O Instante Existencial No Conto Clarice Lispector: Feliz Aniversário de
O Instante Existencial No Conto Clarice Lispector: Feliz Aniversário de
O Instante Existencial No Conto Clarice Lispector: Feliz Aniversário de
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Mestrando em pelo Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE. Prof. Especialista em
Artes e Graduado em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.
Revista Cacto
Ciência, Arte, Comunicação em Transdisciplinaridade Online
Vol. 2 N. 1 2022 / ISSN 2764-1686
1 INTRODUÇÃO
(Clarice Lispector)
Este artigo consiste numa breve análise literária, cujo foco é o processo 2
de epifania no conto Feliz Aniversário de Clarice Lispector, autora esta
conseiderada pela crítica literária como uma artista prosadora do Pós-
modernismo brasileiro.
A metodologia adotada para tanto foi a teórico-bibliográfica, sob a luz
dos argumentos de Cândido (1977), Sá (2000), Moisés (1979) e Santos (2012), a
fim de se perceber como o processo de epifania se deu na personagem central
do já referido conto, a saber: Dona Anita, que participa de um aniversário
realizado pelos seus familiares, em comemoração a seus 89 anos de idade.
Para compreender-se a aplicação da epifania no enredo relatado acima,
dividiu-se esta pesquisa em dois campos de conceituação e análise textual.
No primeiro campo, buscou-se inicialmente entender os conceitos de
Epifania, para em seguida reaplicá-los na seara literária, como efeito estético.
Em seguida, foi-se pontuando nos excertos do conto as escolhas da
narrativa de Clarice Lispector, bem como as circunstâncias das quais se
emanavam reflexões e interconexões com possíveis leitores, por meio da
2
Trecho transcrito da entrevista de Clarice Lispector concedida à TV Cultura no Programa, em
01/12/1977.
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identificação da situação (enredo) narrada.
Dando continuidade, realizou-se também uma complementação teórica
ao aprofundamento do conceito de Epifania, por meio de uma abordagem do
grau de intimismo provocado pelas tensões não escritas, mas entrelidas da
autora, quando essa cria, ao contrário de um narrador tradicional em 3ª pessoa,
um descritor consciente dos fatos e dos processos mentais das personas, que por
sua vez, expressavam um fluxo de pensamento não escrito em matéria
linguística (signficante), mas lido e compreendido numa linguagem do
pensamento.
Todas essas manifestações da escrita subjetiva e fugaz de Clarice
Lispector trouxeram inovações para a literatura brasileira. Dentre essas
inovações acentuam- se as suas características do que se convencionou
classificar de literatura do inconsciente, mostrando com isso sua tendência de
afastar-se da realidade e adentrar-se no universo íntimo do personagem.
3
Com essa ideia do inconsciente ligada à psicanálise, a autora evidencia
o universo imaginativo, no qual se entende as realidades de forma mais
complexa e indecifrável, relacionando- as com as suas angústias, amarguras e
felicidades clandestinas.
Dessa forma a sua perspectiva intimista, retira o foco nos
acontecimentos externos do personagem, e procura adentrar na ação interior,
na mente e no coração, permitindo ao leitor, então, um olhar mais profundo de
si, por meio da reação da personagem.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
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Houaiss 3 significa aparição ou revelação de algo, normalmente relacionado com
2F
3
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Elaborado pelo Instituto
Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2009.
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como nos confirma a autora a seguir após contato com uma das primeiras
críticas de Massaud Moisés acerca da escrita de Clarice:
O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas
mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados —
e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não
precisava de nenhum deles, [...] a nora de Olaria, [...]aboletou-se
numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua
posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a
Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. (LISPECTOR, 1998, p. 38).
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Zilda, quem organizara a festa. Pelo fato de conviver com sua mãe; a única
mulher entre seis irmãos, que por sua vez, responsabilizaram-na, não só pelas
festas anuais de aniversário, mas também pelos cuidados cotidianos de filha
para com a mãe.
Assim como era nítida a insatisfação com seus frutos. Estes, por sua
vez, toleravam o seu tronco por mera obrigação moral, desprovida de afeto:
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Como se vê a personagem está a mercê da solidão, embora tivesse
em companhia de seus entes. É por meio dessa encenação banal e
monótona, que a narrativa vai criando espaços paras as digressões do
pensamento de angústia, tão bem lido nas entrelinhas. Momento esse em
que o leitor vai se aproximando do fluxo da consciência da persona. Ou seja,
através da narrativa no plano superficial dos fatos, vai-se mergulhando no
plano profundo, inaudível, mas absorvidos intelectivamente os julgamentos
de D Anita, assim como seu estado emocional. Inferindo-se, então, reflexões
sobre como chegara aquele ponto; ou de como aqueles seres tão apáticos e
vazios são seus filhos; e que nos risos soltos, fingiam uma felicidade. Não se
lê, mas se sente a amargura vivida nesse instante.
