Oliveira Me
Oliveira Me
Oliveira Me
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2017
ANA PAULA VEDOVATO MARQUES DE OLIVEIRA
São Paulo
2017
AUTORIZO A DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR
QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE
ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Aprovada em:
Banca Examinadora
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Agradecimentos
Aos meus pais, Maria Auxiliadora e Luiz Carlos, pelo amor, pela confiança, pela coragem.
Aos meus irmãos, Alexandre e Carolina, pelo companheirismo, pela solidariedade, pela
presença.
Ao meu orientador, professor Daniel Kupermann, pela sabedoria, pela perspicácia, pelo
desafio.
Aos amigos de Belo Horizonte, Ricardo, Gustavo, Marina e Karina, por me curarem pela
amizade.
Aos amigos do mestrado, Margarido, Diego, Bartholomeu, Janderson, Daniel e Carine, por
construírem e compartilharem comigo o sentido dessa experiência.
Aos amigos de Uberlândia, e especialmente ao Talles, por me mostrarem que o que importa
permanece.
Freud, 1930.
Resumo
Meeting with alterity in the psychoanalytic clinic is the motor of the resignification process of
psychic suffering. The presence of the other available generates meaningful exchanges, which
allow the subject to rearrange sense in ways of his existence, more expensive senses to the
experience of personality. In this sense, starting from paradigmatic friendships, in
psychoanalysis and philosophy, to open the field of reflection to the pressing condition in the
human - the need of the other to find and create the senses of the singular experience. The
psychoanalyst Freud and the pastor and psychoanalyst Oskar Pfister inaugurate the reflection,
and illustrate the possibility of cohabitation and esteem of difference. We then approach the
theme of the constitutive aggressiveness of the human. In Freud, we extol the disruptive
character of aggressiveness. We are thinking of the possibility of integrating it more fluidly
into the psychic economy, thus referring to Winnicott's assumptions. We reflect on the social
bond based on solidarity and on the enthusiasm promoted by humor alongside alterity, and we
note that both point and inspire the new versions of itself. In philosophy, we start with the
friendship of Montaigne and La Boétie to talk about the experience of the natural freedom of
the human being, condition, also, for the experience of love, emblem of friendship. We have
rescued, along with Aristotelian ethics, notions dear to friendship in antiquity, which point to
an established disposition and a sense of community, attuned to the construction and sharing
of meaning of individual experience. Together with Arendt, we extol the primordial condition
of humanity - conviviality, the interaction between peers - which attests to its being its own
reality. In Foucault, we rescued the historicization of care of oneself, necessarily linked to the
presence of the other, the friend and / or the master. We finish our research articulating the
friendship to the psychoanalysis, mainly through the phenomenon of the transference. For
this, we go through the theoretical development of Ferenczi on analytical technique. We
briefly illustrate Freud's circle of friendships, which, although marked by various ruptures,
have traced the path of expansion and recognition of psychoanalysis. We have recourse to
Freudian metapsychology to think the direction of the treatment proposed by the author,
attuning the healing to the contours of the friendship worked up until then. We scrutinize the
aspects that could oppose healing in analytic treatment, and we locate the analyst's desire in
that context. We spoke with contemporary psychoanalysts who reflect on friendship and
analytic treatment, from the micro level, the analyzed / analyst transfer, to the broader
dimension of the social bond. From the aspects mentioned, we point out a social horizon
marked by friendship, built and sustained by the ethics of psychoanalysis.
Introdução............................................................................................................................ 10
Objetivo Geral ..................................................................................................................... 13
Objetivos Específicos ....................................................................................................... 13
Metodologia ......................................................................................................................... 14
1. Amizade e laço social ................................................................................................... 15
1.1. O futuro e a ilusão .................................................................................................. 17
1.2. Amor, rivalidade e cultura ...................................................................................... 24
1.3. Uma função fraterna .............................................................................................. 30
1.4. A integração da agressividade ................................................................................ 34
1.5. O entusiasmo da partilha ........................................................................................ 37
2. Amizade e filosofia .......................................................................................................... 41
2.1. Discurso da liberdade natural ..................................................................................... 44
2.2. Amizade na Antiguidade – contribuições aristotélicas ................................................ 49
2.3. A condição da amizade .............................................................................................. 53
2.4. A experiência do si mesmo ........................................................................................ 59
3. Amizade e psicanálise ...................................................................................................... 67
3.1. Amizade em Ferenczi ............................................................................................... 67
3.2. A amizade na vida e na obra de Freud ........................................................................ 73
3.2.1. Freud e a amizade – uma ilustração .................................................................... 73
3.2.2. Amizade e direção do tratamento em Freud ........................................................ 77
3.3. Resistências à cura ................................................................................................. 81
3.4. O desejo do analista ............................................................................................... 84
3.5. Cura e ética da amizade em psicanálise – contribuições de psicanalistas
contemporâneos................................................................................................................ 85
Considerações Finais............................................................................................................ 96
Referências Bibliográficas ................................................................................................. 100
10
Introdução
estima que mantinham entre si, tal como acompanhamos ao longo de suas correspondências
(Freud & Pfister, 2009), garantiram a manutenção da amizade, uma das mais duradouras da
vida de Freud. Não deixa de ter certa graça que tal amizade envolva justamente um homem
profundamente religioso. Mesmo nos momentos de discordâncias mais acirradas, as diferentes
perspectivas não foram suficientes para enfraquecer o laço entre eles, tal como
acompanharemos no tópico “O futuro e a ilusão”. Percorremos, em seguida, a obra social de
Freud com o intuito de ressaltar o embate entre a constituição subjetiva do humano e a ordem
civilizatória, resgatando, para tanto, os temas da agressividade (Freud, 1930/2010), da
idealização (Freud, 1921/2011; Freud, 1927/2006) e da solidariedade (Freud, 1913/2010).
Nessa linha, pensaremos o sentido da função fraterna na significação e na emancipação da
existência humana com (Kehl, 2000). Apontaremos então as vias possíveis de integração da
agressividade constituinte do humano que não necessariamente disruptivas (Winnicott,
1963/1983; Winnicott, 1967/1975) Finalizamos o capítulo resgatando o humor (Kupermann,
2003) como laço satisfatório, amigo caro à experiência da singularidade e à condição de
convívio das humanidades, em que o entusiasmo se presentifica na relação com a alteridade e
inspira as novas versões de si mesmo.
Objetivo Geral
A pesquisa tem por objetivo principal articular as relações teóricas entre a amizade e a
cura no tratamento psicanalítico, a partir dos autores previamente selecionados da psicanálise
e da filosofia.
Objetivos Específicos
Metodologia
Pfister acreditava que a cura das almas – trabalho ao qual se dedicou arduamente
impulsionado pelo contato com a obra freudiana – deveria realizar-se de forma mais
condizente com a filosofia da natureza humana e do cosmos, que ultrapassa a perspectiva
estritamente naturalista e positivista (Freud & Pfister, 2009). Freud, por sua vez, estranha a
ideia de transcendência da natureza humana (Freud, 1930/2010). Ele se debruça sobre o
empirismo do fenômeno transferencial que se manifesta no enquadre analítico para
desenvolver o seu pensamento, e declaradamente abre mão de qualquer postulado ético e
moral de pretensão universal (Freud & Pfister, 2009).
O fato de eu lhe escrever tantas coisas pessoais deve-se a que nenhuma visita, desde a de
Jung, teve tanto impacto nas crianças e trouxe tanto bem-estar a mim mesmo. Eu o saúdo
cordialmente e espero seguir ouvindo do senhor. (Freud & Pfister, 2009, p. 38, carta de Freud
a Pfister de 1909).
Sabemos que o círculo de amizades de Freud foi marcado por rupturas diversas e
incontornáveis, sobretudo quando estavam em jogo pressupostos da psicanálise dos quais ele
não abria mão. Freud exigia para si o reconhecimento do lugar de inaugurador do saber
psicanalítico e afirmava proteger o campo daquilo que considerava como desvio de seus
pressupostos fundamentais, tal como acompanhamos no desenvolvimento da história do
movimento psicanalítico (Freud, 1914/2006). Tendo em vista essas características de Freud,
talvez somente alguém com um quê a mais de sabedoria cósmica poderia divergir dele de
forma tão contundente, e ainda manter sua considerável importância e comunhão com o autor.
Esta parece ser a posição de Pfister. A atenção e perspicácia somada à sua sensibilidade ao
mundo externo e interno fizeram dele uma presença bem quista e garantiram a legitimidade de
sua produção e de sua pertença ao círculo psicanalítico.
O pastor era uma espécie de espírito livre, ele se expressava de forma sincera, delicada
e firme. Podemos acompanhar quando, por exemplo, ele é notificado por Freud de que
receberá uma cópia de “O futuro de uma ilusão” (1927), com o alerta de que será uma crítica
à religião. Freud solicita compreensão e tolerância do pastor, ao que este lhe responde:
Eu a aguardo com alegre interesse. Um adversário de grande capacidade intelectual é mais útil
à religião que mil adeptos inúteis. Enfim, na música, filosofia e religião eu sigo por caminhos
diferentes dos do senhor. Não poderia imaginar que uma declaração pública sua me pudesse
melindrar; sempre achei que cada um deve dizer sua opinião honesta de modo claro e audível.
O senhor sempre foi paciente comigo, e eu não o seria com o seu ateísmo? Certamente o
senhor também não vai levar a mal se eu oportunamente expressar com franqueza minha
posição divergente. Por enquanto fico na disposição de alegre aprendiz. (Freud & Pfister,
2009, p. 143, carta de Pfister a Freud de 1927).
relações não marcadas por submissão. A despeito de algumas alfinetadas trocadas, nenhum
dos pensadores buscou catequisar ou ateísar o outro. Suas diferenças foram mantidas e os
caminhos de suas verdades os norteavam, ora mais próximos entre si, ora um tanto distantes.
Parece que o esclarecimento advindo da busca pela verdade foi o ponto forte da
afinidade que lhes era peculiar, exigindo deles, para tanto, certa maleabilidade narcísica. Pois
o que desuniria homens com objetivos em comum que não o efeito de suas defesas, que
impedem a troca e o compartilhamento daquilo que é almejado por ambos? Compartilhar com
o outro não é uma sabedoria qualquer, é, antes de tudo, o que parece imprescindível para
qualquer evolução da existência humana. Relacionar-se com a alteridade, elaborar conteúdos
de modo a minimizar o sofrimento gerado pelo encontro com o outro, é uma direção de
tratamento na psicanálise, e, por que não?, a verdadeira contribuição da prática clínica para tal
progresso. Alguns desdobramentos do acontecimento clínico poderiam ser considerados pelo
campo de forma menos receosa, desde que abordados com o devido cuidado. É o esforço
desta pesquisa.
Uma ilustração que reflete a dignidade do lugar da alteridade preservada pelos autores
é o debate gerado pela publicação de Freud “O futuro de uma ilusão” (1927/2006), no qual o
autor argumenta que o sentimento religioso é fruto do desamparo humano frente à força da
natureza e às intempéries do destino, que escapam à capacidade volitiva do ser. Ele aposta
18
que, através do avanço do método científico, a cultura poderá superar essa fase infantil do
desenvolvimento, prescindindo da figura de um Pai todo poderoso que dá amparo e
sustentação frente à imprevisibilidade inerente à vida (Freud, 1927/2006). Ao anunciar o
conteúdo de sua publicação, Freud escreve a Pfister: “eu temia e ainda temo que uma
declaração pública lhe seja constrangedora. O senhor me fará saber, então, que medida de
compreensão e tolerância ainda consegue ter para com este herege incurável” (Freud &
Pfister, 2009, p. 143).
volto-me com toda determinação contra sua apreciação da religião. Faço-o com a modéstia
conveniente ao inferior, mas também com o contentamento com que se defende uma causa
santa e amada, e com o rigor da verdade, que foi fomentado por sua austera escola. (Pfister,
1928/2003, p. 19)
Essa é a postura fundamental de Pfister, que reserva o devido lugar a Freud e que
usufrui do conhecimento inaugurado pela psicanálise, integrando-o a um campo de saber
maior, e prescindindo, assim, do seu professor. Não seria essa uma riqueza dos achados
psicanalíticos, ao abordar o humano substancialmente atravessado pelo desamparo? Apontar
um caminho em que as leis demasiadamente fechadas tenham pouco ou nenhum valor,
revelando que o sujeito moderno tem seu modo próprio de lidar com as intempéries da
existência? Seria o pastor um exemplo da autonomia buscada em um processo analítico?
Alguém que se serve do que está dado, sem se submeter, revelando o comprometimento com
aquilo que lhe é caro?
