Pesquisas Sobre Infância e Família No Mundo Contemporâneo
Pesquisas Sobre Infância e Família No Mundo Contemporâneo
Pesquisas Sobre Infância e Família No Mundo Contemporâneo
família e infância
no mundo contemporâneo
Conselho editorial
Alex Primo – UFRGS
Álvaro Nunes Larangeira – UTP
André Parente – UFRJ
Carla Rodrigues – PUC-Rio
Ciro Marcondes Filho – USP
Cristiane Freitas Gutfreind – PUCRS
Edgard de Assis Carvalho – PUC-SP
Erick Felinto – UERJ
Francisco Rüdiger – PUCRS
Giovana Scareli – UFSJ
J. Roberto Whitaker Penteado – ESPM
João Freire Filho – UFRJ
Juremir Machado da Silva – PUCRS
Marcelo Rubin de Lima – UFRGS
Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP
Michel Maffesoli – Paris V
Muniz Sodré – UFRJ
Philippe Joron – Montpellier III
Pierre le Quéau – Grenoble
Renato Janine Ribeiro – USP
Rose de Melo Rocha – ESPM
Sandra Mara Corazza – UFRGS
Sara Viola Rodrigues – UFRGS
Tania Mara Galli Fonseca – UFRGS
Vicente Molina Neto – UFRGS
Apoio:
Pesquisas sobre
família e infância
no mundo contemporâneo
Organizadoras
Claudia Fonseca
Chantal Medaets
Fernanda Bittencourt Ribeiro
Copyright © Autores, 2018
Capa: Cléo Magueta, sobre arte de Lucas Richter; desenhos de Vinícius Fragoso
Projeto gráfico e editoração: Vânia Möller
Revisão: Vânia Möller
Revisão gráfica: Rafael Heidt Martins Trombetta
P474
Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo /
organizado por Claudia Fonseca, Chantal Medaets e
Fernanda Bittencourt Ribeiro. -- Porto Alegre: Sulina, 2018.
246 p.; 23 cm.
ISBN: 978-85-205-0827-5
CDU: 316
572.3
CDD: 306.85
570
1
Desde 2009, o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), numa parceria entre o Núcleo
de Antropologia e Cidadania (Naci/UFRGS) e o Idades – Grupo de Estudos e Pesquisas em
Antropologia (PUCRS), têm realizado as Jornadas de Pesquisa sobre Infância e Família. Em
sua quarta edição, o evento contou com o apoio da CAPES e do CNPq (por meio dos seus res-
pectivos editais de auxílio à promoção de eventos científicos) e trouxe a Porto Alegre pesquisa-
dores da Argentina, dos Estados Unidos, da Itália, da França e de diferentes estados brasileiros.
7
Existe ainda uma vasta rede institucional que atua em nome da criança,
o que coloca um novo desafio ao pesquisador. Essas instituições e
as pessoas que nela trabalham – incluindo legisladores, psicólogos,
trabalhadores sociais, professores de escola e pesquisadores, entre
outros – são movidas por quais lógicas e controvérsias? Acionadas por
quais atores e produzindo quais efeitos? Essas perguntas cabem na
análise tanto dos serviços públicos da “proteção à infância” (Ribeiro)
quanto das práticas acadêmicas dos próprios pesquisadores em busca
de um proceder ético na pesquisa com crianças (Prado e Freitas).
Os trabalhos apresentados nesta obra têm em comum, portanto,
uma preocupação com o concreto, com a descrição detalhada de situa-
ções e dinâmicas de relações que se estabelecem entre pessoas inseridas
num contexto histórico, político e institucional preciso. Em cada um
desses contextos investiga-se o que “ser criança”, “ser jovem” ou “ser
adulto” significa. As categorias etárias não são tomadas como universais
ou naturais, pelo contrário. De acordo com uma compreensão bem es-
tabelecida nas ciências sociais – mesmo que ainda pouco adotada tanto
em outras áreas do conhecimento como no senso comum –, elas são
apreendidas como construções sociais.2 Adotar essa perspectiva signifi-
ca entender as categorias etárias como relacionais, isto é, como depen-
dendo tanto da maturação biológica individual quanto de especificida-
des históricas, econômicas e culturais do contexto em que o indivíduo
está inserido. Os textos aqui reunidos tomam igualmente distância de
usos reificados da palavra família. Ao invés disso, colocam perguntas:
O que se considera como família? O que se espera e o que efetivamente
se pratica ao realizar as diferentes atividades associadas à vida cotidiana
domiciliar? Os casos de famílias homoparentais descritas por Sarcinelli
e das “mães nervosas” estudadas por Fernandes são paradigmáticas des-
sa perspectiva atenta aos processos que produzem diferentes experiên-
cias do que permite “formar família”.
