Experiências Mediúnicas

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

RICARDO NOGUEIRA RIBEIRO

(Id)entidades: aspectos psicossociais das variedades da

experiência mediúnica

SÃO PAULO
2015
RICARDO NOGUEIRA RIBEIRO

(Id)entidades: aspectos psicossociais das variedades da


experiência mediúnica
(Versão corrigida)

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo,
como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Psicologia.

Área de Concentração:
Psicologia Social.
Orientador:
Prof. Dr. Wellington Zangari.

SÃO PAULO
2015
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Ribeiro, Ricardo Nogueira.


(Id)entidades: aspectos psicossociais das variedades da experiência
mediúnica / Ricardo Nogueira Ribeiro; orientador Wellington Zangari.
-- São Paulo, 2015.
274 f.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Social e do Trabalho) –
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

1. Mediunidade de incorporação 2. Identidade social 3. Psicologia


e religião 4. Psicologia junguiana 5. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 6.
Umbanda 7. Espiritismo 8. Vale do Amanhecer1I. Título.

BF1281
FOLHA DE APROVAÇÃO

Ricardo Nogueira Ribeiro

(Id)entidades: aspectos psicossociais das variedades da experiência mediúnica

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Psicologia Social.

Aprovado em: ____/____/_____

Orientador
Prof. Dr. Wellington Zangari

Instituição: Universidade de São Paulo. Assinatura:

Banca examinadora
Prof(a). Dr(a). __________________________________________________________
Instituição: ____________________________ Assinatura: _______________________

Prof(a). Dr(a). __________________________________________________________


Instituição: ____________________________ Assinatura: _______________________
Ao universo.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Lucia Bezerra e Ricardo Ribeiro, pelo apoio e incentivo

incondicionais e incomensuráveis... Saibam que, sem vocês, certamente este trabalho

não seria possível. O sentimento de amor e gratidão por vocês é uma realidade à qual

estas palavras jamais serão capazes de expressar minimamente. Devo muito do que me

tornei e do que ainda serei a vocês.

À minha companheira, Valeska Magalhães, pela paciência infinita, estímulo

constante e, enfim, pelo amor que partilhamos e vivemos de modo tão belo e leve. Peço

perdão pelos deslizes e indisponibilidade resultantes do meu esgotamento no final da

escrita, mas estou certo de que isso foi quase nada diante do que temos...

Ao meu orientador, Prof. Wellington Zangari, por cada uma das

contribuições, elogios, alertas e encorajamentos. Sua assertividade, prontidão e

disponibilidade permanentes são de espantar. Obrigado pela amizade e pelo bom humor.

Aos membros da Banca Examinadora, Profa. Fatima Regina Machado e ao

Prof. Everton Maraldi, por todas as críticas e comentários tão bem embasadas não

apenas no Exame de Qualificação e pelo aprendizado nos grupos de estudos, artigos,

etc.

Ao Centro Espírita Grão de Mostarda, ao Centro Espírita de Umbanda

Jesus, Maria e José e ao Templo Gamurio do Amanhecer, a todos os seus líderes e

membros que colaboraram de algum modo com este trabalho e por ele se interessaram.

Principalmente, aos médiuns entrevistados, por tudo. Estou ciente da impossibilidade de

fazer jus a todas as suas eventuais expectativas, mas espero pelo menos não decepcioná-

los completamente. Minha visão é apenas mais uma, e penso ser fundamental que,

mesmo não necessariamente coincidindo com as suas, elas possam coexistir.


Ao Prof. Cezar Wagner de L. Góis, à Profa. Vanessa Louise Baptista e aos

amigos do grupo de estudos sobre consciência, espiritualidade e religião do LESC-PSI.

À minha família: Nogueira Bezerra, Clézio Junior, Fernanda Bezerra, Luzia

Bezerra e Nogueira Granja, que me aturaram quando estava descrente de que seria

capaz de terminar o trabalho a tempo, bem como aos meus inúmeros parentes. À Ercilia

Ribeiro e a todos os primos, tios e agregados de modo geral da família Ribeiro.

Aos Profs. Heráclito Pinheiro e Filipe Jesuino pelas importantes conversas a

respeito da psicologia analítica e pelas sugestões de leitura.

A todos os amigos do INTER-PSI, especialmente Leonardo Martins,

Gabriel Medeiros, Jeverson Reichow, Guilherme Raggi, Camila Torres e Vanessa

Corredato por todo o auxílio nos mais diversos sentidos e pelas interessantes conversas

e contribuições.

Ao Instituto Sherpa, principalmente na figura dos amigos Eduardo Quezado,

Valdir Barbosa e Lise Mary Soares.

A cada um dos meus pacientes.

Aos amigos Guilherme Rodrigues, Cícero Gonçalves, Marlon Coutinho,

Diego César e Leonardo Almeida por todas as conversas e troca de ideias que muito

acrescentaram. A todos os meus bons amigos, enfim.

À Rosângela, Selma e Nalva, da secretaria do Programa de Pós-Graduação

em Psicologia Social e do Trabalho do PST, por serem sempre tão prestativas.


“A morte é um mistério? E o que se sabe sobre a vida?”
(Diêgo Melo Oliveira)
RESUMO

RIBEIRO, Ricardo Nogueira. (Id)entidades: aspectos psicossociais das variedades da


experiência mediúnica. São Paulo, 2015. 274 p. Dissertação (Mestrado), Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo.

O presente trabalho pretende unir-se aos estudos que tratam da experiência mediúnica a
partir de uma compreensão propriamente psicológica, tendo como propósito a
compreensão das vivências dos médiuns em três grupos religiosos – Espiritismo
Kardecista, Umbanda e Vale do Amanhecer. Por meio do método etnográfico e da
observação participante ativa, tendo por base entrevistas semi-estruturadas e diários de
campo, buscou-se compreender a relação do médium com os alegados espíritos e
entidades e analisar a repercussão da vivência mediúnica na identidade e na vida do
médium, identificando as características semelhantes e divergentes entre essas
diferentes práticas sem desconsiderar seu contexto de ocorrência. Um total de quatro
indivíduos – homens e mulheres com pelo menos dezoito anos de idade – por grupo
religioso com pelo menos três anos de vinculação foram entrevistados. Tendo como
apoio à interpretação mais livre do dado etnográfico, apresentou-se um modelo
interpretativo baseado na Identidade Psicossocial, visando aliar a perspectiva da
identidade social de H. Tajfel e J. C. Turner com aportes da Psicologia de C. G. Jung
acerca da personalidade dos médiuns.

Palavras-chave: mediunidade de incorporação, identidade social, psicologia e religião,


psicologia junguiana, Jung, Carl Gustav (1875-1961); Umbanda; Espiritismo; Vale do
Amanhecer.
ABSTRACT

RIBEIRO, Ricardo Nogueira. (Id)entities: psychosocial aspects of the varieties of the


mediumistic experience. São Paulo, 2015. 274 p. Master’s Thesis, Institute of
Psychology, University of São Paulo.

This work aims to join the studies about the mediumistic experience from a strictly
psychological perspective, with the purpose of understanding the experiences of
mediums in three religious groups - Kardecist Spiritism, Umbanda and Vale do
Amanhecer (Dawn of the Valley). Through the ethnographic method and active
participant observation, based on semi-structured interviews and field diaries, it seeks to
comprehend the medium's relationship with the alleged spirits and entities and to
establish the role of possession on the identity of the medium by identifying the similar
and differing aspects between these different religious practices without disregarding
their occurrence context. Four individuals - men and women with at least eighteen years
of age - by religious group with at least three years engaged on the specific religion
were interviewed. In support of a freer interpretation of ethnographic data, it presents an
interpretative model based on psychosocial identity (Paiva, 2007), aiming to combine
the H. Tajfel’s and J. C. Turner’s social identity perspective with contributions of C. G.
Jung’s Analytical Psychology’s on the personality of mediums.

Keywords: embodiment mediumship; social identity; psychology and religion;


junguian psychology; Jung, Carl Gustav (1875-1961); Spiritism; Umbanda; Valley of
the Dawn.
LISTA DE FIGURAS E QUADROS

Figura 1. Etapas gerais da psicogênese dos espíritos. (Retirado de Maraldi, 2010)

____________________________________________________________________62

Quadro 1. Síntese do ethos e visão de mundo da obra kardequiana. (Retirado de

Sampaio, 2014). _______________________________________________________93

Quadro 2. Síntese dos achados das entrevistas e aspectos mais recorrentes relativos ao

CEGM. _____________________________________________________________176

Quadro 3. Síntese dos achados das entrevistas e aspectos mais recorrentes relativos ao

CEUJMJ.___________________________________________________________190

Quadro 4. Síntese dos achados das entrevistas e aspectos mais recorrentes relativos ao

TGA._______________________________________________________________205

Quadro 5. Síntese dos aspectos convergentes e dissonantes de maior destaque.____255


SUMÁRIO

Histórico pessoal do problema e Preâmbulo_________________________________15

INTRODUÇÃO ______________________________________________________21

ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO _____________________________________25

PARTE I REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E REFERENCIAIS TEÓRICOS ____________26

CAPÍTULO 1 SOBRE A PSICOLOGIA DOS FENÔMENOS CHAMADOS MEDIÚNICOS: OS

MÉDIUNS E OS “ESPÍRITOS” NA PSICOLOGIA DE C. G. JUNG ___________________27

1.1. O caso Preiswerk __________________________________________________27

1.2. A mediunidade e o Espiritismo________________________________________29

1.3. Fundamentos psicológicos ___________________________________________32

CAPÍTULO 2 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE A EXPERIÊNCIA MEDIÚNICA___43

2.1. Estudos contemporâneos sobre a mediunidade no Brasil____________________46

2.2. A mediunidade em estudos fora do Brasil________________________________67

CAPÍTULO 3 IDENTIDADE PSICOSSOCIAL__________________________________74

PARTE II A PESQUISA ______________________________________________85

CAPÍTULO 4 METODOLOGIA____________________________________________86

4.1. Objetivos_________________________________________________________86

4.2. Métodos _________________________________________________________87

4.3. Hipóteses_________________________________________________________89

PARTE III CONTEXTUALIZAÇÃO DOS GRUPOS RELIGIOSOS _________________91

CAPÍTULO 5 ESPIRITISMO KARDECISTA __________________________________92

5.1. Estudos sobre a identidade e a religião espíritas no Brasil__________________92

5.2. Centro Espírita Grão de Mostarda ____________________________________96

5.2.1. História do CEGM ________________________________________________97


5.2.2. Atividades ______________________________________________________98

5.2.3. Reuniões Mediúnicas _____________________________________________107

CAPÍTULO 6 UMBANDA _______________________________________________117

6.1. Estudos sobre a identidade e a religião umbandistas no Brasil______________117

6.2. Centro Espírita de Umbanda Jesus, Maria e José ________________________119

6.2.1. História do CEUJMJ_____________________________________________124

6.2.2. Giras e demais atividades__________________________________________128

CAPÍTULO 7 VALE DO AMANHECER ____________________________________136

7.1. Estudos sobre a identidade e a religião do Vale do Amanhecer______________136

7.2. Templo Gamurio do Amanhecer______________________________________138

7.2.1. História do TGA_________________________________________________146

7.3. Trabalhos do TGA_________________________________________________149

PARTE IV APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS _________________162

CAPÍTULO 8 A EXPERIÊNCIA DOS MÉDIUNS______________________________163

8.1. A experiência dos médiuns no Centro Espírita Grão de Mostarda___________163

8.2. A experiência dos médiuns no Centro Espírita de Umbanda Jesus, Maria e

José________________________________________________________________178

8.3. A experiência dos médiuns no Templo Gamurio do Amanhecer______________192

CAPÍTULO 9 IDENTIDADE E EXPERIÊNCIAS DOS MÉDIUNS: CONVERGÊNCIAS E

DISSONÂNCIAS _______________________________________________________208

8.2. A experiência mediúnica e as (id)entidades à luz da Identidade Social e da

Psicologia Analítica __________________________________________________228

CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________251

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS___________________________________258
ANEXO I – Perguntas aproximadas relacionadas às categorias exploradas nas

entrevistas _________________________________________________________272
HISTÓRICO PESSOAL DO PROBLEMA E PREÂMBULO

Uma das principais questões em discussão neste trabalho, o da religião, só

tardiamente passou a ter para mim a importância e o peso que hoje têm em minha vida.

Durante a infância, a obrigação de ir às missas me parecia completamente desprovida de

sentido, me sendo mais interessantes por conta de sua dimensão socializadora do que

propriamente pelo que em si tinham a oferecer. Felizmente, recordo só de maneira vaga

dos sermões e dos outros tipos de punição de meus familiares por insistir em brincar

com as outras crianças enquanto o ritual ocorria. Eu não podia de forma alguma

compreender nenhuma daquelas coisas que todos pareciam fazer sem o grande esforço

que para mim era necessário – repetida e monotonamente erguer-se, sentar-se, ajoelhar-

se, ouvir orações e afirmações que não compreendia e, finalmente, a melhor parte: irmos

embora!

Do Catolicismo inabalável e sem questionamentos de minha mãe, mulher de

mente relativamente simples vinda do interior, junto às críticas incisivas às atrocidades

históricas cometidas pela Igreja Católica e à demagogia e hipocrisia da considerada

maior parte de seus pastores e ovelhas pelo esquerdista nato que é meu pai consistia

meu pano de fundo familiar no que diz respeito às religiões, resultando em alguém

quase que completamente desinteressado por essas questões durante a infância.

Na adolescência, passei a me identificar mais com a perspectiva de meu pai,

e, ainda que ele jamais tivesse se declarado ateu, eu me considerava um na maior parte

dessa fase. Esse posicionamento parecia ser mais coerente com minhas preferências

musicais da época – o Rock em geral, especialmente o punk e o hardcore, cujas

principais bandas eram em geral ateístas ou agnósticas (e até anticristãs) confessadas,

com algumas delas contando com letras que atacavam diretamente o cristianismo.

15
Mesmo tendo estudado numa instituição católica – o Colégio Marista

Cearense – durante a maior parte da minha vida, até pouco tempo antes do ingresso na

graduação em Psicologia conversar sobre religiosidade para mim significava apresentar

minha visão agora agnóstica – ainda que eminentemente negativa – de um lado e, de

outro, entediar-me com as perspectivas de seus defensores. No entanto, já nesse

momento me questionava sobre o que subjazia à crença e à fé religiosas, só me restando

cogitar a possibilidade de que algo (de alguma forma) real e intimamente legítimo e

significativo justificava o ímpeto e o fervor das pessoas com relação ao transcendente e

aos rituais. A partir de então, progressivamente minha leitura crítica do fenômeno

religioso passava a ser complementada pela compreensão de que só poderia restar

algum sentido pessoal que explicasse o sentimento religioso vivido por alguém.

Dessa forma, durante minha formação em Psicologia tive a oportunidade de

pouco a pouco abrir as “portas da percepção” com os estudos de psicologia junguiana e

com as vivências do universo da psicologia para assim ter acesso à minha

“espiritualidade”, termo este que me era mais tragável que qualquer coisa diretamente

relacionada à religião – estas duas palavras possuem conotações distintas, e não só para

mim. Um dos aspectos interessantes dessa transição é que a sabedoria proveniente das

filosofias (e religiões) orientais, principalmente do Budismo, que é a que mais me

“toca”, me foi transmitida e mediada por uma leitura espírita. Isto pelo fato de que, para

além dos livros e estudos pessoais, muitos dos professores, colegas e amigos mais

influentes em minha formação terem sido simpatizantes do Kardecismo ou seus adeptos

declarados. Antes disso, meu próprio pai também me influenciara nesse sentido, tendo

simpatizado com o Espiritismo assim como com o Budismo, embora sem ter se tornado

adepto de nenhum deles.

16
Dito isto, chegamos à questão da mediunidade. Logo nas disciplinas iniciais

da graduação, graças à menção de um amigo, tive oportunidade de apresentar o artigo

de outros autores sobre o assunto. Desde então, o interesse pelo tema só cresceu,

embora tenha também amadurecido. Até o presente momento de minha pesquisa,

considero que o concebo de modo cada vez menos ingênuo, sem, porém, perder a

paixão e o encanto pelas infinitas possibilidades e nuances da experiência mediúnica.

Quanto à minha crença ou descrença nas alegações dos médiuns e nos ditos

fenômenos por eles vividos, hoje sou, sobretudo, cauteloso. Apesar de o Espiritismo ter

indiretamente influenciado minha jornada até as filosofias do Oriente, hoje posso dizer

que há poucas coisas que me mobilizem ou me agradem tão pouco quanto a mentalidade

oitocentista que julgo ser típica do Kardecismo e, portanto, em termos de adesão

religiosa, não tenho nenhum compromisso no sentido de (des)confirmar suas crenças,

nem para com as da Umbanda e nem para com as do Vale do Amanhecer, inclusive pelo

fato de isto fugir ao escopo da abordagem utilizada neste trabalho.

Sinto a necessidade de realizar esse esclarecimento ao leitor, pois, no que se

refere ao meu posicionamento acerca da realidade em si dos fenômenos mediúnicos,

prefiro, antes de mais nada, suspender qualquer questionamento que conduza à

respostas categóricas e simplórias, quer sejam no sentido de reconhecer anomalias em

todas as ditas comunicações, quer no de descartar completamente a hipótese de que

algum processo ainda não conhecido possa estar ocorrendo. Embora esse problema

extrapole o âmbito desta obra, para ele sou a favor de uma estratégia interdisciplinar

assentada no conhecimento profundo da casuística e cujos princípios orientadores

indispensáveis envolvam, além da combinação de uma variedade de métodos de

avaliação, a consideração do contexto e o conhecimento dos mínimos detalhes do caso.

17
Até o momento, minha experiência tem mostrado que nada de tão

surpreendente advém dos casos provenientes da observação dos três campos. A maior

parte deles não necessariamente apresenta evidências contrárias ou favoráveis e, ao

mesmo tempo, não parece exigir dos “nativos” qualquer tipo de avaliação ontológica

rigorosa de sua autenticidade. Mesmo nas situações em que este parece ser o caso, o

processo de averiguação é frouxo, apressado e enviesado e o que é elegido como

evidência não satisfaz aos critérios e aos objetivos de uma avaliação de tal ordem,

concluindo-se muito a partir de quase nada. Para a maioria desses casos, as explicações

alternativas bastam, de modo que processos normais parecem estar por trás deles, e

assim a (falta de) fé ou a própria (des)crença parecem assumir a função de principal

alicerce da (in)eficácia da “comunicação mediúnica” sobre o observador desta.

Em decorrência disso, e para fazer jus à configuração específica da dinâmica

com que mantive e mantenho contato, é preciso dizer que a imagem (ou preconceito) do

médium como vigarista, como charlatão ou como uma espécie de detetive que pesquisa

informações pessoais dos indivíduos que o buscam parece encontrar muito pouco

respaldo na realidade dos grupos religiosos por mim investigados. Prováveis percepções

e interpretações socialmente condicionadas aliadas de forma interdependente com

valores, crenças e experiências subjetivas dos adeptos se prestam como modelo mais

adequado do que aquele que enxerga por trás de tudo o interesse pessoal do “possuído”

por prestígio, dinheiro ou quaisquer vantagens que este possa vir a ter, pois a doutrina,

fator moralizador, entra muitas vezes em cena para prevenir tais coisas – e, assim,

quando e se elas ocorrem, não dão a impressão de o serem de modo deliberado.

Contudo, há que se mencionar que, principalmente no Espiritismo Kardecista e, em

menor medida, no Vale do Amanhecer, se recorre ao discurso científico como meio de

legitimação e de autorização de maneiras bastante problemáticas, geralmente de modo a

18
adaptá-lo ou até distorcê-lo diante do ímpeto de confirmação das crenças endossadas

por tais grupos. Portanto, o que quero afirmar com isso é que, apesar de as alegações de

ordem ontológica centrais para estes e que são neles frequentemente encontradas não

serem alvo deste estudo, não a considero uma questão menor – pelo contrário, talvez, se

tivesse a experiência e os meios requeridos para viabilizar uma avaliação de tal ordem,

seguramente o faria, e ainda não perdi as esperanças de que um dia, quem sabe, possa

vir a fazê-lo. De todo modo, assim como considero indispensáveis os achados de

estudos explorando a dimensão ontológica dessas alegações para explorações como

este, penso que o contrário é também verdade – mais importante é o estudo rigoroso de

temas como esse, independente do método científico em questão.

Ainda que não descarte a possibilidade remota de ter sido enganado em

algum momento, é essa a impressão geral que tive até o momento deste trabalho. Talvez

também pelo fato de que tive a chance de lidar com grupos que se mostraram bastante

sérios dentro de seus parâmetros, frustrando mesmo minha expectativa de que teria de

dar de cara com certo proselitismo, me sentindo respeitado e muito bem recebido pela

maioria.

Mas aqui entram em jogo também minhas crenças, as quais finalmente me

sinto à vontade para expor. Ainda que no momento tenha várias reservas com relação à

existência em si mesma de espíritos, e ainda mais quanto à possibilidade destes

realmente incorporarem em alguém – os quais posso encarar não como

obrigatoriamente como simulação ou embuste, mas como símbolos e metáforas

profundamente significativas; creio na existência e na ação de fatores irracionais e

transcendentes cuja função exercida sobre o ser humano não é nenhum pouco

desprezível, especialmente na vida psíquica. Assim, não tenho dificuldades em crer na

existência ontológica de um Deus, embora para mim tal termo pareça muitas vezes

19
utilizado de forma que seu sentido essencial parece ter-lhe escapado, razão pela qual

questiono sua eficácia em minha vida, de modo que às vezes o substituo pela palavra

“universo”, que me mobiliza mais. Para mim este é, no mínimo, uma realidade subjetiva

influente, talvez o que os budistas chamariam de consciência ou potencial búdico – e

aqui deixo propositalmente ser percebido novamente meu afinamento com as filosofias

e religiões orientais.

Sinto ainda a necessidade de aludir a um acontecimento importante em

minha trajetória profissional e de vida – justamente a aprovação no Mestrado em

Psicologia Social na Universidade de São Paulo e, acompanhada desta, minha

vinculação ao INTER-PSI – Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos

Psicossociais. O aprendizado que construí e prossigo construindo com as pessoas a ele

vinculadas me foi, permanece sendo e provavelmente será bastante caro de uma forma

que não consigo prever. Desenvolvi uma compreensão crítica não apenas de meu tema –

o que eu já de certa forma fazia – mas de toda uma série de fenômenos e experiências

relacionadas ao universo da espiritualidade, da religiosidade e da relação da ciência e

especificamente da psicologia com ele, o que certamente hoje considero como um de

meus maiores diferenciais como profissional e como pesquisador. Este processo não foi

necessariamente fácil, pelo contrário, foi em muitos sentidos doloroso ter sentido cair

por terra uma porção de coisas ilusórias nas quais me sustentava como se fossem

fundamentais. No entanto, serviu-me para ter consciência de minhas crenças e dos

fatores centrais da minha cosmovisão pessoal que sobreviveram e resistiram à tal

processo, de modo que sou grato por tal depuração e aprimoramento não apenas

profissional e academicamente, mas também pessoalmente a todos.

20
INTRODUÇÃO

Desde os mais remotos tempos e nas mais diversas civilizações, sociedades e

religiões, a questão da mediunidade vem suscitando curiosidade e interesse do homem.

Prova disso são as escrituras sagradas, os mitos e imagens deixadas pelos diferentes

povos, seitas e grupos religiosos de que se tem notícia. Seria, no entanto, precipitado ou

no mínimo pouco atento pensar que essa questão se limitou a inquietar nossos

antepassados ou mesmo os povos ditos “primitivos”. Embora a visão de mundo e de

homem hodierna considerem questionáveis a validade e a legitimidade de eventos que

desafiam em parte seu modelo explicativo e algumas de suas concepções, esses

acontecimentos ainda permeiam a realidade e a existência de uma significativa parcela

da humanidade, perpassando seu cotidiano e deixando uma lacuna explicativa que

clama pela contribuição da ciência (HOLT et al, 2012).

A maior parte dos cientistas, entretanto, em determinados momentos, devido

a preconceitos de diversas origens, portou-se de modo a ignorar, ou mesmo se

aproximou do fenômeno mediúnico para deslegitimá-lo e torná-lo tabu, atitudes estas

que por sua vez destoam profundamente da postura do espírito científico. É importante

ressaltar, porém, que houve e há tentativas de aproximação do tema pela própria ciência

e pela psicologia através de perspectivas que inclusive se utilizaram dos achados de

pesquisas sobre estes médiuns para a construção de importantes modelos teóricos,

como, por exemplo, o de inconsciente (ALVARADO et al., 2007).

Quanto à concepção de mediunidade aqui adotada, pode-se iniciar por

diferenciá-la da de Gauld (1982), que a entende como possessão ou como “o controle

ostensivo da fala e do comportamento de alguém por uma entidade desencarnada capaz

de comunicação inteligente” (p. 28). No entanto, apesar do caráter negativo e nocivo

21
que o termo possessão acaba por denotar em função da visão do cristianismo acerca

desta, podendo de alguma forma estar associado a uma abordagem patologizante do

fenômeno1 e por isso sendo evitada embora não abolida neste trabalho, o maior

problema dela é sua maior adequação à pesquisa psíquica e parapsicológica que ao

campo da psicologia. Nesse sentido, temos a adotada por Almeida & Lotufo Neto

(2004):

“Uma das definições possíveis de mediunidade é “a comunicação provinda de uma fonte

que é considerada existir em um outro nível ou dimensão além da realidade física

conhecida e que também não proviria da mente normal do médium” (Klimo, 1998). Tal

definição parece-nos adequada para a investigação científica, pois é neutra quanto às reais

origens de tais vivências, apenas requerendo que aqueles que as vivenciem sintam que a

origem é de alguma fonte externa” (p. 131, grifos nossos)

Contudo, esta parece ter sido formulada tendo por base principalmente o

chanelling inglês, o que certamente é adequado para certos contextos, mas talvez possua

sérias reservas se considerarmos toda a dimensão performática e corporal própria da

mediunidade vivida na realidade brasileira. Mais que buscarmos uma conceituação

definitiva do que viria esta a ser, nos interessa mais de que forma ela é compreendida

pelos médiuns entrevistados dos três diferentes contextos aqui abordados. Assim, a

definição de mediunidade é uma das categorias investigadas nas entrevistas com os

médiuns, de modo que nos dois últimos capítulos o leitor irá se deparar com as visões

dos diferentes entrevistados acerca disso e com uma espécie de síntese por nós

apresentada a partir dos elementos mais recorrentes e significativamente presentes em

seus depoimentos.

O estudo da mediunidade no âmbito da psicologia lança suas raízes nos

primórdios da história dessa pueril ciência. Nesse sentido, Maraldi (2011), Alvarado et

1
Não queremos insinuar, de forma alguma, que tenha sido essa a intenção do autor ao optar pelo termo
em questão.

22
al. (2007) e Moreira-Almeida e Lotufo-Neto (2004) enfatizaram as contribuições para o

tema feitas por autores clássicos tais como Pierre Janet, Frederick H. Myers, William

James e Theodore Flournoy, que por sua vez lançaram de maneira abrangente através de

alguns de seus conceitos e noções – e muitas vezes a partir inclusive de investigações

com médiuns – a base para muitas das caras formulações posteriores da psicologia

profunda como um todo.

A opção pela Psicologia Junguiana como um dos referenciais teóricos desta

dissertação se deu por algumas razões. A primeira e mais importante delas diz respeito à

certa crítica realizada por outros autores (a ser vista no Capítulo 3) à limitação do outro

referencial adotado – a saber, o da teoria da Identidade Social de Turner e Tajfel – e à

consequente necessidade de este ser complementado por uma teoria da personalidade. O

leitor, então, poder-se-ia indagar o porquê então de se escolher justamente a teoria de

Jung para este intento. Ora, se se levar em conta o tempo de dedicação para nosso tema,

bem como a experiência e a própria preferência do autor e da também chamada

“Psicologia Complexa” para com este (p. ex. por JESUINO et al., 2014) em contraste

com o interesse de outras teorias e sistemas psicológicos, a pergunta fica esclarecida.

Esta, porém, não constitui a única motivação para se explorar tal visão. Além de Jung

ser um clássico – ainda que controverso e pouco compreendido (cf. CLARKE, 1993) –

no campo da Psicologia, é necessário sublinhar o quanto sua perspectiva ainda tem para

contribuir para com a disciplina de forma geral e em especial quando relacionada à

temática da religião, que por sua vez foi explorada em diferentes oportunidades pelo

psiquiatra suíço. Mais importante ainda para justificar essa escolha é, entretanto, o fato

de este ter pessoalmente avaliado mais de um médium e de ter se ocupado

especialmente de um desses casos, dedicando a este um trabalho inteiro, que por sua vez

veio a se tornar bastante conhecido embora pouco entendido (e cujo valor aparenta ser

23
subestimado). Podem-se elencar ainda outras razões, como a necessidade de se

recuperar o valor dessa contribuição, aliando este objetivo ao de se verificar a atualidade

e de seus achados e, mais importante ainda, de seu poder interpretativo, colocando-o

assim em seu devido lugar, que evidentemente não deveria ser o de persona non grata.

Um último motivo é ainda o fato de poucos estudos com médiuns terem utilizado a

Psicologia Analítica como referencial (p. ex., Maraldi (2011) e, de certo modo, Molina

(1996)), o que permite que seu potencial remanesça desconhecido.

24
ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO

Este trabalho está dividido em quatro partes e com nove capítulos ao total,

os quais são brevemente apresentados a seguir:

A Parte I, chamada “Revisão Bibliográfica e Referenciais Teóricos”, conta

com três capítulos, o primeiro deles revisando a questão da mediunidade e dos alegados

espíritos na Psicologia de Jung (Capítulo 1), outro apresentando uma série de estudos

mais recentes com médiuns no Brasil e fora dele (Capítulo 2) e, por último, uma

apresentação de nosso referencial principal, o da Identidade Psicossocial, inspirado na

perspectiva da identidade social e na psicologia analítica (Capítulo 3).

A Parte II, intitulada “A Pesquisa” por sua vez, conta com apenas um

capítulo, que diz respeito à delimitação das minúcias do trabalho da pesquisa, como os

objetivos, a abordagem metodológica adotada, as categorias de análise, hipóteses, etc.

(Capítulo 4).

Na Parte III, denominada “Contextualização dos Grupos Religiosos” se

acercará da caracterização de cada um dos grupos aqui tratados, e por esta razão será

subdividida em três capítulos: o primeiro sobre o Espiritismo Kardecista (Capítulo 5), o

segundo sobre a Umbanda (Capítulo 6) e o terceiro sobre o Vale do Amanhecer

(Capítulo 7). Cada um destes capítulos

A Parte IV, chamada “Apresentação e Análise dos Resultados”, que é a

parte final do trabalho, abrangerá dois capítulos, um dedicado à exposição dos resumos

das entrevistas (Capítulo 8) e outro em que se testará o modelo da Identidade

Psicossocial na interpretação e na análise dos resultados (Capítulo 9). Depois há uma

seção voltada às considerações finais sobre a dissertação, em seguida as referências

bibliográficas e, por último, os anexos.

