progresso científico. Fazer
ciência era progredir sempre em sentido unidirecional. Não à toa, muitos
cientistas veem com desdém uma prática historiográfica em seu campo (e
mesmo na linguística isso é presente). De alguma maneira, a consideração
de Auguste Comte (1798-1857), no século XIX, de que não se conhece uma
ciência enquanto não se conhece sua história não marcou uma necessidade
de reflexão historiográfica para grande parte dos cientistas.

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


47
Praticar HL é negar uma posição que coloca a reflexão historiográfica
no rol de saberes menores (se é que existe tal tipo de saber). Radicalmente
contra essa visão, entende-se que somente o conhecimento histórico, como já
apontava Konrad Koerner (um dos fundadores da HL) em diferentes textos
(v., por ex., KOERNER, 2004, 2014), é capaz de diferenciar um cientista, ou
intelectual, de um técnico (reconhecendo, claro, a importância desse pro-
fissional). O técnico aplica métodos a partir de conhecimentos. O cientista
e intelectual conhece os fundamentos desse método e os percursos que lhe
permitiram sua constituição ao longo do desenvolvimento histórico.
Esse cientista e intelectual consciente do passado de seu campo de atua-
ção tem a possibilidade de reconhecer de modo sensato e não ingênuo os
ganhos de sua área, os alcances dos diálogos interdisciplinares, os recuos a
propostas do passado, as revisões descontinuístas, as tradições permanentes
de pesquisa que orientam diretrizes de produção científica e intelectual.
E, ainda, a consciência da história é também o que permite a um cien-
tista e intelectual a necessária circunscrição dos saberes em uma dimensão
social, negando, desse modo, a equivocada percepção de que os saberes são
produzidos isoladamente por ato genial de uma pessoa à parte de uma comu-
nidade que lhe possibilita sua prática de produção de conhecimento.
Como apontam Koerner (2004, 2014), Swiggers (2019), Pérez (2019),
em específico no campo dos estudos linguísticos e gramaticais, a consciên-
cia do passado e o conhecimento adequado dos complexos processos que
possibilitam a produção, circulação e recepção de ideias linguísticas podem
contribuir para a formação dos linguistas.
A retomada da história da linguística deve fazer parte, portanto, de um
conhecimento fornecido nos centros de formação universitária, em diferentes
graus de profundidade. Essa consideração nega automaticamente uma po-
sição também muito comum de que a história da linguística, por sua com-
plexidade e intrincados caminhos, só deveria ser parte de uma reflexão de
pesquisadores maduros no seu desenvolvimento intelectual.

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TUCKER, Aviezer. Our Knowledge of the Past. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

História e Historiografia da Linguística: um mapa de orientação


49
HISTORIOGRAFIA DA
Introdução1
Este capítulo, em

LINGUÍSTICA E O
diálogo com a abor-
dagem feita no capí-
tulo anterior, propõe

ENSINO DE LÍNGUA COMO uma reflexão meta-


-historiográfica2 so-

OBJETO DE ANÁLISE:
bre modos de análise
da história do ensino
de línguas no escopo

CONSIDERAÇÕES maior do campo de


pesquisa da Historio-
grafia da Linguística3

METODOLÓGICAS (doravante HL). Essa


discussão é acompa-
nhada de breves es-
Ronaldo de Oliveira Batista tudos de caso (a par-
Neusa Barbosa Bastos tir de documentos
históricos com dife-
rentes recortes tem-
porais) que visam ilustrar considerações teórico-metodológicas apresentadas,
que seguem a abordagem feita por Pierre Swiggers em 1990 no texto “Histoire
et Historiographie de l’enseignement du français: modèles, objets et analyses”.
Como visto no capítulo anterior, interessam à HL a descrição, análise
e interpretação da elaboração, circulação e recepção de ideias linguísticas. A
esse domínio de investigação e ensino no âmbito da linguística compete estu-
dar etapas da história do conhecimento produzido sobre a linguagem e as lín-
guas em diferentes recortes temporais e com diferentes objetivos. Modos de

1
Este capítulo retoma agora em conjunto, para maior circulação de posicionamentos anteriormente di-
vulgados, considerações apresentadas em Batista; Tocaia (2018), Batista (2020), Batista (2019b), Batista;
Bastos (2019), Vasconcelos; Batista (2017).
2
V. Batista, org. (2019a), que apresenta textos meta-historiográficos com discussões de princípios teóri-
cos e métodos em Historiografia da Linguística.
3
Reforçamos aqui a necessidade de compreender o termo linguística referindo-se a todo conhecimento
produzido sobre linguagem e as línguas em diferentes recortes temporais.
ensinar língua, então, também são objetos analíticos do historiógrafo quando
este observa e interpreta historicamente, entre outros elementos, a elaboração
e circulação de livros, tratados, dicionários e gramáticas, diretrizes públicas e
leis voltadas para a educação. Podem ainda ser objetos de análise: represen-
tações e atuações da figura docente; relações entre professores e alunos (não
importando a denominação pela qual esses agentes4 do processo educacional
são reconhecidos historicamente).
Sendo assim, as práticas de ensino e a produção de material didático
(não necessariamente reconhecidas por essa denominação em diferentes
recortes temporais) quando historicamente localizadas interessam à HL,
que, nesse sentido, preocupa-se não apenas com produtos encerrados em
si mesmos, mas coloca em perspectiva analítica uma dinâmica de produção
de objetos como gramáticas, dicionários, materiais utilizados no processo
de ensino, diretrizes públicas entre outros elementos relacionados a esse
universo educacional.

1. Para uma história da didática do ensino de línguas5


O historiógrafo que analisa práticas de ensino de língua, e a produção de
material didático e as políticas educacionais relacionadas a essas práticas
(assim como as relações entre os diferentes agentes envolvidos nesse pro-
cesso), procura contextualizar a dimensão pedagógica que envolve a língua,
seu uso e transmissão em contextos históricos específicos, circunscritos a
esferas ideológicas. Esses contextos moldam formas de ensino, evidenciadas,
por exemplo, em materiais didáticos, planos de ensino6, diretrizes públicas,
relações entre professores e alunos7.

4
Nomearemos de agente(s) os diferentes indivíduos que assumem um papel no processo de ensino-apren-
dizagem, desde professores e alunos até profissionais administrativos, coordenadores e responsáveis por
outros serviços que demandam os diferentes ambientes nos quais se processam práticas educacionais.
5
Seguimos Swiggers (1990). Nossa abordagem não se limita a uma paráfrase, pois acrescentamos alguns
elementos às diretrizes propostas pelo historiógrafo belga, tendo em vista trabalhos anteriores com a
história do ensino de língua portuguesa (v. BASTOS; PALMA, org., 2004-2018).
6
Planos de ensino (ou outros materiais com diferentes nomeações e mesmos propósitos) são objeto de
análise porque materializam anseios e diretrizes de uma prática de ensino. Indicam seleção de conteú-
dos, de materiais de apoio didático, de estratégias de transmissão pedagógica, de formas de avaliação.
Elementos como esses permitem depreender a presença histórica de formas de ensino. Neste texto, em
razão dos limites de extensão, não trataremos desse material.
7
Esses elementos vão se configurar de modo distinto de acordo com sua inscrição temporal, a ponto de
nem poderem talvez ser descritos exatamente por meio desses termos.

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


51
Seguindo diretrizes de Swiggers (1990), podem ser apontados objetivos
para uma historiografia do ensino de língua e da produção e circulação de
materiais didáticos:
a) analisar como o ensino se relaciona com concepções teóricas de
língua e linguagem (como língua é tratada teoricamente, como se de-
terminam características e unidades estruturais, funcionais, discursi-
vas da língua) e com políticas públicas de ensino. Essa relação está de
alguma maneira presente em parâmetros oficiais para a formação de
professores, para a seleção de conteúdos a serem transmitidos no pro-
cesso de ensino-aprendizagem e para as práticas pedagógicas, culturais
e sociais, que determinam modos de relação entre professores, alunos
e outros profissionais envolvidos nesse processo, além da própria fa-
mília dos discentes;
b) reconstruir uma história da didática do ensino de língua, o que de-
termina consequentemente análises de materiais didáticos;
c) contextualizar o ensino de língua em relação a motivações para esse
ensino e as características dos processos de produção, circulação e re-
cepção de saberes nas práticas educacionais; nessa visão também inte-
ressa uma reflexão sobre a relação entre o ensino de língua e a perspec-
tiva cultural que lhe é próxima, além do estudo da recepção que formas
de ensino de língua obtiveram em momentos históricos específicos.
Esses três objetivos articulam-se, na proposta de Swiggers (1990), a três
modelos de historiografia:
a) modelo progressivo e cumulativo: esse modelo estabelece a constru-
ção de uma narrativa sobre o processo de elaboração de técnicas de
ensino e de seus instrumentos didáticos, além da busca por explicações
das relações entre os saberes, entre uma “ciência pura” (produtora de
concepções teóricas e procedimentos metodológicos) e uma “ciência
aplicada” (receptora dessas ideias);
b) modelo estrutural-formal: esse modelo estabelece a elaboração de
uma narrativa sobre a prática pedagógica em relação a seus agentes e
em relação à produção, circulação e recepção de diferentes instrumentos
pedagógicos;
c) modelo sociológico: esse modelo estabelece a elaboração de uma nar-
rativa sobre o contexto social e histórico e as implicações das demandas
e dinâmicas históricas.

52 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


Os objetivos e modelos definem por sua vez, ainda na perspectiva de
Swiggers (1990), técnicas de observação, ou seja, procedimentos metodoló-
gicos para a análise historiográfica:
a) análise filosófico-cultural: leva em conta língua como um saber e
como um veículo de saberes, ao lado da consideração de processos co-
municativos que envolvem as práticas pedagógicas;
b) análise do conteúdo descritivo: leva em conta formas da língua sele-
cionadas nas práticas, modos de descrição linguística e de seu ensino e
os critérios que envolvem essas atividades;
c) análise dos grupos sociais que atuam, de diferentes maneiras, nas
práticas pedagógicas: agentes do processo educacional, em articulação
com a produção de materiais e a proposição de políticas públicas, e sua
circunscrição em um contexto histórico e social mais amplo.
Esse direcionamento metodológico proposto por Swiggers (1990) de-
termina objetivos, métodos e formatos de exposição de uma narrativa his-
toriográfica. Articulados, possibilitam ao historiógrafo não só a legitimação
de uma área dentro da HL (a que coloca em pauta principal de observação
o ensino de língua), como também diretrizes seguras a partir das quais uma
pesquisa em historiografia pode ser estabelecida.
Nas próximas seções, procuramos exemplificar, com breves estudos de
caso (contemplando diferentes tipos de documentos históricos e recortes
temporais), como as orientações de Swiggers podem ser aplicadas a estudos
sobre o ensino da língua portuguesa.

2. Estudos de caso: aplicando as diretrizes de Swiggers (1990)

2.1 Materiais didáticos e a história do ensino de línguas

Mantemos, para diferentes séculos, o uso da expressão material didático, ainda


que esta denominação em sentido restrito possa ser feita em relação a alguns
períodos históricos apenas a posteriori. Entende-se como material didático um
conjunto amplo de materiais com diferentes configurações e objetivos deter-
minados por fatores externos pertinentes a cada época histórica. Fazem parte
desse conjunto: o livro didático como concebido a partir da segunda metade
do século XX; compêndios e antologias utilizados no ensino na primeira me-
tade do século XX; gramáticas descritivas, especulativas, normativas com fins

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


53
pedagógicos; dicionários escolares; tratados de ensino de um padrão de lín-
gua; defesas em louvor da língua com valor pedagógico (como as escritas nos
séculos XVI e XVII); diferentes usos de recursos visuais; recursos tecnológicos
e audiovisuais (comuns a partir do final do século XX).
Materiais didáticos concretizam concepções de ensino de língua. Há
sempre uma perspectiva teórica (mesmo que inabilmente elaborada) que sus-
tenta lições (e a delimitação de conteúdos) que se propõem a ensinar língua.
Um material para ensino de língua materna ou estrangeira apresenta
diferentes dimensões de observação, pois interessam não só seções/capítulos
de difusão de conteúdos, mas também introduções e prefácios (a voz discur-
siva — em relação dialógica — que se mostra presente), orientações didáticas
(quando explicitadas), referências bibliográficas (quando indicadas).

a) Ensino de língua no século XVII

Observemos o manual Porta de linguas ou Modo Muito Accomoda-


do para as entender8 (publicado em 1623 em Lisboa pela Oficina de Pedro
Craesbeeck, impressor do Rei) em relação à concepção de ensino9.
Voltado para o ensino de língua no século XVII foi escrito pelo portu-
guês Amaro de Roboredo (fl. 1603) e estava fundamentado no trabalho dos
monges do Seminário de Salamanca — Janua Linguarum, publicado em 1611.
O autor português propôs um ensino de língua portuguesa (poucos em
sua época produziram gramáticas sobre a língua materna) centrado na sinta-
xe e na frase como unidade linguística fundamental, por meio de prescrição
de regras adequadas à estrutura de uma língua analítica (em contraponto à
estrutura do latim). Para Roboredo, isso propiciaria um aprendizado mais
eficaz, distante do ensino baseado apenas na língua latina. O objetivo do ma-
nual de Roboredo era “mostrar um methodo muito accomodado para aprender
todas as linguas com certeza, facilidade e brevidade” (ROBOREDO, 1623, ci-
tação da edição on line, p. 1 do Prólogo)10.

8
“O método gramatical aplicável a todas as línguas era uma proposta nova de ensino do latim e uma
crítica ao método do jesuíta Manuel Álvares até então utilizado e que despendia muitos anos de estudo
por ensinar gramática latina em latim. As explicações em língua materna tornavam, segundo Roboredo,
mais rápido o aprendizado das línguas clássicas – daí a defesa que fazia da criação ‘de uma cadeira de
língua materna ao menos nas cortes e universidades’.” (FÁVERO, 1996, p. 42)
9
Bastos; Palma (2004, p. 45-73) analisam com detalhes esse trabalho de Roboredo.
10
Citações de Roboredo são feitas a partir da edição on-line disponível em http://clp.dlc.ua.pt/Corpus/
Prologo_PortaLinguas.aspx.

54 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


O gramático pregava a ausência da necessidade de professor, ficando
subentendida a importância de um livro como o seu, que objetivava ensinar
uma norma de conduta social, por meio de regras prescritivas, criadas por
ele qual legislador.
Assim, temos como concepção gramatical e de ensino de língua saber ler
e escrever bem, com base no saber latinista. Na época de Roboredo, a tradi-
ção, ainda, era aquela de submissão da gramática portuguesa aos moldes da
gramática latina. Na introdução de seu livro, Roboredo, ao se dirigir ao “juiz
deste artifício”, indicava os benefícios de aprender gramática, pois todos os que
o fizessem tirariam proveito para si mesmos, na língua materna e em outras
línguas. Em primeira pessoa do plural, revelava a sua relação, e de sua obra,
com a sociedade da época11. Essa confluência se dava na medida em que o
gramático português imprimia sua obra com objetivo de um proveito comum
aos que dela fizessem uso, já que poderiam aprender diferentes línguas12.

Movidos de grande esperança de comum proveito, determinamos dar á im-


pressão esta obra; tal qual ella he, porque claramente tivemos para nos que
nenhüa, medicina havia tam saudavel, para sarar tantas feridas da dor em
que acrescentaram as linguas estrangeiras, como a entrada por esta porta: o
que das comodidades, que se lhes seguirão, será patente (ROBOREDO, 1623,
citação da edição on line, p. 1 do Prólogo)

O gramático, apesar de priorizar o português, tinha sua atenção voltada


para a língua clássica. Ele não queria desvincular o ensino do português do
ensino do latim, pois, por meio do ensino daquele, chegar-se-ia às raízes des-
te. No entanto, os meios para atingir o fim eram outros, já que se pressupõe,
a priori, que os portugueses deviam querer dominar a sua língua, para depois
partir para o entendimento da língua-mãe, o que aconteceria ao longo dos
anos com lições contínuas. Roboredo no prefácio já indicava posicionamen-
tos adotados na escrita de seu livro:

11
Seu trabalho se dava em perspectiva oposta ao dos demais de sua época, no sentido de que seu método
para todas as línguas contrariava a concepção fortemente latinista de ensino de língua e gramática.
12
“A obra de Amaro de Roboredo tem mais uma característica inovadora: este autor deve ser apreciado
como um dos pioneiros no ensino de línguas estrangeiras segundo princípios modernos. Antes de mais
nada, é preciso destacar que os textos linguísticos de Roboredo representam todo um conjunto de li-
vros indispensáveis para o estudo inicial da língua: manuais de gramática [...], colectânea de textos [...].”
(KOSSARIK, 2002, p. 16)

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


55
Porta de Língua
ou Modo Muito Accomodado para as entender publicado primeiro com a tra-
dução Espanhola. Agora acrescentada a Portuguesa com numeros interlineais,
pelos quaes possa entender sem mestre estas linguas o que não sabe, com as
raízes da Latina mostradas em hum compendio do Calepino, ou por melhor
do Tesauro, para os que querem aprender, e ensinar brevemente; e para os es-
trangeiros que desejão a Portuguesa e Espanhola. (ROBOREDO, 1623, citação
da edição on line, p. 1)

Legitimado pela figura do gramático e experiente em termos de ensino,


Roboredo criticou a escola de sua época, que, segundo ele, encaminhava as
crianças à cópia de palavras isoladas, o que significava perda de tempo com
uma aprendizagem excessivamente lenta. Propôs, então, que se estabeleces-
sem novos critérios para que houvesse aprendizagem efetiva em menor espa-
ço de tempo. Julgava serem as sentenças, por ele compiladas, necessárias para
qualquer leitura ou produção de diversos tipos de texto.

[S]erá mui accõmodado aos mestres para mostrar logo com o dedo os fun-
damentos de todas as palavras, que a cada passo se oferecem, nos autores,
porque mais palavras totalmente diversas se encerrão nos limites de tres folhas
de papel, que em algum grande volume [...]: isto recuperará as breves limita-
ções de tempo aos occupados com varios negocios, como são embaixadores
de Príncipes, para aprenderem a linguagem estrangeira: isto recompensará
em parte aos criados honrados dos nobres a perda de não acudir ás Escolas
publicas: isto aproveitará muito para forrar gastos aos que não soffrem bem
gastar tantos annos nas letras humanas: isto tambem espertará para os estu-
dos aos nobres, que de boa mente tomarão o trabalho meão, mas o comum,
e enfadonho, mal, ou escassamente: servirá também a todos aquelles que por
causa da necessidade, ou de honesta recreação deverão aprender as linguas
mais necessarias, e mais nobres, como são a Italiana, Castelhana, Germani-
ca, e Francesa, feita tambem compreensão de todas as palavras em sentenças.
(ROBOREDO, 1623, citação da edição on line, p. 1 do Prólogo)

O discurso gramatical foi tratado sob o prisma de três tipos comple-


mentares de discurso: a) um discurso político, pois o gramático aparecia
como porta-voz do governo (e assim legitimado socialmente); b) um discur-

56 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


so científico, pois o gramático assumia a emissão de conceitos, narrativa da
verdade, para a construção do saber o que é língua portuguesa; c) um discur-
so pedagógico, pois o gramático controlava a ação do aluno; d) um discurso
jurídico, pois o gramático estabelecia normas e regras.
Essa didática do ensino de línguas era baseada em concepções raciona-
listas, empiricistas e psicologizantes de sua época. Tal fato gerou um modo
prático de ensinar língua. Roboredo, segundo Kossarik (2002), chegou a ex-
perimentar sua proposta de ensino antes de publicar seus livros.
O posicionamento de Roboredo para ensinar línguas não é deslocado do
contexto de uma descrição linguística e prática pedagógica do século XVII.
Como aponta Swiggers (1984), a filosofia racionalista dos seiscentos impactou
a produção gramatical do período. O conceito de método, que atingiria seu
auge com René Descartes, se expandiu para a produção de material didático.
Enumeração, síntese e análise eram elementos presentes em obras da épo-
ca, caracterizando uma corrente epistemológica que via nas abordagens metó-
dicas o percurso ideal de uma transmissão didática. Não à toa, os títulos de
várias obras do século XVII apresentavam os termos método e metódico. Robo-
redo e sua concepção de ensino devem ser compreendidos diante desse cenário
intelectual e social mais amplo, que lhes deu sustentação e legitimidade.

b) Métodos no ensino de língua


Um método é relacionado a concepções de língua e está inscrito em eixo
de continuidades ou rupturas com práticas de ensino. Cabe ao historiógra-
fo captar redes de influências, permanências históricas ou descontinuidades
com tradições naquilo que caracterizam a obra como material de ensino, em
um eixo temporal específico.
Observaremos um método de ensinar língua estrangeira colocado em
prática em gramáticas escritas por jesuítas para outros jesuítas aprenderem
línguas exóticas13.
Nos séculos XVI e XVII, missionários jesuítas escreveram gramáticas de
duas línguas indígenas faladas no Brasil colonial14: José de Anchieta (1534-
1597) e Luís Figueira (1573-1643) escreveram gramáticas do tupi antigo; e
Luís Vincencio Mamiani (1652-1730) escreveu uma gramática da língua qui-
13
Expressão usual para referência a línguas faladas pelos povos dos países que entravam em processo de
colonização pelas nações europeias do período das Grandes Navegações ocidentais a partir do século XV.
14
Batista (2005, 2011) apresenta estudos sobre essas gramáticas.

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


57
riri. É de autoria de Anchieta a Arte de gramática da língua mais usada na
costa do Brasil (1595). Figueira publicou provavelmente em 1621 a Arte da
Língua Brasílica. Em 1699, foi publicada a gramática de Mamiani, Arte de
Gramática da Língua Brasílica da Nação Kiriri.
Essas gramáticas foram escritas por missionários não falantes nativos
das línguas e direcionadas, principalmente, a outros missionários para faci-
litar o contato entre jesuítas e indígenas, tendo em vista a missão catequiza-
dora e o processo de colonização.
Para o ensino de língua estrangeira, as gramáticas utilizaram largamen-
te, entre outros procedimentos, um método comparativo15 que procurava
equivalências entre as línguas exóticas e línguas de maior conhecimento por
parte dos missionários, como o português, o latim e mesmo o castelhano.
Mamiani foi o que, nessa tradição, mais recorreu a analogias:

Os verbos simplices desta lingua são todos os monosyllabos: & se houvesse


quem podesse perfeitamente alcançar a força de todos os vocabulos, tenho
para mim que acharia que toda a lingua consiste em vocabulos monosylla-
bos, que servem de raizes para formar os compostos, como na lingua Hebrea.
(MAMIANI, 1877[1699], p. 68)

O método adotado seguia uma busca de equivalências em transferência


funcional de categorias gramaticais latinas que apresentassem semelhanças
com categorias das línguas indígenas. Destaca-se nesse procedimento a ma-
nutenção da metalinguagem de origem greco-latina. Essa estratégia associa-
va-se ao ideal de transmissão pedagógica. Apontando semelhanças e diferen-
ças, o processo de ensino-aprendizagem tornava-se menos complicado, pois
realidades diversas passavam a ser percebidas como semelhanças e diferen-
ças. Bem de acordo com o espírito da época, que buscava na similitude a
compreensão do mundo.
A utilização da busca de equivalências favorecia o enquadramento da
língua dos índios nos modelos de descrição oferecidos pela gramática lati-
na. As línguas indígenas, assim, foram descritas principalmente a partir do
filtro latino, sem que houvesse, de maneira ampla, preocupações ou mesmo
adequações ao tipo estrutural das línguas em descrição, ainda que esparsos

15
Não no sentido que a expressão adquire na tradição da linguística histórico-comparativa do século XIX.

58 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


comentários dos gramáticos aparecessem sobre a não pertinência do uso do
modelo diante de particularidades estruturais das línguas. Essa característica
das gramáticas jesuíticas ressaltava o caráter instrumental das descrições.
O fato de essas gramáticas estarem associadas à transmissão didática
gerou o uso de um procedimento que descrevia a combinação de unidades,
as transformações morfofonológicas, a associação de palavras nas orações.
Aspectos gramaticais descritos por explicação passo-a-passo do que ocorria
com a língua quando em uso, como em Anchieta:

Tambẽ algũs verbos ſe hão de deſcreuer com dous, ij, hum conſoante, ou-
tro vogal depois do artigo & não com, gi, vt aıjquî, aıjboˆ. Porque tendo o
accuſatiuo expreſſo, ou, o reciproco, & outras partes, (vt infra latius) perdem
o primeiro, i. vt pirá ibómo, peixe frechando: & ſe ſe eſcreuera cõ, gi ouuera
de dizer, piragibómo. (ANCHIETA, 1990[1595], p. 33)

A partir desses procedimentos e estratégias de descrição, os gramáti-


cos se valeram de critérios para delimitações das unidades linguísticas. No
plano sonoro foi utilizado com mais produtividade o critério auditivo ou
perceptivo. Quanto às delimitações das palavras e suas classificações, partes
da oração, e combinação em unidades maiores, os gramáticos se valeram,
principalmente, de critérios que valorizaram a abordagem feita a partir das
unidades mais elementares (“letras”), seguida da observação da constituição
da “palavra” (unidade fundamental da gramática). Posteriormente, chegava-
-se à combinação em segmentos maiores como a “oração”.
O que houve de comum nas descrições gramaticais foi também o que a
gramaticografia renascentista utilizou com mais extensão: o método que privi-
legiava a busca de equivalências entre a língua que estava sendo descrita com
línguas clássicas ou vernaculares. Além disso, houve utilização e manutenção
de uma metalinguagem que caracterizaria a produção gramatical do Ocidente.
Encontra-se também nas gramáticas dos jesuítas a indicação de que
uma redução da língua a regras deveria ser breve e econômica. O que de fato
contribuía para a classificação das obras como artes de gramática, expressão
que indicava descrição breve de aspectos gramaticais essenciais.
A gramatização dos séculos XVI e XVII para algumas das línguas fala-
das no território brasileiro ocorreu de modo semelhante, caracterizando, em
meio a necessidades do processo educacional embutido na urgência da cate-

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


59
quização, uma tradição de descrição e ensino de línguas, criada, sobretudo,
a partir do instrumental advindo da escrita gramatical clássica do Ocidente.
Com pequenas observações de adequação e algumas adaptações de caráter
funcional (para maior produtividade do ensino de uma língua estrangeira),
essa descrição gramatical se valeu de técnicas gramaticais da Antiguidade clás-
sica greco-latina. Esse método de descrição linguística e de didática do ensino
de línguas deve ser considerado no momento em que foi empreendido.
As gramáticas missionárias legaram para a história descrições de línguas
até então desconhecidas, abrindo caminho para uma percepção da diversida-
de linguística. Ainda que o impacto das gramáticas missionárias tenha sido,
fora de seus meios de circulação (os centros educacionais jesuíticos), pratica-
mente nulo na época de sua escrita, foram elas que, quando descobertas no
final do século XVIII e no século XIX, contribuíram (pelo corpus que ofere-
ciam) não só para a formação da noção de relatividade cultural, mas também
para o desenvolvimento de estudos de caráter comparativo e de classificação
de línguas, como diferentes historiógrafos da linguística apontam.

c) Livros didáticos

A produção, a circulação e o uso de um livro didático colocam, ne-


cessariamente, seus autores (e os espaços de atuação que os circundam e os
validam como produtores de material de ensino) diante de esferas específicas
de atuação e influência, pois o gênero livro didático16 é uma forma de ação
social, elaborada em uma cultura específica, tendo em vista a comunicação
e a interação entre indivíduos com propósitos delimitados, direcionadores
do contato entre o gênero e seus usuários. Esses livros didáticos, assim, são
resultantes do trabalho em espaços sociais definidos — nos quais seus auto-
res e leitores se inserem — e veiculam formações discursivas que delineiam
formas de saber que cada autor (tendo em vista seus destinatários) assume
como válidas em um momento histórico.
Como exposto em Batista (2011) e Batista; Tocaia (2018), o livro didá-
tico, por meio da linguagem adotada em sua redação (em diálogo de conti-

16
Com Batista (2011, 2019b) e Batista; Tocaia (2018), entende-se que a definição de livro didático como
gênero é problemática, pois o livro contém diferentes gêneros (texto explicativo, exercícios, tabelas, gra-
vuras, instruções, sumários etc.). Assume-se essa classificação para que se possa perceber que o livro
didático exerce uma função específica em um processo comunicativo delimitado e caracterizado por seu
funcionamento.

60 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


nuidade ou ruptura com saberes validados em uma circunscrição histórica),
pela adoção de metalinguagem em tratamentos de fenômenos e aspectos lin-
guísticos e pelas suas formas de apresentação, reflete (também em um jogo
de refração) uma imagem ideal, projetando para seus usuários uma visão que
difunde algo universal, integral e praticamente inquestionável para o texto
produzido. O livro didático cria uma espécie de espaço atemporal, desvin-
culando-se da história (entendida como transformação) e das reformulações
pelas quais o conhecimento passa.
Para a HL, o livro didático constitui-se como documento histórico. Um
documento complexo em sua constituição, diante da diversidade de gêneros
discursivos, de tipos textuais, da multimodalidade textual.
Seção obrigatória na formatação do livro como gênero, esse outro gêne-
ro — o da apresentação — mostra-se de forma diversificada a depender dos
autores e seus propósitos. Livros podem apresentar tanto textos à moda de
prefácios que se dirigem a professores quanto textos que se dirigem aos alu-
nos. Nessa rede discursiva, essencialmente persuasiva (seu objetivo é desper-
tar o interesse de leitores e usuários do material), processos de argumentação
são empregados, em meio à busca de uma retórica (de um discurso de natu-
reza persuasiva) que procura não só convencer seu destinatário, mas também
legitimar uma série de objetivos, conteúdos e métodos presentes no livro.
Ao lado das apresentações, consideramos aqui também outra parte
constituinte do livro didático (muitas vezes facultativa, a depender da época
de elaboração e circulação da obra): as seções dedicadas ao professor. Es-
sas seções apresentam, em geral (e com importantes variações que podem
ser objeto de outros estudos), a base teórica a ser assumida pelos docentes,
diretrizes metodológicas, respostas de exercícios, indicações de leituras e ati-
vidades complementares.
O material de análise é o livro para a 5a. série do Ensino Fundamental II
(atualmente o 6o. ano) publicado em 1998 (data de sua 1a. edição pela Editora
do Brasil) por Lucia Teixeira e Norma Discini.
O livro dedicado à 5a. série tem 168 páginas (coloridas), acompanhadas
por 56 páginas (em preto e branco) de um manual do professor logo no iní-
cio do volume. Bem diagramado e atraente visualmente para os jovens (tais
características se mantêm nos 4 volumes dedicados aos anos do Ensino Fun-
damental II), o volume da 5a. série é dividido em 9 unidades. Cada unidade
é organizada tematicamente (em coerência com a teoria semiótica adotada

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


61
pelas autoras). Os temas selecionados (família, bichos, lembranças, sonhos
e emoções, cidades, diferenças, trabalho, televisão, conflitos) dialogam dire-
tamente com a proposição de uma educação cidadã, tal como preconizada
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (pu-
blicados também em 1998). Esse diálogo temporal sinaliza que Leitura do
mundo estava em consonância com anseios políticos do governo brasileiro
e de uma camada representativa de educadores (não apenas os que partici-
param da confecção de documentos públicos, como todos os que de algum
modo se envolveram em discussões para elaboração de diretrizes de ensino)
da segunda metade da década de 1990.
Uma organização fixa articula em cada unidade do livro diferentes se-
ções que apresentam (em meio a textos motivadores de diferentes gêneros,
textos explicativos de aspectos linguísticos, exercícios que treinam diversas
habilidades) os conteúdos do ensino de língua portuguesa para a 5a. série:
Hora de falar, Gramática, Hora de escrever, Leitura dos textos, Leitura do
mundo. Essas seções refletem o que os Parâmetros Curriculares definiam
como unidades do ensino de língua portuguesa.
Mais uma vez em consonância com a perspectiva do que deveria ser o
ensino de língua portuguesa, o livro se organiza em torno de uma unidade
fundamental — o texto —, a partir da qual a língua é estudada. A seleção
dessa unidade texto (trabalhado nas suas dimensões enunciativa, linguística
e discursiva) dialoga com os documentos oficiais da época e com o que os
linguistas e estudiosos da literatura consideravam como válido para práticas
do ensino de língua.
A apresentação ao professor (no início do manual do professor) é feita
em uma breve, mas complexa, exposição em que as autoras dizem aos pro-
fessores quais elementos norteiam e configuram o livro didático. Merecem
destaque nessa apresentação: a) a concepção que entende o processo peda-
gógico como construção ativa de conhecimento, e não acúmulo de infor-
mações; b) a justificativa para o título do livro (Leitura do mundo): ler o
mundo é uma atividade de articulação de redes de significado produtoras de
sentido. Esse título se enquadra no que os Parâmetros Curriculares de 1998
oficializavam como a orientação ideal para o ensino de língua portuguesa; c)
a delimitação da unidade central a orientar o ensino de língua, caracterizado
em essência na formação de habilidades de leitura e escrita; d) a organização
do livro em unidades e seções: as autoras destacam temas que privilegiam

62 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


problemas do cotidiano tratados em textos adequados ao público adoles-
cente. Também é destacada a seleção variada de gêneros do discurso (a se-
guir orientação majoritariamente presente no ensino de língua portuguesa
a partir da década de 1990); e) uma instrução de que será a partir do texto
(nas modalidades oral e escrita) — leitura e produção — que vai ser estabe-
lecida uma reflexão gramatical atenta aos efeitos de sentido resultantes das
seleções de unidades lexicais e suas relações gramaticais, contraídas na ar-
ticulação textual (considerada em seus diferentes propósitos enunciativos);
f) a concepção adotada sobre o processo de avaliação. Em consonância com
os Parâmetros Curriculares da década de 1990, a avaliação é contínua, feita
no dia a dia da sala de aula; g) uma apresentação da estrutura do manual do
professor (sobre o qual falaremos adiante).
Uma curta apresentação ao aluno inicia o livro propriamente dito17. A
seção de apresentação ao discente é escrita em tom conativo, em um texto
de 4 parágrafos, simples e direto, dirigido a um público adolescente. Nesse
texto há a explicação do título do livro, ressaltando a presença (sem o uso da
expressão consagrada teoricamente) de diferentes gêneros do discurso. Há
também o posicionamento de que se assume ler textos como via de acesso
ao mundo, por meio de atitudes críticas diante de fatos sociais e históricos. A
apresentação ao aluno se encerra com forte teor persuasivo em uma afirma-
ção de que os textos que fazem parte do livro falam do cotidiano dos adoles-
centes, o que tornaria o manual didático “um amigo ideal”, pronto a estimular
a manifestação de opiniões e pontos de vista daqueles que o utilizassem.
As apresentações colocaram um elemento principal em evidência: os
textos e sua circulação social. Ora destacando a variedade dos gêneros e a
importância da leitura significativa como meio de acesso consciente aos fa-
tos da sociedade, ora ressaltando uma concepção interacionista e discursiva
da linguagem e seus fenômenos, as apresentações procuraram difundir um
modo específico de entender e ensinar a língua portuguesa, o qual estava
inserido em um contexto intelectual e educacional que, por meio da produ-
ção de documentos públicos, buscava no exercício enunciativo e discursivo
da língua a base para uma prática de ensino significativa e capaz de alterar
decepcionantes resultados dos alunos egressos do ensino fundamental em
provas de habilidades de leitura e escrita.
17
No manual do aluno é essa a seção inicial. No manual do professor a seção dedicada aos docentes é a
parte inicial do livro.

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


63
O manual do professor é presença extensa (pelo número de páginas)
e abrangente (pela diversidade de enfoques e orientações aos docentes): há
seções dedicadas à explicação dos fundamentos teórico-metodológicos que
orientam a abordagem didática, às concepções de leitura, escrita, oralidade
e gramática, a orientações de eixos interdisciplinares e até a processos de
avaliação do processo de ensino-aprendizagem.
A constituição desse manual evidencia o cuidado e a preocupação das
autoras e da editora com a preparação teórica do docente e com sua prática
de ensino na sala de aula. Esse aspecto certamente contribuiu para a avalia-
ção positiva do material pelo programa de avaliação federal, que em termos
práticos se reflete em adoções pelos professores e, consequentemente, maior
volume de vendas.
Em um texto escrito com cuidado didático (como se o professor fosse
nesse momento o aluno), o manual do professor, em primeiro lugar, define
a unidade central do trabalho — o texto (em suas diferentes modalidades e
gêneros) — e o que as autoras compreendem como uma leitura do texto an-
corada nos conceitos de intertextualidade e interdiscursividade. Os projetos
que são sugeridos para trabalhos ao longo das unidades evidenciam que as
autoras têm em mente um diálogo entre diferentes saberes, construindo um
elo fundamental para uma transmissão significativa de conteúdos que não se
encerre em si mesma, em uma única disciplina curricular. É a partir dessa
delimitação inicial que são apresentados os pressupostos teóricos que orien-
tam a escrita do livro. Ao professor, conceitos centrais da teoria semiótica
discursiva são explicados: a noção de percurso gerativo do sentido; as figuras
do enunciador, do narrador, do locutor; os temas e as figuras; os conceitos de
expressão e conteúdo; a produção de efeitos de sentido.
Em diálogo com essa configuração teórica, as referências bibliográficas
apresentadas no manual do professor (com títulos que se repetem ao final do
livro do aluno também) orientam os docentes para a concepção interacio-
nista de linguagem, com foco no trabalho com o texto (trabalhos centrais da
linguística textual são citados, como os de Ingedore Koch) e o discurso (estão
presentes livros de José Luiz Fiorin, Diana Luz Pessoa de Barros, Eni Orlandi)
na sala de aula. Ainda nas referências, estão os Parâmetros Curriculares de
1998, o que evidencia, além das confluências já apontadas, que o documento
esteve no horizonte de retrospecção das autoras como uma diretriz pública
que orientou a escrita do livro didático.

64 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


No manual do professor, há também apresentações extensas sobre os
textos verbais e não verbais, os tipos de texto, a variação linguística. Essas
apresentações são de natureza didática, como a oferecer uma orientação de
aperfeiçoamento ao docente da educação básica, possivelmente distante do
conhecimento da teoria que ancora a escrita do livro — daí a necessidade de
um alentado manual do professor, já que semiótica discursiva, na década de
1990, não fazia parte (e não faz) de muitos dos currículos das faculdades e
universidades que formavam (e formam) docentes da área de letras.
O tratamento da oralidade em sala de aula é ancorado na teoria proposta
pela análise da conversação e pela consciência da variação linguística. Esses di-
recionamentos permitem constatar que as autoras tinham uma grande ambição
na produção do material, que necessitava, essencialmente, de um docente for-
mado em teorias contemporâneas sobre a linguagem, distantes de um ensino
de língua elaborado em torno de uma concepção de linguagem como código.
A visão interacionista de língua também era apresentada ao docente
nas explicações sobre o modo de trabalhar em sala de aula com a produção
escrita, a evidenciar que não se estava diante de uma atividade de redação,
mas de produção de texto, pois os gêneros discursivos, a interdiscursividade
e a intertextualidade estavam na base de elaboração de textos escritos. Uma
produção, enfim, que buscava na escrita dos alunos uma forma de perceber
e praticar uma significativa produção de efeitos de sentido.
O livro dialoga com um clima de opinião que, ainda presente no ensino,
considerava leitura e escrita em dimensão discursiva, aspecto consensual nos
anos 1990 e dificilmente negado, dada a força das diretrizes públicas e dos
grupos que estavam na base das articulações organizacionais e institucionais
de produção de material didático.
A gramática é vista em funcionamento (não à toa, há referência à lin-
guista Maria Helena de Moura Neves na bibliografia), tendo em consideração
uma reflexão sobre a língua e a articulação de seus elementos sistemáticos em
uma concepção teórica que procura destacar uma abordagem gramatical arti-
culada com os textos. Considerar a gramática em uso define, em um recorte
derivado da concepção teórica adotada pelas autoras, como diretriz o traba-
lho com as formas da língua orientado para a produção de efeitos de sentido,
em distância dos tradicionais modos de orientar o ensino de gramática por
uma tradição prescritivista ou apenas descritivista baseada na transmissão de
metalinguagem e análises de funções sintáticas. De qualquer modo, não se

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


65
pode deixar de considerar, em perspectiva crítica, que o tratamento da gra-
mática em diálogo com uma concepção textual e discursiva do objeto língua
deixa de lado uma sistematização das unidades e relações gramaticais vistas
em si mesmas em outro recorte teórico e em outra concepção de língua.
Leitura do mundo — 5a. série está circunscrito a uma época que viven-
ciou de maneira intensa a chegada da Linguística à sala de aula, após quase
duas décadas de efetiva prática de pesquisa e docência em ciências da lingua-
gem no Brasil. A avaliação histórica de Soares (1998) sobre o ensino de lín-
gua portuguesa possibilita a percepção de como o livro didático de Teixeira e
Discini estava em linha direta de confluência com seu momento histórico de
produção e circulação, adquirindo, desse modo, adequados capitais de valor
para sua adoção no sistema oficial de ensino de língua portuguesa.
O livro de Teixeira e Discini é resultado de um aproveitamento didático
de alcances teórico-metodológicos de um grupo de especialidade, o da se-
miótica discursiva greimasiana, que despontou nos anos 1990 como uma das
principais, e produtivas, comunidades de pesquisadores no Brasil. Os anseios
das autoras estavam relacionados, em essência, a uma significativa articula-
ção entre o conhecimento teórico e o aplicado. Essa relação estava presente
no anseio de produzir um material que pudesse dialogar com seu contexto
histórico e com necessidades do ensino de língua do final do século XX.
Nesse sentido, o contexto do ensino de língua em que o material de
Teixeira e Discini se insere é aquele que compreendia que um dos motivos
principais do ensino de língua é a preparação de cidadãos atuantes de modo
crítico na sociedade. Entrava em destaque a formação de alunos aptos a com-
preender a complexidade do mundo contemporâneo e a se colocar critica-
mente diante das diferentes maneiras de comunicar sentidos e de assumir po-
sições em meio aos embates sociais. Objetivo que está em consonância com
teorias discursivas que a todo tempo respondem a uma concepção dialógica
da linguagem, tal como preconizada por Mikhail Bakhtin, outro dos nomes
fundamentais a nortear a concepção teórica que desde a década de 1990 está
presente em modos de compreender o ensino de língua portuguesa.

2.2 Diretrizes públicas na história do ensino de língua


Diretrizes públicas — como leis e documentos oficiais — são parte impor-
tante de um processo que permite traçar uma história do ensino de língua.
O que se estabeleceu oficialmente para o ensino diz muito de como se com-

66 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


preendeu o processo de ensino-aprendizagem em uma época. Além disso,
diretrizes públicas relacionam-se com vinculações ideológicas, pois estão ar-
ticuladas a direcionamentos políticos atuantes no momento em que foram
elaboradas, publicadas e divulgadas.
Para ilustrar essa possibilidade de análise, consideramos a Lei 5.692, que
entrava em vigor na educação brasileira em 1971. Pela lei, e normas que dela
eram decorrentes, o Conselho Federal de Educação determinava diretrizes
relativas a assuntos como: a) objetivos das matérias do núcleo comum; b)
finalidades da educação; c) objetivos gerais do então denominado ensino de
1o. e 2o. graus.
A Lei 5.692/71 pretendia alterar uma perspectiva de base sobre a educa-
ção brasileira. Essa ruptura em relação a leis anteriores não era integral, pois
se preservavam objetivos de uma política nacional estabelecidos em norma-
tivas públicas de 1961 pela Lei 4.024. No entanto, havia alterações no que
se compreendia como visão global da educação e seu impacto na sociedade.
Fundamentalmente se estava diante de uma política educacional que pregava
a mudança de uma escola tradicional (centrada no professor e no livro didá-
tico) para uma escola renovada (centrada no aluno, a partir do qual deveria
ser revisto o papel da escola, do professor, do programa de ensino, das me-
todologias e do material didático).
No fundamento dessa lei, estava uma concepção instrumental de en-
sino. Era necessário formar alunos para o mercado de trabalho. E alunos
capazes de adequação a uma nova realidade social18.
Em relação a uma didática do ensino de línguas, a lei implicou uma con-
cepção integrada das matérias do núcleo comum. Em diálogo com Estudos
Sociais e Ciências estava Comunicação e Expressão. Essa confluência incidia
diretamente no desejo de uma formação cidadã do aluno. Sob denominação
de Comunicação e Expressão19, com influência da Teoria da Comunicação e

18
“O sistema educacional era marcado pela influência dos acordos MEC/Usaid, que serviram de sustentá-
culo às reformas do Ensino Superior e, posteriormente, do ensino de 1o. e 2o. grau. Em 1968, houve uma
reforma universitária (Lei 5.540/1968), que, somada a uma segunda Lei, já na década de 1970, a 5.692/1971
– Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em agosto de 1971 trazia indicativos de mudanças
sociais e econômicas, mas a ampliação do regime de governo, militar e autoritário, e o recrudescimento
da ditadura e do modelo econômico desta década impediram condições de realização efetiva dos avanços
contidos em tais reformas. A década foi tão importante que vários autores a analisaram e a discutiram, sob
vários ângulos, como os pedagógicos, os educacionais e os sociais.” (PALMA; FRANCO, 2016, p. 51)
19
Para as quatro primeiras séries do 1o. grau, a nomeação era “Comunicação e Expressão”. Nas quatro
últimas séries (na organização escolar oficial da década de 1970), a disciplina chamava-se “Comunicação
em Língua Portuguesa”. Para o ensino 2o. grau, a nomeação era Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


67
da Linguística20, o ensino de língua portuguesa voltava-se para uma formação
abrangente. Por meio do uso da língua, a interação com a sociedade e com
uma inserção ideológica cultural:

cultivo de linguagens que ensejam ao aluno o contato coerente com seus se-
melhantes e a manifestação harmônica de sua personalidade, nos aspectos fí-
sico, psíquico e espiritual, ressaltando-se a Língua Portuguesa como expressão
da Cultura Brasileira. (Art. 3o. da Lei 5.692/71)

O ensino de língua em sua dimensão estrutural e funcional deveria se


articular a uma formação integral do aluno, visando ao desenvolvimento de
elementos da personalidade individual de cada discente. Ensinar língua era
também, ao menos na solução ideal da letra e do papel oficiais, incentivar o
progresso do aluno por meio de um ensino de descobertas, permeado por
motivações e possibilidades de diálogo cooperativo.

Art. 4o. — As matérias fixadas nesta Resolução serão escalonadas, nos currí-
culos plenos do ensino de 1o. e 2o. graus, da maior para a menor amplitude
do campo abrangido, constituindo atividades, áreas de estudo e disciplinas.
[...]
§ 2o.— Nas áreas de estudo, formadas pela integração de conteúdos afins, as
situações de experiência tenderão a equilibrar-se com os conhecimentos siste-
máticos para configuração da aprendizagem.
§ 3o.— Nas disciplinas, a aprendizagem se desenvolverá predominantemente
sobre conhecimentos sistemáticos. (Art. 4o. da Lei 5.692/71)

Para uma adequação à lei, os professores e a estrutura escolar deveriam


considerar que a tradicional divisão de ensino de português em aulas separa-
das de redação, gramática, leitura não correspondia mais ao que oficialmente
se indicava como integração dos componentes curriculares.
Esse direcionamento oficial retoricamente se dava em princípios de li-
berdade, igualdade e individuação. Características de uma sociedade distinta
daquela que de fato existia em um Brasil comandado pela mão de ferro do
regime militar da época, que na década de 1970 estava em período de repres-
são social e ideológica.

20
Disciplinas matrizes que geraram a concepção do ensino de língua na década de 1970 no Brasil.

68 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


Um ensino que respondesse efetivamente à lei seria um ensino oposto a
técnicas mecanicistas, à divulgação de textos ideologicamente orientados pela
esfera de poder dominante na sociedade, à divulgação exclusiva de apenas uma
norma linguística, à ampla liberdade de expressão na leitura e produção de tex-
tos. Ou seja, pela lei, o ensino deveria privilegiar, se de fato pretendesse alcan-
çar o objetivo da formação cidadã, a língua oral, a leitura consciente, produtiva
e transformadora, a escrita crítica (em diferentes tipos de texto), a gramática
significativamente transmitida (não como transmissão de análises de estruturas
descontextualizadas de textos e reiteração de metalinguagem). Aspectos que
em nada pareciam dialogar com o regime político vigente na época.

2.3 Relações interpessoais na história do ensino de línguas


As representações das figuras dos docentes e discentes são evidências de um
ethos circunscrito a momentos históricos e a inscrições sociais localizadas
particularmente. Interpretar como entendemos a atuação de agentes dos pro-
cessos de ensino-aprendizagem permite uma análise não apenas de produtos
(livros didáticos e outros materiais). Ao focar relações sociais em um am-
biente de ensino, o historiógrafo capta uma dinâmica social relacionada a
diretrizes oficiais e materiais didáticos.
Para ilustrar essa possibilidade de investigação, observamos a elabora-
ção da figura do professor em um texto de 1984: “Sobre jequitibás e eucalip-
tos — amar”, de Rubem Alves21.
Na década de 1980, anseios de democracia (o Brasil era governado pelos
militares) permitiram que uma concepção tradicional de ensino (com ênfa-
se na figura autônoma do professor transmissor de conteúdos) começasse a
encontrar resistência22.
A ruptura com esse pensamento pode ser evidenciada em dicotomias
que caracterizaram o período de transição na história da educação brasileira
dos anos 1970-1980: professor vs. educador; pedagogia vs. licenciaturas; téc-
nica vs. reflexão; reprodução de conteúdos vs. produção de conhecimento.
No lugar de um professor transmissor, legitimado pela prática educacional
(mesmo que diretrizes públicas preconizassem outro caminho para o pro-
cesso de ensino-aprendizagem), entrava em cena, pelo menos em termos de

Esta seção retoma com alterações e em forma de síntese análise de Vasconcelos; Batista (2017).
21

Esse anseio encontrava eco na Lei de Diretrizes e Bases de 1971, que era paradoxal diante do que nor-
22

mativaza e o regime político vigente.

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


69
projetos e ideias, um educador, sujeito político em essência, engajado, capaz
de motivar alunos na busca pelo conhecimento, com uma inserção real e
produtiva na escola e na sociedade.

Seria possível, então, compreender que a polaridade entre educadores e profes-


sores não instaura uma dicotomia entre duas classes de pessoas, umas inexis-
tentes e heroicas, outras existentes e vulgares, mas antes uma dialética que nos
racha a todos, pelo meio, porque todos somos educadores e professores, águias
e carneiros, profetas e sacerdotes, reprimidos e repressores. (ALVES, 1984, p. 18)

Essa foi a figura reafirmada em Alves, que com suas palavras reproduzia
um momento da educação brasileira que via a transição de regimes políticos,
os anseios de liberdade e a crença na educação como mola propulsora para
uma sociedade justa e desenvolvida, ancorada, entre outros elementos, na
importância de um docente que fosse um educador e não apenas reprodutor
de conhecimentos desvinculados da sociedade e da capacidade reflexiva, es-
sencial para a formação dos novos cidadãos nos espaços sociais.
Está no texto de Alves, o ethos do docente que não apenas ensina conteú-
dos e os avalia em provas. O que se privilegia é a imagem do docente preocupa-
do com sua profissão e vocação, inscrito em práticas sociais transformadoras.
Uma produção intelectual não é desvinculada de um clima de opinião que
a legitima. A reflexão de Alves se situa em um domínio contextual específico: a
tensa transição entre duas décadas que materializa a mudança política e social
de um país, trazendo questões fundamentais para a alteração de rota que uma
nação iria empreender. Não é fato casual que o livro em que está publicada a
reflexão de Alves, Conversas com quem gosta de ensinar, faça parte de um pro-
jeto editorial intitulado “Coleção Polêmicas de Nosso Tempo”.
Na pauta da época, os rumos que a sociedade deveria tomar, inclusive
na educação. O breve ensaio de Alves, em alguns momentos, parece nos levar
a uma reflexão de outra natureza, a que coloca no centro de sua preocupação
modos de agir na sociedade por meio da linguagem. A uma crise na ação so-
cial corresponderia em essência uma crise na linguagem, pois os cidadãos já
não reconheciam seu exercício de agentes sociais por meio do uso da língua,
por isso o chamado de Alves para uma reaprendizagem do falar.
Insinua-se no texto um pensar sobre o uso da linguagem próprio de
uma época de repressão e reafirmação de necessidades básicas dos indiví-

70 Ronaldo de Oliveira Batista e Neusa Barbosa Bastos


duos. Sutilmente colocada, a imagem de que regimes autoritários tiram não
só a liberdade do agir linguisticamente, como afetam a percepção do que é a
interação e do que pode ser uma língua em sua plenitude.

E eu pensaria que o acordar mágico do educador tem então de passar por


um ato de regeneração do nosso discurso, o que sem dúvida exige fé e co-
ragem: coragem para dizer em aberto os sonhos que nos fazem tremer. A
formação do educador? Antes de mais nada: é necessário reaprender a falar.
(ALVES, 1984, p. 24)

Quando Alves (1984, p. 11), provocativamente, pergunta: “Educadores,


onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares.
Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor”, ele
parte do argumento de que profissão e amor pouco tem em comum. Já o
“educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de
um grande amor, de uma grande esperança”.
A tensão entre as imagens simbólicas do professor e do educador não é
ausente de nossa época. No século XXI, duas dimensões opostas, transmitir
apenas conteúdos ou possibilitar reflexão, ainda estão na base de lutas políti-
cas e profissionais que buscam o reconhecimento devido para os profissionais
que atuam na sociedade como formadores dos novos cidadãos. Mais uma
vez, a história se repete e a leitura do Rubem Alves da década de 1980 não
nos parece em nada anacrônica.

Conclusão
Considerar o ensino de língua em sua dimensão histórica permite ampliar
o escopo de atuação da HL. Tal vertente é destaque em diferentes reflexões
historiográficas (são muitos, por exemplo, trabalhos de pesquisadores brasi-
leiros, portugueses, espanhóis, franceses) e se constitui como uma das mais
produtivas no cenário contemporâneo da retomada crítica e histórica dos
estudos sobre a linguagem.
Sem dúvida, o universo didático-pedagógico, por assim dizer, co-
loca questões importantes para a compreensão de como a língua, sua
estrutura, seu uso e transmissão educacional (em diferentes formatos),
faz parte de uma sociedade e de uma cultura, condicionada por todo um

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


71
complexo conjunto de elementos históricos que se configuram essencial-
mente como ideológicos.
Nesse sentido, a HL contribui em seu alcance social ao dialogar, com
suas reflexões e análises, com o alerta de Paulo Freire: “Se a educação sozinha
não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE,
2000, p. 67).

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Editora Mackenzie, 2017. p. 235-247.

Historiografia da Linguística e o ensino de língua como objeto de análise: considerações metodológicas


73
OS PRINCÍPIOS
Considerações iniciais
Este capítulo tematiza

DA ANÁLISE
os princípios propostos
por Koerner (1996) para
a análise historiográfica,

HISTORIOGRÁFICA E a fim de garantir o seu


rigor cientifico. Eles se-

A CONTRIBUIÇÃO DE
rão aqui conceituados e
discutidos consideran-
do-se a atuação de Cris-

CRISTINA ALTMAN PARA


tina Altman e sua per-
sistência ao introduzir
essa nova disciplina no

A HISTORIOGRAFIA DA Brasil e ao acompanhar


sua instalação e institu-

LINGUÍSTICA NO BRASIL
cionalização nos estudos
linguísticos brasileiros,
ao longo de mais de
30 anos. Este trabalho
será desenvolvido em
Dieli Vesaro Palma
uma perspectiva meta-
Nancy dos Santos Casagrande
historio­gráfica, tal como
propõe Swiggers (2017,
p. 53), que assim a con-
ceitua: “A meta-historiografia é o domínio definido por todos os tipos de
atividades reflexivas, tendo como objeto a prática e os produtos de historio-
grafia; tem assim um status de dicto”.
Swiggers (2017, p. 53) considera ainda que a meta-historiografia envolve
três tarefas ou níveis: a construtiva, a crítica e a especulativa ou contempla-
tiva. Entendemos que este estudo se insere na segunda modalidade, uma vez
que objetivamos avaliar “ao nível da documentação e dos princípios meto-
dológicos e epistemológicos, produtos existentes da prática historiográfica
linguística” (SWIGGERS, 2017, p. 53).
Nesse sentido, as questões que orientam nossa exposição são:
(a) como se deu a instalação da Historiografia (da) Linguística no Brasil;
(b) qual foi a contribuição de Cristina Altman nesse processo de instalação
e de institucionalização dessa disciplina;
(c) quais foram os desdobramentos da institucionalização dessa disciplina
no estudo de um caso específico, o do Grupo de Pesquisa em Historio-
grafia Linguística da PUC-SP?
O capítulo estrutura-se em quatro partes, além dessas Considerações
iniciais e das Considerações finais. Na primeira, focalizamos a constituição
da Historiografia (da) Linguística e sua chegada ao Brasil, trazida por Cristina
Altman. Na segunda, traçamos o percurso da Historiografia (da) Linguística
no Brasil e a contribuição de Cristina Altman no processo de sua institucio-
nalização; na terceira abordamos os princípios metodológicos propostos por
Koerner (1996) e na quarta desenvolvemos o estudo de caso sobre o Grupo
de Pesquisa em Historiografia Linguística da PUC-SP, no que diz respeito à
observação dos princípios metodológicos de Koerner.

