1. O documento analisa as imagens sociais construídas sobre a cidade de Sobral, localizada no Ceará, examinando o processo de tombamento do seu centro histórico e as narrativas produzidas sobre a cidade.
2. A tese busca entender as narrativas dos moradores, da tecnocracia municipal e do pesquisador, por meio de uma etnografia das práticas cotidianas, durante a administração do prefeito Cid Gomes entre 1997-2004.
3. O trabalho analisa como o tombamento criou implicações na estr
1. O documento analisa as imagens sociais construídas sobre a cidade de Sobral, localizada no Ceará, examinando o processo de tombamento do seu centro histórico e as narrativas produzidas sobre a cidade.
2. A tese busca entender as narrativas dos moradores, da tecnocracia municipal e do pesquisador, por meio de uma etnografia das práticas cotidianas, durante a administração do prefeito Cid Gomes entre 1997-2004.
3. O trabalho analisa como o tombamento criou implicações na estr
1. O documento analisa as imagens sociais construídas sobre a cidade de Sobral, localizada no Ceará, examinando o processo de tombamento do seu centro histórico e as narrativas produzidas sobre a cidade.
2. A tese busca entender as narrativas dos moradores, da tecnocracia municipal e do pesquisador, por meio de uma etnografia das práticas cotidianas, durante a administração do prefeito Cid Gomes entre 1997-2004.
3. O trabalho analisa como o tombamento criou implicações na estr
1. O documento analisa as imagens sociais construídas sobre a cidade de Sobral, localizada no Ceará, examinando o processo de tombamento do seu centro histórico e as narrativas produzidas sobre a cidade.
2. A tese busca entender as narrativas dos moradores, da tecnocracia municipal e do pesquisador, por meio de uma etnografia das práticas cotidianas, durante a administração do prefeito Cid Gomes entre 1997-2004.
3. O trabalho analisa como o tombamento criou implicações na estr
Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 297
Universidade Federal do Cear
Departamento de Cincias Sociais e Filosofia
Programa de Ps-graduao em Sociologia (Doutorado) Aluno: Nilson Almino de Freitas
O Sabor de uma cidade: prticas cotidianas dos habitantes de Sobral.
Fortaleza abril de 2005
2 Nilson Almino de Freitas
O Sabor de uma cidade: prticas cotidianas dos habitantes de Sobral.
Universidade Federal do Cear Fortaleza abril de 2005
3
Tese apresentada Coordenao do Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal do Cear como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor, submetida e aprovada pela banca julgadora composta pelos professores Doutores Ismael de Andrade Pordeus Jnior (orientador), Maria Lina Leo Teixeira, Jos Borzacchielo da Silva, Joo Bosco Feitosa dos Santos e Irlys Alencar Firmo Barreira.
Tese aprovada em _____/_____/_____.
_______________________________________ Porf.Dr. Ismael de Andrade Pordeus Jnior
_______________________________________ Profa.Dra. Maria Lina Leo Teixeira
_______________________________________ Prof.Dr. Joo Bosco Feitosa dos Santos
_______________________________________ Prof.Dr.Jos Borzacchielo da Silva
A tese tem como finalidade analisar imagens socialmente construdas sobre a cidade de Sobral, localizada a 225 km da capital do estado do Cear, Fortaleza. Para compreend- la necessrio entender o processo de patrimnializao de um tempo monumental (Herzfeld,1991), aferido pela tecnocracia responsvel por tornar o centro desta cidade Patrimnio Histrico Nacional. Acontece que esta iniciativa da Prefeitura Municipal e do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), criou uma srie de implicaes tanto na estrutura urbana de Sobral, quanto em sua composio no quadro poltico. A faco ancorada no nome de Cid Gomes elabora uma capitalizao poltica deste fato, construindo uma imagem de administrao moderna e, ao mesmo tempo, respeitosa da tradio local. Portanto, este trabalho pretende trilhar as narrativas proferidas moradores da cidade, as produzidas pela tecnocracia municipal, assim como as resultantes de uma experincia etnogrfica do pesquisador do cotidiano da cidade, tendo em vista entender a multiplicidade de imagens produzidas durante a administrao Cid Gomes (1997/2004), que mostram uma cidade em constante transformao e movimento.
5
Este trabalho dedicado: - Aos meus filhos: Gabriel e Joo Pedro. - Aos meus alunos da UVA (Universidade Estadual Vale do Araca), em especial aos do Curso de Cincias Sociais.
6
A cidade e sua fama vai alm dos mares no meio da esperteza internacional a cidade at que no est to mal E a situao sempre mais ou menos Sempre uns com mais e outros com menos
(Trecho da msica A Cidade de Chico Science & Nacao Zumbi)
7 Agradecimentos
Devo considerar que esta uma das partes mais difceis de um trabalho. Justamente porque existe sempre o receio de esquecer algum ou de ser injusto com outros. Penso que no h aqueles que contriburam mais ou menos, mas sim, pessoas que ajudaram de diferentes formas. Portanto, prefiro fazer referncias aleatrias, sem a pretenso de estabelecer uma hierarquia daqueles que contriburam com este trabalho. Logicamente, no poderia deixar de agradecer professora Auxiliadora Lemenhe, minha orientadora no mestrado e boa parte no doutorado. Seu rigor e dedicao ao trabalho vo sempre me servir de exemplo. Ao professor Ismael Pordeus, meu orientador, at o remate desta tese, que, com sua sabedoria aplicada do seu jeito bem particular, ajudou em muito na estruturao final do texto. Agradeo ao Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal do Cear (UFC) e ao Programa Ps-graduao em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em particular os professores com quem tive aulas e aos que compuseram a banca de qualificao. Aos meus colegas de doutorado com os quais compartilhei dvidas e dificuldades na jornada solitria, porm solidria de elaborao de uma tese. Universidade Estadual Vale do Acara que apoiou a execuo de meu trabalho atravs do fomento parcial para a implantao do Laboratrio das Memrias e Prticas Cotidianas (LABOME), que registrou, organizou e documentou as minhas entrevistas realizadas em Sobral. Aos meus colegas de trabalho que, no momento certo, apoiaram-me na liberao para cursar disciplinas no Museu Nacional da UFRJ, no Rio de Janeiro. Agradecimentos tambm merecem ser dirigidos aos funcionrios da Prefeitura Municipal de Sobral, que ajudaram no levantamento de documentos pertinentes esta tese. Aos meus entrevistados: Maneco, Expedito Vidal, Wilson Brasil, Mariz, Cleiton Medeiros, Sr.Gutemberg, Jos Ferreira, Francisco Estevo, Adalberto Mendes e Romeu Duarte Jr., que, pacientemente, fizeram-me ouvinte de suas narrativas sobre a cidade de Sobral. 8 No poderia deixar de agradecer tambm aos meus bolsistas de Iniciao Cientfica, Ktia Alves de S, Mnica de Sousa Leal, Jlio Csar de Arago, Lauro Jos de Albuquerque Prestes e Meiriane Albuquerque Aguiar que em perodos diferentes muito ajudaram no meu trabalho. Aos bolsistas do Laboratrio das Memrias e das Prticas Cotidianas (LABOME) Tereza Emllia Miranda Vasconcelos, Aderaldo Fontinelle Gis, Silvia Gildete Maria Alves Rosa Duarte, Jannice Sousa Mota, Ronaldo Santiago Lopes, Alecrides Jane Raquel C. B. de Senna, Ana Carmem Aguiar Rodrigues, Ana Argentina Castro Sales e Francisca Nathanielly Souza Mota, que, em perodos diferentes, ajudaram- me na documentao e organizao das entrevistas. Agradeo Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (FUNCAP) que ajudou a financiar meu trabalho com uma bolsa de doutorado, um auxlio em Projeto de Pesquisa e Desenvolvimento que subsidiou parcialmente a compra de equipamentos para o LABOME e bolsas de Iniciao Cientfica. Sem este apoio, o trabalho no conseguiria obter a mesma envergadura. minha namorada Patrcia pelo apoio emocional e organizao dos artigos de jornal. Samara Incio da Silva e Obede Fernandes Andrade, responsveis pela reviso final do texto. Finalmente a todos os sobralenses que me acolheram em sua cidade, mais uma vez me desculpando, coisa que j havia feito no mestrado, no pelo que eu disse, mas pelo que eu deixei de dizer.
9
Sumrio
Consideraes Iniciais ...................................................................................................................................... 10 1 Poltica de tombamento do patrimnio histrico e agenciamento de imagens sobre a cidade ................... 26 1.1 Primeiras impresses ................................................................................................................. 26 1.2 Impresses da autoridade poltica e tecno-burocrtica: patrimnio histrico, tradio e sobralidade ...................................................................................................................................... 41 1.3 Construes e contexto da histria do tombamento do ncleo urbano de Sobral: precises e imprecises ......................................................................................................................................... 54 1.4 Pensando sobre uma idia: opulncia e tradio no contexto histrico de Sobral .................... 62 2 Imagens de uma cidade ............................................................................................................................... 70 2.1 O Pesquisador e a cidade: simulacros de um andarilho ............................................................ 70 2.2 Primeiras afeces e percepes: o analista e um pouco de sua histria na cidade .................. 77 2.3 Ao, feito e manobras: o artefato primoroso das grandes obras em Sobral e seus usos ....85 2.3.1 O Rio e a margem ..................................................................................................... 85 2.3.2 O Anel Virio e o Parque ....................................................................................... 102 2.3.3 Convivncia, formao e turismo: outras sobreposies ....................................... 112 3 Efeito, convergncia e posio: o centro-monumento como mediao de relaes e ajustes .............. 121 3.1 O centro como monumento ..................................................................................................... 121 3.2 Plano e formao sobre o tempo e o espao: a revitalizao, o centro e a cidade na viso tecnocrtica ....................................................................................................................................... 124 3.3 - O centro: diversidade e convergncia de prticas .................................................................... 134 3.4 O centro monumento como mediao de relaes e ajustes ................................................... 154 4 O bairro como marco de distino e classificao social ......................................................................... 166 4.1 Verso oficial da monumentalizao: onde est o homem comum? ....................................... 167 4.2 Como analisar: pressupostos e algumas definies ................................................................. 177 4.3 A virtualidade comunitria: biografia individual e construo da imagem do bairro ............. 190 4.4 Histria circunstancial e Histria monumental: distancias, silncios e relaes ..................... 214 5- Narrativas sobre o espao: mapeamento da melancolia no ambiente urbano de Sobral ............................ 221 5.1 - O narrador e a cidade: as boas e ms lembranas .................................................................... 221 5.2 - O narrador: a cidade e a experincia de vida ........................................................................... 228 5.3 - Afeces do pesquisador. Um breve parntese ........................................................................ 247 5.4 A cidade, os heris, o indivduo e as prticas urbanas ............................................................ 252 Consideraes finais ....................................................................................................................................... 269 Referncias bibliogrficas .............................................................................................................................. 284
10 O Sabor de uma cidade: prticas cotidianas dos habitantes da cidade de Sobral.
Consideraes Iniciais
Como atividade de pesquisa discuto aqui imagens narradas sobre Sobral, cidade localizada a 225 km de Fortaleza. Estas imagens que tento analisar so resultantes de experincias mltiplas ou maneiras de fazer o espao (Certeau: 1994), que falam tanto da cidade planejada e almejada pelas polticas pblicas municipais, quanto da vivida no cotidiano. O ponto de partida para a implementao dessa viagem, atravs de narrativas de moradores da cidade, o fato de Sobral ter sido tombada como Patrimnio Histrico Nacional, em 1999, pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). rgo este ligado ao Ministrio da Cultura do Governo Federal, que aponta diretrizes e princpios gerais que orientam e resguardam toda a poltica nacional de Patrimnio Cultural. Foi um movimento iniciado em 1997, que no partiu da iniciativa do IPHAN, mas sim de integrantes do poder pblico municipal da administrao eleita em 1996 formada pela faco poltica que apoiava o candidato Cid Gomes. Sendo, portanto, a primeira cidade tombada do Cear, este pioneirismo potencializado no campo da poltica e das narrativas ufanistas sobre Sobral. O objetivo aqui no discutir se Sobral merecia ou no ser tombada como Patrimnio Histrico Nacional. , todavia, tentar entender o que realmente isso significa para diferentes agentes sociais, as implicaes desta monumentalizao da cidade (Herzfeld, 1991) para estes agentes, a relao dessa com as polticas pblicas de interveno no espao urbano e a capitalizao poltica que a administrao municipal da cidade faz deste movimento de patrimonializao. Pretendo analisar a cidade entendendo-a como uma obra que deve ser lembrada em honra de alguma identificao pretensamente coletiva como o caso da sobralidade, ou para comemorar algum acontecimento 11 notvel, ou o entendimento do espao urbano como um mausolu suntuoso, em homenagem a um passado glorioso ou obra intelectual ou material digna de passar posteridade. Isto passa a ser um instrumento das polticas pblicas de Sobral no incio do ano de 1997 para informar aos seus habitantes e visitantes sobre a verso de um modelo urbanstico e cultural especial, original e digno de uma recordao eterna. Porm, quais so as nuances, peculiaridades, os silncios e esquecimentos que a Histria e a tradio anunciadas pela monumentalizao aplicada a Sobral resguardam? Como diferentes habitantes vem a cidade, principalmente durante a administrao Cid Gomes (1997-2004) que responsabilizada por mudanas modernas e, ao mesmo tempo de respeito a tradio? Como o pesquisador-morador percebe a cidade neste tempo? No primeiro captulo deste trabalho tento analisar a relao entre as idias expressas nas narrativas de documentos publicados para explicar ou informar os motivos, a necessidade e a justificativa da efetivao deste tombamento e as narrativas associadas qualificao do governo municipal do prefeito Cid Gomes (mandatos de 1997/2000 e 2000/2004) como moderno. Que relao tem o governo moderno com a tradio sobralense? Essa a questo que tomo como central no captulo primeiro, tendo com fonte as informaes produzidas, que falam tanto do tombamento, quanto do governo municipal. Logo, ele serve como um anncio do problema de pesquisa, um ponto de partida a ser explorado. Penso, antes de tudo, que a lgica da monumentalizao aplicada em Sobral est pautada na lgica da informao que, por sua vez, pressupe uma instruo ou um ensinamento baseado em um saber e parecer tcnico com reparties e funcionamento organizado (Certeau, 1984). um texto que fixa um modelo e um contedo no tempo para melhor ensinar. No um ensino baseado em relaes intersubjetivas face-a-face. fundado em uma tecnocincia da comunicao que produz um produto-objeto-informao que massificado, simultaneamente, para vrios agentes sociais que, por outro lado reproduzem a seu modo, com o seu jeito e suas artes. Porm os agentes so entendidos pelos tecnocratas como consumidor-pblico supondo-se por parte do saber tcnico uma cegueira destes em relao ao produto-objeto-informao produzido. Os tcnicos produtores da informao tornaram-se, quer queiram ou no, funcionrios compartimentados e especializados, supondo sempre ignorncia e passividade ou incompetncia tcnica do pblico receptor do que se informa. Por isso acionam a idia 12 do resgate e da revitalizao, justificado por esta ignorncia, passividade e incompetncia tcnica. Sugerindo, assim, o resgate de algo naufragado e esquecido, pois a revitalizao remete a algo que perdeu a vitalidade e deve ser revivido. Na primeira parte deste trabalho tento mostrar que os historiadores, arquitetos e advogados envolvidos na produo dos documentos aqui selecionados que falam do tombamento do espao urbano de Sobral, foram contratados para procurar e escrever sobre fontes classificadas como histricas, tendo em vista fundamentar a poltica pblica de tombamento, apesar de no haver um consenso entre a tecnocracia envolvida no processo sobre o que deve ou o que no deve ser considerado importante para esta empreitada. As estorietas de efeito cmico, anetodas, dentre elas a do nome United States of Sobral, no so deixadas de lado, dando Histria de Sobral um sabor mais agradvel, hilrio, ao mesmo tempo reforando a imagem produzida por sua Histria como o pioneirismo, independncia, porte aristocrtico de seus habitantes, dentre outras. Por outro lado, os agentes-receptores astutamente criam suas imagens de cidade utilizando o produto-objeto-informao produzido pelo saber tecnocrtico como suporte e fonte quando precisam, acrescentando originalidade e criatividade. Este produto uma imagem, assim como as narrativas dos distintos agentes sociais que compem a cidade tambm so imagens. Este o assunto pertencente aos outros captulos deste trabalho. Preferi trabalhar com a noo de imagem que no sentido aqui utilizado no deixa de ser sinnimo de uma determinada forma de conceber o termo representao. Porm, penso que h um problema central em uma das perspectivas associadas idia de representao que preciso explicitar, o que me faz repensar a sua noo, e, ao mesmo tempo, preferir substituir este termo pelo de imagem. Penso que uma das concepes correntes de representao que a definem como imagem mental da realidade, concepo esta ironizada por Magnani (1986), tenta explorar uma combinatria sinttica e semntica que junta pedaos de discursos individuais e atribui uma identidade substantiva como o caso da idia de sobralense. Alm de atribuir identidades substantivas, alguns analistas mais distrados, e o saber tecnocrtico fundamentado nesta inteno, atribuem um discurso mais ou menos homogneo a eles como se todos falassem e pensassem a mesma coisa todo o tempo. Ser que todo sobralense pensa a mesma coisa sobre sua cidade? Percebi durante a 13 pesquisa que nem mesmo os membros da tecnocracia pensam igualmente sobre a cidade. Ser que indivduos pertencentes a um determinado grupo social pensam e falam a mesma coisa? E, como o pesquisador percebe a cidade, j que tambm seu morador? Que imagens me vm cabea quando tento acionar minha memria sobre as experincias com as aes direcionadas monumentalizao e modernizao da cidade? Creio que trabalhar com o termo imagem, apesar de em alguns momentos neste texto parecer sinnimo de representao, contemple uma srie de fatores esquecidos por boa parte dos analistas que trabalham com imagens mentais da realidade, assim como os que trabalham com imaginrio, que so as condies de produo do discurso, a recepo e o espao social que circulam e, principalmente, a dimenso pragmtica das narrativas sobre o espao que visam causar um efeito prtico no interlocutor. A imagem mental da realidade o ponto de partida para esta pesquisa. base de sustentao imprescindvel. Porm no se pode esquecer a dimenso pragmtica do que narrado, que consiste em uma prtica retrica na qual o agente usa e cria para fins especficos uma certa forma de narrativa e um contedo especfico para atender suas necessidades em uma determinada situao. Dessa forma, produz imagens que nem sempre correspondem s suas crenas. Como saber se sua fala realmente corresponde s suas crenas? Diante da impossibilidade de descobrir uma resposta definitiva para esta questo no envolvimento cotidiano com determinados habitantes da cidade de Sobral, resolvi trabalhar com imagens construdas por indivduos em seu contexto social de produo, deslocando o foco de uma sntese obscura, superficial, porm entendida como necessria, para um enfoque mais fluido e flexvel que entende as prticas e as falas como uma estampa provisria e contextual, que tem tambm um fim prtico de mostrar um perfil, um estilo e uma histria especial. Entretanto no pude me conter com estas estampas provisrias, e tentei situ-las em um contexto mais amplo de relaes referentes ao tema proposto. Sei das implicaes, dos riscos e das crticas que este trabalho pode gerar, no sentido de que, na verdade, esboo uma percepo ou conceptualizao de como poderia ser definido o conceito de representao. Assumo este risco diante do desconforto que me causa a utilizao desta noo no sentido de imagem mental da realidade ou mentalidade ancorado em crenas e convices coletivas. At concordo com a idia de 14 imagem mental no sentido aqui criticado, mas no como se fosse um pensamento fixo, definitivo e necessrio. E, sim, como uma opinio provisria, da qual nem sempre se tem plena certeza. uma expresso contextual, influenciada por um grupo de relaes, mas que tem uma arte especfica e individual. Tambm optei por no trabalhar com o termo imaginrio, pelo mesmo motivo. Balandier (1999) parece ajudar-me na resoluo deste problema quando diz que o imaginrio, cada vez mais, est sendo vtima da imagem no momento contemporneo que ele chama de sobremodernidade. No penso que Sobral, por ser uma cidade de um estado pobre, com um alto nvel de concentrao de renda e do interior do serto nordestino esteja distante deste movimento. As narrativas proferidas pela tecnocracia que definem uma Histria e um tempo monumental (Herzfeld, 1991) tendem a mostrar que ela est situada nos tempos modernos. No devo levar em considerao estas narrativas? O que mesmo ser moderno? As reflexes de Balandier mais uma vez parecem ajudar. Para ele a sobremodernidade vivida contemporaneamente, atravs da tcnica que tem a cincia como o seu mais alto expoente, consegue elaborar seriaes inmeras de imagens que alimentam o imaginrio e faz com que o tempo da repetio rotineira, da banalizao das paisagens do dia-a-dia estejam por acabar. O que est alm do usual, e est no campo da essncia, cada vez menos perceptvel. A tcnocincia provoca exploses e inovaes, fazendo o instante invadir a conscincia. O retorno origem fica institucionalizado, tecnicanizado e transformado em espetculo. O tempo monumental construdo em Sobral exemplar neste sentido. Desta forma, na abundncia que o imaginrio se alimenta e se dispersa, tornando-se identificvel. Ele no serve mais para explicar o mago das coisas. No sequer uma mentalidade estvel que orienta, tradicionalmente durante geraes, a conduta coletiva. O problema est na concepo que entende o imaginrio dotado de onipresena, de anterioridade, agindo nas pessoas, presente nas obras, nos movimentos e na Histria. Nos dias de hoje cada vez mais difcil saber distinguir o que real da imaginao fantasiosa. O excesso, a velocidade, a tecnocincia fazem com que a imaginao seja canalizada para fins institucionalizados, padronizados, fabricados e expostos a variaes e desejos efmeros. A 15 crena, portanto, est diluda neste movimento. Ela tambm se torna efmera, negocivel e passvel de trocas comerciais. As sensaes, as pulses, os desejos, passam a ser vtimas da aparncia, do brilho da superfcie e do fugaz. Logicamente todo este movimento passa por mediaes contextuais. Ele no homogneo. Porm, por sua causa, cada vez mais difcil acreditar com convico, se determinada manifestao de indivduos ou de grupos sociais crena ou fantasia. Prefiro no tentar decifrar ou resolver este problema. Por isso fico com as imagens. No posso tambm entender a imagem como uma realidade somente imediata. Ela construda, feita de influncias tambm exteriores, hbrida. A imaginao no consegue acompanhar de perto a proliferao exaustiva e excessiva de imagens, que mostram novos horizontes todo tempo realimentando a imaginao. A idia de um futuro visvel, por exemplo, como o caso de algumas narrativas que qualificam as aes implementadas pela administrao Cid Gomes, causa desorientao e fascinao, aparece como determinante de uma verdade sobre o que possvel e necessrio se fazer por uma cidade. As imagens narradas por esta verso so espetacularizadas, massificadas e a todo custo tentam tornar-se visveis. Visibilidade esta que outra caracterstica marcante do momento contemporneo. Para que o indivduo seja reconhecido socialmente, tem que se tornar visvel. O tornar visvel, tido como necessrio para o processo de experimentao tcnica da cincia, marca tambm a cultura e o cotidiano. Tudo tem que se tornar claro, iluminado e o incerto deve ser jogado na escurido. H uma dependncia muito grande com relao luz. Este instrumento fonte de visualizao, tratado com dispositivos cada vez mais complexos, transformando o objeto que enfoca em tela (Balandier, 1999). Os artefatos de luz aplicados cidade, como o caso de Sobral, multiplicam o efeito da tela, que ganha ao fundo uma paisagem que emoldura um desenho urbano, ressaltando determinados espaos, com tons e cores diferentes e com perspectivas variadas. O stio monumental ganha contornos mais expressivos e efeitos mais chamativos. J a periferia que abriga os moradores mais pobres, tende a ser menos iluminada; somente aparecendo de forma meio escondida, com cores mais fceis de aplicar dando efeito necessrio quando se quer divulgar determinados projetos. 16 A cidade nas narrativas que justificam a monumentalizao, sempre exaltada por sua capacidade de aparecer, no s para os seus moradores, mas tambm para o mundo. Esta tentativa de aparecer no uma maquinao enganadora, uma necessidade existente neste tempo em que tudo parece ser instvel, nada certo, e tudo que slido se desmancha no ar 16 . Portanto no um movimento que se possa atribuir somente tecnocracia fundamentada pela tecnocincia, mas tambm aos indivduos. Mas, que imagens so produzidas? O que se quer mostrar? Fundamentado em que pressupostos? S posso responder parcialmente estas perguntas, j que as imagens s podem ser entendidas de forma contextual. Muito vai se perder, muito vai ser deixado de lado e selecionado pelo olhar do pesquisador. Tenho isso no como uma escolha, mas como necessidade inevitvel, diante da incerteza das crenas que esto ou no por trs destas imagens narrativas. As entrevistas que foram feitas para visualizar as imagens individuais passaram por critrios que mudaram com o tempo. Inicialmente no queria trabalhar com qualquer narrativa, mas aquela produzida por narradores que tm um perfil estilstico muito parecido com o descrito por Walter Benjamin (1984). Para este autor, o narrador tem um estilo especial de afetar o ouvinte. um estilo artesanal, um ofcio manual, que fala coisas que fazem o ouvinte pensar. No conta histrias lineares com incio, etapas e um fim exemplar, mas banaliza estas histrias, cotidianizando-as e fazendo o ouvinte passar a admir-lo, no como um grande heri de um romance, mas como uma pessoa que sabe viver bem a vida. O narrador benjaminiano um sbio, no no sentido erudito do termo, mas uma pessoa prudente, esperta, astuta que com facilidade convence o ouvinte de sua sagacidade. a pessoa que sabe dizer a coisa certa para a pessoa certa. Logicamente, pessoas com este perfil no podem ser encontradas da mesma forma que se localiza um objeto, at porque este estilo de comunicao especial do narrador benjaminiano baseado em critrios inteiramente subjetivos que dependem muito do tipo e da qualidade de interao entre ouvinte e falante. Porm, primeiramente, procurei basear- me neste perfil para escolher interlocutores que se aproximassem deste estilo. A classificao, reconheo, tem relao com um julgamento pessoal de quem ou no um bom narrador. De qualquer forma, um contato inicial sempre era necessrio para ver ou
16 Frase construda por Marx no Manifesto do Partido Comunista, pensando a sociedade burguesa, e tomada como ttulo do livro de Marshall Berman (1986). 17 para sentir se determinado entrevistado me afetava de uma forma especial. Em todos os contatos realizados solicitava ao entrevistado que me contasse sua experincia de vida na cidade. Com o tempo percebi que deveria ser mais flexvel nas minhas escolhas e comecei a entender que qualquer pessoa um narrador. Acontece que a performance de alguns pode agradar ao interlocutor mais do que a de outros. Tomei tambm como pressuposto que os textos escritos e publicados em peridicos, folhetos, panfletos, dentre outros tipos de escrita, tambm so narrativas. Como morador da cidade poderia ser um pesquisador- narrador, j que moro nela a 10 anos, dentre estes, 9 dedicados a pesquisar seu cotidiano. Assim, com o tempo percebi que aqueles que julgava no ser um exmio narrador tambm tinham coisas interessantes para falar, apesar de suas entrevistas serem de curta durao. Por isso no desperdicei o material registrado com estes a quem julguei posteriormente no serem exmios narradores. Assim, entendi que o narrador, da forma pura com as mesmas caractersticas detalhadas pelo autor alemo, no pode ser encontrado. O que me causou grande decepo. Ao todo foram dez pessoas entrevistadas, perfazendo 26 horas de fitas gravadas variando de uma a sete horas para cada entrevistado. Os perfis so bem variados, passando por um maestro, um comerciante, uma rezadeira, quatro lderes comunitrios com diferentes tipos de interesse e envolvimento poltico, um agricultor, um tcnico do IPHAN e um contador que tambm jornalista, narradores estes que sero melhor apresentados durante os captulos. Uma srie incontvel de documentos escritos e dirios de campo elaborados, como registro de minhas caminhadas por vrios cantos da cidade, tambm foi organizada. A perspectiva aqui de que trabalhando com narrativas posso fugir da idia de suportes homogneos de fala que levam a uma identificao substancial de grupos que aparecem como unnimes e consensuais. Como j disse no penso que todo sobralense fala a mesma coisa sobre a cidade. As narrativas individuais tambm so contextuais e produzem imagens. Atravs da audio o ouvinte tambm cria imagens sobre o que narrado. Como ouvinte-pesquisador, era impelido tanto pelas experincias vividas e conversas informais nas caminhadas, quanto pelas narraes orais, registradas pelas entrevistas gravadas. As conversas informais tambm produziram uma srie de personagens neste trabalho que foram aparecendo medida que o registro etnogrfico era reproduzido. 18 As nicas narrativas nas quais no posso precisar um contexto de enunciao no cotidiano, so as elaboradas e textualizadas como suporte para justificar o tombamento de uma parte de Sobral como Patrimnio Histrico Nacional. Isso porque no foi fruto de uma conversa ou interao face-a-face, seja ela formalizada por uma entrevista, seja ela informal como na ocorrncia de um encontro casual. Porm os textos escritos so narrativas porque tm um contexto que se encontra em patamar mais geral e que tem relao com o momento poltico vivido pela cidade. Alguns deles so resultantes de uma mobilizao de esforos de uma faco poltica da cidade, que tenta conciliar uma imagem moderna atravs da construo de uma histria exemplar, que, apesar de ser uma verso, passa a ser entendida como um modelo que deve ser tomado como prospectivo ou que tenta passar a idia de que o sobralense mais do que pensa que . Outros textos, em que o nome de seus autores aparece, podem ser situados tambm neste contexto poltico mais geral, nem sempre legitimando as qualificaes atribudas ao poder pblico municipal, mostrando que as classificaes laudatrias no so consensuais. Portanto, deste ponto de partida que a monumentalizao da cidade, as narrativas escritas e publicadas nos peridicos, panfletos e livros e as registradas atravs de entrevistas articuladas com a minha prpria experincia de vida na cidade, levam anlise para alm desta temtica especfica, que o tombamento do espao urbano de Sobral, como patrimnio histrico nacional, ao mesmo tempo em que fonte para compreend-lo de uma forma mais ampla. uma reflexo urbanstica tambm, na qual a monumentalizao situada e articulada a aes de estruturao do espao urbano da cidade. Existe tambm articulao com polticas classificadas pelo termo genrico e impreciso de sociais, assim como ao turismo, a educao, dentre outras. Os captulos que se seguem ao primeiro versam nesta perspectiva. A idia tambm buscar fragmentos e lugares semnticos dispersos no espao urbano de Sobral, a partir de falas sobre a cidade, lembradas por seus habitantes. No no sentido de verificar se elas coadunam ou no com as narrativas textualizadas, sistematizadas em um conhecimento-informao produzido por um saber tcnico que justifica a idia do tombamento; mas, sim, no sentido de tentar registrar a fluidez narrativa e as imagens produzidas por estes narradores sobre a cidade, que vai alm da exteriorizao terica e visual, produzida por estes documentos pautados no saber competente de 19 historiadores, arquitetos e advogados. A estas falas pretendo tambm articular, como fonte, a experincia etnogrfica vivida pessoalmente, assim como a de meus bolsistas de Iniciao Cientfica 17 , registrada durante nossas caminhadas no espao urbano. As falas do pesquisador tambm so contextuais e interessadas, pois tendem a demonstrar as intervenes, tenses e prticas cotidianas dos agentes sociais, assim como as relaes entre estas e as intervenes do poder pblico municipal, sejam elas modernizantes, sejam elas tradicionalizantes. Portanto trs tipos de imagens se misturam na minha anlise: do analista e seus bolsistas, as produzidas pelas narrativas dos entrevistados e as publicadas e/ou registradas como documentao selecionada que falam sobre a cidade, produzidas ou no pelo poder pblico, relativas monumentalizao ou modernizao, difundidas atravs das diversas formas de mdia. Sou tambm um narrador da cidade apesar de minha profisso exigir que produza um conhecimento supostamente registrado como cientfico e objetivo. J que sou obrigado a produzir um conhecimento, h como produzi-lo sem envolver sensaes emocionais? Fentress & Wickham (1992) refletem sobre esta questo quando chamam a ateno para a distino entre recordao e conhecimento. Para estes autores a recordao pode ser pensada como, eminentemente, um estado de esprito. J o conhecimento, dependendo do contexto, pode ser-nos acrescentado ou subtrado sem que o agente social seja alterado no estado fsico. Parece-me que esse tipo de conhecimento dissociado da emoo e da subjetividade muito mais marcante na escrita que necessita de sistematicidade e objetividade. Moro na cidade desde 1995 e em 1996 comecei a interessar-me em pesquisar sobre as tentativas recorrentes de determinados moradores que publicam artigos em instrumentos de comunicao de massa, construindo uma imagem do que significa a sobralidade. Portanto, at o presente momento, foram 9 (nove) anos de trabalho de investigao sobre esta questo. Isso demanda envolvimento pessoal e emocional, assim como terico e racional. A condio mental ou emocional produzida pela impresso de meus rgos do sentido, como apreenso, angstia, prazer, impresses emitidas pela emoo, dentre outros,
17 Aqui me refiro aos meus bolsistas de Iniciao Cientfica do perodo 2001/2003 Ktia Alves de S, Mnica de Sousa Leal e Jlio Csar de Arago, como tambm os de 2004: Lauro Jos de Albuquerque Prestes e Meiriane Albuquerque Aguiar. 20 misturam-se e se confundem com reflexes tericas e conceituais que demandam objetividade e sistematicidade. A teoria acaba prevalecendo como disciplinadora das minhas emoes e conduta. Emoo que no poderia deixar de aparecer quando se lida com o humano, pois demanda uma interao e relaes face-a-face com os agentes sociais que fazem parte do meu objeto de estudo. Nestas relaes prximas com diferentes moradores da cidade percebi que h uma diversidade infinita de imagens nas falas das pessoas. Nas narrativas sobre o espao urbano, recorrentemente, h tanto imagens influenciadas por aquelas processadas e difundidas pelas polticas pblicas, como a idia da necessidade de tornar a cidade um monumento que evoca um tipo de passado, que ressalta caractersticas que devem ser imortalizadas pelo tombamento de uma parcela do ncleo urbano, como imagens extremamente criativas e inesperadas sobre a cidade. Desta forma, percebi que o registro de classe talvez no seja o nico critrio operativo nas escolhas dos narradores para esta pesquisa, ou seja, o sujeito, quando fala de sua cidade ou do espao onde mora, reproduz afeces produzidas durante sua experincia de vida e, ao mesmo tempo, tende a produzir imagens, consideradas significativas para o contexto em que fala, de acordo com interesses que esto em jogo e com as regras de convenincia implicitamente subtendidas (Mayol, 1994). H uma dimenso tambm individual nas narrativas, que tem relao com aqueles que parecem afetar mais a subjetividade do interlocutor e com aqueles que afetam menos. Percebi que mesmo na formalidade de uma entrevista, constituda uma relao social, em que o reconhecimento mtuo, entre entrevistador e entrevistado, fundamental e constitudo durante o prprio evento. Saber quem quem d maior segurana ao narrador. O desconhecido deve ser reconhecido imediatamente para que eles possam acionar comportamentos convenientes diante daqueles que lhes so estranhos. O reconhecimento no uma coisa substantiva e definvel de forma determinante. um jogo, no qual as regras so mais ou menos reconhecidas pelos envolvidos e, ao mesmo tempo, so produzidas no contexto de situao do evento. Diante disso, o registro de classe diludo no contexto das relaes face-a-face que so extremamente criativas, fugindo de possveis classificaes classistas ou grupais, se entendidas como frma rgida, necessria e definitiva. No h frma, h formas criativas dentro de possibilidades limitadas pelo grupo de convivncia. O que conveniente de se dizer, o que no inviabiliza ou ofende aqueles 21 com quem pretende continuar se relacionando enquanto grupo de afinidade. O registro de classe, nas relaes cotidianas, sejam elas quais forem, acionado de acordo com os interesses e a forma de relao estabelecida pelos agentes envolvidos. O que observei e pretendo registrar nesta pesquisa, portanto, uma trama e no uma estrutura relacional fixa. Os agentes tecem percursos, sejam eles aes ou narraes, que se cruzam em vrios sentidos, elaborados pelas suas urdiduras pautadas em uma arte de fazer (Certeau, 1994). A trama, por conseguinte pautada em um ardil, em astcias, em enredos elaborados para o contexto, em maquinaes, em tramias, no no sentido pejorativo destes termos, apesar de que, em alguns casos, isso pode acontecer, mas no registro da arte. Na arte tanto h prescries ou regras, quanto habilidades, gneros e padres de beleza distintos. As relaes cotidianas, portanto, so constitudas na tenso entre a convenincia e a astcia. Os conceitos rgidos sustentados em dualidades superficiais como elite/popular, urbano/rural, dentre outros, so relativizados e convertidos a uma flexibilidade pragmtica e contextual. As narrativas, a paisagem, a organizao do espao, assim como as prticas e as obras dos agentes so fundamentais para entender a cidade como produto ou arte. Os agenciamentos cotidianos dos distintos personagens que compem o complexo cenrio urbano, no entanto, so difceis de classificar enquanto sntese de uma classe ou grupo. A seleo dos agentes e agenciamentos nesta perspectiva, relativiza a dicotomia elite X popular, pois estas noes carecem de conceptualizao mais rigorosa. Os prestigiosos sujeitos sociais considerados como elite, por exemplo, assim como os demais representantes de outros segmentos sociais, tambm so habitantes da cidade, os quais criam imagens distintas de experincias variadas. O que realmente elite? Percebe-se que os considerados e classificados socialmente enquanto tal, seja pelo analista, seja pelos agentes sociais analisados no cotidiano, no pensam somente na perspectiva do "olhar competente", ou do interesse de classe, ou ainda interesse do poder, apesar de estes serem fundamentais. Eles pensam em outras coisas tambm em seu dia-a-dia. Elite, portanto, um conceito genrico, mas no deixa de ser operativo quando precisamos classificar um grupo tambm genrico de pessoas de prestgio no campo poltico e econmico. 22 Nesta perspectiva, a preocupao com a condio scio-econmica s foi um dentre outros critrios de seleo dos agentes e agenciamentos cotidianos a serem analisados. Mas este critrio no pode ser determinante para definir suportes homogeneizados de comportamento, conduta ou fala. Isso porque, como mostram algumas experincias de vida narradas, h casos em que as falas oscilam entre a demonstrao de uma experincia individual compartilhada com pessoas de prestgio social, econmico e cultural na cidade e, ao mesmo tempo, mostram uma condio financeira desprivilegiada. Alm disso, dentre aqueles que podem ser classificados como pertencentes a grupos sociais prestigiosos, dizer que representam o pensamento da elite e se contentar com isso pode-se incorrer no problema tanto da generalizao quanto da impreciso, pois se percebe que entre os distintos cidados de prestgio, h diferenas de opinio, disputas, jogos de vaidade, dentre outros aspectos que mostram tambm diferenas internas. A fama acabou sendo tambm outro critrio de seleo dos interlocutores- narradores entrevistados. Isso no quer dizer que s trabalhei com aqueles que tm fama no campo econmico, poltico, social ou cultural. Nas minhas caminhadas pelos diferentes bairros da cidade, fui conhecendo pessoas que me apresentavam a outras que eram reconhecidas por elas como sabedoras de algo sobre o bairro ou a cidade ou que tinham muita histria para contar, ou seja, aqueles, que tinham fama de gostar muito da cidade e tinham registros na memria sobre histrias acontecidas em Sobral eram entrevistadas. Algumas delas publicavam artigos em jornais locais, o que tambm serviu de fonte. A fama uma qualidade que se aplica a indivduos que adotam condutas que se supem regular, gerando expectativas no sentido de fazer com que seus comportamentos correspondam fama que possuem. Isso porque somente o critrio de classe no me fornecia subsdios suficientes para escolher pessoas que tivessem vontade de falar sobre sua histria na cidade. Em alguns casos era at confuso saber se um determinado indivduo pertencia a elite ou no. Um dos entrevistados, por exemplo, conhecido por sua atividade no passado como maestro e conviveu com nomes expressivos no campo poltico e econmico, mas nem sempre foi maestro e muito menos uma pessoa rica. Muito pelo contrrio mora em uma casa modesta e em um bairro que abriga uma parcela dos menos favorecidos economicamente. Apesar disso, foi indicado por vrias pessoas como um bom contador de histrias sobre a cidade. No desperdicei a dica. 23 Outra entrevistada conhecida por suas atividades como parteira e rezadeira, apesar de ter tambm exercido outras atividades como a de domstica ou de trabalhadora da indstria. A fama de contadora de histrias sobre o seu bairro levou-me essa mulher. Estas famas conduziram um pouco minhas escolhas. Um outro tipo de fama se refere a atividades profissionais. Como j dito, foram entrevistados uma parteira, tambm rezadeira, um maestro, quatro lderes comunitrios, um comerciante, um ex-operrio e atualmente agricultor e um tcnico do IPHAN. A fama, no que tange atividade profissional, tende a ser substantivada, esquecendo-se as outras atividades que desenvolveram no passado. Apesar disso, qualifica-os socialmente perante os demais que fazem parte do grupo de afinidade de cada um. O registro de narrativas proferidas durante as caminhadas nos bairros da cidade tambm foram foco de anlise. Porm, as minhas escolhas sempre foram orientadas pela necessidade de fuga dos suportes homogeneizados de fala que se pressupe representar um determinado segmento social. Quando algum analista distrado constri suportes homogeneizados de fala como a afirmao de que todo sobralense esnobe, como j ouvi alguns colegas dizerem, mostram uma verso desprovida de uma anlise que possa ver o movimento intenso de aes pragmticas diferentes, astcias, redes de sociabilidade sendo constitudas no cotidiano, atividades sendo executadas de formas distintas, pontos de encontro entre idias narradas pelos agentes, pontos de desencontro entre outras narrativas, dentre outros aspectos que do vida e movimento as imagens construdas pelos habitantes da cidade. O registro do envolvimento cotidiano e direto do pesquisador com seu objeto de estudo, e o registro de narrativas, alm da anlise detalhada de diversos tipos de documentao escrita e imagtica, principalmente as elaboradas para justificar ou fundamentar a monumentalizao da cidade, ajudam a lembrar esta dimenso esquecida pelo olhar "de fora e de longe". um "olhar de perto e de dentro", como designa Magnani (2002). A inteno aqui ir alm do "olhar competente" do perito que decide o que historicamente importante para ser considerado patrimnio, assim como vai alm da perspectiva dos "interesses do poder" que decide o que conveniente como empreendimento e lucrativo como investimento. A perspectiva adotada aqui de que se deve preocupar mais em perceber os diferentes ordenamentos de sentido, de signos, de significados, de usos e de prticas 24 presentes na cidade e no tentar homogeneizar um ordenamento geral, nico e definitivo. A alternativa parece ser uma radicalizao, no sentido de enraizamento profundo das possibilidades inmeras de pensar ordenamentos sociais possveis. J que estou trabalhando com imagem, no poderia deixar de lado o recurso da fotografia para enfatizar meus argumentos. Ela no aparece como mera ilustrao, mas sim, como um recurso de visibilidade, iluminando as descries das narrativas. Essa a trilha, que no a nica possvel, que o leitor percorrer neste trabalho. Como j dito, trabalho com imagens que fazem parte da poltica de monumentalizao, mostras e aparncias sobre a cidade e o sobralense, como forma de apresentao do problema. No me contento em fazer um inventrio de imagens apontadas pela monumentalizao, mas relacion-las com outras que apareceram no meu cotidiano, como a idia da influncia estrangeira na cidade e seu esnobismo. Penso que h uma articulao entre a idia de tradicionalizao do espao e a de modernizao presente nas narrativas proferidas pela tecnocracia integrante e/ou integrada atravs de contrato no poder pblico municipal. No segundo captulo trabalho com imagens geradas por obras estruturais e paisagsticas edificadas no entorno do stio histrico tombado. Nesta parte, como analista, apareo de uma forma mais consistente, contando uma parcela da histria da cidade a partir do momento em que l fui morar e as mudanas ocorridas durante este tempo, principalmente no centro. Os recursos tecnoimagticos, utilizados pelo poder pblico municipal, nas inauguraes das obras no entorno do stio histrico so descritos e analisados, mostrando a capitalizao poltica, no sentido de legitimar essas imagens, atravs do recurso da espetacularizao. No terceiro captulo, tento dar continuidade explicitao das intervenes do poder pblico na cidade, particularmente no centro que corresponde ao stio histrico tombando, tentando entender a relao entre a monumentalizao e modernizao. Elaboro aqui um texto mais narrativo das mudanas ocorridas nessa faixa da cidade, recorrendo s reflexes de minha dissertao que trataram deste tema, enriquecendo-a com novas vises e fontes de pesquisa. O quarto captulo trata tanto da periferia pobre como da rica de Sobral e a relao 25 entre este espao e a monumentalizao pautada na Histria local que, a meu ver somente uma verso, como toda e qualquer histria, mas pretende mostrar de forma genrica o percurso no tempo de um sujeito social genrico batizado sobralense. Mostro outras histrias narradas por moradores da cidade que, no necessariamente, so diretamente atingidos pela poltica pblica de monumentalizao. So histrias circunstanciais, quase biogrficas em que a ordem de importncia dos personagens invertida: o protagonista vira coadjuvante e o coadjuvante na Histria local vira protagonista. Portanto no so histrias que se opem, mas se complementam, indo alm da identificao abstrata e genrica da sobralidade registrada na administrao Cid Gomes atravs de sua poltica de patrimnio. Finalmente no ltimo captulo, tento trabalhar a relao entre as lembranas do tempo monumental e as de indivduos narradores escolhidos nas caminhadas pela cidade, assim como entender a avaliao destas pessoas com relao ao contexto poltico local contemporneo com a administrao Cid Gomes. Acompanhar a experincia de pessoas e seus trajetos, registrar usos e prticas distintas no espao urbano, sejam eles expressos atravs das imagens formuladas nas narrativas, sejam expressos na vivncia cotidiana do analista com os agentes sociais, vivenciando com eles suas prticas, seja o olhar minucioso sobre alguns tipos de documentao escrita ou imagtica que ajudam a revelar um mapa de contatos significativos e contextos muito variados de experincias de vida na cidade, vo muito alm de uma obra intelectual ou material digna de passar posteridade. tambm uma pesquisa resultante de uma experincia contingente e contextual da experincia do pesquisador com a cidade. essa trilha que o leitor vai percorrer neste trabalho.
26 1 Poltica de tombamento do patrimnio histrico e agenciamento de imagens sobre a cidade
1.1 Primeiras impresses: Desde que comecei a trabalhar em Sobral, venho escutando de meus amigos e pessoas que fazem parte de minha rede de relaes em Fortaleza, local de minha antiga morada, e capital do estado brasileiro do Cear, uma srie de brincadeiras referentes ao jeito de ser sobralense. O nariz empinado, o jeito aristocrtico do habitante da cidade, o termo United States of Sobral so correntes nas diferentes narrativas principalmente dos habitantes de Fortaleza que conheo. Elas tambm so correntes em notcias de jornal sobre Sobral e so reproduzidas em pronunciamentos de polticos locais quando falam sobre a urbe. O prprio prefeito Cid Gomes (gestes 1997/2000 e 2001/2004), em vrias oportunidades, cita o fato do historiador ingls Paul Johnson ter dito em seu livro Modern Times: The World from the twenties to the nineties que Sobral ajudou na constituio do que, hoje, alguns chamam de modernidade quando, Tira de humor publicada no jornal de circulao local Expresso do Norte do dia 09 a 15 de agosto de 2003. Nota-se uma das implicaes da interveno urbana na cidade que a no utilizao das ciclovias da avenida pericentral recentemente construda, mas, principalmente, a placa do carro onde est escrito USA Sobral. 27 atravs de uma experincia realizada na cidade, pesquisadores brasileiros e estrangeiros comprovaram empiricamente a teoria da relatividade 18 . Alm de citar este fato, reafirma em forma de brincadeira que isso s poderia ter sido ressaltado em ingls o que remete a imagem da denominao conferida cidade de United States of Sobral. Os jornais de circulao estadual e local tambm esto constantemente jogando com estas imagens. No jornal O Povo de circulao estadual, um artigo de Felipe Arajo, de cinco de abril de 1997, chama ateno para o uso desta classificao de Sobral associada influncia estrangeira, distinta das demais cidades cearenses. O ttulo j sugere isso quando diz: Sobral stories: os estrangeiros que passam, as influncias que ficam e as histrias que fazem da Princesinha do Norte nossa cidade mais esnobe e cosmopolita. O articulista tenta convencer de que o sobralense tem comportamento aristocrtico, pomposo e esnobe, no no intuito de ofender o possvel leitor nascido nesta cidade, mas de exaltar capacidades de ser do sobralense no que se refere autonomia, do ponto de vista poltico, econmico, religioso, cultural e at moral, alm de um comportamento cosmopolita de seus habitantes. A imagem do estrangeiro est colada a uma idealizao corrente nas narrativas escritas e publicadas nos jornais estaduais e locais, ressaltando o pioneirismo e a independncia peculiar ao sobralense. Tudo isso se refora pela influncia estrangeira na cidade, marcada inclusive no seu nome quando considerada ainda vila: Vila Distinta e Real de Sobral 19 . Fato este que apesar de ser uma caracterstica no s de Sobral, passa a ser anunciada como particular desta cidade. Um outro artigo refora esta idia quando pretende saber a opinio de alguns sobralenses sobre as eleies presidenciais norte-americanas. O artigo diz o seguinte: Se dependesse dos votos de Dayvid, Tayana, dos John e Mary residentes em United States of Sobral o presidente reeleito para mais quatro anos frente do pas mais poderoso do mundo, o presidente George Bush, seria detonado. Sobral mudaria a histria. O eleito dos Estados Unidos seria John Kerry, 60. Populares foram pesquisados pelo Expresso do Norte, no
18 Esta lembrana refere-se experincia emprica que comprovou a teoria da relatividade, efetivada em Sobral, no ano de 1919 por trs misses de especialistas: uma americana, uma inglesa e uma brasileira. Em um carto postal distribudo na cidade pode-se ler a traduo de um trecho do livro do historiador que diz: O mundo moderno comeou em 29 de maio de 1919, quando fotografias de um eclipse solar, tirada na ilha do Prncipe, na frica Ocidental, e em Sobral, no Brasil, confirmaram a verdade da nova teoria do universo [grifo exposto no carto]. 19 O termo distinta era concedido a vilas colonizadas predominantemente por populao branca e o termo real refere-se concesso da condio de vila por parte do prprio rei. Cf. Freitas, 2000. 28 Becco do Cotovelo 20 , por telefone e no pensionato Padre Ibiapina. Muita gente mesmo sem saber explicar o motivo disse, sem pestanejar, que votaria no Kerry. Cinco comensais do pensionato o escolheram por unanimidade. Somente os Silva, sobrenome bem brasileiro, sufragava Bush (jornal Expresso do Norte, 6 a 12 de outubro de 2004). O jornalista Lustosa da Costa tambm produz uma imagem semelhante em uma de suas crnicas sobre a cidade. Ele conta que: Quando operei o corao em 1995 em Paris, houve quem zombasse: isto coisa de sobralense. Pois bem. Na ltima viagem a Sobral encontrei, completamente recuperada, minha professora Jacira Pimentel que sofreu o diabo por conta de fratura na bacia. Quando ela me disse que precisava pagar promessas por sua recuperao, indaguei: Vai 13 de Maio agradecer a Nossa Senhora de Ftima? A So Francisco do Canind? Como boa sobralense aculturada, ele[sic] respondeu, modestamente: Vou a Santiago da[sic] Compostela(jornal Dirio do Nordeste, 5 de janeiro de 2005). Parece contraditria a idia de que algum pode ser aculturada em uma cidade onde a prefeitura implantou uma poltica de preservao do patrimnio histrico. Entretanto, a idia que se passa no tanto a de uma pessoa que desvaloriza as coisas da sua terra. Esta e a reportagem anterior parecem ser uma ironia por inverso. Ou seja, se brinca com a idia do estrangeirismo supostamente tpico do sobralense, que sugere uma exaltao da idia da opulncia e riqueza que, inclusive, pode levar o morador desta cidade a no precisar pagar promessa em Canind ou Fortaleza, mas na Espanha em Santiago de Compostela. Uma reportagem do Expresso do Norte acrescenta outros elementos influncia estrangeira na cidade. O ttulo de capa da reportagem Yes, tambm temos beisebol. Segundo a matria: Os tacos, as luvas, os uniformes e o entusiasmo da garotada praticando este esporte de origem egpcia e modernizada pelos norte-americanos a prova mais recente de que Sobral mesmo a cidade que se diferencia pelas particularidades absorvidas do exterior (jornal Expresso do Norte 31 de julho a 6 de agosto de 2004). O artigo informa que a prefeitura pretende dar apoio a esta atividade, construindo um campo no Derby Club, onde funciona o jquei da cidade. Esta idia da influncia
20 As peculiaridades do Becco do Cotovelo sero tratadas no captulo III deste trabalho. Para a leitura de uma etnografia detalhada deste espao social Cf. Freitas, 2000. 29 estrangeira tem um forte estmulo, por indcios da Histria da cidade que serve de justificativa para a poltica de patrimonializao que aponta para uma independncia e pioneirismo de Sobral com relao a Fortaleza, at meados da dcada de 1930, e um contato desta cidade da regio norte do estado com a Europa atravs do porto de Camocim, o que refora narrativas atuais. Independentemente dos exageros, esquecimentos e sobreinterpretaes destas imagens, a preocupao em procurar os fundamentos simblicos, empricos e histricos das imagens que aparecem nestas narrativas, levou-me a refletir, em trabalho anterior, acerca de uma das categorias usuais em notcias sobre a cidade nos jornais de circulao municipal e estadual: a sobralidade triunfate 21 . Esta anlise fez-me crer na existncia de um modelo de reconhecimento social associado a um forte sentimento de pertena, por parte de determinados indivduos, que possuem certo prestigio social no campo poltico da cidade, e que ocupam o poder pblico municipal, tendo em vista criar uma marca distintiva que possa servir como rtulo para uma cidade que pudesse ser no s um plo econmico importante na regio, sendo espao privilegiado para o consumo, mas tambm uma cidade a ser consumida atravs de polticas pblicas direcionadas para o turismo, eventos, entretenimento, desporto e cultura. Nos documentos oficiais, produzidos pela municipalidade, a tradio, associada a uma opulncia demarcada por determinados tipos de lembranas do passado, serve como argumento para justificar o tombamento da cidade como patrimnio histrico nacional. Tombamento este que estimula o aprimoramento de uma marca para a cidade. exemplar a afirmao do Secretario de Cultural, Desporto e Mobilizao Social da gesto 1997/2000 22 Jos Clodoveu de Arruda Coelho Neto neste sentido quando escreve em resumo de um artigo publicado na revista SANARE editada pela Prefeitura que, O povo sobralense registra a sua identidade em um importante patrimnio material e imaterial construdo ao longo da histria do municpio. A
21 Cf. Freitas, 2000. 22 Gesto da faco poltica ancorada no nome do prefeito Cid Gomes que se reelegeu para dois mandatos (1997/2000 e 2001/2004). Esta Secretaria no primeiro mandato tambm voltava suas aes para a rea batizada de mobilizao social. No segundo mandato esta rea de atuao incorporada Secretaria do Desenvolvimento da Sade e as polticas pblicas voltadas para o turismo e o desporto so acrescidas s prerrogativas da Secretaria do Desenvolvimento da Cultura (Secretaria do Desenvolvimento da Cultura, Turismo e Desportos). 30 preservao desse patrimnio significa a preservao da prpria identidade desse povo. A Administrao Sobral no Rumo Certo compreendeu isso e conquistou para o municpio o tombamento do seu centro histrico, no somente para efeitos de contemplao e estudos. O processo de reconstruo da histria patrimonial e cultural de Sobral tem devolvido a uma parcela marginalizada do povo sobralense a sua identidade perdida, contribuindo, dessa forma, para a reincluso desses grupos na vida social(Sanare, out/nov/dez de 2000:42). As peculiaridades histricas da cidade so todo o tempo ressaltadas pelo articulista exaltando sempre as categorias desenvolvimento e crescimento, como marcos de distino e pioneirismo, no s como corrente de pensamento contemporneo, mas parte integrante da tradio do local. A questo que se coloca : que histria essa que precisa ser reconstruda? Que identidade essa que estava perdida? Quem so estes marginalizados que precisam de uma reincluso na vida social? Antes estes genricos e imprecisos grupos, considerados por ele excludos no tinham vida social? Em que aspectos eles so marginalizados? O Secretrio Clodoveu Arruda parece no ter interesse de responder estas questes durante o seu artigo. O articulista continua seu argumento dizendo que ... cuidar do patrimnio histrico-cultural e assegur-lo como direito de cidadania no tarefa apenas de sua populao. tambm de seus governantes(Sanare, out/nov/dez de 2000:42). Mais uma vez, questes ficam sem respostas, como, por exemplo: de que concepo de cidadania o articulista fala? Um livreto fartamente distribudo pela sua Secretaria e publicado pelo IPHAN, intitulado Sobral patrimnio de todos: Roteiro para a preservao do patrimnio cultural parece haver uma preocupao em responder estas questes apontando de forma coloquial, diretrizes, leis e instrumentos que visam esclarecer noes como patrimnio, preservao e a relao destas noes com uma determinada percepo do que cidadania. Em um primeiro momento, o documento ressalta as particularidades da urbe que justificam a necessidade do tombamento atravs de epgrafes que citam trechos de publicaes elaboradas por arquitetos e historiadores que fizeram referncia cidade. Uma das citaes do parecerista contratado para julgar o processo de tombamento de Sobral em 1999, ngelo Oswaldo de Arajo Santos. Ele escreve que, Nascida em um povoado setecentista surgido nas terras de uma fazenda, cresceu a Vila Distinta e Real de Sobral pelo privilgio de se achar, junto ao Rio Acara, no entroncamento de caminhos que ligavam Pernambuco ao 31 Piau e Maranho. Contrariamente a Ic e Aracati, traadas segundo as normas das cartas rgias. Sobral possui desenho urbanstico espontneo e irregular integrado ao traado rgido e ortogonal mais tarde adotado volta do ncleo de origem. Sobral tem tudo para incluir-se no conjunto das cidades tombadas, como uma expresso singular no Cear representativa do fenmeno da urbanizao brasileira(Santos apud Paiva, 1999:4). Nota-se neste trecho a necessidade de ressaltar singularidades urbansticas histricas da cidade para justificar um tombamento. A diferena e a especificidade, portanto, servem como marcas distintivas e, ao mesmo tempo, rtulos de identificao especial. A seguir, a publicao aponta uma srie de noes que so definidas e sistematizadas de forma coloquial, para que o leitor leigo possa entender, da melhor forma possvel, a definio de patrimnio, as categorias de patrimnio, a noo de cultura, de identidade, de cidadania, de preservao, as implicaes econmicas do tombamento, o passo que se deve seguir com relao s mudanas nas edificaes realizadas por seus proprietrios e a legislao vigente, relativa ao patrimnio histrico. A idia que se pretende passar no documento de que o patrimnio muito mais do que uma herana familiar suscetvel de apreciao econmica como boa parte dos dicionrios de lngua portuguesa querem passar. Tambm teria um valor afetivo ou simblico, segundo diz o livreto. Isso tudo pautado e justificado no artigo 216 da constituio federal que diz: Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira...(Paiva, 1999:6). A definio de identidade to propalada no discurso do Secretrio de Cultura talvez possa ser balizada no documento. O livreto define identidade da seguinte forma: tudo aquilo que pode identificar ou diferenciar um homem, uma mulher, um grupo social, poltico, tnico, religioso, etc., em relao a outro. O termo identidade relacionado cultura pois tambm revela as aes do homem para viver em sociedade ao longo da histria(Paiva, 1999:9). Diante deste argumento, apesar do documento ressaltar a dinamicidade do patrimnio cultural, parece haver um movimento inverso que tende a solidificar uma identificao substantiva, definitiva e necessria, no s do ponto de vista sentimental, mas tambm do ponto de vista dos direitos e deveres dos habitantes do local. Para os autores do livreto, preservar um direito de todo cidado, porque uma maneira de conhecer sua 32 histria e a de seus antepassados. Preservar tambm aparece no documento como um dever de cada um e do estado. Desta forma, segundo o livreto, cada habitante estar exercendo sua cidadania que definida da seguinte forma: Cidadania o direito de viver decentemente. Independente de raa, sexo, credo ou classe social todos os homens nascem livres e tm direitos iguais vida, a emprego, sade, educao, moradia e tambm memria histrica(Paiva, 1999:10). As idias de cuidado e de respeito, chamando ateno para a dimenso das atitudes morais dos indivduos, so tambm utilizadas como recurso e argumento para convencer o leitor. A noo de cidadania pregada pelo documento, portanto, tanto legalista quanto moral, ou seja, procede tambm conforme honestidade, justia e aos bons costumes. Porm, ele trata estas noes como auto-evidentes, no precisando a conceptualizao destas. Liberdade, direitos iguais e questes de ordem moral, quando jogadas na narrativa de forma indefinida, podem ser sacudidas, balanadas e manejadas de diferentes formas, dependendo da destreza do agente narrador. Elas tm assento em uma doutrina normativa que fundamentada em uma determinada forma de entender e perceber o que se est ao redor. Este assento, portanto contextual e relacional. por isso que aparece sempre atrelado ao jurdico para justificar-se socialmente. Para ter eficcia simblica, a narrativa sobre o bom senso, honestidade, liberdade, dentre outros aspectos referentes moral pressupostamente justa, tem que estar amparada lei, dispositivo normativo, que aprendemos que deve ser respeitado e aplicado. O problema : quem julga e em que contexto temporal e espacial o comportamento de um indivduo pode ou no ser entendido como expresso destes preceitos que definem a cidadania? O protesto de um morador que, no aceita a imposio da municipalidade de proibir uma reforma em sua residncia localizada no stio histrico tombado, por exemplo, uma manifestao livre e justa? Esta narrativa no deixa clara a resposta da questo. No que se refere ao cuidado a que o documento chama ateno, ele est direcionado a trs modalidades de patrimnio, que fazem parte da poltica nacional de preservao: a natureza (paisagem e recursos naturais), os bens culturais (objetos e edificaes) e os saberes e modos de fazer (tcnicas e artes). Cuidado este que tambm jogado como auto- evidente, o que pode gerar inmeras interpretaes do ponto de vista de sua implementao 33 e efetivao 23 . Somando-se a essas dimenses morais e legais, o livreto chama ateno da garantia do bem estar que o tombamento pode trazer. Segundo o documento, o tombamento no significa parar no tempo, pois a cidade tambm precisa de saneamento bsico, meios de transporte, comunicao, eletricidade, etc. Desta forma, o patrimnio pode se modificar com o tempo, mas garantindo que as caractersticas essenciais, especiais aquelas que a tornam diferente de todas as outras no desapaream (Paiva, 1999:16). Alm disso, o tombamento, segundo o livreto, pode beneficiar o turismo cultural, contribuindo para o desenvolvimento de muitas cidades tombadas(Paiva, 1999:16). Com relao ao Estado, o rgo que cuida do processo de tombamento e fiscaliza os stios j tombados o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). A Prefeitura municipal cabe a fiscalizao dos stios tombados. Aps o tombamento, todas as mudanas a serem realizadas nas edificaes situadas na rea tm que passar pelo aval destas duas instituies. Portanto, o saber tcnico que implementa, julga e d o parecer sobre toda e qualquer interveno dos distintos habitantes da cidade sobre o seu imvel, se este estiver situado na rea preservada e no seu entorno. Acontece que este investimento tcnico tendo em vista dar um parecer sobre o processo de reforma em edificaes no stio tombado, assim como o prprio processo de monumentalizao, no consensual. O caso de Sobral exemplar. O Superintendente Regional do IPHAN, Romeu Duarte Jnior, conta que o tombamento de Sobral no foi fcil. Quando ele assumiu este cargo, em 1997, substituindo a arquiteta Mrcia Santana, a demanda pelo tombamento de Sobral j estava em finalizao. Segundo ele: Ao tomarmos conhecimento da proposta que era vazada em uma metodologia completamente nova para ns, diferente de como se trabalhava as questes do patrimnio, principalmente dos stios histricos urbanos aqui na casa, ns estranhamos um pouco, porque notamos que havia um desequilbrio muito grande causado pela hipervalorizao da histria da cidade em detrimento do que a cidade apresentava como realidade construda. Havia uma valorizao muito grande dos momentos de construo da cidade, dos processos de formao e evoluo urbana, das costuras que aconteceram entre diferentes setores da cidade, que uma
23 Mais a frente irei explorar esta idia de forma mais aprofundada, tratando da poltica nacional de Patrimnio. 34 coisa de interesse, mas, ao mesmo tempo, havia tambm, e ningum poderia negar, um processo de descaracterizao e destruio da arquitetura original. Se a cidade mantinha uma trama viria perfeita, ela no apresentava mais, em grande parte, e de uma forma muito fragmentada, muito salpicada, um conjunto de arquitetura de maior interesse, em que voc pudesse ter legibilidade, continuidade, homogeneidade. Muito pelo contrrio. Voc tinha algumas edificaes isoladas aqui, outras no outro canto. Ento voc tinha alguns ncleos, onde voc tinha alguns conjuntos com alguma permanncia dos elementos arquitetnicos originais, mas boa parte da rea da cidade tombada, era ocupada por edificaes completamente degradadas(entrevista realizada pelo pesquisador em 7 de maro de 2005). Diante destas constataes o Superintendente ainda tentou sustar o processo junto ao Presidente do IPHAN. Ele conta que na poca estava havendo substituio na presidncia e uma suspeita de mudana legal no rgo, principalmente no decreto que tomado como base para o tombamento, o que se revelou infundado. Ao mesmo tempo a Superintendente anterior a ele, passou a ocupar a Diretoria do Departamento de Proteo, ao qual a questo do tombamento est ligada, o que dificultou a reformulao. A antiga Superintendente no aceitava ver seu trabalho reformulado e o Conselho Nacional do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional negava a demanda, sugerindo manter o projeto original. O tombamento foi aceito por unanimidade com base no parecer de ngelo Oswaldo Arajo Santos, ento Prefeito de Ouro Preto na poca, apesar dele no ter se deslocado ao Cear para ver a cidade. Romeu Duarte informa que o tombamento de Sobral foi semelhante ao das cidades de Laguna e So Francisco do Sul, em Santa Catarina, acontecidos em meados da dcada de 1980, onde tambm foi privilegiada a Histria local, deixando em segundo ou terceiro plano a questo da arquitetura. Como arquiteto, ele pensa que deve haver um equilbrio entre a Histria, os elementos artsticos, arquitetnicos, paisagsticos e urbansticos, para que um determinado espao seja merecedor de destaque. Este exatamente o problema: o que merece ser destacado em uma cidade? Antes de refletir sobre a verso tecnocrtica desta resposta, vale a pena descrever o manejo poltico da verso da administrao municipal. Com relao Prefeitura, o Secretrio de Cultura, Clodoveu Arruda, em artigo j citado, chama ateno que as administraes municipais anteriores davam pouca importncia ao que Sobral representava. Para ele, 35 Poucas administraes investiram em aes que fizessem renascer o patrimnio e acender nos coraes sobralenses a histria de seus antepassados fazendo dela a sua histria... As geraes mais novas foram, assim, perdendo o seu passado e as construes antigas tornaram-se para muitos, apenas pedra e cal, no retratando mais o grande acervo histrico, artstico e cultural que representava... Sua identidade adormecida, dificultava o estabelecimento de novos horizontes. Diante da inrcia administrativa, os sobralenses no tinham condies de criar e recriar novos e velhos patrimnios. Faltavam aes pblicas concretas que dessem vazo a novas idias e expresses populares, resgatando no s o passado e sua historicidade, mas abrindo espaos para a criao e recriao artstica- cultural (Sanare, out/nov/dez de 2000:p.42). O Secretrio parece ressaltar em seu artigo uma ao inovadora iniciada pela gesto municipal de que faz parte. A categoria independente e substancial de identidade adormecida parece ter sido abandonada e entende-se que foi acordada pelas aes implementadas durante a sua gesto como Secretrio, tendo em vista acender nos coraes dos habitantes da cidade a histria de seus antepassados. Isso no para exaltar sentimentos nostlgicos, mas, sim, condio de possibilidade para o estabelecimento de novos horizontes. Segundo ele, a administrao Sobral no Rumo Certo, atravs da apresentao e incio de implementao de um Plano Cultural, conduziu os seguintes feitos: Edificaes seculares foram recuperadas e hoje abrigam verdadeiros projetos cidados como o caso da Casa da Cultura e do Palcio das Cincias e Lnguas Estrangeiras, antigo Palace Club (Sanare, out/nov/dez de 2000:p.43). Estas edificaes recuperadas passaram a ter usos distintos dos originais, passando por uma ampla reforma, visando, como dito nas palavras do Secretrio, fazer de Sobral um municpio saudvel. O casaro que abrigava no final do sculo XIX e incio do XX as grandes festas freqentadas por pessoas de prestgio social e poltico na cidade tornou-se um Centro de Lnguas Estrangeiras destinado a uma parcela da populao que no tem acesso aos cursos pagos. Dois processos parecem estar intercalados na constituio deste projeto: um atendimento determinados segmentos da populao e, ao mesmo tempo, um processo de higienizao da cidade, associando esttica e programas de assistncia social. Um dos projetos cidados ressaltados, que no merece por parte dele somente 36 um anncio de sua existncia, mas tambm um lembrete de seus objetivos, o Projeto Oficina-Escola de Artes e Ofcios de Sobral (PROEAOS) que tem como meta, ... disseminar um programa profissionalizante na rea de reabilitao, restaurao e conservao do patrimnio artstico e cultural. Os alunos da Oficina-Escola tm aulas tericas e prticas sob a orientao de professores, restauradores, arquitetos e mestres de ofcio. Com esta iniciativa resgata-se a antiga arte do fazer, incorporando o saber e os avanos tecnolgicos de hoje na resposta aos problemas que o tempo deixa no patrimnio local, possibilitando tambm um futuro promissor e seguro para adolescentes em situao de excluso social, com uma perspectiva real de trabalho e de mercado (Sanare, out/nov/dez de 2000:p.44). As polticas pblicas direcionas para o Desenvolvimento da Cultura, do Turismo e do Desporto, como batizada a Secretaria de Cultura do governo municipal no segundo mandato do prefeito Cid Gomes (2000/2004) parecem ser bem insistentes no sentido de construo desta identidade substancial baseada na rubrica imprecisa e genrica denominada de sobralidade. Este projeto da oficina-escola parece ser um recurso para tal empreitada, preocupando-se no s com as pessoas que tem acesso a determinados bens de consumo material que as colocam dentre os prestigiosos, mas tambm pessoas de baixa renda. O projeto Oficina-Escola, segundo o seu material de divulgao, tem quatro oficinas em seu programa: a de arte e papel, a de marcenaria e carpintaria, a de conservao e restaurao de acervo grfico, a de instalaes prediais e a de alvenaria. Alm destas atividades internas, o projeto anuncia que elabora atividades experimentais em imveis do Stio Histrico Tombado de Sobral. Todas elas direcionadas a jovens entre 14 e 21 anos, que, segundo a avaliao deles, est em risco psico-social, apesar de no estar claro o que isso realmente significa. No um projeto criado em Sobral, pois existe tambm em outros estados brasileiros e j ganhou o prmio Rodrigo Melo Franco, em 2001, do IPHAN na categoria Preservao de Bens Mveis e Imveis. Desta forma, a administrao municipal tende a conciliar duas dimenses fundamentais, apesar da impreciso e obscuridade na definio delas: a cidadania e a identidade. A noo de sobralidade no aparece como peculiar s narrativas da tecnocracia da administrao municipal. Esta qualificao sempre ressaltada de forma imprecisa e genrica virou ttulo de uma das colunas do jornal de circulao local, chamado O 37 Noroeste, escrito por Silvana Frota. Esta coluna na edio do dia trs de abril de 2004 traz uma frase atribuda a Norma Soares, esposa do reitor da Universidade Estadual Vale do Acara (UVA), instituio de ensino superior sediada em Sobral, que diz: No basta ser sobralense, preciso ter sobralidade. Porm o que vem a ser a sobralidade exatamente? Socorro Olimpio Junqueira, tesoureira de um grupo de mulheres, denominado de Princesa do Norte, tambm citada nesta coluna, no mesmo dia. A afirmao feita por ela parece tentar responder pergunta de Norma Soares, quando diz: Sobralidade... amar Sobral. Eu tenho doena de sobralidade e fico com raiva de quem no gosta de nossa terra. Importa que se diga, que Princesa do Norte um grupo de mulheres que tem origem familiar ou nasceram em Sobral e que hoje so moradoras de Fortaleza. A transcrio da citao da tesoureira do grupo acrescenta uma dimenso patolgica idia de sobralidade nesta narrativa para enfatizar o seu ufanismo explicitado enquanto doentio. O prprio grupo Princesa do Norte tambm indcio da ressonncia da idia da sobralidade. Inclusive, este grupo de mulheres anterior posse da administrao Cid Gomes. No ano de 2004, as princesas como se autodenominam eram 50 mulheres que moravam em Fortaleza, capital do estado do Cear, mas que tm origem familiar em Sobral. So pessoas pertencentes s famlias sobralenses prestigiosas e so antigas estudantes do Colgio Santana, sediado em uma das edificaes situadas no stio histrico tombado. A reportagem da coluna Em Foco do jornal O Noroeste de 30 de abril de 2004 anuncia a posse de uma nova diretoria do grupo que, segundo o artigo, organiza-se enquanto uma irmandade crist. O artigo diz que, Em todos os momentos do evento as princesas demonstraram o esprito de sobralidade que existe em cada uma. A partir da decorao das mesas, com bandeiras de Sobral e do Colgio Santana tudo lembrava a terra amada. No final todas cantaram o hino do Colgio Santana. Na faixa da presidente feita especialmente por Conceio Arruda para a transmisso do cargo, tambm a bandeira de Sobral. Isto que sobralidade, disse Conceio Arruda, a ex-presidente, que emocionada agradeceu a todas pelo apoio dado sua gesto, considerada uma das mais participativas dos ltimos tempos (jornal O Noroeste, 30 de abril de 2004, pg.07). Na mesma coluna deste jornal aparece a notcia sobre uma suposta dvida da influncia deste grupo no surgimento de um outro denominado Consrcio das sobralenses que, segundo as informaes do artigo, se rene todos os meses para sortear 38 um bolo. O artigo cita Iduina MontAlverne, integrante do grupo que diz: ... mais um motivo para nos encontrarmos e trocar idias sobre temas sobralenses. Tudo o que conversamos gira em torno de Sobral... A idia comeou com um caf da manh e hoje j so 36 (jornal O Noroeste, 30 de abril de 2004, pg.07). Outro exemplo de reverberao da idia de sobralidade est na coluna Em Foco na edio do dia 03 de abril de 2004 do O Noroeste que anuncia a participao do comediante nascido em Sobral, Antnio Renato Arago, conhecido nacionalmente por sua atuao em programas televisivos e no cinema como Didi, em um comercial divulgado na televiso e em outdoors por todo o Brasil do caf da marca Serra Grande. Segundo o anncio, esta empresa, que tem como sede administrativa a cidade de Sobral, dirigida pelo empresrio Jocely Dantas que no sobralense. Isso no parece ser um problema para a narrativa do anncio, pois o empresrio que do Rio Grande do Norte, vive em Sobral a mais de cinqenta anos. No comercial, o humorista aparece juntamente com sua esposa e filha. O anncio do jornal termina afirmando: Parabns ao grupo Serra Grande pela bela campanha. Isso que esprito de sobralidade. Com uma vivncia de nove anos de pesquisa na cidade, pude perceber em algumas conversas informais nas ruas, que algumas pessoas se contentam com as imagens prontas e acabadas relacionadas a rubrica da sobralidade. No so s narrativas acionadas por pessoas de prestgio. Este termo denota uma qualificao para o habitante da cidade. Por sua vez, para alguns habitantes no h necessidade de uma anlise explicativa do significado do termo, que aponta para uma histria, tem conotao romntica, herica, pica e linear, com pretenses de ser definitiva e necessria. Parece haver um acordo tcito entre alguns moradores da cidade de que no se precisa perder tempo pensando em respostas sobre o que realmente significa este termo. Geralmente a dimenso da paixo, do amor, enfim, da emoo cega e irracional, da doena, aspectos estes entendidos como necessrios para preservao da integridade do habitante da cidade so ressaltados como elementos definidores do que significa o termo. As polticas pblicas, portanto, se aproveitam e jogam muito com isso. Em Sobral, o fato de ter sido a primeira cidade do Cear a ser tombada como Patrimnio Histrico Nacional, estimula determinados indivduos pertencentes a um 39 segmento prestigioso do campo da poltica que ocupa a administrao pblica, a construir, pautados por um ideal ufanista, imagens sobre caractersticas gerais do sobralense que so padronizadas, pasteurizadas, embelezadas, embaladas e vendidas como gerais e vlidas para qualquer sobralense. uma imagem que pretende ser matricial, originria do ser sobralense e base para conhecer o habitante tpico da cidade. O ncleo urbano tombado serve como suporte para constituio desta imagem matricial, que no nada mais do que uma maneira de ver esta cidade. um simulacro ou uma imagem que idealizada, processada e armazenada na forma de uma srie ordenada de unidades individuais espaciais, dispostas contiguamente, cada uma com um brilho especial e definido. A sobralidade, nas narrativas aqui citadas, aparece como um espectro ou um feixe de energia radiante, formado por uma disperso de ondas, que atinge os habitantes da cidade e os torna apaixonados cegamente pelo fato de viverem no seu conjunto de edificaes de concreto. comum encontrarmos narrativas escritas de forma laudatria para justificar, defender, elogiar ou louvar o sobralense. Estas narrativas tendem sempre a apontar a sobralidade como instncias de consagrao, de notabilidade dos escolhidos e supostamente privilegiados moradores da cidade, transcendendo verses, especificidades e contextos circunstanciais. A sobralidade aparece nestas narrativas como essncia ou natureza ntima da existncia na cidade. Aparece tambm como aquilo que faz com que o sobralense seja o que na sua natureza. Parece ser a existncia do que mais constitutivo do sobralense, apesar de no haver explicitao e detalhamento dos elementos que se organizam para dar suporte ao modelo desta constituio. Alm de tudo, esta sobralidade tem significao especial, distintiva e supostamente definitiva. Cada casaro, os sobrados, o Teatro So Joo, o Museu Dom Jos Tupinamb da Frota e demais edificaes presentes no ncleo urbano tombado so mais do que edificaes nestas narrativas. Devem ser lembrados como smbolos da chamada sobralidade triunfante. Uma matria publicada antes da oficializao do tombamento em um jornal de circulao estadual exemplo desta idia. O ttulo j bem sugestivo: Corredor cultural preserva sobralidade triunfante. Nesta matria aparece um depoimento do professor Luciano de Arruda Coelho que diz: 40 A cidade de Sobral ainda guarda na sua composio urbana algumas peas arquitetnica remanescentes dos ureos tempos da sobralidade triunfante, transcorridos nas ltimas dcadas do Sculo XIX, quando Sobral viveu o apogeu econmico proporcionado pelo fastgio da pecuria e da intermediao comercial da qual j era o plo regional mais destacado (jornal Dirio do Nordeste, 9 de agosto de 1997:6). Alm da interpretao relativa riqueza da cidade no final do sculo XIX, que ser tratada mais frente, o artigo comete uma srie de imprecises no que se refere a sua exaltao do pioneirismo da cidade nos mais diversos campos. Afirma, por exemplo, o fato de o Teatro So Joo ter sido o primeiro do Cear, sendo edificado em 1880, informao esta complementada com o depoimento do historiador e membro do clero da cidade Padre Joo Mendes Lira que diz: Segundo ele [Padre Lira], as companhias que se apresentavam em Recife e Salvador sempre vinham at Sobral, nica cidade com teatro na regio depois da capital pernambucana. Os artistas pegavam navio de Recife at o porto de Camocim. Depois viajavam de trem para nossa cidade. Da estao ferroviria, seguiam para o teatro e bondes puxados a burros (jornal Dirio do Nordeste, 9 de agosto de 1997:6). Mesmo no mbito da cidade de Sobral, j existiu o Teatro Apollo edificado em 1867, que findou suas atividades em 1910 e, no mbito cearense, o Teatro da Ribeira do Ic na cidade de Ic, edificado em 1860. Talvez o importante aqui no seja a impreciso e esquecimento registrados nestas narrativas, mas a necessidade premente de marcar o pionerismo do sobralense no campo cultural, rivalizando com a capital estadual, Fortaleza. Em alguns panfletos tursticos de Fortaleza, o Theatro Jos de Alencar 24 , construdo em 1910, aparece como um cone da cearensidade. O fato do Teatro So Joo de Sobral ter sido edificado antes do teatro de Fortaleza, faz com que as narrativas ufanistas sobre Sobral ganhem mais vigor. Sustentados por outros artifcios pautados tanto em mtodos pressupostamente cientficos, sistemticos e organizados, quanto em estratgias planejadas de interveno atravs das polticas pblicas, alguns representantes da administrao municipal contribuem, a seu modo para consolidao deste tipo de imagem referencial de sobralidade. disso que trata o tpico a seguir.