25
PARTE I

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E

REFERENCIAIS TEÓRICOS
26
CAPÍTULO 1

SOBRE A PSICOLOGIA DOS FENÔMENOS CHAMADOS

MEDIÚNICOS: OS MÉDIUNS E OS ESPÍRITOS NA PSICOLOGIA

DE C. G. JUNG

“Não vou cometer a estupidez da moda que considera

como embuste tudo aquilo que não consegue explicar”

(Carl Gustav Jung)

1.1. O caso Preiswerk.

Jung fora profundamente influenciado pelos clássicos já mencionados na

Introdução em sua primeira obra, intitulada Sobre a psicologia e patologia dos

fenômenos chamados ocultos (1902), na qual investigara a alegada mediunidade de uma

adolescente de 15 anos por ele denominada S.W., que mais tarde esclareceu-se tratar de

Hélène Preiswerk, sua prima materna (JUNG, 1925/2014). Primeiramente, Jung revisa a

literatura que até o momento tivera acesso de forma a situar o sentido em que

transcorriam as discussões da época e a delimitar o problema de sua pesquisa,

recorrendo a alguns casos e experimentos importantes para seu intento. Inicia, então, a

tratar do caso S. W.: retrata brevemente o histórico familiar e apresenta a situação

psicológica da médium e, após descrever a fenomenologia de seus “ataques de

sonambulismo”, relata 7 (sete) sessões nas quais pôde observá-la.

Jung (1902/2008) explicou algumas das ocorrências tidas como evidências

da autenticidade da comunicação enquanto decorrentes de processos e fenômenos

psíquicos normais como, por exemplo, criptomnésia, (auto)sugestão, expectativa,

fantasias, absorção, alucinações hipnopômpicas/hipnagógicas e automatismos, embora

considerasse que a sofisticação e a complexidade de organização de ideias e

27
conhecimentos adquiridas de forma conhecida empregadas de forma inconsciente pela

médium em êxtase indicasse um “aumento de rendimento que ultrapassa sua

inteligência normal” (§1482, p. 95).

No entanto, a principal ênfase dada por Jung ao fenômeno era de que este

tinha caráter claramente psicogênico. Em função da puberdade de Hélène, período este

que envolve importantes transformações da personalidade – como se sabe, devido às

consequências, de um lado, da maturação do organismo necessária ao desempenho

pleno da sexualidade e, do outro, da crescente independência psicológica dos pais; Jung

pôde observar na prima na realidade um processo psicológico cujo desenrolar

desembocou nitidamente na mudança de temperamento resultante do relacionamento

com os “espíritos”, então interpretados como personalidades inconscientes. A relação

dinâmica destas com a consciência estava associada à autonomia dos complexos3, de

modo que a consequente mudança de caráter se deu justamente graças à expressão de

Ivenes, que de certa forma consistia numa antecipação da futura personalidade de

Hélène. (JUNG, 1902/2008)

Um último ponto fundamental acerca deste trabalho de Jung é que apesar

deste fornecer interpretações psicológicas e de se ocupar do caso com vistas às questões

psiquiátricas a ele associados, este não incorre ao equívoco do psicologismo4, dado que

2
Refere-se ao sistema de paragrafação das Obras de Jung pela Editora Vozes. Guiar-se pelos parágrafos
poupa ao leitor o esforço de checar as citações de acordo com a paginação, já que certas edições foram
publicadas com paginações diferentes.
3
Ao longo de seus trabalhos, Jung virá a dar contornos de conceito ao termo e empregá-lo de diversas
formas: complexos autônomos, complexos ideoafetivos, complexos de tonalidade afetiva, etc.
4
Não se pode deixar de atentar para o fato de que esta é ainda a primeira obra acadêmica de Jung, e que,
portanto, muitas considerações e ideias viriam ainda a ser aprimoradas e sofisticadas durante o resto de
sua vida e de sua pesquisa no campo da psicologia, cuja duração soma quase seis décadas de trabalho.
Ainda que se trate de obra de inestimável valor para a sondagem da gênese histórico-epistemológica de
noções e até de conceitos que mais tarde seriam ampliados de forma a ganhar mais destaque, nesse
sentido, não custa ressaltar que quem a escreveu não fora o Jung interessado em sua maturidade pelo tema
da alquimia ou o de conceitos tardios tais como imaginação ativa e sincronicidade, mas aquele anterior, p.
ex., ao experimento de associação de palavras, e cujo importante contato com Freud mal começara.
Importa chamar atenção para esta compreensão tendo em vista que a resposta à crítica de psicologismo
seria possível somente mais tarde, quando defenderia por via de uma crítica de caráter epistemológico o

28
não pretende reduzir o fenômeno ou fornecer um parecer último sobre o problema,

conforme atesta expressamente em sua conclusão:

“Longe estou de acreditar que com este trabalho tenha conseguido um resultado definitivo

ou cientificamente satisfatório. Meu esforço visou sobretudo a opinião superficial daqueles

que dedicam aos fenômenos chamados ocultos nada mais que um sorriso de escárnio, e

também teve como objetivo mostrar as várias conexões que existem entre esses fenômenos e

o campo experimental do médico e da psicologia e, finalmente, apontar para as diversas

questões de peso que este campo inexplorado ainda nos reserva.” (JUNG, 1902/2008, §150,

p. 96, grifos nossos)

Conforme bem esclarece uma das mais importantes continuadoras do

trabalho do pensador suíço, Marie-Louise Von Franz,

“Jung interessava-se pelas manifestações tabu, as chamadas manifestações

parapsicológicas. Criado num ambiente rural no decorrer de sua primeira infância, ele as

considerava familiares como o fazem todos os que vivem próximos da natureza, e elas

despertaram sua curiosidade. Sua primeira obra publicada, a dissertação de graduação em

medicina, trata desses fenômenos. Jung descobriu que o mais importante dos "espíritos"

que se manifestavam durante as sessões descritas era uma parte ainda não integrada da

personalidade da jovem médium, essa pane se tornou, no decurso do crescimento ulterior

dela, parte essencial de si mesma, tendo por isso cessado de aparecer autonomamente como

um "fantasma". Logo, um importante passo na direção do seu trabalho ulterior foi dado no

decorrer desse período inicial: ele percebeu que há fenômenos psíquicos objetivos que,

embora inconscientes, pertencem à personalidade, e que não são conteúdos psíquicos

redimidos, mas nascentes” (VON FRANZ, 1997, p. 14, grifo nosso)

1.2. A mediunidade e o Espiritismo.

A contribuição de Jung ao tema da mediunidade não se esgota, porém, com

seu trabalho de graduação em medicina. Apenas três anos depois da publicação deste,

ponto de vista psicológico que viria a marcar e servir de referencial fundamental para parte majoritária
dos escritos ulteriores do autor.

29
este viria a proferir uma conferência Sobre fenômenos espíritas (Jung, 1905/2008), onde

resgata contextos históricos propícios à expansão do espiritualismo na América e na

Europa, discute fenômenos de magnetismo animal, profecias e visões bem como alguns

processos a estes subjacentes e analisa o impacto dos estudos – atuais para a época – de

renomados estudiosos (como Gurney, Myers, Podmore e Crookes).

Entretanto, conforme escreve o próprio autor, “apesar de nossa simpatia,

deixemos de lado a questão da realidade física desses fenômenos e fiquemos em

primeiro lugar com a questão psicológica” (JUNG, 1905/2008, §723, p. 301, grifos

nossos). Tendo limitado seu interesse ao âmbito estritamente psicológico do tema, Jung

afirma ter investigado os dotes mediúnicos de um total de oito pessoas (dois homens e

seis mulheres), restando-lhe a impressão geral de que “o médium deve ser abordado

com um mínimo de expectativas se não se quiser ficar desapontado” (idem, §724, p.

302). Elenca, então, de acordo com seus achados, as seguintes características destes e a

eles associadas:

1) Uma leve anormalidade intrínseca, que deve ser lida, mormente, como a

presença de sintomas histeriformes; e, ainda que presente em apenas um dos casos,

como charlatanismo. “Os outros sete agiam de boa-fé” (idem, §725, p. 302), escreve.

2) A maioria deles tomara consciência de suas habilidades no meio social e

dedicaram-se a cultivá-las em sessões espíritas, enquanto somente uma médium teria

desde a infância passado por experiências de modificação do estado de consciência.

3) Dos fenômenos mais comuns observados por Jung, somente os de

movimento da mesa se tornaram obsoletos, tendo a escrita automática e o falar em

transe persistido até hoje, respectivamente conhecidos popularmente como psicografia e

psicofonia ou incorporação. Destes, a fala automática fora o fenômeno estatisticamente

mais recorrente na observação do autor. A clarividência e a presciência foram as

30
experiências mais raras, com apenas dois médiuns conhecidos como clarividentes

segundo o autor. Alega ter presenciado ainda fenômenos considerados físicos, embora

discordasse dessa interpretação.

4) A qualidade do conteúdo produzido pelas comunicações dos chamados

espíritos, sejam estas sob a forma dos fenômenos já mencionados é em geral reduzida,

pelo menos do ponto de vista intelectual, chegando a indicar exemplos desse tipo no

“Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec. Porém, recorre ao exemplo de uma médium

clarividente5 cujo dom sutil de combinações inconscientes a tornava capaz de “combinar

e empregar com muita aptidão pequenas percepções e suposições (...) num estado de

leve obnubilação da consciência” (idem, §732, p. 305), o que por sua vez eleva a

qualidade da produção, isto é, graças à capacidade de apreensão do inconsciente.

No que tange aos movimentos de mesa, convém ressaltar que Jung compara

certos sintomas histéricos e acontecimentos ocorridos em situação de hipnose com o

fato de os médiuns não sentirem o esforço feito para mover objetos, acreditando, pelo

contrário, que estes se movem sozinhos – o que pressupõe para este certa propensão ao

fantasiar. Segue, portanto, uma linha argumentativa similar à utilizada em sua tese para

explicar pormenorizadamente estes fenômenos, desconstruindo compreensões

sobrenaturais ou ocultas, ainda que, também conforme outrora, não de modo definitivo

e ciente dos limites do conhecimento. Semelhantes princípios explicativos baseados nos

automatismos psicomotores são ampliados ainda para os outros fenômenos mais

presentes (psicofonia e psicografia), nos quais se cambiam somente os órgãos ou

músculos em atividade automática.

Resta ainda, no que respeita a este texto, destacar a importância da seguinte

passagem para os que têm o ímpeto de se aventurar em investigações de médiuns, em

5
Pergunta-se aqui, dado a semelhança entre os casos, se não o autor não está se referindo à própria
Helène Preiswerk, sujeito de estudo de sua obra de conclusão do curso de medicina.

31
especial aos trabalhos que visam fazê-lo através uma metodologia de observação

participante, como é própria da natureza deste trabalho:

“Todas as pessoas observam mal as coisas que lhes são incomuns. (...) Não existe um dom

universal de observação que possa reclamar alto grau de certeza sem um treino especial. A

observação humana só realiza algo quando está treinada num campo determinado. (...) Se

colocarmos um bom físico na escuridão enganadora e mágica de uma sessão espírita, onde

médiuns histéricos realizam suas cerimônias com todo requinte mirabolante e incrível de

que são capazes, sua observação não será muito melhor do que a de um leigo. Tudo irá

depender da força que seu preconceito tem contra ou a favor do caso. Depois disso seria

ainda aconselhável examinar, por exemplo, a disposição psíquica (...)” (JUNG, 1905/2008,

§738, p. 306, grifos nossos)

1.3. Fundamentos psicológicos

Somente em 1919 Jung voltaria novamente a defrontar-se com assuntos

relacionados ao problema da mediunidade, quando sua visão se transformaria

significativamente buscando então Os fundamentos psicológicos da crença nos espíritos

numa conferência proferida na British Society for Psychical Research. Reconhecendo

uma universalidade histórica e geográfica na convicção dos diversos povos acerca da

existência de espíritos, considera que, mesmo com o combate e a repressão do

Racionalismo, do Iluminismo e do materialismo contra essas crenças, elas permanecem

vivas no imaginário humano, apontando inclusive para uma renovação delas com um

ingrediente a mais, justamente o salto qualitativo provocado pelo forte interesse

científico por essas crenças da parte de renomados pesquisadores da época. (JUNG,

1948/1984)

Jung (1948/1984) discorre sobre o que reconhece como fenômenos que se

constituiriam como bases da crença nos espíritos, a saber, as visões destes, os sonhos e

as doenças mentais. O autor menciona como exemplo pessoas que acreditam que a

32
presença de pessoas já falecidas em sonhos corresponde realmente às almas destas e, no

caso das psicopatologias, as vozes ouvidas pelos enfermos, que são atribuídas aos

espíritos de pessoas mortas. Entendendo todos estes fenômenos como irrupções de

conteúdos inconscientes na consciência, cuja manifestação mais drástica ocorre nas

alucinações e nas aparições, conclui que todos estes apontam para “o fato de que a

psique em si não é uma unidade indivisível, mas um todo divisível e mais ou menos

dividido” (§582, p. 248) cujas partes são justamente os complexos autônomos em maior

ou menor grau independentes do (complexo do) eu, daí brotarem espontaneamente, para

a surpresa deste.

Assim, considera que do “ponto de vista psicológico, os espíritos são,

portanto, complexos inconscientes autônomos que aparecem em forma de projeção, por

que, em geral, não apresentam nenhuma associação direta com o eu” (JUNG,

1948/1984, §585, p. 250). Somente com a teoria dos complexos mais amadurecida a

partir de seus achados da pesquisa com o teste de associação de palavras (Perrone,

2008) – que inclusive é discutido rapidamente no texto com fins de demonstração – e

após a contribuição científica mútua com Freud e o movimento psicanalítico

(CLARKE, 1993; JESUINO, 2009) é que sua visão acerca da relação entre espíritos e

os que neles crêem adquiririam contornos mais definidos, que por sua vez, são ligados

neste escrito à teoria do inconsciente coletivo6.

Contudo, em termos de importância, cabe enfatizar a anterioridade do que é

referido como o ponto de vista psicológico. Isto pelo fato de que, embora ocupado em

sua tese dos aspectos psicológicos envolvidos no caso Hélène, a abordagem pudesse

talvez ser mais aproximada da visão psiquiátrico-descritiva predominante na época e

6
Jung se refere aos espíritos como complexos do inconsciente coletivo e as almas como complexos do
inconsciente pessoal. Interessa ponderar se, feitas certas ressalvas e tomadas algumas precauções, este
modelo não lançaria luz às manifestações dos pretensos espíritos nas religiões mediúnicas e também ao
que os espíritas, por exemplo, denominam animismo, que consiste na interferência do psiquismo do
médium nas ditas comunicações ou produções (pinturas, cartas) dos espíritos.

33
mesmo da ‘Psychical Research’ (pesquisa psíquica). Ainda que estas tenham servido ao

intento do autor de ajudar a “ciência a encontrar caminhos que a levem a compreender e

assimilar sempre mais a psicologia do inconsciente” (JUNG, 1902/2008, §150, p. 96),

somente com o conceito de realidade psíquica formulado estaria Jung apto a fornecer

uma contribuição sui generis ao problema desde o seu ponto de vista psicológico, o que

pressupunha, de um lado, a teoria dos complexos e, do outro, a estruturação de outros

princípios básicos da psicologia analítica, a saber, as interpretações simbólica (ou seja,

não-literal) e ao nível do sujeito dos conteúdos psíquicos que, acrescidas da

compreensão de paralelos como temas da história e da cultura e de dramas tipicamente

humanos neles expressos, o auxiliariam numa elucidação de dinâmicas e problemas

psicológicos com os quais viria se defrontar. (JUNG, 1952/2011)

Isto tudo só seria possível com a obra que marcou o rompimento de Jung

com a psicanálise, isto é, Transformações e símbolos da libido (1912), que 37 anos mais

tarde ganharia uma nova edição revisada e com um título diferente, onde, por sinal, se

refere brevemente ao caso dos fenômenos ocultos já com os moldes de seus avanços

teóricos:

“Durante os últimos semestres de meus estudos de medicina tive oportunidade, através de

longa observação, de compreender profundamente a alma de uma mocinha de quinze anos.

Percebi com espanto, naquela ocasião, quais são os conteúdos das fantasias inconscientes e

o quanto eles se afastam daquilo que uma mocinha desta idade aparenta e daquilo que

alguém de fora poderia imaginar. Eram fantasias muito ricas, de caráter verdadeiramente

mítico. Ela era, na fantasia dividida, a mãe ancestral de incontáveis gerações. Se

descontarmos sua fantasia realmente poética, restam elementos que provavelmente são

comuns a todas as moças desta idade, pois o inconsciente é comum a todos os indivíduos em

grau infinitamente maior do que os conteúdos do consciente individual, pois é a

condensação do historicamente médio e frequente” (JUNG, 1952/2011, §75, p. 70-71)

34
Desse modo, durante o resto de sua obra, Jung passará então a tratar de

diversos temas quase exclusivamente desde este ponto de vista – chamado ainda esse in

anima (do ser na alma) (JUNG, 1926/1984); não sendo diferente no que respeita à

crença nos espíritos. Na sua visão, portanto, à Psicologia não importaria o problema da

real (in)existência metafísica dos espíritos, desde que interessaria a ela não a forma

como são em si mesmas as coisas, mas somente com o que é psiquicamente falando

real, com “a maneira como os indivíduos as imaginam” (JUNG, 1948/1984, nota de

rodapé 5, §585, p. 250)7. A título de contraste com esta concepção, pode-se retomar um

excerto de seu trabalho inaugural:

“Tentei várias vezes dar-lhe uma explicação crítica, mas não a aceitava; quando estava em

seu estado normal não era capaz de compreender uma explicação racional, e quando em

estado semi-sonambúlico achava que minha explicação era besteira, diretamente contrária

aos fatos. Disse-me certa vez: “Não sei se aquilo que os espíritos me falam e me ensinam é

verdadeiro, também não sei se eles são aqueles que dizem ser, mas que meus espíritos

existem não há dúvida alguma. Vejo-os diante de mim, posso tocá-los, falo com eles sobre

tudo que quero e de maneira tão clara e natural como estou falando agora. Evidentemente,

eles existem”. Não queria nem ouvir falar que esses fenômenos teriam algo a ver com

doença. Duvidar de sua saúde ou da realidade de seu mundo de sonhos afligia-a ao extremo.

Minhas observações a magoavam muito, de modo que se fechava em minha presença e se

recusou por longo tempo a fazer experiências se eu tivesse por perto.” (JUNG, 1902/2008,

§43, p. 34)

Mais à frente, retornando ao texto sobre as crenças nos espíritos, encontra-se

outro ponto de especial interesse para este trabalho. Percebe-se que Jung compreende o

7
Para se apreender o sentido da crítica epistemológica que delimita deste modo as fronteiras do objeto
psicológico, é pertinente a colocação de Jung (1933/1984) de que “nossa imagem do mundo contém
alguma coisa que não está inteiramente certa, ou seja: na teoria nos recordamos muito pouco, e na prática,
por assim dizer, quase nunca, de que a consciência não tem uma relação direta com qualquer objeto
material. Percebemos apenas as imagens que nos são transmitidas indiretamente, através de um aparato
nervoso complicado. Entre os terminais dos nervos dos órgãos dos sentidos e a imagem que aparece na
consciência se intercala um processo inconsciente que transforma o fato psíquico da luz, por ex., em uma
“luz”-imagem. (...) A consequência disto é que aquilo que nos parece como uma realidade imediata
consiste em imagens cuidadosamente elaboradas e que, por conseguinte, nós só vivemos diretamente em
um mundo de imagens” (§745-746, p. 332, último grifo nosso)

35
envolvimento das comunicações espíritas com outra forma de pensamento diferente do

dirigido, seletivo, voluntário e com fins adaptativos como o é a atividade consciente,

estando em jogo, do contrário, uma função transcendente (ou imaginação ativa), cujo

principal papel seria o de colocar em relação o eu e os conteúdos inconscientes através

do fantasiar, que facilitaria sua expressão bem como a conscientização destes. Nesse

sentido, o espiritismo enquanto fenômeno coletivo incitaria esforços psicoterapêuticos,

por conta do processo e dos resultados coincidentes com os do tratamento psicológico.

(JUNG, 1948/1984)

Apesar de não estar diretamente ocupado da comprovação da natureza última

do fenômeno, isto é, da sua realidade (ou mesmo irrealidade) ontológica, o autor

considerava que a “Ciência não pode dar-se ao luxo da ingenuidade em tais assuntos”

(JUNG, 1948/1984, §559, p. 259), seja ela categoricamente negativa ou afirmativa,

estando estes posicionamentos ainda mais distantes de proporcionar uma resposta

satisfatória e convincente ao problema. Se por um lado estava ciente da grande

dificuldade em encontrar evidências realmente convincentes e pensasse serem reduzidas

as “provas deste gênero que resistem ao critério da criptomnésia e, sobretudo da

extrasensory perception” (idem, ibid); por outro, precavia-se contra “a estupidez da

moda que considera como embuste tudo aquilo que não consegue explicar” (idem,

ibid.).

De qualquer modo, se mostra contrário à perspectiva de que a demonstração

da equivalência psicológica entre espíritos e complexos pudesse significar qualquer

coisa em termos ontológicos e que, portanto, a abordagem psicológica em

absolutamente nada pretenderia e se aproximaria de esgotar ou dar um ponto final ao

complexo e caloroso debate sobre os fenômenos mediúnicos, conclusão esta bastante

próxima daquela formulada em seu trabalho inaugural. (JUNG, 1949/1984)

36
Porém, se nesse mesmo sentido em 1919 aparentava ter chegado à conclusão

de que os hoje cunhados fenômenos psi eram “efeitos exteriorizados de complexos

inconscientes” (idem, §600, p. 259), numa nota de rodapé acrescentada em 1948 aos

fundamentos psicológicos da crença nos espíritos, Jung volta atrás com sua posição

graças aos achados das investigações parapsicológicas e a certas modificações de suas

concepções teóricas consequentes da assimilação destas e dos longos anos de

experiência como psicoterapeuta que resultaram justamente em seu princípio de

conexões acausais, a sincronicidade, que “levanta a questão da realidade transpsíquica

imediatamente subjacente à psique” (idem, nota de rodapé 16, §600, p. 260).

Num seminário em meados da década de 1920, o pensador suíço volta a

explorar o caso Preiswerk visando esboçar os desenvolvimentos de algumas de suas

ideias, desta vez acrescentando elementos importantes para a compreensão deste.

Apesar de contar na época apenas 21 anos de idade, recorda seu interesse profundo pelo

mundo psíquico além da consciência que encontrava nos transes de Helène, que,

conforme confessa, havia se apaixonado por ele sem que este na época tivesse se dado

conta disso e da influência disso na garota. Jung (1925/2014) admite ainda que, antes da

garota começar a trapacear, “eu pensava, afinal de contas, que podia haver espíritos” (p.

45, grifo nosso).

O autor complementa a descrição do contexto em que vivia sua prima,

afirmando que esta pertencia a uma das mais velhas de Basel que declinara financeira e

culturalmente e que, talvez em função disso,

“A garota em questão vivia num meio limitado demais para seus dons e não podia

encontrar nele nenhum horizonte, pois era um ambiente notável por sua insuficiência de

ideias; era tacanho e pobre em todos os sentidos” (JUNG, 1925/2014, p. 49).

A descrição da atmosfera familiar dos Preiswerk, se somada às

características próprias da “paciente” descritas em sua monografia e ainda ao desenrolar

37
da vida desta parecem indicar a constelação do que pode ser entendido como um

complexo de poder. Na visão de Jung, ao insistir infantilmente em tentar enganar a

todos após o fim de seu “círculo mediúnico”, resultado justamente da tensão crescente

entre ela e Ivenes; sem perceber, ela teria preparado a cova de seu lado psíquico pueril,

precisando abandonar de vez seus “vôos espirituais”, através desse erro precisando

retornar ao “mundo material”. Isso tudo só acelerara mais a assimilação de Ivenes.

Consequência disso é o fato de que, passado certo período após o cessar das seánces,

tendo ido morar em Paris, Hélène se tornaria bem-sucedida e famosa – assim como os

espíritos que pretensamente através dela falavam – pelos vestidos que viria a fazer,

alcançando assim a literalmente sonhada posição social. Um interessante aspecto é que

novamente se vê Jung interpretar o processo e mesmo os resultados da comunicação

como associados à função transcendente (JUNG, 1925/2014).

O problema, no entanto, é que restavam reduzidas recordações dos seus

tempos de médium, conforme constatara o autor numa visita a esta. Contrairia

tuberculose, doença que jamais admitira ter, e, antes de morrer, teria

surpreendentemente regredido psicologicamente até seus dois anos de idade. Isto o

conduziria a enxergar a enantiodromia8 na vida da “ex-médium”. Conclui junto aos

participantes do seminário que, caso submetida à análise, talvez “S. W.” tivesse

vivenciado o processo de confronto com o inconsciente de forma um tanto mais suave,

embora não necessariamente livre de erros tais como o das tentativas de fraude, que

acabaram exercendo um importante papel em sua vida (JUNG, 1925/2014).

8
Utilizando-se do conceito filosófico de Heráclito em sentido psicológico, Jung (1921/2009) explica, por
exemplo, a conversão cristã de Saulo (em Paulo), definindo-o como um acontecimento psíquico que
“ocorre quase sempre onde uma direção extremamente unilateral domina a vida consciente de modo que
se forma, com o tempo, uma contraposição inconsciente igualmente forte e que se manifesta, em primeiro
lugar, na inibição do rendimento consciente e, depois, na interrupção da direção consciente” (§795, p.
405). Pode-se traduzir tal termo, na compreensão de Pieri (2002), como “conversão no oposto” (p. 358).

38
Quanto à chamada hipótese da sobrevivência9, ou, colocando em termos

mais adequados para o seu pensamento, o problema da crença na sobrevivência da

alma após a morte, Jung (1933/1984) se limita a observar de uma perspectiva

psicológica a importância que esta tem, baseando-se sobretudo na presença universal

dessa ideia nos sistemas religiosos (inclusive nos mais disseminados); e, embora ateste a

necessidade anímica do homem pelas ideias metafísicas e por um mito, em momento

algum visa “fazer justamente aquilo que ninguém pode fazer, isto é, [levar alguém] a

acreditar em alguma coisa” (§804, p. 359). Por outro lado, chega mesmo a aproximar a

ausência destas crenças e ideias da anormalidade e da neurose.

Em sua experiência, observou alguns sonhos ocorridos relativamente

aproximados da posterior morte da própria pessoa10. Estes contavam com a presença de

certas imagens que denotavam transformações do estado psíquico; apontando e mesmo

gerando mudanças na atitude consciente de quem os tinha, daí concluir que o

inconsciente longe está de ser indiferente ao acontecimento da morte, chegando até

mesmo a antecipá-la psicologicamente. Mas, para Jung (1933/1984),

“Saber de que modo se deve, afinal, interpretar estas experiências é um problema que

supera a competência de uma ciência empírica e ultrapassa nossas capacidades intelectuais,

pois, para se chegar a uma conclusão, é preciso que se tenha necessariamente também a

experiência real da morte. Este acontecimento, infelizmente, coloca o observador numa

situação que lhe torna impossível transmitir uma informação objetiva de sua experiência e

das conclusões daí resultantes” (§811, p.362, grifo nosso)

Ainda quanto a esse texto, intitulado A alma e a morte, importa que estas

compreensões sejam acrescidas porém de uma severa crítica à certa tendência

racionalista inaugurada pelo Iluminismo ao qual o autor procura contrapor a validade de

9
“As histórias de espíritos nem sempre demonstram plenamente o que parecem provar. Assim, por
exemplo, não fornecem nenhuma prova da imortalidade da alma” (Jung, 1959/2008, §761, p. 319).
10
Para maior exploração a respeito do tema sob o enfoque da psicologia analítica, indica-se Jaffé, Frey-
Rohn e Von Franz (1995).

39
uma consideração positiva da crença na sobrevivência provinda de uma perspectiva da

função sentimento, que, em linhas gerais, busca expressar o valor11 de algo, isto é, se

algo é bom ou ruim, belo ou feio, etc; ainda que isso não deva ser interpretado como

uma afirmação ontológica. Segundo ele, “a Psicologia precisa ainda de digerir certos

fatos parapsicológicos” (JUNG, 1933/1984, §812, p. 363), seguindo linhas

argumentativas que desembocariam em concepções mais à frente aperfeiçoadas, como

as de psicóide e de sincronicidade12.

Pode-se dizer que a partir de então o fundador da Psicologia Analítica viria a

se ocupar cada vez menos especificamente dos temas da mediunidade e do espiritismo,

ainda que suas reflexões mais amplas sobre a civilização e o drama contemporâneos

tenham um impacto interessante na sua visão. Nesse sentido, Jung (1948/2008) nota por

exemplo a função compensatória exercida pelo espiritismo no Zeitgeist, já que seus

primórdios “coincidem com o desabrochar do materialismo científico na metade do

século XIX” (§750, p. 314). Por outro lado, Jung não distingue o espiritismo enquanto

manifestação psicológica da visão de mundo dos “primitivos”, enxergando nos espíritos

com os quais ambos alegam entrar em contato uma projeção de conteúdos psíquicos da

mesma ordem. A exceção, para ele, seriam as investigações científicas do tema por

alguns pesquisadores (Richet, Flammarion, Zöllner, etc.), o que constituiria uma

sofisticação na visão de mundo ocidental e não um simples retorno às crenças primevas.

Tampouco o interesse científico geral pode ser considerado de forma

romântica, pois que muito embora, segundo seu modo de ver, uma característica

fundamental de nossa época seja a tendência ao deslumbre pelo discurso científico –

11
Num prefácio à publicação francesa “Phénomènes occultes” que aglutina sua monografia, os
fundamentos e o texto em discussão, Jung (1939/2008) se refere ao “valor funcional da idéia” (§743, p.
310).
12
Em trabalho anterior, o presente autor ocupou-se do desenvolvimento da concepção de sincronicidade
no pensamento de Jung e pôs em foco o recurso deste à ideia chinesa do Tao enquanto paralelo cultural
daquela. (RIBEIRO, 2014)

40
sendo necessário tomar consciência desta para criticá-la e assim não extasiar a ciência,

que é o limitado mito no e pelo qual vive o ocidente; muitos se limitam a querer

““saber” se essas coisas são “verdadeiras”, sem levar em consideração como deveria ser

esta prova de verdade e a maneira de realizá-la” (JUNG, 1958/2008, §785, p. 329,

grifo nosso), se satisfazendo às vezes cedo demais e acriticamente com as conclusões

dos que chama de racionalistas ou apenas confirmando crenças predispostas baseadas

em evidências questionáveis, arbitrárias ou em achados supostamente científicos 13.