1. Origem da Historiografia (da) Linguística e sua chegada ao Brasil


Foi nos anos 1970, influenciados pelas ideias de Kuhn sobre as etapas de
evolução do conhecimento científico, que estudiosos das Ciências Humanas e
das Ciências Sociais, entre elas a Linguística, começaram a refletir sobre as fa-
ses de continuidade e as de ruptura, além das de continuidade de paradigmas,
na produção do saber científico. Esse contexto foi propício a análises sobre a
escrita da história e, de acordo com Swiggers (2017), em 1974, Koerner, como
editor fundador, publicou o primeiro número do periódico Historiographia
Linguistica. Em seu ensaio “Purpose and Scope of ‘Historiographia Linguís-
tica”, parcialmente republicado em 1978, ele focalizou a escrita histórica nos
séculos XIX e XX e constatou a existência de três tipos de historiografia — o
de síntese e autossatisfatório, o prodomo e o cumulativo e panorâmico. Nesse
trabalho, ele acrescentou um quarto tipo, denominando-o de Historiografia e
destacando que tal atividade, cientificamente fundamentada, exigia um senso
agudo de preocupação metodológica e epistemológica. Sobre esse fazer, ele
assim se manifestou:

O que é necessário antes de podermos falar legitimamente de uma historio-


grafia do pensamento linguístico é a discussão e a explicação da epistemologia

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
75
dessa altamente complexa disciplina—a-se-constituir e a subsequente funda-
ção de uma metodologia sólida de investigação e apresentação. (KOERNER,
1978, p. 60, apud SWIGGERS, 2017, p. 46)

Em artigo publicado em 2014, na revista Confluência, o autor (KOER-


NER, 2014a) destaca aspectos tidos como relevantes pelos estudiosos que se
filiaram ao novo modo de escrita da história. Consideravam que a Historio-
grafia (da) Linguística não deveria ser subserviente à disciplina e deveria ter
um papel semelhante ao que a História da Ciência representa para o cientista
das Ciências Naturais. Destaca, ainda, que foi a distinção entre história e crô-
nica, atribuída a Croce, endossada por esses investigadores, que permitiu um
avanço nos estudos, com a distinção entre história e historiografia.
Essa diferenciação visava a marcar um afastamento dos trabalhos an-
teriores, ou seja, das histórias partidárias ou whig-histories, como designou
Henry Butterfield, porque, em parte, elas não se mostraram guias úteis para
o tratamento de acontecimentos ocorridos na história das ciências da lin-
guagem e, por essa razão, não ofereciam uma percepção mais clara do rumo
para onde as teorias vigentes poderiam levar os pesquisadores. Por fim, foi a
profissionalização que mostrou o amadurecimento da história da linguística
como área científica, resultante de eventos e de produções.
Nesse sentido, Koerner (2014b, p. 25), no capítulo Historiografia Lin-
guística, escrito quarenta anos depois do ensaio seminal sobre o fazer his-
toriográfico, com base na entrada “Historiography of Linguistics” em The
Encyclopedia of Language and Linguistics (KOERNER, 1994), objetivando
demonstrar a consolidação da Historiografia Linguística, elencou uma série
de eventos, ocorridos de 1978 a 2002, traçando um panorama geral de seu
percurso em busca de seu reconhecimento como uma disciplina, que se di-
ferenciava da História da Linguística. Altman (2012), por sua vez, também
apresentou um detalhado relato das tendências contemporâneas da Historio-
grafia Linguística, mostrando como ela foi crescendo e diferenciando-se da
História da Linguística.
Ao tratar dos desafios remanescentes em Historiografia, Koerner (2014b,
p.28) destacou que, além da busca de legitimação e do apoio institucional,
havia aspectos sobre metodologia e epistemologia, além do que designou de
“quality control”, que deveriam ser enfrentados. Apontou que já havia tratado
das questões metodológicas em trabalhos sobre a metalinguagem e sobre o

76 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


argumento de influência e explicitou sua preocupação no que dizia respeito
a problemas de discordância em questões de método no âmbito do ICHoLS
VI (International Conference on the History of Language Sciences), em1993.
Considerava que a busca de consenso sobre tais assuntos “seria desejável para
um desenvolvimento complementar da disciplina” (KOERNER, 2014b, p. 28).
Vê-se, assim, que o tema “metodologia” sempre esteve presente nos trabalhos
do fundador da Historiografia (da) Linguística, por ele garantir a cientifici-
dade dos estudos historiográficos.
No capítulo “Historiografia Linguística”, Koerner (2014b, p. 17) desta-
cou que “o conceito atual de ‘historiografia linguística distingue-se da com-
preensão tradicional do termo, que simplesmente fazia referência à narração
de acontecimentos passados”. Retomou, então, os três tipos presentes nessa
escrita que ele assim denomina: compilar histórias da linguística, histórias
da linguística comemorativas ou propagandísticas e histórias isoladas da Lin-
guística e apontou que um grupo de pesquisadores, entre os quais ele se in-
cluía, propuseram um quarto tipo de elaboração historiográfica

[...] que consistia na apresentação do nosso passado linguístico como uma


parte integrante da própria disciplina e, ao mesmo tempo, como uma ativi-
dade fundada em princípios bem definidos, que pode competir, em termos
de solidez do método e rigor de aplicação, com os da própria linguística. Este
quarto tipo, hoje normalmente designado de ‘historiografia linguística’ não
deveria ser meramente subserviente à disciplina, mas deveria assumir uma
função comparável à da história da ciência para o cientista das ciências natu-
rais. Em síntese, ao reconhecer a importante distinção entre crónica e histó-
ria, os recentes investigadores que contribuíram para a história da linguística
deram um passo à frente ao distinguir história e historiografia. (KOERNER,
2014b, p. 22-23)

Foi essa nova disciplina (ALTMAN, 2012) — que visa a reconstruir o


conhecimento sobre a linguagem, tendo como objeto todas as formas ma-
nifestadas por ele em seu processo histórico — a introduzida na linguística
brasileira, em 1993, com a defesa da tese de doutorado de Cristina Altman,
na Universidade de São Paulo. Seu pioneirismo está registrado no Prefácio de
Ataliba de Castilho (in ALTMAN, 1998, p. 14) ao livro A Pesquisa Linguística
no Brasil — 1968-1988, que, ao finalizar sua apresentação, afirma:

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
77
O livro que se vai ler revela, em páginas densas, porém elegantemente escritas,
por que a Linguística Brasileira é como é. Indiretamente, ele propõe a ins-
talação da Historiografia da Linguística em nosso meio, e este será, estou
seguro, mais um de seus méritos. (grifo nosso)

Nesse momento, tem início o percurso de instalação da Historiografia


(da) Linguística no Brasil, processo que se concretizou pela condução firme
e criteriosa de Cristina Altman.

2. A introdução da Historiografia (da) Linguística no Brasil


e a contribuição de Cristina Altman
Ao tratar de historiografias e crônicas, Altman (2012) apresenta ao leitor in-
formações relevantes sobre o momento em que se debruçou sobre as tradi-
ções brasileiras de estudo da linguagem, no final dos anos 1980. Relata as
dificuldades encontradas pela ausência de obras de referência que fossem
abrangentes e possibilitassem a recuperação, de modo sistemático e seguro,
das grandes linhas da pesquisa linguística brasileira.
Pode-se afirmar que um dos movimentos de institucionalização da
Historiografia (da) Linguística Brasileira no ambiente acadêmico nacional
deu-se em 1994, com o credenciamento da disciplina “Historiografia da Lin-
guística: a formação da Linguística Brasileira Contemporânea”, no Programa
de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de São Paulo.
O passo seguinte nesse percurso é a criação, em 1995, do Grupo de Tra-
balho (GT) Historiografia da Linguística Brasileira, ligado à Associação Na-
cional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), que
teve dois objetivos propostos: (a) promover a organização, a sistematização e
divulgação de material documental que pudesse servir de apoio ao trabalho
historiográfico; (b) estimular a pesquisa original em História e Historiografia
Linguística. Ainda nesse ano, como área de pesquisa, são criados Grupos de
Pesquisa na USP e na PUC-SP. Segundo Luna (2004, p. 42):

Formados por alunos de graduação e de pós-graduação em Letras/Linguísti-


ca, sob a liderança de pesquisadores entusiastas e produtivos, esses grupos já
apresentam um número crescente de trabalhos acadêmicos como monogra-
fias, dissertações e teses, algumas das quais já publicadas. Esses grupos têm

78 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


também realizado encontros sobre a área, bem como painéis em eventos da
área de Letras no País.

Em junho de 1996, ocorreu a participação do GT no XI Encontro Na-


cional da ANPOLL, realizado em João Pessoa, que se mostrou um espaço
privilegiado para discussões sobre a Historiografia (da) Linguística, contri-
buindo, portanto, para a sua consolidação científica. Esse momento de trocas
e conversas sobre os rumos da disciplina encontra-se presente no GT até hoje
e tem colaborado, de forma significativa, para a sedimentação da Historio-
grafia (da) Linguística no Brasil.
Em julho de 1998, o GT participou do XIII Encontro Nacional da
ANPOLL, em Campinas. Na ocasião, houve a reafirmação das metas a se-
rem atingidas pelo Grupo nos próximos dois anos, relacionadas à política de
acervos e de criação de “bancos de memória” sobre a linguística brasileira.
Também ocorreu a rediscussão sobre as tarefas a serem desenvolvidas pelos
membros do GT, tendo sido reiteradas as principais temáticas que estavam
em processo de formação, a saber: História dos estudos sobre a linguagem
e as línguas no Brasil e História da linguística missionária. No encontro, foi
oficialmente incorporada uma terceira temática de pesquisa, Gramaticologia
e Gramaticografia da Língua Portuguesa. De acordo com a então coordena-
dora do GT, Cristina Altman, todos os projetos em andamento e os planos de
trabalho previstos pelos novos participantes do GT para o biênio 1998-2000
inseriam-se nas diferentes linhas existentes no Grupo.
Como participantes do GT, temos constatado que, nos últimos anos, o
número de interessados em se integrar ao Grupo tem aumentado, o que nos
mostra que a Historiografia (da) Linguística continua em expansão.
É relevante destacar que outro caminho de institucionalização da His-
toriografia (da) Linguística são os eventos que se realizam fora do âmbito
do GT da ANPOLL, tanto na USP quanto na PUC-SP. A título de exemplifi-
cação, mencionamos o evento comemorativo dos 20 anos do GT, que acon-
teceu na PUC-SP, em novembro de 2015. Nele, ficou evidenciado que seus
membros têm se dedicado tanto à busca e ao tratamento de fontes primárias
relativas aos agentes, aos contextos e aos produtos da atividade com a lingua-
gem — tendo, por vezes, resultado em acervos documentais — quanto aos
estudos monográficos que objetivam descrever, analisar e interpretar percur-
sos históricos relevantes para a conformação da área de especialidade no país.

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
79
Outro veículo dessa institucionalização da Historiografia (da) Linguís-
tica no Brasil foram as publicações sobre esse tema e, como exemplificação,
selecionamos alguns dos trabalhos publicados por Altman. O primeiro deles
é o artigo “Memórias da Linguística na Linguística Brasileira”, lançado na
Revista da ANPOLL, em 1996. Nele, a autora descreve o modo como con-
ceituados pesquisadores brasileiros, em suas áreas de especificidades, em ma-
nuais sobre linguística, abordaram os objetos históricos, relacionando-os ao
desenvolvimento da disciplina linguística. Nesse trabalho, houve um especial
destaque à seleção dos fatos, ao foco, às motivações, ao tipo de orientação
dado pelos autores aos seus textos. Após descrever e analisar de forma deta-
lhada os pontos destacados, abordando questões sobre o fazer historiográfico,
Altman finaliza seu trabalho concluindo que

A primeira geração de linguistas dos anos sessenta, embora compartilhassem


resumidamente dos dois tipos de saberes — o “filológico” e o “linguístico”
— não passaram à nossa geração senão os do segundo tipo. Certamente, é
no intuito de suprir esta descontinuidade que vemos (res) surgir, em nossos
currículos de linguística, ‘velhas’ disciplinas de orientação histórica e, princi-
palmente ‘novos’ manuais de ‘linguística histórica’, de ‘linguística românica’,
de ‘dialetologia’, sobretudo a partir dos anos noventa. Nossas historiografias
summing ups contemporâneas, neste sentido, ao trazerem o passado da(s)
disciplina(s) Linguística(s) para o centro das atenções, parecem assumir no
contexto contemporâneo brasileiro uma função complementar àquela dada
por Koerner. Além de reconstruírem os caminhos que, do seu ponto de vista,
levaram ao estado atual dos estudos linguísticos nas suas respectivas especiali-
dades, restabelecem, na percepção das atuais gerações de linguistas brasileiros
em formação, a continuidade com as tradições interrompidas na medida em
que permitem resgatar um ‘texto’ que, durante três décadas, por desejos de
modernidade, temos apagado de nossa memória. (ALTMAN, 1996, p. 185-186)

Portanto, esse trabalho de cunho historiográfico evidencia como os


linguistas brasileiros, em um determinado contexto temporal, produziram
o conhecimento linguístico, apagando aspectos relevantes nele presentes e
destacando aqueles que, para esses pesquisadores, naquele momento parecia
significativo. A autora mostra também, como trinta anos depois, há um mo-
vimento objetivando recuperar esse apagamento com a publicação de estudos

80 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


históricos visando a que as novas gerações de linguistas em formação tives-
sem a percepção de que não havia ocorrido descontinuidade na linguística
brasileira. Em síntese, com esse estudo, Altman mostra ao leitor qual a dife-
rença entre trabalhos históricos e trabalhos historiográficos.
A segunda publicação que consideramos relevante comentar no que diz
respeito à institucionalização da Historiografia (da) Linguística no Brasil é o li-
vro A Pesquisa Linguística no Brasil (1968-1988), lançado em 1998. A obra é uma
versão atualizada da Tese de Doutoramento da autora e é considerado o pri-
meiro trabalho historiográfico de fôlego sobre a produção Linguística Brasileira.
Nele, Altman mostra que o fazer historiográfico não se resume à com-
pilação de datas, fatos, títulos e nomes ligados ao estudo das línguas e da
linguagem. Ela enfatiza que “Historiografias não são ‘crônicas’, ou seja, listas
de nomes, datas, títulos e eventos ligados às línguas e à linguagem, no caso”
(ALTMAN, 1998, p. 24). Destaca, ainda, que a atividade historiográfica im-
plica, sistematicamente, seleção, ordenação, reconstrução e interpretação dos
fatos significativos (história rerum gestarum) para o quadro de reflexão que o
historiógrafo constrói. Outro aspecto relevante que a autora apresenta nesse
livro é a distinção entre história e historiografia, mostrando que elas têm
estatutos e dimensões diferentes, não sendo, portanto, coextensivas.
Ela conceitua a Historiografia (da) Linguística como uma disciplina
científica, cujos objetivos são descrever e explicar como foi produzido o co-
nhecimento linguístico em determinado contexto social e cultural, ao longo
do tempo. Assim, o fazer historiográfico aborda tanto a dimensão cognitiva
do desenvolvimento da disciplina, a chamada dimensão interna, quanto a
dimensão individual e social, denominada dimensão externa.
Com base nas ideias de Kuhn, Altman retoma o tema do progresso
científico, mostrando que, para o estudioso, cada nova etapa de evolução
traz ruptura em relação com conhecimento anterior. Portanto, em lugar de
continuidade e acumulação, ocorreriam, em intervalos de tempo, períodos
de descontinuidade e de ruptura, introduzindo um novo paradigma, que se
oporia ao modelo anterior. Considera que essa proposição kuhniana afeta a
tarefa do historiógrafo de uma disciplina científica e, nesse sentido, propõe
a seguinte questão: “reconstruir práticas científicas passadas é rastrear seus
momentos de continuidade, ou os de ruptura? (ALTMAN, 1998, p. 27)”
Ela responde à questão levando em conta os seguintes aspectos: ob-
servarem-se as ideias linguísticas considerando se elas contribuíram ou não

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
81
para o estágio atual de uma área de conhecimento é um viés que deve ser
evitado; negar a contribuição de tradições anteriores para o estágio atual de
desenvolvimento de um campo científico não é uma visão razoável e o fato
de o conhecimento produzido não ser resultante da simples acumulação de
conquistas passadas e progressivas não significa, necessariamente, que tenha
havido só rupturas, uma vez que “o passado informa o presente” (ALTMAN,
1998, p. 27), afirma a autora. Por fim, ela destaca que, se cabe à historiogra-
fia linguística (re)estabelecer os pressupostos adotados pelos linguistas do
passado em seu fazer científico e as consequências de suas proposições para
o conhecimento que o historiógrafo produz sobre a linguagem e as línguas,
a investigação das condições de produção e de recepção do conhecimento
linguístico é um elemento importante para o conhecimento do historiógrafo
dos “traços constitutivos da(s) ciência(s) da linguagem contemporâneas(s),
e das suas metodologias” (ALTMAN, 1998, p. 28). Finalmente, conclui que

Esta questão coloca para a historiografia problemas metodológicos interes-


santes. Como reconstruir (e narrar) as diferentes etapas e fases por que passou
uma disciplina científica, dada a complexidade das variáveis envolvidas nestes
processos, complexidade agravada, por sinal, pelas coerções sociais e históri-
cas que inevitavelmente recaem sobre o historiógrafo? (ALTMAN, 1998, p.28)
(grifo nosso)

Altman expressa a mesma preocupação já verbalizada por Koerner


(1996, 2014b) em alguns de seus trabalhos. Assim, nesse capítulo, ela anuncia
a metodologia de análise para o trabalho em desenvolvimento: retomada das
dimensões internas e externas do desenvolvimento da disciplina e sua repro-
posição em termos de programas de investigação, de tradição da pesquisa,
dos grupos de especificidade e do tipo de retórica. Frente à importância da
metodologia no trabalho historiográfico, passamos a tratar desse tema na
perspectiva de Koerner.

3. Os princípios metodológicos de Koerner


Segundo Koerner (1996), é na década de 1980 que ocorre um intenso debate
sobre questões metodológicas no fazer historiográfico. O autor destaca que
há vários problemas a serem enfrentados pelo historiógrafo da linguística

82 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


como aqueles relacionados à periodização, à contextualização, aos procedi-
mentos de investigação. Além desses, cita os relativos às mudanças de ênfase
na prática da linguística atual, a identificação de diferentes fases de desenvol-
vimento num quadro teórico particular, ou em um período de tempo mais
amplo, e o papel de fatores externos, como os socioculturais na rejeição de
um referencial teórico.
Ele tece várias críticas sobre o uso de terminologia moderna na des-
crição do pensamento linguístico de momentos pretéritos, apontando que
essa prática tem gerado muitos problemas na compreensão das teorias do
passado. Denomina de ‘questão da metalinguagem’ a linguagem “empregada
para descrever ideias do passado sobre linguagem e linguística” (KOERNER,
1996, p. 59). Para solucionar esses problemas, propõe três princípios meto-
dológicos que devem orientar o trabalho historiográfico: a contextualização,
a imanência e a adequação, quando o foco do estudo é um texto de períodos
mais antigos.

3.1 Princípio de Contextualização


Objetiva apresentar o ‘clima de opinião’ da época em que foi o elaborado o
documento sob análise. Compor esse contexto implica a apresentação das
correntes intelectuais desse período, ou seja, as formas de pensar que deixa-
ram marcas no pensamento linguístico daquele momento, pois, para Koerner,
as ideias linguísticas nunca se desenvolveram independentemente de outras
correntes intelectuais de um dado momento. Assim, é fundamental traçar
um panorama das teorias políticas, econômicas, linguísticas, filosóficas, edu-
cacionais, dos movimentos artísticos, enfim das diversas manifestações de
pensamento daquele momento histórico, objetivando verificar sua influência
no conhecimento a ser analisado.
Segundo Batista (2013, p. 76),

Esse princípio é responsável por situar uma obra e seu autor num quadro
de reflexão mais amplo, considerando que a produção e a recepção de ideias
não se dão de forma isolada, uma vez que os diferentes campos dos estudos
da linguagem, exatamente por lidar com o componente que ajuda a definir
o homem diante de outras espécies, encontram-se em relação constante com
outros horizontes de reflexão sobre o que constitui o homem e sua produção

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
83
intelectual e social nos diferentes recortes históricos. Encontra-se, nesse prin-
cípio, a vocação interdisciplinar que define a Historiografia da Linguística
como uma observação analítica sobre eventos dos estudos da linguagem situ-
ados historicamente.

3.2 Princípio de Imanência


Tem por objetivo estabelecer um entendimento completo do texto em análi-
se, abrangendo aspectos históricos, críticos e, inclusive, filológicos. Em outras
palavras, o historiógrafo deve buscar o fundamento teórico que embasou o
trabalho, bem como a terminologia usada no texto, evitando, portanto, teo-
rias e termos da Linguística atual, ou seja, tanto a teoria quanto a termino-
logia devem emergir do próprio texto. De acordo com Batista (2013, p. 76),

Aproximações com visões contemporâneas devem ser evitadas, em nome de


um tratamento próximo ao filológico para o objeto em análise; em outras
palavras, o que se pretende é compreender o objeto de análise em sua pró-
pria natureza e configuração social e temporal, isto é, analisar o pensamento
linguístico tal como ele se define. Pensa-se na fidelidade ao conteúdo do tra-
balho, já que se considera um posicionamento que entende que só a “leitura
filológica crítica poderá fazer com que intuições surjam diante do material
que se pretende analisar.

3.3 Princípio de Adequação


Diz respeito a aproximações modernas, que podem ser feitas pelo historió-
grafo e apresentadas de forma explícita e cuidadosa, do vocabulário técnico e
um quadro conceptual de trabalho, com vistas a um melhor entendimento e
avalição do objeto estudado. Ele deve aplicado quando os dois anteriores já fo-
ram realizados, para garantir que o texto tenha sido situado e compreendido.
Para Batista (2013, p. 77),

Após a observação dos dois primeiros princípios, o historiógrafo encontra-


-se em condições de realizar análises, aproximações, avaliações críticas que
iniciam a construção da narrativa historiográfica, em que relações são esbo-
çadas, e esforços interpretativos passam a ser os primeiros passos de uma re-
flexão a respeito da proposição, do desenvolvimento e da recepção de saberes
linguísticos em contextos históricos traçados e já analisados.

84 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


Caracterizada a Historiografia (da) Linguística e apresentados os seus prin-
cípios metodológicos, trazemos o estudo de caso selecionado para este trabalho.

4. A História Entrelaçada e os princípios metodológicos de Koerner


O Grupo de Pesquisa em Historiografia da Língua Portuguesa da PUC-SP
nasceu em 1996. Tendo como líder e vice-líder Neusa Maria Oliveira Barbosa
Bastos e Dieli Vesaro Palma, respectivamente, o grupo, cadastrado no CNPq1
tem por objetivo

[...] descrever/explicar como se produziu/desenvolveu o conhecimento linguís-


tico em certo contexto sociocultural através do tempo, com base na inter-
pretação crítica do processo discursivo da produção contextualizada sócio-
-histórico-culturalmente no Brasil: 2ª metade do século XX (década de 70).
Visa-se à reconstrução das práticas científicas e ao rastreamento de momentos
de continuidade/ruptura, focando o tipo de Política Linguística adotada em
relação às produções realizadas em LP.

Em 23 anos de existência, o grupo, com base nos princípios de Koer-


ner (1996) e Swiggers (2010), estabeleceu uma metodologia própria de in-
vestigação, isto é, traçou princípios que norteariam o “fazer historiográfico”,
dando origem à coleção História Entrelaçada, doravante HE, hoje em seu
nono2 volume.
Assim, apresentamos o percurso dessa obra, das origens, em 2004, até
os dias atuais no que diz respeito ao estabelecimento desses princípios numa
dimensão meta-historiográfica que, retomando as concepções de Swiggers
(2017, p. 40), assim se instaura: “por meta-historiografia — campo de estudo
que se desenvolveu bastante nos últimos anos — entendo o trabalho reflexivo
sobre o labor historiográfico e, especialmente, sobre seus aspectos metodo-
lógicos e teóricos”.
O primeiro volume da HE (BASTOS; PALMA, 2004), cujo objetivo era
o de “verificar as diferentes conceções de gramática e sua estrutura […] ten-
do em vista a observação das diferentes formas de se entender o ensino de

1
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7293527498554039 (acesso em 03 set 2019)
2
Esta publicação tem edições bienais; em 23 anos de existência do grupo, a partir de 2004, foram lança-
dos 8 volumes, estando o 9º no prelo com previsão de lançamento para 2020.

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
85
Língua Portuguesa”, traz exatamente essa reflexão a que se refere Swiggers,
quando Bastos e Palma (2004, p. 10) afirmam ter cumprido

os procedimentos metodológicos da Historiografia Linguística, de acordo com


Koerner e Swiggers, para o desenvolvimento das formas de implantação, ex-
pressão e normatização de uma língua sobre prismas históricos sucessivos e
descontínuos.

Nesse sentido, as autoras delineiam a concepção de Historiografia (da)


Linguística do referido grupo a partir também dos estudos de Altman, que
diferencia as concepções de História e Historiografia, mostrando suas rela-
ções no que diz respeito ao trabalho historiográfico:

História e historiografia da Linguística têm, pois, estatutos e dimensões di-


ferentes, principalmente, não são coextensivas. Suas relações são comparáveis
àquelas existentes entre uma gramática descritiva e a língua que ela descreve
[…] Assim como a gramática não esgota (e nem pretende esgotar) a língua
sob descrição em toda a sua complexidade, o trabalho historiográfico também
efetua esse recorte. (ALTMAN, 2009, apud BATISTA, 2013, p. 47)

Por esse prisma, o grupo de Historiografia da Língua Portuguesa da


PUC-SP “recortou” a pesquisa historiográfica traçando o percurso da língua
portuguesa, “relacionando ensino de língua materna e gramáticas tradicio-
nais […] baseadas num discurso sobre o passado, sem [mencionar] a histó-
ria dos fatos passados como mero registro da história, mas considerando-os
como dimensão interna a ser investigada”, de acordo com Bastos e Palma
(BASTOS; PALMA, 2004, p. 11).
A partir de então, foram discutidos os princípios básicos do fazer histo-
riográfico que originaram os passos investigativos norteadores das primeiras
pesquisas sobre língua portuguesa na perspectiva da Historiografia Linguísti-
ca na PUC-SP. A HE trouxe não só uma proposta metodológica, mas também
a possibilidade de um diálogo rico e profícuo com o Grupo de Historiografia
Linguística da USP, aqui representado por seu ícone maior: Cristina Altman.
Compreendemos naquele momento histórico a importância de estabe-
lecer a pesquisa historiográfica no Brasil a partir das contribuições do grupo
liderado por Altman, ampliando o campo de investigação a partir dos prin-

86 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


cípios básicos que norteariam o trabalho do historiógrafo; em nosso caso,
seriam três: a) contextualização; b) a imanência e c) a adequação. Apresen-
tamos cada um deles a fim de ilustrar o percurso de nossas investigações.
Sobre a contextualização, Bastos e Palma (2019, p. 8) assim se pronunciam:

O primeiro princípio refere-se às mais variadas correntes — filosóficas, políti-


cas, econômicas, científicas e artísticas que, ao se interinfuenciarem, marcam
indelevelmente todo um determinado período histórico, e dentro dele, portan-
to, o pensamento linguístico e a sociedade em geral. Isso nos impele a recorrer
ao “clima de opinião” cultural da época em que determinado pensamento se
desenvolveu; clima formado pelo endosso e pelo abandono de valores, a partir
da revisão de paradigmas.

Assim, a contextualização denota a importância de se considerar o mo-


mento histórico em que uma determinada obra foi produzida, cabendo ao histo-
riógrafo conhecer esse contexto tendo uma perspectiva mais distante e objetiva.
O segundo princípio refere-se ao papel do historiógrafo propriamente dito
que se esforça para, de acordo com as autoras (BASTOS; PALMA, 2019, p. 8),

entender o texto produzido no período enfocado de forma completa, histórica


e criticamente, e filologicamente se possível, sem se desviar da fidelidade ao
que foi dito, ou seja, cabe-lhe respeitar não só o quadro geral da teoria em
questão, como também as acepções terminológicas definidas internamente, e
não em referência à doutrina linguística moderna, qualquer que seja a linha
teórica que o embase.

No que diz respeito ao terceiro princípio, temos (BASTOS; PALMA,


2019, p. 9):

[o] momento de o historiógrafo, de forma implícita, aventurar-se a introdu-


zir aproximações modernas do vocabulário técnico e a construir um quadro
conceitual de trabalho que permita a apreciação dos textos analisados, seus
conceitos e teorias, com a constatação das afinidades de significado que sub-
jazem a ambas as definições.

A partir daí, o percurso de pesquisa e de reflexões levou o Grupo de


Historiografia da Língua Portuguesa da PUC-SP a estabelecer “passos inves-

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
87
tigativos” que serviram como base na análise da produção linguística. Vale
ressaltar que tais passos surgiram dos princípios estabelecidos por Koerner
(1996) e Swiggers (2010) e assim se apresentam em quatro momentos: sele-
ção, ordenação, reconstrução e interpretação.
Num primeiro momento, ocorreu a seleção de documentos gramaticais
que seriam objetos de estudo, privilegiando-se os mais representativos nos sé-
culos que se buscava estudar, quais sejam: XVI, XVII, XVIII, XIX e XX. A par-
tir daí, procedeu-se à ordenação e, de acordo com Bastos e Palma (2019, p. 9),

em havendo mais de um, selecionamos por século, imprimindo uma ordem


cronológica, em nosso caso particular, uma vez que pretendíamos estabelecer
um percurso histórico/historiógrafo das gramáticas da Língua Portuguesa,
considerando os movimentos linguísticos e as implicações socioculturais re-
ferentes às políticas linguísticas adotadas nos diversos momentos históricos.

No que se refere à reconstrução do conhecimento linguístico, podemos


afirmar que os vários recortes temporais levam “à interpretação crítica do
processo dessa produção contextualizada a partir do clima de opinião/espíri-
to de época delineado” (BASTOS; PALMA, 2019, p. 9).
Tendo delineados os princípios e os passos investigativos, apresentou-
-se-nos a necessidade de observar as fontes de pesquisa que se caracterizaram
em primárias e secundárias, sendo as primárias os documentos originais e as
secundárias aquelas que traziam estudos e considerações relativos aos docu-
mentos selecionados. É importante salientar que, numa abordagem historio-
gráfica, as dimensões cognitivas e sociais são de grande valor, de modo que,
segundo Batista (2013, p. 65),

O estudo de uma dimensão social do conhecimento linguístico, aliado a uma


observação a respeito dos conteúdos elaborados e expostos em obras de descri-
ção e análise sobre fenômenos das línguas naturais, compreende uma análise
dos efeitos na vida social de seus agentes (…). Consequentemente, o alcance do
conhecimento não é individual, mas, muito pelo contrário, resultado de em-
preendimentos sociais e coletivos, ainda que a imagem divulgada da ciência e
do saber intelectual priorize a figura do indivíduo e provoque uma espécie de
apagamento dos esforços sociais e relações históricas que estão por detrás de
uma divulgação bem-sucedida (ou não) de ideias, projetos, teorias.

88 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


A partir dessas considerações, podemos compreender que tais dimen-
sões são fundamentais para que se estabeleça o método historiográfico, já que
de acordo com Swiggers (2013, p. 44-46) há exigências que devem ser obser-
vadas em relação “à organização do próprio campo. A segunda exigência diz
respeito à organização do próprio trabalho historiográfico. Por se tratar de
um trabalho sobre textos do passado (e do presente) que servem como base
documental”. Ainda segundo o autor, cabem três fases a esse trabalho:

a) uma fase heurística, que compreende as seguintes tarefas: informar-se sobre


as fontes e sua disponibilidade; ler os textos-fontes; “catalogar” ideias, os pon-
tos de vista e a terminologia; contextualizar as ideias, os termos.
b) uma fase hermenêutica, que consiste em uma interpretação, que sempre se
fundamenta no uso de categorias interpretativas. Aqui se pode fazer a distin-
ção entre categorias gerais (os conceitos que fazem parte da metodologia
geral) e categorias específicas (os conceitos que constituem a metodologia
específica). Há de destacar-se o fato de que a interpretação implica uma di-
mensão comparativa, porque (quase sempre) se trata de relacionar conceitos/
autores/modelos.
c) uma fase executiva: a da demonstração dos resultados da investigação.
(SWIGGERS, 2013, p. 44-46, grifo nosso)

No estabelecimento de uma metodologia própria, a partir dos estudos de


Swiggers e Koerner, o Grupo de Pesquisa em Historiografia da Língua Portu-
guesa da PUC-SP adotou como “categoria” um acento forte, saliente em uma
obra, e revelador de um ponto de vista que a alicerça e que pode manifestar-se
nos mais diversos níveis linguísticos, sublinhando, assim, “uma crença em...”.
A categoria, como se vê, resumindo e salientando um intrincado de valores
traduzidos em língua, “reveste-se de tal importância que, alheio a ela, o histo-
riógrafo poderá priorizar o episódico”. (BASTOS; PALMA, 2019, p. 10)
À medida que os estudos avançaram, o grupo reconheceu-se como re-
ferência de uma identidade teórica. Nos anos de 2006 e 2008, as HE2 e 3
abordaram a construção de gramáticas e o ensino de língua portuguesa na
primeira e na segunda metade do século XX, respectivamente.
Há que se considerar ainda que o grupo avançou nos estudos dos princí-
pios básicos, principalmente no que se referia à contextualização e à imanên-
cia, já que, na abordagem do primeiro, tornou-se importante tecer considera-

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
89
ções biográficas sobre o gramático em análise, uma vez que “sua história de
vida tem relação direta com a visão que assume quanto ao ensino da língua
e à concepção de gramática, representando continuidade ou descontinuidade
nos estudos gramaticais de sua época” (BASTOS; PALMA, 2006, p. 13-14).
Em relação ao princípio da imanência, a reflexão voltou-se para o objeto
de estudos no sentido de reconhecê-lo como metalinguístico ou não meta-
linguístico. Nessa medida, ficaram assim descritas as diferenças entre um e
outro objeto e os procedimentos para análise do corpus, de acordo com as
autoras (BASTOS; PALMA, 2008, p. 14-15):

[…] sendo um objeto metalinguístico (gramáticas, manuais didáticos, anto-


logias, etc.) estabelecemos as categorias a partir do próprio objeto, (princí-
pio da imanência), que são em seguida analisadas e discutidas, na sequência
elegemos uma teoria atual para que seja estabelecido o diálogo entre pon-
tos teóricos do objeto analisado e aspectos da teoria selecionada, buscando
nessa aproximação, a convergência entre eles (princípio da adequação). Em
se considerando objeto não-metalinguístico (lei, cartas, documentos oficiais,
etc.), selecionamos um instrumento, a saber, uma teoria linguística que seja
compatível contemporaneamente ao objeto de estudos (princípio da imanên-
cia) e estabelecemos uma teoria posterior a ele que permitirá o cotejo com
os pontos observados, de acordo com o princípio da imanência (princípio da
adequação). (grifo das autoras).

Diante dessa diferença entre os objetos de estudo, novos questiona-


mentos surgiram, considerando especificamente o princípio da contextua-
lização no aspecto da contemporaneidade. Assim, novas reflexões direcio-
naram o grupo para a história do tempo presente que se desenvolveu na
Grécia com Tucídides, mas que só teve reconhecimento no século XX, após
os estudos sobre a Segunda Guerra Mundial e com a criação do Instituto de
História do Tempo Presente (CNRS). Nessa vertente, a adoção da História
do Tempo Presente como critério de análise levou à afirmação de que ao
historiógrafo do tempo presente cabe o rigor científico e o distanciamento
na análise dos documentos “que focalizam fatos dos quais, muitas vezes, o
pesquisador foi testemunha, e da imparcialidade no seu julgamento, deven-
do ser destacada a impossibilidade de uma “pura objetividade”“, de acordo
com Bastos e Palma (2008, p. 15).

90 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


Frente a essas considerações, as questões voltaram-se para o princípio
da adequação no sentido de entender como e se esse princípio seria aplicado,
mediante o fato de o pesquisador estar próximo temporalmente de seu objeto
de pesquisa. Por um lado, acreditamos que tal princípio não seria aplicado
tanto no caso de um objeto metalinguístico, em que a teoria que o embasas-
se fosse atual, quanto no caso de um objeto não metalinguístico em que, de
acordo com as autoras, “a teoria que fundamenta o princípio da imanência
deve ser concomitante temporalmente ao documento sob análise, logo tam-
bém não seria necessária a adequação teórica”. (BASTOS; PALMA, 2008, p.
16). Por outro, seria possível a aplicação do princípio da adequação na me-
dida em que se estabelecessem “relações entre as duas teorias que convivem
no mesmo clima de opinião, apontando-se as convergências e as divergências
entre elas, possibilitando, assim, ampliar a visão crítica do documento pelas
relações teóricas estabelecidas”. (BASTOS; PALMA, 2008, p.16).
Por fim, delineado o percurso metodológico do Grupo de Pesquisa
em Historiografia da Língua Portuguesa da PUC-SP, podemos concluir que
nossa produção historiográfica acerca do conhecimento linguístico no Brasil
muito evoluiu, já que buscamos um caminho próprio que nos possibilitou
uma visão ampla e crítica, capaz de contribuir com as perspectivas meta-his-
toriográficas que por ora se nos apresentam.

Considerações finais
Retomamos as perguntas que orientaram a elaboração deste texto, a saber:
“a) como se deu a instalação da Historiografia (da) Linguística no Brasil;
b) qual foi a contribuição de Cristina Altman nesse processo de instalação
e de institucionalização dessa disciplina; c) quais foram os desdobramentos
dessa institucionalização dessa disciplina no estudo de um caso específico, o
do Grupo de Pesquisa em Historiografia Linguística da PUC-SP?” Quanto à
primeira, podemos afirmar que ela se inicia com a defesa da tese de douto-
ramento de Cristina Altman, prossegue com a criação do GT de Historio-
grafia na ANPOLL, firma-se com a oferta e institucionalização de disciplinas
na Pós-Graduação da USP, amplia-se com os encontros no GT da ANPOLL
e nos eventos realizados em instituições universitárias e espalha-se com a
criação de Grupos de Pesquisa, que vêm desenvolvendo estudos de diferente
natureza nessa área.

Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
91
No que diz respeito à segunda pergunta, vamos enfatizar, mais uma vez,
que ela se concretizou graças ao empenho e aos esforços de Cristina Altman,
que, desde a década de 1980, por mais de 30 anos, batalhou para que ela fosse
conhecida nos meios acadêmicos brasileiros e neles criasse raízes. Foi um
processo longo, que ainda está em desenvolvimento e que tende a crescer e a
angariar cada vez mais pesquisadores.
No que tange à terceira questão, podemos afirmar que o Grupo de His-
toriografia Linguística da PUC-SP iniciou seu percurso pautado nos ensina-
mentos de Koerner e Altman e que, a partir deles, ampliou aspectos relacio-
nados a questões metodológicas, visando a atender a sua agenda de pesquisa.
Em síntese, podemos afirmar que a Historiografia (da) Linguística no
Brasil está consolidada como uma disciplina científica, interdisciplinar, com
princípios metodológicos reconhecidos, com vertentes de trabalho definidas,
graças à persistência e contribuições de Cristina Altman. É o que ocorre com
o Grupo de Pesquisa em Historiografia Linguística da PUC-SP, que, além de
pautar-se pelos princípios metodológicos de Koerner, desenvolve seus estu-
dos em três vertentes: aquela cujo objeto de estudo é metalinguístico, a que
focaliza objetos não-metalinguísticos, tendo, portanto, como foco a lingua-
gem e a que aborda questões lusófonas. Temos ainda de destacar a vertente
de investigação que vem sendo desenvolvida pelo professor doutor Ronaldo
de Oliveira Batista, cujos estudos têm focalizado a análise retórica (BATISTA,
2019). Ao finalizar este percurso de reflexão sobre o conhecimento historio-
gráfico produzido no Brasil, constatamos que a semente plantada por Alt-
man, em 1983, vingou, criou raízes e tornou-se uma árvore vigorosa e viçosa.

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92 Dieli Vesaro Palma e Nancy dos Santos Casagrande


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Os princípios da análise historiográfica e a contribuição de Cristina Altman para a Historiografia da Linguística no Brasil
93
O FAZER
Introdução
Para refletir sobre a pluralidade de

HISTORIOGRÁFICO:
maneiras de se fazer um estudo his-
tórico/historiográfico, parece-nos
re­levante apontar, através dos tem-

DIMENSÕES/ pos, os modos de descrição e expli-


cação dos fatos humanos em mo-

PARÂMETROS
mentos e lugares diversos, iniciando
uma reflexão pelo saber histórico.
Considera-se, entre todos os

EXTERNOS E
saberes de relevância para os su-
jeitos inseridos em uma socieda-
de, o saber histórico, como uma

INTERNOS das mais importantes capacidades


da memória humana, influente na
formação cultural, política e social
Neusa Barbosa Bastos do sujeito. De acordo com Bento
(2013), a partir de nossos conhe-
cimentos, surge uma responsabili-
dade social, um aprendizado para vida. O conhecimento histórico, fincado no
passado, abre-nos perspectivas acerca das sociedades contemporâneas, marca-
das profundamente pelos impactos causados pelas inovações técnicas e tecno-
lógicas que instituem novas linguagens e necessidades para os indivíduos, com
as quais eles passam a ter que lidar buscando significá-las temporalmente.
Procuraremos discutir, neste texto, as dimensões/parâmetros externos
e internos, componentes importantes para a constituição do saber histórico
que se constrói assentado em nosso conhecimento acerca do homem, de seus
feitos, de seus pensamentos e de sua elaboração acerca desses elementos na
descrição dos argumentos presentes no texto a ser analisado e da relação
deste a uma tradição de pensamento em determinado grupo de especiali-
dade. Tais preocupações nos levam a buscar entender como se constituíram
os termos história e historiografia através dos tempos, relacionados a essas
dimensões/parâmetros, iniciando por Koselleck (2016), que apresenta como
uma das características estruturais da história o fato de que
[...] ela reduziu a um mesmo conceito a contemporaneidade de coisas não con-
temporâneas, ou a não contemporaneidade de coisas contemporâneas — apro-
ximando-se também aqui ao progresso. Isso é válido não só no sentido evidente
de que toda e qualquer narrativa traz o passado para o presente, eliminando,
dessa forma, as diferenças temporais que tematiza. Muito além disso, a realida-
de da História moderna se compõe de uma multiplicidade de transcursos que,
pelo calendário, são contemporâneos, mas que pela origem, pelo objetivo e pe-
las fases de desenvolvimento não são contemporâneos. Disso decorrem tensões
perspectivas de retardamento e de acelerações, distorções e uniformizações, que
fazem parte de nossa História Mundial. (KOSELLECK, 2016, p. 39)

Traremos, então, considerações acerca das alterações sofridas pelo ter-


mo história durante os períodos em que os filósofos e intelectuais de outras
áreas se interessaram pelo conceito e por suas nuances que foram sendo apre-
sentadas, criticadas, transformadas, adaptadas em seu sentido.

1. A História e as noções de crítica externa e interna


A palavra História, de origem grega, nomeava o “desejo desinteressado de
conhecer elementos característicos da nossa civilização” (Besselaar, 1974,
p.03), designando, num primeiro momento, qualquer tipo de investigação
científica, que buscasse desvendar questões relacionadas ao universo, aos se-
res humanos, aos costumes, às origens e ao passado em geral. Heródoto, pai
da História, empregou-a em dois sentidos diferentes: a pesquisa racional e o
resultado de tal pesquisa. No entanto, foi ainda na Antiguidade que o termo
passou a ser utilizado para designar a narração dos fatos e acontecimentos
do passado numa sucessão temporal.
Em relação à Antiguidade greco-romana, podemos afirmar que, para os
gregos, a história é moral por glorificar o homem, tornando-o um herói, e
pragmática, por projetar a utilidade que se poderá tirar dos conhecimentos
acerca dos fatos passados. Já para os romanos, a história apresenta-se não só
com intenções morais, mas também com intenções patrióticas, por fornecer
bons exemplos de condução da pátria a serem seguidos e maus exemplos a
serem evitados.
Em relação à Idade Média, a história toma uma dimensão filosófica ba-
seada na nova visão de mundo imposta pelo cristianismo triunfante. E os es-

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


95
tudos históricos assentam-se na busca dos sinais precursores da vinda do Sal-
vador à terra. Segundo Glénisson (1986, p. 18), “E a vinda de Cristo tinha um
sentido para todos os homens. Exigia-se, portanto, uma nova concepção da
história universal, na medida em que esta deveria ser dotada de uma unidade”.
Já nos séculos XVI a XVIII, nascem técnicas modernas da história. Glé-
nisson (1986) afirma:

Constitui-se o que se conhece pelo nome de “ciências auxiliares da história”,


surgem os requisitos necessários para erigir-se uma verdadeira doutrina da
crítica erudita. É no século XVII, aliás, que “o nome crítica”, até então desig-
nando apenas uma qualidade do gosto, assume também o sentido de um jul-
gamento de veracidade. De estética que era, a crítica passou a ser, igualmente,
histórica. (GLÉNISSON, 1986, p. 19)

Caracteriza-se, então, uma erudição histórica à base do espírito crítico


nascido nesse momento de crítica histórica, na qual os historiadores são eru-
ditos, geralmente, ligados ao clero, no entanto, aos laicos, cabia a tarefa de
complementação da disciplina dos mosteiros por meio de uma organização
espontânea, agrupando-se em cenáculos, cedendo suas excelentes bibliotecas,
pesquisando e colecionando informações sobre vários assuntos como: filolo-
gia, numismática, matemática, física, história, arqueologia grega, botânica,
orientalismo, filosofia, astronomia.
Ainda no século XVI e também no XVII, encontramos o conceito huma-
nista de história que revela sua conquista metodológica como a consciência
sobre distância temporal e sobre inter-relações e a diferenciação entre fontes
originais e derivadas, o que nos aproxima aos conceitos de fontes primárias
e secundárias considerando fontes primárias aquelas definidas como material
original e não filtrado por interpretações, artigos, capítulos e livros de autoria
de pesquisadores e especialistas sobre o assunto; e fontes secundárias aquelas
vistas como interpretações e avaliações de fontes primárias, exatamente o que
se escreve sobre essa produção, como uma revisão de literatura, por exemplo.
No século XVII, segundo Koselleck (2016), houve uma ampla pesquisa
histórica, que obteve como resultado uma coleção:

Tendencialmente sistemática e completa de antiguidades estatais e “privadas”,


de restos e de fontes, ajeitados com exatidão, sob o ponto de vista antiquá-

96 Neusa Barbosa Bastos


rio e filológico. ... Tentou-se preencher todas as seções da extensiva “historia
universalis”, enquanto junto com a coisa também se perdeu por completo a
“historia universa” ou “integra” do nosso saber. Mesmo tendo se tornado me-
todologicamente dependente, a ampla bibliografia sobre verificação histórica
e credibilidade ficou a reboque da tentativa jurídica de estabelecer a verdade,
sem chegar a princípios próprios de um conhecimento histórico. (KOSELLE-
CK, 2016, p. 102)

No século XVIII, a história, de acordo com o mesmo autor (2016) era vis-
ta como uma narrativa, sempre ligada a um objeto que fazia parte dela, o que

mudou tão logo os historiadores iluministas começaram a tentar apreender a


“História em si”. A “história em si e para si” podia ser pensada sem um sujeito que
lhe fosse atribuído. Comparada com a factividade das pessoas e dos acontecimen-
tos, a “História em si” constituía um metaconceito.” (KOSELLLECK, 2016, p. 122)

Sendo a narrativa de uma série de acontecimentos, não possuía princí-


pios gerais, não podendo ser encarada como ciência, assim havia uma acu-
sação constante dos iluministas contra seus a antecessores que se referia à
questão de eles se restringirem à enumeração dos fatos. Passa, então a histó-
ria a ser assim considerada, segundo Koselleck (2016):

Em 1775 Adelung, finalmente registrou a vitória da “História”. A expressão


possuiria três significados equivalentes que não se perderam. desde então 1.
Aquilo que aconteceu, uma coisa acontecida... 2. A narrativa de tal História
ou de episódios acontecidos: a Histoire... 3. O conhecimento dos episódios
acontecidos, o estudo da Histoire [Geschichtskunde], sem plural. A História é
a mais confiável, mestra da moral”. (KOSELLECK, 2016, p. 133)

No século XIX, o novo conceito de história adquiria uma ideia de to-


talidade, história universal, a mais geral e mais elevada história da ciência.
Paralelamente, tratava-se da história dos homens, conceito que se tem até
os dias atuais e, ainda, a história da natureza mutuamente condicionada à
história dos homens.
Renasce, no XIX, além da passageira euforia ligada à questão do pa-
triotismo, a erudição com rigor científico: pesquisa de documentos de toda

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


97
natureza como: manuscritos, inscrições, monumentos, tudo o que é útil à
história. Os eruditos reúnem-se em Academias de onde surgem produções
extensas e variadas e, em consequência, organizam-se, nas nações europeias
e americanas, as bibliotecas nacionais. Por exemplo, de acordo com Besselaar
(1974): a biblioteca americana do sul

do Rio de Janeiro foi fundada por decreto de 29 de outubro de 1810, fican-


do provida dos 60.000 volumes que o Príncipe-Regente, o futuro D. João VI,
trouxera da sua biblioteca do Palácio da Ajuda. (BESSELAAR, 1974, p. 153)

Nesse período, os historiadores passam de investigadores à procura de


documentos, a juízes à procura do julgamento da veracidade, estabelecendo
valor objetivo dos documentos que passam a ser vistos como testemunhas
autênticas que devem ser interrogadas criteriosamente. Foi o momento em
que, de acordo com Besselaar (1974, p. 158), a crítica histórica, “exame ju-
dicioso das fontes, visto nem tudo nelas se encontra verdadeiro”, tornou-se
“o método científico para separar nos documentos a verdade do erro e da
mentira, a certeza do que é provável ou apenas possível”, dividindo-se em
crítica externa e crítica interna.
Da primeira, crítica externa, deve-se lembrar que as perguntas a serem
respondidas referem-se: 1) ao documento e seu estado original: crítica da
restauração; 2) ao autor, local em que viveu, momento em que escreveu, em
que circunstâncias se achava no momento de escrever o documento: crítica
da autoria; 3) aos conhecimentos diretos ou indiretos que o autor tinha dos
fatos e, sendo indiretos, de que fontes teria retirado os documentos: crítica
da procedência. Trata-se, portanto, de examinar elementos que interferem na
elaboração de um determinado documento, envolvendo-se as questões de
clima de opinião e de influência como abordaremos adiante.
Da segunda, crítica interna, deve-se lembrar que o objetivo é o valor do
depoimento dado pelo documento e, na parte chamada Hermenêutica, as per-
guntas a serem respondidas referem-se: 1) ao dito do autor, na busca do sentido
da comunicação feita pelo documento; 2) à intenção do autor, levando-se em
consideração o auditório e, ainda, enquadrando o documento na época e no
lugar em que foi escrito. No item intitulado Crítica da Objetividade, conside-
ram-se três partes: crítica da competência — verificar se se pode, à testemunha
original a que remonta o documento, atribuir credibilidade; crítica da sinceri-

98 Neusa Barbosa Bastos


dade — verificar por meio de depoimentos a fidedignidade da testemunha e
crítica de controle — verificação de mais de uma testemunha em confronto.
Consideraremos aqui apenas o primeiro item que trata então de analisar os
sentidos expressos pelo autor a partir da leitura e da análise do documento.

2. A História e a Historiografia: o conceito e suas variações


No século XX, após a nova história eclodir na França nesses anos novecentos,
passou a vigorar uma tendência historiográfica que se volta para a recupe-
ração da historicidade sem deixar de lado a dinâmica social que impulsiona
os movimentos humanos. As inovações que se manifestaram por meio da
intelectualidade do início do século XX dizem respeito a três tendências na
França: 1) a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma
história-problema; 2) a história de todas as atividades humanas e não apenas
a história política; 3) a colaboração de outras disciplinas tais como: geografia,
sociologia, psicologia, economia, linguística, antropologia social e outras.
O movimento dos Annales apresenta uma forma de se fazer história por
meio da junção harmônica de uma organização cronológica e de uma temá-
tica, o que levaria a descrições de lutas entre grupos conflitantes em relação
a ideias ou a quaisquer outras manifestações: econômicas, sociais, geográficas
etc. A periodização não era mais uma preocupação dos historiadores, pois
eles não se limitavam a um período histórico convencional. Determinado um
período, localizava-se um problema, o que significava que se deveria escrever
uma história de longa duração3 e, por meio da busca de solução do problema,
enfocava-se o fenômeno histórico que era explicado em termos de seu tempo
e não em função de tempos anteriores.
De acordo com Bastos (2004)4, tem-se como representantes iniciado-
res desse movimento, considerados como a primeira geração da Escola dos
3
Entendemos por história na longa duração quando visualizada em séculos, por ser estrutural. De acordo
com Braudel (2007, p.49): “para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura,
porém mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estrutu-
ras ... tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações”. Nessa estrutura, a velocidade das
mudanças é quase imperceptível para o indivíduo comum e é também indispensável para o tipo de his-
toriografia sugerida pelo autor. De acordo com Barros (2018, p. 184) “a perspectiva da ‘longa duração’
deve vir acompanhada da percepção de que os ritmos dos diversos processos históricos não precisam
necessariamente coincidir-se”.
4
O item três do presente texto apoia-se nos meus primeiros incursos sobre as questões da Historiografia
Linguística pelo pertencimento ao Grupo de Trabalho Historiografia da Linguística Brasileira ligado à
ANPOLL, criado por Cristina Altman. Trata-se do capítulo de um livro organizado por mim, perten-

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


99
Annales, Lucien Febvre e Marc Bloch, ambos da Escola Normal Superior de
Paris. O primeiro introduz a geografia que traçava perfil nítido dos contornos
da região, traçando assim o percurso de uma geografia histórica; o segundo
revela interesse menor pela geografia e maior pela sociologia. Pertencente à
segunda geração, consideremos Braudel, que esteve como professor na USP,
entre 1935 e 1938, e que enfatizou a insignificância dos eventos e as limi-
tações impostas à liberdade de ação dos indivíduos situados num contexto.
Conforme Burke (1997, p. 49), “a verdadeira matéria do estudo é essa história
‘do homem em relação ao seu meio’, uma espécie de geografia histórica, ou
como Braudel preferia denominar, uma ‘geo-história’”.
Historiador inquieto, Braudel debate entre os limites da liberdade in-
dividual e o determinismo e tem como meta articular o social, o político, o
econômico e o cultural na maneira de ver os fenômenos e escrever a história.
Aproximando-se do cultural, distanciou-se, entretanto, da história cultural,
um dos movimentos da época, que trazia no bojo a história das mentalidades.5
A terceira geração, depois de 1968, apresenta três correntes, a saber: 1)
a redescoberta da história das mentalidades; 2) a tentativa de empregar mé-
todos quantitativos na história cultural; 3) a reação contrária a tais métodos
que tende para um ressurgimento da narrativa, um retorno à política e uma
antropologia histórica.
A preocupação, portanto, fixava-se no rigor analítico, visando ao julga-
mento da veracidade e ao estabelecimento do valor objetivo dos documentos,
com base em critérios científicos, no entanto, devemos afirmar como Lucien
Febvre que a história é sempre filha de seu tempo, havendo necessidade de se
retomar estudos já realizados por não se admitir mais o pensamento histórico
que as perpassa.
Dessa maneira, podemos afirmar que os movimentos influentes na his-
tória levaram a inovações associadas aos mencionados franceses que utiliza-
ram métodos comparativos e quantitativos, voltaram-se para a interdiscipli-
naridade e assumiram uma história de longa duração. Mostraram-se volun-
taristas, deterministas históricos ou geográficos, contribuindo com diversas

cente a uma coleção da EDUC (Editora da PUC/SP), intitulado: Língua Portuguesa em calidoscópio. São
Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p. 73-83.
5
Por história cultural, entendemos um estudo das práticas culturais, sejam elas quais forem (econômicas
ou culturais) dependem das representações utilizadas pelos indivíduos para darem sentido ao mundo.
Por história das mentalidades, entendemos um estudo das atitudes e comportamentos coletivos pela sua
quantificação num espaço de tempos mais longo, buscando contato com outras ciências humanas.

100 Neusa Barbosa Bastos


possibilidades de se fazer história: história problema, história comparativa,
história psicológica, geo-história de longa duração e antropologia histórica.
Posto isso, passamos a perscrutar o século XX, observando as inclina-
ções relativas ao fazer histórico, tanto francesas, quanto britânicas e norte-a-
mericanas. Não podemos deixar de mencionar a diferença entre a tradição
francesa com sua abrangência interdisciplinar, voltada para a conjuntura e
para as mentalidades coletivas e a tradição inglesa empirista voltada para o
seu individualismo metodológico.
É na tradição historiográfica norte-americana que nos apoiaremos a
seguir para a continuidade do panorama da historiografia. Segundo Moura
(1995), a historiografia norte-americana no século XX deve ser pensada

[...] como parte da história intelectual [...] como a história de esquemas con-
ceituais que os autores utilizam, consciente ou inconscientemente, assumida
ou implícita, para explicar a experiência passada. Neste sentido, isto é, da
historiografia como parte da história intelectual, procura utilizar uma abor-
dagem ao mesmo tempo “internalista” e “externalista”; em outras palavras,
procura ver o movimento das ideias como desenvolvimento e transformação
de correntes de pensamento pretéritas e, ao mesmo tempo, procura verificar
de que modo os contextos (social, nacional, internacional) condicionam (ou se
relacionam) aquelas ideias e sua transformação. (MOURA, 1995, p.14)

Convém mencionar que a historiografia americana estabeleceu a his-


tória social, a história política, a história intelectual, a história diplomática e
outras, fragmentando o conhecimento histórico como seguidora do espírito
de época, tendências vigentes de um modo geral em todo o mundo.
Em seguida, devemos citar, na historiografia norte-americana, a abertu-
ra da história ao diálogo com outras ciências humanas e sociais, num proces-
so de mútuo enriquecimento, o que também ocorreu para os seguidores da
Escola dos Annales. E, paralelamente, uma abertura maior para as correntes
historiográficas estrangeiras: a social britânica, voltada para o renovado inte-
resse pelo marxismo, e a Nouvelle Histoire francesa, “com uma grande preo-
cupação com tendências de longa duração e uma relativa despreocupação
com pensadores individualizados” (Burke, 1997, p. 118).
O conceito de história/historiografia, de acordo com Martins (2002),
pode ser empregado para designar diversas realidades, diferenciadas da se-
guinte forma:

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


101
O primeiro uso, e bastante óbvio, é a aplicação do termo “história” à totalida-
de das ações humanas no tempo e no espaço. Nesse sentido, “história” remete
à concretude dos atos das pessoas (incontáveis), marcados pela racionalidade
dos motivos e das intenções, imersas na cultura concreta de que cada um, de
uma ou de outra forma, é necessariamente dependente (mesmo que dela não
seja forçosamente prisioneiro). Um segundo uso, igualmente corriqueiro, é o
de chamar de “história” o produto do procedimento teórico-metódico da in-
vestigação do passado sob a forma de argumento demonstrativo, consignado
narrativamente. Trata-se da ciência da História. Um terceiro uso do termo é
o de dar o nome de “história” ao produto finalizado da narrativa científica,
a historiografia. Distingue-se aqui, enquanto científica, a narrativa histo-
riográfica da narrativa espontânea de qualquer discurso humano sobre sua
experiência do tempo vivido. Ambas são narrativas; a historiográfica, no
entanto, está submetida às convenções e aos controles metódicos da espe-
cialidade6. (MARTINS, 2002, p. 44)

Atentamo-nos ao terceiro uso que, de acordo com Martins (2002) re-


fere-se ao produto finalizado da narrativa científica, a historiografia, uma
vez que esta está submetida às convenções e aos controles metódicos da es-
pecialidade, dos quais temos intenção de nos apropriar, mencionando que
a historiografia utiliza passos metodológicos para tratar as fontes primárias
ou secundárias com as quais trabalha, articulando-as no momento da elabo-
ração de textos sobre os fenômenos (linguísticos em nosso caso específico
— dimensão interna) no processo temporal e ativo em que os homens os
constituíram (dimensão externa).
Assim, para o estudo da história, temos conceitos que apresentam sem-
pre a questão dos fatos humanos realizados sucessivamente em determinado
período histórico numa narrativa. E, para o estudo da historiografia, temos
os conceitos relativos à descrição e explicação da produção e do desenvolvi-
mento do conhecimento linguístico que passaremos a abordar, neste momen-
to por se tratar de nosso objetivo, sabendo que o fazer historiográfico busca
metodologias em ciências sociais, filosofia e demais saberes já constituídos,
que contribuem com os princípios norteadores do processo em questão.