24 As referncias escritas sobre este teatro sempre fazem questo de ser registradas utilizando a palavra Theatro, dando a entender uma prescrio histrica e tradicional ao local. 41
1.2 Impresses da autoridade poltica e tecno-burocrtica: patrimnio histrico, tradio e sobralidade.
Nas matrias que falam sobre a administrao municipal de Cid Gomes (mandatos de 1997/2000 e 2001/2004) publicadas na imprensa, nos comcios e pronunciamentos pblicos dos membros e apoiadores desta administrao, assim como nos anncios e panfletos que fazem propaganda de suas obras, alm da imagem do pioneirismo, recorrente a lembrana da nobreza, excelncia, estilo magnnimo, grave e austero que a Cidade guarda em seu ncleo urbano 25 . Fatos como a comprovao da teoria da relatividade realizada em solo sobralense, j citada aqui, e a lembrana de personalidades conhecidas no cenrio poltico e artstico nacional 26 , so tambm fontes de anunciao do carter precursor da cidade cearense. Esta administrao, que ocupa a prefeitura desde 1997, a partir da primeira campanha eleitoral, em 1996, constri e projeta uma auto-imagem coerente com o movimento de um determinado segmento poltico, no mbito estadual, inaugurado nas eleies de 1986 que resultou na eleio de Tasso Jereissati para o governo do estado. Este grupo poltico, mais amplo, que vem garantindo sua hegemonia no mbito estadual se autodenominou, no primeiro mandato, de Governo das Mudanas. A condio de moderno reafirmada no discurso deste grupo a partir de atributos diversos associados a seus integrantes, tais como juventude, qualificao profissional, conduta tica na poltica, condio de gesto empresarial e racionalizao no uso do patrimnio pblico. Este discurso nascido fora do contexto de Sobral adaptado ao momento histrico das eleies municipais de 1996 na Cidade 27 . Assim, Cid Gomes consegue reeleger-se para um segundo mandato no ano 2000.
25 Sobre os discursos associados a uma sobralidade (modo de ser sobralense) ver Freitas, op.cit. 26 Personalidades como Renato Arago, Belquior, Ciro Gomes, dentre outros, so sempre lembrados nos meios impressos de circulao local e estadual como filhos da terra. 27 Sobre o governo das mudanas ver LEMENHE, Maria Auxiliadora. Empresrios e Poltica: Dinmica de Identidades. Mimeo, texto apresentado no grupo de trabalho Cultura Poltica e Dinmica de Poder da Associao Nacional de Pesquisa em Cincias Sociais (ANPOCS). Sobre a condio de moderno associado ao governo municipal de Sobral na gesto Cid Gomes ver FREITAS, op.cit. 42 A modernidade expressa na gesto municipal Cid Gomes (1997/2000 e 2000/2004) comunicada a partir de seu slogan oficial no primeiro mandato que afirmava: Sobral est No Rumo Certo. Esta expresso no se restringe ao aspecto poltico e administrativo. Esta idia encontra ressonncia no interior de distintos indivduos prestigiosos da cidade e processada no sentido de definir um Rumo Certo para outros aspectos da vida social no contexto urbano. Exemplo disto so os outdoors que foram espalhados pelas ruas na ocasio da posse do novo bispo Dom Aldo Pagotto em 1997, que estampavam a frase: Sobral no Rumo Certo, Tanto na Terra como no Cu. O Rumo Certo nesta frase supera as prerrogativas polticas e administrativas e direciona os rumos espirituais da populao local. Um novo exemplo vem acrescentar uma outra direo no intencionado Rumo Certo. o artigo de Geane Albuquerque publicado no jornal Capital Norte de 15 de maro de 1997, que prega a necessidade de redefinio dos valores culturais tendo em vista retomar os padres de tempos passados, nos quais o sobralense caracterizava-se pelo culto a luxuosos objetos de consumo e desfrutava de uma efervescncia artstica que hoje, segundo ela, so afetadas de forma negativa por meios de massa e pelo controle mecnico exercido pela cultura importada, excludente e unilateral. A idia da articulista eleger como prioridade o resgate da autenticidade da cultura sobralense. Tentando-se compreender o discurso do Rumo Certo, percebe-se um contexto discursivo no qual algumas pessoas que tm acesso aos meios de comunicao de massa e ao poder pblico municipal da Cidade constroem uma imagem de sobralense pautada em uma dimenso ufanista, na qual a memria mobilizada para expressar o desejo destas pessoas por um futuro promissor. Um futuro que est sendo construdo a partir de uma constncia e de uma unidade de aes pretensamente universais, neutras e seguras, aplicadas no tempo vivido no presente, que se baseiam em idias e aes ditas modernas. A constncia e a unidade destas aes representadas pelas narrativas sobre o prefeito e representantes da administrao Cid Gomes, e alguns indivduos que conseguem ter acesso aos meios de comunicao de massa, pretendem renovar marcas j consagradas de uma cidade que viveu um tempo de triunfo. A idia passada nestas narrativas de que Sobral est no Rumo Certo, assim como j esteve no passado. A memria falada pelos documentos publicados pelo governo municipal pretende projetar populao, como um 43 todo, uma possibilidade de integrao na qual o que bom para o cidado sobralense o que j dele. A partir deste tipo de narrativa ufanista, o tombamento do patrimnio histrico de Sobral ganha uma conotao poltica na administrao Cid Gomes. Diante do tombamento, a Secretaria Municipal de Cultura, Desporto e Mobilizao Social da gesto 1997/2000, criou o Corredor Cultural que tinha a pretenso de centralizar espaos e edificaes situados em uma delimitao territorial selecionada. O poder pblico municipal justifica a seleo dos espaos situados no Corredor Cultural pelo que eles representam na idia de preservao de uma tradio sobralense, ou seja, o Corredor Cultural aglutina espaos considerados pela gesto municipal e ratificados pelo parecer do IPHAN, geradores ou orientadores da construo das identidades individuais e uma unidade de identificao coletiva. Os espaos selecionados so supervalorizados quando localizados no Corredor por lembrar um passado de glrias e opulncia. Glrias de tempos distintos, passando, segundo o artigo j citado do Secretrio (Sanare, out/nov/dez de 2000), por vrios ciclos econmicos. Essa outra peculiaridade da cidade, pois, segundo o articulista, um dos poucos centros urbanos a preservar, na sua estrutura, o ciclo da pecuria extensiva do gado, o ciclo comercial, o ciclo do algodo e, finalmente, o industrial. O que parece ressaltar uma histria econmica linear, fazendo com que seja esquecida a dimenso do consrcio entre culturas econmicas diferentes como o caso da associao da pecuria extensiva e a do cultivo, comrcio e industrializao do algodo que marcou o sculo XIX. Isolando um destes aspectos e organizando-os enquanto ciclo, deixa-se de entender a fora e a forma da construo de riquezas na cidade onde uma determinada cultura econmica, apesar de predominante, no poderia se sustentar de forma isolada enquanto monocultura. Portanto, o que aparece implcito nesta narrativa a tentativa de construo de uma histria linear, definitiva e necessria, visando solidificar uma determinada imagem ufanista de sobralidade. Servindo-se, dentre outras coisas, destes tipos de lembranas, o poder pblico municipal potencializa o discurso do Rumo Certo no presente e constri uma legitimao para suas aes administrativas. A administrao Cid Gomes extremamente eficiente na 44 construo de um ideal coletivo da cidade. Tanto que conseguiu reeleger-se para mais um mandato no ano 2000, pautado, dentre outras coisas, neste ideal ufanista e modernista, com o slogan Sobral em boas mos, ou seja, alm de estar no rumo certo est em boas mos. Este membro do corpo em nossa sociedade tem peso simblico muito forte, pois representa a atividade e o poder de realizao. Alm disso, tende a passar uma idia de que o sobralense pode entregar-se e confiar nas "Boas Mos" de Cid Gomes. A narrativa repetida, constantemente, no palanque, centrava ateno na idia de que ele provou que Sobral j definiu o rumo certo, graas sua viso empreendedora e moderna, respeitando tambm a tradio. Portanto sua narrativa constri uma obviedade de que se deve impreterivelmente dar continuidade a esta idia. O slogan, Restaurando o passado, melhorando o presente e preparando o futuro, publicado nos Boletins Municipais da Gesto 2000/2004 da Prefeitura e adotado como slogan oficial neste mandato parece dar continuidade a esta lgica de relao entre tradio e modernidade. Nesta narrativa, o patrimnio histrico tombado pelo IPHAN, mais uma vez, lembrado como essencial para dar continuidade ao "rumo certo", preparando o futuro, associando este respeito tradio a outras aes que efetivamente tentaram passar uma imagem de modernizao do espao urbano como o investimento em saneamento bsico, em limpeza pblica, urbanizao de bairros ainda desfavorecidos de pavimentao, equipamentos de lazer, dentre outras intervenes. Mas, afinal, o que mesmo tradio? Este termo aparece sempre de forma imprecisa e genrica, associado ao conceito de cultura nas narrativas de palanque e as publicadas nos diferentes documentos do processo do tombamento. Segundo o livreto Sobral: patrimnio de todos, cultura pode ser definida da seguinte forma: Podemos pensar que a Cultura todo um modo de vida ou os diferentes modos de viver de cada povo, herdados pela tradio, passado de gerao em gerao. O modo de falar, de trabalhar, as crenas, as instituies, o saber e o artesanato representam a forma do homem se relacionar em grupo, em sociedade(Paiva, 1999:8). 45 Cultura, nesta acepo, passa a remeter tradio e ao passado, descartando a possibilidade criativa dos indivduos em construir novas possibilidades de viver. Ela substantivada e fixada no tempo e no espao. Perde movimento, plasticidade e flexibilidade. No documento, ela aparece como categoria independente, entendida em si mesma, sem considerar as astcias, artimanhas, maquinaes, habilidades, os jeitos, as maneiras, os modos, as espertezas, as traquinagens e as travessuras cotidianas dos distintos Diviso da sede da cidade por bairros. O bairro centro corresponde ao stio histrico tombado e seu entorno. Fica situado entre o Rio Acara e a Linha Frrea. Foto: pgina da Secretara do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (SDUMA) do site www.sobral.ce.gov.br. 46 habitantes da cidade. Alm disso, na publicao, ela, a cultura, ganha um valor coletivo. O prprio documento afirma isso quando associa o termo noo de patrimnio. Segundo o documento patrimnio cultural se define da seguinte forma: H bens que no interessam apenas a uma pessoa ou a uma famlia. Eles so to importantes que tm valor para a comunidade, para uma cidade, para um pas. So bens de valor coletivo(Paiva, 1999:8). O indivduo e suas aes, suas prticas cotidianas, suas astcias em criar novos modos de ver e viver os eventos na cidade so descartados nesta perspectiva. O que importa o coletivo. Mas fica a questo: como separar o coletivo do individual? Qual o limite entre as astcias, narrativas e prticas individuais e a tradio relacionada ao coletivo? A impresso passada de que o importante no o sobralense individual, mas sim o sobralense genrico, universal, que se transforma em uma marca ou rtulo de distino e As reas em vermelho, amarelo, verde, marrom e azul correspondem ao stio histrico tombado de Sobral e o colorido em amarelo queimado rea do entorno. Toda esta rea corresponde ao que a Secretaria do Desenvolvimento Urbano convenciona como bairro centro. Fonte: site http://www.sobral.ce.gov.br/index.html 47 diferenciao com relao aos habitantes, tambm genricos e universais, de outras cidades, regies ou pases. A impresso que passa a poltica de patrimonializao da cultura de que ela pretensamente, pode enriquecer a comunidade genrica e coletiva dos sobralenses, dando um sentido especfico e especial existncia de cada um, identificando-os com uma memria que passa a ser capital circulante, que visa investir nas conscincias a sobralidade, enquanto uma disposio social, cultural e moral peculiar para agir no mundo. Portanto a patrimonializao da cultura e do espao urbano no caso de Sobral, no pode ser analisada como uma raridade exclusiva e exclusivista. Deve tambm ser analisada na perspectiva da implementao de uma mercantilizao ou transformao da cultura e do espao em produto a ser vendido, o que inverte sua lgica de constituio enquanto elaborao de um coletivo, pois o que interessa no mais as prticas e os sentidos daqueles que o criaram, mas sim o usufruto daqueles que o recebem atravs de estratgias de planejamento de centros comerciais articulados com espaos de lazer junto a elementos componentes do tombamento, promoo de grandes eventos artsticos, esportivos, congressos, dentre outros aspectos. Sobral parece ter entrado nesta lgica de celebrao do inautntico atravs da implementao de equipamentos que favorecem o consumo tpico das grandes cidades e, ao mesmo tempo, a representao, no sentido teatral do termo, de uma identidade local autntica que, alm de propiciar um carter especial cidade, mais um elemento a ser comercializado apelando ao consumo do diferente. Em Sobral, isso acontece em um contexto temporal muito especfico no campo da atuao administrativa: a gesto Cid Gomes. As narrativas produzidas pela faco poltica, ligada ao governo Cid Gomes, apresentam um rtulo e uma imagem de bom senso (Geertz, 1997) na gesto do poder pblico, justificando e construindo uma tentativa de legitimao de uma determinada viso de cidade. Portanto a preservao do patrimnio, assim como as outras atividades desenvolvidas pela administrao, servem para justificar as prticas da municipalidade no rumo certo, segundo a sua forma de ver e pensar o gerenciamento do patrimnio pblico. Por parte das polticas pblicas, direcionadas principalmente para s reas de cultura, turismo e educao, este tipo de imagem coletiva, genrica e fabricada 48 armazenada na forma de instrues que so reproduzidas padronizadamente por um dispositivo de sada que as repassa simultneamente para diversos indivduos ao mesmo tempo, atravs das vrias formas de manifestao da mdia e aes de interveno pblica, ou seja, no uma narrativa face-a-face em que h interao entre agentes sociais. A informao dada de forma pronta e acabada para vrias pessoas ao mesmo tempo, sem nenhuma interao. A notcia publicizada, atingindo uma grande quantidade de pessoas. Ainda na poca da produo do documento intitulado Estudo para Tombamento do Patrimnio Histrico de Sobral (1997) patrocinado pela Secretaria Municipal de Cultura, Desporto e Mobilizao Social, para justificar o tombamento, estas idias fabricadas que serviam de suporte para as aes do poder pblico, j apareciam, apesar de serem tratadas como fontes para uma reflexo cientfica da realidade local. Isso porque o objetivo da narrativa exposta no texto de constituir uma cidade racional em contraposio ilusria, errante, pautada no devaneio, na metfora, na imaginao criativa e inesperada dos indivduos no cotidiano. H uma ansiedade latente de racionalizao do espao, combate a incerteza, insegurana e ao sonho. uma razo vigilante, controladora e utilitarista, que elabora uma lgica urbana transparente e higienizada. A emoo deve ser controlada neste discurso racional, pois perturba a consolidao deste projeto de cidade cientificamente refletida, apesar de ser elemento estratgico de construo de imagens que a representa; isto , a comoo e a imaginao sonhadora e romntica passam a assumir outra conotao na imagem da cidade racional, havendo uma diluio da emoo na lgica utilitarista e pragmtica da modernizao urbana. uma emoo interessada, vida e ansiosa na efetivao de um projeto de cidade controlada. A cidade pensada a partir de uma imagem pautada em princpios racionais, emitidos pelo poder burocrtico e organizado. A imagem de cidade projetada, pelo estudo anunciado como cientfico, deixa de entender que esta imagem de cidade fabricada no falsa, mas uma projeo elaborada por interesses especficos de determinados agentes sociais, a partir de estratgias pautadas em narrativas imperativas recheadas de autoridades morais, legalistas e histricas. A informao fabricada utilizada para justificar atitudes de membros do poder pblico que projetam, a partir de uma autoridade que lhes peculiar, imagens que so impostas aos demais. O tcnico e o burocrata, sustentados por uma formao acadmica, seja como historiador, arquiteto, engenheiro, advogado, dentre outras, integrantes ou integrados 49 atravs de contrato ao poder pblico, ocupam um lugar singular nas tenes implcitas nas relaes de poder da cidade. Lugar este definido tanto pelo indivduo a si mesmo, quanto pela relao entre distintos agentes sociais, disputando uma posio privilegiada na hierarquia culturalmente definida que delimita o territrio exclusivo das pessoas de prestgio. O lugar ocupado por eles tem a pretenso de ser distinto do ocupado pelo homem comum (Chau, 1984). Este tipo de processo tcnico para justificar o processo de implementao da poltica de patrimonializao, como no poderia deixar de ser, coerente com a poltica nacional que trata do assunto. Como j dito, a instituio que normatiza todo o processo de tombamento o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). Segundo seu material de divulgao na Internet, tombamento se define como: ... um ato administrativo realizado pelo Poder Pblico com o objetivo de preservar, por intermdio da aplicao de legislao especfica, bens de valor histrico, cultural, arquitetnico, ambiental e tambm de valor afetivo para a populao, impedindo que venham a ser destrudos ou descaracterizados(Disponvel na Internet via http://www.iphan.gov.br). Por se justificar como um ato administrativo, a narrativa que demonstra a definio de tombamento fundamenta-se em uma determinada idia, corrente no nosso modelo de sociedade, de que o poder pblico, seja nacional, seja estadual, ou seja municipal, tem a autoridade, o direito constitudo e o prestgio de conduzir e gerir o que representativo do que se deve qualificar enquanto patrimnio. O prprio material de divulgao do IPHAN argumenta que o tombamento: ... comea pelo pedido de abertura de processo, por iniciativa de qualquer cidado ou instituio pblica. Este processo, aps avaliao tcnica preliminar, submetido deliberao dos rgos responsveis pela preservao. Caso seja aprovada a inteno de proteger um bem cultural ou natural, expedida uma Notificao ao seu proprietrio. A partir desta Notificao o bem j se encontra protegido legalmente, contra destruies ou descaracterizaes, at que seja tomada a deciso final. O processo termina com a inscrio no Livro Tombo e comunicao formal aos proprietrios (Disponvel na Internet via http://www.iphan.gov.br). Portanto o parecer definitivo do processo tcnico, o que se pressupe necessidade da anlise de um perito. H uma disposio tcita, regida pela legislao em vigor sobre o tema, de que deve haver um parecer de uma pessoa supostamente experiente, 50 hbil, que tenha prtica ou seja versado no assunto, assim como seja juridicamente legitimado para fazer o exame ou vistoria da matria. Atravs de sua autoridade, eles justificam racionalmente as diferenas sociais, dando sua posio superior uma dimenso positiva quando racionalmente justificada. Um historiador falando de Sobral, no visto da mesma forma que uma pessoa comum falando sobre o mesmo tema; ou melhor, a sua condio de pessoa cuja opinio ponto pacfico por conta de seu prestgio ou influncia por seus mritos diplomados na academia, naturalizada em algumas narrativas que aparecem no contexto das relaes sociais, fornecendo ele autonomia e legitimidade para praticar determinadas aes e efetivar projetos que, em contrapartida, ganham uma imagem de neutralidade voltada para o bem comum. A eficcia desta imagem de autoridade atribuda aos integrantes designados de uma instituio incumbida de tratar da matria, e os contratados para fazerem estudos e pesquisas para subsidiar as intervenes das polticas pblicas, est pautada no fato de que as narrativas produzidas por esta autoridade so vistas como imanentes prpria realidade. Estes agentes sociais posicionam-se em um lugar privilegiado na lgica da organizao racional das relaes sociais na cidade, pois esto postos no contexto inscrito no saber tcnico, dando legitimidade idia de autoridade associada a eles. elaborada, portanto, em nvel de discurso uma idia de que, pautada em sua autoridade, seus projetos denotam uma referncia ideal a ser seguida, justamente porque so fundamentados supostamente em criteriosos estudos cientficos. O Superintendente do IPHAN, falando sobre a no participao dos habitantes da cidade no processo de estudo preliminar ao tombamento argumenta que: Na instruo de tombamento no houve qualquer considerao, apesar de ter sido inicialmente pensado, no sentido de se fazer uma srie de pesquisas e entrevistas, mas no final das contas acabou no sendo computada a posio dos moradores da cidade com relao a isso, apesar de ter havido um abaixo assinado, de ter havido uma srie de movimentaes polticas de seguimentos da sociedade de Sobral, mas na proposta de tombamento, ela foi feita aqui, nesta sala, por duas pessoas, sem qualquer tipo de referncia ao que as pessoas podiam achar, quais eram as suas idias, etc. Eu tambm preciso dizer para voc o seguinte: se a gente fosse levar em considerao o que a populao quer o IPHAN, jamais teria sado do papel... Pelo simples fato que a preservao do patrimnio cultural ela muito diferente do patrimnio natural. O natural voc est sufocando porque o ar est poludo, 51 a lagoa est poluda e os peixes esto morrendo, a vegetao est desaparecendo, ento qualquer pessoa, seja ela douta ou no, ela sente que a barra est pesada... A preservao do patrimnio cultural, por causa destas sutilezas, ela impe que as pessoas que vo tratar dela tenham algum tipo de preparo. Ela no to visvel como a da natureza. As pessoas no enxergam direito. A questo do valor muito complicado voc passar para elas... Se a gente for esperar que a populao da cidade se conscientize e chegue ao nvel da compreenso da importncia da preservao do seu patrimnio... no tem mais patrimnio para preservar coisa nenhuma. Ento algum pode dizer: discricionrio, antidemocrtico. Pode ser. Mas o futuro quem vai dizer se a ao daquelas pessoas foi certa ou no (entrevista realizada pelo pesquisador com Romeu Duarte Jr. em 07 de maro de 2005). Diante destes argumentos, posso compreender que a Instruo de Tombamento tem uma forte relao com o saber tcnico, apreendido em um campo de formao ao qual o publico alvo geralmente no tem acesso. um saber restrito a especialistas capacitados nas reas de arquitetura, histria e urbanismo. Os bens materiais de interesse para a preservao da memria coletiva podem ser, segundo o IPHAN, fotografias, livros, mobilirios, utenslios, obras de arte, edifcios, ruas, praas, cidades, regies, florestas, cascatas etc. No h desapropriao destes bens, mas sim uma regulao de seu uso que, necessariamente, deve ser fiscalizado e qualquer modificao deve ser avaliada por um corpo tcnico do IPHAN. Segundo a concepo institucionalizada que rege a questo: No caso de bens culturais, preservar no s a memria coletiva, mas todos os esforos e recursos j investidos para sua construo. A preservao somente se torna visvel para todos quando um bem cultural se encontra em bom estado de conservao, propiciando sua plena utilizao (Disponvel na Internet via http://www.iphan.gov.br/). No caso de bens imveis tombados o Instituto recomenda a preservao de seu entorno que: a rea de projeo localizada na vizinhana dos imveis tombados, que delimitada com objetivo de preservar a sua ambincia e impedir que novos elementos obstruam ou reduzam sua visibilidade. Compete ao rgo que efetuou o Tombamento estabelecer os limites e as diretrizes para as intervenes, nas reas de entorno de bens tombados (Disponvel na Internet via http://www.iphan.gov.br/). Alm disso, o documento do Instituto trata de esclarecer o suposto congelamento da cidade que um indivduo desatento possa pressupor com o tombamento. Est escrito 52 que: A proteo do patrimnio ambiental urbano est diretamente vinculada melhoria da qualidade de vida da populao, pois a preservao da memria uma demanda social to importante quanto qualquer outra atendida pelo servio pblico. O Tombamento no tem por objetivo congelar a cidade. De acordo com a Constituio Federal, tombar no significa cristalizar ou perpetuar edifcios ou reas, inviabilizando toda e qualquer obra que venha contribuir para a melhoria da cidade. Preservao e revitalizao so aes que se complementam e, juntas, podem valorizar bens que se encontram deteriorados (Disponvel na Internet via http://www.iphan.gov.br/). Desta forma, a partir do momento em que efetivado um tombamento histrico em Sobral, no modelo proposto, esta ao soma-se a um projeto imanente de racionalizao e modernizao da cidade, elaborado pelos agentes, sejam eles os integrantes sejam eles os integrados, atravs de contratos no poder pblico executivo municipal, representado pelo prefeito Cid Gomes em parceria com os tcnicos do IPHAN. Ao mesmo tempo, esta ao ganha uma dimenso histrica, a partir do momento em que esta lgica racional urbana fundamenta-se em um passado pautado na idia de tradio. Segundo o que se argumenta no Estudo para tombamento do patrimnio histrico de Sobral (1997), para o tombamento ser efetivado em Sobral, deve-se partir do pressuposto de que necessrio formular uma reviso da forma recorrente de definio de patrimnio histrico no Brasil. A idia no tombar edificaes isoladas, como corrente em boa parte das cidades brasileiras, e sim, toda uma rea urbana. O processo de justificativa elaborado pelo Estudo inicia-se com um levantamento relativo ao valor artstico e arquitetnico das edificaes isoladas, e passa para a identificao de marcas deixadas nos espaos por traos e complexos histricos considerados importantes na viso dos peritos. A partir de ento, o documento prega a necessidade do levantamento de dados relativos dinmica funcional (fisiologia) e morfologia atual dos espaos sociais da cidade. A idia era estudar a cidade como testemunho da evoluo da organizao social; ou seja, como o prprio Estudo diz, levou-se em considerao aspectos relativos dimenso artstica, arquitetnica, histrica, etnogrfica e arqueolgica da cidade. A identificao morfolgica da rea urbana proposta pelo Estudo pretendeu apreender o espao urbano fundamentando uma previso de formas de interveno para 53 realar sua identificao simblica e arquitetnica, assim como possibilitar uma previso de modelos de ao, visando evitar atitudes prejudiciais a esta identificao formulada. A inteno explicitada no Estudo conferir um carter ou um significado cidade, a partir dos bens espaciais referenciais para os habitantes e o modo como estes bens se lhes apresentam. Nesta perspectiva, a opo metodolgica do Estudo foi a de tentar perceber a partir da perspectiva do observador, as condies de orientabilidade, identidade, estmulo, transparncia ou originalidade, dominncia de certos aspectos, diversidade de contrastes e composies ocorridas nas situaes de registro seqencial do conjunto de estaes e dos intervalos da topologia do contexto urbano analisado 28 . Desta forma, o documento no se contenta com o tombamento em si, mas pretende reafirmar a idia de existncia de um centro referencial exemplar, no qual o sobralense em geral possa lembrar de um passado utpico 29 que inspire suas prticas, vislumbrando um futuro promissor, construdo a partir de aes necessrias no presente da cidade. Passado, presente e futuro se confundem nesta narrativa ufanista e, ao mesmo tempo modernista. Neste sentido, o termo utopia no contraditrio quando associado ao passado. A utopia pode ser entendida como um plano ou sonho incerto em um futuro imprevisvel. No caso das narrativas at aqui expostas referentes ao tombamento de uma parte do ncleo urbano de Sobral, imagina-se, atravs de recursos pressupostamente cientficos, uma histria referencial para que se possa reeditar no futuro o prestgio que supostamente a cidade teve no passado. Parece ser esta a inteno implcita na poltica de tombamento. Como j dito, o slogan Restaurando o passado, melhorando o presente e preparando o futuro que aparece nos boletins oficiais da Prefeitura da gesto 2000/2004 encabeada por Cid Gomes expressa bem isso. Na narrativa tecnocrtica, produzida neste estudo, os sujeitos individuais e suas aes cotidianas, que no podem ser controlados pelo saber tcnico, por sua caracterstica errante, como j dito, desaparecem ou no so levados em considerao. O que importa, neste documento, o que serve para consolidar uma identidade coletiva do sobralense. A cidade, seus espaos, edificaes e lugares, tornam-se uma espcie de
28 Sobre uma anlise detalhada do Estudo, ver FREITAS, op.cit., 1999. 29 Deni Cerclet utiliza este termo em conferncia proferida em 12/04/1999, no Departamento de Cincias Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Cear pensando no caso da cidade de Lion na Frana. 54 equao cujos membros so identificados, catalogados, esquadrinhados, classificados em uma quantidade varivel, mas calculada. Nesta perspectiva, cada elemento precisa ajuntar- se ou subtrair-se a um movimento mdio das vrias estaes para se verificar o verdadeiro movimento que afirma a igualdade de duas expresses ligadas pelo sinal =, que s se verifica para determinados valores das incgnitas nelas contidas e escolhidas ou encontradas pelo tcnico. As condies de orientabilidade, estmulos visuais, transparncia ou originalidade, estaes e intervalos da topologia, julgados e justificados pelo tecnocrata, montam uma equao que tem como resultado a especificidade de Sobral que justifica a necessidade de tombamento. A equao montada com as incgnitas construdas pela relao entre o analista e a cidade, tem que ser igual ao que significa a cidade. A forma como foi montado o mtodo para constituio deste documento no permite devaneios, passeios pela imaginao, construes inusitadas no cotidiano, assim como normatiza, estabelece um preceito, regra de procedimento, exemplo, modelo, e teor de vida essencialista do morador da cidade, justamente porque matematiza a anlise. Porm, todo este processo tem uma histria social e poltica implcita que precisa ser explicitada.
1.3 Construes e contexto da histria do tombamento do ncleo urbano de Sobral: precises e imprecises.
Segundo o que informa o Secretrio de Cultura, Desporto e Mobilizao Social de Sobral em artigo j citado, no dia 12 de agosto de 1999, Sobral foi tombado como patrimnio nacional por deciso do Conselho Nacional do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Ele lembra que o movimento para conseguir esta empreitada iniciara- se institucionalmente em janeiro de 1997, por iniciativa desta Secretaria que, com o apoio da Secretaria de Cultura do Estado, contratou um escritrio especializado para produzir um trabalho bsico denominado de Identificao e Delimitao de rea para Tombamento. O documento produzido foi entregue ao IPHAN que instalou o processo na sua 4 55 Coordenadoria Regional, sediada em Fortaleza. A Superintendncia Regional do IPHAN complementou e revisou o trabalho, somando ao documento produzido, denominado de Estudo para Tombamento do Patrimnio Histrico de Sobral (1997) j citado; um abaixo assinado que, segundo o Secretrio, estaria ... evidenciando que o pedido no se caracterizava como uma ao meramente institucional(Sanare, out/nov/dez de 2000:44). Segundo o Secretrio, disso resultou um processo de tombamento por ele classificado como inovador. Segundo o que diz, Nele no tombado apenas o imvel ou mesmo ele e o seu entorno, mas procedido o tombamento do conjunto urbanstico da cidade, o que assegura a preservao de todos os bens culturais contidos na rea delimitada, sejam bens culturais, materiais ou imateriais(Sanare, out/nov/dez de 2000:44). A inovao, portanto, conforme os argumentos do articulista, no est somente no tombamento da rea urbana, mas contempla as dimenses da natureza, a histrico- artstica e a documental. Uma mudana na rotina do tombamento parece ter aparecido neste processo. Apesar de haver um registro na documentao produzida das edificaes e manifestaes culturais inseridas no centro histrico e no seu entorno, que foram tombados, no houve um trabalho de inventrio e mapeamento preciso destes elementos, atividade que foi realizada posteriormente. O mapeamento, at o fechamento desta tese, ainda no tinha sido concludo, mas algumas atividades foram desenvolvidas visando informar e formar, segundo as palavras do Secretrio, a populao sobre o tombamento. Vrios shows foram programados na cidade com os diferentes grupos locais de bumba-meu-boi, cco, escolas de samba, dentre outros, sempre exaltando a necessidade de resgatar ou preservar a Foto da antiga casa do Capito Mor de Sobral Jos Xerez da Furna Uchoa tida como marco da origem da ento Vila Distinta e Real de Sobral. Fonte: site http://www.sobral.ce.gov.br/sec/cultura/casa_capit ao_mor.php 56 cultura exaltada tanto no registro da localidade denominado como sobralense, quanto no registro do popular. A alforria do resgate no cativeiro do esquecimento destas manifestaes artsticas parecem ser pagas como presentes para o sobralense, que restitudo custa de algum suposto sacrifcio por parte das aes pblicas da municipalidade em cumprir um projeto que visa fazer daquilo, que estava sendo esquecido, uma lembrana que deve ser adaptada no presente, aos genricos interesses coletivos marcados na imagem da sobralidade. Porm este argumento de que o processo de tombamento de Sobral foi inovador, no parece estar em concordncia com o pensamento do Superintendente do IPHAN que diz: Eu discordo completamente. Pela condio de arquiteto eu s posso entender que a cidade seja digna de ser tombada se ela tem um equilbrio nos aspectos que a conformaram no passado. Seus aspectos histricos, urbansticos, arquitetnicos e paisagsticos eles tem que ter presena. Voc olha para a cidade de Parati, v com grande legibilidade todos os edifcios pblicos, religiosos da arquitetura cvel, etc., que conformam o processo de evoluo daquela cidade ali. Agora, voc andar na cidade que tem um bem imvel aqui de interesse, a tem quinze que no valem nada, a anda mais para frente, tem dois, a tem mais vinte que no serve para nada, ns estamos submetendo estas pessoas que moram nestes intervalos a uma lei que discricionria, que uma lei pesada, que difcil voc trabalhar contra ela. Ns estamos submetendo estas pessoas a um constrangimento muito grande, porque... de repente voc impediu que a pessoa, pelo simples fato que ela tem um prdio que no vale nada do lado de um edifcio de interesse, tem que ser tombado tambm, e principalmente voc tem mais quinze e vinte que est na mesma condio. Ento eu acho que um pouco demais. Eu acharia muito mais interessante se ns trabalhssemos com a noo de conjunto... e que estes edifcios que fazem estes intervalos a, eles pudessem inclusive crescer, ser trabalhado um pouco mais com outros parmetros para voc no deixar estas pessoas sem alternativa. Mais a, trabalhando estes edifcios nestes intervalos com muito boa arquitetura. Porque do contrrio uma penalizao absurda. O pessoal de Sobral no chia tanto por causa do poder poltico e da liderana poltica que foi muito eficaz no sentido de colocar isso na cabea das pessoas da cidade que isso era um ponto de honra(entrevista realizada pelo pesquisador com Romeu Duarte Jr. em 07 de maro de 2005). Porm, apesar da liderana poltica, supostamente, conseguir amenizar os efeitos do processo de tombamento, Romeu informa que h vrios processos pendentes de reforma de casas que, segundo ele, no se enquadram no tipo de edificao que mereceria ser tombada. 57 Para ele o que vale mesmo para definir se uma edificao merece ser tombada a arquitetura que est acima do cho, pois ela que determina visivelmente o que realmente deve ser preservado. Para ele o arruamento, por exemplo, mesmo sendo mantido na sua verso original, s mereceria ser tombado se houvesse uma arquitetura representativa nele. A Universidade Estadual Vale do Acara (UVA), sediada na cidade, tambm participou deste processo, atravs de um grupo de historiadores integrantes de seu quadro docente. O documento publicado intitulado Sobral Patrimnio Nacional o resultado do trabalho destes historiadores. Este documento tambm serviu de subsdio para a produo do Estudo (1997), apesar de ter sido publicado somente em junho de 2000, e foi o que mais pesou na efetivao do tombamento, j que, segundo o que informa o prprio superintendente do IPHAN, ele foi realizado havendo uma sobrevalorizao do histrico. O documento pautado em uma extensa pesquisa bibliogrfica e documental no acervo da universidade. Toda a narrativa construda no texto escrito leva o leitor a crer na prosperidade econmica que Sobral j teve no passado. O que no poderia ser diferente, visto que a finalidade do documento era a de ressaltar a importncia da urbe, e a sua particularidade e peculiaridade histrica para justificar o ttulo de Patrimnio Histrico Nacional. Este documento produzido pelos historiadores locais revela uma histria sustentada pelo vis scio-econmico, sempre pontuada pela exaltao do destaque da cidade com relao s demais instaladas no Cear. Exemplo disso quando os historiadores falam que: Em 1860, foi feito um plano de urbanizao que mesmo no tendo sido realizado, demonstra a prosperidade do lugar que buscava construir espacialmente a representao de uma estabilidade e de uma supremacia alcanadas(Barbosa, Souza & Vasconcelos, 2000:25). A citao de Antonio Bezerra, visitante da cidade em misso de governo que teve suas Notas de viagem publicadas em 1884, tambm servem como fonte de exaltao da importncia da cidade. Segundo a leitura dos historiadores, O tamanho da rea urbana, as edificaes e o asseio da cidade o impressionaram de tal modo que o levaram a compar- la com Campinas (Barbosa, Souza & Vasconcelos, 2000:25). Mais frente os historiadores complementam: 58 Some-se essa preocupao com a organizao da cidade por parte do poder pblico, sua arquitetura, que, neste sculo, caracterizou-se pela presena de sobrados, e tem-se uma medida do aspecto imponente que a cidade adquiria. Essas construes aliavam comrcio, na parte trrea, e residncia, na parte superior. Sua beleza, o desenho e organizao da cidade, o volume considervel de comrcio e as fazendas referenciaram as impresses que esse visitante, em misso de governo, deixou sobre Sobral (Barbosa, Souza & Vasconcelos, 2000:26). No final dos textos os historiadores arrematam todo o levantamento histrico registrado no documento afirmando: A cidade ainda guarda, seja no traado de suas ruas centrais, seja em muitas edificaes, a estrutura urbana original de seu ncleo e as marcas da lenta construo e expanso de seu tecido urbano, com suas diversas ocupaes e usos. A riqueza e importncia de Sobral ao longo dos anos faz- se visvel, inclusive, na rica paisagem que compreende a Serra da Meruoca e a silhueta de suas edificaes. A importncia das estradas, bem como a centralizao do poder religioso, revelam como ocorreu o processo de ocupao do serto do pas (Barbosa, Souza & Vasconcelos, 2000:29). A questo aqui no saber se estas informaes so verdadeiras ou falsas, mas sim discutir a forma como elas so usadas. Um primeiro aspecto a ser ressaltado o fato de que a histria da cidade aparece como um caminho percorrido com um comeo, desenvolvimento e fim. No a toa que o Secretrio de Cultura e os prprios historiadores, que fizeram este levantamento, chamem a ateno de ciclos ou fases diferentes do tempo e as peculiaridades destas fases. Nesta narrativa, registrada uma origem que marcada no espao urbano pela casa do Capito Mor de Sobral Jos Xerez da Furna Uchoa. Ela lembra o reconhecimento do povoado de Caiara enquanto Vila Distinta e Real de Sobral em 1773. Lembra tambm o que havia antes do povoado tornar-se Vila. A narrativa dos historiadores mostra que vrias fazendas de criao de gado foram implantadas na regio por famlias que fugiam da ocupao holandesa em Pernambuco e que, com apoio oficial, combatiam os ndios da regio para constiturem suas fazendas. Segundo eles, a comercializao do gado na fazenda Caiara, que se tornou o ponto de encontro dos caminhos do gado vindo de outros estados, fez com que surgisse o povoado que futuramente tornar-se-ia Vila. A narrativa da origem, marcada, arquitetonicamente, pela casa do Capito Mor, tem um desenvolvimento regido pela idia da opulncia e riqueza dos fazendeiros e comerciantes da cidade. Esta histria de opulncia marcada por fases que revelam outros 59 fatores e outras culturas econmicas peculiares histria da cidade. Fala da cultura do algodo, da implantao das estradas de ferro que serviam de transporte de passageiros e escoamento da produo, da industrializao, dentre outros aspectos. Fala da ligao de Sobral com outros centros, inclusive estrangeiros. Comenta sobre a construo das edificaes e espaos hoje considerados centrais para efetivao do Tombamento. Comenta tambm sobre Dom Jos Tupinamb da Frota, primeiro bispo da cidade que no documento responsabilizado pela construo de edificaes fundamentais, enquanto equipamentos sociais na cidade como o caso do Seminrio que usado contemporaneamente como sede da Universidade Estadual Vale do Acara (UVA) e a Santa Casa, hospital de referncia regional, dentre outros. A histria contada pelo documento tambm tem um fim, que mostrar a importncia de Sobral nos dias atuais, haja vista o que ela representa e conta atravs da preservao da estrutura urbana, no apenas sobre a histria local, mas tambm revela o processo peculiar de ocupao do serto cearense. Comparando esta narrativa histrica, reproduzida tambm em outros livros e documentos, crtica que Bourdieu (2000) faz biografia, posso encontrar uma analogia significativa. Para o autor a biografia tende a ser entendida como uma expresso unitria de um projeto original que ressalta um sempre ou desde ento, como se a origem marcasse uma forma peculiar de ser, que percorre toda a sua existncia e que caracteriza o ser no presente; ou seja, fazendo-se uma analogia da forma como a histria da cidade contada no documento, relacionando com as motivaes implcitas nos demais documentos citados que falam do tombamento, como se Sobral, que foi assim desde o comeo, rica, pioneira, diferente e prspera, seja assim tambm no presente. Falta somente ao sobralense saber melhor como foi o seu passado, para reproduzir o que sempre foi, no presente. como se postulasse um sentido da existncia do ser sobralense que deve ser preservado e exaltado todo tempo. uma lgica retrospectiva, mas tambm prospectiva, uma consistncia ou uma constncia, que estabelece relaes entre uma ao e uma conseqncia ou causa final, com estados sucessivos e constitudo de etapas com um desenvolvimento necessrio (Bourdieu, 2000). 60 O termo sobralidade funciona como designador rgido, constante e durvel, que identifica de forma genrica e imprecisa o habitante da cidade e serve para institucionalizao de prticas e atitudes dos tcnicos e burocratas do poder pblico municipal, introduzindo divises ntidas, fixas e necessrias com habitantes de outras cidades, principalmente com os de Fortaleza, desconsiderando peculiaridades circunstanciais e acidentes individuais no fluxo da realidade, seja do ponto de vista temporal, seja do ponto de vista espacial. Todo sobralense parece ser igual nestas imagens construdas pela identidade substancial edificada pelos documentos que justificam o Tombamento do Patrimnio Histrico de Sobral. Alm de parecerem ser iguais entre si, os sobralenses so diferentes do fortalezense, por exemplo. uma abstrao de uma personalidade que est sendo construda por esta narrativa (Bourdieu, 2000). Nesta abstrao h uma tenso entre a sbita revelao de um sujeito fracionado, mltiplo (Bourdieu, 2000) e a permanncia de uma identidade substancial socialmente determinada pela designao de sobralense. E a histria local usada para este fim. Atravs dela justifica-se uma singularidade e uma identidade que deve ser entendida tambm como projeto a ser implementado no presente. O sobralense lembrado nestas narrativas o retrato de uma histria que se conta com um personagem suspenso que projeta uma instncia de consagrao e notabilidade. um escolhido que transcende a existncia mundana dos homens comuns de outras cidades. A sobralidade eternizada no sobralense porta-se como um discurso laudatrio para justificar um louvor ao que ela representa apesar de sua impreciso conceitual. neste sentido que os representantes da administrao Cid Gomes parecem trabalhar. Porm, apesar do objetivo aqui no seja verificar se esta verso da histria local verdadeira ou falsa, vale a pena fazer algumas considerao sobre ela, pensando mais alguns aspectos e retomando a inteno da constituio de uma identidade substancial, associado a estas questes.
1.4 Pensando sobre uma idia: opulncia e tradio no contexto histrico de Sobral. 61
Algumas notcias e documentos produzidos pela municipalidade, como os j vistos aqui, falam sobre a riqueza da cidade e apontam o sculo XIX como pice ou marco de distino de sua opulncia econmica. As informaes sistematizadas por Thomaz Pompeu de Sousa Brasil publicadas no ano de 1863 (1997), mostram que Sobral realmente tinha um dos maiores oramentos do estado dentre as nove cidades e vinte e uma vilas existentes na poca. Mas perdia para Fortaleza (capital da ento provncia com oramento de 21:300$200), para o Crato (com oramento de 4:808$000), para Aracaty (com oramento de 4:355$000) e para Maranguape (com oramento de 4:212$000). Sobral, nesta poca, tinha um oramento de 2:869$350, o que bem modesto diante das contas das demais cidades citadas. A mdia durante os anos de 1856 e 1861 da receita tambm coloca Sobral na mesma posio com relao s demais cidades citadas. Porm as despesas j mostram uma realidade diferenciada. Veja tabela: Tabela 1 Quadro de despesas municipais do qinqnio entre 1856 e 1861 Mdia dos 5 anos Municpio Receita Despesa Fortaleza 18:208$088 19:433$670 Aracaty 8:129$501 8:029$246 Crato 5:992$765 2:847$990 Maranguape 4:179$746 2:828$024 Sobral 3:371$740 3:017$168 Fonte: BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Ensaio Estatstico da Provncia do Cear. ed.Fac.sim., Fortaleza, Fundao Waldemar Alcntara, 1997 (1863). Diante destes dados, podemos perceber mais uma vez que Sobral realmente uma das cidades mais importantes do ponto de vista econmico do Cear, no final do sculo 62 XIX, mas diante das outras quatro cidades, fica a desejar 30 quando comparados os dados relativos receita. Os dados relativos despesa mostram que Sobral teve gastos superiores cidade de Crato e Maranguape, porm, supervit menor. Portanto, na hoje reconhecida como regio norte, no havia outro municpio que chegasse a estas cifras. O que nos leva a crer que Sobral teria sido um importante plo econmico que, de certa forma, na contemporaneamente reconhecida Regio Norte, dominava economicamente as demais cidades ao seu redor. A tabela abaixo faz um comparativo da receita e da despesa entre Sobral e os principais municpios existentes na poca da delimitao territorial atual que constitui a Regio Norte. Tabela 2 Quadro de despesas de 5 municpios prximos de Sobral no qinqnio entre 1856 e 1861 Mdia dos 5 anos Municpio Receita Despesa Sobral 3:371$740 3:017$168 Granja 1:106$827 1:023$910 Acarac* 971$001 688$430 Viosa 607$744 547$332 Ip 530$080 957$185 Santa Quitria 253$568 227$232 * Nos dias de hoje, esta cidade denominada de Acara. Fonte: BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Ensaio Estatstico da Provncia do Cear. ed.Fac.sim., Fortaleza, Fundao Waldemar Alcntara, 1997 (1863).
30 Durante este qinqnio, a posio entre as cidades ficaram oscilando de ano para ano. Em 1860, por exemplo, Sobral supera Maranguape e Crato em receita. J em 1961 Crato chega a superar Aracaty, s perdendo para a Capital. 63 A tabela mostra que a cidade de Granja, situada na rea de influncia de Sobral, a que mais se aproxima em receita do municpio aqui estudado, apesar desta mesma cidade ter uma populao superior no final do sculo XIX. Em 1860 a populao de Sobral era de 19.633 habitantes, somando-se homens e mulheres livres e escravos. J a populao de Granja era de 24.440 habitantes. Um dado significativo que nos faz dar maior ateno idia da opulncia a populao de escravos em Sobral no ano de 1860, que era a maior do estado com 3.224 indivduos o que representa 9,1% do total do Cear (35.441 pessoas) e 16,4% do total de habitantes da cidade. Se fizermos esta mesma relao no caso de Fortaleza, esta cidade tinha 8,1% dos escravos do estado. Alm disso, os escravos representavam tambm 8,1% dos moradores da capital estadual que totalizavam 35.373 habitantes. Isso poderia, por si s, ser entendido como um indicador de prosperidade econmica incomparvel, quando pensamos a realidade das demais vilas e cidades do Cear no final do sculo XIX. Porm como explicar as diferenas relativas aos indicadores de receita? O documento produzido pelos historiadores da UVA (Barbosa, Souza & Vasconcelos, 2000) que serviu como parte do Estudo para o Tombamento Histrico de Sobral (1997), j sugere um refluxo econmico no final do sculo XIX, o que obrigou o consrcio com outras culturas e o incio da industrializao, o que talvez explica as diferenas da receita. Alm disso, o que importa aqui mostrar que Sobral realmente constitui-se como uma cidade economicamente rica, mas uma riqueza relativa regio na qual est situada como plo de convergncia, principalmente, no setor do comrcio. Sobrado antigo conjugado com edificao mais recente no centro da cidade. Foto: Site www.sobral.ce.gov.br. 64 Porm cabe aqui retomar alguns argumentos j expostos e pensar melhor esta necessidade de diferenciao e exaltao da riqueza da cidade, apresentadas nas narrativas expostas. Se no livreto citado, denominado Sobral: patrimnio de todos, cultura pode ser definida como um modo de vida coletivo herdado pela tradio, referindo-se a fala, ao trabalho, s crenas, s instituies, ao saber e ao artesanato, por que a preocupao em mostrar somente o que foi resultante da riqueza econmica da cidade? Ser que na cidade, somente o que se refere prosperidade econmica deve ser considerado vlido para uma poltica de preservao? Pelo menos isso que acontece com relao s edificaes. O museu, o teatro, os casares, sobrados, monumentos e outros equipamentos sociais que aparecem nas publicaes que falam da tradio sobralense, so sempre simbolizados como exemplos da prosperidade. No mbito do patrimnio cultural imaterial definido pelas instituies responsveis pelo resguardo, parece haver mais espao para manifestaes de indivduos pertencentes a segmentos sociais de menor prestgio econmico atravs de determinadas danas, msicas e outras formas de manifestao artstica. Porm estas perdem um referencial scio-econmico e ganham o adjetivo de popular. o que vem sendo registrado no mapeamento cultural, patrocinado pela Secretaria de Cultura do municpio. O termo popular tem a pretenso de diluir as peculiaridades histricas, sociais e econmicas das diferenas. Alm disso, o popular vira mercadoria de consumo, includo no rol do que classificado enquanto tradicional pela poltica de tombamento e vira atrao turstica. O que no peculiaridade do patrimnio imaterial, mas do material tambm. Vale ressaltar que a preocupao com o patrimnio material foi o pontap inicial do processo de mobilizao do poder pblico no sentido de efetivar o tombamento de uma parte do ncleo urbano de Sobral, considerando-o patrimnio histrico nacional. Alm disso, a histria na sua verso scio-econmica, ressaltando ciclos de desenvolvimento, registrados pelos historiadores locais tambm serviu como suporte principal para justificar o processo de patrimonializao. 65 Contemporaneamente, no toa que as aes polticas direcionadas ao turismo sejam agregadas Secretaria de Cultura do municpio. A cultura local, definida por aqueles que direcionam e formulam as polticas pblicas como tradicional, passa a ser um dos focos de ateno prioritrios das duas gestes do prefeito Cid Gomes (1997/2000 e 2001/2004). Como j dito, a rea urbana tombada corresponde ao suposto apogeu econmico da cidade no sculo XIX, apesar de haver uma certa confuso cronolgica com relao definio exata do tempo da riqueza. O personagem criado para confundir as datas o grande heri, primeiro bispo da cidade, Dom Jos Tupinamb da Frota, o mito que ser analisado mais adiante. Em vrios livros publicados que contam a histria da cidade, comum encontrar registros do consumo acionado por alguns indivduos prestigiosos da cidade, de objetos e vestimentas, assim como comportamentos que os autores acham tpicos de uma cidade opulenta. As histrias contadas por estas obras, mostram um meio de vida associado a uma prosperidade incomparvel, apesar de no compararem com as prticas e costumes de outras cidades. O gosto refinado do sobralense exaltado constantemente, assim como a intelectualidade de sua elite. A publicao j citada denominada Sobral: Patrimnio Nacional (Barbosa, Souza & Vasconcelos, 2000), por exemplo, que reproduz o texto dos Mapa do municpio de Sobral incluindo seus distritos. 66 professores e pesquisadores da histria que fundamentam o Estudo para o Tombamento do Patrimnio Histrico de Sobral (1997), chama ateno da entrada, atravs do porto de Acara, de objetos de luxo como pratarias, porcelanas, cristais, mveis, dentre outros, que, para os autores do texto, indicam a prosperidade econmica da cidade. Alm da Histria contada por algumas obras de referncia, o prprio poder pblico, atravs de suas intervenes no espao urbano, contribui para reforar a idia da opulncia e tradio da cidade. O esforo empreendido desde 1996 pelo futuro Secretrio de Cultura de Sobral (mandato 1997/2000 e 2001/2004), ento vereador e advogado Clodoveu Arruda, exemplar neste sentido. Na poca, o antigo sobrado dos Figueiredos, como era conhecido a edificao que contemporaneamente abriga o espao cultural batizado como Casa da Cultura, ia ser demolido por conta do abandono em que se encontrava. Como vereador, o advogado mobilizou todas as foras disponveis para impedir a demolio. Uma parte da imprensa, alguns representantes de ONGs, alguns membros da Igreja Catlica local, dentre outros, apoiaram a empreitada do ento vereador. Em conversas informais com o j ento Secretrio de Cultura, ele afirma que a interveno do poder pblico, que culminou no tombamento de uma parte da rea urbana de Sobral como patrimnio histrico nacional em 1999, iniciou-se deste movimento. Toda uma srie de referncias documentais e bibliogrficas, alm de anlises da organizao geogrfica do espao urbano, foram mobilizadas pela municipalidade no sentido de construir uma base conceitual e analtica que visava subsidiar uma justificativa para o desejado tombamento. Herzfeld (1991), pesquisando Rethemnos, cidade de Creta, chama a ateno da influncia da mquina estatal na formulao, atravs de sua organizao burocrtica, de uma identidade para o local. O autor percebe que h um contraste entre ideologias diferentes que servem como definio de uma origem. Para ele h uma diferena discursiva abismal entre o tempo monumental do discurso oficial e o tempo social colado ao cotidiano. No caso analisado por Herzfeld, o discurso oficial apresenta a histria da cidade e de seus habitantes como uma predestinao fatalista que entende a experincia social como uma eterna verdade. Esta predestinao margeia o ambiente fsico e transforma as propriedades pessoais em monumentos coletivos, causando uma srie de 67 constrangimentos aos moradores no que se refere impossibilidade de reformas em suas casas. Guardando as muitas diferenas entre o tombamento como patrimnio histrico de Rethemnos, na ilha de Creta, e de Sobral, no estado brasileiro do Cear, penso que, do ponto de vista estilstico, as narrativas dos integrantes e integrados no poder pblico de Sobral anteriormente citados e as implicaes do processo de monumentalizao da cidade parecem resguardar muito mais semelhanas do que diferenas. Em Sobral, a monumentalizao dos espaos se faz presente assim como na cidade cretense, no no sentido de desvalorizar o velho, mas de a partir da idia de tradio e monumentalizao dos espaos, pensar em uma forma de afirmar um modelo de moderno coerente com um movimento contemporneo que demanda uma cidade preparada para consumir, assim como preparada para ser consumida como produto. Ao mesmo tempo, no cotidiano gera constrangimentos com relao manipulao dos patrimnios particulares tornados coletivos. Por outro lado, assim como Herzfeld, no penso que o termo inveno da tradio, cunhado por Hobsbawm e Ranger (1984), seja operativo neste contexto. Herzfeld argumenta que este termo sugere que um determinado tipo de tradio parece representar o passado real, enquanto um outro tipo o passado inventado. Alm disso, ironiza dizendo que ele no pode ver como uma tradio pode ser mais inventada do que outra. Toda manifestao social ou cultural considerada seja pelos tecnocratas, seja por outros tipos de profissionais ou pessoas interessadas pela histria da cidade como tradicional uma inveno, portanto redundante dizer que h uma tradio inventada. A questo entender como ela utilizada pelos distintos agentes sociais que compem o complexo cenrio da cidade. comum termos como restaurao, revitalizao, dentre outros, aparecerem nestas narrativas que visam tanto monumentalizao da cidade como sua modernizao. Em boa parte das narrativas atribudas tecnocracia da municipalidade, parece haver um acordo tcito entre o sobralense genrico e o poder pblico em instaurar, repor no primitivo estado, restabelecer, dar novo esplendor, retocar e restituir o poder e a vida de 68 determinados espaos da cidade que, segundo o que informa estas narrativas, estavam esquecidos ou at mesmo mortos, precisando de uma revitalizao. Vale a pena ressaltar que este processo de monumentalizao da cidade de Sobral se deu de forma bem diferente dos demais processos nas outras cidades cearenses tambm tombadas. Segundo Romeu Duarte: Se voc vai em Ic, vai em Aracati ou a Viosa, voc v em muitos momentos destas reas em que voc sente que est dentro do stio histrico. A ambincia, a presena dos edifcios, os espaos tudo nos conformes, os detalhes, etc., e em Sobral infelizmente eu no vejo isso. Eu vejo edificaes de grande valor, mas de forma isolada(entrevista realizada pelo pesquisador com Romeu Duarte Jr. em 7 de maro de 2005). Em seguida o Superintendente do IPHAN complementa que: O tombamento das outras trs cidades ele se fez muito em cima de uma linha de arquitetura e de urbanismo. Pela preservao da arquitetura preservada, da arquitetura ntegra, da arquitetura homognea. Se fez um levantamento, viu determinados setores que mereceriam ser preservados pela contigidade das edificaes de valor, pelos principais espaos da cidade que... a sim a histria serve para isso, para explicar como que a cidade se formou, porque tem uma rua grande, tem uma rua de comrcio, a feio pombalina da cidade de Ic, por exemplo, que a mesma de Aracati. Ento estes elementos que balizaram o desenho de uma poligonal de preservao rigorosa que so muito restritas. Assim, como a de Viosa que basicamente a praa em torno da Igreja e o espao vai para o lado do teatro. No tem mais nada. Porque ns sabemos que vamos ter muito trabalho depois para voc manter uma cidade que gigantesca. Sem sentido. Ento isso que faz a diferena entre os processo de Ic, Aracati e Viosa de Sobral. Sobral houve uma considerao que eu diria muito acadmica no sentido da formao da cidade, a considerao dos quarteires, a diviso dos lotes, etc., mas ningum se deu conta que juntando todos estes pedaos ficava uma rea em termo de quantidade de imveis, 1227 na rea de preservao rigorosa que s perde para Salvador e para So Luis. Isso tem um custo de eficincia para gerenciar, planejar e controlar uma cidade desta. (entrevista realizada pelo pesquisador com Romeu Duarte Jr. em 7 de maro de 2005) Uma viso administrativa da cidade fundamental para o Superintendente do IPHAN, justamente para evitar que ele, como responsvel pelo rgo na regio, vire uma espcie de Prefeito da cidade, por conta da grande extenso em tamanho que o tombamento pode obter. O caso de Sobral exemplar justamente porque o stio histrico alm de ter 1.227 imveis registrados na rea de preservao, possui 19.542 habitantes, 69 segundo censo do ano 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), sendo o bairro mais populoso. Isso causa um acmulo muito grande de processos de mudanas ou reformas a serem analisados em edificaes que para ele nem mereceriam ser registradas como Patrimnio Histrico Nacional. Este cuidado parece ter sido tomado nas outras cidades tombadas no Cear. Entretanto para entender melhor esta lgica explicitada por estas narrativas preciso descentrar um pouco a ateno deste aspecto particular da classificao, enquanto monumento ou tradio, e viajar por distintas imagens que podem ser produzidas sejam elas influenciadas pela monumentalizao do que ocorre no espao urbano, ou no. difcil dizer at que ponto h uma desarticulao absoluta entre as intervenes da administrao municipal na cidade relativas ao processo de monumentalizao ou tradicionalizao dos espaos e das prticas dos agentes sociais e as outras formas de interveno que, em muitos casos so registradas pelos funcionrios do poder pblico na rubrica de modernizao. A opo feita foi iniciar, atravs de uma caminhada pela cidade, por imagens produzidas pelo prprio pesquisador. Imagens estas que em primeiro momento parecem descoladas deste processo de interveno particular aqui ressaltado, mas que tem fortes ligaes com ele no sentido de que as prticas cotidianas dos agentes refletem usos e interpretaes distintas destas intervenes, assim como prticas que no so levadas em considerao pelo poder pblico, mas que mostram usos extremamente reveladores da forma como as pessoas lidam com as operaes tcnicas acionadas para modernizar a cidade.
70 2 Imagens de uma cidade
2.1 O Pesquisador e a cidade: simulacros de um andarilho
Minha moradia em Sobral deu-se incio no ano de 1995, quando fiz concurso para docente na Universidade Estadual Vale do Acara (UVA) sediada nesta cidade. J conhecia algumas das qualificaes atribudas aos seus habitantes, como o porte aristocrtico e as brincadeiras sobre o seu nome como United States of Sobral. Nunca havia morado em uma cidade do interior e, como boa parte de meus amigos de Fortaleza onde morava, carregava comigo uma certa carga de preconceitos referentes ao provincianismo e ao atraso geralmente atribudos s cidades que no so capitais ou grandes megalpoles. Confesso que o tempo e a intensidade da experincia na cidade me deixou receoso de usar qualificaes como provincianismo s prticas cotidianas de seus moradores, apesar das piadas e ironias referentes ao jeito de ser sobralense reforarem esta idia pela lgica da inverso, fazendo brincadeiras sobre a suposta necessidade do sobralense de pertencer a uma grande metrpole. Minha desconfiana no tanto por entender se Sobral ou no provinciana, mas o melindre encontra-se na dificuldade em demarcar quais tipos de manifestaes ou comportamentos podem ser representativos desta qualificao. Ouvi at alguns colegas de trabalho em Fortaleza argumentarem comigo que, sentar nas caladas no final da tarde, com grupos de amigos ou familiares, conhecer e reconhecer boa parte das pessoas que passam por voc nas ruas, a necessidade de identificao e qualificao dos indivduos com base no grupo familiar que pertencem, dentre outros aspectos, podem ser critrios significativos do que se define enquanto atitudes provincianas. Porm, com o tempo, pude perceber que isso no caracterstica peculiar de adensamentos urbanos de mdio ou pequeno porte, mas tambm manifestaes que fazem parte da dinmica de alguns bairros ou espaos especficos de sociabilidade das grandes metrpoles brasileiras, o que reforou ainda mais minha desconfiana sobre a operacionalidade analtica do termo. Velho (1999b) argumenta que o momento contemporneo, analisado por alguns autores como expresso de forma mais enftica no contexto das grandes cidades, marcado, 71 por um lado, pelas ideologias individualistas, fazendo surgir o indivduo-sujeito, por outro lado tambm caracterizado pela fragmentao de domnios, pela complexidade, assim como pela heterogeneidade de percepes, vises de mundo e estilos de vida. Desta forma, o que tradicional ou, tomando um termo mais pejorativo, provinciano, como por exemplo, os encontros nas caladas, referncias famlia extensa, dentre outros aspectos, convive com as expresses da modernidade, no sendo possvel estabelecer uma dominncia absoluta, definitiva e necessria, nem de uma, nem de outra. Tambm pude perceber que a sociabilidade cotidiana nos diferentes bairros de Sobral me fez entender que, dependendo do bairro, estas caractersticas podem ser bem visveis e marcantes, enquanto que em outros, os vizinhos mal se conhecem e as pessoas se concentram amedrontadas e cercadas por grandes muros como acontece nos bairros da Colina e Derby Club, ou passam desapercebidas em meio a um denso grupo de caminhantes apressados, como no centro, no horrio comercial, caractersticas estas muito marcantes nas grandes cidades, respeitando as diferenas quantitativas destes casos citados. Nos bairros que abrigam as grandes casas muradas, a sociabilidade e interao cotidianas entre pessoas de diferentes origens familiares se do, no na rua, mas em outros locais da cidade. Por estes motivos resolvi no alimentar minha dvida e no uso a qualificao de provinciana ao caso de Sobral como recurso analtico, a no ser quando minhas fontes s utilizam como categoria de classificao e/ou qualificao social. Era comum tambm, colegas de Fortaleza afirmarem, que o sobralense no se considera interiorano, e sim integrante de um grande centro urbano, independente e autnomo como se fosse uma capital ou uma grande metrpole. Este tipo de narrativa irnica era acionada, principalmente, quando falava que ia trabalhar no interior. Era complementada, entretanto, com uma advertncia de que no deveria falar isto na frente de um sobralense, pois poderia sofrer retaliaes. Segundo o que est implcito na ironia, o sobralense no se considera morador do interior. Como toda qualificao, as ironias pautadas na inverso, quando passam a ser investigadas com maior ateno no cotidiano de uma cidade, fazem com que o analista perceba a generalidade e, ao mesmo tempo, a superficialidade na sua significao para classificar. Penso que no h consenso com relao ao que realmente devemos considerar 72 provinciano ou interiorano. Parece tambm que esta no uma dificuldade peculiar ao analista que tem como foco de sua investigao a cidade de Sobral. Dependendo do contexto temporal e espacial, de quem o sujeito que fala, sua origem e sua formao social ou profissional, pode-se perceber diferentes critrios para qualificar qualquer cidade com estas ou outras identificaes substancialistas. Outras perspectivas, pretensamente mais racionais ou cientficas, incorrem no mesmo procedimento classificatrio. Para Certeau (1984) a cidade do discurso urbanstico, por exemplo, definida pela possibilidade de produo de um espao prprio, racionalmente organizado que deve recalcar tudo que possa comprometer esta organizao. Alm disso, o urbanista estabelece estratgias pressupostamente cientficas, unvocas, elaboradas por uma reduo niveladora das informaes que protegida e resguardada pela organizao estratgica de toda e qualquer ttica ocasional e astuta do cidado. Certeau tambm chama ateno de que o urbanismo tende a criar um sujeito universal annimo, modelado de forma especial, dando predicados definidos por um nmero finito de caractersticas estveis, articuladas e niveladas. Ao contrrio do autor, penso esta tendncia de racionalizao e construo de predicados nivelados e universalizados como uma perspectiva dentre outras do urbanismo, talvez at dominante, mas somente uma perspectiva. Porm penso que esta tendncia do urbanismo parece estar presente em Sobral. comum, no cotidiano da cidade, ouvir distintos sujeitos sociais, moradores deste adensamento urbano, chamarem a ateno da modernizao aplicada a sua sede na administrao de Cid Gomes que est explicitamente relacionada idia de monumentalizao do espao urbano. Acontece que as proposies conceituais dedutivas, substancialistas e essencialistas que geralmente delimitam prticas e espaos, pautadas em oposies binrias, sejam elas pensadas racionalmente pela perspectiva urbanstica criticada por Certeau (1984), sejam elas ironias, como: interior X capital, provinciano X moderno, campo (rural ou serto) X cidade (urbano), pblico X privado, dominante X dominado, quando postas no registro cotidiano das prticas, astcias e tticas de sobrevivncia de agentes sociais que criam e recriam o seu cotidiano todo tempo, fazem com que elas percam sua rigidez e fixidez e sejam percebidas tanto como instrumentos para construo de classificaes, de qualificaes e de diferenciaes sociais por parte dos agentes, portanto, indcios para compreender as 73 relaes de poder e tenses no dia-a-dia, quanto produtos de resignificaes contextuais por parte destes mesmos agentes. A cidade de Sobral ridicularizada pela ironia ou racionalizada pelo ideal urbanstico, suposto como racionalizante e moderno, no me parece homognea em qualquer um de seus aspectos, seja ela analisada de forma sistemtica por um pesquisador atento, seja ela apresentada em forma de chacota. A tentativa de homogeneizao parte de parmetros genricos de anlise ou classificao social. O fato de ser uma cidade com pouco mais de 150 mil habitantes 31 , a meu ver, impossibilita esta homogeneizao. No urbanismo objetivista e racionalista, estas classificaes sociais se combinam com a eliminao de tudo aquilo que nocivo ao modelo pensado para definir a cidade; ou seja, a idia do progresso e da modernizao, geralmente implcitos no referencial urbanstico aqui criticado reintroduz detritos no circuito de gesto da cidade e transformam o que considerado pelo tcnico como anormal em justificativa para implementar e tornar mais densa as redes de ordenamentos de polticas e intervenes. A violncia, as doenas, as favelas, as prticas esteticamente nocivas imagem da cidade pensadas pela faco poltica e tecnocrtica atrelada ao poder pblico municipal, so geralmente motes para desenvolvimento de projetos e planos de ao. A prpria tradio, como j visto, passa a ser fonte desta inteno de definir um espao prprio, estabelecer um sistema organizado e criar um sujeito universal, o sobralense e sua sobralidade, que pretensamente supem definir a cidade. Como anuncia um artigo no Jornal Municipal, rgo de imprensa da Prefeitura: A cidade de Sobral vem, desde o incio da atual administrao, tomando uma nova roupagem e propiciando ao cidado sobralense maior qualidade de vida, maior conforto e, acima de tudo, uma nova leitura de cidadania. (...) Saneamento bsico uma rea que requer investimento muito alto e acaba pesando no oramento municipal, sendo necessrio parceria com o governo federal. Poucos foram os prefeitos que investiram nessa rea. Isso porque um trabalho que fica debaixo da terra e que no pode ser visto com facilidade pela populao. Por isso, alguns gestores pblicos preferem fazer obras faranicas, construir prdios e casas, mas se esquecem de cuidar do principal: o saneamento bsico que vai garantir melhor qualidade de vida e
31 Segundo o Censo Demogrfico do ano 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), Sobral possui 155.276 habitantes. 74 sade para os moradores. Este um bom exemplo das aes que a Prefeitura de Sobral executa e reconhecido por toda a regio, j que vem investindo pesado no saneamento e drenagem do municpio, sem esquecer claro, das obras que ajudam no desenvolvimento da cidade, visveis por toda a populao. Alm da rea urbana, obras tambm esto espalhadas em vrios distritos do municpio; escolas, creches e ruas, sem esquecer da nova rodoviria, que dever ser inaugurada ainda em 2004. Sobral realmente est pronta para o futuro, com praas reformadas, Parque da Cidade, com pista de skates, novas avenidas, Centro de Convenes, o futuro Teatro So Joo que ser reinaugurado, a ECCOA e a Biblioteca Pblica na Margem Esquerda do rio Acara. So milhes de reais de impostos e contribuies da comunidade sendo investidos para o desenvolvimento da sociedade e para orgulho de todo sobralense(Jornal Municipal, setembro de 2004). O anuncio, apesar de ter como objetivo divulgar as obras de saneamento bsico na cidade, situa esta interveno pblica no contexto de um conjunto de obras mais amplo que visa dar uma nova roupagem cidade. Como o prprio texto afirma, isso propicia uma nova leitura da cidadania e do espao urbano que, ao mesmo tempo, desorienta as trajetrias usuais dos cidados e propicia uma nova qualificao do espao. A pretenso deixar Sobral pronta para o futuro, seja l o que isso signifique. A idia do futuro e da inoperncia de governos municipais anteriores, o que assunto recorrente no material de divulgao da municipalidade, volta a servir como ponte para justificar uma suposta nova viso objetivando o desenvolvimento. Ironicamente o processo modernizador ou desenvolvimentista, instaurado na cidade, traz consigo os detritos que visa combater. Em conversa com um trabalhador da Grendene, grande indstria de calados instalada na cidade, cheguei a ouvir desse senhor a afirmativa de que Sobral estava crescendo muito com a administrao Cid Gomes, mas, infelizmente, a medida que mais ia melhorando e se modernizando, mais a criminalidade, a violncia, a fome, a misria, dentre outros aspectos considerados pelo poder pblico, como desagregadores e degradantes da vida humana na cidade, tambm iam crescendo. Outro exemplo uma reportagem, dentre inmeras outras sobre o mesmo assunto, de capa do jornal de circulao local Expresso do Norte intitulada Insegurana toma conta de Sobral. Segundo o anncio do artigo na capa Assaltos viram rotina em Sobral (jornal Expresso do Norte, 3 a 9 de abril de 2004). 75 Porm, do ponto de vista da vida cotidiana ou das prticas microbianas, singulares e plurais dos distintos agentes moradores da cidade (Certeau, 1994), estes parmetros racionalizantes da modernizao so relativizados e redimensionados justamente porque as classificaes sociais, assim como a sistematizao de uma organizao racional da cidade, no cotidiano, so postas no registro da negociao ou da economia simblica, como sugere Bourdieu (1996), em que distintos agentes tentam construir, vender ou impor de acordo com seus objetivos uma determinada forma de ver e entender a cidade. No cotidiano, visualizam-se tambm prticas de espao astutas e tticas. Diante dessa trama cotidiana de tenses, no h consenso, s h movimento, portanto no h sntese final. As trajetrias plurais dos agentes, no dia-a-dia, formam modelos inumerveis e singulares moldando o espao qualitativamente. Estas trajetrias so tambm resultantes da negociao cotidiana entre os agentes e o espao. Se h uma mudana na configurao e organizao espacial estas trajetrias e usos tambm mudam. O problema da generalizao das classificaes no s emprico, mas tambm metodolgico. Franz Boas em 1930 (2004) j chamava a ateno para isso. Segundo ele, o pesquisador produz no trabalho de campo uma lista de invenes, instituies e idias, mas geralmente aprendemos pouco ou nada sobre o modo pelo qual o indivduo vive e reage sob elas, muito menos nos preocupamos como elas afetam o grupo cultural no qual este agente social vive e a forma como este grupo reage. O pesquisador deve se preocupar tambm com a ao reflexa ou resistncia que um corpo ope ou compe com a cultura na qual ele atua, ou a forma de reao, peculiar do indivduo, cultura que lhe influencia. Classificaes elaboradas pelo saber tecnocrtico do pesquisador devem ser compreendidas tambm no contexto de situao na qual elas so acionadas. Desta forma, pode-se verificar uma riqueza de usos e prticas distintas que utilizam as classificaes de formas diferentes dando sentidos e significados contextuais distintos. A proposta usual nos trabalhos acadmicos no campo das Cincias Sociais de utilizar, como instrumentos analticos o contexto histrico e social de surgimento das idias, instituies e invenes, no suficiente para se compreender a dinmica social cotidiana dos distintos agentes sociais. Isso porque tambm existem histrias incertas, elaboradas no momento, na situao, de improviso, em que se pode entender a reao e o uso que os agentes sociais fazem das idias, instituies e invenes. 76 Como sugere Veyne, a sntese deve ser desconstruda pela anlise. Na proposta analtica que apresento, no h sntese final. Neste exerccio, tenta-se construir descries com algumas conceptualizaes mais ou menos singulares e universais, no sentido de que elas possam ser aproveitadas e adaptadas a outros contextos. As descries so aqui elaboradas de acordo com minhas percepes e afeces como morador da cidade somadas e enriquecidas por alguns depoimentos pessoais em forma de entrevistas e retalhos de argumentos organizados de artigos de jornal. Desta forma, tenta-se estabelecer as bases da anlise de imagens multifacetadas e complexas do espao urbano, pautadas no mais em grandes snteses analticas, mas em simulacros visuais experimentados pelo pesquisador, por seus assistentes de pesquisa, por seus entrevistados e pelos autores de artigos de jornais e revistas selecionados, registrados e organizados durante nove anos. O ponto de partida o mote para justificar a monumentalizao da cidade que a sua modernizao. Em Sobral, do ponto de vista da faco poltica e da tecnocracia atrelada ao prefeito Cid Gomes, parece haver um consenso de que no h modernizao dissociada da preservao. Mas, que tipo de modernizao essa? As obras e os usos dos espaos transformados pela administrao pblica parecem ser muito teis para visualizarmos a resposta desta questo. Porm, devo partir do pressuposto de que a cidade muito mais do que uma estampa que tem a pretenso de representar exatamente ou analogicamente um ser-cidade produzida por um saber competente, apesar de esta estampa ser importante referncia para qualquer um de seus habitantes. Tento ser menos pretensioso, banalizando o papel do pesquisador como formulador de grandes questes ou teorias. Imagino-me simplesmente como ser humano comum que passou por uma experincia de vida em que o olhar do pesquisador, que sou por profisso, procurou estar atento e curioso, sem deixar de considerar que este olhar sempre seletivo e no d conta de tudo. A estampa produzida pela poltica pblica de preservao ou a monumentalizao aplicada cidade de Sobral pelo poder pblico municipal, que o ponto de partida deste trabalho, deve ser contextualizada em uma dinmica mais geral na qual a cidade aparece a partir de relaes face-a-face, que resguardam tanto elementos das narrativas expostas por esta poltica especfica que falam da modernizao, quanto narrativas utilizadas para 77 justificar outras intervenes e prticas. Resta-nos acompanhar esta caminhada.