2
Desde os trabalhos clássicos de Ariès (1973) e James e Prout (1990) considerar a infância
como uma construção histórica tem sido moeda corrente. Para uma discussão a respeito da
emergência dessa concepção, ver, por exemplo, Fonseca (1989) ou Sirota (2006).
8
Por fim, os trabalhos aqui apresentados partilham da perspectiva
(já consagrada em pesquisas de ciências sociais) que toma as crianças
como sujeitos ativos, capazes de resistir, negociar e reinventar as infor-
mações e os modelos que lhes são ofertados por adultos ( James, 2007,
2009; Hutchby; Moran-Ellis, 1998; Sirota, 2005). Até os anos 1980
era comum, mesmo em trabalhos acadêmicos, descrever a criança como
objeto passivo da ação intencional adulta – como mero reprodutor de
comportamentos. Conforme a “lógica da menoridade” (Vianna, 1997),
insistia-se que esses jovens ainda não eram sujeitos, ainda não sabiam
ou não podiam participar das decisões que os afetavam. Nas últimas dé-
cadas, contudo, análises passaram a levar em conta a agência das crian-
ças, ou seja, sua capacidade de ação, apesar dos limites impostos por
condições estruturais e relações assimétricas de poder.3 Os autores dos
capítulos deste livro mergulham a fundo justamente nesse desafio.
Os quatro capítulos da primeira parte “Imagens de crianças, in-
fâncias e famílias” jogam luz sobre efeitos muito concretos tanto das
definições legais quanto das normatividades em disputa em torno do
bem-estar e do tratamento de crianças. Estas pesquisas focadas em ar-
ranjos não hegemônicos de parentesco (Sarcinelli), na produção e no-
minação de uma lei contra a violência (Ribeiro), nos efeitos de uma
política estatal de abrigamento infantil (Fonseca), bem como em refle-
xões sobre a polissemia das concepções de ética e infância nas ciências
(Prado e Freitas), examinam processos culturais, políticos e sociais nos
quais as noções de família, criança e infância figuram de forma dinâmi-
ca e diversa. Nos quatro capítulos é possível observar o entrelaçamento
de variáveis como nacionalidade, classe social e contexto histórico com
imagens de crianças, infância e família acionadas por diferentes atores
ou fixadas nas definições e intervenções institucionais. Nas abordagens
desenvolvidas nestes trabalhos, a atenção às relações de poder coloca
em relevo dinâmicas de parentesco e processos de diferenciação social
3
Uma discussão a respeito dos limites e avanços permitidos pelo conceito de agência utilizado
nos estudos sobre infâncias, pode ser lida em Lancy (2012), Delalande (2014) e Szulc et al. (2012)
(Artigos reunidos na sessão Debates e Controvérsias da revista eletrônica AnthropoChildren.
Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/>. Acesso em: 18 maio 2018.)
9
de crianças, ativos na formulação das leis, nas ciências e nas políticas
públicas de intervenção.