6
Grifo nosso para apontar a relação com os nossos objetivos referentes às dimensões externas e internas
na Historiografia Linguística.

102 Neusa Barbosa Bastos


A gênese do termo historiografia designa o registro sobre as ideias do
passado já registrado, ou seja, a memória estabelecida pelos próprios huma-
nos sobre a escrita do seu passado. O historiógrafo estabelece uma comunica-
ção mútua entre o passado e o presente: põem-se questões do presente de sua
época para o passado, a partir de uma problematização e, da mesma forma,
este passado recoloca novas questões para o presente, permitindo que, na
operação historiográfica, não apenas o historiógrafo compreenda o passado,
mas também compreenda a si mesmo.
Retomando nosso foco referente à historiografia, especificamente à his-
toriografia linguística, certamente, podemos nos reportar, às questões da his-
tória da linguística mundial, afirmando que a mais importante forma de ob-
tenção de conhecimento com vistas ao complexo amplo dos fatos do passado
só pode ser apreendido por meio de testemunhas, de relatos de sujeitos, de
documentos, que nos permitem conhecer tudo aquilo que nos foi relatado so-
bre o passado, sobre período, então encontramos enfim a escrita da História.

3. A Historiografia e a Historiografia Linguística: dimensões/


parâmetros externos e internos
Tendo acompanhado o percurso da história/historiografia, em diversos mo-
mentos, atendo-nos às ocorrências de mudanças nos posicionamentos, passa-
remos a contemplar a Historiografia Linguística que, de acordo com Altman
(2019) é:

[...] uma disciplina de vocação científica que tem como principais objetivos
descrever e explicar como se produziu e desenvolveu o conhecimento linguís-
tico em determinado contexto social e cultural, através do tempo. Dito de ou-
tra maneira, o trabalho historiográfico das ciências da linguagem deve focali-
zar não só a dimensão cognitiva do desenvolvimento da disciplina, a chamada
dimensão interna, mas também a sua dimensão social, externa se quisermos.
A atividade de escrever a história da Linguística presume, pois, a tarefa de re-
construção dos fatos a partir dos quais o historiógrafo constrói seu sistema de
referências, mas pressupões também a tarefa de selecionar e interpretar como
os problemas linguísticos se constituíram, se formularam, e se reformularam
ao longo da história. O que pressupõe uma atividade fundada em princípios
bem definidos, cuja precisão e cujo rigor podem ser comparáveis não apenas

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


103
à própria Linguística, mas também às polêmicas, divergências e questões que,
cada um a seu tempo, se colocam os linguistas (ALTMAN, 2019, p. 42)

Nossa preocupação com o trabalho historiográfico nos levou ao objetivo


de discutir, as dimensões/parâmetros externos e internos, componentes impor-
tantes para a constituição do saber histórico. Para tanto estudamos as importan-
tes considerações filosóficas e metodológicas das questões relativas à semântica
dos tempos históricos, bem como aos conceitos de externalidade e internalidade
imprescindíveis para que tenhamos claras as dimensões sobre as quais nos de-
bruçamos neste capítulo. Trata-se, pois, de um levantamento de algumas corren-
tes da história/historiografia e de alguns autores, conduzindo nossa a pesquisa
a partir de recortes de alguns momentos históricos e de determinadas obras.
De acordo com Koselleck (2006):

A profundidade histórica de um conceito, que não é idêntica à sequência cro-


nológica de seus significados, ganha com isso uma exigência sistemática, a
qual toda investigação de cunho social e histórico deve ter em conta. (KO-
SELLECK, 2006, p. 115)

Afirma Koselleck (2006, p. 115) que “os estudos linguísticos têm por
fundamento universal a constatação de que cada significado lexical tem um
alcance que atrapalha aquela singularidade que, por sua vez, pode ser atribuí-
da ao acontecimento histórico”. E continua asseverando que as palavras, cada
uma delas, atesta as suas possibilidades linguísticas “para além do fenômeno
particular que ela caracteriza e/ou denomina em certo momento”. Da mesma
maneira, os conceitos históricos vão além do seu momento, unindo concei-
tualmente experiências complexas.
Apontada a relação intrínseca entre a história/historiografia e a linguís-
tica, podemos assegurar que a relação entre os estudos linguísticos e os estu-
dos de áreas (sociologia, filosofia entre outras) que influenciam a produção
linguística desemboca nas correntes da historiografia das ciências: o interna-
lismo e o externalismo, duas das mais fortes correntes da historiografia das
ciências entre as décadas de 1930 e 1960 que foram capazes de sugerir uma
solução alternativa à proposta epistemológica dos positivistas.
Permiti-me destacar, dentre as várias abordagens, a disputa entre fatores
internos e fatores externos na explicação do desenvolvimento da ciência, o

104 Neusa Barbosa Bastos


que corrobora com o objetivo deste capítulo: dimensões externas e internas
do fazer historiográfico.
A disputa entre internalistas e externalistas se dava pela prioridade da
ocupação de um espaço epistêmico muito reduzido e afastado das preocupa-
ções efetivamente fundamentais. Ávila (2013) afirma que:

Uma vez que apenas a filosofia poderia alcançar o que verdadeiramente im-
portante havia para se saber sobre as ciências, restava decidir entre fazer uma
história do percurso das ideias científicas (perspectiva internalista) totalmente
apartada de uma história das relações institucionais, financiamentos, filiações
políticas ou pela extração social (perspectiva externalista). (ÁVILA, 2013, p. 29)

Há, ainda que se considerar que, em Fleck (1979), a teoria da ciência


apoia dois pressupostos básicos: o primeiro relacionado à noção de Thomas
Kuhn que apregoa que a ciência é um empreendimento coletivo e que as
relações sociais no interior da comunidade de especialistas (o “coletivo de
pensamento”) influenciavam a forma como se organizavam as estruturas cog-
nitivas (o “estilo de pensamento”); o segundo relacionado à defesa de um
construtivismo linguístico que suspeitava da leitura objetivista presente nas
interpretações positivistas. De acordo com Ávila (2013), a noção de fato cien-
tífico indica que:

Os fatos não existem enquanto entidades absolutas, como queriam os empiristas


lógicos, eles dependem sempre de condições históricas especificas para emergi-
rem. Os fatos são construídos no interior dos diferentes “estilos de pensamento”.
Como assevera o autor: “it is not possible to legitimize the ‘existence’ of syphilis in
any other than a historical way” (Fleck, 1979, p. 23) (Ávila, 2013, p. 33).

Compreendemos que o saber científico, sendo uma construção coletiva,


não nos permite registrar observações a respeito do mundo sem atribuir-lhes
significados que são, em sua maioria, compartilhados socialmente, o que nos
leva ao reconhecimento da importância das disciplinas de história e filosofia
para as pesquisas científicas para a formação intelectual, assim como a lin-
guística que nos ajuda a especular a relação entre ciência e sociedade.
Todo cientista está submisso ao paradigma de sua comunidade que per-
manece inserida no ambiente social que a cerca. Todo sujeito elabora seus

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


105
discursos dentro de uma perspectiva sociológica que o impele a realizar estu-
dos da dimensão institucional da atividade científica, relacionados à socieda-
de, à política, à cultura, à ideologia, atrelam-se, assim, o conhecimento cientí-
fico e as funções políticas e sociais. Sendo assim, nosso estudo historiográfico
volta-se para a linguagem presente na fonte estudada, sendo subsidiado por
metodologias sustentadas pelas áreas da sociologia, da cultura, da ideologia
presentes em toda produção linguística.
Segundo, Ávila (2013, p. 51), “nosso mundo é feito de redes tecidas por
atores. Esses atores podem ser humanos e não-humanos, a diferença ontoló-
gica não representaria nada no plano sociológico”. Tais atores estão ligados a
conexões, formando um delicado processo de tessitura que dá forma a qual-
quer coisa que se pode chamar natureza, cultura, sociedade, fato realidade e
assim por diante.
Retomando as questões referentes ao externalismo e internalismo, entre
os anos 1930 e 1960, relembramos que as duas correntes são fundamentais
para a compreensão dos fatores externos e internos para a construção da
historiografia.
O externalismo refere-se ao contexto, é uma “história social das ciên-
cias”, o “lado de fora”, que se relaciona às instituições de pesquisa, às agências
de fomento e ao suporte material, em que o conteúdo se expressa (periódi-
cos especializados, livros, etc.); às comunidades científicas e suas normas, às
formas de sociabilidade e comunicação dos resultados e, além disso, liga-se
também à estrutura econômica e social, aos regimes políticos, à cultura, à
religião, às artes.
O internalismo refere-se ao cognitivo, é uma “história intelectual das
ciências” que estuda os seus fatores internos, o “lado de dentro” que é com-
posto por pensamento e ideias, teorias, metodologias, conceitos, hipóteses,
resultados, ligados aos pensamentos do homem sobre as realizações do pró-
prio ser humano e suas representações acerca das sociedades constituídas.
De acordo com Ávila (2019), estavam em confronto as duas formas de
interpretar a história das ciências, carregadas de contornos políticos impor-
tantes durante a Guerra Fria, uma vez que se opunha a “liberdade da pesqui-
sa” à “planificação da ciência”:

Não pretendo com isso reduzir a perspectiva internalista aos valores do libe-
ralismo e da lógica de mercado; ou o externalismo ao socialismo e à planifica-

106 Neusa Barbosa Bastos


ção. Não se trata de perceber essas correntes como mero verniz historiográfico
de atitudes ideológicas em relação às ciências. Trata-se de perceber como es-
sas correntes emergem no interior de um campo de possibilidades específico,
como elas são fruto de configurações sócio-históricas que as determinam e
com a qual estabelecem variadas formas de relação, que podem ser de reforço
ou contestação. (ÁVILA, 2019, p. 01)

Da década de 1960 em diante, Thomas Kuhn, de acordo com Ávila


(2019), operou uma suposta pacificação da disputa entre Internalismo e Ex-
ternalismo conforme a narrativa tradicional, passou a perceber como essas
correntes emergem no interior de um campo de possibilidades específico,
como elas são fruto de configurações sócio-históricas que as determinam e
com a qual estabelecem variadas formas de relação, que podem ser de reforço
ou contestação. As dimensões externa e interna na nova historiografia deri-
vam de combinação entre momentos internalistas (cognitivos) e momentos
externalistas (sociais).
Abordaremos a seguir, as questões das dimensões externas e internas,
que atuam na reconstrução do saber linguístico, relacionadas à Historiografia
Linguística, buscando possíveis relações entre Auroux (1992), Koerner (2014)
e Swiggers (1992). Primeiramente, abordaremos a posição de Auroux (1992,
p. 13) que propõe que o historiador deve conduzir seu trabalho a partir de
três princípios, a saber:

Definição puramente fenomenológica do objeto.


Neutralidade epistemológica.
Historicismo moderado.

Leite (2019, p.158) comenta os três princípios da seguinte forma: quanto


ao primeiro afirma que o trabalho, nesse campo, dá-se sob o domínio do
empirismo externalista, o que obriga o historiador a considerar o objeto de
análise como um fato resultante de uma atividade humana, como res gestae.
Quanto ao segundo, atesta que, para analisar o objeto, não é o olhar aco-
modado sob o facho da luz de uma única teoria que guia a investigação, mas
aberto aos raios de todas as luzes que, historicamente, permitiram a constru-
ção do conhecimento eclodido em dado momento da história e que deve ser
interpretado. Tal proceder isenta a análise da normatividade de uma ou outra
teoria e possibilita a busca pela causalidade dos fenômenos investigados.

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


107
Finalmente, quanto ao terceiro, declara que a ação do historiador leva-o
a acionar mais de uma capacidade analítica e interpretativa e a refrear seu
ímpeto narrativo-descritivo. O historiador das ciências da linguagem levanta
hipóteses sobre seu objeto e argumenta para afirmá-las ou para infirmá-las.
Seu discurso, pois, mais do que narrativo, é argumentativo.
A nosso ver, os três princípios de Auroux (1992, p. 13), já explicitados
acima, podem ser aproximados àqueles formulados por Koerner e também aos
formulados por Swiggers. Passaremos a relacioná-los, pois as três formulações
apresentadas pelos três autores que se dedicaram os estudos históricos relativos
à linguagem trazem as seguintes denominações: História das Ideias Linguís-
ticas e Historiografia Linguística e fazem referências, na nova historiografia,
às dimensões/parâmetros externos e internos derivando da combinação entre
momentos internalistas (cognitivos) e momentos externalistas (sociais).
Tais dimensões/parâmetros externos e internos nos remetem tanto à
perspectiva das críticas externa e interna quanto à perspectiva dos externa-
listas e internalistas. Primeiramente, a crítica externa, como mencionamos,
relaciona-se ao posicionamento histórico, social, cultural, linguístico e ideo-
lógico do autor do documento em estudo e à necessidade da preocupação
heurística ligada à busca do método para o procedimento analítico em re-
lação às fontes fidedignas, denominadas: crítica da restauração (estado ori-
ginal das fontes); crítica da procedência (conhecimentos diretos ou indiretos
do autor sobre os fatos), e com a crítica da autoria (circunstâncias em que
vivia o autor). Trata-se, portanto, de examinar elementos que interferem na
elaboração de um determinado documento, que julgamos aproximarem-se,
em alguns aspectos às questões de clima de opinião, da contextualização e de
influência que interferem nas produções de todo e qualquer autor.
Em segundo lugar, a crítica interna, relaciona-se às questões herme-
nêuticas, ligadas à interpretação dos efeitos de sentido dos textos dos docu-
mentos selecionados, portanto, visa-se à parte cognitiva referente aos efeitos
de sentido do posicionamento teórico do autor no documento selecionado,
inserido na época e no lugar em que foi produzido, uma vez que o histo-
riógrafo tem a possibilidade de entender um documento por estar inserido
numa tradição não só como herdeiro mas também como intérprete.
Constam da crítica externa, como mencionamos, a crítica da competência
(verificação da possibilidade de atribuição de credibilidade à autoria original);
crítica da sinceridade (verificação da fidedignidade da autoria) e crítica de con-

108 Neusa Barbosa Bastos


trole (verificação de mais de uma autoria em confronto). Consideraremos aqui
o primeiro item que trata de analisar os sentidos expressos pelo autor que serão
estudados a partir de sua leitura e análise do documento e o terceiro item que
poderia ser relacionado com as autorias das fontes primárias e secundárias,
porque, segundo Koerner (2014, p. 92), “os historiadores estão interessados não
só em descobrir as suas fontes de inspiração, mas também em determinar o
que tornou as suas propostas diferentes das que os antecederam e tão impor-
tantes para as gerações de investigadores subsequentes”.
O historiógrafo, dentre as opções metodológicas que devem ser observa-
das, como a periodização, os materiais, os parâmetros de análise, deve observar
os princípios koernianos: contextualização, imanência e adequação: 1º princípio
de contextualização: delinear o clima de opinião (espírito da época), observan-
do as correntes intelectuais do período e a situação socioeconômica, política e
cultural; 2º princípio de imanência: buscar o entendimento completo tanto his-
tórico quanto crítico, possivelmente filológico, do texto linguístico em questão,
mantendo-se fiel ao que foi lido, para o estabelecimento de um quadro geral da
teoria e da terminologia usada (quadro de definição acima referido), que devem
ser definidos internamente e não em referência à doutrina linguística moderna.
Seguidos os dois primeiros princípios, devemos nos ater ao 3º princí-
pio de adequação: aventurar-se a introduzir, colocando de forma explícita,
aproximações modernas do vocabulário técnico e um quadro conceptual de
trabalho que permita a apreciação de um determinado trabalho, conceito ou
teoria, incluindo-se as constatações das afinidades de significado que subja-
zem a ambas as definições.
Considerando os princípios acima arrolados como fios condutores do
trabalho historiográfico, resta-nos afirmar que o historiógrafo deve detectar,
analisar e explicar as mudanças que houve, durante o percurso a ser inves-
tigado, sem que se deixe envolver pela novidade, pela originalidade e pela
criatividade, usualmente feitas pelas gerações posteriores que lhe são ime-
diatamente subsequentes.
Dentre as muitas formas de motivação para escrever a Historiografia
(processo de descrição e compreensão do existente) da Linguística (o havi-
do sobre a língua), segundo Swiggers (2009), devemos conceituar em nosso
objeto de estudo as ideias sobre a linguagem e as propostas de descrição e
explicação do mesmo, por vários procedimentos metodológicos, como os que
apresentaremos a seguir.

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


109
Com o objetivo de interpretar saberes sobre a linguagem humana, pro-
curam-se procedimentos teórico-metodológicos, para a análise de documen-
tos ou textos históricos. Busca-se a presença de elementos ligados tanto à
dimensão externa (o contexto histórico-social em que esses textos são legi-
timados), quanto à dimensão interna (o que esses textos dizem, como di-
zem, por que o dizem), nas tarefas do historiógrafo, de acordo com Swiggers
(2019) uma tarefa do historiógrafo refere-se a uma compreensão adequada,
por vários meios, a saber:

DOCUMENTAÇÃO: proporcionando melhores condições “heurísticas”: in-


formações disponíveis sobre as fontes: edições críticas de textos fontes/séries
de texto; traduções precisas;
CONTEXTUALIZAÇÃO E PERSPECTIVIZAÇÃO: ampliando e aprimoran-
do a incorporação interpretativa: extensão e aprofundamento do conhecimen-
to sobre antecedentes e a posteridade;
APARELHO HEMENÊUTICO: por meio da concepção de tipos de modelos
analíticos “objetivos” e “abrangentes” que permitam uma abordagem textual
refinada, crítica e suficientemente “empática”. (SWIGGERS, 2019, p. 54)

Ainda com Swiggers (2019), retoma-se o objetivo do historiógrafo de re-


construção das ideias linguísticas e de seu desenvolvimento por meio da análise
de textos localizados em seu contexto, devendo-se seguir os corolários abaixo:

O objetivo de reconstruir implica, ou trabalha para estar conectado com a


metodologia (da história) das ciências;
Para compreensão adequada das ideias linguísticas é necessário ter formação
de linguista;
Estudar o desenvolvimento das ideias linguísticas implica possuir uma visão
histórica geral (mais ou menos ampla);
Para realizar uma análise de textos são indispensáveis (a) uma heurística e (b)
fundamentos hermenêuticos;
O estudo do contexto implica que o trabalho se relacione com a história inte-
lectual e a história socioeconômica. (SWIGGERS, 2019, p. 72)

Corolário este que se relaciona, principalmente nos itens (iii) (vi) e (v),
aos princípios até aqui tratados sobre a necessidade de se estudar o clima

110 Neusa Barbosa Bastos


de opinião, focalizando dimensão social, política, ideológica, cultural do pe-
ríodo em tela; ter conhecimentos históricos amplos e obedecer a critérios
heurísticos e hermenêuticos para a análise do documento selecionado, foca-
lizando a dimensão cognitiva.
Assim, a história da ciência linguística, em dimensão/parâmetro “exter-
nalista” tem como premissa básica a ideia de que uma análise do contexto
social em que o documento selecionado está inserido, é essencial para qual-
quer investigação acerca da história de uma disciplina científica. Já a história
da ciência linguística, em dimensão/parâmetro “internalista” significa uma
análise a partir de seus aspectos racionais, ou seja, uma investigação preocu-
pada com a construção lógica dos conceitos e métodos científicos presentes
no documento selecionado.
Retome-se, então, que o fazer historiográfico deve estar voltado tam-
bém à correlação das dimensões externa e interna ao selecionar, ordenar,
reconstruir e interpretar um documento, tanto para estabelecer uma contex-
tualização histórica (social, econômica, cultural, linguística e ideológica) que
leva ao entendimento de seu estado no período estudado (dimensão externa),
quanto para compreender as ideias linguísticas veiculadas e as afirmações
teóricas propostas pelo autor do documento sobre os temas desenvolvidos na
teoria proposta (dimensão interna).

Conclusão
Toda e qualquer narrativa traz o passado para o presente, eliminando, dessa
forma, as diferenças temporais que tematiza, buscando compreender os fe-
nômenos linguísticos presentes no texto ou textos selecionados, respeitando
sempre o fazer historiográfico que busca metodologias em ciências sociais,
filosofia e demais saberes já constituídos, que contribuem com os princípios
norteadores do processo em questão.
A ciência linguística é um produto de interações locais, históricas, instá-
veis e mutantes, podendo ser apropriada em diferentes contextos, ser adapta-
da para diversos usos, permanecer ao longo de várias configurações históri-
cas e o objeto da ciência linguística não é dado pelas fontes, mas construído
pelo historiador a partir das solicitações do presente e podemos afirmar que
nosso objetivo foi o de refletir sobre a pluralidade de maneiras de se fazer
um estudo histórico/historiográfico, com responsabilidade intelectual, para

O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


111
atingir formas de se fazer historiografia por meio de seus princípios e pro-
cedimentos.
Segundo Batista (2016),

As reflexões elaboradas historiograficamente podem colocar em destaque


uma complexa dimensão que se forma quando correntes teórico- metodoló-
gicas de tratamento da linguagem, reflexões sobre as línguas, produção de
instrumentos linguísticos (como gramáticas e dicionários), entre outros tipos
de prática que procuraram e procuram entender a linguagem humana, são
consideradas como objeto de análise, permitindo uma interpretação do desen-
volvimento histórico da construção de saberes por meio de uma perspectiva
que estabelece o conhecimento científico como derivado de um contexto so-
cial e institucional. (BATISTA, 2016, p. 303).

O campo de trabalho dos historiógrafos é tudo o que se passou no cam-


po da linguagem, observado a partir de procedimentos teórico-metodológi-
cos da historiografia linguística, voltando-se para a descrição e explicação dos
conhecimentos linguísticos produzidos pelo homem, pois ao descrevermos e
explicarmos como se produziu e desenvolveu tal conhecimento linguístico
num período determinado, estamos implicados com as dimensões externas
(sociais) e internas (cognitivas) em um determinado contexto social e cultu-
ral, visando a estabelecer o conhecimento científico em nossa área de estudo.

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O fazer historiográfico: dimensões/parâmetros externos e internos


113
EVOLUÇÃO E DINÂMICA
Esta contribuição3, ofere-
12

cida como homenagem a


Cristina Altman, trata de

DA LINGUÍSTICA: um tema central da teoria e


prática4 meta-historiográfi-

UMA TEXTURA
ca5: a questão da explicação
1
Tradução de Ronaldo de Oliveira
Batista (UPM/CNPq) e Antonio

DE “CAMADAS”
Ackel (PPG-DLCV/USP).
2
Uma versão deste texto foi pu-
blicada na revista Todas as Letras,
em 2020. Esta versão apresenta

ANOTAÇÕES META-
modificações. O tema e a aborda-
gem são retomados com objetivo
de atingir um público mais amplo.

HISTORIOGRÁFICAS
Este capítulo retoma um texto
1 2
3

em inglês que apareceu sob o títu-


lo “Another Brick in the Wall: The
dynamics of the history of linguis-
tics” (SWIGGERS, 2006). O termo
“layer” utilizado no original em
Pierre Swiggers inglês tem sido traduzido, em tra-
balhos posteriores de historiógra-
fos da linguística, para o espanhol
como capa, também utilizado em
português. Como judiciosamente
apontado por Ronaldo de Oliveira Batista (a quem agradeço por esta e outras observações), o termo capa
em português (referindo-se a um pano ou a um tipo de roupa ou embalagem) não é uma tradução ade-
quada, e o equivalente em português proposto por Batista é camada.
4
Em vários outros artigos, tenho lidado com questões meta-historiográficas (mais recentemente em
SWIGGERS, 2017, 2019a). Para uma discussão de problemas básicos (definição; periodização; decla-
rações descritivas) e orientações em historiografia linguística, ver Swiggers (1983, 2003, 2004); para
reflexões sobre modelos em historiografia linguística, ver Swiggers (1990, 2004); a questão da (meta)
linguagem historiográfica é tratada em Swiggers (1987); para uma discussão sobre a natureza e evolução
do conhecimento linguístico/gramático, ver Swiggers (1991). Discuti problemas, métodos e modelos na
historiografia linguística em Swiggers (2004, 2012, 2013, 2013, 2015, 2019a).
5
Alguns estudiosos da historiografia da linguística afirmam que é supérfluo fazer a distinção entre
historiografia e meta-historiografia. Na minha opinião, tal distinção é útil (cf. também SCHMITTER,
1990) e justificada (de fato, devemos marcar claramente a distinção entre a história da linguística, a
historiografia da linguística e a meta-historiografia em sua aplicação à historiografia da linguística) (cf.
SWIGGERS; DESMET; JOOKEN, 1998). A meta-historiografia é sobre como a historiografia tem sido
praticada, pode ser feita e deve ser praticada (envolve componentes avaliativos, construtivos e normati-
vos), e a meta-historiografia também deve nos fazer refletir sobre (1) a delimitação da ‘linguística’ de um
ponto de vista historiográfico, (2) a relevância da historiografia linguística para a linguística (geral), (3)
a integração da historiografia linguística no currículo educacional dos futuros linguistas. Os escritos do
falecido Klaus Dutz (ver, por exemplo, DUTZ, 1986, 1990, 1991) e do falecido Peter Schmitter (ver es-
pecialmente SCHMITTER, 1982, 1990, 1999, 2003) abriram caminho para o devido reconhecimento da
meta-historiografia (ver as contribuições em SCHMITTER; van der WAL, ed., 1998). Várias questões de
da dinâmica da disciplina particular cuja história é descrita e narrada. A dis-
ciplina aqui abordada é o estudo da linguagem, que somente no início do sé-
culo XIX passou a ser chamada de ‘linguística’6. Não vou entrar na intrincada
questão de como e até que ponto a ‘linguística’ estava entrelaçada com outros
campos de estudo, tais como etnografia, filosofia, história, botânica, geologia e
geografia (esse é um tópico altamente relevante para o tratamento historiográ-
fico do processo de ‘formação de uma disciplina’). Também não vou entrar na
questão sobre que tipos de conteúdo (empírico e teórico) foram contemplados
no uso do termo ‘linguística’ durante o século XIX (e depois)7.
Historiógrafos da linguística, ou seja, praticantes de historiografia lin-
guística8, geralmente têm lidado com a dinâmica da história da linguística de
uma forma que eu chamaria de ‘indireta’, ou seja, não focando na dinâmica
em si, mas nas mudanças resultantes. Essas mudanças resultantes têm sido
estudadas do ponto de vista dos atores envolvidos nessas mudanças — ou
seja, linguistas que individualmente apresentam novas ideias ou desenvolvem
novas técnicas —, ou de um ponto de vista mais ‘distanciado’, no qual a supo-
sição geral é que as coisas mudam porque o tempo passa: o passar do tempo
traz, mais cedo ou mais tarde, mudanças nas perspectivas e nas formas de ver
e lidar com o objeto de estudo.
A desvantagem das duas abordagens — a primeira que consiste em pro-
por explicações ‘locais’, ou ‘casuísticas’; a segunda em oferecer uma explicação
‘holística’ — reside no fato de que elas não vêm para lidar com a evolução da
disciplina vista de dentro, ou seja, vista como um corpo de conhecimento, de
práticas e técnicas, de crenças. O assunto fundamental a ser considerado é o fe-
nômeno complexo de uma disciplina em desenvolvimento vista em si mesma.
Explicar a dinâmica de uma disciplina — no nosso caso, a linguística
— é explicar mudanças9. Assim como no caso do estudo da mudança lin-
guística (um termo que inclui inovação, mas também retenção), faremos bem
em aceitar causas múltiplas, ou o princípio da multiplicidade fatorial. “Causa
múltipla” é um conceito operacional bem conhecido nas ciências médicas,

meta-historiografia também foram tratadas por Konrad Koerner; ver os artigos orientados teoricamente
em seus estudos coletados (KOERNER, 1978, 1989, 1995, 1999, 2004).
6
Sobre as origens do termo (e o seu conteúdo original), ver Swiggers (1996, com mais referências biblio-
gráficas).
7
Para uma visão geral da concepção e prática da linguística no século XIX, ver Swiggers (2011).
8
Para uma introdução e visão geral do campo da historiografia linguística, ver Batista (2013).
9
A “não mudança” ou retenção deve ser incluída no conceito geral de mudança: é “mudança amorfa” ou
“mudança sem substituição” (cf. HOENIGSWALD, 1960, p. 14).

Evolução e dinâmica da linguística: uma textura de “camadas” Anotações meta-historiográficas


115
na psicologia, nos estudos de direito e no cálculo de risco. Foi introduzido
como um conceito explicativo na linguística (diacrônica) por Yakov Malkiel
(ver MALKIEL, 1967). O conceito é baseado no princípio probabilístico de
uma explicação etiológica que leva em conta vários fatores interativos que
são responsáveis por um novo evento ou uma mudança em uma situação.
Além da multiplicidade de interações com outras disciplinas, é apropriado
conceber a dinâmica10 da ciência da linguagem em termos de múltiplo con-
dicionamento e estimulação.
A adoção de uma visão de “condicionamento múltiplo” implica que
devemos abster-nos de explicações absolutas e monolíticas e que devemos
estar preparados para adotar uma posição (mais) relativizante11 e reconhecer
a (possível) complementaridade de modelos divergentes utilizados na história
da ciência. Por exemplo, o “modelo paradigma-revolução” de Kuhn (1962,
1977), o modelo “programa de pesquisa” desenvolvido por Lakatos (1978,
esp. vol. 1), o modelo estruturalista proposto por Stegmüller (1979), o mo-
delo axiomático (e “não declarativo”) de Sneed (1971), e também a visão
“anarquista” de Feyerabend12.
Uma posição relativizante13 sobre a descrição14 e explicação do desen-
volvimento na ciência não exclui a construção de um metamodelo que con-
temple as dimensões condicionantes na evolução de uma disciplina.
Tal metamodelo requer um relato em camadas do desenvolvimento de
qualquer disciplina científica. Com a expressão “relato em camadas”, refiro-
-me ao tipo de descrição que Peter Galison (1987, 1997) ofereceu do desen-
volvimento da microfísica, uma disciplina que tem uma história relativamen-
10
A dinâmica de uma ciência é, em uma medida crucial, uma dinâmica de visões teóricas (em relação à
estrutura de construções teóricas): para uma abordagem a partir da filosofia da ciência, ver Stegmüller
(1973). No entanto, a dinâmica de uma disciplina é um processo muito mais complexo e abrangente do
que seu desenvolvimento teórico (interno).
11
Uma que combine o reconhecimento da relação entre continuidade E descontinuidade, da dialética dos
esforços pioneiros E dos trabalhos de rotina, do entrelaçamento da orientação teórica E da orientação
para os dados, da tensão fecunda entre universalismo E particularismo.
12
Para uma interessante confrontação entre a visão do “programa de pesquisa científica” e a postura
anarquista, ver a correspondência entre Lakatos e Feyerabend publicada em Motterlini (ed., 1999).
13
Tal postura relativizante estaria em conformidade com a visão pós-estruturalista da história das men-
talidades (em francês: histoire des mentalités), conforme delineado na análise de Foucault (FOUCAULT,
1966) de mudanças de epistêmes.
14
Koerner (1982) analisa e avalia uma série de modelos (ou representações esquematizadas) — alguns
deles mutuamente compatíveis — para a descrição do desenvolvimento de uma ciência: o modelo de
progresso por acumulação, o modelo corrente dominante vs. correntes marginais, o modelo de oscilação
pendular, o modelo de descontinuidade vs. continuidade, o modelo de progresso relativo e o modelo de
influência extralinguística.

116 Pierre Swiggers


te recente. Galison analisa a história da microfísica vendo-a como a evolução
da atividade científica envolvendo três camadas15: uma camada experimental
(referente a experimentos de laboratório), uma camada instrumental (cons-
tituída por equipamentos técnicos) e uma camada teórica.
As três camadas são comparáveis a camadas de tijolos formando uma
parede como um muro: da mesma forma que os tijolos das várias camadas
não são exatamente sobrepostos entre si (precisamente para tornar a cons-
trução mais sólida), os blocos dentro das três camadas da atividade cientí-
fica não são coextensivos em perspectiva vertical. O que é específico para a
história das ciências experimentais contemporâneas é o fato de o trabalho
dentro das três camadas ser normalmente executado por pessoas diferentes.
Nos séculos XVI e XVII, a situação era diversa: os primeiros estudiosos mo-
dernos eram teóricos-construtores, bem como construtores de instrumentos
e executores de experimentos.
Linguística, ou o campo do estudo da linguagem16, não é, naturalmente,
microfísica. Ela é, por um lado, menos dependente de experimentos17 (em-
bora, em alguns subcampos da linguística, o termo ‘experimento’ seja comu-
mente usado), e é, por outro lado, ainda uma disciplina mais ‘integrada’, com
uma separação menos rígida entre teoria e prática. No entanto, a acumulação
muito mais frequente de papéis na pessoa de um único acadêmico não nos
deve levar a concluir que a prática em linguística é como uma monocamada.
De fato, parece aconselhável construir um metamodelo para a dinâmica
da linguística que inclua quatro camadas interativas18:
• uma camada TEÓRICA, isto é, a de ideias, insights, declarações teóricas
e suposições;
• uma camada TÉCNICA, no sentido de trabalho técnico-linguístico, do
qual o grau de tecnicidade está, até certo ponto, ligado à teoria;
• uma camada DOCUMENTAL, constituída pela documentação linguís-
tica disponível num determinado momento; por exemplo, que línguas
(indo-europeias / semíticas / tupi-guarani / sino-tibetanas etc.) eram co-

15
O modelo de três camadas de Galison é, em essência e em espírito, muito diferente do modelo tripar-
tido de Laudan (1984).
16
Para uma breve visão geral do domínio, ver Swiggers (1998).
17
Como tal, a relação específica entre ‘observação’, ‘descoberta’ e ‘explicação’ nas ciências naturais (cf.
HANSON, 1958, 1971) não pode ser transposta para a linguística.
18
A coexistência integrada das quatro camadas dentro de uma configuração científico-institucional é
adequadamente capturada pela noção de cinosura (cynosure) de Hymes (ver HYMES, 1974).

Evolução e dinâmica da linguística: uma textura de “camadas” Anotações meta-historiográficas


117
nhecidas pelos estudiosos de línguas num tempo t0?; o que se sabia so-
bre a diversificação histórica e sociolinguística de uma língua L1 em um
tempo t0?; que tipos de materiais (sob que forma?) estavam disponíveis
para o estudo (da gramática/do vocabulário...) de L1 num tempo t0? etc.;
• uma camada CONTEXTUAL-INSTITUCIONAL, constituída pelas
configurações (mais ou menos definidas) — contextos socioculturais e
estabelecimentos institucionais específicos — em que o trabalho linguís-
tico foi e está inserido.
A figura a seguir oferece uma representação esquemática:

A utilização de um metamodelo em camadas para descrever e explicar a


dinâmica da história da linguística oferece uma série de vantagens:
(1) Em primeiro lugar, ela nos ajuda a compreender, descrever e explicar
por que a inovação e a estagnação podem coocorrer (por exemplo, ino-
vações teóricas com um status quo institucional, técnico e/ou documen-
tal); ou por que, por outro lado, uma mudança no nível documental
(primeiro acesso a línguas ou famílias linguísticas não estudadas até en-
tão) não envolve necessariamente mudança na formação de uma teoria
ou em dispositivos descritivos;
(2) Em segundo lugar, o metamodelo em camadas explica fenômenos como
a teorização ou prática ‘antecipatória’, bem como ideias e abordagens
‘obsoletas’;
(3) Em terceiro lugar, o modelo permite-nos ligar a dinâmica da disciplina de
múltiplas formas: mudanças intracamada, mudanças na relação entre duas
camadas ou sobreposição mutável das quatro camadas. Mudanças globais
e verdadeiramente radicais (correspondentes ao que Kuhn identificou
como “revoluções” nas ciências naturais) são provavelmente um caso de
mudanças coincidentes, ou “conversões”, em todas as camadas; tais casos
podem ser bastante excepcionais na história do estudo da linguagem19;
(4) Em quarto lugar, o metamodelo em camadas pode funcionar como um
padrão de referência para vários tipos de empreendimentos historio-

19
Para uma visão crítica sobre a aplicabilidade do modelo de Kuhn à história da linguística, ver Percival (1976).

118 Pierre Swiggers


gráficos em linguística: pode-se tomá-lo como ponto de partida para
estudar o lugar (mais ou menos conservador, ou “normal”) de um de-
terminado estudioso no que diz respeito à situação de cada uma das
quatro camadas em seu tempo; ou para estudar o papel de uma escola/
modelo com referência a essas camadas (especialmente, as camadas teó-
ricas e técnicas), já que as escolas e os modelos na linguística geralmente
se identificaram com (às vezes supervalorizadas) mudanças na teoria e
prática da disciplina, e o modelo pode ser usado para estudar desenvol-
vimentos globais na história da disciplina20.
A imagem de uma parede com várias camadas não deve ser tomada como
uma explicação absoluta. Nossos dados a serem narrados (= explananda) na
historiografia da linguística são fatos, séries e redes de fatos: estes devem ser
explicados com ‘substância’ adicional, fornecida pela história da ciência, pela
história das instituições, pela história das sociedades e culturas e pelas histó-
rias pessoais das figuras individuais: aqui as questões de pensamento racional,
ideologia21, ética e psicologia, bem como sorte e acaso fluirão juntas.
Como tal, o metamodelo multicamadas deve ser lido numa perspecti-
va tridimensional, como filas de blocos de tijolos uns atrás dos outros: filas
que contêm princípios teóricos e técnicos concorrentes e que se baseiam em
moldes contextuais e institucionais divergentes. Nosso objetivo final deve
ser obter uma compreensão melhor e mais precisa do que aconteceu, como
aconteceu e por que algo não aconteceu (em um determinado momento) na
história do estudo da linguagem.

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20
Não posso entrar no problema da incomensurabilidade (e da possível incomparabilidade; não equacio-
no ambos os termos) das teorias linguísticas (ver TEN HACKEN, 1997), nem na forma como esta pode
ser tratada em termos do modelo de três camadas. Para a visão modificada de Kuhn sobre incomensura-
bilidade, ver Kuhn (1989, p. 10-12); ver também Swiggers (2004, p. 135-136). Alguns filósofos da ciência
(por exemplo, Feyerabend) não consideram importante a questão da (in)comensurabilidade.
21
A abordagem historiográfica das ideologias no trabalho implica uma complexa rede de fatores, e tem que
apelar para uma conjunção de ferramentas analíticas, que vão desde a argumentação racional / análise do
discurso, documentação histórica institucional, análise das relações de poder, a análise retórica, todos os
quais têm de ser fundamentados em pontos de vista sobre a sociologia e psicologia (incluindo psicopatolo-
gia) de personalidades e comunidades. Isso exige um quadro de análise sociopragmática abrangente. Para
estudos de caso interessantes, ver, por exemplo, Harris (1993) e Batista (2015). Sobre a complexidade das
ideologias da linguística, juntamente com as ideologias da linguagem, ver Swiggers (2019b).

Evolução e dinâmica da linguística: uma textura de “camadas” Anotações meta-historiográficas


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Evolução e dinâmica da linguística: uma textura de “camadas” Anotações meta-historiográficas


121
A QUESTÃO DA
Introdução
A constituição de uma área do

METALINGUAGEM
conhecimento implica o estabe-
lecimento de conceitos, vocabu-
lário e metodologia. Como par-

NA HISTORIOGRAFIA te de seu trabalho, quem nela


se torna especialista aprende a

DA LINGUÍSTICA
dominar a língua dessa especia-
lidade; sua produção acadêmica
dirigida aos pares demonstrará
Maria Carlota Rosa esse domínio.
Mas ... e se a área de pes-
quisa é a Historiografia da
Linguística, que tem por tarefa
“observar a produção, difusão e recepção de ideias linguísticas ao longo dos
tempos” (BATISTA, 2019, p. 9)?
Qual o problema? É que vêm à memória as palavras de Kuhn: novos
paradigmas acabam por incorporar parte do vocabulário do paradigma tra-
dicional (KUHN, 1991 [1962], p. 189) e, assim sendo, um termo que era
compartilhado pela comunidade científica passa a responder a uma nova
estrutura conceptual: rejeitam-se as antigas acepções, substituídas pelas do
novo paradigma. O termo é o mesmo e não é, necessitando de definição a
cada emprego cujo público ultrapasse os limites do grupo de pesquisa cons-
tituído no âmbito do novo paradigma.
Nesse cenário kuhniano, a comunidade científica é fundamental:

uma comunidade científica é formada pelos praticantes de uma especialidade


científica. Estes foram submetidos a uma iniciação profissional e a uma educa-
ção similares, numa extensão sem paralelos na maioria das outras disciplinas.
Neste processo absorveram a mesma literatura técnica e dela retiraram mui-
tas das mesmas lições. [....] Há escolas nas ciências, isto é, comunidades que
abordam o mesmo objeto científico a partir de pontos de vista incompatíveis.
(KUHN, 1991 [1962], p. 220-221)
Quando se começa a estudar como se constitui o campo de estudos
linguísticos no Ocidente não se encontra a profissionalização da ciência nem
uma denominação para cientista1 como na atualidade. Lidar com o material
da Antiguidade e da Idade Média nos leva empregar o conceito de comu-
nidade científica de um modo mais amplo. Os autores listavam suas fontes
— transmitidas de modo que podiam ser modificadas por quem as copiava
e que surgem diferentes em testemunhos diferentes. As fontes conferiam au-
toridade à análise apresentada e filiavam o autor a uma determinada visão
gramatical, que utilizava uma (meta)linguagem conhecida por aqueles que
liam esses autores. Cada autor tinha, porém, a possibilidade de inovar, mes-
mo se escrevesse comentários.
Este capítulo focaliza esse aspecto com que é necessário lidar no traba-
lho com textos linguísticos antigos: a metalinguagem do(s) testemunho(s) em
estudo — por vezes enganadora, por vezes incompreensível, raramente ami-
gável. Interpretar o que ficou registrado (em especial se em testemunho único
e danificado pelo tempo) é o ponto de partida da pesquisa historiográfica.
O que se segue está organizado da seguinte forma. Primeiramente foca-
liza-se o neologismo metalinguagem. As seções seguintes tratam de dificul-
dades com que o pesquisador se depara.

1. O termo metalinguagem: uma criação recente


Ao elencar os traços universais que comporiam o conjunto definidor de lín-
gua enquanto sistema de comunicação, Charles F. Hockett (1916-2000) cha-
mava a atenção para a reflexividade: “Numa língua, pode-se comunicar sobre
comunicação. As abelhas dançam sobre lugares, mas não podem dançar sobre
dança” (HOCKETT, 1966, p. 13 — itálico no original).2
Cerca de meia década mais tarde, em Linguística e Poética, Roman Ja-
kobson (1896-1982), centrado nas funções da linguagem que emergem num
ato de comunicação verbal, proporia um esquema de seis fatores que tomam
parte na comunicação verbal e das quais depende a estrutura da mensagem:
remetente, destinatário, mensagem, contexto a que se refere, código
e contacto.
1
A palavra cientista (tradução do inglês scientist) seria cunhada por William Whewell (1794-1866)
em 1834.
2
No original: “In a language, one can communicate about communication. Bees dance about sites, but
they cannot dance about dancing” (HOCKETT, 1966, p. 13 – itálico no original).

A questão da metalinguagem na Historiografia da Linguística


123
Como notava Jakobson, a eficácia da mensagem depende também de o
código ser “total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário” (JA-
KOBSON, 1971 [1960], p. 123). Para confirmar se o destinatário compartilha
do código empregado pelo remetente, a comunicação pode voltar-se para a
própria comunicação, uma característica da “nossa linguagem cotidiana” — e
para designá-la Jakobson tomava um termo criado pelo lógico polonês Alfred
Tarski (1901-1983), metajezyk (1931), traduzido para o alemão Metasprache
(1935) e para o inglês metalanguage (1936):

Sempre que o remetente e/ou o destinatário têm necessidade de verificar se estão


usando o mesmo código, o discurso focaliza o Código; desempenha uma fun-
ção metalinguística (isto é, de glosa) “Não o estou compreendendo — que quer
dizer?”, pergunta quem ouve [....] E quem fala, antecipando semelhantes pergun-
tas, indaga: “Entende o que quero dizer?” (JAKOBSON, 1971 [1960], p. 127)3

Mas esse emprego de metalinguagem, que acompanhou a formação de


muitos linguistas no Brasil e que, entre estes, é talvez o uso mais evocado,
não era único nem o original. Nesse mesmo texto de 1960 (e também em
Metalanguage as a linguistic problem, de 1976 [rep. em 1985, inf. dos org.]),
Jakobson apontava o outro uso do termo metalinguagem, mais antigo do
que aquele que propunha. Não se tratava do uso do linguista apontando as
características presentes num ato comunicativo, a constatação de que uma
língua natural pode falar de si própria.
Esse outro uso focalizava uma distinção cujo reconhecimento tem rele-
vância no trabalho científico: “[e]m vez de se usar uma dada língua reflexi-
vamente, com vista a descrever ela própria, podemos empregar uma língua
para descrever outra” (LYONS, 1980 [1977], p. 18). Surgia assim a distinção
entre a linguagem-objeto, “que fala de objetos” e pode ser uma língua natural,
como o português, ou uma língua formal, e a metalinguagem (ou metalín-
gua), “que fala da linguagem”, um “instrumento científico necessário” (JA-
3
Na versão de 1985 (p. 116-117): “A discrimination clearly anticipated by the Ancient Greek and Indic
tradition and pushed forward by the medieval treatises de suppositionibus has been advocated in modern
logic as a need to distinguish between two levels of language, namely the “object language” speaking of items
extraneous to language as such, and on the other hand a language in which we speak about the verbal code
itself. The latter aspect of language is called “metalanguage”, a loan translation of the Polish term [117]
launched in the 1930’s by Alfred Tarski. On these two different levels of language the same verbal stock may
be used; thus we may speak in English (as metalanguage) about English (as object language) and interpret
English words and sentences by means of English synonyms and circumlocutions”.

124 Maria Carlota Rosa


KOBSON, 1971 [1960], p. 127). Nas palavras de Lyons (1980 [1977], p. 18):
“a metalíngua conterá normalmente termos destinados a identificar e a refe-
rir os elementos da língua objecto (palavras, sons, letras, etc.) e, além disso,
um certo número de termos técnicos especiais que podem ser usados para
descrever as relações entre estes elementos, como podem ser combinados de
modo a formar frases e sintagmas, etc.”.
É neste sentido que o termo metalinguagem — que Koerner ([2014 [1993],
p. 78) glosa como “linguagem terminológica” — é aqui empregado. E que per-
mite entrever o terreno movediço da terminologia das ciências da linguagem.

2. Metalinguagem e estudos linguísticos


Uma vez que entramos no terreno da terminologia, de vocabulário construí-
do para uma área específica do conhecimento, passamos a esperar que cada
termo pertencente a essa área específica tenha definição única, de modo a se
evitar a ambiguidade. Dicionários e enciclopédias especializadas compendia-
rão esse vocabulário.
Neste ponto, porém, podemos relembrar a caracterização saussuriana
de termo:

Não há nenhum termo definível e válido fora de um ponto de vista preciso,


como consequência da ausência total de seres linguísticos dados em si mesmos.
Não é mais permitido fazer uso de um termo tirado do ponto de vista A quan-
do se passa ao ponto de vista B. (SAUSSURE, 2002, p. I, 28)

Em poucas palavras, Ferdinand de Saussure resumia a dificuldade de


interpretação do vocabulário técnico das fontes, material por excelência da
Historiografia da Linguística, mesmo se o linguista se força, como nos habi-
tuamos a esperar com os Estruturalistas, a “afirmar explicitamente o que quer
que assumamos, definir nossos termos e decidir quais coisas podem existir
independentemente e quais coisas são interdependentes” (BLOOMFIELD,
1957 [1926], p. 26, trad. dos orgs.).4
A questão da necessidade de um ponto de vista preciso levantada por
Saussure ganha em magnitude no enfoque de terminologia em uso durante
4
No original: “to state explicitly whatever we assume, to define our terms, and to decide what things may
exist independently and what things are interdependent” (BLOOMFIELD, 1957 [1926], p. 26).

A questão da metalinguagem na Historiografia da Linguística


125
a constituição da área e se mostra mesmo quando lidamos com um termo
comum, como gramática, por exemplo.
Caso levemos em conta a formação no Ocidente da área de estudos
linguísticos, a primeira constatação a ser feita é a de que não era uma área,
com fronteiras mais ou menos nítidas em relação a outras áreas do conheci-
mento. O que atualmente traduziríamos como gramática, por exemplo, pode
ser causa de estranhamento quando nos deparamos com textos do período
grego clássico. Surge como uma arte (gr. tékhnē), gênero textual pedagógico,
mas essa arte de gramática (gr. tékhnē grammatikḗ, lat. ars grammatica), parece
ter sido o “alfabeto, rudimentos de fonética, exercícios para leitura em voz
alta, especialmente textos metrificados” (LALLOT, 2006, p. 598), assemelhan-
do-se mais, por conseguinte, ao que hoje veríamos como uma cartilha —
permitindo compreender a formação do termo gramática a partir da palavra
grega para letra (gr. grámma, -atos). Esse emprego de gramática não pode ser
estendido sequer para toda a Antiguidade, porque esse uso do termo passaria
a ser referido como “a velha gramática”, ou gramatística (gr. grammatistikḗ),
marcando a diferença em relação à nova disciplina que se formava. Vários
autores registraram essa distinção. Um exemplo:

a “Gramática” é dupla, uma delas professando ensinar os elementos do alfabe-


to e suas combinações, e, em geral, sendo uma arte de escrever e ler, e a outra,
por sua vez, sendo uma faculdade mais profunda que a primeira, e não con-
sistindo em mero conhecimento das letras, mas também no exame detalhado
de sua descoberta e sua natureza, e, ainda, das partes do discurso compostas
pelas letras e todos os outros temas do mesmo tipo. (SEXTO EMPÍRICO, Con-
tra os gramáticos, 2015, 2, 49)

Outra constatação a que se chega depois de algum tempo é a de que a


distinção entre metalinguagem e linguagem-objeto estava em formação com
a nova disciplina:

Gregos e romanos não compartimentam o conhecimento nem sempre corre-


lacionam fenômenos gramaticais como nós fazemos. No entanto, eles criam
uma vasta gama de termos técnicos, mas essa terminologia está, na maior
parte do tempo, em processo de evolução e não se fixa até tarde na tradição;
consequentemente, muitos autores utilizam a linguagem do discurso intelec-

126 Maria Carlota Rosa


tual cotidiano, muitas vezes embelezada por metáforas notáveis, em vez de
uma metalinguagem estabelecida ao articular suas teorias e práticas linguís-
ticas. Assim, tanto a disponibilidade de textos como o conteúdo desses textos
colocam problemas historiográficos de alguma magnitude. (TAYLOR, 2006,
p. 2, 432, trad. dos orgs.)5

Para Lallot, não se pode falar de metalinguagem antes do século IV a.


C: “A única coisa que podemos dizer é que não temos qualquer evidência de
tal metalinguagem em textos anteriores ao século IV. É somente com Platão
que os ‘substantivos’ vão cindir-se explicitamente em substantivos e verbos”
(LALLOT, 1988, p. 13, grifo no original, trad. dos orgs.).6
A situação já é outra quando se focaliza a primeira gramática de que se
tem notícia no Ocidente, a Tékhnē grammatikḗ de Dionísio da Trácia, possi-
velmente escrita por volta do século II a.C. Nela Taylor (1995, p. 86) indica a
presença de cerca de 150 termos técnicos que chegaram aos dias de hoje. Mas
voltamos a relembrar Saussure: o que é um nome, por exemplo? A definição
dependerá do ponto de vista preciso.
A dificuldade com a metalinguagem pode apresentar-se de mãos dadas
com os obstáculos presentes na linguagem-objeto.

3. Metalinguagem sobre que linguagem-objeto?


Virgilius Maro Grammaticus (ou Virgílio Marão) foi um autor do século VII.
Escreveu por volta de 650 duas obras gramaticais sobre o latim: Epitomae e
Epistolae. Epitomae tem por base a Ars maior de Donato (c. 350), e focalizou
a letra, a sílaba, o pé, as partes do discurso, mas, diferentemente de Dona-
to, incluiu etimologia e gramáticos anteriores (LAW, 1995, p. 1). Na segun-
da obra, Epistolae, baseada na Ars minor, focalizou as oito partes da oração
(LAW, 1995, p. 1).

5
No original: “Greeks and Romans neither compartmentalize knowledge nor always broker out gramma-
tical phenomena as we do. They do, however, create a vast array of technical terms, but that terminology
is, for much of the time, in the process of evolving and does not become fixed until late in the tradition;
consequently many authors employ the language of everyday intellectual discourse, often embellished by
notable metaphors, rather than an established metalanguage when articulating their linguistic theories
and practices. So both the availability of texts and the contents of those texts pose historiographical proble-
ms of some magnitude”. (TAYLOR, 2006, p. 2, 432)
6
No original: “La seule chose que nous puissions dire, c’est que nous n’avons pas trace d’un tel métalangage
dans des textes antérieurs au quatrième siècle. C’est seulement avec Platon que les « noms » vont explicite-
ment éclater en noms et en verbes”. (LALLOT, 1988, p. 13)

A questão da metalinguagem na Historiografia da Linguística


127
Deve-se a Vivien Law (1954-2002) uma nova compreensão desse mate-
rial, que fora considerado quer uma demonstração de uma latinidade deca-
dente, quer uma mostra de incompreensão dos clássicos; para Law (1997, p.
240), ao brincar com as formas latinas, Virgílio Maro levava seu aluno a ler
não com os oculi carnis — para o que qualquer outra gramática serviria —
mas com os oculi mentis.
Em Virgílio Maro a linguagem-objeto era o latim. Mas aqui linguagem-
-objeto e metalinguagem se tornam um problema. Em Epitomae, Virgílio in-
forma ao leitor que há 12 variedades de latim:

Há doze tipos de latim. Deles, um é de uso comum, e nele os latinos escrevem


todas as suas obras. Para lhe dar uma amostra dos doze tipos, eu os demons-
trarei usando um único substantivo.
1 No latim de uso comum, ignis “fogo” assume o primeiro lugar, inflamando
tudo pela sua natureza essencial.
2 Chama-se quoquihabin [que Virgilius declina por completo] porque tem o
poder de cozinhar alimentos crus;
3 Chama-se ardon porque arde ardentemente;
4 calax calacis que vem de seu calor (calor);
5 spiridon que vem de seu sopro (spiramen);
6 rusin que vem de sua cor ruborizada (rubor);
7 fragon que vem do crepitar (fragor) de suas chamas;
8 fumaton que vem da fumaça (fumus);
9 ustrax que vem da queima (urendo);
10 vitius na medida em que revive membros quase mortos com o seu vigor;
11 siluleus porque salta da pedra (de silice sileat); portanto, nada merece o
nome silex ‘pedra’ a menos que uma scintilla ‘faísca’ salte dela;
12 aeneon do deus Enéas, que vive nela, ou por quem a brisa é levada aos
elementos. (A I 57-77, In LAW, 1995, p. 53-54, trad. dos orgs.)7

7
No original: “There are twelve kinds of Latin. Of them, one is in common use, and in it the Latins write all
their works. To give you a sample of the twelve types, I shall demonstrate them using a single noun.
1 In the Latin in common use ignis ‘ fire’ takes first place, igniting everything through its essential nature; 2
It is called quoquihabin [which Virgilius declines in full] because it has the power of cooking raw food; 3 it
is called ardon because it burns ardently; 4 calax calacis from its heat (calor); 5 spiridon from its blast (spi-
ramen); 6 rusin from its ruddy colour (rubor); 7 fragon from the crackling (fragor) of its flames; 8 fumaton
from the smoke (fumus); 9 ustrax from burning (urendo); 10 vitius in that it revives near-dead limbs with
its vigour; 11 siluleus because it leaps from the flint (de silice sileat); hence, nothing deserves the name silex

128 Maria Carlota Rosa


Afora a primeira variedade de latim (o sermo ussitatus), as demais são
variedades da latinitas inussitata, formas latinas inexistentes. A questão das
12 variedades do latim é retomada nas Epistolae:

Ele [Virgílio da Ásia] escreveu um esplêndido livro sobre os doze latinos, que
ele chamou por esses nomes:
I O primeiro é o tipo de uso comum na eloquência romana.
II Assena, ou seja, estenografia, que representa uma palavra inteira (fonum)
com uma única letra em uma forma prescrita.
III Semedia, ou seja, nem totalmente estranho nem totalmente familiar, como
a monta glosa, que é mons altus ‘montanha alta’ e gilmola para gula esôfago.
IV Numeria tem seus próprios números: nim 1, dun 2, tor 3, quir 4, quart 5,
ses 6, sen 7, onx 8, amin 9, ple 10, que é assim chamado de ‘plenitude’; e desta
maneira de nimple 11 a plasina 20, torlasin 30, quirlasin 40, até bectan 100, e
em até colephin 1000, etc.
V Metrofia, ou seja, referente ao entendimento, por exemplo dicantabat ‘co-
meço’, bora ‘força’, gcno ‘utilidade’, sade ‘justiça’, teer ‘par conjugal’, rfoph
‘veneração’, brops ‘piedade’, rihph ‘hilaridade’, gal ‘reino’, fkal ‘religião’, cli-
tps ‘nobreza’, mrmos ‘dignidade’, fann ‘reconhecimento’, ulioa ‘honra’, gabpal
‘conformidade’, blaqth ‘luz do sol’, mera ‘chuva’, pal ‘dia e noite’, gatrb ‘paz’,
biun ‘água e fogo’, spadx ‘longevidade’. O mundo inteiro é governado por estas
coisas e prospera nelas.
VI Lumbrosa, ou seja, excessivamente longa, quando uma frase inteira é escri-
ta para uma única palavra comum. Aqui estão alguns exemplos: gabitariuum
bresin galsiste ion para ‘ler’; similarmente nebesium almigero pater panniba
para ‘vida’.
VII Sincolla, ou seja, excessivamente curto, é o oposto: toda uma frase comum
está contida em uma palavra, como nos seguintes exemplos: gears ‘consertar
seus caminhos e amar as coisas boas’; similarmente biro, ‘não é conveniente
abandonar seus pais’.
VIII Belsavia, ou seja, de cabeça para baixo, quando os casos de substantivos
e humores de verbos são alterados, como nestes exemplos: lex para legibus,
legibus para lex, rogo para rogate, rogant para rogo.