Pfister é um igual e um estrangeiro, que preza pela manutenção desse lugar. Ele não
abre mão de uma perspectiva integracionista para se submeter a uma forma única de
apreensão do humano. Sua docilidade, atrelada à agudez de seu raciocínio, garantiram-lhe a
possibilidade de seguir dialogando com Freud.
obsessivas lhe sejam inerentes, e também quando trata a relação com o Pai a partir dos
parâmetros da transferência. A ação de se render a uma religião, segundo ele,
não acontece por força da demanda de um novo vínculo, mas graças à autoridade da liberdade
conquistada por um amor vitorioso e pelo reconhecimento da verdade. Segundo os bons
parâmetros psicanalíticos, Jesus venceu a neurose coletiva de seu povo introduzindo no centro
da vida o amor que, na verdade, é moralmente purificado. Na sua concepção de pai,
totalmente purificada das toxinas da ligação edípica, constatamos que foram totalmente
vencidos a heteronomia e todo o constrangimento das amarras. O que se exige das pessoas não
é outra coisa senão aquilo que corresponde à sua essência e sua vocação verdadeira, o que
favorece o bem comum e – para também dar lugar ao ponto de vista biológico – uma saúde
máxima do indivíduo e da coletividade.[...] Merece a admiração de todos os alunos de Freud o
tratamento dado à transferência, que é acolhida como amor, mas conduzida para realizações
ideais absolutas, como também a suspensão da fixação paterna gerada pela obsessão através
da rendição ao Pai absoluto, que é amor. (Pfister, 1928/2003, pp. 23-24)
Pfister provoca: “que analista não encontraria com frequências ateus, cuja descrença
era uma camuflada eliminação do pai?” (p. 27). Nessa perspectiva, a busca pelo amor ofertado
na conexão com o outro é pautada pela elaboração dos aspectos fundamentais de cada um, e
não pela mera repetição sintomática que insiste em reproduzir o cenário de desamparo de
outrora. Esse debate deixa ao leitor uma sorte de argumentos que colocam em xeque as
verdades previamente estabelecidas, de ambos os lados, dando lugar à verdade do ponto de
vista de cada um.
Pfister prossegue: “não se pode negar que a esta luta religiosa pela redenção
corresponde um processo de humanização” [itálicos nossos] (p. 25). Render-se, portanto, ao
amor transcendente, é conectar-se ao todo a partir das especificidades idiossincráticas,
vocacionais, que lançam o sujeito no encontro com a sua humanidade, universal quanto à
espécie, singular em sua tonalidade.
Se na psicanálise podemos afirmar que há uma cura pelo amor, pela oferta da
possibilidade de ressignificar núcleos de sofrimentos advindos da interação com as figuras
fundamentais, é a partir dessa mesma ideia de cura pelo amor que o autor resgata a figura de
Jesus, que convoca ao amor puro e exige, para tanto, a superação das defesas narcísicas que
20
impedem uma conexão verdadeira, uma vez que essas defesas engendram relações pautadas
por fantasmas e fantasias de rejeição, com pouco espaço para manifestação autêntica do ser
(Pfister, 1928/2003). Talvez seja por isso que Pfister enfatiza o aspecto da humanização, de
um nascimento para si e para o cosmos, tomado aqui por tudo aquilo que extrapola o sujeito.
A luz que ele lançou sobre os aspectos fundamentais do humano parece, no entanto,
ter-lhe ofuscado a possibilidade de ir adiante com o conteúdo que havia se revelado pelo seu
método investigativo, a saber, a necessidade da espécie de ligação interpessoal via laços de
amor. Ser amado é condição para ser humano. É a garantia da sustentação diante do risco,
algo inerente à existência, fator próprio da humanização. A psicanálise oferta a possibilidade
de se interromper o ciclo da mera repetição ao propiciar o espaço para a elaboração que
liberta a capacidade amorosa dos aspectos que a restringem.
Ser aquilo que se pode ser, o melhor de si, eis a dimensão da grandeza e da limitação
dos que estão destinados à existência terrestre. Essa dimensão não é, contudo, óbvia e
aparente. Ao tratar da dinâmica psíquica, Freud já nos alertara, por exemplo, que o Eu pode
ser medido segundo a idealização de aspectos que lhe são externos, e que são por ele
introjetados (Freud, 1921/2011). Diferentemente da identificação, a forma mais antiga de
ligação afetiva com o outro, a idealização, cuja expressão é ilustrada pelo autor nos estados de
enamoramento, remete o Eu a um constante estado de insuficiência. O Eu, nesse sentido, é
configurado à semelhança daquele tomado por “modelo” (p. 62), prescindindo, para tanto, de
uma configuração que seja mais cara às suas idiossincrasias.
A idealização pode ocorrer nos mais diversos aspectos da vida humana. Do seio
familiar às instituições, sejam elas religiosas ou científicas, as formas rígidas de apreensão da
experiência marcam o empobrecimento do Eu, que se entrega ao objeto, colocando-o no lugar
1
Esmiuçaremos essa ideia no terceiro capítulo.
21
de seu mais importante componente, o ideal do Eu – tal como esse fenômeno é descrito por
Freud (1921/2011). É a partir desse ideal unívoco que o Eu passa a se medir, configurando a
etiologia dos aspectos neuróticos, visto que há, presente aí, um Eu enfraquecido, que se
referencia segundo fenômenos externos à sua experiência de ser, tamponando, para tanto, a
sua manifestação criativa.
Na religião, Freud colocou em xeque o que ele chamou de ilusão, calcada no desejo e
no narcisismo humano, e que despreza a relação com a realidade, não se prestando à
verificação (Freud, 1927/2006). A ilusão se entrelaça com a idealização – tal como aqui
resgatada – de preceitos não científicos que possam aplacar a angústia do desamparo humano
fundamental. No que tange à ilusão religiosa, o autor aponta que:
O desamparo do homem [...] permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses.
Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens
com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los
pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs. (Freud,
1927/2006, p. 26)
Ora, podemos chegar a duvidar que este seja o mesmo autor de “O mal-estar na
civilização” (1930), se ele mesmo não tivesse desvelado ao mundo moderno que “o ego não é
senhor de sua própria casa” [itálicos do autor] (Freud, 1917/2006, p. 153), que o humano é
marcado por múltiplas identificações, que são contraditórias, emaranhadas, e que marcam o
quadro neurótico com uma ambivalência intrínseca.
própria, permitindo uma passagem não mais mediada pelo sofrimento para o registro da
consciência, um parâmetro fundamental de saúde psíquica vislumbrada pela psicanálise. Isso
sem contar os aspectos da arte, da ética e da moral, inalcançáveis para uma mente que se
propõe exclusivamente intelectiva. A vida moral, por exemplo, “nunca foi alcançada mediante
teorias áridas e conceitos inteligentes. Negar esse fato representaria uma censura da pior
espécie” (Pfister, 1928/2003, p. 52). O que escapa à ciência não pode ser negado ou
aniquilado, mas acolhido em sua inteireza como alteridade. É isso que garante a validade do
campo, com o devido orgulho de seus achados, acompanhado do reconhecimento humilde das
limitações de seu alcance. Na visão do pastor, o mesmo se daria com a religião:
a arte continua sendo o arauto bendito de profundos mistérios e preciosos tesouros, que
escapam e escaparão aos óculos dos eruditos, um milagre que sacia almas famintas, uma
mensagem de paz do reino dos ideais, que nenhum punho de pensador jamais conseguirá
derrubar, porque seguramente pertencem mais à verdadeira realidade que as materialidades
palpáveis e demais falsificações dos sentidos. Eu necessitaria de exposições longas para
elaborar essas ideias. Então caberia ao intelecto apenas o papel explicativo, que honra e serve
ao gênio criador. (Pfister, 1928/2003, p. 50)
possibilitada pela arte não exclui as exigências da existência palpável, ao contrário, é ela o seu
instrumento e sua matéria prima. A relação com o próximo, com o semelhante, é a condição
para a fruição da transcendência, para a abertura a algo que ultrapassa o sujeito e que o inclui,
necessariamente.
É com cautela e determinação que Pfister defende uma fé que dê margem ao livre
pensar, que não seja uma mera reprodução automática, cega quanto ao seu sentido último.
Liberando-nos de certas amarras que impossibilitam o intercâmbio entre saberes, seria
possível depreendermos que, ao longo de um processo analítico, nos aproximaríamos de um
sentimento de fé, em que a despeito das belezas e atrocidades do passado e do porvir, nós
adquiramos confiança e convicção para simplesmente continuar o caminho da manifestação
de si?
A obra social de Freud nos parece rica para pensar a dimensão do convívio na qual a
condição humana é lançada. Em 1930, Freud apontou como a dimensão do laço social é
atravessada pelo mal-estar, visto que esse laço se sustenta sobre a repressão dos impulsos
primitivos constituintes do humano. A amizade nos parece interessante aqui, na medida em
que aponta para uma possível via de elaboração do sofrimento advindo desse mal-estar. Ainda
que Freud não tenha entrado nessa temática, pensaremos ela junto do autor, usufruindo, para
tanto, de sua reflexão sobre o laço de solidariedade compactuado entre irmãos, no mito de
1913.
Vemos na narrativa que, para destituir o pai de seu lugar soberano, detentor absoluto
de todos os privilégios na comunidade, os irmãos se unem e juntos cometem o seu
assassinato. Permanecem unidos no momento a posteriori, em que sua autoridade esmagadora
25
não está mais em cena. Nesse segundo momento, eles se colocam como iguais e compactuam
que o lugar do pai não deve ser ocupado por nenhum deles, estabelecendo, assim, o contrato
de direitos equânimes. O parricídio torna possível então a criação do laço de solidariedade
entre os irmãos, que se comprometem com a preservação da vida uns dos outros, abrindo
mão, para tanto, da parcela de prazer ligada ao lugar privilegiado do pai. Em Freud lemos:
Alguns anos mais tarde, após a publicação de “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud
novamente se arrisca a levar a psicanálise para fora do enquadre do tratamento analítico,
publicando sua análise que possivelmente tem maior repercussão na atualidade, “O mal-estar
na civilização” (1930/2010). Nela, ele reafirma – tal como em 1927 – a condição de
26
É por manter essa linha de raciocínio que parece ser tão difícil ao autor compreender o
“sentimento oceânico”, relatado para ele por seu “amigo excepcional” 2, tal como
acompanhamos no início de seu texto: uma experiência que se refere a um sentir-se conectado
com o todo. Freud chega a considerar a possibilidade da experiência de tal sentimento, mas tal
consideração parece estar mais ligada ao tato e à estima em relação ao amigo, visto que ele
declaradamente diz não partilhar dessa vivência, que mais se assemelha para ele a “uma
tentativa inicial de consolação religiosa” (Freud, 1930/2010, p. 25). É com essa introdução,
resgatando o sentimento transcendente, que Freud inaugura a obra pilar de seu pensamento no
que tange à relação dos humanos no contexto civilizatório. Sigamos.
Freud questiona qual o sentido, qual a motivação humana para a manutenção da vida,
e sua resposta é contundente:
o que releva a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que
pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam
felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta
positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de
fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda.
[...] Como se vê, é simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a
finalidade da vida. [itálicos nossos] (Freud, 1930, pp. 29-30)
2
Trata-se do escritor Romain Rolland.
27
Seguindo a linha da terapêutica analítica, cuja função seria desvelar o sentido daquilo
que causa sofrimento ao sujeito, constatamos, junto a Freud (1930/2010), que há algo na
constituição subjetiva que opera na contramão das tentativas de conscientização – ou
racionalização – das motivações psíquicas. Prepondera então, por vezes, a obtenção de prazer
atrelada a uma cota considerável de sofrimento. O ganho de prazer através do trabalho
psíquico e intelectual seria “mais fino e elevado” (p. 35), contudo sua intensidade é amena
quando comparada à satisfação de “impulsos instintuais grosseiros e primários; [pois] ele [o
trabalho psíquico e intelectual] não nos abalada fisicamente”. [colchetes nossos] (p. 35).
Novamente, Freud resgata uma dimensão corpórea que não pode ser desvinculada dos modos
de satisfação subjetiva. O corpo é pulsional, e é também a ele que deve ser creditada uma
parcela da possibilidade de satisfação, de obtenção de prazer. O homem civilizado é também
corporal, com suas devidas necessidades e limitações, e ignorar a sua materialidade
inevitavelmente empobrecerá qualquer tentativa de apreensão do fenômeno humano.
Após abordar o sofrimento, Freud aposta que a experiência do amor, de amar e ser
amado, seria aquela que engendraria a maior possibilidade de obtenção de prazer. Uma de
suas manifestações – o amor sexual – proporciona sensações de prazer avassaladoras, sendo o
protótipo da busca pela felicidade. No entanto, “nunca estamos mais desprotegidos ante o
sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando
perdemos o objeto amado ou o seu amor” (p. 39). Para falar de amor, Freud também traz o
sofrimento para a cena. A experiência de amor livre das mazelas demasiadamente mundanas é
possível nessa vida? Para Freud, isso soa religião.
O ser humano luta pela sua sobrevivência desde o seu nascimento. Há um apego à
vida, uma espécie de sopro de vida constituinte que o impele, ao menos, a uma precária
tolerância de si e do outro, fundamental para a manutenção do laço. Já que há essa insistência
na vida, seria também desejável que ela se aproximasse tanto quanto possível da satisfação e
da felicidade – sua finalidade última –, já enaltecida por Freud.
ego – com a violência imposta pelos ideais inalcançáveis. A questão da agressividade como
necessariamente disruptiva é questionável, tal como veremos mais adiante com o psicanalista
inglês Winnicott. Ademais, pensar nas ferocidades das identificações e idealizações, tal como
as descrevemos com Freud (1921/2011), é uma das finalidades da psicanálise, que a nosso ver
não pode ser pessimista quanto à sua prática. Nessa linha, o arranjo da agressividade em
relação a si mesmo tem impacto direto nas relações que são estabelecidas com os
investimentos objetais. A diminuição da violência com a alteridade implica, portanto, em um
trabalho sobre a agressividade do sujeito com relação a si.