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E conforme explicitado anteriormente, a epifania por meio de elementos
ínfimos e banais, como a buzina dos sons dos carros e voo da mosca. Tudo isso
em torno de um bolo, parado, colorido. A própria velha sentada, e os carros
buzinando, num desentendimento comum a um trânsito, os próprios filhos e
netos, com suas individualidades e indiferenças, mesmo que circulando numa
mesma avenida (a casa onde há a festa de aniversário).
A narrativa segue sempre atenta a toda a cena, sem se descuidar de
nenhum, detalhe; atento aos fluxos de consciências e a epifania, que ajudam a
tensão do conto a centrar-se na reação e, não na ação das personas:
O mesmo narrador que apresenta os acontecimentos e seus
participantes, que avalia e lhe penetra na consciência, tem, em
relação à aniversariante, diferente atitude. Focaliza-a inicialmente
por flashes instantâneos, tomando-a apenas pelos aspectos visíveis,
pela exterioridade e pelo silêncio, reforçando com isso a capacidade
que constitui a expressão fisionômica da velhice, interditada a ele
próprio narrador, como se só a pudesse ver por fora. Intercalando-se 8
aos fatose a sua agitação, repete-se com insistência a imagem: “A
velha não semanifestava.” Podemos daí depreender que o texto se
desenvolve, em relação à festa, pelo jogo entre silêncio/fala,
quietude/movimento, e, em relação ao narrador quanto a seu
objeto narrado, pela dualidade entre conhecimento total e
conhecimento parcial. (SANTOS, 2012, p.132)
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máscaras convencionais das pessoas ali presentes.
Nesse ponto é interessante adentrar-se no sentimento da idosa, quando
esta não considera os seus filhos a ponto de não se ver refletida naqueles. Não
havia na ótica dela, traços comuns, nenhuma herança sequer da sua
personalidade. Eram seres opacos, não transpareciam seus sentimentos, que não
lhe passavam segurança, e de “rostos ansiosos” que desejam retirar-se daquela
situação, que para eles mostrava-se um estorvo. Tudo isso é perceptível através
do uso de vocábulos e elucubrações da própria narrativa:
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individualidade de cada um, tratando-se não só de uma aglomeração de
personagens.
Assim, constatar-se-á que a autora buscou não somente o todo, mas a
particularidade, o íntimo, adentrando no universo de cada membro envolvido
no conflito.
Nota-se que a Zilda, por exemplo, não organizou a festa de aniversário
da mãe por vontade própria, mas para cumprir uma obrigação, como forma de
mostrar para a família que se dedicava à mãe. Assim, percebe-se no texto as
perspectivas frustrantes de Zilda ao realizar tal evento:
O narrador revela o quanto ela, Zilda, sente-se irritada, por ter de arcar
com essa tarefa. Percebe-se também que tal situação se torna um fardo, ter
que assumir as responsabilidades, não apenas de realizar a festa, mas da difícil
missão de cuidar da mãe na velhice.
O narrador proporciona enxergar Zilda como o ser que se empenha em
manter o laço familiar inexistente. Os demais membros estão insensibilizados
com o momento de comunhão, repelindo apenas suas frustações e desconfortos
por ter que aturar uns ao outros.
Percebe-se também a inquietação dos personagens visivelmente
manipulados pelo dever de participar da festa, demonstrando aspirações ao fim
do acontecimento.
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Desta forma eles se vão, cada um para a sua rotina, e só no próximo ano,
se a “velha” existir é que eles serão obrigados a suportar aquele evento
novamente.
O conto termina sem expectativas, sem um desfecho. A epifania não
causa necessariamente uma transformação no plano superficial da situação
enredada. Mas no leitor algo se modifica em relação à situação inicial, assim
como a personagem, no plano íntimo e profundo, ao criarem o sentido, a partir
das coisas que lhes surgem:
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de natureza íntima.
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característica de Lispector é a ausência de linearidade, à medida que não
apresenta enredo com começo, meio e fim. Nessa concepção, considera-se que
sua narrativa literária se opõe a linguagem literária produzida no Brasil na época.
Ao usar-se da não linearidade factual distancia-se das prosas neorregionalistas;
abre-se desse modo um certo experimentalismo prosaico, num “ritmo de
procura, de penetração, que permite uma tensão psicológica poucas vezes
alcançada em nossa literatura contemporânea” (CÂNDIDO, 1977, p. 129).
A autora tem a sapiência de revelar as transfigurações dos seus
personagens de modo profundo e Epifânico. As narrativas expõem os grandes
conflitos do ser humano, percorrendo com lume as regiões mais profundas e
inexpressáveis da alma, unindo razão e empatia por meio de uma linguagem
excepcionalmente poética. Suas personagens passam por situações hostis ou
arriscadas nos remetendo aos seus mundos imaginários repletos de sensações,
propiciando aos leitores as emoções fluidas e desordenadas das personagens,
revelando várias formas de epifanias: 13
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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
4. REFERÊNCIAS
GOTLIB. N. B. Clarice – uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
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HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
Elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados
da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Clarice. São Paulo: IMS - Instituto Moreira
Salles, 2012 .
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