Alice Sophie Sarcinelli parte da identificação de uma distância
entre o parentesco vivido e o reconhecimento legal dos laços de pa-
rentesco em famílias homoparentais na Itália para analisar a relevância
das experiências institucionais nos padrões de vida cotidiana e de inti-
midade de famílias assim constituídas. Cruzando aportes da antropo-
logia moral e política, da antropologia do parentesco e interessada no
ponto de vista das crianças, a autora busca entender como as relações
de parentesco são construídas, desconstruídas e definidas por diferen-
tes atores. O caráter restritivo da legislação italiana no que se refere a
famílias LGBTI e a adoção por solteiros demanda estratégias da parte
de casais do mesmo sexo, na busca do reconhecimento cotidiano en-
quanto pai ou mãe para ambos/as. A autora aponta o estatuto ambíguo
dessas famílias e a frágil posição daqueles/as sem laço biológico com
a criança, e analisa os esforços de kinning e de de-kinning, ou seja, os
esforços para garantir a criação dos vínculos de parentesco nos seus
diferentes âmbitos empreendidos por pais e agentes do estado4, quan-
do se trata de laços não biológicos. As separações conjugais figuram
como uma situação bastante crítica quanto à explicitação da norma
consanguínea e a tendência das crianças aderirem a ela associando o
“verdadeiro” ao vínculo biológico. Essa adesão não implica ausência
de lugar para “a outra mãe” no diagrama do parentesco, mas sim uma
combinação de elementos como consanguinidade e sentimentos ou
intenções de paternidade e maternidade.
Fernanda Bittencourt Ribeiro toma como ponto de partida a atri-
buição do nome “menino Bernardo” à lei que proíbe “castigos físicos,
tratamento cruel e degradante de crianças e adolescentes” no Brasil. Ini-
cialmente demonstra como a imagem da “criança vítima de violência”
que predominou no debate parlamentar brasileiro constrói-se a partir
4
Optamos por grafar "estado" com minúscula para denotar a natureza não transcendente
desse conglomerado de pessoas e espaços. Seguimos assim a proposição de antropólogos como
Sharma e Gupta (2006), que concebem o estado não como uma entidade abstrata, mas como
um arquipélago de estruturas e instituições articuladas em nome do governo das populações.
10
de associações entre violência e famílias pobres, enquanto Bernardo, a
criança cujo nome é atribuído à lei, é oriundo de uma família de classe
média. A fim de compreender esta nominação e instigada pela distân-
cia entre o grau de violência que resultou no homicídio de Bernardo e
aquele das práticas às quais se refere esta lei, popularmente conhecida
como “lei da palmada”, a autora retoma alguns aspectos da história
deste menino, tal como foram apresentados pela mídia. As informa-
ções veiculadas indicam claramente o obstáculo que a origem social de
Bernardo pode ter representado na atuação de agentes e instituições de
proteção. Recorrendo à figura da “criança típica das Américas” que ser-
viu de modelo aos sistemas de proteção à infância na América Latina,
a análise sugere que a origem social seja capaz tanto de potencializar a
estigmatização de famílias pobres, quanto de obstaculizar a legibilidade
de determinadas condições de vida de crianças de camadas médias e
altas em termos de violação de direitos.
O artigo de Claudia Fonseca retoma o tema da proteção à infância
tal como se produzia no âmbito de uma política estatal para a saúde
pública em meados do século XX. Fitando as famílias atingidas por
hanseníase (conhecida então como lepra), a autora revê a política que
decretava a separação compulsória de pais doentes dos seus “filhos sãos”
e a institucionalização desses em orfanatos especializados. A partir de
acervos documentais (citados em trabalhos de diversos historiadores)
assim como entrevistas com pessoas que passaram parte de sua infân-
cia nesses orfanatos, Fonseca explora a maneira como, em nome do
bem-estar infantil, a intervenção estatal provocava situações dramáti-
cas – tanto na hora da separação quanto no momento da reintegração
familiar. Ao sublinhar a tremenda dificuldade que pais tinham para
manter contato, ou ao menos conseguir informação sobre seus filhos
institucionalizados, sugere que esses repetidos esforços frustrados aca-
bam por produzir uma espécie de de-kinnning (desparenteamento) de
pais e filhos. As dificuldades constatadas no momento da reintegração
familiar de jovens (a maioria já chegando perto da maioridade) se-
riam reflexo, por um lado, de uma política estatal que durante longos
anos dificultava ao máximo a relação entre crianças institucionalizadas
11
e seus familiares e, por outro, de uma visão naturalizada de família em
que os sentimentos paternos e filiais são supostos permanecer intactos
apesar de anos de afastamento sem nenhum contato.
