A Escola Publica em Crise
A Escola Publica em Crise
A Escola Publica em Crise
Catalogação na Publicação
(Biblioteca Celso de Rui Beisiegel)
(Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo)
Vários autores
ISBN: 978-65-87047-11-9 (E-book)
DOI: 10.11606/9786587047119.
Apresentação
A escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Carlota Boto | Vinício de Macedo Santos | Vivian Batista da Silva | Zaqueu Vieira
Oliveira 11
9
Educação, diversidade, emancipação e lutas em tempos antidemocrá-
ticos
Nilma Lino Gomes 203
C
om o propósito de pensar a política e a educação nos tempos que correm
e refletir sobre o lugar social da escola pública no momento presente, esta
obra contempla temas e ideias discutidas no I Seminário Internacional de
Educação: a escola pública em crise – inflexões, apagamentos e desafios e centrou-se
especificamente no estudo e debate de referências educativas clássicas e atuais.
Quando pensamos em organizar esse I Seminário Internacional da Educação, já
desenhamos o tema com que gostaríamos de comemorar os 50 anos da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) e os 60 anos da Escola de Aplicação
da Feusp1 : escola pública em crise – inflexões, apagamentos e desafios. Entendemos
que o campo da Educação e a escola pública mais especificamente vivem uma crise
sem precedentes na história de nosso país. Quisemos interpelar esse problema.
A escola moderna surge a partir do século XVI, quando, com a Reforma protes-
tante e a Contrarreforma católica, aparecem os primeiros colégios religiosos, com o
objetivo de proporcionar a cultura letrada às populações. Em tais colégios há iniciati-
vas voltadas a empreender um modelo de ensino coletivo, capaz de romper com os
modos individuais de ensinar.
A partir da segunda metade do século XVIII, mais precisamente com o Ilumi-
nismo e a Revolução Francesa, surge o interesse de o Estado assumir para si a tarefa de
ensinar. Aparecem, portanto, no início do século XIX, as primeiras redes públicas de
ensino. O propósito desse formato da escolarização é transmitir, ao mesmo tempo, co-
nhecimentos e valores, saberes e atitudes – formar, no limite, o futuro cidadão do Es-
tado republicano. A escola, nesse sentido, é compreendida como um templo de forma-
ção da democracia. Por meio dela, os futuros cidadãos republicanos serão formados.
1 A Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) foi criada pelo Estatuto da Univer-
sidade de São Paulo (USP) de 16 de dezembro de 1969, dando continuidade aos trabalhos até en-
tão desenvolvidos no Departamento de Educação da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
(FFCL). Já a Escola de Aplicação da Feusp tem suas origens em agosto de 1958, na então denominada
Escola Experimental. Naquele momento, a Escola de Aplicação estava associada ao Centro Regional
de Pesquisas Educacionais de São Paulo Professor Queiroz Filho (CRPE-SP), o qual foi extinto em
1973, ano em que a escola vinculou-se à Faculdade de Educação.
12 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
A acepção motriz que ampara os ideais da escola republicana tem a ver com a
igualdade de oportunidades. Era necessário que o Estado oferecesse escola para todos,
inclusive para que se pudesse firmar uma sociedade pautada pelo mérito, e não mais
pela respectiva condição social de origem. Esse foi o sonho das sociedades liberais em
seu nascedouro.
Tal modelo de escola recebeu, entretanto, muitas críticas, tanto dos setores rea-
cionários quanto do espectro mais progressista da sociedade, engendrando, por ser
assim, modelos educacionais em disputa. No caso dos setores conservadores, a crí-
tica vinha pelo lado da direita: não se aceitava a tese da igualdade de oportunidades
nem a ideia de uma sociedade onde os lugares de poder e de distinção fossem exclusi-
vamente pautados pelo mérito individual. No caso das críticas advindas dos setores
da esquerda, denunciou-se o caráter de reprodução dessa escola burguesa, que, na
verdade, fazia por reafirmar, no âmbito da cultura, as desigualdades já presentes na
própria sociedade. Essa escola não teria dado conta de produzir uma sociedade mais
justa, posto que a igualdade de oportunidades que ela proclamava era, na verdade,
uma falácia para disfarçar o primado da dominação de classe social, reiterado no inte-
rior do modelo escolar.
No momento em que vivemos, entretanto, presenciamos o outro lado da crise
da escola republicana. O discurso sobre a privatização do ensino, bem como a crí-
tica aos modelos escolares herdeiros da escola republicana, tornam-se a tônica do de-
bate contemporâneo. Os anos 90 do século XX constituem o início do período da
globalização. As referências internacionais, sempre existentes, mas anteriormente
escamoteadas, passam a dar o tom para a discussão educacional. Fala-se, por um lado,
que à escola caberá formar, não mais o cidadão ou o trabalhador disciplinado, mas o
sujeito flexível, capaz de se adaptar às mudanças que os tempos exigem. Sendo assim,
o discurso sobre “competências e habilidades” torna-se a grande temática das maté-
rias de educação. A crítica à pressuposta queda dos padrões de qualidade do ensino é
remetida não mais às políticas educativas, mas aos professores, que não sabem en-
sinar. No final daquela década, o número de crianças que não encontravam vagas
nas escolas praticamente se reduz a zero, a despeito da permanência dos altos índices
de reprovação e de evasão nos diferentes níveis. Alguns sugerem, como alternativa,
modelos de privatização das instituições educacionais.
Desde o início do século XXI, a ampliação das tarefas burocráticas, bem como o
que Nóvoa (1999) compreendeu ser o excesso de discursos, povoa a discussão con-
temporânea: fala-se de planos de metas, de projeto político-pedagógico, de avaliação
da unidade escolar, de aferição do aprendizado dos alunos. Inúmeros dispositivos
vêm à tona, por parte dos diferentes governos estaduais e do governo federal, para
medir os índices de produtividade das escolas e das universidades. O padrão com-
petitivo imposto pelo mundo globalizado convive com a enorme preocupação com
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 13 •
Bruno Bontempi Júnior, no seu “Em defesa da universidade, dos cientistas e das
ciências humanas”, situa o quanto essa preocupação é antiga e, nos tempos atuais, as-
sume contornos necessariamente mais fortes. Em suas palavras: “temos presenciado,
jamais em silêncio ou resignados, as manifestações e medidas do governo federal
contra a escola pública, a universidade, os educadores, a ciência e a pesquisa”. Bruno
aborda os lugares-comuns dos discursos avessos às ciências humanas e às universida-
des públicas, no tocante às inflexões que vêm marcando os esforços para manter e
ampliar o ensino e a produção do conhecimento nos últimos anos. Percorrendo
artigos de imprensa, destinados à população como um todo e não apenas à comuni-
dade acadêmica, o autor evidencia como algumas ideias vão sendo enraizadas. Por
um lado, o artigo destrincha as contradições das propostas oficiais que sugerem a
extinção das ciências humanas nas universidades públicas. Enquanto “narrativas his-
tóricas convenientes”, tais discursos tentam esvaziar a compreensão dos fenômenos
humanos e sociais, sobretudo das desigualdades que, historicamente, os marcam.
Ao esclarecer como operam esses discursos, Bontempi Júnior traz contribuições
inestimáveis para combater a ignorância e a injustiça. Defender a universidade, os ci-
entistas e as ciências humanas significa clamar permanentemente por uma sociedade
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 19 •
entre as décadas de 1850 e 1890, a autora identifica um rico acervo documental, com-
posto por relatórios dos diretores dos institutos e de autoridades governamentais,
além de textos especializados. O que vem sendo ensinado aos alunos cegos e surdos?
Quais espaços lhes são reservados? De que maneira suas especificidades são tratadas?
Quem são seus professores? Trata-se de lugares onde nascem os fundamentos para a
educação especial no país e que, de alguma forma, ainda povoam os atuais debates da
área. Este capítulo foi realizado com o Apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
pedagógicos (53 títulos que compõem o conjunto das fontes nucleares no artigo)
privilegiaram, pouco a pouco, as preocupações que hoje nos parecem indissociáveis
da avaliação e dos tempos de ensinar e aprender na escola. Ao explicar como se deve
exercer o magistério, tais publicações deram ênfase à avaliação ora como um caminho
para disciplinar os alunos ou ordenar as classes e a escola, ora para verificar, analisar
ou mensurar o que os alunos aprenderam. É nas tramas dessas iniciativas que se defi-
nem tempos de ensinar e aprender, os quais reverberam muitas vezes em trajetórias
desiguais dos estudantes. E é nessas tramas tão sutis e poderosas que podemos com-
preender como estão presentes, ainda hoje, lógicas de excelência e exclusão na escola.
Vinício de Macedo Santos traz, em seu texto “Educação pública brasileira: len-
gua de madera e políticas de apagamento”, um olhar particular sobre formas como a
educação pública brasileira tem sido afetada no seu papel de elemento constitutivo
da formação de uma sociedade democrática. Durante a primeira década da redemo-
cratização do país, após o fim da ditadura militar de 1964-1985, o caráter público,
universal e gratuito da educação foi debatido e de modo inconteste figurou como um
dos principais axiomas da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional (LDB) de 1996. Registraram-se, naquele período, políticas educacio-
nais que conjugavam aspirações da sociedade civil brasileira e metas de acordos com
organismos internacionais multilaterais que tratavam de inscrever políticas e proje-
tos educacionais dos países periféricos ou em vias de desenvolvimento às diretrizes do
neoliberalismo firmadas no final da década de 1980. Santos pontua interesses, ora in-
diferenciados ora em disputa, que geram apagamentos na educação pública brasileira
e cujas marcas mais visíveis estão na permanência e na emergência de organizações so-
ciais vinculadas a fortes grupos econômicos e na consequente subordinação da edu-
cação pública à lógica e à dinâmica de mercado. Não é detalhe menor, nas políticas
educacionais recentes, o léxico genuíno e ambíguo associado pelo autor a expressões
como langue de bois, lengua de madera ou “discurso vazio”: léxico próprio de uma
produção conceitual, teórica, que fundamenta e identifica políticas educacionais
conflitantes com o projeto de construção de uma educação pública de qualidade.
trata de como as pessoas veem esta disciplina como algo supremo e divino e, por isso,
desistem de tentar qualquer aproximação, já que acreditam a priori que seus conheci-
mentos são inatingíveis. Outros dois aspectos – a utilidade da matemática e suas
conexões com a realidade – trazem à tona uma visão reduzida e simplista desta disci-
plina, mas enfatizam também suas potencialidades durante o processo de aprendiza-
gem como forma de desenvolvimento da abstração, habilidade que tanto se valoriza
na matemática. Segundo o autor, tais concepções não estão claras na percepção dos
indivíduos; porém, o professor precisa tê-las em mente a fim de buscar formas para
que o aluno compreenda o papel que a matemática tem na sua vida e na sociedade,
tornando a matemática ferramenta de criticidade, reflexão, ação e transformação.
Gramsci, Lahuerta destaca que somos hoje impactados por uma nova realidade, do
ponto de vista social e político, que nos é dada, em larga medida, pelo primado de
uma lógica econômica. Essa realidade nova passa pela velocidade das novas tecnolo-
gias digitais e também pela dimensão do primado da economia sobre todas as outras
esferas da sociedade. A lógica competitiva que acelerou a busca por uma produção
rápida, eficaz e maximizadora de dado conceito de rentabilidade marca, inclusive, a
universidade, tão pautados que somos hoje pela lógica do que Lahuerta nomeia de
homo lattes. Nessa realidade, na qual os partidos políticos perderam o protagonismo,
o papel a ser desempenhado pela educação e pelos educadores torna-se imprescindí-
vel na construção do futuro. Essa é a principal mensagem desse capítulo.
Por fim, são diversos assuntos, com várias abordagens. Trata-se de aqui retratar
um pouco o estado atual das pesquisas em educação no Brasil. Vivemos tempos
sombrios, em que os projetos e prospectos de uma educação progressista parecem
estar obnubilados. Cabe resgatar a lembrança e a esperança de trajetos, histórias e
narrativas que desenharam um mundo pedagógico mais justo, mais fraterno e mais
bem distribuído. Que o futuro que se avizinha possa receber este volume como um
legado de esperança em tempos melhores.
Referência
Dermeval Saviani
P
rimeiramente, quero agradecer o honroso convite para participar deste Se-
minário Internacional de Educação, comemorativo dos 50 anos da Faculdade
de Educação e 60 anos da Escola de Aplicação da USP, proferindo a confe-
rência de abertura do evento.
Como ponto de partida de minha exposição, vou caracterizar a forma como a
educação foi posta em posição estratégica na construção da democracia na sociedade
moderna na qual ainda estamos vivendo. Feita essa caracterização, nos tópicos se-
guintes encaminharei a abordagem do tema específico referente ao problema da rela-
ção entre escola e democracia no Brasil do século XXI.
Considerando que o trabalhador não terá como sobreviver se não vender sua
força de trabalho ao capitalista, ele na verdade não tem escolha: ou vende sua força de
trabalho ou simplesmente vai morrer (sobra-lhe apenas a alternativa da delinquência,
ou seja, enveredar pelo caminho do crime). Isso significa que, enquanto o capitalista
é livre na aparência e na essência, de direito e de fato, formal e materialmente, o
trabalhador é livre apenas na aparência, no plano do direito e no aspecto formal.
Essencialmente, de fato e materialmente, ele é escravo. Efetivamente, a força de
trabalho não é um bem externo que o trabalhador possua, podendo mantê-lo ou
transferi-lo a outrem e permanecendo integralmente ele mesmo. A força de trabalho
é seu próprio corpo, é ele mesmo. Assim, ao vendê-la ele está se vendendo a si mesmo.
Eis porque, como observou Engels (2010, p. 121), do ponto de vista de sua condição
de sobrevivência, a situação do proletário é pior do que a do escravo e do servo.
Com efeito, o escravo sendo propriedade do senhor, este estava obrigado a mantê-
lo, garantindo sua vida. O servo, por sua vez, tinha assegurada sua permanência na
terra em que vivia, com a posse inalienável de seus instrumentos de trabalho. Já ao
proletário lhe foram arrebatadas todas as suas posses, ficando reduzido à pura força
de trabalho e tendo de seu apenas o próprio corpo. Eis porque sem trabalho, ficando
desempregado – o que não depende de sua decisão –, ele não pode sobreviver.
As cisões mencionadas expressam o caráter contraditório da ideologia liberal,
contradição que é ao mesmo tempo a sua força e a sua fraqueza. É a sua força porque
é mediante esse mecanismo que ela expressa em termos universais seus interesses
particulares, o que a torna porta-voz do conjunto da humanidade, logrando, com
isso, a hegemonia, isto é, a obtenção do consenso das demais classes em torno da
legitimidade de sua direção. Mas é também a sua fraqueza, uma vez que o caráter
universal foi obtido ao preço de uma concepção abstrata de homem que, embora
histórica, não se reconhece como tal, buscando justificar-se a-historicamente.
Fica esclarecido, aí, o paradoxo referente à cidadania. O cidadão autônomo,
sujeito de direitos e deveres, consciente e participante ativo na vida da sociedade, é o
homem abstrato, o “verdadeiro” homem; o cidadão real é o homem em sua existência
sensível, o indivíduo “egoísta”, que é adaptado, submisso à sociedade burguesa tal
como se encontra constituída.
Vê-se, então, que a noção de educação básica geral e comum esconde a divisão
entre o “indivíduo egoísta independente” e a “pessoa moral, cidadão do Estado”
(MARX, [1979 ou 1980], p. 31-37). Essa contradição inscrita na estrutura das relações
sociais fornece o fundamento objetivo para a formulação de raciocínios igualmente
coerentes e plausíveis que conduzem a conclusões contrárias, configurando a situação
paradoxal que caracteriza a educação escolar, ao gerar expectativas contraditórias em
relação ao papel da escola na construção e consolidação da ordem democrática.
30 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Do que foi exposto no tópico anterior, podemos concluir que a formação para o
exercício da cidadania tendo em vista a construção e consolidação da ordem demo-
crática já pode ser considerada uma função clássica da educação escolar, pois vem
sendo apregoada desde o início do século XIX. No entanto, na América Latina e
especificamente no Brasil, certa descontinuidade da experiência democrática tem
afastado periodicamente a discussão dessa questão. Para ficarmos na história mais
recente, cumpre recordar que nas décadas de 1960 e 1970 o processo político na Amé-
rica Latina caracterizou-se pela vigência de regimes autoritários, manifestando-se, no
conjunto dos países da região, os sintomas da crise do regime democrático.
Com o desgaste dos regimes autoritários sob controle militar a partir do final
da década de 1970, ocorreu, na maioria dos países latino-americanos, um processo
chamado de “abertura democrática”. Assim, se no período autoritário a educação foi
despojada de sua função de formação para a participação política, limitando-se ao
papel de preparar recursos humanos para o desenvolvimento, com a abertura política
passou-se a discutir mais intensamente não apenas a questão da democratização
da escola, mas também a importância da educação no processo de democratização
da sociedade. Contudo, essa tendência que se vinha desenvolvendo na direção da
consolidação da institucionalidade democrática desde o início dos anos 80 do século
XX está entrando numa zona de risco de ruptura na conjuntura atual, o que pode
ser constatado de forma emblemática no caso do Brasil.
Como já assinalei antes, democracia é um regime político baseado na soberania
popular. Ocorre que essa mesma sociedade moderna que erigiu o povo como so-
berano se constituiu dividindo o povo em duas classes fundamentais: uma, quanti-
tativamente menor, constituída pelos detentores dos meios de produção e dos ins-
trumentos de trabalho concentrados no capital; e outra, amplamente majoritária,
constituída pelos detentores apenas de sua força de trabalho e obrigados, nessa con-
dição, a pôr em movimento sua força de trabalho com os instrumentos e os meios de
produção dos detentores do capital. Os primeiros, por deterem o poder econômico,
detêm também o poder político. Em consequência, eles têm a iniciativa de indicar
os candidatos aos cargos públicos. Nessas circunstâncias, a possibilidade de indica-
ção de governantes sintonizados com os interesses populares é bem pequena. Assim,
enquanto os membros dos grupos dominantes procuram eleger os melhores candi-
datos de seu ponto de vista, os membros das camadas populares não podem escolher
os melhores segundo seu ponto de vista, porque estes raramente conseguem se candi-
datar. Assim, eles acabam tendo de buscar eleger os menos piores.
O quadro descrito põe em evidência o caráter formal do regime democrático que
se instalou nos diversos países no contexto da implantação e consolidação da sociedade
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 31 •
Foi nesse contexto que ocorreu no Brasil, em 31 de agosto de 2016, o golpe medi-
ante o qual o Senado Federal destituiu Dilma Rousseff da Presidência da República.
Ao desrespeitar a Constituição depondo uma presidenta que não cometeu crime
algum, quebrou-se a institucionalidade democrática. Sem crime, a presidenta, na vi-
gência do regime democrático, só poderia ser julgada pelo próprio povo no exercício
de sua soberania.
materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim,
a pré-história da sociedade humana” (MARX, 1973, p. 29).
De fato, em seu processo de desenvolvimento o capitalismo socializou, pela
grande indústria, o processo de produção, o trabalho, mas manteve privada a pro-
priedade dos meios de produção e dos produtos do trabalho. E, no atual estágio de
desenvolvimento, essas relações de produção baseadas na propriedade privada dos
meios de produção, de formas de desenvolvimento das forças produtivas, estão se
transformando no seu entrave. Entramos, pois, numa nova era de revolução social,
em que se faz necessário libertar as forças produtivas dos entraves provocados pela
manutenção dos meios de produção em mãos privadas. Trata-se, pois, de socializar
os meios de produção, compatibilizando-os com o processo de socialização do traba-
lho já realizado no âmbito do próprio capitalismo.
Hoje o capitalismo já tomou conta de todo o globo e esta é a característica
estrutural da sociedade humana no século XXI. Nestas circunstâncias, a consciência
dos problemas produzidos pelo modo de produção capitalista vai-se aguçando. Mas,
como lembrou Engels, para levar a bom termo o controle das consequências sociais
indiretas e mais distantes das ações humanas propiciado pelo conhecimento histórico
“é necessário algo mais do que o simples conhecimento. É necessária uma revolução
que transforme por completo o modo de produção existente até hoje e, com ele,
a ordem social vigente” (ENGELS, 1977, p. 73). É dessa forma que, superando o
modo de produção capitalista, a humanidade sairá da pré-história e ingressará na
história propriamente dita, que corresponde ao chamado “reino da liberdade” no
qual os homens agirão coletivamente de forma intencional, tornando-se plenamente
senhores de seus atos: passarão, pois, a fazer a história sabendo que a fazem e não
como vem ocorrendo até agora, em que os seres humanos fazem a história, mas, de
modo geral, sem o saber.
Prossigo, então, com a retomada do texto de minha intervenção no Seminário
“Trabalho e Educação”, realizado na Fundação Carlos Chagas em 1992 (SAVIANI,
1994, p. 165), pois na sequência observei que a universalização da escola unitária
só se viabilizará plenamente com a generalização do não trabalho ou do trabalho
intelectual geral. Isto porque, se as próprias funções intelectuais específicas também
são transferidas para as máquinas, conclui-se que todo o trabalho material passa
a ser feito por elas. O processo de produção se automatiza, torna-se autônomo,
autorregulável, liberando o homem para a esfera do não trabalho. Generaliza-se,
assim, o direito ao lazer, atingindo-se o “reino da liberdade”.
Por certo que o trabalho, mesmo aí, continuará sendo uma prerrogativa humana,
conservando-se a sua definição geral como atividade pela qual o homem, guiado por
determinada finalidade, transforma um objeto por meio de determinados instrumen-
tos (MARX, 1968, p. 201-210). As máquinas, como extensão dos braços e agora tam-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 35 •
bém do cérebro humano, não são mais do que instrumentos por meio dos quais o
homem realiza a atividade do trabalho, ainda que se trate de instrumentos capazes
de pôr em movimento operações complexas, múltiplas, amplas e por tempo prolon-
gado. Portanto, o criador desse processo, aquele que o domina plenamente e que o
controla em última instância, continua sendo o ser humano que, então, continua
sendo um trabalhador. Seu trabalho consistirá, então, em comandar e controlar todo
o complexo das suas próprias criaturas, mantendo-as ajustadas às suas necessidades e
desenvolvendo-as na medida das novas necessidades que vierem a se manifestar. Mas,
convenhamos que as fronteiras entre esse tipo de trabalho e o lazer, entre esse tipo de
atividade e aquele próprio do desfrute das artes e dos jogos desportivos tornam-se
tênues, diversamente do que ocorria (e ainda ocorre) no “reino da necessidade”.
Em suma, pode-se afirmar que o trabalho foi, é e continuará sendo o princípio
educativo do sistema de ensino em seu conjunto. Determinou seu surgimento sobre
a base da escola primária, seu desenvolvimento e diversificação e tende a determinar,
no contexto do século XXI, sua unificação.
Conclusão
cada dia mais evidente que o capitalismo suscita problemas, cada vez em maior
número, que ele já não pode resolver.
Nesse primeiro cenário, a democracia obviamente limita-se ao caráter formal e,
ainda assim, restringe-se cada vez mais diante de mecanismos autoritários crescente-
mente adotados, conduzindo a escola pública a uma profunda crise, tal como está
registrado no subtítulo do tema deste I Seminário Internacional: “a escola pública
em crise: inflexões, apagamentos e desafios”.
Vê-se, pois, que o futuro da humanidade só poderá ter uma saída favorável
pela realização da segunda possibilidade, que corresponde ao alto nível atingido
pelas forças produtivas, as quais estão sendo travadas pelas relações de produção
vigentes por meio da obsolescência programada, o que faz com que a atual forma
social só venha podendo manter-se pela produção destrutiva. Libertadas dessas peias
pela socialização dos meios de produção, as conquistas tecnológicas propiciadas
pelo desenvolvimento histórico das forças produtivas humanas permitirão a toda a
humanidade ingressar no “reino da liberdade”.
De fato, as tecnologias disponíveis já permitem pôr em funcionamento comple-
xos automáticos capazes de produzir praticamente todos os bens materiais necessá-
rios para que todos os seres humanos possam viver confortavelmente, reduzindo a
um mínimo a quantidade de horas de trabalho socialmente necessário. O que im-
pede a realização desse objetivo é simplesmente o conjunto de interesses vinculados à
propriedade privada dos meios de produção. A remoção desse obstáculo é, ao mesmo
tempo, condição para a implantação plena da escola unitária e resultado do processo
em curso visando à sua implantação.
Nessa nova forma social, a democracia formal própria do modo de produção
capitalista cederá lugar à democracia real consolidada pela universalização da escola
unitária, que propiciará a todos os indivíduos uma formação integral que lhes asse-
gurará o pleno domínio dos conhecimentos científico-tecnológicos, artísticos e filo-
sóficos historicamente produzidos pela humanidade. Oxalá seja permitido às novas
gerações chegar ao final do século XXI com esses objetivos atingidos.
Referências
Introdução
O
título deste texto aponta três dos entendimentos vigentes acerca de fina-
lidades e funções da escola pública postas como possíveis orientações de
políticas educacionais, tendo em vista a democratização dos sistemas esco-
lares. Eles indicam diferentes propósitos de como a esfera pública pode assegurar a
educação escolar, social e moral da juventude e, de algum modo, expressam a crença
de que a educação é um poderoso meio de melhorar as sociedades. Junto a isso, no
entanto, o campo da Educação no país vive hoje um quadro de agravamento de in-
certezas em relação ao que uma sociedade democrática pode esperar das escolas e, ao
mesmo tempo, observa-se um notório desapontamento de muitos educadores pela
intermitência de uma trajetória até então aparentemente bem-sucedida da constru-
ção da escola pública.
A história da educação brasileira percorreu momentos importantes, ainda que
descontínuos, do investimento da sociedade e do poder público na democratização
da escola em seu caráter público, gratuito, laico, desde as ações públicas de ampliação
do acesso e de permanência dos alunos até às lutas pela melhoria da qualidade do
ensino. No entanto, a despeito de muitos ganhos, é forçoso admitir que boa parte
dos anseios da sociedade e da comunidade de educadores pela valorização da escola
pública foi-se perdendo, principalmente nos últimos anos.
Embora a estimativa de ganhos e perdas nessa trajetória requeira análise mais apro-
fundada, pode-se constatar, ao longo das últimas décadas, que parte da explicação do
descenso da qualidade social e pedagógica da escola pode ser encontrada na orienta-
ção hegemônica, no âmbito da política educacional oficial, do discurso globalizado
em torno da educação de resultados, de caráter economicista, fortemente protagoni-
zado pelos organismos internacionais desde, pelo menos, os anos 1980, e hoje consoli-
dada pela implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em paralelo
a essa orientação afiliada ao neoliberalismo, a posse, em janeiro de 2019, do presidente
eleito trouxe junto pautas conservadoras em torno da preservação de tradições, cos-
tumes e valores conservadores, numa perspectiva de regeneração moral do indivíduo
42 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
cas da educação básica. Em outras palavras, trata-se de refletir sobre as bases teóricas
e operacionais que podem assegurar a essa população uma escola socialmente justa1 .
Para abordar esse tema, o texto está organizado em três tópicos: breve menção à
trajetória da construção da escola democrática no Brasil; os embates sobre concepções
de finalidades educativas da educação escolar; esboço de proposição sobre escola
socialmente justa.
Este tópico apresenta uma breve incursão histórica sobre dois momentos signifi-
cativos dos embates em torno de finalidades educativas da educação escolar, na pers-
pectiva da escola democrática. A escolha desses momentos não obedece a critérios his-
toriográficos, visando tão somente a identificar determinados ideais que se foram deli-
neando sobre a relação justiça social e escola. Nesse sentido, o primeiro momento em
que se destaca mais fortemente a dimensão pública da educação escolar é o movimento
renovador de 1932. Nos anos 1930, a industrialização emergente foi determinante para
o surgimento de novas exigências educacionais, dada a necessidade de condições mí-
nimas para ingresso no mercado de trabalho (ROMANELLI, 1978). Nesse contexto,
o movimento da Escola Nova ganhou força no âmbito do sistema público de ensino,
formalizado no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, inspirado nas
ideias do filósofo norte-americano John Dewey e de outras lideranças nacionais, entre
elas, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. A despeito da oposição de setores cató-
licos contrários a mudanças na rede pública de ensino e ao monopólio estatal da edu-
cação em defesa da liberdade de ensino, a orientação liberal das políticas para a educa-
ção preconizava a escola única fundamentada nos princípios de laicidade, gratuidade,
obrigatoriedade e coeducação. Romanelli comenta que na ordem social oligárquico-
aristocrática vigente no período, a educação era privilégio das elites e, portanto, não
lhes interessava a ação do Estado para a expansão do ensino público e gratuito. No en-
tanto, no contexto do surgimento da ordem social burguesa, as classes médias reivin-
dicavam o ensino médio e as camadas populares, o ensino primário. Conclui a autora:
Daí porque o movimento renovador compreendeu que havia chegado a hora
de o Estado assumir o controle da educação e que, portanto, esta deveria ser
gratuita e obrigatória, dadas as necessidades da nova ordem econômica em
implantação. [...] A campanha em torno da escola pública foi uma campanha
que, crescendo em intensidade na época, visava, antes de tudo, à concretiza-
ção de um dos princípios máximos do movimento: o direito de todos à educa-
ção. Entendiam os reformadores que esse direito só poderia ser garantido, na
1 Aproprio-me aqui da expressão utilizada por Dubet em seu texto “O que é uma escola justa?” (2004),
esclarecendo que não estou tomando as ideias desse autor como referência para os propósitos deste
texto.
44 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Está clara, nessa síntese do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a afirma-
ção da educação como direito, a sua vinculação com a realidade social, as responsabi-
lidades do Estado, o atendimento a todas as classes sociais sem privilégios. Pesquisa-
dores mostram que várias aspirações não foram atendidas na legislação, que o movi-
mento renovador conciliou interesses de diferentes segmentos sociais sem questionar
a ordem social vigente, que não conseguiu evitar o dualismo no sistema de ensino e
que pouco chegou à prática pedagógica (BRANDÃO, 1995; ROMANELLI, 1978). É
fato, também, que, embora a Constituição de 1934 tenha absorvido parte das propos-
tas do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, atribuindo papel relevante ao Es-
tado no que diz respeito ao controle e à promoção da educação pública, o sistema de
ensino se expandiu, mas controlado pelas elites, com o Estado mais agindo pelas pres-
sões do momento e de maneira improvisada do que buscando delinear uma política
nacional de educação em que o objetivo fosse tornar universal e gratuita a escola ele-
mentar (ROMANELLI, 1978). De todo modo, há reconhecimento de que o Mani-
festo dos Pioneiros da Educação Nova foi um avanço para a época, à medida que pro-
clama a educação como direito de todos sem distinção de classes e situação econômica,
a defesa explícita do ensino público, gratuito, obrigatório, laico e o dever do Estado em
assegurá-lo e a introdução de novos métodos de ensino na perspectiva da Escola Nova.
A Constituição de 1937 vigente no Estado Novo interrompeu a aplicação do ideá-
rio do movimento renovador, oficializando o dualismo educacional que provê aos ri-
cos escolas particulares e públicas de ensino propedêutico e confere aos pobres a con-
dição de usufruir da escola pública optando pelo ensino profissionalizante. Atenuou
também o dever do Estado como educador, instituindo-o como subsidiário, para
preencher lacunas ou deficiências da educação particular (LIBÂNEO; OLIVEIRA;
TOSCHI, 2012).
O processo de democratização do país foi retomado com a deposição de Vargas,
em 1945. A industrialização crescente, especialmente nos anos 1950 e 1960, impul-
sionou a retomada da educação como direito de todos, mas levou à adoção da po-
lítica de educação para o desenvolvimento, com claro incentivo ao ensino técnico-
profissional. Como se sabe, o apelo à universalização do ensino foi pouquíssimo
atendido ao longo do período de 1930 a 1960. Por isso, setores liberais, apoiados por
intelectuais, estudantes e sindicalistas, iniciaram campanha em defesa da escola pú-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 45 •
blica, que culminou, em 1959, com o Manifesto dos educadores: mais uma vez convo-
cados, que reiterava os princípios de 1932 e propunha o uso dos recursos públicos
unicamente nas escolas públicas e a fiscalização estatal para as escolas privadas, com
161 signatários. Conforme esse manifesto:
Não negamos nenhum dos princípios por que nos batemos em 1932, e cuja
atualidade é ainda tão viva, e mais do que viva, tão palpitante que esse do-
cumento, já velho de mais de 25 anos, se diria pensado e escrito nestes dias.
Vendo embora com outros olhos a realidade, múltipla e complexa – porque
ela mudou e profundamente sob vários aspectos –, e continuando a ser ho-
mens de nosso tempo, partimos do ponto em que ficamos [...] para uma to-
mada de consciência da realidade atual e uma retomada, franca e decidida, de
posição em face dela e em favor, como antes, da educação democrática, da es-
cola democrática e progressista que tem como postulados a liberdade de pen-
samento e a igualdade de oportunidades para todos. (MANIFESTO DOS
EDUCADORES, 2006, p. 205-206).
em 1979, nas quais foi retomado pelos educadores o significado social e político da
escola pública e seu papel em relação aos setores sociais majoritários da população.
Desse modo, surge o segundo momento das lutas pela democratização do ensino,
nos anos 1980, representado pela atuação teórica e política da Ande. Dermeval Saviani,
um dos fundadores dessa associação, embora admitindo os reveses econômicos e
políticos dos anos 1980 no Brasil e no mundo, escreve:
[...] a análise histórica não condicionada pelos revezes da virada dos anos
de 1980 para os de 1990 permite constatar que, do ponto de vista da organi-
zação do campo educacional, a década de 1980 é uma das mais fecundas de
nossa história, rivalizando apenas com a década de 1920, mas, ao que parece,
sobrepujando-a. [...] a década de 1980 também se inicia com a constituição
de associações, depois transformadas em sindicatos aglutinando, em âmbito
nacional, os professores de diferentes níveis de ensino e os especialistas nas
diversas habilitações pedagógicas. (SAVIANI, 2007, p. 400).
sua prática, ou seja, sobre as determinações que essa prática sofre da sociedade e as
influências que ela pode exercer sobre a sociedade.
Esse ideário abarcava aspectos externos e internos do funcionamento da escola,
mas pontuava especialmente a atuação em fatores intraescolares como medidas para
assegurar a permanência do aluno na escola, a busca de uma concepção de ensino dos
conteúdos articulada com as características sociais e culturais dos alunos, a melhoria
das condições de trabalho e remuneração dos professores, o realce do papel político da
prática docente. Pode-se constatar que os militantes da Ande antecipavam aspirações
em relação à escola pública que ainda hoje inspiram boa parte dos pesquisadores no
campo da Pedagogia.
Um aspecto importante para os propósitos deste texto é a menção, na Carta de
princípios, de duas dimensões básicas da democratização do sistema educacional: a de-
mocratização do acesso à escola e a democratização do conteúdo de ensino. Quanto
ao acesso à escola, a carta identificava a inexistência do ensino pré-escolar gratuito
e acessível às crianças das classes de baixa renda, os problemas de evasão e reprova-
ção associados à pobreza, principalmente nas séries iniciais do ensino elementar, a
inconveniência da profissionalização no ensino de segundo grau empobrecendo a
formação geral propedêutica. Em relação à democratização dos conteúdos de ensino,
a Carta de princípios argumentava que os padrões de competência exigidos nos currí-
culos eram “próprios de uma classe de estudantes que já traz de casa a base de conhe-
cimentos e o tipo de atitudes aprovado pela escola” (ASSOCIAÇÃO NACIONAL
DE EDUCAÇÃO, 1981, p. 58). Desse modo, a maioria dos alunos é levada a atribuir
seu insucesso escolar ao seu mau desempenho, e não à “inadequação entre o que é
valorizado pela escola e a experiência que a origem social lhe propiciou” (ASSOCIA-
ÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 1981, p. 58).