Mais uma vez, Jung (1958/2008) propõe deixar “de lado a questão da verdade, como já

se fez há muito tempo na mitologia, e tentou pesquisar o porquê e para quê

psicológicos” (§786, p. 329, grifos nossos), e a encarar os espíritos (no caso deste

trabalho) como símbolos. Uma das razões disto para ele é que, muitas vezes, após uma

lúcida verificação do fenômeno em si mesmo, os relatos mais fantásticos frustram e

nada mais seria digno de ser comentado. (JUNG, 1958/2008)

De modo geral, o que se pode dizer é que ao prefaciar alguns livros

envolvendo o assunto o autor buscaria enfatizar alguns aspectos já aqui frisados, como o

da perspectiva pela qual enfoca o tema, isto é, do esse in anima, e a importância dos

relatos também para a pesquisa da sincronicidade (JUNG, 1939/2008; JUNG,

195914/2008); menções aos achados da Parapsicologia de J. B. Rhine como evidência de

certas limitações no modo de compreender da psicologia e da ciência (JUNG,

1948/2008; JUNG, 1959/2008); assinalar o que se poderia chamar de dimensão

psicoterápica do espiritismo, que na sua compreensão pode ser expandida de certa

forma a todas as manifestações religiosas, ainda que estabelecendo certos limites de tal

13
“O racionalismo e a superstição são complementares” (§759, p. 318), diz Jung (1959/2008) ao
relembrar um acontecimento (quando em visita a certa tribo) em que numa conversa a maioria silenciou e
se retirou quando ele pronunciou a palavra “espíritos” no dialeto local, utilizando-se deste exemplo para
ilustrar a resistência dos que ele chama de racionalistas aos temas “ocultos”.
14
Utilizada a data a que se refere o próprio Jung (2008) – “Abril de 1959” (§763, p. 320); pois a data
atribuída pela Editora Vozes ao escrito em nota de rodapé é anterior (1950).

41
associação; entre outros. Num desses prefácios relata inclusive um caso ocorrido

consigo próprio envolvendo uma casa dita mal-assombrada, onde se utiliza do modelo

analítico-interpretativo dessas experiências que traçamos até aqui, embora sem excluir a

função intuitiva e a sincronicidade15.

15
Jung entende, por exemplo, uma de suas alucinações hipnagógicas como associada a uma paciente que
sofria de um carcinoma cujo cheiro desagradável lhe marcara, sendo que o que antes dessa visão lhe
incomodava na casa era justamente o que lhe indicava seu olfato, para ele associado à intuição –
psiquicamente, isto seria representado popularmente, por exemplo, em frases como “há algo de podre em
fulano” e, evolutivamente, na importância do sentido do olfato para a sobrevivência dos animais, que se
pode dizer com certa cautela estar reduzido no homem, se comparado por exemplo à visão. Seria mais
adequado, portanto, considerar que a atividade da fantasia (que por sua vez é determinada pelos
complexos) está conectada aos fenômenos de sincronicidade de forma complexa e indissociável.

42
CAPÍTULO 2

ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS SOBRE A EXPERIÊNCIA

MEDIÚNICA

“Eu acredito que na América Latina tudo é possível, tudo é real”

(Gabriel García Márquez)

Outros estudos enfatizaram a importância primordial do médium para a

história da psicologia e da psiquiatria dinâmica, isto por conta dos caros avanços e

construções resultantes do esforço de teóricos dessas disciplinas no sentido

compreendê-lo nos mais diversos âmbitos (ALVARADO et al, 2007; MARALDI,

2011). Buscou-se, assim, perseguir e acompanhar a trilha desenvolvida por Carl Gustav

Jung na compreensão de tais sujeitos. No entanto, ao decorrer de algumas décadas, o

interesse pela mediunidade sofreu queda significativa, devido talvez aos achados da

psicanálise acerca do papel dos entraves do desenvolvimento psicossexual infantil

vieram a esclarecer a etiologia da histeria.

Encontra-se, então, desnudo diante de diversos pensadores do fim do século

XIX e do início do século XX boa parte dos processos envolvidos nas experiências

mediúnicas que pareciam estar mais ligados a aspectos inconscientes da personalidade

do médium que a hipotéticos seres etéreos, e aqui a lógica seria então a de passar a

investiga-la para melhor entender o que em jogo esteve para essa estruturação específica

de sua vida psíquica, que por sua vez exigiria um entendimento mais profundo acerca da

gênese desta, isto é, da infância. O problema da dissociação e das características desses

sujeitos vão então pouco a pouco cedendo lugar à questão da personalidade e do seu

desenvolvimento. Se se tinha Myers, Flournoy , Janet e James, todos grandes nomes dos

43
primórdios da psicologia, estudando casos de alguns médiuns reconhecidos, ver-se-á

então, por exemplo, Piaget e outros como Vigostky, Wallon e Erikson se debruçarem

sobre a psicologia infantil com diferentes interesses intelectuais. (SANTOS et al., 2008)

Mas de que forma tal guinada do pensamento psicológico, afinal de contas,

impactou nos estudos científicos do tema da possessão? Se certos aspectos dele foram

melhor compreendidos recorrendo-se ao contexto pessoal no qual a experiência é

vivida, por outro deve-se ponderar se essa abordagem de tom quase que exclusivamente

personalista não acabara por contribuir muito mais com a constituição da psicologia da

personalidade do que com a elucidação da mediunidade como fenômeno amplo.

Quaisquer que sejam as tentativas de respostas a esse questionamento, não há dúvidas

de que os estudos da mediunidade pela psicologia sofreram rápido e considerável

decréscimo entre o início e o final do século XX, de modo que tal hiato talvez tenha

marcado os psicólogos de várias gerações: se conhece muito pouco ou mesmo nada se

recorda do solo de onde as raízes da ainda jovem árvore encontrou alimento e através da

qual se ergueu. Entretanto, ainda hoje se regozija com o sabor dos frutos outrora

colhidos.

Porém, não se pode dizer que se findou definitivamente o interesse

psicológico e científico como um todo pela mediunidade; ou melhor, para se utilizar de

uma metáfora conveniente a este texto: se este morreu (ou “desencarnou”), o fez apenas

de forma temporária e com data para voltar, não custando tanto a ser “incorporado” por

pesquisadores hodiernos, cuja expressão tampouco parece ignorar sua “vida passada”. A

nível mundial, há crescente interesse e produção nesse campo de estudos que se debruça

sobre fenômenos como a mediunidade:

“Nos últimos vinte anos, estudos atinentes à comprovação experimental de processos

anômalos, bem como às características das experiências anômalas, têm sido publicados

em revistas da mainstream psychology, como a Psychological Bulletin (ex: Bem

44
& Honorton, 1994), a American Psychologist (ex: Child, 1985), a Behavioral and Brain

Sciences (Hansel, 1987; Nadon & Kihlstrom, 1987), a Perceptual and Motor Skills

(Persinger, 1984; Vitulli, Cain & Broome, 1985), e a Journal of Nervous and Mental

Diseases (Ross & Joshi,1992) e influenciado as novas edições de livros-texto no

campo, como o Introduction to Psychology (Atkinson, Atkinson, Smith, Bem, e Nolen-

Hoeksema, 2000). (...) Recentemente vários centros universitários foram criados com o

propósito de empreender estudos na área das experiências e dos processos anômalos,

destacadamente, a Koestler Chair Unit, na Universidade de Edimburgo, o Princeton

Engineering Anomalies Research Lab., na Universidade de Princeton, o Anomalous Cognition

Group, na Universidade de Amsterdã, o Anomalistic Psychology Research Unit, da

Universidade de Adelaide e o Anomalistic Psychology Research Unit, da Universidade

de Londres, os últimos dois estabelecidos, respectivamente, em 2001 e 2002.” (ZANGARI,

2007, p. 69-70)

A nível popular, o interesse e as práticas religiosas envolvendo a alteração da

consciência com vistas à possessão por espíritos encontrou, pelo contrário, significativa

ascensão e disseminação ainda mais amplas, conforme pode ser vista numa coletânea de

ensaios de diversos pesquisadores de variados campos e abordagens publicada

recentemente sobre o tema. Nela, está representada a maioria dos continentes através de

países como Cuba, Canadá, Hong Kong, Quênia, Taiwan, Estados Unidos e Singapura.

(HUNTER e LUKE, 2014)

Nesta mesma publicação, porém, um país não mencionado recebe maior

destaque se comparado aos demais, pois é alvo de três ensaios de diferentes autores: o

Brasil. Marcado por ampla variedade de expressões religiosas resultantes de

aglutinações singulares das matrizes místico-esotéricas europeias, africanas, indígenas e

mesmo orientais, o povo brasileiro junto à sua experiência do sagrado e suas

elaborações socioculturais sobre elas são consideradas valiosas para cientistas da

religião de todo o mundo, que parecem considerar o país locus privilegiado de

observação.
45
Fato curiosamente contraditório, entretanto, é o de que dos três ensaios,

apenas um deles fora escrito por autores brasileiros (e por um estadunidense)

(MARALDI et al, 2014). Apesar de constituir uma amostra arbitrária das publicações

sobre o tema, ilustra uma tendência que parece prevalecer, a saber, a de que ainda são

reduzidas as iniciativas de investigação do tema, principalmente da parte dos

acadêmicos das ciências sociais e humanas e das ciências da saúde, que deveriam talvez

ser os mais interessados.

Os pesquisadores estrangeiros, como se pode concluir, não perderam tempo

na apreciação da questão e deixaram para trás os acadêmicos aos quais talvez esta mais

deveria interessar: ora, justamente os brasileiros! Este trabalho poderá auxiliar a

transformar essa surpreendente situação, principalmente por abordá-lo de uma

perspectiva psicossocial, o que respalda futuros trabalhos tanto sócio-antropológicos

quanto clínicos (e, no que tange à Psicologia como um todo, se une aos corajosos

autores supracitados); e com um interesse comparativo, o que ajuda a fornecer uma

visão de conjunto dos cenários religiosos, espiritualistas e New Age brasileiros.

2.1. Estudos contemporâneos sobre a mediunidade no Brasil

Os pesquisadores brasileiros que se interessaram pelo fenômeno entre o fim

do século XIX e a primeira metade do século XX tinham formação em medicina ou em

ciências sociais. A maior parte das primeiras iniciativas teve por vezes caráter

eminentemente unilateral, algumas delas no sentido de ignorar aspectos que embora

fossem decisivos eram sumariamente excluídos por pertencerem a outros campos de

estudo e outras no sentido de circunscrever o fenômeno ao campo da psicopatologia,

desconsiderando seu significado no contexto social em questão graças a um

empreendimento civilizatório. Isto se deu principalmente por conta do fato de a

46
sociedade brasileira ter nesta época convocado os médicos a extrapolarem sua prática

para as questões sociais, visando assim também através do higienismo a instalação de

um projeto de modernização (ou “europeização”) do país – que, por sua vez, dada a

grande influência do positivismo, via os curandeiros, e as religiões à época vagamente

denominadas e aglutinadas sob a expressão Espiritismo como resquícios da vida

selvagem e primitiva e que por isso precisavam ser eliminados a fim de atingir o

objetivo supracitado (GIUMBELLI, 1997; ver também MOREIRA-ALMEIDA, 2005).

Somente com caros estudos sócio-antropológicos à ciência da religião de

autores como, por exemplo, Nina Rodrigues e Artur Ramos, de início, e,

posteriormente, Cândido Procópio Camargo e Roger Bastide (GIUMBELLI, 1997;

STOLL, 2004) a cena começaria a se transformar, vindo das ciências sociais as mais

numerosas e mesmo significativas pesquisas para a área, que, no entanto, clama pela

contribuição de outros campos do saber científico, principalmente dos psicólogos.

(ZANGARI, 2000)

Como os trabalhos de Giumbelli (1997), Zangari (2003) e Stoll (2004) já

cobriram extensiva e satisfatoriamente os estudos dos pesquisadores desse período, faz-

se mister aqui portanto cobrir os estudos mais atuais a fim de se situar historicamente e

de assim se ter uma perspectiva ampla das tendências hodiernas sabendo da

importância e da influência dos trabalhos mais clássicos sobre estas. Perceber-se-á que

já se começa a tratar do período do início do século XXI sem se passar antes pela

segunda metade do século XX, pois a impressão restante é mesmo a de que durante esta

o interesse pelas experiências mediúnicas declinou ainda mais.

Nesse sentido, as aproximações mais recentes do tema vêm sendo realizadas

com competência crescente e inquestionável. O primeiro trabalho desta geração talvez

seja o de Negro et al. (2002), que, em estudo de natureza psiquiátrica, pesquisou a

47
dissociação aplicando diferentes escalas e questionários em 110 médiuns de um centro

espírita em São Paulo. Buscando avaliar a influência do “treinamento formalizado e da

modelação social sobre as experiências de incorporação espiritual” (p. 65, tradução

nossa) e se estas se conformavam à teoria sócio-cognitiva da dissociação, os autores

encontraram resultados que corroboraram com a hipótese de que os fenômenos

dissociativos relacionados à religião não são necessariamente desadaptativos e

patológicos.

Ao contrário do que sugere a hipótese concorrente, a maioria dos sujeitos da

pesquisa, que eram majoritariamente do sexo feminino, “pontuou muito bem em

educação formal, histórico de trabalho, suporte social e felicidade” (NEGRO et al, 2002,

p. 65, idem), mostrando-se assim bem adaptada em termos de socialização. Entretanto,

um dos aspectos característicos do estudo de Negro et al. (2002) foi o alto grau de

treinamento formalizado da mediunidade – mais de dois quintos da amostra concluiu o

curso mais avançado de educação mediúnica do centro e a maioria exercitou a suposta

habilidade por pelo menos um ano; o que por sua vez limita a generalização de seus

resultados para médiuns com menos treinamento e menor adaptação social. Os autores

encontraram ainda uma relação entre prática mediúnica e sensibilidade social “não

como numa dependência crucial do reforçamento social, mas como habilidade de não

ser inibido socialmente na performance do comportamento religioso” (NEGRO et al,

2002, p. 68, idem)

O tempo de treino formal da mediunidade esteve relacionado positivamente

ainda com a formatação da experiência, de modo que seria de se esperar que um

médium com um maior grau de controle percebido sobre sua prática tivesse também

sido mais treinado. Ao contrário do que esperavam os pesquisadores, a mesma relação

não foi estabelecida com a produtividade do médium (número de psicografias,

48
comunicações, etc.). Um fator que torna o trabalho dos autores interessante é que eles

identificaram perfis em sua população: os dissociadores mainstream, a maioria, que,

além de mais velha e feliz, foi mais modelada (dado seu tempo no espiritismo) e cuja

atividade mediúnica é a menor; os grandes dissociadores, com mais antecedentes

psiquiátricos, atividade mediúnica e treinamento intermediários mas com alta pontuação

em dissociabilidade e, por último; os de mediunidade ativa, cujo nome expressa a

elevadíssima frequência de atividade mediúnica e que tiveram pontuação intermediária

em dissociabilidade, sendo ao mesmo tempo os menos felizes e os que relataram menos

tempo de espiritismo e também de modelação da experiência. (NEGRO et al., 2002)

Outra evidência favorável à teoria adotada no trabalho dos pesquisadores foi

a de que o histórico de “abuso na infância não se relacionou nem ao comportamento

mediúnico nem sobretudo às pontuações em dissociação” (NEGRO et al, 2002, p. 68,

idem), pois assim é enfatizado o papel das interações sociais na formatação da

experiência em detrimento de possíveis modelos que privilegiam explicações

psicodinâmicas e intrapsíquicas. Entretanto, a partir da análise dos perfis, Negro et al.

(2002) concluem que apesar de o treino formal exercer papel central na formatação da

experiência dissociativa não-patológica, não há indícios de que este provoque a

patológica, o que leva os pesquisadores a afirmar que a teoria sócio-cognitiva da

dissociação fora só em parte suportada.

Zangari (2003) pesquisou a incorporação em médiuns umbandistas de um

templo paulista, tendo os observado em sua atividade ritual e entrevistado doze deles,

dos quais apenas um era homem. Ciente da impossibilidade de esgotar o problema,

Zangari considera que apenas olhares de diversas disciplinas fariam jus ao nível de

complexidade do fenômeno de incorporação, delimitando sua colaboração para com o

tema a partir de um prisma psicológico-social. (ZANGARI, 2003)

49
Ainda que sem evitar de todo o flerte com o que está sob o escopo de outras

áreas, do contrário arriscasse apresentar um recorte artificial da experiência da

mediunidade de incorporação, Zangari (2003) enuncia os seguintes postulados, cuja

articulação constituiria um modelo de circunscrição desta:

1) Mediunidade de incorporação como fenômeno tridimensional, constituída

da dimensão social ampla, que integra os diversos grupos e cujos processos são

resultantes das trocas de influência entre estes e a sociedade como um todo; da

dimensão social dos grupos, onde se observa uma configuração mais específica da

identidade dos indivíduos graças à pertença a um dos segmentos da dimensão ampla; e

da dimensão individual, associada à subjetividade, que seria por sua vez construída e

construtora a partir da interação entre aspectos internos (intrapsíquicos e

neurofisiológicos) e aspectos psicossociais16.

2) Incorporação como elaboração ao mesmo tempo grupal e individual.

Decorrente do postulado anterior, o autor situa a ênfase de sua exploração entre as duas

últimas dimensões, que é o mesmo que dizer que se ocupa da vivência construída pelas

médiuns e pelo grupo pesquisado por ele e não de uma “forma pura” ou do fenômeno

disseminado em sua manifestação comum na maior parte dos terreiros.

3) O que se pode reconhecer como função relacional, comunicacional e

pedagógica da linguagem, responsável pela interação entre os diversos partícipes do

templo, seja no sentido de auxiliar os membros da assistência, de elaborar com recursos

psicossociais um quadro de referência religioso ou de permitir a organização das

atividades desenvolvidas (datas das giras e das entidades, estrutura hierárquica, divisão

dos trabalhos, etc.)

16
Zangari (2003) considera que “tem sido dada pouca atenção à dimensão individual da mediunidade de
incorporação” (p. 168, grifo nosso) apesar dos esforços dos cientistas sociais pela “compreensão das
relações entre a umbanda e, mais especificamente, embora com menor atenção, à mediunidade de
incorporação, e a cultura brasileira, bem como a maneira como os diferentes grupos de Umbandistas
vivem e interpretam a mediunidade” (ibid)

50
4) Mediunidade de incorporação como processo de adoção e assumição de

papéis. Baseado na teoria de papéis do psicólogo da religião sueco Hjalmar Sundén,

Zangari enxerga como papéis desempenhados o que os umbandistas acreditam ser

médiuns e entidades. A distinção se daria quanto à forma como esses papéis são

desempenhados: enquanto o papel de médium seria assumido ativamente, os das

entidades (entendidos como partners), por sua vez, seriam adotados de modo

complementar, ambos a partir da educação, das expectativas (grupais e individuais) e

das disposições percepto-interpretativas estimuladas culturalmente, constituindo e

sendo constituídos por um quadro de referência religioso.

“Nenhum termo parece-me mais apropriado para se referir a este processo de adoção do

papel das entidades por parte das médiuns como o já corrente dentre elas: incorporação.

Ora, incorporar significa “corporificar”, “dar corpo a”. A que se dá corpo senão às

crenças compartilhadas pelo grupo? Assim, parece-me que também é extremamente

adequado o uso do termo “médium” para se referir àquele que medeia, faz ponte, entre as

crenças e a ação. Aí encontra-se o caráter midiático de tais pessoas, não apenas entre o

além e o aquém, mas entre as crenças compartilhadas e sua presentificação concreta.

Pergunto-me: que outra função ou papel mais fundamental existiria que não o de servir

como linguagem?” (ZANGARI, 2003, p. 188, grifos nossos)

5) O médium tem uma missão e a incorporação possui uma função social, já

que o trabalho daqueles não seria suficientemente compreendido se limitado à este, isto

é, à dimensão do reconhecimento e recompensas grupais, mas também envolve a tensão

de abandonar sua missão e assim sofrerem as consequências de transgredir os desígnios

dos espíritos, que outrora foram os que aliviaram seus suplícios.

6) Possibilidades de ganhos psicológicos provenientes do exercício da

mediunidade de incorporação, dentre eles os sentidos de “(...) pertença a um grupo, (...)

de utilidade espiritual e social, bem como a exteriorização e desenvolvimento de

51
parcelas de suas próprias personalidades que não encontram espaço de manifestação”

(ZANGARI, 2003, p. 191,grifos nossos)

Dentre esses postulados, destaca ainda em sua proposta de modelo

interpretativo o que distingue como os seis processos ou estágios de construção

psicossocial da mediunidade cuja pertinência a este estudo é indubitável e que

certamente facilitou a leitura da realidade com a qual nos deparamos (vide capítulo 9)

(ZANGARI, 2003). Em síntese, são eles:

“a) Assimilação = processo pelo qual o indivíduo passa a conhecer melhor a doutrina

religiosa e o papel que cabe ao médium nesse contexto. Caracteriza-se pela “constituição de

uma imagem interna ou representação das crenças do grupo” (Zangari, 2003, p. 174), e que

envolve não apenas uma compreensão consciente, mas informações não-verbais e

subliminares presentes em qualquer forma de interação humana;

b) Entrega = consiste na aceitação dos fenômenos, na disponibilidade para adentrar o

estado de transe e permitir a “incorporação”;

c) Treino = afirma que a mediunidade é uma alteração de consciência disciplinada

culturalmente, a qual segue determinados passos e comportamentos previstos pelas crenças

do grupo. Esses passos devem ser seguidos caso se queira executar a função mediúnica

adequadamente. O indivíduo se envolve cada vez mais com as crenças grupais,

interiorizando-as e acomodando-as frente às diferentes situações da vida e ao contexto

religioso em si. Esse processo envolve não só uma adaptação psicológica, como corporal

(...) d) Criação = período de “incubação criativa” (Zangari, 2003, p. 178) em que as

médiuns constroem inconscientemente as entidades que se “comunicarão” por seu

intermédio. Esse processo está limitado pelos conteúdos próprios da doutrina religiosa;

e) Manifestação = atuação das criações num contexto ritual;

f) Comprovação = busca por evidências que comprovem a origem espiritual do fenômeno,

em prol da manutenção da identidade mediúnica e da identidade grupal.” (ZANGARI &

MARALDI, 2009, p. 243 e 244, grifos nossos)

Em estudo observacional transversal ocupado de uma caracterização clínica

e sociodemográfica úteis ao diagnóstico diferencial entre dissociação patológica e não

52
patológica, Almeida (2004) buscou traçar um perfil de 115 médiuns espíritas em

atividade em diversos centros kardecistas de São Paulo, tendo por base a investigação

de sua saúde mental e a fenomenologia de suas experiências. Dividida em duas etapas,

Almeida se utilizou no primeiro momento de sua pesquisa de questionários

sociodemográfico, de atividade mediúnica e outros relacionados à adequação social, ao

mapeamento da experiência subjetiva (afetividade, estados de consciência, memória,

etc.) e à triagem de psicopatologias.

Selecionaria então os sujeitos que viessem a pontuar acima do ponto crítico

para a possibilidade de doença mental para que respondessem na segunda fase a uma

entrevista estruturada sobre mediunidade e a instrumentos úteis na avaliação e

mensuração tanto de comportamentos associados a diversos transtornos mentais quanto

de distúrbios dissociativos. Um fato curioso é que dos 24 médiuns selecionados, metade

deles pontuara abaixo do ponto de corte, sendo incluídos somente quando este fora

reduzido a fim ter maior número de indivíduos na segunda etapa. (ALMEIDA, 2004)

O perfil sociodemográfico delineado foi o de mulheres (75%) com média de

idade de 48 a 58 anos e com ensino superior completo (46%), sendo reduzida a taxa de

desemprego, e exercendo diferentes formas de mediunidade ao mesmo tempo, sendo

psicofonia e vidência as mais recorrentes. Quanto ao perfil clínico, os médiuns de

Almeida pontuaram apenas um pouco abaixo das pessoas sem transtornos psiquiátricos

e foi reduzida a frequência de sintomas psicopatológicos comuns. Sintomas associados

à esquizofrenia foram frequentes (em especial os de controle externo) ainda que estes

não estivessem associados ao desajustamento social – o que desafia “uma longa tradição

de se associar as práticas mediúnicas com psicopatologia” (ALMEIDA, 2004, p. 114) –

ou a outros sinais de transtornos mentais.

53
Outro achado interessante é que a ocorrência da dissociação nos médiuns é

bem controlada, isto é, se encontra num ponto em que a volição exerce seu papel sem

maiores problemas; e não se associa a outros sintomas. Ainda quanto à dissociação,

Almeida (2004) sugere que os portadores de transtorno de identidade dissociativa (TID)

e os médiuns em questão “sejam entidades distintas” (p. 156) já que pontuaram de modo

diverso na maior parte das demais características ligadas ao TID. Levou ainda em conta

o fato de que

“Dentro dos sintomas associados ao TID, apenas 3 ocorreram em mais de ¼ da amostra:

não lembrança de grandes períodos da infância, mudanças na caligrafia e ouvir vozes.

Importante ressaltar que estes dois últimos sintomas se constituem no que os espíritas

consideram mediunidade psicográfica e audiente. Como a [instituição espírita que apoiou a

pesquisa] não enfatiza a psicografia, é possível que a presença de alterações caligráficas

seja ainda maior em outros grupos de médiuns espíritas” (ALMEIDA, 2004, p. 122, grifos

nossos)

Dos resultados de Almeida (2004), o mais chamativo sem dúvida é o de que,

ao contrário do que é proposto pela crítica normalmente realizada aos estudos e

diagnósticos psiquiátricos por cientistas sociais e psicólogos, que normalmente sugere a

consideração da realidade sociocultural do subgrupo em questão na demarcação da

fronteira entre patológico e sadio; a diferenciação entre a ocorrência da experiência em

contexto religioso e não religioso não se constituiu como critério eficaz nesse sentido e

mais uma vez onde se julgava ter um parecer firmado e bem estabelecido se dá de cara

com terreno movediço, tendo em vista o relato de experiências mesmo que menos

frequentes dos sujeitos em seu cotidiano, para além dos locais e horários das sessões

mediúnicas.

A etapa qualitativa da tese de Almeida é entretanto a que mais acrescenta aos

objetivos desta dissertação. Para a maioria, o surgimento da mediunidade foi espontâneo

e remontou os indivíduos à sua infância, ainda que para o contexto familiar no qual a
54
maioria cresceu essas experiências fossem ignoradas, tidas como ligadas à possessão

demoníaca ou à loucura. Entretanto, nessa época ainda não eram reconhecidos nem se

consideravam médiuns, identidade esta que só viria e desenvolver-se quando do contato

com algum centro espírita, mormente através de três vias: uma em que seus valores

religiosos e sistema de crenças já não mais dava suporte a anseios íntimos, indagações

sobre o sentido da vida e questionamentos existenciais destes sujeitos; outra em que

estaria envolvido acentuado nível de sofrimento psíquico decorrente de vivências

aflitivas específicas cuja conotação psicopatológica ou espiritual intriga profissionais de

saúde17; e, por último, através da suposta manifestação em cursos de desenvolvimento

da mediunidade. (ALMEIDA, 2004)

Quanto à descrição da experiência de mediunidade, o autor aborda várias

possibilidades. Os médiuns psicofônicos18 relataram diferentes sentimentos e sensações

físicas e de presença, sendo algumas destas úteis inclusive para o reconhecimento de um

espírito em particular (sensações assinatura). Chama atenção ainda para o fato de que

experiências como as “de inserção do pensamento, alucinações auditivas e visuais

ocorriam com razoável frequência no dia a dia dos médiuns” (ALMEIDA, 2004, p. 139)

e não apenas nas reuniões mediúnicas (como ocorre com a incorporação), ainda que isso

não signifique que os médiuns não tenham controle sobre a manifestação. Apesar de às

vezes duvidosos quanto à autenticidade dessas experiências, os médiuns de Almeida

relataram se convencerem da realidade destas principalmente tendo por crivo o não

pertencimento a si do que fora vivenciado e o surgimento de pretensas evidências que as

legitimariam.

17
Almeida (2004) contrasta a recomendação de distância do exercício mediúnico feitas às pessoas com
sintomas excêntricos por Allan Kardec à “prática que se disseminou posteriormente em grande parte dos
centros espíritas brasileiros: a recomendação de “desenvolver a mediunidade” para o alívio de diversos
transtornos físicos e mentais, pois estes seriam sintomas de uma mediunidade latente” (p. 134)
18
O autor contrasta as formas de ocorrência da psicofonia relatadas pelos médiuns da classificação feita
por Kardec, que reconheceria dentre estas uma mediunidade de audiência, em que o sujeito repetiria o
conteúdo do que ouve em voz alta.

55
A partir de uma lente cunhada de etnopsicológica, surgida por sua vez do

desdobramento de uma rica leitura específica da psicologia social psicanalítica, Bairrão

(2005) busca a estruturação metodológica de um procedimento denominado escuta

participante. Na visão do autor, são demasiado limitadas as concepções advindas de

uma visão realista sobre os consagrados textos de Freud sobre a cultura e a psicologia

de grupos, desde que estas desaguam na fragmentação do pensamento psicanalítico,

apartando sua dimensão sociocultural da “epistemologia” e mesmo da clínica – como se

fosse de fato possível, ao estudar essas obras, se extrair tudo de fundamental da “teoria

social” psicanalítica para a Psicologia Social e assim todas as demais contribuições

freudianas pudessem ser descartadas do interesse desta disciplina.

Para Bairrão (2005), também estes textos alimentaram, elucidaram e

ventilaram aquelas dimensões, sendo a via, entretanto, de mão-dupla: elas contribuem

para o pensamento social do mestre, pois ainda que tal aporte não incorra na

extrapolação do individual ao social, pressupõe-se que

“a psicologia de cada sujeito (...) é constitutivamente social, embora por ser meramente

psicologia não precise nem tenha como dar conta de toda a verdade do social. Logo, insista-

se, a contribuição mais efetiva da psicanálise para a psicologia social está onde não se a

supõe: na metapsicologia e na clínica” (p. 442, grifos nossos).

Avançando o argumento no sentido da perspectiva lacaniana, que, em

especial tendo em conta o conceito de significante, enfatiza uma tendência de se superar

a dicotomia entre interior e exterior – que por sua vez transcenderia as limitações da

“sua aplicação individual e se [constituiria] em plataforma para o seu relançamento no

campo dos estudos e das intervenções em psicologia social” (p. 442); considera que

com essa leitura corrente ignorou-se o potencial de transformação social e interventivo

da psicanálise, utilizando-se dele apenas hermeneuticamente para compreender os

fenômenos sociais em questão – o que consiste em outras palavras num exercício de

56
mera aplicação dos postulados teóricos ao acontecimento experimentado, fazendo-o

deitar em espécie de leito de Procusto ao invés de acessar sua vitalidade, como se

costuma realizar na clínica. (DIAS e BAIRRÃO, 2013)

Bairrão propõe-se, assim, a restituir através da psicanálise as vozes dos

sujeitos sociais enquanto produtoras de sentido, isto é, a recuperar sua dimensão

enunciativa, que ao invés de ter sido escutada, teve seus sentidos enrustidos e traduzidos

(traídos?) por proposições teóricas neles baseados. A fim de expressar ética e

respeitosamente tais sentidos conforme formulados nativamente, deve-se resgatar com a

investigação do imaginário social o inconsciente, que se faz presente nas ausências

(falta) e no não dito dos discursos, imagens, gestos e ações de indivíduos e do grupo

(BAIRRÃO, 2005; DIAS e BAIRRÃO, 2013). O lugar privilegiado para o teste desse

procedimento seria o êxtase mediúnico próprio aos grupos sincrético-religiosos

brasileiros, dado que estes seriam insuficientemente compreendidos se exclusivamente

referidos ao grupo. (BAIRRÃO, 2005)

Toda essa discussão se faz necessária para Bairrão (2005) desde que para ele

é pouco fértil dissociação entre a epistemologia da psicologia e a pesquisa empírica em

si. Nesse sentido, a escuta é denominada participante pelo fato de que o pesquisador

tornar-se-ia um “filho”, isto é, alguém que busca a assistência das chamadas entidades

da Umbanda, ainda que bem específica: são eles próprios os objetos-sujeitos pelos quais

se está interessado em saber como se percebem, quais as suas histórias, e quem são os

médiuns por eles possuídos; ainda que isto signifique apenas que esses espíritos vivem

“se não metafisica, pelo menos metaforicamente” (p. 446, grifo nosso).