No último capítulo da primeira parte desta obra, Renata Lopes
Costa Prado e Marcos Cezar de Freitas, em reflexão sobre a ética na
pesquisa com crianças viram a lente analítica para o mundo dos pesqui-
sadores. Articulando ética e infância, os autores chamam a atenção so-
bre as variações de concepção acerca destes termos não só entre ciências
naturais e ciências humanas, mas também no interior das ciências hu-
manas e sociais. Visando contribuir com os estudos sociais da infância,
a análise aborda diferenças e aproximações entre imagens de infância e
concepções de ética, e argumenta pela característica interdisciplinar não
só das pesquisas sobre a infância, mas também das discussões acerca de
normas éticas. Levando em conta a diversidade dos campos acadêmicos
que trabalham com crianças, os autores questionam a pertinência do
termo genérico “pesquisa com crianças”. Sugerem que seria mais apro-
priado apontar grupos específicos a serem considerados no debate sobre
ética e infância – grupos que podem ser formados tanto por adultos,
pais, pesquisadores ou professores como por crianças em suas particu-
laridades. A voz das “crianças com deficiência”, por exemplo, tenderia a
ser ainda menos reconhecida do que a das demais crianças. Entre várias
problematizações trazidas à reflexão sobre a alteridade da infância temos
a própria noção de vulnerabilidade. Quando organicamente associada às
crianças como seres vulneráveis, essa prenoção pode se constituir em
obstáculo ao diálogo. A análise proposta no capítulo deixa entrever que
outras perspectivas se abrem quando a vulnerabilidade é tomada como
uma condição contextual e relacional a ser observada na pesquisa ou
quando os debates sobre ética se interessam em pensar também sobre as
condições de escuta e a interpretações dos adultos.
Estes quatro capítulos demonstram de forma clara não só que as
imagens de infância e família são altamente variáveis conforme as cir-
cunstâncias de época e pelo seu contexto, mas, também, que são de
importância fundamental para a reflexão sobre as dinâmicas sociais,
as hierarquias morais e as desigualdades políticas que perpassam os
universos empíricos estudados.
12
Na segunda parte da coletânea, “Participação política de crian-
ças e jovens”, o ativismo desses atores sociais, assim como a percepção
que eles possam ter sobre questões políticas são abordados por ângulos
diversos. Andrea Szulc, trabalhando com grupos indígenas na provín-
cia de Neuquén (Argentina), relata um ato de protesto protagonizado
por adolescentes Mapuche. A população Mapuche, cujos territórios na
Argentina são apenas em parte oficialmente reconhecidos pelo esta-
do como terras indígenas, tem entrado em conflito sobretudo desde
a última década com grandes fazendeiros, empresas e grupos petro-
leiros que causam diversos danos ambientais. Crianças e jovens indí-
genas participam desses enfrentamentos ou ações de protesto, e Szulc
mostra que essa participação se ancora em certa noção de infância e
num modo de viver as relações intergeracionais próprio dos Mapuche.
Para essa população, como para diversos grupos indígenas no Brasil
(ver, por exemplo, Tassinari, 2007), as crianças não são afastadas das
atividades produtivas e políticas dos adultos, elas as integram e par-
ticipam de diferentes maneiras. Essa não segregação das crianças das
atividades dos adultos com quem vivem é, aliás, comum também em
populações rurais não indígenas (ver, por exemplo, Medaets, 2018).
Como a situação política em que se encontram os Mapuche os compe-
le a protestar e reivindicar de diferentes maneiras seus direitos, crian-
ças, jovens e adolescentes são integrados com frequência a essas ações.
Eles realizam também alguns protestos sozinhos, como foi o caso no
dia 12 de outubro de 2001, quando pintaram frases sobre os “direitos
das crianças” no muro da sede de uma empresa petroleira. A polícia e
demais autoridades locais reagiram imediatamente e a manifestação
foi dissolvida à força. Em seus discursos, essas autoridades também
evocam o “direito das crianças”, mas dessa vez para se posicionar con-
tra as organizações Mapuche que teriam “exposto as crianças a uma
situação de risco”. É notável, com essa situação, como o discurso dos
“direitos das crianças” pode ser convocado para fins absolutamente di-
ferentes (Fonseca; Cardarello, 1999; Ribeiro, 1998). Se para as crianças
Mapuche sua própria “proteção” implicaria na expulsão das empresas
petroleiras de seus territórios, para as autoridades essa proteção signi-
13
fica manter as crianças em suas comunidades e não permitir que par-
ticipem de atos políticos. Szulc afirma que esse tipo de acusação (que,
diante do protagonismo de crianças indígenas criminaliza os próprios
Mapuche) é comum: os pais são acusados de “abandonar seus filhos”,
de não zelar por sua segurança, de serem negligentes. Para a autora, por
trás do discurso governamental há uma concepção de infância que con-
sidera as crianças como “receptores da ação de outros”, como objeto de
educação, objeto de cuidado, de proteção, de disciplinamento... E não
como atores capazes de protagonizar atos políticos. Uma concepção de
infância, portanto, oposta a dos Mapuche.