Para o autor, as formações grupais, desde sua fundação (1913/2010), passando por
seus arranjos constitutivos (1921/2006), pelas formações religiosas (1927/2006) e pelo
processo civilizatório (1930/2010), têm, via de regra, a necessidade de fornecer válvulas de
escape aos seus integrantes, para que as forças pulsionais primitivas de agressividade possam
ser escoadas, garantindo, assim, a sua manutenção. Já na perspectiva integracionista que aqui
propomos, assimilar a agressividade à cultura pode ser mais uma questão de habilidade do que
de renúncia, tal como leremos junto a Winnicott.
Orientados, portanto, pelo princípio de prazer, assinalamos que uma ética que se
apresenta como imposição externa, arbitrária e absoluta, ela funciona como que de fachada,
lei pela lei; sendo que essa fragilidade já fora denunciada por Pfister (1928). Pois não
podemos perder de vista que “enquanto a virtude não compensar já nesta vida, a ética pregará
em vão” (Freud, 1930/2010, p. 119). Se não houver recompensas, a renúncia não se sustenta.
É esse contexto humano que parece ser propício para o florescimento de uma ética da
amizade, visto que a realização possível do sujeito se dá pela presença do outro, realização tal
29
que aponta para a finalidade última, a felicidade, a recompensa tão almejada já nessa
existência. A amizade aparece como uma saída do mal-estar cotidiano, pois ela pode
transformar a convivência obrigatória com o outro – à qual somos lançados – em um encontro
significativo, fonte de satisfação e prazer afinado ao princípio de realidade. Ligados via laços
de amor, transcendemos a nossa pequenez, ao mesmo tempo em que criamos referências
identificatórias próprias. Não é a toa que a obra intitulada de “O mal-estar na civilização”, já
no início, aponta os seus contra-argumentos – a sua elaboração? – no amor transcendente e na
busca pela felicidade. Se Freud reconhece que a busca pela realização de si está dada pela
condição humana, por que os aspectos que se contrapõem ao mal-estar seriam argumentos
religiosos, estranhos as fazer analítico? A psicanálise não estaria também necessitada da
alteridade, de amigos com os quais possa dialogar e fazer trocas significativas para a
ampliação do campo?
Os laços de amor tão caros à sustentação dos fundamentos da religião também têm
importância basal no edifício da psicanálise. São eles que inauguram a experiência humana e
que configuram as primeiras referências para determinado ser. É sobre essa premissa que se
sustenta o instrumento analítico por excelência – a transferência. Estamos reafirmando nesse
campo, a todo momento, que as falhas e insuficiências nas primeiras experiências de amor
podem ser nefastas para uma constituição subjetiva razoavelmente arranjada que, a partir da
condição de desamparo inicial, possa criar/encontrar algo novo, intermediário, transicional 3,
transcendental, portanto.
Será que a condição de irmandade entre as criaturas, aclamada pela religião, seria uma
saída encontrada na cura do adoecimento neurótico, tomado como uma fixação em formas
enrijecidas de dar e receber amor, ou seja, tomado como algo que limita a satisfação
individual? A irmandade quando tratada em termos de laços de sangue, biológicos, remete a
uma limitação das formas de conexões possíveis. A noção de amor ofertado na amizade via
identificação e desidentificação concomitantes parece mais adequado ao fenômeno humano,
que não se restringe aos aspectos orgânicos da experiência vital. Arrisquemos nesse sentido,
pois a psicanálise é um campo inquieto. A teoria é viva e, para assim se manter, ela deve se
permanecer aberta à experiência de seu tempo. É testando seus limites e ultrapassando-os com
trabalho crítico e dedicado que ela se atualiza, afinada às peculiaridades de seu tempo próprio.
3
Termo utilizado aqui segundo a concepção winnicottiana de espaço transicional, que surge entre o sujeito e o
objeto, e transcende a experiência individual, criando algo novo, situado no entre.
30
Um ano antes da virada para o século XXI, décadas depois de Freud, novos
psicanalistas voltaram e se unir em torno do tema dos ‘irmãos’, desdobrando a reflexão
inaugurada pelo criador do campo, e atentando-se para a relação com o outro como
possibilidade de ser, como inerente, portanto, ao processo de humanização. Trata-se de um
conjunto de textos organizados por Maria Rita Kehl e nomeados de “Função fraterna” (2000).
Logo na introdução – “Existe uma função fraterna?” – Kehl aponta:
Para pensar a função fraterna, Kehl resgata a noção da fratria, que diz respeito a
comunidades marcadas por igualdade e fraternidade, e aponta a condição essencial para a
coexistência dos membros e para a permanência do grupo: a semelhança na diferença (Kehl,
2000, p. 32). A possibilidade de dar vazão à singularidade de cada um em um laço que tolere
e celebre a diferença, e não se esforce para erradicá-la, aparece como uma saída para a
minimização do sofrimento neurótico, aspecto ao qual se dirige o esforço psicanalítico.
A constatação da diferença entre os irmãos permite que cada um se aproprie à sua maneira do
nome herdado do pai [...]. A função fraterna faz, portanto, suplência à função paterna, na
medida em que possibilita separar a lei da autoridade do pai real (Kehl, 2000, p. 39).
31
E mais a frente,
Abre-se mão de uma única verdade possível em nome da voz, da vocação das diversas
verdades singulares, que se inter-relacionam via laços de amor, sentido último da experiência
vital. Dessa forma, as ligações horizontais são mais caras ao modo de ser criativo, elas
transgridem premissas identificatórias totalitárias, visto que prezam pelo espaço para a
movimentação, para ser em devir, que existe e se manifesta conforme suas peculiaridades –
seria essa maneira particular de ser a dimensão da alma proposta na perspectiva religiosa?
Dado que assim somos, corresponder a um ideal fechado que renuncia ao Eu – tal
como as formações de massa analisadas por Freud em 1921, organizadas em torno do líder e
da identificação maciça entre seus membros – parece ser demasiado pesado para a
subjetividade criativa, que inova a partir de sua condição errante, caminhante, que afeta e é
afetada pelo seu entorno. Não é de se estranhar, portanto, que a necessidade de se escoar
aquilo que não é suportado pelo laço – a diferença, a singularidade dos modos de ser e desejar
– seja condição primordial de sua sustentação, manifestada inclusive na eleição do que seria
radicalmente diferente de todos do grupo, no qual a agressividade possa então repousar.
32
A função fraterna, tal como resgatada por Kehl (2000), proporciona o espaço propício
para a experiência da singularidade e, mediante a cumplicidade, autoriza a transgressão e o
consequente enfraquecimento da verdade absoluta encarnada por algumas figuras reais. O
laço, que poder ser entre irmãos de sangue ou amigos, readéquam o arranjo normativo
segundo a peculiaridade de cada um, amparando de forma coletiva a apropriação singular do
campo simbólico cultural, e autorizando os sujeitos em sua diferença em relação ao ideal.
Mais do que interditar, coibir, barrar, é necessário dizer sim, ter um espaço de vazão
para a capacidade de desejar, para o movimento volitivo que impulsiona o existir humano. A
abertura ao novo e o desapego ao já conhecido expandem a capacidade humana em direção ao
inédito, rompendo o insistente ciclo de meras repetições. O risco é inerente, e lançar-se aos
riscos parece profundamente sintonizado com um saber-se amado – essa é uma das
necessidades a qual a fratria vem responder.
4
“O Racionais Mc’s é um grupo brasileiro de RAP que surgiu no final dos anos 80 com um discurso que tinha a
preocupação de denunciar o racismo e o sistema capitalista opressor que patrocinava a miséria que estava
automaticamente ligada com a violência e o crime”. Trecho da biografia disponível no site oficial do grupo <
http://www.racionaisoficial.com.br/>. Acessado em 05/04/2017.
33
não confunde sua autonomia pensante e crítica com uma arbitrariedade de referências, como o
delírio de autossuficiência típico da alienação subjetiva das sociedades de consumo. O
distanciamento necessário para se pensar antes de falar vem de um mergulho na própria
história [...] e de uma aceitação ativa, não conformista, da própria condição, do pertencimento
a um lugar e a uma coletividade que fortalece os enunciados e, por outro lado, recorta um
campo a partir de onde o sujeito pode falar, dificultando o escape na direção de fantasias de
adesão a fórmulas imaginárias de aliciamento ou de consolação. (Kehl, 2000, pp. 218-219).
A figura de Deus aparece para os integrantes do grupo como referência simbólica que
sintetiza valores éticos e morais e não deixa “desandar a vida” (p.224) dos irmãos, que
buscam a revolução aqui mesmo na terra. Ele é o elemento de amor transcendente que
alicerça a possibilidade de luta na realidade tal como ela é, visão esta que está em sintonia
com a perspectiva da fé em Pfister (1928/2003). O apelo ao parceiro é a possibilidade tanto de
romper o engodo acaçapante da ideologia do consumo, quanto de criar um espaço alternativo
em relação a um sistema que os exclui. O outro, semelhante, e o Amor Maior, representado
por Deus, abrem o campo para a transicionalidade que amplia, assim, os limites do humano.
A cumplicidade entre os irmãos permite que se invente dispositivos de enganar o pai [real]
[...] para manter vivo o grão de liberdade e loucura que constitui o melhor do nosso potencial
humano [...] [As formações de uma comunicação particular] raramente produzem um discurso
consistente contrário ao discurso da autoridade; mas funcionam para revelar, ou mesmo abrir,
fraturas na fala do pai. [colchetes nossos] (Kehl, 2000, p. 228).
A ânsia por uma livre expressão de si, em sintonia com a comunidade de pertença,
abre o caminho para a apropriação da autoridade paterna ali onde ela pode bem servir.
34
Em que será que consiste essa parceria emancipatória que forma laço entre os
humanos, que os impulsionam à livre e criativa expressão de suas singularidades, amparada e
reconhecida por seus pares? Não foi justamente pela potencialidade dos encontros que os
achados da instigadora personalidade de Freud, após alguns anos de pesquisa ‘solitária’ 5,
5
Freud nunca esteve de fato totalmente sozinho em suas pesquisas. Já nos escritos pré-psicanalíticos, por
exemplo, podemos acompanhar a extensa troca de cartas com o médico Wilhelm Fliess, mediante as quais
compartilhavam tanto as descobertas psicanalíticas quanto as suas experiências pessoais. Essas cartas se
encontram parcialmente disponíveis na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, 1886-1889, v. I.
35
Nessa análise, Winnicott resgata importantes conceitos que dão o tom de seu
desenvolvimento teórico. Para o autor, a capacidade de um desempenho satisfatório de
algumas funções de cuidado na primeira infância é essencial para a integração da
agressividade inerente ao humano, configurando assim uma função materna primária
(1956/1993) constitutiva desse processo. Em 1963, ele resgata a diferenciação entre a mãe-
objeto – que supre as necessidades fundamentais, sobretudo corporais, de seu bebê – e a mãe-
ambiente – que provém, com sua presença consistente, um espaço para a manifestação do Eu.
6
“The development of the capacity for concern” (1963), traduzido por “O desenvolvimento da capacidade de se
preocupar” pela editora Artes Médicas (1983). Preferimos aqui ‘abrasileirar’ a expressão original ‘concern’
utilizada pelo autor.
36
A mãe-objeto tem de demonstrar que sobrevive aos episódios dirigidos pelo instinto, que
agora adquiriram a potência máxima de fantasias de sadismo oral e outros resultados de fusão.
Além disso, a mãe-ambiente tem uma função especial, que é a de continuar a ser ela mesma, a
ser empática com o lactente, a de estar lá para receber o gesto espontâneo e se alegrar com
isso. (Winnicott, 1963/1993, p. 73)
Há, nesse sentido, um caminho que aponta para a integração entre a mãe-objeto, que
sobrevive aos ataques pulsionais, e a mãe-ambiente, que provém um espaço para que a
criança possa continuar existindo. Essa dupla função é essencial para o fortalecimento do
sentimento de confiança no infante, dando possibilidades para que ele vivencie sua
pulsionalidade de forma não atravessada pelo sentimento de culpa, visto que este só aparece
caso não haja a possibilidade de reparação ofertada por uma mãe-ambiente consistente. É tal
provisão que vai levar o pequeno ser a se experimentar, liberando, assim, a sua vida instintiva.
resgatar as formas outras de partilhamento, que deem vazão aos aspectos agressivos e
transgressivos da constituição humana, que resgatamos junto a Kupermann (2003) o humor
enquanto uma forma de sociabilidade alternativa, afinando-o à nossa proposta de reflexão.