‘ flint’ unless a scintilla ‘spark’ jumps from it; 12 aeneon from the god Aeneas who lives in it, or by whom
breezes are wafted to the elements”. (A I 57-77, In LAW, 1995, p. 53-54)

A questão da metalinguagem na Historiografia da Linguística


129
IX Presinay, ou seja, abrangente, quando uma forma de palavra significa mui-
tas palavras normais, como sur, que significa ‘campo’ ou ‘castrado’ ou ‘espada’
ou ‘corrente’.
X Militana, ou seja, múltipla, quando muitas palavras são usadas no lugar
de uma forma de palavra comum, como por exemplo para ‘funcionamento/
corrida’, gammon, saulin, selon, rabath.
XI Spela, ou seja, extremamente humilde, que fala sempre de questões terre-
nas, por exemplo, sobon ‘lebre’, gabul ‘raposa’, gariga ‘guindaste’, lena ‘galinha’.
Ursinus usou este tipo.
XII Polema, isto é, superna, que trata de assuntos superiores, por exemplo,
affla para ‘alma’, spiridon para ‘espírito’, repota para certas ‘virtudes supernas’,
sanamiana anus para a ‘unidade de Deus no alto’. Virgílio sempre usou este
tipo. (In LAW, 1995, p. 112-113, trad. dos orgs.)8
Law aplicou o adjetivo bizarro a esse material:

8
No original: He [Virgilius of Asia] wrote a splendid book on the twelve Latins, which he called by these
names:
I The first is the kind in common use in Roman eloquence.
II Assena, i.e. shorthand, which represents a whole word (fonum) with a single letter in a prescribed form.
III Semedia, i.e. neither wholly strange nor wholly familiar, like monta glosa, which is mons altus ‘tall
mountain’ and gilmola for gula ‘gullet’.
IV Numeria has its own numbers: nim 1, dun 2, tor 3, quir 4, quart 5, ses 6, sen 7, onx 8, amin , ple 10, which
is so called from ‘plenitude’; and in this manner from nimple 11 to plasin 20, torlasin 30, quirlasin 40, up
to bectan 100, and on up to colephin 1000, etc.
V Metrofia, i.e. pertaining to the understanding, e.g. dicantabat ‘beginning’, bora ‘fortitude’, gcno ‘utili-
ty’, sade ‘justice’, teer ‘conjugal pair’, rfoph ‘veneration’, brops ‘piety’, rihph ‘hilarity’, gal ‘kingdom’, fkal
‘religion’, clitps ‘nobility’, mrmos ‘dignity’, fann ‘recognition’, ulioa ‘honor’, gabpal ‘compliance’, blaqth
‘light of the sun’, mere ‘rain’, pal ‘day and night’, gatrb ‘peace’, biun ‘water and fire’, spadx ‘longevity’. The
whole world is ruled by these things and prospers in them.
VI Lumbrosa, i.e. excessively long, when a whole phrase is written for a single common word. Here are
some examples: gabitariuum bresin galsiste ion for ‘to read’; similarly nebesium almigero pater panniba
for ‘life’.
VII Sincolla, i.e. excessively short, is the opposite: a whole common phrase is contained in one word, as
in the following examples: gears ‘mend your ways and love good things’; similarly biro, ‘it is not expedient
to abandon one’s parents’.
VIII Belsavia, i.e. upside down, when the cases of nouns and moods of verbs are altered, as in these exam-
ples: lex for legibus, legibus for lex, rogo for rogate, rogant for rogo.
IX Presinay i.e. comprehensive, when one word-form signifies many normal words, like sur, which means
‘field’ or ‘gelding’ or ‘sword’ or ‘stream’.
X Militana, i.e. manifold, when many words are used in the place of one common word-form, as for
example for ‘running’, gammon, saulin, selon, rabath.
XI Spela, i.e. extremely humble, which always speaks about earthly matters, e.g. sobon ‘hare’, gabul ‘fox’,
gariga ‘crane’, lena ‘hen’. Ursinus used this kind.
XII Polema, i.e. supernal, which treats of higher matters, e.g. affla for ‘soul’, spiridon for ‘spirit’, repota
for certain ‘supernal virtues’, sanamiana anus for the ‘unity of God on high’. Virgilius always used this
kind. (In LAW, 1995, p. 112-113)

130 Maria Carlota Rosa


Pelos padrões de qualquer um, grande parte da sua doutrina é bizarra. Ele fala
de palavras que simplesmente não existem — pelo menos em latim normal.
Ao lado do verbo comum “ver”, por exemplo — uideo uidere — ele cria um
novo verbo, uido uidare. Ele produz formas baseadas em palavras latinas re-
conhecíveis, mas que não têm nenhuma semelhança com as formas ‘corretas’
que você esperaria encontrar em uma gramática. Por exemplo, ele menciona
as formas verbais dixi e lego, e então introduz variantes reduplicadas: dixixi
e legego. Mas ele qualifica cuidadosamente estas e outras curiosidades seme-
lhantes como pertencendo à latinitas inussitata, ‘o latim que não é de uso
comum’. (LAW, 1997, p. 225, trad. dos orgs.)9

Virgílio Maro elenca inúmeras fontes, que dão autoridade a seu discur-
so, como Cícero, Quintiliano, Varrão — mas, aponta Law (1997, p. 225), as
citações não podem ser encontradas nas obras que nos chegaram. A autori-
dade também é buscada em outros autores: uma mulher de nome Fassica, a
par com outros nomes também desconhecidos como Glengus, Balapsidus,
Galbungus, Sufphonias...

4. As armadilhas do texto-fonte
A metalinguagem empregada (ou não) nas fontes de pesquisa antigas colo-
ca o historiógrafo da Linguística diante de um problema, como já apontou
Koerner (2014 [1993]): ao mesmo tempo tornar o texto accessível a um leitor
moderno e não distorcer o passado, descobrindo nele exemplos avant la lettre
das teorias atuais. É possível traçar aproximações terminológicas com teorias
recentes, de modo a facilitar a compreensão? Sim, mas, como nota Koerner
(2014 [1993]), sem deixar de destacar para o leitor de quem partiu a aproxi-
mação terminológica.

9
No original: “By anyone’s standards, much of his doctrine is bizarre. He talks about words which sim-
ply don’t exist — at any rate in normal Latin. Alongside the ordinary verb ‘to see’, for example — uideo
uidere — he creates a new verb, uido uidare. He produces forms based on recognisable Latin word, but
which bear no resemblance to the ‘correct’ forms you would expect to find in a grammar. For instance,
he mentions the verb forms dixi and lego, and then introduces reduplicated variants: dixixi and legego.
But he carefully qualifies these and similar curiosities as belonging to latinitas inussitata, ‘the Latin that
is not in common use’”. (LAW, 1997, p. 225)

A questão da metalinguagem na Historiografia da Linguística


131
Referências
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132 Maria Carlota Rosa


O TEMA DA
Introdução: sobre o conceito de
influência

INFLUÊNCIA EM
Uma das premissas pacíficas nos es-
tudos sobre o percurso da arte e da
ciência, das ideias políticas e religio-

HISTORIOGRAFIA sas, bem como das tendências com-


portamentais que caracterizam a ativi-
dade humana está na presença de uma

DA LINGUÍSTICA linha de influência que vincula o que


se já fez ao que ora se faz. Nesse sen-
tido, a investigação sobre o fenômeno
Ricardo Cavaliere da influência no corpo da sociedade
contribui decisivamente para que en-
tendamos por que certas crenças —
religiosas, políticas, artísticas e científicas — ganham prestígio e perduram
no decurso do tempo, ao passo que outras caem no esquecimento das coi-
sas irrelevantes. De início, percebemos que a tarefa de conceituar influência
enfrenta o óbice de sua polissemia nos vários contextos em que o termo se
usa na sociedade contemporânea. Com efeito, a ideia de que algo ou alguém
influencia a outrem pode fazer supor uma relação de autoridade hierárquica,
ou de submissão ideológica, sem que se descartem fatores como a convicção
de que um dado comportamento é legítimo pela simples força da tradição.
Se quisermos vincular o conceito de influência a um atributo genera-
lístico, que se possa, por assim dizer, identificar em todo tipo de relação ou
interação social, decerto seremos conduzidos necessariamente ao conceito
conexo de poder ideológico, no sentido de que toda relação influenciadora
implica necessariamente a transmissão de uma ideia que se sobrepõe a ou-
tra1 no processo de interação interpessoal. Dessa premissa, conclui-se que o
conceito de influência pressupõe o de ideologia, o qual por sua vez pressupõe
uma deliberada formulação de sentidos em face das coisas que ocorrem no
mundo. Por tal motivo, conforme nos adverte Talcott Parsons (1902-1979)
em seu texto seminal sobre o conceito de influência no campo da sociologia

1
Não raro, também, a transmissão de uma ideia que ocupa um “vazio ideológico” decorrente da absoluta
falta de opinião sobre dado tema ou conceito.

133
(1963, p. 37), as experiências decorrentes de fatos naturais, tais como um
furacão ou um terremoto, e até mesmo ligadas a fatos sociais que não se
tenham originado de um ato deliberado, por exemplo, um estado de estag-
nação econômica ou um contato cultural fortuito, não se ajustam ao sentido
de influência que se quer aplicar à História da Arte ou à História da Ciên-
cia. Dizer que a cultura brasileira sofre influência da cultura africana não
está errado, decerto, mas aqui o sentido de influência reside em outro plano
semântico, em que talvez apropriadamente se possa vinculá-lo ao de causali-
dade. No plano da investigação científica, a influência é uma forma de intervir
nas atitudes e opiniões dos outros através de ações intencionais (embora não
necessariamente racionais), cujo efeito pode ou não ser o de mudar convicções
ou impedir sua possível mudança.
Verifica-se, pois, que os conceitos de influência no plano artístico e em
esfera científica distinguem-se no tocante à intencionalidade e sua conse-
quente busca de resultados. Parsons idealiza uma relação dialética no cons-
tructo da influência em que necessariamente figuram um ego, que aqui po-
demos designar como influenciador, e um alter, aqui designado influenciado
(1963, p. 42). Em suas razões, Parsons admite que o influenciador atue de-
liberadamente na órbita decisória do influenciado, seja pela persuasão ou
pela indução, de tal sorte que logre obter um fim desejado. Nesse intuito,
não se descarta a ação do influenciador mediante sanções para que o fim
colimado seja afinal atingido, de que decorre uma perpetuação das ideias
do influenciador na ação do influenciado como satisfação de interesses ou
preservação de crenças. Essa hipótese teórica talvez se aplique bem no estudo
das relações sociais que regulam o mercado financeiro ou a administração de
grupos corporativos — isto é, os aspectos mais diretamente relacionados à
interação social, de que se ocupa Parsons —, mas não nos parece cabível no
plano da influência científica, já que os inúmeros exemplos de que dispomos
nessa área revelam uma relação em que o influenciado (alter) segue as ideias
do influenciador (ego) por livre arbítrio e convicção de que está no caminho
certo para o sucesso em sua atividade profissional.
Por outro lado, a relação entre influenciador e influenciado pode efe-
tivamente falsear o livre-arbítrio a tal ponto que ambos sequer se dão conta
de que o processo de transferência ideológica se deveu mais pela pressão
do influenciador do que pela persuasão epistemológica. Isto efetivamente
ocorre no meio acadêmico, em que a necessidade de participação em gru-

134 Ricardo Cavaliere


pos de pesquisa constitui um imperativo para o crescimento profissional do
jovem investigador. Nesse cenário, a figura do orientador de pesquisa será
decisiva para que o investigador júnior abrace as causas de um dado para-
digma científico e venha a tornar-se um de seus seguidores. Na realidade,
a formação acadêmica hodierna implica certa necessidade de “estar junto”
ou de “agrupar-se” como medida profilática na defesa de paradigmas, de
tal sorte que, conforme Parsons, “estar sujeito a uma influência mútua sig-
nifica constituir um “nós”, no sentido de que os membros têm opiniões,
tomam atitudes comuns e, em virtude disso, mantêm-se unidos perante os
que deles diferem” (1963, p. 51). Outros fatores, decerto, ingressam nessa
arquitetura da influência acadêmica, entre eles o prestígio do influenciador,
fator que acaba por revestir suas ideias científicas de credibilidade sufi-
ciente para cooptar pesquisadores que supõem estar influenciados por suas
ideias científicas, razão por que, no campo das atividades grupais, pode-se
falar em uma (não necessária) influência induzida por fatores alheios à
genuína identidade ideológica entre o ego e o alter.

1. A influência consciente
Uma das questões que circundam o estudo da influência tanto no campo da
arte quanto no da ciência diz respeito à consciência de sua existência. Uma
conhecida tese do crítico literário Harold Bloom, que se estende pelas páginas
de seu A angústia da influência (1991[1973]), sustenta que todo autor literário
tem consciência de ter-se influenciado por seus antecedentes, fato que pode
criar óbices de difícil superação no processo criativo a ponto de o próprio autor
influenciado julgar inidôneos os caminhos trilhados pelas sendas já abertas em
obras literárias anteriores. Essa tese trabalha com os conceitos de influência
consentida, que pode ser explícita ou camuflada, e de influência rejeitada. A
influência consentida explícita expressa-se em referências diretas à obra de um
artista antecessor, conforme se observa, no âmbito da cinematografia, na obra
de Brian de Palma em face da genialidade de Alfred Hitchcock (1899-1980)2.
Essa atitude explícita, em que o influenciado remete o leitor da obra artística a
um mestre que lhe serviu de parâmetro ou modelo pode, decerto, não passar
de uma forma de elogio, mas aos olhos do leitor atento o efeito será sempre o

2
Fato que se observa, especialmente, em Vestida para matar (Dressed to kill), lançado em 1980.

O tema da influência em Historiografia da Linguística


135
de perpetuação de um modus faciendi que inclui a obra do artista influenciado
no patrimônio artístico do artista influenciador.
Portanto, quando dizemos que em Brian de Palma há um Hitchcock
redivivo, revelamos tão somente haver captado a intencionalidade de per-
petuação que o novo projeta sobre o antigo. Mas essa percepção só se aper-
feiçoa, ou mesmo se configura, se o leitor tiver em seu universo cognitivo
o necessário saber intertextual que, obviamente, decorre de sua experiência
como expectador de filmes dirigidos por Hitchcock. Em outras palavras, a
influência consentida, como, por sinal, qualquer informação que integre os
efeitos de sentido de um texto, só se realiza no ato de leitura cujo leitor tenha
competência de pressupostos3 para percebê-la. Por outro lado, evidencia-se
que a influência consentida é ordinariamente camuflada, não no sentido de
o artista querer ocultá-la, senão em face de sua natural presença como resul-
tado de coparticipação em uma mesma escola ou paradigma4.
Em plano distinto, pode-se atribuir a um artista uma espécie de rejeição
da influência sofrida, no sentido de que sua consciência produz um efeito
pelo avesso. São evidentemente casos em que o autor da obra artística denega
uma evidência que o leitor crítico denuncia. Não significa, a rigor, que um es-
critor, por exemplo, negue algo que está à vista de todos, mas que rejeite esse
fato como algo válido ou edificante em sua produção artística. Os exemplos
dessa influência rejeitada multiplicam-se na literatura contemporânea, bas-
taria aqui citarmos a rejeição de Salman Rushdie à influência que afirma ter
sofrido de Jorge Luís Borges (1899-1986) ou, entre os brasileiros, a influência
que o mesmo Borges exerceu sobre Milton Hatoum a ponto de o próprio au-
tor de A cidade ilhada reconhecer que plagiava o estilo do escritor argentino5.
No plano científico, em especial nos estudos linguísticos, entretanto, as
teses de Bloom não se podem acatar pacificamente. Com efeito, até que pon-
to se pode afirmar que todo processo de compartilhamento intenso de saber
científico, em que um investigador é influenciado por outro, se faz consciente-
mente? Em princípio, semelhante premissa colide com o conceito de horizonte
de retrosprecção e sua relevância para entendermos a construção do saber na
produção científica. Um aspecto que necessariamente temos de observar na

3
Pressupostos aqui no sentido proposto por Ducrot (1977).
4
Em órbita literária, cite-se a presença de James Fenimore Cooper (1789-1851) em José de Alencar (1829-1877)
5
Estas e outras referências encontram-se em http://todoprosa.com.br/dez-escritores-brasileiros-abrem-
-o-jogo-da-ma-influencia/

136 Ricardo Cavaliere


concepção de horizonte de retrospecção diz respeito à relação entre o inven-
tário de saberes e a temporalidade. Decerto que há uma relação intrínseca
entre o conteúdo cognitivo que dada pessoa tem sobre um certo assunto e a
referência temporal, já que tais saberes passam a integrar o conjunto do co-
nhecimento em sequência cronológica bem definida. A questão é que, quando
se vale dessa competência cognitiva para atuar cientificamente, por exemplo,
numa atividade típica de pesquisa, o investigador atualiza todo seu conheci-
mento em plano atemporal, ou seja, seu horizonte de retrospecção manifes-
ta-se sem que a temporalidade afete o conjunto de saberes acumulados. Em
outros termos, “a copresença do conhecimento é uma modalidade necessária
do horizonte da retrospecção” (Auroux, 2006, p. 108, trad. dos orgs.).6

2. A influência revelada no horizonte de retrospecção


Naturalmente, mais evidente se revela o horizonte de retrospecção de um
dado linguista pelas referências bibliográficas que ele oferece em sua obra,
de que se abstrai o conjunto de teses e postulados que integram as fontes em
que se abeberou para produzir seus próprios textos científicos. Aqui surge
uma questão crucial que decerto aflige o historiógrafo da linguística: a, por
vezes, total ausência de referências bibliográficas no texto analisado. Com
efeito, no Brasil ao menos, o hábito de oferecer informações claras e por-
menorizadas acerca das obras e autores consultados não se estabelece senão
após a segunda década do século XX. Antes, a referência é ordinariamente
incompleta ou mesmo inexistente, tirante as exceções que naturalmente se
apresentam no cotidiano da pesquisa7. A ausência de referência explícita das
obras e autores consultados pode ser suprida pela análise contextualizada
do texto linguístico, seja no interior de um dado paradigma, seja pela via da
metalinguagem utilizada8.
Um exemplo expressivo na bibliografia linguística brasileira está no vo-
lume Estrutura da língua portuguesa (1970), de Joaquim Mattoso Camara Jr
(1904-1970). Como sabemos, esse texto foi publicado postumamente, logo após

6
No original: “la co-présence des connaissances est une modalité nécessaire de l’horizon de rétrospection”
(AUROUX, 2006, p. 108).
7
Entre as exceções, cite-se a cuidadosa referência bibliográfica indicada por Maximino Maciel em sua
Gramática descritiva (1922 [1894]).
8
Observe-se o que diz Konrad Koerner, a respeito, ao tratar do princípio da imanência (KOERNER, 2014,
p. 58-59)

O tema da influência em Historiografia da Linguística


137
o falecimento do autor, sem que se tivesse o cuidado de preparação adequa-
da. A rigor, trata-se de um rascunho, que Mattoso jamais teria publicado nas
condições em que se apresenta, incluindo-se aí a total ausência de referências
bibliográficas. No entanto, a leitura sistêmica da Estrutura no conjunto da obra
de Mattoso Camara permite-nos identificar claramente os textos teóricos de
que se serviu o mestre do estruturalismo para compor seu trabalho descritivo.
Por outro lado, uma face menos evidente do horizonte de retrospecção
na obra de um certo linguista revela-se pela investigação de sua formação
intelectual, do contato mantido com seus pares no dia a dia do labor cientí-
fico, bem como em certos aspectos de sua vida privada, tais como as crenças
religiosas e os parâmetros de comportamento moral. Quanto a esses últi-
mos fatores, por exemplo, pode-se perfeitamente inferir que uma formação
dogmática em dada religião tenha sido a veia condutora dos interesses do
linguista para a doutrina de outros que professam a mesma crença.
Sirva-nos, como exemplo, a proximidade de Otoniel Mota (1878-1951)
com a Linguística norte-americana, já pelo segundo decênio do século XX,
tendo em vista sua identidade com os ideólogos da Igreja Presbiteriana. Mota
foi cofundador da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, erigida sobre
os pilares calvinistas, em companhia de Eduardo Carlos Pereira (1855-1923)
e mais cinco pastores evangélicos9. A doutrina linguística americana na obra
de Otoniel Mota é consequência de sua viagem aos Estados Unidos da Amé-
rica, de onde recolheu os princípios da descrição sintática que viria a propor
em suas Lições de português (1918 [1915]), com base nos diagramas sintáticos
idealizados por Alonzo Reed (1841-1899) e Brainerd Kellogg (1834-1920)10.
Em que medida podemos hoje afirmar que a Linguística de Reed e Kellogg
constituía um fator de influência no pensamento linguístico de Mota? Teria o
linguista brasileiro acolhido as ideias dos colegas americanos em face do con-
vencimento de que eram eficazes para descrever o funcionamento da língua
ou como decorrência secundária do intercâmbio religioso que lhe motivara a
presença nos Estados Unidos da América? Essas evidências levam-nos à con-
clusão de que, no campo da Linguística, ao menos, a influência paradigmática
ou mesmo dogmática pode ser inconsciente, no sentido de integrar o horizon-
te de retrospecção sem que o próprio linguista influenciado disso se aperceba.

9
São eles Alfredo Borges Teixeira (1878-1975), Bento Ferraz (1865-1944), Caetano Nogueira Júnior (1856-
1909), Ernesto Luiz de Oliveira (1875-1938) e Vicente Themudo Lessa (1874-1939).
10
Leia, a respeito, Cavaliere (2014).

138 Ricardo Cavaliere


3. Os tipos de influência em Historiografia da Linguística
De início, convém advertir que não tratamos aqui a questão da influência no
plano dos paradigmas científicos, que naturalmente decorre do processo de
continuidade e descontinuidade dos modelos teóricos no curso da Linguís-
tica, já que, a rigor, esse é um fato que se situa na órbita do progresso da
ciência. Dizer, por exemplo, que a hipótese da gramática universal da Gra-
mática de Port-Royal está na concepção linguística dos primeiros modelos da
Gramática Gerativa não significa atestar uma relação de influência científica,
senão um processo natural no percurso das ideias linguísticas em que cren-
ças mais antigas são retomadas por crenças atuais em renovada perspectiva.
Em outras palavras, a concepção de influência implica a existência de perso-
nagens individualizadas, o influenciador e o influenciado, conforme fizemos
observar nas primeiras linhas deste estudo, tendo em vista fatores atinentes à
relação pessoal ou ao contato acadêmico11 ou entre ambos.
Considerando-se, assim, esta delimitação do conceito de influência, po-
demos levantar aspectos relevantes para que entendamos melhor como se
constrói o vínculo ideológico entre influenciador e influenciado. Primeira-
mente, não é cientificamente aconselhável afirmar que o contato entre dois
pesquisadores na intimidade do relacionamento pessoal constitua um fator
mais decisivo para o surgimento da influência ideológica. Efetivamente, não
há fundamento científico nessa afirmação, que, a rigor, só se justificaria pela
mera percepção laica que todos nós temos acerca da relação entre amizade e
influência, ou inimizade e dissidência.
Assim, considerando que os cientistas também são humanos — fato que
se há de necessária e reiteradamente lembrar — não é de surpreender que as
declarações explícitas de influência venham da boca de quem revela admi-
ração pela figura do influenciador no plano da intimidade amistosa, embora
não se possa comprová-la no plano das ideias científicas. Ao historiógra-
fo cabe, na contramão dessas declarações explícitas, não raro revestidas de
admiração afetiva, investigar se o ideário científico do suposto influenciado
efetivamente se erige sobre os pilares da teoria agasalhada pelo suposto in-
fluenciador. Em aditamento, cumpre igualmente ao historiógrafo elucidar as
possíveis linhas de influência entre cientistas que não se inscrevem nesse es-

11
Entenda, aqui, contato acadêmico em sentido lato, decorrente do compartilhamento do saber, seja na
esfera do contato profissional direto, seja pela leitura da literatura científica.

O tema da influência em Historiografia da Linguística


139
tereótipo da convivência harmônica, da amizade fraterna, de tal sorte que as
omissões deliberadas sobre fontes teóricas ou metodológicas se evidenciem,
ainda que à ilharga do interesse ou da satisfação do cientista influenciado.
Tome-se um exemplo expressivo na História da Linguística brasileira.
Em seu texto Iniciação à filologia portuguesa (1957), Gladstone Chaves de
Melo (1917-2001) se alinha à proposta antes defendida por Joaquim Matto-
so Camara Jr. (1941) acerca do emprego dos metatermos classe e categoria
gramatical nos estudos morfológicos, de tal sorte que a categoria se devesse
atribuir a referência aos atributos morfológicos das palavras, restando a classe
sua organização em grupos de mesma função gramatical. Portanto, teríamos
as categorias de gênero, número, tempo, modo etc. e as classes de substantivo,
adjetivo, verbo, pronome etc. Cuida-se aqui do conceito kantiano de catego-
ria, distinto do conceito aristotélico, vigente durante séculos na edificação
da descrição gramatical, de cujos fundamentos extraiu-se a classificação das
palavras proposta pela tradição latina e até hoje presente em compêndios de
certa tradição linguística.
A proposta de Gladstone foi objeto de severa crítica objetada por Cândi-
do Jucá [Filho] (1900-1982)12, um fiel seguidor da tradição latina e, por con-
seguinte, da proposta categorial inscrita na filosofia aristotélica. Jucá atribuía
a postura “revolucionária” de Gladstone a sua admiração por Mattoso Camara
Jr., dando a entender que o jovem autor da Iniciação à filologia e à linguís-
tica portuguesa13 deixava-se influenciar pelas ideias linguísticas mattosianas
em face de um relacionamento pessoal entre discípulo e mentor. Decerto que
Gladstone cita o mestre fluminense em sua obra, mas também lá se encon-
tram outros representantes teóricos do estruturalismo que compartilham as
mesmas ideias sobre o conceito de categoria gramatical. Em outros termos,
não há fonte histórica que comprove a suposta influência direta de Joaquim
Mattoso Camara Jr. em Gladstone Chaves de Melo em face do relacionamen-
to pessoal, sobretudo porque a análise de suas respectivas carreiras docentes
não nos conduz a essa conclusão. Se influência há, decerto se deve à presença
acadêmica da obra de Câmara no horizonte de retrospecção de Gladstone.
No entanto, não se pode descartar a hipótese de que dado investigador
efetivamente se deixe influenciar pelas ideias de outrem em face da relação
amistosa que entre eles se construiu no curso da vida, sobretudo na esfera
12
Leia, a respeito, Jucá [Filho] (1953).
13
Destaque, por sinal, a oportuna copresença dos termos filologia e linguística no título do livro.

140 Ricardo Cavaliere


da atividade profissional. Não são poucas as referências à influência pessoal
na história da ciência e mesmo na filosofia da ciência, um comportamento
que, via de regra, faz inferir certo teor de agradecimento ou reconhecimento,
possivelmente gratidão.
Thomas Kuhn (1922-1996), por exemplo, revela que se tivesse de men-
cionar nas páginas de A estrutura das revoluções científicas (1970[1962]) os
cientistas e pensadores que o influenciaram, ver-se-ia obrigado a escrever
um rol extensíssimo que praticamente incluiria todos os seus amigos e co-
nhecidos. Ora, é evidente que uma afirmação desse jaez transfigura o real
sentido historiográfico de influência, já que na referida lista inumerável de
cientistas influenciadores estariam tanto os que efetivamente participaram
da construção ideológica da ciência em Kuhn, quanto os que eventualmente
tiveram uma participação ocasional ou fortuita. É assim que, em seu relato,
Kuhn traça referência a James Bryant Conant (1893-1978), professor de quí-
mica e então diretor da Universidade de Harvard, que lhe abriu as portas
da História da Ciência e o iniciou nos primeiros conceitos sobre a natureza
do avanço do saber científico, bem como a Stanley Cavell (1926-2018), um
filósofo da ciência com quem trabalhou na Universidade de Berkeley: “Para
mim foi uma fonte de constante estímulo e encorajamento o fato de Cavell,
um filósofo preocupado principalmente com a ética e a estética, ter chegado
a conclusões tão congruentes com as minhas” (KUHN, 1970[1962], p. XIII,
trad. do autor do capítulo)14.
Por vezes, torna-se dificílimo caracterizar uma relação de influência, se
pelo contato acadêmico ou se pela relação pessoal entre os linguistas envol-
vidos. Isto porque um desses fatos será necessariamente resultante do outro,
sem que se possa hoje definir claramente qual é o originário e qual é o de-
corrente. No plano da linguística brasileira, é expressivo e deveras conhecido
o vínculo que se estabeleceu entre Manuel Said Ali (1861-1953) e Evanildo
Bechara, conforme se comprova pelas inúmeras referências que o segundo já
teceu ao primeiro como mestre e parâmetro de conduta acadêmica em várias
ocasiões. A história dos primeiros contatos entre Bechara e Said Ali, entre-
tanto, não nos permite concluir como se construiu a relação de influência
entre ambos. Com efeito, Bechara tomou ciência das ideias de Said Ali ao

14
No original: “That Cavell, a philosopher mainly concerned with ethics and aesthetics, should have rea-
ched conclusions quite so congruent to my own has been a constant source of stimulation and encourage-
ment to me”. (KUHN, 1970[1962], p. XIII)

O tema da influência em Historiografia da Linguística


141
ler, por acaso, ainda na adolescência, o livro Lexiologia do português histórico
(1921), que muito o impressionou em face dos conceitos distintos dos que
os demais gramáticos professavam, entre eles Cândido de Figueiredo (1846-
1925). Movido pelo interesse de conhecer o autor daquelas ideias revolucio-
nárias, Bechara, quando mal havia completado os dezessete anos de vida,
efetivamente logrou marcar uma entrevista com um octogenário Said Ali, de
que resultou uma relação pessoal fecunda ao longo de aproximadamente dez
anos, a qual, inclusive, rendeu ao jovem pesquisador o proveito de iniciar-se
na língua alemã em aulas domiciliares.
A análise desses fatos pode conduzir-nos a distintas conclusões. O texto
da Lexiologia do português histórico decerto fez aflorar em Bechara o interesse
de conhecer Said Ali, e desse contato pessoal resultou a leitura de sua obra
completa, fato decisivo na edificação de conceitos fundamentais, tais como
o de descrição gramatical sincrônica, vinculação entre estudo linguístico e
texto literário, influência de fatores extralinguísticos na arquitetura do tex-
to, classificação tipológica de pronomes, entre outros. Portanto, nesse viés,
diríamos que a influência de Said Ali em Bechara está no plano do contato
acadêmico, já que dela derivou a relação pessoal que uniu os dois amigos
por mais de uma década. Outra visão dos fatos, entretanto, poderá concluir
que, sem o contato mais íntimo da relação pessoal que se construiu entre os
dois linguistas, a influência não se teria operado, já que Bechara e Said Ali
não mantinham contato acadêmico formal, não eram colegas de profissão, de
tal sorte que a presença profunda das ideias linguísticas do velho professor
petropolitano no jovem estudante pernambucano só vingaram exatamente
porque o acaso os levou a privar de amizade dileta, da qual resultou efetiva-
mente a relação de influência.

4. Os perigos da pseudoinfluência
Em suas considerações sobre o tratamento que se deve atribuir à in-
fluência nos estudos historiográficos, Konrad Koerner adverte-nos quanto à
necessidade de aprofundar a pesquisa acerca de influências tidas como evi-
dentes na história da linguística, não propriamente no sentido de desmisti-
ficá-las ou mesmo contradizê-las, mas no sentido de relativizá-las em uma
análise mais acurada dos fatos (1989, p. 33). As dificuldades que ordinaria-
mente se impõem na tarefa de estabelecer com exação que tipo e dimensão

142 Ricardo Cavaliere


de influência vincula um linguista a outro levou um teórico como Koerner a
referir-se ao fato como “o problema eterno da influência” (2014, p. 59). Via
de regra, conforme assinala o linguista alemão, não se distingue um tipo de
influência superficial, que não vai além de experiências compartilhadas no
contexto do Zeitgeist ou clima de opinião15, de outro tipo, em que há efetiva
presença das ideias de um cientista nas concepções linguísticas de outro. Não
são poucas as referências bona fide à participação do ideário linguístico de
um dado linguista na obra de outro com base a citações eventuais, por vezes
perfunctórias, sem que se avalie com o cuidado devido se a relação atestada
é substancial a ponto de poder identificar-se com o conceito de influência.
Em suas considerações, e na esteira dessas evidências, Koerner põe
em xeque a idoneidade de certas crenças indiscutíveis acerca da influência
doutrinária na história da linguística, nomeadamente no alvorecer do século
XIX, que testemunhou uma ruptura epistemológica radical — couture épis-
témologique — com a linguística de Wilhelm von Humboldt (1767-1835);
na metade do século XIX, quando August Schleicher (1821-1868) edificou
o paradigma da gramática histórico-comparativa, e no início do século XX,
momento em que Ferdinand de Saussure (1857-1913) lança as bases do es-
truturalismo linguístico. Nas palavras de Koerner, os três grandes nomes
vinculados a esses fatos históricos instigam a pesquisa historiográfica, de tal
sorte que ao historiógrafo não satisfaz apenas investigar suas fontes doutriná-
rias, mas igualmente descobrir o que tornou suas propostas de interpretação
do fenômeno linguístico tão distintas das que as antecederam e por que tais
propostas lograram obter tantos seguidores nas gerações seguintes. A pesqui-
sa mais acurada, sine ira et studio, conforme salienta Koerner sob inspiração
tacitiana, revela que a indicação de precursores e influenciadores não raro se
faz pela rama e resulta em afirmações inconsistentes.

4.1 A influência de Herder em Humboldt

Tome-se, por exemplo, a propalada influência de Johann von Herder (1744-


1803) em Wilhelm von Humboldt (1767-1835) sobre a concepção de língua,
largamente aceita e precariamente comprovada pela análise acurada do ho-
rizonte de retrospecção em Humboldt. Não são poucos os historiógrafos da
linguística que efetivamente atribuem a Herder a fonte inspiradora de Hum-

15
Nesta linha, veja o conceito de episteme em Foucault (1969).

O tema da influência em Historiografia da Linguística


143
boldt na elaboração de seu On Thinking and Speaking, trazido a lume em
1795, mas, segundo Koerner, tais estudos não levam em conta outras fontes
de inspiração teorética na obra do linguista alemão, tais como as ideias de
Étienne de Condillac (1715-1780), resultante de seu contato direto com os
idéologues em Paris entre 1798 e 180116.
Diga-se, ainda que a investigação sobre a arquitetura do pensamento
linguístico em Humboldt pode tomar outas trilhas, como, por exemplo, a de
sua amizade fraterna com o antropólogo Georg Forster (1754-1794). Segun-
do nos informa Beiser (2011, p. 172), Humboldt e Forster foram amigos ínti-
mos nos anos de 1788 a 1790, durante os quais os conceitos cosmológicos em
Humboldt formaram-se na órbita da antropologia sob influência do amigo
dileto, em especial no tocante ao tratamento da cultura como um todo orgâ-
nico, à intrínseca relação entre cultura e natureza e à necessária abordagem
da antropologia em perspectiva empírica em vez de conceitos apriorísticos.
Na visão de Beiser, a afinidade de Humboldt com Herder decerto foi mediada
por Forster, embora semelhante fato não seja claramente referido nos estudos
sobre a formação intelectual do linguista prussiano.
Verifica-se, portanto, que o levantamento das fontes doutrinárias que
influenciaram o pensamento linguístico de Humboldt perpassa vários fatos
atinentes a sua atividade intelectual e a sua vida pessoal, seja a referida ami-
zade com Forster em seus anos juvenis, seja sua atividade acadêmica quando
de seu contato com os idéologues em Paris, sem contar as evidências que
se obtêm pela consulta a sua correspondência pessoal, fonte historiográfica
marginal não menos relevante. Conforme assinala Koerner (1989, p. 34), não
há na correspondência de Humboldt evidências conclusivas de sua dívida in-
telectual com Herder, salientando, inclusive, que muitos testemunhos dessas
cartas desapareceram durante a Segunda Grande Guerra. Esse fato, decerto,
confere uma pitada de incerteza na propalada relação Humboldt-Herder, em-
bora também não seja suficiente para corroborar a relação Humboldt-Forster,
ou mesmo a vinculação Humboldt- Condillac.

4.2 A influência de Darwin em Schleicher


No conjunto de influências referidas pacificamente nos manuais de história
da linguística figura a propalada presença do de Charles Darwin (1809-1882)

16
A hipótese da influência de Herder em Humboldt, proposta por Hans Aarsleff (reeditada em 2016) é
objeto de fundamentada contradição em Sweet (1988).

144 Ricardo Cavaliere


nas ideias linguísticas de August Schleicher (1821-1868). Esse é um exemplo
de fable convenue, conforme adverte Konrad Koerner (2014, p. 96), dada a
ampla e indiscutível convicção de que Schleicher teria arquitetado a genea-
logia das línguas com base na leitura do clássico A origem das espécies, obra
trazida a lume em 1859 em que Darwin delineia os princípios da seleção
natural e do evolucionismo dos organismos vivos. Em outros termos, a pa-
ternidade de que se investiu Darwin sobre os princípios do evolucionismo
biológico e a evidente aplicação desses princípios na concepção evolucionista
das línguas proposta por Schleicher em seu Compendium (1874), publicado
em dois volumes entre 1861 e 1862, gerou uma linha de pseudoinfluência
direta entre os dois intelectuais do século XIX, não obstante o próprio Schlei-
cher tenha asseverado que, ao idealizar sua conhecida Stammbaumtheorie,
não tinha ainda lido a obra de Darwin.
Portanto, a imagem de Schleicher como um “darwinista”, conforme quer
Robins (1979, p. 181)17, grassa nos textos sobre história da Linguística sem
a devida observação de fatos relevantes que cedem espaço para especulações
acerca dessa suposta influência. Uma delas, conforme faz-nos observar Koer-
ner (2014, p. 96), parte do princípio de que Darwin não teve predecessores e
que os princípios do evolucionismo biológico não teriam circulado no ambien-
te intelectual dos Oitocentos antes da publicação de A Origem das espécies, fato
improvável se considerarmos as evidências de sua cooperação com Alfred Wal-
lace (1823-1913) e as disputas que com ele travou pela primazia da paternidade
da teoria evolucionista. Evidencia-se que as ideias de Wallace e Darwin eram
objeto de discussão no meio acadêmico britânico e, por obviedade, no seio da
Europa continental. Fato é que, para seguirmos as constatações de Koerner,
“Schleicher publicou dois desenhos de uma árvore genealógica (Stammbaum)
em 1853 e mais meia dúzia dessas árvores genealógicas em 1860, vários anos
antes de deparar com a segunda tradução alemã revista (1863) do livro de
Darwin, que marcou a época. Consequentemente, não há dúvida de que as suas
ideias devem ter advindo de outras fontes anteriores” (2014, p. 97).

4.3 A influência de Durkheim em Saussure

Em arremate a suas reflexões sobre crenças históricas discutíveis no cam-


po da história da linguística, Koerner conduz-nos à não menos propalada

17
Nesta mesma linha, Percival (1987) e Davies (1987).

O tema da influência em Historiografia da Linguística


145
influência da sociologia de Émile Durkheim (1858-1917) na linguística de
Ferdinand de Saussure, mais especificamente no tocante aos princípios epis-
temológicos que residem nas Regras do método sociológico (1919 [1894]) que
viriam a inspirar os posicionamentos de Saussure em seu Curso de linguística
geral (1995[1916]). De início, muito se lê que a luta de Durkheim pelo re-
conhecimento da sociologia no campo das ciências humanas teria motivado
Saussure a pugnar igualmente pela elevação da linguística ao plano das ciên-
cias autônomas, fato que conferiria ao mestre genebrino não propriamente o
privilégio de haver fundado um novo paradigma da linguística, mas de ha-
ver criado a própria linguística. Disso decorrem antonomásias absolutamente
infundadas que designam Saussure como “pai da linguística” ou “criador da
linguística”, não obstante fosse essa uma atividade de investigação com obje-
to e metodologia próprios desde, pelos menos, William Jones (1746-1794) e
seus estudos comparativistas das línguas indo-europeias.
No plano teórico, passou-se a vincular a figura de Durkheim a Saussure
devido à natural identidade que se observa entre a concepção saussuriana de
langue e as teses do fait social em Durkheim. Acrescente-se a essa evidência,
que talvez seja a mais convincente aos olhos do investigador apressado, o
fato de Saussure e Durkheim terem sido contemporâneos e falantes nativos
do francês, portanto possivelmente frequentes em conversas e discussões
intelectuais envolvendo linguística e sociologia. A vinculação de Saussure
a Durkheim, em que o primeiro figura claramente como influenciado pelo
segundo, teria sido estabelecida inicialmente, segundo Koerner, no Second
International Congress of Linguists ocorrido em Genebra no ano de 1931,
“isto apesar de ninguém menos do que Antoine Meillet (1866-1936), aluno
de Saussure durante os seus anos em Paris e o seu posterior correspondente
e amigo durante o período de Genebra, ter enfaticamente negado tal conexão
(como documentam as atas na pág. 147)” (KOERNER, 2014, p. 61).
O que se observa hoje, enfim, é uma reiterada referência a Durkheim
como fonte inspiradora das ideias sociolinguísticas de Saussure, não obstante
não haja sequer uma citação do sociólogo francês na obra do linguista suíço.
Não se duvide que a percepção de que a língua é um fato social já circulasse
no Zeitgeist do fin de siècle, razão por que tornou-se matéria de discussão e
análise nas aulas de Saussure na Universidade de Genebra. A rigor, a investi-
gação historiográfica mais acurada revela a influência efetiva de dois linguis-
tas poloneses nas ideias linguísticas de Saussure: Jan Baudouin de Courtenay

146 Ricardo Cavaliere


(1845-1929) e Mikolaj Kruszewski (1851-1887), ambos fundadores da Escola
Linguística de Cazã, linguistas que não mereceram o devido reconhecimento
acadêmico, por motivos políticos, já que pertenciam ao Leste europeu. O fato
explicaria por que pouco se refere à presença dos dois linguistas poloneses
no ideário de Saussure, não obstante seja evidente, de um lado, que Saussure
inspirou-se em Kruszewski para elaborar a célebre dicotomia sintagma-pa-
radigma (JAKOBSON, 1973, p. 21; 1971, p. 421). Por seu turno, “a distinção
entre duas atitudes linguísticas — sincrônica e diacrônica — foi claramente
delineada e exemplificada por Baudouin de Courtenay ao longo do último
terço do século XIX”, conforme afirma Jakobson (1973, p. 22)18 em seus estu-
dos sobre as correntes da ciência linguística.
Conclui-se, assim, que a fonte doutrinária em Saussure não está na obra
de Durkheim, vínculo que só se pode atribuir ao fascínio e glamour das falsas
evidências e à coincidência de uma série de fatos que conduziram a história
— nem sempre bona fide, saliente-se — a enveredar pelo mundo da ficção.

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JAKOBSON. Roman. Selected writings: word and language. Paris: Mouton & Co., 1971.
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Assunção, seleção e edição de textos de Rolf Kemmler e Cristina Altman. Vila Real: UTAD 2014. p.
45-63.

18
No original: “the distinction between two linguistic attitudes – synchronic and dischronic – was cle-
arly outlined and exemplified by Baudouin de Courtenay throughout the last third of the nineteenth
century”.

O tema da influência em Historiografia da Linguística


147
KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions. 2nd ed. enlarged. Chicago: University of Chicago
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graphia Linguistica, v. 15, n. 3, p. 349-375, 1988

148 Ricardo Cavaliere


PARTE III
HISTORIOGRAFIA DA
LINGUÍSTICA E SUAS
CONFLUÊNCIAS
HISTORIOGRAFIA
Introdução19
Na década de 197020, no manual brasilei-

DA LINGUÍSTICA
ro Fundamentos da linguística contempo-
rânea, um dos itens abordados por Ed-
ward Lopes, seu autor, trata da “linguís-

E SOCIOLOGIA tica como ciência interdisciplinar” (LO-


PES, 1995[1973], p. 24)21. Como apoio

DA CIÊNCIA
para sua posição, Lopes recupera uma
citação do linguista Bertil Malmberg
(1913-1994), que afirma ser a ciência
algo unitário, sem fronteiras, uma vez
Ronaldo de Oliveira Batista que teorias se superpõem e dialogam de
forma muito próxima. Se um amplo es-
paço de relações é delineado, Lopes tam-
bém não deixa de pontuar a autonomia da ciência da linguagem, vista como algo
que não minimizaria o “relacionamento interdisciplinar” (LOPES, 1995[1973], p.
24), concretizado em diferentes direções que estabelecem aplicações, penetrações
e empréstimos entre teorias, seleções de objetos teóricos e métodos de análise.
Essa posição de Lopes não é isolada na história dos estudos sobre a
linguagem22, pois faz eco (em meio a diversos outros autores e teóricos) a
19
Reflexões deste capítulo retomam – com modificações, acréscimos e supressões – considerações apre-
sentadas em Batista (2013a/b) e Batista; Bastos (2015).
20
A 1a. edição do livro é de 1973. Após essa edição, a obra teve várias reimpressões e edições até o mo-
mento, tornando-se um clássico entre os manuais introdutórios de linguística.
21
Parte-se do princípio de que a linguística pertence ao ramo das ciências (cf. FRANCHI, 2003). O campo
das humanidades também inclui áreas de natureza científica como a linguística. Uma distinção possível
entre ciências humanas e ciências exatas e naturais (que são mais imediatamente reconhecidas como
ciência de fato) estaria no grau de consenso compartilhado entre os pesquisadores em torno de suas aná-
lises e objetos de estudo. Esse consenso entre seleção de objeto, teorias e métodos seria bem menos pre-
sente nas humanidades. Ainda sobre a distinção, seguimos Ziman (1979, p. 36): “Por conseguinte, manter
uma intransponível linha divisória entre Ciência e Humanidade é incorrer em grave malentendido [...]. A
História, as Artes e a Poesia da Humanidade são merecedoras não só da apreciação do espírito quanto de
estudos de alto nível, seja por leigos, em cursos universitários, seja por especialistas que a isso dedicam a
sua vida. Em muitos aspectos, esses estudos podem comparar-se perfeitamente com o estudo científico
dos elétrons, moléculas, células, organismos e sistemas sociais; os conhecimentos poderão ser adquiridos
tanto sob a forma de fatos isolados quanto sob a de explicações já aceitas pelo consenso”.
22
Relembramos ainda que embora a denominação do campo como Historiografia da Linguística em
sua constituição lexical seja aparentemente restritiva consideramos linguística em lato sensu, como
qualquer conhecimento produzido sobre línguas e linguagem ao longo do tempo. As considera-
ções que serão ­feitas, portanto, sobre ciência devem ser o tempo todo ampliadas para uma noção de
uma afirmação de Ferdinand de Saussure (1857-1913), no inaugural Curso
de linguística geral, que apontava que “a linguística tem relações estreitas com
outras ciências, que tanto lhe tomam emprestados como lhe fornecem dados.
Os limites que a separam de outras ciências não aparecem sempre nitidamente”
(SAUSSURE, 1995[1916], p. 13).
Essas relações da ciência23 da linguagem com outras áreas acabam por con-
tribuir para a pluralidade da linguística, em seus diferentes recortes teórico-me-
todológicos. A partir dessa perspectiva de diálogos, proximidades e fronteiras,
o que pretendemos destacar neste texto é como esse espaço de intermediações
que caracteriza os estudos linguísticos pode ser observado em um recorte mais
específico, em um campo dos estudos linguísticos, aquele reconhecido como
Historiografia da Linguística e que tem como objetivo a descrição, análise e
interpretação de episódios da história dos estudos da linguagem.
A atividade historiográfica na ciência da linguagem, nessa perspectiva,
é configurada epistemologicamente em termos de diálogos e fronteiras, que
ora se delimitam, ora se confundem em busca de interpretações para os pro-
blemas que define como objeto de observação.
A posição de Pierre Swiggers24 permite compreender como a Historio-
grafia da Linguística estabelece suas dimensões analíticas em espaços de in-
termediações, assim como a própria linguística fez e faz ao traçar seus limites
e possibilidades de expansão:

A historiografia linguística é uma disciplina que se situa na interseção da


linguística (e sua metodologia), da história (história dos contextos sociocul-

produção do conhecimento (como atividade intelectual e/ou pedagógica e/ou especulativa) em dife-
rentes recortes temporais.
23
A própria concepção do que seja uma teoria científica é algo complexo. Laudan (1977, p. 71-72) aponta
duas formas de definir o que seria uma teoria. Uma deles é o uso referente a uma teoria como um conjun-
to relacionado de doutrinas, de axiomas, de princípios compartilhados. Esse conjunto orienta e formata
um determinado número de pesquisas, que são então reconhecidas como parte de uma teoria específica.
Num outro sentido, uma teoria é vista como um conceito muito mais abrangente, muito menos estável,
englobando um espectro de diferentes teorias individuais. Quando me refiro a teorias neste trabalho,
estou fazendo alusão a uma teoria no primeiro sentido determinado por Laudan, como um conjunto de
postulados e de práticas de descrição e análise linguística.
24
Swiggers não é o único historiógrafo a tratar da relação entre Historiografia da Linguística e Sociologia
da Ciência/do Conhecimento. Um texto clássico é o de Kurt Wolff e Barrie Thorne, de 1974. Konrad
Koerner (1995) também apresenta a relação, ainda que mantenha ceticismo em relação aos ganhos da
pesquisa historiográfica com abordagens sociológicas, pois a confluência permitiria apenas verificar a
importância de fatores externos à produção do conhecimento, algo já pertinente para a própria Histo-
riografia da Linguística. Outro clássico, na história da ciência, quando se pensa na relação é o de Kuhn
(2000[1962]) e sua consideração dos colégios invisíveis como grupos que permitem relações e ações de
legitimação da produção do conhecimento entre cientistas.

Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência


151
tural e institucional), da filosofia (desde a história das ideias e epistêmes até
a história das doutrinas filosóficas), e da sociologia da ciência. Resumindo: a
historiografia linguística oferece uma descrição e uma explicação da história
contextualizada das ideias linguísticas. (SWIGGERS, 2010, p. 2)

Essas colocações abrem um terreno de confluências, de debates entre


campos que em um primeiro momento se articulam cientificamente como
diversos, mas que no encontro de temas e propósitos revelam diálogos muitas
vezes impensáveis.
Para sua história cultural, Robert Darnton (2010) caracteriza o diálogo
da historiografia com outras ciências humanas como uma imagem muito
mais de proximidades do que de rupturas, por meio de uma discussão so-
bre história e os campos que lhe são próximos, considerados como as boas
vizinhas da história. Essa imagem de Darnton nos sugere que o espaço de
reflexão e pesquisa das humanidades está assentado em uma perspectiva de
trocas e interpenetrações e não de distanciamentos bruscos em torno de de-
marcações definitivas de fronteiras e limites.
Para a exposição de nosso posicionamento, este capítulo primeiro apre-
senta um breve, correndo o risco da simplificação, panorama do que se com-
preende como a sociologia da ciência (ou sociologia do conhecimento, para
alguns autores).
Na sequência, delineamos de que modo confluências se estabelecem en-
tre a Historiografia da Linguística e o campo sociológico que toma a ciência e
a produção de conhecimento como seus objetos. A perspectiva aqui adotada
dialoga mais produtivamente com trabalhos historiográficos que consideram
como objetos de análise eventos da história da linguística a partir do século
XIX. No entanto, com as devidas adaptações, muitas das considerações pro-
postas podem auxiliar na interpretação historiográfica de ideias linguísticas
circunscritas a outros recortes temporais.

1. A Sociologia da Ciência
Um dos primeiros nomes da sociologia da ciência, em um momento paralelo
ao que se articulava na filosofia da ciência racionalista (como a de K. Po-
pper), é o do sociólogo norte-americano Robert Merton (1910-2003), autor
da obra clássica The Sociology of Science, escrita em 1949.

152 Ronaldo de Oliveira Batista


O trabalho de Merton (2013) contribuiu para caracterizar uma socio-
logia da ciência de caráter funcionalista, em que seria possível determinar
conjuntos de normas éticas que, institucionalizadas, favoreceriam a produção
de conhecimento e seu retorno em termos de aceitação social. Entre essas
normas, estariam ideais como: a) universalismo (distanciando aceitação ou
rejeição de circunstâncias pessoais ou sociais do cientista); b) a ideia de que
o conhecimento científico é parte de um processo de colaboração social; c)
desinteresse pessoal por parte do cientista; d) uma capacidade do cientista de
duvidar constantemente. A essas normas, pontos como originalidade, humil-
dade, independência têm sido acrescentados à visão funcionalista de ciência.
Há, em Merton, uma sociologia que organiza sua reflexão numa visão
institucional, já que, por exemplo, motivações pessoais (de caráter psicológi-
co) não interessam. O que está em jogo nessa visão chamada de funcionalista
são as motivações de caráter institucional que possibilitariam a produção do
conhecimento. Essa visão colabora para uma análise a respeito de como a
institucionalização possibilita a comunicação acadêmica, como alocação de
cargos e verbas (ou outros tipos de fatores a depender da circunscrição tem-
poral da análise).
Essa sociologia da ciência não se preocupa com o conteúdo da ciência.
Não há nessa sociologia questionamento de aspectos cognitivos da produção
científica em relação a contextos de descoberta do processo científico.
Em contraposição, uma nova sociologia da ciência, pós-Merton, relacio-
na-se com a tradição da sociologia do conhecimento e se define pela inclusão
do conteúdo interno da ciência na análise sociológica, não havendo separação
entre aspectos sociais e conteúdo científico das teorias.
É a essa tradição que se vincula, a nosso ver, uma pesquisa em Histo-
riografia da Linguística interessada na constante articulação de dimensões
internas e externas de pesquisa (como já exposto em capítulos anteriores
deste livro).
Especificamente, chamamos atenção para o trabalho de John Ziman
(1979), que coloca a ciência (e a produção do conhecimento) em uma di-
mensão social. Aliando-se a uma sociologia pós-Merton (com fundação na
década de 196025), Ziman insiste em uma revisão do conceito de ciência, que
passaria a englobar, necessariamente, elementos sociais e históricos decisivos
25
Ziman (1979) considera como marco fundador dessa nova vertente da sociologia o trabalho editado por
B. Barber e W. Hirsch, em Nova Iorque, pela Free Press Of Glencoe em 1962.

Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência


153
na produção e prática científica. Essa inserção em uma dinâmica histórica e
social coloca em destaque modos de interação entre cientistas e a formação
de comunidades de argumentação.
Em termos gerais, ciência é (ainda que Ziman (1979), aponte a presun-
ção da tentativa de definição) produto consciente da humanidade, de caráter
racional (envolve a elaboração e seleção de objetos, teorias e métodos). Nesse
sentido, essa prática científica define-se também pelos procedimentos ado-
tados na busca por confirmações de hipóteses, elaboradas em torno de uma
cadeia lógica (dedutiva ou indutiva) de construção intelectual.
A essa visão tradicional, Ziman associa uma visão social de ciência26,
na qual se recupera a prática de produção do conhecimento:

O fato é que a investigação científica, ao contrário do conteúdo teórico de


qualquer ramo da ciência, é uma arte prática, que não se aprende nos livros
e sim através da imitação e da experiência. Os pesquisadores fazem o seu
treinamento durante o aprendizado ou enquanto trabalham pela obtenção do
Ph.D. sob a supervisão de professores experientes — e não frequentando aulas
sobre a metafísica da física. (ZIMAN, 1979, p. 23)

O erro do enfoque filosófico convencional da Ciência é que ele leva em con-


sideração apenas dois termos da equação. O cientista é visto como um indi-
víduo que trava um diálogo um tanto ou quanto unilateral com a taciturna
Natureza, Ele observa fenômenos, anota fatos ocorridos com regularidade, faz
generalizações, deduz consequências etc., e por fim — zás! — nasce uma Lei
da Natureza. Mas as coisas não se passam assim absolutamente. O empreen-
dimento científico é corporativo. Não se trata — na frase incomparável de
Newton — de subir aos ombros dos gigantes para poder enxergar mais longe.
Todo cientista vê com seus próprios olhos e com os de seus predecessores e
colegas. Nunca se trata de um único indivíduo que passa sozinho por todas
as etapas da cadeia lógico-indutiva, e sim de um grupo de indivíduos que
partilham entre si o trabalho, mas fiscalizam permanente e zelosamente as
contribuições de cada um. A linguagem científica convencional trai a si pró-
pria em frases como esta: “Assim sendo, chegamos à conclusão de que...”. A

26
Ziman (1979) e Shapin (2010) são exemplos de sociólogos da ciência que apontam o descaso dos cien-
tistas com os campos metacientíficos, como a história e a sociologia da ciência. Tal distanciamento não é
incomum ao campo acadêmico e científico brasileiro.

154 Ronaldo de Oliveira Batista


plateia à qual são endereçadas as publicações científicas não é passiva; por
meio de aplausos ou vaias, de flores ou tomates, ela controla eficientemente a
substância das comunicações que recebe. (ZIMAN, 1979, p. 25)

Kuhn, em seu clássico A estrutura das revoluções científicas, de 1962,


também destaca a dimensão social da ciência. Para o filósofo, a natureza
social da ciência exerce um papel preponderante quando se pensa na mu-
dança de paradigmas em um campo de estudo. Sua abordagem de colégios
invisíveis (como rede de inter-relações entre pesquisadores além de uma ins-
titucionalização em uma universidade ou centro de pesquisa) impacta sua
perspectiva de compreensão da formação de grupos de pesquisadores na
prática científica.
Nesse destaque que damos a alguns nomes que refletiram sobre ciên-
cia e prática social, Pierre Bourdieu e seu conceito de campos de valor
também é relevante quando se pensa que a prática científica exerce um
poder que determina não só formas de institucionalização de saberes, mas
também de reconhecimento e validação de produção de conhecimentos
em determinado espaço social e histórico. A indagação de Bourdieu (2004,
p. 18) vai ao encontro da confluência que expomos neste capítulo: “Quais
são os usos sociais da ciência? É possível fazer uma ciência da ciência, uma
ciência social da produção da ciência, capaz de descrever e de orientar os
usos sociais da ciência?”.
O posicionamento equilibrado de Bourdieu deve ser considerado também:

[...] é preciso escapar à alternativa da “ciência pura”, totalmente livre de qual-


quer necessidade social, e da “ciência escrava”, sujeita a todas as demandas
político-econômicas. O campo científico é um mundo social e, como tal, faz
imposições, solicitações etc., que são, no entanto, relativamente independentes
das pressões do mundo social global que o envolve.” (BOURDIEU, 2004, p. 21)

Nesse sentido, a observação de uma produção do conhecimento em sua


dimensão social, naturalmente histórica também, deve ser feita com precisão
e comedimento, de modo a articular em termos interpretativos e explicativos
práticas científicas (ou outras práticas intelectuais de produção do conheci-
mento) que envolvem agentes e a circulação de saberes em diferentes espaços
de atuação social, que implicam legitimação e reconhecimento.

Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência


155
2. Historiografia da Linguística e o conceito de grupos de
especialidade teórica
Na linha de confluência entre uma perspectiva historiográfica em linguística
e uma sociológica, uma das opções mais tradicionais em Historiografia da
Linguística é seguir diretrizes de Stephen Murray e seu conceito de grupos
de especialidade teórica (denominação adotada em língua portuguesa para
theory groups)27.
Murray, em Theory Groups and the Study of Language in the North America:
A Social History (1994), propôs uma análise para a formação e manutenção de
grupos organizados em torno de especialidades comuns na pesquisa linguística.
Essa análise observa estágios pelos quais grupos passam em busca de
sua legitimidade, considerando em especial: a) modos discursivos adotados
por pesquisadores na busca pela validação de sua produção de conhecimento
(as retóricas de ruptura ou de continuidade; v. BATISTA, 2019); b) papéis
assumidos pelos linguistas em relação a lideranças intelectuais e/ou organi-
zacionais; c) índices de sucesso dos grupos e seu(s) objeto(s) de pesquisa; d)
percepção dos linguistas e seus pares a respeito dos grupos.
O conceito de grupo de especialidade teórica leva em conta processos
determinantes na formação de grupos ou comunidades que se reconhecem
coesos e atuantes em determinada área de pesquisa e ensino. A percepção dos
participantes como elementos de uma mesma comunidade garante, de certa
maneira, o tipo de estatuto ao qual o grupo de especialidade é associado.
Para Murray (1994, p. 14-19), a formação desses grupos está relacionada à
presença de estágios que, gradualmente, estabelecem uma imagem de forte
valor na comunidade científica ou intelectual.
De um primeiro estágio, definido por poucas trocas intelectuais, ausên-
cia de ataques a outros grupos e mesmo poucas coautorias, é possível chegar
a um estágio mais avançado, em que o grupo de especialidade se caracteriza
pela conscientização de seus membros de participar de um grupo reunido em
torno de objetivos semelhantes; um grupo especializado, institucionalizado,
enfim. Entre esses dois extremos, encaixa-se o estágio que prevê a formação
de uma liderança intelectual.

27
Um exemplo magistral de aplicação do conceito de Murray é a análise de Cristina Altman para a
formação e o desenvolvimento da linguística brasileira na obra considerada como a que inaugurou a
Historiografia da Linguística no Brasil: A pesquisa linguística no Brasil (1968-1988); livro publicado em
1998 pela Editora Humanitas, a partir de sua tese de doutorado.

156 Ronaldo de Oliveira Batista


Essa liderança deve ser capaz de convencer pesquisadores a seguirem
suas propostas, que muitas vezes vêm acompanhadas de uma retórica re-
volucionária, que, para Murray (1994, p. 23), é o resultado dos esforços
de um grupo de especialidade para manter uma imagem que se configure
como atuante, seja negando passos anteriores da ciência em jogo, seja
clamando pela imagem da continuidade. A retórica revolucionária é um
fator de indicação da presença de um grupo, organizado em torno de pes-
quisadores que se percebem como elementos de uma rede de relações que
compartilha pressupostos teóricos e formas de análise do objeto de inves-
tigação. Também há o estágio considerado como o de sucesso, em que se
percebe o estabelecimento de um grupo que atinge reconhecimento social
e intelectual, já com uma comunicação interna, entre os participantes do
grupo, bastante atuante.
A figura da liderança intelectual é central nas proposições de Murray,
afinal, é essa figura, não necessariamente individual, que atua como condição
categórica para a formação de um grupo de especialidade, ao lado de fatores
sociais como posição acadêmica dos pesquisadores, a imagem de profissionali-
zação construída pelo grupo e seu reconhecimento, verificado por publicações
(ou outras formas de divulgação do conhecimento) e o retorno dessas, medido
pelo sucesso e recepção positiva ou por ataques e avaliações negativas.
Há pré-requisitos para a formação de um grupo de especialidade, que
são determinados pela presença de boas ideias, consideradas pelos cientistas
(ou por outros tipos de pesquisadores em diferentes recortes temporais) como
adequadas para a resolução de problemas e também para abrir novas frentes de
pesquisa (ou reflexão, especulação, formas de transmissão de conhecimentos).
A presença de boas ideias não é suficiente para a formação de um gru-
po de especialidade. Uma ideia não sobrevive sem uma articulação social e
acadêmica que a sustente e lhe dê a possibilidade de expansão e adoção pelos
pesquisadores. As ideias não são geradas por elas mesmas, mas por indiví-
duos, também não isolados, já que uma ciência não é resultado de um “herói”
que trabalha desconectado de uma rede de relações. Daí a importância da
observação do processo de relações sociais que sustenta a formação de ideias
e grupos em torno de determinada teoria e prática, por exemplo. As boas
propostas devem percorrer uma rede de comunicação e para isso a relação
social é importante, já que boas proposições isoladas de teorias e/ou métodos
não garantem a formação de um grupo de especialidade.

Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência


157
A figura do líder intelectual, associada apenas a boas propostas, ainda
não garante a formação de um grupo de especialidade. Há a necessidade de
uma liderança organizacional, capaz de conseguir organizar condições para
que a pesquisa seja feita, conseguir, por exemplo (em um modelo de ciência
configurado a partir do século XX), bolsas, financiamentos, organização de
eventos, publicações, sendo que essa figura não precisa ser necessariamente
representada por um único pesquisador.

Conclusão
Na pesquisa historiográfica em linguística, o diálogo com uma sociologia
da ciência (ou do conhecimento) torna-se relevante28 na medida em que já
é ponto pacífico que nenhum conhecimento é produzido no vácuo, mas em
contextos definidos, sejam contextos de produção do conhecimento, sejam
contextos de validação desses conhecimentos produzidos.
Assume-se aqui ser uma das funções da historiografia — numa posição
contrária à daqueles que veem a disciplina como mera reconstrução do pas-
sado por ele mesmo — a análise, guiada por um ou mais eixos definidos, de
afirmações, descrições e interpretações em determinados objetos de análise,
com o objetivo de acompanhar de forma crítica argumentações propostas por
autores que as construíram, as quais, de uma maneira ou de outra, acabam por
validar (ou não) descrições e análises linguísticas e suas possíveis conexões com
outros trabalhos que chegaram a semelhantes problemas em períodos diversos.
A observação de natureza sociológica, no entanto, deve ser dosada e re-
querida na medida certa para que a historiografia não invada (ou ultrapasse)
o espaço da sociologia da ciência. É necessário verificar em que medida a
observação sociológica interessa a uma análise historiográfica. Tendo limites
e alcances em vista, é preciso colocar em pauta uma questão problemática: o
que é sociológico no campo da história dos estudos da linguagem?
A história, como conjunto de eventos temporalmente localizados, colo-
ca-se em ação num eixo social e ideológico, daí a consideração de aspectos
sociais numa historiografia. Em linhas gerais, costuma-se dizer que à his-
toriografia interessa investigar, além das teorias, o contexto de formação e
divulgação dessas teorias.

28
Ainda que Koerner (1995) não veja grandes vantagens na relação, assumimos aqui, em posição contrá-
ria, que a confluência é extremamente produtiva para a Historiografia da Linguística.

158 Ronaldo de Oliveira Batista


O que se pretende é verificar de que forma posicionamentos sociais,
articulações de contato entre pesquisadores e intelectuais, estratégias de con-
vencimento podem ser interpretados como fatores relevantes para a análi-
se da aceitação ou refutação de um paradigma (um conjunto unificado de
ideias) no campo dos estudos sobre a linguagem.
Levando em consideração as dimensões externa e interna, diferentes his-
toriógrafos refletiram sobre historiografias content-oriented (orientadas para o
conteúdo das obras analisadas) e context-oriented (orientadas para o contexto
de produção e recepção das obras analisadas), no entanto essa dicotomia pode
se anular, pois na perspectiva aqui proposta interno e externo estão intimamente
relacionados, e, ainda que se possa privilegiar uma visão ou outra em determi-
nado recorte de trabalho, subentende-se que uma visão pode implicar a outra.
Tendo em vista a confluência, a historiografia dos estudos sobre a lin-
guagem pode considerar os seguintes pontos que favoreceriam uma interpre-
tação historiográfica a partir da relação entre aspectos internos e externos da
produção, circulação e recepção do conhecimento:
(a) o clima de opinião (o clima intelectual geral de uma época) em que
teorias e métodos são propostos;
(b) a formação de grupos de especialidade que concretizam pesquisas em
uma corrente teórico-metodológica;
(c) a formação dos pesquisadores responsáveis por orientar estratégias de
tratamento linguístico no âmbito de grupos de especialidade;
(d) a influência de teorias/reflexões/especulações fora do âmbito dos estu-
dos da linguagem que podem ter determinado o tratamento de línguas;
(e) as etapas de construção do conhecimento linguístico, tendo em vista
em que medida fatores sociais e históricos podem ter contribuído para
aceitação ou refutação de propostas de descrição e análise;
(f) os modos de comunicação dos alcances científicos e intelectuais de uma
teoria/reflexão/especulação e também a retórica29 (os modos discursivos
em busca de legitimação social do conhecimento produzido) adotada
pelos agentes de divulgação dos saberes;
(g) a institucionalização do conhecimento científico ou intelectual, a partir
de uma observação dos locais em que um conjunto de ideias se fixou
e começou a lançar bases de sua penetração em âmbitos científicos ou
intelectuais não tão restritos a centros iniciais de formação;

29
Sobre análise da retórica dos linguistas, v. Batista (2019).

Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência


159
(h) a recepção que um conjunto de ideias obteve em meio ao processo de
desenvolvimento dos estudos da linguagem;
(i) de que forma uma teoria/reflexão/especulação obteve reconhecimento
social mais amplo;
(j) a imagem que os pesquisadores e intelectuais construíram para si mes-
mos e a imagem que deles foi construída por outros pesquisadores e
intelectuais não pertencentes ao mesmo grupo teórico, por exemplo.
Esses tópicos evidenciam que a proposição de paradigmas científicos
(ou saberes de diferentes naturezas) e sua aceitação dependem de um proces-
so mais amplo de articulação social entre seguidores e rivais, entre os pares
enfim, pois o conhecimento científico ou intelectual não se encerra nele mes-
mo, mas depende essencialmente de um espaço social de criação, divulgação
e permanência (ou esquecimento) para que se estabeleça de forma apropria-
da na corrente de desenvolvimentos de uma área.
O estudo de uma dimensão social do conhecimento linguístico, aliado
a uma observação a respeito dos conteúdos elaborados e expostos em obras
de descrição e análise (entre outros objetivos) sobre fenômenos das línguas
naturais, compreende uma análise dos efeitos na vida social de seus agentes
e daqueles que não estão diretamente envolvidos no tratamento de um objeto
de observação, mas que por alguma razão se veem afetados pelo desenvolvi-
mento da dinâmica científica e intelectual.
Consequentemente, o alcance do conhecimento não é individual, mas,
muito pelo contrário, resultado de empreendimentos sociais e coletivos, ain-
da que a imagem divulgada da ciência e do saber intelectual priorize a figura
do indivíduo e provoque uma espécie de apagamento dos esforços sociais e
relações históricas que estão por detrás de uma divulgação bem-sucedida (ou
não) de ideias, projetos, teorias.

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160 Ronaldo de Oliveira Batista


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ZIMAN, John. Conhecimento público. Trad.: R. R. Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.

Historiografia da Linguística e Sociologia da Ciência


161
HISTORIOGRAFIA
A filosofia da ciência sem história da
ciência é vazia; a história da ciência
sem filosofia da ciência é cega.

DA LINGUÍSTICA (LAKATOS, 1980, p. 102, trad. dos orgs.1)

E FILOSOFIA DA Preliminares

LINGUÍSTICA
Como já disse em outro lugar2, enten-
do a Filosofia da Linguística como um
ramo da Filosofia da Ciência que se
José Borges Neto dedica ao estudo específico das ciên-
cias da linguagem3. É, portanto, uma
aplicação de métodos filosóficos a
problemas filosóficos que surgem no
contexto dos estudos linguísticos, particularmente no estudo dos construtos
teóricos propostos pelos linguistas.
Entre as questões que a Filosofia da Linguística enfrenta está a de esta-
belecer o que se pode entender por ciência nos conhecimentos sobre a lin-
guagem e até que ponto podemos entender a linguística como um campo de
investigações unitário ou como um conjunto de campos de investigação autô-
nomos que só se unificam porque têm a linguagem humana como seu objeto
de estudos, isto é, a linguística tem um objeto próprio ou é um conjunto de
“ciências” mais específicas (Fonologia, Sintaxe, Psicolinguística, Sociolinguís-
tica, Aquisição da Linguagem, Análise do Discurso etc.), cada qual com seu
objeto e seus métodos próprios de investigação (cf. DASCAL; BORGES Neto,
1991; BORGES Neto, 2004a, p. 31-65).
A noção de ciência sofreu muitas alterações no decorrer dos séculos.
O termo ciência, no sentido largo de “conhecimento”, é usado desde a An-
tiguidade. Até o século XVII, o termo denotava um conhecimento organi-
zado sistematicamente, e “ciência” e “filosofia” eram termos praticamente

1
No original: “Philosophy of Science without history of science is empty; history of science without philoso-
phy of science is blind”. (LAKATOS, 1980, p. 102)
2
V. Borges Neto (2012).
3
Ao lado da Filosofia da Física, da Filosofia das Ciências da Vida, Filosofia da Matemática etc.
­equivalentes4. A existência de um tipo de conhecimento que poderíamos
chamar de ciência — e que não se confundia com filosofia — só passa a ser
identificado a partir da “Revolução Científica”, que atinge seu ápice no século
XVII,5 embora o termo ciência, aplicado de forma restrita a esse conhecimen-
to, só vá aparecer no século XIX.
Desde o início do século XVII, a busca pela determinação do que é
ciência e do que não é, as tentativas de distinguir um conhecimento cientifi-
camente válido de outros tipos de conhecimento, acabou por criar uma nova
área de investigação filosófica: a Filosofia da Ciência.6 Essa busca de princí-
pios definidores do que seria a atividade científica, deu à filosofia da ciência
um caráter essencialmente normativo, ao menos até a metade do século XX.
Voltarei a essa questão mais adiante.
É interessante destacar desde já que os estudos sobre a linguagem, desde
a Antiguidade até o século XIX, podem ser em grande parte reunidos sob o
rótulo de gramática e que, previsivelmente, antes desse século, só podemos
falar em linguística (em oposição a gramática) de forma anacrônica. É pre-
ciso notar, também, que linguística e gramática sobrevivem — supostamente
como áreas de investigação paralelas — até os nossos dias, embora se possa
colocar em questão a caracterização da gramática como uma verdadeira área
de investigação.7
A Historiografia da Linguística (ou Historiografia Linguística8), por sua
vez, seria o ramo dos estudos históricos que investiga o desenvolvimento dos
estudos linguísticos no eixo temporal. Assim como a Filosofia da Linguística
4
Por exemplo, o que chamaríamos, hoje, de “ciências naturais” (física, biologia etc.) era chamado de
“filosofia natural”.
5
Essa “revolução científica” foi um conjunto de desenvolvimentos, particularmente nas ciências naturais
(física, astronomia, biologia, química etc.), que alteraram substancialmente a visão que a sociedade da
época tinha da natureza. Entre os trabalhos que estão incluídos nessa ‘revolução’ estão a obra, pioneira,
De revolutionibus orbium coelestium, de Nicolau Copérnico, publicada em 1543, a publicação, em 1632,
do Diálogo sobre os dois sistemas máximos do mundo Ptolemaico e Copernicano, de Galileu Galilei e,
também de Galileu, os Discursos sobre as duas novas ciências, publicados em 1638. Considera-se que a
‘revolução’ se completa com a publicação, em 1687, da obra Princípios matemáticos da filosofia natural,
de Isaac Newton.
6
Um dos pioneiros dessa ‘nova área’ de estudos foi Francis Bacon (1561-1626), com seus trabalhos sobre
o método científico.
7
Modernamente, o termo gramática se aplica de forma restrita aos estudos da sintaxe, particularmente
no quadro teórico do gerativismo. Obviamente, não é nesse sentido que uso o termo gramática aqui. A
gramática a que me refiro, antes de ser área de investigação, tem finalidades predominantemente peda-
gógicas em nossos dias.
8
Como parece preferir Konrad Koerner (cf. Koerner 2014, p. 33), um dos iniciadores e mais importantes
historiógrafos da linguística, assim como alguns historiógrafos que seguem suas propostas metodológicas.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


163
é um ramo da Filosofia da Ciência, a Historiografia da Linguística é funda-
mentalmente um ramo da Historiografia da Ciência.
O primeiro trabalho que poderia receber o nome de História (ou de
Historiografia) da Linguística é o Tableau des progrès de la science gramma-
ticale, de Jean-François Thurot (1768-1832), publicado em 1796 como uma
introdução (Discours préliminaire) à tradução para o francês do Hermes de
James Harris.9
Antes de seguir em frente, creio que cabe um comentário sobre os ter-
mos “história” e “historiografia”.
A história de um povo, de um país, de um indivíduo ou de uma área da
ciência, é o conjunto maximal dos eventos do seu passado. A historiografia
é o registro dessa história. Esses registros, porém, estão sujeitos a recortes e
seleções determinados pela metodologia historiográfica utilizada e por in-
teresses particulares dos historiadores. A grande maioria dos eventos “his-
tóricos” do passado de um povo, por exemplo, são simplesmente ignorados
pelos historiadores, na medida em que são desimportantes para os fins da
compreensão dos acontecimentos do passado pretendida pelo historiador. Se
pensarmos que James Joyce, em seu romance Ulisses, descreve os eventos vi-
vidos pelo personagem Leopold Bloom, apenas em parte do dia 16 de junho
de 1904 (e certamente ignora uma parte desses eventos), uma historiografia
que buscasse reproduzir o passado “em tempo real”, levaria ao menos um ano
para descrever um ano do passado e cairia na armadilha que Jorge Luís Bor-
ges nos descreve no seu conto Del rigor en la ciência, conto em que descreve
um país cuja cartografia, altamente desenvolvida, construiu um mapa do ta-
manho do país e que “coincidia pontualmente com él”.10 A inutilidade óbvia
do mapa coincidiria com a inutilidade de uma historiografia que pretendesse
simplesmente reproduzir o todo da história.
É possível descrever e explicar determinados eventos do passado a partir
da seleção de alguns poucos fatos específicos, cruciais, que permitam exten-
sões e generalizações. Por exemplo, para levantar uma hipótese geral sobre a
cultura europeia do século XVI, Carlo Ginzburg (2006) selecionou o proces-
so inquisitorial que sofreu Domenico Scandella, de apelido Menocchio, um
9
James Harris (1709-1780) foi um gramático inglês que publicou em 1751 a obra, muito influente na
segunda metade do século XVIII e no início do século XIX, Hermes, a philosophical inquiry concerning
universal grammar.
10
V. Borges (1989, p. 847). O texto pertence ao livro El Hacedor, de 1960.

164 José Borges Neto


moleiro do norte da Itália. Outros processos semelhantes, do mesmo período
ou não, porque desnecessários à formulação da hipótese, foram ignorados.
Eventualmente, se outros processos fossem selecionados por Ginzburg — de
outros acusados pela inquisição, de outros períodos ou de outros tribunais —
o quadro obtido sobre a cultura europeia quinhentista poderia ser diferente
do que podemos ver em seu livro O queijo e os vermes.
Se seguirmos esse raciocínio, não haverá uma única historiografia da
linguística, mas um conjunto de narrativas distintas, sempre resultado de
olhares particulares, seletivos, sobre a história da linguística (que, essa sim,
é única) e nunca uma mera reprodução. Também não podemos pensar em
“verdade histórica” relacionada à historiografia, apenas em narrativas mais
ou menos verossímeis, mais ou menos bem fundamentadas na documenta-
ção disponível etc.
Volto a uma exposição mais geral sobre as duas áreas.
De alguma forma, os campos de investigação da Filosofia e da Historio-
grafia da Linguística são basicamente o mesmo: ambas as áreas incluem, em
princípio, todos os tipos de conhecimentos linguísticos que são (ou eram em
algum momento) considerados conhecimento, informação ou documentação
sobre os fenômenos da linguagem (cf. SWIGGERS, 2012, p. 39). Numa ana-
logia com uma das dicotomias de Saussure, podemos dizer que a Filosofia
da Linguística olha para os conhecimentos linguísticos de uma forma essen-
cialmente sincrônica, mesmo quando estuda conhecimentos linguísticos do
passado, enquanto a Historiografia da Linguística assume um olhar essen-
cialmente diacrônico.
Não devemos confundir Filosofia da Linguística com Filosofia da Lin-
guagem, nem a Historiografia da Linguística com a História das Línguas (ou
Linguística Histórica): a língua/linguagem não é o objeto de investigação pri-
vilegiado de nenhuma das nossas duas áreas. A filosofia e a historiografia da
linguística são áreas metateóricas e seu objeto de estudos não são as línguas,
mas a prática “científica” e os construtos teóricos que os homens, desde a
Antiguidade, vêm propondo como explicação para a natureza e o funciona-
mento das línguas humanas. Ou seja, a Filosofia e a Historiografia da Lin-
guística investigam — cada qual a partir de seu próprio ponto de vista — as
teorias da linguagem.
Creio que cabe aqui, como outra especificação, uma pequena reflexão
sobre a noção de teoria.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


165
O termo teoria vem da palavra grega theōría que, no grego antigo, queria di-
zer algo como contemplação, especulação, reflexão (daí o ideal da “vida contem-
plativa”, que remonta, pelo menos, a Pitágoras no século VI a.C.). Obviamente,
esses termos não possuíam exatamente o significado que têm hoje. Especulação e
contemplação, na Antiguidade, eram conceitos que envolviam tanto a observação
dos fenômenos, naturais e culturais, quanto a tentativa de explicá-los.11
No português contemporâneo, não técnico, teoria significa algo como
uma conjectura, uma suposição, uma explicação, de qualquer natureza, so-
bre algum aspecto da realidade. Nesse sentido do senso comum, podemos
admitir como teoria, por exemplo, a afirmação de que o comportamento e a
personalidade dos indivíduos são determinados pela posição dos astros celes-
tes no momento de seu nascimento. É esse também o sentido em que usam
o termo aqueles evangélicos que recusam a Teoria da Evolução de Charles
Darwin: o darwinismo é apenas uma “teoria”, como outras (como o criacio-
nismo, por exemplo).
Uma teoria científica é, certamente, outra coisa. Apesar de não sabermos
exatamente o que torna científica uma teoria — o problema da demarca-
ção entre o conhecimento científico e conhecimento não-científico continua
aberto — sabemos, em linhas gerais, que as teorias científicas supõem, neces-
sariamente, dois conjuntos de coisas: um conjunto de fatos observáveis e um
conjunto de hipóteses — verificáveis, em princípio — que buscam explicar os
fatos que observamos. Ainda, para termos uma teoria científica, é preciso que
os fatos recebam uma observação sistemática e metódica e que as hipóteses
sejam adequadas a eles, ou seja, expliquem adequadamente os fatos, se não
todos, ao menos uma boa parte deles. Em outras palavras, o que diferencia
uma teoria, no sentido do senso comum, de uma teoria científica é a presença
de um método, a testagem sistemática da adequação empírica das hipóteses
e a possibilidade de seu abandono diante de evidências que as refutem. As
teorias científicas precisam, então, ser testáveis empiricamente e não podem
ser assumidas dogmaticamente. Ainda, as teorias científicas são avaliadas a
partir das ontologias que assumem e da plausibilidade geral das relações que
postula. Por exemplo, uma teoria que precisa postular a existência de se-
res sobrenaturais, como o criacionismo, ou de relações causais inexplicáveis,
como a influência da posição dos astros na constituição das personalidades

11
Sobre o sentido grego do termo teoria, é interessante ver o que diz Engler (2013).

166 José Borges Neto


dos indivíduos, não poderia ser (ou não deveria ser) levada a sério em nossos
dias.12 Em outras palavras, as teorias científicas, para se sustentarem, depen-
dem — em tese — de evidências empíricas observáveis e de se apresentarem
como explicações racionais e adequadas para essas evidências.
É preciso levar em conta que os fatos descritos ou explicados pelas
teorias não são neutros, objetivos, isentos de ideologia, por isso as teorias
científicas são sempre provisórias, hipotéticas (dependem do conjunto de
concepções “válidas”, seja para um grupo de indivíduos, seja para um certo
momento do tempo). Ou seja, as explicações — as hipóteses que, em con-
junto, constituem as teorias — dependem crucialmente do contexto ideoló-
gico em que se dá seu surgimento. Por exemplo, no período de predomínio
do estruturalismo (pouco mais que a primeira metade do século XX), as
explicações dadas aos fenômenos linguísticos que apelassem para entidades
ou mecanismos mentais eram simplesmente rejeitadas pela comunidade;
já na segunda metade do século XX, com o surgimento do gerativismo,
explicações “mentalistas”, com o apelo a “intuições linguísticas”, por exem-
plo, que são essencialmente entidades mentais misteriosas, passaram a ser
aceitas pela comunidade.
Cabe à Filosofia da Linguística, então, problematizar as escolhas onto-
lógicas feitas pelos proponentes das teorias linguísticas, a plausibilidade das
relações e dos processos propostos, a adequação empírica das explicações e
assim por diante. Isto é, problematizar a natureza do conhecimento linguís-
tico trazido à tona pelas teorias linguísticas.
Cabe à Historiografia da Linguística, por sua vez, descrever o processo
histórico que levou à postulação ou ao abandono de determinadas explica-
ções teóricas, descrever o contexto cultural que permitiu que determinadas
escolhas ontológicas, que determinados procedimentos explicativos, que cer-
12
Para pensar. A astrologia dos horóscopos está envolta num grande número de mistérios. Não se sabe
de que modo os astros influenciariam a criança em seu momento de nascimento, nem porque a influ-
ência se daria exatamente nesse momento: a influência gravitacional do corpo do médico no corpo do
nascituro, por exemplo, é muito maior do que uma eventual influência gravitacional de qualquer planeta
ou de qualquer constelação, o que nos leva a pensar em qual poderia ser a suposta razão para que Júpiter
seja mais importante do que o número de pessoas na sala de parto na determinação da personalidade da
criança. Além disso, as constelações não são entidades ontológicas, com existência no contínuo espaço-
-tempo, já que só constituem uma unidade quando olhadas de uma certa perspectiva, já que as estrelas
que formam uma constelação estão em diferentes lugares no espaço e a diferentes distâncias de nosso
planeta, e apenas o olhar de quem está na Terra consegue vê-las como um “desenho” identificável. Ou
seja, as constelações só “existem” a partir de uma perspectiva específica: elas seriam apenas projeções
de um panorama tridimensional num espaço bidimensional. Em outras palavras, a hipótese de que as
personalidades derivam da posição dos astros não é plausível.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


167
tos privilegiamentos de noções e desprezo de outras etc. fossem feitos em
determinados períodos e abandonados em outros períodos; descrever, enfim,
o processo de mudança no conjunto das ideias que guiam a construção das
teorias, com a decorrente mudança na forma e no conteúdo das explica-
ções trazidas pelas teorias e na delimitação do que seria “científico” em cada
período (ou o que seria considerado, em cada período, um conhecimento
válido). Em outras palavras, cabe à Historiografia da Linguística mostrar o
caminho que os processos de criação de conhecimento linguístico percorre-
ram no decorrer do tempo, sempre relacionando-os aos modos de entender
a realidade dominantes em cada período.
Creio que cabe, ainda, uma outra breve digressão sobre a relação que
pode haver entre a prática científica e as nossas duas áreas de investigação —
a filosofia e a historiografia da linguística.
Credita-se a Richard Feynman (1918-1988), prêmio Nobel de Física em
1965, a afirmação de que “A filosofia da ciência é tão útil para os cientistas como
a ornitologia é útil para os pássaros”. Albert Einstein, por outro lado, acreditava
que a filosofia e a história da ciência eram importantes para o cientista — e não
apenas como educação geral: “mesmo que a filosofia não seja importante para o
trabalho cotidiano da ciência, é certamente importante ‘quando a experiência nos
força a procurar fundamentos novos e mais sólidos’ (Einstein 1936)”.13
A filosofia e a historiografia da ciência seriam importantes para os lin-
guistas? Quem teria razão, Feynman ou Einstein?
Tendo a acreditar que Einstein estava certo. E minha posição certamente
não se deve ao fato de que estou envolvido com essas áreas. Embora re-
conheça que linguistas não precisam — necessariamente — de filosofia ou
de historiografia para seu trabalho científico — e que muitas vezes simples-
mente ignoram o que filósofos e historiógrafos têm a dizer —, creio que os
estudos historiográficos e filosóficos da linguística têm muito a contribuir
para a prática científica dos linguistas. Gosto muito do que Konrad Koerner
diz sobre a questão:

A meu ver, [...] a historiografia da linguística, ou brevemente historiografia


linguística, [...] fornece aos linguistas praticantes o material para adquirir co-
nhecimento do desenvolvimento do seu próprio campo. Argumentaria que é
este conhecimento [...] o que constitui a diferença essencial entre o cientista e

13
Cf. Murcho (2006, p. 50).

168 José Borges Neto


o assistente de laboratório: o cientista sabe de onde vieram as técnicas e quais
são as suas limitações; o assistente de laboratório, que controla somente a arte
mecânica do ofício, não o sabe, e facilmente pode ficar bloqueado, quando
um procedimento que esperava estar correto para emulá-lo a toda hora não
produz o resultado desejado. (KOERNER, 2014, p. 33-34)14

1. Filosofia da Ciência e História da Ciência


Segundo John Losee (1989), a filosofia da ciência e a história da ciência15
são interpretações de segunda ordem de um conjunto de fatos de primeira
ordem: as interpretações do mundo feitas pelos cientistas. Se não existisse a
prática científica, não haveria nem a filosofia nem a historiografia da ciência.
A questão a que Losee se dedica é a de estabelecer a relação que podemos
estabelecer entre essas duas práticas de segunda ordem.
Para Losee, há quatro possibilidades lógicas de entender o relaciona-
mento entre a filosofia e a história da ciência:
(i) são interpretações completamente independentes (“mutuamente exclu-
dentes”, em suas palavras) da prática científica;
(ii) uma delas depende da outra (a filosofia depende da história ou a his-
tória depende da filosofia). Essa dependência pode ser entendida num
sentido forte — nenhuma investigação de filosofia da ciência pode ser
realizada sem uma investigação histórica (ou vice-versa) — ou num sen-
tido fraco — há pelo menos alguns aspectos filosóficos da ciência que
dependem de investigação histórica (ou vice-versa);
(iii) as duas disciplinas são interdependentes, de forma que não há filosofia
da ciência sem historiografia, nem historiografia da ciência sem filoso-
fia (esse entendimento, como o anterior, também apresenta uma versão
forte e uma versão fraca);
(iv) que haja apenas uma intersecção entre as duas disciplinas, de modo que,
sem haver dependências entre elas, alguns dos resultados obtidos por
cada uma delas sejam coincidentes.

14
Koerner (2014) é uma coletânea de textos escritos por Konrad Koerner. O ensaio de onde este trecho foi
retirado intitula-se, na coletânea, “Ainda sobre a importância da historiografia linguística”, foi publicado
originalmente em 2002 e traduzido para o português por Rolf Kemmler e Susana Fontes.
15
Losee não usa o termo historiografia, mas a sua História da Ciência tem que ser vista como uma in-
terpretação, seletiva, dos eventos do passado da ciência (equivalente, portanto, ao que se convencionou
chamar de historiografia).

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


169
O filósofo americano Thomas Kuhn, por exemplo, num ensaio publica-
do em seu livro A Tensão Essencial (KUHN, 198916), discute as relações entre
a História e a Filosofia da Ciência e propõe que as duas disciplinas sejam mu-
tuamente excludentes (na melhor das hipóteses, apenas com intersecções)17.
Kuhn não deixa de admitir que a história é importante para o trabalho do fi-
lósofo da ciência, “como fonte de problemas e de compreensão” (p. 30) e que
a interação entre as duas disciplinas é frutífera, mas insiste em afirmar que
“são disciplinas separadas e distintas” (p. 30) e que o diálogo entre elas “deve
ser inter e não intradisciplinar” (p. 31). Para ele, as duas disciplinas exigem
distintas formações e “atitudes mentais” particulares e considera difícil que
alguém consiga trabalhar com as duas simultaneamente. Em suas palavras:
“Treinar um estudante simultaneamente em ambas seria arriscar privá-lo de
qualquer uma delas” (p. 32). No entanto, Kuhn admite a possibilidade de tra-
fegar pelas duas disciplinas, desde que o olhar do estudioso alterne entre elas.

Tornar-se filósofo consiste, entre outras coisas, em adquirir uma atitude men-
tal particular que conduza à avaliação tanto dos problemas como das técnicas
importantes da respectiva solução. Aprender a ser um historiador consiste
também em adquirir uma atitude mental especial, mas o resultado das duas
experiências de aprendizagem não é o mesmo [18]. E penso que também não
é possível um compromisso, porque apresenta problemas do género como o
do compromisso entre o pato e o coelho do bem conhecido diagrama do ges-
taltismo. Embora a maior parte das pessoas possa logo ver o pato, e o coelho
alternadamente, nenhuma acumulação de exercício ocular e esforço inferirão
um pato-coelho. (KUHN, 1989, p. 32)

Mas essa analogia proposta por Kuhn não parece adequada. Embora
seja inegável que cada uma das duas disciplinas possua uma certa autonomia,
já que é perfeitamente possível trabalhar com a filosofia da ciência (e, por
extensão, da linguística) sem incorporar o olhar diacrônico, assim como é
possível fazer estudos históricos sem maiores preocupações epistemológicas,
duas coisas parecem claras: (1) para fazer historiografia (da ciência ou da
16
O original, em inglês, é de 1977. A tradução portuguesa – que uso – não é datada, mas foi impressa em 1989.
17
O ensaio de Kuhn chama-se As relações entre a história e a filosofia da ciência e foi originalmente uma
conferência proferida na Michigan State University em 1968.
18
Fiz uma pequena correção no trecho citado: na tradução portuguesa encontramos: “mas o resultado das
duas experiências de aprendizagem não é a mesma” (cf. KUHN, 1989, p. 32).

170 José Borges Neto


linguística) é preciso selecionar fatos do passado (nem todos os fatos têm a
mesma importância no desenvolvimento das teorias) e estabelecer o signifi-
cado das mudanças teóricas (das “descontinuidades”), assim como da per-
manência de posições teóricas de períodos anteriores (das “continuidades”),
e isso implica critérios de avaliação de teorias que são próprios da filosofia e
(2) a prática da filosofia da ciência não pode prescindir de uma abordagem
histórica, já que os critérios de avaliação são, como já dissemos acima, sujei-
tos a mudanças no tempo.
Fazendo, num parêntese, um pouco de História da Filosofia da Ciên-
cia — uma área de investigação “de terceira ordem”19 — podemos ver que a
Filosofia da Ciência foi primeiramente a-histórica.
Frederick Suppe nos diz:

A partir dos anos 1920 se tornou lugar comum para os filósofos da ciência a
construção de teorias científicas como cálculos axiomáticos a que se dá uma
interpretação observacional parcial por meio de regras de correspondência.
Dessa análise, designada comumente com a expressão A Concepção Herdada
das Teorias, se ocuparam amplamente os filósofos da ciência ao tratar de outros
problemas de filosofia da ciência. Não é exagero dizer que, virtualmente, cada
resultado significativo obtido na filosofia da ciência entre os anos 1920 e 1950
empregou ou supôs tacitamente a Concepção Herdada. (SUPPE, 1979, p. 15-16)

Como se pode ver, o entendimento que havia, tanto da natureza das


teorias científicas quanto das tarefas que cabiam aos filósofos da ciência, era,
num certo sentido, estático: tomava-se a teoria (vista como um cálculo axio-
mático interpretável), estudava-se sua natureza e estrutura, e verificava-se
nos dados a sua adequação. Como diz Losee (1989, p. 38), “os critérios de
apoio evidencial enunciam uma relação entre uma hipótese e suas instâncias”.
E, nesse caso, não tem nenhuma importância o que aparece primeiro: a hi-
pótese ou a evidência. Por um lado, a abordagem do filósofo da ciência era
essencialmente sincrônica e, por outro lado, a filosofia da ciência assumia um
caráter essencialmente normativo, na medida em que buscava as regras que
19
A “primeira ordem” contém o conhecimento obtido na prática científica; a “segunda ordem” contém as
metateorias (a história e a filosofia da ciência); a “terceira ordem” contém reflexões sobre o conhecimento
obtido pelas investigações metateóricas (seriam metametateorias). Nessa “terceira ordem” poderíamos
ter, também, uma Filosofia da História da Ciência, que discutiria, de um ponto de vista filosófico, a
História da Ciência.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


171
guiavam o funcionamento das teorias científicas bem-sucedidas. Em outras
palavras, avaliava-se a prática científica (qualquer que fosse e de qualquer
momento histórico em que surgisse) sempre a partir de um critério de cien-
tificidade estabelecido no presente. O resultado — como era de se esperar
— é que toda a prática “científica” do passado era considerada não-científica
ou, pelo menos, de cientificidade incipiente. Toda a produção do passado
era considerada “erro” ou apenas um passo na direção da verdadeira ciência.
Uma concepção teleológica de ciência, portanto.
O fracasso, mais ou menos geral, nas tentativas de estabelecer regras ge-
rais para o funcionamento da ciência, aliado à impossibilidade de estabelecer
cabalmente o que devemos entender como ciência, faz com que os filósofos
da ciência se voltem para os estudos históricos. Mas é a partir dos anos 1960,
com o aparecimento, entre outros,20 do livro A estrutura das revoluções cien-
tíficas, de Thomas Kuhn (Kuhn 197021), que se multiplicam as críticas a essa
concepção normativa de filosofia da ciência e, cada vez mais, a necessidade
de dados da diacronia — ou seja, da historiografia — nas atividades dos
filósofos da ciência se reforça. Uma filosofia da ciência normativa dá lugar
a uma filosofia da ciência descritiva. Em vez de descobrir — e recomendar
aos cientistas — práticas científicas “corretas”, caberia ao filósofo da ciência
mostrar quais os procedimentos metodológicos que foram usados em cada
momento da história da ciência — inclusive os procedimentos em uso na
contemporaneidade. Portanto, uma posição exclusivamente descritiva e não
normativa. Losee diz que, na filosofia da ciência descritiva, o filósofo “é um
expositor e não um advogado” (1989, p. 147-148).
A alternativa descritiva, no entanto, não torna o filósofo da ciência um
mero cronista dos compromissos epistemológicos explicitamente professados
pelos cientistas. Segundo Losee, o filósofo da ciência tem a tarefa de desco-
brir os princípios epistemológicos efetivamente utilizados pelos cientistas em
sua prática. Em suas palavras:

Por exemplo, quando Darwin declarou “trabalho sobre princípios verdadei-


ramente baconianos, e sem nenhuma teoria recolhi a maioria dos dados”, é

20
Norwood R. Hanson (1924-1967), por exemplo, em (HANSON, 1958/1985, no capítulo intitulado
“Classical particle physics” – p. 93-118, no original, e p. 193-228, na versão espanhola), livro que clara-
mente influenciou o pensamento de Kuhn, propõe uma filosofia da física em que o filósofo apresenta os
vários usos das leis científicas feitos pelos cientistas, numa perspectiva claramente descritiva.
21
A publicação original é de 1962.

172 José Borges Neto


tarefa do filósofo da ciência julgar se os dados disponíveis — escritos, cartas,
anotações em diários etc. — apoiam essa afirmação. (LOSEE, 1989, p. 148)

Em outras palavras, mesmo comprometida com a historicidade dos


princípios epistemológicos, a atividade dos filósofos da ciência mantém uma
identidade própria, o que poderia reforçar a posição de Thomas Kuhn: his-
tória da ciência e filosofia da ciência são duas disciplinas autônomas. No
entanto, encontramos em Losee a seguinte passagem:

A diferença de interesses apontada por Kuhn é real. Não obstante, a distinção


entre Filosofia da Ciência descritiva e História da Ciência não é conclusiva.
As atividades do filósofo descritivista da ciência são tarefas que se integram
dentro da reconstrução histórica. Em última análise, não importa muito se a
busca de normas de avaliação é etiquetada como “histórica” ou como “filosó-
fica”. (LOSEE, 1989, p. 174)

Aparentemente, então, Losee parece assumir uma posição em que as


duas áreas se tornam interdependentes (resta saber se no sentido forte ou no
sentido fraco).

2. Filosofia da Linguística e Historiografia da Linguística


Vejamos agora como os filósofos e historiadores da linguística se comportam
diante da questão. Começo com minha própria experiência: fundamental-
mente enquanto filósofo da linguística.
No início dos anos 1980, interessado em fazer, usando os métodos e
as técnicas da filosofia da ciência, uma análise da proposta de Princípios e
Parâmetros, da Gramática Gerativa de Noam Chomsky, que me parecia pro-
blemática na medida em que tornava não-verificável (ou dificilmente verifi-
cável), em termos basicamente popperianos, qualquer proposta de universal
linguístico22, passei a estudar mais a fundo a teoria. Logo percebi que meus

22
Nas propostas anteriores da gramática gerativa, a proposição de um universal linguístico era facilmen-
te falseável: bastava encontrar uma língua que não o apresentasse para que a proposta estivesse falseada.
Na teoria de Princípios e Parâmetros essa verificação se tornava muito difícil, na medida em que a noção
de universal não dependia mais do reconhecimento de características sintáticas observáveis nas línguas:
dependia de mecanismos internos ao construto teórico, não-observáveis. Portanto, por mais bem fun-
damentados que fossem os argumentos, os universais deixavam de ser estabelecidos a partir de proprie-

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


173
estudos implicavam análises de propostas anteriores e na determinação das
razões que levaram Chomsky a propor esse novo modelo de análise e de
identificação de universais.
Entre as muitas leituras que comecei a fazer encontrava-se o livro Gra-
mática Transformacional: uma visão global, escrito por Carly Silva e publicado
em 1978 (SILVA, 1978). Nesse livro, logo no início, Silva diz que a gramática
transformacional “é, na realidade, um movimento que vem sofrendo drásticas
e frequentes revisões através dos anos” (p. vii); diz ainda, na p. 33, que “falar
em linguística transformacional é fazer referência a um panorama em constan-
te mudança”. Diante desta constatação — certamente verdadeira — minha
formação original de semanticista me levou a refletir sobre o sentido em que
uma proposta teórica em “constante mudança”, “sofrendo drásticas e frequen-
tes revisões” pode ser designada como “A” gramática transformacional.
Nesse momento, meu projeto inicial, sincrônico, claramente epistemo-
lógico, transformou-se num projeto diacrônico, historiográfico. As perguntas
passaram a ser sobre como as mudanças na teoria aconteciam e como eu po-
deria descrevê-las sem perder de vista que, no fundo, ainda estava diante de
uma mesma teoria. E meu trabalho — embora continuasse a ser um trabalho
de filosofia da linguística, com foco nas características teóricas da gramáti-
ca gerativa — assumiu o caráter de uma investigação da história interna da
gramática gerativa, com foco nos tipos de razões e argumentos que justifi-
cassem as mudanças (cf. BORGES Neto, 1991 e 2004b). Uma historiografia
com objetivos epistemológicos, em que a busca era dos modos de produção
de conhecimentos sobre a linguagem num caso específico: a gramática ge-
rativa de Chomsky, agora vista em sua dimensão diacrônica. De forma pra-
ticamente indissociável a história da gramática gerativa confundiu-se com a
investigação epistemológica.23
Gostaria, ainda, de abordar um outro tipo de trabalho. Em outubro de
2016, a Universidade Federal Fluminense (UFF) promoveu um evento de-
nominado “100 anos do Curso de Linguística Geral de Saussure”. Um dos
convidados foi Carlos Alberto Faraco, que apresentou uma comunicação, em
mesa-redonda, sobre o pensamento saussuriano intitulada “Qual era o objeto

dades das línguas e passavam a ser estabelecidos a partir dos construtos teóricos criados pelos linguistas
(dependiam de propriedades das gramáticas, portanto).
23
Usei, basicamente, a Metodologia dos Programas de Investigação Científica de Imre Lakatos (v. LAKA-
TOS, 1980) para o estudo. Destaque-se que essa metodologia trata a história e a filosofia da ciência como
áreas intimamente conectadas (cf. citação em epígrafe neste trabalho).

174 José Borges Neto


para Saussure: a língua ou a linguística? Uma releitura dos cadernos de Emile
Constantin”.24 Obviamente, de forma geral, o que se esperava dos trabalhos
apresentados no evento era uma análise de um pensamento que floresceu
há mais de um século atrás e, portanto, um conjunto de trabalhos de claro
conteúdo historiográfico. No entanto, não é o que se pode ver no trabalho
apresentado por Faraco.
Faraco organiza seu texto a partir da tese de que “o Saussure dos três
cursos de linguística geral foi primordialmente um epistemólogo e não um
metodólogo”, tomando o cuidado de dizer que a tese é “corrente em algumas
leituras atuais”. Em suas palavras:

Saussure fez antes filosofia da linguística do que propriamente linguística.


Tanto no livro organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye, cujo cen-
tenário de publicação estamos comemorando neste ano de 2016, quanto nos
manuscritos de Saussure, não se encontra um modelo analítico, mas uma
constante reflexão sobre as condições de possibilidade da linguística. Houve
modelos analíticos inspirados em Saussure, como a Fonologia de Troubetzkoy
e de Jakobson. Contudo, Saussure ele mesmo não construiu nenhum modelo.
(FARACO, 2016, §3)

A argumentação de Faraco vai na direção de mostrar que o Saussure lin-


guista escreveu trabalhos sempre na perspectiva da história das línguas — de
que seu bem conhecido Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les
langues indo-européennes, de 1879, é exemplo — e que o Saussure dos três cur-
sos de linguística geral (representado pelo Cours, editado por Bally e Secheha-
ye, cujo centenário festejamos em 2016) agiu como filósofo da linguística.

Numa sempre muito citada carta a Meillet, escrita em 1894, Saussure dizia
estar cada dia mais consciente da “imensidão do trabalho necessário para
mostrar ao linguista o que ele faz” (cf. citação em Escritos de linguística geral,
p. 15). Nessa carta, Saussure não identificava seu trabalho como voltado ao
objetivo de oferecer ao linguista um modelo formal para sua prática analítica,
mas o identificava como voltado ao objetivo de mostrar ao linguista o que ele

24
Agraço a Carlos Alberto Faraco o envio de suas anotações referentes à comunicação e a autorização
para incluí-las neste trabalho.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


175
faz. Epistemologia, portanto; e não metodologia. Filosofia da linguística e não
linguística propriamente dita. (FARACO, 2016, §6)

Deixando de lado uma possível confusão entre a tarefa do linguista e a


tarefa do filósofo da linguística (questão que pode — e deve — ser explorada,
uma vez que envolve outros “linguistas”, como Chomsky, por exemplo, tam-
bém apontado por Faraco), já que há mais de um século a comunidade vem
tratando Saussure como linguista e não como filósofo da linguística, vou me
ater à posição do próprio Faraco.
A questão colocada por Faraco — isto é, a “revisão” do estatuto do pen-
samento de Saussure, que deixaria de ser “linguístico” e passaria a ser filo-
sófico — é uma questão que pertenceria à alçada da filosofia da linguística
ou da historiografia da linguística? O que deveríamos rever, se Faraco estiver
certo: afirmações historiográficas ou avaliações sobre a natureza da atividade
exercida por Saussure e por outros “linguistas”?
Minha tendência é dizer que as duas coisas estão em jogo. Por um lado,
como resultado de uma investigação essencialmente filosófica, deveríamos
criar um novo sistema classificatório para os tipos de investigação sobre as
línguas e a linguagem; por outro lado, esse novo sistema classificatório leva-
ria a uma revisão do papel que certos “linguistas” exerceram na história da
linguística e, portanto, a novas possibilidades historiográficas.
Peguemos o caso de Noam Chomsky. Os trabalhos de Chomsky são
normalmente separados em dois conjuntos: trabalhos “políticos” e trabalhos
linguísticos. Considerando a posição de Faraco, precisaríamos separar os tais
“trabalhos linguísticos” também em dois conjuntos: trabalhos de epistemo-
logia e trabalhos de efetiva teoria linguística. Como já dizia Carlos Franchi,
Chomsky alterna seus trabalhos entre os dirigidos aos linguistas e os dirigi-
dos aos filósofos. Para ficar só com a lista de seus livros, ignorando os artigos
de periódicos, poderíamos, por exemplo, incluir os livros Linguagem e Pensa-
mento (Chomsky 1971), Reflexões sobre a Linguagem (Chomsky 1975) e Lan-
guage and Problems of Knowledge (Chomsky 1988) no grupo dos dirigidos
aos filósofos; por outro lado, no grupo dos trabalhos dirigidos aos linguis-
tas, encontraríamos, por exemplo, suas Lectures on Government and Binding
(Chomsky 1981) e Barriers (Chomsky 1986). O que vemos na produção de
Chomsky, então, é o trabalho de um filósofo da linguística (um epistemólogo,
como diz Faraco) que simultaneamente é propositor de modelos analíticos

176 José Borges Neto


(um metodólogo, nos termos de Faraco). E, muitas vezes, esses dois papéis
vêm articulados num mesmo texto.25
Voltando ao texto de Faraco, devo dizer que ele tem muito de tarefa
historiográfica, já que revê a posição de Saussure a partir de nova documen-
tação: os cadernos de Emile Constantin, aluno do terceiro e último curso
saussuriano que ocorreu no ano letivo de 1910-11, doados à biblioteca da
Universidade de Genebra em 1958 e só publicados em 1993 por Eisuke Ko-
matsu e Roy Harris. Ao mesmo tempo, tem muito de filosofia da linguística,
já que introduz uma nova distinção entre as especialidades ligadas aos cien-
tistas da linguagem e, em decorrência, numa nova maneira de entender, e
avaliar, as práticas científicas nos estudos da linguagem.
Creio ser interessante ver também o que dizem os principais “metodó-
logos” (para usar a expressão de Faraco) da historiografia da linguística: E. F.
K. Koerner e Pierre Swiggers.
Koerner diz coisas como

O uso da terminologia atual na descrição de fases anteriores do desenvolvi-


mento do pensamento linguístico conduziu a uma variedade de problemas na
nossa compreensão de teorias do passado.
[...]
Por exemplo, podemos facilmente reconhecer que o uso particular de Chomsky
de ‘(to) generate’, que tem a sua origem na matemática e na teoria da tradução
dos anos 1950, tem pouco a ver com a ideia humboldtiana de erzeugen que,
embora advindo da psicologia e da filosofia da linguagem do século XVIII, é
amplamente original em Humboldt.
[...]
Sem dúvida, há problemas epistemológicos envolvidos aqui [...] (KOERNER,
2014, p. 57)

Passagem que revela a necessidade de cuidadosa análise dos conceitos


utilizados pelos autores abordados pelo historiógrafo. Essa análise conceitual
é, certamente, uma das tarefas da filosofia da linguística: uma tarefa para a
qual filósofos — e não historiadores — foram treinados.

25
É só pensar em Aspects of the Theory of Syntax (Chomsky 1968), em que a primeira parte é claramente
filosófica, com a explicitação de fundamentos, e a segunda parte é técnica, com a exposição de mecanis-
mos teóricos. Os filósofos só leem a primeira parte; os linguistas preferiam a segunda.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


177
No mesmo texto, Koerner afirma que

Em contraste com a história intelectual e as várias abordagens do tratamento


da história em geral — embora a historiografia linguística tenha que ter em
conta as correntes intelectuais de um período dado que possam ter causado
impacto sobre o pensamento linguístico — a história e a filosofia da ciência
parecem ter mais a oferecer ao historiador da linguística, parcialmente por cau-
sa dos seus avanços em epistemologia e metodologia. (KOERNER, 2014, p. 53)

Trecho em que Koerner sugere a importância da história e da filosofia


da ciência para o historiador da linguística, tanto pelos avanços na epistemo-
logia quanto pelos avanços metodológicos. É interessante observar, também,
que Koerner trata a história da ciência e a filosofia da ciência como áreas
próximas que podem auxiliar o historiador da linguística em conjunto.
Ciente da complexidade da tarefa do historiador da linguística, a me-
todologia de Pierre Swiggers26 propõe que seu trabalho distinga quatro ca-
madas no conhecimento linguístico estudado: (1) uma camada teórica, que
se ocupa da concepção de língua e linguagem assumida, uma concepção das
tarefas exigidas do pesquisador da linguagem no período estudado e uma
concepção do estatuto, objetivos e destinações dos resultados obtidos; (2)
uma camada técnica, que se ocupa do estudo dos métodos e técnicas de análi-
se utilizadas no período e das formas de apresentação dos resultados; (3) uma
camada documental, que se ocupa da análise das fontes, da documentação
filológica, que sustentava os estudos do período; e (4) uma camada contextual
e institucional, que se ocupa tanto do contexto cultural do período, quanto
da situação institucional que dava apoio aos estudos linguísticos do período.
Essas quatro camadas tratam as teorias do mais interno ao mais externo e
podem ser aproximadas do que normalmente se chama de história interna
(camadas 1 e 2) e de história externa (camadas 3 e 4).
Propõe, ainda, que a história do pensamento linguístico possa ser enten-
dida (modelada) como um conjunto de programas de investigação, num sen-
tido semelhante ao usado por Imre Lakatos27, que se desenvolvem no tempo.
O interessante é que esse estudo das várias camadas poderia ser aplica-
do, sem maiores alterações, como modelo para a filosofia da ciência, inclusive

26
V., entre outros, Swiggers (2004, 2010, 2012, 2013 e 2015).
27
V. Lakatos (1980).

178 José Borges Neto


se usado para fazer comparações. A noção de Programa de Investigação, de
Imre Lakatos, que foi proposto no quadro de uma filosofia da ciência, prevê o
estabelecimento prévio de um núcleo, que estabelece uma série de assunções
(metafísicas, em princípio) sobre o objeto de estudos, e uma heurística, em
que se estabelece uma espécie de “política de desenvolvimento” do programa,
com a delimitação das tarefas a serem executadas pelos cientistas, seu méto-
do e suas técnicas.
Noam Chomsky, por exemplo, criou o programa da Gramática Gera-
tiva a partir da proposta, revolucionária na época, de que as línguas devem
ser entendidas como cálculos internos à mente dos falantes que gerariam
os enunciados e não, como se fazia no estruturalismo, pela abordagem dos
próprios enunciados produzidos (o corpus). O conjunto de enunciados que
podem ser produzidos pelos falantes de uma língua (o corpus) deixa de ser o
ponto de partida do linguista e passa a ser o ponto de chegada: a gramática,
entendida como a representação do cálculo mental, é um mecanismo gerador
de enunciados e sua adequação empírica consiste em produzir todos e apenas
os enunciados possíveis numa língua. De posse dessas propostas nucleares (=
pertencentes ao núcleo do programa de Lakatos ou à camada teórica da me-
todologia de Swiggers), propôs uma heurística, na terminologia de Lakatos: a
tarefa dos linguistas é construir mecanismos geradores de enunciados que se
aproximem, cada vez mais, do mecanismo presente nas mentes dos falantes
(correspondendo à camada técnica de Swiggers).
A metodologia de Lakatos propõe que a avaliação dos programas em
confronto observe, basicamente, se eles são progressivos ou degenerativos28, o
que supõe claramente tanto aspectos sincrônicos quanto aspectos diacrônicos.
Embora seja uma metodologia pertencente à filosofia da ciência, postula que
a avaliação dos programas só se possa fazer por sua comparação com progra-
mas alternativos. Se a comparação é feita no interior de um mesmo período,
entre programas contemporâneos, estamos diante de investigação típica de
uma filosofia da ciência (por exemplo, se comparamos a Gramática Gerativa
com as propostas funcionalistas e avaliamos os dois programas por meio de
critérios típicos da filosofia da ciência, como conteúdos empíricos, simplici-

28
Em linhas gerais, um programa é progressivo enquanto está aumentando seu conteúdo empírico, ou
seja, enquanto está prevendo fatos novos; o programa será degenerativo na medida em que esgota seu
poder de previsão, isto é, quando seu desenvolvimento se faz a partir de reanálises de fatos previstos por
outros programas.

Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


179
dade formal, abrangência etc.); se a comparação se dá entre programas que
se sucedem no tempo (como, por exemplo, entre o estruturalismo americano
e a gramática gerativa, e avaliamos os dois programas pelo mesmo tipo de
critérios), estamos diante de uma historiografia epistemologicamente baseada.
Os processos envolvidos na obtenção dos conhecimentos científicos são
extremamente complexos. Certamente, há fatores de várias ordens (internas e
externas) que influenciam a atividade científica (fatores sociais e econômicos;
tecnologias inovadoras; concepções filosóficas; avanços nas áreas científicas
e tecnológicas paralelas etc.). Por exemplo, foi o desenvolvimento do mi-
croscópio (um feito tecnológico), no século XVII, pelo holandês Anton van
Leeuwenhoek (1632-1723), que permitiu que o cientista experimental inglês,
físico e matemático, Robert Hook (1635-1703), descobrisse a célula. Essa des-
coberta, feita por um físico, destaque-se, abriu novas áreas de investigação
na biologia. Sem as contribuições de Leeuwenhoek e Hook, entre outros, o
botânico Matthias Schleiden (1804-1881) e o fisiologista Theodor Schwann
(1810-1882), ambos alemães, não teriam estabelecido, em 1838, a teoria celu-
lar, que diz que todos os seres vivos são constituídos de células.
Como diz George F. Kneller (1908-1999) no prefácio de seu livro A
Ciência como atividade humana (KNELLER, 1980): “Do começo ao fim,
procuro mostrar que a Ciência é um empreendimento humano e não uma
terrível força impessoal”. Nesse sentido, a ciência está sujeita aos mesmos
impulsos e determinações que agem sobre todas as atividades humanas, se-
jam elas ideológicas, sociais, econômicas ou o que for, o que projeta sobre a
ciência, tal como prevista pelos modelos da filosofia da ciência, a questão de
sua historicidade, abrindo espaço para a história, a psicologia e a sociologia
da ciência.