Observe-se que os militantes da Ande tinham clareza de diagnósticos que vinham
sendo efetuados na pesquisa acerca das consequências das medidas tomadas pelo
regime militar, de ampliação do acesso das camadas populares à escola, mas com perda
da qualidade, “ampliação para menos”, como foi caracterizado mais tarde aquele
momento (ALGEBAILE, 2009). Beisiegel tinha interpretação um pouco diferente
em relação a esse assunto, ao escrever que não houve propriamente uma perda, mas
uma mudança de qualidade. Ele escrevia: “Na verdade, a escola não perdeu qualidade,
à medida que foi se alargando e se estendendo a setores mais amplos da população. A
escola mudou [...] a escola secundária do passado já não é mais a escola do 1º grau
do presente” (BEISIEGEL, 1981, p. 52). Para esse autor, a sociedade defendeu a
democratização de oportunidades, mas recusou suas consequências, as quais “ainda
não foram claramente compreendidas e assimiladas por boa parte dos educadores e
por significativa parcela da coletividade” (apud GUSMÃO, 2013, p. 305), uma delas,
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 49 •
prir essa função social, é preciso conectar as práticas socioculturais e materiais dos
alunos ao processo de ensino-aprendizagem.
deve ser construído no próprio ato do ensino” (CHARLOT, 2005, p. 119). Não se
trata de primeiro construir a relação com o saber e depois ensinar. Continua Charlot
(2005, p. 120):
Se pregamos que [...] escola democrática é aquela onde todos os jovens de-
vem poder ter acesso a saberes e a sentidos, será preciso que trabalhemos essa
questão da relação com o saber. [...] Devemos levar a sério a ambição demo-
crática da escola e a ideia de que ela é, acima de tudo, feita para permitir que
os jovens adquiram saberes e competências cognitivas e intelectuais que eles
não poderão adquirir em outro lugar e que ela é feita, também, para desen-
volver sentido em suas vidas, mas de uma forma que só pode acontecer den-
tro dela. Isto, porém, para todos, e se dizemos todos, significa dizer que se de-
verá tratar a questão do saber.
mogêneo, mas a um currículo aberto que contempla diferentes culturas num mesmo
contexto de trabalho pedagógico. Também não leva a aceitar o currículo de resulta-
dos, com suas listas de competências, imposto e intocável, pior ainda, com as meto-
dologias e procedimentos didáticos pré-estabelecidos, como é o caso da BNCC brasi-
leira. Trata-se, tal como propõe Sacristán (1998), de um currículo comum composto
de conteúdos tidos como necessários para a construção da cidadania, oferecido como
orientação geral, aberto à pluralidade não excludente e suscetível de interpretações
dos agentes escolares em função de cada contexto. Por outro lado, alerta o mesmo
autor, a flexibilidade e a liberdade de interpretação e aplicação têm seus limites, pois
certos relativismos, epistemológico, cultural ou pedagógico, podem desfazer critérios
científicos e o caráter de coesão social do currículo comum. Segundo Sacristán (1998,
p. 277, tradução nossa):
[...] o ensino de qualquer componente do currículo não pode escapar a acor-
dos científicos existentes numa área de conhecimento e a regras éticas às quais
deve submeter-se todo trabalho intelectual [...] Existem, sim, diferentes for-
mas de contar a história, mas isso não quer dizer que todos os relatos tenham
a mesma validez.
Ao modo de conclusão
O texto foi iniciado com uma breve menção à trajetória da construção da escola de-
mocrática no Brasil, passou pelos embates entre concepções de finalidades educativas
da educação escolar, finalizando com conjecturas em torno de um entendimento de
escola socialmente justa. Em continuidade às lutas históricas pela escola pública entre
os anos 1930-1990 e frente ao embate atual em torno de finalidades educativas escolares,
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 63 •
Referências
Pedro Dallari
É
praticamente consensual a avaliação de que o mundo contemporâneo é po-
liticamente fragmentado, não existindo um país ou mesmo uma organização
internacional que, isoladamente, dê direção efetiva aos assuntos internacio-
nais. Essa avaliação costuma ser automaticamente transferida para o campo do di-
reito, atribuindo-se ao direito alto grau de fragmentação, seja pela existência de mais
de duas centenas de sistemas jurídicos nacionais, seja pela falta de coordenação e efe-
tividade do direito internacional público, que congrega as normas internacionais.
Mas, se é verdade que a cena política internacional se encontra fragmentada, essa
correlação automática com o campo do direito não se justifica. Isto porque o direito
vai apresentando, no plano global, desde meados do século XX, clara tendência à
integração e mesmo à uniformização, em função de diversos mecanismos de compati-
bilização dos diferentes sistemas jurídicos nacionais e internacionais. Essa orientação
resulta do reconhecimento generalizado da centralidade do ser humano e de seus di-
reitos fundamentais – os direitos humanos – na estruturação da ordem jurídica do
mundo contemporâneo, que reflete, no campo do direito, o impacto do advento do
Antropoceno, a nova era geológica a que a humanidade está adentrando e cuja iden-
tificação pela ciência advém justamente da constatação dos efeitos transformadores
da atividade humana na estrutura física da esfera terrestre. Mais do que impulsio-
nar algumas especialidades – como o direito ambiental, por exemplo –, a lógica do
Antropoceno, independentemente da fragmentação política, é consentânea com a
conformação de uma única ordem jurídica extensiva a toda comunidade humana, na
qual os diferentes sistemas vão se integrando, com um forte viés de uniformização1 .
Orientada pela gramática comum dos direitos humanos, essa tendência integra-
dora da ordem jurídica do mundo contemporâneo contempla a educação como tema
essencial, consagrando o direito à educação como um dos alicerces da civilização. As-
sim, desde os primórdios da edificação do sistema global de proteção dos direitos hu-
manos – com destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948
1 A abordagem dos elementos conceituais específicos da teoria do direito internacional público e do di-
reito internacional dos direitos humanos efetuada no início deste artigo constou originalmente em ar-
tigo da lavra deste autor – “The integration of the law in a politically fragmented world” – publicado
em inglês na obra coletiva Brasil nas ondas do mundo, de 2017, edição conjunta da Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra (Portugal) e da editora da Universidade Federal de Campina Grande (Brasil) e
que se encontra referida ao final, assim como as demais publicações referidas ao longo deste artigo.
70 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
ção de uma comunidade internacional de Estados. Por fim, com a superação do con-
sentimento do Estado como elemento fundamentador da normatividade do direito
internacional público, delineia-se o direito da comunidade humana, que, por sua vez,
se lastreia, em última instância, nos atributos comuns a todos os indivíduos, cuja di-
mensão jurídica se expressa na perspectiva universalmente conferida aos direitos fun-
damentais do ser humano. Com essa perspectiva de direito da comunidade humana,
resgata-se para o direito internacional público o sentido literal da expressão jus gen-
tium, ou direito das gentes, que, herdada do direito romano, lhe havia sido atribuída
no processo doutrinário de sua estruturação como campo do conhecimento jurídico.
Essa perspectiva integradora do direito em uma ordem jurídica que, sob a orien-
tação do direito internacional público, ganha contorno universal tem fundamento
evidente nos direitos humanos. Como já se observou aqui, no plano de uma ordem
jurídica que se vai universalizando por força de movimentos de integração e unifor-
mização, o ser humano é a unidade sistêmica básica, e sua condição jurídica é dada
justamente pela titularidade de direitos que lhe são inerentes, os direitos humanos,
também chamados direitos fundamentais4 .
Na esteira da evolução quantitativa e qualitativa do acervo normativo do direito
internacional público verificada ao alongo do século XX, com a incorporação de te-
mas socialmente relevantes, os direitos humanos, já objeto de tratamento sistemático
no âmbito dos direitos nacionais desde pelo menos o século XVIII, também passa-
ram a ser objeto dessa normatividade internacional. Assim é que o direito internacio-
nal dos direitos humanos assume a condição de especialidade do direito internacional
público – ao lado de outras especialidades, como o direito internacional econômico e
o direito internacional ambiental, por exemplo –, mas ganha igualmente a condição
de fundamento do próprio direito internacional público e da ordem jurídica global.
A disciplina internacional dos direitos humanos, que tem na Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Na-
ções Unidas (ONU) em 1948, seu marco essencial, teve rápida e substancial expansão
a partir daí, conformando-se com base em quadro robusto de tratados e de entes in-
ternacionais de monitoramento e controle das ações dos Estados nesse campo, inclu-
4 Na doutrina dos direitos humanos, não há consenso quanto à terminologia empregada e muitos au-
tores conferem distinção ao que seriam os direitos fundamentais, valendo-se, para isso, de diferentes
argumentos e critérios. Sem adentrar nesse debate, registre-se que, neste artigo, as expressões direitos
humanos e direitos fundamentais são empregadas com o mesmo sentido.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 75 •
ção jurídica já consolidada no direito de muitos Estados, lastreada nas tradições libe-
ral e do bem estar social. Ao longo de 30 artigos, esse documento primordial de 1948
enumera e sintetiza o acervo de direitos fundamentais do ser humano. Dois artigos
são dedicados à educação, à cultura e à ciência, os de números 26 e 27, registrando
princípios cuja atualidade é indiscutível:
Artigo 26
1. Todo ser humano tem direito à educação. A educação deve ser gratuita,
pelo menos a correspondente ao ensino elementar e fundamental. O ensino
elementar ser obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser assegu-
rado de forma generalizada; o ensino superior deve ser acessível a todos em
condições de igualdade e com base no mérito.
2. A educação deve visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana
e o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades funda-
mentais. Ela deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre to-
das as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvi-
mento das atividades da Organização das Nações Unidas para a manutenção
da paz.
3. Os pais têm, prioritariamente, o direito de escolher o tipo de educação que
deve ser dada a seus filhos.
Artigo 27
1.Todo ser humano tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural
da comunidade, de fruir as artes e de compartilhar o progresso científico e
seus benefícios.
2.Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
relacionados a toda produção científica, literária ou artística de sua autoria.
pela Assembleia Geral aos Estados com natureza jurídica de tratado, sendo voltados
ao estabelecimento de normas obrigatórias, de modo a dar consistência ao nascente
sistema global de proteção aos direitos humanos. Dependeram, portanto, da ratifica-
ção ou adesão dos Estados para que passassem a ter efetividade nos respectivos terri-
tórios. Atualmente, são reconhecidos pela quase totalidades dos países, incluído o
Brasil, cuja adesão se deu em 1992, após o final da ditadura militar e a promulgação
da Constituição de 1988, documento que se caracteriza, entre outros aspectos, justa-
mente pela relevância atribuída à proteção e à promoção dos direitos humanos9 .
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos está voltado ao tratamento
de forma mais minuciosa dos chamados direitos humanos de primeira geração, afir-
mados nas revoluções liberais do século XVIII e enunciados na parte inicial da Decla-
ração de 1948. Já o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
tem por objeto o detalhamento dos denominados direitos humanos de segunda gera-
ção, consagrados nas revoluções sociais do início do século XX e que estão presentes
na parte final da Declaração. Mesmo não sendo desconhecido de nenhum desses pro-
cessos históricos e não estando ausente do rol de direitos fundamentais neles almejado,
o tema da educação – e, mais precisamente, do direito à educação – foi objeto de en-
foque mais concentrado no corpo do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais10 . Os artigos 13, 14 e 15 versam sobre o direito à educação, à cultura
e à ciência, detalhando e aprofundando as diretrizes inscritas na Declaração de 1948:
Artigo 13
1.Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à
educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvi-
mento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer
o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam
ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetiva-
mente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a ami-
zade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos
e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
2.Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de
assegurar o pleno exercício desse direito:
a) A educação primaria deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a to-
dos;
9 Os dois tratados foram promulgados no Brasil em 6 de julho de 1992. O Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, por meio do Decreto nº 591/1992. E o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, através do Decreto nº 592/1992.
10 No Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o tema da educação, mesmo quando explici-
tado, o é no âmbito de abordagem de algum outro tema. É o caso do artigo 18, dedicado ao direito
à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, cujo item 4 faz menção à educação religiosa
e moral: “Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e,
quando for o caso, dos tutores legais, de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja
de acordo com suas próprias convicções.”.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 79 •
Artigo 14
Todo Estado Parte do presente pacto que, no momento em que se tornar
Parte, ainda não tenha garantido em seu próprio território ou territórios sob
sua jurisdição a obrigatoriedade e a gratuidade da educação primária, se com-
promete a elaborar e a adotar, dentro de um prazo de dois anos, um plano
de ação detalhado destinado à implementação progressiva, dentro de um nú-
mero razoável de anos estabelecidos no próprio plano, do princípio da edu-
cação primária obrigatória e gratuita para todos.
Artigo 15
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito
de:
a) Participar da vida cultural;
b) Desfrutar o processo científico e suas aplicações;
c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de
toda a produção cientifica, literária ou artística de que seja autor.
2. As Medidas que os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar com
a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas ne-
cessárias à convenção, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura.
3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liber-
dade indispensável à pesquisa cientifica e à atividade criadora.
4.Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que deri-
vam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações interna-
cionais no domínio da ciência e da cultura.
80 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
a)o ensino de primeiro grau deve ser obrigatório e acessível a todos gratuita-
mente;
b) o ensino de segundo grau, em suas diferentes formas, inclusive o ensino
técnico e profissional, deve ser generalizado e acessível a todos, pelos meios
que forem apropriados e, especialmente, pelo estabelecimento progressivo
do ensino gratuito.
c) o ensino superior deve tornar-se igualmente acessível a todos, de acordo
com a capacidade de cada um, pelos meios que forem apropriados e, especi-
almente, pelo estabelecimento progressivo do ensino gratuito;
d) deve-se promover ou intensificar, na medida do possível, o ensino básico
para as pessoas que não tiverem recebido ou terminado o ciclo completo de
instrução do primeiro grau;
e) deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciados para os defi-
cientes, a fim de proporcionar instrução especial e formação a pessoas com
impedimentos físicos ou deficiência mental.
4. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão di-
reito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos,
desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima. 5. Nenhuma
das disposições do Protocolo poderá ser interpretada como restrição da liber-
dade das pessoas e entidades de estabelecer e dirigir instituições de ensino, de
acordo com a legislação dos Estados-Partes.
dos: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotados pela ONU em 1966, e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), de 1969. Como já se salien-
tou, a Declaração não tem natureza de tratado, não sendo, por tanto, formalmente
vinculante para o Estado brasileiro, e os três pactos, embora anteriores à Constitui-
ção, não tinham ainda sido objeto da adesão do Brasil, o que veio a ocorrer apenas
em 1992. Mesmo assim, influenciaram enormemente o processo constituinte, dando
origem a disposições do texto constitucional e impactando de maneira consistente a
legislação infraconstitucional que se seguiu à promulgação da Constituição. Inde-
pendentemente de crises e oscilações políticas circunstanciais, esse arcabouço jurí-
dico vem se consolidando ao longo do tempo, promovendo uma paulatina melhoria
na situação dos direitos humanos, ainda muito aquém, todavia, das necessidades de
uma sociedade marcada por um quadro de profunda desigualdade.
Referências
Edmilson Menezes
O
escopo do texto é apresentar alguns aspectos do nexo entre educação e di-
mensão pública na modernidade, tomando como referência certas nuances
do modelo educacional alemão e a obra de Immanuel Kant. O que se quer
demonstrar: as reflexões kantianas sobre aquela relação alcançam uma sintonia im-
portante com o sistema crítico do filósofo, mas respondem, também, a certas dispu-
tas intelectuais e pedagógicas do período; elas estão envoltas num debate importante
acerca do estatuto da educação e seu vínculo de patrocínio (público ou privado). Em
suas meditações sobre a educação, Kant revela uma investida espiritual rica, que se
encontra associada a um conjunto de conceitos (público, privado, publicidade, cida-
dania etc.) cuja recomposição nos permite conhecer melhor sua filosofia da educação
e, por meio dela, discernir seus propósitos pedagógicos.
de alguma função, na medida em que elas tenham relação com essa dignidade e com
esse emprego; diz-se da oposição à vida privada, à vida particular e doméstica. Ele pro-
cura, nas delícias da vida privada, uma compensação pelas preocupações da vida pú-
blica. Sua vida pública é irrepreensível, o mesmo não acontece com sua vida privada.
(DICTIONNAIRE DE L’ACADEMIE FRANÇAISE, 1835, p. 528).
Gostaria de acercar-me de dois aspectos entre os elencados acima, a saber, a
noção de público significando algo comum, para o uso de todos; e a sua forma adjetiva,
público como o que pertence a um povo inteiro, diz respeito a todo um povo. Esse recorte
permite-me remeter a um problema que envolve de modo expressivo boa parte da
modernidade: a meditação acerca da dimensão pública. Atestada desde o fim da
primeira metade do século XVIII, a teoria da dimensão pública reenvia-nos a uma
esfera na qual a pergunta pela legitimidade e normatividade de tal estatura se impõe.
O adjetivo “público” é cada vez mais utilizado para designar a generalização de um
sentimento ou de uma reação que podia muito bem ser considerada anteriormente
como própria a um indivíduo. A voz pública, o julgamento público, a vergonha
pública são expressões que encontramos com frequência na literatura, nos jornais,
nos documentos e nas manifestações intelectuais. De acordo com Arendt, o termo
público denota dois fenômenos correlatos, mas não perfeitamente idênticos.
Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto ou
ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência –
aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a re-
alidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é
visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do
coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma es-
pécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transfor-
madas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a se
tornarem adequadas à aparição pública. (ARENDT, 1989, p. 59-60).
A certeza da presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos
afiança a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida
privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento
da modernidade (ARENDT, 1989, p. 60), sempre ativa e enriquece grandemente
toda a escala de sentimentos subjetiva e anseios privados, esta ativação de contínuo
ocorre às custas da garantia da realidade do mundo e dos homens.
Em segundo lugar, o termo público significa o próprio mundo, na medida
em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele.
Este mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limi-
tado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes,
tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com
os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo ho-
mem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas
interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se inter-
põe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o
88 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
os seus pais e preceptores, pois o círculo vicioso da ignorância só pode ser vencido na
sua própria fonte.” (CHARLES, 2010, p. 72) Uma colocação da época é relevante
quanto a esse aspecto:
[...] a maioria dos pais se examina tão pouco, e por isso têm tão boa opinião de
si mesmos, que se convencem de que não poderia faltar mérito a seus filhos,
já que estes se parecem com eles e recebem a mesma educação. Para piorar as
coisas, as pessoas cujo exemplo é mais eficaz e cujas luzes e virtudes podem
ter a maior influência sobre a felicidade do gênero humano são geralmente
aquelas que dispensam mais este dever. É doloroso, parece-lhes estar acima de
suas forças, é suficiente permitir que não pensem sobre isso. [...] Pouco falta
para que abandonemos a educação e, consequentemente, a razão, o gênio,
o humor, as máximas e os hábitos daqueles a quem o gênero humano está
ligado. O favor, a disputa e, muitas vezes, uma infinidade de circunstâncias,
sobre as quais não devemos prestar a mínima atenção, é que são decisivos.
(CROUSAZ, 1722, p. I-II).
Duas posições se oferecem, então, para enfrentar tal descuido: ou uma reforma
superficial, a dos preceptores privados, que é a via escolhida por muitos – como
Rousseau e Voltaire, que não pensam uma educação expandida: “Não instruais o
filho do camponês, pois não lhe convém ser instruído” (ROUSSEAU, 1994, p. 490),
diz o primeiro; “É conveniente que o povo seja guiado e não instruído: ele não é digno
de sê-lo” (VOLTAIRE, 1831, p. 123), propõe o segundo – ou uma reforma profunda,
e que passa pela mudança da dogmática dos Colégios. A partir daí, um debate, cujas
origens são longínquas, instala-se e suscita um interesse cada vez mais crescente:
aquele que opõe educação particular e educação pública. Talvez possamos estabelecer
um marco para a pujança dessa discussão: seria por volta de 1700, como atesta um
opúsculo publicado anonimamente, cujo título resume a perspectiva do debate:
Dissertation sur l’utilité des collèges, ou les avantages de l’éducation publique comparée
avec l’éducation particulière. O prefácio, de forma inesperada, acaba por nos situar:
[...] o que deu ocasião a este pequeno livro foi o argumento defendido na casa
de M. le Chancelier Boucherat pelo seu sobrinho M. Barillon de Morangis
em 18 de julho de 1693, onde, por acaso, me encontrava. Tratava-se de várias
belas questões e, dentre elas, esta: qual é a melhor educação, a pública – que
se ministra nos colégios – ou a particular – que se passa nas casas de família.
(DISSERTATION SUR L’UTILITÉ DES COLLÈGES, 1972, p. 117).
Dita-se um longo tema a uma criança, ela leva duas ou três horas para pô-
lo em latim, eis o mestre à boa vida. O aluno não se queixa da demora da
tarefa, principalmente quando se tem o cuidado de não lhe admoestar pelos
erros que fez, visto que ele compõe com todo o vagar duas linhas, repousa,
faz mais duas ou três, e logo se põe a brincar; volta depois a seu tema, come
alguns frutos, vai conversar com um empregado, volta, brinca, bate-se com
um camarada e chega finalmente, com todos estes intervalos, à última palavra.
Quando, por um acaso, acerta nalgumas das linhas, chama-se o pai para ver a
maravilha, os pontos nos quais cometeu extravagâncias são motivos de riso,
o número de correções serve para provar a atenção do preceptor, e quando
todo o tema está corrigido, o pai encara-o como sendo o fruto da mão que
o escreveu; e vendo assim passar o filho pelo que ele próprio passou, sente-se
renascer e rejuvenescer naquela querida imagem. (CROUSAZ, 1718, p. 101-
102).
Em geral, o preceptorado3 parece ser um dos elementos que nos permitem en-
tender a diversidade de atitudes e as mudanças que ocorrem entre os séculos XVII e
XVIII e deslocam a educação para um campo insustentável. A evolução dos senti-
mentos de linhagem e família ajudam a mudar de papel uma das características origi-
nais da orientação educacional da nobreza. O preceptor doméstico ocorre no mundo
dos intermediários culturais, entre família e espaço público, entre pais e filhos, entre
instrutores externos e domésticos, entre as pessoas do mundo e os homens de letras.
As gradações existentes entre a instrução doméstica – multifacetada na variedade de
participantes, alternando de pais e parentes a verdadeiros tutores – e as formas coleti-
vas de educação alcançarão um nível expressivo de conflitos e discussões. A educa-
ção ainda não é vista como um pleito real da sociedade, com oferta e demanda or-
ganizadas por uma instituição escolar. Isso é consistente com o que se observa, por
exemplo, no contexto religioso e cultural da Alemanha. Parte das escolas urbanas no
século XVIII se baseavam muito mais em iniciativa e oferta privadas.
Na Alemanha do século XVIII, as propostas educativas em torno dos núcleos
público e privado passam pela questão religiosa4 . A condenação à ingerência eclesial
no ensino encontra espaço nas páginas escritas pelo grande educador alemão Basedow
(1724-1790). A vigilância e o controle das escolas, defende ele, devem sair das mãos
dos eclesiásticos,
[...] que, frequentemente, não possuem o conhecimento exato das necessida-
des públicas, a erudição sólida e ignoram a medida na qual as diferentes par-
tes das ciências devem aparecer nos programas; e mesmo quando possuem
essas qualidades, consideram suas funções antes como uma questão religiosa
do que como uma questão de Estado: ora, essas devem ser, antes de tudo,
uma questão de Estado. (BASEDOW, 1889, p. 206).
3 Sobre a questão do preceptorado, consultar: ROCHE (1988); TÖPFER (2012).
4 Retomo aqui ideias já expostas em publicação anterior (MENEZES, 2014, p. 123-124, 128-130).
92 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
costumes e decidem a sorte de tantos, que, enfim, uma educação e uma ins-
trução que têm por resultado a produção da virtude pública devem ser sub-
missas, não somente a regras constantes, mas, ainda, a regras que possuem
necessidade de serem modificadas segundo o tempo, os países e as formas de
governo. Vós estais de acordo comigo quanto ao fato de que o ensinamento
público é um dos instrumentos mais úteis e mais seguros para fazer ou man-
ter a felicidade de um país conquanto permita suas singularidades, e que, por
conseguinte, a vigilância constante desse instrumento e de seu emprego per-
tence diretamente a um conselho patriótico, do qual o soberano poderá escu-
tar as representações com a mesma frequência com que escuta os conselhos
das finanças, da guerra e da justiça. (BASEDOW, 1889, p. 204).
meio de uma lenta reforma, é preciso uma imediata revolução. (KANT, 1900,
Aufsätze das Philanthropin, Band II, p. 449).
mais vivamente a influência da Igreja. Enfim, pode-se dizer que o sistema de ensino
na Alemanha do Setecentos é improfícuo, mecânico e deslocado da realidade.
Antes que seja virtuosa, a criança pode ser educada de tal modo que nela se desen-
volvam os sentimentos e as disposições que convenham à virtude, assim como a natu-
reza (ou Providência), civilizando o homem e o forçando a desenvolver suas faculda-
des, prepara a liberdade. Contudo, a civilização não pode impedir o nascimento de ví-
cios e desigualdade, “porquanto a cultura, segundo os verdadeiros princípios da edu-
cação do homem e, ao mesmo tempo, do cidadão, talvez não tenha ainda começado di-
8 “De fato, seria o ponto de vista da Providência, que se situa para além de toda a sabedoria humana
e que também se estende às livres ações do homem, que por este podem sem dúvida ser vistas, mas
não previstas com certeza [...]; porque, no último caso, ele carece da conexão segundo leis naturais,
mas, no tocante a ações livres futuras, tem de dispensar esta direção ou indicação.” (KANT, 1900,
Der Streit, Band VII, p. 83-84, grifos do autor)
9 Sobre a questão da Providência em Kant, consultar: Menezes (2001).
98 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
reito, nem muito menos acabado” (KANT, 2010, p. 26-27, grifo do autor). Educar-se,
produzir em si mesmo a cultura e a moralidade é um dever do homem e, desde que se
reflita de forma madura a respeito, vê-se o quanto é complexo. “A educação, por con-
seguinte, é o maior e mais difícil problema que se possa propor aos homens.” (KANT,
1900, Pädagogik, Band IX, p. 448). Com efeito, os conhecimentos (Einsicht) depen-
dem da educação, assim como deles depende ela. Por isso, a educação não pode pro-
gredir senão aos poucos, passo a passo, e somente pode surgir um conceito da arte de
educar10 na medida em que cada geração transmite suas experiências e conhecimentos
à geração seguinte, a qual lhe acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe
segue (KANT, 1900, Pädagogik, Band IX, p. 446). Apesar de não se configurar como
uma panaceia, na qual se deposite uma esperança ingênua e infundada, o fato é que,
apesar de suas limitações, a tarefa da educação é enorme e nevrálgica. “Vemos, dessa
maneira, claro o quanto uma verdadeira educação requer.” (KANT, 1900, Pädagogik,
Band IX, p. 450). A essência da educação é conduzir ao domínio de si mesmo, o que
permitirá ao educando realizar-se plenamente enquanto homem culto, cônscio de sua
cidadania e agindo moralmente. De acordo com as Reflexões sobre a Antropologia,
[...] os meios de aperfeiçoamento são a educação [Erziehung] (na cultura
[Cultivirung]), a legislação (na civilização [Civilisirung]) e a religião (moral).
Todas as três públicas [öffentlich], a fim de que cresçam em perfeição. Todas
as três livres, porque nada coagido tem duração. Todas as três conforme a na-
tureza e, por conseguinte, negativa. Todas as três devem visar à moralização.
(KANT, 1900, Reflexionen, Band XV, p. 896).
Kant detecta que a educação privada acaba por descuidar de um ponto essencial:
a educação moral, nesses moldes, fica sujeita a um direcionamento incerto e negligen-
ciado, pois não consegue transformar a autonomia da inteligência em autonomia da
vontade. A educação deve estender-se ao conjunto da “formação do homem, no que
concerne ao seu talento, mas, também, ao seu caráter” (KANT, 1900, Kant a Wolke
4/08/1778, Band X, p. 453). Os educandos não precisam ser incitados a buscar ape-
nas os fins que dizem respeito às idiossincrasias domésticas e aos caprichos familiares,
mas, antes, carecem do incentivo à disposição em escolher só os bons fins, a saber,
100 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
“aqueles que são aprovados necessariamente por todos e podem ser, ao mesmo tempo,
os fins de cada um”. Na educação privada a moralização é, geralmente, descuidada
(KANT, 1900, Pädagogik, Band IX, p. 450), porque ensinamos às crianças aquilo
que julgamos essencial e deixamos a moral para o preceptor ou para o pregador.
Nesta acepção, torna-se pertinente o questionamento: “até onde se deve preferir
a educação privada à educação pública, ou vice-versa?” (KANT, 1900, Pädagogik,
Band IX, p. 453). A pergunta supõe certo antagonismo entre as possíveis formas de
educar e pode muito bem ser posta em sintonia com as disputas intelectuais envoltas
num debate importante, como visto acima, acerca do estatuto da educação e seu
vínculo de patrocínio (público ou privado). Como acordar a realidade individual do
educando com a cidadania, uma vez que a eliminação de um dos dois termos leva,
infalivelmente, a um impasse? Essa conciliação de termos opostos, essa integração da
formação protegida e individual com os estudos e práticas de cunho coletivo, deve
acontecer numa zona capaz de superar quantitativa e qualitativamente aquela gênese
inicial para torná-la parte integrante de uma estrutura maior. Tais pré-requisitos se
manifestam, para Kant, numa educação pública:
De modo geral, não só em relação à habilidade11 , mas também com respeito
ao verdadeiro caráter do cidadão, a educação pública [öffentliche Erziehung]
parece ser mais vantajosa que a educação privada. Essa última não se contenta
em fazer brotar os defeitos de família, ela assegura também a sua reprodução.
(KANT, 1900, Pädagogik, Band IX, p. 453)
ganham terreno. Este aspecto ativo é reforçado pelo campo semântico do termo
Öffentlichkeit (RAULET, 1995, p. 29). Ele significa mais do que uma opinião pública
e se une à publicação de ideias, à liberdade de opinião e de escrita. Tal força livre
permite aos “espíritos maiores” exprimirem-se e desenvolver, no debate público, as
condições para que os outros evoluam nesta mesma forma de expressão. O que
está em jogo é a exigência de uma autorização pública e sem limites do pensamento
(MENEZES, 2000, p. 158). Sem isto, o interesse da razão não é atendido, como nos
lembra a Crítica da razão pura:
Em todos os casos e sem nenhuma dúvida é útil dar uma completa liberdade
à razão investigadora, assim como à razão crítica, para que ela possa, sem en-
traves, ocupar-se de seu próprio interesse, que quer que ela coloque limites às
suas especulações, mas também exige que as estenda, e sofre sempre quando
mãos estrangeiras se prontificam a desviar-lhe a marcha natural para dirigi-la
a fins impostos. (KANT, 1900, KrV, Band III, p. 772).
Considerações finais
deve conquistar a razão ao mesmo tempo em que deve ter por tarefa a consecução
da liberdade. Por isso, o ato educativo é necessário, porquanto a razão e a liberdade
não se recebem, mas se desenvolvem por meio de um árduo e longo procedimento
de ensino e aprendizagem. A necessidade na qual o homem se encontra, de ter de
aprender a ser ele mesmo (ser homem), funda entre si e os outros seres humanos
um vínculo não somente físico, mas metafísico; um liame propriamente humano
alicerçado na razão e na liberdade.
Assim, a filosofia da educação kantiana expõe a importância de um conjunto de
conceitos (desenvolvimento da razão, liberdade, direito, civilização, público, privado,
publicidade, cidadania etc.) que necessita ser trabalhado, aprendido e, ademais, não
pode sê-lo na predominância da privacidade subjetiva. A liberdade individual é o
exercício de uma vontade. Ora, a vontade, que ela se determine a favor ou contra a lei
ou mesmo de modo indiferente à lei, em nada é afetada pelo tempo: seja ela o exercício
de uma causalidade natural, movida por motivos técnicos-pragmáticos e confirme o
curso do tempo; seja ela o exercício de uma causalidade livre, e escape inteiramente
ao tempo, porque com ela fazemos parte do mundo inteligível. A liberdade pública,
por sua vez, enquanto manifestação do público, enquanto existe somente pela sua
própria manifestação e pelo seu exercício, enquanto age e experimenta, é a única
capaz de associar-se ao curso do tempo para fazer aparecer, precisamente, o público.
A passagem da vontade individual para o exercício da liberdade pública estabelece
um delicado processo pedagógico que se efetiva no tempo e está submetido a regras
universais que necessitam ser alcançadas a fim de que o indivíduo se transforme em
cidadão membro de uma comunidade ética. Os progressos da sociedade em direção
ao Esclarecimento demandam uma condição que visa mais ao futuro do que ao
presente, permitindo o aprofundamento contínuo da ação dos espíritos esclarecidos.
Por tudo isso, escolher priorizar a educação pública (öffentliche Erziehung) indica a
filosofia da educação kantiana afinada não só com o seu sistema, porque busca solução
para aquilo que o sistema também esquadrinha, a saber, como compatibilizar, no
homem, liberdade e natureza, mas, da mesma forma, com a iniciativa assumida pela
Aufklärung, aquela do exame crítico ilimitado estendido a todos os setores humanos.
A Öffentlichkeit, em sua dinâmica, demanda à filosofia os seus princípios, para refleti-
los numa prática, na qual se materializam as orientações pedagógicas norteadas pela
crítica. A disciplina, o preparo intelectual e a formação moral compõem a base de
qualquer mudança pessoal e coletiva. Nesta direção, em Kant, o aparato educativo
ostenta uma função estratégica, porque possui os requisitos teóricos e práticos para
preparar o cidadão na e pela Öffentlichkeit para o exercício da cidadania (direito ao
qual o homem não pode renunciar).
106 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Referências
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TÖPFER, Thomas. Die “Freyheit” der Kinder: territoriale Politik, Schule und Bil-
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VOLTAIRE. Voltaire a Damilaville, 19 mars 1766. In: OEUVRES complètes de
Voltaire. v. 68. Paris: Pourrat Frères, 1831.
A produção do vazio: considerações sobre a
memória das lutas pela escola pública no Brasil
H
á um texto cuja leitura me impressionou muito, a ponto de retomá-lo
várias vezes em situações de fala, de produção de artigo e de projeto de
pesquisa. Gostaria de retomá-lo mais uma vez aqui. Falo da leitura de um
prefácio, escrito em 1982 por Mona Ozouf para a reedição de um livro de sua autoria
publicado, originalmente, em 1963.
O livro trata dos embates entre republicanos e católicos que ocorreram na França
entre 1870 e 1914. O impacto que o prefácio dessa obra me causou pode ser conden-
sado nas seguintes afirmações de Ozouf:
Jamais se reescreveria um livro com a mesma tinta. Que dizer de um livro
sobre a escola escrito antes de 1968, e relido bem depois! Tem-se o sentimento
de se ter um pé de cada lado de uma grande fratura intelectual, de não mais
se reconhecer a paisagem, de se ter de pensar de maneira totalmente diferente
as relações entre a escola, a sociedade e o Estado. Nada envelheceu mais, em
20 anos, do que a história da escola [...]. (OZOUF, 1982, p. 5).