2.2 Primeiras afeces e percepes: o analista e um pouco de sua histria na cidade
Cheguei cidade em um tempo meio conturbado do ponto de vista das disputas polticas locais. Em 1995, vereadores que faziam oposio faco poltica que ocupava a prefeitura municipal j haviam denunciado o prefeito Ricardo Barreto, eleito em 1992, por improbidade administrativa. Fato este que ocasionou o que as pessoas nas ruas chamavam de troca-troca de prefeitos. Cada vez que o prefeito titular era destitudo do cargo, o vice, Aldenor Faanha Jnior assumia, o que era marcado por uma incessante queima de fogos de artifcio. Todo recurso judicial fazia com que o titular voltasse a assumir o cargo, o que s teve fim quando no havia mais possibilidades de recorrer. Com o troca-troca de prefeitos ocorreu uma reviravolta nas alianas polticas. O vice-prefeito rompeu com o titular e toda vez que assumia, acusava o prefeito de esvaziar os cofres pblicos. As acusaes se invertiam, quando Ricardo Barreto voltava a assumir. Poucos meses antes do trmino do mandato, no final de 1996, Aldenor Faanha Jnior finalmente assume a prefeitura, momento este marcado pelo incio da campanha eleitoral. exatamente neste contexto que partidos como o PT (Partido dos Trabalhadores), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), que faziam oposio ao PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) no contexto nacional, em Sobral tornavam-se aliados. A composio final ficou entre PT, PCdoB, PSDB, PSB e PTB. Presenciou-se, na poca, uma disputa interna entre dois dos partidos considerados de esquerda (PT e PCdoB), que acabou por fragmentar, principalmente o PT. A faco poltica formada por esta aliana, composta por alguns integrantes dos partidos de esquerda e o grupo denominado de os Ferreira Gomes, ancorados no PSDB, justificava a necessidade de composio por existir na poca uma suposta crise moral, social, econmica, poltica e cultural, que os candidatos dos Prados e dos Barretos criaram. Crise esta que devia ser superada por eles, segundo o que anunciava esta faco. 78 Em Sobral, como acontece, via de regra, em vrios municpios, no s do interior do Estado do Cear, mas tambm em boa parte do Brasil, nas eleies, seja para candidatos proporcionais, seja para majoritrios, o que se presencia no somente uma disputa entre partidos polticos ideologicamente bem definidos como quer a democracia moderna. muito comum a disputa eleitoral se polarizar entre faces ancoradas, na maioria dos casos, em indivduos pertencentes a famlias que historicamente articulam um grupo de parentes para apoiar familiares que se lanam candidatos, articulando outros grupos familiares para dominar o poder poltico institucional. Percebi que, em Sobral, este tipo de composio poltica tambm existe 32 . O jogo classificatrio de reconhecimento social dos candidatos majoritrios, mobilizado nas eleies municipais de Sobral em 1996, reeditado no pleito de 2000, resultando em duas vitrias consecutivas do candidato Cid Gomes, foi orientado no sentido de instituir uma marca de diferenciao em relao s faces polticas concorrentes. Observando o tempo que marca as eleies de 1996 e 2000 respectivamente, percebe-se, nestes dois momentos especficos, um maior acirramento desta diferenciao, intercalado por um perodo de calmaria iniciado logo aps o resultado das eleies de 1996 e finalizado no incio da campanha de 2000. Palmeira (1995) chama a ateno de que em pesquisas realizadas nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul h um acirramento das disputas entre faces polticas, em um perodo especfico de tempo, nomeado por estas populaes de poca da poltica, tempo da poltica ou simplesmente, poltica. Essas categorias nativas tambm fazem parte do vocabulrio da populao de Sobral. Neste tempo da poltica as faces apresentam-se de forma a estabelecer um conflito aberto, estranho ao tempo que no coincide com o perodo eleitoral propriamente dito. As divises, porm, no se apresentam somente em forma de discurso, mas tambm na forma de ocupao de espaos e prticas ritualizadas. Existe o bar, a farmcia ou a rua pertencente a uma faco e outros lugares da faco que faz oposio. como se houvesse uma descontinuidade entre poltica e cotidiano. A poltica marca um tempo singular distinto, como se surgisse um novo cotidiano. Porm, um cotidiano em que falar de diviso, discursar sobre as diferenas entre um e outro candidato, assim como elaborar
32 Pensando um caso especfico no Cear Cf. Lemenhe, 1995. 79 estratgias discursivas para desautorizar, desacreditar ou desabonar o opositor na disputa poltica, torna-se linguagem autorizada. Portanto, em 1996, a faco poltica ancorada na candidatura de Cid Gomes para prefeito atribui a si uma determinada imagem de moderno e incorpora um movimento preservacionista j iniciado antes das eleies de 1996. Este movimento, como j dito, tem, como estopim, a briga comprada na justia por vereadores, advogados e historiadores da cidade (ao todo 20 pessoas) em defesa do Solar dos Figueiredos, que j foi residncia do ex-Senador Paula Pessoa (1795-1879). Este sobrado, que hoje abriga a Casa da Cultura, sede da Secretaria do Desenvolvimento da Cultura e do Turismo nas duas gestes da faco poltica que sustenta o prefeito Cid Gomes, ia ser derrubado definitivamente em meados de 1995. Restava somente a fachada. Acirrando, assim, o movimento que pretendia sua preservao, que envolveu representantes do IPHAN. Alguns integrantes deste movimento reforaram os quadros da faco de Cid Gomes e fizeram parte dos quadros da administrao municipal. A candidatura dos Ferreira Gomes, como era qualificada a aliana dos grupos polticos apoiadores de Cid Gomes, tinham como argumento principal o perigo da volta ao atraso dos Barreto e dos Prado. Este argumento guarda dentro de si uma forte generalizao da idia de que possvel a Sobral retomar o prestgio alcanado em sua histria de riqueza, de poderio poltico e social no mbito regional, estadual e at nacional, o que as candidaturas concorrentes tornariam impossvel se vitoriosas. A mesma aliana foi reeditada e firmada nas eleies de 2000 (com exceo do apoio do Partido Socialista Brasileiro), porm, neste pleito o candidato majoritrio j havia migrado para o PPS. A candidatura dos Ferreira Gomes em 1996, representada por Cid Gomes teve 63,97% dos votos. Havia, ainda, duas outras candidaturas. Uma delas tinha como candidato Marcos Prado do PFL (Partido da Frente Liberal) que fez aliana com o PL (Partido Liberal) e teve 10,39% dos votos. A outra tinha Cndida Figueiredo como candidata da coligao PPB/PMDB/PDT e teve 25,65% dos votos vlidos. O PSB, logo depois da posse do prefeito eleito Cid Gomes, rompe com a coligao de 1996 e, no pleito de 2000, aparece como oposio sem candidato majoritrio. A candidata Cndida Figueiredo, esposa de 80 Tomaz Figueiredo, prefeito em final de mandato, na poca, em Santa Quitria, municpio de mdio porte da regio, tinha como companheiro de chapa o padre Jos Linhares, ento deputado estadual e bastante conhecido pelo seu trabalho junto a Santa Casa, hospital de referncia na regio. J o candidato Marcos Prado, tambm conhecido por chocolate 33 , tinha como vice, na chapa, o seu pai e ex-prefeito Jos Prado, poltico muito popular na Cidade, reconhecido como Z do povo. Marcos Prado teve uma pequena votao nas eleies de 1996, mas volta a ser candidato em 2000 pelo PFL, coligado com o PMDB, sendo o nico concorrente de Cid Gomes que havia mudado de partido, passando para o PPS, representando a coligao PPS/PT/PSDB/PPB/PSD/PTB/PC do B, obtendo 68,28% dos votos. Em 2000, apesar de Marcos Prado ter conseguido 31,72% de votos, chegou a preocupar o candidato vitorioso Cid Gomes, que segundo o que se comentava nos bastidores da campanha, tinha a pretenso de ser quase unanimidade entre os eleitores. A idia de retomada do triunfo, que a cidade j experimentou no era particular s formulaes dos aliados ao candidato Cid Gomes, apesar de ser forte e recorrente em seus discursos de palanque. Nos dois pleitos citados, todos os candidatos majoritrios ressaltavam que este triunfo, j vivido por Sobral, encontrava-se em decrscimo. A idia implcita no discurso a da necessidade de retomar o vigor e a fora que Sobral tinha no mbito estadual, nacional e at internacional. A disputa, entre eles, dava-se por se saber quem eram os legtimos representantes desta retomada, e a candidatura Cid Gomes investia fortemente nesta busca. A aliana entre os Ferreira Gomes e os integrantes do PT e PCdoB, caracteriza- se por um discurso em que a memria de um tempo de triunfo tem que, necessariamente, ser reiterada no presente, associada a elementos tpicos dos tempos modernos. Para isso, importante criar-se um sentimento de solidariedade, baseado em interesses comuns, construindo uma homogeneidade poltica essencial, ancorada na candidatura Cid Gomes e nestes partidos. Porm esta homogeneidade de interesses no se apresenta de forma muito precisa no discurso do candidato. Alm disso, se comparada com as disputas partidrias em
33 Desconheo a origem do apelido que geralmente atribudo a pessoas de cor negra, o que no o caso do candidato. 81 nvel estadual e at nacional, parece contraditria. Aps a vitria desta faco poltica articulada em favor de Cid Gomes, uma srie de intervenes foram acionadas pela administrao municipal, na cidade, a partir desta relao entre atitudes qualificadas como modernizantes e outras consideradas preservacionistas. Acompanhei, portanto, as mudanas proporcionadas por estas aes do poder publico na cidade, tanto como pesquisador, quanto como morador. Qualquer morador organiza e destaca elementos especficos do espao urbano e o representa como totalidade, ressaltando peculiaridades decorrentes de afeces vividas na relao com outros, com as coisas e com o ambiente. Seus percursos, suas rotinas, suas memrias ou sua vida pessoal so organizados, espacialmente, na cidade, elegendo marcos e pontos referenciais preferenciais, qualificando espaos merecedores de lembrana e outros merecedores de esquecimento. O depoimento do Sr. Wilson Brasil, por exemplo, exemplar para ilustrar este argumento. Ele j foi maestro antes de se aposentar, nasceu em abril de mil novecentos e dezesseis em Sobral, somente estudou at o primrio, mas, segundo ele, em escola de prestgio. Lembra que sua me "tirada por rfo" foi adotada pela famlia de Domingos Sabia, que no se adaptou por motivos desconhecidos por ele. Logo aps, foi morar com Raimunda Amara Furtado de Mendona, filha da, classificada por ele, "grande" Maria Tomsia Figueira Lima 34 . Esta mulher o criou juntamente com os irmos logo aps a morte da me. Era uma "espcie de governanta" na casa de Paula Pessoa 35 . Convivendo com Dom Jos Tupinamb da Frota, primeiro bispo de Sobral e conclamado heri da cidade, por alguns membros da elite na contemporaneidade, comeou por intermdio dele a estudar msica com o cnego Joviniano Loyola, no Seminrio Diocesano, e, em 1935 participou da fundao da primeira banda de msica municipal de Sobral na administrao de Antenor Ferreira Gomes 36 (mandato de 1935/1944), da qual chegou a ser diretor. Ele chama ateno de que o nico fundador ainda vivo. Criou vrios corais em outras cidades da regio,
34 Maria Tomsia Figueira de Lima (1826-1902?) foi abolicionista, natural de Sobral (CE), participou, em 1882, da fundao da Sociedade das Cearenses Libertadoras, da qual foi presidente. 35 Senador do Imprio conhecido como senador dos bois, por possuir uma grande quantidade de cabeas de gado. 36 Tio av do prefeito Cid Gomes (mandatos 1997/2000 e 2001/2004). 82 tambm por intermdio de Dom Jos, e dirigiu o coral da catedral durante quatro anos. O fato de frisar e citar o nome completo das pessoas que cuidaram dele e fizeram parte de sua rede de relaes na cidade, serve para arrematar seu percurso de vida, dizendo que quando a "velha" senhora morreu, ficou "Senhor do tempo e do espao, mandando e governando minha semana. Agora tive a felicidade de sempre seguir a direita". A direita entenda-se "As direitas dos homens de bem de Sobra! Por exemplo: Dom Jos e outros mais. Doutor Jos Sabia e muitos outros. Toda esta narrativa ressaltada para justificar o fato de, ainda hoje, ele ser chamado para entrevistas nas rdios e jornais locais, assim como prestigiado pelo prefeito e chamado para participar de solenidades pblicas. Sua trajetria de vida marcada pela sua relao com pessoas de prestgio social tambm acionada quando fala da cidade. A imagem que o Maestro Wilson Brasil faz de Sobral no , por acaso, classificada como "cidade intelectual". Como lembra Barros (1999), a cidade lembrada no como uma abstrao ou um simulacro terico e visual, mas como experincia de vida. Sua trajetria na cidade marca sua fala. Como ele mesmo diz: "Ali onde a praa de So Francisco hoje, gente se reunia pra conversar e comentar poltica e coisas intelectuais, por exemplo: era Domingos Olmpio, era Toms Pompeu, era ... Coronel Joo Barbosa e muitos e muitos outros. De modo que esses sobralenses ilustres a gente vendo isto verifica que Sobral, teve um bero. Ou melhor, os primrdios de Sobral foram montados na intelectualidade. Da porque muitas vezes eu digo como j tenho dito pela imprensa falada e escrita pedindo aos poderes constitudos que faa inserir no currculo escolar a histria de Sobral[sic] (Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Estas imagens lembram, em muito, as referidas pela sobralidade que as narrativas produzidas pelo poder pblico, que falam do tombamento de Sobral como Patrimnio Histrico Nacional constroem. Os sobralenses ilustres, a importncia histrica da cidade e suas peculiaridades que a distinguem das demais, so destacados como elementos de diferenciao, que parecem ressaltar um ufanismo e orgulho sentido como necessrio. No toa que qualifica o prefeito Cid Gomes, como o melhor prefeito que a cidade j teve. Segundo ele: ... Os outros prefeitos fizeram, mas o Cid Gomes... No quero com isto enaltec-lo fora da marca, no. Porque tudo qual se disser que ele tem feito em prol de Sobral pouco. E ele, o Antenor Gomes de quem eu falei, ele foi, na minha opinio, foi quem deu o ponta p inicial do progresso Sobral da 83 minha dcada pra c, de quarenta pra c. E Antenor Gomes e tudo mais e outros que vieram, mais teve alguns prefeitos por a que passou em branco. E eu acho que o Antenor Gomes e Jos Euclides que fez isso aqui, aqui era... atolava um jumento aqui... Ele fez, fez essa pracinha a, fez tudo, tal tal. E era muito meu amigo, Dr. Jos Euclides, ele quando estudante, que vinha passar as frias eu me encontrava com ele noite na praa do So Joo e ns ficvamos conversando at nove e meia porque nove e meia era alta noite. Ele era, ele tinha umas idias polticas, ele era integralista naquela poca e tudo mais. Eu nunca gostei de, de negcio de poltica nem nada, mas como partido , tinha o nome, o a, a filosofia era esta... Deus, Ptria e famlia. Ento nisso est sintetizado a prpria sagrada escritura, ento num era, no fiz parte da camisa verde nem nada no, mas conversava muito tudo mais, passava horas e hora a noite conversando, sempre. E quando ele foi prefeito, a eu votei nele etc. e pronto [sic](Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil 04/07/2001). Desta forma, fazer ou retomar o progresso, elementos fundamentais que o maestro usa para justificar a qualidade de melhor prefeito dada a Cid Gomes, parecem ser complementares a reminiscncias individuais, que, implicitamente, do a entender que esta qualidade no peculiar somente ao indivduo Cid Gomes, mas a prpria tradio familiar representada pelo pai, militante integralista, na poca, e pelo tio av do atual prefeito que j ocuparam este cargo do poder executivo municipal em Sobral 37 . Cid Gomes aparece como herdeiro desta tradio, ancorando sua imagem em intervenes no espao urbano, marcados como preservacionistas, assim como modernizantes. Cleiton Medeiros, contador prtico, que possui uma empresa de Contabilidade em Sobral, em sua entrevista, esta idia da tradio familiar tambm se faz presente. Talvez, no pela herana do sangue, mas, na sua avaliao de melhores prefeitos, coincidi estar presente no rol pai (Jos Euclides Ferreira Gomes Jr.) e filho (Cid Ferreira Gomes). Este contador no de Sobral, nasceu em So Luis do Cur em 1945. Chegou a Sobral com 21 anos a trabalho como auditor das indstrias locais em funo da regularizar a situao delas junto Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Hoje se considera um grande defensor de Sobral, escrevendo artigos, principalmente, em coluna, no jornal O Noroeste. Ele chega cidade na poca da administrao encabeada por Cesrio Barreto, ento insupervel como Prefeito na sua avaliao. Porm Jos Euclides consegue super-lo,
37 O pai de Cid Ferreira Gomes, Jos Euclides Ferreira Gomes Jnior ocupou o cargo de Prefeito durante a gesto de 1977 at 1983 e o tio av Vicente Antenor Ferreira Gomes ocupou o mesmo cargo durante o perodo de 1935 at 1944. 84 sendo somente ultrapassado por seu filho Cid Gomes, apesar de no ter votado nele na campanha de 1996, por ach-lo impetuoso e um tanto rancoroso. Contemporaneamente, retira sua avaliao negativa da poca. amigo da famlia dos Ferreira Gomes, principalmente, de Ciro Gomes 38 e de Cid. Apesar de tecer elogios a administrao de Cid, sempre tende a mostrar uma postura crtica, quando acha necessrio. Segundo ele, ... as crticas que eu fao a Sobral para que eu um dia... eu sei que eu no vou conseguir, mais eu vivo perseguindo o melhor para Sobral. Ento eu gostaria com essas crticas era fazer com que Sobral se tornasse cada vez melhor, cada vez mais bonito e cada vez mais Sobralense, que ele no virasse metrpole com as manias... que ele virasse metrpole sem a mania das metrpoles, conservando esse esprito de bairrismo do Sobralense, esse calor humano que Sobral ainda tem [sic](Entrevista realizada pelo pesquisador com Cleiton Medeiros em 11 de setembro 2003). A idia do melhor para Sobral passa por crivos que parecem auto-evidentes na narrativa do contador e articulista, como a beleza sobralense, assim como critrios que tendem a exaltar a necessidade de torn-la uma cidade adequada para as exigncias do mundo moderno, sem deixar se levar por manias, que parecem dirigir-se a uma independncia de um lugar de pertena. Aparenta prescrever uma necessidade de que a cidade deve tornar-se viva, criativa e prspera como uma metrpole, mas preservando o sentimento de pertena, que tende a valorizar o espao vivido. Para ele, esta tendncia parece estar se efetivando, apesar dos percalos e falhas, que, segundo ele, no conseguem passar pela sua criteriosa e ostensiva avaliao crtica. J nas minhas lembranas, dois tipos de interveno no espao urbano de Sobral marcam e embaam as fronteiras entre o que entendido como moderno e tradicional: o investimento em infra-estrutura urbana, principalmente, no espao tombado, incluindo as direcionadas ao turismo e ao lazer, e a implementao de reformas nas edificaes e no seu entorno, selecionadas por esta poltica preservacionista. A valorizao e a operao, visando mudanas na estrutura urbana e esttica parecem ser fundamentais nas aes da municipalidade. O que no se justifica politicamente se implementadas somente na rea tombada. Isso acaba obrigando o poder pblico a expandir sua interveno para alm do stio preservado. Algumas obras de grande porte acabam
38 Ciro Ferreira Gomes j foi Prefeito de Fortaleza, capital cearense, Governador do Estado do Cear, Ministro do Planejamento do Governo do Presidente Itamar Franco, Deputado Estadual, e Ministro da Integrao Regional do Governo do Presidente Luiz Incio Lula da Silva. 85 virando objeto de propaganda atravs das inmeras formas de divulgao das aes da prefeitura como jornais, panfletos ou grandes shows, como marcos de uma modernizao do espao urbano. a partir delas que podemos entender as implicaes de ordem prtica das intenes manifestas pela faco Cid Gomes que versam, tanto no sentido da preservao, como no sentido da modernizao.
2.3 Ao, feito e manobras: o artefato primoroso das grandes obras em Sobral e seus usos.
2.3.1 O Rio e a margem
Durante os dois mandatos de Cid Gomes, algumas obras foram registradas na minha memria. Era comum ouvir de moradores, nas ruas, comentrios que sugeriam admirao por parte de alguns e desorientao por parte de outros. Parecia haver uma vertiginosa operao de mudana na cidade, que, ocasiona sobreposies de investimentos no sentido de garantir determinados sentidos e significados a espaos e lugares da cidade. As marcas, deixadas pela operacionalizao de uma racionalizao no uso do espao e a sobreposio destas operacionalizaes, podem ser encontradas, por exemplo, no Largo das Dores, onde est localizada uma das primeiras Igrejas da cidade. Segundo um anncio publicado em um informativo da Prefeitura na Largo da Igreja Nossa Senhora das Dores no dia da Inaugurao de seu resgate. Foto: site http://www.sobral.ce.gov.br/jornal/jornal24/paginas/parte36. htm 86 Internet, denominado Sobral modelo de crescimento de maro de 2000: Sobral teve no dia 23 de dezembro, mais um dos seus patrimnios histricos, resgatado. Em festiva solenidade, o prefeito Cid Gomes entregou populao o Largo de Nossa Senhora das Dores, obra que cria uma nova rea de lazer para a cidade, simboliza a modernidade de Sobral no Rumo Certo e inicia o processo de revitalizao do Rio Acara...(Informativo Sobral modelo de crescimento, maro/2000). A inaugurao da obra de resgate da Igreja Nossa Senhora das Dores 39 foi marcada pela missa do Bispo Dom Aldo Pagotto e com o show do cantor Belquior. Com relao a obra, houve uma modificao do seu entorno onde foi includo um anfiteatro, com arquibancada posta de frente para o rio Acara e localizado nas costas da Igreja. Na poca da inaugurao, era proibido pisar a grama, que foi plantada entre o batente da primeira escada descendente e a calada que d para s costas da Igreja, o que foi logo contestado e transgredido pelas pessoas que iam ao local para assistir s apresentaes artsticas, pois, da calada, a distncia entre o pblico e o palco que se encontra muito abaixo do nvel da grama, era impossvel ver o espetculo, de forma confortvel e
39 Igreja catlica edificada em 1865 (Cf.MontAlverne Giro & Soares, 1997). Igreja Nossa Senhora das Dores. Logo atrs da Igreja pode-se ver o anfiteatro e, em seguida, a obra da Margem Esquerda. Ao fundo visvel tambm um incio ainda incipiente de verticalizao da cidade com a construo de dois edifcios de apartamentos ao lado do Hospital do Corao. Esta foto uma cpia de um carto postal vendido na cidade lembrando o Patrimnio Histrico de Sobral. Foto: Wellington Macedo (www.fotojornalismo.com.br). 87 adequada. Na prpria escadaria, que no comporta toda a platia, que geralmente ia para assistir os grandes shows, alguns com artistas reconhecidos nacionalmente, geralmente soldados da guarda municipal isolavam a ltima escada descendente reservando-as para as "autoridades", o que tambm causava constrangimentos e revoltas constantes do pblico. Era comum testemunhar os esforos insistentes de determinados indivduos que argumentavam de diferentes formas para conseguir acento neste local. Tambm foi construda uma praa e o restaurante Sushimix, que, pelo nome, sugere como integrante de seu cardpio, a comida oriental 40 . Sobrepondo-se revitalizao da Igreja e do seu entorno, a obra finalizada no incio de 2004, que visava tambm revitalizar a margem esquerda do rio Acara, fez
40 Em 2004 este restaurante fecha suas portas. Maquete do Espelho dgua ou Margem Esquerda do Acara. Em destaque o anfiteatro na beira do rio e por trs o centro histrico tombado. Nesta maquete ainda no estava includa a cascata iluminada frente da praa do anfiteatro. Ao fundo pode-se ver a ponte Oto de Alencar (ponte velha)Foto: site http://www.sobral.ce.gov.br/jornal/, Jornal Municipal do dia 07 de novembro de 2002. 88 com que o antigo palco de apresentaes artsticas ficasse sem o rio como vizinho. Principalmente nos ltimos seis meses de cada ano, por causa do intenso calor, que pode chegar a mais de 40 graus, olhando por cima da ponte na direo que corre seu leito, este rio tornava-se um pequeno filete de gua que corre em direo ao mar. Nas pocas de chuva o movimento de gua ficava mais intenso, apesar do assoreamento visvel. O seu leito, que recorta a cidade em duas partes, seria mais caudaloso com a nova obra. J no final de 2003, podia-se ver de cima de qualquer uma das duas pontes urbanas que atravessam o rio, seja a nova ponte, seja a antiga, o contraste da paisagem nas suas duas bordas do leito, o que demarca as diferenas sociais existentes na cidade. O maior contraste percebe-se entre as pontes. De um lado, via-se o Largo da Igreja Nossa Senhora das Dores, que resguarda o anfiteatro no qual os shows da cidade eram realizados e o restaurante Sushimix. Do outro, esto as modestas casas do bairro Dom Expedito. Em 2004, estas diferenas foram acirradas com uma nova obra. uma grande interveno urbanstica e arquitetnica, na margem esquerda, resultante de uma parceria entre a prefeitura e o governo estadual, que, at o final de 2003, era exaltada em alguns outdoors espalhados no espao urbano, anunciando a construo de uma rea de lazer e um espelho d'gua que requeria grandes obras de infra-estrutura. Anfiteatro observado noite por trs de sua arquibancada. Na lateral da foto se pode ver uma cascata acionado durante o incio da noite. Foto: produzida pelo pesquisador. 89 Foi feito um calado na lateral do leito do rio, que passou a acompanhar e a isolar o anfiteatro do Largo das Dores do rio Acara. Um novo anfiteatro foi construdo neste calado. Sua arquibancada ficou de frente para o rio, mas acima do nvel do calado, o que faz com que o palco fique de costas para o rio e impea a viso como pano de fundo, exceto quando se olha para as laterais do palco. Por trs da arquibancada, existe uma rea coberta e logo em seguida uma grande parte com um piso semelhante ao granito que figura o desenho do centro da cidade, tombado como patrimnio histrico nacional e seu entorno, assim como o mapeamento de algumas edificaes eleitas pela municipalidade, como destaque do stio histrico. Esta obra veio a esvaziar o antigo local de encontro para shows. Ironicamente, os investimentos da poltica de cultura no municpio passaram a enfatizar ainda mais a montagem de grandes espetculos de artistas nacional- mente reconhecidos, o que implica em uma subutilizao do novo palco devido ao seu tamanho reduzido, para abrigar o pblico cada vez mais numeroso. Desta forma, aps a inaugurao da obra na margem esquerda do rio, boa parte dos shows era apresentada em palcos montados por trs ou ao lado do novo anfiteatro. Um complexo com estacionamento, calado, anfiteatro, quadras de esporte, barragem a baixo da ponte velha, locais para lazer, dentre outros, compe esta obra, alm da sede da Escola de Cultura, Comunicao, Ofcios e Artes (ECOOA), que farei referncia detalhada mais a frente. Moradores do Bairro Dom Expedito na margem direita fazendo a travessia para a margem esquerda. Foto: produzida pelo pesquisador. 90 At o incio das obras do batizado pela Prefeitura Espelho D'gua, que beneficia somente sua margem esquerda, nos finais de semana o movimento de pessoas que procuravam o lazer era intenso na parte do rio entre as duas pontes. Era comum se ver pessoas tomando banho, bronzeando-se ao sol, nas margens, lavando roupas ou at dando banho em animais como cachorros e cavalos. Aps o incio das obras, o movimento tornou- se menos intenso e somente foi retomado depois de sua finalizao. As guas poludas do rio Acara pareciam no assustar as dezenas de pessoas, que procuravam seu leito para o lazer ou para o trabalho. As obras do espelho d'gua mudaram o ambiente em que eram realizadas estas atividades na parte do rio localizada entre as duas pontes, e deram um outro sentido s prticas de lazer. A travessia de canoa no rio, por parte das pessoas que moram no bairro Dom Expedito, tornou-se uma imagem recorrente nos finais de tarde. Alm do uso do outro anfiteatro edificado, pessoas, cotidianamente, ocupam o calado para andar, correr ou simplesmente passear. A idia do resgate mais uma vez anunciada como justificativa para a implementao da obra, apesar da sobreposio com relao ao denominado tambm resgate do patrimnio na revitalizao do Largo das Dores. Segundo o artigo Saneamento e lazer resgatam rio Acara, publicado no jornal de circulao local Expresso do Norte: Marcado a inaugurao, haver show pblico com o cantor Daniel. A obra, que foi orada em quase R$ 5,5 milhes, alm de sanear a margem esquerda do rio, pretende realizar a reconciliao da cidade com o rio, integrando o centro histrico, tombado pelo IPHAN, margem oeste do Acara, com a construo de uma rea de lazer com relevante aporte paisagstico, numa rea total de 3,5 hectares... De acordo com o Secretrio de Desenvolvimento de Infra-estrutura Quintino Vieira, a nova obra, alm da importncia urbana por conta do saneamento, ser mais um carto postal da cidade. J estava na hora de Sobral resgatar o valor histrico do rio Acara, que foi o bero do desenvolvimento da cidade, diz o secretrio, garantindo que a obra estar pronta no prazo previsto(jornal Expresso do Norte, 18 a 24 de outubro de 2003: pg.06). De que reconciliao da cidade com o rio o artigo chama ateno? Os freqentadores assduos, que usavam o rio no poderiam ser considerados como integrantes da cidade? E a obra anterior que tambm anunciava o resgate do Largo da Igreja das Dores, que fica vizinha esta outra obra da margem esquerda, tambm no tinha a mesma 91 proposta de fazer uma ligao entre o stio histrico tombado e o rio? Ser que ela no estava conseguindo alcanar este objetivo na avaliao da tecnocracia da prefeitura? Sobre isso, Cleiton Medeiros em artigo para o jornal local, O Noroeste, antes do anncio da inaugurao da obra da margem esquerda, afirma, dentre outros aspectos, que destaca como relevante para ser lembrado pela prefeitura que: A cidade inteira se congratulou com a prefeitura quando da restaurao do Largo das Dores, hoje a sua conservao deplorvel: dos dezenove refletores apostos em volta da Igreja, cerca de deles est funcionando, mesmo assim em pssimo estado de conservao, por isso mesmo apresentando srios riscos as transeuntes, com suas fiaes expostas; os demais encontram-se completamente danificados, com a fiao igualmente exposta; cerca de quatro globos de iluminao quebrados; os trs pontos de iluminao dos degraus de acesso ao Rio Acara esto todos totalmente danificados, tambm com a fiao exposta; - O palco do anfiteatro est comprometido, parte quebrada e outra com rachaduras, fios das tomadas expostas, a caixa de distribuio danificada... Com estas consideraes, pretende este articulista chamar a ateno para uma imediata recuperao daquilo que foi, h to pouco tempo atrs aplaudido pela populao como resgate do patrimnio histrico e cultural de Sobral. Por onde anda a guarda municipal constituda para proteger o patrimnio pblico?(jornal Outro lado do rio Acara, onde se pode ver em destaque o bairro Dom Expedito. Foto: produzida pelo pesquisador. 92 O Noroeste, 13 de setembro de 2003). No decorrer de seu artigo, Cleiton Medeiros no trata somente da obra hoje anexada da margem esquerda, ele lembra de outras que hoje fazem parte das intervenes da administrao pblica na cidade. Porm, ao fazer referncia a interveno realizada no Largo das Dores, a manifestao do articulista recorda a proposta da restaurao e do resgate do patrimnio histrico e cultural de Sobral, que, segundo ele, precisa ser mais uma vez lembrado. Novamente, aparece uma articulao forte entre processo de modernizao e preservao do patrimnio histrico. Outro tipo de manifestao pode ser somado esta ltima em particular: a reao dos moradores da outra margem, que, segundo um artigo do jornal Expresso do Norte localizado ao lado do anteriormente citado, que anunciava a obra da margem esquerda, os Maquete de outra parte do Espelho dgua ou Margem Esquerda do Acara em que se v em destaque uma escultura que na sua ponta jorra gua em direo ao rio quando acionada. Prximo a ela, na margem do rio, perto da lancha estacionada foram colocados caiaques para o lazer do freqentador do local. Esta parte fica prximo da ponte velha e das quadras de esporte. Foto: site http://www.sobral.ce.gov.br/jornal/, Jornal Municipal do dia 07 de novembro de 2002. 93 moradores do bairro Dom Expedito, situado do outro lado do rio, sentem-se discriminados com este projeto. Segundo o artigo: Apesar de reconhecerem a importncia da obra para o municpio, muitos moradores do Dom Expedito... esto insatisfeitos. De acordo com o representante da associao dos moradores do bairro, Gerardo Sena Silva, existe a desconfiana entre os moradores de que o bairro possa ser prejudicado no perodo de enchentes. O nosso bairro discriminado e a comunidade est pedindo a retirada de moradores das reas de risco, lamenta o representante, informando que falta saneamento no bairro e que h muitos dejetos sendo jogados no rio... Segundo ainda Gerardo Sena, recentemente tcnicos da Prefeitura se reuniram com os moradores do bairro e garantiram que a construo da barragem vertedouro no prejudicar a comunidade ribeirinha. Sobre o assunto, o secretrio Quintino Vieira informou que no haver riscos(jornal Expresso do Norte, 18 a 24 de outubro de 2003: pg.06). A questo ambiental e social, conseqncia desta obra, passou a ser motivo de comentrio no s dos moradores do outro lado do Rio, mas tambm de integrantes de outros segmentos da imprensa e tcnicos da Universidade e ONGs. Acontece que toda a rea da obra denominada margem esquerda do rio foi edificada dentro da borda do leito anteriormente seco do rio. A barragem vertedouro, que faz meno o artigo, foi edificada abaixo da ponte velha, com dois metros e setenta centmetros de altura e foi construda visando barrar as guas do rio para formar uma lagoa. Perto da ponte velha, tambm foram construdos e inaugurados, em maio de 2004, um campo de futebol e duas quadras poliesportivas para prtica de esportes. Segundo o planejado pela Secretaria Especial de Esportes da Prefeitura, o uso do campo deve ser previamente combinado com esta instncia administrativa e as quadras tm como finalidade ser um equipamento para as atividades do Projeto Segundo Tempo, programa do Ministrio do Esporte em parceria com o Ministrio da Educao, ambos do Governo Federal, que visa estimular as atividades esportivas nos alunos da rede pblica, usado pela Prefeitura como extensivo aos moradores dos bairros prximos. Nas margens do rio, foram ancorados caiaques, a que visavam ser mais uma opo de lazer dos freqentadores do local. Um comentrio de uma pessoa, que desfrutou deste tipo de lazer, chamou-me ateno e tem relao exatamente com a questo ambiental. Conversava com esta pessoa sobre o pouco tempo que o usurio podia passar pagando o valor mnimo. Ele me respondeu que no dava para passar mais do que 15 minutos 94 remando no rio, pois o mau cheiro no permitia um desfrute prazeroso. Este tipo de comentrio reforado por algumas publicaes difundidas localmente como o Informativo do Instituto Carnaba. O exemplar que foi lanado no dia 28 de abril de 2004 tem como manchete: Rio Acara entre o apogeu e a degradao. J em seu editorial, chama a ateno para a degradao intensa da bacia do Rio e sua morte ambiental. Estas e outras observaes, tornadas pblicas, e aquelas de mbito das relaes cotidianas face-a-face levaram o Secretrio do Desenvolvimento da Infra-estrutura, Quintino Vieira Neto, a responder, em alguns jornais locais especificamente sobre os impactos ambientais relativos a um possvel escoamento do esgoto da cidade para o rio, como parte integrante da obra da margem esquerda. Segundo o que conta um dos artigos: Quintino destacou que as bocas de manilhas que se encontram no talude da urbanizao da margem esquerda so sadas de drenagem, e no esgotos como muitos esto pensando... Explicou, ainda, que drenagem so todas as guas pluviais que caem dentro do rio. Nestes ltimos dias est havendo um acrscimo maior dessas guas em razo das ltimas chuvas que tm cado na cidade. Se me perguntarem se tem esgoto poluindo a gua, eu lhe direi que no do nosso conhecimento. Pode at existir, porque algumas pessoas esto fazendo ligaes clandestinas noite, principalmente de madrugada e, para combater isso, j mandamos fazer fiscalizao fora de horrio e j pegamos pessoas fazendo este tipo de coisa, porm anulamos imediatamente, disse o Secretrio(jornal O Noroeste, 07 de maio de 2004: pg.03). Alm da questo ambiental e social, um aspecto que chamou a ateno dos moradores da cidade, foram os shows que se tornaram rotina no local da obra. O novo anfiteatro, apesar de no ser usado sempre para os grandes espetculos que lotam o calado, maior que o localizado por trs da Igreja e chama a ateno pela forma que foi construdo. Ele no foi edificado em um fosso, como o outro que tem uma estrutura mais modesta. Ele elevado, tendo uma arquibancada, e o palco fica de costas para o rio. Por trs da arquibancada, uma grande rea, que tambm serve como alternativa para a construo de um palco mvel e coberto, o que passou a ser mais usado que o prprio anfiteatro e, logo em seguida, uma cascata iluminada que ressalta a esttica do lugar. O jornal O Noroeste de 07 de maio de 2004 anuncia alguns dos grandes eventos que aconteceram no anfiteatro: Um final de semana bastante movimentado culturalmente em Sobral. Alm 95 das homenagens do dia das mes, no domingo, com os cantores Ritchie e Lo Jaime, no anfiteatro da margem esquerda do rio, Sobral vai poder assistir a apresentao do Magic Circo Show Bolchoi, que desde o incio do ano realiza uma tourne internacional em 18 pases e est atualmente no Brasil (...) Antes do show, porm, eles participam de oficina malabaris (sic), ilusionismo e performance envolvendo professores de educao fsica, artistas, arte-educadores e alunos da rede pblica. (jornal O Noroeste, 07 de maio de 2004: pg.2). As reaes crticas a estes grandes eventos, que j vinham sendo realizados em outros locais, antes da construo da margem esquerda, variam e podem ser articuladas a determinadas demandas que partem de outras perspectivas sobre o investimento pblico da poltica cultural. Alm disso, pude registrar que as manifestaes desfavorveis aos grandes eventos versam tambm sobre o esquecimento de determinados setores da cidade, quando o poder pblico privilegia outras reas onde est havendo maior investimento. o caso do artigo Dois pesos e duas medidas do Dr. Azevedo, que tem uma coluna no jornal O Noroeste. Ele diz o seguinte: Em julho foram o Babado Novo e as belas pernas da sua cantora; agora em agosto, 23, festa de arromba com Ricardo Chaves e sua banda: hora do circo. Para setembro e outubro ainda no tem nada programado. Ningum perder por esperar, j que em novembro sero mais 3 dias de ax-music. Tudo isso exige infra-estrutura de peso, como segurana, ruas e avenidas interditadas, alm de milhares de megawats agredindo a nossa sade e ao cdigo de posturas, no que diz respeito ao silncio noturno. Quem patrocina tudo, lgico, o poder pblico municipal, atravs de seus organismos de incentivo cultura regional (...) Ah, antes que eu me esquea: referidos rgos de incentivo tambm apiam (?) a realizao semanal da mostra de artesanato que se instala s quintas-feiras na praa So Joo. A diferena de apoio, principalmente o financeiro, to grande, no entanto, que a gente quase no se lembra ou acredita que por ali possa ter a presena, a inteligncia e a viso histrico-cultural de quem deveria t-las. Anteontem por exemplo, nem energia havia nos quiosques (...) Os holofotes, as lmpadas de alta voltagem e a sobrecarga de tenso para as bandas baianas, esse nunca falham (...) No mundo que prioriza a esttica, a beleza plstica das coisas, e onde a poltica partidria faz uso de tudo para projeo pessoal de alguns, no ficaria muito bonito nas telas dos programas de TV mostrar produes locais, feitas de pano simples, areia, argila, semente ou material reciclado. Bonito fica, e rende votos, cada vez mais, tudo que est muito bem iluminado sobre os altos palcos e palanques demaggicos. A arte tupiniquim e os valores pessoais dos nossos picssos [sic] e Rodins que se danem. E que fiquem no escuro. (jornal O Noroeste, 16 de agosto de 2003: pg 04, Caderno A). 96 Estes espetculos protagonizados por artistas de renome nacional e at, em alguns casos, internacional, na verdade, no uma peculiaridade das inauguraes sucessivas de partes da obra da margem esquerda. J era recorrente acontecer shows deste porte no Largo da Igreja das Dores, no Becco do Cotovelo 41 e continuou a ser recorrente at o fechamento desta pesquisa em outros locais da cidade, marcando ou no inauguraes de obras. Acontece que a maior parte destes artistas ao se apresentarem na capital estadual, Fortaleza, eram tambm convencidos de se apresentarem em Sobral. Alguns deles, inclusive, chegaram a vir mais de uma vez. Era comum ouvir, de meus amigos de Fortaleza, comentrios jocosos sobre esta questo associando este fato ao j referido suposto interesse do sobralense fazer de sua cidade uma grande metrpole. A comparao inclua uma dimenso financeira, pois, geralmente estes espetculos em Fortaleza eram pagos, enquanto que em Sobral eram gratuitos. Nos shows que presenciei era comum haver momentos de intenso movimento de pessoas assustadas, correndo, em direes diversas, com medo de alguns indivduos que brigavam. Era comum ouvir, de pessoas prximas, comentrios sobre estas brigas, ressaltando ainda mais a idia de que Sobral estava ficando uma cidade violenta. A enchente do rio em 2004 tambm foi motivo de algumas crticas obra da margem esquerda. A coluna Poltica em evidncia de Marcelo Marques do jornal O Noroeste de 21 de fevereiro de 2004 afirma que: A margem esquerda do Rio Acara, que tinha ficado submersa devido cheia de janeiro ltimo, fez com que a Prefeitura agilizasse os servios de recuperao das obras de urbanizao destrudas pelas chuvas to logo as guas baixaram. De acordo com o Secretrio de Infra-estrutura Quintino Vieira, na recuperao seriam gastos R$ 100.000,00 (cem mil reais). Pois bem. Mal os servios comearam e o Rio Acara voltou a fazer estragos na margem esquerda, e o dinheiro da populao voltou a escorrer para o mar. Est na hora da Prefeitura dar um tempo nesta obra e deixar que o inverno passe. Teremos a quadra chuvosa at o ms de maio e, por mais que se queira dar um grau na construo, quando vier a chuva e o rio voltar a encher e tudo vai para o mar. Chega de gastar o dinheiro da populao. melhor que este dinheiro a ser empregado agora na recuperao, sirva para construo de casas populares. E chega tambm de se trazer cantores caros, onde o dinheiro que dado a eles no fica por aqui. gasto no sul maravilha(jornal O Noroeste, 21 de fevereiro de 2004: pg.02).
41 Este espao social da cidade ser melhor apresentado em outra parte deste captulo. 97 Alm da crtica a forma de uso do recurso pblico, o articulista expressa seu descontentamento com a no aplicao destes recursos em Sobral. Neste caso, a enchente foi mote para mostrar uma necessidade de exaltao do que local que, segundo o que expressa o artigo, desvalorizado em comparao ao que se gasta com o sul maravilha. Porm a enchente tambm foi motivo de orgulho e exaltao da sobralidade para alguns, como o caso do artigo da coluna Registro histrico de Jos Lus Lira, que o intitula, usando um trecho de uma poesia de Tom Jobim e Lus Bonf, que diz A correnteza do rio, vai levando aquela flor.... Sobre a enchente o articulista chama a ateno para que: ... essa correnteza antiga. Todos os que aqui viveram e os que aqui vivemos conhecemos bem as cheias do Acara, que sempre abalam e ao mesmo tempo despertam o sentimento de sobralidade que rima com a solidariedade, a mesma presente em todos os tempos... Nossa reportagem foi Confeitaria Doce Cultura e ali encontrou fotos expostas das cheias de 1924 e 1974, s quais inclumos a de 2004. Ser que todo ano terminado em quatro bom de chuva?(jornal O Noroeste, 21 de fevereiro de 2004: pg.09). A sobralidade, na perspectiva do articulista, rimada com a palavra solidariedade, ganha um sentido mais humanista e, ao mesmo tempo, artstico, o que para alguns pode ser Imagens da enchente do Rio Acara no incio do ano de 2004. Veja que este fato gerou uma grande curiosidade por parte da populao de Sobral que quis conferir os estragos ocasionados na obra da margem esquerda. Ao fundo, do lado direito pode-se ver o novo anfiteatro submerso. Foto site: www.sobralsobral.com 98 visto atravs do registro da tragdia. Ela ganha uma qualidade, estado ou vnculo recproco entre os habitantes, expresso em uma mutualidade de interesse e deveres, pelos quais as pessoas se obrigam umas as outras e cada uma delas por todas. Outro elemento integrado a esta obra a reforma da ponte velha, conhecida oficialmente pelo nome de Oto de Alencar, antes mais modesta e mais antiga, que acompanhava a estrada de ferro vinda de Fortaleza em sua diminuta largura. Ela foi tambm alvo de interveno, tendo em vista sua ampliao. A outra ponte denominada Jos Euclides Ferreira Gomes, inaugurada em 1998, com o nome do pai do prefeito da cidade, menos sbria que esta mais antiga, com vrios arcos e farta iluminao que visam a dar um ar de grandeza e beleza. Boa parte do fluxo de nibus, que chega a cidade, foi desviado para a "nova" ponte que d acesso rodoviria. Apesar disso, antigos itinerrios resistem ao "novo", pois passando pela ponte velha, mais fcil parar em locais que facilitam acesso a bairros populosos, que o "novo" itinerrio no facilita. Desta forma, a ponte "velha" ainda resguarda um maior fluxo de carros, caminhes, nibus, bicicletas, pedestres e at animais. Na ponte "velha", a via se estreitava de tal forma que mal dava para passar dois carros em sentidos opostos e se alargava logo aps a passagem em sua extenso. Extenso esta sempre acompanhada do trilho que leva a imaginar o perigo Ponte velha (Oto de Alencar) e a barragem vertedouro logo abaixo (vista noturna). Esta ponte tambm foi ampliada e a parte construda ganhou o nome de Senador Vicente Alves de Paula Pessoa. Foto: site www.sobral.gov.br. Ponte nova (Prefeito Jos Euclides Ferreira Gomes) inaugurada em 1998. Vista de quem vem para a rodoviria. A obra da margem esquerda ainda no tinha sido finalizada no momento desta foto. Foto site: www.sobral.gov.br. 99 da passagem de um trem em horrios de grande fluxo de veculos grandes. Por este motivo foi feita uma ampliao da ponte no final de 2003, construindo uma outra pista, dividindo a ponte em duas mos e uma ciclovia. A obra foi tratada como se representasse a construo de uma nova ponte, ao lado da antiga, ganhando o nome de Senador Vicente Alves de Paula Pessoa. Todas estas intervenes, incluindo a ampliao da ponte, foram realizadas em local estratgico. Todos que chegam cidade podem apreciar estas vrias intervenes, independente de chegar pela velha ou pela nova ponte. Quem chega pela ponte velha, que deixou de ser mais modesta e passou a ter um outro porte facilitando o fluxo, pode ainda ver um grande letreiro iluminado durante a noite e bem visvel pelo seu tamanho durante o dia, afixado no gramado plantado em um elevado, a palavra Sobral. A ponte nova, a reforma da ponte velha, a revitalizao da Igreja e do largo das Dores, a construo do Sushimix, a obra da margem esquerda com todo o seu cuidado esttico e estilstico, as quadras de esporte, a barragem vertedouro, batizada de Engenheiro Vista de quem chega na cidade pela ponte velha (Oto de Alencar). Foto: produzida pelo pesquisador. 100 Jos Cndido de Castro Parente Pessoa, o espelho dgua, o grande letreiro, a cascata, alm de uma escultura, que em sua ponta jorra um jato de gua em direo ao rio atingindo uma grande distncia e que pode ser vista de longe, so obras sobrepostas, multifuncionais, que contrastam com o outro lado do rio, sua margem direita, que apresenta as casas modestas do bairro Dom Expedito. Toda vez que chego a Sobral de nibus, vindo de Fortaleza, percebo o interesse dos passageiros em observar todas estas modificaes no espao, comparando o que lembram ou simplesmente comentando sobre o quanto chama a ateno estas modificaes. O leito do rio tambm sempre motivo de comentrios dos passageiros, observando-se o seu nvel e comparando com o de outros momentos. Com o tempo, pude observar que com estas modificaes o uso do espao passou a ser diferente, como no poderia deixar de ser. O Sushimix, que sempre apresentava uma freqncia considervel de pessoas, aproveitando-se tambm do pblico que aparecia no anfiteatro por trs da Igreja, diminuiu o fluxo de clientes e fechou no final de 2004. As pessoas interessaram-se mais em passear pelo calado do que apreciar os pratos do restaurante. O Jornal Municipal, rgo de imprensa da prefeitura, no seu nmero de maio de 2004, tambm comenta sobre estas mudanas, apontando outros aspectos considerveis: Antes da construo desta barragem, o local que compreende a Margem Esquerda era conhecido pela populao como prainha, uma rea de lazer precria onde o rio servia apenas como uma opo de banho, misturando-se aos banhistas s lavadeiras da beira do Rio Acara. Com o encerramento das obras da Barragem, alargamento da Ponte Othon de Alencar e urbanizao da MARGEM ESQUERDA do Rio Acara, aquele espao, que antes se encontrava sem muita utilidade para a cidade, tornou- se uma exuberante rea de lazer, trazendo um clima agradvel e acrescentando um novo adendo paisagem primitiva de Sobral. Hoje, a imagem do Rio Acara encontra-se restabelecida permitindo que a cidade se volte para o rio. A Prefeitura Municipal, em comemorao a este feito, trouxe o show BUGALU, que aconteceu na MARGEM ESQUERDA, com a participao de um grande nmero de fs de Lulu Santos(Jornal Minicipal, maio de 2004). (Grifo do jornal). Algumas questes, j ressaltadas em outro momento, ficam em aberto na denominada imagem restabelecida pelo artigo. Lembro muito, que ao freqentar o sushimix nos fins de semana, principalmente na hora do almoo, via uma grande quantidade de pessoas, freqentando a prainha classificada pelo jornal como rea de lazer precria, tomando banho, divertindo-se, lavando roupas, dando banho em animais, 101 dentre outros usos, como j afirmei anteriormente. A impresso que o artigo passa que o local no era suficientemente estvel ou seguro, condio esta que a obra se propunha superar. A questo que se coloca : precrio para quem? No parecia ser precrio para aqueles freqentadores que ali marcavam presena. O que parece estar implcito nesta narrativa a condio de limpeza, higiene, correo esttica, esmero, apurao, atravs dos recursos da arquitetura e da engenharia, que a obra presumidamente oferece. O pblico, que freqenta o espao, passou a ser mais diversificado. Os moradores, que passaram a ter toda aquela estrutura urbanizada, como adendo do quintal de suas casas, passam tambm a ocupar o espao de distintas formas. comum, ao andar nos calades, se ver grupos de pessoas fazendo churrasco, ouvindo msica, bebendo e se divertindo prximo de suas residncias no gramado plantado, que compe a rea urbanizada. Durante a noite, tambm comum ver grupos de amigos que se encontram no gramado para conversar, beber e se divertir. A interveno acionada pelo poder pblico no local, portanto, proporcionou faco poltica, ancorada em Cid Gomes uma forte imagem de empreendedorismo acionada, constantemente, por seus instrumentos de divulgao. H tambm um trabalho constante por parte da tecnocracia municipal no sentido de envolver segmentos prestigiosos, no s do estado, mas tambm do Brasil, assim como de outros pases no sentido de articular e capitanear incentivos financeiros, idias e opinies. o caso da obra da margem esquerda, que foi resultante de um concurso para arquitetos, coordenado pela Prefeitura em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil seo do Cear (IAC). O anncio do Informativo da Municipalidade de maro de 2000 que fala do concurso diz o seguinte: O Instituto de Arquitetos do Brasil - IAC (Seco Cear), designou o arquiteto Napoleo Ferreira para coordenar o concurso pblico nacional de arquitetura, objetivando a apresentao de proposta de urbanizao da do Rio Acara (...)sendo que todo o processo dever estar concludo at o final do ms de maro, quando ser ento conhecido o projeto arquitetnico vencedor e as caractersticas da obra que ir beneficiar populao ribeirinha e assegurar ao rio uma vida mais saudvel, plena e distante da poluio que hoje o coloca em risco, mas que est com os dias contados, graas s obras de saneamento dos bairros Tamarindo, Sumar e Santa Casa, que sero realizadas pela Prefeitura em parceria com o Ministrio da Sade. O projeto de urbanizao do Rio Acara j conta com a ponte Dr. 102 Jos Euclides Ferreira Gomes Jr. e o Largo de Nossa Senhora das Dores, este recentemente inaugurado (informativo Sobral Modelo de Crescimento de maro de 2000). Na forma como aparece no anncio, a obra da margem esquerda parte integrante de um complexo de obras, vistas em conjunto, e no uma mera sobreposio com relao s outras j existentes. Porm, uma obra incerta, impensada, posta em concorrncia estimulando a rivalidade entre escritrios de arquitetura produtores, negociantes e idealizadores de projetos que expressam a arte da obra organizando o modo de sua construo e as caractersticas distintivas dos seus ornamentos. Esta no a nica obra que redimensiona a cidade, causando tanto revises de trajetrias usuais dos moradores, quanto propagandas de um determinado perfil de administrao. Um outro exemplo disso a Avenida Pericentral e o Parque da Cidade.
2.3.2 O Anel Virio e o Parque
Outro exemplo de interveno o Anel Virio Pericentral que corta toda a cidade acompanhando a estrada de ferro. O complexo tem dois trechos totalizando 3.600 metros de extenso, segundo material de divulgao da obra. Um dos trechos tem incio na Ponte Oto de Alencar, a antiga ponte reformada logo na entrada da cidade, passa por um balo construdo como seu elemento integrante, e atravessa toda a cidade at as proximidades da Santa Casa de Misericrdia de Sobral. O segundo sai prximo da fbrica da Grendene e encontra o outro trecho na rodovia CE 362. A avenida tem vias duplicadas, rea para pedestre, ciclovia e iluminao. Um dos panfletos de divulgao da obra diz que: A Pericentral vai facilitar a circulao de veculos pelo centro da cidade e trazer mais conforto e tranqilidade, tanto para motoristas quanto para ciclistas e pedestres. O trecho que parte da ponte, passa entre um grupo de quiosques de alimentao que era muito freqentado pelos adolescentes durante a noite, e prximo de um dos pontos mais lembrados em fotos de visitantes da cidade, cartes postais e imagens na imprensa que chama a ateno para matrias sobre Sobral: o Arco do Triunfo. O balo construdo neste trecho tambm dava acesso ao Restaurante Catavento, que funcionava como casa de shows. 103 Era um local bastante freqentado, principalmente pelos membros da administrao municipal, mas que em 2003 foi fechado. As mudanas espaciais proporcionadas pelo poder pblico favorecem uma lgica ambgua e flutuante entre definio e indefinio de identificao de lugares. Porm, esta fluidez no uma conseqncia derivada de uma interveno de mo nica. uma interao entre prticas cotidianas e a mediao das mudanas na infra-estrutura. Magnani (2000), ao trabalhar o lazer na cidade, usa como conceito bsico a "lgica do pedao" para entender esta ambigidade prpria das prticas cotidianas dos moradores da cidade. Com esta noo de "pedao" posso fazer uma analogia com que Certeau (1994) chama de lugar. As prticas sociais cotidianas dos usurios que delimitam o que prprio ao "pedao". Segundo Magnani (2000), quando ele demarcado, vira ponto de referncia para distinguir determinado grupo de freqentadores como pertencentes a um determinado tipo de rede de Avenida Pericentral cruzando com a Dr. Guarany. Este um dos giradores que compem a avenida Pericentral. Acima, do lado esquerdo, pode-se ver o quiosques da Brodway na Dr. Guarany. Seguindo a mesma avenida para a direita, mais a frente est o Arco do Triunfo. Em 2003 este girador passou por uma reforma: foi retirado o asfalto e colocado um calamento de cimento de forma pentagonal no seu entorno. Em 2004 os quiosques foram transferidos para o Parque da Cidade. Foto site: www.sobral.ce.gov.br 104 relaes. medida que h uma mudana na dinmica destas relaes, o pedao ganha um outro sentido e significado social. Empreendendo uma "caminhada", que deve ser um meio termo entre a errtica ou imprevista, e a apressada, tpica do usurio habitual, devo deixar-me impregnar pelos estmulos sensoriais, sensibilizando-me com o cenrio da vida cotidiana, com os atores, com as regras de convivncia e transgresses. Desta forma, posso perceber o fluxo entre os distintos eixos de oposio tpicos da dinmica do "pedao" como sagrado/profano, casa/rua, masculino/feminino, dentre outros, que devem ser relativizados e contextualizados no tempo e no espao. Alm disso, segundo Magnani (2000), em um mbito mais geral, posso localizar "manchas" na cidade de Sobral que definem uma prtica social dominante. Os quiosques localizados na avenida Doutor Mont' Alverne eram exemplos do que posso caracterizar como uma "mancha" de bares e restaurantes, distinguindo-se por esta atividade dominante durante a noite. Nesta mancha, nas caminhadas que fao no local, percebo diferentes "pedaos" que unificam indivduos baseados em gostos, ritmos, opes e at sentimentos mtuos. No bar do "vio", por exemplo, estudantes universitrios engajados no movimento estudantil, trocavam idias" sobre o contedo de livros, travavam discusses polticas, comentavam situaes vividas no cotidiano, analisavam as prticas de determinados professores de seus respectivos cursos ou pensavam nos rumos da universidade. No outro lado da rua, jovens em seus carros equipados com sons potentes estacionavam para definir quem conseguia melhor impor sua msica. A confuso de ritmos parecia no incomodar os freqentadores dos quiosques que ficavam no canteiro da avenida. Alguns esboavam sua revolta diante da confuso de sons, porm se sentiam logo frustrados quando percebiam que representavam a minoria. Ainda na mancha dos quiosques, grupos de adolescentes se aglomeravam e se paqueravam nos vrios bares, lanchonetes e restaurantes ou diante dos carros, ou sentados nas mesas, procurando o melhor momento para "atacar" a "vtima" de sua "caa" neste local conhecido tambm por alguns como Broadway. Pais e filhos tambm freqentavam o local para comer uma pizza. A quinta-feira era geralmente o dia de maior movimento, o que talvez fosse um resqucio da j extinta quinta-sem-lei que existia at o fechamento 105 da antiga pizzaria Beths no Becco do Cotovelo 42 localizado no centro da cidade. No final do ano de 2004 a Brodway j no aglutinava tantas pessoas como antes. Houve uma mudana no fluxo de freqentadores para outros locais da cidade que iam surgindo. Um deles o Parque da Cidade que faz fronteira com a avenida Pericentral na parte da bifurcao desta avenida, perto da localidade do Tringulo no bairro Corao de Jesus onde registrei uma reao curiosa dos moradores do local. Foi um acontecimento que coloca o pesquisador diante de um desafio analtico de construir uma base conceitual para compreender resignificaes contextuais e, ao mesmo tempo, a ambigidade entre ao racionalizante, ou tcnico-burocrtica por parte das polticas pblicas, e as tticas e astcias criativas do mundo vivido no cotidiano. Neste local, dentre as primeiras visitas realizadas juntamente com os bolsistas de Iniciao Cientfica, o contato mais prximo que tivemos foi com Dona Ccera, presidenta da Associao dos Moradores deste bairro e residente nele h mais de vinte anos. Na poca, os moradores da localidade Tringulo 43 , estavam apreensivos por causa de boatos a respeito da construo do Anel Virio Pericentral, cujo percurso possivelmente atravessaria o local. Conseqentemente, os moradores deveriam desocupar suas casas para viabilizar a concluso da obra. No haviam recebido ainda o comunicado oficial da Prefeitura e s
42 Sobre a quinta-sem-lei em Sobral Cf. Freitas, 2000. Este costume refletia o dia em que um grupo diversificado de pessoas se reunia no Becco durante a noite para beber, conversar, paquerar e curtir a noite, o que acabava tambm fazendo com que outros lugares da cidade passassem a ser freqentados para o mesmo fim. 43 Local do bairro denominado desta forma por causa da confluncia dos trilhos da estrada de ferro Fortaleza/ Sobral e da antiga estrada de Sobral/Camocim que formam a figura geomtrica de um tringulo, Girador na Avenida Pericentral prximo localidade do Tringulo do Bairro Corao de Jesus. O acesso localidade no bairro est do lado esquerdo e abaixo na foto. Acima se pode ver o teto da Fbrica de Calados Grandene. Foto site: www.sobral.ce.gov.br 106 sabiam disso atravs de boatos. Os boatos e as fofocas, servem como fontes de informaes que, mesmo sem percebermos, como lembra Elias (2000), so agentes imprescindveis nos jogos das relaes de poder. Aquilo que dito, mas no se sabe de onde provm, passa de "boca em boca" e em cada conversa surge mais uma interpretao com acrscimos ou decrscimos dependendo de quem fala, para quem fala e em que situao se fala. Segundo os boatos descritos por Dona Ccera, a possibilidade de desapropriao provocou revolta entre os moradores do Tringulo que no aceitavam tal possibilidade. O que se contava era que deveriam deixar suas casas para irem morar num conjunto habitacional. Os moradores ento, resolveram tomar uma atitude. Convidaram um radialista policial famoso em Sobral, para entrevist-los com o propsito de fazer presso e forar um esclarecimento por parte do prefeito da cidade, Cid Gomes, sobre a situao deles. A entrevista aconteceu em frente casa de Dona Ccera. Segundo ela, estavam presentes aproximadamente umas cento e cinqenta pessoas, entre crianas e adultos, assim como um vereador da cidade, que disse estar presente para apoiar a comunidade. Coube ao vereador selecionar algumas pessoas para relatar a situao na hora da entrevista. A demonstrao de inconformidade foi registrada numa fita K7 e em fotografias guardadas por Dona Ccera. Antes da entrevista ressaltava-se, constantemente, a morte por enfarto de um "velhinho", morador antigo do Tringulo ocasionado por extrema preocupao relacionada sua possvel mudana da residncia. Neste momento percebe-se a efetivao de tticas narrativas que apontam como objetivo justificar e hiperbolizar o argumento a favor da "comunidade", categoria imprecisa e genrica que aparece como muleta para vontades pessoais compartilhadas por alguns. O "velhinho ", por exemplo, perde o nome e o que importa neste momento o uso do ocorrido para favorecer a posio do grupo. Uma semana depois o prefeito Cid Gomes foi ao Tringulo dar satisfaes e acabou convencendo a comunidade da necessidade da transferncia para outro lugar. O prefeito prometeu uma indenizao e a construo de um conjunto habitacional no distante dali. O silncio do corpo tcno-burocrtico da municipalidade foi entendido pelos protagonistas do evento como uma desconsiderao da opinio e da vontade daqueles que 107 seriam remanejados. comum ouvir os tcnicos argumentarem sobre uma suposta incompreenso da necessidade de modernizar a cidade, julgando a atitude dos moradores neste aspecto como infundada. Parece que, para estes tcnicos, trata-se de uma mera transferncia de um lugar para outro. Atravs deste conflito os moradores do Tringulo tentaram mostrar uma suposta afeio ao seu lugar de convvio, particularizada pelo costume de morar no local. Nunca terei certeza se realmente h uma afeio ao local. S posso contar com o que percebemos no momento. Habwachs (1990) argumenta que o longo tempo de vivncia no lugar faz com que os grupos humanos adaptados e habituados com a sucesso de imagens ambientais, regulem seus movimentos e seus pensamentos em relao ao espao em que vivem. Nessa perspectiva compreende-se que o espao e sua organizao parecem influenciar no comportamento dos habitantes do Tringulo, atribuindo um sentimento de pertena ao lugar ao qual dado significado atravs da maneira como o espao utilizado pelo grupo em suas prticas cotidianas, apesar de terem aceitado a proposta da prefeitura. Percebe-se neste caso os dois movimentos, j comentados: um o investimento racionalizante da administrao pblica que apresenta sua proposta de higienizao e modernizao urbana como bvia e inquestionvel, sem sequer merecer a consulta previa das comunidades afetadas, favorecendo a fofoca como nica fonte de informao disponvel para os usurios do local; o outro movimento o dos moradores que apesar da suposta "obviedade" do projeto modernizante, demonstraram que eles tambm podem atravs do uso ttico de "autoridades respeitveis" publicamente constitudas, como o jornalista e o vereador, fazer com que o prefeito desse, oficial e publicamente, pelo menos uma justificativa e uma soluo para o problema. Acontece que, as intervenes acionadas pela municipalidade colocam novas referncias ambientais, que provocam o morador do local a tentar encontrar um sentido no espao modificado, o que gera confuso e usos imprevistos. o caso da ciclovia construda no centro da Pericentral. Uma charge, que aproveitei no captulo anterior, mostrando um carro passando pela avenida com uma placa USA Sobral exemplar para mostra um suposto desuso da ciclovia implantada. Na tira de humor aparece uma aranha tranqilamente instalada na ciclovia com sua teia e um pequeno lagarto comentando: com certeza esse um bom lugar para a senhora fazer sua casa sem ser importunada.... 108 Um artigo publicado no jornal O Noroeste tambm chama ateno desta faceta da ciclovia. Segundo o artigo: Todos os dias as cenas se repetem. So ciclistas invadindo o espao que de fato dos motoristas. Na moderna cidade de Sobral, os ciclistas andam fora da lei. A sinalizao desrespeitada dia e noite... No Cear, so poucas as cidades que dispem de ciclovias e, a propsito, no so devidamente utilizadas pelos usurios... As ciclovias foram construdas com o objetivo de proteger vidas, de proporcionar segurana, comodidade e conforto. Em alguns pontos da zona urbana de Sobral, elas continuam no anonimato sem nenhuma utilidade. A iniciativa da administrao municipal, responsvel pela construo das obras, foi mais do que vlida, no entanto, parece que os ciclistas ainda no despertaram para a importncia das ciclovias(jornal O Noroeste, 06 de maro de 2004: 05). Reportagens na televiso e nos jornais estaduais chegaram tambm a noticiar este fato. Os ciclistas flagrados na reportagem televisiva se desculpavam e prometiam rever esta atitude justificada por um anunciado costume. Esta jurisprudncia no escrita, baseada no uso, cria problemas s polticas pblicas relacionadas ao transporte urbano que requer da tecnocracia respostas no muito fceis. Os conflitos que surgem da tenso entre as prticas do poder pblico na forma de interveno e definio de regras de uso do espao e os distintos agentes sociais que moram na cidade, so motivados por uma percepo dos que vm a cidade de cima, que esquecem os que esto embaixo: os praticantes "comuns" da cidade (Certeau, 1994). Os caminhantes e pedestres relacionam seu corpo com espaos que so praticados por eles de forma distinta da racionalizao tcno-burocrtica; ou seja, a cidade habitada no s racional como vista pelo simulacro terico, construda por itinerrios diversos compostos de desejos e memrias, que elaboram poesias fragmentadas e mltiplas de uma cidade praticada de formas infinitas e imprevisveis. um texto urbano escrito por histrias cotidianas mltiplas que se cruzam elaborando redes de escrituras compostas dia-a-dia, sem contradizer totalmente e, em alguns casos englobando e reelaborando, as imagens do espao racionalizado, teorizado, geometrizado e planejado. Estas prticas, trajetrias e experincias vividas no cotidiano so fontes fundamentais para a definio do conceito de cidade. O espao urbano no pode ser visto somente como um fato morfolgico e fisiolgico como prope as polticas pblicas, mas tambm como um conceito opaco, visto de forma perspectiva e prospectiva que vai alm do 109 espao racional, organizado e planejado, que incorporado nas histrias mltiplas e enriquecido atravs das tticas, astcias cotidianas e "modos de fazer" o dia-a-dia dos distintos moradores da cidade (Certeau, 1994). Cada arte de fazer o seu dia-a-dia das vrias experincias vividas pelos indivduos que moram na cidade no pode ser enumerada, seriada ou quantificada, mas qualificada como estilo de apreenso singular que molda o espao atravs das trocas simblicas inseridas nos jogos cotidianos de convivncia no espao urbano, mediados pelas relaes de poder. Estes processos mltiplos de experincia podem auxiliar na elaborao de um mapa urbano das maneiras de transcrever as trajetrias preferenciais e dos usos urbanos que sempre vo estar longe de esgotar sua diversidade, que se refaz todo tempo. Este movimento no fcil de ser interpretado pelo tecnocrata, interventor pblico da municipalidade, que tende a entender isso no registro jurdico do desrespeito lei. O artigo citado expressa um pouco isso quando finaliza seus argumentos arrematando Valorize a vida. Siga corretamente as leis do trnsito, a sinalizao (jornal O Noroeste, 06 de maro de 2004: 05). Exatamente na confluncia da Pericentral com a CE-020 que vai para Massap encontra-se outra interveno urbana desta administrao, registrada como revitalizao. o Parque da Cidade. O Jornal Municipal anuncia esta obra da seguinte forma: A Prefeitura Municipal, atravs das Secretarias de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente e Desenvolvimento da Infra-Estrutura, entregou no dia 4 de julho, a Praa Joo Dias, que faz parte do complexo Parque da Cidade. Esse Parque, que prev tambm a construo da Praa Marco da Cidade, uma interveno ambiental para a requalificao do trecho do riacho Paje, compreendido entre a Avenida do Contorno e a Avenida Jos Euclides Ferreira Gomes. O Parque da Cidade, que vem sendo construdo numa rea de aproximadamente 70.000 metros quadrados, integrar reas importantes como os bairros do Junco, Colina e Campos dos Velhos. O Projeto consta ainda com 1 anfiteatro, 5 playgrounds, 8 estacionamentos com aproximadamente 20 vagas cada um, 414 bancos, 29 mesas de xadrez, 22 mesas de piquenique, 19 quiosques, 1.800m de pista de cooper, 1 campo polivalente para esportes e 3 campos de vlei de areia. Alm de todos esses equipamentos, o Parque contar tambm com rea de esportes radicais, sendo 1 pista de bicicross e 1 skatepark com padro internacional que j est funcionando e sediou a 2 Etapa 2004 do 110 Campeonato Brasileiro de Skate. Todas as ruas que circundam o Parque esto sendo pavimentadas com as devidas obras de drenagem e esgotamento sanitrio. A inteno principal deste Projeto viabilizar a manuteno do riacho Paje, como mais uma ao de preservao da Lagoa da Fazenda(Jornal Municipal, julho de 2004). Assim como as outras grandes obras aqui citadas, a inaugurao deste Parque foi dividido em etapas. Uma primeira inaugurao aconteceu no dia 4 de julho de 2004 com o show do grupo de Rock chamado Charlie Brown Jnior, conhecido nacionalmente. Uma segunda inaugurao aconteceu no dia 11 de novembro de 2004 com um show do cantor, tambm nacionalmente conhecido, Djavan. No primeiro evento o prefeito da cidade fez opo de no fazer o discurso de praxe de toda inaugurao e somente anunciou a entrada do grupo musical, talvez por entender que o pblico ouvinte, que supostamente seria composto por jovens interessados em rock, no seria a platia ideal para demarcar sua postura com relao sua forma de intervir no espao urbano. Suposio esta reforada pela competio de Skate que estava acontecendo. J no show do cantor Djavan, ele fez uma opo diferente. No somente ele discursou, como tambm o Secretrio de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, o vice-prefeito, o irmo do prefeito e deputado estadual Ivo Gomes, assim como havia um locutor anunciando tanto as autoridades e pessoas de prestgio na cidade presentes, dentre elas a me e a namorada do prefeito, quanto as obras a serem inauguradas nos dias posteriores, marcando o fechamento da administrao municipal, segundo ele, com chave de ouro. Com minha participao constante nestes eventos de inaugurao percebi que est se tornando recorrente nestes grandes shows a participao de uma quantidade grande de pessoas, que vo independentemente de gostar ou no do artista a se apresentar. No show do cantor Djavan, por exemplo, era comum ouvir comentrios sobre o tdio provocado pelas msicas romnticas do cantor, em contraste com outras opinies favorveis a este romantismo. No discurso de palanque mais uma vez as idias de requalificao ou rivitalizao aparecem como mote para justificar o investimento neste empreendimento. Esta narrativa d novamente a entender que era necessrio, premente e indiscutvel a municipalidade pagar uma certa quantia pela execuo deste empreendimento, como uma prova de 111 cumprimento de uma dvida, de livrar do cativeiro do esquecimento e do tmulo mortfero do desprezo aquele espao simbolicamente representado por um poludo riacho que desemboca na Lagoa da Fazenda, nas proximidades da UVA. A narrativa vai mais alm. Aponta que o desempenho nesta empreitada no s pontual, mas este sacrifcio pela cidade, quase nico e exemplar, resultado de uma obrigao moral que cobra uma reciprocidade decorrente do apoio popular. Enfatizava-se, no entanto, que aquilo serviria ao povo, sem discriminao de raa, credo ou classe social. Para isso, diziam que estavam proporcionando, ali, um espao de qualidade ou uma nova qualidade de vida, isto em comparao com o que ali existia, destacando a excelncia, o encanto e a superioridade da estrutura. Qualidade de vida que tambm serviu, recorrentemente, para justificar quase todas empreitadas na cidade, servindo para diferentes interesses. Apesar de o tema central da narrativa proferida pelos falantes na inaugurao ser a preservao ambiental e o lazer, no vejo um distanciamento com relao a narrativa sobre a monumentalizao da cidade, pois, tanto uma quanto a outra, so fundamentadas pela idia de revitalizao e resgate. Na narrativa da idia de revitalizao est implcito um investimento na atividade interna substancial dos corpos que habitam Sobral, por meio da qual atua o ser-cidade, repercutindo, conseqentemente, tambm no suposto fortalecimento do estado de atividade imanente Charge publica no jornal local Expresso do Norte fazendo referncia inaugurao da segunda etapa do Parque da Cidade. Na ilustrao pode-se ver o cantor e compositor Djavan se queixando do mau cheiro do Riacho Paje. Foto: Jornal Expresso do Norte de 13 a 19 de outubro de 2004, pg.5. 112 emoo dos agentes praticantes da cidade. Est implcito nesta narrativa o interesse em fomentar um modo de viver, porm, um modo de viver que se refere a um modo de ver e entender a cidade. Mais uma vez tenta-se fortalecer um simulacro visual fulgurante de desejo de intervir no espao como um sinal distintivo de uma urbe moderna, no somente por ser composta por obras grandiosas e esteticamente comprometidas com os padres de beleza do campo da arquitetura e do urbanismo, mas tambm por executar uma idia de monumentalizao que no poderia existir sem a implementao de obras de organizao da infra-estrutura da cidade. Estas, dentre outras como o Centro de Convenes, a Escola de Comunicao Ofcios e Artes (ECCOA), so exemplos disso.
2.3.3 Convivncia, formao e turismo: outras sobreposies.
As intervenes do poder pblico na cidade, registradas como modernas, pressupostamente respeitando a tradio, pretendem articular um modo de ser, um modo de viver, definio de uma autenticidade e estratgias de reconverso de espaos urbanos, criando novos cenrios para fins de sustentao de uma poltica que, a partir de uma valorizao do local, proporcione cidade ser foco de ateno global, com fins de sustentao no mercado das trocas econmicas mais amplas geograficamente. Na concepo implcita nas prticas da tecnocracia da municipalidade em Sobral, a fora apelativa do contato com o diferente no pode estar isolada de uma interveno pblica voltada para o turismo. Camplo (2004) chama a ateno para a tenso entre modelos tursticos que comea a acontecer, no auge do entendimento desta atividade como industrial, acionando uma reviso destes modelos, que tendem a conceb-los de uma forma consensual. O autor lembra que o modelo fordista visava somente o incremento da quantidade de turistas no local e esquece da singularidade da procura e das novas exigncias dos turistas, tratando-os como um corpo homogneo, oferecendo uma atrao 113 monotemtica. Este foi o primeiro modelo a vigorar em vrios pases. Segundo Camplo (2004) o modelo hoje comum o ps-fordista, que caracteriza-se pela oferta pautada tambm na singularidade direcionada a segmentos concretos da grande massa de turistas, isto , h uma conjugao de espaos e atitudes anteriores com outras diferentes e especializadas. Penso que este modelo est impregnado na poltica direcionada Cultura e ao Turismo em Sobral. Todo investimento do poder pblico denota esta concepo. O comrcio, por exemplo, foco de ateno para uma demanda j existente, mesmo antes do prefeito Cid Gomes assumir em 1997, com polticas de capacitao e financiamento de negcios em parceria com outras instituies com o SEBRAE, SENAC, SESC, UVA, dentre outros, caracterizando um investimento do turismo atrelado zona comercial. Outro segmento o turismo cultural inaugurado com o tombamento do centro da cidade como Patrimnio Histrico Nacional. A relao turismo e espetculo, com grandes shows, Centro de Convenes de Sobral (vista area). Foto: www.sobral.ce.gov.br. 114 atrelados ou no a inaugurao de espaos e equipamentos de servios, j anunciados neste trabalho, tambm uma forma de ao na rea. O desporto tambm uma forma de mobilizar o turista, como foi o exemplo da 2 Etapa do Campeonato Brasileiro de Skate que realizou-se em 2004, no recm inaugurado Parque da Cidade. O turismo associado ao trabalho, atravs da realizao de congressos em reas especficas, tendo a UVA como uma das responsveis por este tipo de evento, com o apoio da Prefeitura, tambm uma atividade que foi muito valorizada na administrao Cid Gomes. O turismo de negcios, que tem o Centro de Convenes como um dos locais privilegiados para a efetivao desta ao tambm uma fonte para investimento na rea. No quero dizer que todas estas aes so registradas pela tecnocracia municipal como resultantes de polticas voltadas para o Turismo. Porm, diante a Intersetorialidade pregada pela administrao local, percebe-se uma inteno latente por valorizar o turismo como uma atividade que tem uma interface com outros setores que no necessariamente so focos de ateno exclusiva das polticas voltadas para esta rea. Apesar disso, esta atividade ainda est em fase de estruturao, no que se refere a aes mais especficas da Secretaria municipal dedicada a implementar polticas no setor em Sobral. Em maro de 2004 o Jornal Municipal anuncia a construo de um site na Internet dando informaes mais detalhadas sobre as atraes tursticas e infra-estrutura voltada para isso como hotelaria, restaurantes, agncias de viagem, mapas, dentre outras. Segundo a Coordenadora de Turismo da Secretaria do Desenvolvimento da Cultura e do Turismo, "As informaes so de interesse para o turista que, em visita a Sobral, se depara com diversos lugares encantadores para conhecer e explorar, sem contar com os prdios que fazem parte do Patrimnio Histrico Nacional que, pela sua originalidade, torna Sobral uma cidade excepcional, atrativa e grandiosa, convivendo em plena sintonia com a tradicionalidade e a contemporaneidade (Jornal Municipal, maro de 2004). Mais uma vez a relao entre tradio e contemporaneidade anunciada como uma ao necessria e imanente de uma cidade excepcional. O patrimnio histrico, marca da originalidade de Sobral, nestas observaes da Coordenadora de Turismo, torna-se interessante para polticas voltadas para o setor. Neste contexto que o turismo de negcio, tendo o Centro de Convenes como local privilegiado para sua implementao, no pode ser entendido como um investimento 115 voltado somente para estabelecer relaes comerciais. No Jornal Municipal de julho de 2003, um artigo sobre o aniversrio de 1 ano do local mostra bem isso quando diz: Um ano depois de inaugurado com o objetivo de fortalecer o turismo de negcios na regio norte do Cear, o Centro de Convenes Incio Gomes Parente coloca Sobral, no dia 11 de julho de 2003, como referncia entre as principais cidades do interior nordestino na realizao de eventos, sendo um dos trs nicos Centros de Convenes do interior do Nordeste. Neste primeiro ano uma srie de eventos de mdio porte, antes s acontecidos na capital, j foram realizados em Sobral e outros esto sendo prospectados pela Secretaria de Desenvolvimento Econmico, visto que melhorias esto sendo feitas na infra-estrutura de servios da cidade e o potencial tecnolgico disposto por instituies importantes como a UVA, a Embrapa, a Santa Casa, o Hospital do Corao e o CENTEC contam muito para divulgar Sobral como uma cidade produtora de conhecimento. Alm de tudo, o dinheiro deixado por organizadores de eventos e turistas convencionais nos hotis, restaurantes, bares, empresas de transporte, grficas, empresas de recepo e cerimonial, buffets, aquece a economia local. Mesmo tendo sido criado para o incentivo do turismo de negcios, o Centro de Convenes, hoje, tornou-se uma importante rea de lazer, possuindo agncia bancria e proporcionando o surgimento de novos pequenos negcios nas suas proximidades(Jornal Municipal, julho de 2003). Esta narrativa ressalta a exaltao do pioneirismo e da excepcionalidade da cidade como motivos para justificar a edificao deste local que no se restringe somente ao incremento dos negcios, mas tambm para o lazer e para o turismo. Assim como favorece o incremento do setor de servios aquecendo a economia local. No lugar do Centro de Convenes, at 2002, a edificao a ser reformada abrigava o Mercado Novo. Na dcada de 1980 no governo municipal do pai do Prefeito Cid Gomes, Jos Euclides Ferreira Gomes Jnior (gesto 1977/1983), este espao foi edificado com a finalidade de substituir o Mercado Central localizado no centro da cidade. Os comerciantes da poca no aceitaram a mudana, o que ocasionou a subutilizao do local. At alguns meses antes da inaugurao em 11 de julho de 2002, somente pequenos bares e comrcios estavam em funcionamento. Salas de aula de uma escola tambm chegaram a fazer parte integrante desta estrutura. Ironicamente, apesar da no aceitao dos comerciantes do Mercado Central em ocupar o local, uma vez por semana, particularmente nas segundas- feiras, feirantes de Fortaleza e de outras cidades faziam comrcio nos arredores do Mercado Novo at o ano de 2001. Posteriormente, eles foram transferidos para o distrito sobralense 116 de Aprazvel. Porm, era fofoca corrente que a elite de Sobral freqentava muito cedo pela manh o local para comprar as roupas mais em conta, isto se comparados aos preos das lojas do centro da cidade. A fofoca afirmava que o objetivo de irem cedo para a feira era o de no serem vistos por seus pares nas barracas dos feirantes. Diante desta memria de prticas comerciais no local posso afirmar que houve uma mudana estrutural no espao, tendo em vista dar a este equipamento um significado para fora celebrando o inautntico da prtica turstica especializada enquanto evento, ou comercial, ou ainda de negcios, que visa dar suporte ao autntico do simulacro terico e visual da identidade local. Ou seja, h uma articulao entre determinadas intervenes na cidade que parecem no ter relao entre si, mas que quando vistas atravs de uma perspectiva mais ampla, formam uma imagem de uma cidade propcia a prticas dignas de grandes metrpoles, com uma estrutura urbana que contempla equipamentos e servios, que propicia o consumo, e, ao mesmo tempo, intervenes que exalta uma cidade que pode ser consumida por sua originalidade e autenticidade decorrente de sua monumentalizao. Alm destes aspectos, a monumentalizao atrelada a intervenes tpicas da cidade moderna, em Sobral, percebi outro elemento desta poltica que acho que devemos levar em considerao: a perspectiva de ensinamento ou formao. A Escola de Cultura Comunicao Ofcios e Artes (ECCOA), que tem sua sede ainda em construo na margem esquerda do rio Acara, tem como perspectiva, segundo informaes do site da administrao municipal: ... Universalizao do saber em Arte e Cultura. A ECCOA, desta forma, uma escola sem fronteiras, aberta, flexvel e mltipla. Mas, ao mesmo tempo, firme, definida e objetiva. Com os olhos voltados para o amanh mas, sem perder os elos que a ligam ao nosso modo de ser, ao nosso saber e nossa cultura, sem deixar de perceber a importncia de defender a multiculturalidade. A proposta de absorver vrios nveis de estudantes nas reas culturais, artsticas e de ofcios. voltada tanto para iniciantes como pessoas j profissionalizadas que desejem fazer uma reflexo mais profunda sobre a sua arte ou sobre a arte em geral e se prope a desenvolver a curiosidade, a imaginao, o esprito crtico e a criatividade possibilitando o efetivo dilogo entre as vrias vertentes do fazer artstico, da manualidade, da artesania e do pensamento crtico buscando o domnio tcnico dos mais 117 variados meios de comunicao e a livre expresso artstica. Desta forma, pretende ser mais que uma escola e tornar-se um movimento cultural em Sobral(site www.sobral.ce.gov.br). A ECCOA, associada ao elenco de intervenes urbanas at agora citados, mais um elemento que compe o complexo de obras com finalidades diferentes, todas voltadas para o mesmo objetivo: ressaltar o lugar como especial e inovador, tendo em vista estruturar a cidade para ser um lugar de consumo e, ao mesmo tempo um lugar a ser consumido. A perspectiva da formao fundamental para isso, pois oxigena esta inteno implcita e d ares de criao e construo de possibilidade de continuidade e acompanhamento das mudanas inerentes ao nosso momento contemporneo. Uma reportagem do jornal O Povo de circulao estadual d uma idia dessa articulao entre Obra da reestruturao da edificao para o funcionamento da sede da Escola de Cultura, Comunicao, Ofcios e Artes de Sobral (lado esquerdo) e construo da Biblioteca Pblica Municipal, instituio pertencente a ECCOA. Foto: produzida pelo pesquisador. 118 formao, infra-estrutura e monumentalizao. O artigo, na verdade se refere ao VII Salo Sobral de Arte Contempornea, mas acaba indo alm, mostrando a articulao entre estas trs variveis: o consumo, o consumo do lugar e a formao. Ele diz o seguinte: A pequena Sobral de casarios antigos preserva estilos de todas as pocas. Na esquina, a Casa da Cultura ocupa um edifcio tombado, em frente, o Teatro So Joo, construdo no final do sculo XVIII, j mostra a fachada restaurada por trs dos andaimes da obra. Ao lado da praa, a Escola de Msica tambm funciona numa casa histrica. A cidade que respeita o passado optou politicamente pela cultura. Os investimentos na rea superam muito os recursos aplicados pelo Estado. Em Sobral a pasta conta com uma verba de R$ 9 milhes. At o fim do ano novos equipamentos sero inagurados e os impactos no devem ficar restritos regio. Pela dimenso das novidades que a Secretaria da Cultura e do Turismo anuncia, o estado todo deve sentir os efeitos. Para comear, a Escola de Cultura, Comunicao, Artes e Ofcios, a ECOA, consolida a poltica cultural do municpio que trabalha na perspectiva da formao. O prdio, com mais espao para aulas tericas e prticas do que o Centro de Arte e Cultura Drago do Mar, d a dimenso do trabalho que se pretende levar a cabo. Aulas de dana, de arte visual e de teatro, restaurante popular com oficinas de cultivo orgnico, garom e cozinheiro e uma extensa grade pedaggica ainda a ser definida. Tudo vira motivo para capacitao. A pea que marca a reinaugurao do Teatro So Joo, Esperando Godot, vem sendo ensaiada por artistas sobralenses. Oficinas de sonoplastia, cenografia, figurino e iluminao formam profissinais e criam o ncleo da Escola de Teatro que funcionar na ECOA. Ao lado, uma imponente Biblioteca Municipal toma forma. Em frente, uma sala do Museu Madi, escola artstica que explora vazios e rompe com os ngulos retos, espera mais de cem obras doadas. O espao Madi de Sobral ser o primeiro do Brasil e o quinto do mundo. O gramado do complexo que se ergue na margem esquerda do rio Acara promete ser um centro de intensa criao e discusso artistca. esperar para ver(jornal O Povo, 16 de dezembro de 2004). Apesar das imprecises, misturas, sobreinterpretaes e at falhas do articulista, como por exemplo, o fato de dizer que o teatro So Joo foi construdo no final do sculo XVIII, quando foi edificado quase cem anos depois, na verdade no so fundamentais na minha interpretao desta narrativa. O que importa aqui entender esta obra especfica como parte de um complexo urbanstico mais amplo que vai alm das prerrogativas especiais e particulares de cada um destes equipamentos urbanos citados. Inclusive, como o caso da ECCOA, incluindo equipamentos j existentes e outros por ainda existir como 119 parte integrante desta nova instituio ainda com sua sede em construo. Uma outra notcia no Jornal O Povo sintomtico disso que digo. Ela conta que: A antiga praa denominada ''Meruoca'' historicamente Praa General Tibrcio, aps reformada, ser inaugurada amanh, com show do cantor Leonardo. O novo projeto homenageia Cuba, destacando o heri pr- revolucionrio Jos Marti. O Prefeito Cid Gomes (PPS) entregar tambm populao: A Casa do Cidado (dia 13) com Noda de Caju; avenida Dr. Guarany, trecho onde est localizado o Arco do Triunfo (dia 21) com Limo com Mel; Mercado Central (dia 23) com Mastruz com Leite; Teatro So Joo (dia 27) com Gilberto Gil; e 500 Casas populares (dia 29) com Forr Real e Pau de Balanar(jornal O Povo, 17 de dezembro de 2004). Portanto, o Centro de Convenes, a ECOOA, as praas, edificaes tornadas monumentos, polticas sociais, turismo, relao entre local e global expresso na praa que homenageia Cuba, no Boulevard do Arco do Triunfo, dentre outras intervenes do poder pblico, compem um complexo de modificaes no espao urbano que no podem ser entendidos como referentes a um nico setor de atuao da municipalidade. As prprias inauguraes destas obras sinalizam isso quando se visualiza a participao de vrios secretrios municipais em cada uma delas, falando do investimento de suas pastas na sua viabilizao. So obras sempre multifuncionais e tendem a serem anunciadas pela municipalidade como sociais, apesar da obscuridade na definio de sua noo. Um artigo que tem como ttulo Sobral ganha obras de importncia social no Jornal Noroeste expressa bem essa idia da qualificao da obra como tendo fins sociais. O artigo fala sobre a srie de inauguraes realizadas no final do mandato do Prefeito Cid Gomes em 2004, como o Boulevard Arco do Triunfo, Laboratrio de Ensaios em Equipamentos em Irrigao na unidade do Centro de Ensino Tecnolgico (CENTEC) da cidade e do Restaurante Popular ainda em finalizao na data do artigo, restaurante este parte integrante da ECCOA, que recebeu uma comitiva formada pelo Ministro do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, Patrus Ananias, do governo do presidente Luis Incio Lula da Silva (2002/2006), o Deputado Federal Ivo Gomes, o Governador do Estado Lcio Alcntara e o Reitor da Universidade Estadual Vale do Acara (UVA) Jos Teodoro Soares. O Boulevard, por exemplo, segundo o artigo: ... ganhou nova configurao arquitetnica, valorizando o Arco e oferecendo equipamentos modernos de uso urbano como as ciclovias, a trilha especial para deficientes visuais, o palco para apresentaes e 120 passagem para pedestres. O Boulevard tem 380 metros de extenso, com bancos de assento em todo o seu comprimento. A obra foi inaugurada pelo prefeito Cid Gomes, acompanhado pelo ministro Patrus Ananias (Desenvolvimento Social), por secretrios municipais, vereadores e os deputados Lenidas Cristino (federal) e Ivo Gomes (estadual)(Jornal O Noroeste, 23 de dezembro de 2004). Alm destas autoridades vrios prefeitos eleitos da regio se fizeram presentes na inaugurao deste espao. A presena do Ministro, fora poltica importante na denominada pela mdia, rea social do governo, serviu como mote para reforar esta virtude quase que filantrpica das aes da municipalidade. A narrativa sobre a modernidade, entrelaada com a idia de monumentalizao da cidade ressaltada e somada a esta dimenso social, ganhando contornos diversos e contextuais de acordo com a funo atribuda e enfatizada pela municipalidade ao espao urbano modificado. Portanto, estas narrativas sempre articulam modernizao, preservao e investimento social. Narrativas estas que no aparecem somente quando referidas a estas modificaes nos equipamentos aqui descritos e analisados que compem o entorno do ncleo tombado. Aparecem tambm nas intervenes no prprio espao tombado. E o prximo captulo tratar disso.