Conclusão
As disciplinas científicas, definidas tradicionalmente, nem sempre correspon-
dem a articulações do conhecimento dadas pela natureza. A natureza não diz
como quer ser segmentada. As disciplinas resultam de trabalho humano e es-
tão sujeitas às delimitações contingenciais dos interesses e das limitações dos
seres humanos. A existência de áreas interdisciplinares, transdisciplinares ou
multidisciplinares — biofísica, bioquímica, físico-química, sociobiologia, psi-
copedagogia, sociolinguística, neurolinguística etc. — demonstra a frequente
necessidade de superar os limites disciplinares tradicionais.

180 José Borges Neto


Talvez seja este o caso da filosofia e da historiografia da linguística.
Talvez estejamos diante de duas disciplinas autônomas que, diante de tan-
tas relações e influências mútuas, precisam, cada vez mais, integrar-se numa
área que poderíamos chamar de Filosofia e História da Linguística, superando
barreiras disciplinares que vêm se revelando pouco claras. Um bom indício
de que essa articulação começa a ser feita entre a História da Ciência e a
Filosofia da Ciência é que, cada vez mais, encontramos referências a elas por
meio de uma denominação abrangente — Filosofia e História da Ciência —,
como faz Koerner, por exemplo.

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Historiografia da Linguística e Filosofia da Linguística


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182 José Borges Neto


HISTORIOGRAFIA DA
Introdução
Segundo Law (1993,

LINGUÍSTICA ENTRE OS
p. 2) e Fortes (2016, p.
54) a falta de percep-
ção do valor intrínse-

ESTUDOS CLÁSSICOS co dos textos grama-


ticais da Antiguidade

E MEDIEVAIS:
e Idade Média levou
a comunidade cientí-
fica, por muito tem-

INTERDISCIPLINARIDADES po, a considerar esses


textos como meros re-

E INTER-RELAÇÕES
positórios de informa-
ções que poderiam ser
úteis para a Filologia,
Alessandro Beccari por exemplo, como
testemunhos de obras
literárias perdidas na
escuridão do passado
ou, mais atualmente, de dados que interessariam à Linguística Histórica, já
que registram construções e léxico típicos de estados pretéritos do grego e do
latim, bem como de outras línguas.
Na primeira parte deste capítulo, serão apresentados exemplos de gru-
pos de pesquisadores que desenvolvem trabalhos relacionados ao valor in-
trínseco de elaborações teóricas de natureza linguística que surgiram durante
a Antiguidade e o Medievo. Nesse sentido, serão mencionados os esforços
que vêm sendo feitos nesse sentido, no Brasil, desde os anos 1980.
Na segunda parte, serão apresentados alguns bosquejos para uma his-
tória panorâmica da teoria do caso nominal, de modo a sugerir como a
historiografia de teorias antigas e medievais pode ser feita da perspectiva
de uma área interdisciplinar, que atualmente já congrega elementos dos
Estudos Clássicos e Medievais e o quadro teórico-metodológico da Histo-
riografia Linguística.

183
Além das explorações do valor extrínseco, tradicionalmente atribuído a
textos gramaticais, em obras como as de Varrão (séc. II AEC1) e as gramáticas
de Donato (séc. IV EC) e Prisciano (séc. VI EC), verifica-se também, a partir
do final do séc. XVIII, esforços em prol de uma reconstrução teleológica da
história dos estudos sobre as línguas e a linguagem, em que o pensamen-
to antigo e o medieval culminariam automaticamente na Linguística como
fora entendida a partir daquele período (COELHO; HACKEROTT, 2012, p.
385-387). Nesse sentido, por exemplo, Platão e Aristóteles, os estoicos e os
sofistas, Apolônio Díscolo (séc. II EC), Prisciano, Cassiodoro (séc. VI), Elfric
(séc. X), Pedro Helias (séc. XII), Tomás de Erfurt (séc. XIII), Nebrija (séc.
XV-XVI), Sanctius (séc. XVI), os gramáticos de Port-Royal (séc. XVII) fariam
parte da pré-história da Linguística: tiveram intuições quiçá extraordinárias e
foram mestres de elaborações instigantes, porém sem o rigor e a autonomia
do genuíno fazer científico inaugurado pela Linguística histórico-comparati-
va; seu pensamento seria, portanto, pré-científico.
Em tempos relativamente mais recentes, em especial com a publicação
da obra Linguística Cartesiana de Noam Chomsky (1972 [1966]), observa-se
um tipo novo de história da Linguística, que vai além do reconhecimento da
atribuição de um valor extrínseco ao trabalho dos gramáticos e pensadores
da Antiguidade, Medievo, Renascimento e os racionalistas do séc. XVIII, res-
tringindo-se, nesse caso, ao Ocidente. Sem abrir mão do aspecto teleológico,
essa nova história vê os autores de textos gramaticais do passado não apenas
como detentores pré-científicos de boas ideias, mas também como prede-
cessores heroicos (ou profetas) de assunções teóricas atuais. Essas assunções
normalmente são as mesmas assumidas pelos próprios historiadores nas pes-
quisas que desenvolvem em diferentes áreas da Linguística (COELHO; HAC-
KEROTT, 2012, p. 387-389). Segundo Coelho e Hackerott (2012, p. 388-399),
apesar de seu revisionismo apologético, esse tipo de história dos estudos da

1
“EC” é a abreviatura para “Era Comum”, um termo alternativo para “d.C.” (depois de Cristo). Com
“EC”, mede-se o tempo a partir do primeiro ano do calendário gregoriano. Portanto, V EC lê-se como “o
século cinco da era comum” ou “o quinto século da era comum”. Nesse sentido, “AEC” equivale a “Antes
da Era Comum”, sendo um termo alternativo para “a.C.” (antes de Cristo). Neste capítulo, utilizam-se
“EC” e “AEC” no lugar de “a.C.” e “d.C.” porque, como é sabido, os períodos que a historiografia oci-
dental denomina Antiguidade, Antiguidade Tardia e Idade Média não foram exclusivamente cristãos
em extensas regiões dos espaços que hoje são denominados Europa, Norte da África, Escandinávia e
Oriente Médio, entre outros. De fato, esses territórios comportaram culturas e religiões tão diversas entre
si quanto a dos gregos e romanos, o paganismo eslavo e escandinavo, a religião dos celtas e as tradições
judaica e muçulmana. Assim, reconhecida essa diversidade, optou-se neste capítulo pelas mencionadas
abreviaturas alternativas.

184 Alessandro Beccari


linguagem “contribuiu para que se percebesse que nem sempre o que está
em evidência é o mais relevante e que a pesquisa historiográfica não precisa
seguir uma linearidade temporal, principalmente quando constrói uma histó-
ria de ‘problemas’ (a ser) enfrentados pela disciplina”. Pode se dizer também
que essa abordagem revela que há uma recorrência de propostas de solução
para esses problemas.
A partir dos anos 1970, a Historiografia Linguística apresenta-se como
alternativa para o estudo da história da Linguística. Difere das abordagens
anteriores principalmente ao abandonar um entendimento cumulativo do co-
nhecimento linguístico, ao apresentar segmentos da história como partes in-
tegrais da disciplina e ao propor-se princípios teóricos e metodológicos bem
estabelecidos para o seu empreendimento investigativo. Em outras palavras,
a HL (sigla utilizada internacionalmente para Historiografia Linguística) é
um conjunto de reconstruções linguisticamente informadas e epistemologi-
camente orientadas de segmentos da história da Linguística. Suas orientações
advêm de desenvolvimentos das ideias de teóricos da História e Filosofia
da Ciência, especialmente de Kuhn (2006 [1962]), que em sua obra A es-
trutura das revoluções científicas inaugurou a possibilidade de historiografias
críticas para a histórias das ciências. Koerner (1989), Auroux (2006 [1992]),
Murray (1998) e Swiggers (2004), operando calibragens, rupturas e amplos
desenvolvimentos, adaptaram as ideias de Kuhn para a História da Ciência
ao ambiente da Linguística.
Em terras brasileiras, especialmente até os anos 1980 e meados da dé-
cada de 1990, os trabalhos de reconstrução de segmentos da história dos
estudos das línguas e da linguagem limitavam-se ao que Castilho chama de
“crônicas, que procuravam documentar o que se vinha fazendo no Brasil em
matéria de Filologia, Gramática, Linguística”2 (2018, p. 33). Entretanto, essa
situação mudou com a fundação por Cristina Altman do Centro de Docu-
mentação em Historiografia da Linguística (CEDOCH — DL/USP) junto ao
Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, em 1994, que
passou a acolher uma série de pesquisas inter-relacionadas, projetos, even-
tos, exposições, seminários e publicações científicas a partir de um conjunto
comum de princípios metodológicos. Cristina Altman, “com a companhia de

2
Castilho cita como cronistas da Linguística “Preti (1981, 1987), Cunha (1985), Callou (1999), Dias e
Moraes (1994), Salles (2001) [...] Castilho (1967, 1971a, 1971b, 1972-1973, 1981a, 1981b, 1988, 1989, 1990,
1994, 1995, 2000, 2002, 2005, 2007, 2009, 2017a, b)” (2018, p. 33).

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


185
Olga Coelho e de vários outros pós-graduandos, instalou um vasto programa
sobre a emergência, o desenvolvimento, a institucionalização e a profissio-
nalização das ciências da linguagem ao longo de uma tradição de pesquisa”
(2018, p. 34), o que incluiu estudos inaugurais das primeiras gramáticas de
línguas americanas escritas no território do atual Brasil por missionários je-
suítas no séc. XVI. Portanto, Cristina Altman é também a introdutora seja
da Linguística Missionária, seja dos estudos acerca das reflexões linguísticas
do passado a respeito de idiomas diferentes do português, que foram falados
e ensinados no Brasil. Vale dizer, que essas reflexões muitas vezes eram feitas
em latim, língua da ciência e das relações internacionais até o séc. XVIII,
sendo seu referencial teórico parte da longa tradição greco-latina para os
estudos das línguas e da linguagem.
Em um capítulo em que discute o objeto, a metodologia e a modalização da
Historiografia Linguística, Swiggers (2012, p. 39, trad. dos orgs.) assim a define:

a disciplina (no campo da linguística [geral]) que visa fornecer um relato


descritivo e explicativo cientificamente fundamentado de como o conheci-
mento linguístico (ou seja, o que foi aceite num determinado momento como
conhecimento, informação e documentação sobre questões linguísticas) foi
adquirido, e qual tem sido o curso do desenvolvimento deste conhecimento
linguístico, desde o seu início até ao presente.3

De acordo com essa definição de Swiggers, portanto, o termo “Linguís-


tica” de Historiografia Linguística não exclui os estudos da linguagem ante-
riores ao séc. XX, muito pelo contrário: a HL tem como seu escopo todo o
conhecimento (knowledge) sobre a linguagem, que deseja descrever e expli-
car cientificamente. Nesse sentido, o quadro teórico-metodológico da HL é
certamente aplicável a momentos mais distanciados da história das reflexões
sobre as línguas e a linguagem, como, por exemplo, a Idade Média, período
que, como se verá mais adiante, foi produtivo no que tange o desenvolvimen-
to de teorias linguísticas. Todavia, dado o grande escopo de sua empreitada,
a HL deve sempre atender a exigências de rigor de científico:

3
No original: “the discipline (within the field of [general] linguistics) that aims at providing a scientifically
grounded descriptive and explanatory account of how linguistic knowledge (i.e. what was accepted at a
given time as knowledge, information and documentation on language-related issues) was gained, and
what has been the course of development of this linguistic knowledge, since its beginnings to the present”.

186 Alessandro Beccari


A atividade historiográfica que ambiciona compreender os movimentos em
história da ciência, presume, inevitavelmente, uma atividade de seleção, or-
denação, reconstrução e intepretação dos fatos relevantes (história rerum ges-
tarum) para o quadro de reflexão que constrói o historiógrafo. Não se trata,
pois, de incluir quaisquer fatos passados, só por serem passados. Com efeito,
centenas de pessoas atravessaram o Rubicon no ano 49 a.C., mas só a passa-
gem de César é que pode ser relacionada com o estabelecimento de uma nova
ordem social e econômica no Império Romano. Os demais que atravessaram
o rio, nesta e em outras épocas, não trouxeram implicações semelhantes para
o quadro de reflexão do historiador da Roma Antiga (o exemplo é de Schaff,
1991:210) (ALTMAN, 2004, p. 29).

Respeitados os parâmetros de pesquisa da HL, nada impede, portanto,


que se estude o pensamento linguístico, por exemplo, dos antigos egípcios, dos
gramáticos romanos ou dos modistae do Baixo Medievo. De fato, já faz algum
tempo que existe no Brasil uma área interdisciplinar dos Estudos Clássicos e da
Historiografia Linguística, com uma contínua e variada produção de trabalhos,
especialmente em nível de pós-graduação (mestrado e doutorado), produção
esta que tem sido desenvolvida por grupos de pesquisadores em diferentes ins-
tituições de ensino superior públicas e privadas do país. Apenas a título de
exemplo, citamos dois grupos de pesquisadores: o primeiro, há cerca de duas
décadas, está sob a liderança de José Borges Neto (UFPR/UNICENTRO) em
Curitiba, estado do Paraná; o outro, atuante desde os anos 2000, é liderado
pelo Professor Fábio da Silva Fortes, responsável por disciplinas de língua e
literatura grega e latina na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), atuante
nos programas de pós-graduação em Linguística e Filosofia, em Minas Gerais.
Além de grupos como esses dois e seus líderes, não poderíamos deixar de citar,
que já na década de 1980, havia o trabalho pioneiro de Maria Helena de Moura
Neves (UNESP/MACKENZIE), que abriu caminhos com o livro A vertente
grega da gramática tradicional (1987), proporcionando à comunidade científica

uma possibilidade de retorno aos textos gramaticais gregos para pensar não so-
mente seu lugar na história da tradição conceitual antiga, mas também suas re-
lações com os saberes modernos, no caso, o da constituição daquilo que já esteve
mais em voga de se combater nas frentes linguísticas: a assim chamada ‘gramá-
tica tradicional’. (FORTES; ROCHA; FREITAS; MORAIS; SILVA, 2016, p. 62)

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


187
No âmbito do grupo de tradutores-pesquisadores liderado por José Bor-
ges Neto, contam-se, dos anos 1990 para cá, várias traduções e análises de
textos fundamentais da tradição gramatical, provenientes quer da Antigui-
dade Greco-Latina, quer da Idade Média. Ressalte-se que esse trabalho só foi
possível devido a uma bem-sucedida parceria da área de Linguística com a
de Estudos Clássicos, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Entre os
artigos, capítulos, livros, teses, dissertações, conferências, disciplinas e outros
produtos resultantes desse empreendimento, podem ser citados, apenas a tí-
tulo de exemplo, os trabalhos de Chapanski (2003), Valenza (2010), De Conto
(2011), Beccari (2013, 2017) e Prezotto (2015), em que foram pesquisados e
traduzidos textos de um amplo espectro temporal: da Tékne grammatiké, de
Dionísio da Trácia (séc. II AEC), à Gramática especulativa, de Tomás de Erfurt
(séc. XIV). Enfatize-se que pesquisas similares vêm sendo desenvolvidas em
outras instituições públicas brasileiras (Unicamp, UFJF, USP, entre outras): Pe-
reira (2006), Fortes (2012), Dezotti (2011), Freitas (2016) são alguns exemplos.
Fábio da Silva Fortes (UFJF) tem orientado uma série de trabalhos aca-
dêmicos — de graduação (trabalhos de conclusão de curso) e pós-graduação
(mestrados e doutorados) — relacionados à linguística da Antiguidade Clás-
sica, Antiguidade Tardia e Idade Média. São pesquisas que se mostram teó-
rica e metodologicamente embasados nos princípios da HL. Podem ser cita-
das neste grupo as dissertações defendidas por Rocha (2015), Freitas (2016),
Moraes (2017) e Silva (2018). No momento, Fortes orienta cinco pesquisas de
mestrado e três de doutorado, entre elas um trabalho que vem sendo desen-
volvido pelo pesquisador Fernando Adão de Sá Freitas sobre o conceito de
sintaxe em Santo Agostinho, que é continuação de seu trabalho de mestrado.

1. Bosquejos sobre a naturalização e o uso protocolar do caso


nominal latino
Nesta seção, propõem-se alguns bosquejos para futuros estudos que tenham
como premissa aquilo que Borges Neto (2013) chamou de naturalização da
gramática tradicional e seu uso protocolar. Nesse sentido, serão observados
especificamente os usos da nomenclatura da categoria do caso nominal (da
tradição greco-latina) em sua relação com os pronomes relativos/interrogati-
vos latinos, em latim e em língua portuguesa, em três momentos: Prisciano
(Antiguidade Tardia), gramáticos especulativos (Idade Média) e gramática

188 Alessandro Beccari


normativa e linguística do Brasil no final do séc. XX e início do séc. XXI. O
objetivo é não outro que demonstrar as possíveis contribuições dos Estudos
Clássicos e Medievais para o desenvolvimento da Historiografia Linguística.
Como será visto a seguir, em sua origem, a utilização da nomenclatura do
caso nominal e as discussões relacionadas ao pronome relativo/interrogativo
foram adaptações e desdobramentos da gramática romana de termos técnicos
da gramática grega. Um exemplo de como isso aconteceu está relacionado com
um clima de opinião e locus muito específicos: as elaborações teóricas do trata-
do Sobre a construção (De constructione), nome que se dá ao livro XVII, o pe-
núltimo dos dezoito livros das Instituições Gramaticais (Institutiones Grammati-
cae), de Prisciano Cesariense, que atuou como professor de gramática latina em
Bizâncio, no início do séc. VI EC (mais especificamente, entre 500 e 525 EC),
e cujas ideias, como se verá, têm repercussões até os dias de hoje.

1.1 As análises translinguísticas de Prisciano Cesariense (séc. VI)

As Instituições Gramaticais de Prisciano foram escritas em um contexto que


é familiar a todas as pessoas interessadas na história da Antiguidade Tardia,
especialmente nos estudos a respeito do Império Bizantino:

Constantinopla, por volta do ano de 500 d.C., gozava ainda do prestígio de ser
a ‘Nova Roma’, tal como chamada pelo seu fundador, o imperador Constanti-
no, no ano de 330 d.C. De fato, a relação dos constantinopolitanos com Roma
é muito mais de continuidade que de ruptura. Conforme destaca Robins
(1993, p. 3), os bizantinos viam-se, de fato, como romanos [...], embora, em
sua maioria, fossem falantes de uma variedade do grego antigo. Nesse período,
o adjetivo ‘helênico’ [...], por outro lado, não mais se referia ao status presente,
mas ao passado — a ‘Grécia Clássica’ e seu legado, que, embora associados
ao paganismo, eram profundamente valorizados, seja por romanos, seja por
gregos. Os ‘romanos’ de Constantinopla se tornaram, portanto, os verdadeiros
guardiões da civilização clássica greco-romana, fato que, sem dúvida, explica
a profusão de gêneros enciclopédicos: comentários, gramáticas, dicionários,
livros didáticos. Robins (1993, p. 9) salienta, ainda, que o enfraquecimento
do lado ocidental impôs à nova capital três responsabilidades principais: 1)
garantir a sobrevivência do antigo Império Romano; 2) a defesa e propagação
do Cristianismo; e 3) a preservação das artes e culturas antigas grega e latina.

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


189
É nesse contexto que, ao que parece, Prisciano se tornou mestre de latim na
renomada Universidade de Constantinopla, conforme nos atesta também o
epíteto que o qualifica em alguns dos códices de sua obra: Priscianus Ca-
esarensis doctor urbis Romae Constantinopolitanae (grifo meu: ‘doctor’ era
o título oficial de quem ensinava nas universidades da época). (FORTES,
2012, p. 166-167).

Como mostra Fortes em sua tese (2012), foi por meio de comparações e
contrastes entre o grego e o latim que Prisciano elaborou um discurso teórico
que resultou em uma síntese entre as gramáticas das duas línguas. Segundo o
autor, a finalidade dessa síntese foi produzir uma reaproximação simbólica en-
tre o oriente (grego) e o ocidente (latino). Nas palavras de Fortes (2012, p. 34),

a apresentação frequente de contrastes e comparações de aspectos gramaticais


do grego e do latim parece sublinhar uma identidade entre os dois sistemas
sintáticos, sem, no entanto, anular as diferenças entre uma língua e outra. De
forma ampla, a mera aposição de elementos gregos e latinos e a apreciação
conjunta de fenômenos codificados em grego e latim parecem, justamente,
ressaltar o fato de que são línguas aparentadas — reforçando, por isso, a teoria
do utraque lingua.

A sintaxe de Prisciano é a primeira do mundo romano. Antes dele as


gramáticas latinas não tinham seções dedicadas a esse assunto especificamen-
te. Entretanto, além dos estudos das classes de palavras, fonética e prosódia,
muitos gramáticos latinos, do séc. IV EC em diante, haviam começado a tratar
de estilística e a discutir construções frasais. Essas discussões, embora não re-
cebam capítulos separados nas gramáticas anteriores à de Prisciano (séc. VI)
podem ser consideradas, segundo Hovdhaugen (1995, p. 115), discussões so-
bre sintaxe. Assim, o gramático bizantino apresentou a sintaxe, como discipli-
na independente, por primeira vez no mundo romano, sendo as Institutiones
a primeira obra em que a sintaxe aparece em dois capítulos específicos em
uma gramática latina, o que pode ser visto como uma quebra de paradigma
(KUHN, 2009 [1962]), já que há o estabelecimento de uma nova abordagem
da língua em um determinado contexto, a saber, o mundo de expressão latina.
No livro XVII das Institutiones grammaticae (conhecido como De cons-
tructione), e no livro I, do Peri Syntaxeos (“Sobre a sintaxe”), do gramático

190 Alessandro Beccari


grego Apolônio Díscolo (séc. II EC), defende-se a mesma ideia: existem nas
línguas posições e ordens canônicas para a colocação das letras nas sílabas,
das sílabas (ou combinações de letras) nas palavras, destas nas orações e das
orações nos períodos. A analogia entre essas posições, em níveis diferentes,
é o núcleo da teoria grega que Prisciano adaptou para o latim. Essa relação
proporcional e essa ordem, idêntica entre diferentes níveis, é o que Prisciano
chama de ratio e Apolônio chamara de logos. Vejamos um exemplo dessa
teoria no livro XVII (De constructione) de Prisciano:

Com efeito, assim também demonstrou a tradição da disposição racional a


respeito das letras, as quais, como bem discutiu Apolônio [no Peri Syntaxeos),
são os elementos a matéria prima da voz humana; [Apolônio] demonstra que
estes não se associam por quaisquer junturas de letras, mas por uma ordena-
ção bem ordenada. Daí, também, que, de forma mais verossímil, dizem ser
chamadas literae (“letras”), quase como legiterae (leg(-o) + iter-ae — “ler + ca-
minhos”), pois oferecem o caminho da leitura, quando postas em uma ordem
adequada. Também as sílabas, em um nível mais elevado que as letras, estão
sujeitas a essas regras, já que, a partir delas, unidas, perfazem devidamente a
palavra. Portanto, está claro que também as palavras sigam uma disposição
adequada, isto é, uma ordenação, já que, pela construção, representam partes
da oração completa [...] (Institutiones, 2, 108, 11-8)4.

A ideia principal que fundamenta a noção de ratio ou logos é analógica:


assim como há um princípio racional, de inteligibilidade, no universo, há
também uma ordem que subjaz às combinações entre as letras, as sílabas e as
partes da frase nas línguas, ou seja, existe uma essência racional do mundo
que é refletida pela linguagem — do contrário, o discurso sobre a realidade
não seria possível.
Diferentemente da ideia hodierna de transitividade verbal (da gramática
normativa atual), para Prisciano não há verbos essencialmente transitivos ou
intransitivos, mas sim construções transitivas, intransitivas ou reflexivas, já

4
No original: “Hoc enim etiam de literis tradita ratio demonstrauit, quae bene dicuntur ab Apollonio pri-
ma materies uocis esse humanae indiuidua. Ea non quocumque modo iuncturas ostendit fieri literarum,
sed per aptissimam ordinationem, unde et ‘literas’ uerisimiliter dicunt apellari, quasi ‘legiteras’, quod le-
gendi iter praebeant ordine congruo positae. Nec non etiam auctiores literis syllabae idem recipiunt, cum ex
eis coeuntes iuncturae pro debito dictionem perficiunt. Igitur manifestum, quod consequens est, ut etiam
dictiones, cum partes sint per constructionem perfectae orationis [...]”.

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


191
que o conceito de transitividade, na sintaxe de Prisciano, está relacionado
seja ao trânsito ou mudança de uma ação ou substância de um referente para
outro, seja à permanência no mesmo referente. Assim, por exemplo, “Pedro
corre” é uma construção intransitiva porque não faz referência ao trânsito de
um referente para outro, ou retorna ao mesmo referente (construção refle-
xiva), mas sim à permanência no mesmo referente, “Pedro”. Por outro lado,
uma construção como “Pedro ama Maria” é transitiva, porque a ação transita
de um referente para outro. Ou seja, trata-se de uma questão de correferen-
ciabilidade (transitividade) ou não correferenciabilidade (intransitividade) ou
autorrefenciabilidade (reflexividade), sempre ligados a uma noção de movi-
mento ou ausência de movimento. Ressalte-se que transitividade, intransitivi-
dade ou reflexividade de uma frase não precisa ter relação com ações verbais:
uma frase como “o filho de João” é transitiva, embora não possua verbos.
No excerto abaixo, o pronome relativo qui é declinado para explicitar a
distinção “reflexividade vs. transitividade”:

Este mesmo qui (“que”) muitas vezes é posposto ao nome como, para os gre-
gos, hós. É proferido necessariamente não só com relação ao nome precedente,
mas também ao verbo posposto, como em: virum cano, qui venit (“canto o
homem que vem”). Se ao nominativo adjunge-se outro nominativo, os verbos
referem-se a mesma pessoa: homo venit, qui scripsit (“o homem que vem, es-
creve”); porém, se são dois os termos em caso oblíquo, a transição dos verbos
é feita para a outra pessoa ou de maneira recíproca, como hominem, quem
vitupero, accuso (“acuso o homem a quem censuro”) et memet, quem uitupero,
accuso (“acuso a mim mesmo, a quem censuro”); se, porém, um termo é nomi-
nativo e o outro é oblíquo, não se faz a transição do verbo para o nominativo
de uma pessoa para a outra, mas é feita para o oblíquo, como: homo venit,
quem accuso (“vem o homem a quem acuso”) ou: hominis misereor, qui venit
(“tenho piedade do homem que vem”).
No entanto, todas as coisas que podem ser feitas transitivamente, podem ser
feitas também de maneira reflexiva, e assim como qui e suas formas oblíquas
referem-se bem aos nominativos de todas as palavras casuais, como: Virgi-
lius, qui scripsit (“Virgílio que5 [NOM.] escreveu”); Virgilius, cuius scripta
extant (“Virgílio de quem [GEN.] sobrevivem os escritos”); Virgilius, cui

5
Grifos do autor do capítulo.

192 Alessandro Beccari


gloria contigit (“Virgílio para quem [DAT.] cabe a glória”); Virgilius, quem
laudant (“Virgílio que [AC.] louvam”); Virgilius, quo docente bene proficitur
(“Virgílio por cujo ensino [ABL.] progride-se”). Também no sentido con-
trário todos os outros casos adjungem-se bem ao nominativo, como: qui
scripsit bucolica Virgilius magnus poeta fuit (“quem escreveu as Bucólicas
foi o grande Virgílio [NOM.]”); qui scripsit Aeneida Virgilii sunt georgica
(“as Geórgicas são e de Virgílio [GEN.] que escreveu a Eneida”); qui scripsit
Aeneida Virgilio gloria contigit (“a Virgílio [DAT.] que escreveu a Eneida
cabe a glória”); qui scripsit Aeneida Virgilium laudo (“louvo a Virgílio [AC.]
que escreveu a Eneida”); qui scripsisti Aeneida, Virgili, uiuis memoria (“ó
Virgílio [VOC.], que escreveste a Eneida, vives na memória”); qui scripsit
Aeneida Virgilio florent studia (“por causa de Virgílio [ABL.] que escreveu a
Eneida, os estudos floresceram”). É possível também expressar essas coisas
antepondo esses termos (Institutiones 2, 127, 12-128, 7)6.

Como se vê na frase inicial do excerto acima, a principal intenção de


Prisciano é demonstrar que o funcionamento do pronome latino é compará-
vel ao do grego, com relação ao aspecto posicional: “Este mesmo qui (‘que’)
muitas vezes é posposto ao nome como, para os gregos, hós”. Ou seja, fica
evidenciado que a discussão translinguística minuciosa, em Prisciano, tem
um fundo ideológico: seu objetivo, afinal, é provar aos “romanos” (bizan-
tinos) a tese central da teoria utraque lingua, a saber, o grego e o latim são
igualmente racionais em todos os seus aspectos e, portanto, tudo que se pode
dizer em latim pode se dizer (ou fazer) igualmente e com tanto refinamento
artístico quanto em grego. Nesse sentido, Prisciano propõe aquilo que Fortes
chama de “uma defesa de um ‘ideal greco-romano’ de linguagem” (FORTES,

6
No original: “Hoc idem, id est qui, quotiens subiungitur nomini, quomodo hós apud Graecos, necesse est
non solum ad nomen praepositum, sed etiam ad id subiunctum alterum uerbum proferri, ut uirum cano,
qui uenit. Si nominatiuo nominatiuus adiungitur, ad eandem personam uerba referuntur: homo uenit, qui
scripsit; sin duo obliqui sunt, ad aliam personam transitio fit uerborum uel in se reciprocatur, ut hominem,
quem uitupero, accuso et memet, quem uitupero, accuso; sin alterum sit nominatiui, alterum uero obliqui,
ad nominatiuum non fit transitio uerbi ab alia persona ad aliam, ad obliquum uero fit, ut homo uenit,
quem accuso uel hominis misereor, qui uenit. Omnia tamen quae in transitione fiunt, possunt etiam in
reciprocatione fieri.
Et quomodo qui et eius oblique omnes ad nominatiuos omnium casualium bene referuntur, ut Vergilius
qui scripsit; Vergilius cuius scripta extant; Vergilius cui gloria contingit; Vergilius quem laudant; Vergilius
quo docente bene proficitur, sic et ex contrario nominatiuo eius omnes aliorum casus bene adiunguntur, ut
qui scripsit bucolica Vergilius magnus poeta fuit; qui scripsit Aeneida Vergilii sunt georgica; qui scripsit Ae-
neida Vergilio gloria contingit; qui scripsit Aeneida Vergilium laudo; qui scripsisti Aeneida, Vergili, uiuis
memoria; qui scripsit Aeneida Vergilio florent studia. Licet autem et praepostere haec dicere”.

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


193
2015, p. 226). Essa proposta estava ligada, em última instância, à restauração
do Império romano, cuja parte ocidental, caíra, há cerca de cinquenta anos,
no controle político e militar dos godos, povo que os bizantinos viam como
bárbaros e hereges.
No De constructione, pela primeira vez no mundo romano, Prisciano
mostrou a possibilidade de uma sintaxe como disciplina independente. Essa
é a grande inovação e a ruptura paradigmática de Prisciano, pois ele criou
um novo jeito, contrastivo de se estudar a língua latina, em comparação com
a grega, tendo em conta aspectos de construção frasal. Como declara Fortes:
“a obra de Prisciano representa algo mais que o final de uma era: constitui a
ponte entre a erudição linguística da Antiguidade e a da Idade Média” (2015).
De fato, parafraseando Robins (1983 [1968], p. 48), pode-se dizer, com base
numérica, que as Institutiones grammaticae foram, sem dúvida, o texto gra-
matical de maior impacto no Ocidente (até o séc. XVI, pelo menos), pois
mais de mil de seus manuscritos chegaram até nós, e constituíram a base da
gramática latina e da reflexão linguística dos medievais.

1.2 Expoentes pronominais e teoria do caso na Idade Média


Retomado pelos gramáticos especulativos medievais (a partir do séc.
XIII), conhecidos como modistae (“modistas”), o uso das formas do paradig-
ma do pronome relativo latino como expoentes para explicações teóricas —
inaugurado, com se viu acima, por Prisciano no séc. VI —, foi adaptado, no
final da Idade Média, na formalização de uma teoria geral do caso.
De fato, as formas do paradigma do pronome relativo podem servir
não apenas como expoentes para a explicitação da transitividade frasal (ou
não), mas também para o que a Idade Média chamou de regência, que foi,
aliás, uma de suas grandes contribuições para o desenvolvimento da gramáti-
ca tradicional (GT) conforme é conhecida e, ainda hoje, ensinada nas escolas.
Nesse sentido, assim como qui pode ser declinado para explicitar a distinção
“reflexividade vs. transitividade”, de maneira semelhante, todas as relações
de tipo “nome-verbo”, “verbo-nome”, “nome-nome” etc., como mostrará To-
más de Erfurt (c. 1310), podem ser explicitadas com o uso do paradigma
do pronome relativo/interrogativo qui, empregado normalmente no gênero
neutro (quod) na Idade Média, com base em noções oriundas do cruzamento
das categorias lógico-metafísicas aristotélicas da substância (para as relações
nominais) e da ação (para as relações entre verbos e nomes).

194 Alessandro Beccari


No décimo nono capítulo da Gramática especulativa, Tomás de Erfurt
(c. 1310) descreve sua teoria do caso nominal.

Em seguida damos uma descrição do caso. Em que se deve observar que,


nas coisas separadas, encontram-se certas propriedades comuns, a saber: a
propriedade do princípio e a propriedade do término. Igualmente, são encon-
tradas certas propriedades gerais nas coisas, a saber: a propriedade ‘conforme
o ‘quê’ é algo em si ou o ‘quê’ é o outro (de dois)’, a propriedade ‘conforme
‘de que’ uma outra coisa é’, a propriedade ‘conforme ‘para que’ existe e ‘a que’
uma outra coisa é dada’, e assim das outras propriedades semelhantes a essas,
que são representadas pelas flexões do pronome quod (‘que’): cuius (‘de que’),
cui (‘para/a que’) etc. Embora o caso origine-se das primeiras propriedades,
é do acréscimo das segundas propriedades às primeiras que se originam as
diferenças entre os casos. Portanto, o caso é o modo de significar acidental do
nome mediante o qual o nome cossignifica a propriedade do princípio ou a
propriedade do término e, de acordo com a diferença entre essas propriedades
e as outras propriedades adicionais, o caso é dividido em seis espécies, a saber,
em nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo (TOMÁS DE
ERFURT, Grammatica speculativa, XIX, 32-33)7.

Na passagem acima, Tomás de Erfurt coloca em operação uma série


de distinções lógico-metafísicas aristotélicas. Em primeiro lugar, aparece
a distinção “princípio-término”, que é o sentido geral da primeira dife-
renciação dos aspectos semânticos (modos de significar) que constituem
os diferentes casos nominais. Depois de estabelecer a oposição “princí-
pio-término”, o gramático explica os modos de significar de cada caso de
acordo com a sua referência (posicional) à distinção “princípio-término”,
de duas formas: 1) enquanto um nominal (com marcação) de caso fun-
ciona somente como princípio ou somente como término de uma ação,
7
No original: “Consequenter de casu dicamus. Iuxta quod notandum, quod in rebus inveniuntur quaedam
proprietates communes, scilicet proprietas principii, et proprietas termini. Item, inveniuntur quaedam
proprietates generales in rebus, scilicet proprietas, ut quod est aliquid in se, vel quod est alterum; et proprie-
tas cuius est aliud; et proprietas, ut cui est, et cui aliquid datur; et sic de consimilibus, quae repraesentatur
per inflexionem huius nominis quod, cuius, et cui, etc., et a primis proprietatibus oritur casus, qui est
modus significandi nominis. Sed a secundis proprietatibus superadditis primis oriuntur differentiae casus,
vel casuum. Casus igitur est modus significandi accidentalis nominis, mediante quo, nomen proprietatem
principii, vel termini consignificat. Et secundum harum proprietatum diversitatem, cum aliis proprieta-
tibus superadditis, casus in sex species partitur, scilicet nominativum, genitivum, dativum, accusativum,
vocativum, et ablativum.”

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


195
2) enquanto um nominal pode funcionar ora como princípio ora como
término de uma ação ou substância (Grammatica speculativa, XIX, 32-
33). Com o critério posicional, Tomás de Erfurt apresenta a essência de
cada caso, em seu aspecto mais geral, a partir do cruzamento da dicoto-
mia “princípio-término” com outra dicotomia aristotélica, originária da
oposição entre os significados gerais das categorias metafísicas da ação e
da substância: em seu aspecto geral, o caso nominal pode indicar, então,
o princípio e/ou término de uma ação ou substância. A seguir, Tomás de
Erfurt especifica as outras seis propriedades mais puramente semânticas
de que se originam os sentidos particulares ou próprios que explicam a
diferenciação do sistema em seis casos individuais: a propriedade

‘conforme o ‘quê’ é algo em si ou o ‘quê’ é o outro (de dois)’, a propriedade


‘conforme ‘de que’ uma outra coisa é’, a propriedade ‘conforme ‘para que’
existe e ‘a que’ uma outra coisa é dada’, e assim das outras propriedades seme-
lhantes a essas, que são representadas pelas flexões do pronome quod (‘que’):
cuius (‘de que’), cui (‘para/a que’) etc. (TOMÁS DE ERFURT, Grammatica
speculativa, XIX, 32-33)8

Essa formalização da diferenciação entre os casos, com o emprego das


formas pronominais do paradigma do pronome relativo/interrogativo, será
recebida nos textos gramaticais ibéricos utilizados em Portugal no séc. XIV e
XV, e chegará até nossos dias nos capítulos sobre sintaxe de gramáticas norma-
tivas, bem como na metalinguagem e em procedimentos que são encontrados
em textos vinculados a diferentes teorias da linguística em uso atualmente.
Em resumo, pode se dizer que a teoria do caso da Gramática especulativa,
de Tomás de Erfurt, em suas dimensões sintática e semântica, é construída
nocionalmente da seguinte forma: uma distinção posicional “princípio-térmi-
no”, que se origina da analogia do móvel da física aristotélica, é cruzada com
os significados gerais das categorias da ação e da substância da metafísica
de Aristóteles; a esse cruzamento adicionam-se os significados das seis pro-
priedades casuais específicas, que são representadas pelo paradigma de quod.
Como foi visto, Tomás de Erfurt parte dessas noções para efetuar uma siste-
matização completa da estrutura e funcionamento do caso nominal latino.
8
No original: “ut quod est aliquid in se, vel quod est alterum; et proprietas cuius est aliud; et proprietas,
ut cui est, et cui aliquid datur; et sic de consimilibus, quae repraesentatur per inflexionem huius nominis
quod, cuius, et cui, etc.”

196 Alessandro Beccari


O quadro a seguir traz o esquema de substituições pronominais para a
apresentação dos casos nominais do latim, com suas definições, com base na
teoria modista de Tomás de Erfurt.
Casos nominais Expoentes

Nominativus designat rem9 ut quod est alterum.


[O nominativo designa a coisa como “que (princípio)” é o outro.]

Acusativus designat rem ut quem est alterum.


[O acusativo designa a coisa como “que (término/princípio)” é o outro.]

Genitivus designat rem ut cuius est alterum.


[O genitivo designa a coisa como “de que (princípio/término)” é o outro.]

Dativus designat rem ut cui alterum acquiritur vel datur.


[O dativo designa a coisa como “para que (término)” o outro é adquirido ou dado.]

Ablativus designat rem ut quo est alterum.


[O ablativo designa a coisa como “em/sem/com/de/por que (término)” é o outro.]

Vocativus designat rem in ratione termini tanquam dependens actus exerciti


[O vocativo10 designa a coisa de acordo com o término, enquanto dependente de uma ação es-
timulante]

Quadro 1: Esquema de substituições. Fonte: Kelly (2002, p. 93). 910

Semanticamente, os pronomes relativos/interrogativos latinos compor-


tam-se como variantes preenchíveis com marcações de caso. De fato, ainda
hoje são usados desse modo por professoras e professores de língua latina
ou portuguesa em suas aulas, isto é, como expoentes dos conteúdos grama-
ticais dos componentes da frase e como marcadores de posições de termos
frasais (ILARI; GERALDI, 1987, p. 16). Apenas a título de exemplo, esse
procedimento de substituição pode ser verificado, em latim, com o emprego

9
As sentenças desta coluna são concluídas na coluna seguinte.
10
Na Grammatica Speculativa de Tomás de Erfurt (fl. 1300-1320), o caso vocativo “é o modo de significar
de acordo com a propriedade do término da ação que depende de uma ação estimulante ou impelidora,
sem o acréscimo de nenhuma das propriedades adicionais mencionadas acima (a respeito dos outros
casos). Isso significa que, por exemplo, ao se dizer “Ó Henrique!” (o Henrice), esse vocativo só tem a
propriedade de terminar a ação enquanto é dependente dessa ação estimulante ou impelidora” (XIX,
32). Nesse sentido, Tomás de Erfurt distinguia actus exercitus (“ação impelidora/estimulante”) de actus
significatus (“ação significada”). O ato de chamar é performativo: o uso da interjeição em associação com
o vocativo realiza esse ato – o Henrice. A ação significada faz parte do constativo correspondente: voco
Henricum “Chamo Henrique”. Para Tomás de Erfurt, o vocativo é o término de uma ação estritamente
estimulante porque o vocativo não tem nenhum significado (função) adicional além da realização do
estímulo mental que o acionou (“enquanto é dependente dessa ação estimulante ou impelidora”). Como
o vocativo não tem o mesmo estatudo ontológico dos outros casos, para Tomás de Erfurt, não possui
reprentação pronominal.

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


197
das formas quem.AC11 e quō.ABL (do paradigma apresentado no Quadro 1)
nas ocorrências abaixo, em que (1) e (2) devem ser entendidos como uma
pergunta e uma resposta em um breve diálogo (o mesmo para (3) e (4))12.
(1) Quem audio? [Quem.PRON.INTERROG.AC.S. ouço.PRES.IND.AT.1P.?]
(2) Audio Socratem. [Ouço.PRES.IND.AT.1P. Sócrates.AC.MASC.S.]
(3) Quō vinces? [Com que.PRON.INTERROG.ABL.NEUT.S. vencerás.FUT.
IND.AT.2PS.?]
(4) Consiliō vinces. [Com uma resolução.ABL.NEUT.S. vencerás.FUT.IND.
AT.2PS.]
As substituições em (2) e (4) confirmam a eficácia dos pronomes como
expoentes das funções sintáticas dos verbos, já que podem, de fato, indicar
os tipos de relações gramaticais estabelecidas pelo nominal a que se referem.
Assim, Socratem.AC e Consiliō.ABL podem ser substituídos pelos expoentes
quem.AC e quō.ABL, que explicitam as regências das formas verbais audio.
PRES.IND.AT.1P e vinces. FUT.IND.AT.2PS, especificando também as fun-
ções de objeto direto (ut quem) e adjunto adverbial (ut quō).
Devido ao uso comum desse esquema na Idade Média, os gramáticos
medievais costumavam denominar a função ou propriedade do nominativo
como ut quod (como o “quê”), do genitivo ut cuius (como o “de que”), do
dativo ut cui (como o “para/a que”) e assim por diante.
Um procedimento semelhante (guardadas as diferenças do uso do pro-
nome acompanhado de preposições e explicações semânticas), é observado
já nos primeiros textos gramaticais em língua portuguesa, como as Reglas (c.
1375) e a edição lusa da Grammatica Pastranae (1497). Como foi dito acima,
procedimentos semelhantes são utilizados até hoje por docentes de língua
portuguesa, no ensino de conteúdos relacionados às orações subordinadas
adjetivas, de acordo com o quadro teórico da GT. Portanto, essa prática de
modo nenhum se restringe à Idade Média.

1.3 Expoentes pronominais e caso nominal em gramáticas brasileiras


De fato, o uso da substituição pronominal como procedimento didático na
explicação de funções sintáticas é observado em gramáticas escolares brasi-
11
Nos exemplos a seguir são empregadas abreviações como: NOM, AC etc. para os casos “nominativo”,
“acusativo” etc.; MASC, FEM, N para “masculino”, “feminino”, “neutro”; P, 1PS, PL, S para “pessoa”,
“primeira pessoa do singular”, “plural”, “singular”; PRON.INTERROG para pronome interrogativo;
PRES.IND para “presente do indicativo”.
12
As ocorrências (1), (2), (3) e (4) correspondem aos exemplos (18), (16’), (19) e (14’) de Beccari (2012,
p. 584).

198 Alessandro Beccari


leiras do final do séc. XX, como se constata no exemplo a seguir, em que se
encontra um “artifício para analisar o pronome relativo” da Gramática em 44
lições de Savioli (1985, p. 31).
Substitui-se o pronome pelo seu antecedente. A análise que cabe ao ter-
mo substituto caberá ao pronome relativo. Assim:

(Exemplo) Repreendeu os amigos que falharam.


Substituindo o que pelo seu antecedente, teremos:
Os amigos falharam.
sujeito predicado

Daí se conclui que, na frase em questão, o pronome relativo que:


está substituindo o termo amigos,
com a função de sujeito de falharam.

Na lição 15 do mesmo livro (SAVIOLI, 1985, p. 152), cujo assunto é


a regência verbal, o autor apresenta uma tabela de regências em que utiliza
o pronome relativo antecedido de preposições para explicitar a regência de
alguns verbos sobre o pronome “que”, de uma forma que lembra muito o em-
prego do paradigma do pronome relativo latino por Tomás de Erfurt, como
expoente de funções sintáticas13.

Como já vimos em análise sintática, o pronome relativo pode funcionar como


complemento do verbo. Nesse caso, é preciso que o pronome obedeça à regên-
cia do verbo do qual é complemento. Dizendo de outra forma, a preposição
ocorre ou não antes do pronome relativo em função do verbo do qual é com-
plemento. Observe o que se segue:

Estas são as pessoas ∄ que aprecio.


de que gosto.
a que me refiro.
em que creio.
de que discordo.

13
O autor utiliza uma seta ligando a coluna dos verbos à das preposições e sobrepõe chaves ao primeiro
elemento de ambas colunas, o que não é reproduzido na citação.

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


199
Nesta como em outras instâncias14 ocorre a permanência no ensino
atual da sintaxe da língua portuguesa (de acordo com a Gramática Tradicio-
nal) de procedimentos que remontam à Idade Média e Antiguidade Tardia.
Esse esquema da GT, que emprega o pronome relativo como expoente
de relações sintáticas, não se restringe às gramáticas normativas ou materiais
didáticos de língua portuguesa em uso atualmente que aderem à GT de for-
ma mais ou menos implícita. Também se observa a manutenção da nomen-
clatura greco-latina do caso nominal e de importantes elementos da teoria do
caso medieval nos estudos linguísticos, cujos autores vinculam-se a teorias da
linguística que surgiram a partir da segunda metade do séc. XX. No sentido
de indicar essa permanência da terminologia e de noções da gramática tradi-
cional na linguística contemporânea, apenas a título de estímulo para futuras
pesquisas, citaremos (de passagem) dois exemplos: o primeiro, oriundo da
Gramática construtural da língua portuguesa de Back e Mattos (1972), o se-
gundo, da Nova gramática do português brasileiro, de Castilho (2014).
Na sexta seção da terceira parte (da terceira parte) do primeiro volume
da Gramática construtural da língua portuguesa, ao discutirem o que chamam
de “complemento dativo” (ou “Dativo”), Back e Mattos (1972, p. 213) dão as
seguintes explicações:

3.3.6. COMPLEMENTO DATIVO (OU DATIVO).


O complemento dativo, a função /4/, assinalado pelo algarismo 4 embaixo da
linha, é uma posição sentencial obrigatória (desde que não evidente pelo texto
ou a situação) que corresponde aos pronomes lhes, lhes (sic.).
O dativo pode ser direto ou indireto. É obrigatoriamente indireto e introdu-
zido pelo conetivo prepositivo a, quando se trata de locuções nominais; nas
locuções pronominais o dativo é manifestado pelos seguintes pronomes:

Direto Indireto

eu me mim

tu te ti

ele lhe ele

14
Por exemplo, o uso atual de termos calcados na metalinguagem greco-romana para a designação das
classes de palavras (DEZOTTI, 2013).

200 Alessandro Beccari


ela lhe ela

se si

nós nos nós

vós vos vós

eles lhes eles

elas lhes elas

se si

1 2 3 4

A professora deu ao menino os livros novos de Matemática

A professora deu a ele os livros novos de Matemática

A professora deu- lhe os livros novos de Matemática

O complemento dativo é uma posição sentencial obrigatória: não pode faltar


(a não ser com permissão da situação ou do texto); seria incompleta a oração
e não satisfatória: A professora deu os livros novos de Matemática. Viria ime-
diatamente a pergunta: A quem?

Segundo os autores, o dativo manifesta-se em português geralmente


depois da posição /3/, antecedido ou não de preposição, e é uma posição
oracional obrigatória. Sem entrar nos detalhes da teoria construtural, pode se
notar o universalismo atribuído à entidade teórica “dativo”, pois fica implícito
que o caso dativo está presente em outras línguas, embora essa assunção não
seja expressa. Trata-se de um exemplo daquilo que Borges Neto (2013) cha-
ma de uso protocolar da gramática tradicional. No entanto, os autores pare-
cem de fato aceitar que o dativo é uma categoria natural que se manifesta do
modo descrito acima no português, e partem desse pressuposto para explicar,
no quadro de sua teoria, o funcionamento do dativo português.
No final do excerto, há uma espécie de teste, que é sugerido para verificar
o tipo de satisfação exigida pela sentença: é utilizada a pergunta “a quem?”.
Um gramático modista (luso) entenderia imediatamente esse teste como se re-
ferindo a ut cui (o modo de significar como “a que”) do determinante (termi-
nans) do verbo “dar”. Além disso, o critério posicional lembraria esse medieval
imaginário da noção de ordo naturalis: as posições naturais “antes” e “depois”
para as partes da frase que eram postuladas pela gramática aristotélica dos
modistas. Por fim, a assunção de uma gramática universal parece evidenciada

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


201
pelo fato de o dativo ser considerado uma categoria presente em línguas que
não apresentam caso morfológico, como o português, o que também é perfei-
tamente aceitável no quadro da gramática especulativa medieval.
O outro exemplo, também dos estudos linguísticos, é mais recente, en-
contra-se em Castilho (2014). Considere-se a citação a seguir:

[...] os pronomes relativos exibem as formas correspondentes ao caso que re-


cebem de seu verbo:
(83)
a) O livro que15 estou lendo é de história. (caso nominativo, função de sujeito)
b) Perdi o livro que estava lendo. (caso acusativo, função de objeto direto)
c) Devolvi o livro ao aluno a quem ele pertencia. (caso dativo, função de
objeto indireto)
d) Não há uma área em São Paulo em que a polícia não entre. (caso ablativo,
função de complemento oblíquo)
e) Os painéis solares geram a energia com que sempre sonhamos (caso abla-
tivo, função de complemento oblíquo)
f) O livro de história cuja capa está rasgada merece ser encadernado. (caso
genitivo, função de adjunto adnominal) (CASTILHO, 2014, p. 367)

Na história da tradição gramatical, o uso de expoentes pronominais


não é uma inovação do final da Idade Média. Porém, como foi visto nas
discussões anteriores deste capítulo, essa inovação teve em Prisciano apenas
seu ponto de partida, no mundo de expressão latina. A partir das ideias de
Prisciano, gramáticos medievais como Tomás de Erfurt (séc. XIV) efetuaram
desenvolvimentos teóricos que, como se viu, levaram à elaboração de uma
teoria inovadora do caso nominal. Portanto, mais do que repetidores das
lições herdadas de Prisciano, os medievais foram seus continuadores críticos.

Os gramáticos latinos se interessaram mais pela classificação e pelas proprie-


dades morfológicas dessa classe, embora não deixassem de lado suas proprie-
dades funcionais, um assunto tão forte entre os gregos. Assim, Donato (séc.
VI d.C.) dividia os pronomes em (i) finitos [...]; (ii) infinitos [...]. Já Prisciano
(séc. V d.C.) [...]

15
Os pronomes, antecedidos ou não de preposição, foram grifados pelo autor do capítulo; as partes em
negrito estão desse modo no original.

202 Alessandro Beccari


Vejamos agora alguns gramáticos ibéricos e renascentistas, pois durante a
Idade Média as lições de Prisciano foram repetidas, ocorrendo certa ‘esco-
larização’ da reflexão. Nebrija [...] define o pronome como [...] (CASTILHO,
2014, p. 473)

Ao menos com base na parte final da passagem supracitada, é possível


supor que as fontes medievais dos procedimentos explanatórios que o próprio
autor utiliza em sua discussão das funções dos pronomes (nas subordinadas
adjetivas) sejam desprezadas ou desconhecidas, o que se evidencia pelas afir-
mações de que “os pronomes relativos exibem as formas correspondentes ao
caso” e que “as lições de Prisciano foram repetidas” pelos medievais.
A maneira como Castilho apresenta os pronomes, no excerto acima,
indica certas pressuposições teóricas que seriam reconhecíveis por um gra-
mático modista que utilizasse o português como língua de análise, a saber: 1)
os pronomes relativos da língua portuguesa exibem marcação de caso (pelo
menos de forma residual); 2) essas formas pronominais desempenham fun-
ções sintáticas correspondentes às dos casos do latim (nominativo, acusativo,
genitivo etc.), de acordo com a GT ; 3) o caso é uma categoria gramatical a
ser utilizada na descrição do português brasileiro; 4) os pronomes relativos
podem servir como expoentes de funções sintáticas, pois fazem referência a
formas nominais com função de nominativo, acusativo, ablativo etc.
Nas gramáticas tradicionais da língua latina, grega antiga e portuguesa,
os pronomes relativos são entendidos como indicadores de uma série de fun-
ções sintáticas, e são utilizados, desde o final da Idade Média, como expoen-
tes para a explicação do funcionamento das relações entre as partes da frase
latina, grega antiga ou neolatina. Vale dizer que, nesse ponto, as explanações
de Castilho são condizentes com as discussões de tratadistas medievais, como
é verificável na leitura, por exemplo, dos capítulos dedicados a esses assuntos
da Gramática especulativa, de Tomás de Erfurt, escrita por volta de 1310.
Em Castilho (2014), um dos mais competentes linguistas brasileiros
da atualidade, identifica-se uma utilização de “resultados de uma teoria
como ponto de partida de outra [...] que pode facilitar o aprendizado ou o
estabelecimento dos limites de determinados recortes teóricos” (BORGES
NETO, 2013, p. 6) 16. Assim, tem-se no emprego do paradigma do pronome

Ressalte-se que não se trata aqui de “uma manifestação discursiva que” advoga “por descontinuidade
16

em relação” ao quadro teórico-metodológico da GT (BATISTA, 2019, p. 83-84). Aliás, Castilho faz interes-

Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


203
relativo e da nomenclatura e aspectos nocionais da teoria do caso nominal
da tradição greco-latina e medieval um exemplo afirmativo do uso proto-
colar da GT. Esse uso fornece também uma comprovação factual de que a
GT, lato sensu, continua, nas palavras de Borges Neto (2013) “prenhe de
boas ideias, de boas soluções para os problemas linguísticos”, embora não
se deixe de ter em conta que “nem tudo que está lá, nem tudo que o olhar
greco-latino viu nas línguas, pode ser assumido sem uma forte perspec-
tiva crítica”. É possível estender essas observações de Borges Neto (2013)
sobre a perspectiva greco-latina para os desenvolvimentos da GT que se
deram na Idade Média e Renascimento. De fato, os dois mil e quinhentos
anos da tradição gramatical do ocidente guardam tesouros que certamente
permanecem inexplorados, quiçá porque estejam codificados em línguas e
em uma linguagem e visões de mundo que não permitem à comunidade
linguística estimar seu valor real. É nesse sentido que os Estudos Clássicos
e Medievais, com suas ferramentas e habilidades próprias, têm condições
de ajudar a iluminar pontos ainda obscuros dos períodos mais afastados da
longa história dos estudos da linguagem.

Considerações finais
Nas discussões sobre a natureza do pronome em Prisciano, nos debates me-
dievais que deram origem ao desenvolvimento de uma teoria do caso em que
formas pronominais foram utilizadas como expoentes de relações sintáticas,
e, por fim, no emprego de procedimentos e noções aristotélicas na tradição
gramatical posterior ao Medievo, inclusive na linguística contemporânea, há,
sem dúvida, bons motivos para acreditar que os Estudos Clássicos e Medie-
vais possam contribuir significativamente para o progresso da Historiografia
Linguística no Brasil e no mundo. Essas contribuições podem se concretizar
na forma de novas edições e traduções de gramáticas e outras fontes de na-
tureza linguística, provenientes da Antiguidade e Medievo, ou análises de
teorias e procedimentos atuais que talvez repitam inadvertidamente as des-
cobertas ou noções que se perderam nas trevas do passado.
Ao concluir este capítulo, fica a impressão da admirável tenacidade da
teoria do caso nominal latino e sua longevidade no clima de opinião atual, o

santes considerações a respeito das contribuições dos linguistas antigos, renascentistas, modernos e con-
temporâneos para a compreensão do que chama de estatuto categorial dos pronomes (2014, p. 472-476).