Com efeito, o leitor brasileiro do prefácio de Ozouf não partilhava com o texto,
como ainda não partilha hoje, representações da escola que permitissem ler a des-
montagem operada pelo vendaval de maio de 1968 referida a um projeto e a uma prá-
tica política e pedagógica incorporados na experiência política republicana, que vê a
escola pública como um direito de todos e um dever do Estado.
Convencida disso, no artigo de 1993 interessou-me especialmente:
[...] reunir algumas considerações em torno do modo pelo qual sucessivas
estratégias de apagamento – tanto no nível da prática dos agentes históricos,
como na de seus intérpretes – determinaram que a escola tenha sido uma
espécie de personagem ausente, apesar de sempre referido, da produção sobre
história educacional brasileira. (CARVALHO, 2003, p. 242-243).
Essa articulação que o texto de Machado e Toledo (2017) faz entre o vazio pro-
duzido na memória sobre a escola pública brasileira, a imagem sedimentada de uma
ineficácia dessa escola e a decorrente permeabilidade dela a qualquer tipo de inova-
ção é o que suscita, para mim, a releitura que faço hoje do potencial crítico do texto
de Ozouf (1982), reincorporando a leitura que ele me suscitou no texto de 1993.
Porque o “novo” é, muitas vezes, o velho travestido, como é o caso, hoje, sob o
desgoverno Bolsonaro, do avanço da proposta de ensino domiciliar. A proposta não
somente ameaça pôr por terra a construção secular da “forma escolar” de socialização
da infância e da juventude; mas também faz tábula rasa de todo o processo – falho,
incompleto, inacabado – de constituição de um sistema público de escola única laica
e gratuita no país. Aqui, como foi o caso das perversas “inovações” do governo Te-
mer, o vazio produzido na memória das políticas públicas facilita o retorno do velho
travestido de novo. Mais do que isso, esse vazio é território fértil para as incursões da
sanha destrutiva de Bolsonaro, cujo lema é destruir para governar. Em sua política
de terra arrasada, que ganhou concretude real e simbólica nas imagens recentes da
Amazônia em chamas, governar é declaração de guerra à ciência, em nome do terra-
planismo, às Humanidades, sob o pretexto do combate ao que chama de “marxismo
cultural”. Para tanto, as bandeiras da chamada Escola sem Partido são eficazes, e só o
são porque a memória das lutas pela escola pública foi esvaziada.
No caso das universidades, essa sanha destruidora é flagrante. Constituída como
lugar de balbúrdia, antro de perigosos comunistas, a universidade vem sendo estig-
matizada, punida, asfixiada por corte de verbas, de bolsas e de autonomia. E, mais
recentemente, é atingida pelo “canto de sereia” do programa Future-se, que disfarça,
como modernização, seu projeto devastador.
Recuperar a memória das lutas pela escola pública, única, leiga e gratuita é, desta
perspectiva, questão política fundamental no Brasil de hoje. É assim que finalizo
minha fala com o breve relato de um episódio ocorrido em um momento crucial
dessas lutas, episódio esse que, como tantos outros, foi esquecido.
Em fevereiro de 1934, realizou-se em Fortaleza a VI Conferência Nacional de
Educação, promovida pela ABE. A conferência foi palco de conflito acirrado entre
os defensores do ensino laico, então sediados na ABE, e católicos, então aliados a
integralistas.
118 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Referências
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O futuro dos direitos humanos: notas sobre
memórias e possibilidades da educação em
direitos humanos no Brasil
A
primeira questão a ser colocada quando se apresenta a possibilidade e o
privilégio de poder falar em público – algo tão difícil e que envolve uma
enorme responsabilidade – é a seguinte: o que é possível dizer que faça algum
sentido? Pois não se trata de falar por falar, apenas para afastar o silêncio. Com certeza,
não. Também não devemos apenas repetir o que sempre dissemos. Ou devemos?
Talvez exista uma enorme importância na repetição. Talvez exista a necessidade,
a precisão da repetição – ainda –, pois são outras plateias e outros mundos, e tam-
bém para contestar algo que se diz e que se repete interminavelmente: que o que vale
é o novo, como se o que se acumulou na história de nada valesse... Pois nesta aparen-
temente singela pergunta está posta a questão da transmissão, da possibilidade da
transmissão (troca, comunicação?) entre nós, de uma geração que já porta cabelos
brancos, e jovens que chegam ao mundo. Posta em questão como nunca na Educa-
ção. Há a possibilidade da transmissão (da experiência, da dor, da alegria, do conheci-
mento, da história) com o que isso envolve de repetição? Há disposição de escuta?
Possibilidade de escuta?
Para complicar ainda mais, a proposta do evento passou pela questão do futuro
dos direitos humanos. A tentação imediata é dizer: que futuro? Qual futuro? Há
futuro? Ou perguntar: para onde foi o futuro? (AUGÉ, 2012). Em que mundo
viveremos? (WIEVIORKA, 2006). O que fazer “depois do futuro”? (BERALDI,
2019).
E agora, José?
[...] a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José? (ANDRADE, 2020).
122 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Estes anos que se passaram provocaram uma série de leituras que tinham em seu
título essa questão do futuro: qual o futuro da democracia, do Brasil... Para onde
foi o futuro? Brasil! País do futuro do pretérito, diz Viveiros de Castro (2019)1 . Da
viagem redonda de que nos fala Faoro (1987)?2
Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres
velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento
contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade
[...] claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente,
trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula
entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, indefinição das formas e da vontade
criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado
inexaurível, pesado, sufocante. (FAORO, 1987, p. 748).
de “para onde foi o futuro”. Conseguiremos, quem sabe, pensar o futuro caso
consigamos nos apropriar do que fizemos no passado. Não precisa ser um passado
distante: um pequeno passado já ajuda. Mas há que reconhecer que existe uma
história, há histórias importantes nestes últimos 20 anos que devem ser lembradas.
Uma proposta é pensar, portanto, no movimento, no tempo histórico do debate
e das lutas pelos direitos humanos no Brasil. Pois a primeira ideia que vem quando
pedem para pensar sobre o futuro dos direitos humanos neste quadro de ausência de
futuro é a da necessidade da recuperação da memória, da produção da memória, do
trabalho com a memória das coisas vividas e ditas. Recuperar o tempo, o movimento
das coisas.
Nada mais difícil em um país que, nunca como antes, vive a experiência da
produção da desmemória. Fatos acontecidos são esquecidos imediatamente. Coisas
da semana passada parecem pertencer a um passado distante: você se lembra quando
aqui havia pleno emprego? Ninguém se lembra, pois, na época, a imprensa não deu
a devida importância, claro. E quando em São Paulo não havia crianças vivendo e
trabalhando na rua? Você se lembra?
Ao comentar com estudantes da licenciatura sobre uma série de eventos que
aconteceram no país e no mundo – os Fóruns Sociais Mundiais –, que tratavam exa-
tamente de pensar em um outro mundo possível, imaginando futuros...3 Ninguém
tinha ouvido falar neles. Nunca. Foi muito incrível poder contar um pouco da expe-
riência – e fiz isso para introduzir a obra de Bourdieu (1998), com seu livro Contrafo-
gos, no que chamamos de apresentação do contexto do texto...
Você se lembra de que faz muitas décadas que há quem lute por uma educação
em direitos humanos, pois um dos direitos humanos é o direito à educação?4
Assim, este texto trará algumas memórias sobre histórias, lutas, leis, movimentos.
Também, nos diversos trabalhos, há que marcar algumas dificuldades existentes no
país em relação aos direitos humanos e com a educação em direitos humanos que
não deveriam ser ignorados ou minimizados.
Trabalharemos, então, com a questão do desconhecimento dos direitos, em
grande parte por uma fraca vivência de direitos: qual será a sua importância?; uma
aversão à igualdade, à possibilidade de reconhecer que todos e todas são sujeitos de
direitos; uma dificuldade em reconhecer a força da lei por conta de um fatalismo e de
3O Fórum Social Mundial é um evento organizado por movimentos sociais de muitos continentes,
com o objetivo de elaborar alternativas para uma transformação social global. Seu slogan é: Um outro
mundo é possível. Disponível em: http://twixar.me/7slm. Acesso em: 19 abr. 2020.
4 Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, DHNET, Cedhep, Biblioteca Virtual de Direi-
tos Humanos e tantas outras iniciativas. Impossível não mencionar algumas pessoas: Margarida Ge-
nevois e Maria Victoria Benevides, Fábio Comparato, José Sérgio Fonseca de Carvalho, Josephina
Bacariça e tantas e tantos outros. Ver: http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/index.html.
Acesso em: 6 maio 2020.
124 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
uma ideia de que “sempre foi assim e sempre será” e que estes direitos positivados
envolvem inúmeros e multidimensionais deveres.
Artigo XXIV – Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limita-
ção razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.
Artigo XXV – 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de asse-
gurar, a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à
segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou ou-
tros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.
Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma
proteção social. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HU-
MANOS, 1948).
Parecemos estar muito longe dessa definição dos sujeitos de direitos! Livres e
iguais? Todos e todas?
Este é o primeiro grande problema de trabalhar com direitos humanos: esta com-
preensão da igualdade fundamental, enquanto sujeitos de direitos. Da universali-
dade dos direitos, independentemente da diferença que exista entre nós. Indepen-
dentemente da diferença, somos iguais em direitos.
Difícil pensar nisso no Brasil, país com uma história de horror à igualdade. Há
sempre os que são mais iguais do que os outros. Esse “mais igual”, com mais direitos,
varia, mas esse sujeito não compreende que, se ele tem o direito, o outro também tem.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 127 •
O outro existe. É difícil trabalhar com a ideia do “todos”. Para que eu possa exercer
o meu direito, o outro precisa respeitar o meu direito e eu preciso respeitar o direito
dele. Ele, o outro, existe. Não pode ser aniquilado por discordar, por exemplo, do
que eu expresso. Nem eu posso ser morto por me expressar.
A DUDH é considerada um marco inaugural na noção contemporânea de direi-
tos humanos porque com ela se estabelece, neste campo de defesa dos direitos huma-
nos, a ideia de que todos os seres humanos, realmente todos, são iguais, sem qual-
quer distinção. As ideias de igualdade e liberdade, podemos dizer, estiveram presen-
tes e pautaram as lutas de muitos grupos sociais (TRINDADE, 2002). Para ficarmos
apenas na história do Brasil, podemos citar, por exemplo, a luta e resistência das pes-
soas negras escravizadas durante os mais de 300 anos em que esse sistema operou no
país ou a luta das mulheres por iguais condições de trabalho ou para garantir o seu
direito de votar, o que só foi conquistado em 1932.
Porque nossa dificuldade em pensar a humanidade do outro enfrenta essa nebu-
losa da dignidade apenas para meus iguais. Se ela não é, não for, nosso parâmetro
de convivência humana, seguimos nessa (histórica) posição – defendida e empreen-
dida, inclusive, pelo Estado brasileiro – de que algumas vidas valem respeito e outras
(tantas outras) valem nada.
Assim, pensando a dignidade como nosso parâmetro, seria importante considerá-
la em duas dimensões: uma individual e outra coletiva.
Pela ótica individual, a dignidade humana tem como elemento central a noção
de que cada pessoa tem e deve ter autonomia e autodeterminação. Conforme pon-
tua Sarlet (2009, p. 23), essa ideia de autonomia como liberdade deve ser considerada,
de forma abstrata, “como sendo a capacidade que cada ser humano tem de autode-
terminar sua conduta”. Pensar por essa via abstrata nos permite considerar que todas
as pessoas, ainda que em situações ou momentos da vida em que a autonomia e a
livre expressão da vontade estejam comprometidas, continuem plenas em sua porção
de dignidade humana. Crianças, idosos, pessoas em sofrimento/transtorno mental.
Por outro lado, a ótica de dignidade de cada pessoa conecta-se com a ótica de uma
dignidade que é relacional e social, que opera a partir de uma perspectiva coletiva. O
reconhecimento de que cada pessoa é titular de direitos humanos por sua condição
intrínseca de dignidade não acontece se não formos capazes de reconhecer que essa é
a característica de todos, indistintamente.
É na convivência humana, no exercício da pluralidade, na intersubjetividade das
relações que somos capazes de reconhecer a dignidade. A dignidade de cada um só
existe porque somos capazes de reconhecer no outro a dignidade que existe em nós.
Esse exercício é pautado na construção de laços de solidariedade e respeito que só po-
dem ser pensados e elaborados quando percebemos que a vida humana pressupõe o
conviver, a necessidade humana de vivermos coletivamente. É no viver coletivo, no
128 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Artigo VII - Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distin-
ção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qual-
quer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incita-
mento a tal discriminação. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREI-
TOS HUMANOS, 1948).
Estes são alguns dos artigos que apresentam maiores dificuldades de realização
no Brasil. Em pesquisa de 2010 coordenada por Gustavo Venturi (BRASIL, 2010)
isso aparece claramente: entre os direitos civis, para 92% dos brasileiros o mais desres-
peitado é o direito à proteção igual diante da lei.
Isso também apareceu com clareza em pesquisa, de cunho qualitativo, sobre o
que seria uma escola justa, que nos permitiu visualizar um quadro das injustiças que
ocorrem no ambiente escolar (SCHILLING, 2013). Dois pesos e duas medidas é algo
considerado profundamente injusto. Causa indignação constante, dor. Dois pesos e
duas medidas é a forma popular de falar exatamente da violação do direito de termos
igual tratamento perante a lei, igual proteção. Cabe lembrar um ditado popular
incorporado profundamente na mentalidade nacional, de autoria controversa: “aos
amigos, tudo; aos indiferentes, nada. Aos inimigos: a lei!”.
Pensar que os direitos humanos, para serem efetivados, precisam ser vistos nessa
teia de relações nos coloca o desafio de pensar que a dignidade, para ser plena, precisa
ter como suporte três elementos: a igualdade, a equidade e a justiça.
Sobre a igualdade, nosso desafio é pensar e construir estratégias de garantia de
direitos humanos que vejam as pessoas como iguais não apenas formalmente, ou seja,
iguais perante a lei, mas que considerem que, para terem sua dignidade respeitada, as
pessoas precisam ter seus direitos políticos, econômicos e sociais, culturais e ambien-
tais garantidos. É a ideia da indivisibilidade dos direitos.
O acesso aos direitos deve ser igual para todos e todas não apenas na lei. A
garantia de igualdade na lei é o primeiro passo para a construção de uma igualdade
que seja vivida no dia a dia. E viver essa igualdade é, antes de tudo, compreender
que as diferenças não se podem tornar desigualdades. As diferenças são a riqueza de
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 129 •
nossa condição humana, mas quando se tornam desigualdades, situações injustas são
geradas; daí a necessidade de se pensar a equidade.
Como construir, então, justiça? Como pensar critérios para viver o cotidiano de
nossas relações sem transformar diferenças em desigualdades? Obviamente, muitas
vezes a realidade social nos desafia a pensarmos que mudanças não são possíveis, mas
elas são, e o respeito aos direitos humanos não se dá apenas nas relações entre o Estado
e os cidadãos. O respeito aos direitos humanos se constrói no dia a dia das relações
humanas, na escola, no bairro, na família, nas ruas, nas relações diárias, nas relações
com o Estado e suas instituições.
Pensar o que é justo nas relações aponta alguns critérios. A realidade nos coloca
situações diárias nas quais temos de elaborar critérios de julgamento para resolver
conflitos, administrar problemas, aplicar justiça e tentar ser justos e justas. Aliás, essa
sempre é a parte mais difícil: quantas vezes não somos desafiados a tomar as rédeas
de determinadas situações nas quais nosso maior medo é cometer alguma injustiça?
Para ser justo é preciso ponderar valores, ouvir os lados, considerar aquilo que não
está tão evidente, pensar as consequências de nossas ações e decisões na vida do outro.
Construir esse pensar crítico, atento e cuidadoso.
Como uma provocação, citamos um texto literário clássico que nos traz o seguinte
diálogo, ainda tão atual: “– Bem sei, mas e a lei? – Ora, a lei... O que é a lei, se o Sr.
Major quiser...? O Major sorriu com cândida modéstia” (ALMEIDA, [1975], p. 128)7 .
Alguma coisa mudou?
Neste campo difuso e complexo, constantemente criticadas por “descoladas” da
realidade ou pensadas como corretoras de uma realidade, as leis se alçariam ao estatuto
de utopias, permanentemente violadas e destinadas ao fracasso: “as Constituições
feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em
proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômeno corrente em toda a história da
América Latina” (HOLANDA, 1987, p. 135). Figuradas como principal fonte de
padronização das relações de convivência (BOBBIO, 1986, p. 131) com seus valores de
liberdade, igualdade e segurança, não admitindo privilégios nem discriminação, as
leis se veem ignoradas ou violadas a favor de grupos ou indivíduos.
Assim, é importante percebermos que a luta por direitos e a sua conquista por
meio de documentos escritos está permeada dessas relações sociais.
Ao pensarmos na Declaração Universal dos Direitos Humanos como marco para
a compreensão dos direitos no desenrolar dos últimos 70 anos, dialogamos com os
movimentos sociais, tanto internacionais quanto nacionais, que foram evidenciando
as demandas específicas de proteção: as mulheres, as crianças, os negros, as pessoas
com deficiência, a proteção ao meio ambiente, a proteção das populações indígenas e
povos originários. Enfim, o rol de especificação dos sujeitos de direitos é amplo e está
sempre aberto, à medida que compreendemos a construção das identidades em cada
contexto social. A participação dos movimentos sociais, em suas mais diversas pautas,
foi constituindo no âmbito do Sistema ONU e Interamericano (para ficarmos no
território de nosso continente), uma extensa rede de tratados de proteção dos direitos
humanos.
Citamos alguns exemplos: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(1966), Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966),
Convenção sore a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968),
Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(1984), Convenção sobre a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desuma-
nas e Degradantes (1984), Convenção Sobre os Direitos da Criança (1989), Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994),
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006).
Internamente, não podemos deixar de compreender a nossa Constituição federal
de 1988 como um documento que bebe da fonte dos movimentos de garantias de
7 “Já naquele tempo (e dizem que é defeito do nosso) o empenho, o compadresco, era a mola real de
todo o movimento social.” (ALMEIDA, [1975], p. 126) A história foi publicada originalmente em
1854.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 131 •
A justiça é o urgente e essa busca pode levar-nos a caminhar com certa esperança
em direção a algum futuro comum. Esse viver-juntos, esse entre todos proposto que
vislumbra o outro em sua igualdade e diferença com os direitos e deveres implicados
é construído cotidianamente. O que podemos fazer? Insistir. Saber que é um campo
de luta que se materializa em políticas públicas. É um lugar de resistência ao fascismo,
de resistência ao elogio da ignorância e à aniquilação do pensamento crítico. É um
lugar difícil, mas fica aqui o convite a exercitar utopias concretas que possam fundar
um pensamento sobre um futuro que nos contemple.
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A criança e a desigualdade da sorte de nascer e
viver em tempos e locais diferentes
Introdução
A
criança é uma criança mas cada uma é um ser singular que depende muito
das circunstâncias que lhe determinam a sorte. E se esta se invoca é porque
é de difícil ou impossível controlo. Todavia, como todo o ser, entendido
no seu particular ou enquanto coletivo, está sujeito à sorte, podemos considerá-la
numa simples compreensão. Sim, falaremos sem pretensiosismo da sorte da criança
considerando diversos tempos e diversos lugares. Mas, como a História da Infância
conta já com largas dezenas de anos e muito já foi dito sobre a temática, devemos co-
meçar por esclarecer que não pretendemos “inventar a roda”. Mais do que pretender
fazer novas abordagens, estamos interessados em apontar para a conveniência de re-
visitarmos um tema que tem motivado muita opinião e bastantes textos, mas nem
sempre tem conseguido libertar-se do pecado do anacronismo. Se a criança não está
fora de um tempo, a abordagem histórica sobre a mesma também não é indiferente
às circunstâncias em que se faz.
Com a publicação da obra de Ariès (1973), L’enfant et la vie familiale sous l’ancien
regime e sobretudo a partir da sua tradução para inglês, houve uma adesão ao tema
central do livro e quase não temos conseguido escapar da tese do historiador francês.
Pouco tem importado que ela tenha sido construída a partir de uma leitura superficial
e ingénua das fontes e que numerosos investigadores tenham desmontado alguns
argumentos de Ariès (POLLOCCK, 1985; POLAKOW, 1992; FERREIRA, 2000;
BOTO, 2002; WOODS, 2003; WARDE, 2007). Entre os equívocos que emergiram
da controvérsia estão a que se coloca entre a ideia de representação da criança e a
de sentimento de infância e a interpretação de formas de cuidar dos mais pequenos
como se estes dependessem somente da vontade das pessoas e pudessem ser facilmente
criticáveis em função de leituras próprias da conceção de infância do século XX. As
pessoas vivem um tempo e um lugar que os encerram numa cultura de entendimento
do mundo dependente de condições materiais muito prescritivas.
Contudo, vamos contornar a controvérsia e, simplesmente, tentar apresentar um
conjunto de informações sobre aspetos que implicam com as condições de vida das
crianças. Propositadamente, apresentamos dados sobre três aspetos muito diferentes
136 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
entre si, mas que podem esclarecer muito sobre as condições de vida das crianças: a
mortalidade, a ideia de fases de evolução, os castigos corporais.
A sorte da sobrevivência
1000 nados vivos no seio da média e alta burguesia e de 358 por mil entre as classes
trabalhadoras (LINDEMANN, 2002).
De facto, a desigualdade das crianças é bem expressa na mortalidade infantil. É
bem certo que a doença e a morte não excluem raça, sexo, idade ou fortuna. Mas não é
menos certo que as doenças atacam os mais frágeis, os que menos têm possibilidade de
se prevenir e defender. Na sociedade do Antigo Regime, as crianças eram as grandes
vítimas, obviamente devido à geral ignorância e à impotência da medicina, mas muito
também por demasiado frequentemente serem fruto de atos não pensados. Algumas
praticamente não tinham possibilidade de sobreviver, pois tão depressa os que as
punham no mundo, queriam-nas longe dos seus olhos.
A morte era a fatídica sorte de grande número de expostos. As taxas de mortali-
dade conhecidas dizem-nos mesmo que a maioria não sobrevivia aos anos da criação
e mais significativamente que uma elevada percentagem dessa mortalidade incidia so-
bre crianças com menos de um mês de idade. Embora os números variassem de cidade
para cidade, na sua globalidade, eles apresentam-se-nos dramaticamente elevados.
Em Reims, por exemplo, entre 1779-1784, morriam 38% de expostos e em Rouen,
faleciam 69,8%, no período compreendido pelos anos 1783-1789 (CHAMOUX, 1973;
BARDET, 1973). Em Espanha, olhando para as grandes cidades, evidenciavam-se
como também bastante elevadas as percentagens dos expostos que morriam antes
de completar o primeiro mês: em Madrid, durante a segunda metade de Seiscentos,
52,7%; em Sevilha, 47%, no ano de 1690. Estes valores, aliás, quase se repetiam no
final do século seguinte, sendo 49% em 1790 e 46% em 1800 (FERREIRA, 2000).
Em Portugal a situação não era melhor. Por vezes era até bem mais trágica.
Das 2219 crianças recolhidas na roda da Misericórdia de Setúbal, cidade próxima
de Lisboa, entre 1679 e 1718, só cerca de 1,7% conseguiriam sobreviver para além
dos sete anos, sendo que das 2181 falecidas, 87% morreriam logo no primeiro mês
de exposição (ABREU, L., 1990). Em Montemor-o-Novo, somente 13,6% das 811
crianças que tinham entrado no Hospital Real de Santo André, entre 1790 e 1814,
completariam a criação os sete anos de idade (VARELLA, 1817). Na Figueira da Foz
do início de Oitocentos, parece que estes infelizes morriam menos mas, mesmo assim,
a mortalidade não andaria muito longe dos 50% pois, entre 1801 e 1835, a totalidade dos
“Falecidos”, “Provavelmente falecidos” e “Destino ignorado” soma 51,6% (CASCÃO,
1985).
Em Lisboa, a morte atingia também grande parte das crianças que entravam na
Real Casa dos Expostos (Relação dos gastos. . . desde 1689 até 1767). Entretanto, os
anos passavam-se e, à medida que se progredia no tempo, cada vez mais se agravava a
situação. Em 1787 morriam 32,4% dos expostos que haviam dado entrada mas, em
1797, a mortalidade havia atingido os 50,3% (FERREIRA, 2000).
138 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
A sorte da sobrevivência não é apenas uma situação própria desses séculos dis-
tantes. Muitos países ocidentais apresentaram, ao longo do século XX, taxas de mor-
talidade infantil correspondentes às de sociedades de Antigo Regime. Alguns dos
países pertencentes à América Latina ilustram bem quanto o fenómeno da mortali-
dade infantil permaneceu alto ainda na segunda metade do século XX (Quadro 2).
da mortalidade nestes países, esta é ainda muito elevada no final da segunda década
deste milénio. Entre 1990 e 2018, Moçambique registou uma taxa média anual de
redução da mortalidade em crianças com menos de 5 anos de 4,3 por cento. Se, em
1990, a mortalidade até aos cinco anos ultrapassava largamente as duas centenas de
crianças em cada mil, em 2018, o valor já estava em 42. Em Angola, segundo dados
da Unicef, a taxa de mortalidade diminuiu de muito mais de duas centenas em 1990
para 81, em 2018 (UNICEF, 2018).
A malária continua a ser a principal causa de morte entre estas crianças, seguida
pela diarreia em resultado da falta generalizada de água potável e do débil sistema de
saúde, entre outras doenças como as respiratórias agudas, tuberculose, sarampo e
tétano. Os números apresentados são meramente exemplificativos, mas ajudam a
compreender que não é suficiente um pensamento generoso abstrato sobre a infância
para que a vida sorria a todas as crianças. Antes de tudo, é preciso ter sorte onde se
nasce. É preciso ter sorte na região e no país em que se vem ao mundo, é preciso ter
sorte no momento e no tempo em que se é dado à luz, é preciso ter sorte na família
em que se nasce ou é recebido.
A sorte das crianças, contudo, não está desligada das condições económicas, soci-
ais, políticas, culturais que afetam a população. E estas dependem muito do modo
com as elites se posicionam relativamente ao desenvolvimento dos seus próprios paí-
ses. Tão importante como a existência do conhecimento científico e técnico é a disse-
minação deste entre a população. A inexistência de políticas alinhadas com estraté-
gias de desenvolvimento humano sustentável e com o investimento na capacitação
das pessoas, sem, pelo menos, alguma preocupação com a coesão social e com o bem-
estar generalizado, tenderá a favorecer situações de pobreza e assimetrias sociais que
muito prejudicarão o modo como as crianças são tratadas. Na verdade, as crianças e
o seu desenvolvimento não podem deixar de ser vítimas da precaridade das condições
materiais das famílias e da fraca disseminação da ciência e da educação.
Desenvolvimento e educação
com uma idade igual ou até superior, mas tinha também estudantes mais novos,
alguns dos quais tinham começado o estudo com nove, dez ou onze anos. Portanto,
é bem evidente a existência de jovens com idades muito diferentes no mesmo nível
de aprendizagem, o que muito se ficava a dever ao facto de terem iniciado os estudos
com mais ou menos anos, situação que os filhos da nobreza do século XVIII também
conheceram, verificável, por exemplo, na frequência do Colégio Real dos Nobres
(FERREIRA, 2000).
É óbvio que se estava longe duma correspondência entre a idade cronológica e
um saber escolar, que se construiria ao longo da época contemporânea e que ajudará
a fixar os contornos da infância e da adolescência como hoje os concebemos. Até
ao final do Antigo Regime, não existia qualquer tipo de pressão legal ou social
generalizada que obrigasse uma criança a iniciar a sua instrução elementar numa
determinada idade pelo que o começo dependia de circunstâncias familiares que
tanto podiam favorecer uma aprendizagem precoce como podiam retardar o acesso
aos primeiros rudimentos da educação literária.
O século XIX, assiste, no entanto, a grandes transformações ideológicas, sociais
e científicas. O desenvolvimento da ciência, a emergência de novas realidades eco-
nómicas, a visibilidade dos problemas sociais provocados pela industrialização, a ne-
cessidade de aumentar a qualidade sanitária da população fizeram com que diver-
sas personalidades com preocupações educacionais e higiénicas olhassem a diversos
aspetos que condicionavam o desenvolvimento da criança, alargando claramente o
campo da sua observação e intervenção que se estende tanto às crianças menos favo-
recidas quanto a novos espaços frequentados pelos mais pequenos. Mas o que vai ter
mais implicações para a compreensão do desenvolvimento da infância, é o fenómeno
da escolarização. Na segunda metade do século XIX, a escola surgia como a insti-
tuição que generalizaria o progresso e a cidadania, condições essenciais a uma qual-
quer nação que se pretendesse desenvolvida e soberana. Diante da inevitabilidade
da escolarização, alguns intelectuais e sobretudo médicos inseridos no movimento
higienista, muito em sintonia com o alinhamento intelectual positivista, vão preten-
der delinear uma abordagem pedagógica que se pretende fundada na fisiologia e na
busca da medida adequada ao desenvolvimento da criança. Deste modo, vai emer-
gir uma tendência para se instituir um saber pedagógico articulado com a tecnologia
médica e isso contribuirá muito para o investimento no estudo científico da criança.
Acresce, por outro lado, que a nova sensibilidade filantrópica, aliada às preocupações
educacionais resultantes das dinâmicas sociais, culturais e políticas do século XIX,
propicia o surgimento de um movimento pedagógico que procura fomentar institui-
ções para crianças que ainda não estão em idade de frequentar a escola primária, mas
onde se devia promover uma educação que tivesse um claro propósito de atender
ao desenvolvimento sensorial, intelectual e social dos que as frequentassem. Deste
146 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Esta é uma expressão usada em Portugal há séculos. Significa que a disciplina deve
ser trabalhada desde a tenra infância. Isto traduz, de algum modo, uma persistência
disciplinar ao longo de sucessivos séculos. É claro que, mesmo nas sociedades da Alta
Modernidade, sempre houve pais com as posturas mais variadas acerca da educação
dos filhos. Todavia, como bem sintetizou Colin Heywood (2004), o maior desafio
para os pais mais puritanos, fossem eles católicos ou protestantes, era o de transmitir
valores morais e religiosos, nem que para isso tivessem que recorrer a formas violentas.
Os pedagogos e os moralistas aparecem, de facto, a criticar, muitas vezes, a subserviên-
cia dos pais, das amas e aias para com as exigências e os erros das crianças. Não querem
que os educadores deixem de exercer a sua autoridade. No entanto, os seus discursos
revelam-nos diferentes sensibilidades no modo como se deviam encarar os comporta-
mentos desviantes dos mais pequenos. Uma corrente mais alinhada com o espírito
tridentino ou o rigorismo protestante acentuava a autoridade do pater familias e en-
tendia que os filhos eram, em primeiro lugar, filhos de Deus, e, por isso, acima de
tudo, criados para O servir segundo a Sua vontade. Além de gerar, a família servia
para criar, conservar e educar, dentro dos limites que a religião impunha. O respeito,
a obediência, a contenção, a austeridade eram valores morais a preservar e transmitir
quase sempre por métodos mais ou menos severos. Não há dúvida de que os pais mais
disciplinadores e muito preocupados com a postura moral e religiosa da família te-
miam que a sua ternura e condescendência viessem a fazer perigar as almas dos filhos
(FERREIRA, 2000). A ansiedade que esta postura provocava nos pais puritanos, o
desregramento emocional de muitos adultos e a lógica da imposição do poder discri-
cionário tão usual nestes séculos de Antigo Regime determinavam, em grande parte,
o emprego do castigo físico como um recurso educativo banal. Tudo indica que ba-
ter, chicotear, repreender violentamente as crianças era um costume muito comum.
Contudo, sobretudo no século XVIII, uma outra vertente pedagógica, influenci-
ada pelos pensamentos racionalistas e por conceções próximas de Fénelon e Locke
(FERREIRA, 1988), embora continuando a acentuar a função disciplinadora da fa-
mília, mas mais preocupada com a racionalidade das suas conceções, ia penetrando
com as suas novas ideias em alguns sectores sociais mais abertos à inovação, propondo
uma postura muito menos favorável à utilização do castigo físico.
Este discurso foi disseminando-se ao longo do tempo. Já no último quarto de
Setecentos, um empenhado educador português, tendo em vista dirigir-se a um
público amplo, explicava aos pais com alguma minúcia como eles deviam agir perante
as faltas dos filhos. Nas suas palavras, era preciso que nunca se empregasse “o rigor
sem se terem primeiro aplicado todos os meios, ou remédios suaves para conseguir o
bom ensino de hum filho” (SOUSA, 1784, p. 200). Uma advertência regulada pela
148 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
as atitudes para com ela ao longo da História. Contudo, a condição biológica que dá
primeiro sentido à existência da criança só é relevante para nós se a soubermos interli-
gar com os modos como esta foi interpretada e apropriada em função de sobrevivên-
cias nem sempre fáceis de conjugar. Na verdade, é a condição biológica que tem pos-
sibilitado a gestão da criança pelo adulto; mas é igualmente claro que esse adulto é
apenas um intérprete de uma realidade marcada por uma cultura e pelo modo como
esta se relaciona com a natureza que a condiciona. Nesse sentido, a História da Cri-
ança deve procurar fazer articulações entre tempos e espaços diferentes e procurar
perscrutar sentidos para as diferenças de atuação dos atores envolvidos. Deve, sobre-
tudo, procurar as razões das práticas em função do esforço de adequação a contextos
bem definidos, considerando os fatores determinantes e condicionantes de maior
influência na conformação da(s) sua(s) cultura(s).
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Em defesa da universidade, dos cientistas e das
ciências humanas
Introdução
T
em sido desanimador acompanhar os retrocessos que nos têm exigido defen-
der os valores éticos e os alicerces mínimos do Estado de direito, da justiça
e dos direitos humanos. Temos presenciado, jamais em silêncio ou resigna-
dos, as manifestações e medidas do governo federal brasileiro contra a escola pública,
a universidade, os educadores, a ciência e a pesquisa. Em sua retórica, as diatribes
que tem promovido cotidianamente, principalmente por meio da estulta e desele-
gante verborragia do ministro da Educação, teriam sustentação e legitimidade numa
espécie de consenso popular generalizado. A representação totalizante expressa no
termo “povo” – que no imaginário fascista supõe uniformidade massiva de opinião
e comportamento – é, entretanto, uma fantasmagoria interessada: em verdade, de-
signa uma parcela da sociedade que, manifesta ou veladamente, compartilha valores
e opiniões do grupo político que domina a comunicação social do governo. De onde
emergem e como se formam, porém, as ideias-força que se tornam convenientes para
que certos grupos políticos possam pautar, com alguma legitimidade, enunciados
que proclamam os pretensos interesses, as necessidades e vontades de entidades gené-
ricas como “o país”, “a pátria” e “o povo”?