Em um contexto totalmente diverso, o capítulo de Medaets,
Mézié e Carvalho também descreve a ação militante de adolescentes e
jovens: aqueles que ocuparam suas escolas por quase dois meses como
forma de reivindicar uma educação de melhor qualidade. Em 2016, de-
pois da ocupação de colégios em São Paulo, escolas foram ocupadas em
mais de 20 estados brasileiros por grupos de estudantes secundaristas
que se rebelavam contra os baixos salários de seus professores, contra
o mau estado de conservação dos prédios escolares e contra reformas
propostas por governantes que implicariam o fechamento de escolas.
As autoras acompanharam o cotidiano de uma ocupação, na cidade de
Porto Alegre, em maio e junho daquele ano. O texto mostra as cone-
xões desse movimento com outras ocupações de escolas na América
latina e, mais amplamente, com movimentos sociais de ocupação de
lugares públicos que se multiplicaram pelo mundo a partir de 2011
(ano da Primavera árabe e do Occupy Wall Street). Os jovens de Porto
Alegre entraram “de cabeça e com o coração” (nas palavras dos próprios
jovens) nessa que foi para muitos a primeira experiência de militância.
Observando as intensas emoções em jogo na ocupação (indignação,
raiva, admiração, “superamizades” e inimizades) e o vai e vem entre vida
pessoal e familiar e vida militante, as autoras dialogam com o campo da
antropologia das emoções e mobilizam autores que se interessam pela
presença das emoções na política, que a concebem como uma “política
apaixonada” (passionate politics, termo cunhado por Goodwin, Polleta e
Jasper, 2001). No texto acompanhamos, por meio de retratos de quatro
14
ocupantes (três meninas e um menino), alguns dos dilemas, enfrenta-
mentos e de mudanças, a um só tempo pessoais e políticas, que esses
jovens viveram ao longo dos 41 dias em que partilhavam dias e noites
na escola ocupada.
Valéria Llobet examina não uma ação militante ou participação
em ato político de crianças e jovens, mas a memória que seus interlo-
cutores, adultos que moram na zona metropolitana de Buenos Aires,
guardam do período de ditadura na Argentina. Por meio de entrevistas
biográficas em que rememoram essa época, a autora explora as percep-
ções e os entendimentos que seus entrevistados tinham sobre o contex-
to sociopolítico autoritário por que passava seu país. Mostra, ainda, que
as crianças compunham suas percepções combinando diversas fontes.
Não necessariamente incorporavam de maneira acrítica os discursos
oficiais – muitos e insistentes – que lhes eram especialmente desti-
nados. Llobet trabalha com pessoas que não tiveram familiares desa-
parecidos, nem eram consideradas como opositores ao governo. Eram
crianças ditas “comuns”, de famílias ditas “normais”, que foram justa-
mente objeto de uma série de dispositivos educativos visando “restaurar
uma ordem moral e social”, no âmbito da “luta antisubversiva” em vigor
na ditadura: aulas de educação moral e cívica nas escolas, presença de
militares como professores de educação física, controle de materiais
didáticos, implementação de “delegacias infantis”. A autora mostra que,
apesar desse esforço oficial, as crianças não se fiavam unicamente a
esses discursos, mas integravam outras informações que captavam no
cotidiano. Vendo, por exemplo, uma casa ser interditada pela polícia,
onde sempre avistava um casal com um bebê, sob alegação de se tratar
de uma “casa de guerrilheiros”, uma de suas interlocutoras lembra de
ter passado a desconfiar do que assistia nos noticiários da TV. Outro
entrevistado relata ter ouvido atrás da porta conversas políticas num
bar próximo a sua casa; outro ainda lembra do dia em que descobriu, na
biblioteca de um vizinho, um livro sobre a Segunda Guerra Mundial,
e ao ler partes entendeu que os “guerrilheiros” podiam ser “do bem”.