A partilha de afetos prazerosos compõe assim uma identidade grupal que oferta espaço
para a experiência de uma prática lúdica que, paradoxalmente, preserva as manifestações do
erotismo singular. Na constelação afetiva, Kupermann (2003) dá privilégio ao entusiasmo,
resgatado em Kant,
signo de uma verdadeira disposição humana que, a partir de então, se manifestaria de duas
formas: no desejo do povo de proporcionar a si mesmo uma constituição civil mais
conveniente, ou seja, de criar suas próprias leis; e no desejo de legitimar uma constituição que
possa, por princípio, evitar a guerra. [...] O entusiasmo kantiano seria, portanto, uma autêntica
vontade de revolução inerente à condição do sujeito moderno. [itálicos nossos] (pp. 156-157)
versões de si em um espaço transicional. Dar vazão a si e preservar o espaço alheio pode ser,
contudo, um malabarismo difícil de equilibrar. Para lidar com esse engodo causado pelas
exigências pulsionais e por aquelas da civilização, o autor resgata junto a Freud a metáfora
dos porcos-espinhos de Schopenhauer, em que estes, para se manterem aquecidos nos dias de
inverno sem se machucarem uns aos outros com espinhos, “descobriram uma distância
intermediária, na qual podiam mais toleravelmente coexistir” (Freud citado por Kupermann,
2003, p. 167). Kupermann pondera, então:
talvez seja possível imaginar uma sociabilidade que, cultivando o entusiasmo entre os seus
membros, pudesse proporcionar laços identificatórios e troca de experiências afetivas
satisfatórias e, ao mesmo tempo, manter uma abertura para a transformação permanente,
sem que precisasse sustentar o laço social através da garantia da perpetuação dos objetos por
ela oferecidos. [itálicos nossos] (p. 170)
É esse o poder transformador dos encontros possíveis que dão margem para a
apropriação de si e para a invenção de um destino possível. Kupermann (2003) aposta em
uma reerotização do mundo, em “uma sociabilidade na qual as singularidades não sejam
necessariamente empobrecidas e deserotizadas” (p. 187). A condição humana é sustentada por
Eros, o que implica necessariamente o compartilhar – é esse o poder emancipatório, criador e
mesmo curativo das relações humanas que aqui enaltecemos sob o signo da amizade.
A ação posterior do recalque parece turvar, nesse sentido, essa experiência fundante de
expansão do sujeito no encontro com o objeto. Apostamos que é a esse anseio que
corresponde o surgimento da psicanálise e a função do amigo que aqui privilegiamos: a livre
expressão de Eros, sentido último da experiência humana significativa. A partir das reflexões
propostas, passando por religião, ciência, idealização, ilusão, mal-estar, transcendência,
agressividade, amor, fraternidade e humor, poderíamos pensar que a cura em psicanálise
aponta para uma capacidade para a amizade?
41
2. Amizade e filosofia
7
Remeto o leitor aos textos de Winnicott: “Fear of Breakdown” (1963) e “O conceito de falso self” (1964).
42
haja vista a ausência de um sentido último para a existência de todas as coisas, ou, para os
menos céticos, haja vista o acesso limitado do humano ao sentido último da existência. É por
meio dos pares que ao mesmo tempo encontramos e criamos uma realidade – dada pela
experimentação da realidade de si, em última instância.
Montaigne, autor de nossa epígrafe, foi um escritor e ensaísta francês, conhecido por
uma obra de ampla abrangência sobre os mais diversos aspectos da natureza humana, tais
como a idade, a meditação, as virtudes, os desejos, as orações e as relações humanas. Pioneiro
da escrita ensaística, sua pessoalidade se faz presente e dá o tom de sua reflexão, como ele
aponta no prólogo: “sou eu mesmo a matéria desse livro” (Montaigne, 1580-88/1972, p. 11).
Um dos temas sobre o qual o autor se debruça e que aqui nos interessa é justamente a
amizade, e a matéria prima de seu pensamento é a experiência da sua relação com Étienne De
La Boétie. É conhecido no meio filosófico o forte vínculo dos amigos, bem como a célebre
frase declarada no ensaio Da amizade (Montaigne, 1580-88/1972), após o falecimento do
amigo: “Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar
senão respondendo: ‘porque era ele; porque era eu’” (p. 98).
Tal como declarado na epígrafe acima, o que Montaigne buscava junto a seus amigos
era “um momento de intimidade, recursos para uma troca de ideias, um meio de exercitar o
espírito” (p. 380). A simples possibilidade de ser e estar, de compartilhar o existir junto
daqueles cujo companheirismo era significativo, eis a importância do encontro humano para o
pensador, tendo o exercício das almas como sua finalidade última. Ao mesmo tempo, o autor
era um profundo entusiasta de sua solidão:
Esses trechos compõem o ensaio “Da companhia dos homens, das mulheres e dos
livros”, no qual Montaigne elege tais relações enquanto suas conexões fundamentais. Apesar
de ter ‘nascido para a sociedade e a amizade’, a dimensão de uma solidão fundamental é
necessária e diversas vezes enaltecida pelo autor, mais importante inclusive que a própria
convivência – “acho mais suportável estar sempre só do que não o poder estar nunca” (p.
382). O filósofo revela nessa aparente controvérsia a dimensão multifacetada da experiência
humana, na qual a partilha e o isolamento requisitam espaços e momentos propícios.
Não só a dele, como a de seu amigo privilegiado, paradigma da alta estima da amizade
na obra do autor. A natureza de La Boétie – reconhecido pelo seu espírito tanto livre quanto
libertário, tal como acompanharemos em seu Discurso sobre a servidão voluntária – era cara
a Montaigne, que não poupou esforços e palavras para apreciar o lugar e o valor do amigo em
sua vida. O ensaísta lamentou emocionada e inconsolavelmente a morte prematura de La
Boétie, que falecera com apenas 32 anos, como acompanhamos em Da amizade. Uma
amizade que tem o seu sentido último na existência de dois seres de naturezas compatíveis,
singulares, universais, relacionais – “porque era ele, porque era eu”. Montaigne (1580-
88/1972) vai além:
O amor, insígnia da amizade, não é, portanto, um meio para um fim. Ele é o estado
último, ‘o alto ponto de perfeição’ que podemos ter acesso dada a nossa condição. É a
44
No desenvolvimento de sua reflexão, que tem como seu primado o valor da liberdade,
La Boétie afirma e reafirma que a servidão é uma posição ocupada pelo ser humano de forma
voluntária, e que nada é preciso fazer para destruí-la; basta, para tanto, que o indivíduo não
reitere sua ação de servir. Assim, por meio da recusa do consentimento com a própria
escravidão, qualquer organização tirânica é destruída (La Boétie, 1546-1555/2009). Nesse
sentido, tanto o servir quanto o emancipar-se são atos voluntários, em que o indivíduo pode
escolher ser o senhor de si, servo de ninguém.
Séculos depois, Freud revelará por meio de suas investigações que o eu não é senhor
nem mesmo de sua própria casa (Freud, 1917/2006), o que traz outra perspectiva para pensar
as asserções libertárias de La Boétie. Se partirmos do ponto que o eu pode ser acessado via
conhecimento de si mesmo, a liberdade do eu parece se coadunar, paradoxalmente, com o seu
acolhimento – o assenhoramento de si via consentimento com o que se é.
8
Winnicott: “A capacidade para estar só” (1958).
45
E já que essa boa mãe deu a terra inteira como morada a todos nós, alojou-nos a todos na
mesma casa, formou-nos a todos no mesmo molde a fim de que cada um pudesse olhar-se e
por assim dizer reconhecer-se no outro; já que nos concedeu a todos o grande presente da voz
e da palavra para melhor nos relacionarmos e confraternizarmos e para produzirmos, mediante
a declaração comum e recíproca de nossos pensamentos, a comunhão de nossas vontades; já
que procurou por todos os meios estreitar e firmar o vínculo de nossa aliança, de nossa
sociedade; já que mostrou em todas as coisas que não nos queria somente unidos, mas como
um único ser, como duvidar então que sejamos todos naturalmente livres, porque somos todos
companheiros? Não pode entrar no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto
alguém em servidão, porque ela nos reuniu a todos em companhia. [...] A liberdade é,
portanto, natural. Por isso, a meu ver, não só nascemos com ela, mas também com paixão para
defendê-la. [itálicos nossos] (La Boétie, 1546-1555/2009, pp. 40-41)
(2013). Ela aponta que “o Discurso simplesmente contrapõe desejo de servir e amizade” (p.
36). A reciprocidade envolvida numa relação amistosa impele à libertação de si via mútuo
reconhecimento das humanidades.
apelo excessivo à identificação é, nesse sentido, antinatural, visto que o devir constitui o
caminho próprio do particular. O aprisionamento vem da recusa ao estado natural de
liberdade, que chamamos junto com Chauí de amizade. A sabedoria, talvez a única esfera
humana em que as hierarquias são bem-vindas, exige a plasticidade cara ao conhecimento,
conhecimento de si, inclusive, senão sobretudo. Pois o sentido último da vida não é realizar-
se?
Chauí (2013) nos lembra que a força da tirania em La Boetié é a dispersão, “que
impede a comunicação e com ela a amizade” (p. 35). Isso exacerba a característica
competitiva que marca o contexto neoliberal. Não há vagas para todos. E qual o clima que
essa atmosfera pode fornecer à amizade, quando falta o essencial para a sua estrutura – a
confiança recíproca na integridade dos amigos (Chauí, 2013)?
Creio que a nostalgia pouco nos ajuda a avançar. O incremento das redes sociais nesse
cenário, por exemplo, oferta uma alternativa de socialização e comunicação que dá força às
relações de amizade. Não há lugar urbano em que não se possa de alguma forma estar
conectado aos seus, e os benefícios, é claro, estão a depender de seu uso, como qualquer
ferramenta desenvolvida por mãos humanas. A rede de relações que estabelecemos e à qual
somos expostos é ampla o suficiente para abarcar as diferentes qualidades de conexão, e a
convivência com a diversidade de alteridades remete, mais e mais, o ser humano a si mesmo,
à sua origem constitutiva. A liberdade é onipresente e, afinados a La Boétie, parece não haver
depreciação maior da existência humana do que a renúncia a essa condição constituinte.
É por esse interesse filosófico premente que seria nocivo à psicanálise não incluir esse
campo de pesquisa e reflexão em seu círculo amistoso, e denotaria inclusive uma posição
arrogante do conhecimento psicanalítico, visto que a amizade floresce na igualdade e
reciprocidade, e vemos que as afinidades relacionais são abundantes. A servidão é um
movimento ativo, e disso a psicanálise bem sabe. O cotidiano da clínica com neuróticos
implica em indivíduos em estado de submissão, aparentemente passivos, o que engendra o seu
mais elevado sofrer. Nesse adoecimento, que denuncia o abandono de algo caro à
humanidade, a psicanálise atua na direção da apropriação da vida, com vistas a interromper o
determinismo provindo de maus encontros. Com alguns percalços próprios à não-linearidade
do caminho, a psicanálise se afina a La Boétie em sua afirmação de que, sem a liberdade, “se
perde imediatamente qualquer valor. As pessoas submissas não têm brio nem entusiasmo no
48
combate” (p. 53). A luta neurótica é a luta pela recuperação do seu estado primeiro de
liberdade. Do seu estado de amizade.
E daí surge o questionamento que a obra de La Boétie nos inspira – o ser humano
consegue ter a liberdade, sua e do outro, como o seu único senhor? Em outras palavras, “é
possível recuperar a autonomia do desejo, isto é, reencontrar o momento originário em que
desejo e desejado eram o mesmo, em que bens, posses e poderes não determinassem o
desejar?” (Chauí, 2013, p. 60).
Nossa aposta é que o trabalho psicanalítico atua nessa direção, de não reiterar o ato
que legitima o lugar da tirania, de interromper o ciclo de repetições que age contra a
manifestação fluida do ser. E sua matéria prima fundamental é a comunicação, que funda a
amizade, condição para a comunhão na defesa da liberdade de ser o que se é. Desejar a
liberdade é tê-la, e isso só é possível em comunidade. Pensando na genealogia da
desnaturalização desse aspecto humano fundamental, Chauí pondera:
A amizade, nesse sentido, tem a ver com um tempo ao qual temos acesso apenas
mediante uma espécie de memória filogenética, por vezes impedida de se realizar, dado o que
La Boétie chamou de hábito de servir, que se perpetua graças à ampla capacidade humana de
se moldar à educação recebida. Ademais, esse estado primeiro perde seu lugar privilegiado
quando o poder se torna protagonista, pois cada servo do tirano tem a seu dispor certa
quantidade de súditos, e é a manutenção dessa pirâmide que corresponde à perpetuação da
servidão.
La Boétie aponta que os tiranos das mais diversas posições abrem mão de sua
liberdade para sustentar sua pequena realeza, e se colocam à disposição dos caprichos alheios,
criando os empecilhos para a realização de si. Frente a essa disposição, o espírito libertário do
autor se revolta,
Isso é viver feliz? Pode-se chamar isso de vida? Existe no mundo algo mais insuportável que
essa condição, não digo para uma pessoa bem-nascida, mas ainda para alguém que tem o
simples bom senso, ou nada mais que o aspecto humano? (La Boétie, 1546-1555/2009, p. 67)
Assim, a amizade solicita um imperativo de ser que pouco tem a ver com esforço,
assemelha-se mais ao deixar ser. É por isso que os diversos autores que a pensaram, como
Montaigne e La Boétie, amigos não por coincidência, marcam seu caráter de necessária
reciprocidade. A amizade floresce na igualdade (La Boétie, 1546-1555/2009), e é sob essa
condição que se sustenta a real possibilidade de ser. A importância da solidão para Montaigne
desvela o caráter reflexivo que o encontro consigo propicia, uma experimentação de si que só
pode estar vinculada ao estado de liberdade. O encontro com a obra de La Boétie foi o
reconhecer-se em um espírito libertário que só servia à permanência desse estado natural, e a
conexão foi instantânea.