Tendo como pano de fundo essa pergunta, que, no entanto, não tenho condições
de responder, pretendo discorrer sobre um fragmento discursivo que integra de modo
significativo o mosaico de enunciados a sombrear as opiniões a respeito da utilidade
das ciências e da serventia da universidade para a sociedade brasileira. Trata-se da ideia
legislativa posta em discussão, ainda sob o ilegítimo governo Temer, por um cidadão
1 No original: “Toutes choses sont dites déjà; mais comme personne n’écoute, il faut toujours recom-
mencer”.
156 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
de São Paulo no sítio eletrônico do Senado Federal, nomeada “Extinção dos cursos de
Humanas nas universidades públicas”. Segundo a praxe do Senado, qualquer ideia
levada a debate em seu ambiente virtual pode vir a se tornar uma “sugestão legislativa”
a ser debatida pelos senadores, desde que receba pelo menos 20 mil apoios. Felizmente,
não foi o caso dessa proposta, graças, talvez, às milhares de manifestações contrárias de
outros cidadãos. Embora não tenha emanado do governo atual, sua mensagem revela
boa parte do que veio a se tornar o núcleo reacionário de sua comunicação social e das
políticas que tem assumido no que concerne à ciência e tecnologia e à universidade.
Os argumentos da proposta do referido cidadão são lógica e empiricamente frágeis,
mas pretendo mostrar que as ideias que expressa encontram paralelo em discursos
proferidos por enunciadores de maior poder e visibilidade na esfera pública, com os
quais perfaz um circuito de fomento e formação de opinião, principalmente junto a
coletivos sociais de potencial proximidade ideológica. Empenhar-se na análise dessa
pequena peça ainda se justifica, não só porque sua redação manifesta, em poucas e
mal traçadas linhas, lugares-comuns que fundamentam discursos avessos às ciências,
especialmente às humanas, e ao papel social e cultural das universidades públicas,
mas porque seu substrato efetivamente compõe um repertório de diretrizes e ações
governamentais que têm afrontado a manutenção e extensão qualificada dos serviços
educativos e da pesquisa e divulgação científica em nossa sociedade.
Qual a razão a sustentar a proposição dessa ideia legislativa? Quais as crenças que
fundam os argumentos? São elas pertinentes? Com que outros discursos se comple-
menta ou para quais converge? Para responder a estas questões, optei por me apoiar
em artigos de imprensa, especializada ou não em assuntos da ciência, uma vez que
seu impacto sobre a formulação e propagação do senso comum é mais significativo
do que a literatura acadêmica, da qual, em regra, valemo-nos para contradizê-lo. Evi-
tando escorar meus argumentos em um contexto linguístico afeto à nossa própria co-
munidade, cogitei simular o repertório de informações disponíveis ao indigitado ci-
dadão quando da elaboração de sua proposta, que, houvesse sido por ele considerado,
poderia revirar pelo avesso os argumentos contrários à universidade pública e, parti-
cularmente, às ciências humanas. Além disso, a fim de confrontar algumas teses sub-
jacentes, nas quais o “povo” é representado como desinteressado ou mesmo avesso à
ciência, à universidade e ao financiamento público de pesquisa, ensino e extensão,
recorri a notícias sobre pesquisas de opinião confiáveis que revelam, de modo mais
realista, o que o “povo” pensa sobre a ciência, os cientistas e a universidade pública.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 157 •
A proposta ao Senado
Desse pequeno trecho, destaco quatro ideias fundamentais, que analisarei a se-
guir:
Comecemos pela última ideia (4), que, não obstante estar a serviço do argumento
de inutilidade das ciências humanas, afirma que o país precisa de cientistas. De
imediato, resulta da contradição entre as ideias 1 e 4 que os que militam nas ciências
humanas não são cientistas, portanto, que as ciências humanas não são ciência.
Segundo esse raciocínio, as ciências humanas não formam aqueles homens e mulheres
cujo saber aplicado seria realmente necessário, pois, em sua opinião, a ciência que
deveria ser custeada pelo Estado é aquela que poderia apoiar a Medicina, pois “o país”
precisaria de médicos (ideia 3). Está presente no arranjo dessas ideias, que excluem os
pesquisadores em ciências humanas e subordinam o cientista à função subsidiária
aos médicos, uma das mais antigas e recorrentes visões de senso comum a respeito
do cientista, suas áreas de atuação e a utilidade de seu saber: a que representa uma
figura isolada nos bastidores de algum serviço essencial, como a medicina curativa,
ocupado em “inventar” insumos que possam ser aplicados com proveito.
2 A proposta não está mais disponível no sítio eletrônico do Senado.
158 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Percepção como esta parece ser dominante nos resultados de uma enquete reali-
zada em 2015 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação sobre a percepção so-
cial da ciência e da tecnologia entre os brasileiros. Entretanto, contrariando uma su-
posta indiferença da população por esses assuntos, a pesquisa mostrou que 61% dos
entrevistados e entrevistadas declararam-se interessados ou muito interessados por ci-
ência e tecnologia, e que a maioria valoriza seus benefícios e suas motivações, confia
na informação dada por cientistas e considera importante investir em pesquisa (CAS-
TELFRANCHI, 2018). O interesse, porém, vem acompanhado de significativa igno-
rância sobre o assunto, uma vez que a pesquisa revela que 87% da população ouvida
não soube informar o nome de nenhuma instituição científica no país e 94% disse não
conhecer o nome de sequer um cientista brasileiro (MORAES; CAIRES; FONTES,
2017). Ainda que não se possa esperar que uma população majoritariamente infor-
mada pela televisão e pelas redes sociais possa reter o nome de algum cientista em meio
ao ruidoso bombardeio de celebridades instantâneas, chama-nos demasiada atenção
o amplo desconhecimento da população sobre a mera existência de instituições de en-
sino e pesquisa. Sem que se saiba quem são e em que lugares trabalham, é compreensí-
vel que os cientistas se tornem no imaginário coletivo abstrações isoladas e desvincula-
das das instituições. Essa lacuna de percepção oblitera tanto o caráter coletivo de pro-
dução da ciência como o reconhecimento de que uma das funções mais distintivas e re-
levantes das universidades e dos institutos de pesquisa consiste justamente em produ-
zir e partilhar com a sociedade inclusiva o conhecimento científico e suas aplicações.
Quanto à universidade pública, que responde por mais de 90% da produção
de pesquisa científica no país, uma pesquisa de opinião foi publicada em 2018 pela
Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior
(Andifes), com mais de 2 mil entrevistas, em amostra aleatória, por todo o Brasil. A
pesquisa mostrou que cerca de 90% dos entrevistados – que em sua maioria (92%) não
tinham vínculo com universidades públicas – concordaram com as afirmações de que
elas servem à formação de bons profissionais e professores, assim como aos interesses
do desenvolvimento científico e social do país; de que as universidades públicas
têm grande importância para a formação de cidadãos mais conscientes e críticos,
tanto quanto de profissionais qualificados; e de que elas deveriam ampliar o número
de vagas, a fim de possibilitar maior acesso (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR,
2018).
Quanto ao financiamento público da educação superior, contrariando a supo-
sição que parece fundamentar a proposta ao Senado que até aqui temos analisado,
apenas 7% dos entrevistados concordaram totalmente com a opinião de que as uni-
versidades públicas custam muito ao Estado, sem que tenham contrapartida positiva
à sociedade (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUI-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 159 •
ÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR, 2018). Dos quase 30% ouvidos que
disseram acompanhar a realidade orçamentária das universidades públicas, mais de
82,3% acreditavam que cortes impostos pelo governo Temer teriam como resultado
a precarização dos serviços; 71,61% afirmaram que com eles se reduziria o tamanho
da educação pública, ampliando por conseguinte os ganhos do ensino privado (AS-
SOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDE-
RAIS DE ENSINO SUPERIOR, 2018). As respostas apuradas pela pesquisa da An-
difes apontam que o “povo”, ainda que majoritariamente não tenha vínculo com
a universidade pública ou manifeste conhecimento sobre sua realidade orçamentá-
ria, reconhece sua utilidade, deseja sua ampliação e defende sua sustentação pelo Es-
tado. Sugestivamente, ao serem questionados sobre quem seria contrário, favorável
ou indiferente com relação à universidade pública, os entrevistados e entrevistadas
responderam que a população lhe é fortemente favorável (68%) e minoritariamente
contrária (8%), mas que o governo federal lhe é indiferente (43%) ou contrário (36%)
(ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FE-
DERAIS DE ENSINO SUPERIOR, 2018). Apurando o que a população pensa
sobre a ciência e a universidade, conclui-se, portanto, que o desapreço e a obsessão
em lhes retirar os insumos necessários para que cumpram sua contrapartida social
concerne menos ao “povo” do que ao próprio governo.
A ideia número 2, de que o dinheiro e o espaço público não deveriam ser usados
para custear e abrigar cursos de ciências humanas, certamente acompanha a tendên-
cia de julgarmos as ciências por sua utilidade ou aplicabilidade imediata. Deriva desse
pensamento que as ciências com potencial de “resolver” problemas que afetam ou
preocupam a todos, tais como os que orbitam as áreas da saúde, da comunicação, do
consumo, da viação etc. são majoritariamente vistas com positividade e confiança, em
detrimento das que aparentemente não ostentam produtos ou fórmulas de resolução
dos medos e dos problemas cotidianos (MARQUES, 2016). Talvez seja por isso que
medidas governamentais para pesquisas e formação em ciência básica e em ciências
humanas procurem fundar-se, especialmente em épocas de propalada crise econô-
mica, em argumentos de austeridade para justificar a retração em áreas que não se no-
tabilizem por produzir resultados palpáveis ou imediatos ao desenvolvimento econô-
mico e tecnológico, principalmente em áreas como a segurança e a saúde. Nessa ló-
gica discursiva, o investimento direcionado para as ciências humanas ou básicas, que
são tidas como luxo especulativo, torna-se um gasto de que o Estado pode abrir mão.
Em 2016, o então governador de São Paulo revelou desprezo pelas ciências sem
imediata aplicabilidade técnica ao afirmar, em reunião de secretariado, que a Fun-
dação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) “Gasta [...] dinheiro
com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade. Apoiar
a pesquisa para a elaboração da vacina contra a dengue, eles não apoiam [...]” (AR-
160 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
BEX; LOPES, 2016). Segundo essa lógica, projetos como o Genoma jamais teriam
sido financiados, em razão da aparente inutilidade do mapeamento genético, antes
que fosse reconhecida sua importância para o diagnóstico e prevenção de doenças.
Alckmin completou sua fala demonstrando padecer do mesmo preconceito contra as
ciências humanas que afeta o propositor da ideia legislativa: “E a Fapesp quer apoiar
projetos de sociologia ou projetos acadêmicos sem nenhuma relevância” (ARBEX;
LOPES, 2016). Ao acusar os sociólogos de sugarem o erário público com projetos
inúteis, o ex-governador demonstrou, porém, estar menos informado do que o ci-
dadão que redigiu a proposta, para quem as ciências humanas são as de mais baixo
custo: com efeito, segundo a Fapesp, apenas 10% de seus recursos sustentam todos os
projetos de ciências humanas que financia, enquanto 30% dos recursos aplicados em
2015 fomentaram pesquisas na área de Saúde (ARBEX; LOPES, 2016).
A visão pragmática da ciência, submissa ao que os políticos definem como sendo
do interesse do Estado ou da categoria abstrata “povo”, não tem, infelizmente, um só
partido. Em vez disso, é muito disseminada na classe política, que de costume jacta-
se de ser mais “prática” e “realista” do que os intelectuais. Tome-se como exemplo
o programa Ciência sem Fronteiras, que, criado em 2011, pretendia estimular o
avanço da ciência nacional mediante financiamento de bolsas para que estudantes de
ensino superior completassem sua formação no exterior. No discurso de lançamento,
dirigido exclusivamente às áreas de ciências exatas e biológicas, a presidenta Dilma
Rousseff afirmou: “precisamos dos engenheiros para fazer projetos, infraestrutura
e pesquisa”, sem atentar que o sucesso do programa não requeria a exclusão das
humanidades (GRINBERG, 2013). Neste aspecto, o cidadão que propõe a extinção
dos cursos de Humanas no ensino superior público encontraria respaldo na visão
do poder Executivo em torno de, pelo menos, duas ideias: a de que precisamos de
engenheiros e a de que as Humanidades não são importantes para o desenvolvimento
nacional. Se confrontarmos o nome do programa com a exclusão explícita das ciências
humanas no edital de 2012, resta constatar que elas sequer são consideradas como
ciências. Brincando um pouco mais, poderíamos dizer que a única fronteira da
ciência é a que recusa o passaporte das ciências humanas.
O crivo da utilidade – ainda mais quando orientado pelo “interesse nacional” –
tende a vincular a ciência estrita e diretamente a seus desejáveis efeitos econômicos,
associados ora ao aumento de riqueza, ora à eficácia da prestação de serviços públicos,
ora, ainda, à competitividade, também no campo bélico. Essa estrita vinculação está
na base da compreensão simplificada que tornou dicotômicas a ciência pura e a ciên-
cia aplicada. Na comunidade científica internacional, entretanto, outro critério de
validação tem sido mais aceito. Trata-se das várias naturezas de impactos gerados pela
produção do conhecimento, que incluem o impacto cultural, pelo qual se transfor-
mam habilidades e atitudes mediante a compreensão dos fenômenos naturais e soci-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 161 •
tenham aulas de Sociologia ministradas por professores que, diplomados por suas
próprias custas e sem o apoio do Estado, cooperam com seu esforço para formar os
magistrados, juristas e advogados que seriam tão úteis à nação.
Há, ainda, subjacente à proposta, algo mais perverso na condenação das ciências
humanas por sua inutilidade. Como sua lógica pretende ser a do Estado (ou seja,
o propositor advoga os interesses nacionais e defende o erário público contra o
desperdício), nada ou ninguém que a contrarie poderia ser por ele fomentado, de
modo que adiante possa contrariar seus interesses, identificados, como pretendem
os regimes autoritários, com o interesse geral. Ora, além de inúteis, uma vez que em
benefício do progresso da nação não curam, não prescrevem liberdades nem erigem
viadutos e avenidas, os profissionais das ciências humanas são considerados perigosos
à ideologia de um Estado que elege como prioritária a formação de médicos, juristas
e engenheiros, em detrimento da formação de cidadãos mais ilustrados e socialmente
solidários.
O filósofo, o artista, o historiador, o sociólogo, o geógrafo dedicam suas vidas
de estudo e difusão de conhecimentos justamente a recusar os determinismos, a
naturalidade das desigualdades sociais, a duvidar das razões de Estado e dos dogmas
da fé. Como mestres em suas artes e como professores, pretendem que suas plateias,
seus leitores, suas turmas escolares, sua equipe de pesquisadores coloquem o ser
humano, as sociedades, seu trabalho, seus vínculos, suas opiniões e saberes no centro
de uma visada crítica e problemática. É por isso que não cessam de correr pelos
legislativos estaduais, juntamente com propostas que, como essa, disfarçam-se de
zelo para com o “dinheiro público”, a “família” e a “pátria”, projetos deletérios como
a “Escola sem Partido”, que, na impossibilidade de prescindir inteiramente a escola
de professores, os amordaçam, pretendendo esvaziar ou anular sua perturbadora
vocação de fazer pensar, alegando que agem para impedir a doutrinação das crianças
e jovens ao que chamam de “esquerdismo”. Do mesmo modo, cabe calar os cientistas
sociais, que, contrariamente às crenças e preconceitos de mentores e interventores de
políticas públicas autoritárias e discricionárias, insistem em apontar fatores estruturais
e complexos a serem reconhecidos e enfrentados pelo Estado e pela sociedade para a
solução de problemas que não se extinguem com preces, caridade cristã, câmeras de
segurança, prisão perpétua ou banhos de sangue.
No ilegítimo governo Temer, o general do Exército brasileiro Sérgio Etchegoyen
defendeu e levou a cabo um plano integrado de segurança como solução para o
quadro crítico de criminalidade do Rio de Janeiro. Durante um seminário sobre
segurança pública, em agosto de 2018, o oficial atribuiu o fracasso da cidade no setor
à carga ideológica de acadêmicos que pesquisam o tema. Disse ele, assenhorado do
que, efetivamente, constitui a “realidade”:
164 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Considerações finais
Referências
Introdução
A
s expressões utilizadas como epígrafe para este texto são títulos de alguns
exemplares de publicações brasileiras dos últimos meses. Há uma crescente
movimentação editorial em torno da combinação entre inovação educativa,
tecnologias digitais e metodologias ativas. Tal combinação toma como foco a pro-
moção das aprendizagens dos estudantes por meio de estratégias de personalização
e se vale de uma pulverização discursiva acerca do futuro da escola (e da escola do
futuro). Com maior ou menor intensidade, pode-se constatar que as reflexões sobre
a escolarização no século XXI são pautadas pelo desenvolvimento de determinados
“dispositivos de estetização pedagógica” (SILVA, 2018), conforme nomeei em outros
estudos e levarei adiante neste momento.
Antes disso, preciso destacar que a possibilidade de ocupar este espaço no evento
alusivo aos 50 anos da Faculdade de Educação e aos 60 anos da Escola de Aplicação
da Universidade de São Paulo (USP) deixa-me muito honrado e, ao mesmo tempo,
configura-se como um grande desafio. Além de me colocar em diálogo com um pú-
blico tão seleto – afinal, muitas de minhas referências acadêmicas estão aqui presen-
tes –, trata-se de um evento comemorativo do aniversário de um dos principais cen-
tros de pesquisa em Educação de nosso país. Agradeço à comissão organizadora por
este generoso convite e espero, na medida de minhas possibilidades, corresponder às
expectativas que um seminário deste porte exige.
A mesa redonda para a qual fui convidado intitula-se “Escola republicana versus
escola de mercado: o modelo neoliberal de educação”. Esta temática convida-nos
a estabelecer uma crítica política da escola contemporânea, descrevendo os limites
dos modelos neoliberal e neoconservador hoje predominantes, e a esboçar alguns
170 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Não restam dúvidas de que, em termos curriculares, esta questão não se configura
como uma novidade2 . Autores como Popkewitz (2001, p. 38) já sinalizavam como,
no currículo, os sujeitos eram “diferencialmente construídos como indivíduos para
se autorregularem, autodisciplinarem e refletirem sobre si mesmos como membros
de uma comunidade/sociedade”. Todavia, com a consolidação do neoliberalismo,
novas questões passam a ocupar centralidade na agenda analítica deste tempo. Sobre
esta questão, Laval e Dardot (2017) descrevem a crise enquanto um modo de vida,
ao mesmo tempo em que Brown (2016) diagnostica o declínio da (e o constante
1 O declínio da escola republicana, de acordo com Dubet (2019), vislumbra-se no sentimento de crise
institucional hoje experienciado. Ora critica-se a incapacidade da escola de responder aos desafios
de seu tempo, ora delineiam-se posturas nostálgicas sobre a instituição. Como explica o sociólogo
francês, “a nostalgia não é mais que a outra face do sentimento de crise que provém dos indivíduos
cujo mundo desaba a seus pés” (DUBET, 2019, p. 86, tradução nossa).
2 A transição de uma sociedade instrucional para uma sociedade de aprendizagem tem sido ampla-
mente descrita na contemporaneidade. Biesta (2016) provoca-nos a pensar sobre um possível desapa-
recimento do ensino e das tarefas públicas da docência. Nos termos de uma linguagem da aprendiza-
gem, delineiam-se relações pedagógicas cada vez mais individualizantes.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 171 •
boas práticas de gestão. Em sua apreciação crítica, a ser ampliada nesta seção, os so-
ciólogos espanhóis argumentam que “a apelação pragmática à inovação converte-se,
literalmente, em um exercício reiterativo, rotineiro e ritualizado, de forma que, tanto
no nível simbólico quanto no real, o valor de inovar acaba se convertendo em uma
obrigação” (ALONSO; RODRÍGUEZ, 2018, p. 55, tradução nossa).
Em termos econômicos, a transição do fordismo ao pós-fordismo tem sido mobi-
lizada para descrever mudanças sociais e econômicas na atualidade (VERCELLONE,
2009). Os deslocamentos de um regime produtivo baseado na repetição para outro
baseado na comunicação, associado à emergência de novas tecnologias, contribuirão
para a necessidade de processos mais rápidos e flexíveis, reivindicando novas caracterís-
ticas para os indivíduos, para as organizações e para os modelos de planejamento e ava-
liação das atividades econômicas. Destacam Alonso e Rodríguez (2018, p. 56, tradu-
ção nossa) que “a progressiva consolidação do regime de produção pós-fordista supõe
a consolidação de um novo campo semântico, que inclui novas qualidades para novos
trabalhadores: ser inovador, criativo, empreendedor, visionário etc.”. Em tais condi-
ções, fabrica-se a necessidade de vencer o discurso burocrático e, como sinalizam os
autores citados anteriormente, a própria noção de “organização” entra em declínio4 .
Economistas clássicos, como Schumpeter, são revisitados neste momento, em
especial pela sua ênfase nas mudanças e nos desequilíbrios econômicos engendrados
pelo papel do empreendedor na busca por inovações (DROUIN, 2008). De acordo
com esse economista, em texto da primeira metade do século XX, o empreendedor
não seria o detentor de capital, mas aquele capaz de impulsionar ações por meio da
vontade de vencer e da alegria de criar formas econômicas novas. O desenvolvimento
econômico, em sua clássica teorização, “é uma mudança espontânea e descontínua
nos canais do fluxo, perturbação do equilíbrio, que altera e desloca para sempre o
estado de equilíbrio previamente existente” (SCHUMPETER, 1997, p. 75).
As alterações permanentes nos fluxos econômicos seriam conduzidas prioritaria-
mente por meio de processos endógenos, isto é, pela ação dos produtores na criação
de novas necessidades aos consumidores. Nas palavras de Schumpeter (1997, p. 76),
“é o produtor, via de regra, que inicia a mudança econômica, e os consumidores são
educados por ele, se necessário; são, por assim dizer, ensinados a querer coisas no-
vas, ou coisas que diferem em um aspecto ou outro daquelas que tinham o hábito de
usar”. A inovação deriva da produção de novas combinações induzidas pelos empre-
endedores, e o comportamento destes é a “força motriz” da mudança econômica, na
perspectiva schumpeteriana. Sua liderança é derivada da disposição em mudar e da
liberdade para criar.
4 Por caminhos teóricos diferentes, autores como Castells (2000) e Martín-Barbero (2001) produziram
leituras sobre as mudanças sociais derivadas do advento da nomeada “sociedade do conhecimento”,
na qual a internet se apresentava como instrumento privilegiado.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 173 •
ção para inovar deixa de ser um atributo do empresário, como delineava Schumpeter,
e passa a constituir-se como um atributo de todos os indivíduos.
Portanto, a maior participação da escola na sociedade poderá ser uma mu-
dança tão radical quanto qualquer mudança em métodos de ensino e de
aprendizado, em matérias, ou no processo de ensino e de aprendizado. A es-
cola continuará ensinando aos jovens. Mas com a transformação do aprendi-
zado em atividade vitalícia, ao invés de algo que se deixa de fazer quando se
fica “adulto”, as escolas precisarão se reorganizar. Elas terão que se transfor-
mar em sistemas abertos. (DRUCKER, 1993, p. 159).
No início dos anos 2000, a inovação estará associada à emergência da “nova eco-
nomia”, por meio da gestão do conhecimento, da busca de novas formas de rentabili-
dade e da capacidade de criar e empreender em novos negócios. Alonso e Rodríguez
(2018, p. 60, tradução nossa) observam que, nesse contexto, desaparecerão da litera-
tura todos os referentes institucionais, sendo a inovação convertida em um processo
central na empresa e operando como uma “espécie de nome que se aplica absoluta-
mente a tudo e para afirmar qualquer coisa que tenha que ver, quando menos, com
uma espécie de pensamento positivo e arriscado”. A emergência de uma nova classe
criativa consolidará a inovação como um estilo de vida, uma forma de mentalidade
inovadora e um design (estético) para a aprendizagem permanente. Lipovetsky e Ser-
roy (2015) identificarão, nesse cenário, o advento de um capitalismo artista. No que
tange aos currículos escolares, quais modelos têm apresentado centralidade nos deba-
tes educacionais hodiernos? Que eixos estruturam a inovação e por quais caminhos
as escolas integram este processo?
meira argumentação, o autor procura diagnosticar pelo menos duas visões mais ge-
rais sobre a inovação: a busca pelos resultados e as mudanças na gramática escolar6 .
Acerca da primeira, diz que “a inovação ligada aos resultados está essencialmente no
uso de pedagogias que promovem a personalização da aprendizagem, numa pretensa
mudança paradigmática, do ensino para a aprendizagem” (PACHECO, 2019b, p.
143). Por outro lado, salienta uma percepção predominante, neste caso, vinculada à
mudança institucional na busca por justiça social.
Deste modo, a sustentabilidade da escola através da inovação tem de reformu-
lar constantemente esta última interrogação, na medida em que, pelas possí-
veis respostas, se torna pertinente discutir a pessoa que se pretende para o fu-
turo e que, com todo o conhecimento abordado na escola ou fora dela, seja
possível trabalhar de forma autônoma, em grupo e num contexto de justiça
social. (PACHECO, 2019b, p. 144).
Tal como explicitado por Illouz (2007, p. 20, tradução nossa), o capitalismo emo-
cional sugere que “as relações interpessoais se encontram no epicentro das relações
econômicas”. Emerge um conjunto de novos repertórios culturais que engendram
formas específicas de inovação e se movimentam nas margens da escola contempo-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 179 •
nal, a inovação educativa somente faz sentido se conseguir sedimentar formas demo-
cráticas na escolarização e apostar na constituição de uma renovação dos propósitos
educacionais para a escola contemporânea. Ao longo deste texto procuramos, enfim,
apresentar alguns elementos para a composição de uma teorização curricular crítica
que nos permita ultrapassar os dilemas entre as inovações permanentes e nossa inca-
pacidade para enfrentar as crescentes desigualdades.
Referências
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SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
182 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Introdução
A
lguém já disse que é possível reconhecer o patamar de desenvolvimento de
uma sociedade pelo modo como o Estado trata os grupos mais vulneráveis.
Obviamente, aqui não há nenhum paralelo com progresso tecnológico,
urbanístico ou fabril. Uma sociedade pode até não dispor de riqueza no sentido
material, e mesmo assim ser capaz de acolher e proporcionar condições de vida dignas
às pessoas mais fragilizadas.
No meu entender, esse deveria ser o eixo condutor das políticas públicas, em
especial, das políticas curriculares. Afinal, se em vez de competitividade, exclusão,
meritocracia e individualismo, as novas gerações aprendessem a incluir, valorizar, re-
conhecer o outro e combater a desigualdade, aumentaria a probabilidade de cons-
truirmos uma sociedade mais justa, aqui entendida como aquela que legitima todas
as formas de viver, preservados os direitos, a dignidade, a democracia e as condições
para a realização de projetos individuais e coletivos.
Desde a última década do século passado, salpicam denúncias do quanto os
currículos escolares atuam na homogeneização dos sujeitos. A disseminação de
determinados discursos e, principalmente, a adoção de certas práticas pedagógicas
parecem negar o caráter multicultural da sociedade e do público estudantil em prol
de uma maneira particular de conceber as coisas do mundo.
É o que se depreende da agenda educacional em curso no Brasil, materializada
na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e na Base Nacional Comum da
Formação de Professores (BNCFP), documentos que estabelecem políticas públicas
para o setor, definindo, respectivamente, o que todos os cidadãos e cidadãs devem
aprender e o que todos os professores e professoras devem saber e saber ensinar.
Sem meias palavras, as normativas atuais revigoram o tecnicismo educacional
ao caracterizarem a docência como uma profissão acrítica e executora de programas
definidos de maneira centralizada, sem qualquer espaço para reflexão e análise do
próprio fazer. Basta verificar que a BNCFP reduz a formação docente ao domínio
dos conteúdos estipulados pela BNCC e das técnicas e métodos para que sejam
adequadamente absorvidos pelos estudantes.
184 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
A diferença cultural
dados nas aulas emergem à medida que se desenvolve a tematização. Tematizar não é
ensinar. Tematizar consiste em organizar e desenvolver várias situações didáticas de
maneira a propiciar uma compreensão mais ampla, profunda e qualificada da ocor-
rência de determinada prática social.
Imaginemos que uma professora tenha definido um dos seguintes temas para ser
trabalhado pedagogicamente: o exercício profissional, as festas populares, os meios
de transporte, as formas de comunicação, as relações comerciais, o plantio e a colheita,
a manufatura industrial, as brincadeiras de antigamente, a pesquisa científica, a
escrita, a elaboração de obras de arte ou as ações que degradam o meio ambiente.
Essa decisão decorreu de um mapeamento do repertório cultural dos estudantes
entrecruzado com os objetivos expressos no projeto político-pedagógico da escola.
Dando início à tematização, a docente poderá reunir e apresentar depoimentos dos
estudantes, organizar a assistência a um ou mais vídeos, ler uma reportagem ou
entrevista, promover uma visita a algum espaço etc. Essas situações didáticas podem
também acontecer sucessivamente, cada qual planejada de modo a proporcionar
aos estudantes o acesso a outros conhecimentos mediante a leitura do exercício
profissional, de imagens de festejos, da contribuição das ciências na melhoria da
vida das pessoas, das formas de expressão artística existentes na comunidade, dos
recursos de comunicação existentes na escola, do custo dos bens e serviços utilizados
pelos estudantes, das formas de deslocamento, dos efeitos da poluição na saúde da
população, das histórias narradas pelas famílias ou da exploração indiscriminada dos
recursos naturais.
Sejamos mais específicos, tomando o primeiro tema como exemplo: a professora
poderá apresentar um documentário sobre uma ou mais profissões, organizar entre-
vistas com profissionais variados, selecionar textos que abordem o assunto, discutir a
importância social do trabalho, esmiuçar as campanhas salariais e as lutas por melho-
ria das condições de trabalho, estudar o percurso formativo de algumas profissões,
propor pesquisas sobre suas origens e transformações, acessar os sites dos sindicatos
de trabalhadores, visitar um local onde as pessoas exerçam suas profissões etc. Essas
atividades permitirão o aprofundamento e a ampliação dos conhecimentos, possibili-
tando uma melhor compreensão da ocorrência social do exercício profissional. Tudo
isto, somado a procedimentos de registro e avaliação, caracterizam a tematização.
Quando tematiza uma prática social, o professor ou professora emaranha a pró-
pria cultura experiencial e as culturas dos discentes com outros saberes (acadêmicos,
do senso comum, populares etc.). Nessa triangulação promovida pelas situações di-
dáticas, as manifestações estudadas passam por um processo de ressignificação. Isto é,
os significados iniciais dos estudantes podem ser reelaborados mediante o confronto
com os significados dos colegas ou aqueles que se anunciam nos materiais acessados.
192 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
sociais e das pessoas que delas participam. É um equívoco supor que determinada
visão não possa ser alterada com leituras, debates, conversas com colegas, visitas,
entrevistas, pesquisas etc. O estudo citado reposiciona a importância das situações
didáticas culturalmente orientadas e o papel dos sujeitos da educação no processo
pedagógico. Ambos atuam na propagação de significados que podem desestabilizar
as representações iniciais.
Os benefícios políticos e pedagógicos da valorização das diferenças podem
manifestar-se por intermédio da apresentação e discussão, em sala de aula, das con-
cepções dos estudantes e do docente, examinando também a forma como se expres-
sam. As situações didáticas culturalmente orientadas promovem a exposição a um
grande número de vozes divergentes, convidando estudantes e docente a verem as
coisas de outra maneira. O esforço de compreender os esquemas sociais daqueles
que pensam e agem de formas distintas possibilita um conhecimento mais profundo
dos próprios sistemas de crenças, conceitos e preconceitos. Santos (2010), por exem-
plo, exalta o potencial epistêmico das atividades de ensino em que as representações
dominantes se chocam com as visões dos setores desfavorecidos. Tal interconheci-
mento provoca a compreensão de outros saberes a partir dos próprios. No fim das
contas, não pode haver nada mais nocivo do ponto de vista didático que a concor-
dância silenciosa ou o pensamento homogêneo. Sem esquecer que qualquer conhe-
cimento sempre enfrentará outras formas de conhecimento, Bhabha (2014) explica
que o trabalho nas fronteiras da cultura acaba por gerar a necessidade da tradução
ou da negociação. No terreno pedagógico, isso significa combater a guetização dos
conhecimentos constatada no tratamento exótico ou folclórico destinado às práticas
sociais e aos saberes de certos grupos.
Por essa razão, não podem faltar ocasiões em que os estudantes se manifestem e
suas vozes sejam ouvidas. A mesma regra vale para outros membros da comunidade
ou pessoas que possam relatar suas experiências com o tema abordado. Sem perder
de vista os exemplos acima, é fácil imaginar os efeitos formativos de entrevistas com
profissionais de várias categorias, das conversas com participantes das festas populares,
de uma visita à redação do jornal do bairro ou da rádio comunitária, de um trabalho de
campo na feira, rua comercial ou instituição bancária nas proximidades da escola, da
escuta sincera aos colegas que enfrentaram enchentes ou desabamentos, dos parentes
que foram obrigados a deixar seus locais de origem por conta do desaparecimento
dos meios de subsistência.
Por essa via, a pedagogia cultural desatualiza o presente e coleta o vulgar e o tri-
vial para examiná-los de outros ângulos, questionando tudo o que é dito a fim de
ultrapassar visões estereotipadas. Inspirar-se nas teorias pós-críticas requer entender
que as práticas culturais que foram produzidas em dado contexto sócio-histórico,
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 195 •
sob influências e perseguindo intenções, com o tempo são ressignificadas pelas mi-
crorrelações travadas no seu interior e no cerne da macroestrutura social.
Cada uma das situações didáticas mencionadas ilustra uma oportunidade de
travar contato com os significados elaborados pelas pessoas que vivenciam aspectos
do tema estudado. É o que Santos (2010) denomina de pensamento pós-abissal,
radicalmente distinto do pensamento abissal. Alicerçado no conhecimento científico,
o pensamento abissal divide, regula e submete populações inteiras ao redor do globo.
Por outro lado, o pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender
com o Sul, por meio das suas epistemologias. O pensamento pós-abissal confronta
a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes. É uma ecologia,
porque se baseia na heterogeneidade dos conhecimentos (sendo um deles a própria
ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre saberes populares,
urbanos, tradicionais etc., sem comprometer as respectivas autonomias.
A ciência ocidental, fruto da ideologia europeia e do protagonismo masculino
das classes abastadas, não é a única fonte à qual docente e discentes podem recorrer.
Os saberes relativos às práticas sociais preenchem inúmeros ambientes. Onde houver
pessoas, haverá intercâmbio de significados, ou seja, produção cultural. A partir dos
conhecimentos acessados nesses espaços ou por meio de contatos e convites feitos
a seus representantes para irem à escola ou concederem entrevistas, é possível fazer
análises e estabelecer conclusões que, se abordadas nas aulas, enriquecerão o percurso
formativo.
Tamanho conjunto de elementos e relações impossibilita a previsão de todas as
condições do fenômeno educativo (atividades, respostas dos alunos, surgimento de
novas ideias, modificações do contexto etc.), de modo a garantir um só percurso. Daí
atribuir-se ao currículo cultural um caráter aberto, não determinista, não linear e
não sequencial, limitado e estabelecido apenas em termos amplos, no qual se tece,
ininterruptamente, uma rede de significados a partir da ação e interação dos sujeitos
da educação.