Muitos contam ter percebido, nos silêncios ou nas contradições das
falas de seus pais, indícios de um contexto político que lhes era negado
15
ou ocultado. Todos os entrevistados de Llobet tiveram, assim, em al-
gum momento, uma percepção crítica sobre o que se passava. Eles não
“compraram” totalmente o discurso oficial, reproduzindo-o de maneira
mecânica. Essa interpretação ativa das crianças evidencia, para a autora,
sua agência, a saber, o fato de serem “sujetos capaces de desplegar estra-
tegias específicas para aumentar sus campos de acción, sus trayectorias
por fuera del control adulto – y dictatorial”.
Na terceira parte de nosso livro, “Modos de cuidado: estado, co-
munidade, família”, entramos diretamente na questão da intervenção
estatal nas famílias em situação de vulnerabilidade. As análises de tais
situações tanto no Brasil como na Argentina revelam embates em tor-
no do melhor modo de cuidar de crianças, preparando-as para o futu-
ro, e inspiram uma reflexão comparativa. O artigo de Pires e Oliveira
inicia esta parte com a pergunta: “Quais mudanças de comportamento
foram produzidas pela introdução do Programa Bolsa Família?”. É a
partir de uma pesquisa etnográfica em um vilarejo na região agreste
do Nordeste brasileiro que as autoras consideram a abrangência dos
resultados desta política púbica. Ao comparar as falas das mães com as
das próprias crianças fica evidente a maneira como certas concepções
de infância – em particular as que envolvem trabalho e ludicidade –
mudaram de uma geração para outra. Muitas mães dizem que “nun-
ca tiveram infância”, pois desde a mais tenra idade eram obrigadas a
trabalhar em casa e na lavoura. Com a finalidade de contribuir com
a renda da família foram obrigadas a abrir mão das oportunidades de
estudo, assim como de muitos momentos de brincadeira. Seus filhos,
por outro lado, afirmam sem reservas que só têm obrigação de estudar
e brincar – frequentemente ficando com “as pernas para o ar”. Além
de perguntarem o que essas perspectivas distintas significam para as
relações intergeracionais, Pires e Oliveira também exploram possíveis
mudanças na organização familiar em termos econômicos e sociais,
provocadas pela introdução do Bolsa Família. A garantia de uma ren-
da mensal regular – por mínima que seja – serviria tanto para fixar as
crianças nas famílias até os 18 anos (quando cessa o benefício) quanto
para tornar mais rara a emigração sazonal das famílias à procura de
16
emprego. A temporalidade, colocada como fator central nessa análise,
ressalta de forma clara como as particulares circunstâncias da época
(incluindo não só políticas públicas, mas também fluxos no mercado
de trabalho, oportunidades escolares, etc.) condicionam os sentimen-
tos sobre uma infância “adequada”, ocasionando novos desafios nas
relações entre gerações diferentes da rede familiar.
Maria Adelaida Colangelo, ao olhar para La Plata (Argentina),
examina outras dimensões dos programas de intervenção, colocando
em relevo as moralidades que acompanham programas de saúde in-
fantil. Com uma riqueza de detalhes etnográficos ressalta a hetero-
geneidade de situações. Os postos de saúde, onde há convivência de
longo prazo entre os profissionais e as pessoas atendidas, teriam uma
relação com os cuidadores de crianças de modo diferente dos agentes
de saúde e dos médicos que atendem nos hospitais mediante consulta
agendada. Dependendo das circunstâncias, a materialidade do corpo
infantil – e as tecnologias que a circundam – podem ocupar mais ou
menos o centro do palco. Em algumas circunstâncias, o simples peso
do bebê – indicador de sub ou até de sobrealimentação – pode levar o
pessoal médico a classificar a mãe (ou outra responsável) como boa ou
má cuidadora. É notável também como a origem nacional da cuidadora –
argentina, paraguaia ou boliviana – entra no computo moral à medida
que os profissionais rotulam certos comportamentos como “culturais”.