Na realidade da clínica psicanalítica parece não haver nada mais insuportável que a
condição de não se poder viver francamente, de não se viver em estado de liberdade. A
amizade, amiga da liberdade, foi ao longo da tradição filosófica atribuída aos sujeitos de
virtudes, e a identificação a essa condição essencial é primordial em relação às identificações
mundanas – aos seus lugares e posições. Estas devem servir àquela, e o que observamos por
vezes é que estas são protagonistas, e a liberdade sai de cena. Mas Freud já nos alertara que
nada do que tange à experiência humana simplesmente desaparece, sobretudo um aspecto tão
estruturante, e o retorno do recalcado é impiedoso, nesse sentido. Haveria então uma
inspiração da vida no caminho das virtudes?
Desde a Grécia Antiga, as interações humanas são alvo de grande parte do esforço que
norteia o conhecimento sobre si. Já naquele contexto, as práticas de cuidado de si e seus
50
entremeios com a política eram debatidos por aqueles que se dedicavam a pensar sobre o seu
tempo, o que implicava necessariamente na reflexão sobre as relações humanas e o espaço
público, apontando para um horizonte ético que se reflete na organização da polis. A ética,
nesse sentido, abrangia de forma explícita as práticas de cuidado de si, indistinguíveis do
exercício da cidadania, haja vista a perspectiva integracionista da vida pública e privada,
própria deste contexto.
É neste cenário que Aristóteles (séc. IV a.C./2002) dedica dois capítulos de sua “Ética
a Nicômaco” para pensar o tema da amizade. Há um empenho do autor em refletir sobre qual
o tipo de relação satisfaria e seria consonante ao ‘homem bom’, tanto em uma perspectiva
particular, quanto no que tange às formas de ordenação da cidade. No início da obra, ele
aponta para um sistema categórico das relações de amizade, dividindo-as segundo três
estruturas distintas: 1- utilidade; 2- prazer; 3- virtude.
Aristóteles aponta para o caráter duradouro que é natural ao terceiro tipo de amizade,
pois todo atributo que sustenta a manutenção dessa relação está presente nos próprios amigos,
eles são “semelhantes, absoluta e relativamente bons e agradáveis” (p. 220). Ora, aos ouvidos
modernos, sobretudo os psicanalíticos, soa estranha a existência de uma categoria de homens
bons. Essa estranheza se presentifica também no contexto aristotélico, pois não são poucos os
momentos em sua obra que ele aponta a raridade de se encontrar tais homens. Tal relação
entre amigos é baseada na similaridade, e as partes envolvidas extraem benefícios idênticos
ou similares uma da outra.
nesta vida, a ética pregará em vão” (Freud, 1930/2010, p. 119). Nesse sentido, o prazer advém
da convivência com o outro pelo que o outro é, e o convívio é imprescindível para a
manutenção da relação. Diferentemente do afeto, que seria correlato à emoção, a amizade diz
de uma disposição estabelecida (Aristóteles, 2002, p. 223), que não está à mercê da emoção
ou da paixão. Uma disposição ao semelhante, à alteridade, é a prerrogativa desta relação, e
envolve o conhecimento íntimo do amigo, uma tarefa de difícil empreendimento. O prazer é
seu fundamento, não aquele que se obtém através do outro, mas com o outro, visto que “nem
o próprio bem absoluto seria suportável para sempre se ele fosse enfadonho”, já que “o
indivíduo bom é tanto útil quanto prazenteiro” (p. 224).
enquanto espaço propício para a justiça e a amizade, pois “sendo os cidadão iguais, [eles] têm
muitas coisas em comum” (p. 232).
A condição para ser bom na relação com o outro é ser bom consigo mesmo, norteado
por uma existência fundamentada na virtude. Há uma harmonia que ordena o desejo do
homem bom, que se empenha de forma ativa pelo bem, que o busca através de suas ações em
função da parte intelectual de si mesmo, de sua apreensão de si. Ele deseja a vida, pois a vida
é boa para o virtuoso, há uma harmonia entre o seu pensar e o agir, o que o torna também
capaz de usufruir da sua própria companhia: “As formas que o sentimento de amizade por
nossos semelhantes assumem e as características pelas quais as distintas formas de amizade
são definidas parecem ter sua origem nos sentimentos de consideração que entretemos por nós
mesmos” (Aristóteles, 2002, p. 247).
naturalmente bom, é também natural que o homem feliz seja rodeado de companhias. A
felicidade tem um caráter inacabado, ela não é uma propriedade, mas uma potência, um vir a
ser que implica na atividade necessariamente, prazerosa em si mesmo e continuada através
dos amigos. Desejar a existência própria e a do amigo reitera e perpetua a ação virtuosa.
É a consciência de si mesmo como boa que torna a existência desejável e tal consciência é
prazer em si mesmo. Portanto, um homem deve estar consciente da existência do amigo
também, o que será realizado no conviverem e compartilharem o diálogo e a comunicação de
seus pensamentos, pois este é o significado de conviver no que tange aos seres humanos, não
significando apenas alimentar-se no mesmo lugar, que é o que significa quando se trata do
conviver do gado. [itálicos nossos] (p. 258)
O amigo é algo a ser desejado, desejo que impele à sua satisfação. Sem amigos, a
condição humana será incompleta, insuficiente. A consciência da existência própria é um bem
atualizado no relacionamento amistoso, pois, seja lá qual for o significado da existência,
deseja-se partilhá-lo com o amigo, ou mesmo achá-lo e construí-lo nesta relação; a amizade é
a condição para a própria humanidade.
É a palavra que retira o homem de um isolamento que lhe é tão inerente quanto a
convivência – o isolamento de sua singularidade, particular e universal –, introduzindo-o no
mundo do sentido partilhado, o do princípio de realidade. Aceder à palavra é, portanto, uma
forma de dar tratamento à agressividade humana constitutiva, pois somente a pura violência é
54
Iguais em sua desigualdade – este seria um denominador comum que reduz o homem
em termos da pluralidade de sua condição de singular, assegurando, para a manifestação dessa
condição, a sua necessária liberdade. Com licença para o anacronismo, ao pensar na estrutura
sobre a qual a psicanálise se edificou, vemos que o núcleo familiar, cujos arranjos mudam de
acordo com sua era específica, é ainda aquele das primeiras identificações subjetivas, e nem
sempre há o espaço para a liberdade da experiência singular tal como se atesta no cotidiano da
clínica. O espaço do setting parece, nesse sentido, com aquele ofertado para os cidadãos da
polis, visto que a liberdade para a experiência da singularidade lhes é constituinte.
Pensemos que tudo o que é vivo, e que assim permanece, resiste. Nesse sentido, a
psicanálise, além de identificar o sofrimento, a repetição de uma satisfação mortífera de um
arranjo subjetivo, trabalha no sentido de sua elaboração, na reiteração da ação humana, avessa
à mera repetição e fundamentalmente marcada pelo inédito. A pluralidade e a singularidade
resistem, portanto, a despeito de qualquer tentativa totalizante externa.
as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie
de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas
e desindividualizadas [...]. A mais comum dessas transformações ocorre na narração de
histórias e, de modo geral, na transposição artística de experiências individuais. (Arendt,
1958/1999, pp. 59-60)
E prossegue,
Toda vez que falamos de coisas que só podem ser experimentadas na privatividade ou na
intimidade, trazemo-las para uma esfera na qual assumirão uma espécie de realidade que, a
despeito de sua intensidade, elas jamais poderiam ter tido antes. A presença de outros que
veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós
mesmos; e, embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida, tal como
jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera
pública, sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e
sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do
mundo e dos homens. [itálicos nossos] (Arendt, 1958/1999, p. 60)
A realidade do mundo é garantida pela presença e pela interação entre os pares. Sem
isso, o humano se perde no abismo profundo da existência deveras individual, sem referências
e, portanto, sem sentido. É uma necessidade de compartilhamento constituinte do humano,
condição para a transferência com o analista, referência tanto da esfera social, quanto da
figura mais íntima e significativa de um sujeito, cujos traços integram o arranjo subjetivo
particular.
A partir desse paradoxo que marca a convivência dos homens – marca, inclusive, a
experiência com o si mesmo –, a autora enfatiza a importância da ação e do discurso como
mediadores humanos. O discurso e a ação expressam a pluralidade do ser e efetivam a
condição humana, pois, através deles, “os homens mostram quem são, revelam ativamente
suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano” (p. 192).
Não é justamente aí também que está o campo de ação da psicanálise, atenta ao discurso que
revela um ser com seus arranjos particulares? Pois é importante que alguém ‘se’ fale, e que,
pelos meandros do reconhecimento, aquilo que é próprio ganhe expressão para além do
estritamente privado.
A amizade remete então ao elo fundamental que possibilita um fazer além com a
condição dada ao humano, a convivência, mediante a ação e o discurso. Um dos ganhos a
nível individual seria não se perder na irrealidade do si mesmo, assegurando a realidade do
58
histórico que centralizou a noção de cuidado de si desde o contexto greco-romano que o autor
compõe a sua interpretação do sentido da experiência subjetiva no contexto ocidental.
Aquilo que La Boétie apontou como sendo o estado natural do humano – o estado de
liberdade –, renunciado voluntariamente pela maior parte da população (La Boétie, 1546-
1555/2009), Foucault trabalhará a partir da noção da prática de si mesmo. Poderíamos dizer
que abrimos mão voluntariamente da liberdade de sermos nós mesmos, o que caracteriza o
cuidado de si como uma capacidade que é apenas de alguns, apesar da disponibilidade
universal dessa condição. Portanto, o princípio de se ocupar consigo mesmo, traduzido pelo
preceito délfico “conhece a ti mesmo”, “inscrito, marcado, gravado em pedra, no centro do
mundo civilizado [...] é contudo desconhecido e incompreendido” (Foucault, 1981-82/2010,
p. 107). Esse parece ser o âmago do mistério acerca da finalidade da existência humana, cujos
esforços apontam para a experiência de si mesmo tão radical quanto possível.
Zeus fez de tal sorte que, diferentemente dos animais – e este é um dos pontos fundamentais
da diferença entre animal racional e animal não racional –, os homens são confiados a eles
mesmos, têm que ocupar-se com eles mesmos. Isso significa que, para realizar sua natureza de
ser racional, para preencher a diferença que o opõe aos animais, o homem deve realmente
tomar-se como objeto de seu cuidado. Tomando-se como objeto de seu cuidado, há que
interrogar-se sobre o que ele é, sobre o que ele é e o que são as coisas que não são ele. [...]
aquele que tiver se ocupado consigo como convém [...] saberá, ao mesmo tempo, cumprir os
seus deveres enquanto parte da comunidade humana. (pp. 177-178)
61
será preciso buscar no centro de nós mesmos o ponto no qual nos fixaremos e em relação ao
qual permaneceremos imóveis. É na direção de si mesmo ou do centro de si, é no centro de si
que devemos fixar nossa meta. (pp. 186-187)9
o outro ou outrem é indispensável na prática de si a fim de que a forma que define essa prática
atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele efetivamente preenchida. Para que a
prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é indispensável. Essa é a fórmula geral. (p.
115)
A necessidade do outro funda-se, ainda e sempre, e até certo ponto, no fato da ignorância. Mas
funda-se principalmente em outros elementos [...]: essencialmente no fato de que o sujeito é
menos ignorante do que malformado, ou melhor, deformado, vicioso, preso a maus hábitos.
Funda-se, sobretudo, no fato de que o indivíduo, mesmo na origem, mesmo no momento de
seu nascimento, mesmo quando estava no ventre da mãe [...], jamais teve com a natureza a
relação de vontade racional que caracteriza a ação moralmente reta e o sujeito moralmente
válido. Consequentemente, não é para um saber que substituirá sua ignorância que o sujeito
deve tender. O indivíduo deve tender para um status de sujeito que ele jamais conheceu em
momento algum de sua existência. Há que substituir o não sujeito pelo status de sujeito,
definido pela plenitude da relação de si para consigo. Há que constituir-se como sujeito e é
nisso que o outro deve intervir. (Foucault, 1981-82/2010, pp. 116-117)
Novamente, vemos que o conhecimento de si, tal como aponta o autor, não é um
processo do saber, mas de um ser, ser sujeito, sujeito que se apresenta na experiência mediada
pelo outro. O outro intervém na possível radicalidade do eu ser em plenitude, implicado para
63
tanto com a atitude moralmente válida. Podemos relacionar a isso a concepção de amizade
ideal proposta por Aristóteles, tal como foi discutido no tópico intitulado “Amizade na
Antiguidade – contribuições aristotélicas”, amizade cuja condição seria o envolvimento entre
homens virtuosos, que levaram a cabo a experiência de si mesmo, ‘porque era ele; porque era
eu’10.