Opondo-se à ramificação hierarquizada do saber, na pedagogia culturalmente
orientada o conhecimento é tecido rizomaticamente. A visão rizomática não esta-
belece começo nem fim para o processo de conhecer. A multiplicidade surge como
linhas independentes que representam dimensões, modos inventados e reinventa-
dos de se construírem realidades, que podem ser desconstruídos, desterritorializados.
Conforme Deleuze e Guattari (2000), um rizoma pauta-se nos princípios de cone-
xão e heterogeneidade, ou seja, os pontos de um rizoma podem e devem conectar-
se a quaisquer outros pontos. As coisas se relacionam. Pensar é estabelecer relações
com múltiplos elementos e em diversos aspectos. A análise cria conexões, ligações,
pontes de comunicação, evidencia qualidades, define ângulos de abordagem, institui
olhares, sempre diferentes de outros.
196 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Considerações
Referências
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Educação, diversidade, emancipação e lutas em
tempos antidemocráticos
Introdução
O
século XXI tem sido marcado pelo aumento dos enfrentamentos sociais,
culturais, econômicos e políticos. Na realidade, o mundo sempre viveu
sob tensão, mas nos últimos anos algumas delas avolumaram-se. Refiro-me
à complexa relação entre conservadorismo, autoritarismo, diversidade e emancipação
não só no Brasil, mas nos outros países das Américas e em outros continentes.
São tempos de um “colonialismo neoliberal”. Temos visto uma articulação
entre estratégias ainda mais perversas de dominação, racismo, xenofobia, patriarcado,
heteronormatividade, produção da pobreza e da miséria.
Trata-se de uma estrutura colonial que os autores e autoras decoloniais (MIG-
NOLO, 2008, 2011; QUIJANO, 2005; WALSH, 2008), pós-coloniais africanos e eu-
ropeus (CÉSAIRE, 1978; FANON, 2008; SANTOS, 2009) e negras e negros brasi-
leiros, com destaque àqueles que nos ajudam a refletir sobre as africanidades brasilei-
ras e o movimento negro (CUNHA JÚNIOR, 2013; DOMINGUES, 2007, 2008;
GOMES, 2017; GONÇALVES E SILVA, 2005; NASCIMENTO, 2004; NASCI-
MENTO, 2008; PEREIRA, 2008; PINHO, 2003; PINTO, 1994; SANTOS, 1994;
SILVEIRA, 2003), têm analisado e discutido com profundidade ao longo dos anos .
Cresce, aos poucos, a configuração de um tipo de colonialidade associada a uma
outra faceta da expansão neoliberal. São tempos de contra-ataques das forças he-
gemônicas de poder, capitalistas e fundamentalistas religiosas e políticas, que sempre
lideraram a exploração e a violência e que agora se contrapõem com muito mais con-
tundência às lutas contra-hegemônicas e à resistência democrática construídas nos
mais diversos lugares do mundo.
As forças democráticas, emancipatórias e contra-hegemônicas explicitaram as
relações de desumanização e de truculência que sempre existiram entre os povos
e nações, principalmente nas sociedades com passado de colonização, escravidão e
alicerçadas em estruturas de desigualdade.
Tudo isso está em ebulição e faz parte da chamada “relação internacional Norte-
Sul”. As forças emancipatórias e contra-hegemônicas expuseram a existência dessa
204 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
bém se é avesso à dimensão pública que possibilita que ela encontre espaço social e
político e tenha o direito de existir dignamente, por meio das lutas e conquistas dos
sujeitos e coletivos sociais e étnico-raciais considerados diversos.
Vivemos “tempos de espanto” porque estamos assustados diante de tanta situação
de horror e de morte, de necropolítica. Os tempos são aqueles nos quais impera uma
concepção autoritária de mundo. Não somente encontramos pessoas que fazem o
gesto de “arma com as mãos”, mas literalmente existem sujeitos que matam aqueles
que consideram diferentes e desprezíveis. E o que é pior: o Estado os autoriza matar.
É permitido matar os considerados indesejáveis para os grupos de poder econômico,
racistas, patriarcais e heteronormativamente orientados que ocupam o Estado, no
Brasil, desde a segunda metade do ano de 2016.
E quem são os indesejáveis? Os coletivos diversos transformados em desiguais,
a população organizada que reivindica os seus direitos, as esquerdas que, mesmo
com opiniões diversas entre si, lutam por um Estado democrático e de direito. Os
indesejáveis são os extermináveis, como diz o professor Arroyo (2019).
Espero que esta análise ajude o campo emancipatório e a Educação a entende-
rem melhor a intrincada relação entre a diversidade, a luta por emancipação e as desi-
gualdades, principalmente quando falamos que esses sujeitos considerados diversos
e tratados de forma desigual se articulam e se organizam social e politicamente em
coletivos sociais, das mais diversas formas. Um desses coletivos são os movimentos
sociais que a literatura sociológica costuma chamar “de caráter identitário”.
Embora todos os movimentos sociais se movam em torno de identidades sociais,
políticas e profissionais (defesa da terra, defesa da moradia, da luta antimanicomial,
dos direitos humanos), os de caráter identitário têm como diferença central o fato de
que suas bandeiras de luta não negam a questão da exploração socioeconômica, mas
chamam a atenção para a construção das identidades dos sujeitos e do seu direito
de vivê-las e reivindicá-las. Movidos por essas identidades, os sujeitos explicitam
o quanto é possível existir uma variedade de formas de ser, viver, lutar, politizar,
amar e ser amado na sociedade. E isso não os impede de serem sujeitos políticos e
reivindicarem que o Estado brasileiro construa políticas que garantam igualdade
social e dignidade para todos e todas.
As reivindicações por direitos que fazem parte da nossa história política foram
acrescidas da luta pelo direito às identidades, à diversidade e à diferença. As cobranças
dos coletivos diversos que lutam pelo direito às suas identidades voltaram-se para as
instituições públicas e nelas se incluem a escola básica e a universidade.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 207 •
Quando esses sujeitos começaram a ter mais acesso à educação básica devido às
lutas por democratização e universalização da escola desde os anos 1960, eles levaram
para essa instituição os seus conhecimentos, saberes, visões de mundo, linguagem,
raça, gênero, sexualidades e vivências.
A partir de final dos anos 90 do século XX, essa demanda também foi direcionada
para o ensino superior. De 2003 a agosto de 2016, quando o governo federal foi
comandado por um partido político de esquerda que tentou aprimorar o Estado
democrático de direito, a reivindicação pelo respeito às identidades e pelo direito à
diferença caminhou junto com as políticas de expansão do ensino superior público,
a interiorização e a internalização da universidade.
No que se refere especificamente à questão racial, foco das minhas pesquisas
e intervenção política, o processo de luta pelo reconhecimento das identidades e
pelo direito à diversidade desencadeou, em nível federal, várias políticas e projetos
antirracistas, tais como: a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB,
Lei nº 9.394/96) pela Lei nº 10.639/03, ao introduzir a obrigatoriedade do ensino
de história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos das escolas da educação
básica; o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010); o Decreto nº 4.887/03,
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
a Lei nº 12.711/12, de cotas sociorraciais nas instituições federais de ensino superior
(Ifes); a Lei nº 12.990/14, de cotas raciais nos concursos públicos federais; e a Portaria
nº 13/2016 do Ministério da Educação, que induziu as cotas raciais na pós-graduação
das Ifes, entre outros.
Na universidade, a presença de negros, quilombolas, indígenas, pessoas do campo,
pessoas LGBT, pessoas com deficiência como resultado de políticas de reconheci-
mento e de ações afirmativas provocou mudanças na pesquisa, no ensino, na exten-
são e na internacionalização.
Embora sejam transformações muito lentas, elas já surtiram resultados, mais
especificamente no campo das Humanidades e, dentro deste, na Educação. Há
projetos de ensino, pesquisa e extensão voltados para a compreensão dos desafios,
tensões e mudanças educacionais advindos da maior presença dos sujeitos diversos e
das mais variadas questões envolvidas na diversidade. Teorias clássicas são indagadas
e novas abordagens teóricas são introduzidas. Os temas dos projetos de pesquisa
de iniciação científica e de mestrado e doutorado passam a discutir mais as relações
208 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
significa que, aos poucos, no contexto das ações afirmativas, não haverá mais lugar
para o(a) docente autoritário(a), que acha que é dono(a) do espaço da sala de aula e
que trata a sala de aula como se fosse algo privado, julgando-se no direito de humilhar,
provocar, desqualificar, discriminar os(as) estudantes.
Por mais que ainda tenhamos concepções conservadoras de sala de aula sobre o
conhecimento e a universidade, a realidade educacional em tempos de ações afirmati-
vas é outra.
Para aquelas e aqueles que atuam na Pedagogia e nos cursos de licenciatura e
formam professores e professoras, nas faculdades ou departamentos de Educação,
questiono: essa nova realidade impacta a formação das professoras e professores nos
tempos atuais? Essa mudança de público do ensino superior público indaga-nos a
ponto de nos empenharmos para rever currículos, discussões, categorias científicas? O
tema da educação, da emancipação social, das identidades e diversidade se faz presente
nos currículos da pós-graduação e graduação? Que tipo de aula ministramos para essa
juventude? Quais categorias científicas e analíticas nos ajudam a compreender o que
está acontecendo no Brasil de hoje? Que caminhos apontamos para essa juventude,
que chega sedenta da articulação entre os seus conhecimentos e a ciência?
Uma juventude que nasceu em um Brasil mais democrático e que não teve a
experiência de autoritarismo nem de processos ditatoriais e é sujeito de direitos dos
nossos anos de Estado democrático, com todos os problemas que a nossa jovem
democracia apresenta.
Essa mudança e a presença dessa juventude data dos tempos de ações afirmativas
que construímos nos primeiros 20 anos do século XXI. E são justamente essas trans-
formações políticas, educacionais e econômicas que a ascensão da extrema direita e
de setores reacionários ao poder no Executivo federal, no Congresso Nacional, bem
como as mobilizações políticas antidemocráticas de rua, quer destruir.
Para não perder o que conquistamos nos tempos de ações afirmativas, será preciso
que lutemos para que nossos direitos não sejam usurpados. Não podemos retroceder
naquilo que avançamos na relação entre a educação, a emancipação, a universidade,
as identidades e a diversidade.
Precisamos estar juntos para começar a construir estratégias de resistência demo-
crática que também sejam pedagógicas, epistemológicas e políticas, para que consiga-
mos lidar com os tempos antidemocráticos instaurados em nosso país e continuar
formando essa juventude diversa que, por direito, está nas Ipes após a implementa-
ção das políticas de ações afirmativas.
O ensino superior precisa se tornar espaço de acolhimento para os sujeitos vindos
dos coletivos sociais e étnico-raciais diversos que hoje dele participam. Todas as
reformas e leis autoritárias e de perda de direitos aprovadas pelo Congresso Nacional
desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e as outras que ainda
216 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
juntos e solicitando ajuda de quem conhece esse campo, é possível construir uma
bela pesquisa.
Podemos até não saber muito sobre o tema, mas isso não será impedimento para
a aprovação do(a) estudante que teve a ousadia de trazer algo novo e indagador para
a pós-graduação.
É essa postura científica que faz parte do processo de emancipação e de direito
ao conhecimento. Ou desconsideramos que várias categorias analíticas, bem como
as teorias com as quais trabalhamos atualmente também foram insurgentes quando
passaram a circular no campo científico? O conhecimento é dinâmico e novas ideias,
conceitos, interpretações e categorias surgem. Precisamos estar abertos(as) para
conhecê-las. Os tempos de ações afirmativas possibilitam-nos um contato maior com
novas ideias, autores e autoras trazidos pelos(as) estudantes, e não somente pelos
nossos pares acadêmicos ou pelos congressos internacionais.
E é justamente essa vida efervescente de indagações que desconfortou e provocou
os grupos dominantes, capitalistas, fundamentalistas e de extrema direita, fazendo-
os irromper contra a universidade, sobretudo as áreas das Humanidades e Ciências
Sociais, culpando-as de produzir ideologias. Tais grupos não se preocupavam tanto
com o ensino superior e com a universidade que tínhamos antes da diversidade fazer
parte das políticas educacionais como um direito e como uma forma de emancipação.
Essa antiga universidade formava os filhos das classes médias e estes filtravam toda
e qualquer leitura e conhecimento crítico recebido, porque não lhes interessava.
A universidade era só uma passagem, porque o seu futuro profissional já estava
garantido.
Porém, quando chegam estudantes, em tempos de ações afirmativas, que não só
se interessam, mas lutam pela universidade pública, fortalecem o conhecimento e
são críticos diante da realidade de exploração, racismo, machismo, LGBTfobia em
que vivem, a classe média e a elite se assustam. Parafraseando uma frase da juventude
negra: “a casa grande pira quando a senzala vira quilombo”.
Esses sujeitos das ações afirmativas que entram por direito no ensino superior
público fazem dos fenômenos perversos que vivem no contexto da tensão entre
desigualdades e diversidade as suas questões e indagações de pesquisa para melhor
compreendê-los e produzem conhecimento engajado que ajuda o povo sofrido a se
emancipar. Tornam-se profissionais competentes epistemologicamente, somando ao
conhecimento científico a sua competência cultural, política e de vida.
Quando negros, quilombolas, pessoas do campo, indígenas, integrantes da co-
munidade LGBT com postura crítica diante do conhecimento e das desigualdades
começam a entrar para as universidades e Ifes, por meio de concurso público, como
docentes (inclusive devido à aplicação da Lei nº 12.990/14, cotas raciais nos concur-
218 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
sos públicos federais9 ), as coisas também começam a mudar. Levanta-se uma classe
média reacionária, uma elite capitalista que nunca considerou a universidade pública
como lugar de conhecimento para os seus filhos, e ataca as instituições de forma con-
tundente. Esses grupos, hoje representados pelo governo federal de extrema direita,
encontram apoio em ideólogos loucos residentes dentro e fora do Brasil e se apoiam
nas medidas autoritárias de um ministro da Educação reacionário.
Finalizando
melhor o mundo em que vivem. E a elas acrescentar outras com as quais dialogamos,
a fim de que haja uma ampliação e compreensão mútua da riqueza da troca de saberes
e conhecimentos.
Assim, poderemos construir a resistência em tempos de ataques à democracia,
baseada na indignação e na “justa ira”. Tomaremos posse do direito e do dever de nos
rebelarmos contra as injustiças de que são vítimas as pessoas cada vez mais sofridas,
como dizia Paulo Freire (2000) nos seus escritos sobre a Pedagogia da Indignação.
A universidade pública tem de se comprometer com a luta pela vida e não com a
necropolítica.
Continuaremos também lutando por melhores recursos para a Educação, condi-
ções dignas de trabalho, recursos para a pesquisa, a extensão, o ensino na graduação e
pós-graduação, a abertura à internacionalização (não somente Norte-Sul, mas prin-
cipalmente a Sul-Sul). Lutaremos pela revogação da Emenda Constitucional (EC)
nº 95/2016, que não tem nada de teto dos gastos, mas sim de sentença de morte ao
público11
Refletir sobre educação, identidades, diversidade e universidade é se posicionar
corajosamente na fronteira de todas essas lutas.
Referências
Introdução
P
ensar a universalização da educação tem sido um desafio, marcadamente do sé-
culo XX em diante, frente às desigualdades de oportunidades educacionais ao
redor do mundo (MCCOWAN, 2011). Entretanto, a partir do século em ques-
tão observamos “uma enorme expansão do acesso à educação, com vários países próxi-
mos de universalizar o ensino fundamental e alguns, o ensino médio” (MCCOWAN,
2011, p. 9). Porém, isso não se aplica a todos os contextos geográficos e sociais, mas o
direito à educação encontra-se previsto em vários acordos internacionais, além de
integrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, “que pre-
coniza que ‘todo ser humano tem direito à instrução’” (MCCOWAN, 2011, p. 14).
McCowan (2011) ainda pontua que, em algumas regiões do mundo, entre as
crianças que estiveram à margem da escola temos as que apresentam algum tipo
de deficiência. Este fato é intrigante, tendo em vista o surgimento das iniciativas
educacionais especializadas a partir do século XVIII, principalmente na Europa, que
tomaram vulto e atingiram outros continentes e, por consequência, diferentes países.
O entendimento acerca do fenômeno deficiência sempre foi amplo e relacionado
também à cultura de cada povo e, assim sendo, os encaminhamentos e práticas para
a questão também foram e continuam sendo plurais.
Podemos dizer que atualmente temos um movimento em nível mundial que pre-
coniza a inclusão de pessoas com deficiências nas escolas comuns e que o direito à
educação é assegurado a tais pessoas em alguns países. Como balizas documentais
reconhecidas internacionalmente, temos as já conhecidas Declaração Mundial so-
bre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, de
Jomtien (1990), a Declaração de Salamanca: sobre Princípios, Políticas e Práticas na
Área das Necessidades Educativas Especiais (1994) e a Declaração de Incheon: Educa-
ção 2030: Rumo a uma Educação de Qualidade Inclusiva e Equitativa e à Educação
ao Longo da Vida para Todos (2015); e, em termos de Brasil, uma legislação especí-
fica que trata da matéria a partir da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988. Entretanto, tal afirmativa não pode assumir um caráter genérico, tendo em
226 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Não se trata de uma digressão sem razão e sentido, mas tentando entender melhor
uma narrativa consolidada, marcada pelo que Silva (2012), antropólogo, denomina
de “história canônica”. Tal autor direciona a sua fala para o contexto da história da
educação de surdos, mas tomo a liberdade de ampliar a compreensão para o que se
chama de história da educação especial, em alguns casos específicos.
Diante deste panorama, a intenção que se coloca para o presente estudo é res-
significar ou propor leituras outras sobre algumas narrativas que dizem respeito à
história da educação especial, focando o público cego e surdo, contemplando tam-
bém silenciamentos, apagamentos, ao ter contato com fontes primárias, muitas vezes
esquecidas, perdidas ou guardadas nos porões das bibliotecas de referência.
Optou-se por priorizar os fundamentos da educação de pessoas cegas e surdas no
Brasil, em razão de serem iniciativas primeiras e em decorrência de um contato mais
estreito com fontes por meio de uma das últimas pesquisas realizadas por mim em
parceria com a Profa. Dra. Lucia Helena Reily, intitulada “Estudos da deficiência:
constituição histórica de instituições de cuidados asilares e educacionais brasileiras
no Segundo Império”. Em tal empreitada, percebemos que questões referentes aos
“infames da História”, termo utilizado por Lobo (2015) para se referir às pessoas com
deficiência, além de outros públicos, ainda demandam investigação e pesquisa, dada
a complexidade que confere ao fenômeno institucionalização um marco decisivo e
sui generis, embora hoje tenhamos assegurado às pessoas com deficiência o direito à
educação.
Muitas são as questões norteadoras para essa discussão, mas a ênfase foi dada às
duas primeiras instituições educacionais fundadas no Império para pessoas com de-
ficiência, a saber: o Instituto Imperial dos Meninos Cegos (fundado em 1854) e o
Imperial Instituto dos Surdos-Mudos (fundado em 1857), seus respectivos projetos
pedagógicos, o funcionamento de tais espaços, o projeto de atendimento especiali-
zado ao público-alvo em questão e os impactos no processo educacional das pessoas
com deficiência nos anos subsequentes. Destacarei algumas similitudes e diferenças
presentes em tais espaços, concebidos, a rigor, como educacionais, embora o discurso
sobre as instituições fundadas no século XIX reforce o “caráter assistencial” presente
em tais espaços (SILVA, 2009, p. 137).
O recorte temporal estabelecido para a discussão foi o de 1854, data de fundação
da primeira instituição, até 1889, ano que marca o fim do Império do Brasil e a
Proclamação da República. Optou-se por este período por acreditarmos que as bases
para a educação de cegos e surdos foram instituídas nesse intervalo de tempo, além
de ser pouco explorado pela literatura da área da educação especial.
228 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
de moléstia contagiosa, ter atestado de vacina com bom resultado, ter certidão de
batismo com a idade e, no caso de ser gratuita a admissão, ter o atestado do pároco
e de duas autoridades do lugar da residência do aluno, provando sua indigência
(ALMANAK..., 1854, p. 59; BRASIL, 1867, p. AG1-3). A faixa etária atendida era
dos 7 aos 16 anos, no caso dos surdos, e de 6 aos 14, no caso dos cegos.
No período analisado, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos teve três diretores:
José Francisco Xavier Sigaud, cuja gestão foi de 1854 a 1856; Claudio Luiz da Costa,
que ficou como diretor de 1856 a 1868, até falecer; e Benjamin Constant Botelho de
Magalhães, cuja gestão foi 1869 até o ano de 1889. Os dois primeiros diretores eram
médicos e Magalhães era bacharel em Direito (ALMANAK..., 1854, 1889).
Segundo Rocha (2007), o Imperial Instituto dos Surdos Mudos contou com os
seguintes diretores no período estudado: E. Huet (1856-1861), Frei João Monte do
Carmo e Ernesto Prado (1861-1862), Manoel de Magalhães Couto (1862-1868) e o dr.
Tobias Rabello Leite (1868-1899). Por conta do recorte estabelecido, a gestão de Leite
será abordada até o ano de 1889, não sendo foco deste estudo adentrar o período
que corresponde à República do Brasil. Segundo Pinto (2006, p. 8), “o Instituto
dependeu da ação de alguns ilustres homens públicos [...] Estes homens pertencentes
à elite, à ‘boa sociedade’, exerceram o papel de incentivadores e difusores da instrução
pública”. Entre eles, podemos citar o médico Tobias Rabello Leite, o religioso João
Monte do Carmo e o senhor Manoel de Magalhães Couto.
Para levar a cabo o projeto educacional, em ambos os institutos foram erigidos
regulamentos que norteavam o funcionamento e traziam o desenho de uma pro-
posta pedagógica, marcada por ares de sciencias e belas artes, mas curiosamente tais
propostas diferiam em demasia das propostas estabelecidas para ouvintes e videntes
no mesmo período (SOFIATO, 2018).
De acordo com documentos oficiais, tais como os relatórios dos ministros e
secretários dos Negócios do Império, os institutos tinham como propósito:
[No caso dos surdos] Regenerar uma classe inteira de seres desgraçados
muito tempo abandonados, pô-los na posse de uma instrucção impossível
de adquirir de qualquer outro modo, por meio de methodo especial, restitui-
los á sociedade, á sua família, e pô-los em estado de poderem um dia dirigir
seus próprios negócios – tal tem sido o fim da fundação do estabelecimento.
(ALMANAK..., 1859, p. 478).
[No caso dos cegos] O Imperial Instituto dos Meninos Cegos tem por fim
ministrar-lhes: a intrucção primaria, a educação moral e religiosa, o ensino
da musica, e de alguns ramos da instrucção secundaria, e os de officios fabris.
(ALMANAK..., 1854, p. 59).
Embora tal currículo abarcasse uma série de disciplinas, podemos inferir, com
base nos registros do dr. Tobias Rabello Leite, que ler, escrever e contar assumiam cen-
tralidade no currículo prescrito e regulamentado do Imperial Instituto dos Surdos-
Mudos. Muitos eram os entraves que se faziam presentes para o desenvolvimento de
tal programa; entre eles, podemos citar a dificuldade, por parte dos alunos, em acom-
panhar os estudos da forma que era exigida. Além do mais, percebe-se, por meio dos
registros de Leite, que o cotejamento do currículo do Imperial Instituto dos Surdos-
Mudos com o currículo e plano de ensino do Instituto de Jovens Surdos de Paris era
feito, mas o plano de estudos para os surdos brasileiros era menor e, consequente-
mente, comportava menos disciplinas. Sofiato (2018) e Sofiato e Santana (2019) de-
monstraram haver certa instabilidade no oferecimento de disciplinas para os alunos
surdos no período estudado. Ao que parece, no recorte temporal delimitado algu-
mas disciplinas não foram oferecidas, pois não constavam nos relatórios anuais do
Almanak Laemmert 1 , tampouco nos relatórios dos gestores. Outras, tais como as
sciencias naturaes, não fazia parte do currículo prescrito para alunos surdos (SOFI-
ATO; SANTANA, 2019). E, ao cotejarmos o currículo delineado para os surdos com
o dos ouvintes no mesmo período, veremos que o dos surdos era menos enriquecido.
Tal fato revela que não havia uma equiparação com a escola comum em termos cur-
riculares e que o currículo real priorizava as atividades relacionadas a aquisição da
linguagem escrita e o ensino profissional.
No caso do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, observa-se que o curso ofe-
recido, de oito anos, abarcava disciplinas do ensino elementar e secundário. Leão e
Sofiato (2019, p. 289) referem que o currículo do instituto foi delineado com base
em três eixos: “o ensino intelectual, presente nos demais estabelecimentos elementa-
res de educação; o ensino de música instrumental e o ensino tecnológico, por meio
das oficinas pretendidas para o colégio (como a de afinação de pianos)”. A matriz
curricular para os alunos cegos estava assim configurada:
Art. 26. As materias nos tres primeiros annos serão: leitura, escripta, calculo,
até fracções decimaes, musica, e artes mecanicas adaptadas a idade e força dos
meninos. Na leitura se comprehende o ensino do cathecismo.
Para além dos itens mencionados, também foram adquiridos mapas, estampas,
iconografias de línguas de sinais, entre outros. Um arsenal específico e necessário!
Entretanto, a falta de materiais pedagógicos especializados e a necessidade permanente
de confecção de compêndios faziam parte de um discurso recorrente dos diretores
2 O oralismo é uma abordagem educacional que defende o ensino da língua na modalidade oral para
o surdo (SÁ, 1999).
3 Pierre-François-Victor Foucault (1797-1871) “inventou uma máquina, que ficou conhecida mais tarde
como raphigraphe (escritor com agulhas), que mecanizou e miniaturizou o novo método Braille para
escrever” (MELLOR, 2006, p. 90, tradução nossa).
234 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Considerações finais
Referências
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LEITE, Tobias Rabello. Instituto dos Surdos-Mudos: relatório do diretor. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1864.
LEITE, Tobias Rabello. Instituto dos Surdos-Mudos: relatório do diretor. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1868.
LEITE, Tobias Rabello. Instituto dos Surdos-Mudos: relatório do diretor. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1869.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 243 •
Introdução
S
erá verdade que a Escola atual funciona segundo um modelo organizacional
obsoleto concebido no século XIX, desadequado à sociedade do presente e,
sobretudo, para os desafios da sociedade do futuro? Esta ideia há muito que
tomou conta do discurso ordinário, do cidadão comum, tanto em Portugal como no
Brasil e, a espaços, parece encontrar fundamento em declarações críticas de diretores
de escolas, associações de pais e mesmo em trabalhos e pesquisas académicos.
A busca de uma resposta para esta questão ou outras semelhantes implica a
consideração de uma problemática bem complexa que conduz à necessidade de
interrogar os fundamentos da pergunta.
A escola é resultado de uma construção social. Esta simples evidência constitui
um requisito incontornável para buscar as razões que possam explicar a persistência
dos traços fundamentais do modelo escolar que, originário no mundo ocidental, se
difundiu pelo mundo inteiro, em especial, a partir do período que se seguiu ao final
da II Guerra Mundial. Vários têm sido os trabalhos que abordam a difusão mundial
da Escola e a contextualizam aos casos português e brasileiro, como os de Nóvoa e
Schriewer (2000) e Nóvoa, Carvalho, Correia, Madeira e Ó (2003).
Trata-se de um modelo educativo cuja fórmula organizacional se consolidou fun-
damentalmente na transição do século XIX para o século XX. A chave para a cons-
trução do meu argumento decorrerá da distinção entre a abordagem da Escola no
plano institucional e a consideração no plano organizacional. Em jeito de antecipa-
ção, recorro, um pouco provocatoriamente à paráfrase da famosa afirmação de Herá-
clito de que nunca nos banhamos nas mesmas águas de um rio, para sugerir que, fre-
quentemente, o que é feito resulta de uma mistificação que confunde dois planos. O
modelo da escola graduada nunca mudou, apesar de se transformar constantemente
porque o que permanece é o modelo institucional e a mudança constante se situa
no plano organizacional. Paradoxalmente, mantém-se a representação imutável da
escola do mesmo modo que nunca sendo a mesma água é essa mudança constante
que sustenta a permanência do rio.
246 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
A forma escolar gerou, pelo menos, quatro grandes áreas de racionalização a que
foi necessário responder: a) os saberes a ser objeto de transmissão (os conteúdos dos
programas); b) o processo de transmissão (metodologia), c) o contexto organizacio-
nal da transmissão dos saberes (espaços, arquitetura, mobiliário, material didático,
calendário, horário, tempos letivos, durações, intervalos, etc.); d) a relação dos sabe-
res escolares com o meio e a sociedade em geral.
Decorrentes das quatro grandes áreas de racionalização acima apontadas, três re-
quisitos emergiram no processo de construção organizacional da Escola: o primeiro,
foi a necessidade de pessoal educativo especializado (professores); o segundo, a dis-
ponibilidade de instrumentos educativos próprios (manuais escolares) e instalações
educativas específicas (escolas) (HAMILTON, 1989, p. 13); o terceiro, a operacionali-
zação do conceito de programa ou currículo enquanto suporte da organização de
trabalho na escola graduada (HAMILTON, 1989, p. 43). David Hamilton chamou
também a atenção para a natureza diferente da literatura antiga, composta por trata-
2 A Pedagogia Experimental encontra as suas raízes e desenvolvimentos na pedagogia experiencial im-
pulsionada, entre outros, por Raymond Buyse. Inspira-se no movimento de transformação do en-
sino a partir da aplicação do conhecimento e da medição da eficácia dos comportamentos. Ela consti-
tui, neste sentido, a herdeira da psicologia da criança do século XIX, dos movimentos da escola nova
e do movimento experimental propriamente dito (racionalização do trabalho escolar, produto da ra-
cionalidade industrial, a emergência da didática, a construção dos grandes programas escolares, a re-
alização de grandes inquéritos administrativos para conhecer os fatores intervenientes no fracasso es-
colar (ZAMBRANO LEAL, 2013, p. 2, tradução minha).
248 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
dos de educação e aquela que resultou das obras realizadas no âmbito do que apeli-
dou de teoria da escolaridade (HAMILTON, 1989, p. 152).
Chamo a atenção para a diferença essencial entre o que representa a escola institui-
ção e o que define a escola organização. Esta necessidade de clarificação remete para a
250 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
natureza diversa das representações3 , situadas mais no plano institucional e a das perce-
ções que ocorrem no plano fenomenológico, do quotidiano organizacional. Aplicada
à abordagem do Tempo Escolar, é esta distinção que permite identificar o tempo insti-
tucional como o referencial temporal que organiza um modo de socialização distinto
de outros modos de socialização proporcionados por outras instituições e as tempora-
lidades individuais e coletivas que resultam da apropriação desse referencial por todos
os que interagem no contexto organizacional de cada escola (CORREIA, 2019b, p. 11).
Existe ainda outra questão para cuja importância da tomada em consideração é
muito relevante para contextualizar as chamadas de atenção para o caráter ultrapas-
sado ou imobilista da escola. Trata-se da necessidade de perceber o substrato social e
ideológico de onde partem. O projeto da escolaridade sempre constituiu uma arena
de disputa pela concretização dos projetos de diversos grupos sociais.
Ao buscar a explicação para o aparente paradoxo de, no cantão de Genève, às
medidas de combate ao fracasso escolar no ensino primário (envolvendo alterações no
modelo organizacional escolar) ter correspondido um aumento do mesmo, agravando
mesmo os efeitos de seleção social da escola, Walo Hutmacher alerta para não esquecer
que:
As medidas de luta contra o fracasso escolar foram insuficientes porque de-
masiado simples perante os níveis múltiplos de interação, de imbricação e de
interdependência do sistema de ação que configura o ensino primário. Um
sistema cuja complexidade continuamos a descobrir. Tudo está nele relacio-
nado: a regulação do trabalho dos alunos, das suas atividades e das suas apren-
dizagens; as temporalidades no quadro das quais é concebida a ação pedagó-
gica; a orientação dos saberes, das convicções e das práticas pedagógicas; a di-
visão do trabalho entre os profissionais e as suas regulações; as suas relações
com os diversos grupos de pais; a mudança nas estruturas de desigualdade
numa sociedade em crise. Nestas condições, qualquer solução simplista, tipo
passe de mágica, está condenada ao fracasso (HUTMACHER, 1993, p. 160,
tradução minha)
Apoiado por uma opinião pública favorável à crítica das despesas improdutivas e
aos custos da educação escolar, Bobbit reivindicou a substituição das ideias e processos
de trabalho antiquados por uma conceção científica do currículo.
Os pedagogos portugueses também se deixaram influenciar pelos princípios,
tanto os oriundos do taylorismo quanto da eugenia, como o ilustra A. Aurélio
da Costa Ferreira, na representação de normalidade pedagógica dada, em 1914 (cf.
252 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Digressão histórico-etnográfica
Programas
No ensino secundário, o mote foi dado pelas Instruções para o ensino em classe,
publicadas pela portaria 230, de 21 de setembro de 1914, reiterando a primazia das
dimensões formativas sobre as instrutivas. Tornaram-se comuns, afirmações do tipo:
[...] o fim essencial do ensino secundário está menos na soma e variedade
dos conhecimentos adquiridos do que ao desenvolvimento das faculdades do
espírito, pelo que a elevação e proveito do ensino mais dependerá da forma
por que ele é ministrado do que da sua própria essência, mais dos métodos
adotados e seguidos pelo professor do que da perfeição dos programas e da
excelência dos livros. (HELENO JÚNIOR, 1919, p. 14).
A escola graduada
Nas três décadas seguintes, foram publicados inúmeros relatos que descreviam o
modo como as escolas estavam organizadas, quais os critérios aplicados no agrupa-
mento dos alunos, os livros e a metodologia utilizados bem como as condições dos
edifícios onde estavam instaladas, qual o mobiliário existente e o material didático
utilizado. Pode-se encontrar abundante informação e testemunhos a este respeito
em publicações como, por exemplo, o Relatório da inspeção efetuada às escolas do
distrito de Lisboa, pelo comissário dos estudos Mariano Ghira, no decurso do ano
letivo de 1863-1864, e revistas pedagógicas e de ensino como o Boletim geral de instru-
ção pública (1861-1865) e O Ensino (1885-1890).
A graduação dos alunos tanto era ascendente como descendente e o número
das classes variava entre três e seis. Na escola pública de Aldeia Galega da Merceana
(concelho de Alenquer), existiam 4 classes, subdivididas em turmas. Em cada turma
existia um monitor ou decurião, que era o aluno mais adiantado e estava encarregado
256 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
de ensinar os colegas. Nesta escola, a 4a. classe era a mais adiantada e era lecionada
diretamente pelo professor. As atividades eram reguladas por sinais convencionais,
ou seja, pancadas dadas com uma régua pelo professor na mesa, cujo número indicava
a tarefa a realizar (GHIRA, 1865, p. 15).
Na escola oficial primária de Caldas da Rainha, os alunos estavam organizados
em três classes descendentes. O carácter expedito desta divisão é evidente, revelando
também aspetos interessantes, nomeadamente, a ideia de progressão global no con-
junto das matérias escolares como fator de inclusão num dos grupos de alunos em
que o professor organizava o seu trabalho, não necessariamente pela idade que tinha.
A aula está dividida em três classes: pertencem à primeira os alunos que lêem
e escrevem com perfeição, e que já sabem resolver qualquer problema arit-
mético de quebrados e de proporções. O sistema métrico é ali ensinado com
toda a proficiência pelo digno professor. Nesta primeira classe vimos alunos
muito distintos responderem a perguntas complicadas do sistema métrico.