204 Alessandro Beccari


qual, em tantos outros aspectos, é por princípio hostil ao pensamento aris-
totélico. Na verdade, a semântica lógico-metafísica em que se fundamentou
a teoria do caso nominal de Tomás de Erfurt (séc. XIV), com sua noções
de alteridade, substância e acidentes, remonta, como foi visto, a lógica e a
metafísica de Aristóteles (séc. IV AEC), tendo seu antecedente gramatical
mais antigo, no mundo de expressão latina, nas Instituições Gramaticais de
Prisciano Cesariense, um gramático bizantino do séc. VI da era comum que
estava interessado, acima de tudo, em demonstrar a igualdade de status do
grego antigo e do latim clássico.
Ressalte-se que as noções que fundamentam as explicações da tradição
gramatical para os fenômenos da linguagem só podem ser compreendidas
plenamente pelos docentes e pesquisadores de hoje se estes levarem em conta
as ideias aristotélico-platônicas e estoicas que fundamentam essas explicações.
Em suma, não é possível entender a razão de ser dos conceitos operacionais
da Gramática Tradicional sem um conhecimento prévio de seus fundamentos
epistemológicos, que frequentemente remontam à Idade Média (Alta e Baixa)
e à Antiguidade (Clássica e Tardia). Nesse sentido, a área interdisciplinar dos
Estudos Clássicos e da Historiografia Linguística, embora ainda não tenha
recebido um nome, já se tem mostrado produtiva neste início de séc. XXI,
como demonstram as menções a trabalhos de pesquisa e dissertação, teses e
outras publicações apresentados na primeira parte deste capítulo.
Com esta breve incursão nesta promissora área interdisciplinar, conclui-
-se que muito se pode aprender a respeito dos pressupostos teóricos das refle-
xões atuais sobre a linguagem se os séculos de pesquisas que as antecederam
no contínuo do tempo forem levados em consideração. Na verdade, essa tare-
fa, como se viu neste capítulo, vem sendo empreendida há pelo menos duas
décadas por grupos de pesquisadores brasileiros, em IES públicas principal-
mente, como uma soma de esforços entre os Estudos Clássicos e a Historio-
grafia Linguística. Espera-se que, no futuro, esse trabalho se amplie, e que seus
realizadores tenham condições de cumpri-lo cada vez mais satisfatoriamente.

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Historiografia da Linguística entre os Estudos Clássicos e Medievais: interdisciplinaridades e inter-relações


207
HISTORIOGRAFIA
Considerações iniciais
Os anos 1960 marcaram a im-

DA LINGUÍSTICA E
plantação, por força do parecer
no 283/62 emitido pelo Conselho
Federal de Educação, da matéria

ENSINO DE LÍNGUA Linguística no currículo mínimo


dos cursos de Letras no Brasil. Em

PORTUGUESA:
decorrência desse acontecimento,
houve o início de um desloca-
mento epistemológico tanto nas

DA GRAMÁTICA pesquisas linguísticas — até então


sob o comando da Filologia e da
Dialetologia (cf. ALTMAN, 2004)

TRADICIONAL — quanto na reflexão sobre o en-


sino de língua portuguesa. À épo-

À TRADIÇÃO
ca, “ensino de língua” equivalia a
“ensino de gramática” e pautava-se
nos eixos da análise metalinguísti-

SOCIODISCURSIVA ca (fonética, morfológica e sintáti-


ca) e da prescrição de regras para o
bem falar e escrever.
Francisco Eduardo Vieira Esses dois eixos pedagógi-
Leonardo Gueiros cos (metalinguagem e prescrição)
constituem até hoje o conjunto de
saberes escolares sobre as línguas
ocidentais conhecido pelo rótulo de Gramática Tradicional (GT). Se, nos
anos 1940 e 1950, a GT dialogava de bom grado com a Filologia (não à toa
as gramáticas tradicionais de hoje são também denominadas de gramáticas
filológico-normativas e seus autores, de filólogos), a partir da década de 1960
ela passou a ser fortemente criticada pela Linguística brasileira nascente.
Embora dotada de um forte componente dogmático e prescritivo (não
muito distante da cega obediência de certos modelos teóricos a seus respec-
tivos princípios e procedimentos investigativos, é verdade), a GT consis-
te numa teoria linguística como qualquer outra. Trata-se de um corpo de
c­onhecimentos historicamente construído, ancorado em princípios teóri-
co-metodológicos específicos e suscetível a incompletudes, deslocamentos
e rupturas em suas diferentes “camadas” (cf. SWIGGERS, 2004), tais quais:
noções de língua e gramática, técnica de análise, natureza e método de apre-
sentação dos dados, tipo de retórica etc. A finalidade necessariamente peda-
gógica da GT, porém, a diferencia das demais teorias linguísticas, as quais
se centram, numa primeira instância, no campo estritamente investigativo.
Sobre o assunto, em sua monumental História da gramática, Borges
Neto (2018, p. 5) assevera que, “em muitos casos, a gramática escolar é “a
única teoria linguística a que os estudantes (mesmo os de Letras) têm acesso”.
Talvez seja também por essa vocação pedagógica de partida, de certo modo
exclusiva, consubstanciada em manuais de gramática e livros didáticos, que
a GT permanece firme em muitos contextos de ensino de língua portuguesa
no Brasil, independentemente das incoerências devidamente demonstradas
a respeito de seu arcabouço categorial e conceitual, bem como dos questio-
namentos sobre sua relevância aos objetivos da disciplina língua portuguesa
oficialmente apresentados, em nível nacional, pelo menos, desde a segunda
metade da década de 1990. De acordo com os Parâmetros Curriculares Na-
cionais (cf. BRASIL, 1998, 1999), por exemplo, as aulas de português devem,
em síntese, desenvolver a capacidade do estudante de utilizar a linguagem,
com consciência e criticidade, em práticas sociodiscursivas de leitura, escrita
e oralidade diversificadas. Diante disso, é incrível ainda haver espaço para
as diretrizes epistemológicas da GT nesse novo cenário pedagógico, aberto à
variação, à mudança, aos usos, ao texto e ao discurso.
Como dizíamos, as críticas contundentes ao ensino de língua portugue-
sa centrado na GT coincidem com a formação e atuação de alguns dos pri-
meiros linguistas brasileiros. Ao final dos anos 1970, ou seja, após aproxima-
damente duas décadas de trabalho desses linguistas pioneiros, a Linguística
brasileira já contava com um novo corpo profissional, distinto dos gramáticos
tradicionais, filólogos e dialetólogos e distribuído em grupos de especialidade
diversificados na escolha de teorias linguísticas, métodos e objetos de análise
(ALTMAN, 2004). Por essa época, o conhecimento linguístico estrangeiro
que havia sido e continuava sendo recebido por aqui já circulava entre nós
com relativa diversidade e intensidade, ainda que abafasse possíveis tentativas
de um pensamento científico original.
Essa relação de dependência com espaços estrangeiros de influência
não parece ter sido diferente do que aconteceu em momentos anteriores

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


209
da história do desenvolvimento do pensamento intelectual e científico so-
bre linguagem no Brasil. Conforme aponta Batista (2013), o diálogo com
o exterior é peça-chave para a compreensão do panorama dos estudos lin-
guísticos brasileiros desde o século 19. Todavia, a recepção do “estrangeiro”
pode também ser compreendida a partir de um conceito mais amplo de
ciência e produção de saberes, segundo o qual haverá produção científica
e intelectual sempre que houver recepção, aplicação e transformação de
aspectos das ideias recebidas.
Em outras palavras, a história dos estudos linguísticos no Brasil pode
ser contada visando à construção de uma hermenêutica capaz de ultrapassar
a simples relação de equivalência entre, de um lado, a recepção brasileira às
teorias linguísticas europeias e norte-americanas e, de outro lado, a imitação
acrítica e a aplicação dessas teorias aos nossos fatos e problemas envolvendo
linguagem e línguas.
A partir dessa perspectiva, portanto, podemos dizer que as décadas de
1970, 1980 e 1990 testemunharam a emergência, o desenvolvimento e a con-
solidação de uma reflexão epistemológica original sobre o ensino de língua
portuguesa no Brasil, a partir do crescimento de incursões brasileiras em
certas áreas da Linguística, hoje já solidificadas e legitimadas no cenário de
pesquisa nacional. Tais áreas permitiram que os empreendimentos forma-
listas fossem questionados — em particular os programas estruturalistas e
gerativistas, até então praticamente hegemônicos por aqui — e que a GT
continuasse a ser combatida no âmbito pedagógico. Entre essas áreas, pode-
mos destacar, em diferentes fases e tipos de abordagem, a linguística textual,
a análise do discurso, o funcionalismo e a sociolinguística.
A despeito de seus diferentes princípios teóricos, objetos e agendas de
pesquisa, esses domínios não formalistas de investigação propiciaram e vêm
propiciando, até a atualidade, deslocamentos nas reflexões sobre a língua e,
consequentemente, sobre seu ensino. Isto é, apesar de essas áreas não es-
tarem preocupadas, a princípio, com questões pedagógicas, o modo como
elas compreendem seus objetos linguísticos contribui com a reflexão sobre
ensino de língua portuguesa. Em linhas gerais, as diretrizes pedagógicas que
elas defendem — com diferentes matizes de engajamentos, mas com certa
consensualidade — giram em torno:
(a) da reflexão sobre a variabilidade constitutiva da língua e o consequente
abandono das noções estanques de “certo” e “errado”;

210 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


(b) de propostas de trabalho com produção textual a partir da concepção
de texto como produto da interação entre interlocutores que, em nego-
ciação contínua, constroem sentidos colaborativamente;
(c) da compreensão da constituição sócio-histórica e ideológica das mani-
festações de linguagem e sua aplicação nas práticas de leitura e produ-
ção textual;
(d) da crítica ao ensino dos conhecimentos linguísticos como foco exausti-
vo na metalinguagem técnica e na prescrição de uma norma-padrão.
Esses quatro pontos balizam as reflexões sobre o ensino de língua que
derivam daquilo que Gueiros (2019) denomina de “tradição sociodiscursiva”
(TSD), domínio epistemológico que, em oposição aos empreendimentos for-
malistas, compreende a língua como um fenômeno social e discursivo consti-
tuído em eventos de interlocução. O conceito de tradição atrelado à TSD se
apoia, numa primeira instância, em Laudan (1978), para quem toda tradição
de pesquisa emerge do intercâmbio promovido entre diferentes campos cujos
objetivos investigativos e metodologias aplicadas conversam entre si. Todavia,
não compreendemos a TSD como um simples conjunto de campos da Lin-
guística, mas, essencialmente, como um domínio consolidado e legitimado
ao longo do tempo. Por esse motivo, entendemos que as diretrizes da TSD e
seus vários corolários pedagógicos constituem, hoje, pré-concebidos já enrai-
zados na reflexão acadêmica sobre o ensino de língua portuguesa no Brasil.
Partindo dessas considerações, o presente capítulo objetiva desenvolver
e sistematizar algumas ideias para a compreensão:
(i) da reflexão derivada da TSD sobre o ensino de língua portuguesa no
Brasil entre as décadas de 1970 e 1990;
(ii) das diretrizes epistemológicas da GT às quais tal reflexão se opõe.
Nosso percurso analítico vai do item (ii) ao (i) e é realizado à luz da His-
toriografia da Linguística, disciplina que visa fornecer narrativas descritivas
e explicativas cientificamente fundamentadas sobre como o conhecimento
linguístico é adquirido, e qual tem sido o curso do desenvolvimento desse co-
nhecimento linguístico em um determinado contexto social e cultural através
do tempo (SWIGGERS, 2009).
Elaborada no âmbito do grupo de pesquisa HGEL — Historiografia,
Gramática e Ensino de Línguas (UFPB/PROLING)1, a narrativa dialoga com

Universidade Federal da Paraíba. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Espelho do grupo de


1 1

pesquisa no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (Plataforma Lattes/CNPq): http://dgp.cnpq.br/


dgp/espelhogrupo/6433198070413694.

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


211
considerações recentes sobre o percurso histórico da GT e seus impactos
educativos na contemporaneidade. Ressalte-se aqui a importância do linguis-
ta ou professor de português compreender processos históricos envolvendo a
língua e seu ensino. Nesse sentido, o tratamento historiográfico do passado
do ensino de língua no Brasil ajuda a arrefecer a costumeira ingenuidade que
habita os linguistas e professores que prescindem da dimensão histórica do
seu ofício ou área disciplinar.

1. Diretrizes epistemológicas da gramática tradicional


A expressão “gramática tradicional” é recorrente nos textos falados e escritos
de professores de língua portuguesa, de linguistas (em atuação ou formação),
de estudantes de Letras e de outros especialistas e estudantes que, em algum
nível de analiticidade, lidam com a linguagem verbal em suas práticas pro-
fissionais e acadêmicas.
Em geral, não temos dificuldade em compreender o emprego dessa ex-
pressão em enunciados produzidos nos mais diferentes contextos. Vejamos
alguns exemplos hipotéticos, porém inegavelmente possíveis de serem ou-
vidos ou lidos por aí: (a) uma aluna de Letras pergunta ao seu professor
qual gramática tradicional ele sugere que ela compre; (b) uma professora de
português afirma não trabalhar gramática tradicional, mas prática de análise
linguística em suas aulas; (c) um linguista escreve que a gramática tradicional
fundamenta-se na perspectiva doutrinária de se olhar a língua ao longo da
história; (d) um mestrando em Linguística sistematiza num seminário três
tipos de gramática — a gramática tradicional ou prescritiva, a descritiva e a
internalizada; (e) e uma advogada se interessa por um anúncio de um curso
a distância em gramática tradicional.
Se esses exemplos nos mostram que o termo “gramática tradicional” é
relativamente fácil de ser usado e compreendido, também é verdade que eles
atestam a polissemia da expressão, capaz de significar, entre outras possibili-
dades: (a) um livro; (b) um conteúdo ou uma metodologia de ensino; (c) uma
doutrina; (d) um dos tipos de gramática; (e) uma disciplina ou uma área de
conhecimento. Seu alcance referencial é, portanto, amplo, difuso e impreciso,
embora os sentidos deflagrados pelo termo não se contradigam. Inclusive, na
tentativa de sistematizarmo-los, voltemos aqui a dizer que eles orbitam entre
duas dimensões ou eixos principais: o da prescrição das regras e o da análise
metalinguística. Discorramos um tanto sobre ambos.

212 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


O primeiro eixo da GT — o da prescrição das regras — é o que a faz,
entre especialistas e não especialistas, ser reconhecida também pelos nomes
gramática normativa, gramática prescritiva ou o tão usado quanto redundante
gramática prescritivo-normativa. Trata-se do campo da escrita e da fala pa-
drão, ou seja, do domínio da ortografia e das regras de acentuação gráfica, da
ortoépia e da prosódia elegante, das flexões nominais e verbais, dos paradig-
mas pronominais, da concordância, regência e colocação consideradas cor-
retas, das estruturas relativas padronizadas, do uso do acento indicativo de
crase, das convenções de pontuação e de outras regras e convenções próprias
da escrita normatizada e da fala supostamente de prestígio, as quais envolvem
fonética/fonologia, morfologia e sintaxe. Esse eixo idealiza um padrão gra-
matical homogêneo e estável, mas distante dos usos linguísticos (em especial
da fala) da grande maioria das pessoas, inclusive daquelas de cultura letrada,
sobretudo porque costuma tomar como autores modelares os literatos luso-
-brasileiros do século 19 para trás.
O segundo eixo — o da análise metalinguística — equivale ao domínio
das técnicas de descrição das estruturas fonético-fonológicas, morfológicas e
sintáticas da língua, que pressupõe um aparato categorial e conceitual pró-
prio, ou seja, uma terminologia gramatical determinada. No Brasil, tal termi-
nologia tem nome e sigla: Nomenclatura Gramatical Brasileira, NGB, docu-
mento de apenas seis páginas, expedido por meio da Portaria Ministerial no
36, de 28 de janeiro de 1959, cuja adoção nos estabelecimentos de ensino e
nas atividades avaliativas nacionais fora apenas recomendada. Porém, apesar
de não obrigatória, a NGB acabou sendo, a partir de então, a única baliza
terminológica das gramáticas tradicionais e da cultura gramatical da escola
brasileira, centrada, grosso modo, na decomposição do período em orações e
na identificação e classificação de seus termos essenciais, integrantes e aces-
sórios, bem como na etiquetagem das classes de palavras e das subclasses e
outras categorias que delas derivam.
Assim, a GT, entidade ao mesmo tempo reguladora, analítica e pedagó-
gica, pode ser compreendida — e já dissemos isso anteriormente — como
uma teoria linguística. Essa teoria se constituiu a partir da reflexão sobre a
linguagem elaborada pelos filósofos gregos e adaptada, com propósitos filo-
lógicos, normativos e pedagógicos, durante séculos, por gramáticos ociden-
tais da Antiguidade (gregos e latinos), medievais e renascentistas, moder-
nos e contemporâneos, os quais vieram configurando uma rede categorial e

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


213
conceitual apropriada à descrição estrutural e regulação normativa das suas
respectivas línguas escritas. A GT tornou-se, assim, a grande baliza epistemo-
lógica do que tradicionalmente vem se entendendo por gramática por todos
esses povos e em todos esses tempos. Não obstante sua posição dogmática,
existe nela um sólido componente teórico capaz de atravessar mais de dois
milênios, resistir a severas críticas e adentrar outros espaços teóricos, como
os da própria Linguística, cujas teorias costumam naturalizar os “objetos teó-
ricos” da tradição gramatical e transformá-los em “objetos observacionais”
(cf. BORGES Neto, 2013). Isto é, na elaboração de seus modelos e hipóteses,
linguistas tendem a observar os fenômenos linguísticos filtrados pelas cate-
gorias e noções teóricas instituídas ao longo da história da GT. Nas palavras
de Borges Neto (2018, p. 68),

[...] mais do que uma terminologia, o que os gregos criaram foi uma teoria
para o estudo da língua grega: o reconhecimento de um conjunto de entidades
teóricas (palavras, orações, relações de concordância e dependência etc.) e de
uma grade classificatória para elas que, nomeadas, vão resultar numa termi-
nologia. Ou seja, mais do que cunhar termos como nome ou verbo (ōnoma
e rhēma, respectivamente), o que os gregos fizeram foi identificar “elementos
linguísticos” que, por suas propriedades morfológicas e sintáticas, podiam ser
reunidos e chamados de nomes ou de verbos na língua grega. [...] E, da mesma
forma, os séculos posteriores não ficaram apenas reaplicando a “terminologia”
grega aos dados de outras línguas — particularmente o latim — mas inter-
pretando os dados de suas línguas à luz da teoria da linguagem criada pelos
gregos, usando suas noções e traduzindo os nomes dados a elas.

Mais uma vez, podemos nos perguntar por que essa teoria das línguas se
mantém firme nos espaços pedagógicos, a despeito das críticas a tal tradição
e a emergência, desenvolvimento e consolidação de uma outra tradição, a
sociodiscursiva (TSD). Essas críticas, em geral bastante razoadas e pertinen-
tes, atacam duramente o que podemos chamar de diretrizes epistemológicas
da gramática tradicional.
Compreender a constituição histórica de tais diretrizes não só elucida
os componentes que fazem de um instrumento linguístico de qualquer época
uma “gramática tradicional”, mas também ajuda no delineamento de novas
propostas para o ensino de língua portuguesa no Brasil. Vejamos cada uma
dessas diretrizes separadamente, nas cinco subseções a seguir.

214 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


2. Padrão idealizado e ensinado
Já dissemos que a grande diferença entre a GT e outras teorias linguísticas
que se prestam a descrever e explicar a estrutura e o funcionamento dos
componentes fonético-fonológicos, morfológicos e sintáticos das línguas hu-
manas reside provavelmente na finalidade pedagógica para a qual se configura
aquela teoria, diferentemente das demais. Isso acontece desde o seu nasci-
mento, na Alexandria do período helenístico.
É denominada de período helenístico a história da Grécia e de parte do
Oriente Médio compreendida entre a morte de Alexandre Magno (Alexandre,
o Grande), rei da Macedônia, em 323 a.C., e a anexação da península e das
ilhas gregas por Roma, em 146 a.C. Esse período costuma ser caracterizado
pela difusão da civilização grega numa vasta área que se estendia do norte da
África até as costas da Índia. De modo geral, o helenismo foi a concretização
de um ideal de Alexandre: o de levar e difundir a língua e cultura gregas aos
territórios que conquistava.
Sob as bases intelectuais dessa sociedade, a teoria gramatical greco-la-
tina foi elaborada pelos gramáticos alexandrinos, a partir do século 3 a.C.,
para dar conta de seus propósitos filológicos de reconstrução dos textos dos
autores gregos clássicos, como os poetas Homero e Hesíodo, cujos escritos
datam, aproximadamente, do século 8 ao 6 a.C. Assim, as primeiras gramáti-
cas do grego (as tékhnai grammatikai) funcionavam tanto como instrumento
de reconstrução, gramatização, padronização e preservação do grego clássico
(o grego “homérico”) quanto como manuais de gramática para o entendi-
mentos desses textos literários.
Com tal propósito filológico e pedagógico, foi elaborada uma série de
obras dessa envergadura, pautadas no lastro teórico-analítico dos estudos
linguísticos desenvolvidos pelos filósofos gregos dos séculos 6 a 3 a.C., den-
tre os quais se destacam Platão, Aristóteles e os filósofos estoicos. Desses
“manuais”, o mais famoso é a Tékhnē Grammatikē, do filólogo alexandrino
Dionísio Trácio (170-90 a.C.), conhecida como a primeira gramática de uma
língua ocidental.
A Tékhnē de Dionísio preocupa-se com a descrição do que havia de
sistemático na língua considerada exemplar, isto é, o grego literário clássico.
A apresentação de listas de palavras, conjugações, declinações, terminações
típicas, entre outros paradigmas desenvolvidos através de princípios analógi-
cos, ao passo que expele as formas gramaticais desiguais testemunhadas pelas

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


215
versões diferentes de um mesmo texto antigo, constrói e ensina um padrão
linguístico idealizado, cristalizando um modelo de gramática cuja finalidade
é primordialmente normativa e pedagógica.
Tal modelo, que entende gramática como “conhecimento empírico do
comumente dito nas obras dos poetas e prosadores”2, foi apropriado pelos
gramáticos latinos até a Idade Média, bem como pelos primeiros gramáticos
renascentistas, responsáveis pela gramatização das línguas nacionais euro-
peias, como o português.
A primeira gramática dessa língua — a Gramatica da lingoagem portu-
guesa, datada de 1536 e escrita por Fernão de Oliveira (1507-1581) — afirma,
em seu quarto capítulo, que “as línguas grega e latina primeiro foram grossei-
ras e os homens as puseram na perfeição que agora têm” (p. 12)3. Também é
registrado nessa obra que “gramática é arte que ensina a bem ler e falar” (p.
13). Nota-se que, não obstante o gesto inaugural de descrição dos usos do
português culto do século 16 — o que também configura registros de costu-
mes linguísticos, não só de imposição de regras (cf. COSERIU, 1991; MOURA
NEVES, 2009) —, a diretriz que orienta o instrumento linguístico de Oliveira
é a cultura gramatical greco-latina de caráter pedagógico e normativo.
Não fica atrás João de Barros (1496-1570) e sua Grammatica da lingua
portuguesa (1540), de teor ainda mais prescritivo e didático que a obra de
Oliveira. Fiel depositária da cultura gramatical greco-latina, essa gramática
— entre outras à época — funcionou por tempos como uma espécie de “ma-
nual de salão” destinado a tutorias privadas de ensino (cf. FARACO, 2016).
Objetivava ensinar a gramática do português para facilitar às crianças das
casas senhoriais o futuro aprendizado do latim. A definição de gramática no
instrumento evoca “um modo certo e justo de falar e escrever, colheito do
uso e autoridade dos barões doutos” (BARROS, 1540, p. 2). A gramatização
desses usos pautava-se na tentativa de conformidade do português com o
latim, nessa relação idealizada entre as duas línguas como ponto de referência
e garantia de antiguidade e vernaculidade da língua portuguesa.
As gramáticas tradicionais de língua portuguesa posteriores, incluindo
aquelas que começavam a ser produzidas no Brasil a partir do início do sécu-
lo 19 até os dias de hoje, também se revelam orientadas por essa tal diretriz,
que se concretiza no domínio tanto da retórica quanto da análise gramatical
2
In: Dionísio (século 1 a.C., p. 21), citado a partir da tradução de Chapanski (2003, p. 21-36).
3
Oliveira (1536) é aqui citado por uma edição de 1871 (ver Referências).

216 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


propriamente dita. O ensino do padrão idealizado também não passa ausente
das definições de gramática, gramática normativa ou gramática portuguesa
que aparecem em vários desses instrumentos ao longo da história: “arte que
ensina a fazer sem erros a oração portuguesa” (REIS LOBATO, 1770, p. 1);
“arte que ensina a declarar bem os nossos pensamentos, por meio de pala-
vras” (MORAES SILVA, 1806, p. 9); “arte de falar e escrever corretamente a
própria língua” (SOARES BARBOSA, 1822, p. 1); “disciplina que ensina a
falar e escrever corretamente a língua portuguesa” (FREIRE DE MACEDO,
1862, p. 1); “disciplina que ensina a falar e escrever com clareza e harmo-
nia” (CALDAS AULETE, 1864, p. 7); “arte que ensina a falar, ler e escrever
corretamente a língua portuguesa” (FREI CANECA, 1876, p. 23); “arte que
ensina a falar, ler e escrever sem erros a Língua Portuguesa” (Padre Antonio
da COSTA DUARTE, 1877, p. 37); “arte que nos ensina as regras adaptadas
à perfeição da dicção de qualquer língua, quer escrita, quer falada” (Padre
MASSA, 1888, p. 5); “disciplina ou arte de ler, falar e escrever corretamente a
língua portuguesa” (CARNEIRO RIBEIRO, 1890, p. 4); “exposição metódica
das regras relativas ao uso correto da língua portuguesa” (PEREIRA, 1907,
p. 3); “conjunto de todas as normas [de uma língua] para seu perfeito uso”
(MENDES DE ALMEIDA, 1944, p. 19); “arte de exprimir o pensamento por
meio da palavra falada ou escrita, e segundo as regras deduzidas da prática
legítima ou autorizada” (CÂNDIDO DE FIGUEIRÊDO, 1948, p. 3); “[arte
ou ciência que] registra os fatos da língua geral ou padrão, estabelecendo os
preceitos de como se fala e escreve bem ou de como se pode falar e escrever
bem uma língua” (BECHARA, 1968, p. 25); “meio posto a nosso alcance
para disciplinar a linguagem e atingir a forma ideal da expressão oral e escri-
ta” (CEGALLA, 1998, p. 14); “disciplina [que elenca] os fatos recomendados
como modelares da exemplaridade idiomática [e] recomenda como se deve
falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos
gramáticos e dicionaristas esclarecidos” (BECHARA, 1999, p. 37).
A lista de definições acima não é exaustiva, mas ilustra suficientemente
a diretriz do padrão idealizado e ensinado em algumas das mais representa-
tivas obras da tradição gramatical luso-brasileira. Seja como arte, disciplina,
exposição, meio ou outro termo qualquer, a orientação normativa e pedagó-
gica desses instrumentos ajudaram a constituir historicamente a disciplina
língua portuguesa no Brasil, cujo objetivo precípuo, até as últimas décadas
do século 20, era o ensino da metalinguagem gramatical (por exemplo: ên-

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


217
clise, verbo, pronome pessoal, oblíquo e átono, complemento, oração etc.) e das
prescrições (deve-se dizer...) e proscrições (não se deve dizer...) elaboradas a
partir dessa metalinguagem:

Ênclise pronominal
Colocação dos pronomes depois do verbo.
Regra geral — Na língua portuguesa coloca-se o pronome pessoal, oblíquo,
átono, depois do verbo de que é complemento. [...]
Consequências da regra geral:
1) Não se começa oração ou frase com pronome oblíquo [...] (BUENO, 1951, p.
423-424 — Itálicos são nossos).

Em suma, a GT, enquanto teoria das línguas, busca construir e ensinar


um padrão linguístico idealizado a partir da prescrição de supostas formas
corretas legítimas. Eis a primeira diretriz caracterizadora dos instrumentos
linguísticos e do ensino de língua sob o crivo dessa tradição.

3. Língua homogênea e estática


A elaboração e o ensino do padrão linguístico ideal promove, consequen-
temente, uma visão de língua invariável e imutável. Na perspectiva da GT,
deve-se combater o “caos” da diversidade linguística e a “deterioração” das
formas e construções consideradas corretas, puras e perfeitas.
No Brasil, a meta maior do ensino de língua portuguesa veio sendo, até as
últimas décadas do século 20, o pretenso domínio dessas formas e construções
gramaticalmente corretas. De um modo geral, elas foram gramatizadas, entre
os séculos 16 e 19, em Portugal. Apenas no final do século 19 é que as gramá-
ticas de língua portuguesa produzidas em solo nacional para estudantes bra-
sileiros também passaram a contribuir nesse empreendimento padronizador.
São títulos brasileiros representativos da gramaticografia da época, por
exemplo, os instrumentos linguísticos de Júlio Ribeiro (1881), João Ribeiro
(1887), Alfredo Gomes (1887), Silva Júnior e Lameira de Andrade (1887),
Padre Massa (1888), Ernesto Carneiro Ribeiro (1890) e Maximino Maciel
(1894). Entretanto, a despeito de suas filiações, orientações ou modelos teó-
ricos próprios (racionalista ou empirista), essas gramáticas, em linhas gerais,
permanecem sujeitas aos mesmos direcionamentos prescritivos da GT, os

218 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


quais interditam variedades e ignoram mudanças linguísticas. Embora haja
nessas obras passagens em que se apresentam testemunhos da identidade
linguística dos brasileiros4, tais instrumentos costumam ser essencialmente
marcados pelo “conservadorismo linguístico”, quer por restringirem muitas
das particularidades gramaticais dos brasileiros à fala e à coloquialidade, quer
por ressaltarem a unidade entre o português do Brasil e o de Portugal, pondo
os traços brasileiros como exceção à regra (cf. COELHO, 2012; COELHO,
DANNA; POLACHINI, 2014), ou mesmo como erros.
Dito de outro modo, as gramáticas brasileiras, a partir das últimas dé-
cadas do século 19, passaram a tecer considerações esporádicas sobre a pro-
núncia, o léxico, a morfologia e a sintaxe do português falado no Brasil, mas
as menções, não raramente, avaliavam de modo negativo esse português,
restringindo as características gramaticais daqui ao campo dos vícios, pro-
vincianismos, solecismos, brasileirismos. Vejam-se, por exemplo, esses trechos
das gramáticas do mineiro Júlio Ribeiro (1845-1890) e do sergipano João
Ribeiro (1860-1934), ambas intituladas Grammatica Portugueza, publicadas,
respectivamente, em 1881 e 1887: “E’ erro vulgar no Brazil usar-se em casos
taes da relação subjectiva; diz-se, por exemplo, << Vi elle caminhar ás pressas
— Deixa elle ir >>.” (RIBEIRO, 1881, p. 228); “Os pronomes substantivos em
relação adverbial nunca podem servir de sujeitos, nem mesmo nas phrases
infinitivas que vêm depois de uma preposição [...], ex.: << Esta laranja é para
eu comer >>. No Brazil pecca-se contra este preceito dizendo-se << Para
mim comer, etc. >>.” (RIBEIRO, 1881, p. 228); “Por em relação subjectiva
o pronome substantivo que serve de objeto a um verbo é erro comezinho
no Brasil, até mesmo entre os doutos: ouvem-se a cada passo as locuções
incorretas << Eu vi elle — Espere eu >>.” (RIBEIRO, 1881, p. 230); “A ex-
pressão O que é a vida? com anteposição do pronome o, é provavelmente
um brasileirismo. O uso clássico não admitte anteposição do o.” (RIBEIRO,
1887, p. 169); “Nunca se começa phrase ou período com o pronome oblíquo.
<<Me dê>>, <<me faça>>, etc., são brasileirismos que devem ser evitados”
(RIBEIRO, 1887, p. 231).5

4
Eis dois excertos: “Cumpre notar que, principalmente no Brazil, vai-se estabelecendo o uso de construir
as sentenças interrogativas em ordem direta, deixando-se o seu sentido de pergunta a cargo somente da
inflexão da voz, ex.: << Tu queres vir almoçar comigo? >>.” (RIBEIRO, 1881, p. 221); “Em algumas provin-
cias do Brazil, como Bahia, Minas, não duplica-se, ex.: << Não posso, não. Não dou, não >>” (RIBEIRO,
1881, p. 260).
5
Na verdade, registros que desabonam o português do Brasil já se encontram em gramáticas ainda mais
antigas, como a Epitome da grammatica da lingua portugueza, publicada em 1806, em Lisboa, mas es-

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


219
No século 20, inclusive em instrumentos normativos que ainda circulam
no Brasil do século 21, subsiste essa visão de que a língua dos brasileiros
é menor do que a língua dos portugueses, esta última a verdadeira língua
portuguesa, homogeneizada no passado do povo lusitano como a língua da
alta cultura e do verdadeiro patriotismo. Por exemplo, a Gramática metódica
da língua portuguesa, publicada em 1944, pelo gramático paulista Napoleão
Mendes de Almeida (1911-1998), ainda segue na sua 46a edição, datada de
2010, cuidando para que o professor não caia na “língua brasileira, refúgio
nefasto e confissão nojenta de ignorância do idioma pátrio” (p. 7). Isso por-
que, no Brasil, “até mesmo entre os doutos”, segundo a obra, comete-se o
erro, entre outros, de “dar para o objeto direto o pronome do caso reto (caso
nominativo, caso do sujeito), ouvindo-se a cada passo solecismos como [...]
Só vejo ele de tarde — Olhe ele ali” (p. 172).
A bem da verdade, faz parte da cultura gramatical greco-latina, da qual
somos herdeiros, a submissão aos padrões linguísticos de momentos preté-
ritos da língua. Afinal, as normas grega e latina padronizadas foram, respec-
tivamente, o grego e o latim clássicos, codificados na literatura de épocas e
regiões distintas das dos autores das gramáticas gregas e latinas. Já na grama-
tização das línguas europeias modernas, como o português, tal submissão se
estende a regularidades do próprio latim clássico. Alguns dos instrumentos
normativos mais representativos da gramaticografia portuguesa entre os sé-
culos 16 e 18 anunciam retoricamente essa filiação latina tanto no quesito
análise metalinguística — “usando dos termos da Grãmatica latina cuios fi-
lhos nós somos, por nam degenerar della” (BARROS, 1540, p. 2) — quanto
no trato prescritivo — “a mayor parte das regras, que contèm, guardaõ ou
total, ou parcial harmonia com as Latinas, e as demais, em que a Gramma-
tica Portugueza discorda inteyramente da Latina, as reputa como Idiotismo”
(CONTADOR DE ARGOTE, 1725, n.p). Seguem dois casos ilustrativos.
O primeiro abarca uma das mais importantes mudanças sintáticas ocor-
ridas na transformação do latim ao português: a perda dos casos e das de-
clinações dos nomes em geral. Atualmente, diz-se que os nomes portugueses
não têm casos, com exceção dos pronomes, que podem ser retos (quando
sujeitos) e oblíquos (quando objetos). Já no latim, o que determina se um

crita pelo brasileiro Antonio de Moraes Silva (1755-1824) e terminada no Engenho novo da Moribeca,
em Pernambuco. Veja-se a seguinte proscrição, em nota de rodapé: “Eu lhe amo, lhe adoro: são erros das
Colonias [...]” (MORAES SILVA, 1806, p. 92).

220 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


nome qualquer é, por exemplo, sujeito ou objeto de uma oração é justamente
a flexão que esse nome carrega decorrente da declinação a que pertence (1a,
2a, 3a, 4a ou 5a declinação).
Exemplificando, uma palavra latina como regina (em português, ra-
inha), por pertencer à 1a declinação, recebe uma flexão que vai variar de
acordo com seu número (singular ou plural) e caso (nominativo, geni-
tivo, dativo, acusativo, vocativo ou ablativo) empregado na oração. Por
exemplo, se regina estiver no plural e na função sintática de sujeito (caso
nominativo), ela passará à forma reginae; se a função da mesma palavra
no plural for de objeto direto (caso acusativo), a forma requerida passará
a ser reginās; se o caso acusativo permanecer, mas a palavra for emprega-
da no singular, será reginam a forma padrão; e assim sucessivamente, até
serem completadas as doze possibilidades combinatórias, envolvendo os
dois números e os seis casos6.
Esse modelo paradigmático de apresentar os casos e as declinações
dos nomes na gramática latina é replicado por João de Barros, com bas-
tante engenho, em sua Grammatica da lingua portuguesa. Fiel depositária
da terminologia latina, essa gramática seiscentista, no capítulo “Dos ca-
sos do nome”, justifica o espelhamento descritivo na língua de Donato e
Prisciano afirmando que, “por sermos filhos da lingua latina, temos tanta
conformidáde com ella, que convẽ usármos dos seus termos” (BARROS,
1540, p. 11). Em seguida, apresenta os seis casos latinos como casos por-
tugueses, bem como o paradigma da primeira declinação, referente aos
nomes portugueses terminados em a, e, i, o e u; e o da segunda declina-
ção, a que pertencem os nomes terminados em l, m, r, s, e z. Por exemplo,
rainha, palavra da primeira declinação portuguesa, declina-se em Barros
(1540, p. 13) de acordo com os mesmos seis casos latinos (ainda que não
haja flexões no português que marquem o caso, mas construções sintáti-
cas): nominativo (a rainha, as rainhas), genitivo (da rainha, das rainhas),
dativo (á rainha, ás rainhas), acusativo (a rainha, as rainhas), vocativo (ó
rainha, ó rainhas), ablativo (da rainha, das rainhas). O mesmo aconte-
ce com cardeál, palavra da segunda declinação: nominativo (o cardeál, os
cardeáes), genitivo (do cardeál, dos cardeáes) etc. O gramático, portanto,
vale-se de noções teóricas construídas para o latim (e o grego) e as aplica

6
Casos dos nomes da 1a declinação latina (singular, plural): nominativo (regina, reginae), genitivo (regi-
nae, reginārum), dativo (reginae, reginīs), acusativo (reginam, reginās), vocativo (regina, reginae) e abla-
tivo (reginā, reginīs).

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


221
ao português, não levando em conta as diferenças gramaticais decorrentes
das mudanças por que passou esta língua.
O segundo caso que ilustra essa diretriz da GT é a prescrição da con-
cordância do verbo com seu suposto sujeito nas construções denominadas
pelas gramáticas tradicionais do português de “passivas sintéticas”. Para
esses instrumentos normativos, o verbo de estruturas como Vendem-se
casas deveria obrigatoriamente concordar com o termo “casas”, analisado
como sujeito da oração em sua forma passiva analítica, isto é, Casas são
vendidas. Não há possibilidade, assim, de se atribuir a função de sujeito
ao oblíquo se e de objeto ao nome casas, como bem fazem algumas das
gramáticas contemporâneas de linguistas brasileiros, a exemplo de Bagno
(2012) e Azeredo (2018).
Essa histórica concordância obrigatória entre o verbo e o nome em es-
truturas desse tipo também parece se fundamentar na latinização da língua
buscada pelos primeiros gramáticos portugueses: em latim, o pronome se
não tem caso nominativo, ou seja, não pode haver se em função de sujei-
to, de modo que em português também não deveria existir. Se os falantes
mudam (corrompem) a língua e os gramáticos preservam-na das mudanças
(corrupções), a obediência aos esquemas da gramática latina justificava-se
pelo receio de a língua portuguesa se degenerar, caso muito se afastasse do
latim. Consequentemente, análises acríticas de construções como Vendem-se
casas vieram sendo repetidas e ensinadas secular e dogmaticamente, à som-
bra da tradição, não obstante análises alternativas terem pululado na história
da gramática do português não só agora, através da Linguística, mas também
em momentos anteriores, ainda na tradição filológica, como a que se observa
nas Dificuldades da Língua Portuguesa (1908), do filólogo fluminense Manuel
Said Ali (1861-1953)7.
Em suma, o aprisionamento metalinguístico e prescritivo que atravessa boa
parte da gramaticografia luso-brasileira e deságua no ensino de língua no Brasil
é reflexo dessa segunda diretriz da GT, que tende a conceber as línguas que
gramatiza como entidades homogêneas e a ignorar as mudanças linguísticas.

7
Defende Said Ali (1908) que, analisar Compra-se o palácio de um jeito (palácio como sujeito) e Morre-se
de fome de outro (sujeito indeterminado) seria caso de flagrante incongruência, pois, nesses exemplos, o
pronome se sugere a ideia de alguém que compra e de alguém que morre, sendo esse pronome o efetivo
sujeito em ambas as orações, independentemente da transitividade verbal. “O sistema de análise há de
portanto ser um só; não podemos admitir dois pesos e duas medidas”, argumenta Said Ali (1908, p. 119).
Por consequência, a concordância seria desnecessária: “o verbo, quer intransitivo, quer transitivo, tende-
rá a ser usado uniformemente no singular, ainda quando o nome esteja no plural” (Said Ali, 1908, p. 111).

222 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


4. Escrita literária pregressa
Os textos que circulavam no ensino de língua portuguesa no Brasil, desde
fins do século 19 até a década de 70 do século 20, eram essencialmente do
domínio literário. Segundo Soares (2001), eles apareciam em antologias ou se-
letas: impressos escolares, sem quaisquer explicações ou atividades didáticas,
contendo uma seleção de textos ou trechos literários de autores portugueses
e brasileiros representativos do cânone.
Essas coletâneas literárias combinavam fortemente com a pedagogia das
gramáticas de língua portuguesa que circulavam à época nas escolas brasi-
leiras. Tais gramáticas costumavam privilegiar a escrita literária portuguesa
pregressa em detrimento de outras esferas discursivas e nacionais. É repre-
sentativa desse conjunto de gramáticas a Grammatica Expositiva, do mineiro
Eduardo Carlos Pereira (1855-1923). Abonavam suas prescrições “auctori-
dades classicas de reputação incontestada”8, ou seja, escritores portugueses
pertencentes aos três primeiros séculos de gramatização da língua, como Luiz
de Camões (1524-1580), Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622), Francisco
Manuel de Melo (1608-1666), Jacinto Freire de Andrade (1597-1697), Fr. Luiz
de Souza (1555-1632), Pe. Manoel Bernardes (1644-1710), Pe. Antonio Viei-
ra (1608-1697), Pe. Antonio Pereira (1725-1797), Filinto Elysio (1734-1819),
entre outros. Também se fazem presentes na obra os portugueses Alexandre
Herculano (1810-1877) e Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875) — “mes-
tres do moderno classicismo” —, bem como os também portugueses Camilo
Castelo Branco (1825-1890) e Almeida Garret (1799-1854). A presença de
escritores brasileiros é tímida, se resumindo, praticamente, aos novecentistas
Gonçalves Dias (1823-1864) e Odorico Mendes (1799-1864). Dedicada expli-
citamente ao ensino ginasial paulista e publicada pela primeira vez em 1907,
a gramatica de Pereira alcançou popularidade nacional em suas sucessivas
edições (algumas delas póstumas) até a publicação da NGB, em 1959.
Durante esse período, de acordo com Razzini (2000), uma das com-
pilações literárias mais lidas pelos estudantes secundaristas brasileiros era a
Antologia Nacional (1895-1969), de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Adotado
oficialmente em colégios tradicionais do Rio de Janeiro, então capital fede-
ral, esse instrumento pedagógico teve seu consumo disseminado em outras
escolas, chegando a 43 edições em 74 anos de circulação. Privilegiava, como
8
Cf. Pereira (1907, p. II-IV).

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


223
outros instrumentos e práticas, apenas a vertente literária tradicional, sob
obediência lusitana, atendendo, como a gramática de Pereira (1907), ao ca-
ráter eminentemente propedêutico e elitista da escola secundária brasileira
desde suas origens, no início do século 19.
A história do ensino de língua portuguesa no Brasil nos mostra que,
somente após a Lei de Diretrizes e Bases de 1971 — Lei no 5.692/71, de
tendência tecnicista, voltada ao mundo do trabalho e ao combate ao anal-
fabetismo —, a coletânea de textos nas aulas de língua portuguesa começou
a ganhar novas frentes discursivas e extrapolar a esfera literária pregressa.
No entanto, esse novo direcionamento, promovido para adequar o sistema
educacional brasileiro ao modelo de desenvolvimento econômico sustentado
pela ditadura militar desde 1964, não alterou, conforme sugere Bunzen Jr.
(2009), a agenda de leitura desses mesmos textos literários da base do ensino
de português até o início dos anos 1990.
Ainda hoje, as gramáticas tomadas como referência normativa no Brasil
geralmente balizam as regras da língua por meio desses mesmos poetas e
prosadores de séculos anteriores. Atesta muito bem essa diretriz a já citada
Gramática metódica de Mendes de Almeida (2010), com quase oito décadas
de circulação no país e ainda recomendada para classes de ensino médio.
Suas abonações prescritivas fundamentam-se na literatura luso-brasileira até
o século 19, a despeito das recentes edições da obra adentrarem o século 21.
Entre os portugueses, estão presentes parte dos autores clássicos e românticos
que habitam a gramática de Pereira (1907), além dos escritores realistas Eça
de Queirós (1845-1900) e Guerra Junqueiro (1850-1923); entre os brasilei-
ros, além de excertos de Gonçalves Dias, podem ser lidos trechos de José
de Alencar (1829-1877), Machado de Assis (1839-1908) e versos da tríade
parnasiana Raimundo Correia (1860-1911), Alberto de Oliveira (1859-1937)
e Olavo Bilac (1866-1909). Completa a lista de textos “recomendáveis pela
harmonia e concatenação das orações bem como pelo conhecimento de vasto
e erudito vocabulário”9, a prosa histórica de Euclides da Cunha (1866-1909).
Não fica distante dessa chancela literária o que se vê no exemplário
da Moderna gramática portuguesa, do filólogo e gramático pernambucano
Evanildo Bechara (1928-). São bastante recorrentes na 37a edição da obra —
revista e ampliada em relação às edições anteriores — excertos de Camões,

9
Cf. Mendes de Almeida (2010, p. 537).

224 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Alexandre Herculano, além das
máximas do Marquês de Maricá, título de nobreza do brasileiro Mariano
José Pereira da Fonseca (1773-1848). Nota-se que esse exemplário de autores
é quase igual ao que predomina na Grammatica secundaria da lingua portu-
gueza, de M. Said Ali (1923) — de quem Bechara fora discípulo. Nesse ins-
trumento — que atravessou boa parte do século 20 e sobreviveu à publicação
da NGB, atendendo “às necessidades e conveniências do ensino secundário”
(SAID ALI, 1964, p. 14) — Said Ali se pauta majoritariamente em Almeida
Garret, no seiscentista Pe. Antonio Vieira e nos mesmos autores da literatura
portuguesa preferencialmente citados por Bechara.
Em síntese, de modo semelhante ao ocorrido no processo de padroniza-
ção do grego homérico feita pelos alexandrinos antigos, ou na gramatização
do latim realizada por gramáticos como Donato (século 4 d.C.) e Prisciano
(século 6 d.C.) com base em textos de poetas, dramaturgos e historiadores
de outras épocas (a exemplo dos clássicos de Cícero, Virgílio, Horácio, Tito
Lívio, Ovídio e Petrônio), os gramáticos brasileiros de ontem e hoje tam-
bém foram e são direcionados pelo espírito passadista literário da GT. E esse
direcionamento foi capaz de nortear majoritariamente o ensino de língua
portuguesa no Brasil até pouco tempo.

5.“Oração” como unidade máxima de análise


A quarta diretriz epistemológica da GT, desde os anos 1980, vem sendo alvo
de severas críticas provenientes das reflexões sobre ensino de língua no Brasil
pautadas na TSD. Tais críticas problematizam o protagonismo da palavra assép-
tica e da oração descontextualizada nas aulas de português e reivindicam novas
unidades e objetos de análise, como o texto, o discurso, a interação, os contextos,
os gêneros, entre outros elementos relacionados à língua efetivamente em uso.
É necessário, entretanto, diferenciarmos a (i) crítica à insuficiência de
uma teoria linguística para o trato pedagógico da língua da (ii) crítica à in-
consistência dessa teoria na abordagem de seu objeto eleito. Se, consoante o
postulado de Saussure (2006), é o ponto de vista que cria o objeto teórico, po-
de-se dizer que a GT nunca quis — nem poderia ter querido — dar conta do
funcionamento de outros objetos linguísticos e de outras unidades de análise
configurados a partir de pontos de vista teóricos diversos do seu. A unidade
máxima de análise da GT, desde os gregos, sempre fora a oração, cuja aná-

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


225
lise e compreensão se dão por meio de categorias historicamente elaboradas
para dar conta dessa dimensão teórica específica das línguas humanas — a
dimensão da “oração sintaticamente perfeita”. Ou seja, categorias como nome,
verbo, sujeito, predicado, conjunção, preposição, subordinação, coordenação,
transitividade, entre tantas outras, foram configuradas, conceituadas, reela-
boradas pelos gramáticos tradicionais de diferentes tempos e lugares para a
análise da oração — e não para a análise de unidades maiores ou de natureza
e complexidade diferentes.
Talvez a primeira análise da oração esteja nO Sofista, de Platão, diálogo
filosófico do século 5 a.C.10 Esse texto nos fornece uma reflexão sobre o dis-
curso (lógos) e suas partes constitutivas primárias: o nome/sujeito (ónoma),
que executa uma ação, e o verbo (rhêma), que a exprime. A divisão proposta
consiste, na verdade, em um caminho para a reflexão sobre a qualidade ver-
dadeira ou falsa do lógos e, consequentemente, do pensamento, sua expressão
vocal. Essa ideia é retomada por Aristóteles, no século 4 a.C., em termos de
“proposições predicativas”: a conexão entre o nome e o verbo reflete os fatos
do mundo e nos permite observar como se manifesta a relação entre a lin-
guagem e a realidade ontológica.
As primeiras gramáticas gregas e latinas apareceriam depois, desenvol-
vendo esse modelo das partes do discurso (mere lógou) ou partes da oração
(partis orationis). Em geral, compreendiam a oração como uma espécie de
“composição de palavras em prosa que manifesta um pensamento comple-
to”11. Entretanto, a maioria dessas obras não ofereceu uma reflexão teórica
explícita sobre a estrutura interna da oração (cf. FORTES, 2012), ainda que
tenha reconhecido tal unidade de análise à medida que atentava aos proble-
mas normativos de construção sintática, os chamados “solecismos”.
Essa ausência inicial, segundo uma série de autores — Gonçalves &
Conto (2010), Valenza (2010), Dezotti (2011) e Fortes (2012) —, é suprida
na obra latina Institutiones Grammaticae, do gramático Prisciano de Cesareia
(século 6 d.C.), especialmente nos dois últimos dos seus dezoito livros, dedi-
cados à sintaxe e conhecidos como Priscianus minor. Na sintaxe de Prisciano,
a “oração perfeita”, “arranjo harmonioso dotada de sentido completo”, é o
objeto a ser compreendido em sua organização. As categorias essenciais da

10
In: Platão (1972, p. 195-196).
11
Definição retirada da tradução da Tékhnē Grammatik ē, de Dionísio (século 1 a.C.), realizada em Cha-
panski (2003, p. 26).

226 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


oração perfeita seriam o nome (a substância) e o verbo (o acidente), às quais
todos os fenômenos sintáticos fazem referência. O desenvolvimento da ideia
de completude oracional proporcionado pelas reflexões de Prisciano teria
originado as noções de intransitividade (ação verbal completa em si mesma)
e transitividade (ação verbal que, para se completar, precisa transitar até outro
elemento), noções com as quais a escola brasileira ainda hoje trabalha nas
aulas de gramática, conjugando, não raro sem a clareza devida, aspectos lógi-
co-semânticos, sintáticos e mesmo pragmáticos nos procedimentos de análise
da oração e nas classificações que lhe são caras.
Essa ideia de oração como um artefato dotado de sentido completo
também é retomada na Gramática Geral e Razoada de Port-Royal (1660),
elaborada pelos monges franceses Antoine Arnauld (1612-1694) e Claude
Lancelot (1615-1695). Essa obra parte da compreensão de que existe uma
articulação de base lógica entre a linguagem e o pensamento, sendo este úl-
timo constituído a partir de três operações: a concepção (isolamento de uma
coisa qualquer no mundo), o julgamento (afirmação daquilo que uma coisa é
ou não é) e o raciocínio (uso de dois julgamentos para chegar a outro). Nesse
âmbito, a gramática seria um conjunto de processos universais e mentais, o
que justifica seus epítetos “geral” e “razoada”. A sintaxe estaria fundamentada
justamente na análise da operação de “julgamento” — o campo da oração, da
estrutura proposicional que representa o pensamento.
Em geral, as gramáticas tradicionais do português entre os séculos 18
e 19 ancoraram suas abordagens da sintaxe da oração nesse direcionamento
teórico e descritivo-explicativo dos franceses de Port-Royal e de outros au-
tores que desenvolveram, à época, saberes renovados sobre a linguagem de
um modo geral. Uma das gramáticas que mais repercutiu nesse período foi a
Grammatica philosophica da lingua portugueza, do também português Jeróni-
mo Soares Barbosa (1737-1816), cuja primeira edição é de 1822 e a última, de
1881. Comentadores da gramática de Soares Barbosa (cf. BECCARI; LEAL,
2015; UCHÔA, 2010) costumam apontá-la como a precursora de um sistema
de análise, sobretudo da oração, que seria a base do que ainda hoje é usada
na pedagogia tradicional do ensino de gramática.
Assim, independentemente dos modelos teóricos abraçados pelas gramáti-
cas brasileiras dos períodos racionalista (1801-1880) ou científico (1881-1940)12,

12
Periodização proposta por Cavaliere (2000, 2002).

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


227
apresenta-se em diferentes instrumentos a ideia de oração (chamada também
de proposição e sentença, ou ainda de frase, período e cláusula) como unida-
de formal, sintática, dotada de sentido completo, capaz de expressar um juízo
perfeito. Vejamos alguns exemplos: “Da boa composição das partes da oração
entre si resulta a sentença, ou sentido perfeito, com que nos fazemos enten-
der, falando com palavras” (MORAES SILVA, 1806, p. 82); “Período hé o jun-
tamento de palavras, que formam sentido completo” (BRAZILEIRO, 1812, p.
131); “A oração, proposição ou phrase, hé qualquer juizo do entendimento ex-
pressado por palavras. Forma hum sentido completo [...]” (CONSTANCIO,
1831, p. 204); “Oração é a reunião de palavras convenientemente dispostas
com que exprimimos um pensamento” (VILLEROY, 1870, p. 6); “Proposição,
que também se chama, oração, phrase, sentença é o enunciado do juízo” (SO-
TERO DOS REIS, 1871, p. 169); “Sentença é uma coordenação de palavras ou
mesmo uma só palavra formando sentido perfeito” (Júlio RIBEIRO, 1881, p.
193); “A oração outra coisa não é que a enunciação de um juízo” (CARNEI-
RO RIBEIRO, 1881, p. 370); “Proposição é todo o agrupamento de palavras
formando juizo” (João RIBEIRO, 1889, p. 213); “Chama-se oração ou propo-
sição a combinação de palavras exprimindo um pensamento completo, isto
é, uma declaração formal” (PEREIRA, 1907, p. 2); “Chama-se proposição ou
oração ao enunciado verbal de um juízo” (GOMES, 1913, p. 250).
Tal concepção de oração atravessa firmemente as gramáticas tradicio-
nais do português do século 20. Vejamos, por exemplo, como Bechara, um
dos maiores representantes da GT no mundo lusófono, explica a questão em
sua gramática, que já alcança o século 21:

Entre os tipos de enunciados, há um conhecido pelo nome de oração que,


pela sua estrutura, representa o objeto mais propício à análise gramatical, por
melhor revelar as relações que seus componentes mantêm entre si sem apelar
fundamentalmente para o entorno (situação e outros elementos extralinguís-
ticos) em que se acha inserido. É neste tipo de enunciado chamado oração que
se alicerça, portanto, a gramática [...] (BECHARA, 1999, p. 407)

Em outras palavras, não cabe à oração de sentido completo um entorno


contextual (ou mesmo cotextual). Essa unidade de análise da GT não equiva-
le a uma unidade linguística que constrói sentidos em uma situação concreta
de uso da língua, ou que depende de interlocutores reais, de um tempo e

228 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


espaço definidos, de elementos de contextos sociocognitivos ou sócio-histó-
ricos compartilhados. Trata-se, todavia, de uma unidade fundamentalmente
gramatical, que, na língua portuguesa, de acordo com o modelo teórico atual
da GT, se constitui essencialmente por um sujeito e um verbo, a que se inte-
gram complementos e se acoplam acessoriamente adjuntos.
Assim, uma composição de palavras como João morreu tem sentido per-
feito e se basta à análise oracional da GT. Esse tipo de análise não questiona,
por exemplo, quem é esse tal de João, do que ele morreu, quem o matou ou por
qual razão. Uma oração como João morreu é suficiente à análise da língua que a
GT se presta a promover. O mesmo não se pode dizer de João matou, estrutura
que precisa ser completada por uma outra palavra ou expressão para ter sentido
pleno: João matou os insetos, por exemplo. Se posicionarmos outras palavras ou
expressões a essas orações perfeitas, elas funcionarão apenas como termos ad-
jungidos às suas respectivas orações, acessórios à condição de oração de sentido
perfeito, de modo que João quase morreu ou João matou os insetos com veneno
sejam orações tão perfeitas quanto João morreu e João matou os insetos.
Frise-se, por fim, que toda oração completa é uma proposição que pode
ser submetida a um determinado juízo de valor, conforme já declaravam os
filósofos gregos a respeito do lógos ou os gramáticos racionalistas de Port-Ro-
yal sobre a estrutura proposicional. Simplificando, podem ser avaliadas como
verdadeiras ou falsas as orações João morreu, João quase morreu, João matou
os insetos, João matou os insetos com veneno, mas não João matou. Caso o ob-
jeto de matar puder ser inferido do contexto situacional ou do contexto lin-
guístico, a análise já teria extrapolado a dimensão oracional, unidade máxima
da GT, coerente com seus objetivos, mas incompatível com os propósitos da
TSD na reflexão sobre o ensino de língua na contemporaneidade.

6. Metalinguagem aprisionada à NGB


O aparato categorial e conceitual da GT, utilizado há mais de dois milênios
para a análise das gramáticas das línguas ocidentais, é essencialmente greco-
-latino. É verdade que o largo período de tempo e a diversidade de espaços
em que a GT fora protagonista dos estudos gramaticais promoveram des-
locamentos, acréscimos e esquecimentos nessa terminologia. Entretanto, os
gramáticos das línguas europeias modernas mantiveram relativa estabilidade
na apresentação de seus termos quando comparados à taxonomia de partida.