121 3 Efeito, convergncia e posio: o centro-monumento como mediao de relaes e ajustes.
3.1 O centro como monumento O centro da cidade de Sobral, quando ganha o adjetivo histrico atribudo em decorrncia de seu reconhecimento oficial como patrimnio histrico nacional, transforma- se na narrativa da tecnocracia, que fundamenta esta idia em um monumento exemplar atestado pela histria. As edificaes viram testemunhas de um passado perpetuado oficialmente pelo tombamento. A idia passar uma determinada imagem especial do sobralense, atravs da transformao de edificaes e manifestaes culturais em monumento. Os espaos, edificaes e prticas so registradas como uma arte, que deve ser cultuada em honra de uma lembrana de um jeito especial, notvel, digno de passar a posteridade. O centro passa a ser o monumento desta lembrana. As escolhas destes espaos, lugares e prticas, como j dito no primeiro captulo, passaram pelo crivo dos especialistas do IPHAN e dos contratados pela Prefeitura. Desta forma, como nos sugere Le Goff (1988), o centro passou por um processo de confluncia entre monumento e documento. O documento, para o autor francs, o resultado de uma montagem da histria da sociedade que, ao mesmo tempo em que o produziu, tambm produzida pelo saber competente. uma disposio de continuidades no tempo que manipulado pela lembrana e pelo esquecimento. O documento para ele um testemunho e tambm um ensinamento que transparece objetividade e neutralidade. Porm, ao contrrio do que transparece, no nada mais que uma expresso de uma interpretao, impondo ao presente e ao futuro uma imagem de si. Para Le Goff (1988), documento monumento. Entendo o tombamento como um processo de monumentalizao do espao e de prticas sociais cristalizadas, conseqentemente, uma espcie de transformao do sitio histrico tombado e determinadas manifestaes culturais em documento que tem o objetivo de registrar uma histria exemplar. Usando esta base conceitual, posso supor uma leitura que tenta conhecer os distintos elementos, suas articulaes e pronuncias, reconstruindo e reinterpretando o sentido implcito e explcito na composio narrativa j descrita no primeiro captulo deste trabalho. No quero crer que isso seja suficiente para dar 122 conta da riqueza inumervel de passagens, circunstncias e elementos fornecidos pelas percepes e afeces possveis que a cidade e sua monumentalizao podem oferecer. Entendo esta reflexo como uma verso minha, resultante de uma experincia compartilhada com moradores da cidade e suas imagens produzidas. A analogia da monumentalizao com o documento permite entender que a tradio sublinhada, que justifica esta ao no centro da cidade, no contraditria nem representa uma ruptura quando casada ao termo moderno na administrao encabeada por Cid Gomes. Como j dito os slogans de suas duas administraes seqenciadas mostram bem isso: Sobral no rumo certo e Restaurando o passado, melhorando o presente e preparando o futuro. O segundo slogan parece enfatizar mais esta perspectiva de usar o monumento como exemplar testemunho e ensinamento para o presente, preparando para o futuro. Presente que no pode ser tratado somente como um trabalho de preservao de uma identificao substantiva e excepcional, mas tambm adaptao para uma participao no mundo moderno e contemporneo, que demanda uma mudana do espao urbano tendo em vista a efetivao de uma cidade que seja exemplar no s para seus moradores, mas tambm para aqueles que moram em outras cidades. A forma de intervir no espao urbano, especialmente no centro, mostra bem essa idia. Concordo com Peralta da Silva (2003) quando chama a ateno de que o patrimnio no nada mais do que uma construo social resultante de uma composio de um corpus cultural difuso e sujeito a uma engenharia social que lhe d sentido e significado. No espontneo, nem natural e muito menos universal. uma operao ou agenciamento estratgico com um propsito ou finalidade que depende das relaes de fora postas em tenso no cotidiano por distintos sujeitos sociais que compem a cidade. uma idealizao ativada por uma dimenso utilitria, moderada por um valor de identificao simblico, eficaz e estratgico. Erige fronteiras, trajetrias e tradies diferenciadoras dando uma significao especial ao seu objetivo, passvel de flutuaes da moda e de critrios matizados pelos agentes culturais, intelectuais, polticos e econmicos. Esse agenciamento e construo so materializados como um ideal pblico que tende a auto-evidenciar uma interveno imediata e incontestvel da tecnocracia atrelada aos rgos institucionalizados para atender s demandas coletivas sobre o assunto. um 123 ideal pautado em um passado construdo e legitimado pelo perito, que emana uma viso essencialista, neutralizando contingncias, circunstancias e contradies. Peralta da Silva (2003) tambm chama a ateno de que a histria contada e criada para o patrimnio uma fico que organiza uma narrativa do mito de origem, ressaltando continuidades exclusivas e dotando um grupo seleto de prestgio e objetivo comuns. A monumentalizao, portanto, um instrumento eficaz para os propsitos de quem o aciona emanando vises monolticas, objetivando a adeso popular para legitimar sua forma de ver e entender a ao no espao urbano. Propsito este que impulsionado, maximizado e matizado de forma insistente e eficaz por incentivos financeiros pblicos existentes para o setor. Penso ser este o caso de Sobral. A faco poltica encabeada pelo prefeito Cid Gomes demonstra em suas aes e prioridades, saber da eficcia ao valorizar esse instrumento. Nesse sentido, a Prefeitura de Sobral em seu site na Internet anuncia cinco grandes grupos arquitetnicos da cidade que compem o centro histrico tombado: Temos em Sobral, cinco grandes grupos, digamos assim, arquitetnicos: Praa So Joo, e entorno da Praa; Trecho que vai da Igreja das Dores at a Igreja do Rosrio, pegando a rua Ernesto Deocleciano; O conjunto de casas em estilo Art. Noveau da Praa Joo Pessoa; Trecho que vai do Arco de Nossa Senhora de Ftima at a Praa Dr. Jos Sabia (antiga Coluna da Hora); O quinto so as casas e monumentos isolados (O Patronato, chamado Outo Enobrecido; uma casa ao lado da loja Odsio Cunha; o Colgio Sant'ana; o sobradinho da Casa Samuel, na rua Ernesto Deocleciano; o prdio do Radier; e o Teatro So Joo). Dentre as valiosas edificaes contemporneas da Instalao da Vila em 1773, podemos citar a que pertenceu ao Capito-Mor Jos de Xerez da Furna Uchoa - introdutor da cultura do caf no Cear - localizada na Praa da S(site www.sobral.ce.gov.br). A monumentalizao da cidade no parece ser uma poltica isolada de um conjunto mais amplo de interveno tcnica planejada pela municipalidade, o que no especfico do caso de Sobral. O que parece ser especfico o tipo de capitalizao poltica que a administrao municipal faz desta poltica. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) parece expressar bem esta inteno. Alm deste documento, o livro didtico 124 adotado pelo sistema de ensino fundamental da cidade chamado Descobrindo e construindo Sobral: conhecimentos de Geografia e Histria, parece ser fonte significativa para se visualizar a estratgia adotada pela poltica municipal direcionada educao no sentido de construir e alinhar disposies ordenadas de fluxos, de maneiras de ser e ver a realidade histrica e geogrfica de Sobral, compondo um carter e estilo de um ser cidade, ser cidado, enfim, ser sobralense.
3.2 Plano e formao sobre o tempo e o espao: a revitalizao, o centro e a cidade na viso tecnocrtica.
O PDDU, confeccionado no ano de 1999 e aprovado pela Cmara Municipal no comeo de 2000, um planejamento estratgico adotado pela Prefeitura Municipal de Sobral que visa constituir-se como um instrumento de gesto urbana. Contm uma srie de diretrizes e polticas que devem ser adotadas pela municipalidade durante um perodo de 20 anos. Segundo o que narra, seu texto foi elaborado de forma participativa no restringindo o seu leque de influncia municipalidade, ou seja, qualquer instituio governamental ou no governamental pode utilizar deste instrumento para tomar decises que digam respeito ao interesse pblico na cidade. O documento faz uma caracterizao da cidade nos aspectos fsico-territoriais, ambientais, scio-econmicos e urbansticos e comea com uma epgrafe que diz o seguinte: A CIDADE QUE QUEREMOS... Uma cidade com alto nvel de acessibilidade social aos bens e aos servios para todos os seus moradores, realando sua herana histrica, preservando seu ambiente natural e promovendo o conforto da vida urbana com justia e eqidade" (Relatrio de Questes / Mdulo conceito, 1999: p.4). Esta epgrafe confere ao documento princpios que vo nortear todo o texto como o da necessidade de preservao de uma Histria herdada pelos seus moradores, associada a 125 uma srie de empreendimentos visando o conforto, a acessibilidade, a justia e a equidade. Na primeira parte apresenta a Histria da evoluo urbana. A trilha percorrida para a gerao de riquezas adotada como explicativa do que a cidade nos dias de hoje. O mito de origem da fazenda pecuarista, assim como do entroncamento de caminhos das boiadas que se dirigiam para outras regies fazendo surgir o ncleo urbano, ressaltado como explicao para acumulao de uma riqueza que explica o contato que o morador dos primrdios da cidade tinha com outras regies do pas e do exterior, exaltando a influncia econmica exercida por Sobral. Segundo o que diz o documento: Por fora da condio estratgica de convergncia comunicacional na regio (encruzilhada de vrios caminhos regionais), seus habitantes pertencentes elite, passaram ento a ter acesso s informaes oriundas das regies mais ricas do pas e, indiretamente, de outros continentes, o que gerou comportamentos civilizados na elite local, como o gosto pelas artes. Isso pode ser comprovado pelo acervo arquitetnico de carter histrico da Cidade de Sobral, no qual se destacam as igrejas, os sobrados e o Teatro So Joo (...) Tudo isso fez de Sobral um importante centro regional, hoje a maior cidade da zona norte do Estado. Seu raio de influncia chega a atingir um conjunto de cidades a uma distncia de 200km. As estradas de acesso que convergem ao Municpio e a Cidade de Sobral se configuram em rodovias federais e rodovias estaduais, confirmando as linhas de desejo da populao regional, existentes desde o perodo da colonizao e acentuada nos dias atuais(Relatrio de Questes / Mdulo conceito, 1999: p.15). O documentos mostra que a influncia econmica, portanto, no somente uma caracterstica de seus primrdios, mas tornou-se uma tradio local que deve ser digna de registro. As edificaes representativas do refino e requinte de uma elite so exemplares para destaque. lembrada tambm neste documento a importncia da Igreja Catlica como instituio co-responsvel pela constituio dos primeiros aglomerados urbanos localizados ao redor da Matriz e, posteriormente na Igreja do Rosrio. No se deixou de lado o comerciante como agente fomentador da evoluo urbana. Portanto, trs tipos de agentes sociais compem o elenco dos protagonistas desta Histria contada pelo documento: o clero, o comerciante e o pecuarista. A Histria registrada no PDDU contada por ciclos econmicos, ressaltando a fase do algodo e da industrializao como posteriores ao da pecuria. As edificaes vo aparecendo na narrativa como resultantes destes ciclos. A estrada de ferro que hoje delimita boa parte da regio do entorno do centro histrico tombado, principalmente o seu trecho 126 que sai de Sobral rumo cidade de Camocim finalizado em 1882 e que no existe mais, a cadeia pblica de 1879, o Teatro Apolo de 1876 e o transporte de bonde puxado por burro representam o ciclo do algodo que antecipa o da industrializao marcado pela construo da Fbrica de Tecidos, inaugurada em 1887, que chama a ateno para a inaugurao do Teatro So Joo em 1885, quando a integrao dos espaos urbanos se fazia por novas avenidas, alargadas, quando a cidade alcanou sua melhor qualidade espacial (Relatrio de Questes / Mdulo conceito, 1999: p.19). O ciclo da industrializao no sculo XX, para o documento, marca transformaes urbanas substanciais, produzindo novas expanses com relao a ocupao do solo, apesar de no haver incremento muito grande na quantidade total da populao. A publicao do Cdigo de Posturas de Sobral demarca um outro tempo tambm registrado no documento. um tempo onde a Diocese de Sobral, que tinha como bispo Dom Jos Tupinamb da Frota, substitui a iniciativa privada na construo de edificaes e equipamentos como Porto da Fbrica de Tecidos Ernesto Deocleciano com smbolo comemorativo de seu centenrio em 1995. Foto: produzida pelo pesquisador. 127 bancos, escolas, museu, jornal e hospitais. Neste tempo as relaes com Fortaleza so facilitadas com a finalizao da estrada que liga as duas cidades, no precisando mais da intermediao dos portos de Camocim ou Acara para o transporte de pessoas e mercadorias. Na dcada de 1950 comeam a surgir as primeiras moradias das novas elites no campo econmico e poltico, fora do, contemporaneamente, centro histrico tombado. Na dcada de 1970 e 1980 este movimento incrementado surgindo bairros como Junco, Colina e Derby Club (onde j existia o hipdromo), que abrigam estes abastados moradores. A populao pobre tambm acompanha este movimento, ultrapassando o trilho e o rio que circulam o centro histrico, aparecendo bairros como Dom Expedito, Sumar, Sinh Sabia, Padre Palhano, Terrenos Novos, dentre outros. Parece-me que a verso contada por este documento, no se restringe informar sobre a histria de Sobral ao seu seleto universo de leitores que geralmente so aqueles envolvidos na administrao das polticas pblicas municipais. Esta verso tambm difundida de forma simultnea por outros instrumentos. O prprio documento sugere esta possibilidade como uma iniciativa necessria da poltica pblica de educao. O livro didtico um instrumento eficaz para este fim. Neste sentido exemplar o livro Descobrindo e Construindo Sobral: Conhecimentos de Geografia e Histria adotado em 2002 nas escolas municipais e produzido por professoras da Universidade Estadual Vale do Acara, que inicia com uma reflexo sobre o patrimnio histrico de Sobral, ressaltando o mesmo tema da riqueza e importncia regional da cidade. Alm destes temas, na parte destinada ao contedo da histria, destaca a independncia de Sobral com relao capital at meados da dcada de 1920 e do primeiro nome, Vila Distinta e Real de Sobral, que remete a origem lusitana de muitas das famlias aqui instaladas. Sobre isso o livro informa que: Dizia-se que era uma Vila Distinta, por ter se originado dos colonizadores portugueses. Sobral foi a nica vila do Cear a ter essa qualidade. Dizia-se que era Real, por ter sido criada por ordem direta do El-Rei D. Jos I (Caracristi & Saboya, 2002: p.95). Contemporaneamente, me parece que o ato ou efeito da distino atribuda ao nome da ento vila remete a um conjunto de qualidades sociais superiores, um agraciamento que se aproxima de honraria ou condecorao. Remete a uma qualidade e possibilidade de educao apurada por no serem mestios os colonizadores. Mostra uma nobreza de porte, 128 correo de procedimento e elegncia prprios de representaes, ainda hoje correntes sobre o europeu, ou simplesmente o que estrangeiro, como superior. No toa que a data do reconhecimento do aglomerado urbano como vila mais comemorado do que o seu reconhecimento como cidade em 1841. O fato da independncia norte americana ser comemorada no dia 5 de julho, mesmo dia do reconhecimento de Sobral como vila, tambm favorece esta preferncia, ressaltando ainda mais a distino atravs da idia j comentada da influncia estrangeira na cidade que faz com que seja chamada de United States of Sobral. O livro tambm fala da presena indgena na regio e da escravido, sempre lembrando espaos e objetos dos bens tombados nos dias de hoje que remetem a estes temas. Sobre o indgena lembram da histria contada do embate entre eles e os colonos que houve no local antes chamado Fortaleza que abriga hoje a Fbrica de Tecidos Ernesto Deocleciano. As autoras lembram que l existia, antes da construo da fbrica, inscries rupestres destrudas com a implantao da indstria. Com relao escravido lembram as distintas formas de explorao do trabalho escravo em Sobral, principalmente quando os seus donos eram carregados por liteiras, algumas delas hoje integrantes do acervo do Museu Dom Jos instalado em uma edificao no centro histrico. Inclusive, todas as referncias feitas ao Museu lembram que o quinto mais importante no acervo de arte sacra exaltando o pioneirismo e distino da cidade comparada as demais no mbito cearense. A histria que se conta que Dom Jos pessoalmente conseguiu boa parte de acervo junto a Igrejas e capelas da regio 44 . Segundo o que conta MontAlverne Giro & Soares (1997): Dotado de incansvel esprito empreendedor, Dom Jos Tupinamb da Frota coletou, entre os anos de 1916 e 1959, um acervo de quase 5.000 peas reunidas no Museu Diocesano, considerado o 5 do Brasil em Arte- Sacra e Decorativa, pelo ICOM (Conselho Internacional de Museus) (MontAlverne Giro & Soares, 1997: pg. 54). O livro didtico adotado nas escolas do ensino fundamental de Sobral tambm
44 Segundo o que informa MontAlverne Giro & Soares (1997), o prdio onde est instalado o Museu foi construdo em 1844 pelo primeiro Juiz de Paz de Sobral, Major Joo Pedro da Cunha Bandeira de Melo. Em 1933 foi comprado pelo Bispo Dom Jos para abrigar o Palcio Episcopal at o seu falecimento em 1959. J em 1951 funcionava como Museu Diocesano e s em 1971 foi inaugurado como Museu Dom Jos. Na dcada de 1980 ele passa a ser dirigido pela UVA, em 1992 suspende suas atividades por conta da precariedade das instalaes da edificao, e em 1997 reaberto aps reforma. 129 reproduz esta mesma idia da importncia do Museu para a cidade. A Igreja de Nossa Senhora do Rosrio tambm lembrada quando fala da escravido, justamente por ter sido edificada em 1760 pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretinhos, constituindo um segundo ncleo urbano de origem, organizado por negros que inclusive realizavam a festa dos Reis Congos at o ano de 1879 45 . A escravido tambm criou suas lendas e heris, como a escrava Romana, morta por capites do mato na serra da Meruca e a libertadora Maria Thomzia fundadora da Sociedade das Senhoras Libertadoras. O heri 46 , Dom Jos Tupinamb da Frota, tambm lembrado quando as autoras
45 Sobre isso Cf. Frota (1995). 46 A imagem do heri ou salvador ser analisada de forma mais detalhada no ltimo captulo deste trabalho. Vista area do campus da Betnia da UVA localizado no bairro com o mesmo nome. Aqui est a reitoria e alguns cursos da Universidade. Nesta foto ainda no se encontra presente a edificao do NDC (Ncleo de Disciplinas Bsicas) inaugurado no incio de 2003. Na entrada da UVA esto as fotos dispostas em um monumento do professor Teodoro Soares, ento reitor, do professor Evaristo Linhares, ex-vice-reitor, Dom Aldo Pagoto, ex-bispo de Sobral e do Prefeito Cid Gomes. Alm do campus da Betnia, ainda existem os campi da CIDAO, Junco e Derby. Foto: site www.sobral.ce.gov.br. 130 falam que: Com a criao a Diocese de Sobral, em 1915, tendo como seu primeiro bispo Dom Jos Tupinamb da Frota, a cidade acelerou o seu desenvolvimento, quando foram fundados: Seminrio, Santa Casa, Colgio SantAna, Colgio Sobralense, Museu, Abrigo para Idosos, o jornal Correio da Semana, Banco Popular de Sobral, dentre outros (Caracristi & Saboya, 2002, p.105). Parece haver basicamente quatro tempos em destaque nesta verso que fala da opulncia e excelncia da cidade. O primeiro remete origem do primeiro ncleo urbano que lembra a economia da pecuria e distino dos primeiros moradores. O segundo faz meno ao sculo XIX com a relao deste tipo de economia com a do algodo e incio da industrializao. S que este segundo tempo destacado subdividido de acordo com trs ciclos econmicos que aparecem como se no tivessem relao entre si: pecuria, algodo, indstria. O terceiro remete ao tempo de Dom Jos. E finalmente o quarto tem uma forte relao com o governo municipal de Cid Gomes (perodo 1997/2004). O livro fala que: A partir da dcada de 1990, Sobral retomou o seu crescimento, com a chegada de novas indstrias, com o crescimento da Universidade Estadual Vale do Acara e da Santa Casa de Misericrdia, contribuindo para o impulso modernizador implantado pelo governo municipal que vem transformando a cidade (Caracristi & Saboya, 2002, p.107).. A Universidade Estadual Vale do Acara e a Santa Casa, lembradas sempre quando se fala de Dom Jos, so responsveis por um intenso fluxo de pessoas oriundas de outras cidades que no tm acesso em seus lugares de origem ao tipo de servios prestados por estas instituies. Mas, o que mais chama ateno nesta passagem no somente isso. a exaltao de uma retomada do crescimento e o impulso modernizador atribudo ao governo Cid Gomes. E o centro fundamental para entender melhor este exaltao. Justamente porque nele que se aplica a poltica de monumentalizao, justificada tambm por intervenes registradas como modernizadoras de forma mais agressiva. No so somente as edificaes antigas que lembram da excelncia e opulncia do sobralense. O Museu do Eclipse, por exemplo, uma edificao recente, inaugurada em 29 de maio de 1999. Mas remete a lembranas avaliadas como fundamentais pela municipalidade, pois ressalta um evento que fala da suposta importncia da cidade, no s no mbito regional, estadual ou nacional, mas tambm internacional. No livro didtico 131 analisado, explicado o motivo da escolha de Sobral para a observao que validou empiricamente a Teoria da Relatividade de Albert Einstein que o tema principal do Museu. Segundo o livro, o clima e a localizao favoreceram uma boa observao do eclipse solar ocorrido em 1919, comprovando a curvatura da luz proferida na teoria. No museu esto rplicas dos equipamentos usados, fotos, notcias de jornais da poca, inclusive de peridicos internacionais como o New York Times 47 . A edificao construda no mesmo local da observao tem o formato de duas meias luas com as faces internas viradas uma para a outra. A idia reproduzir a imagem de arcos de luz que escapam pela borda da lua no momento do eclipse. No centro do museu, que remete sombra do eclipse, est um monumento de simbologia republicana, especificamente jacobina, lembrando a passagem de Sobral da condio de vila cidade em 1841. Alm de um telescpio instalado na edificao, no lado oposto est uma rplica do antigo monumento que existia na praa lembrando o evento. A escultura de mulher com um barrete frgio, de brao erguido, inaugurado em 7 de setembro de 1927, foi usada para lembrar a passagem de Sobral condio de cidade. Esta e o museu so monumentos sobrepostos que lembram pocas e tm motivos diferentes. H uma forte relao significativa entre eles do meu ponto de vista, apesar dos artigos que falam do espao no anunciarem.
47 O jornal norte-americano anuncia a demasiada ansiedade dos homens da cincia pela descoberta da curvatura da luz. H tambm no museu a reproduo de um artigo de C. Davidson na revista inglesa Conquest referindo-se com detalhes visita feita a Sobral. Museu do Eclipse em Sobral. No lado esquerdo da foto pode- se observar a cpula do telescpio montado para observaes dos astros por parte dos visitantes do local. No lado direito encontra-se uma rplica do monumento que existia desde 1973 quando da comemorao dos 200 anos da cidade e lembrando o evento que aconteceu neste local que a Praa da Igreja do Patrocnio. O monumento tem a forma de dois globos onde o maior sustenta o menor na posio vertical apoiando-se em trs hastes que representam feixes luminosos que passam pelas laterais da lua em direo a terra. Foto: site www.sobral.ce.gov.br. 132 Fico pensando se no seria mais uma expresso da necessidade de mostrar que a cidade, simbolizada no monumento, possui uma excelncia, pois ajudou ao mundo na comprovao de uma grande teoria, que de certa forma influenciou fortemente no s mudanas de concepes no campo cientfico, mas tambm no campo comportamental, poltico, dentre outros. Segundo o que noticia o Jornal Municipal, ... o Museu existe para mostrar a todos os seus visitantes que Sobral tornou-se palco de um dos mais importantes episdios da cincia mundial. Alm de mostrar aos visitantes atravs de uma exposio toda essa histria, o Museu do Eclipse conta tambm com o Programa Noite das Estrelas, um dos mais completos programas de observao astronmica do Brasil, com 4 dias semanais. Para esta programao o Observatrio Henrique Morize coloca seu telescpio disposio do pblico para observar os diversos corpos celestes durante o ano, sempre de quarta a sbado. Atualmente o Museu do Eclipse conta tambm com um servio de informaes on-line (tira-dvidas), participa do projeto internacional SETI, que ajuda a analisar as vrias ondas de rdio que vm das galxias distantes e possui um link de meteorologia, informando a previso do tempo no perodo desejado. De maio de 1999 at os dias atuais, o Museu do Eclipse, o nico do mundo no gnero, j recebeu mais de 26.500 visitantes. Nmero bastante expressivo, considerando os quatro anos de existncia e comparando com outros museus do Brasil e do Mundo(Jornal Municipal de maio/junho de 2003). Este museu exalta ainda mais a verso da Histria contada pela poltica de monumentalizao, porm alargando os limites da narrativa sobre a excelncia e o pioneirismo atribudos cidade, no mais definindo comparaes regionais, mas mundiais. Na poca de sua inaugurao no ms de maio, vrios eventos forma realizados, dentre eles um seminrio organizado pela UVA, que contou com a presena do astrnomo Ronaldo Rogrio Mouro, do Observatrio Nacional do Rio de Janeiro. Ele enfatiza o pioneirismo da cidade em seu discurso. Boa parte do secretariado municipal estava no evento, alm do Reitor da Universidade e do Prefeito. Seus discursos tambm continham um claro contedo ufanista. O astrnomo deixou um autgrafo no livro de visitas do Becco do Cotovelo 48 , com a seguinte mensagem: ... Sobral, cidade internacionalmente conhecida, onde em 29 de maio de 1919, iniciou-se o sculo XX. A confirmao em Sobral da teoria da relatividade teve uma enorme
48 As peculiaridades do Becco do Cotovelo sero trabalhadas de forma mais detalhada mais a frente. 133 influncia no abandono de todos os padres absolutos, quer morais ou filosficos de um mundo que emergia para o relativismo moral que provocou o abandono dos padres rgidos na msica, na literatura e nas artes a partir dos anos 1920. Sobral um dos orgulhos dos brasileiros (livro de autgrafos do Becco do Cotovelo, 5 de maio de 1999). Esta narrativa exalta e destaca a cidade no cenrio internacional. O ufanismo passa a ser merecedor de orgulho no s para o sobralense, mas de qualquer brasileiro. Para o astrnomo, Sobral contribuiu para a confirmao de uma teoria cientfica responsvel por mudanas radicais no comportamento e na forma de entender o mundo ao nosso redor. No dia 8 de novembro de 2003, o eclipse total da lua foi motivo de um grande evento organizado pela Prefeitura, de observao coletiva do fenmeno na praa onde se localiza o museu. Segundo as estimativas da municipalidade, mais de 3000 pessoas acompanharam o evento. O Jornal Municipal noticia que: A Rdio Universitria, atravs do coordenador do museu Saulo Machado Filho e com participaes do professor Jos Amorim de Sousa, do Centro de Lnguas, alm de outros convidados, transmitiram pela Rdio Universitria todas as etapas do evento. Foi a primeira transmisso do gnero na Amrica Latina. Para quem perdeu o eclipse deste ano, a prxima chance ser em 28/10/2004(Jornal Municipal, novembro de dezembro de 2003). Mais uma vez Sobral vira exemplo, agora comparvel com uma outra delimitao territorial: a Amrica Latina. Porm, no s a cidade que lembrada por conta da edificao deste Museu. Em artigo publicado no jornal O Povo, reproduzido pelo Informativo da Prefeitura Sobral: no rumo certo, o ento senador Lcio Alcntara argumenta que: Mas o que pretendemos aqui ressaltar a sensibilidade do prefeito de Sobral, Cid Gomes, que oportunamente recuperou a memria das circunstncias que envolveram o episdio, difundindo-o em seus detalhes e destacando sua importncia como referncia cultural para a histria daquela cidade, j to marcada por fatos relevantes e personagens de exemplos incomuns. Cid edificou um museu, onde reuniu equipamentos e materiais utilizados pelos astrnomos. Movimentou, enfim, a sua comunidade em volta de uma referncia circunstancial, verdade, porm marcante para o desenvolvimento do conhecimento humano. O que cabe aqui ressaltar a importncia que tem para o xito de uma gesto, em qualquer nvel e de qualquer natureza, a aplicao dos recursos da criatividade, que muitas vezes supera carncias e emite sinais de estmulo e vigor sem passar necessariamente por gastos muito elevados. A sintonia do 134 gestor com os aspectos construtivos da identidade coletiva daqueles a quem lidera tem a qualidade de despertar foras subjetivas e potenciais intangveis, direcionando, com senso de oportunidade e valorizao do talento nativo, os melhores estmulos na direo do desenvolvimento concreto das condies materiais de vida(informativo Sobral no rumo certo, 13 de agosto de 1999). Desta forma o ento senador ressalta, no s peculiaridades significativas do municpio, mas tambm de seu gestor que, segundo sua verso, est sensvel aos anseios de afirmao de uma identidade coletiva potencializada por esta obra. Este depoimento pretende coroar no s uma cidade, mas tambm uma forma de ver e agir na cidade por parte de seu gestor. Antes de analisarmos esta relao entre a gesto de Cid Gomes e as imagens de tradio e modernidade atribudas sua administrao, preciso conhecer melhor o centro tombado, para analisar com mais segurana o marco circunstancial espacial desta relao. com este objetivo que passo a analisar o PDDU confeccionado pela administrao Cid Gomes.
3.3 - O centro: diversidade e convergncia de prticas.
No centro, a cidade de Sobral, assim como grandes metrpoles como So Paulo, Rio de Janeiro ou mesmo Fortaleza, guardando as devidas propores demogrficas, comporta em seu ambiente durante o dia espaos em que os indivduos se aglomeram e se movimentam em agrupamentos aparentemente caticos, tornando cada transeunte um annimo no meio do confuso, do ruidoso e do agitado movimento. A caminhada nestes locais no flui da forma que o transeunte quer. Os passos so constantemente suspensos por barreiras humanas que transitam em sentidos opostos. Este movimento intenso claramente visvel no s nas proximidades do Becco do Cotovelo como tambm nas proximidades do Mercado Central. Contraditoriamente, dependendo do horrio, alguns focos isolados destes mesmos espaos podem perder sua intensidade de movimento, tornando-se singelos pontos de encontro de famlias e vizinhos nas caladas das casas ao entardecer. Diante destas observaes, penso que no posvel estabelecer uma funcionalidade 135 fixa a estes espaos, pois os habitantes, criativamente refazem itinerrios e prticas cotidianas, no permitindo visualizar somente rotinas, mas tambm surpresas. Na verso do PDDU chamada a ateno para estas mudanas, porm somente no aspecto das formaes e revestimentos da estrutura urbana e das edificaes, na flexo destas formas com relao s diferentes maneiras, quase orgnicas, de funcionar, pensando estas interaes funcionais em si mesmas como distantes e dissociadas dos agenciamentos, vontades, desejos, sonhos e devaneios dos sujeitos sociais que compem o ambiente. Este documento fala, por exemplo, do centro como a parte mais representativa da cidade do ponto de vista da cultura, do comrcio e dos servios, sem desistir de sua funcionalidade enquanto moradia. O crescimento do comrcio e dos servios, segundo o PDDU, vem provocando mudanas na utilizao das edificaes e demolio de algumas delas. A diversidade de largura e de ambientes so reconhecidos como produtores de relaes inusitadas, mas favorecem a orientao do pedestre. O microclima amenizado pela grande quantidade de praas. Com a superao da barreira do trilho e do rio, surgindo novos bairros mais distantes, h um aumento do uso de veculos motorizados que disputam espao com bicicletas, pedestres, animais e carroas quando esto no centro. O documento chega a definir subzonas: a de predominncia comercial nas proximidades do Becco do Cotovelo, a que concentra servios de sade ao redor da Santa Casa e uma terceira com usos mistos entre as atividades tercirias, com uso residencial e equipamentos de cultura e educao nas proximidades do Teatro, Casa de Cultura e Museu. Existe tambm uma quarta subzona anunciada pelo PDDU que eminentemente residencial. A questo : em que medida se pode conhecer e compreender a vida urbana em uma determinada cidade somente levando em considerao sua dimenso funcional? O PDDU analisa a cidade desta forma: como uma descrio de um quadro fsico que esquece a prtica scio-espacial. No penso que as surpresas, com relao a uma viso analtica do centro, estejam somente nas mudanas funcionais e nas disposies estruturais. Parece-me haver uma espcie de naturalismo na descrio da cidade entendida como um meio ambiente, onde a vida humana simplificada em modelos, como conjuntos de qualidades externas que cerca as pessoas, que so restringidas a meros usurios ou pblico alvo de determinadas atitudes que se deve tomar com relao ao ganho de qualidade de vida pregada no documento que desconsidera as tramas, agenciamentos e vontades inumerveis 136 e imprevisveis dos sujeitos sociais praticantes do espao. O inusitado, por exemplo, no somente o fato das mudanas funcionais das edificaes em decorrncia do comrcio em um tempo linearmente marcado pela idia do desenvolvimento econmico, mas tambm os distintos modos de praticar o espao que no podem ser definidos por um tempo linear. Penso que no h um encargo definitivo para qualquer espao social. H tambm desorientaes, reorientaes e aes distintas e indefinidas. As pessoas no s usam, ou consomem, ou se beneficiam com aes pblicas de uma tecnocracia, elas criam prticas, dentro de limites e possibilidades prprias das relaes sociais constitudas, mas criam. Opto aqui pela descrio etnogrfica com o objetivo de tornar mais claro o que venho discutindo sobre a diversidade de convergncias do centro tal como praticado pelos sobralenses. Penso que o centro, portanto, o espao da multiplicidade de atitudes, aes, reaes e mediaes. Algumas caladas ocupadas durante o dia por um fluxo incessante de pessoas, por exemplo, podem, em outros horrios, tornar-se local de encontros rotineiros. Nestas prticas do espao dos encontros nas caladas os transeuntes passam tranqilamente, parando constantemente para cumprimentar e conversar com outras pessoas no caminho de suas casas. Mesmo nos horrios de intensa confuso causada pelos inmeros caminhantes, percebo que l tambm local de reconhecimento social, onde as pessoas se encontram, reencontram, paqueram ou param para ver o movimento. um espao que comporta tanto o rudo da multido, que no se compara, logicamente, dos grandes centros urbanos, mas que permite uma certa analogia, quanto um espao onde as pessoas se sentem em casa, bem Santa Casa de Misericrdia de Sobral. Ela responsvel por um grande fluxo de pessoas que se dirigem cidade para serem atendidas pelos servios de sade inexistentes em seu municpio de origem. Ao seu redor esto localizados vrios outros equipamentos com a finalidade de prestar servios na rea de sade, alm de funerrias. Foto: www.sobral.ce.gov.br. 137 vontade com os amigos que se encontram, ou seja, um espao tanto do anonimato quanto do reconhecimento social. O Centro da cidade de Sobral muito mais denso e complexo do que o exaltado nas narrativas selecionadas no captulo anterior relativas ao Patrimnio Histrico e ao PDDU. A visualizao de um quadro significativo, tanto da multido quanto da calmaria, no depende s da hora do dia, mas tambm do espao. A abundncia de corpos que circulam dificultam o olhar detalhista em alguns espaos em alguns horrios, assim como em alguns destes mesmos espaos, em outros horrios, pessoas passam calmamente ou saem de suas casa para sentar nas caladas para conversar. Em outros h uma polarizao radical de movimentos quando, durante as manhs, inmeras pessoas passam, chegam a se esbarrar, mas a pressa no permite um olhar, um comprimento, ou uma desculpa, enquanto que durante a noite, no se v uma s pessoa caminhando. A seleo acaba sendo adotada como recurso pelo caminhante/observador que trilha sem rumo a vereda sinuosa do Centro, se perdendo para exemplos modelares difusos e efmeros, assim como outros recorrentes e constantes. Por existir espaos onde h um aglomerado de caminhantes durante as manhs, percebo que estes resguardam em sua delimitao territorial ambigidades prprias grandes adensamentos urbanos, apesar de haver usos contraditrios a este ambiente prprio para usurio proteger-se ou esconder-se no anonimato, na indiferena e no individualismo. Algumas ruas do centro, como a Padre Fialho, Jos Sabia, Ernesto Deocleciano e a Dom Jos 49 que, ao mesmo tempo, aglutinam edificaes com fins comerciais, residenciais, bancrios, educacionais e de lazer, so exemplos de espaos onde no final da tarde grupos de diversas idades sentam em cadeiras postas e organizadas nas caladas conversando sobre assuntos diversos. Geralmente so grupos familiares que se encontram constantemente. Mas tambm se podem observar grupos de jovens estudantes, da UVA ou do ensino mdio, reunidos a conversar. Este costume de final de tarde contrasta com o movimento confuso e turbulento do dia, principalmente na avenida Dom Jos, onde as pessoas passam apressadas e mal se cumprimentam.
49 Uma das mais movimentadas da cidade e a que abriga edificaes que fazem parte da rea tombada como patrimnio histrico nacional tendo em vista sua pompa lembrando a opulncia j vivida pela cidade em tempo passado como o Museu Dom Jos, um dos mais importantes do Pas em arte sacra, a Casa da Cultura, o Teatro So Joo, um dos primeiros do Cear, dentre outros, como foi dito anteriormente. 138 O que acontece que boa parte das pessoas que compe a confuso do dia, so pessoas moradoras de outros bairros que vo para a rua resolver seus problemas com instituies pblicas, comprar alguma coisa, comercializar produtos, dentre outras atividades. comum ouvir narrativas em que no se consideram o centro como se fosse um bairro. O termo rua, utilizado para designar o centro, significativo para demonstrar isso. As pessoas que vo para a rua, somam-se aos moradores do centro formando o turbulento barulho do grande aglomerado de pessoas que passam ou param. Alm do termo rua que mais comum, alguns dizem que vo para a cidade ou simplesmente centro. Isso denota uma conjugao de sentidos e significados mltiplos ao centro da cidade que mistura prticas distintas por parte dos freqentadores e moradores do local. um lugar diferente, de destaque que requer uma nominao diferente. No o bairro, um lugar outro, diferente, principalmente para os que no so moradores. Refletindo com o aporte terico definido por Magnani (2000), no centro os "pedaos" tambm podem existir, porm, em determinados locais eles resguardam um outro sentido, pois no necessariamente as pessoas se conhecem atravs de relaes primrias, com maior proximidade e intimidade, mas de forma fragmentada, onde cada um marcado como portador de smbolos que remetem a gostos, orientaes polticas, hbitos de consumo, modos de vida semelhante, dentre outros aspectos, aos integrantes de seu grupo de convivncia. comum caminhar e ser reconhecido somente por aqueles que fazem parte de seu grupo de convvio. Em algumas de minhas caminhadas, fui surpreendido e cumprimentado, no somente por meus alunos e Teatro So Joo e a praa, um dos smbolos mais exaltados pelas narrativas que falam da tradio da cidade de Sobral. Foto: site www.sobral.ce.gov.br. 139 colegas de trabalho, mas tambm por pessoas que fizeram parte de meus nove anos de experincia de pesquisa em Sobral. Porm na maior parte do tempo das andanas no centro, passo desapercebido por inmeras pessoas que caminham apressadas para destinos ignorados e que tambm me ignoram. Percebi tambm que o Centro o espao onde as polticas pblicas se apresentam de forma mais claras. A reforma do Teatro um exemplo desta empreitada da municipalidade. Logo aps o incio de sua reforma, as obras foram barradas, pois determinados achados arqueolgicos impediam sua continuidade. Foram encontrados indcios de reformas feitas no interior do local. Isto foi motivo de notcias em jornais locais e de circulao estadual, mostrando Sobral como uma cidade que resguarda a histria de uma tradio, ou seja, como j dito h todo um investimento na monumentalizao das edificaes tendo em vista confirmar uma marca de tradio na cidade. O Jornal Municipal de outubro de 2004 acrescenta que diante destes achados, tomou-se a iniciativa de respeitar o traado em forma de ferradura da platia, comparvel a alguns teatros europeus. Desta forma o artigo argumenta que: Circulando a Praa So Joo est a Igreja do Menino Deus, Museu Dom Jos e Casa da Cultura de Sobral que fazem parte do complexo, juntamente com o Teatro So Joo e a praa, considerado central para a poltica de patrimonializao. Foto: site www.sobral.ce.gov.br 140 A descoberta da configurao antiga do teatro, que remete a um grande avano para a poca, aumenta a responsabilidade de sua restaurao, pois todos os equipamentos a serem utilizados, alguns dos quais importados, no podem estar proporcionalmente em nvel inferior aos utilizados no sculo XIX. Esse teatro, sem dvida, um marco da vanguarda sobralense e dentro desta perspectiva deve ser conduzida a sua restaurao... um monumento de grande simbologia e significado para a histria e vida da sociedade sobralense. (Jornal Municipal, outubro de 2004). O Teatro So Joo, como informa um artigo de Nonato Costa Junior no Correio da Semana de primeiro e sete de janeiro de 2005, j era tombado pelo decreto lei 16.237 de 30/11/1983, antecipando o movimento de monumentalizao do espao urbano da cidade. Segundo o que informa o artigo: Juntamente com o Teatro Jos de Alencar, em Fortaleza, e com o Teatro da Ribeira dos Ics, o Teatro So Joo forma a trade dos teatros- monumentos existentes no Cear. No dia 3 de novembro de 1875, foi lanada sua pedra fundamental, antecipando-se em 25 anos fundao do Teatro Jos de Alencar. Sua inaugurao ocorreu em 26 de setembro de 1880, com a comdia drama A Honra de um taverneiro de Correia Vasquez, seguida da comdia Meia hora de cinismo, de Jos Joaquim da Frana Jnior, ambas apresentadas por artistas amadores sobralenses; demorando cinco anos em virtude das dificuldades decorrentes da seca que abalou nosso estado nos anos de 1877 a 1879[grifo e negrito do autor] (jornal Correio da Semana, coluna Painel Cultural de 1 e 7 de janeiro de 2005). O artigo tambm informa que no perodo entre 1920 at meados da dcada de 1960, o teatro passou a exibir sesses de cinema, sendo denominado de Cine Teatro So Joo, fato que o autor lamenta pela no participao da cidade no desenvolvimento do teatro neste perodo. Passou tambm por uma reforma em 1973 no bicentenrio da cidade. Faz parte de um complexo que inclui o Museu Dom Jos, a Igreja Menino Deus e a Casa de Cultura, sem falar da praa localizada no centro destes equipamentos. Dia 29 de dezembro foi reinaugurado com um show do artista Belquior, que nasceu em Sobral, com a presena do Ministro da Cultura Gilberto Gil que tambm cantou algumas msicas. Logo aps ocorreu a apresentao da pea Esperando Godot de Samuel Beckeett com adaptao de Chico Expedito, que reconhecida como resultado de uma primeira ao na rea de artes cnicas da ECCOA (Escola de Cultura, Comunicao, Ofcios e Artes) de Sobral. O artigo de Nonato Costa enfatiza que: 141 Tal iniciativa de retorno s atividades teatrais uma necessidade de resgate da patrimonial cultura sobralense, que no sculo passado no teve seus direitos devidamente efetivados. Agora, na qualidade de Patrimnio Cultural Nacional que nossa cidade conquistou, cabe a ns preservar e utilizar a riqueza da bela cultura sobralense em prol do nosso desenvolvimento humano [grifo e negrito do autor] (jornal Correio da Semana, coluna Painel Cultural de 1 e 7 de janeiro de 2005). Era queixa corrente na cidade a demora na reinaugurao do teatro, o que faz lembrar a demora no seu nascimento no final do sculo XIX. Outra coincidncia foi a retomada de suas atividades com artistas locais no seu palco principal. Porm, estas coincidncias ganham outros contornos, adaptados ao tempo monumental implementado pela administrao municipal, cruzando com outras aes pblicas como a da formao cultural, quando se reinicia as atividades teatrais com egressos dos cursos da ECCOA. Porm, a definio destas intervenes, modificaes e restauraes no centro no um ponto pacfico, mesmo dentre aqueles que se mostram admiradores da administrao Cid Gomes. A inaugurao da Praa de Cuba que abriga o antigo Place Club, celebrado local de antigas festas da elite sobralense, onde hoje funciona a Centro de Lnguas Estrangeiras direcionado aos estudantes mais pobres da cidade, um exemplo disso. Ela foi inaugurada em substituio da conhecida pela populao Praa da Meruca. At meados de outubro de 2001 esta praa abrigava uma feira de roupas, CDs e equipamentos eletrnicos, conhecida por alguns como shopping cho. Ela ocupava toda a extenso da praa. Aps esta data, os feirantes foram transferidos para a parte superior do Mercado Central Chagas Barreto, tambm no centro da cidade. Segundo o que anuncia o Jornal Municipal de 27 de novembro de 2001: O prefeito Cid Gomes inaugurou, na parte superior do Mercado Central Chagas Barreto, um amplo e moderno shopping de feirantes, resolvendo uma problemtica antiga de desafogar o trnsito no Centro da Cidade e tambm de encontrar um lugar digno para os que sobrevivem da realizao de feiras... Inicialmente 423 feirantes, que tinham pontos de venda na Praa da Meruoca e nas ruas Viriato de Medeiros/ Desembargador Moreira da Rocha esto ocupando, desde o dia 22, uma rea construda de 4.510m, em completa estrutura de metal, piso industrial, rampas, banheiros e boxes confeccionados com material de alta durabilidade(Jornal Municipal, 27 de novembro de 2001). O shopping de feirantes parece ter uma dupla funo na narrativa da 142 municipalidade: desafogar o trnsito da cidade, dando uma melhor qualidade de vida para pedestres, donos de carros e feirantes e modernizar a feira que sai do cho e passa para a parte superior do mercado, substituindo as antigas bancas de madeira por outras de metal. Aps esta iniciativa, o projeto que apareceu para esta praa, era o de fazer uma homenagem a Cuba, particularmente a Jos Marti. Um monumento foi edificado no centro da praa com alguns dizeres do pr-revolucionrio cubano. A inaugurao foi em 12 dezembro de 2004, com um show do cantor nacionalmente conhecido: Leonardo 50 . Muito antes da inaugurao, ainda no final do ano de 2003, Cleiton Medeiros, entrevistado para esta pesquisa, aqui j apresentado, chegou a escrever um artigo criticando a iniciativa da municipalidade em mudar o nome e o motivo da homenagem da praa, antes, oficialmente reconhecida como Praa General Tibrcio. Segundo ele, ... o prefeito Cid Gomes tem um projeto de transformar a praa General Tibcio, a popular praa da Meruoca em praa de Cuba, em homenagem a um ditador sanguinrio, criminoso, perverso. Talvez o prefeito tenha conseguido no sei o que... porque Cuba no tem nada. Depois que acabou o comunismo Cuba est falida, no tem nem dinheiro para fazer investimento nem l, como que ele vai investir noutra regio, noutro pas. Ento no sei o que deu na cabea do Cid homenagear a terra do Fidel Castro(...)ento eu fui contundente, inclusive o ttulo eu botei para dar uma chamada: Sobral desonra general e eu j acionei o ministrio do exrcito pedindo currculo do general Tibrcio, eu j acionei a terra do general Tibrcio que Viosa do Cear. A secretria de cultura e turismo de Viosa j me mandou o currculo para que a gente possa no permitir que o Cid faa uma bobagem desse tamanho, denegrir um homem que veio para Sobral, que estudou em Sobral, que aprendeu a profisso em Sobral, que veio a Sobral, de Fortaleza a Sobral... de Fortaleza a Sobral a cavalo e por deferncia... no era nem a terra dele, por deferncia a essa terra, hoje ceda espao para um pas comunista [sic] (Entrevista realizada pelo pesquisador com Cleiton Medeiros em 11 de setembro de 2003). Ele conta que sua matria teve repercusso at em Braslia, no Exrcito, e em
50 Esta inaugurao foi inclusive data e local de uma tragdia, pois um atirador baleou e matou um jovem que nem sequer era alvo dele. Tambm acertou mais duas pessoas, sem acertar o seu alvo. Este fato repercutiu de forma a servir como motivo de qualificao de eventos posteriores como a inaugurao do Boulevard do Arco do Triunfo onde aconteceu o show da banda de forr Limo com Mel. Era comum ouvir as pessoas falarem que no dia 21 de dezembro de 2004, data da inaugurao do espao, ocorreria o show do Limo com bala, uma explcita aluso ao ocorrido na inaugurao da praa. Inclusive, por conta do incidente na praa, a segurana foi reforada na inaugurao do Boulevard com detectores de metais que foram usados nas entradas das ruas que no foram fechadas. Nas outras ruas a guarda municipal no permitia a entrada nem de veculos, nem de pessoas. Portanto, longas filas se formaram para que fosse feita a revista de armas nas pessoas que chegavam. 143 Fortaleza o Jornalista Temstocles de Castro 51 apoiou sua iniciativa escrevendo um artigo com o mesmo contedo crtico ao prefeito sobralense. Um outro artigo, agora do professor da UVA Francisco de Assis Guedes Barros, intitulado Praa de Cuba, homenagem merecida, tece elogios iniciativa do prefeito dizendo que: Nada, nem a pior miopia poltica, que se alimenta com o rancoroso e deliberado desconhecimento, pode ignorar o fenmeno poltico e social que envolve essa pequena ilha do Caribe... Sejam quais forem os aspectos focalizados, contudo, estes no invalidam as relevantes conquistas do povo cubano, reconhecidas por todo mundo civilizado que para ali aflui em busca de tratamentos mdicos altamente especializados ou em busca de referncias na rea de educao e de muitas outras de carter social e pblico... Para a grande maioria do Brasil real, que precisa de cuidados pblicos e para aqueles que procuram no se enganar pelo desconhecimento e pelo preconceito, nada mais justo. Sem intimidaes, parabns Cuba, parabns Sobral! (jornal Expresso do Norte, 2 a 8 de outubro de 2004). Um outro depoimento significativo tambm faz uma crtica, no s a esta obra mais as demais que fazem parte da estetizao e embelezamento da cidade. o artigo do Dr.Azevedo, no Jornal Especial Sobral 231 Anos, que saiu em comemorao ao aniversrio da cidade em 5 de julho de 2004. Ele comenta sobre a qualidade discutvel, as vezes desrespeitosa e sempre superficial das obras implementadas, comparvel a uma maquiagem. A primeira criticada a Praa de Cuba. Ele escreve como se estivesse falando com a cidade denominada Princesa. Diz ele que: Tu foste tombada pelo patrimnio histrico nacional. Vou repetir: Sobral, princesa, tombada pelo patrimnio histrico nacional. De repente, aps uma viagem de lazer e turismo de teu prncipe Cuba, se resolve esquecer o General Tibrcio, heri da guerra do Paraguai, justamente homenageado emprestando seu nome a uma praa da cidade. E a ela vira praa de Cuba. Sua maquiagem vai ficar linda, eu vi o projeto nas mos de seu arquiteto. Quanto ao nosso patrimnio histrico... Menos mal que v se erguer ali um busto de Jos Marti, este tambm um heri, s que da independncia da ilha de Fidel. Menos mal, porque antes da viagem Cuba houve um passeio Espanha e o projeto inicial era trocar o nosso heri general (filho de Viosa) por alguns touros e toureiros annimos. Ol!... Pericentral, beira-
51 Colunista do Jornal Dirio do Nordeste notoriamente conhecido por seus rompantes anti-socialistas ou anti- comunistas. Em vrios de seus artigos sugere uma defesa do que aconteceu durante o perodo que os militares governaram o Brasil aps 1964. 144 rio, margem esquerda, parque da cidade, etc; so obras e mais obras, todas faranicas. Falam por a, princesa, que at outubro, at o fim da campanha eleitoral, vais ganhar pelo menos mais 10 presentes. No te animes, no entanto, com a qualidade deles. No vs (e ns tambm) tua malha asfaltica, que mais parece comprimido de Sorrisal ( o novo!), se desmanchando a cada pingo dgua? E a beira-rio, que linda! No, no estou ironizando, ela linda mesma, mas foi construda no margem e sim dentro do rio. Resultado: se chover, troca de nome para Av. Subaqutica. No vistes a margem direita do teu rio, princesa, to pobre e esquecida? Sers que tens uma face rica que deve sempre estar bela e maquiada e outra pobre que no merece um pozinho, um hmel ou baton? (jornal Especial Sobral 231 Anos, 5 de julho de 2004). A tenso entre os depoimentos parece estar em campos distintos. Enquanto Cleiton Medeiros centra ateno na valorizao do local, exaltada pela sua averso prticas polticas, que julga autoritrias por parte do governante cubano, o professor Guedes exalta as dimenses que refletem o campo das polticas pblicas e da formao tcnica que possa servir de exemplo para a realidade local. J Dr. Azevedo, critica a priorizao de investimentos e a desvalorizao do local, esquecendo, portanto, o restante da cidade, em que vive a maioria dos pobres. O amor pela cidade e o exemplo de uma pessoa que apesar de no ter nascido em Sobral, se apaixonou por ela, e ocupa um cargo de prestgio, parece ser merecedor de uma homenagem bvia para o articulista Cleiton Medeiros, devendo ser preservada. J na narrativa do professor Guedes, a opo por Sobral, ele a arroga para si quando diz: Como brasileiro e hoje tambm sobralense por opo, e tambm como conhecedor de administrao e polticas pblicas, reas as quais dedico parte importante de minha vida, atesto o acerto da homenagem (jornal Expresso do Norte, 2 a 8 de outubro de 2004). Portanto, arrogado de sua autoridade tcnica no campo da administrao pblica, intercalada com sua opo por ser sobralense, o articulista aprova a venerao por este pas latino. Cleiton Medeiros, tambm fez opo por esta cidade, mas acrescenta a ndole sanguinria da administrao pblica de Cuba como forma de denegrir a imagem da praa. J Dr. Azevedo pensa na efemeridade desta e de outras intervenes, ressaltando a necessidade de polticas que possam dar uma melhor qualidade de vida para todos concluindo que: Ano que vem fars 232 anos. Ainda estars vendo urso de gola? Ou te lanars para vos nem to altos assim, e quem sabe, de rumo incerto? A 145 serenidade, a justia social, a paz e a resoluo dos teus problemas mais profundos talvez no encontres por a. Resta a ns te presentear com melhores oferendas que te ajudem a ser feliz e bela por inteiro, e com isso no envelheas apenas bem maquiada (jornal Especial Sobral 231 Anos, 5 de julho de 2004). Porm, apesar destas tenses a praa foi inaugurada. Penso que qualquer cidade constitui-se em um complexo que vai alm das intenes e projetos de um poder tcnico- burocrtico. Sobral no uma exceo. O poder pblico elabora e efetiva uma vontade de melhor ver a cidade para poder control-la. Para tanto representa uma cidade em perspectiva, observada por um olhar, que inventa uma imagem elaborada do alto. A narrativa produzida na leitura da cidade a partir desta perspectiva constri uma "cidade- panorama", um espectro terico e visual que desconhece os entrelaamentos dos comportamentos e dos usos dos habitantes no dia-a-dia (Certeau, l994). Destaca partes consideradas significativas como os equipamentos ao redor da Praa So Joo (Teatro, Museu e Igreja Menino Deus), Museu do Eclipse, Centro de Lnguas Estrangeiras articulado com a Praa de Cuba, Casares antigos selecionados como os de inspirao Art Nouveau, Colgio SantAnna, Edificaes ao redor da Praa da Igreja Matriz como a Cmara do Vereadores, dentre outros e esquece as prticas recorrentes e cotidianas das pessoas nestes e em outros espaos no selecionados como destaque. Acontece que esta imagem do alto, apesar de sua aparncia tcnica, no nada mais do que uma verso ou uma forma particular de entender e ver a cidade, o que acaba fazendo das obras uma expresso de sua face e de suas vontades, no somente tcnicas, mas tambm subjetivas. Portanto, h uma capitalizao poltica na efetivao das obras e inauguraes por parte da faco ancorada no nome de Cid Gomes no sentido de enfatizar a imagem de moderno, competente, interessado pela cidade como nenhum outro e respeitador da tradio local. Essa imagem estimula discursos e servem como base para intervenes diretas no espao urbano, principalmente o centro da cidade, higienizando e embelezando as edificaes e equipamentos, assim como organizando e controlando percursos dos habitantes. O Becco do Cotovelo outro exemplo para ilustrar o que se fala. Vale a pena aprofundar mais estes registros documentais da memria sobre os espaos construdos para legitimar uma forma de ver e entender a cidade, passeando mais pelo centro tombado e analisando as intervenes realizadas pela municipalidade tendo em 146 vista a implementao de uma poltica de monumentalizao. Logicamente minhas afeces com o espao urbano iro conduzir minha anlise, sem deixar de lado o distanciamento necessrio para o pesquisador. Por isso comeo com o local do centro que primeiro me chamou ateno em Sobral que foi o Becco do Cotovelo. Quando vim morar em Sobral em 1995, um lugar me chamou ateno na cidade. No por sua beleza, mas por caracterizar-se como o ponto onde todas as informaes poderiam ser obtidas: o Becco do Cotovelo. Costumava andar pela cidade, principalmente pelo centro, por ser um local aglutinador de servios imprescindveis para todos os moradores da cidade, como agncias bancrias, comrcio, sede de instituies governamentais, dentre outros servios, era o local que mais freqentava. O Becco do Cotovelo uma pequena ruela onde no permitida a passagem de carros, que liga duas ruas bem movimentadas da cidade, e fica exatamente em um local do centro, aglutinando a maior parte dos equipamentos que prestam servios bancrios e comerciais. Cheguei a apresentar um projeto de pesquisa para o Mestrado em Sociologia da Univesidade Federal do Cear que visava compreender a dinmica cotidiana do local. Percebi que as narrativas que apareciam no Becco abordavam questes referentes a outros marcos espaciais e Becco do Cotovelo durante a manh. Foto: produzida pelo pesquisador. 147 histrias que iam alm do que acontecia naquela pequena ruela. Isto fez com que meus interesses de pesquisa fossem alm de uma descrio etnogrfica daquele local. Sua autonomia marcada pela existncia de um Prefeito que define as aes, intervenes, e manifestaes naquele espao, foram motivos de minha curiosidade. O Prefeito, na verdade foi o grande articulador da Associao dos Amigos do Becco do Cotovelo (AABC) que teve sua primeira reunio registrada em ata no dia 12 de agosto de 1993 52 . prefeito vitalcio que tem como seu vice, tambm reconhecido nesta mesma reunio inaugural, Francisco Prado, ex-Secretrio de Cultura na gesto do prefeito Aldenor Faanha Jnior (1993/1996). Expedito Vasconcelos, o prefeito do Becco, dono do Caf Jaibaras que fica na esquina com a rua Ernesto Deocleciano, onde, cotidianamente, vrias pessoas passam ou param para conversar, ou ficam, no intuito de saber as novidades. O Becco faz a ligao da praa Jos Sabia com a rua Ernesto Deocleciano onde funciona a maioria dos bancos. Com base nas pistas encontradas em obras que versam sobre a histria da cidade 53 , percebe-se que ele surge na poca do antigo mercado central, por volta de 1820, localizado em rea onde hoje se encontra a praa Jos Sabia. Era ponto de passagem do ncleo urbano localizado ao redor da igreja do Rosrio e o mercado. A ruela foi acompanhando as construes irregulares com relao a elevao e ao traado, formando um arco, que d origem ao seu nome, Becco do Cotovelo, que em 1842 passou a ser componente do mapa oficial da cidade. O movimento intenso, gerado pelo mercado, favoreceu o surgimento dos primeiros bares, criando um espao de sociabilidade privilegiado para quem passava pelo local. Por volta de 1940 a mudana do mercado para as proximidades do cemitrio So Jos, no afetou em muito o movimento intenso no Becco, pois j havia se cristalizado o lugar como ponto que centralizava servios e comrcio. At a mudana do mercado, o Becco no passava de uma pequena rua, com caladas minsculas onde as pessoas passavam a cavalo ou p. Em 1945, foi feita a primeira reforma autorizada pelo ento prefeito Joo Melo, pavimentando-se a rua com concreto. Esta reforma ainda marca o centro da cidade, principalmente a avenida Ernerto Deocleciano que preserva este tipo de pavimentao.
52 Como leitura etnogrfica mais detalhada sobre o Becco do Cotovelo em Sobral recomendo Freitas, 2000. 53 Cf. Frota, D. Jos Tupinamb da, 1995. Ou ainda, MontAlverne Giro e Soares, 1997. 148 Em 1970, a mudana refere-se ao nome que passou a ser travessa do Xerez indo at a Fbrica de Cimento. Atravs da Cmara Jnior de Sobral, Expedito Vasconcelos, atual e eterno Prefeito do Becco, solicitou e conseguiu a volta do antigo nome. Contemporaneamente, o caminho que se estende at a Fbrica de Cimento tem quatro nomes na seguinte ordem: Becco do Cotovelo, Travessa do Xerez, Rua Idelfonso Cavalcante e Rua Hermnio de Morais. o "prefeito do "Becco", e no a Prefeitura da Cidade, que define quem deve negociar ou abrir um ponto comercial l. Prefeitura Municipal cabe referendar tais decises 54 . A Associao dos Amigos do "Becco" do Cotovelo (AABC) formada, eminentemente, por poetas, alguns polticos, jornalistas 55 , advogados, membros do Rotary Club, Lions, mdicos, intelectuais, romancistas e, principalmente, os comerciantes integrantes desse espao. Segundo Chico Prado e Expedito Vasconcelos, membros da AABC, o "Becco" constitui-se num espao de socializao de interesses relativos poltica, moral, aos "bons costumes", s notcias e s relaes econmico-financeiras particulares (emprstimos entre indivduos, apostas, etc.), alm de ser um canal de comunicao, principalmente para os comerciantes ali situados, com o poder pblico municipal. Neste sentido funciona como centro aglutinador de prticas e interesses diversos. Representantes de diversas categorias profissionais e entidades de classe utilizam-se da peculiaridade do local para apresentar seus projetos e obras, assim como para tentar perceber a "temperatura" da cidade em relao a estes. Um exemplo disto a manifestao realizada por um agricultor que ficou com raiva quando soube que jumentos poderiam ser abatidos e a carne comercializada para pases como Japo, Holanda e Blgica. Segundo um artigo publicado na Tribuna Regional:
54 Essas informaes foram reafirmadas pelo atual prefeito do Becco, o Sr. Expedito Vasconcelos e pelo atual vice-prefeito o Sr. Chico Prado, Secretrio de Cultura do Municpio do ex-prefeito da cidade Aldenor Junior, at a posse em janeiro de 1997, do prefeito eleito Cid Gomes. Ele, assim como Expedito Vasconcelos, fizeram questo de informar as dimenses fsicas exatas, o ano de criao e a idade daquele espao, revelando um papel de reprodutor da importncia simblica do local na histria da Cidade. Segundo eles, aquele local foi criado com este nome em 19 de outubro de 1842, completando, no ano de 1998, 196 anos de existncia. Tem 5,32 metros de largura e 72,90 metros de extenso. O nome foi dado pelo seu formato de cotovelo. A informao sobre a data de criao do espao confirmada por Frota (1995:449). O nome Becco com dois cs denota um interesse de preservar uma imagem do local como tradicional para a cidade, pois no tempo em que foi criado se escrevia desta forma. 55 Boa parte dos jornalistas associados so da ACEJI, Associao Cearense dos Jornalistas do Interior. O prprio Expedito Vasconcelos faz parte desta associao. 149 Para protestar contra a chacina, na sexta-feira 7, o agricultor Francisco Mendes (69), levou seu jumento ao Becco do Cotovelo e conseguiu conquistar alguns simpatizantes da causa. T certo que o animal perdeu o valor para a motocicleta, mas no o caso de matar o bicho pra comer, desabafou Francisco Mendes, que despertou a ateno de curiosos (jornal Tribuna Regional, 8 a 14 de maio de 2004). Entretanto, a manifestao no provocou consenso sobre a questo. Como mostra os depoimentos registrados no artigo: Para o agropecuarista Paulo Passos Dias (65), que se encontrava no Becco do Cotovelo, o rumo do jumento, hoje, tem que ser o abate. Porque a profisso dele foi extinta. O jumento est sem rumo sem serventia, lamentou Paulo Dias, lembrando que enquanto um jumento transporta apenas entre 20 e 100 quilos de carga, um veculo motorizado pode carregar at 10 toneladas, com uma velocidade sem comparao. Perguntado se comeria carne de jumento, ele diz: depende. Se os outros comessem, eu tambm comeria. Inclusive aqui tem cidado que j comeu carne de jumento. Dizem que uma carne muito gostosa e muito macia, informa o agropecuarista... J o aposentado Joo Linhares Neto (70), opina que o jumento um animal sagrado e precisa ser preservado. Agora, s no comeu jumento quem nunca comeu carne do sul, que aqui todo armazm tem, diz Joo Linhares, para quem o abate de jumento um caso de se estranhar. Porque isso nunca aconteceu na nossa regio. E tambm tem o padre Antnio Vieira, que diz que o jumento nosso irmo. Eu concordo com ele. Sou contra matar o animal, porque os jumentos precisam ser preservados, finaliza o aposentado (jornal Tribuna Regional, 8 a 14 de maio de 2004). Segundo o artigo, a manifestao ecoou nas dependncias da Cmara dos Vereadores que chegou a votar um requerimento do vereador Rodolfo Baslio (PPS), que se mostrava muito preocupado com a extino da espcie, solicitando uma rigorosa fiscalizao do IBAMA. Alm de inusitados manifestos dos distintos moradores de Sobral, acontecem tambm manifestos mais institucionalizados como programas na rea de sade da prefeitura. Porm, o que marca bastante o espao do Becco a poca da campanha eleitoral, principalmente a municipal quando a disputa por este espao acirrada e geralmente cria conflitos. A "prefeitura do "Becco"", desde a criao da AABC, sempre teve em vista um "embelezamento" e "modernizao" do lugar que j havia passado por reformas durante administraes anteriores, como j dito, mas precisava de uma que causasse impacto maior naquele que visitasse o local, ressaltando sua importncia e peculiaridade na cidade. Este 150 anseio foi realizado efetivamente, segundo o discurso de Expedito, na administrao Cid Gomes (1996-2000). A obra foi finalizada no incio de 1999, e ocorreu atravs da aplicao de estratgias e tcnicas para embelezamento e higienizao, inspiradas, dentre outras, pela engenharia e pela arquitetura, exercendo um controle maior na dimenso inusitada e incerta das "artes de fazer" o cotidiano (Certeau; 1994) elaboradas pelos "habitantes do "Becco"". Estrategicamente, o poder pblico oficial (Prefeitura da Cidade) e no oficial ("prefeitura" do "Becco") reconhecem publicamente a dimenso da incerteza caracterstica do local e as astcias sutis, e tticas de resistncia ao controle de coisas e pessoas elaborado pelos freqentadores do local. Mas a idia da ordem no se d por vencida, at porque ela domina e foi efetivada com a reforma do "Becco". Com a aplicao das tcnicas de organizao do espao atravs do agenciamento, mudana e homogeneizao das partes ou elementos das edificaes e da dinmica do prprio espao, as duas "prefeituras", estabeleceram princpios, normas e usos de materiais para redimensionar a esttica do "Becco". As fachadas dos estabelecimentos comerciais foram transformadas, tendo em vista um padro esttico que lembra as fachadas das edificaes do sculo passado, com cores leves em tons pastis em azul e amarelo. Para ser coerente com o padro esttico escolhido, a idia, segundo Expedito, era tirar todas as portas de ao que fecham correndo de cima para baixo e colocar grandes portas de madeira. Havia sido firmado um acordo entre todos os comerciantes do local sobre esta questo, mas dada a demora da construtora na concluso da reforma, o "prefeito" temia, na poca da entrevista, que alguns j tivessem desistido. Tambm foi firmado um acordo entre os comerciantes de mudar as placas de sinalizao comercial. Estes dois acordos, at o fechamento desta pesquisa, no tinham sido efetivados. Com as mudanas ocasionadas pela reforma, as pessoas que freqentam o local parecem se dispersar e se acomodar mais por toda a extenso do passeio, tomando lugares antes no ocupados. Os grupos j no se concentram de forma to densa nos cafs Jaibaras e Flora Lanches. Nos cafs ainda se percebem agrupamentos, mas algumas pessoas preferem se 151 acomodar nos bancos construdos no passeio central ao redor dos "cogumelos gigantes", o que no era possvel antes da reforma. Nos horrios de maior fluxo de pessoas, praticamente todos os bancos ficam ocupados. A idia desta arrumao dos bancos ao redor das "rvores metlicas" foi de Expedito. A sua inteno era no atrapalhar o fluxo de transeuntes com bancos nas laterais do passeio, pois desta forma, eles se tornariam barreiras que impediriam a livre passagem de pedestres. Instituies no necessariamente ligadas ao poder pblico local, seja ele o oficial, seja ele a prefeitura do Becco, tambm tentam intervir no espao tendo em vista constituir ou resgatar determinadas prticas tpicas. A Organizao Cordeiro Andrade (OCA) 56 , ONG criada pelo professor Antnio Carlos Dias 57 em 2003, promoveu um evento tendo em vista resgatar prticas antes recorrentes nas noites de quinta-feira no local 58 . Apesar disso, no conseguiu mobilizar o evento para uma quinta-feira. No dia 15 de outubro de 2003, uma quarta-feira, foi realizado o cbito da arte. O panfleto de divulgao explicava que seria um ... movimento ou um antimovimento (sic.), ou um desencontro, ou, quem sabe, um encontro de pessoas que dificilmente se encontram, ou no querem se encontrar. Realmente parecia um encontro de amigos. Todos se conheciam e passavam o microfone de mo em mo para falar sobre o evento, lembrar o dia do professor, ou simplesmente recitar poesia. A ONG tem um trabalho com adolescentes do distrito de Jordo. Estes adolescentes apresentaram uma pea escrita pelo professor Carlos. Alm de poesia e teatro, um grupo de jovens adeptos do movimento Hip Hop mostraram suas msicas. O restante do panfleto anunciava: O objetivo ... Alguns dizem que ser a revitalizao noturna do Becco do Cotovelo. Outros pensam que pode tornar-se uma Sociedade Epicuria sem utopias ou um encontro dos futuros membros da Academia Sobralense dos Esquecidos, ou, quem sabe, diluir-se com o fim do 15 de outubro.
56 Cordeiro Andrade foi um escritor nascido na cidade de Sobral que, segundo o professor Carlos, estava meio esquecido pelos sobralenses apesar da qualidade de sua obra. A ONG tem um projeto piloto de arte-educao no distrito de Jordo com crianas pobres. Os trabalhos das crianas foram apresentados no dia 15 de outubro de 2003 no Becco do Cotovelo no evento denominado pela OCA de cbito da arte. 57 Professor do colgio privado de ensino fundamental e mdio Luciano Feijo. Esta escola uma das mais freqentadas pelos filhos das famlias de maiores recursos financeiros, no s de Sobral, mas de vrias cidades da regio. 58 Aqui me refiro quinta-sem-lei, movimento presente na cidade de Sobral at o final do ano 2000, quando as pessoas elegiam a quinta-feira como dia oficial da farra na cidade. O Becco do Cotovelo at ento era o local mais freqentado neste dia. Cf. Freitas, 2000. 152 Existem os que defendem, que ser o palco dos despalcados, para outros, uma tribuna social para os destribunados marginais. Portanto, estaremos l. Eu, quem sabe! Voc, quem sabe e alguns outros, quem sabe! Um abrao! OCA. Parece que alguns objetivos foram cumpridos, pelo menos os referentes ao evento em si. S que com um detalhe: os despalcados no tiveram palco porque no existia palco. Uma das lanchonetes, nico estabelecimento aberto, anunciado pelo professor Carlos, animador do evento, como parceiro da ONG, servia os amigos e transeuntes que passavam e ficavam. Uma grande mesa abrigava os convidados ilustres. As apresentaes sempre se voltavam para ela. Somente durante o discurso do professor Carlos fiquei sabendo que Cordeiro de Andrade fora um escritor sobralense. Um dos objetivos da OCA, reeditar os trabalhos do escritor. Este, at o fechamento desta pesquisa, foi o nico evento com fim de revitalizao noturna do Becco, o que parece no ter obtido muito xito por parte dos integrantes da OCA, talvez por conta de ter sido o nico e no ter continuidade. A idia difundida cotidianamente de que no Becco tudo acontece, o espao do inusitado que tenta ser regido por processos de regularizao de atitudes, disposies e prticas, mas que, ao mesmo tempo, tende a institucionalizar a idia do extraordinrio e do esquisito. No percebo descontrole nas manifestaes que acontecem no local, ao contrrio, h limites impostos por regulaes morais como o ditado S no vem ao Beco (sic) quem tem rabo de palha, ou seja, como se o local fosse uma sentinela de boa moral. Ao mesmo tempo, um espao demarcado como vitrine para se ver e ser visto. Neste sentido, h uma tenso entre duas verses narrativas presentes no espao: a de que local de fofoca e a verso de Expedito Vasconcelos que nega a anterior, dizendo que no existe fofoca, mas sim, notcias que chegam ao local e que so disponibilizadas a todos para serem socializadas. O registro enquanto notcia ou informao permite um controle e filtragem do que dito, dando sensao de segurana. J a fofoca no permite nenhum tipo de controle. Neste sentido, concordo com ele quando diz que o Becco no lugar de fofoca. Penso que a fofoca no tem lugar certo, ela aparece em todo lugar, inclusive no Becco. Por 153 isso trs jornais locais tm colunas que sugerem notcias originrias ou difundidas por este espao que so: a coluna Bab-do-Becco de Tupinamb Marques no jornal Expresso do Norte, a Becco do Cotovelo de Expedito Vasconcelos do jornal O Noroeste e a coluna Temperatura do Becco do jornal Tribuna Regional. Este espao social peculiar tambm reproduz movimentos, representaes e atitudes mais amplas como a que qualificam cidade a forte influncia estrangeira, denominando-a de United States of Sobral. Neste sentido, no final de 2004, um mdico freqentador do local sugeriu a mudana do nome do Becco do Cotovelo para Elbow Street, achando que seria o equivalente em ingls para o nome do local. Justificava que em decorrncia de morar no United States of Sobral, nada mais justo que o nome do corao da cidade fosse em ingls. Acontece que Street em ingls no se traduz como beco, o que s foi notado depois de se criar um movimento de inaugurao da implantao da placa, que foi noticiado pela emissora de televiso estadual Verdes Mares, filiada a Rede Globo nacional, que chegou a solicitar uma explicao a um especialista do porqu da influncia estrangeira na cidade. Apesar disso, a antiga placa ficou junto a nova. Alm disso, ficou no ar a promessa de mudar novamente o nome, agora para elbow lane, que seria mais prximo do equivalente em portugus. Sobre esta tentativa de encontrar um nome adequado s exigncias de United States of Sobral, dentre outros acontecimento j descrito aqui, a coluna temperatura no Becco do jornal Tribuna Regional diz o seguinte: A temperatura do Becco elevou-se depois que o secretrio de Desenvolvimento Urbano e a Telemar asseguraram que o logradouro ter de volta seus telefones pblicos. Pode ser o fim de uma novela enfadonha, tal qual o prprio nome da via da fofoca, que todo dia recebe sugesto de nomes internacionalizados, todavia sem nenhum deles est sendo seguro como certo. Perguntemos, pois, ao jumento, que esta semana usou o parlatrio do Becco para se defender contra o abatedouro que est sendo instalado no municpio de Santa Quitria (jornal Tribuna Regional, 8 a 14 de maio de 2004: pg.2). Diante destas prticas de espao registradas, percebo dois movimentos que se complementam apesar de no estarem ancorados nas mesmas bases. Um tem como princpio a tentativa de urbanizao nos moldes das grandes cidades, aplicando atravs de polticas pblicas, tcnicas peculiares ao urbanismo, arquitetura e engenharia, no sentido de 154 criar uma imagem de cidade higienizada, notvel, que se distingue por qualidades apuradas pelo bom gosto de um cidado genrico denominado sobralense enquanto civilizado, nobre e, ao mesmo tempo, respeitoso diante da tradio. Por outro lado, respeitando estes princpios, percebo no Becco prticas cotidianas acionadas no sentido de dar ao lugar independncia e centralidade na cidade, porm, reprodutora de imagens gerais produzidas pelo movimento tecnocrtico e poltico que administra a cidade. sobre isso que quero centrar ateno agora.