Em trabalho posterior, perscrutando esse modelo, Bairrão e Rotta (2005)

descrevem em minúcias os sentidos ritualísticos e o alcance psicológico das chamadas

caboclas, utilizando-se de entrevistas guiadas com estas e com suas médiuns bem como

57
da observação participante e de diários de campo. Atentos à dimensão

(contra)transferencial própria a esta sorte de trabalho, levaram em conta ainda a

indicação de que as entidades precisavam ser compreendidas tanto através das perguntas

mas também dos sentimentos por elas evocadas. Isto, aliado à devolutiva das primeiras

hipóteses surgidas e de novas sugestões (também das médiuns quando não

incorporadas), resultou num “processo contínuo de produção coletiva de conhecimento”

(BAIRRÃO e ROTTA, 2010, p. 172).

Ao se lançarem nas trilhas deixadas e a serem exploradas pelas médiuns nas

“matas” das caboclas, os pesquisadores observaram que através delas a Umbanda

fomentaria vias de elaboração de conflitos e de enfrentamento a desafios da vida

relacionados às funções de mãe e, mais amplamente, de mulher, que por sua vez

contribuiriam para realização de sua imagem e ideal como pessoas. (BAIRRÃO e

ROTTA, 2010). Em síntese, os significantes ou termos mais frequentes relacionados às

caboclas foram água, terra, matas, caminho e luz, de modo que

“A terra parece relacionar-se a uma base de sustentação para um andar adiante, um

caminhar rumo a um amadurecimento. A água, combinada com terra e luz, lhes permite

assumir a forma de árvores e outras plantas, vida que se enraíza na terra e cresce, se

desenvolve. As caboclas apresentam-se como beleza iluminadora dos projetos de vida

(caminhos) das suas médiuns, luz da terra que muitas vezes literalmente se especifica por

meio do colorido das flores. Sentidos veiculados pela água, como sensibilidade e

inspiração, penetram e circulam (fluem, movimentam-se) nos recônditos menos acessíveis

da mata, que por sua vez remete a um sentido de desconhecido a ser explorado”

(BAIRRÃO e ROTTA, 2005, p. 176, grifos nossos)

Ainda que partindo de perspectiva tanto diferente da de Jung, os achados de

Bairrão parecem corroborar, portanto, com os do psicólogo suíço acerca da médium por

ele investigada. Tomando como pertinente a comunicação entre os âmbitos

epistemológicos e clínicos com o fenômeno psicossocial em questão, o autor fornece

58
cara contribuição aos estudos do campo bem como a este trabalho, já que instiga a

reflexão sobre o caráter ético de levar-se em conta tanto o sujeito que não é escutado

quanto também o papel e o processo tais como experimentados por este em relação com

o grupo, a cultura, o imaginário e os “possuídos”.

Partindo de uma rica proposta aliando psicologias profundas (psicanálise e

psicologia analítica), psicologia social e psicologia anomalística, Maraldi (2010)

buscou identificar os usos das crenças e experiências paranormais na constituição da

identidade de 11 médiuns de dois centros espíritas de São Paulo, de modo que a coleta

de dados se deu principalmente através de entrevistas tendo por base a metodologia da

História de Vida e, em segundo lugar, observações de cunho etnográfico e materiais

complementares como psicografias, pinturas mediúnicas.

Quanto à dimensão fenomenológica das experiências mediúnicas, Maraldi

reconhece uma fluidez própria a estas, desde que observou que sugestões dadas durante

a reunião, visões, sensações e até mesmo sintomas fisiopatológicos se articulam entre si

e com os processos subjetivos e intersubjetivos em questão para resultar nas

incorporações. No que respeita à alegada descoberta da experiência, distingue embora

com cautela duas estruturas: (1) a dos médiuns que só passaram a tê-las com a iniciação

mediúnica e (2) a dos que já as apresentavam antes da conversão ao espiritismo – quer

fossem desde o início significadas como mediúnicas ou somente a posteriori. Os

principais aspectos levados em conta nessa distinção são i) o tempo de relação com

crenças espíritas e espiritualistas, ii) a intensidade das vivências e iii) a necessidade do

sujeito de construir a si mesmo e tecer sua autobiografia baseando-se nelas.

(MARALDI, 2010)

Ainda no âmbito fenomenológico, o modelo dos estágios supracitados de

Zangari encontra respaldo no estudo de Maraldi, que é também por ele utilizado a fim

59
de confrontá-lo com os dados observados acerca do desenvolvimento da mediunidade

no espiritismo. Na sua compreensão, as dúvidas e questionamentos dos médiuns sobre a

fonte do conteúdo supostamente comunicado através deles próprios são sanadas

definitivamente somente quando estes passam a levar em consideração sua percepção

de estranhamento subjetivo acerca deles. Entretanto, ao critério da distinção do

autoconceito e o da espontaneidade do processo aliam-se ainda no entender de Maraldi

o papel do controle do médium sobre o que deve ou não ser ocultado (como palavrões,

injúrias, etc.), o que ilustra o caráter moralizador e mesmo coercitivo dos valores

grupais no parecer sobre a autenticidade do que é expresso na comunicação.

(MARALDI, 2010)

Nesse sentido, uma importante contribuição de Maraldi (2010) diz respeito à

retroalimentação (feedback) entre a crença e a experiência. Para o autor, durante a

sessão espírita estão envolvidos processos que “não se reduzem a meros ritualismos

realizados mecânica e dualisticamente, como no tradicional paradigma ‘hipnotizador =>

hipnotizado’” (p. 248) desde que com frequência lhe pareceu difícil discernir “quando

essas experiências se originavam unicamente do indivíduo [experiência?] ou quanto

teriam sido sugestionadas [crença?]”, tendo mais relação com a identificação com as

crenças espíritas – e com a internalização ou assimilação (Zangari, 2003) da doutrina;

resultando naquilo que chamaria de quadro de referência.

Deste modo, o fim último de uma reunião mediúnica seria para Maraldi

(2010) a objetivação da cosmovisão espírita, do “mundo espiritual preconizado

idealmente, trazendo-o para um nível objetivo e passível de ação individual e coletiva[;]

(...) onde a doutrina obtém certa materialidade [e] (...) se acredita mesmo “materializar”

os espíritos” (p. 249). Para que isso possa ocorrer, certos fatores devem facilitar a

modificação do estado de consciência dos participantes da reunião, de forma que se faz

60
necessária toda uma ambientação ritualística – ainda que os espíritas em geral tendam a

negar que suas práticas envolvam rituais – baseada em efeitos de iluminação, delicados

movimentos de mãos (passes), concentração, silêncio e música. As ‘manifestações’ daí

resultantes longe estão, contudo, de se darem apenas individualmente e de terem

comprovações somente do indivíduo. Elas se encadeiam, se entrelaçam e assim a

fantasia é tecida juntamente aos demais membros do grupo, com, por exemplo,

comunicações, visões, psicografias e interpretações se interpenetrando. Há portanto

para Maraldi (2010) continuidade entre elas, que não se limita ao sentido psicossocial,

mas também à vida como um todo do sujeito, já que este pesquisador constatou ainda os

after-effects, como sonhos e experiências percebidas como relacionadas com o conteúdo

da reunião.

De modo geral, as experiências mais relatadas pelos médiuns em questão

foram as de visão e audição – que não se davam, tal como descrito por eles, através dos

olhos ou ouvidos chamados por eles de “materiais” – bem como as hipnopômpicas e

hipnagógicas, isto é, ocorridas próximas ou durante o sono. Assim como o que já foi

dito a respeito de Jung, observando tais sutilezas descritas pelos médiuns, Maraldi

(2010) reitera sua dimensão psicogênica19, chegando a identificar o seguinte modelo

abrangente de etapas de elaboração dos espíritos (que podem ou não vir a se tornar

mentores ou obsessores), que não deve ser entendido de modo invariável e

necessariamente sequencial, mas como ocorrendo simultaneamente já que cada fase

abrangeria também a anterior20:

19
Estas experiências ocorrem em situações em que o estado mental sofre uma queda, com a atividade do
inconsciente portanto potencializada, ou envolvem conteúdos diferentes daqueles percebidos pelos
sujeitos como transmitidos através dos sentidos, restando, antes da hipotética interferência de algum ente
espiritual, o que é por eles vivenciado mentalmente. Também para Maraldi (2010), isto não significa
entretanto que se possa excluir de todo a referida possibilidade
20
Segundo o autor, “O processo não se dá de modo unilateral, como resultado apenas do comportamento
da médium; ele é dialético, construído em conjunto, na própria conversação e diálogo com os
doutrinadores que tentam, de um lado, convencer pacientemente o ‘espírito’ sobre uma determinada

61
Figura 1: Etapas gerais da psicogênese dos espíritos. (Retirado de Maraldi, 2010, p.280)

No nível biográfico de sua análise acerca da questão da mediunidade

espírita, Maraldi reconhece que esta assume características próprias de um verdadeiro

projeto de vida ao qual está a serviço o que denomina de função mítica, que atua de

modo retrospectivo, mas utilizando-se singularmente também de certas noções do

imaginário espírita, cujas tendências transcendem as tentativas pessoais de reconstrução

da própria história, articulando-se a estas e à imaginação para a criação consciente ou

inconsciente de uma narrativa emocionalmente significativa. Acrescentar-se-ia a esta

ainda o que Maraldi (2010) chama de “elaboração religiosa e afetiva do ausente” (p.

conduta a ser tomada, e que, de outro lado, enfrentam dificuldades com esse espírito, que se recusa e
resiste. Nesse processo de conversão (ou doutrinação) e resistência à conversão, o médium parte de certas
premissas para construir e personificar uma dada manifestação, e os doutrinadores (e até outros médiuns)
contribuem adicionando elementos específicos ao discurso estabelecido. Parece-nos assim que essas
sessões de certo modo reatualizam, dramática e constantemente, um mesmo processo inicial de conversão
ao Espiritismo” (p. 279).

62
336), isto é, da morte21. No entanto, a referida criação possuiria também sua faceta

psicossocial já que, complementar à prática de compartilhar vivências com os outros é

a de interpretar, explicar e fazer sugestões ao que foi ou deve ser vivido pelo outro,

cujo propósito reconhecido pelo autor é a de expansão e perpetuação das ideias e

ações rituais do espiritismo. Na síntese do próprio autor:

“Nos casos analisados, a assunção de tal projeto [de vida] se apresenta, sob muitos

aspectos, como emancipatório frente às condições de vida anteriores do indivíduo. Trata-se

da função de ressignificação da mediunidade, a busca por um significado humano,

emocional e espiritual, capaz de transcender, simbolicamente, as condições biológicas e

sociais a que estão condicionados esses indivíduos. Esse processo parece estar a serviço não

só de certas funções psicodinâmicas – como, por exemplo, a diminuição da angústia e da

ansiedade decorrentes da exposição a emoções conflituosas – mas também do

preenchimento de eventuais lacunas entre discursos, necessidades e experiências

incoerentes ao longo da história de vida dos médiuns. É preciso considerar, no entanto, a

dialética inerente a esse processo, e admitir que se a mediunidade (enquanto um conjunto

de crenças e práticas espíritas) pode – assim como outras formas de identidade religiosa –

ser emancipatória frente a etapas anteriores da trajetória biográfica, ela também pode se

tornar, mais tarde, simples reposição de papéis e personagens condizentes com certas

expectativas doutrinárias. Destarte, o mesmo processo de identificação com a doutrina

serve, potencialmente, tanto a propósitos construtivos e ressignificadores, quanto a

diversificados mecanismos de reposição identitária” (MARALDI, 2010, p. 286)

Quanto à dimensão institucional examinada em sua dissertação, o autor

partiu da premissa de que a mediunidade poderia ser entendida como um jogo em que se

21
Levando a consideração deste aspecto às últimas consequências, Maraldi pensa ser a categoria de
“espírito” uma tentativa de supervalorização do potencial humano e, assim, um ideal narcísico cujas
tendências podem igualmente adquirir, de um lado, um caráter de justificação e legitimação identitária e,
do outro, de emancipação; sendo prova disso suas versáteis e quase ilimitadas faculdades supostamente
observáveis nos fenômenos ditos telepáticos, clarividentes, de desdobramento, etc. Entretanto, ainda
assim a ocupação com a “grande ausência” não estaria findada, sendo preciso comprovar sempre e ad
infinitum nas reuniões mediúnicas a sobrevivência dos espíritos (e assim a possibilidade de que o mesmo
se dê consigo) a esta ferida – mais um amputamento – narcísico.

63
somariam velamentos e ocultações tanto em termos de processos e dinâmicas

individuais quanto grupais, de forma que

“A identidade mediúnica, no contexto das sessões e práticas espíritas, tende a possibilitar o

ensaio – ou exercício – em ambiente controlado, de funções psíquicas associadas a

determinados personagens e papéis reprimidos ou pouco desenvolvidos pelos participantes

(desenvolvimento de capacidades latentes e pouco afloradas ou estimuladas, em função de

adversidades pessoais, sociais etc., como a pintura e a redação, por exemplo). Permite ainda

a expressão de emoções difusas, diretamente relacionadas às suas condições de vida,

auxiliando tais indivíduos a lidarem com seu mundo subjetivo, sem que tenham de assumir

total responsabilidade pessoal (ou consciente) pelos conteúdos que emergem durante as

sessões. O centro espírita parece fornecer assim um espaço ‘terapêutico’ de acolhimento e

continência para conteúdos reprimidos ou relativamente inaceitáveis, ao transmitir a

simbologia e o treinamento prático necessários para se lidar com os mesmos, sem que haja

medo ou receio – tendendo a interpretar sua emergência, nesse contexto, como

‘manifestação de espíritos’” (MARALDI, 2010, p. 343).

Contudo, levando em conta o que é expresso nas comunicações psicofônicas

ou psicográficas e o conteúdo das pinturas realizadas em transe mediúnico pelos seus

sujeitos, Maraldi chama atenção para o fato de que por trás das contínuas conversões

dos “espíritos desencarnados” pelos bem intencionados doutrinadores revelam-se

mecanismos de controle ideológico e adequação social da “organização” espírita cujo

poder mesmo estes talvez não estejam cientes. Na visão do pesquisador, a reunião

mediúnica seria então o reservado espaço onde o triunfo – socialmente aceito – dos

espíritas sobre seus principais “oponentes” religiosos (católicos, neopentecostais, etc.)

poderia ser ensaiado, bem como sobre aqueles papéis sociais com os quais estes travam

um sutil e comedido “combate”, na medida em que distoam ou não compartilham de

seus ideais filosóficos e doutrinários: trata-se dos alcoólatras, suicidas, traficantes,

fumantes, materialistas, etc. Fortalece-se, assim, a coesão grupal e mesmo a identidade

64
religiosa dos médiuns através da doutrinação de suas sombras22 com certos interesses

de fundo alienante. (MARALDI, 2010)

Por fim, no que respeita ao nível mais amplo de reflexão atingido por

Maraldi, isto é, o sócio-histórico, o foco é dado à dimensão ideológica da mediunidade,

tendo em vista as profundas marcas deixadas, por exemplo, pelos não tão antigos e

superados estigmas resultantes do diagnóstico médico de histeria (ou loucura) e da

acusação de charlatanismo sobre o imaginário espírita e, em maior monta, sobre a

memória social e coletiva dos médiuns. Na visão de Maraldi, a assunção dessa

identidade tem como consequência a defesa de

“uma determinada concepção de vida e de interpretação da realidade; (...) concretizar,

reproduzir ou até mesmo reformular a (...) história da ideologia espírita, a história das

crenças e experiências mediúnicas. Suas lutas por reconhecimento social e significado na

vida são também lutas ideológicas, isto é, expressões da própria trajetória das práticas

mediúnicas, história de marginalidade e exclusão. Percebe-se, nesse sentido, uma fusão de

buscas pessoais com questões coletivas ainda não totalmente superadas, o que incita os

participantes a defenderem suas crenças contra visões de mundo possivelmente antagônicas

ou nocivas ao Espiritismo – de modo a salvaguardarem, com isso, suas próprias

identidades. Conflitos históricos entre Catolicismo e Espiritismo, Psiquiatria e Espiritismo,

Ciência e Espiritismo, apresentam-se como categorias recorrentes no discurso dos

médiuns, bem como na relação transferencial com a figura do pesquisador / psicólogo 23”

(MARALDI, 2010, p. 385, grifo nosso).

Num trabalho de caráter epidemiológico próximo ao de Almeida (2004),

visando sondar se e como traços de personalidade contribuiriam para o diagnóstico

22
Trata-se do conceito junguiano de sombra. Junto à “doutrinação da sombra”, Maraldi (2010) distingue
ainda outros cinco “mecanismos de reposição institucional: 1) a disciplinarização; 2) a introjeção com
personificação; 3) o encorajamento; 4) a autoria oculta; 5) (...) a exclusão” (p. 372).
23
As relações estabelecidas entre o Espiritismo e outras religiões são sintetizadas por Maraldi (2010) em
três tipos: sincréticas (Umbanda e Catolicismo), de confronto (Catolicismo e Protestantismo) e de
discriminação (Umbanda). Quanto à temática da transferência entre pesquisador e sujeitos de pesquisa, o
autor mais uma vez traz instigantes reflexões acerca da categoria por ele cunhada de conflito entre
Ciência e Espiritismo, embora talvez o fator complementar à transferência – isto é, a contratransferência –
pudesse vir a receber maior atenção e, assim, este aspecto ficasse ainda mais esclarecido.

65
diferencial entre as chamadas experiências anômalas e os transtornos psiquiátricos,

Alminhana (2013) estudou 115 pessoas que buscaram ajuda em centros espíritas de Juiz

de Fora (MG) e foram por estes reconhecidos como médiuns. Tendo os observado um

ano após o primeiro contato com eles, que por sua vez ocorreu próximo à busca pelo

centro, a autora aplicou um questionário sociodemográfico, um inventário de

temperamento e caráter e uma entrevista clínica estruturada para psicopatologias no

primeiro momento e na fase posterior os submeteu apenas a inventários de qualidade de

vida, religiosidade e de experiências e sentimentos, que também haviam composto a

etapa anterior. (ALMINHANA, 2013)

Em suma, Alminhana contribui de forma significativa para uma

compreensão mais adequada da diferença entre transtornos mentais e acontecimentos

percebidos como anômalos para os indivíduos que os vivenciam, concluindo que

“a análise das características de personalidade (temperamento e caráter) de um indivíduo

que apresenta EAs [experiências anômalas] pode servir como um critério importante para o

diagnóstico diferencial entre uma experiência não patológica e um transtorno mental.

Além disso, a mera presença de EAs como medidas pela dimensão de Experiências

Incomuns (O-Life-R) parece não implicar, necessariamente, em riscos para o

desenvolvimento de transtornos mentais, a não ser quando acompanhado de altos níveis de

Desorganização Cognitiva, Anedonia Introvertida e Não-Conformidade Impulsiva. Pessoas

com EAs, que são Autodirecionadas provavelmente não possuem indicadores para a

presença de psicopatologias, principalmente se tiverem alta Cooperatividade. Entre

indivíduos com EAs, Autodirecionamento parece ser o principal indicador de QV

[qualidade de vida] psicológica e social, prevendo resultados positivos associados a bem-

estar, mesmo um ano depois.” (ALMINHANA, 2013, p. 161 e 162, grifos nossos).

2.2. A mediunidade em estudos fora do Brasil.

66
Outras contribuições pertinentes para este trabalho podem advir da recém-

publicada antologia de ensaios organizada por Hunter e Luke (2014) intitulada Talking

with the Spirits: Etnographies from between the worlds, onde se encontram olhares de

diferentes autores sobre diversas expressões religiosas desse mesmo fenômeno cultural

e humano, que para além do que diz respeito ao entre mundos metafisicamente falando,

transita entre diferentes mundos sociais. Com seus múltiplos olhares, a publicação tende

a fortalecer um campo cada vez mais em voga que fora inspirado pela antropologia da

consciência e pela antropologia transpessoal: a parantropologia (LUKE e HUNTER,

2014). Pelo fato de a maioria deles, ou melhor, aqueles aqui referidos utilizarem uma

abordagem etnográfica e graças ao seu caráter transcultural e interdisciplinar, variados

insights enriqueceram nosso olhar.

Têm-se, assim, fulcrais reflexões acerca da metodologia e da atitude do

pesquisador para com a cosmovisão dos “nativos”, com os quais serão estabelecidos

vínculos a fim de tornar possível o trabalho (BOWIE, 2014; GILBERT, 2014).

Problematizando a questão da crença em coisas “impossíveis”, Bowie (2014) observa

que os estudos fenomenológicos e interpretativos da religião pouco se arriscaram em se

posicionar quanto à veracidade ou realidade do que é presenciado em campo, com isso

tendendo para um aparentado etnocentrismo: se oculta a convicção implícita de

adequação da própria visão em detrimento de outras justamente com a recusa em adotar

uma atitude definida quanto a estas. Nesse sentido, a autora defende a pertinência do

ceticismo no “inquérito” etnográfico, ainda que pense que este precise estar aberto aos

dados, já que, de um lado, nada se sabe sobre a linha provavelmente muito tênue que

separa a fraude da verdade e, do outro, os investigadores do problema parecem pouco

atentos à influência e à importância de seu julgamento – que, explícita ou

implicitamente, em geral sinalizam ideologicamente certa superioridade – na relação

67
com os sujeitos e mesmo em sua vida (BOWIE, 2014). Para ela, no que respeita a esse

julgamento, “estar honesta e conscientemente informado do próprio ponto de vista e

perspectiva é uma parte crucial do engajamento etnográfico” (p. 34 e 35, tradução e

grifos nossos) quando se busca o

“equilíbrio entre uma apreciação crítica do dado diante de nós, usando quaisquer

ferramentas analíticas a nosso dispor, e uma habilidade de suspender o julgamento e tentar

experimentar o mundo através da lente hermenêutica daqueles que buscamos entender. O

resultado será sempre uma compreensão provisória, posicionada e, se espera, dialógica do

fenômeno e das pessoas que estamos estudando.” (BOWIE, 2014, p. 24, tradução nossa).

Se a perspectiva de Bowie fornece indícios de uma disposição mais ativa do

investigador, a de Gilbert (2014) pode ser vista como um pouco mais passiva (LUKE e

HUNTER, 2014), e, portanto, bastante mais condizente com a orientação metodológica

deste trabalho, o que é também verdadeiro em termos de objetivos e de amostra, dado

que Gilbert fornece uma perspectiva agnóstica sócio-científica24 justamente da

experiência mediúnica espírita na Grã-Bretanha. Partindo de premissa similar à que aqui

comparece, isto é, a de que tais experiências são pelo menos socialmente reais e

significativas – e que, dessa forma, em suas próprias palavras, significa dizer que se

trata de fenômeno “que ‘afeta aqueles que acreditam nele’” (GILBERT, 2014, p. 64,

tradução e grifo nossos), a pesquisadora coletou seus dados também através de

observação participante e de entrevistas semiestruturadas embora utilizando a análise de

discurso, focando em apenas alguns dos aspectos biográficos das assertivas dos

médiuns.

As experiências mais relatadas pelos médiuns observados por Gilbert foram

de visões, de ouvir ou sentir e de transmissão de pensamento dos espíritos, com a

24
Atenta assim como Bowie às questões éticas, a autora distingue agnosticismo de indiferença com o que
é professado pelos médiuns, ressaltando assim a relevância da empatia do pesquisador para a reflexão
acerca da própria pesquisa e para o encorajamento da atividade reflexiva dos próprios sujeitos
(GILBERT, 2014).

68
maioria afirmando tê-las desde a infância (estando estes sozinhos) embora nenhuma

delas se tratasse de uma comunicação de fato, mas simplesmente de algo incomum, o

que talvez levou com que estes não se considerassem médiuns desde então mas com que

mesmo assim se preocupassem com suas vivências, delas se distanciando por

questionarem sua saúde mental e seu respeito. Somente com o processo de

desenvolvimento da própria aceitação e da aprovação social facilitada pelo contato com

aulas e outras pessoas – ocorrendo principalmente de modo inesperado com o “aval” de

um médium reconhecido (GILBERT, 2014). Apesar de consoante Gilbert (2014), seus

médiuns serem mais críticos que o esperado, reconhece a força da interação grupal para

as experiências, ficando reforçada assim a necessidade de ser dada atenção ao aspecto

psicossocial. Conclui ela:

“Meus achados sugerem que tornar-se médium trata-se tanto de ser reconhecido e

legitimado pelos outros como autêntico comunicador de espíritos, ser aceito como parte de

um grupo quanto de achar um papel para suas habilidades. Isto é enfatizado pela

significância que eles dão à experiência dos outros (...) [, que] é tão importante quanto a do

próprio médium, particularmente durante o período de desenvolvimento (...). Performances

mediúnicas, outrossim, operam em conjunção com outros. Isso se relaciona com o

significado da mediunidade enquanto uma ação social, como algo que pode ser

identificado como um processo envolvendo numerosos agentes” (GILBERT, 2014, p. 67 e

68, tradução e grifos nossos).

Explorando a função de experiências de mediunidade mental e física no

molde de concepções de mente e matéria, também Hunter (2014) adota abordagem

similar por ele chamada de experiencial ou de abordagem centrada na experiência –

talvez em referência à proposta psicoterapêutica de Rogers; o que significa dizer que ao

evitar a premissa funcionalista de que a possessão é um fenômeno mera e puramente

social e mesmo premissas neurofisiológicas, psicopatológicas e cognitivistas, leva a

sério as narrativas de seus informantes. Noções centrais emergidas do discurso dos

69
entrevistados de Hunter (2014) foram as ideias “de que a consciência pode sobreviver à

morte do corpo físico, de que a pessoalidade é divisível, de que o corpo é permeável, de

que a realidade é não-física e de que a consciência é uma propriedade fundamental do

universo” (p. 114, tradução nossa).

Ocupado do intrigante tema da possessão psicodélica, Luke (2014) procura

identificar em seu ensaio as raízes de outras manifestações culturais e religiosas que

aliassem a incorporação ao uso dos chamados enteógenos assim como o fenômeno da

Barquinha e do Umbandaime, resultante sincrética de duas outras expressões religiosas

(também sincréticas) brasileiras – o Santo Daime e a Umbanda. Impressionado com a

raridade de tal sorte de combinação (ver também Meintel, 2014), que nem mesmo no

xamanismo é frequente, Luke (2014) afirma, em suma, que

“Dada a aparente divergência entre a prática de uso de psicodélicos e a de incorporação

dentro de xamanismo, o relatório de uma crescente utilização destas técnicas em questão

dentro da igreja ministradora de ayahuasca Santo Daime requer explicação. Com este fim,

uma série de fatores parecem viáveis, tais como: a natureza explicitamente eclética da

linhagem do CEFLURIS [Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu

Serra] e da herança mediúnica latente de seus líderes; as mudanças demográficas dos

seguidores e a transformação de suas necessidades para uma prática religiosa mais

expressiva; a modernização, urbanização e gentrificação da religião; e, em última instância,

a “religiosização” da prática xamânica do uso de ayahuasca ao longo do dimensionamento

(...) que ocorre na transição do xamanismo de grupos nômades e caçadores-coletores para

"mega-cidadãos” sedentários e politicamente integrados” (LUKE, 2014, p. 250, tradução e

grifos nossos).

Ressalta-se no artigo de Stöckigt (2014) o fato de que a maioria dos

curandeiros africanos entrevistados eram homens e com grande frequência vinham de

70
famílias tradicionalmente envolvidas com práticas de cura25; estes só teriam assumido

tal identidade após reconhecer em suas doenças e em seus problemas psicológicos um

alegado dom revelado por espíritos, com os quais eles estabelecem uma relação de

muito respeito, só buscando-os quando precisam ser guiados quanto ao tratamento,

desde que são percebidos como perigosos e difíceis de lidar. Empregam métodos de

alteração da consciência próximos aos da Umbanda, variando os sinais de que os

espíritos se aproximam entre “sensação de peso ou leveza, tremores, tonturas ou

flutuação emocional, como por exemplo lágrimas súbitas” (STÖCKIGT, 2014, p. 169,

tradução e grifos nossos). Prossegue:

“Na maioria dos casos os curandeiros referiram-se a estados próximos ao sono, alguns a

perda de controle e outros se descreveram como loucos. Uma curandeira mencionou um

estado de extrema alerta. Durante a possessão pelo espírito muitos curandeiros espirituais

experimentam uma completa ou parcial amnésia. Como resultado dessa amnésia, os

assistentes são muito importantes para os curandeiros, possibilitando que eles transmitam

as instruções dos espíritos de cura após a possessão” (idem, ibid.)

Meintel (2014) pesquisou religiões presentes na cidade de Montreal, no

estado de Quebec, no Canadá, mas no ensaio em questão focaliza sua pesquisa baseada

em observação participante e entrevistas com o líder e outros vinte informantes de uma

igreja espiritualista, chamando atenção para as diversas formas como os médiuns entram

em contato com os espíritos (inclusive os inferiores e mesmo com contato sexual em

questão) através do que a ele narraram. Tendo estudado igualmente mais de uma

religião, em seu ensaio sobre a “guerra santa” – e em transe? – entre os neopentecostais

e os espíritas em sentido amplo (umbanda e candomblé inclusos), Schmidt (2014)

espanta-se com tal conflito dadas as proximidades de credos pela autora percebidas,

arriscando-se mesmo a afirmar que também a Igreja Universal do Reino de Deus

25
A autora enfatiza como o que reconhece como certa hierarquia dos espíritos dos curandeiros expressa
simbolicamente as estruturas sociais e a dinâmica interação entre identidades sociais e históricas
(STÖCKIGT, 2014)

71
(IURD) participa do continuun mediúnico brasileiro, “mas com entidades sobrenaturais

que incorporam nas pessoas com designação teleológica oposta: demônios ao invés de

deidades e espíritos” (p. 222, tradução e grifo nossos).