Em cada contexto, a amizade assumia uma forma peculiar. No contexto romano, por
exemplo, ela se dava em torno de uma forte hierarquia, em que os indivíduos se ligavam por
um conjunto de serviços e obrigações. Assim, em um mesmo grupo, havia indivíduos
ocupando diferentes posições, em geral, centralizados na figura de um personagem, em
relação ao qual os demais mantinham distância e aproximação de acordo com suas próprias
posições, e, para passar de um grau a outro de proximidade, havia uma série de condições,
explícitas e implícitas. A escola estoica, próxima da organização romana nesse sentido, diz de
uma estrutura social da amizade também figurada em torno de um indivíduo, em que os
demais se organizavam para lhe prestar serviços e para realizar uma elaboração, um labor,
visando ser amado por aquele cuja amizade era desejada.
10
Remeto o leitor novamente à declaração de afeição de Montaigne para o estimado amigo La Boétie
(Montaigne, 1580-88/1972, p. 98).
64
tem realmente o cuidado de si deve fazer amigos [...], é a reciprocidade [...] que faz figurar a
amizade como um dos elementos da sabedoria e da felicidade” (p. 176).
A figura do mestre também é evocada na prática de si, ligada à amizade , tal como na
escola epicurista, ou a despeito da amizade, mas seguindo algumas condições fundamentais.
Por meio do resgate dos diálogos socrático-platônicos, Foucault diferencia três tipos de
maestrias presentes na Grécia antiga – a do exemplo, a do conhecimento, e a socrática, sendo
esta última a do questionamento e da descoberta exercidos por meio do diálogo. E se até então
o mestre era centralizado na figura do filósofo, a partir do século I d.C. e II d.C. ele tende a se
expandir para fora da profissão filosófica, se tornando uma prática social (Foucault, 1981-
1982/2010). A mediação do conhecimento de si continua envolvendo necessariamente a
presença do outro, o mestre, que carrega consigo certas noções filosóficas.
Marcadas ou não pela amizade, restritas ou não ao campo filosófico, todas essas
relações giram em torno de uma noção fundamental – a parrhesía. Acompanhemos algumas
de suas definições ao longo da obra de Foucault (1981-1982/2010):
Mais a frente, ele resgata que “a parrhesía, traduzida em geral por ‘franqueza’, é uma
regra do jogo, um princípio de comportamento verbal que devemos ter para com o outro na
prática da direção de consciência” (p. 148). Adiante, ele reafirma: “franqueza, abertura do
coração, abertura do pensamento, etc.” (p. 153).
11
Para essa ilustração Foucault recorre às correspondências trocadas entre Marco Aurélio e o mestre Frontão,
presentes em The Correspondence of Marcus Cornelius Fronto with Aurelius Antoninus, trad. ingl. C. R. Haines,
Londres, Loeb Classical Library, 1919-1920.
65
A franqueza, a sinceridade, noções tão caras a Sándor Ferenczi em sua análise dos
meandros da transferência na clínica psicanalítica, tal como acompanharemos no próximo
capítulo, são altamente valorizadas na antiguidade. O franco falar, a sabedoria ligada à forma
e ao conteúdo da fala, a abertura genuína ao outro, eram atributos indissociáveis da direção da
consciência norteada pela verdade, e, poderíamos acrescentar, atributos do método de
investigação do inconsciente a partir de Ferenczi. O mestre, o filósofo, o amigo, o
psicanalista, é aquele que já havia trilhado o caminho da prática de si e poderia então ir ao
encontro do outro no trajeto de sua verdade. A psicanálise, para tanto, também faz uso dos
relatos cotidianos, tanto atuais quanto da história individual – e intersubjetiva – de cada um. A
reciprocidade envolvida na amizade, que não tem necessariamente a ver com a ocupação de
lugares similares, tal como acompanhamos na breve historicização das relações junto a
Foucault, era indissociável da parrhesía, apontando para a ética fundamental da verdade que
atravessa o encontro humano cuja premissa era o cuidado de si.
Para que o discurso dê lugar à verdade, é preciso, afirma, que seja simplex, isto é, transparente:
que diga o que tem a dizer, que não tente vesti-lo, cobri-lo, e assim, mascará-lo, quer com
ornamentos, quer com uma dramaticidade qualquer. Simples: deve ser simples como água
pura, a verdade deve nele passar. Mas deve ser ao mesmo tempo composita, isto é, deve seguir
uma certa ordem. Não a ordem dramática que a eloquência popular segue, em função
justamente dos movimentos da multidão, mas [uma ordem] composta em função da verdade
que se pretende dizer. [...] Deve descer até o fundo, por essa simplicidade e por essa
composição refletida. [...] Isso implica, certamente, que esse discurso tenha uma particular
atenção para com os indivíduos, para com o estado em que se encontram. Essas sementes não
podem ser perdidas, elas não podem ser esmagadas. Necessidade, portanto, de se adaptar
àquele [a quem] se fala, de esperar o momento certo em que a germinação poderá ocorrer.
[itálicos e colchetes do autor] (Foucault, 1981-82/2010, p. 360)
12
Análise de elementos da correspondência de Sêneca com Lucílio, ausência da referência bibliográfica
específica.
66
Daí a importância do tempo da semente, resgatado na citação acima, visto que ela não
brota e não floresce segundo o desejo daquele que a germina, ela flui de acordo com a sua
temporalidade peculiar. Para tanto, há de se possuir sabedoria de não medir o outro segundo
critérios identificatórios próprios, a única universalidade compartilhada é a da verdade
revelada no exercício de si, que impele a um modo característico da expressão individual,
marcando o paradoxo dessa asserção – o universal é acessado via singularidade.
3. Amizade e psicanálise
Freud, 1930.
Em sua reflexão, ele aponta para a noção de tato psicológico, fundamental ao esforço
terapêutico que elege para si a minimização do sofrimento do outro como horizonte ético da
clínica. Assim, “o tato é a faculdade de sentir com (Einfühlung)” (p. 31), remetendo-nos à
importância de o analista se atentar para os aspectos de seu dinamismo psíquico que estão em
jogo na sua prática clínica. É evidenciando este aspecto sensível do encontro analítico que
Ferenczi (1927-28/2011a) depreende a segunda regra fundamental da psicanálise – que o
analista tenha, ele próprio, se submetido ao tratamento analítico. É por meio disso que se
torna possível uma verdadeira abertura do analista à alteridade, haja vista que “aprender a
suportar um sofrimento constitui um dos resultados principais da psicanálise” (p. 32). O tema
do cuidado atravessa a teoria e a prática de Ferenczi; o cuidado de si é atrelado a qualquer
possibilidade de se cuidar bem do outro, tal como resgatamos no cuidado de si em Foucault
(1981-82/2010).
É uma vantagem para a análise quando o analista consegue, graças a uma paciência, uma
compreensão, uma benevolência e uma amabilidade quase ilimitadas, ir o quanto possível ao
encontro do paciente. Cria-se desse modo uma base graças à qual pode-se lutar até o fim na
elaboração dos conflitos, inevitáveis a um prazo mais ou menos curto, e isso na perspectiva de
uma reconciliação. [itálicos nossos] (Ferenczi, 1931/2011, p. 85).
O que aparece de fundamental é que a pulsão de vida, a ligação com o outro, é o que o
analista tem de primordial a oferecer ao paciente. É o contraponto fundamental às
manifestações sintomáticas que encerram o trânsito da libido, fixando-a e mortificando-a.
Para tanto, a disposição amistosa do analista é o instrumento através do qual o analista
possibilita ao analisando a ampliação, tanto quanto possível, de sua liberdade de associação,
haja vista que o que “deve ser realizada em cada caso particular é a eliminação progressiva
daquelas resistências que consistem numa dúvida, mais ou menos consciente, sobre a
confiabilidade do analista” (Ferenczi, 1927-28/2011b, p. 23).
69
é possível, indicar alguns traços comuns das pessoas que levaram uma análise até o fim. A
separação muito mais nítida do mundo da fantasia e do mundo da realidade, obtida pela
análise, permite adquirir uma liberdade interior quase ilimitada, logo, simultaneamente, u m
melhor domínio dos atos e decisões; em outras palavras, um controle mais econômico e mais
eficaz. (p. 21)
A noção de verdade é para o autor uma importante referência, tal como é também na
filosofia, destacada no segundo capítulo. Uma de suas facetas está na ênfase à sinceridade,
através da qual se pode movimentar e até acelerar o tratamento analítico, pois na medida em
que o analista é sincero com o paciente, inclusive – ou principalmente – quanto às
dificuldades suscitadas pelo caso, ele pode observar, como uma espécie de recompensa, “uma
mudança mais ou menos rápida no comportamento do paciente” (Ferenczi, 1927/2011a, pp.
23-24).
A verdade também está representada na sua reflexão sobre a cura. Para ele, o prazer
ligado à fantasia inconsciente, à mentira inconsciente (Ferenczi, 1929/2011), deve ser
renunciado ao longo do processo analítico para dar lugar ao domínio da realidade “rica em
frustrações, mas completada também – devemo-lo esperar – pela faculdade de desfrutar a
felicidade onde ela realmente for oferecida” [itálicos nossos] (p. 60).
Ferenczi se refere à amizade por vezes de forma aludida, tal como sentimentos
amistosos (1927/2011), disposição amistosa (1927/2011), entendimento amistoso (1932/1990)
e tratamento amistoso (1932/1990). As expressões aparecem atreladas à sinceridade, ao
71
afastamento da hipocrisia, à disposição verdadeira para o outro, que, cansado de lutar sozinho,
abandona suas defesas e se entrega ao que é de fato importante para o seu tratamento. A
amizade imprime a sinceridade na relação entre os dois sujeitos em cena. Tal relação é uma
via de mão dupla, pois o analisando também revela ao analista o que da constituição psíquica
deste se interpõe ao tratamento. Vemos com Ferenczi que, em situações que suscitam as
resistências do analista:
Não há nenhuma vantagem em bancar nessas condições o homem sempre bom e indulgente; é
mais aconselhável confessar honestamente que o comportamento do paciente nos desagrada
mas que devemos nos controlar, sabendo que, se ele se dá ao trabalho de ser malévolo, será
por alguma razão. (Ferenczi, 1931/2011, p. 86)
O analista deve prezar pela manutenção do lugar de seu desejo na clínica, pois na
medida em que ele se destitui dessa posição, ele autoriza o seu paciente, através dos ruídos da
transferência, a se distanciar desse lugar também. É pela ausência de um narcisismo
demasiadamente fixo, é pelo movimento, que o analista potencializa a busca do analisando
pelos seus próprios sentidos, mediante a ressignificação de suas referências identificatórias. A
amizade parece-nos o valor por excelência que, em Ferenczi, a transferência é significada.
Prado de Oliveira (2012), ao pensar a amizade em Ferenczi, amparado pela filosofia, pondera:
Poderíamos pensar então que a cura em psicanálise está atrelada à noção de verdade na
relação com o outro disponível. É pela presença sensível da alteridade, em sua semelhança e
diferença radicais, que é possível para o sujeito ir além do que está dado, reorganizar sua rede
de sentidos, as reconexões engendradas por esta nova conexão amistosa que pode interromper
as cadeias de repetições ao ampliar o acesso ao conteúdo recalcado. Resgatando Ferenczi,
Prado de Oliveira (2012) nos diz:
72
[a cura] só pode ser estabelecida à medida que for associada à geração de ‘um novo começo’;
este, por sua vez, só pode ser propiciado por um laço de amizade analítica formado. [O
analista] não se furta a expressar seus afetos e pensamentos com sinceridade, à medida do que
se mostrar conveniente, torna-se então um novo ‘outro’ para o analisando. Um dos requisitos
para que isto ocorra diz respeito à influência da contratransferência na elaboração da
transferência, sendo desde este ‘jogo’ inicial que é criada a condição de possibilidade de o
analista ser desvelado como um outro ser, para que ele possa ser reconhecido como uma parte
significativa da realidade e da atualidade do analisando. Assim, pode-se esperar que este possa
conseguir estabelecer uma diferenciação entre si próprio e as imagos parentais formadas
outrora, para que seja tornada efetivamente possível a alegria de um ‘novo começo’. [itálicos e
colchetes nossos] (pp. 197-198)
Resgatar, nesse sentido, as relações do paciente, tanto de sua história pregressa quanto
atual, parece ter um importante valor, visto que elas servem de referência tanto para entender
a posição subjetiva de um determinado ser, quanto para indicar quais os rumos que o
tratamento analítico está tomando. Ao pensar, por exemplo, em seus pacientes com
autoclivagem narcísica em analogia com crianças que sofreram em sua infância, Ferenczi
(1931/2011) assinala:
Toda pessoa que foi analisada a fundo, que aprendeu a conhecer completamente e a controlar
suas inevitáveis fraquezas e particularidades de caráter, chegará necessariamente nas mesmas
constatações objetivas, no decorrer do exame e do tratamento do mesmo objeto de
73
relações construídas, mantidas e por vezes rompidas por Freud durante a edificação do campo.