[...] A segunda classe é composta dos alunos que principiam a ler sem soletra-
ção, tanto a letra impressa como a manuscrita. Aprendem também os princí-
pios de contabilidade [...]. Finalmente, a terceira classe é para os alunos que
principiam a conhecer as letras e a soletrar depois. (BOLETIM GERAL DE
INSTRUÇÃO PÚBLICA, n. 30,28 ago. 1861, p. 477).
Métodos de ensino
A produção de livros impressos foi uma das alavancas mais poderosas para a
possibilidade de existência do programa ou do currículo na escola, na medida em
que tornou possível a representação da progressão sequencial da aprendizagem e o
respetivo controlo através dos textos. Até aos inícios do século XX, os compêndios
eram o elemento-chave da organização do trabalho discente e docente. A centralidade
dos compêndios no seu conjunto era clara. Era a partir deles que se organizam as
atividades da aula e o professor pautava a sua intervenção.
As preocupações do Estado com o controlo dos conteúdos abrangeram, natural-
mente, os livros escolares. A uniformização e padronização dos livros escolares foram
essenciais porque os compêndios representavam o programa real pelo qual se organi-
zava o ensino, o trabalho do aluno e o trabalho docente. Era por eles que o professor
lia as aulas, determinava os trabalhos de casa e era por eles que eram elaborados os
pontos que iriam ser objeto de examinação. Os livros foram uma peça essencial na
construção do modelo organizacional da escola graduada.
Os anos 1860 assinalaram o arranque deste debate, em termos mais sistemáticos
e enérgicos, tanto no ensino primário como no ensino secundário liceal, debate esse
visível na imprensa pedagógica e de ensino, refletindo-se na legislação como podemos
verificar pelos exemplos referenciados e alguns dos quais transcrevemos:
Conveniência de uniformizar os compêndios nos liceus e aulas do Reino. É
uma dificuldade com que geralmente lutam os estabelecimentos de instru-
ção, a variedade de compêndios porque se veem obrigados a aprender os alu-
nos. Pode dizer-se sem encarecimento que cada aula, que cada liceu ensina
por sistemas e até princípios diversos. A gramática que é adotada nuns é re-
futada noutros; e os livros sobre filosofia moral, que aqueles encarecem, não
têm autoridade, nem aceitação nestes. Deste desacordo nasce, como é bem de
supor, uma anarquia de sistemas, teorias e princípios essenciais, tanto acerca
das primeiras noções do ensino literário, como dos preceitos mais elemen-
tares da instrução, que dá em resultado, derramarem-se erros, ou, pelo me-
nos, levantarem-se contestações, acerca de pontos que deveriam ser ensina-
dos como regras que não pudessem admitir interpretações diversas (BOLE-
TIM GERAL DE INSTRUÇÃO PÚBLICA,n. 46, p. 731, 18 dez. 1861).
Quem entrar numa escola primária pública, ainda das mais zelosamente pre-
sididas, não achará muitas vezes nas mãos dos alunos, que se sucedem no
mesmo banco, livros iguais para as mesmas disciplinas. [...] Ouvirá agora um
trecho de leitura nalguma novela frívola, se bem que inofensiva aos bons cos-
tumes, pouco zelosa dos foros da linguagem, logo uma passagem declamada
num livro inacessível, pelo assunto ou pelo estilo, à débil e tardia compreen-
são da puerícia. Não verá a gradação racional com que nas escolas estrangei-
ras de mais exemplar regime e organização se passa, por compêndios discre-
tamente escolhidos, das pequenas para as maiores dificuldades. A pobreza
dos alunos lhes põe nas mãos o primeiro livro que a fortuna lhes depara, sem
nenhuma escolha ou predilecção. O capricho dos professores decreta nou-
tra parte a preferência dos compêndios, com o que tem vindo a tornar-se, o
que ao primeiro aspecto pareceria discreta liberdade na maior licença e anar-
quia, com perda irreparável de tempo e de instrução. (BOLETIM GERAL
DE INSTRUÇÃO PÚBLICA, n. 10, p. 151-152, 10 abr. 1861).
zagens, pois era pelos livros que se regulava tanto a “leitura” da aula pelo professor
como a verificação da progressão do aluno. Sem livros comuns não seria exequível a
aplicação do modo simultâneo pelo professor.
O problema não se restringia ao ensino elementar. A inexistência de regras claras
e uniformes na utilização dos compêndios das várias disciplinas nos liceus também
gerava perturbação e mesmo contestação pública pelas consequências que tinha nos
critérios e resultados dos exames. A discussão destes aspetos foi bastante viva durou
toda a segunda metade do século XIX e inícios do XX. Em 1882, Bernardino Ma-
chado reconhecendo os programas como fazendo parte da alfaia pedagógica do en-
sino liceal, dava claramente a primazia, nas aulas, aos compêndios e aos professores
(MACHADO, 1882, p. 8). A correlação entre o desenvolvimento do modelo organi-
zacional de liceu, o plano de estudos e o desenvolvimento do aluno alargou o âmbito
e o número de articulações do conceito de programa e teve consequências na forma-
ção docente requerida para o ensino secundário.
[...] não é possível redigir nem executar um bom programa dos liceus, sem
que a organização do seu professorado se ligue ao magistério primário pelo
primeiro ano e ao magistério superior pelo último, o que, advirta-se por in-
cidente, é também uma obrigação administrativa para desafrontar de barrei-
ras o acesso que deve conduzir hierarquicamente o professor desde a escola
até à universidade. (MACHADO, 1899, p. 241).
Considerações finais
O debate em torno do que tem permanecido e do que tem mudado nas práticas
pedagógicas e no modo de conceber a Escola, na sua organização e propósito social,
está longe de estar encerrado. E, provavelmente, não será possível alguma vez dá-
lo por concluído, uma vez que a Escola se traduz em múltiplas realidades e níveis
de análise, decorrentes dos interesses sociais e políticos que disputam a primazia
das suas representações e dos seus modelos para a organização e funcionamento da
educação escolar. Significa isso que este debate constitui tempo perdido porque não
tem resolução definitiva? É precisamente por essa razão que são imprescindíveis a
pesquisa e o debate sobre o que explica a permanência e a transformação da Escola.
Não para resolver o assunto de uma vez por todas, mas para entender cada vez melhor
a Escola como resultado de uma construção histórica e social, de que a diversidade e
o conflito de interesses são componentes incontornáveis.
Aparentemente, não concedi muito destaque à dimensão temporal da Escola.
Puro engano. Essa categoria esteve sempre presente através da pequena digressão
histórico-etnográfica no período de afirmação da escola graduada em Portugal, na
viragem do século XIX para o XX. Espero que tenha contribuído para ajudar a en-
tender o quão próximo e, ao mesmo tempo, como estamos tão longe dessa realidade.
Termino com uma passagem do prefácio de António Nóvoa ao livro O Tempo e
as Temporalidades da Escola em Portugal (séculos XVIII-XX):
Não há melhor maneira de pensar a metamorfose da escola do que a partir de
um novo entendimento do tempo. Se alterarmos o calendário escolar anual,
se repensarmos o tempo diário de presença dos alunos na escola ou se orga-
nizarmos de outro modo os horários escolares, estaremos, inevitavelmente, a
tocar nas bases do modelo escolar, desde a relação coma s famílias à inserção
da escola na sociedade, desde a distribuição do trabalho docente à organiza-
ção dos currículos, desde as dinâmicas pedagógicas da sala de aula aos proces-
sos de aprendizagem. Talvez tudo esteja no tempo. No dia em que o tempo
escolar se libertar dos relógios, abrir-se-ão novas possibilidades para pensar a
escola. (CORREIAb, 2019, p. 9).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 267 •
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O único e melhor tempo de ensinar na escola:
reverberações da avaliação (1870-1970)
A
escola tem seus tempos específicos para ensinar e aprender. Até pode soar
redundante a todos nós a afirmação segundo a qual professores e alunos
seguem um calendário e durante o ano letivo, e em cada um de seus dias,
há os momentos para ouvir as explicações, realizar as tarefas, fixar conteúdos, fazer
provas e ter notas. É comum que professores e alunos comecem seus trabalhos entre
janeiro e fevereiro aproximadamente, prevendo-se recesso em meados do ano e férias
após sua finalização. Ou seja, é praticamente impossível concebermos a escola com
outra organização de seu calendário anual, dos seus dias e horários letivos.
Se as várias dimensões do tempo escolar nos são muito fáceis de descrever e, ao
mesmo tempo, difíceis de questionar, é porque elas culminam numa espécie de the
one best system, para mencionar aqui as expressões usadas por Tyack (1974) e Nóvoa
(1995), cuja tradução pode remeter para “o único melhor sistema possível”. Edificado
com a escola moderna desde meados do século XIX, esse modelo de ensino hoje é
conhecido e vivido como se fosse “natural”. Ele institui um tempo específico para
ensinar e aprender na escola, articulando-se com a cultura institucional em suas várias
dimensões. Trata-se de uma organização difícil de mexer.
Se alterarmos o calendário escolar anual, se repensarmos o tempo diário de
presença dos alunos na escola ou se organizarmos de outro modo os horá-
rios escolares, estaremos, inevitavelmente, a tocar nas bases do modelo esco-
lar, desde a relação com as famílias à inserção da escola na sociedade, desde a
distribuição do trabalho docente à organização dos currículos, desde as dinâ-
micas pedagógicas da sala de aula aos processos de aprendizagem. (NÓVOA,
2019, p. 9).
272 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Quais títulos vamos, então, considerar aqui? Ainda recorrendo ao verbete dos
manuais pedagógicos, vale mencionar que:
No Brasil, o Compêndio de pedagogia, de Antônio Marciano Pontes, publi-
cado em 1874 e 1881; as Lições de pedagogia colecionadas por um “amigo da ins-
trução”, publicadas em 1907; a famosa Introdução ao estudo da Escola Nova,
de Lourenço Filho, editada 14 vezes desde 1930 até 2002, e o Manual do pro-
fessor primário (1962), um entre vários outros títulos escritos por Teobaldo
Miranda Santos para a coleção Curso de Psicologia e Pedagogia da Compa-
nhia Editora Nacional, são exemplos de manuais pedagógicos. As edições
mais antigas das quais se tem conhecimento no país são da década de 1870,
quando são realizados concursos de ingresso na carreira docente e os cursos
de formação de professores começam a se estruturar nas Escolas Normais,
substituídas depois de praticamente um século pelas Habilitações Específi-
cas para o Magistério (HEMs), pela Lei n. 5.692/1971. Tendo como público
professores primários, os manuais pedagógicos foram lidos, sobretudo, por
candidatos de concursos, alunos da Escola Normal, das HEMs, de Faculda-
des de Filosofia ou Pedagogia, enfim, de cursos que, em diferentes lugares, ní-
veis e momentos, corresponderam a espaços de formação para o ensino. Nos
dias atuais, livros como os de Claudino Piletti, intitulado Didática geral e
publicado pela Editora Ática desde a década de 1980, são também usados em
Institutos Superiores de Educação ou Faculdades de Pedagogia. (CATANI;
SILVA, 2010).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 275 •
Quadro 2 – Diagrama das categorias associadas à avaliação nos manuais pedagógicos (1873
a 1985)
280 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 281 •
Quadro 3 – Diagrama das categorias associadas à avaliação nos manuais pedagógicos (1873
a 1985)
282 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 283 •
284 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
concepções mais atentas a técnicas de avaliação que permitam uma medição a mais
objetiva possível. Por isso seria fértil comparar as ideias de cada coluna aos fios de uma
corda discursiva (NÓVOA, 2000) da avaliação. A imagem da corda permite imaginar
que é elaborada ao longo do tempo e que se mantém graças à comunicação existente
entre diferentes ideias. Essa metáfora sugere o princípio segundo o qual as diversas in-
terpretações de um pensamento comportam elementos de continuidade: o entrelaça-
mento de uma corda só é possível graças aos fios já existentes, a partir dos quais outros
entrelaçamentos são possibilitados. Entretanto, ao se re-entrelaçar, a corda assume
novas configurações, conferindo às várias concepções de avaliação outros significados,
que enfatizam determinados aspectos, supõem ou apagam outros. Assim, se a ideia
de verificar os resultados do trabalho do aluno está quase sempre presente em todos
os manuais, ela aparece num primeiro momento mais associada à disciplina, reverbe-
rando nas preocupações em punir ou recompensar os alunos pelo seu trabalho. A
verificação dos resultados ganha outros contornos quando, sobretudo após meados
do século XX, articula-se mais com as preocupações em ajudar os alunos a aprender.
Os manuais pedagógicos racionalizam os vários elementos da Didática quando
colocam a avaliação na sua pauta durante um século de publicação. O planejamento,
a seleção de conteúdos, os métodos de ensino, as técnicas usadas, os objetivos do
trabalho culminam nas formas de verificação dos resultados. Quando analisamos a
configuração do tema nos manuais, notamos que ele é parte de estratégias mais amplas
de racionalização do ensino. Quais provas usar? Como usar? Para que as notas?
Como aplicá-las? De que modo a avaliação pode garantir o bom comportamento dos
alunos? Recompensar? Punir? Ou, diferentemente, de que maneira ela pode ajudar
os alunos a aprenderem? Várias respostas são dadas e a avaliação, nessa perspectiva,
ajuda a compreender como todo o processo de ensino é concebido e dado a ler aos
futuros professores. O olhar para o conteúdo dos textos de formação de professores,
na perspectiva histórica que aqui se assumiu, evidencia a construção dos discursos
que orientam o trabalho docente.
Os manuais pedagógicos publicados entre 1870 e 1970 contribuíram para enraizar
entendimentos e práticas de avaliação, reverberando em formas de organizar o ensino e
a aprendizagem de forma homogênea e seletiva, já que serviram mais aos propósitos de
controle da sala de aula e hierarquização dos alunos por intermédio da nota. Definir os
momentos para ouvir as explicações, realizar as tarefas, fixar conteúdos, fazer provas e
ter notas são atividades que facilmente identificamos para descrever o que acontece na
sala de aula. Elas constituem tempos de ensinar e aprender, aparentemente “naturais”.
Tal como se quis evidenciar, esse modelo foi sendo ensinado aos professores quando
eles estudaram o tema da avaliação, uma das peças fundamentais da modernidade
escolar, já que está intimamente vinculada à escolha de conteúdos, tempos para
explicá-los e testar os alunos. Investigamos a configuração da temática em livros que
286 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
ensinam a ensinar, os chamados manuais pedagógicos, desde 1870 até 1970, período
em que se consolida a necessidade de 1) disciplinar; 2) verificar os resultados e 3)
ordenar as classes e a escola; 4) medir; 5) diagnosticar; 6) prognosticar; 7) organizar o
fluxo escolar; e estabelecer 8) técnicas de avaliação.
Se hoje o discurso educacional quer fazer-se mais voltado às práticas formativas,
isso exige que se reconheçam os desafios de desconstruir as representações historica-
mente consolidadas. Atualmente, é possível falar da existência de duas lógicas avalia-
tivas na escola: uma que privilegia a excelência das trajetórias de alguns estudantes e
outra que quer um funcionamento que favoreça todos os alunos, incluindo a mul-
tiplicidade de seus ritmos de aprendizagem (PERRENOUD, 2008). Ao contrário
do que se pode pensar, é possível rever o modelo de ensino em seus fundamentos e
nas articulações que se podem colocar, por exemplo, entre a avaliação e os tempos de
ensinar e aprender na escola.
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CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa:
Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 287 •
Introdução
N
este texto, são tratados pontos relativos à forma como o Brasil tem condu-
zido suas políticas educacionais nos últimos anos, entendendo que muitas
aspirações geradas no interior da sociedade brasileira têm sido refletidas
nas políticas empreendidas. Estas demonstram certa convivialidade entre bandeiras
procedentes de tais aspirações e orientações provenientes de acordos, declarações fir-
madas em conferências multilaterais assinadas ou apoiadas pelo governo brasileiro.
Há uma larga interseção híbrida em que tais bandeiras se mostram indiferenciadas
e apaziguadas nas suas diferenças. Nessa marcha, a política neoliberal para a educação,
voltada aos “países em desenvolvimento”, tem sido assimilada e avançado, ao longo
do tempo, com características ora sutis, ora mais incisivas, a depender de conjunturas
políticas específicas ou de vertentes políticas instaladas nos diferentes governos. No
caso do Brasil, os vaivéns das políticas educacionais de diferentes governos eleitos
após a redemocratização indicam haver uma continuidade entre elas e, quando parece
haver rupturas, elas são apenas aparentes, mesmo quando o país se encontra, como
no presente momento do ano 2020, num ponto que a cada dia parece sempre ser o
mais longínquo e inimaginável a que foi levado, em consequência do golpe jurídico-
parlamentar de 2016 e da crise política de enormes proporções instaurada desde então.
No cenário em que o governo mescla empenho destrutivo, negação de prerroga-
tivas constitucionais do Estado de Direito, incompetência e ações que desprezam ou
aniquilam direitos e bens públicos – como a educação, a cultura e o meio ambiente
–, as políticas públicas neoliberais para a Educação, em particular, sofrem desloca-
mentos, suspensão temporária, mas não rupturas que as paralisem. Sua continui-
dade independe de ações e ênfases ideológicas de quaisquer governos e há esferas em
que elas seguem seu curso com ações produzidas e executadas por diferentes meios e
atores: mídias, conselhos, órgãos da Educação das diferentes esferas federativas, co-
munidades epistêmicas1 diversas etc.
1 Autores como Haas (1992) identificam essas comunidades como redes de profissionais com reconhe-
cida experiência e competência em um domínio específico ou área de atuação.
290 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
A partir dos anos 2000, embora as orientações levadas a efeito não significassem
rupturas com os acordos e agendas estabelecidos com esses organismos, como as polí-
ticas de avaliação e produção de orientações curriculares, outras políticas educacio-
nais foram valorizadas conforme os governos reconheciam a necessidade de investir
em esferas da Educação para atender a interesses e demandas sociais, o que significa
dizer, conforme os governos estivessem mais ou menos comprometidos com as lutas
sociais e com o reconhecimento dos direitos reivindicados. Nesse sentido, algumas
das políticas voltadas para a educação básica e superior implementadas no período
de 2002 a 2016 foram resultado de movimentos sociais por direitos, fossem eles uni-
versais, fossem direitos de grupos histórica e socialmente excluídos, representando,
portanto, conquistas importantes.
Porém, pensar a educação na contemporaneidade, fora de uma lógica excludente,
é considerar as políticas, as reformas educativas propostas, em termos mundiais e na
realidade brasileira, ao mesmo tempo identificando focos e atores implicados, para
diferenciar interesses que parecem ser indiferenciáveis. É necessário recordar, como o
faz Fonseca (1998):
Para fundamentar sua política social o Banco Mundial produziu, a partir dos
anos [19]70, um discurso de caráter humanitário, respaldado por princípios
de sustentabilidade, justiça e de igualdade social, que podem ser assim resu-
midos: a) o combate à situação de pobreza, mediante a promoção da equi-
dade4 na distribuição na renda e nos benefícios sociais, entre os quais se des-
tacam a saúde e a educação; b) a busca da eficiência na condução das políti-
cas públicas, mediante o incremento da competência operacional dos agen-
tes, cuja medida de qualidade seria a relação económica de custo-benefício,
em nível individual, institucional e social; c) a busca da modernização admi-
nistrativa dos diferentes setores sociais e econômicos por meio de políticas
descentralizantes, que ensejem maior autonomia da comunidade na condu-
ção dos serviços sociais; d) o diálogo como estratégia de interação interdepen-
dente entre o Banco e os mutuários. (FONSECA, 1998, p. 47).
Nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 2000, à visão da educação
como processo civilizatório e como elemento constitutivo da construção de um país
democrático – calcado no exercício da cidadania, na igualdade de direitos, no bem-
4 A autora chama a atenção para a substituição gradativa da noção de igualdade pelo termo equidade.
Embora tomadas como sinômimos, para a autora a substituição representa uma alteração conceitual:
“o termo equidade vem do Direito, e mais precisamente, da prática jurídica” (FONSECA, 1998, p.
48). No campo do Direito, ainda segundo a autora, “a equidade fundamenta-se numa justiça mais
espontânea e corretiva, não se restringindo à letra de lei, podendo mesmo contrariá-la em respeito
às circunstâncias e à natureza intrínseca do objeto jurídico considerado. Essa acepção tem base na
reflexão aristotélica segundo a qual a natureza da equidade é a retificação da lei quando esta se mostra
imperfeita, por seu caráter universal, para casos particulares. [...] por consequência, as desigualdades
entre os homens são consideradas como efeitos naturais da sua própria circunstância”. (FONSECA,
1998, p. 49).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 293 •
A instituição da LDB de 1996 e a observação do que ela prescreve por meio dos
PNE – mesmo sabendo serem LDB e PNE objetos de interpretações distintas e de
disputas de interesses – foram produzidas num contexto de globalização econômica,
na perspectiva de que centro e periferia são partes de um mesmo todo, favorecido
pela retórica humanista de valorização da vida, do bem-estar e da cidadania. Isso
também aconteceu no contexto de engajamento de movimentos sociais locais na luta
pela educação pública e possivelmente decorra daí certa homologia entre discursos e
pautas.
Assim, o lema “Educação para Todos”, naquele momento, embute um clima de
esperança associado à possibilidade da diminuição de distâncias, dado o vigor tecno-
lógico de uma sociedade da informação e ao mesmo tempo considerando “os efeitos
negativos provocados ou acentuados pelo processo de transformação capitalista na
sua conformação global” (SILVA, 2019, p. 18). Sua incorporação afirma, dissemina e
confere à educação certo papel de instrumento de “redenção da humanidade”, que já
fora proposto na Constituição da Unesco de 1945, tendo em vista o interesse de repa-
ração de sequelas e dívidas deixadas pela Segunda Guerra Mundial (SILVA, 2019, p.
77) e já figurara no debate e em agendas de conferências anteriores. Não é por acaso
que objetivos como esses têm ressonância nas aspirações de setores da sociedade civil
e movimentos sociais de países como o Brasil, marcado pela desigualdade econômica
e social e, por isso mesmo, pouco refratário às políticas dos organismos multilaterais
com condições de agregar atores de diferentes origens e matizes ideológicos, como
educadores, especialistas, organismos sociais diversos de cunho público ou privado,
segmentos da academia, em torno de uma plataforma difusa e indiferenciada.
O protagonismo desses órgãos multilaterais tem dois focos principais como eixo
de suas ações a partir da década de 1990: o alinhamento dos fins da educação, numa
perspectiva global, e a meta de avaliação dos sistemas escolares. Isto compreende uma
racionalização nos investimentos e a distribuição de responsabilidades e papéis na
esfera da gestão escolar, que deveria se dar de modo descentralizado, e a criação e
implementação de programas e políticas voltados para a avaliação, que deveria se dar
de forma centralizada, mas reservando às unidades escolares e aos seus professores a
responsabilidade pelos resultados alcançados, especialmente os resultados negativos.
É a partir da década de 1990, portanto, que ganham relevo, nos sistemas educaci-
onais mundiais, os processos de avaliação em larga escala. No Brasil, são instaurados
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 297 •
Em seu trabalho, Pugliese (2020) faz essa discussão embasado em autores como
Avelar e Ball (2017), Haas (1992), Lingard (2016), Normand (2010), Olmedo e Santa
Cruz (2013), Viseu e Carvalho (2018), que abordam as ideias de: 1) redes políticas (po-
licy networks) dominantes e profundamente embrenhadas no Congresso Nacional,
indústria, universidades, organizações não governamentais e entidades filantrópicas
diversas; 2) think tanks, organizações híbridas que operam em campos acadêmicos,
midiáticos, políticos e econômicos e como configurações de atores novos e antigos
com ambíguas responsabilidades e margens de ação nebulosas (PUGLIESE, 2020, p.
38). Ainda na síntese produzida por Pugliese (2020), a atuação dos think tanks clama
para si certa objetividade baseada em dados e comparações que dá base à narrativa que
ostentam e que prega a inaptidão do Estado em cumprir suas próprias obrigações, a
incapacidade da escola gerenciar a si própria e postula protocolos de gestão, tomados
como bem-sucedidos no universo das empresas privadas. Viseu e Carvalho (2018)
discutem o papel de organismos como esses na realidade educacional de Portugal ou
em outros países como tendência irreversível, reconhecendo que tais organismos:
[...] agem como um espaço de intermediação social e cognitiva, uma vez que
visam desenvolver um determinado conhecimento educacional, orientado
para a decisão política e a resolução de problemas por si identificados, através
de uma rede política composta por atores provenientes de diferentes mun-
dos, incluindo a academia, as empresas e agências governamentais. (VISEU;
CARVALHO, 2018, p. 2).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 301 •
Há, por assim dizer, uma disposição cada vez maior de se aplicar na Educação ter-
mos migrados ou emprestados de outros campos e discursos. No caso tratado neste
texto, a grande maioria dos termos advém do mundo corporativo e do livre mercado.
É assim que termos como qualidade total, proficiência, ranking, competência, em-
preendedorismo, capital humano, entre tantos outros, são ajustados e aplicados em
programas e políticas educacionais.
A partir de uma perspectiva sociolinguística, Palacios Díaz, Hidaldo Kawada,
Suárez Monzón e Saavedra Stuardo (2020, p. 33), em acordo com Norman Fairclough
(2006), consideram que as atuais mudanças de cenário de políticas educativas são,
antes de tudo, variações nos processos de produção, distribuição de textos e discursos
em defesa de determinadas formas de representar a realidade social e de determinados
modos de ser e atuar nessa realidade.
Mesmo concordando com esses autores, quando afirmam ser o discurso “um
tipo específico de prática social que não só representa aspectos do mundo, mas
também participa ativamente em sua constituição e construção” (PALACIOS DÍAZ
et al. 2020, p. 39), não tenho as mesmas condições para adotar o procedimento
analítico dos autores citados, o qual conjuga análise discursiva e análise de estrutura
argumentativa dos diferentes discursos políticos sobre o tema.
Para os fins deste texto, considero suficiente partir da constatação do fato e
utilizar a analogia ensaiada como recurso, por entender que tal léxico e grande parte
das políticas educacionais que o empregam contêm uma aparente dissimulação,
uma vez que os modos de falar mais revelam do que ocultam vozes, propósitos e
interesses convergentes ou em disputa e presentes na educação pública há pelo menos
três décadas. Pela linguagem se produz um apagamento dos discursos consagrados
e coerentes com os fins da educação. Um exemplo notável é a maximização do
papel das políticas de avaliação instituídas a partir da LDB e seu alinhamento, no
conteúdo e na forma, com as avaliações em larga escala praticadas em outros países. Tal
abordagem propaga uma concepção de educação pública e de qualidade da educação
que contraria axiomas fundantes da própria LDB sobre os fins da Educação.
Essas, entre outras, foram condições que resultaram numa crise político-
institucional de grandes proporções, agravada com o resultado das eleições majoritá-
rias de 2018.
O país dividido, o discurso de negação da política e as regras do jogo democrático
sendo desvirtuadas permitem, por meio da eleição, a ascensão da extrema direita,
que apresenta como programa a combinação do autoritarismo com uma agenda
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 305 •
refiro-me à sociedade com sua participação ativa na defesa do seu direito à Educação
e de políticas públicas que os garantam.
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https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/ocde.htm. Acesso em: 25 fev. 2020.
OLMEDO, Antonio; SANTA CRUZ, Eduardo. Neoliberalism, policy advocacy
networks and think tanks in the Spanish eductional arena: the case of FAES. Educa-
tion Inquiry, v. 4, n. 3, p. 473-496, 2013.
308 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Introdução
“O
s matemáticos são uma espécie de franceses. Sempre que lhes dize-
mos algo, eles traduzem para a sua própria língua e imediatamente
convertem em algo completamente diferente” (GÓMEZ-GRANELL,
1997, p. 257). Este pensamento, atribuído a Johann Wolfgang von Goethe (1749-
1832), mostra mais do que uma histórica intriga entre alemães e franceses, mas uma
visão estereotipada e distorcida da matemática.
Existem, inclusive, diversos casos em que não ter o mínimo de domínio do
conhecimento matemático não é visto como algo ruim, mas gera até certo “orgulho”.
Leiamos como exemplo uma história contada por Paulos (1990, p. 3):
Me vem à mente um caso que vivi em certa ocasião, em uma reunião, onde
alguém estava soltando um discurso monótono sobre a diferença entre cons-
tantemente e continuamente. Mais tarde, na mesma noite, estávamos vendo
as noticias na TV e o meteorologista disse que a probabilidade de chover no
sábado era de 50 por cento e também era de 50 por cento no domingo, de
onde concluiu que a probabilidade de chover durante o final de semana era
de 100 por cento. A observação [do meteorologista] foi dada como certa pelo
autodenominado gramático e, mesmo depois que expliquei o erro, ele não fi-
cou tão indignado quanto teria ficado se o meteorologista deixasse um parti-
cípio pendente. De fato, diferentemente de outras falhas ocultas, o analfabe-
tismo matemático é frequentemente exibido: “Não consigo nem equilibrar
meu talão de cheques”, “Eu sou uma pessoa do povo, não uma pessoa do nú-
mero” ou “Eu sempre odiei matemática”. Esse orgulho travesso da própria
ignorância matemática se deve, em parte, ao fato de que suas consequências
geralmente não são tão óbvias quanto as de outras deficiências. (PAULOS,
1990, p. 3, tradução nossa).
Sabemos que nos últimos séculos a matemática ganhou seu espaço no universo
científico. Devido ao alto grau de rigor que os matemáticos exigem em seus estudos e
pesquisas, tal disciplina ajuda a trazer mais confiabilidade aos conhecimentos científi-
cos. E isso tem repercussão direta no modo como as pessoas recebem uma informa-
ção científica veiculada pela mídia. Quando uma informação dita “cientificamente
comprovada” precisa ser veiculada, pode-se, por exemplo, recorrer a dados estatísticos.
Evidência disso é que a expressão “as estatísticas comprovam que” tem sido frequen-
temente ouvida como forma de argumentação e justificativa científica. Números,
tabelas, gráficos, porcentagens e outros aparatos matemáticos também são utilizados
para dar a impressão de alta credibilidade à informação que está sendo apresentada.
Porém, a educadora Gómez-Granell (1997, p. 258) afirma que existe um paradoxo
no qual a matemática está inserida: ao mesmo tempo em que ela é considerada “um
dos conhecimentos mais valorizados e necessários nas sociedades modernas altamente
‘tecnologizadas’ [... é também] dos mais inacessíveis para a maioria da população,
confirmando-se assim como um importante filtro seletivo do sistema educacional”.
Avaliações, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou o Sistema
de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), têm servido
não somente para mostrar o fraco desempenho dos estudantes em matemática, mas
também como forma de seleção para universidades públicas e particulares ou, no
segundo caso, para distribuir bonificação para as escolas e professores com os ditos
“melhores resultados”. Em certa medida, essas provas têm sido utilizadas para perpe-
tuar desigualdades ao desqualificar o trabalho desenvolvido por parte significativa
dos professores ou ao selecionar os estudantes supostamente mais hábeis para dar
prosseguimento à sua formação.
Em outras palavras, se por um lado o conhecimento matemático tem tido papel
fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico, por outro, ele tem
servido, nos exames e provas, justamente como uma forma de seleção dos ditos “mais
aptos” para ocuparem cargos de trabalho ou vagas em universidades. Segundo Boaler
(2016), nesse sistema que testa os alunos constantemente, eles apenas aprendem a
achar a resposta sem compreender aquilo que estão aprendendo, criando uma falsa
impressão de que não existe a necessidade de criatividade na área da matemática. Tal
conclusão contraria o preceito que os profissionais têm sobre a própria matemática, a
chamada ciência das regularidades e dos padrões, que desenvolve o raciocínio lógico
e a criatividade.
Boaler (2016) afirma que a matemática tem sido ensinada em um contexto dife-
rente daquele que normalmente são lecionadas outras matérias. Ela é vista, por parte
dos estudantes, como uma disciplina diferente das demais, com conhecimentos que
servem somente para testar, condicionando-os a dar apenas respostas corretas para
questões diretas, sem a necessidade de refletir em que contexto aquele conhecimento
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 311 •
foi desenvolvido, como ele pode ser aplicado ou, então, os motivos pelos quais os
algoritmos funcionam de tal modo.
Gómez-Granell (1997) defende a ideia segundo a qual o conhecimento matemá-
tico possui um caráter estritamente formal e outro “referencial”; este último busca
uma associação entre os símbolos matemáticos e situações da realidade do aluno. A
autora reconhece que os símbolos só pertencerão ao domínio da matemática na me-
dida em que eles se dissociarem de contextos específicos, embora seja importante con-
siderar que tais situações são imprescindíveis para a aprendizagem da matemática.
Não consideramos efetivo um ensino totalmente mecanizado e formal, mas
também não é possível uma aula que valorize a compreensão dos conteúdos de modo
ingênuo, ou seja, acreditando que os alunos darão conta de compreender os aspectos
formais somente por terem visto uma aplicação ou uma situação especifica. Mais
que isso, não acreditamos que um aluno aprenderá matemática somente porque
o professor levou para a sala de aula um material manipulável ou um jogo. Torna-
se importante o papel do docente como mediador no processo de aprendizagem
permitindo uma compreensão dos conteúdos, levando o aluno a saber manipular os
símbolos matemáticos e compreender os significados da linguagem matemática.
Embora tenha ocorrido um profundo avanço nas discussões sobre o ensino dessa
disciplina, ainda há uma supervalorização dos aspectos técnico-formais da matemá-
tica, sem levar o aluno a compreender o que se está aprendendo. As experiências com
um ensino tradicional focado na resolução de exercícios mecanizados contribuem
para que os indivíduos acabem por acreditar que não dão conta de encarar proble-
mas matemáticos, implicando crenças incorretas sobre a própria matemática e como
a aprendemos. “Isso não é para mim!”, “Eu não nasci para exatas!” ou até mesmo
“Eu não tenho cérebro matemático!” são algumas expressões que podem surgir a par-
tir dessa experiência.
Boaler (2016) afirma que quando uma criança, na fase escolar, ouve das pessoas
ao seu redor que a matemática é só para os ditos “inteligentes” e “geniais”, ela pode
desistir, fracassar e detestar essa disciplina. Na visão da autora, a criança pode ir
deixando lentamente de tentar entender o que está aprendendo, mesmo que ainda
tenha alguma curiosidade sobre o assunto. Fecha-se um ciclo quando os responsáveis
por um estudante, ao ouvirem que seu filho não vai bem em matemática, acreditam
que está tudo bem e que só um indivíduo extremamente inteligente – alguém acima
da média – conseguiria sair-se bem em matemática.
Há também um fenômeno contrário a esse que pode gerar pressão psicológica e
emocional nos estudantes. Mundo afora, uma frase bastante disseminada tem afir-
mado que “asiáticos são bons em matemática”. Segundo Shah (2019), ao dizermos
isso não os estamos elogiando, mas mostrando uma concepção racista e preconcei-
tuosa. Para o pesquisador, esta visão não somente normaliza os povos não asiáticos
312 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
• Inventada
• Descoberta
• Sim
• Não
• Não sei
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 313 •
• Sim
• Não
• Não sei
Dos 732 participantes que responderam à primeira questão – “Você acha que a
matemática foi inventada ou descoberta?” –, 71,9% disseram que a matemática foi
descoberta. Isso mostra que, em boa parte do imaginário popular, acredita-se que
a matemática já existe a priori, é um conhecimento pré-existente à nossa existência
como ser humano, e precisamos, em algum momento, somente descobrir as regras e
as fórmulas que regem os padrões e regularidades presentes na natureza e em seus
fenômenos.