Santo (2014) dedicou-se aos espiritistas cubanos, ao processo de

aprendizagem do “ofício” mediúnico através da prática do desenvolvimento de

espíritos, chamado de desarollando muertos, e, por fim, da relação entre estes e aqueles,

que distante está de ser simples graças à ideia de que os aspectos humanos dos muertos

podem estar fortemente relacionados ao psiquismo e à motivação do médium mas

também ao fato deste influenciá-los igualmente. A imersão na realidade de seus sujeitos

foi tanta que a autora chegou mesmo a ser iniciada. Outro autor que também se tornou

médium foi Emmons (2014), que em seu estudo confrontou como experimentam

médiuns estadunidenses com sua vivência investigando uma médium de Hong Kong,

fornecendo rico panorama da variação cultural dessa experiência, que apesar de ter

diversas semelhanças, diferem entre si. Para ele, os chineses “negociam com seus

ancestrais para o benefício de ambos em questões práticas, enquanto norte-americanos

buscam conselhos pessoais e diminuição das aflições” (p. 321, tradução nossa).

Outra variedade oriental da incorporação tem lugar na coletânea: a dos

ancestrais e deidades guerreiras do taoísmo popular entrevistados por Graham (2014).

Isto é curioso já que o autor também os considera metodologicamente reais e acredita

ser mais vantajoso entrevista-los que contar com o depoimento dos médiuns tang-ki

desincorporados. Graham (2014) chama atenção para a premissa e a possibilidade

intrigantemente invertidas da existência de uma determinada categoria de espíritos que

poderiam ser de fato criadas pelo homem. Em suas palavras, estes teriam sido criados

“através da acumulação de energia espiritual direta (ling), manifesta através da adoração

72
e de oferendas em circunstâncias em que não existem espíritos naturais inanimados e

originariamente vivos” (p. 341, tradução nossa).

Por fim, Ryan (2014) enfoca o engajamento dos chamados videntes nos

meios virtuais, concluindo que, mais que a possibilidade de desenvolver e exercitar seus

“dons” através do espaço social online, este possibilita identificação, ajuda mútua e

sensação de utilidade dos seus membros, que assim sentem tornar-se mais

espiritualizados. Apesar de talvez demasiado sucinta, cabe destacar que uma

apresentação mais aprofundada das contribuições de todos estes pesquisadores do

Etnographies, porém, provavelmente só aumentaria em extensão estas páginas sem

tanto acrescentar algo que já não tenha sido discutido ou que seja de fato pertinente ao

presente estudo, ficando de bom grado estas menções ainda que rápidas a eles, que no

entanto merecem maior respeito por terem cumprido competentemente seus intentos26.

26
Não se fez menção ao ensaio de Maraldi et al. (2014) pelo fato de em tal ocasião ser feita a revisão de
estudos experimentais e que fogem portanto aos interesses deste trabalho.

73
CAPÍTULO 3

IDENTIDADE PSICOSSOCIAL

Uma categoria particularmente cara do ponto de vista da elucidação das

relações do indivíduo consigo próprio e entre ele e o grupo do qual faz parte – bem

como do papel exercido por este no que tange à experiência do médium e como ela

influencia o indivíduo em questão – é a de Identidade.

“A identidade é considerada uma categoria de análise, ou seja, constitui-se em um elemento

que é utilizado como referencial para submeter um objeto a uma análise; um recurso

teórico que vai subsidiar a compreensão de um dado fenômeno; mediação para a

compreensão de um determinado objeto” (LAURENTI & BARROS, 2000, grifos nossos).

Importa, assim, delimitar a proposta de análise dos resultados

especificamente pretendida para os fins deste trabalho. Nesse ínterim, utilizar-se-á um

modelo próximo do da identidade psicossocial de Paiva (2007) para compreender a

identidade dos sujeitos dos diferentes contextos religiosos em questão e para elucidar os

contrastes e as proximidades entre os processos identitários e entre as formas de se

vivenciar a mediunidade desses sujeitos; valendo-nos assim, no que se refere ao âmbito

específico do conhecimento psicológico-social, das teorias de Henri Tajfel e de John C.

Turner sobre a identidade, e, no que concerne ao âmbito da personalidade, às noções

resultantes da perspectiva de Jung sobre a dinâmica psíquica especificamente

apresentada pelos médiuns por ele investigados.

O contexto de criação da Teoria da Identidade Social de Tajfel e de seus

colegas se refere ao período após a Segunda Guerra Mundial, momento em que os

psicólogos, e em especial os psicólogos sociais, preocupavam-se com a questão das

relações intergrupais e com a ligação destas com os graves problemas que a causaram e

dela decorrentes com os quais os homens lidavam à época (HORNSEY, 2008), tais
74
como o Holocausto, a destruição em ampla escala de muitas nações e a onda crescente

de tensão presente na Guerra Fria. Uma consequência fundamental dessas questões na

obra de Tajfel é sua preocupação com a mudança social (HORNSEY, 2008;

MIRANDA, 1998).

Enquanto a tendência preponderante nesse ínterim consistia em remeter a

origem de tais conflitos entre grupos a processos profundos da psique, leitura esta de

cujo exemplo mais destacado é o da Escola de Frankfurt, e no máximo à dimensão dos

vínculos interpessoais, uma corrente contrária de pensamento emergia a partir da análise

de uma série de experimentos que faziam parte do chamado paradigma do grupo

mínimo (TAJFEL, 1970; TAJFEL et al., 1971, dentre outros), cuja avaliação culminou

justamente na teoria da identidade social.

Em suma, os resultados desses experimentos apontavam que sujeitos que não

tinham nenhum histórico de hostilidade entre si ao serem superfluamente categorizados

como pertencentes a um determinado grupo (de cujos membros não eram informados),

como, por exemplo, dos que preferem os quadros de um pintor aos de outro,

discriminavam o outro grupo – ainda que nem mesmo contato visual fizessem com este

– quando solicitados a dar recompensas e sanções em dinheiro, ainda que isto não

resultasse em maior benefício para si mesmos; de modo que, mesmo podendo optar por

estratégias razoáveis como fazer todos tirarem o máximo de proveito da situação ou de

distribuir o lucro da forma mais justa possível, os sujeitos favoreciam o grupo “nós”,

isto é, o endogrupo, em detrimento do grupo “eles”, o outgroup (TAJFEL, 1970;

TAJFEL et al., 1971).

Dessa forma, além das demais visões, sofrera um duro golpe uma rival da

teoria de Tajfel, a perspectiva do conflito realista de Muzafer Sherif, que afirmava que a

discriminação só poderia ocorrer em situações de interesses conflitantes entre grupos

75
(HORNSEY, 2008; MIRANDA, s/d). Mas quais seriam as motivações por detrás desses

resultados? Os desdobramentos das explicações fornecidas para uma série de resultados

nesse sentido e para perguntas como essa culminam na formulação da teoria da

identidade social por parte de Tajfel e de seus colegas, inclusive Turner, que depois

viria a complementar e aprofundar essa perspectiva com a Teoria da Autocategorização.

Um dos princípios fundamentais da perspectiva de Tajfel diz respeito ao

poder intrínseco do processo de categorização social na constituição da identidade,

processo este que, para Miranda (1998), consiste na “divisão do meio (físico ou social)

em categorias/agrupamentos de estímulos, operando-se com base em critérios diversos”

(p. 606) e que é, portanto, altamente dependente do contexto, já que, variando-se o

referencial, variam-se por consequência os critérios, e assim se estabelecem “relações

entre a variedade de identidades grupais assumidas pelos sujeitos e os diferentes

propósitos (...) que essas mesmas identidades servem” (p. 602).

A relevância do conceito de categorização para a teoria deve-se à

importância que tem para a cognição humana a percepção de informações e estímulos

em geral (objetos, pessoas, ideias, sentimentos, eventos, fatos etc.) cujos processos de

identificação de padrões, classificação em grupos e seleção e diferenciação de

elementos proporcionam um efeito organizativo sobre a realidade como um todo –

inclusive em sua dimensão social – de um lado impondo certa ordem à dimensão

caótica da vida e de outro favorecendo a adaptação a esta e facilitando, por exemplo, o

sentimento de pertença a um determinado grupo (BONOMO et al., 2011).

Outro aspecto central é o processo de comparação social, tendo em vista que

é justamente este que efetua a mediação entre os demais processos fundamentais

articulados pela teoria: o da categorização social e o da identidade social (Miranda, s/d;

Bonomo et al., 2011). Influenciado pelas ideias de Leon Festinger sobre a comparação

76
social, Tajfel argumentava que a motivação e a necessidade por um autoconceito

satisfatório e por uma imagem positiva de si constituem os pilares da preferência pelo

ingroup, criando uma diferença de potencial com relação ao extragrupo.

Essa curiosa dinâmica entre os grupos denominou-se de distintividade

positiva e, por sua vez, parece estar relacionado à elevação da auto-estima do sujeito

(HORNSEY, 2008; MIRANDA, 1998; HOGG et al., 1986; PAIVA, 2007). Um viés

interessante decorrente desse fato e que está associado à comparação e à categorização

sociais diz respeito à tendência do sujeito a perceber os membros do intragrupo como

mais diferentes entre si e os do exogrupo como mais homogêneos.

No entanto, no que concerne ainda à comparação social, apesar da

importância que a discriminação do outgroup tem para o endogrupo e do viés

supracitado, alguns autores ressaltam a importância do grupo realizar comparações com

grupos relevantes e legítimos ao invés de com quaisquer grupos (MIRANDA, 1998;

HORNSEY, 2008), pois pelo menos aparentemente um nível percebido mínimo de

semelhança de referencial seja necessário para compará-los em algum sentido.

Com efeito, uma das impressões mais peculiares ao se revisar a teoria de

Tajfel parece ser justamente a dependência da definição da identidade grupal do

contexto e mais especificamente do contra-grupo com o qual mesmo que se tenha uma

relação negativa, aquela está inevitavelmente referida, como se sempre após o termo

identidade A, por exemplo, fosse necessário especificar, entre parênteses, a expressão

em relação ao grupo/identidade B, C ou D, etc. a depender do nível e do critério

comparativo. Nas palavras de Hornsey (2008), “Grupos não são ilhas; eles se tornam

psicologicamente reais apenas quando definidos em comparação a outros grupos” (p.

207, tradução nossa).

77
No que se refere ao emprego do conceito de grupo, diferente das demais

perspectivas de psicologia social do pós-guerras, que reduziam a dinâmica intergrupal

ao nível do indivíduo ou a nada mais que a simples aglutinação de interações

interpessoais, segundo Miranda (1998),

“o grupo apresenta para Tajfel três componentes: cognitivo – consciência da pertença ao

grupo, avaliativo – a noção de pertença ao grupo pode apresentar uma conotação positiva ou

negativa e emotivo – os aspectos cognitivos e avaliativos de pertença ao grupo podem ser

acompanhados de emoções (por exemplo, amor, ódio, gostar ou não gostar)” (p. 600).

Finalmente, no que concerne à definição do último processo, o da Identidade

Social, este é definido como “aquela parte do autoconceito do indivíduo que deriva da

consciência de pertencimento dele a um grupo social (ou grupos) junto dos valores e da

significância emocional desse pertencimento” (TAJFEL, 1982c: 24 apud MIRANDA,

1998), podendo-se observar o peso dado pelo autor ao sentimento subjetivo de conexão

e de adesão ao grupo. Para Tajfel, a interação entre seres humanos envolvia um

espectro cujo um dos extremos consistia de práticas interpessoais e o outro de práticas

intergrupais (HORNSEY, 2008). Aquele extremo se refere a relações entre identidades

pessoais em forma mais pura possível, enquanto o outro retrata a consciência completa

da representação do grupo27 se torna o mais saliente possível, que por sua vez é o alvo

privilegiado das formulações de Tajfel, como já se pôde notar.

Explorando um pouco mais essa definição, Miranda (1998) fornece ideias

que podem vir a ser particularmente interessantes para a elucidação dos conflitos talvez

subjacentes às supostas manifestações dos espíritos que podem ajudar a circunscrever a

identidade mediúnica:

27
Não se pode esquecer ainda de que, por ser altamente referenciada ao contexto, a rede de pertencimento
aos grupos faz com que as diversas identidades sociais estejam sempre se transformando (Bonomo et al.,
2011; Hornsey, 2008), justamente como o contrário da concepção que Turner viria a atacar, isto é, a de
que a identidade seria uma estrutura estanque ou uma instância a priori.

78
“O indivíduo pertence simultaneamente a diversas categorias sociais: nação, grupo étnico,

religião, profissão, organização religiosa, família, partido político, ... Em resultado da sua

pertença a uma dada categoria, adquire uma dada identidade social que lhe permite definir a

sua posição na sociedade.

Em cada momento, a pertença a determinadas categorias revela-se mais significativa do que

a pertença a outras, existindo uma verdadeira hierarquia de identidades. Determinadas

pertenças podem revelar-se muito significativas em determinados contextos e pouco

relevantes noutros.” (p. 611).

A Teoria da Autocategorização de Turner e de seus colegas, também

conhecida como Teoria da Autoprototipicalidade, compõe juntamente da teoria de

Tajfel a Abordagem/Perspectiva da Identidade Social, ou a Escola de Bristol. Com a

morte deste no início da década de 80, Turner deu uma guinada em direção aos

processos intragrupais sem desconsiderar completamente o comportamento intergrupal

(HORNSEY, 2008), e justamente por essa razão sua teoria provavelmente será de maior

utilidade para este trabalho, tendo em vista que, ainda que este seja privilegiado para

sondar a reação dos participantes diretos e indiretos ao fato de o estudo estar se dando

com grupos religiosos diferentes, o foco deste jamais fora as relações entre estes, mas

sim a relação mediada pelo contexto entre suas experiências religiosas (e mediúnicas),

sua relação com os alegados espíritos e entidades e seu impacto sobre sua identidade.

De qualquer modo, a breve revisão do trabalho de Tajfel aqui realizada não

será de modo algum desprovida de sentido tendo em vista que seu trabalho e o de

Turner e partilham das mesmas estratégias metodológicas e referenciais (HORNSEY,

2008; PAIVA, 2007). Uma diferença talvez importante entre ambos, para começar com

um dos últimos aspectos retratados na exposição das ideias de Tajfel, é a forma de

conceber as identidades pessoais e sociais, que para Turner são diferentes em termos do

nível de autocategorização, sendo ambas expressões do self (TURNER et al., 1994).

79
As autocategorizações são definidas por Turner et al. (1994) como

“agrupamentos cognitivos do self e de algumas classes de estímulos como idênticos e

diferentes de outras classes” (p. 454, tradução nossa). Nesse ínterim, Hornsey (2008)

alega que

“os proponentes da TAC [Teoria da Autocategorização] caracterizaram a identidade como

operando em diferentes níveis de inclusividade. Turner e colaboradores denominaram três

níveis de autocategorização que são importantes para o auto conceito: a categoria superior

do self como ser humano (ou identidade humana), nível intermediário do self como membro

de intragrupos sociais definido em contraste com outros grupos humanos (identidade social)

e o nível inferior das autocategorizações pessoais baseadas em comparações interpessoais

(identidade pessoal). Reconheceu-se ser possível descobrir gradações mais refinadas do

nível intermediário de abstração, uma possibilidade que desde então tem sido explorada nos

trabalhos sobre identidades subgrupais (Hornsey & Hogg, 2000). Também assumiu-se que

há um “antagonismo funcional” entre os níveis de auto definição, de tal modo que conforme

um nível se torne mais saliente os outros níveis se tornam menos” (p. 208, tradução nossa).

Tocamos, assim, na questão do protótipo, isto é, das representações

cognitivas e do sentido subjetivo sempre cambiantes evocados pelas atitudes, emoções e

comportamentos tipificados pelos grupos sociais conforme os variantes contextos. Esse

conceito, quando relacionado ao “antagonismo funcional entre os níveis de

autocategorização” acima citado nos leva a enfocar uma das noções-chave para a

compreensão da visão – e também de sua tônica eminentemente negativa – de ambos os

autores acerca da relação entre indivíduo e grupo: o de despersonalização, que embora

não envolva uma perda ou desfragmentação da identidade no sentido de uma psicose,

retrata o salientar da conceituação de si mesmo enquanto representante da categoria

social compartilhada de pertencimento, isto é, uma ênfase no nível social em detrimento

do pessoal, ainda que a forma pura destes seja concebida como raras na realidade dos

grupos (HORNSEY, 2008; TURNER et al., 1994). A abordagem da identidade social

80
como um todo, como já se pode observar também no que diz respeito à teoria da

autocategorização, inspira-se num modelo baseado no conflito, de modo que este para

Tajfel era primordialmente intergrupal enquanto que para Turner se manifestava na

“disputa” entre níveis de autocategorização (TURNER et al., 1994).

Permita-se o leitor, aqui, mais uma vez, uma pausa para analisar uma

citação, desta vez de Hornsey (2008), que, ao enfocar a temática da influência, do

poder, do status, da legitimidade e da estabilidade, abre-nos uma possível perspectiva

de compreensão sobre a conexão entre a experiência e a identidade mediúnicas através

da aproximação entre o que os sujeitos acreditam ser espíritos e os protótipos tal como

concebidos pela visão de Turner e de seus colegas, notadamente expressa no termo em

destaque, e cujo resultado é curiosamente similar até o momento das observações

realizadas:

“A partir desta perspectiva, as pessoas são influentes dentro dos grupos na medida em que

incorporam as atitudes, comportamentos e valores prototípicos do grupo. (...) incorporar o

protótipo do endogrupo é o que maximiza a influência e a influência é a base do poder” (p.

211).

Voltando à concepção de self, que ao invés de ser hipostasiada em

autoconceitos e definições de si armazenadas em um local independente, devidamente

limitado e fixamente separado como uma estrutura ou instância mental (dimensão

estrutural, de permanência), é enxergada por Turner et al (1994) de modo mais

funcionalista, isto é, fluido e processual, “como produto do sistema cognitivo em

funcionamento, como uma propriedade fundamental do sistema cognitivo como um

todo” (p. 459) já que reiteradas vezes o autor reconhece a transitoriedade das

autocategorizações a depender da variação do contexto (dimensão de mudança) e

“como o conduto pelo qual processos coletivos e relações sociais mediam o

funcionamento cognitivo do indivíduo” (p. 460) (PAIVA, 2007; MARALDI, 2011).

81
Se, em outros termos, o self molda, condiciona e formata a cognição e em

consequência também o real por um lado, por outro, este não pode cumprir sua função

se o indivíduo não puder realizar suas avaliações e verificações de experiências de

forma autônoma, observando-se assim uma relação de interdependência mútua entre

processos psicológicos de autocategorização e as realidades sociais da vida coletiva

(TURNER et al, 1994). Para o autor, a “Realidade é sempre interpretada da perspectiva

de um ‘percebedor’ socialmente definido. O fato do self, portanto, faz do estudo da

cognição necessariamente psicologia social. Toda cognição é cognição social” (p. 462).

Cabe, contudo, lembrar junto a Paiva (2007), que

“Turner não exclui a motivação afetiva, mas tampouco lhe dá muita atenção. Destaca, ao

contrário, a motivação de ordem cognitiva, a saber, a de reconhecer-se conforme ao

protótipo e, eventualmente, próximo dele. Mais do que Tajfel, que explicitamente declarou

não pretender abranger a dimensão pessoal da identidade, Turner propõe uma correlação

negativa entre identidade grupal e identidade pessoal” (p. 79-80, grifos nossos).

Se a crítica de Paiva à Escola de Bristol o conduz à proposição de seguir

“um caminho nomotético acoplado a um percurso ideográfico” (p. 80), no presente

estudo esse enfoque da identidade é considerado assumidamente indispensável, tendo

em vista os objetivos específicos deste projeto, que podem ser atingidos de forma

“melhor conjugando psicologia social e psicologia da personalidade, a necessária

inserção da pessoa no grupo e a singularidade de cada indivíduo com sua história”

(PAIVA, 2007, p. 80, grifo nosso).

Esta, no entanto, não é a única crítica à perspectiva da identidade social.

Miranda (1998), por exemplo, aponta que “Tajfel faz depender de forma excessiva a

identidade do indivíduo da sua pertença ao grupo” (p. 610), caindo assim num

reducionismo oposto àquele que combatia nos primórdios. Outro ponto que é alvo de

82
críticas é o da visão negativa ou pessimista já mencionada no que concerne à

inevitabilidade da discriminação e do conflito (MIRANDA, 1998).

Nesse sentido, para uma devida consideração acerca dos possíveis aportes às

dimensões pessoais e afetivas que este modelo de análise exigirá, tomar-se-á como

complemento a perspectiva psicológico-analítica – ou seja, de Jung – acerca da

personalidade, no que tange mais especificamente aos estudos envolvendo o tema da

mediunidade e do espiritismo e, consequentemente, ao que estes podem fornecer à

compreensão da personalidade dos médiuns. Inclusive, esta proposta de análise parece

receber certo reforço também pelo fato de que pesquisadores contemporâneos dedicados

ao desenvolvimento da abordagem da identidade social, conforme Hornsey (2008), têm

feito uso dela na exploração de temas que antes seriam estranhados, como memória e

emoção, o que talvez constituam indícios de que apostar em propostas como a deste

trabalho possa fornecer novos ares e abrir outros horizontes para a teoria ou mesmo para

o problema em questão. Segundo o autor,

“Recentemente, teóricos têm tentado alcançar uma articulação com mais nuances da íntima

interconexões entre desejos por distintividade individual, pertença grupal e auto-

empoderamento e como a expressão desses desejos são formatados pela cultura. (...) Há

também crescente consciência que indivíduos e grupos se influenciam mutuamente” (p.

216).

Dessa forma, além de estarmos realizando uma complementação de

perspectivas inspirada na proposta de outro psicólogo social ocupado do tema da

religião, que por sua vez se faz necessária graças à importância da experiência

emocional e dos aspectos psíquicos profundos envolvidos na experiência religiosa,

partilhamos com Hornsey da ideia de que, pelo fato de ter sido também uma contra-

reação às perspectivas que reduziam os processos grupais e coletivos ao nível do

indivíduo e que viam neles nada além de irracionalidade, talvez o “paradigma” da

83
identidade social tenha descambado para o extremo oposto, desprezando sumariamente

outros aspectos também importantes na constituição da identidade. Por outro lado, a

perspectiva junguiana por si só provavelmente seria também insuficiente desde que

Jung, apesar de jamais ter menosprezado os aspectos cognitivos, intelectuais

relacionados ao social, lançava um olhar sobre a religiosidade e a espiritualidade com

foco fundamentalmente sobre o indivíduo, embora não com tom individualista28. Desse

modo, a exuberância, a riqueza e a dinâmica acrescentadas pelas interações sociais à já

demasiado complexa realidade da experiência religiosa mediúnica terminariam por não

receber o enfoque merecido e necessário.

Não se confunda a aliança entre essas perspectivas para a constituição desta

proposta interpretativa, que está devidamente voltada para os objetivos e especificidades

desta pesquisa, com a tentativa de aglutinar eclética e irrefletidamente duas teorias ou

sistemas psicológicos cujas diferenças substanciais estamos cientes.

28
Basta recordar da distinção entre individualismo e individuação (JUNG, 1928/1984).

84
PARTE II

A PESQUISA

85
CAPÍTULO 4

METODOLOGIA

4.1. Objetivos

Tendo em vista o que já foi delimitado, se tem como propósito geral a

compreensão psicossocial das experiências dos médiuns no que diz respeito à sua

relação com o que experimentam como espíritos em contextos religiosos específicos,

isto é, de médiuns Espíritas Kardecistas, dos médiuns do Vale do Amanhecer e dos

médiuns da Umbanda. Interessar-se-á pela mediunidade enquanto relação estabelecida

pelo médium com os pretensos seres espirituais, sejam eles na percepção dos sujeitos de

quaisquer origem ou natureza (“encarnadas” ou não, entidades, espíritos-guias,

obsessores, etc.). Essa distinção entre os contextos em que os médiuns estão inseridos é

importantíssima, já que, conforme Zangari (2007),

“as experiências anômalas narradas pelos médiuns são interpretadas por eles de acordo com

seu sistema de crença/significação. O conteúdo das experiências anômalas revelacionais

(aquelas que trazem alguma informação relevante) talvez possa ser o resultado desse sistema

de crença/significação sobre o processamento cognitivo dos médiuns. Supôs-se que o

conteúdo das experiências tende a ser construído individual e psicossocialmente”

(ZANGARI, 2007, p. 75)

Os objetivos específicos da presente pesquisa são:

 analisar a repercussão da vivência mediúnica na vida cotidiana do

médium;

 identificar as características semelhantes e divergentes das atividades

mediúnicas entre eles levando em conta o contexto grupal e religioso

em que se encontram.

86
4.2. Métodos

A opção pela modalidade qualitativa de pesquisa justifica-se devido ao fato

de nossa experiência e mesmo afinidade ser maior com essa estratégia de investigação.

Aproximar-se-á mais do que Zangari (2007) chamou de uma avaliação fenomenológica

da mediunidade, no sentido de ser “centrada na vivência do sujeito, em seu ponto de

vista” (p. 71). No entanto, os achados e conclusões desta pesquisa podem fornecer

diretrizes ou princípios para experimentos, investigações de natureza quantitativa,

elaboração ou aprimoramento de questionários e testes, podendo servir ainda como

referência parcial para políticas direcionadas à saúde e envolvendo movimentos

sociais.

A opção pela abordagem etnográfica com caráter estritamente descritivo

mostra-se razoável desde que o objetivo de apreender o sentido profundo que as

experiências têm para o médium depende de uma penetração na narrativa dele, na

mentalidade grupal da qual ele participa e de um exame delicado da dialética

estabelecida entre esses níveis, o que por sua vez só pode ser satisfatoriamente

circunscrito se levada em conta sua vivência, o comportamento ritualístico do grupo, a

mitologia específica e a própria experiência do pesquisador como participante da

realidade em questão.

Apesar de não se estar em jogo a experiência imediata com o que é vivido

como mediunidade em cada uma dessas religiões, esse contato direto ocorrerá, sim,

junto aos médiuns, seu discurso e sua realidade social. Em suma, tratar-se-á de uma

observação participante ativa por oposição à observação participantes periférica, em

que se valorizaria um distanciamento maior que o decorrente do fato de o pesquisador

não ser iniciado; e à observação participante completa, em que este seria um médium

(FINO, 2008).

87
As visitas iniciais a campo tiveram em vista eleger com quais grupos de cada

contexto religioso o trabalho se desenvolveria, bem como a ambientação e vinculação

do pesquisador em e com cada um deles, de modo que foram escolhidos o Centro

Espírita Grão de Mostarda (Kardecismo), o Centro Espírita de Umbanda Jesus, Maria

e José e o Templo Gamúrio do Amanhecer (Vale do Amanhecer). Participamos das

atividades autorizadas pelas lideranças dos três grupos religiosos por um período de

cinco meses em cada um destes, ao longo dos quais buscamos fazer pelo menos duas

visitas por semana sempre que possível.

Além de observação, esta abordagem compreende a utilização de técnicas

como: o registro descritivo em diários de campo dos acontecimentos vividos e

observados e, mais importante, a realização de entrevistas. As entrevistas tiveram

caráter semiestruturado e foram gravadas, mediante a autorização e consentimento do

médium, e tiveram seus aspectos mais significativos resumidos para os objetivos desta

investigação.

Quanto ao número de pessoas entrevistadas, estipulou-se como

complementar o valor prévio de um mínimo de quatro indivíduos por grupo religioso –

homens e mulheres com pelo menos dezoito anos de idade com no mínimo três anos de

vinculação com este – o critério da saturação, de modo que haveria a possibilidade de

aumentar o número delas até que a exploração através de mais entrevistas passe a ser

meramente repetitiva (FONTANELLA et al, 2008).

Faz-se mister sublinhar, entretanto, que todo o delineamento dos contextos,

hipóteses, categorias, quantidade de sujeitos entrevistados e mesmo das teorias

utilizadas na pesquisa foram encarados de forma parcialmente provisória, visto que a

experiência etnográfica nos foi o dado soberano na determinação mais definida desses

aspectos que foram aqui planejados com a finalidade exclusiva de organizar uma

88
estratégia de aproximação do problema de pesquisa. No fim, contudo, não precisamos

abrir mão nem de nossos referenciais teóricos nem tampouco se fez necessária a

realização de mais que quatro médiuns entrevistados por grupo religioso.

O estabelecimento de categorias para ajudar na coleta e na interpretação dos

dados nos auxiliou a direcionar temas fundamentais para os objetivos deste trabalho. As

categorias que guiaram nosso trabalho foram as seguintes:

1) Biografia relacionada ao percurso religioso;

2) Definição de mediunidade;

3) Início das experiências;

4) Desenvolvimento da mediunidade;

5) Tipos de mediunidade;

6) Percepção do nível de consciência;

7) Preparação para a incorporação;

8) Aproximação da entidade;

9) Afastamento da entidade;

10) Entidades mais importantes;

11) Interferências de conteúdos psíquicos dos médiuns na performance;

12) Transformação da autopercepção;

13) Consequências do trabalho como médium.

4.3. Hipóteses

Diante do que foi tratado até o momento, vale levantar as seguintes

hipóteses:

89
 Na percepção dos sujeitos, a experiência mediúnica opera em alguma medida

uma transformação de sua identidade e personalidade, não se caracterizando de

forma indiferente do ponto de vista cognitivo e afetivo.

 Muitas dessas transformações são percebidas pelas pessoas que as vivenciam

como possuindo um impacto positivo em sua qualidade de vida, principalmente se

estas de fato tenham um sentimento de pertença ao grupo religioso do qual fazem

parte.

 Os médiuns das três religiões compartilham de vivências bastante similares no

que concerne à alegada incorporação por espíritos e entidades, dado que uma forte

carga de sincretismo perpassa essas religiões, o que talvez aponte para a

participação de um amplo e multidimensional continuum experiencial-espiritualista

com variações que incluem suas diferenças.

90
PARTE III

CONTEXTUALIZAÇÃO DOS

GRUPOS RELIGIOSOS
91
CAPÍTULO 5

ESPIRITISMO KARDECISTA

"Pois em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão

de mostarda,direis a este monte: Passa daqui para acolá, e

ele passará. Nada vos será impossível” (Mt 17.20)

5.1. Estudos atuais sobre a identidade a religião espíritas no Brasil.

Os principais estudos contemporâneos realizados acerca da mediunidade

espírita no Brasil são os de Almeida (2003), Maraldi (2011) e Alminhana (2013), que já

foram devidamente apresentados no Capítulo 2. Resta, portanto, situar brevemente a

situação da religião Espírita e do Kardecismo e identificar quais as nuances da

identidade espírita em nosso país.