Perpassando as diferentes situações encontram-se as marcas da desi-
gualdade estrutural e a precariedade das condições materiais – tanto
nos serviços de saúde como nas vidas dos usuários. Contudo, no jogo de
acusações que envolvem a moralidade materna, essas considerações es-
truturais tenderiam a perder espaço para a culpabilização de indivíduos.
Os próximos dois artigos versam sobre práticas que, na perspectiva
dos familiares, podem ser consideradas práticas de cuidado, mas que as
políticas públicas procuram coibir por entendê-las como negativas: os
castigos físicos e o trabalho infantil. O artigo de Camila Fernandes, ao
falar de “mães nervosas” de um bairro popular do Rio de Janeiro, convi-
da o leitor a escutar as próprias mães sobre os motivos de suas atitudes.
Dessa maneira, as condições materiais de existência se tornam cada vez
17
mais pertinentes à compreensão das atitudes maternas. Por um lado,
as mulheres se consideram incumbidas de ensinar os jovens a se de-
fenderem diante da possibilidade de confrontos violentos surgidos no
dia a dia do bairro. Por outro lado, as mulheres enfrentam situações de
enorme estresse e frustração que podem colocar limites a sua paciência
no trato com os filhos. Trazendo à tona uma vasta bibliografia – da
história, da psicologia e da filosofia – para falar das emoções de raiva
e frustração, Fernandes nos oferece a possibilidade não de justificar os
castigos físicos aplicados a crianças, mas de melhor compreender situa-
ções ambíguas. De forma eficaz, nos coloca em alerta contra julgamen-
tos morais fáceis que arriscam fazer pouco mais do que reforçar meca-
nismos de discriminação. Nesse sentido, o texto de Fernandes dialoga
de forma interessante com o capítulo de Ribeiro, também nesta obra,
sobre a lei da palmada. Ouve-se das “mães nervosas” que “essa lei (da
palmada) é maluca” e que pode provocar uma situação em que a criança
“vai estar batendo na gente”.
Laura Zuker situa sua pesquisa claramente no bojo das campa-
nhas internacionais contra o trabalho infantil – campanhas que, tendo
por base uma noção universal de criança, posicionam a infância e o
trabalho como duas esferas mutuamente excludentes. Dialogando com
aportes da sociologia feminista, a autora propõe analisar este assunto
à luz da organização social de cuidado – uma perspectiva que leva em
consideração tanto as políticas institucionais e as condições do merca-
do de trabalho quanto as práticas e perspectivas acionadas pelos pró-
prios sujeitos. Mediante pesquisa etnográfica entre famílias argentinas
na região mineira de Las Misiones, Zuker se aproxima de mulheres
que vivem da venda, à beira da estrada, de pequenas pedras preciosas.
Sua pergunta: “Na ausência de creches e escolas maternais, quais as
estratégias maternas para conciliar responsabilidades familiares e tra-
balho?”. Centrando atenções na perspectiva dos próprios atores – das
mães assim como das crianças – a autora propõe repensar os significa-
dos de brincadeira, trabalho e do próprio cuidado. Vê-se em particular
como, para as mães, manter os filhos junto a elas, incorporando-os às
atividades de venda, não deixa de ser uma maneira de cuidar deles. Tal
18
rotina permite não só que elas passem mais tempo com seus filhos,
afastando-os de possíveis más influências, mas propicia a socialização
das crianças em diversas habilidades (trato com compradores/turistas,
negociação e cálculo de preços, etc.) que podem ser tão úteis para a vida
futura quanto os conhecimentos que adquirem na escola.
Enfim, o conjunto de trabalhos apresentado nesse volume vem
ao encontro das propostas de vanguarda dos estudos contemporâneos
da infância (Cohn, 2005; Tassinari, 2007; Rodriguez, 2017). Apesar
de rejeitar abordagens essencialistas, calcadas na ideia de característi-
cas universais inerentes à condição de infância, as autoras deste livro
mostram que essas visões naturalizadas de família e infância – tão
frequentes no senso comum e também entre gestores públicos – têm
consequências concretas. Quanto às vivências infantis, as análises
procuram superar tanto modelos binários que opõem a biologia à
cultura, quanto perspectivas reducionistas que explicam comporta-
mentos em termos de uma ou outra dimensão das condições de vida.