314 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Gráfico 1 – Percentual de respostas para a questão 1: Você acha que a matemática foi inven-
tada ou descoberta?
Nessa perspectiva, a natureza e o mundo que nos cerca é regido por uma espécie
de “matemática suprema e divina”. Sendo menos enfático, a matemática é uma
linguagem que está por trás de cada fenômeno, mas segundo esse ponto de vista ela
não foi inventada por nós. Ela seria uma espécie de “código de programação” que, ao
ser decifrado, possibilitaria a compreensão e quiçá o controle da natureza ao nosso
redor.
É possível afirmar também que nessa concepção incluem-se aqueles que veem a
matemática como um tipo de conhecimento mágico e que ela só pode ser compre-
endida por indivíduos “geniais” e dotados de uma inteligência superior. São estas
visões de matemática como divina, mágica e superior que vão ajudar a sustentar os
pensamentos de quem acredita que “Eu sou uma pessoa do povo, não uma pessoa
do número” ou “Eu não tenho cérebro matemático!”.
Voltemos um pouco na história. Na Antiguidade, entre os pitagóricos, os núme-
ros eram considerados entidades reais: independentemente dos objetos que conta-
mos e do modo como os escrevemos ou os denominamos, os números existem na
natureza. Recentemente, essa mesma visão foi defendida por Tegmark (2008, p. 102,
tradução nossa), ao afirmar que “nosso mundo físico é uma estrutura matemática”.
Para o físico sueco, “uma estrutura matemática é abstrata, imutável, uma entidade
existente fora do espaço e do tempo” (TEGMARK, 2008, p. 106, tradução nossa).
É importante perceber que, para aqueles que consideram que a matemática foi
descoberta, ela não foi produzida nem pensada pelos seres humanos. Nesta perspec-
tiva, acredita-se na existência de entidades, de uma linguagem e de um conhecimento
supremo que regem a realidade em que estamos inseridos. E esta linguagem seria a
matemática.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 315 •
Contudo, alguns matemáticos não defendem este ponto de vista. O alemão De-
dekind (1831-1916), por exemplo, numa carta enviada em 1888 para seu conterrâneo
Weber (1842-1913), afirmou que “somos de uma raça divina e indubitavelmente pos-
suímos o poder de criar, não somente nas coisas materiais (ferrovias, telégrafos), mas
especialmente nas coisas da mente” (DEDEKIND, 1996, p. 835). Quando Dedekind
diz isso, ele remete ao fato de sermos seres dotados de inteligência suficiente para en-
contrar os possíveis padrões presentes na natureza e teorizar acerca deles, criando,
assim, conhecimentos que generalizam e abstraem tais ideias. Nessa mesma linha
de pensamento, é atribuída ao matemático Kronecker (1823-1891) a seguinte frase:
“Deus fez os inteiros, todo o resto é trabalho do homem”.
Já Einstein (1879-1955) afirmou: “Como pode ser que a matemática – que é,
afinal de contas, um produto do pensamento humano independente da experiência
– seja tão admiravelmente adequada aos objetos da realidade?” (EINSTEIN, 2005, p.
665). Na perspectiva do físico alemão, a matemática é uma criação humana, mas o
mais interessante de sua fala está justamente na conexão com a realidade: como esse
conhecimento desenvolvido por seres humanos poderia explicar tão bem a realidade
que vivemos? Talvez seja neste ponto que aqueles que defendem a matemática
como conhecimento descoberto se apoiem, pois a veem como algo tão perfeito que
entendem que não teríamos condições de criá-la.
A ideia deste trabalho não é defender uma ou outra opinião, mas observar como
elas podem influenciar, mesmo que inconscientemente, o modo como concebemos
a matemática e, consequentemente, como a aprendemos.
Uma das características mais importantes do conhecimento matemático é a
dedução que, segundo o Dicionário Houaiss (2020), é o “processo de raciocínio
através do qual é possível, partindo de uma ou mais premissas aceitas como verdadeiras
(p. ex., A é igual a B e B é igual a C), a obtenção de uma conclusão necessária e
evidente (no ex. anterior, A é igual a C)”. Por outro lado, o raciocínio indutivo é
aquele a partir do qual procura-se chegar ao conhecimento de algo mais amplo e geral
tendo como ponto de partida os casos particulares, suas regularidades e padrões.
Ao partirmos de experiências e de fatos isolados, por meio de processos cogni-
tivos complexos, reunimos estas diversas experiências e aos poucos formulamos co-
nhecimentos mais gerais. Este fenômeno que parte dos efeitos para a causa, das con-
sequências para os princípios, da experiência para a teoria, denominamos anterior-
mente de indução. Na matemática, porém, o pensamento baseia-se na dedução, par-
tindo sempre de uma ou mais premissas aceitas como verdadeiras para compreender
casos evidentes e verificáveis a partir delas.
Para exemplificar, de modo bastante simplório, diríamos que a matemática é uma
ciência dedutiva e a astronomia é indutiva: enquanto a primeira se baseia no menor
número possível de premissas genéricas concebidas como verdadeiras – o exemplo
316 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
mais clássico é o dos cinco postulados presentes na obra Elementos, de Euclides ( 300
a.C.), que fundamentam toda a geometria euclidiana – gerando e justificando todo o
“edifício matemático”, a astronomia é uma ciência que se desenvolveu historicamente
por meio da experiência – exemplo disso são as leis do movimento planetário, que
só puderam ser desenvolvidas por Kepler (1571-1630) por intermédio de estudos
minuciosos das observações feitas anteriormente por Brahe (1546-1601).
Peirce (1839-1914) trouxe contribuições enormes para este debate ao inserir uma
terceira categoria de inferências, a do raciocínio abdutivo. Segundo o filósofo norte-
americano, a lógica tradicional, com a dedução e a indução, não daria conta de explicar
a criação de teorias sobre o raciocínio, pois, embora as experiências dos sentidos
sejam singulares, elas possuem elementos passíveis de generalização, de modo que
também é importante considerar o conhecimento hipotético, uma inferência de algo
que pode ser, um raciocínio que ocorre quando já há indícios para que o indivíduo
chegue a determinada conclusão. Para Peirce (2000), esse tipo de raciocínio não
garante a veracidade das conclusões, há a possibilidade do falibilismo; contudo, é
uma faculdade da mente humana de obter conhecimentos que se inclinam para uma
suposta verdade. Toda esta discussão tem tido extrema importância nas pesquisas
em Educação Matemática.
Embora de modo geral o raciocínio matemático seja classificado como dedutivo,
autores como Polya (1954) afirmam que o raciocínio indutivo, apesar de estar mais
ligado ao desenvolvimento das ciências naturais, também aparece na matemática, em
probabilidade e estatística, por exemplo. Por outro lado, pesquisadores como Rivera
e Becker (2009) consideram a abdução como parte integrante da aprendizagem na
matemática. Já Font e Contreras (2008) afirmam que tanto o processo de generaliza-
ção como o de particularização são importantes para o ensino e para a aprendizagem
da matemática.
Deste modo, um ensino de matemática que priorize os aspectos formais desde
os primeiros anos de escolaridade, sem levar o estudante a compreender a origem por
trás de cada conceito, as causas de cada etapa em um algoritmo, as possibilidades de
aplicação ou a promoção da discussão de exemplos e casos particulares, pode levar à
formação de estudantes que, nos melhores casos, somente dominam técnicas e regras.
Essa inserção precoce em uma versão reduzida de matemática, como disciplina
das regras e fórmulas, pode realmente fazer o estudante acreditar que ela é um tipo de
saber que existe a priori. Isto ajuda a perpetuar a ideia de que, para poder dominar a
matemática, é preciso ser um indivíduo genial e dotado de uma capacidade mental
superior.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 317 •
A “utilidade” da matemática
Dos 730 participantes que responderam a esta questão, 98,4% acreditam que a
matemática é útil. Mas de que utilidade da matemática estamos falando? Do troco do
mercado? Das proporções entre os ingredientes na culinária caseira? Das medidas que
fazemos ao construir uma casa? Dos juros bancários? Da linguagem de programação
de um computador? Da tecnologia necessária para fazer um avião decolar? Para prever
e interpretar fenômenos, como a taxa de contágio de um vírus em uma epidemia ou
pandemia? Na verdade, a utilidade da matemática pode estar nisso tudo e em muito
mais coisas. Você já parou para pensar que, quando escreve algo em um caderno, você
depende não somente do conhecimento de gramática, mas também de sua percepção
viso-espacial? E que, ao olhar no espelho para se maquiar ou para fazer a baliza em um
carro, também depende de capacidades espaciais? De algum modo, a matemática está
presente no desenvolvimento das ciências e da tecnologia, mas também vinculada a
diversas questões práticas e utilitaristas do dia a dia das pessoas, mesmo que não se
perceba.
Porém, é importante mencionar que uma visão utilitarista da matemática acaba
por dar a ela um papel extremamente reduzido. Essa área de conhecimento pode
estar relacionada à intelectualidade e ao desafio que ela pode proporcionar. Neste
grupo entram aqueles que acreditam que a matemática ajuda no desenvolvimento
do raciocínio lógico e dedutivo dos estudantes. Mas, mais que isso, o que temos
de perceber é que, à medida que as pesquisas matemáticas avançam, elas podem
parecer não ter conexão direta com nossa realidade, e isso não quer dizer que ela não
318 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
possa, no futuro, ser aplicada a algo. Contudo, para o matemático pesquisador, essa
possibilidade de aplicação não importa, pois a ele cabe continuar realizando suas
pesquisas dentro do âmbito da matemática. O desenvolvimento das geometrias não
euclidianas, por exemplo, ocorreu bem antes das descobertas de Einstein em relação
à física quântica, para as quais tiveram suma importância. A matemática pode, em
diversos casos, ser estudada “dentro de sua própria bolha”, sem se preocupar em ser
ferramenta de pesquisa para outras áreas, onde seus conhecimentos terão alguma
finalidade.
Claro que no dia a dia queremos perceber a utilidade daquilo que estudamos,
mas também não podemos deixar de valorizar o aspecto intelectual que a matemática
pode nos fornecer, como o desenvolvimento do raciocínio lógico, além do trabalho
com a abstração. Acreditar que essas capacidades não são importantes para o desen-
volvimento pessoal ou que dependem de uma capacidade inata é um mito. Como
afirmam Kimball e Smith (2013):
A verdade é que você provavelmente é uma pessoa matemática e, pensando
o contrário, possivelmente está prejudicando sua própria carreira. Pior, você
pode estar ajudando a perpetuar um mito pernicioso que está prejudicando
crianças carentes – o mito da habilidade matemática genética inata.
Matemática e realidade
Para a terceira questão – “Para você, a matemática tem alguma conexão com a
realidade?” –, obtivemos os seguintes resultados:
Gráfico 3 – Percentual de respostas para a questão 2: Para você, a matemática tem alguma
conexão com a realidade?
Vemos que 96,4% dos 730 entrevistados acreditam que a matemática tem alguma
conexão com a realidade. Esta questão é bastante genérica e não nos permite perceber
o sentido que os participantes estão atribuindo ao termo “realidade”. A palavra pode
estar sendo usada (i) tanto para se referir ao cotidiano, ou seja, às atividades e locais
que rodeiam cada indivíduo (ii) quanto para tratar de algo mais amplo relacionado à
compreensão da matemática como uma forma de expressar as leis da natureza.
Ao olharmos para as interpretações acima, podemos fazer uma conexão entre as
concepções abordadas na primeira questão e as que suscitam desta questão. No pri-
meiro caso, acreditam em uma matemática inventada pelos seres humanos aqueles
que consideram que tal disciplina existe como uma forma de interpretação e explica-
ção da realidade. No segundo caso, a matemática já existiria como base para o funcio-
namento da natureza e de seus fenômenos e teria sido descoberta, ou seja, neste caso,
a matemática seria a própria realidade.
Porém, os significados de “realidade” são muito mais complexos. Em uma das
possibilidades, o termo “indica o modo de ser das coisas existentes fora da mente
humana ou independente dela” (ABBAGNANO, 2007, p. 831). Existe também a
palavra “idealidade”, que “indica o modo de ser daquilo que está na mente e não
pode ser ou ainda não foi atualizado nas coisas” (ABBAGNANO, 2007, p. 831). Esta
dualidade realidade-idealidade foi e continua sendo temática de pesquisa de inúmeros
320 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Isso mostra que a origem da palavra matemática tem relação direta com as ações
de aprender e ensinar, independentemente do tipo específico de conhecimento en-
volvido. Araújo Júnior (2010) afirma, por exemplo, que na obra de Platão o termo
grego mathematikós só aparece duas vezes, sempre se referindo à aprendizagem.
O que se sabe é que ao longo do tempo o termo matemática foi recebendo outros
significados, mas na Antiguidade já estava relacionado à aritmética e à geometria.
Mais adiante, a matemática vai ser concebida como algo mais amplo que o estudo dos
números e formas geométricas e incluirá também o estudo de tudo aquilo que pode
ser quantificado. Para se ter uma ideia, música e astronomia foram por muito tempo
parte das “matemáticas”. O termo acabou sendo utilizado no plural, pois se referia a
um conjunto de disciplinas que realizavam o “estudo das quantidades”, ou seja, toda
322 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
disciplina que tinha como objeto de estudo aquilo que podia ser quantificado, como
os sons ou o movimento das esferas celestes (OLIVEIRA, 2015).
Se, por um lado, percebemos que a origem etimológica da palavra matemática não
tem relação direta com o que estudamos hoje, a história desta disciplina nos mostra
também que ela esteve, por muito tempo, impregnada daquilo que Gómez-Granell
(1997) denomina de “significado referencial”. A autora defende, então, um ensino de
matemática em que a abstração e a generalização sejam trabalhadas gradativamente, à
medida que os conteúdos vão sendo ensinados, em conjunto com suas possibilidades
de conexão com a realidade dos estudantes.
O erro dos alunos também não pode ser desconsiderado. Erros fizeram parte da
história do desenvolvimento da matemática, do aprendizado do docente e certamente
também devem ser aceitos como integrantes do processo de aprendizagem dos alunos.
O erro não é somente o efeito da ignorância, da incerteza, do acaso, como se
acredita nas teorias empiristas ou behavioristas da aprendizagem, mas o efeito
de um conhecimento anterior, que tinha seu interesse, seu sucesso, mas que
agora se revela falso, ou simplesmente inadaptado. Os erros desse tipo não
são instáveis e imprevisíveis, eles são constituídos em obstáculos. (BROUS-
SEAU, 1983 apud CURY, 2008, p. 30-31).
À guisa de conclusão
cabe ao professor mediar atividades que façam essa conexão ficar mais clara e tragam
significado para os conteúdos matemáticos.
Possivelmente, quando as pessoas pedem que a matemática se torne mais
“concreta”, elas podem não querer dizer, somente, que desejam ver esse co-
nhecimento aplicado às necessidades práticas, mas também que almejam
compreender seus conceitos em relação a algo que lhes dê sentido. E a mate-
mática pode ser ensinada desse modo, mais “concreto”, desde que seus con-
ceitos sejam tratados a partir de um contexto. Isso não significa necessaria-
mente partir de um problema cotidiano, e sim saber com o que esses concei-
tos se relacionam, ou seja, como podem ser inseridos em uma rede de rela-
ções. (ROQUE, 2012, p. 32).
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A escola nova e a educação republicana em
Portugal e no Brasil: Faria de Vasconcelos e
Lourenço Filho
Carlota Boto
Introdução
O
presente artigo tem por objetivo analisar comparativamente a produção
teórica de dois expoentes do movimento da Escola Nova, um português
e um brasileiro, respectivamente António de Sena Faria de Vasconcelos
(1986, 2000, 2006, 2009, 2010a, 2010b, 2011) e Manuel Bergström Lourenço Filho
(1966, s/d a; s/d b; 1969), com a finalidade de verificar o projeto de escola republi-
cana que cada um deles perfilhava. Muito já se escreveu sobre os dois educadores
(ALVES, 2010; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, 1958; BASTOS;
CAVALCANTE, 2009; BERTOLETTI, 1997, 2006; COELHO; RODRIGUES,
2006; CRUZ, 2001; DUARTE, 2010; EDUCAÇÃO..., 1999; FERNANDES, 1978;
FIGUEIRA, 2004; GANDINI, 1997; GOMES, 1984; MACHADO, 2016; MAGA-
LHÃES, 2016; MAGNANI, 1997a, 1997b; MARQUES, 2000; MARTINS, 2015;
MEIRELLES-COELHO, 2006; MONARCHA, 1997a, 1997b, 2009, 2010, 2016;
NÓVOA, 2005; Ó, 2009; PINTASSILGO, 2003; TOLEDO, 2001; VIDAL, 1999;
WARDE, 2003). Entretanto, ainda não foi feita uma abordagem do conjunto da obra
que eles produziram, especificamente com o fito de apontar aproximações e distân-
cias de um em relação ao outro, em suas imbricações com a proposta da Escola Nova.
Do ponto de vista teórico-conceitual, a perspectiva analítica ancora-se no para-
digma da História das Mentalidades, a partir da hipótese segundo a qual as ideias de-
fendidas por ambos os autores expressavam convicções partilhadas pelos teóricos da
época acerca do fenômeno educativo, o que constituiria o que poderíamos compre-
ender como a “utensilagem mental” do debate pedagógico do período. Para tanto,
recorrer-se-á a autores como Chartier (1990) e Febvre (1983, 1985), sendo que o pri-
meiro, embora trilhando a perspectiva da história cultural, não deixa de ser um her-
deiro da tradição dos Annales.
Metodologicamente, a pesquisa deverá proceder mediante a recolha e classificação
de livros e artigos dos dois educadores, fontes que serão vistoriadas e analisadas em
consonância com as hipóteses teórico-conceituais que norteiam a investigação. A
construção do trabalho pretende efetuar uma revisão do estado da arte sobre ambos
328 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
os autores, mas se propõe a acrescentar algo em relação àquilo que já foi escrito, por
buscar percorrer a internalidade das obras em correlação com o espírito de seu tempo e
com o debate que existia internacionalmente sobre a produção e circulação das ideias
pedagógicas. Por fim, pretende-se mapear a maneira pela qual foram estabelecidas
fronteiras culturais e imbricamentos de propostas que aproximavam, mais do que
afastavam, os modos de compreender o fenômeno educativo.
A finalidade da pesquisa aqui empreendida é o reconhecimento dos paralelos
que aproximam e distanciam o ideário pedagógico produzido pelo conjunto da obra
de Faria de Vasconcelos do de Lourenço Filho, na busca de entretecer as práticas edu-
cacionais vivenciadas pelos dois autores com a produção teórica que ambos desen-
volveram. Compreende-se que houve similitudes no percurso dos dois intelectuais,
que não se conheceram pessoalmente. Ambos se destacaram no cenário de seus res-
pectivos países e se apropriaram de um conjunto internacional de ideias sobre educa-
ção que circulava na época. Sendo assim, supomos uma intersecção e uma fronteira
entre as ideias – pontos em que elas se tangenciam e pontos nos quais elas se distan-
ciam. Acreditamos que, por meio do estudo desses dois intelectuais exemplares do
que de melhor o movimento da Escola Nova produziu em Portugal e no Brasil, será
possível compreender as maneiras pelas quais as ideias pedagógicas foram produzi-
das, apropriadas, reproduzidas e se fizeram circular naquele específico período histó-
rico. Colocar, nesse sentido, em articulação as ideias da Escola Nova elaboradas nos
dois países de língua portuguesa daquela época é apreender os usos da linguagem e
da retórica educativa existentes no período em termos internacionais.
Pensar a História da Educação no século XX, em Portugal como no Brasil, requer
que se atente para o tema da Educação Nova ou da Escola Ativa. Como a escola
moderna fez uma autocrítica e passou a meditar sobre sua própria transformação?
Esse é o eixo do problema, quando se busca verificar o que se passava nas escolas e
quais eram suas possibilidades de mudança.
O primeiro elemento a ser considerado é o avanço ocorrido em áreas correlatas,
que passaram a dialogar muito de perto com os estudos educacionais, sobretudo os
progressos no campo da Biologia, da Antropologia, da Sociologia e da Psicologia. A
questão colocada naquele princípio de século XX era a seguinte: por que as crianças
que vão para a escola lá não aprendem? Era necessário mudar a escola; era necessário
repensar os métodos de ensino. Começa-se a recusar, desde então, o que passa a
ser qualificado como modelo de ensino tradicional. As sociedades do Ocidente a
partir de então são absolutamente regradas pelo código da cultura letrada. Sob tal
perspectiva, era preciso também, e sobretudo, colocar todas as crianças na escola e
lhes garantir um bom aprendizado. Assim, era como se os educadores do período
tivessem duas tarefas: contribuir para a irradiação das oportunidades escolares e fazer
a crítica aos modelos e métodos então adotados pela escola tradicional. O desafio,
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 329 •
O período entre 1920 e 1930 foi também a época em que Faria de Vasconcelos
iniciou sua reflexão e sua prática acerca da orientação profissional. Em 1925, fundou
o Instituto de Orientação Profissional, mas seus escritos sobre orientação vocacional
iniciaram anos antes. Ao redigir sobre a orientação profissional em 1922 na revista
Educação popular, ele anunciou que a Universidade Popular já possuía interesse
em favorecer a criação de um instituto voltado para orientar profissionalmente os
trabalhadores. Isso implicaria, de acordo com o texto, um estudo científico do
trabalho e das pessoas.
O ponto de partida dessa tarefa de orientar profissionalmente era a constatação
de que os rapazes e as moças, “quando têm que eleger o ofício ou a profissão para a
vida, encontram-se desorientados, perdidos, sem uma bússola que os guie” (FARIA
DE VASCONCELOS, 2006, p. 13). A eleição da carreira era, entretanto, o primeiro
grande dilema que viviam os jovens; aquele à luz do qual eles teriam de, pela primeira
vez, decidir por si próprios – inclusive porque os pais não sabiam como aconselhá-los:
“a escolha das carreiras é feita ao acaso, dentro do empirismo e da ignorância mais
consideráveis, e que obedece a motivos e móveis sem valor profundo e real” (FARIA
DE VASCONCELOS, 2006, p. 14).
A juventude, relativamente à profissão, não faria, nesse sentido, escolhas refletidas,
tomando “por aptidão e até por vocação o que é passageiro, transitório” (FARIA DE
VASCONCELOS, 2006, p. 14). Uma das formas mais usuais de escolher uma carreira
era a imitação da tradição familiar, fosse pela adesão à profissão dos pais, fosse pela
manifesta rejeição à mesma profissão. Além da imitação, outro aspecto interveniente
era a moda: “Há profissões que estão na moda” (FARIA DE VASCONCELOS, 2006,
p. 14). Na tentativa de assinalar o que deveria ser feito pelo especialista interessado em
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 333 •
das pela cultura do exame, tinham “por característica a rigidez, a inflexibilidade dos
seus quadros e métodos, a composição heterogênea das classes e das turmas, a unifor-
midade nos programas e na distribuição dos alunos e o automatismo nas promoções”
(FARIA DE VASCONCELOS, 2009, p. 114). Faria de Vasconcelos contrapõe esse
modelo tradicional de seleção por exames com a escola renovada, que leva em conta a
classificação dos alunos, considerada científica, de acordo com o grau de inteligência.
Tal classificação das crianças era orientada a partir dos princípios da Pedologia; esta,
por sua vez, pretendia ser a ciência que trataria do conhecimento da criança. Esse
conhecimento compreenderia aspectos fisiológicos, aspectos psicológicos e aspectos
sociais. O tema da Pedologia era o que conferia o álibi para se reivindicar, para os
estudos da Educação, a pedagogia experimental e a realização de testes de medida.
Os alunos das escolas novas seriam divididos em classes especiais e distintas, de
acordo com a subdivisão em normais, atrasados e subnormais. Em cada classe, a
instrução obedeceria ao nível mental do aluno. Outra diferenciação das escolas novas
era exatamente estabelecer percursos formativos específicos, o que significava classes
ou cursos de níveis diferentes. Eram as chamadas classes móveis. O aluno que tivesse
maior aptidão para a matemática e dificuldade em relação ao estudo de línguas poderia
estar no 5◦ ano em uma classe e no 4◦ ano na outra: “dentro do regime das classes
móveis esse aluno cursará – dadas as suais aptidões e conhecimentos suficientes –
matemáticas na 5a ou 6a classe, línguas na 2a ou 3a e ficará para os outros ramos
na classe para que entrou” (FARIA DE VASCONCELOS, 2009, p. 115). Faria de
Vasconcelos discorre sobre a diferença entre esse sistema e o das classes rígidas:
Dada a heterogeneidade da população escolar, o professor não pode indivi-
dualizar o ensino, adaptá-lo às necessidades intelectuais e pedagógicas dos alu-
nos; as lições são feitas para uma média ideal; nem delas aproveitam os alu-
nos mais atrasados, que não podem alcançar e assimilar as matérias que se es-
tudam, nem os mais adiantados, que as excedem e as encontram insuficien-
tes. Num e noutro caso, vem a indiferença, o desinteresse. O sistema de clas-
ses móveis suprime esses inconvenientes, agrupando os alunos não segundo
a idade ou classe a que normalmente, supõe-se, deviam pertencer, mas se-
gundo as suas capacidades reais e efetivas, de modo que cada aluno tem um
programa que corresponde aos seus conhecimentos e aptidões e ocupa sem-
pre a situação que mais convém à sua individualidade. (FARIA DE VAS-
CONCELOS, 2009, p. 115).
116) – e também de provas pedagógicas, as quais teriam por finalidade não apenas
determinar o nível pedagógico dos alunos, mas igualmente diagnosticar e corrigir as
eventuais falhar e lacunas pedagógicas por eles apresentadas.
Sob tal perspectiva, Faria de Vasconcelos defendia o que chamava de self-
government. Em artigo intitulado “O self-government na escola”, publicado na Re-
vista Escolar, ele reconhecia as críticas que existiam à época contra essa metodologia:
a ideia de que se tratava de um sistema de educação de origem anglo-saxônica, não
sendo, portanto, conveniente para os povos latinos; a visão de que o professor per-
deria sua autoridade e sua capacidade de manter a disciplina dos alunos; a crença,
enfim, de que seria uma medida ineficaz. Contrariamente aos críticos, entretanto, o
autor argumentava que a disciplina havia melhorado nas escolas em que fora usado
o self-government, posto que se trataria de uma medida de educação moral. O lado
autoritário da velha pedagogia via a criança/aluno como um delinquente.
Na pedagogia nova, o professor é um companheiro de viagem, um amigo, um
facilitador do aprendizado. A escolarização passa a se dar em um clima de confiança,
amizade, cordialidade, companheirismo e, fundamentalmente, de liberdade. O self-
government baseia-se exatamente nessa aliança entre liberdade e responsabilidade.
Trata-se de ensinar à infância o governo de si mesma.
A proposta implicava que as faltas cometidas fossem julgadas por um tribunal
dos próprios alunos. Era como se fosse uma aldeia escolar: os alunos estabeleciam
as leis, formavam-se conselhos para essa finalidade, elegiam-se representantes para
as diferentes funções. E conferia-se o respeito às normas criadas pelos próprios
estudantes. Era como se a escola fosse a miniatura de uma cidade: uma cidade escolar.
Os alunos exercitavam, assim, um preparo para a cidadania, sendo, a um só tempo,
legisladores e magistrados em potência. Nem por isso, contudo, o professor perdia o
seu papel:
O papel do professor alarga-se, este intervém de um modo mais ativo, mais
elevado, como um verdadeiro educador, pois que tem de esclarecer os alunos,
guiá-los, comunicar-lhes o seu entusiasmo e o seu ideal. O aluno não gosta de
ser obrigado, mas de ser guiado. A autoridade do professor fica de pé, porém
reveste outras formas distintas das do regime da disciplina autocrática e abso-
luta. Delega aos alunos o poder de se governarem por si mesmos, mas a sua vi-
gilância não cessa, e a sua intervenção, quando se impõe, não deixa de realizar-
se. O self-government é uma lição prática de educação cívica, a prática da auto-
nomia escolar é o laboratório da classe de instrução cívica. Porventura o pro-
fessor deixa de ser tal nos demais ramos porque o aluno realiza por si próprio
suas tarefas, procura documentos, investiga, faz experiências? O professor di-
rige os alunos com tato, entusiasmo, perseverança, habitua-os a ocuparem-se
da res publica com toda a seriedade. A autoridade dos alunos ajunta-se à do
professor, sem a substituir, pois quanto maior é a atividade dos alunos, tanto
melhor é a obra do mestre. (FARIA DE VASCONCELOS, 2009, p. 364).
336 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Nos anos 1930, o tema da orientação profissional tornou-se muito forte na pro-
dução escrita de Faria de Vasconcelos. A ideia de aptidão profissional, os testes de
seleção mental, tudo isso ganhou força nos textos elaborados pelo autor. A apropria-
ção da obra de Binet e de suas escalas de inteligência dava a tônica da produção do
educador, assim como o uso de conceitos como idade mental, quociente de inteli-
gência, psicometria, testes e medidas. Mas havia, em direção disso tudo, uma acepção
de criança que passava pela Biologia e pela Psicologia. A ideia da proteção da infância
tornou-se um tema de relevo em sua obra, valorizando-se, para tanto, o direito das
crianças de usufruírem as condições necessárias para seu desenvolvimento físico e es-
piritual. A perspectiva era a de que toda criança deve ser protegida, qualquer que seja
sua “raça”, nacionalidade e religião. Sob tal aspecto, a nova pedagogia era, de algum
modo, derivada de uma inaudita percepção da infância, expressa no que se entendia
ser o campo da Pedologia. Daí eram desdobrados os considerados direitos da criança.
Por causa disso, educar seria “fornecer aos processos interiores a ocasião e o meio de
realizar-se, em despertar e dirigir todas as atividades do educando, em pôr em ação
todas as suas faculdades” (FARIA DE VASCONCELOS, 2010a, p. 7).
A escola era tida, aqui, como um meio de preparo do sujeito para a “profissão de
homem”, mas também como um ambiente para que a criança pudesse viver sua vida
atual, sua existência de criança. Por isso mesmo, os processos, os programas e métodos
de ensino deveriam basear-se nas disposições e inclinações naturais, bem como nas
necessidades psicológicas dos educandos: “daí a tendência para individualizar os
métodos e processos de ensino, os horários, os programas, a classificação dos alunos
e as suas promoções escolares, a disciplina, etc.” (FARIA DE VASCONCELOS,
2010a, p. 8-9). Não se tratava, no caso, de voltar aos métodos individuais de ensino –
e Faria de Vasconcelos sublinhava essa informação. A educação individualizada (de
maneira diferente do modo individual de ensino) pressupõe a existência de um meio
coletivo. Era preciso que a nova educação criasse um modo criativo de individualizar
os processos de ensino no âmbito da vida coletiva da escola, trazendo flexibilidade
e adaptabilidade aos programas, mobilidade das classes, primado da observação e
da experiência como princípios organizadores do ensino. Com tudo isso, a escola
tornar-se-ia um local agradável e alegre. Para tanto, a própria disposição física do
edifício e dos lugares do ensino tornava-se estratégica.
Escolas de trezentos, quatrocentos e até oitocentos e novecentos alunos
são a negação e a ruína de toda a obra educativa, sincera, real e eficaz.
Multipliquem-se as escolas, aumente-se o professorado nas proporções con-
venientes e em vez desses edifícios monumentais, custosos, pesados e antie-
ducativos – que apenas têm por si a intenção generosa daqueles que man-
dando construí-los julgaram fazer uma boa ação – edifiquem-se apenas casas
leves confortáveis, práticas, belas, adaptadas aos fins educativos. (FARIA DE
VASCONCELOS, 2010a, p. 45).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 337 •
Ampliava-se, com isso, a ideia de aula: esta passava a estar composta em todas
as partes da escola; portanto, o aluno não passava mais o tempo todo preso a uma
concepção tradicional de classe e de sala de aula. Até porque as carteiras antigas são
apresentadas como instrumentos de tortura para o aluno, “deformam corporalmente
a criança, originam atitudes viciosas e doenças – escoliose, miopia, etc. – impõem-
lhe uma mobilidade contrária à sua natureza, às suas necessidades de movimento e
liberdade física, cansam-na excessivamente, barbaramente” (FARIA DE VASCON-
CELOS, 2010a, p. 55). Essas carteiras eram pensadas, segundo Faria de Vasconcelos,
para a audição passiva, para o ensino livresco, para o autoritarismo de uma disciplina
que condenava o estudante ao silêncio e à imobilidade.
Nem a observação direta, nem a experiência pessoal, nem as ocupações manuais,
nada disso era priorizado pelo método verbalista representado fisicamente pelas car-
teiras fixas. Tais carteiras homogeneízam não apenas os processos de ensino, mas a
própria figura dos alunos. O autor recorda que “o aluno não existe, o que existe são
alunos, que diferem consideravelmente entre si sob o ponto de vista do seu desen-
volvimento mental, das suas tendências, capacidades, funções e processos mentais”
(FARIA DE VASCONCELOS, 2010a, p. 121). Há de se lembrar que, pelo esquema
das classes móveis, o aluno poderia pertencer a classes ou a cursos de níveis diferentes,
dependendo das matérias. Isso conferiria flexibilidade ao aproveitamento do aluno,
conforme sua habilidade diferente nas diversas disciplinas.
No ensino tradicional, os professores não conhecem os seus alunos:
A população exorbitante das aulas, a falta de relações de confiança e a sim-
patia entre professores e alunos, a falta de treino no espírito e na prática da
observação dos alunos, tornam o conhecimento destes precário, insuficiente,
quanto não totalmente nulo. A falta de conhecimento dos alunos por parte
dos professores traz como consequências inevitáveis que o ensino, no seu con-
teúdo e nos seus métodos, não se adapte ao nível intelectual, às aptidões es-
peciais e ao estado de conhecimento dos educandos. Em tais condições, a he-
terogeneidade não pode senão acentuar-se. (FARIA DE VASCONCELOS,
2010a, p. 162).
seria, nos termos de Faria de Vasconcelos, aquilo que asseguraria a vigência da máxima
inglesa the right man in the right place.
Outro tema sobre o qual Faria de Vasconcelos se debruçou nesse último período
de sua produção foi o que ele chamou de “arte de estudar”. Nessa direção, a primeira
coisa a ser considerada era a modificação do significado de aprendizagem. Enquanto
a instrução era pensada apenas como um conjunto de disciplinas a serem ensinadas,
bastava o esforço do professor no sentido da transmissão do conhecimento. Mas,
a partir do momento em que a aprendizagem passa a ser compreendida como um
processo ativo, ela só pode ser pensada à luz da atividade dos alunos. Isso exige
do educador, portanto, o estudo de como esse aluno processa o aprendizado. Daí
decorre tal preocupação com os procedimentos mediante os quais se deverá processar
o estudo.