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


229
Segundo Moura Neves (2011), a terminologia das gramáticas atuais de
língua portuguesa é constituída tanto por termos transliterados diretamente
do grego, trazidos na corrente contínua do pensamento gramatical, quanto
por termos oriundos da tradução latina da gramática grega ou termos de for-
mação grega introduzidos posteriormente. Nesses cenários, houve alteração
de termos e manutenção de conceitos, como também alteração de conceitos
e manutenção de termos.
Serve de exemplo a mudança de escopo da categoria pronome. Dionísio
considerou pronomes apenas os pessoais (pronomes primitivos) e possessivos
(pronomes derivados), na esteira da definição da categoria como “elemento que
substitui o nome”. Cerca de quatro séculos depois, ainda no universo de grama-
tização do grego clássico, Apolônio Díscolo também abarcou na classe dos pro-
nomes os demonstrativos e os relativos, no que foi seguido pelo latino Prisciano
(cf. BASSETTO, 2004). Lentamente, o termo foi sendo usado para rotular todos
os itens linguísticos que apresentavam semelhanças ou relações sintático-semân-
ticas parecidas, ainda que se afastassem um pouco da definição de pronome.
Assim, as gramáticas das diferentes línguas ocidentais, em geral, com-
portam identidade de metalinguagem e homogeneidade conceitual, configu-
rando o que Auroux (1992) denomina de gramática latina estendida, fator
de unificação teórica sem igual na história das ciências da linguagem. Ob-
serve-se, por exemplo, a palavra latina adverbium (ad + verbum: ao lado do
verbo). Trata-se da transliteração do termo grego epírrhema (epi + rhêma: em
torno do verbo), que chega às gramáticas das línguas modernas por meio de
diferentes formas cognatas: adverbio (espanhol, galego), adverbe (francês),
avverbio (italiano), adverbi (catalão), adverb (inglês, alemão) etc.
No Brasil da primeira metade do século 20, pairavam algumas diferen-
ças terminológicas entre as gramáticas de língua portuguesa, embora todas
elas fossem atravessadas pelo aparato taxonômico greco-latino. Entretanto,
a uniformidade promovida pelo advento da NGB de 1959 e imposta pelo
currículo escolar e pelo mercado editorial passou a afetar a liberdade expli-
cativa e interpretativa dos fatos de linguagem analisados pelos gramáticos.
Esse instrumento político e linguístico alteraria a função dos gramáticos bra-
sileiros, limitados agora a preencher, com conceitos e exemplos, o esqueleto
apriorístico da NGB.
Foi assim que a dimensão brasileira da GT desocupou o terreno das
reflexões, do debate e da crítica gramatical, o qual passou a ser habitado pela

230 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


então recente Linguística, firmada no Brasil, como já dito, a partir dos anos
1960. Entretanto, a diversidade teórica dos programas de investigação da Lin-
guística, seus resultados de pesquisa sobre as formas e os usos do português
brasileiro, bem como as críticas que os linguistas fizeram aos procedimentos
analíticos da GT e, consequentemente, a uma série de categorias e conceitos
(cf. HAUY, 1983; BRITTO, 1997) não alcançaram efetivamente as gramáticas
tradicionais do português, a não ser de modo retórico e sem consequências
descritivas muito relevantes. É o caso, por exemplo, de Bechara (1999), que
tenta orquestrar, não obstante o descompasso teórico proporcionado, algu-
mas inovações da Linguística, sem alterar substancialmente o quadro das ca-
tegorias previstas pela NGB, muito menos promover mudanças nas outras
quatro diretrizes epistemológicas comentadas acima13.
Em suma, a GT se baseia num aparato categorial e conceitual milenar,
fundamentado nas gramáticas gregas e latinas e adaptado às particularida-
des das diferentes línguas modernas ocidentais. Sob seu crivo, as gramáticas
de língua portuguesa produzidas no Brasil na segunda metade do século 20
construíram e cristalizaram um domínio metalinguístico próprio, ao se anco-
rarem numa terminologia estanque, limitadora, inconsistente em uma série
de aspectos e, apesar de tudo, ainda presente nos materiais didáticos e nas
aulas dos professores de língua portuguesa.

7. A tradição sociodiscursiva e o ensino de língua portuguesa


A compreensão da língua como atividade social, cultural, histórica, como resul-
tado de um trabalho coletivo em que atravessam vozes, discursos e memórias
configura, hoje, um posicionamento consensual compartilhado por linguistas
vinculados a importantes centros de pesquisa e ensino brasileiros. Esse ponto de
partida sobre a língua fundamenta teoricamente importantes trabalhos, vincu-
lados a diferentes áreas da Linguística, publicados em periódicos de alto impac-
to, bem como atravessa explicitamente inúmeras obras destinadas à formação
inicial e continuada de professores de língua portuguesa. A natureza mutável,
heterogênea, flexível e instável da língua consiste num saber, pode-se dizer, in-
corporado à linguística brasileira contemporânea como um lugar comum, um
pressuposto razoavelmente consensual, uma ideia linguística consolidada.

13
Dentre muitas análises nesse sentido sobre a 37a edição da Moderna Gramática Portuguesa (ou edição
posterior), destaca-se a excelente reflexão presente em Mulinacci (2016).

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


231
Não queremos com isso afirmar que outras abordagens teóricas mais
inclinadas a um empreendimento formalista não advoguem para si espaço
no cenário da linguística brasileira atual. Partimos do pressuposto de que
diferentes tradições coexistem no domínio dos estudos linguísticos brasilei-
ros, propondo diferentes modelos descritivos na busca pela compreensão de
distintos fenômenos de linguagem, os quais são delimitados, antes, por um
ponto de vista particular. A concepção de língua como um fato sociodiscursi-
vo é, por essa esteira, uma entre outras concepções que orbitam em torno das
agendas de trabalhos que em conjunto configuram o que podemos chamar
de Linguística brasileira.
A tradição sociodiscursiva, objeto de interesse desta seção, agrega um
conjunto de abordagens que compartilham entre si a ampla visão de língua
como um objeto social e discursivo cuja compreensão se processa a partir
da relação constitutiva entre estruturas linguísticas (sons, palavras, frases) e
múltiplas questões que residem na exterioridade da linguagem. Assim ope-
ram analiticamente, por exemplo:
(i) a linguística de texto, que estuda o texto falado ou escrito como ativi-
dade de natureza linguística, sociocultural e cognitiva, configurada em
práticas de interlocução;
(ii) a análise do discurso, que investiga o funcionamento dos processos so-
ciais, históricos e ideológicos que se materializam na e pela linguagem;
(iii) a sociolinguística, que discorre sobre a variação linguística a partir do
olhar para a língua em sua relação direta com a estrutura e a organiza-
ção da sociedade;
(iv) o funcionalismo, que estuda a linguagem em práticas sociopragmatica-
mente orientadas.
Os diferentes campos de atuação da Linguística acima destacados, a
despeito das particularidades individuais de seus objetos investigativos, en-
contram lugar de convergência no que diz respeito à compreensão da língua
como um fenômeno sociodiscursivo que se atualiza em eventos de interlocu-
ção. A partir da constatação dessa relação de afinidade, particularmente no
que diz respeito ao tratamento da linguagem para além da sua estrutura, po-
demos observar as abordagens sociodiscursivas como campos de atuação que
se reúnem em torno de um mesmo “programa de investigação” (SWIGGERS,
1981), ou seja, no interior de um mesmo domínio epistemológico com certas
fronteiras demarcadas.

232 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


Para Swiggers (1981), os programas de investigação consistem em domí-
nios definidos por três dimensões, a saber: visão, técnica e incidência, as quais
correspondem, respectivamente, à concepção geral de língua e linguagem ado-
tada pela abordagem teórica, à metodologia mobilizada e à faceta da linguagem
privilegiada na análise linguística. Partindo desse quadro, entendemos que as
abordagens sociodiscursivas dialogam entre si, no interior de um mesmo pro-
grama de investigação, na medida em que se apoiam numa concepção de língua
como atividade social e historicamente situada (visão) e investigam aspectos da
linguagem em funcionamento (incidência) a partir de uma análise descritiva de
fenômenos linguísticos situados em condições de produção específicas (técnica).
Atrelado a outros fatores, esse diálogo estabelecido entre diferentes cam-
pos foi fundamental para que, ao longo do tempo, a agenda de pesquisa so-
ciodiscursiva se consolidasse como uma tradição legitimada e amplamente
difundida dentro e fora das paredes da universidade. No Brasil, particular-
mente, como já adiantamos, os primeiros contornos mais concretos dessa
tradição podem ser observados a partir dos anos de 1970, período em que
começam a circular, ainda que timidamente, em artigos e em obras destina-
das ao público universitário, as primeiras incursões teóricas brasileiras em
torno do texto, do discurso e da variação linguística.
Ao longo do tempo, esses saberes linguísticos foram ganhando maior
espaço nas discussões linguísticas brasileiras através de eventos, obras pro-
positivas, cadernos exclusivos em importantes periódicos, chegando de modo
natural às reflexões de natureza pedagógica. É na efervescência das discus-
sões em torno do caráter social, histórico, interacional, pragmático e discur-
sivo da linguagem humana que emergem as críticas contundentes ao ensino
baseado fundamentalmente nos eixos da GT (prescrição de regras e análise
metalinguística) e, consequentemente, em suas diretrizes epistemológicas.
À medida que eram criticadas as supostas insuficiências pedagógicas
das metodologias de ensino de língua portuguesa vigentes à época, linguis-
tas e educadores brasileiros de importantes instituições acadêmicas (como
Unicamp, USP e UnB), orientados pelos fundamentos da tradição sociodis-
cursiva, apresentaram discussões teóricas e alternativas práticas para os dife-
rentes eixos de ensino de língua portuguesa — leitura, produção de texto e
conhecimentos linguísticos —, na tentativa de finalmente superar a “crise no
ensino educacional brasileiro” pela qual, conforme muitos defendiam, a GT
era em grande medida responsável.

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


233
A seguir, analisamos com mais detalhes como esses conflitos epistemo-
lógicos se desenrolaram no interior da atmosfera intelectual da Linguística
brasileira. Particularmente, como e de que modo a TSD chega à reflexão
sobre o ensino de língua portuguesa no Brasil entre as décadas de 1970 e
1990, enfatizando os deslocamentos efetuados por essa tradição em relação
às diretrizes epistemológicas da GT.
O material historiográfico que nos permite costurar a história aqui con-
tada é composto, majoritariamente, por obras publicadas pelo mercado edi-
torial e destinadas ao público universitário. Para além da limitação de espaço,
efetuamos esse recorte por acreditar na relevância de se compreender como a
discussão sobre ensino de língua portuguesa se desenrolou em instrumentos
aos quais o professor tinha acesso regular e facilitado. Não desconsideramos a
importância das fontes publicadas em periódicos de alto impacto: entendemos
que as discussões empreendidas e divulgadas nesses veículos, direta ou indi-
retamente, ecoam nas obras que constituem nosso material historiográfico.

8. Da emergência à consolidação da TSD na reflexão sobre o ensino


de língua portuguesa no Brasil (1970-1999)
Os efeitos da TSD na discussão sobre o ensino de língua portuguesa no inte-
rior da Linguística brasileira ocorreram de modo gradual e progressivo. Num
primeiro momento, a tímida influência desse domínio justifica a existência de
apenas pontuais e dispersos vestígios de reflexões pedagógicas de natureza so-
ciodiscursiva. Num segundo estágio, sob a liderança de linguistas brasileiros,
diluída em textos de caráter propositivo e em falas públicas, a discussão tomou
maiores proporções, tornando-se pauta frequente em cursos de graduação e
pós-graduação do país. Já num terceiro momento, agora consolidada, legitima-
da e plenamente difundida, a discussão sobre o ensino de língua portuguesa
fundamentada por uma perspectiva sociodiscursiva que anunciava oposição
às diretrizes epistemológicas da GT se tornou lugar comum na pesquisa em
educação linguística brasileira, ainda que os vestígios da GT continuassem re-
verberando em aulas de língua portuguesa e em outras esferas, como na pro-
dução de material preparatório para concursos e vestibulares, na grande mídia
tradicional, nas discussões cotidianas sobre língua etc.
Vê-se que os efeitos da TSD na reflexão sobre o ensino de língua por-
tuguesa no Brasil carregam uma história que pode ser contada, ou melhor,

234 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


do ponto de vista historiográfico, descrita e interpretada. Compreenderemos
essa história a partir do cotejo de três momentos distintos (porém interliga-
dos, formando uma mesma linha temporal), quais sejam: (i) a emergência da
TSD na reflexão sobre ensino de língua portuguesa, (ii) seu desenvolvimen-
to e, por fim, (iii) a consolidação desse domínio na discussão sobre ensino
de língua materna desenvolvida no interior da linguística brasileira. Trata-se
de uma história em que estão envolvidos fatores atrelados à atmosfera inte-
lectual e social das diferentes épocas, os quais determinaram diretamente o
modo como a TSD chegou à discussão sobre a pedagogia de língua portugue-
sa e, orientada por retóricas de ruptura, instalou-se na linguística brasileira
angariando o status de tradição.
Como “as ideias linguísticas não se desenvolvem num vazio, desvin-
culadas de outras ideias que as circundam” (ALTMAN, 2004, p. 23), desta-
caremos algumas questões que configuram o “clima de opinião” (BECKER,
1932) em que se desenrolaram os três momentos da TSD na discussão sobre
o ensino de língua portuguesa — emergência, desenvolvimento e consolida-
ção. Comecemos pela atmosfera social e intelectual da década de 1970 e sua
relação com o conhecimento linguístico que aqui nos interessa compreender.

8.1 Década de 1970: a emergência


Detendo-nos ao contexto interno da Linguística brasileira, podemos afir-
mar que a década de 1970 marca os dez primeiros anos de dois acontecimentos
de suma importância para a profissionalização dos estudos da linguagem no
Brasil (ILARI, 1992). Nesse período, completam dez anos (i) a instituciona-
lização, em 1962, da matéria Linguística como oferta obrigatória nos cursos
de Letras de todo território brasileiro; e (ii) a abertura, em 1966, do primeiro
curso brasileiro de pós-graduação em Linguística, concebido e ofertado pela
Universidade de São Paulo. Soma-se a isso a conclusão da formação, majo-
ritariamente em centros de pesquisas europeus, de linguistas brasileiros que
passaram a atuar profissionalmente em universidades brasileiras.
Os efeitos desses acontecimentos na Linguística brasileira são inegáveis.
O novo corpo profissional de linguistas brasileiros, formado em grande me-
dida por pesquisadores que adotavam posturas investigativas que divergiam
das abordagens filológicas e dialetológicas à época em evidência, trouxe de
fora reflexões que foram, a passos lentos, incorporadas à agenda de pesquisas
nacionais. As discussões lideradas por esses profissionais, as quais passaram a

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


235
circular nas agora obrigatórias aulas de Linguística dos cursos de Letras, bem
como em teses e dissertações defendidas em cursos de pós-graduação, foram
fundamentais para que circulassem nos corredores universitários concepções
linguísticas de natureza pragmática, discursiva e textual. Passaram a ecoar na
jovem Linguística brasileira, ainda que de modo pouco regular e com razoá-
vel concentração nas regiões Sul e Sudeste, discussões teórico-metodológicas
em torno da sociolinguística, da linguística de texto e da análise do discurso.
Muitas das referências utilizadas nessas discussões vêm de bibliografia
europeia. Estamos falando, afinal, do período em que os primeiros “grupos
de especialidade” (MURRAY, 1994) orientados pelos fundamentos da TSD
começavam a se formar, motivo pelo qual a produção autoral brasileira ainda
estava dando seus primeiros passos, com exceção dos estudos sociolinguís-
ticos, que já gozavam de certa notoriedade no cenário intelectual da década
de 1970, tendo em vista a quantidade de trabalhos autorais publicados por
linguistas brasileiros nesse período (cf. FONSECA; NEVES, 1974; MARCUS-
CHI, 1975; PRETI, 1974)14.
No bojo dessa atmosfera favorável à abertura do caminho para a emer-
gência de estudos de natureza sociolinguística, foi concebido, sob a lideran-
ça primeira do professor Nelson Rossi, o Projeto Norma Linguística Urbana
Culta (NURC)15. A empreitada, que continua ativa até os dias de hoje, orga-
nizava esforços coletivos visando apresentar um quadro descritivo capaz de
mapear as regularidades constituintes da norma culta do português brasileiro
de então (CASTILHO, 1991). Embora o NURC tenha sido lançado em 1969,
suas ações mais sistemáticas se deram a partir dos anos de 1970, período
em que a TSD começava a emergir na Linguística brasileira. O trabalho de-
senvolvido pelo NURC foi fundamental para o surgimento posterior de ou-
tros projetos voltados à descrição do português brasileiro, como é o caso do
Projeto Gramática do Português Falado, concebido por Ataliba de Castilho,
além de ter influenciado de modo direto, mais recentemente, na produção de

14
Embora não publicado em livro, mas na Revista de Cultura Vozes, merece nota o trabalho Tarefas da
sociolinguística no Brasil (Vandressen, 1973). Esse texto foi de suma importância para a divulgação, ainda
na primeira metade da década de 1970, do panorama dos estudos sociolinguísticos brasileiros.
15
O NURC nasce como uma extensão ao Brasil do Proyecto de Estudio Coordinado de la Norma Lingüís-
tica Culta de las Principales Cidades de Iberoamérica y de la Península Ibérica, desenvolvido no México
e idealizado pelo professor Juan Miguel Lope-Blanch, em 1964. O propósito do Proyecto era descrever,
numa perspectiva dialetológica, a norma culta espanhola falada em grandes centros urbanos, mais espe-
cificamente nas cidades de Bogotá, Buenos Aires, Caracas, Havana, Lima, Madrid, México, Puerto Rico
e Santiago.

236 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


gramáticas brasileiras contemporâneas do português (VIEIRA, 2016), instru-
mentos de gramatização que, por vezes, embora sem pretensões pedagógicas
explícitas, são anunciados como alternativas às gramáticas tradicionais. Ain-
da na década de 1970, podem ser percebidos os ecos das pesquisas sociolin-
guísticas desenvolvidas no Brasil — das quais o NURC é irrefutavelmente
protagonista — em trabalhos que passam a circular em importantes perió-
dicos brasileiros, com o é o caso de A língua portuguesa do Brasil (1978), de
Stella Maris Bortoni, e Variação dialetal e ensino institucionalizado da língua
portuguesa, de Ataliba de Castilho (1978).
No campo da linguística textual, merecem destaque as publicações das
traduções de Semiótica e narrativa textual (1977), de Claude Chabrol, e Lin-
guística e teoria do texto (1978), do alemão Siegfried J. Schmidt. Diferente do
que aconteceu com os estudos sociolinguísticos, pode-se dizer que a entrada
da linguística de texto no cenário brasileiro, ao menos em termos de divul-
gação de trabalhos de amplo alcance e impacto, concentrou-se em traduções
de obras europeias. A chegada da discussão sobre o fenômeno textual ao
Brasil, no final dos anos de 1970, foi fundamental para que, principalmente
na década seguinte, o campo da linguística de texto se estabelecesse como
um grupo de relevância no cenário linguístico nacional, liderado, nesse mo-
mento, por pesquisadores em atuação nos diferentes centros de pesquisa do
país, como Luiz Antônio Marcuschi, Ingedore Koch e Leonor Lopes Fávero.
Como consequência natural, a pesquisa na área se intensificou ao longo do
tempo, tendo reflexos diretos na quantidade e na qualidade de publicações
sobre fenômenos residentes no texto. No seio dessa atmosfera intelectual, os
fundamentos da linguística de texto passaram também a circular em cursos
de formação continuada para professores, ministrados em diversos centros
de pesquisa do Brasil, bem como em dissertações e teses defendidas em im-
portantes programas de pós-graduação. Muitos desses novos mestres e dou-
tores passaram a trabalhar com a linguística de texto em suas instituições de
origem (KOCH, 1999), fortalecendo, assim, o grupo de especialidade que
estava se formando no Brasil.
Já no domínio dos estudos enunciativo-discursivos16, chegaram ao Bra-
sil, ainda nos anos de 1970, as traduções de Problemas de linguística geral I
(1976), de Émile Benveniste, Princípios de semântica linguística (1977), de

16
Reconhecemos as especificidades que demarcam as fronteiras entre abordagens enunciativas e discur-
sivas, num sentido mais específico de cada termo. Todavia, compreendemos que, a despeito de diferenças

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


237
Oswald Ducrot, e Marxismo e filosofia da linguagem (1979), obra atribuída ao
russo Mikhail Bakhtin em sua primeira versão brasileira. Essas obras propo-
sitivas contribuíram para a consolidação de reflexões linguísticas sobre o ca-
ráter intersubjetivo que a linguagem humana assume nas práticas cotidianas
de interação, abrindo caminho para que diferentes grupos interessados nessas
questões se estabelecessem no cenário acadêmico brasileiro. Nesse contexto,
merece destaque o papel da Unicamp, instituição em que atuavam pesquisa-
dores de reconhecida importância para a emergência dos estudos discursivos
no Brasil. Entre eles, podemos destacar, por exemplo, Carlos Vogt, autor de
Intervalo Semântico (1977), obra que é fruto de sua tese de doutorado defen-
dida em 1974 e orientada por Oswald Ducrot; e Haquira Osakabe, que assina
Argumentação e discurso político (1979).
Ainda no campo dos estudos discursivos, mas não a ele limitado, des-
tacamos a liderança de Eni Orlandi. Professora da USP até 1979, quando
deixou o cargo nessa Universidade para assumir a docência na Unicamp,
Orlandi contribuiu significativamente para a emergência da TSD no Brasil ao
inserir as reflexões de Michel Pêcheux, precursor da análise do discurso fran-
cesa, na agenda de pesquisas da Linguística nacional. Para além da análise do
discurso, seu trabalho A sociolinguística, a teoria da enunciação e a análise do
discurso, publicado em 1979 no periódico Série Estudos, ilustra bem o atra-
vessamento da autora em diferentes domínios teóricos que compõem a TSD.
Como se pode ver, os anos de 1970 marcaram um momento em que a
TSD começava a estabelecer suas bases na pesquisa linguística brasileira. A
ainda tímida e embrionária reflexão de natureza sociodiscursiva que começa-
va a passos lentos a circular nas universidades brasileiras, como movimento
natural, influenciou algumas incursões sobre ensino de língua portuguesa,
tendo em vista que, a partir de então, novos pontos de vista sobre o objeto
língua começavam a desafiar os pesquisadores brasileiros. Uma vez que a lín-
gua passa a ser compreendida em seu caráter social, histórico, atualizada em
textos de circulação real em diferentes esferas discursivas, torna-se incompa-
tível, nessa esteira de pensamento, conceber um processo de aprendizagem
concentrado no ensino de um padrão linguístico idealizado a que subjaz uma
visão de língua homogênea e estática cuja descrição se dá a partir de exemplos
retirados da escrita literária pregressa.

conceituais, discurso e enunciação residem num mesmo domínio epistemológico em que são debatidas
questões atreladas aos sujeitos de linguagem e às condições de produção das práticas interlocutivas.

238 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


No que tange ao mercado editorial, as publicações que traziam reflexões
pedagógicas de natureza sociodiscursiva, como se pode pressupor, tendo em
vista o caráter emergente da TSD no Brasil nesse momento, são frutos, com
poucas exceções, de traduções de obras europeias para a língua portuguesa. Em
1973, foi publicada, em Portugal, a tradução de Linguistique et enseignement
du Français, de Emile Genouvrier e Jean Peytard, cuja versão em língua portu-
guesa, fruto de engenhosa adaptação de autoria do linguista brasileiro Rodolfo
Ilari, recebeu o título de Linguística e ensino do português. Embora publicada
originalmente em Coimbra, Portugal, a obra circulou no Brasil como material
de referência para inúmeras discussões sobre ensino de língua materna ao longo
dos anos de 1970 e adiante. Também publicado por editora portuguesa e im-
portante referência por vários anos em cursos brasileiros de formação inicial e
continuada, vale mencionar Pragmática linguística e ensino do português (1977),
de Fernanda Irene Fonseca e Joaquim Fonseca, cujo um dos objetivos, em clara
oposição à GT, é oferecer alternativas metodológicas ao docente secundarista a
partir de uma abordagem pragmática do texto, visando, assim, “a redução dos
momentos de índole metalinguística, com crescente alargamento da exploração
do uso contextualizado” (FONSECA; FONSECA, 1977, p. 11-12).
No lado de cá do Atlântico, em tradução publicada por editora nacional,
o Brasil recebeu, em 1974, As ciências linguísticas e o ensino de línguas, de
Michael Halliday e outros. A proposta dos autores da obra se fundamenta
nos então recentes avanços da ciência linguística e, de modo explícito, ques-
tiona as insuficiências do ensino de língua materna e estrangeira com foco
na gramática, compreendida pelos autores como “uma versão pálida e emas-
culada da própria língua” (HALLIDAY et al., 1974, p. 11). Enquanto texto
propositivo, pode-se dizer que o título em questão assume a importância de
contribuir, na reflexão brasileira, com a instalação das primeiras bases para o
desenvolvimento de críticas às diretrizes da GT como ferramenta de ensino
e aprendizagem de língua. No fragmento que segue abaixo, vê-se que os au-
tores adiantam o cerne da questão que à frente, sobretudo a partir da década
seguinte, se tornaria pauta recorrente em trabalhos acadêmicos e em cursos
de graduação e pós-graduação em Letras: afinal, qual o papel da gramática
na educação linguística?

Simpatizamos muito com um professor que se rebela contra o ensino da gra-


mática da língua materna. Na maioria das vezes, o que se espera que ele ensine

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


239
é uma gramática inteiramente sem valor, no sentido de que a análise que efe-
tua repousa sobre uma compreensão incorreta do modo como o inglês funcio-
na. (...) A resposta, entretanto, não consiste em abandonar a gramática. A res-
posta está em usar a boa gramática, reexaminando-lhe a função no ensino de
língua. Se pretendemos ensinar a uma criança sua língua materna, devemos
pelo menos compreender nosso próprio modelo e ser capazes de revelar-lhes
o modo como o falante nativo do inglês pode explorar os múltiplos recursos
de seu idioma (HALLIDAY et al., 1974, p. 186-187).

Nessa mesma esteira de contestação do ensino de língua baseado nas


diretrizes da GT, o trabalho dos professores Geraldo Mattos e Eurico Back,
Prática de ensino da língua portuguesa (1974), merece atenção, sobretudo
por se tratar de uma obra brasileira, como poucas, que, embora publicada
na primeira metade da década de 1970, já trazia evidentes marcas da TSD,
na medida em que trata a educação linguística a partir de uma abordagem
interacional, afastando-se da tradição substancialmente gramatical. A base
teórica que subjaz às reflexões empreendidas pelos autores reside em grande
medida na teoria comunicacional, abordagem que circulava sobremaneira
nos diferentes espaços de discussão sobre a linguagem, bem como orientava
majoritariamente a produção de materiais didáticos publicados nos anos de
1970. No que diz respeito à gramática e sua relevância para o ensino de lín-
gua portuguesa, Mattos e Back discutem as limitações do processo de apren-
dizagem concentrado no ensino de um padrão idealizado, que, segundo pers-
pectivas conservadoras, deve ser memorizado e efetivamente utilizado:

Todos os alunos decoraram que o sujeito e o predicado concordam em núme-


ro e pessoa, obedecendo a ela [à regra] quando falam: — Quatro telegramas
acabaram de chegar. — Dois alunos faltaram hoje. — Muitos dias já se pas-
saram. Basta, contudo, aparecer-lhes outra ordem e, esquecidos da regra de
concordância que decoraram, dizem claramente: — Acabou de chegar quatro
telegramas. — Faltou hoje dois alunos. — Já se passou muitos dias (MATTOS;
BACK, 1974, p. 79).

Ao reconhecer a flexibilidade e a variabilidade que caracteriza as mani-


festações verbais legítimas, os autores reforçam que a língua não se equivale
nem se restringe às regras prescritas pela tradição gramatical. Enquanto a

240 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


língua, em sua pluralidade e mutabilidade, se modifica constante e continua-
mente, as regras prescritas, por sua vez, estão registradas nos compêndios da
GT, assumindo “o papel de uma fotografia da língua, imóvel e morta, porque
lhes falta a vida” (MATTOS; BACK, 1974, p.77).
Como se pode perceber, a discussão sobre educação linguística a partir
de uma abordagem sociodiscursiva, ou, em outras palavras, que não se limita
ao ensino da análise metalinguística e da prescrição de regras para o bem
falar e bem escrever, começava a ganhar seus primeiros contornos no Brasil
na década de 1970. A atmosfera intelectual de então favoreceu a emergência
desses saberes, como vimos, tendo em vista a chegada, ao Brasil, de novas
perspectivas teóricas importadas da Europa. Todavia, para que os trabalhos
baseados na TSD angariassem prestígio e maior visibilidade dentro e fora do
espaço acadêmico, era imprescindível a execução de ações bem planejadas
com vistas à divulgação desses trabalhos. Para que essas ações tomassem for-
ma e cumprissem com seus propósitos, era vital o surgimento de lideranças
intelectuais e organizacionais capazes de conduzir o estabelecimento de gru-
pos de especialidade orientados pelos diferentes domínios sociodiscursivos.
Ideias relevantes não garantem o sucesso (Murray, 1994) de uma abordagem,
uma vez que a consolidação de um domínio epistemológico, afinal, “depende
tanto quanto, ou mais, de fatores externos, relativos ao grupo de especialida-
de que lhe dá sustentação, do que das qualidades intrínsecas das teorias que
os constituem” (ALTMAN, 2004, p. 46).

8.2 Década de 1980: o desenvolvimento

Os anos de 1980 foram decisivos para o desenvolvimento da TSD na pes-


quisa linguística brasileira. Não estamos mais tratando da emergência desse
domínio, momento caracterizado, como vimos, pela ausência de lideranças
e pela baixa publicação de trabalhos de natureza sociodiscursiva em livros e
periódicos. Trata-se, agora, de uma fase marcada pelo amadurecimento dos
pesquisadores, pela intensificação da produção intelectual, pelo intercâmbio
explícito e pelo surgimento de lideranças em torno das quais se organizaram
grupos de especialidade que, apesar de divergências teóricas, compartilhavam
um mesmo ponto de partida: a compreensão da língua como um fato social e
discurso. Como consequência desse novo momento intelectual, a Linguística
brasileira protagonizou um boom de publicações, com ou sem pretensões

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


241
pedagógicas, que colocavam em evidência o texto, a variação linguística, o
discurso, os usos e as funções que a linguagem assume na interação.
O amadurecimento da TSD no Brasil em muito se deve a ações da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
(ANPOLL). Foi no I Encontro Anual da ANPOLL, acontecido em Curitiba,
no ano de 1985, que importantes Grupos de Trabalho (GTs) organizados
em torno de empreendimentos sociodiscursivas foram criados. Dentre esses
grupos, convém destacar o GT Linguística de texto e Análise da conversação,
coordenado por Luiz Antônio Marcuschi; o GT Sociolinguística, liderado por
Jürger Heye e Sebastião Votre; e o GT Análise do Discurso, que teve Eni
Orlandi como primeira coordenadora. No Encontro, além de eleitos os coor-
denadores, os quais assumiram importante função de lideranças organizacio-
nais, foram também definidas as linhas de pesquisa e os primeiros esboços
de planos de ação que orientariam as atividades dos grupos pelos próximos
anos. Essa articulação organizacional contribuiu significativamente para o
amadurecimento das pesquisas sociodiscursivas, uma vez que, a partir dali,
intensificou-se o intercâmbio entre os pesquisadores, parcerias se estabelece-
ram, relações intertextuais explícitas (citações diretas e indiretas) pulularam
nos trabalhos publicados pelos membros dos GTs.
Quando da formação dos referidos GTs da ANPOLL, em 1985, impor-
tantes trabalhos propositivos (muitos dos quais recebem reedições até hoje),
escritos por linguistas brasileiros e fundamentados por abordagens socio-
discursivas, já circulavam com regularidade no cenário intelectual nacional.
Ainda na primeira metade da década, pesquisadores que já assumiam a po-
sição de lideranças, como é o caso de Luiz Antônio Marcuschi e Eni Or-
landi, que não por acaso coordenariam GTs da ANPOLL, publicaram obras
introdutórias em suas respectivas áreas de atuação, visando democratizar o
acesso ao conhecimento das teorias do texto e do discurso. São exemplos
desses trabalhos A linguagem e seu funcionamento (1982) e A linguística de
texto: o que é e como se faz (1983), de Eni Orlandi e Luiz Antônio Marcuschi,
respectivamente. Com propósito análogo, Leonor Lopes Fávero e Ingedore
Koch publicaram Linguística textual: introdução (1983), cujo objetivo já vinha
anunciado no subtítulo da obra, e, pouco tempo depois, A pesquisa socio-
linguística (1985), de Fernando Tarallo, que trata com objetividade tópicos
gerais da teoria da variação e da mudança linguística. As discussões sobre o
ensino de língua portuguesa produzidas no interior da Linguística brasilei-

242 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


ra na década de 1980 foram diretamente influenciadas por essas novas e já
razoavelmente divulgadas reflexões em torno dos campos que demarcam as
fronteiras da TSD.
Além da irrefutável influência exercida pelas abordagens em evidência
na agenda da Linguística de então, muitas das publicações voltadas para o
ensino de português foram produzidas como resposta a certos problemas ine-
rentes ao contexto educacional brasileiro das décadas de 1970 e 1980. Nesse
período, o país assistia às consequências mais evidentes do rápido e desorde-
nado processo de urbanização que resultou num inchaço das grandes capitais.
Naturalmente, o perfil dos moradores dos centros urbanos sofreu algumas
mudanças, tendo em vista o aumento considerável do número de pessoas
menos favorecidos economicamente (muitos deles analfabetos) que residiam
nesse espaço. Essa parcela pobre da sociedade, a quem até então havia sido
negado o direito à educação, passou a exigir que seus filhos, nascidos nos
centros urbanos, tivessem acesso à escolarização formal. Como consequência
desse complexo contexto social, a escola brasileira sofreu um processo de
“democratização”, ao menos em teoria. Na prática, salas superlotadas, suca-
teamento dos espaços físicos e professores sem formação adequada para lidar
com o novo perfil de alunado que por direito chegava à escola. Como aponta
Soares (1986), a escola que recebia os alunos vindos das classes menos favo-
recidas economicamente era a mesma que os excluía, tendo em vista que não
criava condições para que, de modo inclusivo e democrático, o processo de
aprendizagem efetivamente acontecesse. Na esfera da educação linguística, o
novo perfil de alunos (e, aos poucos, também dos professores) trouxe à escola
pública diferentes falares, muitos dos quais eram condenados e classificados
como linguagem vulgar, errada, inadequada. A escola não estava preparada
para lidar com a heterogeneidade linguística que naquele momento era mais
evidente, tampouco os materiais didáticos, que continuavam a exigir o domí-
nio de um padrão idealizado espelhado na escrita literária pregressa (padrão
esse que nem mesmo os alunos de camadas mais favorecidas dominavam).
No interior desse cenário e na esteira de estudos de natureza sociolin-
guística, como forma de atender a essa clara demanda educacional, foram
produzidas obras voltadas à orientação teórica e metodológica de professores
em formação e em atuação. O grande propósito desses trabalhos, fundamen-
tados nas mais recentes pesquisas de natureza social, discursiva, textual e
pragmática, era oferecer aos docentes ferramentas teóricas e práticas com as

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


243
quais eles poderiam viabilizar real mudança no modo de ensinar português
no ensino básico. Advogavam os autores dessas obras que era preciso, de fato,
promover uma verdadeira virada no modus operandi da educação linguísti-
ca brasileira, para que pudesse o professor lidar, responsavelmente, com a
pluralidade linguística característica do novo perfil dos alunos que, em sua
maioria, ocupavam os bancos da escola púbica, garantindo-lhes pleno exer-
cício da cidadania a partir de práticas de linguagem.
A intensificação da divulgação de trabalhos fundamentados pelas abor-
dagens sociodiscursivas no cenário da linguística nacional somada ao con-
texto de crise do sistema educacional brasileiro configurava cenário favorá-
vel para a propagação de ideias emergentes timidamente na década de 1970,
como vimos, as quais nesse momento ganharam nova força e coro vigoroso:
o ensino de língua portuguesa não deveria mais girar em torno da prescrição
de regras e da análise metalinguística, eixos constitutivos da GT. Como alter-
nativa, propunha-se o estudo da língua a partir de textos falados e escritos
reais produzidos nas diferentes esferas discursivas, não apenas literária. Por
esse caminho, as práticas de reflexão sobre os conhecimentos linguísticos não
devem se restringir às definições de natureza metalinguística ou ao estudo
do padrão idealizado, mas, por outro lado, uma vez atestada a heterogenei-
dade do português brasileiro, devem contemplar as diferentes realizações
linguísticas e seus efeitos nos diferentes contextos de interlocução. Toman-
do-se o texto (e não mais a oração) como um objeto em que convergem
ações linguísticas, sociais e discursivas, abandona-se a concepção de leitura/
escuta como decodificação de um código cujos sentidos residem no interior
de sua estrutura. A leitura e a escuta são compreendidas, então, como gestos
de construção colaborativa em que o leitor/ouvinte, enquanto sujeito social,
tem papel ativo na construção dos sentidos, que podem variar ao sabor das
condições de sua recepção. Na mesma direção, descarta-se a noção de escri-
ta/fala como processo mecânico em que não são consideradas as situações
interlocutivas em que essa ação linguística acontece. Produzir textos falados
ou escritos, assim como lê-los, envolve uma gama de fatores (quem escreve/
fala, para quem, com que intenção, em que contexto etc.) que determinam
diretamente as escolhas linguísticas e o modo de organização dos constituin-
tes da enunciação.
A lista de obras que discutiram essas questões é bastante extensa. Não
há dúvidas, entretanto, que alguns títulos circularam com maior intensida-

244 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


de que outros. A quantidade de reedições recebidas e a constante frequên-
cia que aparecem em citações reforçam a importância, o poder de alcan-
ce e a capacidade de convencimento dessas obras, que não raro serviram e
servem de suporte teórico a disciplinas universitárias como, por exemplo,
Prática de ensino em língua portuguesa e Estágio supervisionado, presentes
nos currículos das licenciaturas em Letras/Português. Desse conjunto biblio-
gráfico, destacamos, por exemplo, O texto na sala de aula (1984), coletânea,
organizada por João Wanderley Geraldi, que traz vários textos de natureza
propositiva assinados por importantes linguistas brasileiros; Para uma nova
gramática do Português (1985), de Mário Perini, que, segundo o autor, nasce
da necessidade de se elaborar uma nova diretriz gramatical para o ensino da
língua portuguesa; A linguística e o ensino da língua portuguesa (1985), em
que Rodolfo Ilari resgata textos de sua autoria, publicados em periódicos
especializados, sobre o papel da Linguística na formação de professores de
língua; Linguagem e escola: uma perspectiva social (1986), obra com a qual
Magda Soares, apoiando-se na sociolinguística e na sociologia da linguagem,
contribuiu tanto com a compreensão do “fracasso escolar” que marcou a edu-
cação linguística em nível básico da época quanto com a apresentação de
alternativas práticas que fomentaram e fomentam uma pedagogia inclusiva e
transformadora; e Linguística aplicada ao ensino de português, livro que reúne
discussões de caráter teórico assinadas por mais de uma dezena de linguistas
que compõem diferentes grupos de especialidade em torno da TSD — como
Ingedore Koch, Leonor Lopes Fávero, Mário Perini, Marta Helena Kirst, Ro-
dolfo Ilari e Sírio Possenti.
Ao longo dos anos, à publicação e circulação dessas e de outras obras
com objetivos análogos — propor alternativas para superar a crise do ensino
de língua portuguesa — somavam-se seminários, mesas, debates públicos e
outras ações a partir das quais linguistas brasileiros apontavam as inconsis-
tências das diretrizes epistemológicas da GT como ferramenta de ensino. Os
ecos dessas vozes marcadas por uma explícita retórica de ruptura, a que Pietri
(2003) se refere como discurso da mudança, tomaram proporções maiores ao
longo da década de 1980, estabilizando-se, enfim, como pauta consensual
nos cursos de formação de professores de português. A regular resistência à
GT define o rumo que a discussão sobre ensino de língua portuguesa tomou
nesse período, como se pode confirmar através de passagens retiradas de
algumas das obras supramencionadas:

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


245
O domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de uma me-
talinguagem técnica. Não vale a pena recolocar a discussão pró ou contra a
gramática, mas é preciso distinguir seu papel no papel da escola (Possenti,
2011 [1984], p. 38).
o professor secundário continua investindo a maior parte de seus esforços no
ensino da terminologia gramatical; (...) os usos da língua na escola continuam
em grande medida artificiais, como se o aprendizado fosse para a escola, não
para a vida (ILARI, 1992 [1985], p. 103).
As falhas da gramática tradicional são, em geral, resumidas em três grandes
pontos: sua inconsistência teórica e falta coerência interna; seu caráter predo-
minantemente normativo; e o enfoque centrado em uma variedade da língua,
o dialeto padrão (escrito), com exclusão de todas as outras variantes (PERINI,
1991[1985], p. 6).
Quando os gramáticos, geralmente puristas, dizem que uma forma empregada
é incorreta (errada) querem dizer que esta forma não é ou não seria aceita pe-
las classes dominantes da sociedade, isto é, aquelas que falam a norma culta.
Para eles, o certo (correto) caracteriza a linguagem das pessoas educadas, in-
teligentes. O errado (incorreto) caracteriza a linguagem das pessoas não edu-
cadas (STAUB, 1987, p. 19).
Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Vieira e até Machado de Assis costumam ser
as vítimas preferidas dos que veem no texto pretexto para sapecar na crian-
çada regências, colocações e concordâncias em desuso. E, de vítima, estes au-
tores transformam-se em algozes: castigam professores e alunos, fazendo-os
deter-se em normas intrincadíssimas e de aplicabilidade bastante discutível
(LAJOLO, 1987, p. 56).

Ainda na década de 1980, convém destacar a publicação, pela Secreta-


ria do Estado de São Paulo, da Proposta curricular para o ensino da língua
portuguesa (SÃO PAULO, 1986), documento construído coletivamente por
diversos linguistas que protagonizaram as etapas da TSD no Brasil. Partin-
do de uma perspectiva de linguagem como atividade social, o currículo em
questão apresenta reflexões pedagógicas sustentadas pelo discurso da mudan-
ça, como as implicações das formas de discriminação social pela linguagem
e a distinção entre atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas. O
documento serviu de modelo para a reforma do currículo de outros estados
do país, que aos poucos passaram a incorporar às suas diretrizes oficiais os

246 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


saberes da TSD, além de ter antecipado, de certa forma, o núcleo teórico-
-metodológico norteador dos Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados
na década seguinte.
Diante disso tudo, pode-se dizer que a atmosfera da segunda metade da
década de 1980 já enuncia que as reflexões pedagógicas de natureza sociodis-
cursiva estavam caminhando para seu terceiro momento, o de consolidação.

8.3 Década de 1990: a consolidação


Nos anos 1990, a consolidação, no espaço acadêmico, das ideias de
renovação subjacentes ao discurso da mudança (PIETRI, 2003) instalou na
sociedade em geral uma atmosfera de incerteza. Ensinar português, afinal,
com certa regularidade, era equivalente a ensinar a norma-padrão modelar
e analisar metalinguisticamente os níveis gramaticais, do fonético ao sintá-
tico. Os recorrentes questionamentos que insidiam sobre o ensino baseado
na GT, muitos deles em tom inflamado devido à urgência pela mudança que
se defendia, motivaram reações imediatas. Nesse contexto conflituoso, o dis-
curso da mudança foi interpretado pelos defensores contumazes do ensino
gramatical como o discurso antigramática ao qual estaria subtendida a ideia
de que a gramática deveria ser definitivamente abolida das salas de aula, ce-
dendo lugar a uma metodologia fundamentada pelo absoluto e desgovernado
vale-tudo linguístico.
O conflito era generalizado. No interior da própria Linguística brasi-
leira, muitas eram as posições sobre a noção de língua, de gramática e de
ensino de língua portuguesa. Para Camacho (1994), com a difusão das teorias
sociodiscursivas e a nova agenda de pesquisas disso resultante, a Linguística
brasileira vivia nesse período uma crise de identidade. O discurso da mudan-
ça, portanto, embora amplamente difundido e respaldado por uma já sólida
bibliografia brasileira, não encontrava à época lugar de consenso nem na
academia nem na sociedade em geral. Staub (1987) relata com assertividade
a atmosfera já perceptível no final da década de 1980 e intensificada ao longo
dos anos de 1990:

Parece que estamos em guerra. Os gramáticos não concordam entre si. Os


linguistas brigam com os gramáticos tradicionais. Professores da mesma
instituição não se entendem, vão aos jornais e expõem ao público os pontos
discordantes a respeito do ensino da língua portuguesa. Jornais e revistas pu-

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


247
blicam artigos que dão aos leitores a impressão de que o ensino do português
se tornou caótico. As brigas e os mal-entendidos, nas suas manifestações mul-
tiformes, desorientam os professores que, nesta altura dos acontecimentos, se
perguntam: o que fazer? O que ensinar? (STAUB, 1987, p. 18)

A virada de década foi marcada por esse clima de embate acirrado. A


intensidade do conflito, que se confirma pelo fato da discussão ter atingido
espaços para além do acadêmico, como o da mídia impressa, atesta que já
não estávamos mais diante de um grupo emergente, carente de lideranças e
de ações coesas, como em 1970. Pelo contrário, tratava-se de um grupo que
entoava um discurso coletivo bem articulado, organizado internamente, com
clara bandeira erguida. A forte influência exercida pela TSD nesse período
reforça que a Linguística brasileira protagonizava o nascer de uma nova tra-
dição na reflexão sobre o ensino de língua portuguesa. Os anos de 1990 serão
fundamentais para a consolidação dessa perspectiva.
A continuidade de publicações em torno das diferentes abordagens so-
ciodiscursivas contribui para a consolidação da TSD no cenário da linguística
brasileira. Destaca-se, nesse período, o rápido desenvolvimento do segundo
momento da linguística de texto brasileira (KOCH, 1999), estágio marcado
pela produção de discussões atentas aos processos sociais, cognitivos e cultu-
rais que orbitam em torno da construção e da recepção dos textos. Ingedore
Koch foi sem dúvidas liderança intelectual e organizacional imprescindível
à consolidação do grupo de especialidade organizado em torno dessa abor-
dagem, tendo publicado ao longo da década de 1990 importantes obras que,
devido ao alcance que se confirma pelas dezenas de reedições recebidas, fun-
damentaram e fundamentam até hoje inúmeras discussões pedagógicas em
torno do processo de produção e leitura de textos numa perspectiva socio-
cognitiva e interacional. Dentre essas obras, merecem menção A coerência
textual (1991), assinada em parceria com Luiz Carlos Travaglia, A inter-ação
pela linguagem (1992) e O texto e a construção dos sentidos (1997). Nessa
mesma linha de pensamento discutem Leonor Lopes Fávero e Maria da Gra-
ça Costa Val, respectivamente, nas obras Coesão e coerência textuais (1991) e
Redação e textualidade (1991).
Seguindo a vigente tendência de se pensar a produção e a recepção de
textos como práticas sociais, também ganharam força nesse mesmo período
as reflexões sobre o letramento e sua relação com o ensino de língua portu-

248 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


guesa. Num momento em que se questionava até que ponto a língua poderia
ser estudada (e ensinada) enquanto código autossuficiente, não era de se es-
tranhar que reflexões de natureza social e discursiva chegassem à discussão
sobre o processo de aprendizagem dos sistemas escritos de linguagem. Em-
bora o conceito de letramento já tivesse aparecido na reflexão brasileira, pela
primeira vez como termo técnico, em 1988, em trabalho de Tfouni (1988), foi
apenas na segunda metade dos anos de 1990, com a publicação do clássico
Os significados de letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita (1995), de Ângela Kleiman, que a discussão tomou maiores propor-
ções. Pouco tempo depois, Magda Soares reuniu três textos sobre a temática
na obra Letramento: um tema em três gêneros (1998), que não tardou a se
tornar referência regular em cursos de Letras e de Pedagogia.
Ao passo que as pesquisas em torno da variação linguística, do texto e do
discurso conquistava mais espaço, seguindo o ritmo intenso iniciado nos anos
de 1980, a produção sobre ensino ganhava novos ares. Se, por um lado, obras
como Gramática na escola (1991), de Maria Helena de Moura Neves, e Gramá-
tica e interação: uma proposta para o ensino de gramática (1995), de Luiz Carlos
Travaglia, enunciam em seu título que não fazia parte do projeto dos linguistas
abolir a gramática do ensino básico, por outro lado, outras obras, como é o
caso de Por que (não) ensinar gramática na escola (1996), de Sírio Possenti,
reforçavam que o ponto de interrogação “ensinar ou não ensinar gramática”
continuava presente no imaginário de professores e estudantes de licenciatura.
Enquanto setores presos às diretrizes da GT argumentavam que o dis-
curso da mudança trazia como consequência a deterioração da língua pátria
devido a uma balbúrdia linguística supostamente autorizada e incentivada na
sala de aula, inúmeras publicações reforçavam que era papel da escola ensinar
“o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para
que ele seja [fosse] aprendido” (POSSENTI, 1996, p. 17). Ao olhar para a
reflexão de Possenti no seu conjunto e no seu contexto, “português padrão”
diz respeito à norma de prestígio, ou seja, ao modo de falar e de escrever
efetivamente utilizado em situações de interlocução mais monitorados, não
ao padrão idealizado característico da GT. O domínio da norma de prestígio
constitui, na verdade, uma das habilidades resultantes das práticas de análise
linguística, que, como leitura e produção de textos, constitui eixo do ensino
de português defendido por autores nesse período. A esse respeito, tanto em
Portos de passagem (1991) como em Linguagem e ensino: exercícios de mili-

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


249
tância (1996), João Wanderley Geraldi propõe uma mudança de paradigma:
uma guinada da gramática tradicional e todos seus pressupostos pedagógicos
à prática com o texto como ponto de partida para o exercício das habilidades
de ler, escrever, falar e escutar. Naturalmente, atravessa essas habilidades uma
competência que deve ser exercitada: a capacidade de analisar os múltiplos
efeitos que a língua assume nos diferentes usos que dela fazem os sujeitos nas
situações reais de interlocução.
Concomitantemente, dando continuidade ao movimento iniciado na
década de 1970 e desenvolvido com maior vigor nos anos de 1980, a discus-
são sobre o papel da educação linguística na exclusão/inclusão de estudantes
da educação básica se manteve de pé e ganhou apoio de outras vozes emer-
gentes. Na segunda metade dos anos de 1990, intensificou-se a discussão a
partir de obras como Contradições no ensino de português (1995), de Rosa
Virgínia Mattos e Silva; Sofrendo a gramática (1997), que dava continuidade
à reflexão que Mário Perini vinha desenvolvendo desde a década passada; A
sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical (1997), de Luiz Perci-
val Leme Britto, fruto de sua tese de doutorado defendida na Unicamp sob
orientação de João Wanderley Geraldi; e, já no fim da década, Preconceito
linguístico: o que é e como se faz (1999), de Marcos Bagno, que se tornou uma
das obras mais divulgadas dentre as aqui mencionadas.
Pode-se dizer que, nesse momento, final da década de 1990, a TSD
já estava plenamente consolidada na Linguística brasileira e o discurso da
mudança, que incorpora suas diretrizes fundamentais, atingiu o sucesso, ao
menos no espaço da discussão sobre ensino de língua na esfera acadêmica.
A despeito desse sucesso, a GT se manteve e ainda se mantém presente em
diferentes espaços quando o assunto é “ensino de português” (tendo em vista
seu caráter de tradição e sua perpetuação milenar), motivo pelo qual o fio da
história aqui interpretada continua sendo tecido até os dias correntes. Não é
por acaso, afinal, que até hoje ainda é publicado grande quantitativo de obras
propositivas com intuito de orientar o professor de língua portuguesa a lidar
com o ensino da gramática.
O sucesso a que nos referimos se apoia na noção de cluster, definida por
Murray (1994). Para o autor, além de seu alcance e poder de convencimento
no interior da comunidade científica, o sucesso de um domínio epistemológico
está condicionado à sua capacidade de organização interna e aos resultados
exitosos oriundos dessa organização. No caso particular da discussão sobre

250 Francisco Eduardo Vieira e Leonardo Gueiros


ensino de língua subscrito no domínio da TSD, a narrativa aqui discorrida
evidenciou as diferentes formas de articulação promovidas por grupos de es-
pecialidade da Linguística brasileira em torno dos quais se discutiu a língua
como um fato social, histórico e discursivo, bem como produtos resultantes
dessas ações. Ao olharmos para essa narrativa em sua historicidade, analisan-
do as condições de emergência, desenvolvimento e consolidação dessa pers-
pectiva no Brasil, bem como a recepção de suas retóricas diluídas em ações
planejadas e executadas ao longo de três décadas, percebemos que, de fato, a
discussão sobre ensino baseada nos fundamentos da TSD obteve sucesso.
Embora possa soar contraditório, as reincidentes resistências às teses da
TSD na reflexão sobre ensino reforçam o êxito desse domínio. Tais resistên-
cias ratificam que a TSD causou na cultura linguística brasileira muito mais
que meros ruídos: angariou lugar de fala cujos resultados são hoje evidentes.
No espaço acadêmico, os grupos vinculados aos empreendimentos sociodis-
cursivos ganham cada vez mais força e prestígio, formando novas gerações de
pesquisadores e intensificando o intercâmbio entre os pares; fora dos muros
das universidades, as diretrizes da TSD transitam em currículos, documentos
oficiais, políticas públicas, materiais didáticos e exames de avaliação em larga
escala. Trata-se, enfim, a despeito da ainda viva e presente cultura gramatical
milenar, de um saber consolidado (o que não significa engessado) e ampla-
mente difundido.

Considerações finais
A complexidade que reside na compreensão da discussão sobre ensino de
português promovida no Brasil reflete a complexidade da língua como ob-
jeto teórico e como objeto de aprendizagem escolar. Buscamos analisar neste
capítulo como se constituem duas diferentes tradições a partir das quais se
desenvolvem reflexões teóricas e práticas sobre ensino de língua. Ao término
dessa longa incursão historiográfica, podemos afirmar que a narrativa aqui
desenvolvida reforça que estamos tratando de uma história de deslocamentos,
não de rupturas.
Negar a forte presença da GT nas diferentes esferas de discussão sobre
língua (inclusive na Linguística contemporânea) equivale a acreditar que a
ainda jovem TSD promoveu, efetivamente, uma virada na Linguística, uma
ruptura absoluta com a tradição a que deliberadamente se opõe. Encara-

Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


251
mos os fatos com outros olhos. Defendemos que a entrada da TSD, hoje
já consolidada, no circuito de discussão linguística estabelece uma “fissura”
no pensamento sobre língua e seu ensino. Acreditamos que a GT e a TSD,
embora fundamentalmente contrárias, coexistem como dois domínios cujos
fundamentos estão diluídos em práticas de ensino, em livros didáticos, em
currículos, na opinião pública, entre outros espaços e domínios.
Exemplos que ratificam essa coexistência não faltam. Inúmeros são os
livros didáticos que, numa mesma unidade, tratam de fenômenos da variação
linguística ou, em práticas de leitura, da constituição sócio-histórica de tex-
tos publicitários, mas que, páginas à frente, se prendem ao ensino do padrão
idealizado e analisam fragmentos da escrita literária pregressa a partir da me-
talinguagem aprisionada à NGB. No interior da própria linguística brasileira,
como mostra Vieira (2016), gramáticas brasileiras contemporâneas do portu-
guês, objetos que emergem em oposição às gramáticas tradicionais, embora
compreendam a língua portuguesa brasileira pelo viés descritivo, afastando-
-se da prescrição e da proscrição, não raro se utilizam de categorias próprias
da GT. A partir desses e de outros exemplos, portanto, podemos dizer que a
história da TSD até aqui, tão recente se comparada à milenar história da GT,
é marcada por movimentos de deslocamento no que diz respeito à reflexão
sobre o ensino de língua portuguesa no Brasil.
A título de fechamento, convém enfatizar que toda historiografia é, an-
tes de tudo, uma versão entre outras. Naturalmente, o produto da discussão
aqui empreendida não se pretende absoluto e unívoco. Trata-se de uma in-
vestigação apoiada em vestígios do passado, os quais, naturalmente, podem
evocar outros possíveis e legítimos exercícios hermenêuticos.

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Historiografia da Linguística e Ensino de Língua Portuguesa: da gramática tradicional à tradição sociodiscursiva


255
ORGANIZADORES
Organizadores
Ronaldo de Oliveira Batista

E AUTORES
Professor Adjunto do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Univer-
sidade Presbiteriana Mackenzie. Bol-
sista Produtividade do CNPq.

Neusa Barbosa Bastos


Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Autores
Alessandro Beccari
Professor Doutor da Unesp-Assis, onde atua também no Mestrado Profissio-
nal em Letras.

Dieli Vesaro Palma


Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.

Francisco Eduardo Vieira


Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, onde atua também
no Programa de Pós-Graduação em Linguística e no Mestrado Profissional
Linguística e Ensino.

José Borges Neto


Professor Titular da Universidade Federal do Paraná, onde atua como profes-
sor sênior no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. Também
é professor sênior na Unioeste.

Leonardo Gueiros
Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, onde atua no Depar-
tamento de Língua Portuguesa e Linguística.
Maria Carlota Rosa
Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro.

Nancy dos Santos Casagrande


Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.

Neusa Barbosa Bastos


Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Otto Zwartjes
Professor da Université de Paris e da Université de la Sorbonne Nouvelle/
França. Membro do Laboratoire Histoire des Théories Linguistiques.

Pierre Swiggers
Professor da Katholieke Universiteit Leuven/Bélgica. Diretor do Center for
the Historiography of Linguistics.

Ricardo Cavaliere
Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Lingua-
gem da Universidade Federal Fluminense. Membro da Academia Brasileira
de Filologia.

Ronaldo de Oliveira Batista


Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universida-
de Presbiteriana Mackenzie. Bolsista Produtividade do CNPq.

Organizadores
257
A coletânea de textos que se apresenta é uma homenagem a Cristina Altman. Seu
nome, quando pronunciado ou lido, produz efeito de autoridade no que diz respeito
aos estudos sobre a história do conhecimento produzido sobre a linguagem ao longo
dos tempos.

Nos anos finais da década de 2010, Cristina Altman decidiu se aposentar da vida
acadêmica. Não foram poucos os sinais de desalento dos pesquisadores que muito
aprenderam com ela como compreender a linguagem a partir de uma perspectiva
que privilegia o conhecimento produzido sobre a linguagem, em uma atividade meta-
científica, que antes dos anos 1990 não tinha espaço no Brasil em termos de pesqui-
sa e institucionalização acadêmica.

Este livro nasce do desejo de prestar uma homenagem à professora, à pesquisadora,


à colega, à orientadora. Organizamos não uma coletânea de textos sem vínculo algum
entre si, no qual os colaboradores apenas mandassem textos sobre suas pesquisas.
Não é isso que entendemos ser uma homenagem justa. Este livro é configurado como
um manual de introdução à pesquisa em Historiografia da Linguística. Desse modo,
procuramos recuperar um pouco do talento de Cristina Altman para a formação de
novas gerações de historiógrafos.

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