Antes de tudo, porém, uma exposição sumária da visão de mundo dessa

religião é interessante para os eventuais leitores que desconheçam suas linhas gerais e

desejem construir uma impressão genérica sobre ela antes de seguir na leitura deste

capítulo. Para os espíritas, o princípio superior seria

“Deus, concebido segundo a tradição judaico-cristã (...). Uma vez criado, o universo

constitui-se de dois elementos básicos: espírito e matéria. (...) À oposição entre um

princípio material e um princípio espiritual corresponde aquela entre seres materiais e

seres imateriais, e, de maneira mais abrangente, a oposição entre o Mundo Visível e o

Mundo Invisível, ou, como os espíritas também o chamam, o Plano Terreno e o Plano

Espiritual. (...) Assim, se idealmente o Mundo Espírita ou Invisível dispensa a existência do

Mundo Visível, no funcionamento desse sistema os dois termos complementam-se numa

relação de oposição hierárquica. (...) o Mundo Invisível transcende, engloba e confere

sentido ao Mundo Visível. (...) Essa relação de complementaridade entre os dois mundos se

ordena segundo dois eixos, um diacrônico e outro sincrônico. O eixo diacrônico

corresponde (...) à noção de reencarnação. Os Espíritos, principais componentes do Mundo

92
Invisível, têm vida eterna. Em sua trajetória cósmica passam por várias encarnações até

atingirem o grau de Espíritos superiores. (...) O eixo sincrônico remete à relação entre

Espíritos encarnados (...) e Espíritos desencarnados (...), à noção da comunicação

espiritual. (...) No eixo da diacronia, a relação entre os dois mundos é governada pelas leis

que regem o universo: a lei do progresso e da evolução, a lei da reencarnação, a lei do

carma ou da causalidade cósmica.” (CAVALCANTI, 2008, p. 27 e 28)

Apesar desse trecho de Cavalcanti (2008) constituir uma síntese bastante

abrangente e suficiente para os objetivos a que nos propomos nesta seção, o quadro

presente em Sampaio (2014) apresenta de forma ainda mais sucinta e didática aspectos

como a visão de mundo e de homem e outras informações interessantes que podem

ampliar e aprofundar o entendimento do leitor.

Quadro 1: Síntese do ethos e visão de mundo da obra kardequiana. (Retirado de Sampaio, 2014).

Elementos de Análise Cultural Obra Kardequiana


Visão de Mundo a) Calcada na existência de Deus e na
Justiça Divina.
b) Noção ampliada de mundo e de
sociedade (mundo físico e mundo dos
espíritos).
Visão de Homem a) Espírito encarnado, dotado de liberdade
de escolha mas responsável por suas
ações.
Éthos: Fundamentos a) Propõe a construção de uma ética
racional baseada em uma leitura dos
princípios valorativos cristãos.
Éthos: Valores a) Benevolência para com as outras
pessoas.
b) Respeito às convicções sinceras.
c) Humildade.
d) Cumprimento consciencioso dos
deveres.
e) Desligamento dos bens materiais.
Éthos: Imperativos a) Autoconhecimento.
b) Autodesenvolvimento moral e
intelectual.
c) Ação humanitária.
Um estudo indispensável para a compreensão do processo de chegada, dos

desafios enfrentados, da memória social e do estabelecimento do Espiritismo Kardecista

e por seus adeptos no Brasil como a 3ª maior religião do país é o trabalho de Giumbelli

93
(1997). Neste, o autor persegue as tentativas de combate e as reações à religião recém-

chegada que datam da metade do século XIX e persistiram até aproximadamente a

metade do século seguinte.

É, a um só tempo, um estudo interessante para elucidar a história da

medicina e das práticas higienistas datadas de certo período, que por sua vez foram

decorrentes de um projeto de sociedade inspirada nos moldes europeus, tendo sido os

médicos os convocados a expurgar todos aqueles que não se encaixassem no dito

projeto (GIUMBELLI, 1997); e um artigo cuja importância histórica para o campo da

antropologia e da psicologia da religião é insondável no sentido de fornecer contextos

com os quais qualquer pesquisador da religiosidade espírita virá a se defrontar.

Antes de ser enfocado a partir do olhar das ciências sociais, o espiritismo

fora visto como charlatanismo, doença psicofisiológica e ainda de um modo que

conjugava essas duas formas: uma loucura criminosa. Nomes como os de Francisco

Fajardo, Nina Rodrigues, Artur Ramos e Roger Bastide são os mais importantes na

transformação do significado dos espíritas para a sociedade brasileira, ainda que alguns

deles tenham se dedicado de fato ao estudo do candomblé. Isto pelo fato de que, no

início, esta religião, bem como a umbanda e outras acabavam por ser aglutinados sobre

o rótulo amplo de espiritismo. (GIUMBELLI, 1997)

Um artigo complementar ao de Giumbelli é o de Moreira-Almeida et al.

(2005), cuja problematização da chamada “loucura espírita” no Brasil é pensada de um

do ponto de vista médico-psiquiátrico e da teoria do conhecimento no sentido de

apontar as diversas fraquezas desse construto tanto em seus aspectos éticos quanto

científicos cometidas pelos médicos do período.

Outro importante trabalho é o de Stoll (2002) tendo em vista o fato de a

autora acompanhar a trajetória de três grandes ícones do Espiritismo Kardecista

94
brasileiro: Chico Xavier, Waldo Vieira e Luiz Antonio Gasparetto, que são, por sua vez,

símbolos de três significativas expressões, a do espiritismo tradicional, de “estilo

católico”, a da tendência mais intelectual e paracientífica/pararreligiosa e por último a

das terapias alternativas, da carnavalização, da autoajuda e do neoesoterismo,

respectivamente.

Duas eram as principais ideias que concerniam à chegada do Espiritismo no

Brasil, embora seja consenso que mudanças foram inevitáveis: uma, de Cândido

Procópio Camargo, de que no Brasil a tônica religiosa teria se sobressaído com relação

às demais dimensões do Kardecismo (ciência e filosofia), e outra, de Roger Bastide, de

que este foi alvo de adaptações diferentes a depender do contexto (STOLL, 2002). No

entanto, o Espiritismo à brasileira constituiria para Stoll (2002) “uma versão original e

não um produto menor, adulterado ou desviante” (p. 367).

Um aspecto caro do trabalho de Stoll (2002) respeita ao reconhecimento de

duas posturas do Espiritismo com relação aos “laços” e fronteiras estabelecidas por este

juntamente das religiões “afro”. A autora identifica a ideia de um continuum entre estas

e aquele, enquanto por outro lado se tem a visão de que elas se situam em oposição

àquele. No entanto, os pesquisadores do campo mantiveram-se pouco atentos à conexão

do espiritismo com o catolicismo segundo ela, que é partidária da perspectiva de que

aquele só conseguiu estabelecer-se graças ao fato de ter internalizado a noção cristã de

santidade, que reconhece na trajetória biográfica do médium Chico Xavier. (STOLL,

2002)

Todas essas ideias fornecem um interessante panorama, mas a partir das

experiências adquiridas com a observação do exercício mediúnico, com as entrevistas e

com a vivência das práticas religiosas como um todo em que as pessoas dos diferentes

centros espíritas, terreiros e templos estão engajadas, faz-se mister tomar proveito da

95
ideia do continuum estabelecido entre o Espiritismo Kardecista e as religiões afro e

ampliá-la a fim de incluir não só o catolicismo como propôs Stoll mas talvez todo o

cenário da diversidade religiosa e das práticas espiritualistas, New Age, esotéricas e etc.

que no dia-a-dia desses espaços acabam se encontrando e se imiscuindo, resultando

assim num continuum multidimensional capaz de abranger, inclusive no interior de um

mesmo grupo, essas tendências antagônicas do Espiritismo Kardecista brasileiro cuja

trajetória a autora persegue.

5.2. Centro Espírita Grão de Mostarda

O Centro Espírita Grão de Mostarda (CEGM) se localiza no Parque Araxá,

tradicional bairro de classe média de Fortaleza, onde desde 1986 realiza suas atividades.

A instituição funciona numa convidativa e ampla casa de dois andares cuja decoração é

padronizada e com plantas espalhadas por quase todos os espaços, contando com

auditório, salas de estudos e de reuniões, salas de atendimentos e de passes, secretaria,

biblioteca, cozinha, almoxarifado e banheiros. A maior parte dos cômodos possui

aparelhos de ar-condicionado e alguns têm inclusive recursos especiais de iluminação,

dentre eles as salas de passes e de reuniões (mediúnicas) e o auditório. 61 trabalhadores,

dentre os quais passistas, palestrantes, recepcionistas, presidente, médiuns e

doutrinadores – e é importante lembrar que a maioria exerce mais de uma dessas

funções, a depender das atividades e dos dias – estão sempre presentes no espaço, a

maior parte em mais de um dia da semana.

5.2.1. História do CEGM.

96
A história do centro com nome inspirado na sapiência bíblica – a fé cujo

tamanho ainda que ínfimo como o referido grão é movedora de grandiosos “montes” –

nos é narrada por alguns de seus membros mais antigos (somente três estão desde os

primórdios), que contam que funcionava no espaço onde hoje se encontra o “Grão”,

modo carinhoso destes se referirem à instituição, um centro denominado de “Palácio do

Espiritismo”, cujas práticas, segundo eles, eram diferentes das adotadas atualmente,

querendo expressar com isso que práticas umbandistas e espiritualistas no sentido lato lá

tinham espaço. O dono da casa e responsável pelo espaço – um militar espírita de idade

já avançada – nutria o sonho de que nele tivesse continuidade a prática da religião

espírita, e assim é que entra em cena a figura de Mario Kaula Bandeira29, reconhecido

como fundador do Centro e hoje já falecido30, alguém que viria a realizar uma dupla

transição: entre a opulência e a atmosfera ao mesmo tempo misteriosa e medieval

evocada pelo termo “Palácio” e o símbolo que acresce à imagem de um singelo grão de

mostarda uma paradoxal potência e de um “grupo de evangelização” de mesmo título

que ocorria improvisadamente em Icaraí, distrito de Caucaia que fica na região

metropolitana de Fortaleza, e a casa, mais adequada para aquele.

O simbolismo da troca do nome do espaço expressa, de um lado, conforme

elucidado por Stoll (2002), o possível ganho adaptativo, do ponto de vista cultural,

proveniente de se ter uma referência cristã no nome de um centro localizado em um país

em que a religião católica era ainda mais forte e influente, e, de outro, uma maior

tendência a alinhar-se à sistematização dos centros espíritas como pensada por Allan

29
Não teve seu nome alterado. A partir daqui, poderá o leitor concluir que, caso não haja nota de rodapé
indicando que o nome da pessoa em questão não sofreu alteração, é por que o nome desta foi modificado,
assim visando manter preservado o sigilo.
30
Em uma das entrevistas, a médium Zíbia recordou de certa vez em que uma de suas psicografias fora
assinada por Mario Kaula Bandeira. Isso nos fornece um dado interessante no que concerne à relevância
da articulação entre a história pregressa do grupo e o significado de seu fundador para este na construção
da narrativa do que estes acreditam serem espíritos.

97
Kardec e orientada pela Federação Espírita Brasileira (FEB), cuja subordinada no estado

é a Federação Espírita do Estado do Ceará (FEEC).

5.2.2 Atividades.

O CEGM possui uma programação diária definida mensalmente em reuniões

dos administradores da instituição. A maior parte das atividades ocorre no turno da

noite, iniciando às 19 horas e 30 minutos e terminando às 21 horas, à exceção dos

sábados e domingos, em que estas não são abertas ao público, isto é, envolvem

exclusivamente os trabalhadores e se dão com maior frequência nos turnos da manhã e

tarde. Em quase todos os dias há mais de uma atividade programada, e algumas delas

podem inclusive acontecer no mesmo horário, como se pode conferir nas atividades

abaixo:

Palestras públicas e preleções: Segundo alguns dos membros, enquanto nas

palestras das segundas-feiras os palestrantes abordam temas mais propriamente

relacionados à doutrina espírita, como “Reforma Íntima”, “Obsessão, Desobsessão”,

“Lei de Justiça, Amor e Caridade”, etc., nas sextas-feiras eles buscam discutir temas

“livres”, como “O poder da amizade”, “O medo da morte”, “Ética e responsabilidade”,

etc. No entanto, o que se percebe é que, mesmo nos títulos dessas palestras presentes na

programação impressa distribuída sempre no início do mês aos frequentadores do

centro, questões mais ligadas à obra de Kardec podem ser tratadas nas sextas e vice-

versa. Nas quintas-feiras, durante o GAME, tem espaço uma palestra mais curta, a

chamada “preleção” cuja duração é de 30 a 45 minutos – as palestras duram por volta de

uma hora. Não custa ressaltar, ainda, que mesmo os temas livres acabam sendo tratados

de uma perspectiva espírita. Outro fato interessante é a recorrência de palestras cujos

títulos estão explicita ou implicitamente relacionados à imagem do grão de mostarda,

98
como por exemplo: “A fé transporta montanhas”, “Parábola do Grão de Mostarda”, “O

poder da Fé”. Antes destas terem início, geralmente os trabalhadores apagam as luzes

“convencionais”, acendendo as de tom azulado, aumentam um pouco o volume da

música relaxante que já estava tocando e convidam algum trabalhador que não o próprio

palestrante a fazer uma prece visando acalmar e tranquilizar seus visitantes. Existe a

possibilidade de que os palestrantes usem recursos como slides, cujo conteúdo

geralmente envolve belas imagens, citações bíblicas e trechos de livros psicografados ou

não de autores espíritas. Apesar disso, os palestrantes usam linguagem acessível e em

geral estão nitidamente motivados, utilizando de metáforas interessantes e sofisticadas e

procurando constantemente articular suas ideias com o cotidiano, dando exemplos de

suas próprias vidas e deixando os visitantes livres para fazer comentários, tirar dúvidas e

até discordar de suas ideias. As palestras, juntamente dos grupos de estudos para

iniciantes e outras atividades, fazem parte de um todo que os trabalhadores denominam

de Assistência Espiritual, cujo objetivo é cuidar

“essencialmente do socorro às mentes em desequilíbrio e das deficiências da alma, com a

utilização de recursos pertinentes a Doutrina Espírita, tais como: conversa fraterna,

palestras educativas e consoladores, vibração, água fluidificada, passes e fluidoterapia,

promovendo assim, a desobsessão e o esclarecimento ao irmão necessitado, restabelecendo,

com muito amor o equilíbrio espiritual, psicológico e fisiológico daqueles que vêem em

busca de paz e luz” (Trecho retirado de flyer com a programação diária do CEGM)

Passes e água fluidificada: Após as palestras e preleções, um grupo de

trabalhadores recebe os presentes interessados na “fluidoterapia” numa sala com

iluminação especial dedicada a essa prática que se localiza logo atrás do auditório.

Inspirados pelas ideias acerca do “magnetismo animal” de Mesmer e propostas por

escritores como Jacob Melo e pelo pensamento oriental sobre os “chakras”, chamados

também de “centros de força”, os espíritas crêem que através da mãos dos passistas, que

99
acreditam ser auxiliados pelos seus guias espirituais, seria possível realizar a emissão de

“energias” e “bons fluidos”, cujos alegados efeitos seriam, quando conjugados com as

demais práticas da Assistência Espiritual, os de equilibrar fisiológica, psíquica e

espiritualmente aquele que “tomou” o passe. Este, por sua vez, pode ser descrito como

uma série de movimentos com as mãos tais como fazer círculos com as palmas destas

ainda que sem tocá-las na cabeça do indivíduo e depois fechá-las, estalar os dedos ou

simplesmente manter as mãos paradas próximas de determinados pontos, como os dos

chakras. Um experiente passista do CEGM certa vez comparou o funcionamento destes

ao dos cata-ventos, que às vezes giram tão devagar que não cumprem sua função e

outras giram demasiado rápido, ficando prestes a quebrar, daí a necessidade de

equilibrá-los. Nas chamadas “mediúnicas”, durante e após a incorporação dos ditos

espíritos “sofredores”, os doutrinadores também dão passes, embora estes sejam mais

rápidos, pois não se aplica sobre os chakras do médium. A chamada água fluidificada

passa pelo mesmo processo de “magnetização” (juntamente dos visitantes, que

acreditam recebê-la) e é tomada em copos de chá após o passe ou levada para casa em

garrafas pelos frequentadores e trabalhadores para ser tomada em cinco pequenas doses

diárias ao decorrer da semana. Ao serem questionados sobre a razão dessa prática

envolvendo a água, os trabalhadores fazem menção ainda a um estudo de um japonês

acerca da influência de diferentes tipos de emoções e de música sobre a configuração de

moléculas de água. Antes e após a aplicação dos passes nas pessoas, os passistas fazem

uma prece da forma menos automática possível, pois a maior parte dos trabalhadores do

CEGM acredita que os passes não fazem parte de nenhum ritual e encontram nas ideias

e estudos supracitados a confirmação de sua crença, ainda que a diretora financeira

coordenadora de um determinado trabalho declarou em certo momento que “não é

ritual, mas é”. Isso se deve ao fato de que, na visão mais difundida entre os espíritas, os

100
rituais são próprios dos povos e religiões “menos evoluídas”. O autor destas linhas pôde

observar e participar de muitas aplicações de passes, podendo descrevê-las de modo

geral como capazes de proporcionar agradáveis sensações de relaxamento e de calmaria

e de induzir sutis modificações do padrão qualitativo da consciência associados ao

cerrar dos olhos, à música “leve”, ao silêncio e à iluminação especial.

Conversa fraterna: Consoante o Diretor Doutrinário da casa, esta atividade,

também referida como atendimento fraterno e que ocorre às segundas e sextas-feiras, é

direcionada às pessoas em situação de sofrimento que procuram o CEGM, consistindo

basicamente de um diálogo em que o trabalhador da casa busca primeira e

principalmente ouvir o que a aflige. O Diretor Doutrinário descreve marcos típicos

desse momento, em que a pessoa escutada pode se comover e entrar em pranto, o que

reconhece como contribuição para que esta tenha uma leve sensação de melhora. Num

segundo momento, esta é convidada a fechar os olhos e ficar em silêncio enquanto o

trabalhador lhe aplica um passe – segundo ele, esta atividade é bem próxima do que se

realiza no GAME. Após isso, as pessoas em geral se sentem mais preparadas para

interagir e ouvir o que o trabalhador tem a dizer sobre sua situação, sendo ao final do

atendimento convidadas para participar de outras atividades que lhes são acessíveis,

como palestras, cursos e reuniões. Para dar um exemplo, o Diretor Doutrinário se referiu

ao caso de um jovem cujo drama envolvia o fato de ser homossexual e seu temor frente

às possibilidades de reação de seus pais, que tinham uma atitude conservadora frente a

isto. Em outra oportunidade, um dos trabalhadores levou a própria mãe, segundo ele

diagnosticada com depressão, para participar do GAME, atividade que abrange a

conversa fraterna. Esta aparenta estar de alguma forma conectada com as reuniões

mediúnicas, pois é através das informações naquela colhidas que às vezes os

participantes destas reconhecem nas comunicações o “obsessor” de uma determinada

101
pessoa. Não seria exagerado supor que, quando a pessoa retorna com frequência para a

conversa, o trabalhador em questão, se participante de alguma maneira das

“mediúnicas”, possa dar-lhe um retorno nesse sentido.

Reunião para iniciantes, estudos em grupos31 e evangelhoterapia: Esta

prática ocorre nas segundas-feiras, no mesmo horário das palestras, nas salas do

segundo andar do CEGM. Como suas diferentes denominações esclarecem, estas

práticas têm como objetivo, a um só tempo, apresentar a programação de atividades da

casa, realizar a iniciação de visitantes interessados na doutrina espírita através do estudo

e da discussão do livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Kardec, e ainda,

segundo uma das trabalhadoras, funcionar como uma espécie de terapia de grupo,

oferecendo aos participantes um espaço para partilhar suas dores e suas vivências – pois

estas atividades são frentes da já mencionada Assistência Espiritual e do GAME.

Frequentemente há mais de um coordenador devido ao número de pessoas presentes, de

modo que uns ficam responsáveis pelos iniciantes propriamente ditos e outros pelos que

já se encontram frequentando a atividade. Nestes, a cada encontro geralmente são

discutidos capítulos específicos da obra supracitada, sendo os que mais se repetiram os

com os seguintes títulos: “Bem-aventurados os Mansos e os Pacíficos”, “Bem-

aventurados os Misericordiosos”, “Amar ao próximo como a si mesmo”, “O Cristo

Consolador” e “Que a mão esquerda não saiba o que faz a direita”. Numa oportunidade

em que se pôde participar, observou-se que, apesar do foco se dar sobre o capítulo do

dia, tendo sido comentados os pontos centrais deste, o coordenador interagiu

dinamicamente com os participantes, deixando-os falar ainda que procurando sempre

regular o grupo para dar espaço a todos e para poder retornar à discussão. A tônica de

suas falas é claramente confessional, de modo que uma das participantes mencionara

31
Também chamados de grupos de estudos.

102
rapidamente sua falta de amor-próprio e sua dificuldade em lidar com rejeição,

enquanto outra discorreu longamente sobre sua trajetória de enfrentamento ao vício em

cigarro e sobre como finalmente conseguiu superá-lo lendo obras psicografadas por um

determinado autor espírita. De um lado, se tem os iniciantes falando sobre suas questões

e buscando ressignificar seu olhar sobre estas e, da parte do coordenador, uma atitude

que conforme a terminologia espírita poderia ser chamada de “consoladora”. Segundo

um dos coordenadores, é necessário que o participante esteja presente em pelo menos

dez reuniões para que possa então voltar ou para os atendimentos do GAME ou para

cursos mais avançados, como o CBE.

Curso Básico de Espiritismo (CBE): Tendo duração total de um ano, que

por sua vez é subdividido em estágios com números específicos de aulas, o curso é

coordenado por Rogério, também doutrinador de duas “mediúnicas”, que, em linhas

gerais, busca conduzi-lo como um círculo de conversa baseado n’”O Livro dos

Espíritos”. A cada aula, os participantes recebem uma folha referente à aula seguinte

que inclui um “Roteiro para Estudo Dirigido”, isto é, o (sub)capítulo do livro com a

indicação das questões que Kardec fez a diferentes espíritos e suas respectivas

respostas, e aproximadamente dez “Questionamentos” acerca do conteúdo do roteiro

que os participantes devem ser capazes de responder. Em geral, quando não se sentem à

vontade ou não conseguem expressar sua compreensão, estes buscam fazê-lo através da

indicação e consecutiva leitura em voz alta do parágrafo ou do trecho que sintetiza a

resposta, o que também é feito a convite de Rogério quando eles não sabem responder

ou não puderam fazer a leitura em casa, recebendo em seguida um comentário de seu

coordenador, que articula os conteúdos com atualidades. Este curso é voltado para

aqueles que de alguma forma simpatizam e têm afeição com a doutrina ou mesmo que

querem construir uma trajetória mais sólida dentro do espiritismo, cuja forma mais clara

103
seria a afiliação como trabalhador (voluntário) do CEGM, sendo, nesse sentido, também

uma espécie de pré-requisito para a participação de muitas atividades do centro, como

no Grupo de Estudo de Aprofundamento Doutrinário. Assim como as palestras, o

GAME e a evangelhoterapia, o CBE se constitui uma das portas de entrada oferecidas

pelo centro, embora um nível maior de vinculação e de identificação sejam necessários,

já que das demais atividades participam mesmo católicos autodeclarados e que afirmam

que não deixarão de sê-lo. Isto por que, nestas, os trabalhadores recepcionam e atendem

visitantes independentemente de suas crenças e religiões, e, ainda que inevitavelmente

uma carga doutrinária esteja envolvida, seus objetivos principais parecem ser o cuidado

e a transmissão de um espiritismo inclusivo e afeito à abrangente e complexa realidade

da religiosidade brasileira, talvez simpático ao que uma integrante do centro chamou

de “mosaico da espiritualidade aberta”. O curso, pelo contrário, exige que seus

participantes tenham desempenhos mais típicos de estudantes, tais como: organização,

dedicação e compromisso para com as leituras e os encontros; interesse para discutir o

assunto de modo participativo; frequência; e dúvidas; certas capacidades cognitivas para

a compreensão, internalização e atualização das ideias, noções e (etno)conceitos da

filosofia, religião e ciência espíritas, como os de Deus, alma, espírito, corpo físico,

períspirito, reencarnação, obsessão, etc. É pertinente, aqui, recordar a comparação

realizada por alguns trabalhadores do CEGM entre este (ou os centros espíritas) e uma

“Faculdade”, de um lado, e, de outro, entre ele e um “Hospital”, situando atividades

como o CBE, as palestras e outras de dimensão “formativa” na primeira imagem, e

outras práticas como a Assistência Espiritual, o GAME e os passes na última. A

fronteira entre ambas, no entanto, é bastante tênue e muitas vezes está claramente

suspensa e abolida – como nas ações de educação e iniciação mediúnicas; resultando,

assim, numa terceira representação, inferida da observação da dinâmica do CEGM: a de

104
um “Hospital-Escola”. Outro interessante aspecto observado a partir do contraste entre

as palestras e a evangelhoterapia e o CBE consiste no fato de que, neste, o problema da

relação entre o espiritismo e as demais religiões é colocado de forma completamente

diferente: Rogério problematiza e delimita com relativa frequência, por exemplo, qual a

relevância do conhecimento bíblico para a doutrina de Kardec. Nesse sentido, de um

lado restringe orações como a “Ave Maria” para a crença espírita na medida em que um

de seus trechos diz ser Maria a “Mãe de Deus”, de outro autoriza o “Pai Nosso”, embora

com a ressalva de esta não ser feita de modo automático. Critica ainda o que chama

jocosamente de centros “espiritólicos”, que segundo ele, adoram ícones de santos e de

mentores e opõe o “mediunismo”, alegadamente cultuado em diversas outras religiões, à

mediunidade propriamente dita, que seria exclusividade da doutrina kardecista. Isto

demarca uma diferença significativa com relação às palestras: aqui, a doutrina espírita é

encarada como a “boa nova”, como o “cristianismo revivido”, capaz de operar o “bem”

por aqueles que a buscam. Sendo apreciada pormenorizadamente e apresentada com

rigor, sempre que possível retornando à letra do “mestre” (Kardec), Rogério ressalta que

a falta de “estudo” é o principal problema das religiões, e que nesse sentido o

espiritismo não seria exceção. Esses indícios parecem sustentar o intento de transmitir a

solidez da visão espírita, seu “núcleo duro”, que se pode traduzir na ideia de que a

doutrina espírita é mais suficiente a si mesma do que quer seu contraponto “aberto” ou

sincrético já mencionado, de modo que as possíveis crenças e vivências provenientes de

outros sistemas religiosos e que foram acolhidas e até mesmo estimuladas recebem

agora uma nova visada, às vezes sendo duramente golpeadas ou ganhando novas

leituras e significados, cujos contornos remetem às raízes do pensamento espírita. A

função das facetas “eclética” e “dogmática” tomadas isoladamente e em relação entre si

receberão tratamento no último capítulo. Apesar de tudo, Rogério não é o único que

105
partilha de ideias tais como essas, e não por coincidência os demais sujeitos que

pareciam simpatizar com elas eram justamente doutrinadores.

Grupo de Assistência Magnética e Espiritual (GAME): Apesar de ter início

às 19 horas e 30 minutos das quintas-feiras, os trabalhadores do centro orientam aqueles

que o buscam pela primeira vez que estejam presentes um pouco antes, para que possam

passar por uma “triagem”. Isto por que

“O GAME se propõe a auxiliar as pessoas que buscam esta Casa Espírita, apresentando um

quadro crônico de angústia, ansiedade, depressão, tristezas e ainda outras enfermidades de

obsessões graves. Esta terapia deve ser realizada em conjunto com o tratamento médico

correspondente” (Trecho retirado de flyer com a programação diária do CEGM, grifo

nosso).

Logo ao chegarem os visitantes são recebidos e orientados por algum

trabalhador do centro que aguarda sentado na portaria, onde recebem flyers com a

programação mensal da casa que lhes é acessível. Caso seja sua primeira vez

participando do GAME, elas são direcionadas a uma sala onde dão seus nomes a um

trabalhador que prepara sua ficha e seu crachá e são conduzidos por outro trabalhador

também identificado com crachá até uma sala onde conversam de forma não tão

demorada sobre o que as leva a procurar a “magnetização”. O entrevistador toma notas,

preenche alguns dados e “prescreve” o tratamento, cujo foco central residirá na ingestão

de água fluidificada e na prática frequente de passes – individualizados, um pouco mais

longos e provavelmente mais relacionados com o caso. A presença na preleção é

fundamental, e a articulação com o atendimento fraterno, os passes, os grupos de

evangelhoterapia e outras iniciativas da Assistência Espiritual é inevitável, sendo a

confusão com os dois primeiros bem clara. Do contrário, caso já conheçam a atividade,

simplesmente dão seus nomes, se sentam munidos de suas garrafas d’água e aguardam

em silêncio pela preleção no auditório, onde a combinação da penumbra, das sutis luzes

106
coloridas e das músicas calmas e relaxantes ajudam a quebrar o ritmo acelerado do dia-

a-dia. As preleções, por sua vez, só diferem das palestras em termos de duração: são

mais curtas, pois os visitantes e frequentadores precisam ser atendidos.

Outras atividades: Além das práticas apresentadas e discutidas acima, o

CEGM oferece muitas outras, ocorridas nos fins de semana, em cuja participação é

autorizada apenas aos membros do centro. Dentre elas podem-se citar propostas de

estudos mais avançados, como a do Grupo de Estudo de Aprofundamento Doutrinário –

pré-requisito para participar das chamadas mediúnicas – e a do EADE – Estudo

Aprofundado da Doutrina Espírita; e ainda outro grupo de estudo chamado de Vivência

Espírita para Trabalhadores do Grão. No período em que a pesquisa foi realizada, a

instituição espírita não oferecia a prática de Evangelização Infantil por não ter formado

turma, embora oferecesse ainda aulas de francês.

5.2.3. Reuniões Mediúnicas.

O CEGM possui quatro tipos de reuniões deste tipo, a Reunião de Iniciação

à Mediunidade Espírita (RIME), a Reunião Mediúnica de Desobsessão e as Educações

Mediúnicas 1 e 2. Estes momentos são restritos até mesmo para os trabalhadores do

“Grão” que não são doutrinadores ou médiuns de incorporação, de psicografia ou de

vibração, sendo permitida sua participação só excepcionalmente.

De um lado, os dirigentes do centro e das reuniões alegam que os espíritos

que acompanham os trabalhadores ou quaisquer outras pessoas que hipoteticamente

venham a participar poderiam se manifestar e assim criar problemas para ambos,

interessado e espírito obsessor e, de outro, afirmam que participar destas somente por

curiosidade e sem o devido conhecimento da doutrina – leia-se: comprovada

participação nos cursos e grupos de estudos ou experiência prévia – é imprudente e

107
possivelmente prejudicial para os médiuns, que se sentem mais sensíveis e ansiosos

diante da exposição.

No entanto, após alguns meses de imersão no centro, demonstrada a

seriedade do trabalho de pesquisa fora, esta foi reconhecida pelos trabalhadores do

Centro, e, graças à iniciativa e ao convite da médium Zíbia, que mediou e entrou em

contato com os dirigentes do centro e com os doutrinadores de duas “mediúnicas”,

tornou-se viável a oportunidade de participar de duas sessões da RIME e uma da

Educação Mediúnica. Os dirigentes das reuniões de antemão destacaram que a

participação do autor em apenas uma seria suficiente.

Graças à riqueza desses momentos para os objetivos deste trabalho, faz-se

necessário que elas sejam descritas e esmiuçadas em seus pormenores a fim de fornecer

ao leitor uma visão minimamente abrangente do contexto, da atmosfera, da dinâmica e

das nuances do trabalho como um todo do grupo ali presente, que está intrinsecamente

ligada à experiência daqueles que foram entrevistados.

Devido à reduzida quantidade de sessões nas quais se teve autorização para

participar se comparado ao número de oportunidades a que se teve semelhante acesso

nos demais grupos, tentou-se ainda um contato posterior ao término do trabalho de

campo com os dirigentes das reuniões mediúnicas do CEGM para sondar a

possibilidade de novo acesso do pesquisador a estas, levando em conta o

enriquecimento do trabalho.