3.4 O centro monumento como mediao de relaes e ajustes.
Analisando o caso de Sobral, principalmente o centro, lembro das reflexes de Magnani (2002) quando pensa as tendncias terico-metodolgicas do campo das cincias humanas. Ele diz que percebe nos inmeros trabalhos no contexto urbano uma tendncia a entender a cidade atravs de dois plos: um que enfatiza os aspectos desagregadores do processo de urbanizao, e outro que ressalta uma deslumbrante "sucesso de imagens" sobrepostas ou conflitivas, assim como redes e pontos de encontro virtuais meio anedticos e dispersos. Uma produz uma imagem de caos "real" fruto do "capitalismo selvagem", e a outra um "caos semiolgico", mostrando um sistema complexo e polifnico de signos e significados identificados a um "capitalismo tardio". Magnani (2002) ressalta que as duas tendncias levam a concluses semelhantes no mbito da cultura urbana: desterritorializao espacial, "evitao de contatos", confinamento em ambientes restritos, violncia, dentre outros aspectos desagregadores e segregadores. Como ressalta o autor, estes esquemas gerais compreendem a cidade como um fenmeno mundial, mas ao mesmo tempo, tm conseqncias que desembocam em movimentos, que tendem a ressaltar uma "marca local distintiva", ou seja, h todo um investimento por parte das polticas pblicas no sentido de criar uma infra-estrutura mnima "tpica" de uma cidade urbanizada nos moldes das grandes cidades mundiais, mas ao mesmo tempo, ela tem que ser diferente para atrair investimentos, mo-de-obra especializada e eventos, um movimento presente tambm em Sobral, principalmente aps o seu tombamento como patrimnio histrico nacional. A partir do tombamento acontecido 155 em 1999, mas que vem sendo pensado e propalado pela prefeitura e pelo IPHAN desde 1997, h todo um investimento em infra-estrutura, tendo em vista equaliz-la s exigncias de um centro urbano "moderno", adequando-a como "lugar de consumo", mas ao mesmo tempo, deve-se investir para um "consumo do lugar", ressaltando particularidades a serem vendidas a quem quiser consumi-las e o tombamento do ncleo urbano serve para este objetivo. As particularidades da Histria da cidade foram amplamente usadas como recurso para tentar construir este modelo urbano ao mesmo tempo peculiar e moderno. Esse investimento acaba repercutindo nos distintos agentes sociais que habitam a cidade, de tal forma que estes comeam a investir nesta perspectiva de modernizao das relaes sociais como o que falo acima em relao ao Becco do Cotovelo e sua imagem como centro difusor de informaes, ao contrrio da imagem de lugar de fofoca. Um outro exemplo claro disso a notcia publicada no jornal O Noroeste de 9 de agosto de 2003, que tem como ttulo: Empresria do sexo lana em Sobral locadora de mulher. Nela o jornalista chama ateno que: As facilidades do mundo moderno aos poucos vo tornando a cidade de Sobral menos provinciana, igualando-a, em alguns aspectos, aos grandes centros do Pas. A ltima novidade, que j no to nova assim, a instalao de uma locadora de mulher, ambiente instalado no baixo meretrcio cuja finalidade facilitar a vida dos tarados, pessoas que no tm coragem de freqentar a zona, mas que fazem qualquer negcio para realizar suas fantasias sexuais, fazendo programas em ambientes mais reservados, inclusive com atendimento em domiclio(jornal O Noroeste, 9 de agosto de 2003:11A). A matria afirma que o bordel, que j existia, teve que se adaptar as tendncias do mercado. O local de atendimento definido pelo cliente que solicita pelo telefone. Independente das implicaes morais e do efeito cmico que pode gerar a leitura desta notcia a um leitor qualquer, o que importa aqui o comprometimento com a idia de modernizao da cidade a que o artigo chama ateno. A idia mostrar que o mundo moderno no est to distante de Sobral. A imagem de moderno construda no cotidiano no consensual, muito menos precisa. Pode gerar conflitos tambm, como o caso da manifestao indignada de Cleiton Medeiros com relao notcia acima. Segundo ele: 156 Sem pretender querer pousar de falso moralista, puritano ou outros adjetivos, confesso-me perplexo com o estardalhao da divulgao que este hebdomadrio deu em primeira pgina, com ilustrao em foto colorida e reportagem de quase uma pgina inteiram da mais degradante quo amoral das atividades comerciais os prostbulos. O que todos leram na edio dia nove passado, bem mostra o que um homem com disfuno sexual e destitudo do senso de pudor a vida e a moral de jovem mulheres, provavelmente procedentes da periferia de Sobral ou cidades de menor porte e induzidas por ganhos fceis, com promessas de ilusrias fantasias sexuais e que esto aptas a satisfazer os extintos bestiais dos tarados portadores de desvios de conduta. Ainda quer fazer crer que sua atividade tem o condo de alavancar Sobral de um inimaginvel provincianismo, projetando assim a bela Princesa do Norte no circuito das cidades-metrpoles. (...) A mulher merece mais respeito, seja ela uma figura de projeo social, financeira e intelectual de alto nvel, ou uma simples messalina. Todas so mulheres, seres humanos e como tal tem o direito de no ser submetida a episdios degradantes por quem quer que seja, principalmente quando o autor dessa situao tambm quer levar a cidade de Sobral, de to puros e honrados exemplos de vida, emanados de Dom Jos Tupinamb da Frota, se transformar numa Sodoma e Gomorra da Zona Norte do Estado do Cear. Desnecessrio lembrar que Dom Jos passou, mas seus conselhos, exemplos e ensinamentos no passaro, sero sempre uma constelao de estrelas a guiar por um bom caminho o seu rebanho de fiis que com tanta dedicao e zelo conduziu por mais de meio sculo (jornal O Noroeste, 16 de agosto de 2003). O articulista finaliza seu texto chamando ateno: Por onde anda os movimentos feministas que dizem propugnar pela independncia e igualdade de direitos da mulher na sociedade! Ser uma conquista feminina exp-las numa locadora de mulheres? (...) Com a palavra as feministas, as organizaes e os movimentos de recuperao moral que propalam a valorizao da mulher. O Ministrio Pblico est a para juridicamente orientar e agir em nome da Lei (jornal O Noroeste, 16 de agosto de 2003). Sem entrar no mrito da questo moral que possa estar expressa nesta narrativa, o que importa entender o que qualifica uma cidade como moderna. Este termo aqui colocado em um campo de tenses, pois o que define seus contornos a questo sexual e suas implicaes com relao ao bom comportamento e os bons costumes. Talvez o que esteja em jogo o que significa estar em um estado de adiantamento cultura, social, corts, bem-educado e civilizado. Enquanto que a reportagem criticada por Cleiton Medeiros coloca a Locadora de Mulher como exemplo para qualificar uma fuga do provincianismo atravs de uma prtica comercial de atendimento em domiclio, 157 facilitando a vida dos tarados, o articulista, criticamente, pensa esta manifestao como expresso no s da desvalorizao da mulher, como do desrespeito tradio ilibada do sobralense atravs do exemplo religioso de Dom Jos 59 . Para ele, portanto, a questo no s moral, social ou humana, como ele prprio qualifica, pois refora dois tipos de preconceito existentes na nossa sociedade: contra a mulher e contra as pessoas mais pobres. Ao mesmo tempo, tambm um problema jurdico, porque argumenta que o agenciamento de mulheres passvel de punies, cobrando um posicionamento do Ministrio Pblico. Enquanto o artigo criticado enfatiza somente a questo das facilidades comerciais propiciadas pelo mundo moderno, o articulista inclui outras dimenses que para ele no podem ser deixadas de lado, complexificando esta noo. No quero crer que a discusso sobre o que ou no moderno tenha sido criada no momento em que a administrao Cid Gomes assume o poder municipal. Penso que este tema seja bem anterior. Mas, nesta administrao em particular, ele colocado de forma enftica, insistente e recorrente, tanto nas narrativas que a qualificam, quanto nas obras implementadas na cidade. Ela ganha contornos genricos, imprecisos, o que facilita diferentes significaes e estmulos nos agentes sociais moradores da cidade, gerando conflitos com relao a sua definio. Sobre a concepo de moderno na gesto de Cid Gomes, um artigo na coluna sobralidade do jornal O Noroeste que chama a ateno da implantao por parte da Prefeitura em parceria com a UVA, do Museu Madi em Sobral (Movimento Abstrao, Dimenso e Inveno) 60 , finalizando com um depoimento de Clodoveu Arruda, Secretrio do Desenvolvimento da Cultura e do Turismo, que diz: O grupo gestor do Madi sobralense est se reunindo periodicamente, tratando dos aspectos legais da transferncia das obras. A Prefeitura vai entrar com as despesas do deslocamento das mesmas e com a construo do Museu. A poltica da parceria a chave do todo o trabalho e do momento que hoje vive a cidade, sinto que o Museu Madi tem muito a ver com o que est acontecendo em Sobral, quando a atual administrao superou as formas tradicionais de organizao e se projetou nacionalmente. Assim so as obras do movimento Madi, baseada na desconstruo da forma
59 A idia do heri Dom Jos ser trabalhada no ltimo captulo. 60 Segundo o que informa o artigo, o Madi um movimento criado na dcada de 40 por artistas europeus e hoje tem a frente o uruguaio Carmelo Ardem Quin. Tem inspirao construtivista e s existe em Dallas (Estados Unidos), em Helsinque (Finlndia) e em Mar Del Plata no Uruguai. 158 tradicional da arte geomtrica, diz orgulhoso Clodoveu Arruda (jornal O Noroeste, 30 de abril de 2004: pg.07). Uma pequena nota no rodap da pgina tambm mostra uma afirmao do secretrio que diz: O artista Carmelo Arde Quin to lcido que resolveu colocar suas obras em Sobral (jornal O Noroeste, 30 de abril de 2004: pg.07). Esta perspectiva geral de qualificao da cidade por parte da tecnocracia da municipalidade, que acaba ganhando nuances e diferenciaes entre diversos atores sociais, chama ateno, dentre outros aspectos, das mudanas estruturais que tornam uma cidade moderna, apesar da impreciso na definio do termo, tratando a cidade "de fora e de longe" como denomina Magnani (2002), deixando de lado os sujeitos sociais e seus agenciamentos cotidianos. Falta "carne", "osso", sentimento e tenses. Isso no quer dizer que esta perspectiva seja inoperante como instrumento de anlise. Ela pode ser o ponto de partida, sendo extremamente til para entender o que acontece em uma cidade como Sobral, por exemplo. O texto do PDDU um exemplo claro da influncia deste tipo de perspectiva. Entretanto, a cidade parece desprovida de "aes", "redes de sociabilidade", atividades inmeras, "pontos de encontro", estilos de vida, conflitos, dentre outros aspectos que do vida e movimento a ela. Penso que isso aparece de forma somente implcita nos documentos at agora citados. Falta um trabalho etnogrfico e uma ateno maior s narrativas de diferentes narradores moradores da cidade. Este trabalho ajuda a lembrar esta dimenso esquecida pelo olhar "de fora e de longe". um "olhar de perto e de dentro", como designa Magnani (2002), que vai alm do "olhar competente" do perito que decide "o que certo e errado", assim como vai alm da perspectiva dos "interesses do poder" que decidem o que conveniente como empreendimento e lucrativo como investimento. Tomo como pressuposto a idia de que a cidade muito mais do que uma estampa que tem a pretenso de representar exatamente ou analogicamente um ser-cidade, seja ela moderna ou tradicional, apesar de esta estampa ser importante referncia para qualquer um de seus habitantes. Fundamentado nas reflexes filosficas de Espinoza (1962), penso que as imagens que temos das coisas, sejam elas diludas no cotidiano, sejam elas objeto-produto-informao elaborados por um saber tecnocrtico, que fundamenta a aplicao de determinadas polticas pblicas, so frutos de afeces. No so puramente resultantes de uma anlise racional. Mesmo estas imagens transformadas em informaes e 159 padronizadas pelas polticas pblicas, processadas e tratadas como essncia mesma do ser- cidade so resultantes de afeces no necessariamente racionais, mas tambm emocionais e formuladas a partir de relaes face-a-face. Em Espinoza, as afeces so efeitos instantneos de uma imagem da coisa sobre o sujeito, o que envolve o afeto. As polticas pblicas generalizam uma imagem resultante de uma afeco constituda no cotidiano, padronizando-a e repassando-a como universal para todos os habitantes simultaneamente, como o caso da idia de patrimnio histrico. Portanto, as afeces individuais servem de fonte para esta construo racional e universalizante. Diante desta reflexo, posso afirmar que os dois processos, o das afeces vividas no cotidiano e o das afetaes racionalizadas e reproduzidas em imagens que pretendem atingir a todos ao mesmo tempo, no so dicotmicas e excludentes, mas se alimentam reciprocamente. Pelo menos o que observei na experincia da pesquisa empreendida em Sobral relativa ao patrimnio histrico. Percebi que so dimenses que se misturam e, em muitos casos, se confundem formando concepes e imagens dinmicas da cidade que esto todo o tempo em tenso. As imagens vividas tm como substrato o indivduo particular. Este destaca elementos especficos do espao urbano e o representa como totalidade, ressaltando peculiaridades decorrentes de afeces vividas em relao com outros, com as coisas e com o ambiente. A imagem racional tem como substrato uma composio racional planejada e organizada por vrios indivduos que utilizam um saber douto produzido na academia para fundamentar seus estudos cientficos da realidade histrica da cidade e para justificar suas atitudes e planos de interveno no espao urbano. Esta imagem racional, fabricada ou industrializada, produzindo um objeto-produto- informao, abre ausncias no continuum urbano total atravs de generalizaes tericas que pretendem ser uma forma de percepo no particular, mas geral como o caso da idia de sobralidade. A relao entre os dois processos, o racional e o vivido, constri significados urbanos a partir de ilhas isoladas que possuem um registro universalizante e, ao mesmo tempo, singularidades aumentadas (Ceteau, 1994), que so pautadas em narrativas face-a-fece cotidianas e resultantes de um contexto relacional que envolve agentes sociais que narram e trocam experincias postas em tenso. Neste movimento aparentemente contraditrio caracterizado por inchaes, diminuies, retricas tericas e racionais, fragmentaes vividas cotidianamente, os 160 sujeitos sociais elaboram culturalmente uma caracterizao espacial com citaes justapostas com buracos, lapsos e aluses a outros espaos urbanos, construindo um conceito dinmico e extremamente diversificado de cidade. H uma mistura confusa de imagens nas falas das pessoas, e os narradores com quem conversei durante estes anos de pesquisa no fogem a isso. Nas narrativas registradas na pesquisa, h tanto imagens influenciadas por aquelas processadas, fabricadas e difundidas pelas polticas pblicas, como imagens extremamente criativas e inesperadas sobre a cidade. Estas imagens se misturam mostrando composies que vo alm do simulacro terico e visual produzido pela poltica de tombamento aplicada em Sobral. Acontece que este processo que tende a legitimar uma imagem como universal, consensual e/ou bvia, como a idia da sobralidade triunfante por exemplo, um recurso que todo e qualquer agente social, agregado a uma rede de relaes ampla, prestigiosa ou no, utiliza para legitimar uma posio social e uma certa forma de entender a realidade, como o caso do Prefeito do Becco do Cotovelo. Percebi na minha experincia de pesquisa, em Sobral, que ser sobralense um movimento ou uma arte, isto , no d para entender a dinmica social da cidade sem levar em considerao as habilidades dos agentes sociais em cinzelar, entalhar ou lavrar sua vida na matria dura de concreto e asfalto organizado no espao. No esculpir da vida urbana, os agentes modelam as prticas que deixam impressas suas maneiras de agir e suas formas de entender o mundo. Desta forma, no se entende a cidade somente como um aglomerado de concreto armado que serve de habitao para as pessoas, mas tambm como o resultado de uma arte que engloba e relaciona vrios conjuntos de elementos como: uma diversidade de regras para dizer ou fazer com acerto o que se deve fazer em diferentes contextos, um conjunto de prescries de um ofcio cotidiano, um conjunto de saberes ou percias em fazer coisas, uma diversidade de expresses de ideais de beleza concretizados em qualquer obra, conjunto de adornos, reunio de formas de uso de objetos, conjunto de uso do corpo nas atividades cotidianas, um conjunto das obras de uma poca, em uma regio ou pas, habilidades, jeitos, maneiras, modos, espertezas, traquinagens, travessuras e astcias cotidianas. 161 Portanto, ser sobralense no um conceito estvel, fixo ou imvel. Os distintos agentes sociais no cotidiano esto constantemente produzindo imagens postas em tenso. Atravs das aes e falas dos habitantes da cidade com quem conversei, percebi isso. Unificar provisoriamente uma imagem e pasteuriz-la, entendendo-a enquanto definitiva e necessria, no peculiar a membros de uma suposta elite como demonstrou minha experincia de pesquisa. At porque diante deste conceito impreciso e genrico abrigado no termo elite, parece no haver consenso entre os indivduos de prestgio social, econmico e poltico que supostamente poderiam compor este segmento social. Porm, algumas imagens produzidas por estes indivduos respeitados socialmente, acabam ganhando uma aura de consenso e conquistam maior visibilidade por causa da posio prestigiosa no meio social, e posse ou maior acesso aos meios de difuso simultnea de imagens como as polticas pblicas e a mdia. o caso da faco poltica associada ao prefeito Cid Gomes. Assim como existem falas de pessoas de prestgio que criam determinadas imagens provisoriamente aceitas pelos diferentes agentes sociais da cidade, existem tambm falas de pessoas oriundas de outros segmentos sociais que esto constantemente disputando e procurando legitimar a validade e a veracidade da imagem por elas criadas. Como pesquisador e morador da cidade, tambm produzo imagens associadas a determinados pressupostos terico-metodolgicos. Outra questo pertinente que Sobral, demograficamente falando, no se compara com Fortaleza, Recife, Salvador, So Paulo ou Rio de Janeiro. Porm, j ocorre nesta cidade mdia do interior cearense um fenmeno comum s grandes metrpoles brasileiras que Alessandri Carlos (2004) denomina de sociedade urbana. Nela j h uma relao entre uma ordem prxima referente a uma peculiaridade da cidade e uma ordem distante referente a uma urbanizao pautada em parmetros de interveno no espao, experimentados por uma ordenao mundializada e recorrente em outras cidades. A busca pelo incessantemente novo, denominado como moderno ou progresso, que no tpico do local, mas um fenmeno mundializado, torna a cidade e sua especificidade instantnea, fugaz e efmera, revelando uma paisagem em constante transformao. Esta a sensao que tive em Sobral: uma cidade com constantes novidades ocasionadas pelas intervenes no espao. Como o centro e o seu entorno o espao com uma quantidade 162 maior de modificaes, esta sensao mais constante. As mudanas ocorridas na zona central causam certo estranhamento e tenso dentre os distintos agentes sociais que compem a cidade. A praa da Meruca e a tenso entre uma verso que defende a atitude da municipalidade e a que a critica um exemplo disso. Acontece, porm, que este movimento de modernizao do espao convive com um outro que parece completar o primeiro: a monumentalizao. As igrejas, as casas, os sobrados, os casares, os museus e o teatro, acham-se misturados com edificaes mais recentes e heterogneas. Portanto, a cidade mostra um ambiente diverso do tradicional. Isto, para a poltica de patriminializao no quer dizer desonra aos monumentos edificados registrados como tradicionais. Ao contrrio, paracem honr-los, pois os colocam como fundo panormico do urbano tido como moderno. Alm disso, a edificaes tradicionais ainda no convivem com um processo de verticalizao das moradias e dos prdios comerciais, como acontece nas grandes metrpoles, fazendo com que suas fachadas ainda tenham um impacto visual considervel. As torres das inmeras Igrejas catlicas ainda dominam o perfil da cidade, justamente porque os prdios que existem no ultrapassam o quarto andar no centro. O contraste talvez se acentue pela reutilizao das edificaes antigas, seguindo as exigncias da renda fundiria, dos regulamentos pblicos e das concepes de uso do espao, que no so mais as mesmas das pocas de suas inauguraes, o que acarreta, por exemplo, que um antigo palcio de festas dos prestigiosos do campo econmico e poltico, se torne um Centro de Lnguas Estrangeiras, com cursos direcionados para os alunos das escolas pblicas que no so necessariamente representantes das classes mais abastadas. As ruas tambm no abrigam os bondes puchados a burro, e os pedestres agora so confinados a minsculos espaos nas bordas das ruas asfaltadas e, algumas delas, antes em mo dupla foram modificadas para atender a um maior fluxo automveis, tornando-se mo nica. H ambigidade com relao ao destino destas edificaes tradicionais: ao mesmo tempo que so entendidas como unidades imobilirias independentes e permutveis, o que tpico dos nossos tempos, h uma necessidade de pedir emprestado a elas um prestgio formal de que se sente falta, razo pela qual h interesses pblicos de preservao de algumas selecionadas e de outras, nem tanto. Desta forma, h uma coexistncia no muito 163 pacfica entre um movimento que torna os edifcios mais ilustres selecionados num museu ao ar livre, e um outro movimento onde as estruturas e instalaes da cidade contempornea so construdas. Acontece que a heterogeneidade da cidade no pode se sustentar sem aura de qualidade e ambiente comuns, nas quais os distintos agentes se identifiquem como se fossem iguais em alguns aspectos. Por isso, h um manejo retrico do tempo e do espao para construir uma idia de pertena comum aos habitantes da cidade. Cria-se uma harmonia que parecia estar perdida. Acontece que este ambiente e este manejo so seletivos e no parecem atingir a todos da mesma forma e ao mesmo tempo, apesar da municipalidade se fazer de um ideal que executa prticas especializadas tecnicamente o que remete a um simulacro de imparcialidade com relao aos interesses econmicos e polticos. A cidade contempornea que tem a capacidade de separar imagens e lembranas dos interesses econmicos, muitas vezes no v finalidade para prticas de preservao, justamente por no haver retorno financeiro nesta atitude. Pelo que venho tentando argumentar com base nas descries at agora realizadas, a administrao Cid Gomes conseguiu manejar este problema, seguindo as diretrizes da poltica de patrimonializao no mbito nacional, quando observa a restaurao e a construo de uma especificidade para o local, tornando-o mercadoria atravs de polticas na rea de turismo, apesar deste ainda ser incipiente, assim como encontrando uma finalidade para os espaos no lazer e na poltica de assistncia social. Desta forma o contraste entre beleza e utilidade amenizado. Entretanto, o centro da cidade tornou-se um espao bem distinto do restante dos bairros perifricos. O que parece que o importante para o centro no s a beleza e a contribuio para a definio de uma verso que vira Histria de Sobral. Mas tambm as transformaes futuras e possveis que as exigncias modernizantes exigem da cidade. O que me leva a crer que a convivncia entre a periferia e o centro no muito fcil, justamente porque o morador da periferia no tem como prtica incorporada o reconhecimento do centro como seu lugar. O centro a rua, a cidade, mas no o bairro. Ou seja, boa parte dos moradores dos bairros populares, por exemplo, no se sente no direito de sentir-se do centro com se estivesse na sua prpria casa. A no ser aqueles que selecionam determinados ambientes que se tornam seu ponto de parada recorrente e o tomam como suas casas como o caso dos freqentadores assduos do Becco do Cotovelo. 164 O fato de ter um prefeito neste local sintomtico deste movimento de no sentimento do centro como uma casa. Para que este espao especfico pudesse fugir deste movimento, teve que se tornar independente do restante do centro, tendo suas prprias polticas pblicas de gesto. Independncia meio ambgua, pois seus amigos sempre lembram que l o corao da cidade. Sem o restante dos rgos, o corao no pode funcionar, por conta disso, h uma necessidade de se construir uma rede de relaes que sustente uma importncia para o local que faz com que todos passem por l e estejam informados do que acontece na cidade. Importncia que no se sustenta por esta imagem de centro de informaes, mas tambm por ser uma porta de entrada pela qual todos que passem por Sobral tm que assinar um livro de autgrafos no Caf Jaibaras, para registrar sua presena na cidade. Os que assinam tambm so fotografados, alguns emoldurados e colocados em local visvel no Caf Jaibaras, como prova de sua presena no Becco. Isso no parece ser distante de uma poltica de patrimonializao, pois por se encontrar no centro transformado em museu ao ar livre, o Becco no pode deixar de incorporar uma prtica corrente em qualquer Museu, que a assinatura de um livro de registro na entrada ou na sada. O problema do contraste com a periferia parece ser motivo de preocupao em dois momentos. Um na j citada transformao de equipamentos para fins de atividades de assistncia social como a ECCOA e o Centro de Lnguas Estrangeiras, outro a elaborao de um Plano Diretor que est preocupado em conciliar a preservao de estruturas e aglomerados de edificaes antigas, selecionadas e registradas como tradicionais, e propor correes de suas carncias com relao s exigncias de uma cidade que deve ser comparvel com qualquer outra nos seus aspectos modernos, globalmente falando. um moderno ainda indefinido, sem preciso conceitual, mas que serve de justificativa para intervenes estticas que no correspondem aos tempos monumentais selecionados e criados pela poltica de patrimonializao. Apesar disso, as pessoas continuam no s usando ou sendo pblico alvo de polticas pblicas, mas tambm praticando o espao. Compreendo, portanto, que as pessoas constroem atravs de suas prticas no espao, um mapa que muitas vezes distinto do convencionado oficialmente pelo governo municipal. As regras de utilizao do espao esto permanentemente sendo elaboradas, dando s ruas, caladas, esquinas, quintais, casas, etc., significados resultantes da conjugao de atividades importantes para os usurios. As 165 regras e normas aplicadas ao uso do espao so construes permanentes, mas ao elaborar esta construo, as prticas tambm estariam constituindo um conjunto de relaes teis a qualquer intrprete, visitante ou no. Um sistema classificatrio dos espaos sociais elaborados pelo intrprete pode ser manipulado e as aplicaes contextuais podem por em xeque sua consistncia. O intrprete do espao trabalha com possibilidades inmeras de experincia sensorial que todo tempo experimenta distintos e complexos tipos de relao social no meio urbano, o que impossibilita uma rija base conceitual que possa ser tida como definitiva. O desafio da interpretao est em conviver com o impondervel, com a insegurana e com a incerteza das relaes mutantes da cidade que, no caso de Sobral, pode variar desde um movimento intenso com fortes marcas de impessoalidade, at movimentos rotineiros e acolhedores de pessoas que passam, so reconhecidas, sentam e conversam. Isso coloca determinadas dificuldades ao pesquisador como, por exemplo, a impossibilidade de dar conta de uma totalidade das prticas cotidianas no espao urbano o que me obriga a fazer selees de alguns aspectos. Outra dificuldade a lida com prticas cotidianas que no so definitivas, apesar de se apresentarem como rotineiras. As pessoas so agentes sociais que esto, criativamente construindo novas prticas assim como revendo atitudes e comportamentos anteriores que com o tempo podem ser avaliadas por estes mesmos agentes como rotineiras. O contexto de situao e a pessoa que classifica a prtica quem vai qualific-la como rotina ou inovao de acordo com seus cdigos, regras e convenincias de avaliao. O centro de Sobral um exemplo dessa dificuldade de interpretao, por resguardar experincias sociais e prticas bastante diversificadas. Centro este que ao contrrio das narrativas expostas no primeiro captulo, que tendem a unificar uma imagem referencial para ele extremamente diversificado, complexo e mutante no que se refere s prticas cotidianas dos seus agentes. Apesar de no parecer, por conta dos tipos de intervenes aplicadas nos dois espaos, este centro tem uma forte ligao com a periferia no que se refere Histria contada para justificar a monumentalizao. Ligao que esquecida por esta poltica especfica. E disso que tratarei no captulo a seguir.
166 4 O bairro como marco de distino e classificao social
4.1 Verso oficial da monumentalizao: onde est o homem comum?
A monumentalizao do centro de Sobral registrada como tradio documentada que versa sobre a Histria da cidade requer de qualquer analista uma reflexo sobre a inteno desta de representar a Histria de todos os sobralenses. A verso contada pela monumentalizao uma histria que tende a ressaltar a especificidade, a independncia, o pioneirismo, a opulncia e conseqentemente a diferena pautada em um perfil de habitante genrico da cidade, comparado com os de outras cidades, principalmente com os de Fortaleza, a capital do estado. A idia de uma histria local peculiar, exaltada e tornada monumento mostra a necessidade desta verso de no ser um mero reflexo da Histria de um pas ou de uma sociedade. A no ser quando estes acontecimentos mais abrangentes ressaltam particularidades locais que glorificam as caractersticas implcitas que se quer passar do modo de ser sobralense. A comprovao emprica da teoria da relatividade de Einstein, fato que faz parte da Histria do conhecimento cientfico mundial torna-se elemento para afamar a histria local, assim como o povoamento de boa parte do serto nordestino em decorrncia da pecuria extensiva vira motivo para ressaltar a origem da cidade. Nestes casos h uma inverso da nfase que parte do global para o local, necessria para contar uma histria cheia de glrias e protagonistas opulentos que ressaltam no uma Histria da cidade como mero reflexo de acontecimentos exteriores e gerais, mas sim, Histrias de personagens e fatos que compem o elenco principal que favorece a construo de acontecimentos merecedores de registro de um grande drama da humanidade no tempo. No h uma afetao da Histria universal na local, e sim, um efeito da participao de personagens e fatos locais, nos acontecimentos que fazem parte da seqncia que compem os livros de Histria estadual, nacional e internacional. Penso que, ao contrrio do que passa a idia da monumentalizao da cidade, a Histria que serve inclusive para justificar qualquer forma de registro para a posteridade, pode deixar de ser um campo especializado e geral para ser composto tambm pelas 167 experincias e prticas do homem comum. Nesse caso, concordo com Veyne (1998) quando ele diz que toda histria uma verso, portanto, a Histria no existe enquanto essncia ontolgica. Penso que no basta registrar um balano geral mediado por uma verso que pretensamente tende a ser a nica possvel, apesar de no ser falsa. O mito da sobralidade triunfante 61 que passa a idia da monumentalizao da cidade, demonstra a verso dos que mandaram e decidiram em Sobral em diferentes tempos. Mostra um espao urbano construdo por pessoas de prestgio social, econmico e poltico inclusive no mbito extralocal. Em decorrncia disso ela serve para ligitimar a posio de quem a usa no rol dos prestigiosos. E a faco ancorada no nome de Cid Gomes sabe muito bem disso. Mas, onde est o homem comum, aquele sem prestgio poltico, econmico ou social nesta verso? Onde esto os outros que no aparecem nos livros de Histria de Sobral? No perodo administrado pela faco aliada ao prefeito Cid Gomes, a urbanizao da cidade de Sobral expressa bem esta verso homogeneizante do sobralense. O homem comum s aparece como usurio de bens e servios relacionados ao turismo, ao lazer, formao e assistncia social, mas no o protagonista principal. Ele coadjuvante, figurante ou pblico alvo de uma trama espacialmente e socialmente organizada para contar uma verso de uma tradio expressa pela monumentalizao, onde cada espao, cada edificao, passa a ser usada pelo homem comum de forma a lembr-lo dos grandes feitos dos heris que j viveram na cidade. Feitos e heris que nem sempre fazem parte de suas memrias e experincias. Todos estes processos relativos formao, cultura, assistncia, ao lazer e ao turismo, direta ou indiretamente, servem para solidificar e tornar documento estas conservas de memria coletiva (Martins, 2002), nas quais os espaos e lugares foram transformados com o tombamento. O centro e seu entorno o lcus privilegiado para o investimento das polticas pblicas neste sentido. O restante faz parte do resto da cidade, que tambm recebe assistncia, mas de outra ordem. Acontece que a verso da histria da monumentalizao contada partindo do centro para a periferia, delimitado inclusive oficialmente pela diviso da cidade em bairros.
61 Cf. Freitas (2000). 168 O centro corresponde ao stio histrico tombado e o seu entorno. O restante dos bairros, alguns ainda conservam algumas edificaes lembradas como importantes para a memria coletiva da cidade, como o caso da sede administrativa da UVA no bairro Betnia; outros so abrigos dos mais abastados economicamente como o caso do Derby Club, de parte do Junco e da Colina, e o restante abriga a grande maioria dos habitantes da cidade, classificados com nomes como subrbio, favela ou ainda bairros populares. Suponho, seguindo e fazendo analogia ao mesmo raciocnio de Jos de Souza Martins (2002), quando pensa a realidade do subrbio de So Paulo, que com o advento da pecuria extensiva na regio dominada economicamente por Sobral, o fazendeiro, representante da opulncia no final do sculo XVIII e incio do XIX no serto do Cear, favorece o florescimento da urbanizao e seu crescimento demogrfico, atravs da prtica da dupla moradia no campo e na cidade. As prticas comerciais foravam o fazendeiro a esta dupla morada. No caso de Sobral, o comerciante e a Igreja tambm favorecem esta urbanizao. Ainda no final do sculo XVIII, a ainda fazenda Caiara concentrava um povoado mais denso de comercializao de gado, o que favoreceu a construo da sede do Curato. Este processo desencadeia nas dcadas seguintes, seguindo o curso do sculo XIX, uma maior disseminao de um saber esttico, artstico e bens de consumo considerados pelos prestigiosos do campo econmico e poltico enquanto requintados e civilizados tanto no campo como na cidade. Desta forma, no h dissimetria entre campo e cidade to grande no que se refere aos hbitos tidos como aprimorados, finos ou requintados pelos prestigiosos. Em algumas obras que falam da histria de Sobral estes hbitos de consumo aparecem como significativos da fineza de um sobralense genrico. MontAlverne Giro & Soares lembram que: O acessos fcil ao que de melhor e mais atual tinha no Velho Mundo em matria de moda, costumes e literatura, atravs de jornais, livros e revistas, fez com que a sociedade sobralense fosse culturalmente mais avanada em relao s demais(MontAlverne Giro & Soares, 1997:29). Mais adiante elas afirmam que: Rica pela pecuria e pelo comrcio, culta pelo intercmbio com centros europeus e, ainda, abenoada pela Igreja, Sobral cresceu e tornou-se portentosa e progressista, gerando um sentimento que no um simples 169 bairrismo, identificado pelo intelectual e poltico Parsifal Barroso como a sobralidade (MontAlverne Giro & Soares, 1997:29) [grifo das autoras]. Como j visto, no incio do sculo XIX o comrcio desencadeado pela pecuria e pelo charque entra em declnio por conta da seca do final do sculo XVIII e da concorrncia com outras regies, e culturas econmicas novas vo surgindo em consrcio tendo como principal expoente o algodo. Com a industrializao no final do sculo XIX onde se tem como representante, por exemplo, a fbrica de tecidos Ernesto Deocleciano, uma das primeiras do estado, a urbanizao se intensifica e ganha outros contornos, sentidos e significados. Esta industrializao intensificada no sculo XX e faz com que a sede do municpio tenha uma mudana nos fundamentos da vida social. Uma parcela dos prestigiosos no precisava mais ter a dupla moradia, campo e cidade, e um crescimento das periferias favorecido pela Vista area da cidade. Pode-se ver a pista de pouso do aeroporto e o Derby Club, Hipdromo da cidade. Ao lado do Hipdromo grandes casas abrigam uma parte da elite econmica da cidade. No final da pista de pouso pode-se perceber a Lagoa da Fazenda, um dos parques urbanos de Sobral. Foto: site www.sobral.ce.gov.br. 170 formao de bairros que passam a abrigar os trabalhadores da indstria. Lembro mais uma vez, que os prestigiosos tambm seguiram este movimento, mas, logicamente, no para os mesmos lugares. Os hbitos de consumo e comportamento considerados pelos prestigiosos moradores da cidade como requintados, passam a se concentrar mais na sede do municpio, relegando ao campo uma representao do atraso. A dicotomia entre o mandar e o trabalhar se acentua na sede do municpio, configurando o centro como o marco da ostentao, na qual se fundamenta o estilo de vida opulento. Durante o sculo XX, outros bairros foram ganhando o mesmo status prestigioso como a Colina e o Derby Club, mas sem os equipamentos de uso dos indivduos de importncia social localizados no Centro como o Teatro, Igrejas, Museu, comrcio, dentre outros. O bairro Derby talvez se diferencie da Colina por conter em seu territrio, delimitado pelo poder pblico municipal, o hipdromo que estimula a denominao do bairro, edificado ainda no ano de 1871 62 . Segundo o livreto publicado pela Prefeitura intitulado Sobral: patrimnio nacional: Ainda na dcada de 70, foi instalado um hipdromo que constituiu mais um elemento de distino da cidade em relao s demais. Estes equipamentos traduzem o poder de alguns grupos bem situados poltica e economicamente, ao mesmo tempo em que relevam a existncia de uma dinmica scio-cultural mais intensa na cidade(Barbosa, et all., junho de 2000:pg.26). Dentre os demais bairros, o Junco contemporaneamente tambm abriga boa parte dos prestigiosos da cidade no campo poltico, econmico e social. Porm uma parcela da populao menos prestigiosa tambm divide o espao neste bairro onde est localizado o estdio de futebol da cidade batizado como junco. Nas minhas caminhadas por Sobral percebo que nestes bairros os moradores no utilizam a rua como espao de sociabilidade, habitando casas com grandes muros, isolando a rua do convvio entre as pessoas. As casas da Colina, por exemplo, isoladas pelo silncio de algumas de suas ruas desertas, ocupadas, ocasionalmente, pelos carros que passam, aparecem ao meu olhar com gala e fausto. Sugestionado pelas constantes observaes feitas por conhecidos que moram no local, a impresso que me causa em primeiro olhar que os
62 Cf. MontAlverne Giro e Soares, 1997. Segundo as autoras, o ento Jockey Club de Sobral foi o primeiro hipdromo da provncia do Cear e um dos primeiros do Brasil, precedido apenas pelos do Rio de Janeiro e Campinas (SP). 171 grandes muros, alguns protegidos com cercas eltricas, esto censurando e ignorando aquele que est fora, protegendo somente quem "dentro" vive. Ouvi vrios depoimentos de moradores que conheo sobre o medo e a insegurana no bairro, o que talvez explique as imagens registradas em minhas caminhadas, em que o andar de alguns incautos indivduos que passam, seja apressado pelo silncio das ruas, que em sua maioria so de calamento. Ouvi e registrei em dirio de campo vrios depoimentos de moradores do local que falavam do medo de andar a p nas ruas do bairro. O carro, inclusive no s um meio de locomoo para alguns moradores, pois ouvi de uma moradora que conheo que, mesmo nas ruas asfaltadas e mais movimentadas da Colina, os corpos mais protegidos das intempries do medo da violncia, parecem ser os que passam dentro dos carros. Isso faz pensar que estas narrativas informais sugerem que o corpo do caminhante se v confuso e com vontade de no ficar muito tempo nestes bairros, ameaado pelos grandes muros que o isolam da segurana do "lado de dentro", assim como entediado pelo marasmo do pouco Estdio de Futebol Juno no bairro do Junco. Foto: site www.sobral.ce.gov.br. 172 movimento. O "lado de fora" na verdade no um "outro lado". um espao liminar de passagem. Nas caminhadas em algumas ruas dos outros bairros que abrigam habitantes mais abastados economicamente da cidade como parte do Junco e o Derby Club, portanto, percebi que h semelhanas com relao as prticas dos moradores da Colina. Vi por vrias vezes caminhantes que nas ruas evitam olhar para os lados e falar com outros, ao mesmo tempo em que, por questo de segurana, lanam olhares breves e precisos para os lados e para trs, que servem como forma de assegurar-se de possveis surpresas causadas por "indivduos mal intencionados" que passam. O Bairro Derby Club tambm resguarda peculiaridade com relao s suas caractersticas especficas. Como dito, abriga o antigo Derby Club, que d origem ao nome do bairro, local de diverso ainda ativo, onde so realizadas corridas de cavalo nos fins de semana e, durante a noite, so organizadas algumas festas que envolvem boa parte da elite da cidade. Alm disso, o bairro abriga dois campi da Universidade Estadual Vale do Acara (UVA): o campus do Derby, onde esto os cursos de Medicina, Enfermagem e Educao Fsica, alm da academia e parque olmpico da Universidade; e o campus do CIDAO que abriga os cursos de Matemtica, Fsica, Qumica, Pedagogia, Engenharia e Tecnologia de Edificaes. As runas da antiga fbrica de beneficiamento de oiticica e carnaba, que tinha o mesmo nome de batismo do campus, convive com as partes que foram reformadas para abrigar os cursos ofertados pela UVA e pelo CENTEC que dividem o mesmo espao. O aeroporto da cidade tambm se localiza no bairro, j no limite com o campus da Betnia, que tem o mesmo nome do Bairro onde se encontra. Este campus abriga a administrao superior da UVA, juntamente com alguns de seus cursos. Este edifcio recorrentemente citado em notcias que falam da poltica de monumentalizao, pois alm da funo de abrigar cursos de formao universitria, j foi o seminrio diocesano. No bairro da Betnia tambm est localizado o parque da lagoa, onde est edificado um estdio coberto pertencente Prefeitura Municipal. Portanto, na conjuno dos bairros Betnia e Derby convivem a solido das ruas margeadas por grandes casas muradas, o movimento das corridas de cavalo, as festas no club e o fluxo de estudantes da UVA. Os estudantes que chegam na UVA promovem cotidianamente um intenso 173 movimento na cidade, principalmente noite, quando dezenas de nibus vindos de cerca de 50 municpios do Cear e at do Piau, chegam trazendo centenas de pessoas que freqentam os cursos da UVA, assim como tambm estudantes secundaristas das escolas de Sobral. Alm dos trs campi j citados a UVA tem mais um localizado no Bairro Junco onde funciona o Centro de Cincias Humanas com os cursos de Cincias Sociais, Histria e Geografia. Ele fica do outro lado da cidade, bem distante dos outros trs e faz fronteira com o bairro Terrenos Novos, local que abriga moradores desfavorecidos economicamente. Ao todo, no ano de 2004, a UVA ofereceu 18 cursos de graduao, com 930 vagas abertas e matricularam-se 10.565 alunos 63 . Na rea de ps-graduao foram oferecidos oito cursos latu sensu com 1.058 alunos nas cidades de Sobral, Crates, Frecheirinha, Itapipoca e Guaraciaba do Norte e cinco cursos stricto sensu em Sobral e Fortaleza com 62 alunos. Alm disso, oferece cursos especiais de formao pedaggica como o Magister, Curso de Habilitao de Professores em Regime Especial (HRE), Curso de Formao Pedaggica (CEFOP) e Curso de Licenciatura Especfica (CLE), em Sobral e vrias cidades do Cear, do Maranho, Par, Paraba e Gois. Isso gera grande fluxo de estudantes na cidade, o que faz com que alguns a considerem uma cidade universitria. Ao lado do bairro da Betnia est localizado tambm um loteamento que abriga uma parcela menos abastada da populao, vizinho ao bairro Alto da Braslia, mais um dos bairros com moradores de poucas posses. E neste ltimo bairro est localizada a Fbrica de Calados da Grendene que, na sua implantao nos anos noventa do sculo XX causou significativas mudanas nas relaes econmicas, polticas e sociais na cidade. Mudanas que foram iniciadas no final do sculo XIX e intensificadas durante o sculo XX, chegando ao pice com a implantao desta indstria de calados em particular. Neste perodo de cem anos, indstrias de beneficiamento de couro, carnaba, oiticica, fbrica de tecidos, e a unidade do Grupo Votorantim que trabalha principalmente com argila e calcrio, e a produo de pequenas e mdias indstrias de chapu de palha, que chegou a ser a maior do Brasil durante algum tempo 64 , deram uma nova dimenso ocupao do espao urbano, atraindo pessoas de outras cidades em busca de empregos. No ano de 2004 somente a Grendene ocupa mais de 16.000 (dezesseis mil)
63 Fonte: site www.uvanet.br. 64 Sobre isso Cf. Caracristi, 1999. 174 funcionrios 65 , a maioria moradores de Sobral. Em 1996 o setor tercirio responde por 70% da populao ocupada, segundo dados do SINE/IDT, apesar da oferta de emprego no setor ter crescido seis pontos percentuais no perodo de 1991 a 1996. Do ano de 1995 a 2000 o Produto Interno Bruto (PIB) de Sobral subiu mais de 69% entre o perodo de 1995 a 2000. Passou tambm de representar 1% do PIB do estado em 1993 para 3% em 1995 e 3,7% em 2000. No ano de 1995 a indstria representava 66% deste PIB municipal, seguido pelo setor de servios que representava 32%. Em 2000 a indstria diminui um pouco representando 64,93% do PIB municipal, ainda seguido pelo setor de servios que aumentou para 33,77%. O PDDU que do ano de 1999, chama ateno que cerca de 65% do ICMS arrecadado no municpio vem da Grendene, assim como 59% do total de postos de trabalhos formais que na poca era de 7.100 empregos, vem desta indstria. Isto mostra o grande peso desta fbrica de calados na economia municipal e a influncia exercida no incentivo a migrao de pessoas de outras regies em busca de emprego. Alm desta questo do emprego, contemporaneamente, a UVA e a prpria Prefeitura atraem pessoas oriundas de outras cidades para estudar e trabalhar em Sobral. No entanto, no so estas que fazem com que os bairros perifricos que abrigam a populao mais pobre aumentem seu contingente populacional. Geralmente professores e alunos da UVA, e tcnicos da prefeitura que vm morar em Sobral, preferem o centro ou bairros mais favorecidos da ateno da tecnocracia municipal. Os que vm em busca de uma vida melhor, sem qualificao profissional, fazem com que bairros surjam ou aumentem demograficamente para abrigar estas pessoas que nem sempre conseguem espao no mercado de trabalho. O PDDU informa que o ndice de desemprego em Sobral cresceu de 9,2% em 1991 para 14,6% em 1996. Neste ano o ndice GINI (0,6119) j revelava uma elevada concentrao de renda. A taxa de desemprego em 2002 era de 14,27%, mostrando que no houve mudana significativa no indicador. O PDDU mostrava que 58% dos chefes de famlia ganhavam at 1 salrio mnimo, 21% recebiam de 01 a 02 salrios mnimos, 12% recebiam de 02 a 05 salrios mnimos, 08 %
65 Informaes fornecidas em conversa com funcionrio do SINE/IDT, rgo responsvel pelo recrutamento dos candidatos a funcionrio da fbrica. Todas as demais estatstica aqui citadas so do PDDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) de Sobral, Instituto de Pesquisa e Estratgia Econmica do Cear (IPECE) que um rgo ligado Secretaria do Planejamento e Coordenao (SEPLAN) do Governo do Estado do Cear, e do SINE/IDT seo de Sobral. 175 recebiam de 10 a 20 salrios e, somente 1% ganhava mais de 20 salrios mnimos, o que no mudou muito nos anos subseqentes. So pessoas de lugares diversos que vem na cidade, de maiores propores que a sua, a possibilidade de realizao de um projeto de vida impossvel de se concretizar no seu lugar de origem. Esto busca de emprego estvel, conforto, moradia, educao, dentre outros servios de difcil acesso na sua cidade. Contudo, logo se decepcionam quando percebem que esta riqueza que esperam realmente existe, mas no para todos. Nos tempos atuais raro encontrar moradores de bairros perifricos pobres que sejam nascidos e crescidos em Sobral. Alguns bairros, geralmente atendidos de forma fragmentada pelo poder pblico, vo crescendo demograficamente em detrimento do acompanhamento das polticas pblicas de habitao e urbanizao, sendo os espaos e moradias organizados por seus prprios moradores, da forma que lhes convm. A configurao do relevo geralmente acidentada, o traado das ruas, quando existe, no respeita as regras do planejamento urbano, a concepo esttica do interior das casas muito distinta da ostentao das grandes casas da Colina e do Derby. A Histria de Sobral contada na idia da monumentalizao aparece nestes bairros populares ou perifricos, como so classificados pela tecnocracia da municipalidade, de forma fragmentada, incompleta e se manifesta ocasionalmente. Fazendo uma analogia da experincia de pesquisa de Martins (2002) no subrbio de So Paulo, posso dizer que as histrias da periferia de Sobral resguardam as circunstncias da Histria de Sobral. Portanto, so histrias circunstanciais, nas quais no aparecem os protagonistas da Histria, Casas no bairro Padre Palhano. Percebe-se aqui o surgimento de moradias sem a interveno ou intermediao dos servios prestados pela tecnocracia municipal. Foto: produzida pelo pesquisador. 176 mas sim os coadjuvantes, entendidos pela tecnocracia da Prefeitura como pblico alvo ou usurio das polticas pblicas. A escala de tempo do homem comum no a mesma dos processos mais abrangentes anunciados e documentados na monumentalizao da cidade. Por isso mesmo, as histrias narradas por estes agentes sociais da periferia no refletem imediatamente nem literalmente a verso da Histria mais ampla da cidade no que se refere a suas aes, trabalho e lutas. Minhas caminhadas juntamente com meus bolsistas de iniciao cientfica em bairros como Terrenos Novos, Sumar, Padre Palhano, Dom Expedito, dentre outros classificados pela tecnocracia como populares ou perifricos, deu-me a impresso de que a histria contada pela monumentalizao passa margem de seus moradores. As narrativas sobre suas vidas percorriam uma trilha no tempo e no espao como se fossem um tanto diversas da Histria da cidade, apesar de resguardarem muitos de seus aspectos. Quando se fala com os moradores de alguns bairros sobre determinados elementos relativos aos acontecimentos documentados pela monumentalizao, em muitos casos, surge o silncio, em outros eles ganham contornos diferentes, relativizando a importncia do centro Praa da Igreja no Bairro Padre Palhano, rea central com um certo nvel de urbanizao. Foto: produzida pelo pesquisador. 177 da cidade como nico local privilegiado para tornar-se patrimnio merecedor de uma poltica de preservao. Alguns inclusive invertem a ordem de importncia do registro documentado oficialmente, dando um peso maior a histria de seu bairro. Existem at aqueles que criticam os espaos inventariados como significativos enquanto patrimnio histrico, lembrando de outros, to significativos quanto, em seus bairros, que no foram citados na Histria oficial. Outros tornam os protagonistas lembrados pela monumentalizao, coadjuvantes, atribuindo a si a funo de protagonistas, principalmente, quando se referem verso que contam sobre as histrias de seus bairros. So estas verses vindas de moradores da periferia que quero registrar e narrar aqui. Quero ouvir o protagonista significante (Martins, 2002) do momento ocorrido que aparece ausente e invisvel na Histria contada pela monumentalizao, que est pautada em um sujeito genrico e impreciso denominado sobralense. E o bairro, principalmente, mas no exclusivamente, o popular, o suburbano ou perifrico o foco central. Para isso penso que preciso fazer uma reflexo inicial referente definio do que o bairro.
4.2 Como analisar: pressupostos e algumas definies.
A experincia de caminhadas constantes nos bairros da cidade de Sobral coloca algumas questes que penso serem fundamentais para entender tanto o conceito de bairro, quanto o de cidade. Vale a pena ressaltar que no d para definir com preciso o que realmente um bairro. De uma coisa tive certeza no meu percurso de pesquisa: o bairro no nada mais que uma construo um pouco arbitrria e virtual. Ao mesmo tempo parece uma tenso convergente em extenses fluidas, que no correspondem necessariamente a unidades territoriais homogneas de ordem seja moral, religiosa, social ou econmica. Os limites, apesar de serem definidos pela Prefeitura e endossados pela Cmara de Vereadores como uma forma de organizar as aes administrativas do poder pblico na cidade, quase nunca so precisos quando expressos pelos habitantes do bairro. 178 Qualquer analista desavisado poderia supor, diante da impreciso e fluidez dos limites do bairro imaginado por seus moradores, que, particularmente os bairros perifricos, podem ser pensados como feixe de relaes sociais formando uma comunidade como definia Tnnies, justamente porque alguns deles resguardam uma dimenso de reconhecimento social muito forte entre seus moradores. Duarte (2002) chama ateno exatamente para este problema. A questo que se coloca que nem todo bairro abriga um grupo de pessoas que partilham de sentimentos recprocos, que produz um consenso ou um modo comum de perceber e entender o mundo, como d a entender o conceito de comunidade. As idias da partilha de alegrias e sofrimentos e da participao direta de um indivduo na vida dos outros, no so prticas recorrentes em todos os bairros, nem mesmo quando pensamos em um bairro particular, onde as pessoas so obrigadas a viver mais prximas umas das outras. No podemos deixar de considerar as relaes de afinidade existente entre os seus moradores. Isso porque cada morador elege socialmente as suas relaes preferenciais e seus inimigos, demarcando fronteiras no prprio contexto interno do bairro. Duarte (2002) chama a ateno de uma romantizao, ancorada na idia de comunidade, que poderia levar o analista a pensar o bairro como modo de vida ou at a uma identidade de classe, mascarando dissensos internos e revogando conflitos e diferenas. Nos bairros perifricos, por exemplo, no existe somente o trabalhador da indstria, existem outros tipos de moradores que se diferenciam no s pelo registro de sua ocupao, mas tambm no modo de pensar a realidade que est ao seu redor, no tipo de moradia, dentre outros. Diferentes tipos de moradia. Caracterstica tpica nos bairros perifricos. Estas casas esto localizadas no bairro Alto da Expectativa. Foto: produzida pelo pesquisador. 179 Pensando com Lefebvre, Duarte (2002) considera que o bairro, principalmente o perifrico, onde as relaes de reconhecimento mtuo entre seus moradores so mais intensas, uma confluncia tnue e mltipla entre o espao quantificado e o espao qualificado. O espao quantificado caracteriza-se por um modo de vida virtual e mecnico, tpico da individualizao e do anonimato crescente nas cidades, que faz com que cada um seja mais um no meio da multido, assim como cada um seja autosuficiente e autnomo, sem necessariamente ter que estabelecer laos solidrios mais slidos e primrios. Os laos so fluidos, secundrios, provisrios e pragmticos visando o aperfeioamento e a autovalorizao individual como nos chama ateno Simmel (1971). H um investimento individual no sentido de autoafirmao social que tem estes laos como suporte. Esta caracterstica apesar de ser mais intensa nos bairros centrais e nos que abrigam os indivduos mais prestigiosos da cidade, tambm est presente nos bairros perifricos, apesar de se manifestar de uma forma menos intensa. Vendedor de porco no Bairro Tamarindo, prximo a rodoviria. Ele exemplar das astcias elaboradas pelo homem comum morador da periferia pobre da cidade para poder sobreviver diante das adversidades do mercado de trabalho. Foto: produzida pelo pesquisador. 180 Em alguns bairros, como j dito, as pessoas se reconhecem e so obrigadas a conviver com outros, usando de artifcios e mscaras para no desrespeitar a convenincia constituda nas relaes locais, do ponto de vista da moral, da tica e das prticas cotidianas. Nestes locais os diferentes sujeitos sociais criam uma rede de relaes que qualifica aes individuais medidas por critrios tanto peculiares convenincia dos moradores e vizinhos, quanto tpicas da cidade mais ampla. O indivduo entendido enquanto singularidade, especializado diante de sua conduta moral, social e profissional e julgado pelos moradores com base nestes critrios. O bairro, portanto, um microcosmo da cidade, pois as qualificaes atribudas a sujeitos pertencentes ou que transitam no bairro, conectam pessoas a lugares, a profisses ou a prticas que no necessariamente so construdos no mbito interno do local. Imagens identitrias so elaboradas e reformuladas todo tempo, gerando e reconstituindo uma rede de afinidades ou relaes de conflito entre moradores e freqentadores. A diversidade de marcas de identificao construdas pelos distintos grupos sociais que convivem no espao do bairro, pode levar os moradores a demarcar lugares prprios para cada grupo no espao. Em cada bairro podemos perceber lugares prprios para crianas, para homens, para mulheres, para idosos, para namorados, dentre outros. Certeau (1984) define o lugar como um arranjo construdo resultante de uma distribuio social que configura posies, indica estabilidade, define uma marca prpria e distinta, diferenciando cada grupo e indivduo que o usa. J o espao o cruzamento mvel animado pelo conjunto de movimentos programados ou no, conflituais ou de proximidade contratual, constitudo por seus praticantes. O espao para Certeau (1984) o lugar praticado. No espao da praa, por exemplo, podemos ter o lugar dos velhos, assim como o lugar dos jovens que cotidianamente se encontram para a paquera. No mesmo ambiente espacial podem conviver lugares diferentes prprios de determinados grupos e prticas. Os relatos, assim como as prticas acionados pelos moradores do bairro, definem lugares no espao, assim como transformam lugares em espaos, organizando e desorganizando constantemente a demarcao de lugares. No bairro Betnia, por exemplo, enquanto para o poder publico municipal a quadra do bairro, perto da creche, serve para o lazer, para alguns moradores lugar de encontro de marginais. Em conversa com Dona Graa, por exemplo, senhora residente no bairro, ela ressalta e exalta o lugar como prprio 181 de grupos violentos de adolescentes, que ali freqentam e ocupam o espao para, a partir dali, sarem atrapalhando, inclusive as atividades da creche, que fica em uma elevao ao lado da quadra. Essa mesma idia reproduzida e vivenciada pela coordenadora pedaggica da creche que mostra o itinerrio dos "marginais" ao subir elevao. Na Vila Recanto II, em conversa com o agente de sade, tambm lder comunitrio, ele disse que s margens do rio Recanto, assim como nas margens do rio Acara, moas e rapazes "marginais", nos fins de semana, bebem, usam drogas e "praticam a violncia". O prprio bairro serve como designador de identificao para os seus moradores. O fato de morar no bairro Sumar, Padre Palhano, ou Terrenos Novos, j sugere uma disposio do interlocutor morador de outro local, a acionar determinadas formas de qualificao que associam a conduta e a imagem socialmente consideradas do outro com as destes locais ou fama que carregam de violentos, atrasados, arcaicos e pobres, muitas vezes reconhecidos em algumas narrativas que os classificam como favelas. Em defesa estes moradores, em funo de preservar a prpria integridade moral, constroem narrativas em defesa do local que moram. A Vila Recanto II um local que chama ateno de quem a conhece pela primeira vez. A natureza e o homem, em interao singular, criaram um local que no quer ser visto a partir dos demais locais da cidade. O Recanto um lugarejo que se divide em dois. A Vila Recanto I mais urbanizada, as casas so de alvenaria, feitas com material de construo doado pela prefeitura, e fica logo ao lado da fbrica de calados Grendene. J a Vila Recanto II localiza-se no final de uma pequena estrada que j foi a Rua da Vila Recanto I. Diferente da Vila Recanto II, h uma maior urbanizao no que se refere ao alinhamento das casas que, por sua vez, so construdas de tijolo furado. Foto: produzida pelo pesquisador. 182 estrada de ferro, que se dirigia de Sobral e ia at Camocim. O conjunto de casas do Recanto Novo ou Vila Recanto II (forma como a Prefeitura chama o local), fica logo aps um agrupamento de carnabas que esconde a comunidade. Tenho a impresso de que estou entrando em um local esquecido no tempo, distante dos projetos sociais das polticas pblicas de interveno na rea de sade, urbanismo, habitao, educao, dentre outras. No caminho para l, chegamos a duvidar das indicaes dadas pelas pessoas de sua existncia, pois s d para visualiz-lo aps passarmos pelo aglomerado de carnabas e por uma precria ponte de madeira montada de improviso, que pouco tempo depois foi substituda por outra mais resistente. Duvidei inclusive de sua resistncia, pois brechas grandes que cabiam as pernas do transeunte desavisado, que est se locomovendo para sair ou entrar na comunidade, se mostravam, alm da prpria madeira no parecer ser resistente. Eram visveis as marcas deixadas pelo antigo trilho que passava por ali a alguns anos atrs, Caminho que d acesso Vila Recanto II. Neste ponto, nem parece que por traz da vegetao h agrupamento denso de casas de uma parcela dos habitantes menos abastados economicamente. Foto: produzida pelo pesquisador. Ponte sobre o rio Recanto que d acesso Vila Recanto II. Nota-se a impossibilidade de passagem de qualquer tipo de carro. Foto: produzida pelo pesquisador. 183 quando presta-se ateno ao elevado que caracteriza a passagem, da hoje estrada sem calamento, que leva ao recanto. O nvel das casas fica muito abaixo do nvel da estrada. As caminhadas promovidas pelos meus interesses de pesquisa mostraram que as demarcaes de lugares no espao organizam os jogos das relaes mutveis do cotidiano. Por serem dinmicas, estas relaes, como sugere Certeau (1984), no constroem "mapas" que podem ser analisados como modelos definitivos da sociabilidade. Foi necessrio no contexto analtico estar atento para o movimento ou o "percurso". Como chama ateno Gilberto Velho (1999b), no modelo de sociedade em que vivemos, cada indivduo move-se em um "campo de possibilidades" que lhe oferece mltiplas opes para definir uma posio social. Mas, mesmo podendo fazer opes o indivduo impelido e pressionado socialmente para tomar uma posio que depende do contexto temporal e espacial em que vive. O jovem ou adolescente que qualificado por alguns moradores do bairro como pertencente a um grupo de "marginais", como os relatados e denunciados a mim e a meus bolsistas de iniciao cientfica, no vive somente com seus "colegas de rua ", vive com sua famlia, com os amigos do trabalho, dentre outros "campos de possibilidades" distintos. Neste caso, s podemos pensar no carter "marginal" do jovem quando est junto a indivduos tambm considerados enquanto tal por alguns e/ou em um lugar usado ou Parte interna da Vila Recanto II. Em alguns trechos, como o da foto direita, nota-se que a rua esta mais elevada do que as casas, o que revela o antigo caminho do trilho que ia de Sobral Camocim. Outros trechos, como o da foto esquerda, verifica-se a precariedade da urbanizao do local. Foto: produzida pelo pesquisador. 184 classificado como prprio "marginais", segundo determinados moradores. Como pesquisador tenho que levar em considerao o contexto de sociabilidade em que ele est inserido no momento da observao, assim como o sujeito que classifica, o lugar e o agente tido como marginal. Esta caracterstica do tipo de sociedade em que vivemos, faz com que os indivduos incorporem um processo de identificao social multifacetada e de estabilidade relativa, configurando o que Gilberto Velho (1999b) denomina de "potencial de metamorfose". Wirth (1976), apesar de considerar a cultura urbana como varivel independente e determinante do comportamento humano, desconsiderando o envolvimento construtivo, criativo e astuto dos agentes sociais no cotidiano, chama a ateno de aspectos importantes que devem ser levados em considerao sobre o modo de vida nas cidades. Para ele o aumento do nmero de habitantes em mais de algumas centenas limita a capacidade de cada um conhecer todos os outros, o que provoca uma segmentao das relaes humanas e a constituio de relaes menos intensivas. Isso, segundo o autor, provoca relaes de dependncia restritas a atividades do outro, constituindo-se contatos secundrios, pragmticos, impessoais, superficiais e transitrios. O indivduo, neste tipo de relao, ganha um certo grau de liberdade dos controles pessoais e emocionais por parte de grupos ntimos, o que caracteriza o individualismo. Nesta perspectiva, o reconhecimento visual ganha fora. A imagem da pessoa, e no sua pessoalidade, que anima o sucesso nos vrios campos de sociabilidade. Diante desta reflexo, o menino da gangue que aterroriza alguns moradores da Vila Recanto, no necessariamente vai viver sempre com o mesmo grupo, ou seja, sua identificao no definitiva devido aos seus diferentes interesses, construdos em diferentes experincias vivenciadas socialmente, com grupos sociais diversos, tanto nas prticas do espao como na experincia temporal da existncia. Este menino se torna membro de grupos diferentes de acordo com o tempo e com o espao que ocupa, e cada um destes grupos funcionam como referncia a um segmento de sua personalidade. A escola, o trabalho, a famlia e o tempo, dentre outros aspectos, grupos e instituies sociais experimentadas pelo menino, so campos de possibilidade diferentes de formao continuada e mutante. 185 Portanto, determinados bairros resguardam uma relao ambgua entre identificao substancialista da personalidade individual, na qual as pessoas so reconhecidas e classificadas socialmente, assim como um anonimato relativo, pois nem sempre sabemos que tipos de relaes o agente estabelece tanto dentro quanto fora do bairro, podendo oxigenar e relativizar sua identificao, dissolvendo-a em uma multiplicidade de relaes internas e externas ao bairro. Como chama ateno Marques (2002), a fama uma qualidade que se aplica a indivduos que adotam condutas que se supem regular, gerando expectativas no sentido de fazerem com que seus comportamentos correspondam a fama que possuem. Os bairros tambm ganham por parte dos agentes moradores da cidade determinada fama que funciona como um designador e qualificador de seus moradores. Sobre a fama do bairro Terrenos Novos de violento, por exemplo, Adalberto Mendes, lder comunitrio, argumenta que: ... o nosso bairro eu considero relativamente calmo. Apesar de algumas coisas que j aconteceram terrveis aqui. Mas essa modernidade a est uma coisa horrvel mesmo. Ento, eu considero calmo. Apesar de j ter acontecido, por exemplo: filho matou me aqui na nossa comunidade. Mas s que era filho j adolescente, errado, adolescente dedicado a fazer o que no presta, usar droga; a acabou por matar a me de machado, de foice, no sei o que foi no...[sic](Entrevista realizada pelo pesquisador com Adalberto Mendes em 10 de agosto de 2004). Adalberto Mendes, natural de Tangente, distrito de Massap, municpio prximo de Sobral, veio morar na cidade em 1981 e em 1987 passou a morar nos Terrenos Novos. Participou do movimento comunitrio no bairro onde conheceu sua atual esposa Dolores. Segundo ele, os primeiros moradores chegaram em 1982, mas somente em 1988 comeou a ter uma maior ateno do poder pblico. Ele veio a Sobral para trabalhar e estudar como muitos que saem de suas cidades de origem para outra mais afamada, no que se refere s supostas facilidades de emprego e formao profissional. Mas, ao contrrio da maioria dos estudantes da UVA, preferiu morar nos Terrenos Novos. Nasceu em 1956, seu av era feitor da antiga estrada de ferro que ligava Sobral a Camocim, desativada em 1976. Lembra que Camocim servia de porto para escoar a produo das indstrias sobralenses, assim como era usado para facilitar as viagens ao exterior e outras cidades do pas da elite de Sobral. Ainda lembra da Maria Fumaa que funcionou at 1964 ligando as duas cidades, 186 sabe muito sobre a Histria de Sobral. J foi presidente da Associao Comunitria Benedito Tonho do bairro e hoje professor na escola do Rotary Club. Apesar de ser formado em Cincias Contbeis na UVA, tem uma forte paixo pela Histria da cidade. Portanto, a sua narrativa influenciada por sua trajetria no bairro. A questo da violncia, na sua narrativa ganha contornos mais afveis e suaves quando situando no contexto mais global da modernidade. Segundo o que manifesta, a violncia influenciada por um movimento que vai alm das intenes dos moradores do bairro, ela um problema decorrente das implicaes da modernidade, dentre outros aspectos do nosso tempo que, de certa forma, tendem a fomentar prticas classificadas socialmente enquanto violentas, ao mesmo tempo que tendem a repeli-las, principalmente quando se pensa na urbanizao crescente e desenfreada. Mais adiante ele complementa seus argumentos sobre a questo fornecendo outros exemplos e elementos para anlise quando diz que: E tambm outra vez aconteceu rapaz ser encontrado morto com cento e tantas furadas dentro de camburo l encostado do Kart. Tudo pertence a nossa rea aqui, mas so casos isolados, longe um do outro, que eu no considero assim to violento. Tem muita marginalidade, muita famlia desestruturada por ser rea carente, o nosso bairro um bairro pobre, populao nmade que aquele pessoal que se muda muito, pessoal que vem do interior pra morar na cidade. Chega aqui no tem condies, no tem capacidade, no tem estudo, no est preparado pra nada, no tem profisso. Uma grande parte da nossa populao aqui esse povo no . Eu acabei de dar o meu exemplo, eu vim do serto. S que eu sou diferente, devido eu ter condio, de eu ser uma pessoa de famlia estruturada, eu nunca tive problema, como no tenho at hoje graas a Deus (...)A terra no d mais condio, quando ele proprietrio vende l porque no tem de que viver l e vem pra cidade e tal, chega aqui os filhos fica a na gandaia. Quando pessoa pobre o dono da terra expulsa porque no pode sustentar ele l, a ele vem pra cidade chega aqui vai ser favelado. Faz um barraquinho l dentro do riacho Mucambinho ou na beira do aude Mucambinho ou l dentro da beira do rio Acara, fica l a os filhos ficam jogados. A por isso vem aquela questo que voc conhece muito bem, a questo social que est a. Ento, eu no considero violento assim, eu considero regular. Inclusive nos ltimos tempos ns no tivemos crimes aqui, pode ter at algum assalto, alguma pessoa que toma alguma coisa em esquina...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Adalberto Mendes em 10 de agosto de 2004). A questo da defesa do bairro como espao adequado para se viver revela uma narrativa distinta da que trata da violncia no local. A violncia que existe parece ser 187 fomentada por fatores externos, como a migrao do homem do campo para a cidade, assim como a falta de perspectiva de trabalho para os que moram no local, criando o que ele chama genericamente de famlias desestruturadas. Outro fator a carncia de recursos para o uso da terra no campo que incentiva a migrao para a cidade. Portanto, para Adalberto, a violncia que existe no uma coisa peculiar ao bairro, acontece justamente por conta de uma questo social mais ampla, inclusive, em alguns momentos sua narrativa mostra que a caracterizao de seu bairro entendida como uma ofensa pessoal. Como ele conta: ... como um dia eu estava numa reunio no prprio auditrio da igreja do Patrocnio, exatamente no perodo que encontraram esse cidado morto com cento e tantas furadas, detrs do Kart ali que pertence a nossa rea dos Terrenos Novos, a todo mundo tinha que se identificar na reunio pra comear a reunio. Vamos aqui dizer quem cada um, cada um vai dizer como o nome e de que comunidade . A eu disse Rapaz eu sou Adalberto dos Terrenos Novos e tal... A uma pessoa disse assim: Vixe rapaz, voc l do matadouro de Sobral no ?. Fazia poucos dias que tinha acontecido esse crime horrvel a desse rapaz de cento... ainda no tinha acontecido do filho matar a me, foi mais recente. A me revoltei na hora. Porque se voc falar mal dos Terrenos Novos voc arranja briga comigo. Voc arranja briga com o Adalberto se voc falar mal dos Terrenos Novos. Meu amigo, os Terrenos Novos um bairro carente de Sobral, agora aqui tem gente de bem, no tem s vagabundo, no tem s marginal, me diga qual o local de Sobral que no tem vagabundo?. A eu digo Olha, Sobral, alis o bairro Terrenos Novos no um matador como voc est dizendo no. H pouco tempo tinha sido assassinado um radialista Fernandes Fontinelle l na praa Dr. Jos Sabia, dois soldados olhando, o (...) 66 matou o radialista de uma punhalada, o... foi absolvido, eu estou falando isso aqui s como exemplo est certo? Depois no julgamento ele foi absolvido, eu no estou chamando de criminoso, estou dando um exemplo. Todo mundo sabe foi ele que matou, ele foi a julgamento e foi absolvido, e que at policial rodovirio. O ... matou o radialista de uma punhalada no , a depois mataram um rapaz de Massap no becco do Cotovelo. O cara chegou tacou a punhalada. Nem o criminoso, nem o que morreu nunca morou nos Terrenos Novos porque que agora encontraram esse rapaz l, no sabe nem quem foi que matou, no sabe nem se foi l que mataram. Sabe l se no mataram ele no Centro e jogaram l! A voc est dizendo que l matador de Sobral. Todo mundo calado, inclusive o Veveu estava nessa reunio nesse dia. E a a questo da discriminao eu no concordo, porque em todo lugar, nos mais ricos de Sobral tem filho, tem parente, tem cunhado, tem no sei quem que errado, que vive no erro. O filho do
66 Preferi omitir o nome do assassino. 188 Leonel Brizola quando era governador do Rio de janeiro foi pego na rodoviria do Rio de Janeiro com maconha. Ento, eu no estou aqui tomando o erro como exemplo. Eu estou dando o exemplo que eu defendo os Terrenos Novos e que eu no acho aqui os Terrenos Novos hoje, hoje, dia 10 de agosto de 2004. eu no acho assim uma comunidade que tem muita violncia. Tem a violncia da situao a que a gente acabou de citar, a questo social, uma discriminao. Tem gente que tem medo de andar nos Terrenos Novos, meu amigo eu tenho medo de andar em qualquer lugar. Sobral ainda um lugar tranqilo v andar em Fortaleza, v para o Rio de Janeiro, v andar na favela da Rocinha que eu conheo muito bem...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Adalberto Mendes em 10 de agosto de 2004). Durante sua narrativa Adalberto tenta mostrar o peso da descriminao e da injustia na qualificao de seu bairro como violento. O morador do bairro Terrenos Novos tenta relativizar a idia de que existe um lugar prprio violncia. O seu lugar pode at ser carente, mas, por ser carente no necessariamente quer dizer que violento. Outros lugares e acontecimentos so exemplares para argumentar sobre o preconceito que existe contra o seu bairro. O medo da violncia est em qualquer lugar, inclusive nos Terrenos Novos onde no existe s marginal, sugerindo que Sobral no to violento assim como tenta se passar, se comparado a grandes cidades como Fortaleza e Rio de Janeiro. De qualquer forma o bairro parece dar sentido e significado a quem ele socialmente, j que Voc arranja briga com o Adalberto se voc falar mal dos Terrenos Novos. Este lder comunitrio tem uma peculiaridade que me chamou ateno. Segundo o que j haviam me informado ele conhecido como historiador de bairros. Segundo ele, esta sua atividade de historiador, foi influenciada pela sua experincia como professor que lhe mostrou alguns de seus alunos no conhecendo nem o nome da rua que moram. Alm disso, foi estimulado por sua preocupao com a desorganizao na nominao das avenidas e ruas da cidade, que cita como exemplo a prpria Cmara Municipal de Sobral, localizada pelo nome da praa Dom Jernimo onde est instalada. Ele conta que a sua experincia como lder comunitrio tambm o influenciou a arquivar documentos avaliados por ele como importantes para registrar a histria da cidade. Adalberto complementa dizendo que: Ento por a que vai, foi me dando aquela necessidade de eu ir guardando documento, de eu ir me apegando mais assim a colecionar as coisas. A eu passei a guardar documento de escola, documentos dos 189 prdios da comunidade, e a mais recente com a administrao municipal que criou a casa da cultura, a secretaria municipal de cultura, e agora com o governo do Lula o Ministrio da cultura, que tem um grande artista brasileiro como ministro. A me despertou mais isso, porque eu gosto muito das coisas histricas. Quando eu vejo assim as coisas de Sobral... l ao lado da igreja da S tem uma casa que foi a primeira casa que foi feita em Sobral, ao lado da igreja da S a prpria prefeitura descobriu o alicerce da primeira igreja feita aqui em Sobral, porque no a primeira de Sobral, a primeira igreja que foi feita, que era pra ser a igreja daqui que caiu, a depois fizeram outra mas fizeram fora do local que foi a primeira. Ento, tudo isso a me deu assim, aquela vontade de eu colecionar mais documentos. Ento por a que a gente tem essa tendncia [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Adalberto Mendes em 10 de agosto de 2004). Percebe-se nesta narrativa a influncia da poltica de monumentalizao da cidade. Porm, em nenhum momento de sua narrativa usa o termo Patrimnio Histrico apesar de resguardar a necessidade de documentar e arquivar tudo o que avalia como fundamental para entender a Histria de Sobral. Ele lembra de determinados espaos esquecidos pela municipalidade como o aude Mucambinho, localizado no bairro Terrenos Novos, que foi construdo em 1888, na mesma poca do tombado como patrimnio histrico, aude do Cedro no serto central do Cear, e da estrada de ferro que ligava Sobral a Camocim que muito estimula a idia de independncia do sobralense com relao a capital cearense. Alm disso, Adalberto lembra com preciso as datas de surgimento de igrejas, praas e outras edificaes, assim como a biografia dos donos dos nomes de vrias ruas da cidade. Possui em sua casa uma sala cheia de todo tipo de documento que lhe serve como fonte para entender as histrias sobre os bairros como Padre Palhano, Terrenos Novos, Sumar, dentre outros, hoje bairros perifricos de Sobral. Portanto, o estimulo fornecido pela poltica de monumentalizao no somente reproduzida, mas incrementada e superada pela iniciativa individual deste morador dos Terrenos Novos. Ele diz possuir documentos que nem a prefeitura tem conhecimento deles. Como conta, muitos estudantes o procuram para conhecer mais sobre sua cidade, o que estimulou o encadernamento de resumos sobre bairros e locais especficos como a Igreja dos Terrenos Novos, associaes comunitrias, dentre outros. Ele chega a estimular outros lderes comunitrios a conhecer melhor o seu prprio pedao (Magnani, 2000). Lderes estes que geralmente fundam suas narrativas em uma 190 virtualidade que pretende anunciar uma associao coletiva de interesses comuns em construir a existncia cotidiana, pautada em direitos constitudos e reivindicados por uma comunidade idealizada, caracterstica muito comum nos bairros perifricos e que inclusive serve de suporte para contar a histria circunstancial de cada um destes tipos de bairro. So histrias que remetem uma inverso da Histria triunfalista da poltica de monumentalizao da cidade. Primeiro porque no uma histria de silhuetas mudas ou passivas diante dos grandes feitos e heris de Sobral; ao contrrio, narram acontecimentos protagonizados por eles enquanto heris; segundo porque so histrias de muito sofrimento, angstia e luta por seus direitos, ao contrrio da verso de opulncia e riqueza; e terceiro porque no se prende a um sobralense genrico e impreciso, e sim a relatos quase biogrficos, onde se sabe muito bem de quem se est falando, a no ser quando o sujeito a que o relato faz referncia a comunidade.