Ela inaugura a obra resgatando as primeiras cartas de Freud com um amigo íntimo na
adolescência, Silberstein, seu único amigo nessa época. A relação, como nos conta a autora,
parece ter começado como uma troca entre iguais, mas, tempos depois, Freud sutilmente tenta
assumir a predominância. Uma série de nuances atravessa a parceria, por exemplo,
diferentemente de Freud, o amigo vinha de família abastada e vez ou outra se envolvia com
garotas de sua idade, ao que o jovem Freud respondia com queixas e ironias.
Alguns detalhes nos parecem ricos nessa história, então permitamo-nos debruçar sobre
os seus pormenores. Freud parecia oscilar entre o amor e o ódio na relação, a depender
sobretudo do estado conjugal do amigo. Quando Silberstein decide se casar, Freud define a
noiva do amigo como “uma garota rica e burra” (p. 53). Nesse mesmo ano, em 1981, a
correspondência entre eles é abruptamente interrompida. Contudo, a esposa do amigo sofria
de forte depressão, e ele a encaminhou para tratamento com Freud, não se sabe exatamente
por quanto tempo. O que se sabe, pela pesquisa da autora, é que a esposa morreu de uma
queda no edifício em que Freud clinicava, e não se sabe quando e nem mesmo se ele esteve
com ela nesse dia. Dramático, não? Ao que parece, o amigo não o responsabilizou, e
continuou inclusive a lhe encaminhar pacientes, ao que Freud rejeitou, pois a relação depois
desse episódio vivido enquanto fracasso se tornou insustentável para ele.
O processo repetido por Freud em suas amizades seria o de investir seus afetos de forma
rápida e precipitada, avançando até um nível de sinceridade quase irrestrito e terminando com
um rompimento irreparável. São os casos de Fliess, Jung, e também, de modo menos intenso,
Breuer, Stekel e Adler [...]. O amigo ideal para Freud, diz Grosskurth (1991), ‘tem que ser
uma extensão de si mesmo’ (p. 30). Nesse nível de idealização narcísica, os amores e as
amizades só podem acabar em desencanto (p. 53).
O espaço para o movimento dos amigos e discípulos de Freud era restrito. Havia uma
série de expectativas cuja frustração poderia ter consequências derradeiras. É interessante,
nesse sentido, aproximar a escolha de palavras feita pelos autores. Aristóteles (2002), ao
resgatar a noção de homem virtuoso, dado às amizades, o faz justamente diferenciando-o
daqueles que apreciam a bajulação,
um bajulador é um amigo de posição inferior, ou tenciona sê-lo, como tenciona dar mais afeto
do que recebê-lo, mas ser objeto de afeto é sentido como quase o mesmo que ser honrado, que
é o que muitas pessoas ambicionam. (Aristóteles, 2002, pp. 226-227)
Tal como nos sonhos, o doente atribui realidade e atualidade aos produtos do despertar de seus
impulsos inconscientes; ele quer dar corpo a suas paixões, sem considerar a situação real. O
médico quer levá-lo a inserir esses impulsos afetivos no contexto do tratamento e no da sua
história, a submetê-los à consideração intelectual e conhecê-los segundo seu valor psíquico.
(p. 146)
A amizade não foi uma temática da qual Freud se aproximou em suas pesquisas. Ele a
tangencia em certas passagens, com uma frequência menor do que Ferenczi. O mesmo ocorre
com a transferência, os textos sobre a técnica psicanalítica são alguns dos poucos momentos
em que Freud se debruça sobre os aspectos que atravessam e compõem o setting analítico. É
através desses escritos que podemos ter acesso aos contornos da transferência proposto por
ele, ainda que de forma pouco esmiuçada, no estilo de recomendações gerais.
consciência” (p. 142), e a transferência negativa, atravessada pela força dos conteúdos
inconscientes, que se opõem à cura e afastam o sujeito do princípio de realidade.
Quanto aos [conteúdos inconscientes], a psicanálise mostra que via de regra remontam a
fontes eróticas, de maneira que temos de chegar à compreensão de que todos os nossos afetos
de simpatia, amizade, confiança etc., tão proveitosos na vida, ligam-se geneticamente à
sexualidade e se desenvolveram, por enfraquecimento da meta sexual, a partir de anseios
puramente sexuais, por mais puros e não sensuais que se apresentem à nossa autopercepção
consciente. [colchetes nosso] (Freud, 1912/2010a, p. 142)
Podemos depreender que relações marcadas por afetos positivos, que implicam em
reconhecimento e reciprocidade com a alteridade, são um aspecto fundamental elencado por
Freud para pensar a direção do tratamento. A transferência estritamente erótica, não mediada
pela consciência, seria aquela que oferece resistência à cura, mantendo o doente afastado da
vida. O impulso à vida engendrado pela transferência positiva, calcado sobre afetos de ternura
e amizade, seria o seu contraponto.
Mas Freud vacila em sua reflexão quanto à postura do analista. Ele aponta que os
aspectos positivos, ternos, são aqueles que impulsionam o avanço do processo analítico.
Contudo, no mesmo ano (1912/2010b), ele diz da frieza necessária à condição do analista,
como forma de proteger sua própria vida afetiva. Resgata então a necessidade da análise
daquele se propõe a analista, pois seus mecanismos de defesa podem deturpar a experiência
de sentido do outro, impedindo a abertura radical à diferença. E vai além, ao afirmar que o
afeto do analista pode aproximá-lo do campo da sugestão, e recomenda que o analista “deve
ser opaco ao analisando e, tal como um espelho, não mostrar senão o que lhe é mostrado” (p.
159).
A frieza apontada por Freud é ambígua. Ele diz: “como médicos devemos sobretudo
ser tolerantes com as fraquezas do doente, temos de nos contentar em recuperar, ainda que
seja para alguém de não muito valor, algo da capacidade de realização e fruição” [itálicos
nossos] (p. 160). É visando essas capacidades eleitas por Freud, de realização e de fruição,
79
que a via pulsional encerrada no inconsciente pode ser novamente colocada em movimento,
orientada pelo princípio de realidade via manejo da transferência.
Elaborar aquilo que se queria descarregar através de uma ação (Freud, 1914/2006),
interrompendo o ciclo de repetição mortífera do modo de satisfação pulsional, eis aí um
triunfo da terapia psicanalítica. A ampliação do acesso aos conteúdos inconscientes deslinda a
subjetividade e fornece ao sujeito a possibilidade de apropriação de si, de seus modos de ação
e de suas escolhas, que passam a ser regidos pela consciência, orientados pelo princípio de
realidade.
[O paciente] deve aprender com ele [analista] a superar o princípio do prazer, a renunciar a
uma satisfação próxima, porém inaceitável socialmente, em favor de uma mais distante, talvez
bastante incerta, mas psicológica e socialmente inatacável. [...] Por essa via [investigação dos
conteúdos inconscientes], conquistar aquele aumento de liberdade psíquica, mediante o qual a
atividade psíquica consciente – no sentido sistemático – se distingue da inconsciente. [itálicos
e colchetes nossos] (Freud, 1915/2010, p. 226)
Nessa linha, ele resgata o valor da transferência positiva para vencer as resistências do
ego que se interpõem à cura. A amizade aparece então em frentes distintas. Em um primeiro
momento, ele reflete sobre o caso de um paciente que o acusou, após o processo analítico, de
não ter analisado devidamente a transferência negativa. Freud aponta que teria sido um
comportamento inamistoso despertar conteúdos que naquela ocasião não se faziam presentes.
Logo em seguida, ele diferencia amizade e transferência a partir do caso relatado, e afirma
que nem toda a relação analítica é pautada pela transferência, “havia também relações
amistosas que se baseavam na realidade e que provavam ser viáveis” (p. 237).
O ser humano luta pela continuação da sua existência, ele se apega a vida, incitado por
uma pulsão que insiste em se ligar. Parece haver um sopro de vida que o impele, ao menos, a
uma precária tolerância de si e do outro, fundamental para a manutenção do laço. Talvez esse
apego não seja sem razão, mas para essa questão da humanidade restam apenas especulações.
Já que há essa insistência na vida, seria também desejável que ela se aproximasse tanto quanto
possível da satisfação, da felicidade, a finalidade última da existência (Freud, 1930/2010).
Ora, parece não haver nada mais ideal para a subjetividade do que a abertura para a
manifestação daquilo que se é, constituído e reconhecido via presença do outro. Mas sabemos
82
junto a Freud que o ser humano nem sempre se liga ao que seria um ideal plausível e
compartilhado de felicidade. Há algo de disruptivo inerente à sexualidade humana que
atravessa as relações e insiste em se fazer presente. Nesse cenário, o tema da amizade parece
ter importantes contribuições para pensarmos o dispositivo analítico.
O quê de realidade [...], que as pessoas gostam de negar, é que o ser humano não é uma
criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim
que ele deve incluir entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade.
Em consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e
objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão. (pp. 76-77)
Considerando que somos regidos pelo princípio de prazer, a alternativa mais plausível
seria a aposta de que a quantidade de prazer extraída das ligações de amor é mais intensa do
que aquelas conexões marcadas preponderantemente pela agressividade. Há que se ter prazer,
o ser humano não abre mão de sua satisfação. E esse prazer deve garantir inclusive a
manutenção de uma parcela da agressividade, pois ela preserva a continuação do Eu em uma
civilização ainda fortemente hostil em relação aos seus indivíduos. A agressividade pode se
ligar, nesse sentido, à coragem, coragem para a manifestação de si.
Uma agressividade “analisada”, por assim dizer, que se manifesta quando é exigido ao
Eu que lute pela sua própria preservação. Haveria que se esperar então, tanto do analista
quanto daqueles que levaram a sua análise a cabo, certo discernimento da realidade,
propiciado por um saber sobre si que não deixa o sujeito à mercê do mundo externo, e nem o
coloca em uma posição defensiva cuja resposta prioritária é a agressividade, haja vista que o
custo subjetivo dessa posição é alto, pois se sustenta mediante sofrimento.
13
Essa questão foi desenvolvida no primeiro capítulo desta dissertação.
83
Há, nesse sentido, que se balancear positivamente o ganho de prazer pelo amor. Mas
Freud já nos lembrou que o amor é também fonte do mais intenso sofrimento (Freud,
1930/2010). O amor coloca em jogo as intensidades das paixões humanas. Os mecanismos
identificatórios, as idealizações, as rivalidades e as inevitáveis frustrações são inerentes à
experiência de amar. Em psicanálise, as reedições dos primeiros relacionamentos dão à
experiência da transferência a possibilidade de realinhar o sujeito com as suas referências
amorosas, protótipos das relações posteriores. Ideais e idealizações são colocados em xeque,
impactando as amarras identificatórias dos analisandos, visto que elas enrijecem a forma de
satisfação subjetiva. Segundo Freud (1930/2010),
a sabedoria aconselhará talvez a não esperar toda satisfação de uma única tendência. O êxito
jamais é seguro, depende da conjunção de muitos fatos, e de nenhum mais, talvez, que da
capacidade da constituição psíquica para adaptar sua função ao meio e aproveitá-lo para
conquistar prazer. [itálicos nossos] (p. 41)
A análise teria que se nortear, dessa forma, no sentido de um arranjo psíquico que
possibilite ao sujeito extrair prazer de uma função adaptada ao meio, formulação esta que é
recebida não sem ressalvas. Adaptar-se, em Freud, parece se aproximar da possibilidade da
obtenção de prazer proveniente da satisfação pulsional em um contexto específico, orientada
pelo princípio de realidade, que preserva a manutenção do laço social.
Foucault (1981) aponta que a ética da amizade se sustenta sobre o fato de se levar em
conta o prazer do outro e de integrá-lo ao próprio prazer. Esse pode ser um aspecto basal para
aquele que se dispõe a tratar do sofrimento alheio, pois o prazer da experiência de si tem
ressonâncias no analista, cuja presença é condição para o engendramento desse processo.
85
Enfim, não há regra geral, cada psicanalista encontrará sua própria forma de
integração dos componentes de sua sexualidade de modo a garantir a sua satisfação no
exercício de sua função. Como nos lembra Belo (2011), em sua reflexão moral sobre a clínica,
“a metapsicologia instaura uma pluralidade de ‘eus’ [...]. Isso muda completamente a
perspectiva sob a qual respondemos ‘quem sou eu realmente?’” (p. 80). E mais a frente: “o
inconsciente proposto por Freud não é estúpido, nem bruto; está mais para um parceiro de
conversas que aceita, rejeita e distorce nossas representações e afetos” (p. 80). Cabe ao
analista, portanto, saber conversar com os diversos eus que o habitam, integrando-os de forma
prazerosa em seu ofício.
Como vimos até aqui, é unânime na psicanálise a ideia de que só podemos existir a
partir de um outro, que nos nomeia e nos reconhece enquanto seres em um processo de
subjetivação singular. O sentido de uma existência é intrinsecamente relacionado à presença
desse outro com o qual o eu pode transitar entre a conexão e a separação, abstendo-se de
qualquer posição absoluta nesse eterno devir. O psicanalista assume essa função significativa,
que viabiliza o desenho de novas histórias de vida, a partir do lugar privilegiado da
transferência.