Entretanto, infelizmente, apesar do aceite de um dos dirigentes (Rogério), os

dias e horários das “mediúnicas” coincidiam com os de outro campo, além, claro, do

atraso de mais ou menos dois meses decorrente de um incêndio ocorrido em um dos

campos, fato que acabou forçando a imersão do autor nos outros dois campos

108
simultaneamente, dificultando, assim, sua disponibilidade para retornar ao CEGM,

razão pela qual acabou não se tentando contato com os demais dirigentes.

Segundo o Diretor Doutrinário da instituição, responsável pela Reunião

Mediúnica de Desobsessão, as duas reuniões às quais se teve acesso lhe parecem mais

adequadas desde que sua tônica seria mais suportável e menos incômoda do que à

daquela. No entanto, ao contrário do indicado por este, somente uma pequena e

passageira dose de temor foi experimentada pelo autor.

Além disso, As RIME e a Educação Mediúnica observadas, apesar do

caráter introdutório que delas se deveria esperar em razão de seus próprios nomes, não

constituíam um espaço apenas para médiuns iniciantes – embora alguns destes também

se fizessem presentes – e tampouco o tom “desobsessivo” se fizeram nelas ausentes.

As declarações dos dirigentes destas também corroboram com semelhante

impressão obtida nas reuniões observadas. Há ao invés disso, segundo um deles, uma

decisão pelo caráter instrutivo destas por parte dos líderes do CEGM, que pode ser

interpretado mais como um recurso preventivo a mais contra as eventuais fetichizações

e o culto à personalidade dos médiuns mais experientes caso se fizesse uma distinção

muito acentuada entre reuniões com médiuns “avançados” e as com os iniciantes.

A maioria dos médiuns entrevistados, inclusive, conta com um currículo de

longa e significativa trajetória nesse tipo de trabalho e participaram de uma das duas

reuniões, com exceção de Zíbia, que apesar de ter facilitado nosso acesso, não pôde

estar presente no dia específico da observação.

A chegada do autor nas reuniões aparenta ter sido sentida com um misto de

receio e curiosidade da parte de ambos os grupos, talvez em função justamente de

algum resquício de memória coletiva da “caça” aos espíritas aludido por Maraldi

(2011), que por sua vez acabou tendo como porta-voz seu líder, o doutrinador.

109
A tensão foi tamanha, que um destes, Miranda, chegou inclusive a inquirir o

autor se o trabalho se tratava apenas de uma dissertação ou de uma tese, orgulhando-se

de que seu trabalho de mestrado fora deste tipo e não daquele. Mesmo após esse

esclarecimento e depois de o pesquisador ter se apresentado a ele como profissional

com pós-graduação em curso, este o apresentou como “estudante de Psicologia” ao

resto do grupo.

O outro dirigente, Rogério, responsável pela Educação Mediúnica, quando

inquirido quanto à possibilidade de gravar a sessão, propôs que todos votassem, de

modo que o parecer foi negativo para a maioria. Puderam ser gravadas as outras duas

mediúnicas, isto é, da RIME, sob a condição colocada por Miranda de que estas não

fossem divulgadas e posteriormente apagadas.

Nesse ínterim, antes de tratar das reuniões propriamente ditas, é necessário

que se distinga cada uma das “personagens” nelas envolvidas. Além dos médiuns de

incorporação, que junto dos doutrinadores são os elementos indispensáveis para que

ocorra uma mediúnica, há os médiuns de passistas e de “vibração”, responsáveis,

respectivamente, pelos passes nos médiuns e por supostamente manter a “frequência

energética” da reunião, devendo permanecer com pensamento “elevado”, isto é,

“positivo”, e ainda a categoria dos que acreditam psicografar, embora esta atividade seja

incentivada e pareça ocorrer apenas nos casos dos que estão nos primórdios do

desenvolvimento ou que não possuem ainda suficiente confiança na “comunicação” ou

de que estão incorporados.

Um desses personagens, entretanto, merece destaque por conta de suas

semelhanças e diferenças com a figura do doutrinador, a saber, o dialoguista ou

dialogista. Este elemento, cujas fronteiras com aquele não são delimitadas igualmente

ou mesmo percebidas por todos, possui função muito próxima, talvez daí advindo a

110
origem desta confusão. Apesar de se poder optar por não distingui-los, esta hipótese

parece pouco frutífera diante de certos acontecimentos observados.

Em geral, ele procede de modo exatamente igual àquele, isto é, doutrinando

– o que consiste em acolher, escutar, conversar, persuadir e, de certo modo, converter o

que este acredita ser um espírito sofredor incorporado no médium, fazendo-o de acordo

com sua intuição, empatia, conhecimentos doutrinários e experiência. Esse processo

depende, é claro, da própria personalidade do sujeito em questão, o que é percebido por

Rogério como um “estilo”.

É necessariamente no que se refere ao estilo que as duas personagens

supracitadas diferem de modo significativo. O doutrinador é efetivamente o dirigente da

atividade, a figura de autoridade e de poder da reunião, à qual até mesmo o dialogista

parece obedecer, e essa relação não abrange apenas este e os ditos espíritos, mas, como

seria de se esperar, os médiuns também.

Em entrevista com Rogério, pôde-se notar inclusive que entre doutrinador e

dialoguista há uma relação próxima à de professor e aluno, quando este referiu que

aprendeu com outro colega doutrinador mais experiente. Assim, ser dialogista aparenta

ser uma etapa no treino e na “carreira” de um futuro doutrinador.

Se levarmos em conta o episódio de “tensão” anteriormente mencionado

com Miranda, que poderia ser encarado como alguma sorte de afronta à figura do

pesquisador, tal hipótese ganha ainda mais força, principalmente se considerado o

objeto da “intriga” – a aparente disputa por maior patamar de autoridade no que se

refere ao discurso científico e o lapso relacionado à titulação acadêmica. O fato de as

sessões espíritas serem vistas como “experimentos”, como referido por Rogério, parece

ser mais uma evidência.

111
Em decorrência disso, no que concerne à doutrinação, este em geral tende a

apresentar um estilo mais preciso, mais incisivo e seguro graças à maior experiência,

mas, às vezes, no que tange à relação com os médiuns e dialogistas, também sisudo e

firme em demasia. Os dialoguistas, ao contrário, pareceram muito mais pacíficos e

ternos, mostrando-se mais compreensivos, mais abertos ao diálogo com os demais

participantes e supostos espíritos.

Apesar de a ausência de censura ser uma premissa da relação doutrinador-

médium (e dialogista-médium), dois fatos parecem indicar que as tensões ocorridas

nesse âmbito não são tão incomuns como gostariam seus participantes. Três

acontecimentos parecem ser ilustrativos nesse sentido:

1) Tensão entre doutrinador e médium: Um dos médiuns, recém-convertido ao

espiritismo e ex-umbandista, em reunião anterior à RIME observada, ao ter

pretensamente incorporado, teria feito sua “comunicação” em um dialeto alegadamente

“africano”, o que impediu que Miranda com ele interagisse. O doutrinador teria

orientado, ao final, que o médium buscasse “captar” o pensamento dele ao invés do que

fizera, o que o incomodou. Na sessão seguinte, isto é, na RIME em que estivemos

presentes, esse médium mostrou-se nitidamente avesso e com reservas com relação

àquele, acusando-o de não entendê-lo e evitando pronunciar-se em sua presença, tendo

inclusive informado ao dialogista que passaria somente a “vibrar” a partir de então. O

doutrinador, ao dirigir-se ao médium, mostrou-se um pouco ressentido deste ter

procurado seu colega e não ele próprio32.

2) Tensão entre dialogista e médium: Apesar da relação entre o dialogista e os médiuns

ser na maioria das vezes mais harmoniosa que a do doutrinador com ambos, pequenos

conflitos também podem comparecer entre eles na mediúnica, como foi o caso do

32
Isto também pode ser indicativo de algum conflito em potencial entre o doutrinador e o dialogista.

112
dialogista da RIME, que na reunião anterior à primeira ocasião em que esta pôde ser

observada, teria se referido à “obrigatoriedade” dos médiuns em comparecer, o que fora

contestado por uma das médiuns. Na RIME em que observamos, este corrigiu seu

posicionamento anterior, dizendo que quis se referir ao compromisso firmado. Não

coincidentemente, talvez, a médium faltou à reunião.

3) Tensão entre doutrinador e dialoguista: Antes da Educação Mediúnica ter início,

após o pesquisador ter mencionado os grupos religiosos a serem por ele pesquisados a

Rogério e ao dialogista, este demonstrou seu interesse na pesquisa, tendo referido que

teria conhecido Tia Neiva do Vale do Amanhecer em certa ocasião há muito tempo

atrás. Rogério falou, então, de sua experiência ao visitar um grupo da religião referida

em decorrência de uma doença, e, como de costume, fez críticas a esta, chamando-a de

“mediunismo” e declarando ser ela desprovida de doutrina. O dialogista manifestou-se

de modo a discordar dele, instaurando-se um sutil embate entre ambos, o que se

encerrou com uma leve expressão de mal-estar da parte do dialogista. Posteriormente,

em entrevista com Rogério, este se mostraria muito mais satisfeito com o novo

dialoguista que passou a lhe acompanhar, pois, segundo ele, o antigo seria

excessivamente “místico”.

No que tange às mediúnicas, a Educação Mediúnica ocorre semanalmente,

às quintas-feiras, das 19 horas e 30 minutos até por volta das 21 horas, assim como a

RIME, que acontece nas quartas-feiras. Os trabalhadores envolvidos nas mediúnicas

observadas são extremamente pontuais e cautelosos no que concerne à observância do

horário, a ponto de ser costume da maioria a chegada ao CEGM com certa antecedência.

O autor, ao ser autorizado a participar, fora também orientado nesse sentido.

A sala de reunião em que as “mediúnicas” ocorrem possui área apenas um

pouco mais ampla que o necessário para a circulação dos trabalhadores ao redor da

113
“mesa branca”, de formato retangular localizada no centro desta. Conta com um

pequeno jardim de inverno, alguns poucos quadros com belas imagens e frases, ar-

condicionado, quadro branco para anotações, iluminação especial, flanelógrafo e som.

Sobre a mesa, além de canetas, lápis e papel para aqueles que supostamente

psicografam, constam alguns livros e cadernos, que contém os nomes daqueles que

procuram o CEGM por conta do GAME, da Conversa Fraterna e da Evangelhoterapia

O doutrinador senta-se nas extremidade da mesa, enquanto o dialoguista fica

na extremidade oposta ou quase oposta à do doutrinador e os médiuns nas demais

cadeiras. As reuniões observadas começam com o repasse de informes de caráter mais

rotineiro e trivial, passando em seguida para um momento que envolve a apresentação

por um grupo ou indivíduo e discussão de temas por todos de algum tema da extensa

literatura de autores espíritas acerca do que os espíritas acreditam ser, por exemplo,

relatos autênticos de casos de espíritos desencarnados que “obsediavam” médiuns,

doutrinadores e “pacientes”, ou assuntos relacionados à experiência de outros médiuns e

doutrinadores considerados importantes.

Após esse momento inicial, os livros são retirados e a luz branca é apagada,

a de cor esverdeada é acesa e músicas instrumentais leves e relaxantes são executadas

em volume médio. O doutrinador, após solicitar que todos fechem os olhos e deixem

seus problemas “mundanos” de lado, profere algumas palavras de gratidão a Deus e aos

seus mentores espirituais, lembrando os presentes acerca do princípio da caridade e dos

objetivos pelos quais se encontram reunidos, isto é, de auxiliar os espíritos sofredores.

Apela-se ainda para a imaginação dos médiuns acerca dos espíritos e das energias que

ali supostamente se encontrariam, e, após certo período de silêncio, as primeiras

“incorporações” ocorrem.

114
O dialogista ou o doutrinador circundam a mesa e se aproximam dos

médiuns para atender aqueles que estariam com “espíritos”. Antes de fazerem sua dita

comunicação, estes exibem alguns sinais que são interpretados como incorporação,

como sussurros, gemidos, grunhidos, choro e maior movimentação, por exemplo. Em

seguida, o doutrinador ou o dialogista os abordam, ouvindo-os, perguntando sobre sua

condição e indagando-os acerca de sua história.

Comunicam aos ditos espíritos então que estes “desencarnaram”, que não

estão mais na “carne” ou que não têm mais um corpo físico, às vezes inclusive falando

de princípios do espiritismo dissuadindo-os que estão e deverão continuar sendo

auxiliados e cuidados pelas emergências e hospitais espirituais e pelos ditos espíritos de

luz, inclusive por médicos, psicólogos e psiquiatras do “plano espiritual”, sendo

orientados a aceitar o “amor de Jesus” e uma pretensa medicação, a descansar, repousar

ou dormir no fim da comunicação. Por último, o próprio doutrinador, dialogista ou

ainda o passista dá um passe no médium. Os médiuns são orientados a dialogarem

interiormente com os “coleguinhas” enquanto não podem transmitir suas mensagens

pelo fato de outros estarem sendo doutrinados no momento.

Os supostos espíritos de maior frequência nas reuniões observadas foram os

chamados suicidas, cujos métodos para pôr fim à vida teriam sido os mais variados. A

regra geral é que estes e outros parecem não ter consciência de que só morreram

“fisicamente”, mas não “espiritualmente”. Em termos de acontecimentos mais

significativos, destacam-se as alegadas incorporações de espíritos de algum modo

relacionados a datas marcantes ou a catástrofes e os casos de oponentes religiosos do

espiritismo mencionados por Rogério e, mais importante, a incorporação de um espírito

ligado à uma das pessoas conhecidas do Grão, que em sua suposta vida pregressa, na

115
qual teria sido uma cafetina, obrigara muitas mulheres de seu bordel a fazer abortos,

razão pela qual estaria passando por problemas financeiros.

Encerram-se, então, as incorporações com uma prática de visualização

assim como aquela anterior às incorporações e com uma oração. Há geralmente um

tempo para se dialogar sobre as pretensas mensagens, visões e incorporações bem como

as sensações, sentimentos, pensamentos ocorridos sobre as quais os presentes tecem

comentários, compartilhando suas ideias e levantando suas hipóteses, teorias e

interpretações juntos, cada qual com sua contribuição, de modo a constituir uma rede de

sentido para a construção de uma narrativa coerente e plausível com suas experiências

como um todo – desde uma matéria de um noticiário assistido ou lido por alguém, uma

sensação incômoda ao longo do dia, até temas relacionados aos dramas dos que buscam

o Centro – além de contar com o reconhecimento de nexos e de relações entre eventos,

destinados por sua vez à articulação entre eles e a uma acreditada comprovação do que

fora ali vivenciado.

116
CAPÍTULO 6

UMBANDA

"A doença é malefício. Se a doença é de Deus, malefício é a retirada.”

(Preta-velha Mãe Maria)

6.1. Estudos atuais sobre a identidade e a religião umbandistas no Brasil.

É fundamental para a cosmovisão da Umbanda

“a relação entre o mundo sobrenatural e o natural. Os umbandistas creem que há planos de

existência de uma mesma realidade espiritual, ou seja, há o plano onde habitam os Orixás e

ancestrais e o plano onde habitam os seres humanos. (...) Todos os rituais serviam e servem

até hoje para ajustar essa relação natural-sobrenatural e possibilitar uma conexão entre os

homens e os “deuses”. Trata-se, portanto, de uma religião mediúnica, já que seus adeptos

servem de veículo para a manifestação das entidades (...). Há a crença em um ser divino

supremo (“Deus”). Abaixo dessa divindade há os Orixás e abaixo destes os Ancestrais. Os

Orixás não incorporam nos médiuns, apenas os Ancestrais, conhecidos por Caboclos,

Pretos-Velhos, Crianças, Exus, Boaideiros, Marinheiros, Baianos, Ciganos. Há diferentes

interpretações, mas a grande parcela dos terreiros umbandistas é consensual no que se 7

refere às sete linhas: a linha de Santo ou de Oxalá (dirigida por N. S. Jesus Cristo), a linha

de Yemanjá (dirigida pela Virgem Maria, Nossa Senhora), a linha das crianças ou a linha

do Oriente (dirigida por S. João Batista), a linha de Oxossi (dirigida por S. Sebastião), a

linha de Xangô (dirigida por S. Jerônimo), a linha de Ogum (dirigida por S. Jorge) e a linha

de S. Cipriano (África, dirigida por S. Cipriano)” (JORGE, 2013, p. 156 e 157, grifo nosso)

Os estudos atuais sobre a Umbanda provêm fundamentalmente da

Antropologia e da Sociologia e por conta disso o principal método utilizado nestas

explorações é o etnográfico. Além dos trabalhos já revisados, cujo maior foco é dado

sobre os médiuns umbandistas, há contribuições acerca de outras figuras, como o Ogã

(ALMEIDA, 2015), as Mães de Santo (MADEIRA, 2009; SILVA, 2009) e as Pombas-

gira e Exus e a subalternidade, a transgressão e o gênero (LAGES, 2012; BARROS,

117
2013; NASCIMENTO et al, 2001; LAGES e D’ÁVILA, 2007), bem como sobre outros

elementos, como a cosmovisão e a identidade plural umbandistas (JORGE, 2013), a

aproximação e o antagonismo desta com o Neopentecostalismo (SILVA, 2007), o papel

dos estímulos somáticos e sensoriais sobre o transe (MORINI, 2007), as mudanças dos

dados demográficos da população em questão (PRANDI, 2004), os pontos riscados e

cantados (PEREIRA, 2012) e a música (BAKKE, 2007). Há, ainda, artigos que têm por

objetivo tratar da questão dos cuidados em saúde voltados para as populações de

religiões afro-brasileiras, embora estes sejam um tanto menos expressivos. (MELLO,

2013; ALVES e SEMINOTI, 2009; COSTA-ROSA, 2008; LAGES, 2012)

No Ceará, entretanto, predomina uma tendência específica da Umbanda, o

chamado Catimbó, que é justamente a adotada pelo terreiro investigado neste estudo. A

despeito de suas principais características serem sua associação com a beberagem da

chamada jurema, bebida de origem indígena feita do preparo da casca ou da raiz da

árvore homônima cujas propriedades psicodélicas hoje se tem evidências

(GRÜNEWALD, 2008) – elemento este que, vale frisar, não mais se faz presente nas

manifestações hodiernas do Catimbó –, a incorporação, juntamente das mais conhecidas

entidades umbandistas, dos chamados Mestres ou Juremeiros, segundo Almeida (2015)

o vértice cujo o “índio e o negro são os lados” (p. 41), e a adoração destes, que são bem-

humorados e com quem a assistência se aconselha; o fato é que sua definição e

delimitação claras consiste num grande desafio diante das mutações sofridas tanto por

este em contato com a Umbanda quanto as da última, que atualmente no estado aparenta

caminhar em direção ao Umbandomblé ou Omolocô. (ALMEIDA, 2015)

118
6.2. Centro Espírita de Umbanda Jesus, Maria e José

O Centro Espírita de Umbanda Jesus, Maria e José (CEUJMJ), mais

conhecido e referido como terreiro da Mãe Clara entre seus Filhos de Santo, médiuns e

demais umbandistas da cidade de Fortaleza, é um dos terreiros mais tradicionais da

cidade de Fortaleza e, segundo referem as yalorixás (Mães de Santo), o mais antigo a

permanecer aberto, funcionando desde o ano de 1956, contando, portanto, com sessenta

anos de atividade, sem que estas jamais tenham cessado.

O nome oficial deste, no entanto, apesar de ser o menos aludido pelos

próprios fiéis, não deixa de revelar um aspecto importante para esta exposição. Para

além do sincretismo e do seu sentido adaptativo usual, observa-se que a alusão à

sagrada família , do ponto de vista do problema de situar o CEUJMJ dentro das “linhas”

da Umbanda, é sinal da influência que tem o catolicismo sobre este e de modo especial

o catolicismo dito popular. Assim, além de devota de Jesus, Maria e José e de Nossa

Senhora da Conceição, Mãe Clara de Oxum é também rezadeira e benzedeira, não

sendo raro também que os Filhos de Santo e mesmo suas líderes frequentem missas.

O chamado Catimbó é identificada como a linha do terreiro em termos de

tradições da Umbanda33, cuja acentuada característica é a profunda conexão com a

terra. Nesse sentido, é típico que, após o cumprimento específico da ocasião ou da

“entidade” com quem se interage, estas e os “catimbozeiros” – modo como alguns dos

frequentadores com evidente sentimento de orgulho gostam de ser chamados – pisem

firmemente e de pés descalços no chão de modo a produzir barulho. “O chão em que

pisamos é abençoado”, disse certa vez Chiquita Preta, entidade de Bárbara, uma das

médiuns entrevistadas.

33
Apesar disso, a Casa parece ser ecumênica, constituindo ponto de encontro de Pais de Santo, médiuns e
umbandistas de outras tradições, bem como do Candomblé, principalmente em suas festas.

119
As atividades são realizadas na residência da própria Mãe de Santo, que se

localiza no bairro São João do Tauape, bairro cujo crescimento se deu principalmente

devido ao intenso fluxo social nas proximidades da Igreja São João Batista. No imóvel,

cujo espaço dedicado aos rituais toma praticamente metade do total, residem também

sua filha, a chamada Mãe Pequena do terreiro, Mãe Graça, além de familiares e Filhos

de Santo.

Apesar de ser Mãe Clara a figura central em termos de hierarquia, de

conhecimento e dos chamados mistérios da Umbanda, em função das limitações

decorrentes de sua idade, hoje quem se acha à frente da maior parte das decisões de

caráter prático e mesmo das Giras e demais trabalhos é Mãe Graça de Iansã, que apesar

disso demonstra claro respeito e atende sempre às orientações de sua mãe quando a

consulta. Como já se pode começar a notar e observará ao longo deste capítulo, a

presença feminina no Centro é predominante assim como significativamente mais

marcante e influente.

Atualmente, o terreiro conta com pouco mais de vinte médiuns, que

constituem o principal contingente de adeptos da casa. Eles estimam, no entanto, que o

local principal onde celebram seus rituais e suas festas já chegou a abrigar bem mais

que cem pessoas – não necessariamente trabalhadoras do CEUJMJ.

Além dos médiuns, há ainda o Ogã e a Cambone, cujas responsabilidades

comuns, além da de não incorporarem, são a de “segurar” as Giras, os médiuns, a

assistência e o Centro como um todo – segundo crêem seus membros – cabendo àquele

ainda a função de energizar a Gira com o toque dos atabaques a esta a de servir os

médiuns e suas alegadas entidades com bebidas, fumo e adereços e de “organizar” a

Gira ou as festas, chamando atenção dos médiuns e das pessoas da assistência

eventualmente dispersos e para o horário, bem como de intervir nos casos em que

120
alguma entidade esteja “demandando”, isto é, trazendo algum “negativo” para alguém,

solicitando que o médium “suba” para realizar uma limpeza, por exemplo, e trazer outra

entidade.

Observa-se, porém, que frequentadores mais assíduos, umbandistas de outros

terreiros, outros Filhos de Santo vinculados à Cambonagem e até mesmo os próprios

médiuns, se não estão “trabalhando” – isto é, incorporados – ou quando são iniciantes,

podem executar funções auxiliares às da Cambone e do Ogã, como no caso deste, por

exemplo, levar bebidas, adereços e cachimbo ou a ajudar um médium no momento de

sua desincorporação e, no daquele, tocar as maracas34 e mesmo o tambor (se forem

aprendizes ou tocarem em outras casas).

No que concerne ao espaço físico total do CEUJMJ, têm-se duas entradas:

uma para a casa propriamente dita, espaço mais reservado aos seus moradores, no qual

por ele se transita ainda que com menor frequência, e outra para o terreiro. Apesar dessa

divisão, que conforme já se pôde perceber não é demasiado rígida, nota-se que imagens

de entidades, santos e orixás bem como diversos elementos ligados a estes e à fé afro-

brasileira de modo geral podem ser encontrados espalhados pela casa, embora não de

modo aleatório, mas com um sentido específico. Respira-se “axé” e Umbanda na

totalidade do espaço, por fim.

Nesse sentido, a título de exemplo, logo na entrada do terreiro há diversos

elementos ligados a Exu, que, como se esclarecerá mais adiante, é Orixá de proteção e

de limpeza segundo a crença dos adeptos, sendo um deles uma cadeira com um símbolo

típico desse Santo e um compartimento fechado por um portão de cor rubra, como lhe é

característico, cujo conteúdo parece ser acessível somente aos religiosos.

34
Instrumentos artesanais auxiliares ao tambor.

121
Logo em seguida, se sucede uma espécie de sala – lugar onde foram

realizadas as entrevistas com os médiuns, Combone e Ogã – com sofá, televisão, som,

banheiro e grande quantidade de imagens em sua maioria de tamanho reduzido bem

como do que se presume serem presentes ou oferendas feitas pelos visitantes cujas

necessidades ou objetivos foram atingidas graças ao trabalho feito por uma entidade ou

pela Mãe de Santo. Um banner grande pendurado próximo do teto com uma foto de

Mãe Graça de vestido vermelho, cachimbo e olhos quase fechados e uma inscrição

saudando a pomba-gira Maria Padilha, que, em termos mais adequados, é uma das

entidades que os umbandistas do CEUJMJ acreditam estar ligada à “coroa” da Mãe de

Santo.

Em seguida, numa espécie de corredor que antecede o terreiro propriamente

dito, pode-se observar à esquerda, logo depois do bebedouro, um pequeno altar com

duas imagens principais, a de um Boiadeiro35, com o berrante e seu chapéu de couro, e a

de uma criança, próximo da qual se vê alguns doces e um cofre. Trata-se da Tapúia, Erê

indígena também ligada à coroa de Mãe Graça. À direita há um quarto utilizado pelos

Filhos de Santo, em especial pelos médiuns, para trocarem suas roupas e vestimentas –

incorporados ou não – e guardarem seus pertences. Em dias de festa ou de muitos

frequentadores, é comum encontrar pessoas nesse corredor.

No que se refere à configuração física do salão, isto é, o terreiro de fato,

observam-se elementos fixos como um elevado onde ficam os tambores e o Ogã, à

direita da entrada, onde se tem a marca de uma ferradura no chão. É frequente ainda que

a assistência – isto é, os frequentadores não adeptos – fique de pé desde a região

próxima da entrada e do Ogã até próximo do altar principal, o Congá, que se localiza na

35
As supostas entidades representadas pela estatueta em questão não foram observadas nas Giras, talvez
por seu papel presumidamente menor para o Centro, talvez em função do período do ano em que o
trabalho se deu.

122
parede oposta aos tambores, na frente dos quais se encontra um banco onde convidados

ou pessoas da assistência podem se sentar.

No ponto mais alto do Congá temos uma imagem de Jesus Cristo, e logo

abaixo deste uma da sagrada família seguida por de outros santos católicos, como São

Francisco de Assis e Santo Antônio, que por sua vez ficam acima das entidades da

Umbanda, algumas das quais são retiradas ou colocadas de acordo com a ocasião. O

Caboclo Rei dos Índios, que é chamado e louvado como “dono” do CEUJMJ, bem

como o Caboclo Girassol e o Quebra-Barreiras, todas entidades que aparentemente vêm

na “coroa” de Mãe Clara, são algumas das imagens mais fixas; bem como Iemanjá, que

apesar de estar no ponto mais baixo do altar, possui um compartimento com água do

mar e iluminação própria.

A corrente se forma sempre em justaposição à assistência, ficando mais

próxima do centro. O Congá fica entre uma pequena lavanderia – através da qual se têm

acesso à cozinha da área residencial – onde novamente se fazem presentes de ícones de

exus e pombas-gira; e um espaço mais reservado onde se tem outro altar com muitas

imagens, desta vez dos Mestres, também conhecidos como Juremeiros, apresentados por

sua vez de forma resumida como “Caboclos que bebem”, cujas entidades mais

significativas são Simbamba, associado à linha de mar e incorporado por Mãe Clara,

Nêgo Chico Feiticeiro, entidade de grande poder de influência na Casa ligado à Mãe

Graça, bem como o também prestigiado Zé Pilintra.

Aqui ficam também algumas imagens de Pretos-velhos, bem como pipoca e

canjica. Dentre elas, a mais importante parece ser a que se encontra ao lado da

representação de Pai João, que simboliza Mãe Maria, entidade que pertencia

inicialmente à Mãe Clara e foi “passada” para a coroa de Mãe Graça quando esta

começou a trabalhar.

123
Há entre o Congá e o espaço desse altar secundário uma bancada próxima da

qual geralmente ficam posicionados a Cambone e seus auxiliares juntos de algumas

guias e acessórios como chapéus dos Mestres e isopor para armazenar a bebida que

estes consomem e dividem com a assistência, além de urnas com as velas das entidades,

referentes às Obrigações e para os chamados anjos da guarda dos Filhos de Santo.

O espaço não é demasiado amplo e a simplicidade do local, no entanto, não

impedem nem a presença quase constante dos médiuns, nem que no próprio local sejam

celebradas festas, situações em que, além da assistência, se conta com um grande

número de convidados e amigos das Mães de Santo; pelo contrário: parece ser

precisamente isso – somado obviamente às crenças ali compartilhadas – o que torna a

atmosfera receptiva e amistosa, que por sua vez enfatiza a grande intimidade que têm os

religiosos.

Isso se relaciona, por sua vez, com um dos principais aspectos no que diz

respeito à estrutura organizativa e à configuração da relação de poder talvez não

somente da presente Casa, mas da maior parte dos terreiros de umbanda, a saber, a de

seu acentuado caráter familiar. Tal impressão fica ainda mais evidente caso se tome

como paralelo as outras duas instituições religiosas analisadas neste trabalho.

6.2.1. História do CEUJMJ.

A origem do terreiro se confunde com o início da trajetória de Mãe Clara na

Umbanda, que após sofrer de alguns problemas repentinos de saúde como dores de

cabeça e vômitos com sangue e de se submeter à diversos exames incapazes de

identificar sua doença, fora desenganada por inúmeros especialistas, de modo que

acabou buscando a ajuda de João Cobra36, Pai de Santo que por sua vez teria operado

36
Alcunha do indivíduo em questão. Não teve seu nome alterado.

124
através de seu preto-velho o que a atual Mãe de Santo considera ter sido uma cura,

ouvindo dele que era médium e que, por isso, deveria trabalhar. Apesar disso, nessa

época era ainda católica e ainda não acreditava ser capaz de fazê-lo, ao que Seu João

reagira dizendo que iniciaria a crer, pois ainda haveria de vir ela própria a realizar

inúmeras curas.

A doença teria sido fruto de um “trabalho” pretensamente realizado no

estado de Amazonas por uma mulher que certa vez acolhera, sendo revertido graças à

indicação da “água da folha” do Urucú. Um mês depois, indo ao hospital, segundo

relembra Mãe Clara, os exames, que não apresentavam mais nenhum problema, viriam

a intrigar médicos que ouviram sua história.