4.3 A virtualidade comunitria: biografia individual e construo da imagem do bairro.
Para entender a "lgica do pedao", e o bairro pode ser entendido como pedao dependendo do contexto de enunciao, devo exercitar um olhar analtico que v alm de uma tentativa de delimitao territorial precisa para o bairro. Magnani (2000) utiliza este conceito aplicado ao lazer na cidade. Penso que no s o lazer o tipo de prtica que demarca o pedao. Os casos de Expedito Vidal, Dona Rosa Serra Grande, Adalberto Mendes, Maneco, Francisco Estevo, narradores entrevistados para esta pesquisa, podem ampliar mais as possibilidades de aplicao deste conceito de Magnani (2000). Suas narrativas podem ser analisadas no somente como formas de construir uma biografia individual, elas falam mais do que isso, anunciam implicitamente um contexto social e simblico mais amplo. As narrativas, porm, coincidem em um aspecto: o bairro o marco referencial de suas condutas polticas. At mais do que isso, o bairro significativo para a construo circunstancial de histrias dos agenciamentos cotidianos para construo de uma imagem da cidade. 191 O investimento pblico na urbanizao do centro da cidade talvez seja motivo de mobilizao de esforos para pressionar um investimento tambm no bairro. Urbanizao esta concebida e realizada no somente do ponto de vista esttico como j dito, mas tambm como aplicao de aes, direcionadas populao entendida como pblico alvo ou usurio, com fins tursticos, econmicos e de formao para incorporar uma verso de sobralidade genrica. Sei que algumas referncias na literatura sobre movimentos sociais de bairro listam diferentes motivaes no que se refere aos movimentos reivindicativos que passam pela excluso social do sistema econmico que vivemos, dentre diversos outros motivos 67 . Acontece que meu interesse aqui tentar entender como o lder comunitrio, um dos agentes que faz a mediao entre os moradores do bairro e o poder pblico, constri a imagem da cidade. Parto aqui do pressuposto de que esta imagem no substantiva, definitiva e muito menos consensual. uma imagem muito prxima de uma exaltao biogrfica, que coloca os narradores como protagonistas de grandes feitos no seu local de atuao. linear, sustentado por um sempre, desde que me entendo por gente, que ressalta quase um interesse inato pela melhoria de uma comunidade genericamente definida. Parece ser monotemtico, pois todo assunto desemboca na idia da busca da garantia de direitos bsicos para subsistncia da comunidade. Analisando de forma mais atenta posso perceber no s a maneira como so constitudas determinadas imagens, mas tambm entender as nuances da histria circunstancial da cidade. Acontece que os bairros perifricos que abrigam os moradores menos abastados em grandes e mdias cidades, o seu surgimento e o seu aumento demogrfico, geralmente coincide ou com um processo de ocupao, ou com um loteamento concedido pela prefeitura, podendo ou no haver um mutiro para construo de casas. Neste caso estes locais viram foco privilegiado de militantes de partidos polticos, candidatos a vereadores, membros de organizaes ligados a Igreja, pesquisadores e cientistas sociais, dentre outros profissionais interessados na militncia poltica que valorizam a vida associativa, suas reinvidicaes e modalidades de luta por direitos. Portanto, a presena do componente poltico muito forte apesar de no ser o nico possvel a ser encontrado, e no ser bem visto enquanto poltico, inclusive por aqueles que o utilizam para fazer seu trabalho na
67 Sobre isso Cf. Barreira (1992); Barreira & Braga (orgs) (1991); Barreira & Nascimento (orgs) (1993); Kowarick (1988); Sader (1988); dentre outros. 192 comunidade, como a literatura sobre movimentos sociais j chama ateno quando se refere ao caso do lder comunitrio. Sobral no exceo. No poderia fugir a isso para entender a relao entre a Histria registrada na monumentalizao da cidade e as histrias circunstanciais contadas por moradores. Na minha busca por narradores interessados em falar nos bairros perifricos, os que se comprometeram com maior facilidade a contribuir foram os lderes comunitrios. E eles foram indicados por moradores para falar da histria do local. Segui estas indicaes. Comeo com Expedito Vidal e Francisco Estevo que se autoclassificam como lderes comunitrios no bairro 68 Padre Palhano. Os dois contam histrias que arrogam para si a fundao da Associao Comunitria, assim como a criao do bairro. Expedito, alm de presidente da Associao, foi tambm presidente do conselho local de segurana, presidente do conselho municipal de sade, dentre outros cargos peculiares a um representante ou lder comunitrio. J Estevo se vincula somente ao seu trabalho no bairro. Expedito pareceu mais vontade na entrevista que foi realizada antes. Com todo orgulho, sempre exaltando sua iniciativa de aprender a ler e escrever praticamente sozinho, mostra uma cartilha escrita por ele e publicada com a ajuda do padre Joo Batista Frota, da diocese de Sobral, que fala sobre como deve se portar o lder comunitrio. Nele discutido o valor do trabalho comunitrio, do voluntariado, da doao que o lder comunitrio deve sua comunidade, sobre a importncia da participao, dentre outros aspectos. Este lder comunitrio s estudou durante o perodo de 1969 at final de 1973, o que lhe ajudou a aprender o bsico. Foi ele que me fez conhecer pela primeira vez a produo de Adalberto Mendes, morador do bairro dos Terrenos Novos, que tem organizado e encadernado, documentos referentes histria do bairro Padre Palhano, como fiz referncia antes. Nasceu em 1961, no bairro Sinh Sabia, morou l at 1974, quando se mudou para o bairro Dom Jos, antigamente conhecido como Alto Novo, motivado pela enchente que obrigou sua famlia a sair do seu bairro de origem. Em 1982, com 21 anos, comeou sua
68 O Padre Palhano, para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), no um bairro, mas sim parte integrante do Bairro Sumar. Apesar disso, ele reconhecido pelo poder pblico da cidade de Sobral enquanto tal, portanto decidi preservar a denominao de bairro, respeitando no s a definio da municipalidade como tambm a fala e os documentos apresentados pelo narrador escolhido. 193 atividade comunitria na pastoral da criana na parquia do padre Joo Batista Frota, ajudando a comunidade a criar galinhas e cabras, assim como auxiliar na comercializao da criao. Aps dois anos na Pastoral da criana, ajudou na constituio da associao comunitria do bairro Dom Jos, onde, como ele mesmo diz: ... a foi quando eu comecei realmente a sentir que a minha vocao era aquilo ali: Vivenciar dentro da comunidade e desenvolver diversas atividades (entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal no dia 13/06/2001). Neste mesmo bairro, foi presidente do conselho paroquial da Igreja do Patrocnio, na qual ajudou na construo da Igreja Nossa Senhora do Perptuo Socorro, do Bairro Dom Jos. Estevo tambm veio do bairro Dom Jos, onde no tinha casa prpria e, segundo ele, por necessidade, construiu sua casa juntamente com mais oito famlias perto da lagoa de tratamento ao lado da estrada frrea. Ele conta que: ... era uma vilazinha e quando j estava quase tudo levantado... na poca era o cabo Santos, hoje sargento, e ele pediu para a gente continuar. Ele juntamente com o Z Arteiro que era cabo eleitoral do finado Z Prado. E eles mesmo ensinou como era que fizesse. A eu juntei na faixa de umas setenta a oitenta pessoas. Z Prado... foi na hora que ele ia saindo j pra Fortaleza e ns tomamos a frente do carro e ele perguntou o que era que a gente queria, eu falei que ns queria terra para construir nossas casas e ele perguntou se tinha alguma rea n eu disse tem a, o... Arroz... (entrevista realizada pelo pesquisador com Francisco Estevo em 08/05/2003). A fazenda Arroz, portanto, atravs do aval do prefeito na poca Jos Parente Prado (1989/1993) 69 , foi ocupada por vrias famlias dando origem ao hoje bairro Padre Palhano, no incio da dcada de 1990. Expedito tambm est no Padre Palhano desde 1989, onde construiu sua prpria casa em 1990. Apesar de no omitir sua experincia no bairro Dom Jos como lder comunitrio, todo o seu discurso versa de forma mais detalhada sobre sua experincia no Padre Palhano, assim como Jos Estevo. Eles tendem sempre a demarcar suas posies enquanto lderes engajados, astutos, apesar de humildes e despojados de pretenses financeiras ambiciosas. A idia da comunidade sempre est presente nas suas falas. Suas famlias, como eles contam de origem humilde. Expedito J foi bia-fria em So Paulo na juventude, teve problemas com bebida e foi bastante namorador. No tempo da entrevista trabalhava como vigia noturno na escola Rainha da Paz, localizada ao lado da
69 Prefeito em dois mandatos em Sobral (1973/1977 e 1989/1993) conhecido na poca como Z do povo. 194 Igreja do bairro. Estevo parece lembrar com mais detalhes o processo de surgimento do bairro no qual foi protagonista principal em sua narrativa. Segundo ele, o prefeito, quando foi solicitada a terra para eles morarem disse: vocs vo pra casa de vocs que eu vou viajar e quando eu voltar eu vou ajeitar o terreno pra vocs. Estevo que j freqentava a regio prxima a futura Igreja do bairro que era um campo de futebol, escolheu a rea que era de um indivduo denominado por ele de Luis Frota. Esta pessoa os procurou e disse uma coisa que Estevo jura nunca mais esquecer: ... ele chegou bem aqui... ele mais trs pistoleiro dele, todos trs armados... ele chamou... vinha com trs nome no papel. Chamou o Raimundo e perguntou, e eles o que puderem falar, e chamou um outro rapaz que nem mora mais aqui tambm, e quando ele chamou meu nome a eu soube dar a resposta. E essa resposta que eu dei graas a Deus depois ele me deu outra que eu gravei at hoje, ainda hoje t gravado e ele... bem aqui assim ele perguntou: Com qual ordem voc levantou sua casa? A eu disse: Seu Luis em primeiro lugar foi a necessidade e em segundo foi o dono da cidade, o prefeito, eu fui l falei com o prefeito e ele mandou Tudo bem. Mas voc no sabia que a terra era minha?Porque se fosse dele, do Z Prado, ele no dava a ningum. A eu disse: Eu no sabia no seu Luis que, se eu soubesse que era sua, eu tinha certeza que eu ia lhe pedir um terreninho pra mim, que eu sei que voc me dava. E com isso a parece que ele esfriou. A ele chamou o pessoal, os capanga dele e foram embora. A depois de tudo j tinha mais ou menos umas oitenta casinhas, uns casebrezinhos [sic](entrevista realizada pelo pesquisador com Francisco Estevo em 08/05/2003). O lder comunitrio conta que logo aps este episdio seguiram-se ameaas a outras pessoas que s foram amenizadas com a indenizao concedida pela prefeitura. Ele narra que, seguindo-se a isso ocorreu a fundao da Associao Comunitria logo no primeiro ano, atravs da qual conseguiram chafariz pblico, encanao e com a ajuda de um poltico, foi realizado um show para arrecadar fundos para a primeira etapa de gua e luz. A famlia Ferreira Gomes tambm citada por ele como responsvel por algumas benesses no bairro. Segundo ele, ... o pessoal criticava muito o prefeito, a famlia Ferreira Gomes: que eles no davam o que deles a ningum. Lgico que ningum vai dar o que seu a ningum. Mas que pra trabalhar... o prefeito mostrou servio. E ta nosso bairro a. E se fosse outro prefeito eu no acreditava que tava desse jeito no, com saneamento e tudo em conta, falta alguns detalhes... (entrevista 195 realizada pelo pesquisador com Francisco Estevo em 08/05/2003). Expedito, por sua vez, detalha mais o seu envolvimento no trabalho comunitrio, pela melhoria do local. Segundo ele, ... chegamos aqui no bairro em 90 70 , no bairro totalmente escuro, sem nenhuma situao de moradia, aqui o nosso bairro era assim, um bairro encharcado, era como se fosse assim, uma cama dgua, e a gente chegou aqui, acreditamos que esse bairro poderia crescer que nem o bairro Dom Jos. Tambm no era um bairro muito bom quando a gente morava l, e a gente acreditou, e eu comecei a formalizar aqui, os primeiros mutires. Eu comecei at com uma histria engraada, porque eu sa numa determinada padaria aqui de Sobral do Joo Chicute, e consegui na base de uns oitenta pes e consegui nos mercantis, acar e alguns sucos, e inventei aqui, a chamada garapa doce para a crianada daqui, e sai distribuindo aqueles bilhetizinhos de casa em casa pra reunir as crianas daqui do bairro, pra gente servir esse refresco. E a foi nessa oportunidade que a gente lanou o primeiro mutiro comunitrio aqui no bairro Pe.Palhano. Foi para a gente fazer uma abertura de caminho pra dar acesso a gente se deslocar at o bairro Dom Jos, porque era totalmente fechado, os matos, e a tambm s vezes, as pessoas j tinham sido at... mulheres... homens correndo atrs das mulheres. Ento a gente vendo isso a, fizemos o primeiro mutiro, abrimos essa estrada, e a comeou o trabalho. E a a gente comeou a acreditar que o bairro precisava de outras coisas, a comecemos a fazer o trabalho, em 1991 foi fundada a associao dos moradores aqui do bairro(entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 13/06/2001).
Na verdade sua pretenso era outra, nesta astcia de distribuir refresco para as crianas, Expedito conseguiu articular os pais destas para um fim outro. Como ele mesmo conta, reuniu as crianas e, Olhe, hoje o dia de vocs, prximo domingo o dia dos pais de vocs, vocs levam um recado para os pais de vocs, que eu vou estar de manhzinha no meio do campo, cada um traga uma foice, um faco, traga o que tiver, no para brigar no, e brigar sim, mas brigar contra os matos e abrir um acesso para que as prprias mes de vocs no sejam vtimas de at mesmo um suposto assalto ou at mesmo uma coisa at pior. E assim rapaz foi legal, veio em torno de uns 22 homens. E na manh do domingo do dia seguinte, oito dias depois, ns tava j mobilizando esse grande mutiro, e a comeou nosso trabalho, nossa luta [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 13/06/2001).
70 Apesar de dizer que chegou em 1990, em outro momento da entrevista Expedito chama ateno que este ano foi o da edificao de sua casa prpria, antes disso, em 1989, morava de aluguel. 196 Durante toda sua narrativa Expedito empolga o ouvinte com suas histrias de esperteza e independncia diante do poder pblico. Conta casos que vo de encontro com determinados valores, que julgam e condenam como incapazes de implementao de determinadas prticas, pessoas que no possuem formao superior. Conta por exemplo, de sua polmica posse como presidente do Conselho Municipal de Sade da cidade de Sobral onde sua formao foi posta em questo: E a veio aquela polmica na hora de decidir: Quem ns deveramos decidir? Vamos decidir para o cara que formado ou vamos acreditar e colocar nas mos de uma pessoa que no tem a formao de faculdade? Mas a quem venceu? Eu acho que acabou fomos todos ns, que ns chegamos a um consenso, o prprio Vicente Abdias eu passeie assim a... eu j admirava a pessoa do Dr. Vicente Abdias e passei a admirar ele porque na hora do consenso ele foi muito... ele foi coerente, reconheceu e ele mesmo chegou a abrir o espao, a ponto de abrir o espao ele realmente iria retirar o nome dele e que iria apoiar a minha candidatura, mas a no segmento tinham outras pessoas como eu tive um dos usurios pra voc ter uma idia, eu tenho at colocado assim que o mundo ser melhor no dia que o pequeno acreditar nele mesmo. Um daqueles que eram usurios igualmente a mim dependente do SUS, porque a gente v assim: o secretrio de Sade o Dr. Odorico, ele um grande secretrio mais ele no se faz usurio do SUS, ele no passa a humilhao que os usurios dos SUS passa na porta da Santa Casa, as humilhaes que a gente passa nesses hospitais porque ele no necessita do SUS. O Dr, Vicente Abdias um bom nome. Mas ele tambm no necessita do SUS, ele um clnico, ele tem uma outra viso. Ento, quer dizer, a melhor pessoa que poderia defender o usurio o prprio, mas pessoas do mesmo segmento da gente disse claramente que na hora de votar, mesmo que eu fosse a pessoa capacitada ele votaria no cara formado, porque esse sim quem estudou a medicina, que tinha conhecimento sobre sade entendeu? E isso onde mais di na hora onde voc ouve de um usurio, uma pessoa l, do seu nvel, ter um pensamento desse a. E a a gente tambm tem que respeitar, a onde entra justamente essa questo: voc tem que respeitar e engolir um pensamento daquele ali e respeitar o pensamento do cidado que um direito livre. E a vem a questo do currculo rapaz! E teve um l que me exigiu. Disse que s poderia indicar o meu nome ou votar em mim se eu enviasse assim pra mesa dele um currculo de formao em Sade, de formao de no sei mais o que tem mais l, de faculdade; quer dizer o cara exigiu, s faltou exigir...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 12/03/2002).
197 Diante desta dificuldade, Expedito polidamente respondeu que acatava e respeitava a posio do seu companheiro de conselho, porm questionava: ... s vezes as pessoas se preocupam muito com essas coisas de faculdade, de currculo de formao e eu at cheguei a citar algumas, dizer um modo que eu acho assim da minha formao eu falei no momento de loucura, no do programa de televiso no, mas eu at cheguei a dizer assim: rapaz eu at no me preocupo muito com essa questo de currculo, eu at perguntei aonde por acaso o Jader Barbalho foi formado: l na escola do Pe. Palhano, Sumar, Santa Casa ou no Dom Jos? Aonde foi formado o P.C Farias da vida? O juiz Lalau por exemplo? Nas melhores faculdades internacionais e tudo. Para que um currculo maior do que aquele ali? (entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 12/03/2002).
Durante a sua fala, Expedito constri uma narrativa experimental que todo tempo tenta afetar de forma mais incisiva o ouvinte que lhe escuta. Os bolsistas de iniciao cientfica que sempre me acompanhavam nas entrevistas, alguns entusiastas da imagem militante que o lder comunitrio quer passar, apesar dele mesmo no se enquadrar enquanto militante, comentavam as atitudes e prticas relatadas por ele como se finalmente algum tivesse dito algo que eles queriam ouvir, da forma como deveria ser dito e feito de fato. Ele conseguiu atravs do discurso, respeito e admirao dos bolsistas de
Expedito Vidal no procura impressionar apenas por suas palavras, mas fez questo de mostrar determinados espaos do bairro para enfatizar ainda mais sua narrativa da comunidade necessitada. Esta uma casa de uma senhora que poucos dias antes tinha sido hospitalizada. Segundo ele e vizinhos, ela estava morando na casa mesmo nestas condies. O esgoto na parte interna flua livremente e um mvel, com suas poucas roupas, estava ao lado das telhas cadas da casa juntamente com uma rede estendida. Fotos: produzida pelo pesquisador. 198 iniciao cientfica que trabalhavam comigo. Confesso que tambm cultivo admirao pelo lder Comunitrio, convencido pela sua extrema facilidade de se comunicar. O prprio Francisco Estevo o elogia dizendo que seria um bom candidato a vereador pelo bairro Padre Palhano, mas acha que no aceitaria o desafio. O bairro, na fala de Expedito, sempre aparecia como marco de distino e origem de suas prticas, assim como ele sempre colocava como obra de sua iniciativa a luta pela implementao de melhorias nos bairros em que morou, principalmente, no Padre Palhano, local de moradia e palco de suas histrias, que foi o assunto mais envolvente, chamando a minha ateno e a de meus bolsistas. A idia que ele passava na sua narrativa de que suas atividades de lder comunitrio no serviam para seu benefcio prprio, mas sim para a comunidade do bairro. Ele conta sua histria no bairro com todos os detalhes possveis. Suas prticas como lder comunitrio eram sempre exaltadas, no no sentido de uma autovalorizao exagerada e exibicionista, mas mostrando astcia, esperteza, sabedoria e, principalmente, humildade para atender comunidade. Estevo tambm segue o mesmo estilo, exaltando suas prticas como lder comunitrio. Apesar da minha insistncia em colocar outras questes, Expedito sempre voltava a falar de suas intervenes no que ele chamava organizao comunitria do bairro, nas reivindicaes atendidas pelo poder pblico como resultantes de sua atividade de liderana e na diferena de suas atitudes quando comparadas com a politicagem de alguns. Para ele, as pessoas que tomam este tipo de atitude na associao comunitria, por exemplo, se entregam ao sistema. Como ele mesmo comenta: Ento essa pessoa fica fcil de ser mobilizado pelo sistema, voc sabe que o sistema ele forte, ento voc ir contra o sistema, se voc querer comprar uma briga contra o sistema, contra a... Porque a poltica, voc sabe? Que existe a verdadeira poltica, mas h muita politicagem no mundo. E essa politicagem que... aquela gua toldada que ela acaba salpicando e manchando muitos que passar por perto dela. Ento, as pessoas despreparadas que usam as associaes como um meio de politicagem, transforma as nossas associaes numa associao eleitoreira. Isto , uma coisa que eu tenho chamado ateno bastante(entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 13/06/2001). Politicagem na acepo de Expedito pode ser entendida como prticas direcionadas para favorecimento pessoal daquele que a pratica, mentira e ao uso indevido 199 do dinheiro pblico. Estevo inclusive chega a citar o caso de um presidente da associao que foi cassado em seu mandato, chamando ateno destas qualificaes, s que, no seu caso, pensa que estas prticas so intrnsecas do poltico. Segundo ele: ... o presidente aqui foi cassado e fez muita sacanagem pra ser eleito. Inclusive foram trs candidatos e quem tirou menos votos foi eu, porque eu acho que porque eu fui o mais verdadeiro, tirei menos votos porque o pessoal acredita mais na mentira... Ele usou essa eleio como se fosse uma eleio poltica... E bicho pra mentir poltico. E assim a mesma coisa ele fez. Esse que foi cassado ele poltico, ele mais poltico do que comunitrio. Roubou que s ele, foi vendido tijolo, tudo isso. Porque realmente esse rapaz no era nem pra est solto. Ele era pra est preso. Preso de tanto roubar porque ele roubou demais aqui nesse bairro. Ele roubou assim: ele utilizava o nome da associao pra adquirir tijolo, cal, cimento, essas coisa e ia construir casa pra ele... (entrevista realizada pelo pesquisador com Francisco Estevo em 08/05/2003). Portanto, h nesta narrativa uma distino entre trabalho comunitrio e poltica. Expedito tambm tenta fazer esta distino dizendo que o lder comunitrio tem que estar Expedito Vidal mostrando rea de risco no bairro Padre Palhano, onde crianas tomavam banho, correndo o perigo de contrair doenas, segundo o que alerta. Francisco Estevo tambm chega a chamar ateno para esta rea problemtica do bairro. Fotos: produzida pelo pesquisador. 200 preparado, ser valente, como coloca em sua cartilha, saber sobre a constituio, sobre o cdigo penal, participar de todos os seminrios promovidos que abordam as mais diferentes temticas, dentre outras formas de preparao, inclusive participar de atividades promovidos por polticos, como jantares, por exemplo, no no sentido de aderir s propostas deles, mas de ouvir o que eles tm a dizer. Para amarrar seu argumento ele toma como exemplo sua gesto na associao: Ento na minha gesto aqui como presidente da associao, eu recebia todos eles. At coloco que a associao tem que estar de porta aberta sim! Para receber os nossos, as pessoas que esto no poder, os atuais, os futuros. Temos que ouvir, porque infelizmente j dizia Scrates: que a desgraa... a desgraa dos que no gostam da poltica que acabam sendo governados por aqueles que gostam e mal governados. Ento a gente tem que conhecer... (entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 13/06/2001). Suas astcias e sua imagem de sabedoria como lder comunitrio que aparecem no seu discurso, esto alm de uma filiao partidria e sugerem uma preparao inclusive intelectual. Ele est constantemente preocupado em ler aquilo que para ele, faz com que fiquemos sabendo como o mundo est. Livros de filosofia e histria, que no caso dele so emprestados por pessoas que os podem comprar, so leituras obrigatrias, no s para sua formao, mas tambm para o de qualquer lder comunitrio. A idia de comunidade no bem precisa na sua fala, mas engloba os moradores do bairro. A comunidade, no seu discurso, coincide com os moradores do local. Da forma como fala, Expedito passa a construir uma imagem, na qual ele um dos responsveis pelo fortalecimento dos laos de solidariedade desta comunidade, assim como o mediador da fora da coletividade com o poder pblico. Segundo ele, seu projeto nunca pode ser realizado se a comunidade no participar. Esta idia se apresenta de forma mais enftica quando conta sua interveno no setor de segurana pblica em Sobral. Fazendo parte do Conselho de Segurana do seu bairro, ele leva ao comando geral da polcia em Fortaleza, capital do Estado, um documento mostrando o aumento da violncia na cidade, principalmente, no seu bairro e propostas para melhorar a situao. Essa atitude levou o represente local a ser demitido. Resumindo, quando conclui sua histria, a idia de comunidade associada ao bairro aparece. Como ele mesmo conta: E a eu levei um documento colocando a real situao, os crime de morte, 201 os assaltos que ns tivemos aqui luz do dia. claro assim... ... ah! Mas isso a nvel de Brasil.... Eu no quero saber de Brasil, eu quero saber do meu bairro, eu tenho que defender a minha comunidade, se t entendendo? Eu quero l saber se a violncia t no mundo inteiro, o importante que no meu bairro... no esteja aonde eu moro, ento eu tenho que lutar aonde eu estou habitando, entendeu?[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Expedito Vidal em 13/06/2001). Estevo chega a fazer uma distino entre o bairro, genericamente falando e o Padre Palhano. Segundo ele, Esse bairro aqui ns considera ele aqui, que nem uma... eu mesmo, eu, o Expedito e outras pessoas que j trabalharam aqui nesse bairro, ns no considera ele assim um bairro... Ns considera ele assim como uma cidadezinha do interior, todo mundo se conhece aqui, todo mundo se conhece. Ns conhece todo mundo do bairro aqui. Todo mundo amigo. Existe o malfazejo, mas porque, o bebedor de cachaa esse normal algum malfazejo. Muitas coisas aqui de errado que j aconteceram aqui a gente viu na hora do acontecido: olha furou algum. - Quem foi que furou? - Um rapaz, mora l no Sumar, l no Alto Novo em outro bairro[sic]. (entrevista realizada pelo pesquisador com Francisco Estevo em 08/05/2003).
Trecho do Riacho Mucambinho no bairro Padre Palhano em Sobral. Foto: produzida pelo pesquisador. 202 Tanto Expedito quanto Estevo, mostram uma determinada conscincia da responsabilidade de suas condutas, e passam a organiz-la racionalmente tendo em vista atingir determinados fins para satisfazer suas necessidades de auto-afirmao como representantes ou lderes comunitrios. Esta racionalizao serve tambm para explicar a conduta. a comunidade o seu fim. Ela aparece como uma grande famlia, fortemente ancorada em um reconhecimento social e um respeito mtuo entre os agentes moradores. O que nocivo ou inconveniente parece vir de outros bairros. O Sumar aparece sempre como o mais citado. O lder, portanto, mais do que um representante na narrativa de Expedito e de Estevo; responsvel por resguardar e fortalece os laos comunitrios e ser um mediador entre os moradores e o poder pblico. nesta perspectiva que a idia de projeto trabalhada por Gilberto Velho (1987) se apresenta. O autor lembra que no mundo contemporneo, o indivduo se desloca ou transita por inmeros ambientes sociais, mas, ao mesmo tempo, estimulado socialmente a diferencia-se em papeis especficos. O caso destes dois lderes comunitrios paradigmtico desta idia e o bairro ou a comunidade aparecem como instrumento mediador desta diferenciao, demarcao de identificao e explicao da conduta. Hodiernamente, o indivduo aprende socialmente a ter uma percepo de sua singularidade no mundo, assim como reproduz este aprendizado, e formador e formado pela especializao e fragmentao social de que faz parte. O processo de construo de identificao individual de si, necessria para viver no mundo contemporneo, alimenta-se de uma memria do passado aprendido socialmente, assim como de um projeto que sua percepo como singular no mundo, o obriga a conceber para poder viver neste modelo de sociedade atual. Portanto, como lembra Gilberto Velho (1987), o projeto individual tem uma historicidade, pois se desenvolve em um campo scio- cultural. O bairro passa a ser o marco espacial e a origem deste projeto, apresentado por Expedito e Estevo enquanto lderes comunitrios. Porm, como j dito, diante dessa fragmentao, da especializao e, conseqentemente, da heterogeneidade social, pela qual o individualismo da cultura contempornea se desenvolve, os projetos individuais ento postos em campo de tenses mltiplas. Como lembra Gilberto Velho (1987), apesar de ser uma sociedade com um poder e um saber predominante, tambm uma sociedade de indivduos, com projetos 203 individuais, que muitas vezes, esto em conflito, tanto contra o saber dominante, quanto contra outros projetos singulares. o caso, por exemplo, de vrios moradores citados tanto por Expedito quanto por Estevo, que abandonaram o bairro, achando que ele no ia, como Expedito mesmo diz, desenvolver-se, e venderam suas casas e terrenos a preos baixos. A idia de comunidade, fortalecida por laos solidrios, entra em xeque aqui. Os dois denunciam que 3 ou 4 pessoas so praticamente donas do bairro, algumas delas, morando no centro da cidade, vivem dos aluguis das casas. Os lderes comunitrios contam que um deles chega a ter cinqenta casas, alugando-as a preos que variam entre 50 e 70 reais. Expedito conta que tudo isso acontece em decorrncia de uma imagem socialmente construda sobre o local que denomina de pantanal. O nome surge, segundo ele, de uma conjugao de fatores. Primeiramente, pelo fato de ser uma regio que constantemente afetada pela enchente do riacho Mucambinho que passa por traz de sua casa. O bairro era constantemente encharcado, problema que at o encerramento desta pesquisa continua atual. Em uma determinada poca, a novela Pantanal da rede Manchete de televiso, ajudou a consolidar este nome. Outro fator contado por ele, para solidificar a denominao, foi o fato de ter sido assassinado um funcionrio da Coelce de alcunha de jacar, cujo corpo foi encontrado no riacho, nas proximidades do bairro. Isso fez com que o termo fosse fortemente reproduzido, no cotidiano, pelas pessoas que queriam referir-se ao bairro por algum motivo, pois, segundo o lder comunitrio, para estas, jacar s existe em pantanal. Para ele, tanto estas prticas de alguns proprietrios de casas, quanto a denominao dada ao local, assim como a politicagem de outras lideranas locais reforam determinadas imagens negativas do bairro, desvalorizando-o socialmente. Estevo tambm faz o mesmo tipo de reflexo. Neste exemplo, a tenso de projetos se apresenta de forma enftica. O Riacho Mucambinho, citado por eles e j apresentado aqui por Adalberto Mendes, exatamente resultante do escoamento do aude Mucambinho no bairro Terrenos Novos, bairro este que tambm tem a alcunha de Cidade Jose Euclides 71 . Passa por vrios bairros da periferia da cidade, como Terrenos Novos, Vila Unio, Sumar, Padre Palhano,
71 Nome do av do Prefeito Cid Gomes (gestes 1997/2000 e 2001/2004) que chegou a assumir o cargo de Prefeito quando lder da Cmara de Vereadores de Sobral em substituio ao Prefeito titular. 204 dentre outros, chegando a escoar no Rio Acara no bairro tamarindo. A poluio e assoreamento do riacho so visveis. O fato de nos bairros por onde passa, boa parte ter um saneamento bsico inexistente facilita a manifestao de doenas. constante em poca de muita chuva haver centenas de famlias desabrigadas. Os bairros por onde o riacho mucambinho passa, correspondem a aproximadamente 34% da populao da sede municipal 72 , e todos eles podem ser considerados como abrigo da populao mais carente financeiramente falando. Dentre estes bairros, os Terrenos Novos primeiramente com 14.771 habitantes e o Sumar com 12.567 habitantes, incluindo neste ltimo a populao do bairro Padre Palhano, so os mais populosos. Sobretudo estes ltimos, so muito visados no que se refere ocupao de espaos para moradia sem a intermediao de uma poltica de habitao. O local denominado pelos moradores de Cidade Jos Euclides II, um exemplo disso. Fica ao lado do bairro Terrenos Novos ou Cidade Jos Euclides, praticamente dividindo o bairro em dois. Este tipo de ocupao de reas urbanas favorece a formao de lideranas comunitrias, que visam mobilizao, ocupao e organizao do bairro. Como j visto no depoimento de Expedito e Estevo, apesar das dificuldades financeiras desta parcela da populao, que mora nestes locais, a especulao imobiliria tambm se faz presente. Maneco outro exemplo desse tipo de agente, que tem como meta mobilizar a comunidade. Assim como Expedito Vidal e Francisco Estevo, Maneco tambm se coloca como uma pessoa responsvel pelo surgimento e consolidao de bairros em Sobral. S que de outra forma. Enquanto os dois anteriores se distanciam todo tempo das politicagens, tentando se diferenciar inclusive dos partidos polticos e dos polticos, Maneco, ao contrrio, deixa explcito seu engajamento partidrio. Inclusive, sendo um dos primeiros, em Sobral, a ser filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Como muitos moradores deste tipo de bairro, no nascido na cidade. Nasceu em 1945, de Tucu, distrito de Coroat no Maranho e est na cidade desde 1969, quando j estava engajado, h algum tempo na Juventude Operria Catlica (JOC), tendo passado, atravs de seu trabalho nesta instituio
72 Estimativa calculada com base no censo de 2000, realizado pelo IBGE. No se pode confiar completamente neste nmero, pois a delimitao territorial, por bairros, do IBGE um pouco distinta da delimitao oficial da Prefeitura o que requer maior cautela na anunciao de qualquer estatstica. Calculou-se aqui a soma da populao dos bairro Terrenos Novos, Domingos Olmpio, Pe. Ibiapina, Dom Jos e Sumar, levando-se em conta a diviso do IBGE. O bairro Padre Palhano e Tamarindo parecem estar inclusos na delimitao, sem ser anunciados em separado. 205 da igreja, por Terezina e Fortaleza. Seus pais eram agricultores, situao que o fez trabalhar por algum tempo nesta atividade, sem deixar de investir em seus estudos. Todos da famlia sabiam ler e escrever. Quando seus pais morreram em 1959, foi morar em So Luis com algumas tias e l trabalhou como servente e pedreiro. Nesta cidade comeou a se engajar na JOC. Foi perseguido, politicamente, na poca da ditadura militar e, em 1971, entrou no Movimento Eclesistico de Base, deixando a JOC. Hoje Maneco arroga para si a responsabilidade do surgimento de um bairro da cidade, oriundo da organizao de movimentos sociais, que visam a ocupao de reas em desuso para construo de moradias para pessoas de baixa renda: a Vila Unio. Toda sua formao de militncia foi construda em instituies no ligadas a partidos. Na JOC, atravs da leitura da bblia, debatia-se, usando a metodologia do ver, julgar e agir, tentando compreender em que medida aquele livro podia servir para compreender e mudar a sociedade. O enfoque central, segundo Maneco, era sempre o mundo do trabalho, a organizao e a luta dos trabalhadores. Quando chegou a Sobral, fazia parte da JOC nacional, o que fez com que se tornasse uma pessoa muito visada pelo governo militar em vigncia na poca. Segundo seu relato, era uma poca de muito medo e preconceito. Algumas pessoas rejeitavam os representantes da instituio que era tida por elas como comunista. Na prtica dos membros da JOC, cada um deles visitava ou convivia com a realidade, colocando-a em discusso nas reunies, sempre tendo a bblia como referncia e pensava em aes prticas para solucionar os problemas apontados. Tudo isso era anotado em cadernos que cada membro da instituio possua. Porm, a ditadura militar fez com que abolisse a prtica de anotar, em cadernos, suas atividades e nomes de pessoas, pois os rgos de represso usavam estes como fontes para perseguies e prises. Por duas vezes Maneco teve de adotar a ttica da fuga como forma de preservar sua integridade fsica e moral. Uma delas em Sobral e outra em Fortaleza. A prpria entrevista com Maneco tem uma peculiaridade com relao s outras e est ligada histria de surgimento do bairro Vila Unio. Ele foi o nico entrevistado que no foi procurado por mim. Pelo contrrio, procurou-me para entrevist-lo. Particularmente para ficar registrado, atravs da entrevista, seu envolvimento com a ocupao e 206 consolidao do bairro Vila Unio. Sendo ele um exmio narrador, no rejeitei sua demanda. Porm, orientei o narrador para que no se restringisse a falar do processo de ocupao da Vila Unio, mas tambm contasse sobre sua vida em Sobral, o que prontamente me atendeu. Maneco, logo no nosso primeiro encontro mostrou uma fita de vdeo gravada com quase todo o processo de mobilizao e ocupao do local. Ele era o narrador na fita. Fazia s vezes de reprter, alm de ser um dos protagonistas do filme. Durante a sesso que assistimos, ele foi narrando detalhes no gravados no vdeo e falando o nome das pessoas que apareciam, sempre observando minhas expresses durante a sesso televisiva. Durante a entrevista ele conduzia a narrativa de forma muito bem organizada cronologicamente. Minhas intromisses no seu discurso quando falava de assuntos outros que no faziam parte do preferido pelo narrador no momento, eram colocados em suspenso atravs da promessa de serem retomados mais adiante. Sua vida, contada em um primeiro momento, de forma resumida, acaba desembocando na histria do Vila Unio. Sabendo que o pesquisador queria mais do que isso, ele justificou seu discurso sobre o lugar, observando que fazia parte de sua histria de vida tambm. Antes contextualizou o assunto dizendo que mesmo antes de chegar a Sobral, como militante da JOC, uma de suas preocupaes era as ocupaes ou invases, pois para ele estes dois termos tm pouca diferena. A diferena est, como ele mesmo diz, s na compreenso da gente(entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001). H um sentido poltico dado a cada um dos termos que deve ser levado em considerao no seu contexto de enunciao, apesar de serem sinnimos. Para ele, Eu chamo invadido aquilo que o pessoal fez aleatoriamente e botou pra ganhar voto. Por exemplo: essa casa aqui , ela entravada. Eu no pago, essa casa minha e eu no entrei com uso capio ainda pela questo de acomodao. Mas a maior parte dessa Expectativa 73 aqui, de casas que foram invadidas, ocupadas por polticos. O poltico queria ganhar voto, botava a pessoa pra morar aqui. Tanto que as ruas so tortuosas, uma casa maior do que a outra, a frente maior do que a outra, exatamente porque o cabo eleitoral daquela poca tinha uma noo de ganhar voto [sic](entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001). Na sua perspectiva, este tipo de prtica extremamente negativo, apesar de ser
73 O narrador est se referindo ao bairro Alto da Expectativa. 207 muito comum na cidade, e a isso que ele chama de invaso. Cita vrios bairros que para ele surgiram desta forma como Alto de Braslia, Parque Silvana, o Alto da Expectativa onde mora, dentre outros. Segundo ele, o tipo de trabalho que faz diferente. Maneco avalia como mais organizado. Em 1979, ele se engajara no futuro Partido dos Trabalhares (PT), mesmo fazendo parte de uma instituio segundo ele apartidria que era o Movimento Eclesistico de Base (MEB). No MEB trabalhou como educador e no Centro de Estudos e Apoio ao Trabalhador (CEAT). Porm, antes de comear a trabalhar com a comunidade, fez um curso no Rio de Janeiro ligado ao Instituto Dom Bosco. No curso foi conhecer dois exemplos de assentamento e luta pela terra: um em Porto Alegre, na fazenda Nunes e outro no Rio, no ano de 1986. Como ele mesmo diz: Foi muito bom. Voc chega numa ocupao dos sem-terra como se fosse um teatro. Assim voc tem tudo ali, voc se sente um menino ali dentro, porque l as pessoas lutam mesmo porque l tem objetivo, tem poltica, tem toda uma viso... Assim, aquilo que eu no tinha na Ao Catlica, voc encontra ali dentro. Se voc olha para o lado voc v tudo o qu voc precisa dentro uma ocupao dessa natureza. Claro, eu j ia alimentado de uma esperana, porque quando vai... se vai voc pra ver o co, capaz de voc ver ele l, mas eu no tava a fim de ver ele, eu no tava a fim de ver outra coisa, e, a a gente escuta como que se faz a estratgia, como que foi chegado l, como foi que eles fizeram, lutaram pra chegar at l aquela situao, como foi que o Movimento se estruturou...[sic](entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001). Com esta formao, ao voltar para Sobral, Maneco presenciou a ocupao desordenada da rea que abrigava a antiga estrada de ferro que passava em frente a sua casa no bairro Alto da Expectativa. Enfatiza sempre que, para ele, boa parte das invases no visavam satisfazer as necessidades das pessoas por moradia, mas sim, tinham fins eleitoreiros. A invaso em frente sua casa, segundo conta, foi iniciada por uma pessoa que cercou uma rea e as outras, ao ver o terreno cercado, foram cercando tambm, sem nenhum processo de cadastro ou organizao. A associao comunitria do bairro foi contra a invaso e denunciou para a Rede Ferroviria Federal S.A. (RFFSA), dona do terreno. As pessoas foram obrigadas a desocupar a rea. Segundo o narrador Maneco, foi neste momento que ele percebeu a gravidade da falta de moradia na cidade. Quando retiradas, estas pessoas foram invadir uma rea perto da Lagoa da Fazenda (hoje parque 208 ecolgico), em um local denominado pantanal 74 . Em 1991, atravs do projeto Habitar do governo estadual na gesto do Ciro Gomes (1991/1994), a associao comunitria cadastrou as famlias carentes de habitao, incluindo os que moravam no pantanal. Maneco, atravs do MEB, participa de toda a discusso sobre o problema da moradia e da ocupao na Lagoa da Fazenda. Mas, como ele mesmo conta: ... mais ou menos s 10 horas, chegou aqui um amigo do PT, o Osvaldo o Osvaldo Aguiar, chegou aqui pra conversar pra discutir poltica, poltica mesmo, a eu passei a conversar com ele porque eu sou conversador, conversando com ele disse: Osvaldo agora eu estou preocupado, a eu contei para ele, eu tenho acompanhado esse projeto a, e, rapaz, as pessoas no tm onde morar no. Numa casa tem 5, 6... casa do tamanho dum ovo tem 5,6 famlias. Muitos pagam aluguel. Dentro daquela casa se paga aluguel!. Como um estalo ele disse: rapaz, eu sei dum negcio acol muito bom, aquele negcio... Maneco, o Jia... O Jia era primo do Osvaldo. O Jia era uma galinha dgua 75 que foi vereador, problemas sacanas a mil, mas o Jia era uma espcie assim de procurador do Paulo Lustosa. O Paulo Lustosa, quando foi ministro da desburocratizao daquela parte... aquilo no era um ministrio, mesmo um ministrio ele conseguiu atravs disso a uma rea aqui nos Terrenos Novos. Terrenos Novos hoje Z Euclides. pra fazer uma experincia de gado ou coisa assim, cercou tudo l o que ele pode, que tinha, no sei se era dele; eu sei que era... segundo a informao depois que a gente teve, era um acordo de comudata coisa a em 20 anos, e que ele tinha um projeto em 20 anos pra fazer um bocado de coisa, e, que na verdade era s aquela histria de dinheiro mesmo. Para sair dinheiro. Essa rea hoje a Vila Unio. Tinha uma cerca de arame j velho do inicio de quando ele conseguiu esse projeto; tava l e a ele me disse o seguinte: que dois vereadores, mas ele no me disse quem eram os vereadores no, o suplente de vereador que o Paulo e mais outro foram l no Jia pedir ao Jia, convidaram o Jia para fazer, para lotear aqueles terrenos para vender aqueles terrenos pra eles. A o Jia disse que tinha dito, isso o Osvaldo me contando: no dia 10 de agosto de 1992, o Jia tinha dito: rapaz, deixa isso para os pobres, vocs no precisam disso no rapaz, e o Jia contou essa estria ao Osvaldo, quando o Osvaldo me contou essa histria caiu a sopa no mel... A foi com se fosse um estalo, eu fiquei do tamanho dessa casa aqui, eu l em cima. Ns vamos fazer... coragem, coragem ns vamos ocupar, tu topa? voc sabe onde ?, o Osvaldo: sei! [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001).
74 Esta denominao coincide com a produzida no bairro Padre Palhano, mas so locais diferentes da cidade. Maneco est se referindo ao Pantanal do Alto da Braslia, de onde as famlias foram retiradas e alocadas no Conjunto Habitacional Cesrio Barreto no bairro vizinho chamado Betnia. 75 Segundo o Sr.Gutemberg, um de meus entrevistados que s ser apresentado no ltimo captulo, o termo Galinha dgua uma referncia famlia de Jernimo Prado, ex-prefeito da cidade (1967-1971), que tem origem em um distrito de Sobral chamado Jaibaras. 209 Maneco fez o curso de Tecnologia da Construo o que lhe deu condies para fazer o croqui e a planta baixa do terreno. A disputa pela responsabilidade da ocupao estava entre ele e alguns vereadores, que tambm queriam fazer o loteamento. Nos seus clculos dava para assentar cerca de 100 famlias, tendo como base o tamanho de sua prpria casa. O comprimento da rua tambm foi tirado com base na sua rua. O nome Vila Unio foi ele quem deu, apesar de reconhecer que realmente um Conjunto Habitacional e no um bairro. Como ele mesmo justifica, o nome, Primeiro no tinha um bairro com o nome de Vila Unio, segundo porque era a unio das pessoas em torno de um bairro, terceiro porque a gente pensava que era um terreno da Unio. So essas razes...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001). As pessoas que ocuparam o terreno eram do bairro Dom Expedito e Alto da Expectativa. Neste ltimo, o prprio Maneco cuidou de cadastrar e articular as famlias. Em 24 de agosto de 1992 foi feita a ocupao com mais de 100 famlias. S quem sabia do local e data era ele e Osvaldo seu amigo. Ele, apesar de ser o idealizador, no queria aparecer. Mas, quando outros comearam a se aproveitar e invadir a rea, ele teve de aparecer. Como ele mesmo conta: Praa com equipamentos de lazer no bairro Vila Unio. Foto: produzida pelo pesquisador. 210 A, e at ento eu tava fora. Eu s era idealizador, eu tava no meio mas eu num era visto. O Maneco num era uma pessoa testa de ferro, mas nosso amigo. No deu tempo de treinar eles pra eles serem negociador, pra eles negociarem com os que virem de l para c. A foi preciso de entrar na histria. Eu ia negociar para eles dizendo que eles no podiam invadir; mas vocs to fazendo isso a!, no mas ns estamos fazendo uma ocupao. H Diferena de ocupao pra invaso. A eles estavam invadindo e ns tava ocupando. Um discurso desses de invaso para ocupao era uma coisa muito interessante porque, porque a ocupao organizado, e invaso era desorganizado. Era esse o discurso, e olhe aqui isso aqui tudo planejado e vocs vo fazer parte, uns engolia, mas a maioria ia entrar no faco. A gente que no ia entrar no faco! Mas aqui eu num saio, daqui eu.... Mas a l de cima tem um terrenozinho pequenininho. Porque no foi possvel a gente negociar mesmo, a teve aqueles que queriam, outros queriam terreno maior, ficou isso na parte de cima, e a eu tive que entrar no jogo porque...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001). Ao todo passaram por suas mos cerca de 1020 terrenos, sem contar aqueles que chegavam e ocupavam, desordenadamente, a mando de um suplente de vereador, chamado por Maneco de Paulo. Quando a notcia se espalhou, veio gente de todo canto, inclusive, de outras cidades. Para Maneco, sua atitude foi extremamente gratificante. Apesar de ter vinculao partidria, no acha que houve uma participao partidria na ocupao, pois, para ele, foi uma iniciativa individual e corajosa dele. Mostra orgulho de si prprio e Uma das ruas centrais do bairro Vila Unio descrito por Maneco. Foto: produzida pelo pesquisador. 211 desacredita da atitude de Paulo, por exemplo, que, segundo o narrador, tinha pretenses polticas. Ao contrrio de Expedito Vidal, Maneco no acredita muito na organizao popular, atravs da associao. Para ele: ... acho que elas so uma forma de descaracterizar, de acomodar as pessoas e de no fazer nada. Primeiro uma viso arcaica de 1940 numa realidade de 2001. Eu estou falando desse quadro de hoje. Nunca se atualizou. Ela foi criada com objetivo e foi destorcido para outro. Ento eles no representam o que hoje institucional. Uma instituio pede, o governo pede... at o que o governo pede cabo eleitoral e no a associao combativa, e a gente no precisava de uma associao dessa natureza. Mas as pessoas so pessoas e eles so muito maiores do que a gente. Tem as idias deles e criaram duas associaes l da vila, e brigaram logo[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Maneco em 05/07/2001). Sua idia era dividir o bairro em trs e constituir com os habitantes uma representao de cada parte com o mesmo poder poltico. No foi o que aconteceu. Uma quadra, que para ele era o marco inicial do bairro, por exemplo, passou a ser vista como descartvel para um dos presidentes da associao o que magoou muito Maneco, fazendo com que ele no aparecesse mais l. A outra associao, para ele, no tinha consistncia, apesar de no deixar muito bem claro o que isso significa. Tanto Maneco, quanto Expedito e Estevo, apesar das diferenas nas estratgias e tticas de atuao, tomam o bairro como marco de distino e qualificao de suas condutas, assim como ponto de apoio para produo de imagens, para referendar um tipo de personalidade herica, virtuosa, porm humilde. O bairro, por sua vez passa a existir como potncia, como faculdade, como suscetvel de realizar projetos (Velho, 1999b) que, pelo menos no discurso dos trs, vai alm das intenes individuais, apesar de partir delas. um projeto tambm coletivo, onde uma srie de categorias virtuais so produzidas e acionadas para sua efetivao. Categorias como a comunidade, os necessitados, dentre outras, aparecem no discurso dos trs narradores para explicar suas condutas individuais, prolongando-as e transformando em coletivas. O pedao (Magnani, 2000) acaba ganhando contornos polticos na fala dos trs narradores, ganhando uma aura de transgresso, pois surgem a revelia do planejamento organizado das polticas pblicas de habitao e sua comunidade luta para ser atendida e 212 reconhecida. No discurso dos trs, passa-se uma idia de uma rede de relaes que cria laos de solidariedade, que, cotidianamente, fortalece uma sociabilidade bsica fundada, dentre outros aspectos, em bases tambm polticas, apesar de este termo ganhar um outro sentido e significado na fala dos narradores. A poltica, para eles sempre negativa e algo externo, porm indispensvel. No caso de Maneco, talvez possa dizer que ela um instrumento, mas no um fim. J para Expedito e Estevo, deve-se estar distante dela, mas sem deixar de dialogar com os polticos. A comunidade, por exemplo, aparece como um sujeito social com o qual os trs narradores tm que cumprir determinadas regras de lealdade. Estas regras lhe servem como suporte e proteo para acionar determinados comportamentos e prticas que visam defesa e luta pela melhoria do bairro. O bairro Vila Unio, apesar de no servir de moradia para Maneco, aparece no discurso do narrador como o seu lugar. At mais do que isso: um lugar criado por ele. Porm, como mostra o discurso, no s dele, mas o de Expedito e o de Estevo tambm, esta solidariedade e regras de lealdade, so muito instveis, fazendo com que as relaes constitudas no bairro sejam revistas todo tempo. Inclusive, no caso de Maneco, esta instabilidade foi responsvel pelo seu afastamento da Vila Unio. Portanto, apesar da impreciso na definio e delimitao espacial de qualquer bairro, os distintos agentes sociais, moradores ou no do local, constroem imagens que esto postas em um campo de tenses integrantes de suas tramas cotidianas. A virtualidade destas imagens torna-se, em suas prticas, significativa para orientar condutas, comportamentos e prticas, que variam dependendo do contexto espacial e temporal. E o bairro, independente da conceptualizao de sua histria, dentre outros aspectos, serve como justificativa e fonte. Mas no qualquer bairro. o que eles ajudaram a construir. So criadores de bairros. Suas histrias individuais coincidem com a histria particular do bairro. Alguns moradores criam ruas tambm. Dona Rosa Serra Grande, no bairro Terrenos Novos pode servi como exemplo. Ela chegou ao bairro na dcada de 1980 quando o ento Prefeito da cidade, Jos Euclides Ferreira Gomes Jnior, atravs do decreto 019/82 de 1 dezembro de 1982, criou a Cidade Jos Euclides Ferreira Gomes, nome do pai do ento prefeito que chegou a assumir o cargo executivo municipal interinamente quando 213 presidente da Cmara Municipal. Somente para contextualizar, lembro da narrativa de Adalberto Mende quando informa que este bairro tem dois nomes oficiais: Terrenos Novos e Cidade Jos Euclides Ferreira Gomes. Dona Rosa Serra Grande foi uma das primeiras moradoras e, como muitos outros migrantes, veio de Tiangu a procura de melhores condies de vida. Ela foi responsabilizada pelo cadastramento das famlias que viriam ocupar os lotes. A prefeitura s cuidou de limpar o terreno e os moradores iriam se responsabilizar pela construo das casas. Alguns no construram, o que facilitou a ocupao do terreno por outros mais geis na edificao de suas casas, gerando conflitos. O Mucambinho, como tambm conhecido o bairro um misto de ocupao desordenada e implementao de uma poltica de habitao. Dona Rosa, responsvel pelo cadastro dos moradores, sabendo da possibilidade de instalao de uma delegacia de polcia na sua rua, reequacionou os lotes para que esta pudesse ficar de frente para sua casa. uma senhora que parece ser muito respeitada no bairro e que veio a falecer antes que se pudesse registrar seu depoimento sobre sua verso da histria do bairro. Mas, o que mais emblemtico sua astcia em beneficiar sua famlia com a segurana, que a delegacia poderia lhe proporcionar. Diante destas prticas de espao narradas e registradas pela pesquisa, penso que a Histria contada e tornada monumento pela poltica de patrimonializao no consegue mostrar as circunstncias e movimentos praticados pelos diferentes habitantes da cidade que so muito mais do que usurios ou pblico alvo de polticas tecnocrticas aplicadas a eles. So tambm construtores de uma cidade que no pode ser definida somente por uma concepo esttica, fria e repetitiva, ancorada no termo tradio. Ela no pode ser entendida como uma cultura em conserva, fabricada por um saber tcnico que arroga para si o poder de definir uma Histria para a cidade. Estes depoimentos mostram que no se pode mais pensar em uma suposta tradio congelada separada das prticas cotidianas dos diferentes agentes que criam a cidade. A tradio recortada em exemplos arquitetnicos e acontecimentos datados desconsidera uma srie de nuances e particularidades que inclusive a fundamentam. sobre as distncias, silncios e relaes entre a histria circunstancial e a Histria monumental que quero tratar agora.
214
4.4 Histria circunstancial e Histria monumental: distancias, silncios e relaes.
Diante das narrativas registradas pude perceber caractersticas intrnsecas de dois problemas da sociedade urbana de que Lefebvre (1991a) chama ateno: o problema da moradia e do habitat que remete a uma reflexo sobre uma poltica de habitao e aplicao de tcnicas arquitetnicas; e o problema da organizao e planificao decorrentes da expanso econmica e da industrializao. Segundo Lefebvre, so decorrncias de um processo de crescimento econmico pela produo industrial, em que pode haver incremento da produo sem transformao das diferenas sociais. Em Sobral, durante todo o sculo XX, acontece um incremento no crescimento da industrializao que produz uma urbanizao relativamente controlada, desde quando se volta para o centro, contemporaneamente tombado, como patrimnio histrico. uma industrializao que no a nica responsvel pelas riquezas produzidas na cidade. Mas, associada ao comrcio e aos servios, faz com que Sobral seja um plo de atrao daqueles que procuram melhorar suas vidas. Principalmente no perodo governado por Cid Gomes, apesar de no ser restrito ao perodo de sua administrao. Porm a idia que se passa nas fontes aqui analisadas, como visto, de que a tradio de opulncia da cidade volta a ser motivo de orgulho, justamente no contexto de sua administrao. As histrias circunstnciais desta riqueza, to propalada na Histria registrada no processo de monumentalizao, so esquecidas e seus agentes relegados a serem pblico alvo ou usurios de determinadas polticas, que tentam compensar o no acompanhamento do poder pblico em dar assistncia ao crescimento demogrfico nos espaos perifricos decorrentes de migrantes que buscam uma vida melhor. H um crescimento demogrfico, no comparvel s grandes capitais brasileiras, mas de qualquer forma provoca um movimento de organizao social que coloca os moradores da cidade em condies de segregao com relao ao habitat. A taxa geomtrica de crescimento urbano anual de Sobral, segundo o IBGE, em 1991 era de 2,86% e passou para 2,91% em 2000. 215 Diante destas informaes qualitativas, expressas pelas narrativas, e quantitativas das estatsticas, verifico que o ambiente urbano segmentado e segregado, no como efeito de vilanagem organizada para discriminar grupos sociais, mas como conseqncia do no acompanhamento por parte das polticas pblicas do crescimento demogrfico na cidade, que faz com que o poder municipal eleja prioridades distintas para cada setor do espao urbano. Para a periferia, obras de infra-estrutura bsica como saneamento e habitao, que acaba, no dando conta da realidade de forma completa em decorrncia de novas habitaes que vo surgindo em decorrncia da ocupao de terrenos, e para o centro uma monumentalizao voltada para o incremento do turismo com uma valorizao esttica dos espaos. Os moradores da periferia vivem em um meio social que no pode ser esquecido completamente diante das exigncias da idia de civilizao, que Lefebvre (1991a) chama ateno como sendo a favor de um determinado tipo de organizao social esmerado da sociedade, apesar de ser contra a cultura. Todos tm direito cidade, mas da forma como a tecnocracia que governa as polticas pblicas quer. A cultura s valorizada na sua verso letrada, diplomada e elegante, que deve ser aplicada aos espaos e lugares da cidade. Os depoimentos destes moradores dos bairros perifricos mostram bem isso. Mais uma vez vale a pena lembrar que a tecnocracia municipal, simplesmente, nega a possibilidade de estes serem agentes sociais e os consideram pblico alvo e usurios de suas aes justificadas por pareceres de tcnicos. Justamente porque supem que os moradores de alguns bairros, onde a maioria no alfabetizada, no teriam a competncia tcnica para decidir que tipo de interveno, no espao vivido, seria a mais adequada. O direito cidade no parece ser negado por qualquer que seja o tecnocrata da administrao municipal. Porm, alm de no ser ainda prtica social adquirida como se fosse hbito por parte dos diferentes agentes moradores da periferia, no h uma poltica de incentivo a estes sujeitos serem os protagonistas do grande drama da vida na cidade, justamente porque o saber competente julga o outro pelo seu suposto no saber. Resta a eles, portanto, se enquadrarem em programas de assistncia que tm como parmetro padres de civilidade definidos pela tecnocracia. o caso do Programa Oficina Escola, o Centro de Lnguas, dentre outros. Quando o drama vida na cidade registrado como monumento, como o caso da Histria cristalizada, utilizada para justificar a poltica de patrimonializao, ele orientado 216 para contar a verso dos grandes heris e feitos que geralmente no so protagonizados por aqueles que explicam as circunstncias histricas da constituio da periferia da cidade e produo da riqueza de Sobral. Opulncia esta concentrada nas mos de alguns poucos pertencentes a elite econmica. Os protagonistas so sempre aqueles que aparecem como seus representantes no campo poltico, econmico e social. A Histria da poltica de patrimonializao exibida em cenas, rcitas, espetculos de declarao teatral, com aparncia de pompa, importncia e distino, o que requer dos seus personagens principais certos cargos de prestgio no campo poltico e/ou econmico. Os monumentos tombados no podem fugir a isto. Eles representam a Histria que se conta em atos, pelos quais se fazem ver um drama supostamente presente ao esprito de todo e qualquer sobralense. J as narrativas aqui discutidas contam os acidentes de lugar, de modo e de tempo que acompanha estes atos, dando forma ao estado da Histria. Contam os pormenores, as mincias para que Sobral chegasse a ser uma das cidades mais ricas da regio desde o sculo XIX. S que antes, at o final do sculo XIX, a escravido era o fator circunstancial da produo de riquezas na pecuria e na agricultura. Contemporaneamente, o trabalhador assalariado, seja no setor de servios, seja na Indstria, seja no comrcio, seja em qualquer seguimento da economia, desempenha este papel. Isso quando consegue espao no mercado. Mesmo estes que no tm espao, que se viram como podem, fazem parte desta Histria. No s fazem parte, mas tambm fazem a Histria. As narrativas tambm mostram a reciprocidade existente entre alguns agentes polticos profissionais e aqueles tidos pela Histria como coadjuvantes moradores da periferia no sentido de usar deste direito cidade para legitimar a busca de seus interesses. O lder comunitrio exemplar como expresso desta reciprocidade. Ele reivindica direitos que o morador de outros bairros como o Centro, a Colina, o Junco e o Derby Club no precisa se mobilizar em associaes comunitrias para cobrar. Para isso, os moradores da periferia pobre elaboram uma narrativa que demarca sua base social territorial no bairro, definindo uma unidade substancial entre distintos moradores do local ancorado no termo comunidade. O trabalho classificado por eles como voluntrio, favorece obter ganhos com relao ao seu prprio habitat. So ganhos que esto no campo do direito a cidade, mas que em muitos casos aparecem como favor, no de uma administrao pblica, mas de um gestor executivo personalizado e nomeado. Por vrios momentos, Jos Ferreira, por 217 exemplo, afirma que foi graas a famlia Ferreira Gomes que o bairro Padre Palhano se desenvolveu. Quando fala dos Ferreira Gomes, inclui tambm Ciro Gomes, irmo do prefeito Cid Gomes, que j foi governador e, segundo Estevo, quando ocupava este cargo, ajudou muito nas melhorias aplicadas ao bairro. O trabalho voluntrio, que estas lideranas comunitrias afirmam realizar, est carregado de caractersticas atribudas a uma integridade moral digna e distinta, somada idia de desprendimento de ambies materiais mais requintadas, de pregao pela solidariedade, de culto a uma mutualidade de interesse e deveres para com seus pares moradores do bairro, um compromisso pelo qual eles se obrigam uns pelos outros e a cada um deles por todos. O termo comunidade ajuda a fortalecer estas caractersticas. O que, na concepo de boa parte deles, os diferenciam dos polticos profissionais que so definidos como se fosse exatamente o oposto do que representa o lder comunitrio. Apesar de se diferenciarem, reconhecem a necessidade de uso das benesses que a relao com eles pode lhes proporcionar, mostrando uma dimenso pragmtica em suas aes. Portanto, nestas narrativas h uma certa inverso no tema da opulncia, pois o que aparece so as mazelas decorrentes do crescimento sem uma urbanizao planejada. Apesar Vista do escoadouro do Aude Mucambinho, construdo no final do perodo Imperial brasileiro. Foto: produzida pelo pesquisador. 218 disso, os espaos e lugares resguardados pela poltica de patrimonializao so lembrados, desde quando comparados a outros espaos e lugares dos bairros perifricos que aparecem na narrativa, principalmente de Adalberto Mendes, que, segundo ele, merecem ser registrados e documentados como o aude Mucambinho, o caminho onde estava edificada a antiga estrada de ferro que fazia o percurso de Sobral a Camocim e at os espaos, ruas e equipamentos dos bairros perifricos como Igrejas e Associaes Comunitrias, acerca as quais ele guarda um grande nmero de documentos. Apesar de haver uma confuso no que se refere delimitao territorial por parte da Prefeitura, quando comparada delimitao elaborada pelos moradores, alguns bairros aparecem como designadores de uma identificao substancial ntida por parte dos moradores. Porm, a fronteira entre eles no ntida e, alguns deles, nem existem nos mapas da municipalidade enquanto bairros, como o caso do Vila Unio. Nas narrativas aqui mostradas eles so entendidos como entidades coletivas de referncia e pertena ou como enraizamento identitrio frente a terceiros. O sentido dado ao termo comunidade tambm refora esta idia. Nestas narrativas a idealizao do bairro no est solidificada somente como espao de moradia, mas apresenta formas urbanas particulares, especiais com quadro de relaes sociais densos e multifacetados, inmeras formas de sociabilidade e cenrios de produo cultural, destacando uma representao identitria independente de outros locais da cidade, inclusive do centro tombado como monumento da sobralidade. Tambm no chegam a se fechar para o exterior, parando no tempo, formando guetos. So atravessados e se deixam atravessar por significativos processos de mudana, em que seus moradores so agentes de construo de cenrios de mltiplas interseces de carter relacional. Relacionam-se tanto com moradores de outros bairros, como moradores do Sumar que vo pescar no Mucambinho, como tambm com partidos, candidatos, tcnicos, bens de consumo, valores como o da necessidade de preservao da memria coletiva e fruns de representao poltica como o caso dos conselhos municipais. O caso de Expedito Vidal exemplar, quando chega a ser presidente do Conselho Municipal de Sade, onde apesar do conflito motivado por ele ser leigo, foi aceito representando o usurio do sistema. Com relao a um esforo de preservao de uma suposta memria coletiva, cito como exemplo Adalberto Mendes que consegui difundir esta idia a outros lderes comunitrios, que 219 acabam sendo solidrios a ele. Interseco tambm de prticas tpicas da sociedade de consumo que torna tudo uma mercadoria. O terreno para moradia, por exemplo, vira objeto de especulao imobiliria. Alm disso, as pessoas dos bairros tambm circulam em espaos diferenciados da cidade, apesar de praticar este desfrute de forma tpica. Na margem direita do Rio Acara, por exemplo, onde se localiza o bairro Dom Expedito, que abriga uma parcela dos mais desfavorecidos financeiramente, comum vermos pessoas atravessando o rio de barco a remo, coisa que o morador dos bairros mais abastados no faria, para passear no calado da Margem Esquerda. Um fato at me chamou a ateno com relao a isso. Curioso para saber o preo que o barqueiro cobra para travessia, perguntei a uma senhora que acabara de atravessar o rio, o valor, qual foi minha surpresa quando ela negou que tinha atravessado. Esta atitude me fez pensar em uma srie de questes relativas s implicaes de uma poltica de monumentalizao e modificao esttica do espao. Este modelo de interveno estrategicamente refinado por tcnicas do campo da arquitetura e da engenharia que seduzem a encontros em um mesmo espao de agentes sociais de origens distintas com relao ao habitat e acesso a bens de consumo. Este caso trata de um encontro um pouco incmodo entre personagens de mundos separados no mbito da moradia, dos costumes, das formas de interao com seus pares e com os outros. Posso acrescentar que o meio de transporte tambm motivo de designao de posio social aqui. Isso favorece contatos meio confusos, cambiantes e incmodos. Esta atitude mostra que o desconforto no est somente na perspectiva daquele que mais abastado, mas tambm nas reaes de alguns daqueles que no so. um momento de desterritorializao, descentramento e reorganizao de atitudes convenientes em um ambiente ainda em formao no sentido do tipo de interaes face-a-face decoroso, til e que convm para seus praticantes. Este espao, como todos os demais espaos sociais modificados pela poltica de investimento esttico e de patrimonializao da cidade, pblico, regido por regras tambm pblicas, em que todos os moradores teriam direito ao seu desfrute, mas no mbito das prticas de incorporao (Connerton, 1999), a expresso destes agentes nos mostra uma postura diante do reconhecimento de sua posio social, favorecendo um determinado tipo de reao de desconforto. Como chama ateno Connerton (1999), o poder e a posio social exprimem-se atravs de certas posturas em 220 relao ao outro. E a postura desta senhora, assim como de outros que usam de certos adornos e vestimentas corporais diferentes dos que vo fazer caminhada, por exemplo, mostram uma dissimetria corporal que expressa tambm uma dissimitria social e cultural em movimento e tenso constante que causa um certo mal estar. Este modelo de interveno que narra uma idia de preservao e, ao mesmo tempo modernizao esttica, recontado de uma outra forma tanto na narrativa das lideranas comunitrias como em atitudes circunstanciais de alguns moradores de bairros perifricos. So recontados tambm de formas distintas, quando situados em narrativas experimentais que recorrem memria de tempos passados. disso que trata o prximo captulo.
221 5- Narrativas sobre o espao: mapeamento da melancolia no ambiente urbano de Sobral.
5.1 - O narrador e a cidade: as boas e ms lembranas
A histria de vida do narrador e maestro Wilson Brasil pontuada em determinados momentos com "citaes" como esta. "Agora eu quero fazer uma citao aqui que vocs guardem isso: a vida uma partitura musical, tem nota de todo tamanho, para todos os tons de acordo com todos os acidentes. a partitura da vida. As coisas que aparece aqui, dali, acol, intelectual, moral... Juntando d uma partitura. Muitas vezes grandes msicas e outras vezes desafinadas [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). A estas palavras produzidas pelo Maestro, foram acrescentas, diante da indagao sobre a dvida se os dias de hoje esto "desafinados" ou no, as seguintes: "Bom, a mesma coisa. O dia de hoje a partitura da vida. Muitas vezes voc vai escrever e se... e no olha para a clave, no sabe quantos acidentes tem, escreve e bota a perder a partitura porque faltou, voc no prestou ateno aos acidentes que precisava botar, etc [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Este Maestro aposentado morador da cidade cearense de Sobral tenta ensinar que, para a vida ou para a "partitura" ser completa, a "tonalidade" tem que estar de acordo com o pensamento do autor. Ele como autor tenta deixar clara a sua postura diante da vida, mas, para marcar as atenes dos ouvintes, no usa o recurso da resposta pronta e acabada, mas fala de forma a tentar afet-los, no dando respostas definitivas, mas mostrando o caminho para o ouvinte encontrar, por si s, o percurso que deve seguir. Ele tenta ensinar os pormenores prticos essenciais execuo perfeita de uma arte de viver. Enquanto o maestro compara a vida com a tcnica da musicalidade, Mariz, parteira e rezadeira do bairro Sumar 76 de Sobral, conta as consideradas por ela "presepadas" 77 na sua vida de outra forma. Enquanto o maestro sugere a utilizao do mtodo de combinar
76 Bairro da cidade de Sobral constitudo por pessoas oriundas de faixas de renda mais humilde. conhecido tambm como bairro dos ciganos. Eles ocupam uma rua inteira do bairro. Dona Mariz mora em frente a eles. 77 Segundo o dicionrio Michaelis, presepada significa espetculo fantstico e ridculo ou palhaada. 222 sons de maneira agradvel ao ouvido para ensinar o interlocutor, Mariz usa da ironia, da zombaria e de anedotas reais de sua experincia de vida, levada com astcia e esperteza. A postura do maestro, como ele mesmo caracteriza, de "intelectual", enquanto que a rezadeira faz de sua experincia uma histria inteligente, no no sentido erudito, mas sim arguto, vigoroso e prtico. Ela a esperta, a forte e a "viva". Suas aventuras so quentes, mas sempre consegue safar-se. Com os ciganos moradores do Sumar como ela, grupo que todos tm medo, por exemplo, houve conflitos que hoje fazem com que seja respeitada por eles. Ela conta sempre com mincias e detalhes suas histrias, mostrando que brinca constantemente com o perigo. Em um episdio com os ciganos ela fala: "S por causa de filho... Um dia eu tava aqui quando um neto... num foi nem ele foi um neto... o menino ia passando e ele bbado, que eles querem ter direito, pegou aqui no pescoo do menino, deu um murro no menino o bicho. A ele correu pra c : " O que isso menino?"; " o filho da Milagro me bateu e disse que ia me buscar... "; "Pera a. " Que eu cheguei l digo: "Ei, pra qu tu bateu... tu bebe, tu fica... tu bebe, tu fuma tuas maconha e quer se vingar nos outro n ? Bate nele outra vez." A seu Valdemar v.. o vio chefe: "O que foi D. Maris?" eu digo: "Que foi? Que a o Assis bateu no meu menino sem ter motivo nenhum e ainda disse que ia matar ele". Oi que ele saiba matar. Ele saiba matar. Eu sei onde eu piso. Eu desconhecendo, ele vai ficar do inferno por uma banda. Ai o vio brigou muito com ele. Ele: "Eu dou nela. ". Menino, aquilo me cresceu uma raiva to grande, eu entrei foi de casa a dentro da via, eu digo: "Vem c infeliz, vem me atirar, anda. Eu s tenho uma vida e essa eu num sei pra que , eu num sei se de faca, ou de trem, ou de carro, ou revlver como tu ta. S tenho uma vida, taqui eu". Eu disse: "Tu disse, cumpre a palavra, anda vem". O vio brigou com ele, ele entrou pra dentro. A ele: "essa via a o ovo que o co 78 pe, num tem quem possa com ela". Cad? Tenho medo de nenhum no, nenhum, nenhum [sic]" (Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). J o Senhor Gutemberg, como muitos, veio de outra cidade, especificamente So Benedito, localizado na Serra que faz fronteira com o Piau, pois queria ir para um meio maior, onde pudesse realizar, em um local com melhores condies econmicas, suas ambies financeiras como comerciante. Sua prtica econmica no comrcio em vrios setores e sua trilha e desventuras no setor bancrio fazem com que suas palavras tambm sejam expressas com moderao nos gastos, tentando ter uma harmonia entre as partes e o todo. Porm mostra riqueza acumulada por uma poupana forada, de 94 anos, completada
78 A palavra co aqui se refere ao diabo. 223 em 2004 de experincia de vida em sua cidade natal e em Sobral. Recorda de sua infncia dizendo: Minha infncia foi aquela infncia boa de interior, p no cho, peito aberto, correndo pelas campinas atrs das borboletas azuis, como diz o ditado... Sem nenhuma preocupao, meu pai tinha uma fazendola de gado e quando estava no ms de maro o povo da cidade quase todo sobreviveram das suas fazendas, isso depois se acabou. Eu passavam por l dois meses, trs meses, as vezes at mais. E quando a gente ia pra fazenda eu achava uma maravilha, corria com os ps descalos na lama, depois ia matar passarinho e tudo, ia tomar banho no rio, duas vez trs vez por dia, quando dava uma chuva boa que enchia, a a gente era que ia l sabe...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004). Jos Ferreira, outro personagem das tramas urbanas de Sobral, parece ainda viver um pouco desta vida, que no parece ser de cidade, na margem direita do rio no bairro Dom Expedito, onde sua urbanizao precria contrasta com a grande obra da Margem Esquerda. Em 18 de agosto de 2004, completa 81 anos. Veio morar no bairro Dom Expedito em 1940, quando o local ainda estava sendo descoberto. Em 2000 o bairro abrigava cerca de 4.164 moradores, o que representa 3,1% do total da populao urbana de todo o municpio incluindo os distritos. Ele acompanhou o desenvolvimento da cidade para aqueles lados. Sobre isso ele diz: ... eu morava ali na Vrzea Grande bem ali, dali pra c, agora eu perdi me perdi pai eu fiquei enjeitado n, a fui criado mais um tio, e a vim conhecer isso aqui, aqui era mata braba, aqui no tinha casa nenhuma no, tinha casa nenhuma, aqui s era mermo uma casinha que justamente eu comprei no... no 44 eu comprei uma casinha aqui, a vim morar direto aqui mermo, eu morava mais l adiante a vim mais pra c. A fiquei aqui morando por aqui, pelejando por aqui e tudo, mas de casa no tinha ningum s tinha mata virgem, a depois que foi que comeou a descobrir n, vim descobrindo, descobrindo, descobre e hoje t a cidade n [sic](entrevista realizada pelo pesquisador com Jos Ferreira em 05/09/2001). Diante das "aventuras" destes distintos moradores da cidade de Sobral, posso afirmar que estes so narradores (Benjamin, 1985) artesanais do estado e das transformaes da cidade em tempos e espaos distintos. So narrativas marcadas fortemente pela memria do narrador. So resultantes de um oficio "manual", pois tem a marca do narrador. Por situar-se no presente, a narrao de suas memrias est sempre em 224 companhia de suas experincias acumuladas (Benjamin, 1985). A cidade aparece como o contexto espacial e temporal destas experincias. Na narrativa da memria proferida pelo narrador sobre a vivncia histrica no espao urbano, o contedo do que comunicado demonstra o sagrado do espao. Cada um usa de recursos prprios para executar este exerccio. Portanto, para Mariz o bairro Sumar seu cmplice, para o maestro, os espaos freqentados pela "intelectualidade" so seus parceiros, Gutemberg se sustenta por suas prticas comerciais, financeiras e contato com a elite de Sobral, enquanto que Jos Ferreira se contenta com sua vida rural no bairro, plantando e colhendo o resultando de seu trabalho em terrenos nas margens do Rio Acara. O narrador descrito por Benjamin (1985) tem um senso prtico. A histria contada por ele tem em si mesma ou de forma latente uma dimenso utilitria que consiste em um ensinamento moral, sugesto, provrbio ou norma de vida. O narrador sabe dar conselhos, assim como sabe comunicar suas experincias de forma pica, denotando sabedoria. O processo de comunicao que elabora no linear no seu contedo e passa, como qualquer dilogo, pela relao entre emissor, forma de transmisso e ouvinte. Acompanhando a descrio de Benjamin, percebo que o narrador preocupa-se muito com a afeco do ouvinte. Ele tem a capacidade de alterar a faculdade receptiva do ouvinte atravs de uma forma peculiar de transmitir sua mensagem, fazendo-o perceber o que ele no percebia antes, revendo seus sentimentos, fazendo-o sentir coisas que no sentia. O que era motivo de segurana para o ouvinte, alterado em seu estado rgido, e colocado no registro do ter que ser refletido e repensado. Ele desestabiliza as noes do ouvinte sem intimidaes ou opresses. Ele no impe e no d respostas prontas, s faz pensar. Portanto sua narrativa mais do que uma reproduo de uma recepo dos sinais que o mundo ao seu redor lhe fornece, uma produo, uma construo, ou ainda, uma tarefa sobre o mundo. uma empreitada narrativa que vai sendo moldada artesanalmente durante a conversa. O narrador Benjaminiano revela um modo prprio de transformar impresses inesperadas em algo a ser bem acolhido pelo receptor. Ele tem a capacidade de falar 225 aquilo que no se espera, que agrada a quem escuta e o faz pensar o antes impensvel ou impensado. A narrativa marcada fortemente pela memria do narrador. resultante de um ofcio manual, pois tem a marca do narrador. Por situar-se no presente, a narrao da memria est sempre em companhia da experincia acumulada de quem narra (Benjamin, 1985). A memria falada pelo narrador poderia estar sempre em aberto evitando respostas definitivas, ao contrrio de uma narrativa de estilo romntico, que est sempre descrevendo pedagogicamente um destino que, graas ao envolvimento que demanda, constri a esperana de encontrar o prprio destino de quem l ou o escuta. Porm, difcil encontrar algum com este perfil dissociado de uma narrativa romntica linear. Alm, disso as imagens-informaes massificadas da cidade, que o tema de interesse aqui, no permitem muitas inovaes com relao s produzidas pelos narradores, apesar de elas aparecerem adaptadas s produes tecnocrticas sobre o espao urbano. Para o autor alemo, a busca que norteia o romance a do sentido da vida, enquanto que a narrativa emitida pelo narrador deixa esta busca em aberto, fornecendo somente pistas para uma moral da histria. O romance, de certa forma, linear e, em determinados momentos, um pouco previsvel. a resposta pronta e acabada para o grande drama da vida. Seguindo as reflexes de Benjamin, na narrativa do narrador, h uma banalizao do drama da vida e, ao mesmo tempo, h pistas meio imprecisas e confusas sobre experincias que servem para pensar. Por isso instiga o ouvinte e promove uma perda da noo do tempo na conversa com o narrador. Esta parece ser uma viso romntica de um narrador ideal que no cotidiano da cidade de Sobral no encontrei na sua forma pura. Como chama ateno Le Goff (1988), a narrativa de memria em geral tem como finalidade recortar interpretaes de fatos, imagens e idealizaes do passado para restituir o presente. A memria sacraliza o contedo da narrativa, ao mesmo tempo em que enfrenta com astcia e arrogncia a priso do mundo racional do caminho certo e linear. Adaptando as reflexes de Benjamin ao que encontrei durante o percurso da pesquisa, penso que no caso da narrativa da memria proferida pelo narrado, perfilado pelo autor alemo, sobre espaos urbanos, o contedo do que comunicado demonstra um respeito muito forte ao espao vivido e experimentado no cotidiano. O narrador 226 benjaminiano no entende o espao em que vive como ente controlador e inviolvel, mas como seu cmplice no exerccio da liberdade dos dogmas e leis impostas pelo poder pblico, de padres rgidos e de um esquema fechado e definitivo de pensamento sobre ele. Talvez possa ir mais alm. No s o narrador, que pode ser qualquer sujeito social, necessita estruturar uma imagem referencial e uma construo identitria e qualificadora do ambiente que vive. Identificao esta, que no pode ser entendida como substantiva e definitiva, mas sim como provisria e aparente que muda de acordo com o contexto de enunciao. Vale a pena precisar que esta identidade no pode ser entendida em si mesma. , de fato, uma identificao provisria e aparente, apesar de quem fala dela querer que ela parea definitiva. Identificao esta, que no est em desacordo com o individualismo contemporneo, mas que resguarda suas peculiaridades quando construda pelo narrado tal qual perfilado por Benjamin (1984). Pretendo agora descrever as narrativas de alguns narradores selecionados na cidade cearense de Sobral para poder entender esta relao entre as transformaes ocorridas na cidade durante a administrao Cid Gomes e a forma de apreenso e construo de imagens por parte destes narradores. Concordo com Barros (1999) quando ela chama ateno do pentimento e do olhar como caracterstica singular na sociedade moderna. Balandier (1999) tambm chama ateno desta caracterstica peculiar do que ele chama de sobremodernidade. O pentimento remete ao jogo de esconder e revelar presente no campo da pintura, mas que pode servir de metfora para entender a sociedade. A perspectiva que se tem do passado narrado revela traos que sobressaem e outros que so esmorecidos pelo tempo e pelo presente. O olhar o sentido privilegiado da sociedade contempornea, sendo ressaltado tambm por autores como Simmel (1967) e Benjamim (1985). uma tentativa de fixar em uma imagem, contemplar, fitar, mirar, e ao mesmo tempo mirar-se e ver-se nela. efeito de um estudo, exame e experimento que considera, que cuida, vela, interessar-se e protege reputando e estimando o espao como seu companheiro em uma caminhada de vida. Portanto, diante desta relao movimentada que privilegia o jogo do olhar, prefiro aqui adotar a noo de imagem, que, a meu ver, fruto de uma afeco ocasionada por uma experincia de vida, mas recomposta dependendo do contexto. A audio do pesquisador 227 torna o que se escuta em imagem tambm, o que remete mais uma vez ao pentimento. Nem tudo ele pode revelar, porque ele no d conta da totalidade dos acontecimentos. Portanto, como o pesquisador est impossibilitado de mostrar tudo, alguma coisa ele esconde. O narrador faz o mesmo exerccio de revelar e esconder, construindo imagem que visa afetar o ouvinte. Entretanto, de fato, todo agente social um narrador (Benjamin,1985). No caso desta pesquisa, os narradores selecionados no podem ser vistos como puros em seu perfil estilstico descrito pelo autor, at porque h outros fatores alm dos j falados, que contribuem para que a narrativa possa ser elaborada em um nvel de comunicabilidade que possa afetar e desestabilizar as certezas do ouvinte, dentre eles o espao, as emoes envolvidas na relao entre aqueles que se comunicam e o possvel constrangimento causado pelo instrumento de captao da narrativa que, no caso desta pesquisa, foi o gravador. Alm disso, foi difcil encontrar de forma substantiva um narrador perfeito. Todos eles so exmios narradores, mas afetam de formas distintas aqueles com os quais se comunicam. Por isso no podemos entender a narrativa como a histria de toda uma vida, pois ela pontua fatos e lembranas selecionadas que visam a estabelecer uma imagem til para o presente que o narrador vive. O passado lembrado, medida que serve para justificar imagens que o narrador, no presente, quer passar como boas, positivas e interessantes. Benjamin j chama a ateno para o fato de que o narrador, com o perfil de personalidade descrita por ele, na sua forma pura, est em extino no mundo moderno. Para ele, cada vez menos as pessoas sentem necessidade de narrar acontecimentos e experincias como o narrador faz. A impresso que o autor passa de que o mundo contemporneo j traz as respostas prontas e acabadas, de forma linear para os problemas cotidianos. Parece no ser mais necessrio perder tempo com conversas longas, cansativas e banais. S se escutam informaes. A leitura que fao de Benjamin de que, para ele, as histrias contadas por narradores so cada vez mais consideradas por muitos como interessantes, porm, ficam reservadas para momentos quando no se tem nada para fazer. Seu entendimento do momento contemporneo parece passar um sentimento de melancolia sobre um tempo que no existe mais, onde as pessoas se 228 comunicavam de uma forma mais intensa, havendo correspondncia no s de informaes, mas tambm de percepes, afetos e afeces entre os indivduos. Penso que olhando de forma panormica para o momento contemporneo, o autor alemo tem razo, mas, mesmo assim, participando ativamente e cotidianamente da vida na cidade de Sobral, percebo que este movimento geral analisado por ele, pode ser relativizado, permitindo acrescentar nuances e peculiaridades tpicas do burburinho do dia-a-dia que complexificam qualquer viso geral. Procurei indivduos com perfis prximos do narrador benjaminiano. Como j disse, no tive muita sorte. Foi mais fcil conversar com pessoas com mais de 60 anos e aposentadas. Talvez por serem desprendidos de um tempo controlado, peculiar queles que esto em plena atividade profissional no mundo do trabalho. Portanto, neste momento pretendo analisar as narrativas destes narradores acima apresentados como snteses significativas de uma experincia de vida na cidade.