A premissa que dirige a investigação é a compreensão de que o aprendizado não
acontece apenas mediante a mera transmissão de informações e conteúdo, de ma-
neira expositiva, por parte do professor: “a transmissão é pura mecânica se não tiver
em conta, se não se subordinar às condições concretas da aquisição, da assimilação e
da criação pelo aluno. A criança não pode continuar a ser um mero fragmento duma
classe, tem de passar a ser uma pessoa viva, real, concreta” (FARIA DE VASCON-
CELOS, 2010b, p. 94). Argumenta-se que o aprendizado se dá por meio de um pro-
cesso interior que corresponde à atividade do estudo:
Com os autores que têm se ocupado do assunto, podemos distinguir pelo
menos duas acepções em que o processo é tomado. Segundo uma, o estudo é
um processo de assimilação do conhecimento, de reorganização da experiên-
cia. Segundo outra acepção, empregada correntemente, o termo estudo tem
uma significação mais limitada e compreende qualquer atividade mental di-
rigida para a realização dum certo fim, quer o fim seja a memorização dos fa-
tos numa lição de geografia, quer a aprendizagem duma história na leitura,
quer a aprendizagem duma lista de palavras em ortografia. Neste conceito
corrente da palavra, observa um escritor, estudo significa a atividade dirigida
para a aquisição de ideias, quer essas ideias se tornem parte orgânica do co-
nhecimento, quer não. (FARIA DE VASCONCELOS, 2010b, p. 95).
vida ulterior; supõe-se que essas ideias são adquiridas de modo a exercitar as aptidões
e capacidades ao indivíduo e a construir hábitos eficientes de trabalho” (FARIA DE
VASCONCELOS, 2010b, p. 97-98).
O autor recomenda a criação de um tempo de estudo, voltado para a formação
do hábito e especificamente do que o texto qualifica por autodireção. Advoga-se o
que era compreendido como método global. E se entende que o estudo corresponde
a um processo de raciocínio, decorrente, portanto, de uma questão intelectual a ser
resolvida.
Estudar é pensar ou raciocinar. Ora, pensar ou raciocinar só ocorre quando
nos encontramos em presença duma dificuldade, duma perplexidade, duma
dúvida. Se o indivíduo não sente dificuldade, se não tem perplexidades, se
não vacila, se não duvida, não há problema para ele na situação em que se
encontra e faz-lhe face mediante os mecanismos de reação inatos ou adqui-
ridos anteriormente. É indispensável, para suscitar nos alunos o raciocínio,
habituá-los a formularem todo o trabalho que fazem sob a forma de pro-
blema, levá-los a assumirem perante a matéria de estudo a atitude de quem
tem de resolver um problema. Assumida esta atitude, é mister localizar e de-
finir o problema a resolver, o objetivo que se tem em vista. Antes de poder
raciocinar sobre qualquer assunto, é necessário reconhecer a dificuldade que
encerra, determiná-la com exatidão e precisão. Quem estuda precisa de fazer
uma cuidadosa e pormenorizada análise do problema que tem de resolver e
de cada dificuldade encontrada porque, só assim, dividindo a matéria a es-
tudar nos seus elementos, nas suas partes, trabalhando-as particularmente, é
possível estabelecer ligações entre alguns dos elementos conhecidos no caso
presente do estudo e a solução ou resposta a dar. A comparação, a análise
suscitam, promovem fertilidade das ideias. Só depois de feita a análise é pos-
sível encontrar as soluções, as respostas, porque só então se sabe onde está a
dificuldade e se conhece o ponto exato que deve ser atacado. Assim deve-se
adquirir o hábito de formular sob a forma de problema tudo quanto se es-
tuda, deve-se adquirir a prática de analisar o problema para saber o que ele é
realmente, quais são os dados que contém. (FARIA DE VASCONCELOS,
2010b, p. 154).
disso, partia da premissa de que o sistema educacional do ensino no Brasil havia sido
engendrado a partir daqueles anos 1920 e especialmente dos anos 1930.
A perspectiva de constituição de uma pedagogia científica permeia os escritos de
Lourenço Filho desde suas intervenções políticas até seus textos teóricos, passando
pela produção dos Testes ABC (LOURENÇO FILHO, 1969) e pelo conjunto de
livros e materiais didáticos que elaborou para crianças. O estudo desse material, bem
como do livro Introdução ao estudo da Escola Nova (LOURENÇO FILHO, s/d a),
favorecerá a compreensão dos modos pelos quais se deu no Brasil a circulação das
ideias pedagógicas ligadas ao movimento internacional da Escola Nova.
Lourenço Filho e Faria de Vasconcelos inscreviam-se no escopo do movimento
da Escola Nova. No depoimento que deu para o inquérito realizado pelo jornal O
Estado de S. Paulo em 1926, a propósito do ensino paulista, Lourenço Filho enfatiza
a ideia de que haveria um “divórcio do que na escola se pensa e se faz e a vida do
menino que a frequenta na sociedade de amanhã” (LOURENÇO FILHO, s/d b, p.
100). Segundo o educador, as escolas viviam presas a um “ritualismo asfixiante”, com
os recursos didáticos em voga desconsiderando os processos biológicos, bem como
desconhecendo aquilo que se supunha ser a noção científica de método de ensino.
A escola tradicional não serve o povo, e não o serve, porque está montada
para uma concepção social já vencida, e não morta de todo, bem ou mal, vi-
nha servindo aos indivíduos que se destinavam às carreiras liberais, e nunca às
profissões normais de produção econômica. Estendida a todas as classes po-
pulares, ela provou bem cedo que não só falhava à finalidade social de adap-
tação econômica, mas à própria finalidade mais ampla e profunda da eleva-
ção moral do homem. (LOURENÇO FILHO, s/d b, p. 102).
Lourenço Filho sublinha que o ler, o escrever e o contar são meros meios de um
fim maior, basicamente o de direcionar o estudante para que ele pudesse se encontrar
profissionalmente com o aproveitamento de suas aptidões:
Ler, escrever e contar são simples meios; as bases da formação do caráter, a
sua finalidade permanente e inflexível. Do ponto de vista formal, isso signi-
fica a criação, no indivíduo, de hábitos e conhecimentos que influam dire-
tamente no controle de tendências prejudiciais, que não podem ou não de-
vem ser sufocadas de todo pelo automatismo psíquico possível na infância.
E, como consequência, nos grandes meios urbanos, à escola cabe, hoje, ini-
ludivelmente, facilitar a orientação e seleção profissional, pelo estudo das ap-
tidões individuais da criança, conhecimento e esclarecimento do desejo dos
pais, tradição e possibilidades da família. Esse aspecto é inteiramente desco-
nhecido em nossas escolas. (LOURENÇO FILHO, s/d b, p. 104).
Introdução aos estudos da Escola Nova é uma obra de Lourenço Filho publicada
originalmente em 1929 pelas Edições Melhoramentos. Trata-se de um livro-síntese do
movimento da Escola Nova. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um tratado,
pode ser lido como um compêndio didático. Daí talvez a enorme repercussão da obra
344 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Assim como Faria de Vasconcelos, Lourenço Filho propõe uma pedagogia cien-
tífica e experimental, escorada pela biologia educacional, pela Psicopedagogia, en-
tendida esta como a psicologia da Educação, e pela antropologia pedagógica; assim
como Faria de Vasconcelos, Lourenço Filho aponta o Instituto J. J. Rousseau, fun-
dado em 1911 e no qual o primeiro havia trabalhado, como o locus de experimenta-
ção e de laboratório para os novos estudos sobre a infância; assim como Faria de Vas-
concelos, Lourenço Filho invoca a Pedologia como o estudo específico da criança;
e, assim como Faria de Vasconcelos, Lourenço Filho aponta para a hipótese de re-
capitulação abreviada, ou seja, a ideia de que “cada indivíduo devia passar, em seu
desenvolvimento, por uma série de estados que representassem as formas sucessivas
da espécie a que pertencesse” (LOURENÇO FILHO, s/d a, p. 36).
Naqueles anos, fundavam-se associações voltadas para os estudos da infância,
eram criados institutos e periódicos especializados sobre o tema, bem como se esta-
belecia a Pedologia como uma nova disciplina. A acepção de pedologia supunha o
enfrentamento de questões hereditárias. Haveria, pela Biologia, uma parte da pessoa
que seria fixa, como um legado recebido, que se amalgamaria a algo variável, aquilo
que é adquirido na trajetória da experiência vivenciada. Assim, em certa medida, edu-
car significava enfrentar os limites da hereditariedade. Educar era confrontar a Bi-
ologia em nome da crença nas possibilidades de transformação humana. Mas isso
supunha conhecer a criança em sua constituição biológica, física e psíquica. Um dos
erros que Lourenço Filho percebia na pedagogia tradicional era a tendência a se con-
siderar uma criança concebida em abstrato, “uma criança de tipo ideal por todos os
aspectos, na vida real inexistente” (LOURENÇO FILHO, s/d a, p. 71).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 345 •
A Pedagogia Nova pondera que cada uma das crianças precisa ser identificada
em sua constituição biopsicológica. Analisa também a necessidade de reforma nos
procedimentos do ensino e na forma de organização dos estudantes em sala de aula,
exatamente em virtude do reconhecimento da individualidade dos alunos. Isso signi-
fica alterar o próprio lugar social da escola na vida social. A escola torna-se centrada
na criança e “as classes deixavam de ser assim locais onde os alunos estivessem sempre
em silêncio, ou sem qualquer comunicação entre si, para se tornarem pequenas soci-
edades que imprimissem aos alunos atitudes favoráveis ao trabalho em comunidade”
(LOURENÇO FILHO, s/d a, p. 133).
Lourenço Filho faz uma genealogia da educação escolar, iniciando com Ratke e
Comenius no século XVII, passando por Rousseau, Basedow, Froebel, e conferindo
bastante destaque a Herbart, ao esquema de sua instrução educativa. Desenvolve
reflexão sobre os passos formais pelos quais, no modelo herbartiano, a lição deveria
desenvolver-se: com a clareza da apresentação, a associação, a sistematização e a
aplicação (AMARAL, 1990). Lourenço Filho identifica Herbart como o arauto do
que se convencionou chamar de escola tradicional, opondo, portanto, a acepção de
interesse em Herbart àquilo que Dewey posteriormente caracterizaria como interesse:
“[...] o caráter ativo do interesse, como reflexo de necessidades vitais, em impulsão
e desejos; não estão eles, porém, jamais em estado difuso ou equilíbrio indiferente”
(LOURENÇO FILHO, s/d a, p. 148). Diz o texto de Lourenço Filho que, na escola
tradicional,
[...] o trabalho dos alunos se caracterizava por uma atitude de receptividade
ou absoluta passividade: de um professor que falava e discípulos que deve-
riam ouvir em silêncio, imóveis, de braços cruzados. Em classes mais adian-
tadas, alunos que tomassem nota ou que seguissem pelos compêndios a ex-
plicação do mestre; depois, a conferência do que com isso fosse fixado, em
definições, regras, classificações, números e datas. O ideal seria a reprodução
automática sem qualquer variação, ou sem que se permitisse a expressão de
possíveis diferenças individuais. Dar a lição, tomar a lição – eis em que se re-
sume a didática tradicional. A escola ativa, ao contrário, concebe a aprendiza-
gem como um processo de aquisição individual, segundo condições persona-
líssimas de cada discípulo. Os alunos são levados a aprender observando, pes-
quisando, perguntando, trabalhando, construindo, pensando e resolvendo
situações problemáticas que lhes sejam apresentadas, quer em relação a um
ambiente de coisas, de objetos e ações práticas, quer em situações de sentido
social e moral, mediante ações simbólicas. É evidente que, a um didatismo
seco e árido, regulado por imposição externa, de feição uniforme, tende-se a
opor situações de trabalho que atendam às condições normais de desenvol-
vimento e ajustamento de cada discípulo. Desse modo, o ensino ativo trans-
fere do centro da cena o mestre, para nele colocar o educando, visto que é ele
que importa, em sua formação e ajustamento, ou na expansão e desenvolvi-
mento de sua personalidade. (LOURENÇO FILHO, s/d a, p. 149).
346 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
autor explicita que não se poderia contar, ao ensinar, com uma coincidência entre a
idade cronológica, a idade mental e a idade considerada adequada para se ensinar a ler
e a escrever. Seriam coisas diferentes. Os Testes ABC pretendiam tornar o ensino mais
racional, mais eficiente e mais rápido. O ensino da leitura e da escrita foi privilegiado
pelo educador por constituir um dos grandes desafios do ensino graduado nas escolas,
tanto nas escolas tradicionais quanto nas renovadas. Diz Lourenço Filho: “não há ar-
tifício mágico que ensine a ler, nem cremos que possa ser inventado” (LOURENÇO
FILHO, 1969, p. 17). De acordo com o pensamento da época, o autor destaca a exis-
tência de processos evolutivos que interferem na capacidade de aprender. Mas julga
que tal habilidade para o aprendizado não acontece de maneira idêntica em todas as
crianças. Pelo contrário: cada uma aprenderá de uma maneira e em um ritmo, que
lhe são próprios e específicos. Nesse sentido, “julgar a capacidade de aprender tão so-
mente pela idade cronológica será desconhecer os fundamentos do próprio processo
de desenvolvimento” (LOURENÇO FILHO, 1969, p. 22). Invocando os trabalhos
de Binet, de Simon e de Decroly, Lourenço Filho insiste na importância de se ensinar
a ler e a escrever ao mesmo tempo. Seriam atividades, portanto, simultâneas.
Modernamente, a simultaneidade do aprendizado das duas técnicas é ponto
pacífico em didática, e sua prática, universal. Leitura e escrita se adquirem
juntas, em menor prazo, com mais economia e segurança, que separadas. A
explicação, como veremos a seguir, é simples: leitura e escrita estruturam-se
em comportamentos de base motriz, em atividades, por parte do aprendiz.
A leitura não é, como se pensou por muito tempo, simples jogo de fixação
de imagens visuais e auditivas. Ler é uma atividade, não só em sentido figu-
rado: é ação, desde a visão das formas das palavras, das frases ou sílabas, até a
expressão final, em linguagem oral (leitura expressiva), ou em linguagem in-
terior (leitura silenciosa). (LOURENÇO FILHO, 1969, p. 43).
Conclusão
Referências
Milton Lahuerta
Preâmbulo
A
s relações entre educação e política foram sempre muito controversas. Tra-
tar desse assunto num congresso de educadores é, portanto, um grande desa-
fio e requer cautela, especialmente porque a perspectiva adotada não será exa-
tamente a dos especialistas da área. Mas a cautela é recomendável também porque no
campo especializado da Ciência Política, muito marcado pelas abordagens institucio-
nalistas, há pouca preocupação com as relações entre educação e política. No fundo,
enfrentar esse desafio exige abordar a política para além do movimento racional dos
atores e das questões institucionais, mesmo reconhecendo a importância de tal ângulo
de análise. Do mesmo modo, ainda que se considere a determinação estrutural pre-
sente nas relações sociais de dominação no contexto da sociedade capitalista, há que
se observar também o momento consensual desse domínio. Dito em outros termos,
é preciso compreender as motivações de sentido da ação, e desvendar as razões que fa-
zem com que os homens obedeçam e aceitem um determinado poder como legítimo.
Tais preocupações demandam, portanto, pensar a política com um horizonte alar-
gado, buscando dimensões muitas vezes não consideradas pelas pesquisas especializa-
das, com a finalidade de avaliar a qualidade e a possibilidade da democracia, bem como
compreender a cultura política que efetivamente vige numa determinada sociedade1 .
Nesse sentido, o reconhecimento das determinações estruturais do poder e a per-
cepção de que as instituições contam se articulam com outras dimensões, mais afeitas
às relações entre cultura e política (ou aos “hábitos do coração”, como gostava de di-
zer Tocqueville). E, de um modo ou de outro, trazem à tona a formação para a vida
civil, entendida como um processo de educação política que, em nenhum sentido,
1 A teoria politica e social (Maquiavel, Marx, Tocqueville, Stuart Mill, Weber, Gramsci e tantos outros),
ainda que com nuances e diferenças entre os autores, se colocou algumas dessas questões e procurou
respondê-las pensando o poder e a política em suas relações com a cultura, com o processo de racio-
nalização do mundo, com o tema dos intelectuais, com a relação entre dirigentes e dirigidos, com os
riscos da tirania da maioria, etc.
356 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
pode ser confundido com um projeto de doutrinação ideológica2 . Ainda que com
diferentes ênfases, esse tema inquieta a reflexão sobre a política desde os gregos; e se
coloca de modo contundente com o advento das massas na cena pública desde os
primórdios da modernidade3 . Hoje, a preocupação volta a se colocar com força, in-
clusive porque nas últimas décadas, mesmo em sociedades com consolidada tradição
de cultura cívica, vem ocorrendo um fortíssimo refluxo democrático (PUTNAM,
2015a), em virtude do processo de desqualificação da vida pública que atingiu não
só a política (NOGUEIRA, 2001), identificada como o lugar do malfeito, da inefi-
ciência e da corrupção, mas a própria educação, especialmente a educação pública,
acusada de ineficiente e anacrônica diante das transformações em curso, principal-
mente por seu conteúdo humanista (CAMPS, 1996)4 .
Várias razões contribuem para que isso esteja ocorrendo, embora talvez o fator
mais impactante na desqualificação da esfera pública e na “apatia cívica” contem-
porânea seja a vitória da lógica econômica sobre todas as outras dimensões da vida,
consagrada pela presença avassaladora da Internet e das redes sociais digitais na orien-
tação das convicções de milhões de pessoas, especialmente das novas gerações (CO-
ELHO, 2019). Tal advento, sem dúvida, possibilitou a circulação de informações,
a troca de experiências e o debate de ideias numa escala jamais vista, introduzindo
nesse espaço virtual um elemento democrático e potencialmente educativo e emanci-
patório. Paradoxalmente, contudo, a nova tecnologia também tem contribuído para
2 A formação para a vida civil não tem sido uma preocupação sistemática na discussão acadêmica e no
debate público nos últimos anos, ainda que haja algumas iniciativas isoladas nesse sentido. Não há
muitas contribuições teóricas tratando especificamente do problema da desafeição cívica e reconhe-
cendo a necessidade de se pensar a formação para a vida civil desde a infância. Dentre elas, cabe lem-
brar do livro Our kids. The american dream in crisis. (PUTNAM, 2015b).
3 A preocupação com a educação incompleta, pela possibilidade de a demagogia prevalecer nos pro-
cessos de tomada de decisões, atormentou a reflexão política, pelo menos desde os gregos. De certo
modo, com a emergência das massas na cena pública, além desse tema, ganha atualidade outro que
também atormentava a imaginação antiga. Refiro-me à abstenção: o cidadão tinha o direito de parti-
cipar nas decisões coletivas, mas não o fazia, seja pela razão que fosse (FINLEY, 1988, 1997). Os dois
problemas preocuparam seriamente os pensadores liberais mais criativos do século XIX. Aqui as re-
ferências de Tocqueville (1977), tratando das associações voluntárias nos EUA como um modo de se
fazer essa formação, e Mill (1981), operando um giro no liberalismo inglês, ao assumir que cabe ao po-
der público prover os pobres de educação formal para que eles possam se educar politicamente e par-
ticipar da comunidade política, são fundamentais. Inclusive, porque ambos, cada um a seu modo, es-
tão procurando responder à emergência das massas e ao que poderia ser qualificado como o risco da
“tirania da maioria” e do desinteresse pela coisa pública num contexto de democratização social.
4 No Brasil, pelas circunstâncias de exasperação política e polarização ideológica dos últimos anos –
que propiciaram a emergência de movimentos como o “Escola Sem Partido” e os descalabros come-
tidos contra as humanidades em nome do combate à partidarização e a ideologização –, isso também
ocorreu e foi amplificado pelo intenso processo de judicialização, que tornou praticamente impossí-
vel se falar em política num registro positivo.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 357 •
12 Analisando a França, Boltanski e Chiapello (2009) mostram como, do final dos anos 1970 em diante,
ocorreu um abalo nos sustentáculos do capitalismo planificado de base nacional, com as corporações
distribuindo suas instalações pelo globo, incentivando a “flexibilização” das relações de trabalho e a
diversificação da produção, em função do consumo por segmentos, e reforçando o ideal de maior
liberdade do indivíduo e a recusa à massificação das categorias profissionais.
13 A aceleração consubstancial ao capitalismo, em seus primórdios, trouxe ã tona uma expectativa se-
cular que substitui a promessa religiosa da vida eterna, pois representa a resposta moderna ao pro-
blema da finitude. Com o aumento da velocidade, seria possível ampliar as possibilidades de vida
(ROSA, 2017b). Durante boa parte do século XX, em todas as sociedades não houve nenhum ques-
tionamento ao par aceleração-crescimento por haver uma crença generalizada de que através dele se
poderia chegar a uma vida plena (ROSA, 2017a).
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 363 •
ções entre economia e política, impondo uma agenda de mudança nas relações de
trabalho que atingiu o núcleo estruturante do Estado Constitucional de Direito e o
modo como se projetava a sociedade para o futuro.
A democracia política representativa, concretizada ao longo do século XX, ligava-
se diretamente a uma visão da história temporalizada (KOSELLECK, 2006), do
mesmo modo, o reconhecimento e a ampliação dos direitos fundamentais, cada vez
mais definidos constitucionalmente, permitiam orientar as expectativas sociais de
autonomia e de emancipação (ROSA, 2010). Tal situação impôs a necessidade de
se estabelecer alguma sincronia entre os processos de tomada de decisão coletiva e a
dinâmica de aceleração, de modo que o sistema político tivesse o tempo necessário
para organizar o processo democrático e deliberativo, e processar as demandas por
direito garantidas constitucionalmente. Sob a égide do Estado social, a aceleração
social combinou-se com o projeto constitucional, justificando-se como o meio para
atingir o progresso e realizar a autonomia privada e pública, consagrando a aliança
entre indústria, ciência e tecnologia.
No entanto, com a mudança de padrão produtivo e tecnológico (caracterizado
como modernidade tardia, como modernidade radicalizada ou líquida, e também
como capitalismo flexível), a economia emancipou-se dos controles políticos e a di-
nâmica da aceleração desvencilhou-se de qualquer limite, abdicando de justificar-se
com uma promessa emancipatória que se cumpriria no futuro. Com isso, as institui-
ções político-jurídicas que haviam dado vida e sustentação ao projeto moderno en-
traram em processo de deslegitimação. Não importa mais para onde se está indo nem
aonde se pretende chegar; o impulso à aceleração e ao crescimento é autojustificado
e funciona como um imperativo. O movimento tornou-se um fim em si mesmo e
condição do próprio movimento.
Não há, contudo, propriamente uma ruptura com o projeto moderno; apenas já
não se coloca mais a necessidade de justificá-lo. Ou seja, a aceleração e o crescimento
prosseguem sendo, junto com a inovação permanente e a destruição criadora, os im-
pulsionadores do processo social, só que sem uma finalidade moral que justifique sua
existência, mesmo que limitando seus movimentos, e sem nenhum senso de responsa-
bilidade por suas consequências. A competição, consubstancial ao capitalismo e uma
das forças motoras da aceleração social, não se restringe mais à dimensão econômica do
sistema, efetivando-se plenamente no plano da cultura e atingindo a própria educação.
A transformação tecnológica e produtiva acentuou ainda mais a tendência es-
tabelecida pela modernidade de que os ciclos de aceleração funcionassem cada vez
mais como processos fechados e auto impulsionados. Além da coerção econômica
intrínseca ao processo de aceleração social, que força todos a correrem numa veloci-
dade dobrada para permanecerem no mesmo lugar, há uma dinâmica cultural em
curso que requisita também crescentemente a atenção, o desejo e a energia das pes-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 365 •
soas (ROSA, 2017a). Do ponto de vista dos impactos sociais, essa transformação po-
deria ser caracterizada a partir da ideia de passagem de uma sociedade do controle
para uma sociedade da performance, da superação de limites no fazer e no pensar, na
qual se coloca, no lugar da ascese, da restrição, da limitação e da punição, a perspec-
tiva da satisfação e do gozo plenos (HAN, 2017). A outra consequência é aquela que
diz respeito ao esvaimento da preocupação com qualquer ideia de bem comum, com
escasso senso de responsabilidade pelos problemas coletivos e profundo desinteresse
pelas questões públicas.
Claus Offe (1984) já apontava para o esvaziamento dos partidos e da política re-
presentativa no início da década de 1980 e prognosticava o crescimento do corporati-
vismo, da repressão e da violência, sem atentar, contudo, para a dinâmica de acelera-
ção em curso, promovida pela mudança de padrão produtivo e tecnológico, que colo-
caria em questão não só os partidos políticos e o WSK, mas a própria ideia de demo-
cracia e de política. Uma década depois, já era possível estabelecer a relação entre o
déficit de legitimação dos Estados contemporâneos e essa aceleração sem justificativa,
na exata medida em que o futuro perdia sua potência simbólica diante da síndrome
da pressa (MARRAMAO, 1995a). Ou seja, a aceleração provocada pela mudança de
padrão produtivo e tecnológico estava abalando as estruturas institucionais e norma-
tivas da modernidade, esvanecendo-se a perspectiva de construir um programa para o
futuro, inclusive pela demolição dos mitos do progresso e da revolução. Com isso, a
futurização perdia sua função social orientadora, de tal forma que o desejo e a tensão
do futuro, que anunciavam a possibilidade de uma vida mais plena para as novas gera-
ções, mesmo que isso pudesse implicar o sacrifício de seus pais, transformam-se, pura
e simplesmente, em frustração, em ressentimento e em descrença no porvir. O futuro
deixa assim de ter um significado prospectivo, passando a ser concebido apenas como
uma etapa a ser atingida e rapidamente deixada para trás. Como consequência, as
instituições que haviam dado vida à modernidade, a começar pelo Estado-nação e as
Constituições democráticas, pareciam tornar-se anacrônicas (HABERMAS, 2000),
cada vez mais vistas como obstáculos à aceleração sem justificativa (ROSA, 2010).
À mesma época, opera-se de modo acentuado uma espécie de inversão nos pa-
péis historicamente ocupados pela esquerda e pela direita na política do Ocidente. A
esquerda, historicamente identificada com a mudança acelerada e o progresso mate-
rial a qualquer custo, diante dos riscos artificiais crescentes, torna-se defensora da de-
saceleração, da preservação de direitos e da conservação do meio ambiente, exigindo
maior controle político da economia e defendendo a manutenção do Estado de bem-
estar social. De outra parte, a direita, historicamente identificada com o conservado-
rismo, entra numa espécie de cruzada subversiva, transformando-se em entusiasta
da aceleração pela aceleração, ao demandar plena liberdade para os mercados econô-
micos, pelejar pelo fim das redes de proteção do welfare State, exigir a expansão das
366 • a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios
Um “mundo” em extinção
e técnica ainda é movida por parâmetros orientados pelo mercado, pelo consumo e
pelo marketing, com base numa comunicação rápida, viciante e moldada conforme
interesses e afetos de cada perfil, validado pela aprovação de sua própria rede. Com
a crescente digitalização da vida e, consequentemente, da política, até mesmo a
dinâmica das eleições passou a ser pautada por algoritmos que estabelecem um novo
modelo de negócio e sobre os quais há pouco ou nenhum controle externo, mas que
são expressivos da aceleração imposta decorrente da emergência de um novo padrão
produtivo e tecnológico.
A generalização dessas novas tecnologias, que significa também a consagração da
lógica econômica e o abalo dos sistemas de proteção social, se dá simultaneamente ao
crescimento exponencial da demanda por direitos. Se as demandas por direitos, ao
longo de todo século XX, mas em especial depois da Segunda Guerra Mundial, fo-
ram essencialmente distributivistas e dirigidas ao Estado de bem-estar social, a partir
da década de 1980 coloca-se uma nova agenda, que traz à tona a ideia dos direitos de
quarta geração16 , centrada no reconhecimento das diferenças e nas questões identitá-
rias (étnico-raciais, relativas à orientação sexual, à pluralidade religiosa, às relações
homoafetivas, às relações de gênero, entre outras). A sobreposição de demandas, em
meio a um cenário de grandes mudanças, criou um cenário muito complexo.
Com o advento desse novo padrão produtivo e tecnológico, um conjunto de ha-
bilidades, que antes faziam sentido para a inserção profissional das pessoas, foi paula-
tinamente sendo destruído. Não à toa cresceram tanto o desemprego quanto a flexi-
bilização do trabalho (para boa parte dos especialistas o que cresceu foi a precarização
ou a uberização), de tal forma que setores tradicionais da classe trabalhadora, que
tinham direitos garantidos pelo Estado social, ao se verem estruturalmente desempre-
gados, muitas vezes identifiquem a razão de seus infortúnios naqueles novos setores
sociais que demandam direitos, sejam eles imigrantes ou participantes de movimen-
tos que colocam temáticas próprias às minorias. Na vitória de Donald Trump, nos
Estados Unidos; no crescimento da direita, na França e em outros países da Europa;
e na votação pelo Brexit, para falar apenas de exemplos expressivos dessa dinâmica,
estão presentes reações defensivas, conservadoras e racistas. Do mesmo modo que a
emergência de uma direita fundamentalista no Brasil se nutriu do ressentimento de
setores de classe média alta, “incomodados” com a presença de jovens periféricos em
shopping centers (como nos movimentos do “rolezinho”) e de famílias de trabalhado-
res em viagens de avião.
O fato é que novos atores chegaram à cena pública num contexto em que setores
socialmente organizados, que contavam com direitos assegurados e com contratos de
16 Marshall (1967), em sua obra clássica sobre cidadania, estruturou uma tipologia sintética para apre-
sentar historicamente a conquista dos direitos, tratando o século XVIII como o século dos direitos
civis, o XIX como o século dos direitos políticos e o XX como o século dos direitos sociais.
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 371 •
Tal lógica penetrou também de modo avassalador a própria universidade, que pas-
sou cada vez mais a se orientar por rankings internacionais e a quantificar o trabalho
realizado por seus quadros. Paulatinamente, como consequência da naturalização da
agenda privatista, foi se instalando nas universidades uma “nova mentalidade”, orien-
tada por teorias organizacionais, com o objetivo de ampliar a capacidade gerencial e
os critérios de eficiência em sua gestão. Com isso, foi se operando uma espécie de apa-
gamento da memória das instituições universitárias, com o evidente menosprezo pela
experiência das gerações passadas, consideradas despreparadas para a gestão. Como
corolário dessa ambiência cultural, torna-se frequente nas instituições educacionais a
proposição de que se necessita de outro tipo de dirigente, mais sintonizado com o
tipo de racionalidade econômica estabelecida pela transição estrutural. Também na
universidade, portanto, ocorre a substituição de valores que não sejam orientados
pela lógica custo-benefício, com o esvaziamento da reflexão acerca de sua missão ins-
titucional e de seu papel público. Tal mudança de agenda tem motivações transnacio-
nais e expressa um projeto político de imposição da racionalidade técnico-burocrática
no ensino superior para se obter mais eficácia em sua interação com o mercado e com
a sociedade. A contrapartida interna dessa agenda se expressa no aumento dos con-
troles e dos critérios quantitativos de avaliação para se mesurar o trabalho docente,
tendo como parâmetro os rankings internacionais que classificam as universidades.
De tal forma isso ocorreu que docentes que só eventualmente exerciam a tarefa
de avaliar o trabalho dos colegas, com os mais experientes cumprindo no cotidiano
uma espécie de coordenação informal da vida universitária, foram se transformando
em controllers especializados, aliando às suas competências científicas e intelectuais o
aprendizado de metodologias de mensuração com o objetivo de estabelecer critérios
de produtividade para os docentes. As instâncias de avaliação passaram a ordenar o
sentido do trabalho na universidade, em especial na pós-graduação, utilizando-se de
parâmetros essencialmente quantitativos e adotando como modelo a racionalidade
técnico-burocrática. A exigência de competência – entendida como sinônimo de in-
serção no sistema de ciência e tecnologia – torna-se assim o paradigma dominante e
coincide com o aumento da competição em todos os níveis da universidade – compe-
tição entre universidades, entre áreas do conhecimento, entre faculdades, entre cur-
sos, entre departamentos, entre colegas de trabalho, etc. Qualquer dissonância com o
modelo hegemônico corre o risco de ser desqualificada a priori e identificada com im-
produtividade, incompetência ou populismo. Com isso, o ideal de uma comunidade
universitária preocupada com questões humanas substantivas, politizada e argumen-
tativa fica bastante problematizado, prevalecendo as iniciativas pautadas pela perspec-
tiva de maximização de benefícios a fim de obter os meios necessários para atender
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 373 •
pós-graduação, estabelecendo critérios para medir a utilidade das áreas tendo em conta
a aplicabilidade e/ou a interface com o mercado. Com isso, paulatinamente, houve o
abandono da perspectiva de articular as Letras e a Filosofia com as ciências, com a con-
sequente desconsideração do conhecimento clássico que nos permitiu compreender
e reconstituir os acertos e os malogros da humanidade. Para as novas gerações, diante
da dinâmica da aceleração, da imposição da lógica custo-benefício e da perda do sen-
tido do futuro, o conhecimento do passado parece ter cada vez menos importância.
Se as proposições de Edgar Morin (2011) já faziam sentido face aos dilemas que
a aceleração social e a hiperespecialização acadêmica vinham impondo às socieda-
des contemporâneas, com as circunstâncias impostas pela COVID-19 elas ganharam
ainda mais relevância, particularmente em função da necessidade de se fazer um es-
forço transdisciplinar, capaz de religar ciências e humanidades, rompendo com a
oposição natureza e cultura no enfrentamento da epidemia. A crise provocada pela
COVID-19 escancarou o quanto as instituições educacionais estão aprisionadas pela
inércia da fragmentação, pelo excesso de disciplinarização e pelo raciocínio utilita-
rista. O processo de mudança no padrão produtivo e tecnológico combinado com o
impacto da eclosão da epidemia exige que o diálogo científico assuma como pressu-
posto decisivo a aceitação do princípio da incerteza radical, procurando rejuntar a
parte e o todo, o texto e o contexto, o global, o local e o planetário. Com isso, abre-se
uma oportunidade para uma educação capaz de religar sujeito e objeto, de tal forma
que seja possível pensar o paradoxo do desenvolvimento, entendido essencialmente
até hoje como sinônimo de crescimento econômico, que globaliza de um lado e ex-
clui de outro, mostrando sua insustentabilidade estrutural. Trata-se de colocar no
centro da preocupação com a educação a questão da identidade terrena como eixo
de superação do cretinismo educacional, ensinando uma “ética da compreensão pla-
netária”, entendida não como um conjunto de proposições, mas como atitude deli-
berada que pode contribuir para que sociedades democráticas abertas se solidarizem.
No fundo, superar os desafios que estão colocados à humanidade exige cultivar uma
inteligência geral, capaz de estabelecer relações de cooperação para saber como agir e
dar resposta às situações específicas. O suposto principal dessa inteligência geral é
a aceitação de que estamos todos interligados, o que implica o reconhecimento da
complexidade e a humildade de procurar entender a validade das várias formas de
conhecimento, desde que bem fundadas.
Tendo isso em conta, a educação do futuro deve estimular o uso da inteligência
geral dos indivíduos, superando as antinomias entre ciências e humanidades, colo-
a escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios 377 •
Referências
José Carlos Libâneo é professor titular da PUC Goiás, possui doutorado em Filo-
sofia e História da Educação pela PUC-SP, pós-doutorado pela Universidade de
Valladolid (Espanha). É professor titular aposentado da Universidade Federal de
Goiás. Atua na área de Educação, pesquisando a respeito dos seguintes temas: teo-
rias da educação, teoria histórico-cultural, ensino para o desenvolvimento humano,
didática, formação de professores, ensino e aprendizagem, políticas para a escola,
organização e gestão da escola.