Ao invés disso, refletindo sempre a partir de situações precisas, obser-
vadas em contextos específicos, põem em relevo a complexidade do
entrecruzamento de variáveis múltiplas. Finalmente, apesar de com-
partilhar com outras linhas de análise o desejo de promover os direi-
tos das crianças, esses capítulos demonstram repetidamente que não
faz sentido pensar o bem-estar da criança como fenômeno isolado
dos múltiplos atores e relações sociais que a circundam. Em outras
palavras, é fundamental integrar a criança e a infância numa proble-
mática coletiva e social.
Referências
ARIÈS, P. L’enfant et la vie famíliale sour l’Ancien Régime. Paris, France: Editions du
Seuil, 1973.
COHN, C. Antropologia da criança. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2005.
DELANDE, J. Le concept d’enfant acteur est-il déjà périmé? Réflexions sur des
ouvertures possibles pour un concept toujours à questioner, AnthropoChildren
[on-line], v. 4, 2014. Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/
index.php?id=1927>. Acesso em: 29 maio 2018.
19
FONSECA, C. A história social no estudo da família: uma excursão
interdisciplinar. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais –
BIB, n. 27, p. 51-73. 1989.
FONSECA, C.; CARDARELLO A. Direitos dos mais e menos humanos. Horizontes
Antropológicos, n. 10, p. 83-122, 1999.
GOODWIN, J. et al. Passionate Politics. Emotions and Social Movements. Chicago;
Londres: The University of Chicago Press, 2001.
HUTCHBY, I.; MORAN-ELIS, J. (orgs.). Children and social competence: arenas of
action. London: Falmer Press, 1998.
JAMES, A. Giving voice to children’s voices: practices and problems, pitfalls and
potentials. American Anthropologist (109)2: p. 261-272, 2007.
JAMES, A. “Agency”. In: Qvortrup, J.; Corsaro, W.; Honig, M. S.
Palgrave handbook of childhood studies. p. 34-45. London: Palgrave MacMillan,
2009.
JAMES, A.; PROUT, A. (Org.). Constructing and reconstructing childhood: contem-
porary issues in the sociológical study of childhood. London: The Falner Press,
1990.
LANCY, D. Unmasking Children’s Agency. AnthropoChildren [on-line],v. 2, 2012.
Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/index.php?id=1253>.
Acesso em: 29 maio 2018.
MEDAETS, C. Crianças na economia familiar do baixo Tapajós (Pará): ajudar,
aprender, “se acostumar”. Civitas, revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 2, 2018.
RODRIGUEZ, S. Productive encounters: Examining and disrupting socio-cultural
perspectives on childhood(s) and youth across global societies. Global Studies of
Childhood, v. 7, n. 3, p. 235-240, 2017.
RIBEIRO, F. B. Conselho Tutelar e negociação de conflitos. Ensaios FEE, v. 19,
n. 2, p. 286-305, 1998. Disponível em: <https://revistas.fee.tche.br/index.php/
ensaios/article/view/1933/2308>.
SIROTA, R. L’enfant acteur ou sujet dans la sociologie de l’enfance. Evolution des
positions théoriques au travers du prisme de la socialisation. In: Bergonnier-
Dupuy, G. (Ed.) L’enfant, acteur et/ou sujet au sein de la famille. p. 35-41.
Ramonville Saint-Agne: Érès, 2005.
SIROTA, R. Éléments pour une sociologie de l’enfance. Rennes: Presses universitaires
de Rennes, 2006.
SZULC, A. et al. Naturalism, Agency and Ethics in Ethnographic Research With
Children. Suggestions for Debate. AnthropoChildren [on-line], v. 2, 2012.
Disponível em: <https://popups.uliege.be/2034-8517/index.php?id=1270>.
Acesso em: 29 maio 2018.
TASSINARI, A. Concepções indígenas de infância no Brasil, Tellus, ano 7, n. 13, p.
11-25, 2007.
VIANNA, A. O mal que se adivinha. Polícia de menoridade no Rio de Janeiro, 1910-
1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
20