5.2 - O narrador: a cidade e a experincia de vida 79 .
A imagem que o Maestro Wilson Brasil, narrador entrevistado j apresentado aqui, faz de Sobral no por acaso classificada como "cidade intelectual". A cidade lembrada como experincia de vida. Sua trajetria na cidade marca sua fala. Estas imagens lembram em muito as referidas pela sobralidade que as narrativas produzidas pelo poder pblico que falam do tombamento de Sobral como Patrimnio Histrico Nacional constroem. Os sobralenses ilustres, a importncia histrica da cidade e suas peculiaridades a distinguem das demais. J Mariz conta suas aventuras sempre considerando o pioneirismo da chegada de sua famlia ao bairro Sumar em 1934. Ela, nascida em Massap, tinha mais ou menos 12
79 Na entrevista com Mariz, alm dos bolsistas de iniciao cientfica, participaram, juntamente comigo, a professora da UVA (Universidade Estadual Vale do Acara) Eva Sebastian. 229 anos quando chegou no bairro 80 que, por sua vez, "s era mato, mato mesmo, que a gente tinha at medo de ir pra rua 81 . A idia do seu local de moradia ser ainda mato, tambm usado por Jos Ferreira quando fala de sua chegada ao bairro Dom Expedito, remete a uma imagem de local inexplorado, a ser dominado pela urbanizao, aonde a cidade est por chegar. sinal de desolao, distncia do mundo civilizado. o anterior, o antes que deve ser desbravado e de certa forma colonizado. E os dois narradores aparecem nas suas narrativas como os pioneiros nesta empreitada e, ao mesmo tempo mostram-se como aventureiros, o que demanda coragem, mas que tambm gera medo at de sair de casa. Nas suas narrativas eles aparecem como os primeiros a abrir e descobrir o caminho atravs de uma regio mal conhecida. So os exploradores do desconhecido e precursores. A coragem de Mariz no aparece somente nesta empreitada desbravadora. Aparece tambm em outros momentos de sua vida. Quando indagada sobre sua escolaridade, por exemplo, lembra de sua atitude com a professora e o encaminhamento dela diante da insatisfao com a escola, justificando suas prticas no bairro: "Ela me dizia uma coisa eu dizia outra. Chegava, enganava meus pais. Acho que eu tenho esse pecado. Papai, coitadinho, bichim, no sabia ler: "Anda senta aqui e vai ler". "Papai voc num sabe, mas eu sei: A,B,C.. "As letra eu num sabia nem como era. "Ah, voc sabe minha fia ". No outro dia eu ia pra aula, l nem pisava. Eu gazeava muita aula, eu num aprendi no, a cabea num deu mais. A fui namorar [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). O bairro era cmplice dela nas suas "aventuras" de mulher "namoradeira" e "presepeira". Nas suas aventuras de "namoradeira", vrios locais da cidade alm do bairro esto presentes. Antes do casamento j tinha namorado muito. Ela conta dos namoros como banalidades corriqueiras. Sobre os namoros, ela diz: " s dava tempo sair um... Ai de... num quer mais no? Vamos acabara amizade? Vamos. Mas eu j tinha um piscando ali do lado. Nunca deixei ningum pisar no meu p... na munheca da minha mo. Eu, noiva... Casava em agosto, eu disse: "Casamento em agosto d desgosto, pois eu num quero no ". A eu num quis, acabei [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001).
80 Dona Mariz, como vai ser dito mais a frente, nasceu em 1919, portanto, ela teria 15 anos se tivesse chegado em 1934 no bairro Sumar. Porm, preserva-se aqui esta impreciso numrica na narrativa de Mariz, respeitando a sua verso da histria de sua vida. 81 Rua entende-se aqui como centro da cidade. 230 Em um episdio, logo aps a desistncia do casamento de "agosto", que lhe traria "desgosto", resolveu comear um namoro no Alto do Cristo 82 onde tambm "s tinha mato. Era um dia de domingo e disse para sua me que ia rezar. Ela convidou um "... rapaz para subir o alto". Alm deste lugar, a cadeia pblica de Sobral 83 outro espao onde fazia seus passeios. Um dia ela resolveu desafiar seu pai levando o namorado do Alto do Cristo para a porta de sua casa no Sumar. Ela conta que antes j havia tido uma conversa no muito agradvel com seu pai. Como ela mesma fala: "Ele no queria que eu tivesse acabado no o casamento, sabe? "Olhe Mariz, outro rapaz no se senta aqui". Eu digo: "Olha papai, desculpe eu dizer essa palavra mas eu no vou namorar em casa de ningum, eu no vou sair corrida de casa, e nem de canto nenhum. Vou trazer aqui pra sua porta, quando eu me calei ele: ta!... a mo no meu rosto. Deu uma pancada. Eu s fiz passar a mo. Tudo bem, a entrei para dentro, a me brigou: "Tu doido, aoitar tua filha no meio da rua". Eu digo: "Mame aqui no rua, aqui mato. Rua? Ns samos da rua, aqui mato. Deixa ele aoitar. Mas amanh eu trago. Mame hoje eu trago ele... eu vou apanhar." A, eu era muito ruim mulh! Tinha a natureza ruim. A quando foi de noite eu: " meu Deus do cu... " Eu olhava s via era mato: "Ser que o rapaz vem meu Deus?" Ai eu: " agora?" A fui buscar uma luz pra clarear, vim at aqui assim, ai vi uma cobra, vinha assim, corri e voltei pra trs na carreira, que era cheio de cobra. As cobra... Cobra preta. A eu voltei, quando l se vinha ele. Chega eu me tremi todinha, [sussurro]. A o papai ficou na porta, quando ele chegou: "Boa noite seu Joo". O nome do meu pai era Joo, Joo Cardoso: "Boa noite seu Joo"'. Ele disse: "Boa noite". Eu disse: "Olhai, est domando o vio!". "Sente ai". Ele sentou-se. Eu s pensando l dentro qu que eu ia pegar. A teve, " o seguinte rapaz: rapaz na minha porta s se senta at as oito horas [sic]" (Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). Assim ela continua a histria: "Chegou era bem seis horas. Aqui quando dava seis horas era uma coisa horrvel de escuro. A quando deu oito hora ele entrava e saia. O Vio entrava e saia. A eu disse: "V embora, pode ir embora". Ai ele foi. Ora, eu acho que ele num tinha atravessado a linha, ele me chamou: "Mariz, vem c". Ai meu Deus, meu Deus eu vou apanhar, espera a que vou l dentro vestir um vestido bem grosso. Eu entrei pra dentro: To chamando!". "Pra
82 Bairro da cidade onde se localiza uma esttua do Cristo Redentor no ponto mais alto da cidade. 83 A cadeia pblica de Sobral localizava-se vizinha ao Mercado Pblico. Foi deslocada durante a administrao Cid Gomes para um local mais afastado do centro urbano. O batalho da Polcia Militar permaneceu na edificao que tem na sua frente uma esttua lembrando a herona do romance de Domingos Olmpio denominado de Luzia-homem. No romance a personagem aparece como uma das operrias da construo. 231 ai, espere a papai que eu j vou, t aqui trocando de roupa. Vesti um vestido bem grosso mesmo. O vio me deu uma lapada eu nem senti, eu fiz assim. Ai mais ele me deu. Apanhei mesmo! Ele disse: "Olhe, pra voc num me desobedecer!". Eu digo: "Papai voc num recebeu... o senhor num recebeu o rapaz to bem?". Ele: "Porque eu num sou maleducado". Pronto a eu fiquei namorando com rapaz escondido. A de baixo dessa ponte a que vocs passam por ela, a era meu af deu namorar com rapaz a [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). Como se pode ver na sua fala, o urbano vivido a matria prima para smbolos e reminiscncias. O sujeito social sugestionado pelo ambiente em relao as suas especificidades (Lynch, 1980). O "escuro", a "rua", o "bairro", o "mato", a "ponte" no so s testemunhas ou cenrios, so vividos como cmplice do narrador onde ele constitui sua rede de relaes e experimenta sua vida. A narrativa de sua vida na cidade e, especialmente no bairro, fala no s de sua biografia individual, mas de determinadas manifestaes sociais relativas s classificaes sociais do espao e s relaes entre homem e mulher, pai e filhos. Mostra que a rua que se refere ao centro da cidade era melhor que o mato que se refere a seu bairro no tempo em que ela foi morar l. O termo mato tambm ressalta o pioneirismo no s dela, mas de sua famlia no surgimento do bairro que se tornou um dos mais populosos da cidade com 12.567 habitantes em 2000, segundo o IBGE, que inclui tambm, nesta contagem, os moradores do bairro vizinho, Padre Palhano. O que representa 9,3% de toda a populao urbana de Sobral, incluindo a dos distritos. Este depoimento mostra tambm o quanto o pai entendido como autoridade familiar que atravs de uma violncia no questionada pela me, quer preservar a conduta moral da casa. J a rede de relaes do Maestro, por exemplo, vai aparecendo quando conta sua histria na cidade. Apesar de no ter nascido em uma famlia abastada, como j dito, foi criado por um membro prestigioso da elite de Sobral na primeira metade do sculo XX que morava na praa da Igreja So Francisco. Dentre outros volta sempre a lembrar de Dom Jos. A influncia do bispo, inclusive, o levou a participar da campanha de Padre Jos Palhano de Sabia para prefeito da cidade (mandato 1959/1963). O Padre, segundo conta o maestro, somente entrou na poltica partidria por causa do pedido do bispo. Inclusive o maestro, segundo o que ele mesmo conta, foi consultado sobre esta empreitada a ser executada pelo padre, mas apesar de suas ponderaes contra, Dom Jos, finalizou a 232 conversa respondendo: Precisamos de um homem que trabalhe por Sobral. O Sr.Gutemberg tambm ressalta suas relaes com pessoas de prestgio em Sobral, inclusive quando ainda no morava na cidade. Atravs da influncia de seu sogro, Jos Tomaz do Monte e Silva, comerciante conhecido na cidade de So Benedito, veio a conhecer Dom Jos, que sempre se hospedava na casa dele quando em desobriga 84 . Conheceu tambm Jos Sabia de quem o sogro era muito amigo. A casa do pai de sua esposa era a escolhida sempre que partidrios dos dois lados existentes na cidade queriam realizar festas o que facilitava a acolhida de pessoas de lados opostos tambm de outras cidades. Segundo Sr.Gutemberg, era a nica casa que quando tinha uma festa que nesse tempo no tinha clube, era feita nas casas de famlia escolhida que acolhia os dois lados, porque eles se davam com os dois(entrevista realizada pelo pesquisador com Sr Gutemberg em 08/03/2004). Esta prtica ele tambm arroga para seu pai que chegou a ser vereador na cidade e para si na relao entre os marretas e os democratas (Partido Social Democrata PSD) 85 . Seu pai tambm era comerciante, mas apoltico, apesar de ter assumido uma cadeira no poder legislativo. Ele conta que: Meu pai ele era dos marreta, mas pela influencia do cunhado que era chefe poltico do outro lado, ele acabou ficando do lado de c, porque ele se sentiu meio, assim, como se diz? O partido no estava confiando muito nele sabe? Porque ele sendo cunhado do outro que era chefe poltico, achava que ele podia estar do outro lado, a ele acabou ficando mesmo... Isso era nos anos de 24, 25 [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr Gutemberg em 08/03/2004). Diante disso, ele explica que: O meu pai era comerciante em so Benedito, foi vereador tambm na cmara, umas duas... mais ou menos ou trs, se eu me recordo bem... quando a gente menino a gente no grava bem, mas ele tambm era apoltico, ele no gostava muito no, era... como se diz? Poltico manso. No falava de ningum, tinha amizade com todo mundo. E eu tambm, por causa disso eu servi muito de intrprete para os dois partidos, porque eu me dava com ambos, no atacava ningum, no falava de ningum...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004).
84 Costume da Igreja Catlica que se constitui pela ida dos padres at determinadas localidades para realizar batizados, casamentos, confisses, dentre outros rituais religiosos. Neste caso a desobriga era realizada pelo Bispo da diocese de Sobral, da qual So Benedito fazia parte. 85 Segundo Lustosa da Costa: O partido marreta foi a agremiao poltica que se formou no Cear, em 1912, para opor-se ao rabelismo que nascera...com a candidatura do Coronel Franco Rabelo ao governo cearense (1987:pg.78). 233 Sr. Gutemberg herdou, de seu pai, prticas tpicas do comerciante que tem que agradar seus clientes, seja l quem ele for. Sobre Dom Jos ele fala que: O D. Jos era um homem de valor, um homem de grande valor poltico, religioso e culto, e capacitado sabe?... Dom Jos tinha viso, quando Sobral era ainda uma cidade pequenininha, ele fez a UVA acol. O seminrio o povo dizia D. Jos vai fazer um seminrio l na Lagoa da Fazenda, pra gente ir l precisa ir atrs de um cavalo, que pra ir l muito longe. Viso porque ele sabia que a cidade ia crescer, quando ele fez tambm a sade acol, a Santa Casa, tambm disseram: ave Maria, porque ali se chamava a Tubiba, que era onde o trem pegava a gua do rio, logo no entroncamento. Ento diziam: Vai fazer a Santa Casa l perto da Tubiba rapaz, pra gente ir l um horror. Mais era um homem de viso que sabia que a cidade ia crescer [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004). Sobre Jos Sabia o comerciante aposentado fala que: O Jos Sabia ele foi poltico de valor viu? Ele era, ele era... Ele foi juiz, ele foi juiz aqui muitos anos, foi aposentado porque os polticos contrrios foraram a aposentadoria dele por causa da idade, e ele no gostou mais era o jeito a lei mandava. Parece que era 65 anos ou 70 nessa poca sabe... O Jos Sabia foi juiz durante muitos anos e foi afastado por fora da lei, mas no perdeu o seu valor. Quando os polticos em Fortaleza queriam qualquer coisa vinham aqui combinar com ele, veio muita comitiva sabe? [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004). Viso e valor, duas qualidades atribudas aos dois influentes integrantes da elite da cidade na poca at o final da dcada de 1950, parecem estar de acordo com as caractersticas de pessoas proeminentes ou que sobressai, ressalta perante dos outros que os circundam. Um outro personagem citado por ele, mas que viveu em outro tempo, tambm citado como merecedor de crdito: Cid Gomes. Sobre o prefeito ele fala que: ...agora chegando ao ponto de prefeito, posso lhe dizer que apesar de ele ter me desapropriado 86 , eu no posso negar que eu considero ele at hoje o melhor prefeito de Sobral. Porque ele trabalhador. Os outros no... do meu conhecimento no trabalhavam como ele, no estou falando de honestidade e nem coisa nenhuma, eu estou falando que os outros no trabalhavam como esse tem trabalhado. Sobral tem crescido, tem aparecido e tudo s pelo trabalhado dele, e isso conhecido de todo mundo [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr Gutemberg em 08/03/2004).
86 A desapropriao de que o narrador fala tem relao com o prdio onde funcionava a Unio Pioneira Beneficente de Sobral, instituio que cuidava do peclio dos comerciantes quando no existia o INSS. Ela continua existindo como instituio de apoio e Sr. Gutemberg o tesoureiro. 234 As caractersticas, que demarcam a qualidade especial do Prefeito Cid Gomes, no parecem ser as mesmas dos outros dois citados, pois o trabalho que o coloca dentre os melhores. Mas foi a lembrana das qualidades dos outros dois que o fez recordar do prefeito, o que faz com que ele seja situado no rol dos superiores dentre os demais. O Maestro Wilson Brasil tambm elabora um pensamento no mesmo sentido exaltando a capacidade de Cid Gomes. S que elabora suas narrativas, mostrando sua intima relao com o prefeito. Alm disso, no se contentando em mostrar sua amizade somente com Cid, diz ser amigo de quase toda famlia. Segundo ele, esta amizade foi herdada da lealdade com o pai e o tio av do dirigente municipal, que tambm j ocuparam o cargo mximo do executivo de Sobral. Diz ser amigo tambm de Ciro Gomes, irmo de Cid Gomes, ex- governador do Cear, ex-deputado federal, ex-prefeito da capital do Cear, Fortaleza, e ministro da Integrao Regional do governo de Luiz Incio Lula da Silva (mandato de 2003/2006), dentre outros cargos pblicos j ocupados. O prestgio dos "homens de bem" serve para demonstrar o seu prprio prestgio. Peculiaridade que no parece ser s sua, pois Sr. Gutemberg, de uma forma mais modesta, tambm usa do mesmo artifcio narrativo. No caso do Maestro, este artifcio no pode ser interpretado no sentido de querer expressar uma predestinao divina de um ser valoroso que por natureza deve ser cultuado e adorado, ou algo parecido. A imagem que ele passa mais simples e est na ordem do cotidiano, no do espiritual, nem do inato ou do divino. Simplesmente a vida lhe fez caminhar sempre " direita". Isso desde a infncia, quando brincava com os considerados por ele "ilustres sobralenses" como Coronel Felizardo Mendes, Coronel Joo Babosa Mendes 87 , ou ainda o Doutor Ernesto Figueiredo. Sua posio de reconhecimento social est posta no cotidiano das suas relaes pessoais com indivduos de prestgio. So elas que o reconhecem como pessoa valorosa. Isso o que ele tenta passar na sua fala. E justifica esta situao sempre afirmando que, apesar disso, nunca foi rico. As conversas com estas pessoas de prestgio, rondavam sempre por assuntos "intelectuais", como "...poltica... as letras, a cultura, a grandeza de Sobral, no plano intelectual e moral etc... a conversa era essa". Cada lembrana sua era arrematada com
87 No ano de 1831 foi criada pelo Imprio brasileiro a Guarda Nacional, em que os chefes polticos locais mais destacados de cada regio ocupavam os cargos mais prestigiosos (Queiroz, 1976). Geralmente estes cargos eram concebidos aos grandes donos de fazendas que tinham grande influncia na administrao pblica. A patente de coronel geralmente associada ao mandatrio de maior prestgio. Mesmo sendo extinta a Guarda Nacional aps a proclamao da repblica, a alcunha de coronel continuou sendo usada e associada a pessoas de prestgio. 235 conselhos como este: "Isto o que a mocidade... vocs deviam fazer assim: quando se reunir falar das coisas que elevam o pensamento. Porque, , feliz o homem... essa filosofia... essa frase eu a julgo minha: feliz o homem que atinge a maturidade com seus dias consolidados na justia. Est sintetizado nestas palavras ta entendendo? o futuro de cada um de vocs. E essas coisas eram o que a gente conversava e tudo mais e tal, em matria... musica e isso aqui, tudo fazia parte [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). A justia passa a ser um valor fundamental na fala do Maestro. Justia esta que parece consolidar-se na formao intelectual. Porm a narrativa do maestro sempre oscila entre uma modstia declarada, seja ela financeira, seja ela intelectual, e um refinamento de formao pessoal. Quando fala da sua experincia na escola de "Dona Mocinha Rodrigues", mulher lembrada por ele como "principesca", que "tinha autoridade" e s "entrava em sala de aula muito bem vestida", em suma, como ele mesmo classifica, uma "aristocrata" com quem boa parte dos filhos da elite da cidade se formava, ele diz: .. Bom. eu fiz o primrio, assuletrano que a gente pobre no tinha nada, no sei de letra. no sei de nada no. eu fiz por l, junto com os meninos tudim e quando eu lhe falei as direitas foi justamente isso, eu procurei um terreno frtil para a consolidao dos meus dias no futuro [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). O terreno frtil que achou foi: "...O terreninho intelectual para os intelectuais. Mas hoje ta servindo. Aquilo que eu absolvi naquela poca, procurei me abeberar, procurei absolver e transmitir. Porque So Paulo diz que o bem tende a comunicar- se. E eu no sei se por virtude de Deus na pessoa de Jesus me veio isso que eu estou fazendo: transmitindo aquilo que de graa recebi [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Terreno este de que ele fala com languidez e pesar. Lembra dos bailes, dos saraus, dentre outros momentos de encontro "intelectual". O momento da entrevista ressaltado por ele como lembrana de tempos saudosos, pois raro, nos dias de hoje ele ter oportunidade de falar destas coisas. Essa imagem da "intelectualidade" de sua experincia de vida projetada para a cidade. A cidade que fornecia recursos para isso atravs das famlias prestigiosas que a habitavam. J Mariz nascida no dia dezenove de setembro de mil novecentos e dezenove, 236 casou-se no bairro Sumar com um pescador, tendo apenas 13 anos 88 , teve quatorze filhos, dentre eles, oito morreram. J perdeu a conta da quantidade de netos e bisnetos. J foi tecel, empregada domstica na casa de Jos Sabia 89 , parteira e nos dias de hoje continua exercendo suas funes como rezadeira. J viajou de avio para So Paulo como "parteira lder" engajada em um projeto de sade da prefeitura e j rezou para o cantor Ney Matogrosso, com quem tirou uma foto para registrar sua faanha. A sua experincia peculiar faz com que ela seja hoje muito conhecida dentre as pessoas envolvidas nas polticas pblicas direcionadas sade, assim como dentre as famlias dos doentes, que foram curados por ela e mulheres, que pariram em suas mos. Cada atividade que passou motivo para contar suas aventuras. A prpria entrada dela na atividade de parteira foi uma aventura. Como ela mesma conta em um determinado dia, "... num tinha parteira pra cuidar da mulh. Chovendo: Ah, meu pai do cu o qu que eu fao?. Tinha uma irm dela que j tava se tremendo todinha. Eu digo: o jeito ser eu , vamos ver mulh!. A mulh teve a criana: e agora pra cortar a corda... o cordo do menino? A: Qu que eu fao agora? Pra a que eu vou buscar uma tesoura. A tesoura cega tava amassando, a uma mulh disse assim: Mulh, um talho de camaba corta. A eu mandei, elas mesmo fizeram, e eu tchum... cortei o umbigo do menino. Botou muito sangue. Bem pertinho do umbigo mesmo eu amarrei um cordo e amarrei onde tava saindo sangue. Pronto. Banhei o menino, deitei o menino, quando o marido dela chegou, chegou com a parteira distncia de duas lgua. Ah, o menino j tava banhado a fiquei... o povo me chamando. Ah, minha gente eu num sou assistente no, eu num vou pegar menino no. No, diz que voc boa. Bom Deus num eu no!. A sa pegando menino. Sa pegando...[sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). Todas as lembranas de Mariz so recheadas de histrias engraadas e de perigos dos quais ela sempre consegue se safar. Mostra um feixe de relaes extremamente extenso, passando por vrias classes sociais, mas por conta de sua atividade atual, concentra-se muito dentre aqueles, que trabalham em aes de sade na cidade e moradores do bairro Sumar. As fotos, as filhas e os amigos, que entram e saem todo tempo, tomando sua casa uma das mais movimentadas da rua, aparecem como testemunho de sua fama na cidade. Um mdico e uma enfermeira do Posto de Sade do Sumar que entraram na casa
88 J foi chamada a ateno do leitor para a impreciso numrica referente s datas que Dona Mariz cita em nota de rodap. 89 J foram feitas algumas consideraes biogrficas do juiz Jos Sabia em nota de rodap. 237 na hora da entrevista, muito amigos dela, foram testemunhas de algumas de suas "ousadias". O maestro tambm me mostra provas atravs de objetos, documentos e fotos, de seu envolvimento com "ilustres sobralenses". Na sala de sua casa, onde foi realizada a entrevista, um armrio guarda peas consideradas por ele "valiosas" para a histria da cidade. A flauta que ele no toca mais por lhe faltar "embocadura", doada ao Museu Dom Jos 90 apesar de estar ainda com seu provisrio "pastorador", "...de mil novecentos e vinte que eu herdei do maestro Z Pedro de Alcntara, o grande maestro que passou e deixou um rastro luminoso na histria de Sobral [sic]". Este instrumento musical lembrado como relquia de um tempo que prova seu envolvimento com os "ilustres". Fotos, cartas, partituras e documentos em geral eram sempre mostrados como provas. As caminhadas cotidianas no centro da cidade lhe traz boas e ms recordaes. Como ele mesmo fala: " eu sempre vou l no Becco 91 pra receber meu jornalzinho, pra ver as novidades, trazer o jornalzinho do prefeito que eu tenho ali guardado um bocado para a histria. Ento. Agora uma coisa que me toca... Chego naquelas ruas, por exemplo, na Domingo Olmpio, eu olho no tem mais ningum daquele tempo, um verdadeiro cemitrio. Cad fulano de tal? Morreu. Cad fulano de tal? Morreu. Cad fulano de tal? Morreu. Eu, fico assim de... Dia de domingo s vezes eu vou e olho tudo aquele silncio sepulcral. Eu vejo, parece que eu to vendo em procisso aquele povo, aquelas senhoras, aquelas matronas respeitveis, cidados, etc. Como, por exemplo, um deles , Raul Conrado Ferreira da Ponte, pai do Aurlio Ponte e outros e outros mais, era uma beleza, uma beleza, as rodinhas nas caladas que beleza que beleza![sic]" (Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Sr. Gutemberg parece compartilhar do mesmo sentimento acrescentando outros elementos quando fala que: O Becco do Cotovelo o clebro, voc sabe que todo mundo tem que passar ali. Eu conheo muita gente. Os meus contemporneos no existem mais, mas aqueles, assim, mais perto de mim eu ainda conheo um bocado. A no tenho aqueles que eram, como se diz, ali da mesma poca, contemporneo voc ouviu, essa coisa. Vou dar uma passadinha por l pra no esquecer dele. Tomar um cafezinho ali, que hoje quase no estou tomando. As vezes tomo porque saio pra l e chega as vezes um conhecido.
90 Museu da cidade de Sobral fundado no bispado de Dom Jos j descrito no 3 captulo deste trabalho. 91 O Becco do Cotovelo j foi descrito no captulo 3 deste trabalho. Sobre isso tambm Cf. Freitas (2000). 238 Gosto de me sentar l naquela farmcia ali... tem um banquinho ali que eu me sento, me dou com o rapaz. E as vezes quando est desocupado eu me sento ali um pedacinho pra ver o movimento. Quando d f chega um mais conhecido, se senta ali bate um papo. Quando eu vejo que o camarada t querendo sair eu saio primeiro do que ele. A gente nota n? ...Do caf Jaibaras? Eu as vezes passo por ali e eles esto falando um bocado de coisa, eu vou embora no presto nem ateno. Atravessado... Ali um bocado de prefeitura, outros que so contrario bota uma mesa l pra falar, pra discursar, pra no sei o que. As vezes nessa ocasio eu passo nem escuto, que eu nunca gostei de poltica, j disse [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004). O silncio, causado por aqueles que se foram remete o maestro e o comerciante aposentado a um tempo saudoso de uma inocncia cndida de um tempo idlico. Barros (1999) tambm encontra este mesmo vis nos depoimentos trabalhados por ela. Para a autora, a impresso que lhe d de que a cidade do passado encarna a cidade possvel inexistente no presente. Guardando a devida proporo entre a cidade do Rio de Janeiro, analisada pela autora, em comparao com a cidade cearense de Sobral, h coincidncias nas lembranas dos entrevistados, que tendem a acionar a memria para exaltar uma paisagem idlica, de relaes face-a-face. A entrevista com o maestro muito marcada por isso. Na dcada de vinte e trinta dos novecentos, como lembra o Maestro, "nas caladas as rodinhas as mocinhas brincando de prenda e a aquela coisa [sic]... e, hoje no... cachaa muita, mulher e homem". Era tambm o tempo dos bailes de famlia quando "...os pais todos na sala sentados e as filhas ali e tudo mais... e elas danavam ali entre os pais e tudo mais. Vinha uma licoreira antes de comear a festa, uma licoreira, um calicezinho de licor pra cada um. Os pais delas sorriam [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Como ele mesmo diz, o licor inocente era para "levantar o esprito". A descrio destes bailes era acompanhada de gestos e movimentos que tentam lembrar o que acontecia no salo. Neste tempo o Maestro lembra que todos ficavam muito bem vestidos e penteados de forma "primorosa". Fato que ele prova com a foto da senhora, que o criou, vestida para um baile, de 1901. Para ele, hoje bem diferente. As mulheres vo todas "desgrenhadas". J na fala de Mariz, o passado no est to distante assim. Nas prprias atitudes dela, est implcita a forma como usa do passado. A cidade do passado, vivido como ela viveu, ainda existe no presente, apesar de no ser a mesma coisa. Talvez por ainda estar 239 exercendo sua atividade de rezadeira, suas aventuras ainda so constantemente reeditadas. Ela convidada a se engajar em projetos da Secretaria Municipal de Sade, fazendo um trabalho de educao articulado ao Programa de Sade da Famlia, mas no deixa de lado sua atitude "ousada", jogando com coisas que, de certa forma, so controladas pelo saber mdico, burlando, taticamente, as imposies deste saber quando lhe conveniente. Um exemplo a reza que fez dentro do posto de sade na poca ainda localizado em frente sua casa. Algumas doenas ela manda o enfermo para o posto, mas, "As vezes... ... " meu menino ta to enjoado, est tossindo, reze aqui". ", deixe que eu rezo, traz que eu rezo", tossindo ainda. Bem que eu rezo escondida l pra dentro do muro, eu vou, rezo. As menina, s vezes: "Qu que ta fazendo ai?"; "Num se importe, cuide ai na arrumao de vocs deixe eu aqui"[sic](Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). A sua nostalgia de namoradeira, tambm ainda marca um pouco suas atitudes, quando solta indiretas para o entrevistador e faz questo de tirar uma foto agarrada comigo. Apesar disso, no se acha mais "jovem", mas ainda no se sente caduca. Imagina sua "caduquice" como pior do que as convencionais. Para ela, "Tem caduquice de todo modelo: tem caduquice de querer cagar. Eu s num quero eu... Deus me defenda! Tem caduquice, do que a pessoa faz de novo quer fazer de velho, a fica caducando. Dizendo aquilo... misturando as conversa, tudo vem da caduquice. Pois ...[sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). Brincando e ironizando a sua idade, no quer se enquadrar na condio de "caduca". Para envolver os ouvintes na narrativa, o maestro tambm no se contenta em expor objetivamente o que fala. Utiliza-se tambm de brincadeiras que fazem os entrevitadores participarem, sem necessariamente estarem l, pois, segundo seu julgamento, no um tempo em que viveram. Somos chamados ateno da seguinte forma: " e olhe, pra voc ver minha filha que naquela poca meninos... que naquela poca... [sic]". Os "meninos" que ali estavam para lhe escutar, segundo ele, "podem no ter participado, mas pelo menos j leram alguma coisa". uma postura quase de av que conta para os seus netos suas experincias. Um av que tenta mostrar-se humilde, mas que vive intensamente com a elite da cidade, ao mesmo tempo em que "senhor de sua semana". A narrativa recheada de histrias e documentos. Vendo fotos de diferentes pocas e eventos na cidade, a participao do Maestro sempre aparece. As histrias, mesmo as trgicas, tornam-se 240 anedticas e engraadas como o tiroteio que houve na Casa da Cmara em 1907, no qual "Dona Bila", professora na poca foi espectadora: "Essa aqui a clebre dona Bila. Que tem aquele negcio que houve uma briga na Cmara e houve bala e coisa e tal, e o Antnio Almeida vinha correndo pela rua Santo Antnio e ele tava na janela, e disse... o nome dela era Isabel e chamava Bila: "O qu foi isso Toinho?". "Muita bila dana Bala!"[sic]" (Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). O Maestro tenta amenizar a conversa, deixando-a mais agradvel para ns. A beleza que sempre ressalta, quando lembra do tempo passado na cidade, no era s dos ricos, mas tambm dos pobres. Apesar disso, mesmo sendo uma cidade "intelectual", ele chama ateno para o lado negativo do preconceito, que ele prprio reproduz, nos bailes em Sobral. ", a gente sentia, a beleza da sociedade, alis dos pobres tambm. Ns tnhamos um clube do artista sobralense, clube do artista e depois o clube dos ndios e tudo mais. Agora existia essa, essa questo de branco e preto e de coisa e tal. Esse preconceito em Sobral existiu sempre. Mas eu at de um certo modo acho que devia haver uma certa seleo nas coisas, por exemplo: eu vou fazer uma festinha aqui na nossa casa convido vocs intelectuais, vem um 'cabco' das Pedrinha bebo dizendo nome feio na porta, num pode![sic]" (Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Desta forma, o maestro posiciona-se diante das regras de conduta e do preconceito, que muito embora foram mudando com o tempo, alguns devem ser reprovados, assim como outros preservados, como, por exemplo, a correo na forma de se comportar e se vestir em ocasies especiais. Sobre o que reprovvel ele fala: "...agora tinha a parte negativa tambm, que um pobre como eu e outros mais, tudo mais, e esses cabcos como eu era includo como realmente o sou num chegava perto. No sereno do baile, aqueles bailes grandes, o aniversrio do partido do clube e tal, os pobres ficavam l no meio da praa, longe, na calada, por exemplo, assim escondidos. Era s para os ricos, os branco. Os cabco ficavam pra l [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). O Sr. Gutemberg tambm lembra dos bailes no Palace Club 92 ressaltando o rigor no
92 Em 1926 foi inaugurada uma nova sede para o Grmio Recreativo Sobralense em um prdio de estilo neoclssico, que ficou conhecido como Place Club. Ele funcionou durante 50 anos para fins recreacionais da elite sobralense e at 1997 foi ocupado pelo Frum Dr. Jos Sabya de Albuquerque (Cf. MontAlverne Giro & Soares, 1997). Contemporaneamente funciona o Centro de Lnguas Estrangeiras. 241 comportamento e na moral. Ele fala que: Era rigoroso, l no era qualquer um que entrava no viu. Como em So Benedito, o nosso clube de l que tambm foi fundado por mim e o meu cunhado... em 1934 no entrava ningum no, e depois que eu estava aqui, os anos que eu voltei l, aqueles que costumavam olhar o sereno j eram at diretor e... Sereno, chamava-se as pessoas que vinham do lado de fora nas janelas olhando o que estava acontecendo... Ento estas pessoas quando eu voltei l, tinha deles que j eram diretor e tudo. Como em Sobral tambm a mesma coisa, o Place era rigorosssimo pra voc entrar l, precisava saber quem era, de onde vinha. Viajantezinho no entrava l como nas outras partes. Mais depois foi caindo e aconteceu a mesma coisa, depois os galinhas dgua... , desculpa voc galinha dgua? N Eu no sei o que . (risos) G A famlia do chamado... do Jaibaras e coisa e tal chamavam galinha dgua... Jernimo Prado...isso era o galinha dgua. Depois vieram pra c, o Jernimo foi at prefeito, o Z prado tambm filho dele que nunca fez nada s calhava as caladas...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004). O "cabco", categoria racial a qual o Maestro se julga pertencer, oscilava entre o pobre que ficava no "sereno do baile" e o rico que o aproveitava, tambm lembrado pelo Sr. Gutemberg. Nos bailes o comerciante entrava com facilidade. J o maestro tambm entrava, mas em muitos casos isso no era to fcil assim. Ele conta como exemplo o episdio do casamento do Dr. Plnio Pompeu Sabia Magalhes em 1928 no Place Club, que foi com sua me adotiva, classificada por ele como pertencente a "alta sociedade ". "Ento eu quero lhe dizer que eu fui entrado com a minha me ai o porteiro: psiu! Pare. Voc no pode entrar aqui no. Ai a velha que era muito positiva virou-se para o porteiro e disse: no se faa de besta cachorro! 'Vambora' menino! Subi, me sentei ao lado da cadeira dela e assisti a solenidade do casamento civil que foi l no Place em mil novecentos e vinte e oito. Pois bem, so essas coisas n? Agora os branco... que muitas vezes tinham os rapazes brancos, que tinha as mocinhas pobres bonitinhas assim como vocs n? Verdadeiros lrios [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). O narrador maestro no podia deixar escapar a tentao de querer afetar os entrevistadores com suas colocaes, mesmo falando de preconceito racial. Ele torna a histria contada cotidiana e engraada para envolver o ouvinte. J Mariz tem outro tipo de relao com pessoas de prestgio na cidade. Ela conta seu envolvimento do ponto de vista de sua esperteza em se safar de situaes onde foi colocada em risco. Quando trabalhou na casa do Juiz Jos Sabia, vrias histrias formam contadas. Ela conta, por exemplo, que 242 cuidava do filho deles. Porm, era folgada e ajudava a cozinheira a fazer a comida s para poder comer primeiro que todo mundo. Ela tornou-se empregada de confiana de Dona Sinh, esposa do juiz, dentre as nove que trabalhavam por l. Pelo menos dois episdios facilitaram Mariz na conquista desta confiana. Um deles foi o "teste" aplicado a ela por dona Sinh, esposa do Juiz Jos Sabia. Ela colocou "...uma cdula de dinheiro em riba da mesa, me deu um espanador pra eu espanar. Eu disse: "Isso ai cambalacho, ai eu num chego nem perto. Espanando pra l e pra c, pra l e pra c, passei o dia todim nesse... eu disse: "Mas ser possvel que o servio esse? J t de brao cansado de espanar essa mesa, num vejo sujo". Me sentei, ela chegou. Antes dela falar eu falei: "D. Sinh desculpe eu me... minha proposta, eu vim pra c s pra espanar esta mesa?". E ela: "No, voc tem muito servio". "Porque dia todinho, j estou de brao cansado. Ai ela disse: "No! Tem muito servio pra voc". Eu digo: "Muito bem, e o que ? Me diga logo que eu quero fazer". "Perai, voc apanhe aquela cdula". Eu apanhei e entreguei a ela: "C sabe quanto ?". Eu digo: "No senhora, sei no". "Voc no sabe quanto e? ". "Sei no senhora". "E nem pegou?". Eu digo: "D. Sinh, foi a palavra que minha me disse, que eu no pegasse no que num era da minha conta e se uma pessoa me perguntasse, eu num sei, eu num vi, foi as palavra que minha me me ensinou". Ela: "Muito bem, bora ali". A me levou l pra dentro, me entregou todo movimento da criana e a chave da despensa:"Pegue ". Eu era to, num sei como, porque at para eu merendar, eu pedia a ela. Ela dizia: "Menina, no precisa pedir, vai tem banana, tem isso, tem aquilo". Eu digo: "Mas eu num, num minha". Seis ano que eu passei l, nunca meti a mo pra tirar nada, s nada. Ave Maria, eles me davam grau dez [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). Em outro episdio, Mariz resolveu enfrentar o "Doutor Carlim", sobrinho de Dona Sinh, e conhecido por, como ela mesma diz, "pegar as moas fora". Ordenada por Dona Sinh, foi deixar o caf da manh no quarto do "Doutor Calim", coisa que as outras empregadas tinham medo de fazer. Ela conta que: "Nesse tempo a gente usava uns tamanco do salto era isso. Eu digo: " eu vou". Eu num calcei os tamanco, calcei um mais baixo. Teiim... teiim... eu subi, quando eu cheguei, ele deitado na cama s de pijama. Quando eu passei... eu era bem gordona, a nga era bonitona mesmo, o cabelo bem grande. Que quando eu passei ele... eu botei a bandeja em riba. cubri e eu: "Ta Dr. Carlim seu caf, j ta ai aposto ai". Quando eu peguei. ele tamm... tacou a mo na minha carne. Eu tamm... na cabea dele. "Ai!! Tia Sinh, rachou minha cabea". A eu num sabia se pisava no batente ou no rolo: "Eu taquei os tamancos na cabea do seu sobrinho". "Por que?". "Porque ele vinha me pegar fora'. "Tu louca Mariz, rachou a cabea do 243 Carlim". Eu digo assim "A senhora vai curar, porque se eu rachei j ta rachada". Eu fiquei: "A meu Deus ser que ele vai dar um tiro?". Digo,: "mas ele num vem no". A ele viu, j vinha o sangue assim escorrendo, ele molhado o pijama j. " tia Sinh eu s fui fazer uma prosa com essa tua empregadinha ai e ela me... ". Eu digo: "prosa, eu num gosto de prosa nem com um cabloco, duma pessoa da minha laia da minha igualia, avalie dum homem como o senhor Doutor. O senhor era pra ter prosa com outro, da sua igualia, no comigo... Sabe o que voc queria, eu digo quer ver que eu vou descobrir j os podres desse homem aqui. Eu digo " mocinha venha c'. "Que ?". "Venha c". "Eu num vi voc deitada na cama mais o Dr. Carrim a, eu num vi?" Ram... Eu disse "num negue no, num negue no que eu vi, voc queria fazer comigo como voc fez com a mocinha?". " renegue cabco!". Eu s no sa pra fora porqu a dona Sinh... porque a patroa: "no, ela no vai sair daqui no, ela quem tem o direito dela, ela no sai daqui no"[sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Mariz em 15/09/2001). Esta narrativa mostra uma srie de questes relacionadas s diferenas sociais na relao entre patro e empregado. Mas, sobretudo, a parteira quer mostrar sua astcia e a coragem na resoluo de um problema contextual que tem uma forte relao com a questo mais ampla das diferenas de classe. Alm disso, apesar da dependncia que tem com relao ao emprego, s faz o que pede a sua funo. O resto fica por conta dos momentos em que se aproveita da fartura de seus patres e come antes deles. J o Sr. Gutemberg, talvez ainda no acostumado com o aparelho que registrava tudo o que fala, ao contrrio do Maestro e da parteira, constantemente entrevistados por diferentes tipos de profissionais, tende a ser mais objetivo, tendo poucos momentos de descontrao. Mas mostra sabedoria e experincia de vida utilizando a cidade e sua memria como forma de construir sua autoridade em no s conhecer bem Sobral mas ter convivido com ela desde muito tempo. Ele conta que: Quando eu cheguei aqui o abastecimento dgua era feito em costa de animal, quando dava as primeiras chuvas no inverno a gua era barrenta, horrorosa sabe... Isso nos anos de quarenta e tantos, no tinha tratamento dgua. A custa de burrico, que o jumento viu... Todo mundo tinha o seu butador dgua. N Eu sei. E as ruas como eram? G Tinha muitas que era de barro, muitas mesmo. S o centro da cidade que era calado, a maioria quase tudo era de barro, ali na igreja do So Francisco aonde eu morei era cho. Isto nos anos de quarenta e... dois, cinqenta pra li, foi que calaram. Fizeram um calamento, este calamento durou muito, pra vim o asfalto, o asfalto veio a pouco tempo... talvez em... no sou muito preciso nas datas no mas faz pouco tempo. Eu vim pra c 244 em 46, isso durou... depois eu consegui, porque o colgio sobralense tinha um encanamento dgua que era muito precrio, mas mesmo assim eu mandei instalar na minha casa e tudo e tal, mas sempre melhor, isso l pelos anos de 50 e qualquer coisa assim...[sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Sr.Gutemberg em 08/03/2004). A verso de cidade e de prticas narradas, por estes narradores, mostra vivncias urbanas nas quais acompanharam o desenrolar do desenvolvimento e sentem saudades dos tempos passados onde tudo parecia ser mais inocente e brando. Elas parecem contrastar com a verso de Jos Ferreira que tambm acompanhou o crescimento da cidade, conviveu com a urbanizao crescente, passando inclusive pela sua parte mais expressiva que a Indstria, trabalhando na refinaria de leo de carnada da extinta CIDAO, em que entrou, em 11 de fevereiro de 1950, e ficou durante 36 anos, mas acabou voltando sua origem rural, sem sair da cidade. Voltou a ser lavrador em terras prximas da sua casa no sistema 5 por 1. Sobre seu dia-a-dia ele fala que: Durante o dia eu vou pro roado chego 10, 11hs. A passo o resto do dia aqui no gabinete... s sentado conversando. Tem a minha patroa que chega aqui, ela vem pra c pra ns prosear, s vezes passa outra pessoa e aqui vai ficando essa graa. s vezes agora eu to cercando a vazante ali porque quando se acaba o roado a eu vou pra vazante s pra mim intertre, porque o Dr. Rufino trabalhava aqui no posto ele me disse assim: Olha seu Z Ferreira voc tem de andar tudo o dia. No mnimo voc tem de andar 1 km por dia. Porque se voc se deitar na idade que voc tem, voc pode dar uma trombose. Porque eu estou doente de presso alta. A ele disse agora voc andando e mais difcil. Voc faz assim: anda mais ou menos 1 km. No outro dia voc no vai. No outro voc vai. Assim eu fui tranar o roado porque no roado, eu todo dia eu vou pro estreito d mais de meia lgua. A o estreito de uma lgua que eu ando meia pra l e meia pra c, ainda trago uma coisinha do lado [sic](entrevista realizada pelo pesquisador com Jos Ferreira 05/07/2001). O seu escritrio o quintal de sua casa, onde tambm cria alguns bichos. Segundo ele, so de 30 a 40 cabeas de diferentes bichos como galinha, capote, porco, dentre outros. No vai quase nunca ao centro. Sobre isso ele diz: , eu num vou no ando pra nenhuma parte no. S aqui mesmo... No eu vou pro centro assim quando eu vou receber o meu trocadinho. Eu vou at l... E hoje eu ainda levo uma guia porque eu quase no conheo aquele negcio de sinal, aquelas coisas. Eu tenho uma sobrinha minha que vai mais eu. Quando eu chego naquele sinal ela j conhece, passa pelo sinal. Eu sempre, aqui acol, eu vou pro mdico ela quem vai mais eu... Chega l na Santa Casa ela remexe todo o canto, eu num sei andar pra nenhuma 245 parte. A ela chega l entra por l, sabe por onde que eu vou, vai me atender. J fui pro Instituto do Corao duas vezes, a l ela entra l ela sabe qual o mdico qual no , assim [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Jos Ferreira 05/07/2001). Tambm, assim como os outros narradores selecionados, lembra com saudosismo determinadas prticas peculiares que hoje j no existem mais. Sua justificativa para o fato de nunca ter estudado antecipa estas prticas perdidas quando diz: No eu nunca estudei. No tive tempo, porque o tempo que eu tive quando eu fui tomando marra mesmo, altura de um homem, a eu fui atrs foi de namorar. Nunca tive tempo de nada, porque o meu pai que acabou de criar ns era no trabalho aquele tempo, neste tempo aula era muito difcil. Quando eu vinha pra c na Vrzea Grande, que eu vim no 40 pra c, a aula que tinha aqui era do padre Domingo. Aqui onde os Vinte noite. A tinha muita gente que estudava, mas eu trabalhava o dia todinho, saia s 4 hs de casa e ia chegar 6 hs. Quando era 6 hs ia tomar banho e comer uma coisinha, acabar ia ganhar o mundo namorar, que era o tempo da fora que a gente tem... A gente pobre nesse tempo e as mulh tambm era difcil. Nesse tempo as mulh eram poucas. Hoje que tem demais. Neste tempo, era de pouca mulh que tinha... Neste tempo o sujeito num tinha condies no, hoje o sujeito hoje v... hoje o sujeito v as moas namorando, por isso que hoje e muito difcil ter casamento que d certo, porque, eu vou dizer uma coisa, quando o sujeito se casa ele j conhece a moa. Por que olhe naquele tempo... um rapaz no andava agarrado com uma moa. Se ia na casa de uma namorada era de 8 em 8 dias. Ia no sbado, a quando era no sbado ficava um pedao l. A quando era domingo vinha de novo e na semana ia trabaiar. Ningum se lembrava de namorada. Quando a gente vinha com aquele prazer. Mas hoje no. O sujeito agarrada com ela todo o tempo, diga uma coisa quando ele agarrado todo o tempo quando ele chegar l no tem mais gosto. Eu acho que no tem mais...Nesse tempo no tinha beijo no. Ora beijo! Beijo da onde?O sujeito chegava na casa do pai de famlia, a via sentava num banco ou num batente com o cachimbo vio- bofo, bofo, bofo- pastorando. Neste tempo nem tinha muita coisa no... A gente tinha amizade, agente ficava conversando aquelas conversinhas [sic] (entrevista realizada pelo pesquisador com Jos Ferreira 05/07/2001). Desta forma, Jos Ferreira representa uma verso diferente de prticas de espao na cidade. No uma prtica intelectual como a do Maestro, nem uma prtica de prezepagem como se autoqualifica Dona Mariz com suas aventuras narradas, muito menos prticas de comerciante e migrante com estreitas relaes com elite local como marcada a experincia de vida do Sr.Gutenberg. uma experincia que tende a se distanciar de uma urbanizao, de sinais estranhos de orientao que aparecem com as inovaes tecnolgica na cidade, e que nos faz pensar em prticas rurais no urbano. Os 246 nomes, que fizeram parte de sua vida, acabam sendo outros. No mais os nomes dos heris da elite econmica aparecem em sua narrativa, mas o de seu vizinho ou conhecido do bairro, ou ainda do dono do terreno, onde trabalha, que nem sequer mora em Sobral, mas em Fortaleza. Entretanto, observando este e os demais depoimentos, podemos ver que alguns deles se aproximam em determinados momentos, e se distanciam em outro, de acordo com a especificidade de relaes que compartilham na cidade. Penso que so expresses no s de biografias individuais, mas tambm mostram indcios e circunstncias de vivncias possveis no espao urbano, que no podem ser enumeradas, mas qualificadas como tipos possveis. No so os nicos, mas so significativos, e nos levam a pensar uma srie de prticas pertinentes para relativizar e/ou confirmar a perspectiva histrica da monumentalizao da cidade.
5.3 - Afeces do pesquisador. Um breve parntese
Comeo a conversar com senhor Wilson Brasil e ele me convence de ser um homem que olha o mundo com experincia de uma vida "bem vivida", apesar da "alma calejada". Sua casa, simples como a aparncia de seu dono, esconde lampejos da memria de uma experincia vivida, colada com os "heris" lembrados atualmente pela elite sobralense. Fotos de Sr.Wilson com Dom Jos, por exemplo, marcam sua amizade com o homem que, segundo o hino da Santa Casa de Misericrdia, "deu luz e vida cidade de Sobral". Seu relato sobre sua vida em Sobral atravessa e organiza lugares, selecionando-os e colocando- os em um s conjunto que a cidade de Sobral. O espao citadino fracionado, e as lembranas do uso que o distinto narrador faz de cada frao sugerem uma frase, um conselho ou uma anedota. Esta caracterstica no se restringe somente ao senhor Wilson. O Sr.Gutemberg, Jos Ferreira e Dona Mariz, em cada visita que fiz a eles, ficava surpreso pela narrativa envolvente, densa e cheia de "histrias" que me absorviam de tal forma que perdia a noo do tempo. Horas se passavam e no me cansava, juntamente com os alunos que sempre me 247 acompanharam nas entrevistas, de ouvir aquelas histrias que passam uma profunda e envolvente experincia de vida. Alm da fala, os narradores, ouvidos pela pesquisa, organizam suas lembranas tambm em documentao escrita e imagtica (artigos, documentrios, notcias sobre a cidade, partituras, fotos e vdeos) e fazem questo de mostrar como recurso para enfatizar o que narram. A exceo se abre com Jos Ferreira e o Sr. Gutemberg. O agricultor, no seu escritrio, prefere somente usar da sua palavra para narrar. A no ser quando comeo a caminhar com ele dentro de sua casa, onde ele mostra o processo de diviso e ampliao que teve que fazer para abrigar a famlia que foi acrescida com 14 netos de seus dois filhos que ainda moravam com ele. Sua narrativa demarcada espacialmente, principalmente no bairro Dom Expedito situado na margem direita do Rio Acara. Foi atravs dele que conheci o Cro, neste bairro, local onde morava o pessoal mais velho que hoje abriga um posto de sade. J Sr. Gutemberg, econmico e desconfiado como boa parte dos comerciantes, prefere somente falar e mesmo assim, preocupado se estava ou no agradando o seu ouvinte. Sua narrativa tambm pontuada pelos espaos e heris tanto de So Benedito, sua cidade natal, como de Sobral. Da estante cheia de papis meio desorganizados, ou organizados segundo os parmetros de seu dono e arquivista, Sr.Wilson retira partituras antigas, fotos suas acompanhado com grandes "heris" sobralenses, como prefeitos de tempos distintos, alm de vrios outros documentos que, segundo ele, guardam um pouco da histria da cidade. Dona Mariz mostra fotos de sua viagem a Braslia para discutir em um encontro nacional a sua experincia como parteira. Alm disso, mostra fotos de famlia, fazendo questo de contar histrias relacionadas a cada corpo que se apresenta nas imagens mostradas. Fez questo tambm de passear pelo bairro comigo e um dos meus bolsistas para mostrar o local, onde lavava roupas quase todos os dias. Conhecemos novas ocupaes que iam surgindo, o processo de negociao para ter um terreno, a forma como demarcado, dentre outras peculiaridades do cotidiano do bairro durante este passeio. Porm esta documentao imagtica ou escrita e os passeios com os narradores, apesar de condensar uma rica "viagem pelo tempo", que conta aes e projetos (Velho, 248 1987) diversos, representa uma parte nfima da narrao oral. A oralidade no fixa imagens construdas e, conseqentemente, no ossifica experincias em documentos. A transformao da narrativa em arquivo e documento tarefa do pesquisador, o que limita a capacidade criativa da narrativa. A narrao oral no cessa de trabalhar na composio de espaos, lugares, pontes e fronteiras (Certeau, 1994). Desta forma cada narrador, contando a sua histria, vai montando um grande quebra-cabea, relativo ao modelo peculiar de ver, fazer e dar sentido e significado aos espaos e lugares da cidade. Isso sempre associando esta "montagem da cidade" a fatos, heris e momentos que fazem com que o narrador crie uma imagem de si como pea fundamental para constituio do que Sobral significa hoje. Os relatos sobre a sua histria pessoal e sobre o seu cotidiano, contam as "feituras de espao" (Certeau, 1994). A fabricao e as operaes de demarcao do espao vivido, realizado atravs dos relatos dos narradores, so compostos com fragmentos compilados de histrias anteriores experimentadas por eles, e "bricoladas" como se existisse um todo nico, sistemtico e organizado. Neste sentido, a interpretao dos relatos esclarece a formao de mitos e a fundao de imagens relativas a espaos e lugares da cidade. Esclarecem tambm a demarcao de fronteiras entre os diferentes grupos sociais que vivem no espao urbano. Wilson Brasil, por exemplo, quando relata a lembrana de seu nascimento, em 21 de abril de 1917, marca a necessidade de sua aproximao com os "grandes heris" da cidade. A praa, que faz frente casa em que nasceu, configura-se em um lugar de referncia em sua histria narrada. Os diferentes nomes da praa em diferentes tempos so lembrados pela autoridade de quem viveu ou conhece bem a histria das mudanas. Segundo ele, no momento de seu nascimento era Praa da constituio, passado algum tempo, o nome foi mudado Praa da Independncia e depois praa Deputado Chico Monte. A praa contemporaneamente situada em frente Igreja So Francisco, e localizada pelo Sr.Wilson a partir do ponto de referncia, que a antiga sede da Telecear, hoje Telemar, ainda era freqentada por ele no tempo da entrevista. Aos sbados, dizia que ainda se encontrava com amigos, cujos nomes faz questo de que sejam acompanhados por seus sobrenomes, como Jernimo Torres, Walter Andrade, dentre outros. Ele conta que, "... a gente senta-se l na praa, naquele bosque naquela praa ali tem aquele barzinho a gente toma uma cervejinha para corroborar as fibras e lembrar o passado... [sic]". Meses aps o nosso encontro, o 249 mdico proibiu a cervejinha. Alm disso os quiosques que l se encontravam foram retirados e alguns foram alocados no Parque da Cidade. A prpria casa em que nasceu serve como fonte para lembrar de outro "heri": Tomaz Antnio de Paula Pessoa. Lembrando de nomes, datas e acontecimentos, Wilson Brasil vai mapeando a cidade, dando sentido e significado a distintos lugares. A sua histria demarca tempos e lugares de forma linear e organizada. A praa que freqentou em sua infncia, tambm lhe faz ter boas lembranas das tertlias literrias que eram promovidas na casa em que nasceu. As narrativas sobre uma experincia de vida construda por estes narradores, regulam as mudanas no espao, figuradas por atores lembrados que na narrativa criam, praticam e transformam os distintos lugares da cidade. Os grandes "heris", apesar de obrigatrios nas lembranas, aparecem como coadjuvantes nas narrativas. O narrador o personagem principal na histria contada. Os lugares marcados no mapa do narrador e que servem de referncias para suas lembranas, compem uma rede de ligaes mais ou menos fortes que explicitam o tipo de passagem que conduz de um lugar a outro. Porm o que me intriga o vcuo deixado pelo Sr. Wilson entre o bairro que mora e o restante da cidade. O bairro das Pedrinhas quase no mencionado em sua narrativa, apesar de ele ser presidente de honra da escola de samba local que, inclusive foi campe do carnaval de 2004. O bairro lembrado exceto quando estimulado pelas questes produzidas pelo entrevistador. Ele denuncia uma falta de solidariedade como um dos motivos para no falar do bairro. O Sr.Gutemberg tambm no fala muito do bairro onde se encontra sua moradia. Porm, no seu caso esta lacuna compreensvel diante de uma caracterstica marcante do bairro Colina, j explicitado neste trabalho, onde as ruas no so usadas como espaos de sociabilidade, mas s como local de passagem. Somente a casa que mora, que no sua, de seu filho, motivo de lembrana. Porm, as histrias e experincias cotidianas vividas em Sobral so sempre localizadas no centro da cidade. Os relatos dos narradores mostram uma prtica do espao. No s uma prtica pontuada e fixada, mas um percurso. Os relatos do narrador transformam espao em lugar, assim como lugar em espao. Portanto, para Certeau (1994) os relatos tanto localizam ("mapa") como descrevem o movimento no espao ("percurso"). O que o autor 250 chama a ateno da diferena de registro necessria para uma compreenso mais abrangente da situao espacial. O espao compreendido em movimento existencial e prtico. O meu olhar como pesquisador v o espao sendo experimentado ou operado pelo praticante nas narrativas. J o lugar resguarda, com base na narrativa, a forma peculiar do interlocutor de determinar a extenso, o limite, os atributos essenciais e especficos de modo que torne o lugar inconfundvel. A narrativa no s limita, mas tambm explica, justifica, precisa e estabelece o significado, o "verdadeiro sentido", revelando o que "prprio" do lugar. Optei por acompanhar o percurso e o mapeamento das narrativas atentamente, tentando tomar, atravs da forma peculiar de ver os lugares e usar os espaos contados pelo narrador. No s acompanhar a fala, mas me imaginar na situao lembrada. Percebi que no teria dificuldade em acompanhar o percurso narrativo dos interlocutores escolhidos, pois uma das grandes virtudes destes narradores selecionados a de envolver o ouvinte em suas narrativas, como se ele fizesse parte da histria contada. O narrador, atravs de sua histria consegue montar um "mosaico" complexo, mas de simples entendimento, fruto de uma capacidade de organizao que cria uma unidade entre formas distintas de "design" para construo de imagens direcionadas ao ouvinte. Os modernos meios de comunicao perdem um pouco da espontaneidade do narrador. O gravador intimida o interlocutor da entrevista. O narrador, forado pela mquina a sua frente, porm no conformado, procura sempre tentar contar suas histrias acompanhadas de explicaes prontas que apesar de seu esforo, seu esprito de narrador sempre a desmancha, dando a histria contada um tom pico e surpreendente. A empreitada homrica do narrador sempre volta tona em suas histrias contadas, no se entregando a explicaes fceis, suscitando espanto e reflexes mltiplas. Alguns deles, como Mariz ou me Maz, como alguns a conhecem, e o Maestro, j acostumados com a lgica das entrevistas para jornais locais parecem j adaptados com esta situao artificial, e narram de acordo com suas experincias acumuladas. J Jos Ferreira e o Sr. Gutemberg, mostram claramente a inibio provocada por este instrumento quando se sentem mais a vontade com o aparelho desligado, e acabam falando coisas fundamentais para esta pesquisa que no falaram durante a gravao. 251 O grande problema : como registrar a narrativa sem a inibio imputada pelo gravador? A priso psicolgica do controle da fala provocado pela mquina, e a liberdade irresistvel da narrativa pronunciada pelos interlocutores escolhidos, ento constantemente em conflito nos encontros de entrevista promovidos. A forma artesanal de comunicao do narrador entra em choque com a artificial imposta pela imagem da "autoridade" associada ao pesquisador e professor da Universidade armado com um gravador, ameaando a privacidade dos narradores. A comunidade de ouvintes est prejudicada de certa forma por este relatrio informativo, que acaba virando uma tese. Dentre outros aspectos, o tempo acaba sendo amarrado e abreviado em contextos circunstanciais, o que vai de encontro ao investimento do narrador. Heroicamente o narrador resiste a "priso" imposta pelo gravador. Apesar do registro e documentao executado, a narrativa no tem fim. Nos encontros que tive com os distintos narradores, suas histrias eram compartilhadas comigo e com meus bolsistas de pesquisa, esquecendo do tempo. Ela ganhava mobilidade na demonstrao dos caminhos da vida, mostrando, sobretudo, percursos picos da existncia e no mapas pontuados e estticos. Mostravam uma cidade praticada por indivduos que sabem viver seu cotidiano. Lembrava tambm seus heris. E desta cidade, desta prtica e destes heris que quero falar agora pensando na relao deles com a poltica de monumentalizao.