86
Nesse sentido, a afinidade entre psicanálise e amizade, não por acaso, se presentifica
no desenvolvimento teórico do campo. Pesquisas e reflexões passaram, desde o surgimento da
psicanálise, a esmiuçar as nuances da transferência, marcando o avanço de um campo que é
afetado por sua prática, e, assim, se aprimora e se afina gradativamente. Freud e Ferenczi por
vezes já recorreram à amizade para descrever ou ponderar as particularidades da relação
analítica. Com o passar das décadas, diferentes autores se debruçaram sobre a composição e
os ecos do tratamento analítico, e também passaram por essa temática. Acompanhemos.
A amizade surge por vezes ao pensarmos sobre qual necessidade humana a função do
psicanalista vem preencher. A psicanálise não traz respostas imediatas ao sofrimento psíquico,
não é disso que se trata aqui. Mas ela revela, pela sua prática, a necessidade peremptória de
construção e compartilhamento de sentido no humano, o que põe em questão o domínio
estritamente corpóreo de sua condição. A esse respeito, Safra (2004) nos diz:
O homem, como ser criativo, vive com um pé na experiência das necessidades e o outro na
experiência de liberdade. As necessidades se apresentam no registro biológico e no registro
social. A criatividade origina a experiência de liberdade decorrente do gesto fundamental que
inicia o devir humano em direção a um sentido sempre em transformação ao longo da vida.
Dessa forma, sendo um ser criativo, o homem tem como sua obra fundamental o sentido de
sua própria existência. (p. 62)
O ser humano acontece pelo gesto, experiência de liberdade posicionada entre o ser e o não-
ser. Para o homem como ser criativo, a questão fundamental não é a morte, mas o fato de não
vir a alcançar a possibilidade de ser o que é, o que só acontece pela hospitalidade ofertada ao
singular de si mesmo pelos outros homens. (Safra, 2004, p. 59)
O gesto criativo que ocorre no vácuo, sem a ressonância da comunidade humana, leva
o ser a se perder na irrealidade de si mesmo (Arendt, 1958). A hospitalidade, que acolhe o
outro na inteireza de sua diferença e semelhança radicais, marca também o sentido da
terapêutica analítica, que viabiliza a expressão e o acontecimento de si. O analista vem
14
Remeto novamente o leitor ao texto de Winnicott “A capacidade para estar só” (1958/1983).
87
A amizade é posta, por esse autor, como fenômeno ontológico para a condição humana. A
amizade, aqui não é fruto de derivações psíquicas, ela é fundante, o que possibilita a condição
humana. Ela é acolhimento do nascimento do ser humano, o que permite um lugar para si
entre os outros homens (Sobórnost). Winnicott chamou-a de devoção. A amizade, como a
abordo aqui, não significa bondade, mas sim solidariedade! Ela compreende o amor e o ódio!
Ela é a face de Sobórnost. Na amizade compartilha-se do destino humano com aqueles que
estão, com os que se foram e com os que virão. Amizade não é um sentimento, é
fundamentalmente um lugar: comunidade de destino! [itálicos do autor] (p. 125)
15
Pavel Florensky, pensador russo que se dedicou ao desenvolvimento da filosofia, religião e artes. Considerou
a amizade enquanto um lugar ético.
88
cura em psicanálise. Escrito sob a forma de uma carta dirigida a uma jovem analista, o autor
marca:
Não acho que se deva abandonar a ideia de cura. Sei que isso não é muito bem-visto por certos
círculos psicanalíticos nos quais o protocolo é mais importante que o sentido de nosso
trabalho. [...] Você há de convir que, caso se aceite o caráter terapêutico da psicanálise [...], é
preciso fazer acrobacias para sustentar esse projeto e ao mesmo tempo se proibir de desejar
que nossos pacientes ‘sarem’. (Macedo, 2011, p.137).
Já vimos com Freud que é para o princípio de realidade que devem se dirigir parte
considerável dos investimentos libidinais de um sujeito “curado”. Macedo (2011) retoma os
vislumbres freudianos quanto ao fim de uma análise, a saber, a capacidade do indivíduo de
amar e trabalhar – uma integração entre a sexualidade e o pensamento dirigidos à vida. Na
nossa tradução, Freud diz “da capacidade de realização e fruição” (Freud, (1912/2010b), p.
160), à qual deve se dirigir o esforço analítico. Remetemos as asserções freudianas à
capacidade de estabelecer trocas significativas com o outro, ao laço, que dá contorno e auxilia
na construção de sentido da experiência singular.
Ambos os protagonistas têm em comum o desejo de pensar a causa psíquica dessa tristeza,
desse sofrimento, dessa repetição que leva o paciente a pedir uma consulta. [...] O que
proporciona prazer e alegria é a vitória sobre os processos de destruição (Thanatos) que todo
pensamento formulado sobre a causa psíquica dos sofrimentos obtém. (Macedo, 2011, pp.
139-140)
89
de Platão a Cícero, passando por Aristóteles e Plutarco, todos pareciam concordar de que a
experiência da amizade não só era essencial para o conhecimento de si próprio como vivenciá-
la era um raro prazer ao qual só homens sábios e virtuosos tinham acesso. (Koltai, 2011, p. 59)
Para além da dimensão “micro” da clínica, por assim dizer, a autora marca que a
amizade possibilitou a própria emergência e sustentação do campo psicanalítico, pois, além de
estar na sua fundação, foi a sua própria terra natal. A proximidade e por vezes a sobreposição
16
Philia – expressão grega que remete à amizade.
90
entre essas esferas talvez diga da escassez de estudos dedicados a pensá-las em consonância,
ou mesmo a diferenciá-las quando necessário.
Koltai relembra que a análise de Freud com Fliess via correspondência foi o motor de
invenção da psicanálise, marcando já na origem o seu aspecto fundante e fundamental – a
busca do outro com o qual se possa compartilhar e construir sentido. Freud confessou a Fliess
o quanto lhe alegrava “ter compreendido onze anos atrás que era preciso te amar para
engrandecer o conteúdo de minha própria existência” (Freud, 1986, citado por Koltai, 2011, p.
62), revelando o caráter definitivo da relação com o outro na edificação de si. O outro,
semelhante e estrangeiro, possibilita aceder à própria alteridade, àquilo que assujeita, à parte
ignorada de si mesmo (Koltai, 2011).
apenas permite realizá-lo de outra maneira, introduzindo aí não uma simetria igualitária, mas
uma mutualidade onde se trata de acolher a alteridade do outro sem querer modificá-lo, até
porque não existe aí nenhuma novidade ao afirmamos que aceitar alguém em análise implica
aceitar se engajar por ele, dispondo-nos a disponibilizar nosso psiquismo para acolher o do
outro. E é nesse sentido que creio poder afirmar que a ética da psicanálise e da amizade se
encontram. (Koltai, 2011, p. 68)
Ora, no mesmo livro de Macedo (2011), na carta sobre “A transferência”, ele aponta
que “emprestamos-lhe [aos pacientes] nosso mundo. Um mundo psíquico para dois” (p. 35).
A disponibilidade física e psíquica do analista marca sua presença em uma relação de
reciprocidade ou mutualidade, ainda que assimétrica, condição para que o analisando encontre
e construa seus sentidos orientado pelo princípio de realidade. As afinidades entre Koltai e
Macedo, inclusive quanto às ressalvas da aproximação temática, são evidentes e vão de
encontro ao contexto humano resgatado por Safra (2004).
17
A perspectiva winnicottiana foi abordada no primeiro capítulo desta dissertação.
91
de amor pleno dos primeiros cuidadores seria a primeira distinção entre amizade e amor,
aquela que surge em contraponto ao amor não correspondido.
Nessa linha, Ana Lila Lejarraga também articula esses temas em seu artigo “A noção
de amizade em Freud e Winnicott” (2010). Ela resgata, para tanto, a noção de fraternidade em
“Totem e tabu” (1913), advinda da culpa dos irmãos pelo assassinato do pai primordial. Os
irmãos “têm agora que lidar com suas diferenças” (Lejarraga, 2010, p. 87); eles compactuam
92
com as vidas uns dos outros e estabelecem leis para reger a vida em comum, que simbolizam
o pai assassinado. Logo na origem, de acordo com Freud, a fraternidade é marcada por culpa,
ambivalência e rivalidade, podendo apenas parcamente aceitar uma legislação restritiva das
formas de escoamento pulsional.
O ser humano parece, contudo, ser capaz de abandonar um objeto da pulsão somente
quando outro se mostra tão ou mais promissor quanto à sua satisfação. Esse aparente
rebaixamento do prazer em Freud seria tributário de qual outra satisfação? Estaria atrelado a
esse impulso vital que insiste em se ligar? Qual o ganho daí advindo? A possibilidade de se
realizar, de construir/encontrar um sentido para algo a priori esvaziado de significação – a
existência – parece uma hipótese ponderada. Para tanto, o outro é imprescindível.
Depreendemos, então, que não há um sentido primeiro entre o Eu e o mundo, ele deve
ser construído na/em relação com o outro, no espaço compartilhado, inaugurado pelos
primeiros cuidadores e perpetuado pela comunidade humana. A ‘cura’ aparece, com efeito,
enquanto uma aposta no amor, possibilitada pelo encontro entre analista e analisando. Os
apontamentos de Kupermann (2008), ao pensar o ato da fala a partir do filme “Fale com ela”
(2002) de Almodóvar, resgatam esse sentido primeiro do falar, através do qual a prática de
psicanalisar pôde emergir. Ele nos diz:
somos transportados [através do filme] para um universo onde a palavra reencontra a sua
vocação originária: é, efetivamente, um ato de amor. É pela sua dimensão de ato erótico que,
assim como no nascimento da psicanálise, a habla dos personagens de ‘Fale com ela’ detém
um poder transformador da vida e regenerador dos estados mortificados. [colchetes nossos]
(Kupermann, 2008, p. 113)
93
nos objetos da pulsão (Birman, 2014), que encerra seu trânsito e promove a estagnação dos
repertórios de um sujeito, preso aos modos fixados de satisfação. Ao pensar sobre a
valorização do objeto na experiência erótica moderna em detrimento dos aspectos de
intensidade, outrora valorizado pelos antigos, Birman (2014) aponta:
o incremento das ‘doenças nervosas’ na modernidade seria uma consequência desse processo
de moralização da experiência erótica (Freud, 1908d) [...]. Assim, formular que a sexualidade
seria perverso-polimorfa e infantil (1905d), e que, além disso, o objeto seria o que existiria de
mais variável no circuito da pulsão (ibidem), foram as formas que Freud encontrou para
criticar a fixidez e a cristalização do objeto na modernidade, com vistas a relançar o registro
das intensidades. Portanto, para criticar o processo moderno de normalização e de
moralização, no campo do erotismo, Freud retomou a leitura dos antigos sobre o erotismo.
[itálicos do autor] (p. 30)
se a psicanálise é uma formação discursiva e não um discurso científico, é preciso dizer que a
experiência psicanalítica é a invenção pelo sujeito de uma prática de si que se constituiu na
modernidade, mas que se manteve na modernidade avançada e na contemporaneidade. Daí
porque as práticas de subjetivação se inscrevem na experiência analítica de forma
fundamental. Nesta perspectiva, as diferentes práticas psicanalíticas seriam formas de cuidado
de si, realizadas desde a modernidade, para o sujeito lidar com o mal-estar produzido pelos
imperativos de normalização e da biopolítica. (p. 39)
Considerações Finais
Iniciamos partindo de uma amizade pouco provável, à primeira vista, para aqueles que
acompanham o desenvolvimento da reflexão freudiana sobre a religião. Trata-se da relação do
autor com o pastor e psicanalista Oskar Pfister (Freud & Pfister, 2009). A mútua estima e a
consideração entre os amigos, que permanece a despeito do distanciamento de suas
perspectivas de mundo, remetem ao que é premente no humano – a possibilidade de trocas
significativas com os pares – inerente à significação da pessoalidade.
A solidão, que também era cara a Montaigne, diz de uma capacidade a ser
desenvolvida, que remete à introjeção da presença do outro. Ao se afastar do convívio, o ser
pode ir de encontro à alteridade que lhe é constitutiva, remetendo-o à contemplação da
verdade. O paradoxo – solidão e presença do outro – mereceria, nesse sentido, a dedicação de
uma pesquisa posterior.
Na condição humana analisada por Arendt (1958/1999), observamos que o ser humano
se realiza na companhia de outros, e que a realidade do mundo é garantida pela presença e
pela interação entre os pares. Ressaltamos a amizade como o elo fundamental que possibilita a
criação de sentido mediante ao que está dado aos humanos – a sua condição de convivência.
poderia divergir de Freud de forma contundente, e ainda manter sua considerável importância
e comunhão com o autor.
Observamos que a noção de verdade marca a sua presença ao longo de nossa reflexão.
Ela se presentifica nas relações de amizades aqui aludidas, no debate filosófico sobre a
amizade e o conhecimento de si mesmo, bem como compõe o desenvolvimento do campo
psicanalítico, norteado pela verdade da condição singular e relacional do humano. A
franqueza e a sinceridade são, nesse sentido, condizentes com a prática filosófica e
psicanalítica que se sustenta e se orienta pela verdade.
A partir dos aspectos aludidos, afinamos a prática da psicanálise ao laço social pautado
por relações de amizade, visto que a amizade diz de um encontro significativo que acompanha
o humano na jornada de sua existência. A psicanálise revela que o outro é fundante e
99
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