5.4 A cidade, os heris, o indivduo e as prticas urbanas
O sujeito narrador, assim como o descrito por Benjamin seleciona, organiza e confere significados ao que v e ao que experimenta atravs de suas "artes de fazer" (prticas, tticas, astcias e resistncias racionalizao da vida cotidiana) elaboradas a partir de sua experincia de vida no presente pautado na memria do vivido (Certeau: 1994). A experincia de vida destes narradores influencia nesta relao de reciprocidade entre indivduo e espao. E estas narrativas mostram vivncias fragmentadas que contrastam com a representao conceitual e unitria da poltica de monumentalizao aplicada em Sobral. Esta poltica de interveno no meio urbano, consolidada em uma perspectiva urbanstica, 252 pode ser entendida de distintas formas. Bresciani (2002) chama ateno de cinco formas que fundamentam a perspectiva do urbanismo aplicado nas grandes metrpoles que aproveito para analisar no caso de Sobral. Aplicando ao caso da monumentalizao posso, pensando como a autora, lembrar de um aspecto que se refere ao poder da tecnocracia, ancorada no estado, como guarda da definio, delimitao e implantao de aes que visam o respeito pelo espao urbano que representa a tradio, colocando a precedncia do bem pblico sobre o particular, invertendo os termos do individualismo reforando uma tenso entre os distintos moradores da cidade e o estado, apesar de nem sempre esta tenso tornar-se conflito. O caso da desapropriao da sede da Unio Pioneira Beneficente de Sobral, da qual o Sr.Gutemberg tesoureiro, exemplar. Ele conta que apesar disso, ainda acha que Cid Gomes o melhor prefeito que a cidade j teve. Uma segunda forma o tratamento da problemtica econmica e poltica da pobreza. Problema que j acontece em Sobral, mesmo no sendo ainda uma grande metrpole. A concentrao de pessoas na cidade, decorrente da migrao, favorecendo uma diviso do trabalho e uma produtividade industrial, que podem ser entendidas de forma positiva, economicamente falando, por outro lado, representam uma ameaa potencial aos parmetros e princpios concebidos de uma sociedade civilizada em decorrncia da violncia, da favelizao, pobreza, dentre outros constantemente classificados pela tecnocracia como sociais. comum tambm se pensar a cidade como espao da diversidade e de formao de identificaes e modelos de classificao social de grupos e de agentes sociais distintos. Formao esta que, de certa maneira, tolhida e entrevada por um outro movimento, tambm tecnocrtico, que remete a uma educao dos sentidos em favor de uma determinada e fechada concepo de boa vivncia, normatizada por diretrizes tcnicas consubstanciadas no PDDU que concebe o morador como uma espcie de autmato, mquina, aparelho ou dispositivo, que executa certos trabalhos ou funes. So tratados como pessoa inconsciente e incapazes de ao prpria e que devem se deixar dirigir por outrem, este legitimado pela competncia tcnica e pela idia de aptido para a implantao de polticas voltadas para a melhoria das condies de vida na cidade. Competncia esta que tenta implantar aes ancoradas em uma cultura urbana justificada pela idia de progresso e/ou modernizao que, de certa forma, tende a se opor a uma vida rural 253 idlica e conservadora. Esta concepo tem a pretenso de ser dotada de uma elevao excepcional e estilo nobre. Pretende ser uma produo de relevo e brilho, fora do vulgar, que atingiu grande perfeio intelectual ou material ou o que h de mais elevado nos sentimentos e nas aes. Por outro lado, esta cidade concebida tecnocraticamente vislumbra a cultura popular como uma forma parte da cultura urbana, que deve ter um tratamento diferente e especial, pois concebida como remanescente de prticas quase rurais, mas que deve ser resgatada, mostrando uma atitude meio filantrpica, uma caridade necessria, pautada em um conhecimento indireto, quantitativista, mapeado, consolidado em depoimentos escolhidos com o intuito de faz-la ser conhecida. Para isso, so produzidas informaes destacadas de seus contextos e circunstncias e revelados em si mesmos, como o caso do bumba-meu-boi e das quadrilhas juninas em Sobral. As narrativas proferidas pelos narradores aqui selecionados mostram a insuficincia desta perspectiva pautada no aporte urbanstico aplicado em Sobral. Aporte este baseado em uma descrio por recortes de caractersticas solidificadas de sobralense, comunicadas como informaes quantificadas de dominncia, tidas como vocao da cidade, que, por sua vez, entendida como categoria independente, formando uma identidade cultural substantivada que conta grandes acontecimentos, origem, indica memrias constituintes e grandes heris. Estes temas tratados na perspectiva tecnocrtica no so dicotmicos nem opostos aos temas tratados nas narrativas dos entrevistados aqui apresentados. As narrativas na verdade so opinies transmissoras de memrias mutveis, portadoras de pedaos das recordaes pessoais, entrelaadas a Histria da cidade, misturando experimentaes individuais do espao com as narrativas sobre os monumentos e os costumes inventariados pela poltica de monumentalizao. As narrativas, ao contrrio da monumentalizao, no imobilizam a Histria da cidade. Ao contrrio, mostram a mobilidade e suas diferenas. Estas comparaes com tempos passados, a concorrncia com experincias em outras cidades, deslocamento de nomes, provocam modificaes na sensibilidade do ouvinte com relao a sua percepo sobre a cidade. As memrias so pensamentos ativos que podem ser situadas em um campo de efetivao da verossimilhana com relao cidade mitolgica construda pela monumentalizao. 254 As memrias tambm compem estratos sobrepostos que constroem a malha complexa e mutante de nossas relaes com o espao. Estratos tambm compostos de uma dimenso temporal que nos permite estar munidos de conhecimentos histricos, visveis em fragmentos esparsos e restos de narrativa. So fragmentos que ainda subsistem e de uma forma comparativa servem de parmetro para criticar ou explicar o momento presente do ponto de vista da moral e dos costumes. As recordaes dos namoros, das festas, das relaes ntimas, entre outros aspectos so sintomticos do que falo. Mostram no somente relaes pessoais, mas tambm uma forma de conviver no espao urbano. H uma brecha aberta entre a representao global que concebe a cidade racionalmente e as pequenas memrias individuais fragmentadas, cheias de esquecimentos e lacunas. As narrativas sofrem a presso de opinies as quais os narradores no sabem a origem, mas reconhecem os resultados, como o caso da poltica de patrimonializao. Estas memrias mostram uma cidade mais complexa do que aquela construda pela monumentalizao. Os lugares da cidade so estratificados por diferenciaes temporais e experienciais tpicas e especficas. Temos a cidade da intelectualidade com o Maestro, a das presepadas com a rezadeira, a da vida idlica, suave e calma, quase rural de Jos Ferreira, a do comrcio maior do Sr.Gutemberg, dentre outros perfis de cidade possveis. Parece haver um descompasso entre a cidade unificada pela monumentalizao e a narrada por memrias dispersas por cada morador. O espao da revitalizao planejada tem limites e se conecta com o que est fora, atravs das diferentes vias de comunicao com o que est no exterior destes limites. um espao regulado por uma teoria que concebe a comunicao entre seus elementos selecionados e elege aqueles problemticos que devem ter outro tipo de ateno, para que a imagem composta possa ser sublime para quem vm de fora. A diferena de tratamento entre o Centro-monumento e os bairros perifricos que abrigam a populao mais pobre sintomtico do que argumento. A idia acabar com as diferentes verses, unific-las. Para que as distintas verses possam ser manipuladas necessrio que o espao seja neutro, sem qualidade, universal como o caos do centro. O ambiente urbano torna-se um laboratrio, onde deve ser aplicado uma maior quantidade de racionalidade possvel e de tcnicas eficazes para consolidar uma civilidade, exorcizando espaos arcaicos e higienizando a origem da cidade. uma razo utilitria que no mede esforos no sentido de confirmar determinados mitos como o da tradio de opulncia ou dos heris, desde que no 255 contradigam a lgica do progresso e da modernizao. Os mitos de heris como Dom Jos e Jos Sabia so exemplares para confirmar esta lgica, reproduzida por narrativas individuais, principalmente aquelas mais engajadas neste projeto de desenvolvimento intelectual e econmico da cidade, como o caso do Maestro e do Sr.Gutemberg. Dom Jos Tupinamb da Frota, como j dito aqui, foi o primeiro bispo de Sobral e na verso de vrios documentos que falam da Histria da cidade, publicados em jornais e panfletos de propaganda, assim como em livros didticos e de historiadores locais, considerado o grande responsvel pela construo de diversos equipamentos sociais e implementao de servios imprescindveis. Desde o ano de 1999 h um movimento tentando angariar fundos para a construo de uma grande esttua comparvel em tamanho ao Cristo Redentor, no Rio de Janeiro ou Ermida So Jos onde se pretende ser um ponto de romaria, de devoo e, ao mesmo tempo, estudo sobre religio. esquerda esto os religiosos sobralenses Dom Expedito Lopes, Pe. Jos Antonio Maria Ibiapina e Dom Jos Tupinamb da Frota. direita So Francisco de Assis, Pe. Ccero Romo Batista e Frei Damio de Bozzano. A Ermida fica localizada na subida para a Serra da Meruca o que d ao vizitante uma viso privilegiada da cidade. Foto: produzida pelo pesquisador. 256 esttua da Liberdade na cidade norte americana de Nova York, em homenagem ao bispo que morreu em 1959. A idia acabou ficando suspensa e uma outra homenagem foi realizada, articulada com uma proposta mais ampla atravs da inaugurao da Ermida So Jos em 21 de dezembro de 2004. Este espao foi definido como Centro de Estudos e Pesquisa Socioculturais (CEPESC). Segundo notcia no Jornal O Noroeste de 23 de dezembro de 2004, ele: ... tem o objetivo de desenvolver o estudo sobre personalidades do mundo religioso cearense e incrementar o turismo religioso atravs dos caminhos de Dom Jos Tupinamb da Frota. Os caminhos de Dom Jos se situam na mesma rea utilizada pelo bispo em vida durante as atividades episcopais em Sobral e na serra da Meruca... A obra dedicada ao padroeiro do Cear, So Jos e tambm homenageia Dom Jos Tupinamb da Frota (1 Bispo de Sobral), Padre Ibiapina (sobralense candidato canonizao), Dom Expedito Lopes (tambm sobralense candidato canonizao), So Vista do local que foi edificado a Ermida So Jos na subida da Serra da Meruca. Foto: Produzida pelo pesquisador. 257 Francisco de Canind, Padre Ccero Romo Batista e Frei Damio de Bozzano (jornal O Noroeste, 23 de dezembro de 2004). Em frente Ermida foram instaladas esculturas lembrando cada religioso e um farto material de divulgao foi distribudo exaltando a biografia de cada um deles e seus grandes feitos. A caridade, a solidariedade, a sobriedade, em alguns casos, a humildade, dentre outras qualidades eram sempre exaltadas neste material. Como toda lembrana seletiva, algumas de suas aes em outros campos que no se restringem ao estritamente religioso, eram esquecidos. No caso de Dom Jos, no lembrando suas aes no campo poltico, apesar de nunca ter ocupado um cargo seja executivo, seja legislativo. Suas disputas com outras lideranas polticas, como o Juiz Jos Sabia, parecem no ser de interesse como lembrana. Como j dito, Jos Sabia foi um juiz contemporneo de Dom Jos de grande prestgio social e poltico na cidade que, de certa forma, rivalizava com o bispo na indicao de nomes para concorrer a cargos pblicos. Nenhum dos dois chagaram a concorrer em eleies, apesar de participarem ativamente das disputas no campo da poltica. Em alguns livros que contam crnicas sobre os acontecimentos locais, muito comuns em Sobral, estas disputas so relatadas com detalhes. Um destes cronistas Lustosa da Costa que chegou a ser homenageado na inaugurao da Biblioteca Pblica da ECCOA que leva o seu nome. Ele tambm um narrador de histrias sobre a cidade. Muitas delas narram as intrigas entre os dois heris. Intrigas estas no reconhecida pelo Sr.Gutemberg que os conheceu pessoalmente. Talvez sua atitude de ser apoltico, como se autoclassifica, e de seu contato com eles ter sido ocasional, pois s os encontrava quando os dois vinham se hospedar na casa de seu sogro em So Benedito, tenha embaado sua percepo. Porm, lembra do caso da aposentadoria do juiz que julga ter partido da iniciativa de polticos de Fortaleza. Lustosa da Costa (1987) conta com detalhes este acontecimento, dentre outros que fazem parte das intrigas constantes entre os dois grandes heris da Histria da cidade. Quando ele fala de Jos Sabia lembra que: Juiz de 1892 a 1936, reinou absoluto na cidade at que foi aposentado compulsoriamente por dispositivo inserido na Constituio do Estado, com o objetivo expresso de afast-lo do cargo e esvaziar-lhe a tremenda influncia poltica que exercia na regio (1987:pg.76). Porm, apesar do reinado do Juiz no ter sido esquecido, pois seu nome ainda 258 usado para identificar praas, ruas dentre outros espaos, Dom Jos parece ser contemporaneamente o mais festejado. O jornal O Noroeste, por exemplo, em todas as suas edies aparece um anncio dizendo: Este jornal dedicado ao maior benfeitor de Sobral, Dom Jos Tupinamb da Frota. Na sua edio de 10 de setembro comemora mais um aniversrio de seu nascimento e morte (nasceu em 10 de setembro de 1882 e morreu em 25 de setembro de 1959), lembrando, no editorial que Dom Jos: Conheceu a bela Roma do Csares, to cheia de poder perante o mundo e igual sorte sonhou para Sobral. Competncia e perfeio eram os caminhos para realizar o sonho Caminhos de Dom Jos. Se construa um prdio, era desafiando a ao demolidora dos sculos; se criava colgios, como criou o Ginsio Sobralense e, no dia seguinte, o Ginsio Santana, exigia qualidade de ensino equivalente ao do Colgio Dom Pedro II do Rio de Janeiro, o melhor do pas, na poca; se celebrava o culto divino, ah!... no permitia o menor gesto desconforme, uma nota musical destoada, uma distrao qualquer, ali no havia espao para desleixo, porque para o Senhor Deus toda honra e toda glria(jornal O Noroeste, 10 de setembro de 2004). Desde o ano 2000, a UVA, juntamente com a Diocese de Sobral realizam o Setembro Dom Jos com programao que varia entre missas, seminrios, programas radiofnicos e apresentao de trabalhos de crianas das escolas que fundou. Mesmo antes da edio deste evento, ainda em 1995, pude testemunhar como leitor, uma edio em homenagem ao bispo lembrando os 113 anos de seu nascimento. No seu expediente tem o ttulo Dom Jos, uma vida por amor a Sobral e foi coordenado por Silveira Rocha, com o apoio da Prefeitura. Teve como um de seus consultores o Maestro Jos Wilson Brasil meu entrevistado para esta pesquisa. Nela moradores prestigiosos em Charge de Dom Jos sugerindo sua propenso a ser o segundo fundador de Sobral atravs da implementao de projetos e obras de equipamentos sociais na cidade. Foto: Jornal O Noeroeste de 10 de setembro de 2004. 259 vrios campos e empresas publicaram artigos exaltando as aes de Dom Jos. Alguns deles sugerem at uma suposta santidade do Bispo. A empresa Lassa (Laticnios Sobralenses S.A.), por exemplo, publica o seguinte anncio: Dom Jos pode ser contemplado em sua memria santa, como o grande mestre das operaes de diviso e multiplicao. Diviso: - Dividiu a histria de Sobral em dois tempos: um antes dele e outro com ele; - Dividiu a Lagoa da Fazenda e fez uma estrada para permitir a construo do Seminrio Diocesano, atual UVA; - Dividiu tudo o que tinha com os pobres de sua terra; - Dividiu muito dos patrimnios com instituies religiosas e de caridade; - Dividiu o po da refeio, a hstia, e muitos bens dos que muito tinham. Multiplicao: - Multiplicou a f do povo; - Os domnios e extenso da Diocese; - Multiplicou aes de caridade; - Multiplicou o patrimnio da cidade; - Multiplicou a sade, a educao e o sacerdcio; - Multiplicou o amor e a abnegao pelo trabalho. Dentro deste maravilhoso processo matemtico, o nosso Dom Jos transformou a vida deste seu povo e os conceitos de toda uma regio, pois tudo o que ele mais queria era fazer da sua amada Sobral a terra do leite e do mel. Dom Jos, o teu povo te sada, ns te aplaudimos [grifo do autor](Jornal Documentrio Sobralense, setembro de 1995). O Prprio Cid Gomes, na qualidade ainda de Presidente da Assemblia Legislativa do Cear, publica sua mensagem que tem como ttulo Um ser completo, dizendo: maravilhoso o gesto dos sobralenses em homenagearem a Dom Jos, o maior bem-feitor desta terra. Alis, Dom Jos no foi somente o construtor das coisas interessantes de Sobral, mas, acima de tudo, o seu mais completo zelador. portanto um exemplo digno (Jornal Documentrio Sobralense, setembro de 1995). Neste mesmo jornal os Amigos do Beco, escrito somente com um c talvez por desateno do editor, emitem um certificado com o seguinte dizer: Certificamos que DOM 260 JOS TUPINAMB DA FROTA continua sendo o maior bem-feitor desta terra, sendo ainda lembrado e querido por todos ns [destaque do autor] (Jornal Documentrio Sobralense, setembro de 1995). Vale a pena ressaltar que o Prefeito do Becco Expedito Vasconcelos, assim como seu vice Francisco Prado, foram, juntamente com o Maestro Wilson Brasil, os fundadores do Centro Cultural Dom Jos, em memria do bispo. Em alguns dos inmeros artigos e mensagens publicado no jornal em sua homenagem em 1995 ele aparece como profeta. Em um deles comparado a Abrao ou a Moiss, e considerado at um Messias. Sobre isso lembro da leitura de Girardet (1987) que chama a ateno que a histria da cultura poltica da sociedade europia est marcada por narrativas, relatos e anncios profticos que escapam a uma racionalidade aparente. Posso dizer que isso tambm acontece em Sobral. A Histria da cidade est carregada de uma efervescncia mitolgica que acompanha marcos temporais histricos instveis, que criam imagens de uma Idade de Ouro, que serve como referncia para descobrir a felicidade que parecia perdida. Estas mitologias so as balizas de uma revoluo redentora que permite humanidade entrar na fase final de sua histria, assegurando o bom xito da retido da alma que a graa do mito vivifica. Por isso se apela a um ou mais chefes salvadores, restauradores da boa disposio das coisas, onde cada um estar no lugar que lhe correspondem. O salvador (Girardet, 1987) um comandante que investe sua autoridade para conseguir uma disposio das coisas cujo arranjo se subordina a princpios considerados teis, agradveis ou harmoniosos para aqueles que o anunciam. O mito Dom Jos em Sobral parece estar ancorado nesta lgica. Obviamente a consolidao de heris em uma Histria local no particular a Sobral. Qual a cidade que no tem os seus heris? Porm, a cidade que escolhi como campo para analisar. Na consolidao do mito Dom Jos na Histria local, o que se d mais nfase no nas qualidades do que pessoal, nem no carter essencial e exclusivo. o sistema de convices coerentes e completas que sugere a que se d maior ateno. Quando suas qualidades pessoais aparecem, ela representa uma seqncia de imagens e de fenmenos que ocorrem durante a suspenso normal e peridica da vida enfadonha e sem aventuras da rotina. Ele corresponde a um tempo de relao, durante o qual a cidade se separa da fadiga, do estado de insensibilidade, da cessao de ao, da inrcia, e ressurge como um novo devaneio, fantasia, e utopia. A seqncia de imagens que provoca se encadeiam, nascem 261 uma da outra, iluminando um caminho que parece trilhar o rumo salvao. Por isso ele comparado a um messias. Por outro lado, o mito no pode ser abarcado em sua plenitude, por isso ele narrado de forma a mostrar uma conceptualizao redutora, destituda de sua complexidade e simplificada em operaes selecionadas. Os bastidores so esquecidos, no se d importncia s circunstncias, nem especficas, nem mais gerais. Justamente porque o que se cultua no a pessoa, mas o mito. A pessoa, na verdade, que est dentre os mortos, renasce no mito como fora de vida ambivalente que pode variar entre uma sombra tutelar e um filho da terra iluminado que difundi, atravs de seu corpo luminoso, o esclarecimento da alma sobre os outros. O mito aconselha, esclarece, inspira, aclara o esprito e, ao mesmo tempo tem a pretenso de granjear entendimento e cultura impondo sua autoridade. Apesar da ambivalncia, o mito Dom Jos tem uma lgica com um nmero limitado de frmulas. Repete-se com freqncia uma sucesso e combinao de imagens nas narrativas descritas e analisadas aqui. Aparece com freqncia, muitas vezes usando-se outros termos, a imagem do Messias, aquele que purifica, aniquila conformaes extravagantes de grandeza cruel, desumana e perversa do atraso e do marasmo. Isso combinado com a imagem da verticalidade, supostamente, positiva do progresso, da modernizao e do renascimento econmico. Nesse sentido ele a promessa de um fio condutor em que os seus anunciadores tendem a agarr-lo e a servir-se dele de diferentes formas de acordo com o contexto. Os relatos biogrficos mais detalhados, com algumas mincias e circunstncias descritivas da vida de Dom Jos, como os de Lustosa da Costa (1987), Pe.Joo Mendes Lira (1975), cuja biografia sobre Dom Jos foi critica ferozmente por Cleiton Medeiros por ser degradadora da personalidade do Bispo, dentre outros, no contradizem esta lgica do mito, pois so geralmente feitas para tranqilizar o leitor, permitindo que cada um possa se reconhecer nele enquanto humano, que tambm erra, rev suas opinies, vacila, tem vaidades e costumes por vezes excntricos. Mas, apesar destes desvios e atalhos mais demorados e detalhistas, sempre se chega imagem de um mito que inspira uma estabilidade e crescimento, principalmente moral e social, mas tambm econmico. tambm a lembrana e restabelecimento de certas formas de vida social cada vez mais ameaada. Isso aparece com mais fora nos depoimentos orais registrados e documentados para esta pesquisa. O tempo de Dom Jos na verdade o tempo que deveria ser presente 262 e que parece estar sendo reeditado na administrao Cid Gomes, segundo o que d a entender estes depoimentos. O culto ao mito Dom Jos parece complementar ao processo de patrimonializao da cidade, justamente porque a imagem que se passa de sua irrupo atordoando um suposto marasmo anterior a suas intervenes, marcam um entusiasmo, inspirao, um calor que remete a uma exaltao do local ou de uma imprecisa e genrica sobralidade. Sua exaltao, assim como a monumentalizao, exprime uma viso do destino coletivo. Tendem tambm a cristalizar impulsos de emoo, esperana e adeso que so potencializadas no campo das polticas pblicas. No a toa, portanto, que a UVA, a Diocese e a Prefeitura, tanto investiram na idia da Ermida So Jos. O mito Dom Jos, encontra-se entre outros mitos, com atributos especficos, mas todos eles remetem a imagens de virtude que deve ser seguida. Nas narrativas das entrevistas aqui descritas, o tempo da figura do heri Dom Jos vai sendo moldado atravs do capricho do jogo seletivo da memria, com rechaos e amplificaes. A sua imagem no pode ser confundida com a de um poltico, haja vista o sentido negativo dado esta categoria. Muito menos sua imagem no pode ser confundida com de um mero religioso. Isso porque no aparece como um bispo qualquer. Ele apresentado como um nobre, de descendncia ilustre, alto, elevado, magnfico, majestoso, distinto, ilustre, notvel, generoso, magnnimo e um salvador. As narrativas que falam do salvador Dom Jos, constroem um perfil de heri responsvel pela construo da bem-aventurana na cidade com firmeza nas suas aes, mostrando experincia, prudncia, sangue-frio, comedimento e moderao. O uso poltico do mito pela tecnocracia municipal e pelos dirigentes da UVA, que acaba repercutindo e sendo reproduzido por diversos moradores da cidade, parece ter implicitamente coerncia com a idia de salvaguardar, restaurar e reconstruir a cidade, coisa que supostamente o mito Dom Jos supostamente teria feito no seu tempo. A idia a de reeditar esta temtica no presente e associ-la administrao Cid Gomes. No de uma forma direta, nem sobreposta, mas comparativa. Cid Gomes no aparece como a reencarnao de Dom Jos, mas sua imagem acaba abordando o mesmo tema do interesse e amor pela cidade. A diferena est nas qualidades atribudas ao prefeito que remetem ao esprito empresarial, qualificao profissional ou tcnica, conduta tica na poltica e juventude. 263 As narrativas das entrevistas aqui citadas abordam tambm este tema do heri, mas de uma forma diferente. Os narradores so os personagens principais na Histria da cidade contada, juntamente com os heris, sejam eles os mais antigos, sejam eles os mais recentes. Eles mostram que tambm so responsveis pelo espao que vivem, talvez de uma forma menos intensa que os heris, mas pelo menos deram sua contribuio no seu campo de atuao. Mesmo aqueles que no falam destes heris da elite citados, como o caso de Jos Ferreira, narram o espao como seus parceiros na edificao de prticas, condutas e atitudes. Neste sentido, tendo conscincia da responsabilidade de sua conduta, o individuo passa a organiz-la racionalmente tendo em vista atingir determinados fins materiais para satisfazer sua necessidade de auto-afirmao. Esta racionalizao serve tambm para explicar a conduta. nesta perspectiva que a idia de projeto trabalhada por Gilberto Velho (1999b) se apresenta. O processo de construo de identificao individual de si, necessria para viver no mundo contemporneo, se alimenta de uma memria do passado aprendido socialmente, assim como de um projeto que sua percepo como singular no mundo, o obriga a conceber para poder viver neste modelo de sociedade. Portanto, como lembra Gilberto Velho, o projeto individual tem uma historicidade, pois se desenvolve em um campo scio-cultural. Neste sentido, o indivduo, na sua experincia de vida em sociedade define um estilo e um tipo de viso do real, respeitando algum nvel de especificidade espacial, temporal e pessoal, implicando em uma "adeso" significativa por parte dele a um modelo de orientao da conduta individual possibilitando a demarcao de fronteiras. Portanto, o projeto uma ncora identitria no absoluta, fazendo-o membro de um grupo, sem deixar de lado a dimenso da percepo de si como ser singular. O prprio Maestro Wilson Brasil reconhece este "campo de possibilidades" que os indivduos atuais se deparam dizendo: "Bom infelizmente eu tenho que dizer que a atualidade hoje mais aberta... tem mais espao. No meu tempo quando eu era menino... porque menino rapazinho, a coisa Sobral era... muito circunscrito. Aquele povinho agora e era antes aquele povo, porque quando eu digo povinho eu digo quantidade e quando eu digo povo, eram poucos, mas tinham contedo. Pelo menos intelectual, musical, etc, etc [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Esta afirmao parece ser coerente com a reflexo de Simmel (l971). Para o autor alemo, na contemporaneidade, h uma necessidade de auto-afirmao individual que separa e distingue o material e o espiritual, prevalecendo o primeiro como parmetro, 264 tendo, conseqentemente, a realidade objetiva como mediadora. Nesse sentido, Simmel alerta que h uma preponderncia do objeto sobre o sujeito; ou melhor, a cultura objetiva supera e domina a cultura subjetiva. Pode-se fazer uma analogia entre cultura subjetiva trabalhada por Simmel com o que o Maestro chama de "Povo", fazendo-se ressalvas no que se refere ao contedo destas categorias formais. Para Simmel h um desequilbrio com relao cultura subjetiva entre diferentes indivduos diante de uma sociedade especializada, fragmentada, fazendo com que o homem contribua socialmente com uma parcela cada vez menor por se tornar um especialista. Acho que neste aspecto a reflexo do Maestro pode se aproximar da noo de Simmel, pois Wilson Brasil est chamando ateno justamente da formao individual, mais ampla que a fragmentao e a especializao no favorece mais. Esta depreciao da cultura subjetiva e valorizao da objetiva, gera uma certa insegurana e medo difcil de superar. Como lembra Barros (1999), as dificuldades do dia- a-dia, o trabalho em exagero, indefinies sobre o futuro, as dificuldades e desigualdades nas oportunidades, desiludem e estimulam as desesperanas quando comparadas aos tempos passados. Esse mesmo movimento est presente na fala do Maestro. J na fala de Mariz este movimento ganha um outro sentido. Ela continua "esperta", astuta, apesar do passado lhe dar suporte para o que ela no presente. Ela parece estar mais acostumada com as indefinies da sociedade contempornea, lidando com elas com a desenvoltura de quem ainda est no jogo vivendo intensamente o cotidiano. Sua vida parece ter sido marcada por surpresas e imprevisibilidades. Neste aspecto, a fala de Mariz sobre o presente no marcada pela desiluso ou saudosismo do passado como aparecem as narrativas do Maestro, do Sr.Gutemberg, e, abordando outros temas, a de Jos Ferreira. E uma fala do "saber viver" apesar dos pesares. O passado parece ser prova do seu "saber viver". Este passado sempre reconhecido como um tempo bom. J dentre os demais narradores a idia de que havia mais respeito, mas solidariedade, mais intelectualidadee festas mais bonitas. na verbalizao do "falar de si" que se percebe o projeto como lembra Gilberto Velho (s/d). No contexto da cultura moderna, esta verbalizao sempre um discurso psicologizante e sociologizante. O indivduo est falando de si mesmo, justificando, analisando e explicando sua conduta, assim como pensando no futuro, projetando sua 265 experincia no pensamento de um vir a ser. Ao mesmo tempo fala da vida social que tem na cidade, e sua experincia nas redes sociais de que faz parte. Como j dito, o projeto aparece como individual, mas fala do grupo ao qual o indivduo faz parte, resguardando sempre sua singularidade enquanto unidade significativa dentro do grupo. O narrador parece se deslocar de um eixo mais substantivo de individualismo na contemporaneidade, sem deixar de ser afetado pelas foras sociais que o compem. o que mostra as narrativas do maestro, da rezadeira, do comerciante e do agricultor. Porm, o narrador sabe jogar com isso. No totalmente passivo s informaes fabricas pela poltica de monumentalizao e dadas pela mdia, muito menos tem uma narrativa romntica. Suas histrias so prticas, no muito hericas no sentido de associar suas aes de semideuses. Suas aventuras e seus herosmos so cotidianos. O herosmo fica para outros para eles mais ilustres, apesar de terem sido quase comparsas em suas aes. Ao mesmo tempo, o narrador tende a construir uma imagem de sua unidade mnima significativa e sua singularidade na rede de relaes que estabelece, movimento tpico do individualismo moderno. No "falar de si", os narradores aqui apresentados explicitam suas redes de relaes, assim como se situam nelas atravs de uma "imagem de si" peculiar. A imagem da esperteza prontamente associada narrativa de Mariz, enquanto a imagem do intelectual colada facilmente fala do Maestro, a do comerciante ao Sr. Gutemberg e a do agricultor Jos Ferreira. Apesar dessa imagem construda na narrativa, mostram outras experincias que fizeram parte dos percalos de suas vidas, como a de Wilson Brasil como funcionrio do Correio, a de Mariz e Jos Ferreira como operrios da indstria, e a do Sr.Gutemberg como dono de banco em So Benedito. O projeto do narrador Wilson Brasil muito marcado pelo vangloriar de seu passado, mas no deixa de considerar o presente, apesar de discordar de algumas coisas. Quando indagado sobre o que no gosta no bairro das Pedrinhas 93 onde ele vive, esta verso de seu projeto fica muito marcada. "...eu gostava do povo. O povo muito bom mas eu queria mais intelectualidade. Eu queria mais amor arte, eu queria mais solidariedade
93 O bairro Pedrinhas localiza-se logo aps a ponte mais antiga que d acesso cidade para quem vem de Fortaleza. Ele acompanha tambm a estrada de ferro que corre paralela estrada asfaltada. O seu nome vem do registro de histrias que contavam sobre as pedras atiradas por meninos no trem de passageiros, hoje desativado, ao entrar na cidade. 266 que no existe, e isto muito difcil de fazer... o povo no muito solidrio. Aqui essa rua, por exemplo, mais ou menos, mais l para baixo no h amor... o povo no se une mas um povo bom... e falta luz, por causa do apago [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). O narrador no tem como fugir das foras sociais mais amplas que fazem parte da nossa sociedade como o da cultura individualista. Assim como no tem condies de viver dissociado da rede de relaes mais amplas que o sustentam. S que ele sabe jogar com isso, tentando sempre envolver o ouvinte em sua rede de relao. A fala do maestro exemplar: "Mas graas a Deus gozei, gozo do conceito da sociedade, do convvio dos grandes e tudo mais, inclusive como vocs que agora nesse simpsio intelectual em que estamos, ta entendendo? Isso faz parte da minha vida. Eu hoje vou dormir sem murioca, por exemplo [sic]"(Entrevista realizada pelo pesquisador com Wilson Brasil em 29/08/2001). Os entrevistadores de Wilson Brasil acabaram sendo includos na sua rede de relaes dentre os intelectuais" na sua fala. Rede que para Wilson Brasil est meio dispersa na contemporaneidade e no tem mais a mesma fora que tinha antes. Mas, o fato de os entrevistadores estarem dando a ele a oportunidade de vivenciar aquilo que vivencia na sua rede de relaes mais ampla, faz ele se sentir bem. Ele iria "dormir sem murioca" no dia da entrevista e isso era decorrente da felicidade gerada por aquele momento. Segundo ele "Exatamente porque falei daquilo que eu gosto, num ta entendendo? E procurei transmitir alguma coisa pra vocs para o futuro [sic]". Neste ponto est presente sua satisfao no s em falar do que gosta, mas tambm de ensinar o que sabe. J Mariz deixa entender que para viver tem que ser esperta. Pelo menos essa a forma como afetou os entrevistadores. As "presepadas" de sua vida no so meras anedotas, mas tentam mostrar uma mulher experiente que viveu de tudo um pouco. Mas que serve de exemplo. Esta afeco expressa aqui no dita explicitamente pela rezadeira, mas expressa neste texto e pelos entrevistadores e fazem eles pensarem a vida de uma forma diferente. Jos Ferreira, por sua vez, mostra as vantagens e o conforto de uma vida sem o suposto bom proveito que a vida urbana poderia oferecer. Vida que ele viveu intensamente quando trabalhador da Indstria, mas que, contemporaneamente no se sente mais a vontade de desfrutar. Enquanto isso, Sr.Gutemberg encontra um meio de mostrar uma vida 267 de rdua labuta enquanto comerciante, durante um bom tempo viajando por outras cidade do interior, apesar de no ter passado dificuldades financeiras. Colocando estes temas, os narradores apresentam a idia de afirmao individual associada a uma luta e constante constituio de projetos. Isso sempre convivendo com redes mais amplas de relao como a famlia, a raa, marca da herana e do sangue de famlia, dentre outros aspectos englobantes do indivduo. As falas dos narradores apresentados esto muito marcadas por estes fatores, apesar de transparecerem um "saber lidar" com estas questes, prprias das caractersticas distintas de suas individualidades. Como j dito, os projetos individuais esto limitados por "campos de possibilidades" (Velho, 1999b) cercados por vises de mundo especficas da sociedade do indivduo. O projeto se apresenta como uma mediao entre indivduos e circunstncias sociais. O narrador no foge a isso. A diferena talvez esteja no maior grau de flexibilidade, astcia, esperteza e forma na demonstrao de sua experincia. Os indivduos quando reconhecem os constrangimentos sociais aos quais so submetidos para poder viver, valorizam sua condio de ator, tentando mostrar no "falar de si" que produz o seu prprio destino (Velho, s/d). O lembrar de tempos passado, portanto, mescla acontecimentos sociais, sempre regidos pelo mundo do trabalho, com a vida pessoal, compondo uma biografia pautada na labuta dos diferentes espaos no mercado de empregos que ocuparam, os feitos que realizaram nesta lida cotidiana e seus efeitos, englobando parentelas, amigos e conhecidos. Estes narradores parecem ter noo destes constrangimentos, mostrando suas posies e suas habilidades para lidar com elas. O Maestro mostra na sua fala que experimentou e procura continuar experimentando, apesar da "dentio" 94 atrapalhar um pouco, diferentes combinaes e recursos para poder viver de forma "justa" no meio "intelectual". Mostra tambm no s sua "absoro" de valores deste meio, mas tambm sua participao. Posies sociais e valores que parecem ser contraditrios, como a sua condio autoclassificada de "cabco, sua classe social de origem e sua escolaridade que
94 Sobre a dentio o maestro fala que: E depois, aqui pra ns, no vo dizer por a, vem a idade. Vem essas coisa que... alis, o que o povo chama de reumatismo, n? Que de gente velha, mas comigo no reumatismo no dentio. Pra dizer a vocs, jovem, dentio, eu no quero ser velho [sic](entrevista com Wilson Brasil 04/07/2001). 268 se restringe ao "... primrio, assuletrano que a gente pobre no tinha nada... [sic]", so diludos na sua experincia de vida com os prestigiosos da "cidade intelectual". Talvez a sua experincia, assim como a dos demais narradores, mostre a pobreza das vises dualistas e simplificadoras que tentam entender a sociedade no registro somente das relaes de classe, ossificando estratos e hierarquias. Parece que sua experincia comprova a multiplicidade de nveis e domnios da vida social que se misturam e se confundem na sociedade contempornea. Mariz tambm parece seguir o mesmo caminho. S que ela no se preocupa com a definio de justia nos parmetros do Maestro. Ela justa, mas tambm esperta. Talvez, sua concepo de justia seja adaptada a sua caminhada incerta pelas trilhas difceis que a vida em sociedade lhe imps. O que vem conseguindo superar com astcia e com arrogncia quando necessrio. Ela tenta demonstrar na sua fala que sabe lidar com as diferenas sociais. O Sr.Gutemberg prefere a moderao de no tomar posio, por isso no fala de justia e nem de diferenas. Toma posio somente no campo poltico quando classifica o governo Cid Gomes como o melhor de todos. Mas mesmo assim parece uma opinio distncia das disputas polticas. A vida para ele se resume no trabalho. um trabalho entendido em si mesmo. J Jos Ferreira, mostra uma distancia da vida agitada, e seu escritrio em seu quintal lembra as calmas conversar no p da calada nas cidades do interior, sem medir o tempo, sem a obrigao de um compromisso, sem o controle do relgio. Neste aspecto, as narrativas de suas experincias comprovam a multiplicidade de nveis e domnios da vida social que se misturam e se confundem na sociedade contempornea de uma forma cotidiana e no romntica. Mostram tambm que so fontes fundamentais para entender a vida na cidade que vo alm do modelo fabricado pela poltica de munumentalizao.
269 Consideraes finais
A minha proposta de pesquisa, como dito no incio, foi analisar imagens construdas sobre um espao urbano especfico denso, complexo, mas demograficamente e espacialmente menor do que as grandes metrpoles constantemente reviradas pelos olhares atentos de tantos cientistas sociais, como caso de cidades como o Rio de Janeiro, So Paulo, outras capitais brasileiras e megalpoles em outros pases. Sobral uma cidade de mdio porte para os padres brasileiros, porm, resguarda em seu ncleo urbano um complexo quadro de relaes que torna impossvel uma anlise que no seja parcial, incompleta e com algumas lacunas, mesmo quando pensamos em seu tamanho reduzido, comparado ao das grandes capitais estaduais brasileiras. Por isso mesmo, pensando nas peculiaridades de uma cidade onde h uma tenso de movimentos e usos distintos do espao urbano onde, tanto podemos ter a impessoalidade das grandes cidades, com a calmaria que no nosso senso comum atribui a pequenas cidades, que Sobral tornou-se interessante para atiar a curiosidade de qualquer pesquisador que quer pensar o urbano. Porm, tive que eleger um ponto de partida e uma perspectiva que poderia nortear o meu percurso que o fato de Sobral ter sido tombada como Patrimnio Histrico Nacional em 1999 e a anlise das fronteiras das imagens produzidas por diferentes pontos de vista sobre a cidade, inclusive o produzido pela tecnocracia. Ponto de partida que me mostrou a verso tcnica da cidade produzido atravs da lgica da informao, para o classificado por esta verso, um pblico alvo genrico definido como sobralense, uma Histria local suficiente para justificar uma poltica de monumentalizao da cidade. Mas, essa informao, pautada no saber produzido por pressupostos supostamente cientficos, sistemticos e racionais realmente levada em considerao nas narrativas dos diferentes agentes sociais que moram na cidade? Durante a pesquisa percebi que sim, mas, tambm percebi que a forma de expressar vai alm destas imagens-informao produzidas, ganhando outros contornos e movimentos, sugerindo outras nuances e peculiaridades que desconstroem qualquer tentativa de sntese hermtica e homognea. E isso que quis mostrar, somando-se s imagens produzidas pelos narradores selecionados minha prpria narrativa etnogrfica da cidade. A prpria forma como foi realizada a monumentalizao da cidade no consensual. O depoimento do Superintendente Regional do IPHAN mostra 270 bem isso. Foi resultado de uma tenso entre vises diferentes no interior do Instituto, reforado pela articulao poltica composta pelos integrantes da faco poltica de Cid Gomes junto ao rgo. Entretanto, pretendo aqui assumir a condio de incompletude da anlise sobre o tema proposto, no s afirmando e relembrando a impossibilidade de um pesquisador dar conta de tudo, mas tambm usando a parcialidade da anlise como fonte, inspirao e recurso metodolgico. Ou seja, a parcialidade de minha anlise no foi fonte de lamentao, mas fonte de pesquisa. Explicando melhor, como j dito, vivo em Sobral desde 1995 como professor da UVA, o que no muito tempo se comparado com a longa durao da experincia com a cidade que os meus entrevistados tm. Porm, so nove anos encadeados de pesquisa realizada no contexto de minha formao, primeiro em uma especializao 95 , depois em um mestrado 96 e agora, no doutorado 97 . Malinowski j mostrava no seu clssico livro Argonautas do pacfico ocidental que uma experincia intensa do ponto de vista temporal, emocional e, sobretudo, cognitivo, d uma srie de vantagens ao pesquisador na sua experincia com os nativos. comum no contexto das produes acadmicas no campo das Cincias Sociais, dar muita ateno dimenso da experincia observada como resultante de um olhar atento e metdico. Transforma-se a experincia em informaes processadas e organizadas em um texto analtico. Fala-se muito da inexistncia da neutralidade neste processo. Quis dar maior ateno a isso, no s ressaltando a carncia de uma viso neutra como pressuposto, mas tomando-a como fonte de pesquisa. A proposta aqui, portanto, foi usar as minhas prprias experincias incompletas, parciais, atentas a determinadas questes e desatenta a outras, como fonte de pesquisa no texto. A etnografia foi um instrumento muito til para este fim. Porm, no se implementou aqui uma etnografia somente de uma realidade outra, externa s emoes do pesquisador e afeces sofridas durante a permanncia no trabalho de campo. Muito pelo contrrio, a
95 Especializao em Metodologia da Pesquisa Social na Universidade Estadual Vale do Acara (UVA), iniciada em 1996, na qual fui coordenador e aluno. O texto da monografia no chegou a ser defendido, apesar ter sido produzido. Ela foi adaptada e acabou sendo um dos captulos de minha dissertao de mestrado, curso no qual entrei antes de defender a monografia. 96 Mestrado em Sociologia na Universidade Federal do Cear (UFC), curso que entrei no incio de 1997 e terminei em outubro de 1999. 97 Doutorado em Sociologia tambm pela UFC que ingressei em 2000. 271 forma como a cidade me afetou nestes anos de pesquisa esta presente, no s implicitamente, mas serviu tambm como fonte da anlise. No de forma isolada, mas articulada com a anlise das imagens produzidas pelos relatos orais, s anlises estruturais mais gerais de cima e de longe, assim como envolvida com as imagens produzidas pelos meios de divulgao dos projetos do poder pblico municipal, as publicizadas como notcias e as imagens produzidas pelas fotografias. O marco terico sobre o urbano aqui utilizado foi til para controlar, organizar e disciplinar as emoes e afeces envolvidas. Ou melhor, inspirando-me nas orientaes de Veyne (1998), pretendi fazer uma articulao entre minhas experincias, acidentais ou no, na cidade com conceitualizaes prprias ao saber cientfico apreendido durante uma formao profissional no campo das Cincias Sociais, pensando e compreendendo uma ordenao social, econmica e poltica da cidade, trazendo academia o resultado desta articulao. A conceitualizao e a estruturao sociolgica da cidade, no esto presentes no meu trabalho no sentido de tentar achar relaes necessrias ou estruturas inconscientes universais como prega Levi-Strauss. Mas sim, para a realizao de uma atividade muito simples, porm difcil: pensar melhor ou ir alm da tica das fontes, como diria Veyne (1974). No procurei uma essncia da cidade ou, muito menos uma natureza do ser sobralense como parece ser a perspectiva das narrativas escritas, documentadas e publicadas pelos tecnocratas contratados pela municipalidade que tiveram sua produo analisada. Muito menos, tentei desvendar as crenas dos sobralenses sobre sua cidade. Minha busca foi muito mais por uma anlise de uma experincia contextual do que uma sntese geral e definitiva. No pretendi fazer grandes descobertas, mas fazer um exame atento de uma percepo intelectual minha e de minhas fontes. Tambm no pretendo ensinar nada de novo, somente mover-me em minhas lembranas e articul-las s reflexes tericas apreendidas na minha formao profissional. Os captulos de minha tese oscilaram entre a anlise destas distintas fontes: a etnografia, a documentao escrita, as falas dos narradores e as fotos. Sempre indo alm e voltando para a discusso sobre a monumentalizao da cidade. No consegui fugir da tentao de falar da forma peculiar de comunicao prpria dos narradores selecionados como entrevistados. Acho at que importante se falar sobre isso, pois faz pensar nos muitos modelos que discutem o individualismo no contexto da sociedade contempornea. 272 Tema que aparece mais no quarto e quinto captulos. Minha inteno , mesmo finalizando esta etapa, continuar a pesquisar os agentes sociais diversificados e documentar as falas destas pessoas sobre a cidade no Laboratrio das Memrias e Prticas Cotidianas (LABOME) do Curso de Cincias Sociais da UVA. Este s o incio do que pretendo aprofundar e desenvolver durante minha carreira como pesquisador. A perspectiva da anlise de imagens me permitiu perceber os jogos de manipulao e capitalizao de aes e obras implementadas pela tecnocracia associada administrao Cid Gomes, na qual este personagem protagonista apresentado como heri contemporneo de uma saga sobralense. No desenrolar dos captulos desta tese, percebe- se que a sobralidade produzida pela verso da Histria contada pela monumentalizao tende a abolir toda relao com algumas de suas circunstncias, ou pelo menos, fazer de algumas selecionadas, exemplares para legitimar um percurso linear no tempo e no espao urbano de Sobral. A Histria concorre contra alguns acidentes de lugar, modo e tempo que a acompanham. A sua monumentalizao elabora uma comunicao sobre um ente englobante que deve compor e definir o habitante da cidade que a sobralidade. Este ente contornado, adornado e higienizado por obras realizadas durante a gesto e espetacularizadas de uma forma intensiva e explcita com grandes shows de inaugurao. Shows que se tornaram uma constante, principalmente em 2004, aumentando sua velocidade no final deste ano. Vale ressaltar que os espetculos, sempre com artistas conhecidos nacionalmente tiveram incio no Becco do Cotovelo na primeira gesto de Cid Gomes, durante as noites, principalmente de quinta-feira, sem estarem associados s inauguraes. Depois foram deslocados para o anfiteatro do Largo das Dores o que coincidiu com o fim da quinta-sem-lei no Becco do Cotovelo. Depois os shows foram se espalhando pela cidade, de acordo com as inauguraes de obras implementadas, principalmente no final de 2004. A questo da resposta dos moradores da cidade a estas obras complexificam uma identificao substancialista. A tecnocracia supe que elas requerem uma competncia de especialista, do engenheiro para serem avaliadas, por isso no consideram as respostas dos agentes sociais, classificando-os somente como usurios ou pblico alvo. Nesta concepo o valor dado a elas no a mensagem que transmitiram aos agentes, mas o que 273 manifestam atravs de um saber mediado pelo tcnico. Desta forma a obra depende do criador-operador (Balandier, 1999), e este do que acabam de significar. Pude percebe na pesquisa que as imagens popularizadas pelos jogos de simulao da tecnocracia servem de conhecimento para os diferentes agentes sociais que, por sua vez tecem comentrios que guarnecem a pesquisa cientfica social de instrumentos de explorao mais penetrantes naquilo que estava escondido pela virtualidade tcnica. Possibilitam uma viagem memria que produz clones visuais (Balandier, 1999) daquilo que a Histria esqueceu. Compreendi que a virtualidade tcnica no uma maquinao perversa, mas uma perspectiva de viso sobre o mundo. uma ferramenta para conhecer e dominar. Tende a perseguir o irreal, o ilusrio, o fantasioso e o incerto. Porm, diante da complexidade que ela prpria ajuda a criar, no consegue chegar ao seu objetivo de forma plena. A razo, base de sustentao de sua ao, no consegue fugir da iluso e passa a produzi-la. Por isso, no mais possvel discernir o que iluso do que no . A imagem surge ento como cultura. Neste sentido, os indivduos passam a produzir imagens para serem vistos. De coadjuvantes, narram suas aventuras vividas como protagonistas, juntamente a outros personagens principais da pea dramtica da vida na cidade. Por outro lado, alimentam com uma torrente de imagens circunstanciais a Histria produzida pela monumentalizao, tornando-a mais rica e complexa. No s a explicam em determinadas questes como criam verses novas, apontando os esquecimentos e lacunas. Entendi que tanto a imagem produzida pelo saber tcnico e cristalizada atravs da monumentalizao, quanto produzida pelos moradores da cidade, dispem de uma liberdade que lhes possibilita evolues absolutamente imprevisveis. Elas afetam o interlocutor de formas diferentes, dependendo do contexto de enunciao. A definio precisa do que se deve ou no preservar, por exemplo, passa a ser objeto de disputa e tenso, gerando narrativas adversas, como o caso da Praa de Cuba ou do investimento de arquivista ou historiador de bairros implementado por Adalberto Mendes. Em Sobral, no perodo Cid Gomes, como vimos neste trabalho, houve um investimento para que as obras, tidas pela municipalidade como grandiosos monumentos tradio e, ao mesmo tempo, modernizao, fossem bombardeadas incessantemente 274 por cores, ritmos e imagens diferentes e espetacularizadas, causando um sentimento em que a percepo de alguns que entram em contato com elas se desprenda de seu eixo anterior, absorvendo-se no enlevo e contemplao, sem saber ao certo a conduta a ser seguida com a mudana implementada no espao. As obras parecem alimentar um estado de inspirao e entusiasmo para alguns. Entretanto, outros parecem no se afetar pela obra produzida com pedra e cal, se refugiando em seu escritrio, como o caso de Jos Ferreira, tambm produzido, ao estilo de seu decorador, sendo indiferente aos investimentos em progresso e curtindo o prazer intenso produzido por seu trabalho com animais e plantas. Isso sinal de um rural no urbano? O que mesmo rural? O que urbano? Ser que nos tempos atuais h ainda uma distino clara e substantiva entre estas duas noes? Penso que no est clara a distino. Por isso me restringi a dizer e descrever imagens mltiplas, provisrias e contextuais. Percebi tambm que as imagens produzidas pela poltica de monumentalizao no so entes de controle absoluto sobre o pblico alvo. O Becco do Cotovelo, integrado ao stio histrico tombado exemplar como espao onde a tecnocracia municipal, ao contrrio, foi integrada. o espao onde diferentes agentes, ocupantes do espao, reivindicam uma autonomia, tendo inclusive um Prefeito, e, ao mesmo tempo, e centralidade fundante to forte que, os indivduos integrantes ou integrados municipalidade, para poder fazer com que seus projetos se tornem visveis, tm que ir at o Becco para mostr-los. Alm disso, rituais marcam e renovam esta centralidade como o autgrafo registrado de autoridades no campo poltico, religioso e cultural, reforando a idia reproduzida pelo Prefeito do espao de que quem no vai ao Becco a mesma coisa de ir a Roma e no ver o Papa. Por outro lado, a imagem da autonomia, da centralidade e o esforo do Prefeito do local de no associ-lo fofoca, mas sim, notcia, mostra um processo de institucionalizao do no institucionalizado, ou uma oficializao do no oficial, movimento este respeitado, estimulado e exaltado pela Prefeitura Municipal, dentre outras instituies oficiais, como a Universidade, a Diocese e empresas privadas. A fofoca e o esquecimento de que o local possui uma Prefeitura, penso que poderia destituir este espao de uma centralidade estratgica e prejudicar uma postura clara e transparente em favor de uma racionalidade e organizao tcnica do espao. Ele seria mais uma dentre outras 275 pequenas ruelas da cidade, onde alguns nem sequer sabem o seu nome. Desta forma, o espao sempre lembrado pelo seu nome e se particulariza enquanto ponto central de Sobral. Alm disso, no qualquer beco, um Becco. Nome este que pode ser mudado, de acordo com a constante necessidade de criar uma marca distintiva do local, nem que seja sustentada por uma brincadeira corrente de denominar a cidade como United States of Sobral. Poderia torna-se Elbow Street ou Elbow Lane. Outro aspecto que mereceu ateno nos captulos deste trabalho que na Histria contada sobre a monumentalizao de Sobral, percebi uma tentativa de construo de fases histricas marcadas linearmente. Uma primeira baseada no mito fundador definindo a origem da cidade sustentada economicamente na pecuria, passando pela fase do algodo e da industrializao, como se estas pudessem se sustentar independentemente uma da outra. Depois, uma definio de um segundo mito fundador consubstanciado no perodo em que Dom Jos Tupinamb da Frota foi bispo. inclusive responsabilizado pela construo de equipamentos at hoje importantes na estrutura urbana, na rea da educao, da religio, das finanas e da sade. O perodo em que a tecnocracia produtora desta Histria trabalhou tambm enfatizado quase como se fosse um quinto momento, ancorado na administrao de Cid Gomes, ficando uma lacuna, um espao em branco, entre estes dois ltimos perodos: o tempo de Dom Jos e o tempo Cid Gomes. No campo poltico esta idia de iluminador da modernizao e respeito tradio, na cidade desta quinta fase resultante da conjuno entre a forma das imagens transformadas em informao, comunicada simultaneamente para a maior quantidade possvel de habitantes da cidade e a espetacularizao das aes municipais. Seu nome no est isolado nesta imagem de glria associada sua administrao. Pelo contrrio, situado em um contexto mais englobante que o nome de famlia. Os Ferreira Gomes so sempre lembrados nas narrativas, assentando a imagem de glria e iluminao a uma tradio familiar. Alis, a lacuna entre o quarto e o quinto tempo s preenchida quando se lembra do legado de sua famlia, pois o pai e o tio-av tambm j ocuparam a prefeitura. Os grandes shows de inaugurao no final de 2004 reforavam bastante a idia do legado da famlia. Neles, sempre um ou mais integrantes dos Ferreira Gomes, como a me ou os irmos que ocupam cargos pblicos, apareciam e eram registrados pelo locutor como autoridades presentes. Outro exemplo a narrativa de Lustosa da Costa, ao lembrar da homenagem proferida a ele, 276 usando o seu nome para batizar a Biblioteca Pblica de Sobral integrante da ECCOA. Ele diz que: Levei para a solenidade de inaugurao da Biblioteca Lustosa da Costa, em Sobral, improviso que publico, a seguir: Exma-Sra. Maria Jos Ferreira Gomes, autora inspirada de prole to ilustre, eterna primeira-dama de Sobral. Meus senhores e minhas senhoras: Numa noite de glrias de uma vida gloriosa, Napoleo Bonaparte espera, na imponncia da Catedral de Notre Dame, a hora de coroao como imperador de Frana. Ao contemplar ali a Europa reverente ante seu poder, diz ao irmo Jos: Que bom se nosso pai nos visse agora(...)Digo o mesmo: Que bom se seu Costa me visse agora recebendo, do prefeito Cid Gomes, a homenagem do apadrinhamento da Biblioteca Municipal da cidade. Ele, que me empurrou para as reunies da Congregao Mariana, para visitar o bispo, dom Jos, para ouvir a conversa erudita do monsenhor Linhares, para freqentar o sobrado de Chico Monte, que me estimulou a escrever dirio - minha primeira e apaixonada reportagem poltica, - que me forneceu tantos causos e tantas histrias para meus livros, tem parte na alegria desta noite. Que bom se seu Costa me visse agora!(...) Sr. prefeito Cid Gomes. Deve de ser muito confortador para o ilustre homem pblico concluir o tempo de prefeito, divisando, nos rostos sobralenses, a gratido por quem lhes devolveu a grandeza antiga e, com ela, o amor prprio. E em todos os cearenses o reconhecimento de seu gnio poltico e de seu talento de administrador(...) Conclu, assim minha fala: Creio que o prefeito Cid Gomes pode informar ao saudoso pai, diante de sua fotografia, de seu eterno repouso: Misso cumprida. Corrigiramos: misso muito bem cumprida. Ele poderia ainda virar-se para Ciro, para Ivo e outros irmos e dizer, com muito mais razo que qualquer outro: Que bom se nosso pai nos visse agora (jornal Dirio do Nordeste, 4 de janeiro de 2005). Nesta narrativa o jornalista enfatiza mais ainda a idia da herana de competncia administrativa associada aos Ferreira Gomes. Comea citando a me do Prefeito, que j foi primeira dama na fase em que seu falecido marido era Prefeito da cidade 98 . Compara sua prpria tradio familiar de Cid Gomes quando chama ateno do suposto orgulho que seus pais teriam ao v-los naquele momento. No caso dos Ferreira Gomes, no se contenta em citar a glria do Prefeito, mas de seu irmo Ciro Gomes que neste tempo ocupa a pasta do Ministrio da Integrao Nacional do governo federal, tendo ocupado o cargo de Governador do Estado, Prefeito da Capital cearense, dentre outros e do outro irmo Ivo Gomes, Deputado Estadual. A famlia parece exercer um efeito transcendental no indivduo que o identifica, fazendo com que ele s possa ser definido por esta categoria englobante que o nome da famlia. Sei que isso no peculiar a Sobral, mas nesta cidade, a poltica de base familiar parece ganhar contornos diferentes, associados idia de modernizao e competncia na execuo de um projeto executado por algum, familiarmente englobado, com capacidade reconhecida e aptido. At mais do que isso, ele comparado a um gnio poltico enquanto esprito benigno que inspira os homens com uma arte, virtude, ndole e carter distintivo. Ele aparece como um poder criativo que deve ser motivo de orgulho, sobretudo da sua famlia. O leitor pde perceber aqui que a monumentalizao surge como um resultado e um adendo para constituio desta imagem, j que, alm de moderna, sua administrao preserva a tradio local. Neste sentido, os bens culturais que do coeso a esta idealizao do passado e da tradio, no so somente custodiados ou preservados por uma definio de sua funcionalidade e controlado por um preservacionismo que limita seu uso,
98 Jos Euclides Ferreira Gomes Junior foi Prefeito durante o mandato 1977 a 1983. 277 so adornados seus contornos e ganham uma Histria no sentido de tentar torn-los interessante para um ocasional visitante saber que aquela no uma cidade qualquer, e sim, uma que tem uma tradio e uma Histria exemplar. No a toa que as polticas culturais estavam articuladas com as de turismo na Secretaria do Desenvolvimento da Cultura e do Turismo no segundo mandato de Cid Gomes. Apesar disso, at o final de sua administrao, no havia uma poltica de turismo visvel e clara. Ela estava ainda implcita na poltica de monumentalizao. Mas parecia tender a associar o turismo cultural, ao recreacional quando se pensa nos parques da Lagoa da Fazenda e da Cidade e na obra da Margem Esquerda, assim como o turismo de negcios quando se pensa no Centro de Convenes. Alguns espaos fora do ncleo urbano da sede administrativa tambm so citados no site da Secretaria como o do Olho Dgua do Pag`, no distrito de Taperuaba, onde h uma fonte de gua sulfurosa. Porm a maior parte das referncias quando se pensa no turismo, so as edificaes e espaos monumentalizados no stio histrico e em seu entorno. Referncias sempre acompanhadas de uma idia corrente de responsabilidade social necessria, em que se pensa aes direcionadas s pessoas mais carentes da cidade que acabam sendo includas nas iniciativas preservacionistas como o caso da Oficina Escola de Artes e Ofcios e do Centro de Lnguas Estrangeiras. Desta forma entendi que a administrao Cid Gomes tende a elaborar uma imagem que chame a ateno de rgos nacionais e internacionais como UNICEF, Banco Mundial, alguns Ministrios do governo federal, angariando, assim, recursos para seus projetos. Esta administrao, portanto, concilia a preservao da Histria com o pragmatismo de princpios urbansticos classificados como modernos. Na verdade a Histria incorporada a esta lgica pragmtica como um meio para se chegar execuo de um projeto poltico concebido por esta faco ancorada nos Ferreira Gomes. A Histria que tende a mostrar que no feita somente de pedra mas tambm de homens, acaba ganhando contornos diferentes e perdendo sua humanidade, pelo menos na dimenso do movimento, da criao, da imaginao subversiva de modelos fixos e definitivos. Ela pensada como uma identidade coletiva compartilhada indistintamente por todos os habitantes da cidade. Com a constituio de uma Histria, Sobral ganha uma predestinao, uma inclinao, tendncia ou vocao, meio indefinida na sua funcionalidade, mas com formas tpicas, de 278 uma especificidade digna de crdito. Os espaos acabam sendo considerados como marcos desta Histria, justificando a necessidade de preservao. Por outro lado, no cotidiano, as pessoas acabam no entendendo muito est monumentalizao. Em alguns casos at criam conflitos, pois no entendem porque seus imveis no podem ser reformados e se revoltam com isso, concentrando no IPHAN vrios processos a serem analisados. Outros entendem com orgulho determinadas prticas que so conseqncia da preservao e embelezamento da cidade por parte da municipalidade, sem definirem isso como uma predestinao, mas uma identificao daqueles que nascem na cidade, que serve de reforo para a sua em particular. A prpria municipalidade faz uma confuso de cdigos quanto as inauguraes, pois fala tanto de modernizao, quanto de resgate ou revitalizao. A Histria muitas vezes tambm entendida como informao por alguns, sendo reproduzida da forma como foi fabricada pelo saber competente. Mas outros, que entendem de sua forma a tradio local, acabam fazendo a vez de especialistas e acionam esforos no sentido de inventariar, registrar e guardar documentos e histrias, criando acervos para contar circunstncias no contadas pela Histria. So cronistas como Lustosa da Costa, clrigos classificados como historiadores como Pe.Lira, Pe.Sadoc ou lderes comunitrios, ansiosos para mostrar que os bairros perifricos pobres da cidade tambm tm histria para contar, como Adalberto Mendes. As narrativas orais tambm so ilustrativas da superficialidade da Histria, mostrando tambm o quanto ela esquece ou deixa de lado caractersticas inumerveis de uma diversidade de prticas e vises da cidade. Por outro lado, nas narrativas individuais h uma mediao entre uma identificao de si no tempo e nas aes no contexto do tempo monumental (Herzfield, 1991). Esta identificao de si est inscrita neste tempo definido como monumento nas narrativas orais registradas. No tempo Dom Jos, por exemplo, esto inscritas algumas narrativas deste trabalho. Outras constroem este falar de si em um tempo um pouco diferente, menos monumental, mais rduo e difcil, demandando uma luta e um certo despojamento de si em funo de uma comunidade, como o caso de alguns do lderes comunitrios aqui entrevistados. O tempo, portanto, mediado e moldado de acordo com uma trajetria de vida construda de acordo com a perspectiva do narrador no presente. Do passado selecionado 279 aquilo que serve para o narrador justificar sua perspectiva no momento que fala ou escreve. a oportunidade, o ensejo, a ocasio e a conjuntura que servem de mediao para a seleo de lembranas. A imagem de si passa a ser o centro das atenes do narrador. Os demais personagens aparecem para compor um quadro de relao que reforam uma determinada perspectiva adotada pelo narrador para confirmar esta imagem de si. A questo : ser que as palavras que ele diz e so ditas no mesmo sentido que eu as entendo? Acho que nem sempre h coincidncias. O que acontece que o texto que escrevo somente uma interpretao do que eles dizem. uma interpretao seletiva, de acordo com meus critrios. Seguindo os argumentos de Calvino (2000), ao transformar esta interpretao em texto escrito, aciono uma descontinuidade insolvel entre o que est fixo na escrita e o mundo mvel e multiforme que est sempre a nos surpreender. Ao tentar registrar, documentar e analisar narrativas, este movimento tambm acontece. Registro, documento e analiso somente aquilo que foi pronunciado naquele momento. uma forma de fixar um pensamento que descontnuo, pois o narrador est sempre mudando o tom, a forma e o contedo de um mesmo assunto em cada encontro. A escrita analtica sobre a narrativa, portanto, sempre parcial e superficial. O mesmo acontece com o registro etnogrfico. No cotidiano da pesquisa, so inmeras as circunstncias que escapam aos meus sentidos, desde algumas mais simples e banais, at outras mais gerais. A escrita, pelo menos me d a iluso de que tenho tudo sobre controle. Porm, por mais que tenha passado por experincias incontveis na cidade, o seu cotidiano sempre ir me surpreender, dando-me uma sensao de incapacidade na previso segura do que pode acontecer. Incapacidade inclusive de saber o que aconteceu exatamente. Como Calvino (2000), saber que compartilho da minha ignorncia com outros que pensam ou fingem saber, no me anima. Porm, sei que necessrio sair deste mundo fixo e supostamente seguro da escrita, no para aboli-la, mas para dar alimento, nutrir, incitar, munir e abastecer a capacidade criativa e imaginativa do escritor. Diante destes argumentos reconheo, como Calvino, a incapacidade das palavras de dominar plenamente o mundo que est ao nosso redor, que no depende delas para sobreviver. O escritor no consegue exauri-lo. Reconheo tambm que no posso me desvincular de minha bagagem cultural assim como de uma viso programada para ler uma 280 experincia compartilhada com meus interlocutores pesquisados de uma determinada forma. No posso supor que esteja elaborando uma coincidncia exata entre o escrito e o no-escrito. Tento somente escrever sobre o que selecionei como foco de anlise e descrev-lo o mais minuciosamente e transparentemente possvel, sem a pretenso de dominar tudo sobre o assunto, pois uma finalidade impossvel de ser alcanada em um mundo em constante transformao e que simulado todo tempo pelos diferentes agentes sociais que so meus interlocutores. Por ser parcial e seletiva, a pesquisa aponta para continuidades a serem exploradas como as implicaes do tempo Cid Gomes nas novas administraes que se seguem. Isso porque a idia da monumentalizao associada imagem de moderno atribuda a este prefeito, de certa forma foi personificada e identificada a ele diferenciando o seu tempo dos predecessores. Porm, como no pode ficar sempre no poder municipal, no final de 2004 e incio de 2005 algumas questes apareceram e merecem registro como forma de dar prosseguimento investigao. As eleies municipais de 2004 foram disputadas entre trs candidatos. Marcos Prado que se candidata pela terceira vez seguida, s que agora apoiado pelo reitor da UVA e filiado ao PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) e coligado com o PDT, PSC e PFL, o vereador Luciano Linhares, nico ocupante da cmara municipal a se declarar explicitamente e insistentemente como oposio ao governo Cid Gomes pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e Lenidas Cristino, deputado federal apoiado pelo ento prefeito Cid Gomes, filiado ao PPS (Partido Popular Socialista) e coligado com PT, PP, PTB, PMDB, PL, PV e PCdoB. O candidato do prefeito venceu com 44,13% dos votos vlidos. Marcos Prados ficou com 28,01% e Luciano Linhares com 10,48% dos votos. A vitria do candidato de Cid Gomes, alm de legitimar sua influncia perante os eleitores, tambm criou um problema para seu sucessor. As comparaes entre o estilo de Cid e Lenidas governar comearam a ser esboadas e questionamentos ao prefeito eleito foram feitos no sentido de sugerir uma imitao do modelo adotado por Cid. Em entrevista realizada pelo Jornal Expresso do Norte, Lenidas responde: Eu vou ficar tranqilo porque eu tenho a certeza e a convico que o povo me escolheu para seguir este projeto hoje liderado pelo Cid, mas do meu jeito, evidentemente. Se eu for fazer do jeito do Cid, eu no tenho condio. Vou chegar a um ponto importante do meu modo. Evidentemente no esquecendo dos ensinamentos que obtive com a liderana do prefeito. Como 281 no esqueci tudo o que aprendi com a liderana do Ciro quando eu tive o privilgio de contribuir com ele na administrao dele na prefeitura de Fortaleza e no governo do Estado. Eu nunca poderia trabalhar copiando o Ciro. Eu nunca poderei trabalhar copiando o Cid, mas a meta, o final, evidentemente, vai ser ajudar a melhorar a vida do povo sobralense, do meu jeito. As pessoas vo comparar, normal. Mas eu no posso me comparar. No tenho que fazer isso. Vou fazer do meu modo, para que cada vez mais o municpio fique bonito e desenvolvido, onde as pessoas possam morar com tranqilidade e que tenham tambm condio de tirar o seu sustento (Jornal Expresso do Norte, 1 a 7 de janeiro de 2005). Sobre sua relao com a famlia Ferreira Gomes ele fala que: O Cid no meu amigo, o Cid meu irmo. O Cid, o Ciro, o Lcio, o Ivo, a Lia, a famlia Ferreira Gomes. Ns vamos trabalhar sempre coordenados. Coordenado, escutando, debatendo, fazendo aquilo que possa melhorar a vida das pessoas, do povo de Sobral. Isso um desejo do Cid. O Cid, mais do que ningum quer que eu faa melhor do que ele. Isso importante e isso bsico e eu vou lutar para isso (Jornal Expresso do Norte, 1 a 7 de janeiro de 2005). Nesta narrativa pode-se perceber o peso considervel da herana de uma imagem associada administrao Cid Gomes. Lenidas, mas do que qualquer outro candidato que pudesse ter sido eleito, pressionado por uma espcie de legado que o prefeito anterior deixou para ele como um patrimnio que, segundo ele, merece ser preservado. Para isso, inclusive, se situa no mbito da prpria famlia Ferreira Gomes como irmo de Cid. Sua capacidade de se mostrar ou de mostrar seu trabalho depende deste parentesco, por ele tratado como se houvesse uma necessidade de preservao de um projeto. A idia de continuidade, as implicaes e herana deixada administrao Lenidas Cristino, merecem uma anlise detalhada no decurso de seu mandato. Outra questo que merece ateno na continuidade desta pesquisa o desenrolar dos projetos inaugurados, mas com obras ainda em fase de concluso como a ECCOA, por exemplo. O investimento na rea de turismo ainda embrionria na administrao Cid Gomes, mas previsto no PDDU, tambm merece um acompanhamento analtico. Acontece que este legado parece estar temporalmente delimitado, marcando uma nova fase para a Histria local. A poltica de patrimonializao articulada, a sua capitalizao poltica que fundamentada no s na idia de preservao de uma tradio, mas tambm na modernizao da cidade, parece ser uma cobrana a ser feita ao prefeito Lenidas 282 Cristino e tambm ao seu vice-prefeito Clodoveu Arruda, antes Secretrio do Desenvolvimento da Cultura e do Turismo na fase de Cid Gomes. Como j dito, no tive a pretenso de dar conta de tudo acerca de Sobral, se que algum pode conseguir isto, mas contribuir com uma anlise densa sobre prticas e experincias do dia-a-dia dos habitantes da cidade em tempo circunscrito que o que marca o incio da implementao de uma poltica preservacionista no governo Cid Gomes (1997/2004). Pretendi tambm contribuir com uma compreenso mais complexificada e fluida de prticas cotidianas na cidade, principalemente quando se pensa em cidades mdias. No que seja totalmente diferente das anlises de grandes metrpoles, contudo, diante de sua dimenso mais reduzida, aponta peculiaridade que devem ser ressaltadas como significativas, sobretudo, para entender determinados aspectos presentes tambm na metrpole. Alm disso, pretendi contribuir com uma compreenso sobre patrimnio, tentando superar uma viso avaliativa da poltica implementada. No entendo que o esforo de preservao seja auto-evidente, pois a pesquisa me provou isto. Tambm no pensei esta poltica de patrimonializao como uma ao desnecessria, mas, sim, como uma construo social criada para disciplinar as prticas no espao. Disciplina esta que no consensual, muito menos clara. Pelo contrrio, me pareceu que a definio do que merece ou no ser tombado foi e continua sendo resultado de conflitos, no s entre os tcnicos, mas tambm entre o poder pblico e os habitantes do local tombado, o que exacerbado quando se pensa na impossibilidade destes habitantes definirem as mudanas planejadas no seu imvel. Conflito este que j aconteceu em outros locais como mostra o estudo de Herzfeld (1991). Outra questo que serve de mote para se pensar outras cidades a capitalizao poltica acionada pelo uso de recursos tcnicos no sentido de construir uma espcie de anseio coletivo de se mostrar para o mundo, que no nada mais do que uma maneira de impor uma viso, dentre outras possveis, de como se deve imaginar uma identificao da cidade. O intento sempre acionado no sentido de simplificar um modelo que pretensamente entende ser o certo e nico possvel. As narrativas dos moradores 283 complexificam ainda mis este quadro, o que faz o caso de Sobral ser exemplar para sugerir a anlise destas questes em outros centros urbanos. Portanto, como diz um trecho da epgrafe do comeo desta tese, a cidade e sua fama vai alm dos mares da esperteza internacional. Ela , acima de tudo, vida que supera a circunscrio territorial definida por tcnicos. Ela no s uma conformao de edificaes de concreto. A cidade s existe quando as pessoas a constroem atravs de suas prticas no espao, animando e compondo artisticamente uma intensidade inumervel de movimentos acionados pelo calor de corpos que se cruzam e se relacionam em seu cotidiano.
284 Referncias bibliogrficas
ABREU FILHO, Ovdio de. Parentesco e identidade social. In.: Anurio Antropolgico/80. Fortaleza: Edies UFC; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982. ALFONSO, Mara Jos Pastor. El patrimonio cultural como opcin turstica. Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, p.97-115. ALVAREZ, Jos Maurcio; BITTAR, William Seba Mallmann; VERSSIMO, Francisco Salvador. Vida urbana: a evoluo do cotidiano da cidade brasileira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. ALVES, Fco. Jos; ALBUQUERQUE JR., Durval M. de; NEVES, Frederico de C. & SIQUEIRA, Antonio Jorge. Nordeste: Identidade, Imagens e Literatura. Fortaleza:UFC/NUDOC, maro/1996, Srie Histrica 17. AMADO, Janana & FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos & abusos da histria oral. 3 ed., Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. AMARAL, Alberto. Para a Histria de Sobral. In.: Revista do Instituto do Cear. Fortaleza: Instituto do Cear, 1940, p.272, t.54. ARAJO, Pe. Francisco Sadoc de. Histria da Cultura Sobralense. Sobral: Imprensa Universitria-UVA, 1978. ARGAN, Giulio Carlo. Histria da Arte como Histria da Cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1998. ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da Mineiridade. So Paulo: Brasiliense, 1990. AUG, Marc. No-lugares: Intruduo a uma Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. BANDUCCI JR., lvaro. Turismo cultural e patrimnio: A memria pantaneira no curso do Rio Paraguai. Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, p.117-140. BARBOSA, Marta Emsia Jacinto; SOUSA, Raimundo Nonato R. de & VASCONCELOS, Regina Ilka Vieira. Consideraes para Anlise Histrica do Inventrio do Patrimnio Arquitetnico de Sobral. Sobral: Mimeo, 1997. ______. Sobral patrimnio nacional. Sobral: Prefeitura Municipal de Sobral, junho de 2000. BARBOSA, Ivone Cordeiro. A Experincia Humana e o Ato de Narrar: Ricoeur e o Lugar da Interpretao. Revista Brasileira de Histria. v.17, no 33, So Paulo, 1997, pp 293-305. 285 BARBU, Zevedei. O Conceito de Identidade na Encruzilhada. Anurio Antropolgico/78. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, pp 293-307. BALANDIER, Georges. O Ddalo: para finalizar o sculo XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. ______. A Desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BARREIRA, Irlys Alencar Firmo & NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (orgs.). Brasil Urbano: Cenrios da Ordem e da Desordem. Rio de Janeiro: Notrya; Fotaleza: SUDENE: Universidade Federal do Cear, 1993. BARREIRA, Irlys Alencar Firmo & BRAGA, Elza Maria Franco. A Poltica da Escassez: lutas urbanas e programas sociais governamentais. Fortaleza: Fundao Demcrito Rocha: Stylus Comunicaes, 1991. BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O Reverso das Vitrines: conflitos urbanos e cultura poltica. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1992. ______. A cidade no fluxo do tempo: inveno do passado e patrimnio. Sociologias. Porto Alegre, jan/jun de 2003, ano 5, n.9, p.314-339. BARRETTO, Margarita. O imprescindvel aporte das cincias sociais para o planejamento e a compreenso do turismo. Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, p.15-29. BARROS, Myriam Moraes Lins de (Org.). Velhice ou terceira idade? Estudos antropolgicos sobre identidade, memria e poltica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. ______. "A cidade dos velhos". In.: VELHO, Gilberto (org.). Antropologia Urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999, p.43-57. BARTHES, Roland. A aventura semiolgica. So Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. Mitologias. 9ed., Bertrand Brasil, 1993. BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto: mtodo e histria na arquitetura. 2ed., So Paulo: Perspectiva, 2004. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um Lrio no Auge do Capitalismo. 2ed., So Paulo: Editora Brasiliense, 1991, Obras Escolhidas III. ______. Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Editora Brasiliense, 1985, Obras Escolhidas I. BENNINGHOFF-LHL, Sibylle & LEIBING, Annette (orgs.). Devorando o tempo:Brasil, o pas sem memria. So Paulo: Mandarim, 2001. 286 BERGSON, Henri. Matria e memria: ensaio sobre a relao do corpo com o esprito. So Paulo: Martins Fontes, 1999. BERMAN, Marshall. Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. BERNARDO, Teresinha. Memria em branco e preto: olhares sobre So Paulo. So Paulo: EDUC: UNESP, 1998. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. BORGES, Antondia. Tempo de Braslia: etnografando lugares-eventos da poltica. Rio de Janeiro: Relume Dumar/Ncleo de Antropologia da Poltica, 2003. BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representao: elementos para uma reflexo crtica sobre a idia de regio. In.: O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Lisboa: DIFEL, 1989. ______. Coisas Ditas. So Paulo: Brasiliense, 1990, p.26. ______. Razes Prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996. ______. A iluso biogrfica. in.: AMADO, Janana & FERREIRA, Marieta de Morais (org.). Usos & Abusos da histria oral. 3ed., Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. BRANDO, Carlos Rodrigues. Memria serto: cenrios, cenas, pessoas e gestos nos sertes de Joo Guimares Rosa e de Manuelzo. So Paulo: Editora Cone Sul: UNIUBE, 1998. BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Ensaio Estatstico da Provncia do Cear. ed.Fac.sim., Fortaleza: Fundao Waldemar Alcntara, 1997 (1863). BRESCIANI, Maria Stella. Cidade e histria. In.: OLIVEIRA, Lcia Lippi (org.). Cidade: histria e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p.17-35. BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001. CAILLOIS, Roger. O Mito e o Homem. Lisboa: Edies 70, 1972. CALVINO, talo. As Cidades Invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. ______. A palavra escrita e a no-escrita In.: AMADO, Janana & FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos & abusos da histria oral. 3 ed., Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, pp.139-147. CAMPLO, lvaro. Antropologia e Turismo: O autntico e o banal: como descrever a experincia turstica?. [online] Disponvel na Internet via http://www.aguaforte.com/antropologia/turismo2.htm. Arquivo capturado em 12/12/2004. 287 CAMURA, Marcelo Ayres & GIOVANNINI JR., Oswaldo. Religio, patrimnio histrico e turismo na semana santa de Tiradentes (MG). Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, p.225-247. CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifnica. So Paulo: Studio Nobel, 1983. CARACRISTI, Isorlanda. A Indstria Chapeleira Sobralense. Revista da Casa da Geografia de Sobral. Sobral: UVA, 1999, pp.35-49. CARACRISTI, Isorlanda & SABOYA, Giovana. Descobrindo e construindo Sobral: conhecimentos de Geografia e Histria. Fortaleza: Edies Demcrito Rocha, 2002. CARDOSO, Ruth C.L. (org.). A Aventura Antropolgica. 2ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. CARIDE, Horacio E. O polvo, a mancha e a metrpole. O urbanismo como representao, Buenos Aires, 1927-1989. In.: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001, p.41-75. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espao urbano: novos escritos sobre a cidade. So Paulo: Contexto, 2004. CASTRO, Literal de. Pequena Informao Relativa Arquitetura Antiga do Cear. Fortaleza: Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, 1977. CARVALHO, Jos Murilo de. A Formao das Almas: o imaginrio da repblica no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. CAVALCANTE, Joo Barbosa de P.P. Sobral em reminiscncias: humor e saudade. Sobral: s/e, 1999. CERTEAU, Michel de. A Inveno do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrpolis: Vozes, 1994. ______. A inveno do cotidiano:2. morar, cozinhar. Petrpolis: Vozes, 1994. ______. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. ______. A escrita da histria. 2ed., Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. CHAU, Marilena. Cultura do Povo e Autoridade das Elites. In.: VALE, Ednio & QUEIRS, Jos (orgs.). A Cultura do Povo. 3ed., So Paulo: Cortez, 1984. CLIFFORD, James. A experincia etnogrfica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. CLIFFORD, James & MARCUS, George E. Writing culture: The poetics and politics of ethnography. Berkeley: University OI Califomia Press, 1986. COELHO NETO, Jos Clodoveu de Arruda. Sobral: patrimnio histrico-cultural 288 nacional. Sanare. Sobral: Prefeitura Municipal de Sobral, out/nov/dez de 2000, ano II, n.3, pp.42-45. COMERFOD, John. Como uma famlia: Sociabilidade, reputaes e territrios de parentesco na construo do sindicalismo rural na Zona da Mata de Minas Gerais. 2001. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. CONNERTON, Paul. Como as Sociedades Recordam. Oeiras/Portugal: Celta Editora, 1993. CORREIA, Telma de Barros & GUNN, Philip. O urbanismo: a medicina e a biologia nas palavras e imagens da cidade. In.: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001, p.227-260. COSTA, Francisco Jos Lustosa da. Sobral do meu Tempo. Braslia: Senado Federal, 1982. ______. Clero, Nobreza e Povo de Sobral. Braslia: Senado Federal, 1987. ______. O Senador dos bois: correspondncia do Senador Paula Pessoa. Sobral: Edies UVA, 2000. ______. Sobral: cidade das cenas fortes. Rio de Janeiro; So Paulo; Fortaleza: ABC Editora, 2003. DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris: para uma Sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990. ______. A casa & a rua: espao, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DELEUZE, Gilles. "Lettre redu bensmaia sur Spinoza". Disponvel no ste http://www.imaginet.fr/deleuze, 1981. ______. Diferena e Repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo: Editora 34, 1997, vol.4. DUARTE, Adriano Luiz. Os sentidos da comunidade: notas para um estudo sobre bairros operrios e identidade cultural. Trajetos Revista de Histria da UFC. Fortaleza: Departamento de Histria da UFC, 2002, v.1, n.2, pp.103-113. DULCI, Otvio Soares. As elites mineiras e a conciliao: a mineiridade como ideologia. Revista Cincias Sociais Hoje. So Paulo: Cortez/ANPOCS, 1984. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropolgica da ideologia 289 moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma histria dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1994. ______. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relaes de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. ______. A solido dos moribundos seguido de Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. ______. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. ESPINOSA, Bento de. tica: demonstrada a maneira dos gemetras. Coimbra: Atlntida, 1962. EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, orculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representaes culturais. So Paulo: Studio Nobel, 2000. FAVRET-SAADA, Jeanne. Corps pour Corpo. Paris: Gallimard, 1990. ______. "tre affect". Gradhiva. Revue d 'Histoire et d 'Archives de I 'Anthropologie. 1981,10: 3-10. FECHINE, Yvana & OLIVEIRA, Ana Claudia de. Virtualidade urbanidade intertextualidade. So Paulo: Hacker Editores, 1998. FELDMAN-BIANCO, Bela (Org.). Antropologia das sociedades contemporneas. So Paulo:Global, 1987. FENTRESS, James & WICKHAM, Chris. Memria social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Teorema, 1992. FERRARA, Lucrcia DAlsio. A Estratgia dos Signos. 2ed., So Paulo: Perspectiva, 1986. FREITAS, Nilson Almino de. "Olhar sobre a 'Sobralidade': Questes Terico- metodolgicas". in.: Essentia. Sobral: UVA, jun/nov./1999, pg.155-163, V.1,N.2. ______ Sobral- opulncia e tradio. Sobral: UVA, 2000. FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 3ed., Recife: Fundao Joaquim Nabuco, 1967. FROTA, D.Jos Tupinamb da. Histria de Sobral. 3ed., Fortaleza: Imprensa Oficial do 290 Cear, 1995. FURTADO FILHO, Jos da Rocha. Arquitectural Meaning: The Built Environment as an expression of social values and relations. (Unpublished masters thesis), 1979. GEERTZ, Clifford. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrpolis: Vozes, 1997. ______. Nova luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Polticas. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. GOLDMAN, Mrcio. Do ponto de vista no-nativo: sobre a incompreenso antropolgica ou os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Comunicao apresentada no seminrio temtico nA Antropologia e seus Mtodos: o Arquivo, o Campo, os Problemas", XXV Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2000.. GONALVES, Jos Reginaldo Santos. Monumentalidade e cotidiano: os patrimnios culturais como gnero de discurso. In.: OLIVEIRA, Lcia Lippi (org.). Cidade: histria e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p.109-123. GOVERNO DO ESTADO DO CEAR. Secretaria da Infra-estrutura SEINFRA. Projeto de Desenvolvimento Urbano do Estado do Cear PROURB-CE. Prefeitura Municipal de Sobral. Relatrio de questes/mdulo conceito. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Municpio de Sobral. Mimeo, 1999. GRNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Turismo e etnicidade. Horizontes Antopolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, p.141-159. HALBWACHS, Maurice. A Memria Coletiva. Vrtice, So Paulo, 1990. HERZFELD, Michael. A place in history: social and monumental time in a Creta town. Princeton: Princeton University Press, 1991. KERRIOU, Mirian Arroyo de. Museu, Patrimnio e Cultura: reflexes sobre a experincia mexicana. In.: O Direito Memria: patrimnio histrico e cidadania. So Paulo: Departamento de Patrimnio Histrico, 1992. HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence (Orgs.). A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. KOGA, Dirce. Medidas de cidades: entre territrios de vida e territrios vividos. So Paulo: Cortez, 2003. KOWARICK, Lucio (org.). As lutas Sociais na Cidade. So Paulo: Vrtice, 1988. 291 ______. Escritos urbanos. So Paulo: Editora 34, 2000. LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. So Paulo: Editora da UNICAMP, 1988. ______. Por amor s cidades: conversaes com Jean Lebrum. So Paulo: Fundao Editora UNESP, 1988. ______. Histria e Memria. 3ed. Campinas: UNICAMP, 1994. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo enxada e voto. So Paulo: Alfa-Omega, 1978. LEFEBVRE, Henry. O direito a cidade. So Paulo: Editora Moraes, 1991a. ______. A vida cotidiana no mundo moderno. So Paulo: Editora tica, 1991b. LEITE, Rogerio Proena. Contra-usos e espao pblico: notas sobre a construo social dos lugares na Manguetown. Revista Brasileira de Cincias Sociais. So Paulo, junho de 2002, vol.17, n.49, 115-172. LEME, Maria Cristina da Silva. Urbanismo: a formao de um conhecimento e de uma atuao profissional. In.: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001, p.77-93. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Famlia, tradio e poder. So Paulo: Annablume; Fortaleza: Edies UFC, 1995. ______. As razes de uma cidade: conflito de hegemonias. Fortaleza: Stylus Comunicaes, 1991. ______. Representao da poltica e organizao empresarial. Mimeo, s/d. ______. Empresrios e poltica: dinmica de indentidades. Mimeo, s/d. LEXICON, Herder. Dicionrio dos smbolos. So Paulo: Crculo do Livro, 1990. LIRA, Pe. Joo Mendes. De caiara a Sobral. Sobral: s/e, 1971. LIRA, Pe. Joo Mendes. Sobral sua histria documental e a personalidade de D.Jos. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Grficas, 1975. LOPES, Joo Teixeira. A cidade e a cultura: um estudo sobre prticas culturais urbanas. Porto: Edies Afrontamentos: Cmara Municipal do Porto, 2000. LUCAS, Meize Regina de Lucena. Imagens do moderno: o olhar de Jacques Tati. So Paulo: Annablume, 1998. LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. Lisboa: Martins Fontes, 1980. MACHADO, Helia Maria de Ftima Gimenez. Ipena: um lugar de muito nomes. 292 Campinas, Cadernos CEDES, agosto de 2003, v.23, n.60, p.189-197. MAGALHES, Maria Cristina Rios. Na sombra da cidade. So Paulo: Escuta, 1995. MAGNANI, Jos Guilherme Cantor. Festa no pedao:cultura popular e lazer na cidade. 2ed., So Paulo: HUCITEC/UNESP, 1998. ______. "Discurso e representao, ou de como os Baloma de Kiriwina podem reencarnar- se nas atuais pesquisas". In.: CARDOSO, Ruth (org.). A aventura antropolgica: teoria e pesquisa.2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, pg. 127-140. ______. "De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana". Revista Brasileira de Cincias Sociais. So Paulo, Jun 2002, v.17 n.49. ______. Mystica Urbe: um estudo antropolgico sobre o circuito neo-esotrico na metrpole. So Paulo: Studio Nobel, 1999. MAGNANI, Jos Guilherme Cantor & TORRES, Llian de Lucca (orgs.). Na metrpole. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo/FAPESP, 2000. MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. "Introduo". in.: Argonautas do Pacfico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquiplagos da Nova Guin Melansia. pg.17-34, 3.ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984, coleo Os Pensadores. MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do sculo XX ao nvel mundial. In.: Revista de Antropologia. So Paulo: USP, 1991, n.34, pp.197-221. MARQUES, Ana Cludia. Intrigas e Questes. Rio de Janeiro: Relume Dumar/Ncleo de Antropologia da Poltica, 2002. MARTINS, Jos de Souza. Subrbio: vida cotidiana e Histria do subrbio da cidade de So Paulo: So Caetano, do fim do imprio ao fim da Repblica Velha. 2ed., So Paulo: Editora HUCITEC: Editora UNESP, 2002. MARTINS, Mons. Vicente. Homens e vultos de Sobral. Fortaleza: UFC/Stylus, 1989. MAYOL, Pierre. A convenincia. In.: CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano:2. morar, cozinhar. Petrpolis: Vozes, 1994, p.46-69. MIRANDA, Wander Melo (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autntica, 1999. MONTALVERNE GIRO, Glria Giovana S. & SOARES, Maria Norma Maia. Sobral: histria e vida. Sobral: Edies UVA, 1997. MUMFORD, Lewis. A cidade na histria: suas origens, transformaes e perspectivas. 4ed., So Paulo: Martins Fontes, 1998. 293 NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. In.: Revista Projeto Histria. So Paulo: EDUC, 1993. OLIVEIRA, Lcia Lippi (org.). Cidade: histria e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. OLIVEN, Ruben George. Antropologia de Grupos Urbanos. Petrpolis: Vozes, 1985. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Mito e discurso: observaes ao p da pgina. In.: Revista de Antropologia. So Paulo: FFLCH/USP, 1984/1985, vol.27/28. PAIVA, Olga Gomes de (Coord.). Sobral: patrimnio de todos: roteiro para a preservao do Patrimnio Cultural. Fortaleza: IPHAN, 1999. PALMEIRA, Moacir & HEREDIA, Beatriz. Os comcios e a poltica de faces. In.: Anurio Antropolgico/94. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. PANDOLFO, Maria do Carmo Peixoto & MELLO, Celina Maria Moreira de. Estrutura e mito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: UFC, 1983. PEIXOTO, Clarice Ehlers. Os jardins ao longo dos sculos: notas sobre as ideologias paisagsticas na Frana e no Brasil. In.: Cadernos de Antropologia e imagem. Rio de Janeiro: UERJ/NAI, 1995, pp.57-70. PENNA, Maura. O que faz ser nordestino. So Paulo: Cortez, 1992. PERALTA DA SILVA, Elsa. Patrimnio e identidade: os desafios do turismo cultural. [online] Disponvel na Internet via http://www.aguaforte.com/antropologia/Peralta.html. Arquivo capturado em 18 de abril de 2004. ______. O mar por tradio: o patrimnio e a construo das imagens do turismo. Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, pp.83-96. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Era uma vez o beco: origens de um mau lugar. In.: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001, p.97-119. PIMENTEL FILHO, Jos Ernesto. Urbanidade e cultura poltica. Fortaleza: Casa Jos de Alencar/UFC, 1998. POLLAK, Michael. Memria e identidade social. Estudos Histricos. Rio de Janeiro, 1992, vol.5, n.10, pp.200-215. PONTE, Sebastio Rogrio B. de. Fortaleza Belle poque: reformas urbanas e controle social 1860-1930. 2ed., Fortaleza: Fundao Demcrito Rocha, 1999. PREFEITURA MUNICIPAL DE SOBRAL. Secretaria de Cultura, Desporto e Mobilizao Social. Estudo para tombamento do patrimnio histrico de Sobral. Mimeo, 1997. 294 RICOEUR, Paul. Interpretao e ideologias. Rio de Janeiro: F.Alves, 1990. SAMAIN, Etienne. Reflexes crticas sobre o tratamento dos mitos. Revista de Antropologia. So Paulo: FFLCH/USP, 1984/1985, vol.27/28. SADER, Eder. Quando Novos Personagens entram e Cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mo de Alice:o social e o poltico na ps- modernidade. 4ed., So Paulo: Cortez, 1997. SANTOS, Ceclia Rodrigues dos. Novas fronteiras e novos pactos para o patrimnio cultural. So Paulo em Perspectiva. So Paulo, 2001, 15(2), p.43-48. SANTOS, Myrian Seplveda dos. Museus brasileiros e poltica cultural. Revista Brasileira de Cincias Sociais. So Paulo, junho de 2004, vol.19, n.55, p.53-73. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilizao ocidental. 2ed., Rio de Janeiro: Record, 2001. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000. SILLA, Rolando. San Sebastin de Las Ovejas: pureza perdida y revitalizacin en el norte Neuquino (Argentina). Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, julho de 2003, ano 9, n.19, p.181-201. SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememorao/Comemorao: as utilizaes sociais da memria. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, 2002, v.22, n o 44, p.425-438. SIMMEL, Georg. On Individuality and Social Forms. Chicago: University or Chicago Press, 1971. ______. "A metrpole e a vida mental". In.: VELHO, Octvio Guilherme (org.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. SOARES, Jos Teodoro. Realizao e compromisso: desempenho de uma academia frtil. Sobral: UVA, 1997. SODR, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mdia no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1999. SOUZA BRASIL, Joo Pompeu de. Sobral: tentativa de interpretao histrica de sua ao polarizadora sobre a regio. In.: Revista de Cincias Sociais. 1972, v.3, n.2, pp.105- 121. TALAVERA, Augustn Santana. Turismo cultural, cultura turstica. Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, outubro de 2003, ano 9, n.20, p.31-57. 295 UNIVERSIDADE do Estado do Rio de Janeiro & Ncleo de Antropologia e Imagem. Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: NAI, 1995. VELHO, Gilberto & KUSCHNIR, Karina (Org.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropolgico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003. VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da sociedade Contempornea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. VELHO, Gilberto (org.). Antropologia Urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999a. ______. Projeto e Metamorfose: Antropologia das Sociedades Complexas. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999b. ______. "Destino e projeto: uma viso antropolgica". In.: VRIOS. O Destino. Rio de Janeiro: Terceira Margem Editora, s/d. VEYNE, Paul. "A histria conceitual". In.: LE GOFF, Jaques & NORA, Pierre (orgs.). Histria: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. ______. Le pain et le cirque: Sociologie historique d 'un pluralisme politique. Paris: Plon, 1976. ______. O inventrio das diferenas: histria e sociologia. So Paulo: Brasiliense, 1983. ______. "L 'Interprtation et I 'Interprete. A propos de choses de Ia religion". Enqute. 1996, 3: 241-272. ______. Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria. Braslia: UNB, 1998. VON SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes (Org.). Os desafios contemporneos da histria oral. Campinas: rea de Publicaes CMU/UNICAMP, 1997. WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In.: VELHO, Otvio Guilherme (Org.). O fenmeno urbano. 3ed., Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p.90-113. ZUMTHOR, Paul. Tradio e esquecimento. So Paulo: Hucitec, 1997. ______. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Entrevistas realizadas: Adalberto Mendes: 10/09/2004. Cleiton Medeiros: 11/09/2003. 296 Expedito Vidal 13/06/2001, 31/08/2001 e 12/03/2002. Francisco Estevo: 08/05/2003. Jos Ferreira: 05/09/2001. Maneco 05/07/2001, 22/10/2001 e 01/10/2002. Mariz: 15/09/2001. Romeu Duarte Jr.: 07/03/2005. Sr.Gutemberg: 08/03/2004. Wilson Brasil: 04/07/2001 e 29/08/2001.
Jornais citados: Informativo Sobral Modelo de Crescimento de maro de 2000 Informativo Sobral no rumo certo, 13 de agosto de 1999 Jornal Capital Norte, 15 de maro de 1997. Jornal Correio da Semana, 1 a 7 de janeiro de 2005. Jornal Dirio do Nordeste, 4 de janeiro de 2005. Jornal Dirio do Nordeste, 5 de janeiro de 2005. Jornal Dirio do Nordeste, 9 de agosto de 1997. Jornal Documentrio Sobralense, setembro de 1995. Jornal Especial Sobral 231 Anos, 5 de julho de 2004. Jornal Expresso do Norte, 31 de julho a 6 de agosto de 2004. Jornal Expresso do Norte, 1 a 7 de janeiro de 2005. Jornal Expresso do Norte, 18 a 24 de outubro de 2003. Jornal Expresso do Norte, 18 a 24 de outubro de 2003. Jornal Expresso do Norte, 2 a 8 de outubro de 2004. Jornal Expresso do Norte, 2 a 8 de outubro de 2004. Jornal Expresso do Norte, 3 a 9 de abril de 2004. Jornal Expresso do Norte, 6 a 12 de outubro de 2004. Jornal Minicipal, maio de 2004. Jornal Municipal, maio/junho de 2003. Jornal Municipal, 27 de novembro de 2001. Jornal Municipal, julho de 2003. Jornal Municipal, julho de 2004. 297 Jornal Municipal, maro de 2004. Jornal Municipal, novembro de dezembro de 2003. Jornal Municipal, outubro de 2004. Jornal Municipal, setembro de 2004. Jornal O Noroeste, 3 de abril de 2004. Jornal O Noroeste, 23 de dezembro de 2004. Jornal O Noroeste, 30 de abril de 2004. Jornal O Noroeste, 06 de maro de 2004. Jornal O Noroeste, 07 de maio de 2004. Jornal O Noroeste, 10 de setembro de 2004. Jornal O Noroeste, 13 de setembro de 2003. Jornal O Noroeste, 16 de agosto de 2003. Jornal O Noroeste, 16 de agosto de 2003. Jornal O Noroeste, 21 de fevereiro de 2004. Jornal O Noroeste, 23 de dezembro de 2004. Jornal O Noroeste, 30 de abril de 2004. Jornal O Noroeste, 9 de agosto de 2003. Jornal O Povo, 5 de abril de 1997. Jornal O Povo, 16 de dezembro de 2004. Jornal O Povo, 17 de dezembro de 2004. Jornal Tribuna Regional, 8 a 14 de maio de 2004.