Três anos depois do ocorrido, a jovem Clara viria a registrar seu Centro,

cujas atividades ocorriam na casa efetivamente, que não dispunha do mesmo espaço de

hoje. Precisou, porém, antes ter realizado testes em que suas entidades eram postas à

prova – relacionados ao fogo, à água, ao dendê e à cura, segundo sua recordação – para

conseguir o registro. Com a fundação de seu terreiro, contou com a ajuda de seu marido,

hoje já falecido.

O conhecimento e a experiência como rezadeira e a crença no seu “dom”

fizeram com que iniciasse logo de início a trabalhar justamente com aquilo que operou

tão significativa mudança em sua própria vida, as supostas “curas” e a crença na

possibilidade de ajudar outras pessoas, passando a dedicar sua saúde à recuperação da

saúde daqueles que buscavam o terreiro – o que permanece até os tempos atuais.

No entanto, o auxílio a que se prestou e se presta até hoje Mãe Clara não se

limita ao âmbito das referidas curas, mas abrange também a acolhida de várias pessoas

necessitadas em seu lar, inclusive dos próprios desenvolventes, como Ismael, médium

entrevistado que reside atualmente com suas Mães de Santo, e Maria José, também

125
entrevistada, que ao passar por dificuldades juntamente de seus filhos e netos também já

recorreu ao Centro.

A religiosa se recorda da dificuldade que as perseguições policiais

constituíam para a prática da Umbanda, embora jamais tenha sofrido de forma mais

séria com estas. Com a chegada progressiva de pessoas para desenvolver sua

mediunidade, o contingente do terreiro foi crescendo e se fortalecendo, tornando, assim,

tais dificuldades ainda menores.

Desse modo, além da ajuda do próprio marido e dos outros médiuns, muitos

dos quais já não trabalham mais no Centro, uma importante conquista foi a conexão

descoberta entre os tambores e um dos filhos do casal, hoje Ogã, que por sua vez

começou a tocar desde os sete anos de idade, tendo sido ensinado pelo Pai. Outras

figuras relevantes na história do CEUJMJ nesse sentido são uma atual Mãe de Santo e a

da atual Cambone, que já trabalham com Mãe Clara há 35 anos.

Nada se comparou, entretanto, à importância assumida ao longo dos anos por

Graça, que alega ouvir e ter visões de “desencarnados” desde a infância, além de ter

intuições e de, como a mãe, ter pressentimentos. Mãe Clara associa, inclusive, a

ampliação do espaço do terreiro para os moldes atuais com o início do desenvolvimento

da filha.

Aos doze anos, ela começou a apresentar dores de cabeça e outras questões

relativas à saúde bem próximas da descrita pela própria Mãe Clara, buscando ajuda

espiritual no Centro, ambiente com o qual estava acostumada. Já aqui se podem

perceber elementos curiosamente coincidentes, como a razão que as levou a buscar

ajuda e o modo como contam sua história. Essa impressão ficará mais acentuada nos

próximos capítulos deste trabalho, quando então a consideraremos minuciosamente.

126
Retornando à trajetória de Graça, a Mãe de Santo relembra que, de início,

resistira ao conselho do guia da mãe, Caboclo Tupinambá, de que precisava entrar para

a religião e desenvolver. Aos treze anos, porém, a ideia já lhe era tragável, iniciando seu

desenvolvimento e, pouco tempo depois, aos catorze anos, após um ano e dois meses

desenvolvendo, recebeu pela primeira vez a Cabocla Dezoito Metros.

No entanto, Mãe Graça se recorda de ter vergonha das amigas e que, apesar

de acreditar em tudo, a curiosidade da adolescência lhe fizera ir a festas e inclusive

quase ter se convertido ao protestantismo. No batizado, porém, lembra de ter saído

correndo de volta para casa, pedindo perdão à Deus e às entidades, retornando a praticar

sua religião.

Segundo o conhecimento umbandista, porém, apesar de ser Mãe Clara sua

Mãe de Santo e quem a desenvolveu desde o início, esta não poderia realizar as

Obrigações de cabeça da própria filha, acredita-se que por conta das “energias”

diferentes de ambas, sendo necessário então que Mãe Graça viesse a procurar outra

“mão para botar” em sua “cabeça”, isto é, que outro Pai de Santo o fizesse, embora ela

viesse também a ser consagrada Zeladora de Orixá pelo Caboclo Rei dos Índios

posteriormente.

No outro terreiro ao qual se vinculou, Graça conheceu e se casou com um

Irmão de Santo, tendo lá trabalhado por vinte e dois anos, sem que isso impedisse que

esta trabalhasse simultaneamente no outro terreiro e no CEUJMJ. O terreiro do Pai de

Santo referido é relevante para a história do terreiro de Mãe Clara, pois, apesar de ser de

outra tradição, a de Omolocô, em que elementos da Umbanda e do Candomblé se

fundem, parte considerável da educação religiosa da maturidade de Mãe Graça se deu

lá, muitos médiuns do Centro também já trabalharam lá, como Margarida e Mazé, e

muitos são os visitantes e convidados que possuem algum tipo de ligação com ele.

127
No entanto, o cônjuge de Mãe Graça abandonou sua prática religiosa e

impôs a esta que deveria escolher entre ele e a Umbanda, ao que resistiu, mas acabou

optando por deixar suas crenças devido ao sentimento e à família que se encontrava em

vias de constituição. Tratava-se da segunda saída de Graça da Umbanda.

Fora chamada pelo Caboclo Tupinambá para voltar a trabalhar, negando em

função do sentimento pelo marido, do qual não muito tempo depois viria a separar-se,

com uma filha, além de grávida, desempregada e, segundo ela, com depressão, evento

este que marcou de modo especial sua vida.

Retornou para casa e, assim, após pedir o segundo perdão à Deus e às

entidades, regressou também para sua religião, à qual se dedica inteiramente e com

bastante vigor e energia, sendo profundamente respeitada e admirada por seus Filhos de

Santo, militando ativamente também à favor da causa do chamado Povo de Santo

juntamente de líderes de outros terreiros.

Isso não implica, porém, de modo algum que esta tenha superado sua mãe.

Parece apenas estar mais à frente do CEUJMJ e de sua rotina, atividades estas que

requerem bastante energia, algo que Mãe Clara já não mais possui como antes. A

matriarca, entretanto, não deixou de ser referência e é profundamente querida por todos

os “Filhos”, que assim como Mãe Graça, até hoje aprendem sobre a Umbanda com ela.

A Mãe de Santo leva uma velhice com qualidade de vida, sendo respeitada e buscada

sempre em função de sua sapiência e de sua fama por ajudar pessoas com o que muitos

vêem como sua “mão de cura”, algo que constitui motivo de orgulho para ela.

6.2.2 Giras e outras atividades.

As atividades principais são as chamadas Giras, que são divididas em duas

modalidades: aquelas em que se “bate” para determinadas linhas de entidades, como

128
Caboclo, Preto-velho, Exu, etc.37, e as chamadas Giras de Cura, cujas entidades

responsáveis são os Pretos-velhos. As festas possuem frequência mensal e suas

entidades variam igualmente, sendo, portanto, outro evento importante. Há ainda os

trabalhos particulares, que se aproximam do trabalho de Mãe Clara como curandeira.

As Giras ocorrem geralmente nas quartas-feiras, com aproximadamente

quatro horas de duração, iniciando às 19 horas e findando, assim, por volta das 23. As

Giras podem ser remanejadas ou adiadas com relativa flexibilidade diante dos eventuais

feriados ou das condições próprias do Centro, mas, regra geral, ocorrem com frequência

semanal.

Quanto ao horário, na realidade, é comum que quase todos os médiuns

estejam desincorporados às 22 horas ou próximo desse horário para que depois sejam

servidos – pelos próprios médiuns – os quitutes, cuja culinária possui íntima relação

com a entidade do dia; razão pela qual, somado ao fato de constituir oportunidade ímpar

para socialização, esse momento é significativo apesar de seu maior despojamento,

sendo compreendido, portanto, como parte da Gira.

Apesar de cada Gira possuir uma linha principal, cujas entidades de modo

geral são as primeiras a se fazerem presentes, é planejado e esperado que os médiuns

incorporem juntos pelo menos uma vez mais entidades de uma mesma linha, geralmente

Mestres encabeçados por “Nego Chico”, como é chamado afetuosamente a entidade de

Mãe Graça. Às vezes, os médiuns podem incorporar outras entidades – um Erê, por

exemplo – ainda mais vezes, embora três tenha sido o limite máximo observado.

Ocorre, por vezes, que seja necessária a saída de alguns médiuns do salão

para trocarem suas roupas, que por sua vez são de cores sempre associadas às entidades

37
Há ainda Giras de outras linhas de entidades, como as de Ogum e as de Mar. No entanto, parece que as
Giras principais de outras linhas ocorrem sempre quando se aproxima alguma festa a elas relacionadas,
como, por exemplo, a de São Cosme e São Damião, no que se refere aos Erês, e a de Iemanjá, orixá à qual
está ligada a linha de mar.

129
da Gira do dia em questão. Isso, contudo, pode variar, pois nem todas as entidades

requerem que seus “cavalos” troquem suas vestimentas, e assim um simples adereço

acrescentado com o auxílio e o serviço da Cambone e de suas auxiliares se faça

suficiente, embora isso pareça mais comum aos médiuns sem tanto tempo de trabalho.

De forma geral, e em especial no que diz respeito ao início e ao fim de

qualquer Gira, uma série bastante ampla e complexa de pequenos recursos ritualísticos

entram em cena, desde defumações, após as quais cada um dá, de cada vez, uma volta

completa com o corpo; distribuição de alfazema para todos, que espalham a essência em

suas cabeças, braços e costas; períodos em que todos permanecem em silêncio; até as

séries de cânticos para os Orixás, os Santos e as entidades do dia acompanhadas de

aplausos e de sutis danças cujo ritmo é dado pelo toque do Ogã.

É comum que a Mãe de Santo se dirija às entradas e às saídas com chocalhos

ou defumando tais locais bem como que esta se aproxime de imagens e pontos

específicos e importantes do salão e do terreiro como um todo enquanto canta junto de

todos os presentes. Algumas vezes, os médiuns acompanham os passos e as ações desta,

como deitar-se de bruços no chão, ajoelhar-se, dançar, girar ou se retirar do salão

enquanto em outras apenas sua líder o faz.

A própria decoração do espaço também é parte indispensável desses recursos

que, na cosmovisão umbandista, auxiliam no processo levado à cabo pelos médiuns de

concentração e de mentalização dos guias e de suas características, como as matas no

caso dos Caboclos, por exemplo. Tais recursos, assim como tantos outros, se articulam

de forma complexa, variando em sua ordenação e em sua combinação de acordo com os

dias. Tudo isso parece funcionar como uma espécie de aquecimento para os médiuns.

Às vezes, pode-se inclusive ter a impressão de que são organizados de modo

completamente arbitrário e desprovido de significado, no entanto, parece-nos mais

130
plausível apostar na limitação inevitável de nosso tempo de observação do campo e, por

conseguinte, de nosso conhecimento, do que insistir que o que não pudemos entender é

necessariamente sem sentido. Isso vale não apenas para as Giras, mas também para

outras atividades.

Outro ponto comum é o fato de que sempre a primeira a supostamente

incorporar é a Mãe de Santo responsável pela Gira do dia, que por sua vez é seguida de

aplausos e cumprimentos, e, somente após ela os outros médiuns podem fazê-lo, o que

acontece geralmente de acordo com o tempo de experiência de cada um – e também

com a qualidade desta, diga-se de passagem; havendo, portanto, uma espécie de

hierarquia.

Nesse sentido, parece uma norma que, assim como a Mãe de Santo seja a

primeira a incorporar, também o seu alegado guia seja o primeiro a ser cumprimentado

não somente pelos guias dos demais médiuns antes de o fazerem entre si e com relação

aos convidados, aos outros Filhos de Santo à assistência, mas também pelas demais

pessoas presentes. Os cumprimentos das entidades variam a depender da linha, no

entanto, além da já aludida “pisada” firme no chão ao final, é frequente que se beije o

dorso das mãos, toquem-se os ombros direitos com direitos e os esquerdos com

esquerdos.

Entretanto, pelo fato de as entidades das Mães de Santo serem geralmente os

que gozam de maior fama e prestígio, isso não é sentido como um peso. Não é raro

inclusive que as referidas entidades cumprimentem todos da assistência e busquem

alguns para conversar e aconselhar, fazendo com tal prática que estes os conheçam e

procurem com eles conversar posteriormente, aumentando assim sua influência.

Isso se dá desse modo pois se um Pai ou Mãe de Santo da Casa ou

convidado pretensamente incorporar a entidade chamada de Zé Pilintra, por exemplo,

131
um médium que costuma ser seu “cavalo” não pode fazê-lo, tendo então que deixar de

trabalhar ou trabalhar com outro guia, ligado ou não à sua coroa.

Isto por que se pôde observar que, diferentemente dos espíritas kardecistas,

por exemplo, que admitem que o espírito que acreditam ser o de Bezerra de Menezes

pode se manifestar em diferentes centros até mesmo simultaneamente, os Filhos de

Santo do CEUJMJ de modo geral acreditam que, se dois médiuns dizem incorporados

por uma mesma entidade, um deles deve estar mentindo. Como se pode esperar, isso

parece gerar alguns conflitos no meio umbandista.

É igualmente frequente que, ao fim da Gira, todos silenciem e orem juntos

preces como o Pai Nosso, a Ave Maria, o Credo e cantem a oração de São Francisco,

aplaudindo ao final. Além disso, algumas palavras de estímulo e gratidão são proferidas

pela Mãe de Santo, eventos de interesse para a comunidade das religiões afro-brasileiras

são divulgados assim como as datas e indicações necessárias para a assistência.

Também são repassados para os Filhos de Santo os itens para a próxima Obrigação.

As Giras mais frequentes são as de Caboclo, nas quais a decoração do salão

e as vestimentas de todos, com exceção da assistência, são de cor verde. Os médiuns

incorporados em alguns momentos de sua performance se posicionam como se

estivessem mirando com arcos e flechas, o que denota o que os fiéis acreditam ser o

temperamento forte e aguerrido dos ditos índios.

Seguidas das Giras de Caboclo, temos as dos simpáticos Pretos-velhos, que

sentam-se em seus banquinhos em fileiras no centro do salão e, enquanto fumam seus

cachimbos e bebem café, aconselham com ternura os que os buscam, passando água e

ramos de ervas nestes, de forma que a ênfase na dimensão do cuidado fica patente.

Todos, inclusive a assistência, são orientados a utilizar roupas brancas, e, no

fim, podem ser servidos com vatapá, canjica, mugunzá e outros quitutes. Estas em

132
muito se assemelham com as Giras de Cura, que delas diferem apenas no que se refere

à duração, que varia de duas a três horas, e ao fato de não se “bater tambor”. Acontecem

com frequência quinzenal, sempre nas segundas-feiras.

As Giras de Exu ocorrem uma vez ao mês, geralmente no início deste, com

exceção das viradas de ano, pois é tradição da Casa não “bater” para Exu assim que o

ano inicia como parece ser de praxe em outros terreiros, consoante as Mães de Santo.

As luzes permanecem apagadas durante a primeira metade do ritual, em que os Exus e

Pombas-gira, que pouco interagem com a assistência e se cumprimentam de forma

diferente, bebem espumante, dançam freneticamente com seus trajes vermelhos e pretos

e gargalham. A sensualidade chama a atenção como um dos aspectos centrais da

performance desses pretensos guias.

As Giras de Desenvolvimento, que segundo o plano de atividades do

CEUJMJ ocorreria se quinze em quinze dias, revezando com as Giras de Cura nas

segundas-feiras, ocorreram raras vezes no período em que o trabalho de campo foi

realizado38. Na primeira oportunidade, ao invés do ritual em si, cujo objetivo é o de,

como propõe o nome, auxiliar os iniciantes e os demais desenvolventes a incorporarem,

foram dadas orientações e diretrizes gerais sobre o Centro, as Giras, em especial a de

Desenvolvimento e os princípios da Umbanda.

Durante a segunda e única oportunidade em que se pôde efetivamente

participar, Mãe Clara, após o aquecimento a que nos referimos, “chamava” as ditas

entidades para cada um dos iniciantes, que se encontravam todos ajoelhados. Os que

não incorporaram de fato pareciam estar tontos, ficando de olhos fechados e em silêncio

ou passavam um bom tempo se desequilibrando, sendo auxiliados pelos médiuns mais

experientes desincorporados.

38
As chamadas Obrigações infelizmente não puderam ser observadas.

133
Outros, apesar de apresentarem boa parte dos sinais que o grupo compreende

como de que estariam incorporados, também apresentavam indícios destoantes

daqueles, como ficar de olhos bem abertos e o cantar o ponto muito baixo mesmo sendo

um suposto Caboclo. Somente alguns apresentavam performance mais adequada, mas

para todos parecia ocasião para treino, prática e para serem incentivados pelos mais

experimentados, que posteriormente incorporaram.

As festas ou louvações, ocasiões de confraternização para muitos,

geralmente têm maior duração e em muito se assemelham às demais Giras, inclusive

pelo fato de estarem relacionadas a linhas específicas. Assim, por exemplo, no mês de

maio há a festa de Preto-velho, em agosto a famosa festa de Iemanjá e em setembro a de

Erê. O número de pessoas é maior, sendo todos muito bem servidos ao final com

bebidas e com o jantar, que é ainda mais farto.

As Yalorixás realizam ainda atendimentos particulares em outros horários,

que por sua vez não se limitam ao espaço do Centro, já que Mãe Clara atende até

mesmo em hospitais quando chamada. Os motivos desses atendimentos estão

relacionados a questões de saúde, problemas financeiros, objetivos profissionais e

relacionamentos amorosos.

Mãe Clara, além das rezas em seus clientes e das bênçãos para estes e de

“tirar” os chamados “quebrantos” de crianças com fastio ou muito sono e também de

animais, se ocupa com mais frequência das chamadas curas, do mesmo modo que Mãe

Graça é mais procurada para as demais questões. Não há, contudo, uma divisão tão

estanque entre os trabalhos, já que no período de fim de ano Mãe Clara é buscada pelos

pré-vestibulandos ansiosos pelo resultado, recomendando a estes que orem para o Rei

Salomão, rei da ciência, e para o Divino Espírito Santo que é, segundo ela, dono da

134
mente. Além disso, as Giras de Cura são consideradas como espaço para as demandas

relativas à saúde.

Nem todos os atendimentos são cobrados, porém, segundo Mãe Graça,

dependem dos objetivos do cliente. Se este buscar dinheiro, emprego ou alguma

conquista profissional, a cobrança é feita pelo procedimento denominado de Ebó, que

consiste numa “limpeza”, envolvendo, segundo esta, legumes, “descarga de pólvora” e

pipoca para “tirar um negativo”.

Os banhos de limpeza e de “descarrego”, nos quais são utilizados água,

cachaça e várias ervas parecem recursos comuns somados à defumação. Como para

todo e qualquer ritual umbandista, a mentalização parece central para a eficácia que

pode vir a ser percebida. A cobrança é feita principalmente para auxiliar o próprio

terreiro, cujas atividades são custeadas em sua maior parte graças ao esforço de todos os

seus filhos espirituais e amigos.

Quanto aos trabalhos para prejudicar outras pessoas, de “Magia”, Mãe Clara

diz não trabalhar com isso, não ter vontade de aprender e nem aconselhar que se faça tal

sorte de coisa a nenhum dos desenvolventes, pois parte da intrigante e curiosa premissa

de que o mal feito a outrem é “repartido” não somente entre a pessoa que o fez e o alvo,

mas também entre aquela e seus entes queridos. Para ela, “o mal por si se destrói”, já

que “o feitiço cai em cima do feiticeiro”, e assim a paz da pessoa que o fez é perdida.

135
CAPÍTULO 7

VALE DO AMANHECER

"Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará no coração do hemisfério sul

Na América, num claro instante”

(Caetano Veloso – Um Índio)

7.1. Estudos atuais sobre a identidade a religião do Vale do Amanhecer no Brasil.

Se se atento está aos contrastes entre essas religiões, não se pode furtar à

observação das suas semelhanças, que sem dúvida se devem em parte à influência da

primeira sobre a segunda. Ambas, no entanto, funcionam em certo sentido como

importantes referências para o Vale do Amanhecer, ainda que estejam longe de ser as

únicas. Conforme Oliveira (2008),

“O universo de crenças do VDA constitui um complexo de símbolos e narrativas que

reconstroem a história da humanidade, tendo como fio condutor a narrativa mitológica do

“Pai Seta Branca”, que seria o líder espiritual do movimento, que teria chegado à Terra em

um disco voador. Teria vivido em diferentes épocas, rencarnado várias vezes. A primeira,

como Jaguar, (numa referência à cultura inca) como São Francisco de Assis (referência

cristã), e como um índio Tupinambá (referência à mitologia popular brasileira) que teria

vivido no século XVI na fronteira do Brasil com a Bolívia. Não podendo mais encarnar,

teria escolhido Neiva – conhecida entre os adeptos como Tia Neiva – a quem teria delegado

a missão de preparar a humanidade para o terceiro milênio, tempo, que de acordo com a

doutrina, não haverá nem dor nem sofrimento e culminará com o “regresso” da humanidade

para um planeta chamado “Capela” de onde teriam provindo os humanos, assim como o Pai

Seta Branca. (...) É importante ainda frisar que a dinâmica instaurada no VDA é

essencialmente ligada à prática de terapias de cura espiritual.” (p. 16 e 17)

136
O cenário dos trabalhos voltados para o Vale do Amanhecer é um pouco

mais próximo do caso da Umbanda, predominando igualmente os trabalhos etnográficos

de cientistas sociais. Temos, assim, a interessante obra de Galinkin (2008) acerca da

questão da cura, que por sua vez, apesar de ser psicóloga de formação, é resultante da

dissertação de mestrado em Antropologia desta, realizada ainda na época de Neiva

Chaves Zelaya e Mario Sassi. Tanto quanto este, se destaca o estudo de caso de Oliveira

(2008) sobre a reciprocidade e as dinâmicas culturais num templo de Campina Grande

(PB) e outros, sobre os poderes e o sistema político da religião (MARQUES, 2009) e

sobre a transculturação para duas cidades do interior do Ceará, Canindé e Juazeiro do

Norte (COELHO, 2006). No que respeita a outras áreas, há trabalhos sobre os signos de

seu imaginário religioso (CAVALCANTE, 2011) e acerca da história de Tia Neiva

(REIS, 2008).

No entanto, um trabalho de especial importância para esta exploração é

certamente o de Pierini (2014), que explorou o caríssimo tema do desenvolvimento da

mediunidade não apenas dos médiuns de incorporação (aparás), mas também dos

doutrinadores, concluindo esta que o processo de produção do self do médium resulta da

interação com os espíritos, que, por sua vez, consequentemente também se modificam.

Uma de suas contribuições mais interessantes que, como se verá, encontra respaldo no

templo por nós estudado – cujos adeptos apontam justamente o fato a seguir como

principal marca de sua diferença em relação ao Espiritismo Kardecista –, diz respeito à

antecedência e à primazia da experiência corporal e da dimensão prática do ritual,

principalmente nos primórdios do treinamento dos médiuns, se comparado ao lugar

ocupado pelo conhecimento conceitual, distinguindo a autora quatro modalidades

principais relacionados ao processo de evolução do médium: “aprendizado incorporado

(somato-sensório), aprendizado intuitivo (no qual os médiuns atribuem a fonte da

137
intuição aos seres espirituais), aprendizado conceitual e aprendizado intersubjetivo” (p.

18, tradução nossa).

7.2. Templo Gamurio do Amanhecer

O Templo Gamurio do Amanhecer (TGA), que é uma das mais importantes

instituições do Vale do Amanhecer no Ceará, é também conhecido como templo de

Fortaleza apesar de uma placa no próprio tempo indicar que não seja da capital e sim do

município de Eusébio. A razão da confusão parece ser o fato de o templo estar

localizado no bairro Coaçu, próximo da Estrada do Fio, que é região limítrofe entre

ambos. Se comparada às demais organizações religiosas expostas e analisadas, é a maior

delas, tanto em termos de área e de espaço, quanto de pessoas oficialmente vinculadas a

ele, contando com um corpo mediúnico de mais seiscentos mestres e ninfas ao todo.

O TGA possui, além da área principal do templo propriamente dito, um

grande espaço para circulação de pessoas cuja funcionalidade é conectá-lo com as

demais instalações, como os espaços próprios para os trabalhos de Turigano, de Estrela

de Sublimação e de Alabá, mas também com a lojinha, as duas cantinas, o refeitório, os

vestiários e banheiros, o amplo estacionamento – que, em dias de grande

movimentação, como nos fins de semana, acaba se tornando incapaz de comportar todos

os carros – e, finalmente, com outros espaços voltados mais para os próprios adeptos.

Alguns destes, inclusive, já residem nos entornos e proximidades do templo,

alguns dos quais têm nos quintais de suas casas uma porta de acesso direto para

estacionamento do templo, embora ainda se esteja longe do que ocorre no chamado

Templo Mãe, a “Meca” dos adeptos do Vale do Amanhecer (VDA), em torno do qual

138
foi fundada uma grande vizinhança com estabelecimentos comerciais ao seu dispor,

conforme os relatos das ninfas e mestres que já o visitaram.

Se prosseguirmos comparando-o ao templo de Brasília, veremos que o

Gamurio do Amanhecer, apesar de impressionar os pacientes de primeira viagem, cuja

grande maioria é afeita ao cenário espírita e umbandista, é ainda uma instituição com

vistas à expansão, pois este ainda não conta, por exemplo, com a Estrela Candente,

trabalho de profunda significação para os integrantes da doutrina.

Este trabalho requer que o templo conte com, além de amplo espaço e de

água no terreno – o que requer grande soma de recursos – dentre outras coisas,

funcionamento diário e, no mínimo, o dobro do contingente atual, segundo relatos de

alguns informantes. Porém, por enquanto o TGA só conta com estrutura e pessoal para

atender os pacientes nas segundas, quartas e quintas-feiras, sábados e domingos entre as

15 e 22 horas, abrindo também nas terças e sextas-feiras aproximadamente às 20 horas

por ocasião do trabalho de Alabá, cuja frequência é sazonal. Nos dias em que há

trabalhos, a “manipulação de energias” abre por volta das 10 horas e permanece até 12

horas, horário em que, no entanto, o templo não recebe pacientes.

Apesar disso, os integrantes do Gamurio parecem bastante motivados em

trabalhar para concretizar tal sonho. Para aproximar-se de tal objetivo, além do auxílio

dos próprios mestres e ninfas da doutrina e dos lucros provenientes das vendas na

lojinha, nas cantinas e nos bazares realizados, são promovidas festas em que ocorrem

bingos e outras iniciativas para mobilizar o corpo mediúnico em prol do objetivo

comum. Para tanto, os adeptos alegadamente não se valem de doações de nenhum tipo

da parte de pacientes e em nenhuma ocasião, mesmo quando estes insistem em fazê-lo,

fato este que os enche de orgulho.

139
Todos os templos do VDA recebem o nome do ministro de seu presidente,

no caso do de Fortaleza, Gamurio, ao qual é acrescentado o sufixo “do Amanhecer”. Os

nomes dos ministros dos mestres são por estes recebidos numa ocasião especial de sua

trajetória na religião, e são escolhidos por um mestre superior hierarquicamente de uma

longa lista de nomes dada por Tia Neiva, de modo que há a possibilidade de que dois ou

mais mestres tenham um ministro de mesmo nome, ainda que não sejam o mesmo.

Logo na frente do templo se dá de cara com palavras de Pai Seta Branca39

gravadas numa parede que bifurca um caminho pela esquerda e outro pela direita. Todos

entram sempre pela esquerda, pois a via da direita é a da saída, e não se recomenda que

nem os médiuns nem os “pacientes”, isto é, as pessoas que vão até o “Vale” em busca

de curas, desobsessões e tratamento, percorram o templo no sentido contrário, embora

isso acabe ocorrendo vez ou outra.

Recomenda-se que os pacientes se vistam adequadamente para a visita, de

modo que bermudas e camisetas regatas para os homens bem como saias curtas e blusas

decotadas ou com maior exposição do corpo para as mulheres são trajes proibidos,

conforme indica uma placa assim que se sai do estacionamento. Os desavisados

geralmente recebem batas para complementar suas peças e, assim, não precisarem ir

embora sem serem atendidos.

Os trajes destes, contudo, longe estão de ser o principal alvo da curiosidade

de outros visitantes, principalmente os de primeira viagem, que ficam impressionados

com as roupas brilhosas, coloridas e de certo modo até extravagantes que os médiuns

utilizam. Além do uniforme do jaguar, composto por camisa social preta com as mangas

dobradas – simbolizando o trabalho – o colete branco com as chamadas “armas” dos

médiuns (insígnias e broches) e a calça ou saia marrom que faz referência a Francisco

39
“Salve Deus! O homem que tentar fugir de sua meta cármica ou juras transcendentais, será devorado ou
se perderá como pássaro que tenta voar na escuridão da noite”.

140
de Assis, que teria sido uma das encarnações de Pai Seta Branca; há os trajes dos

médiuns iniciantes, que ficam de branco; os dos prisioneiros, que variam de acordo com

o gênero e, por fim, as indumentárias das Falanges, que no caso das mulheres são

incontáveis, com apenas duas para os homens, cada uma destas totalmente diferentes

entre si, sem contar as das guias missionárias, do trabalho de Angical, etc.

Caso se seja um “médium da doutrina” e não um visitante, far-se-á uma

espécie de reverência típica sempre que se passar na entrada e defronte a outros locais,

como aos Orixás, à imagem de Jesus Cristo e a de Pai Seta Branca, e aos trabalhos de

Oráculo de Simiromba e de Cruz do Caminho, que é a de levar as duas mãos ao mesmo

tempo para o umbigo e abri-las ao lado da cabeça. Ademais, assim que chegam e antes

de sair definitivamente do templo, os médiuns fazem tais reverências nesses locais e às

vezes podem fazer o que parece ser uma prece diante deles e da imagens do que

acreditam ser seus espíritos de luz com os quais tenham algum tipo de conexão.

Assim, o paciente se vê dentro de um curioso espaço repleto de cores, quase

aparentado com uma espécie de “parque de diversões” New Age. Caso seja a primeira

vez visitando o local, os mestres e ninfas da chamada Recepção o orientam quanto ao

propósito geral do Vale do Amanhecer, o da “cura desobsessiva”, e do modo como

procedem para atingi-lo, isto é, através dos múltiplos trabalhos de que dispõem, tirando

suas dúvidas também acerca destes, da doutrina, das roupas, etc.

A Recepção consiste em função encarada com tão profunda seriedade pelos

médiuns – que podem ser tanto mestres e ninfas quanto aparás e doutrinadores – que a

impressão resultante é a de que ela é quase “mistificada”, de modo que um curso

aparentemente avançado é a ela destinada. No entanto, além de orientar os pacientes,

colher seus nomes para trabalhos cujo número de participantes é limitado, organizar

filas e chamar pacientes, além das já mencionadas, não se observou nada de mais

141
complexo, nem mesmo do ponto de vista ritual. Aparentemente, o tempo de experiência

bem como certo entendimento dos trabalhos e da doutrina do VDA aliados à boa dose

de carisma, paciência, simpatia e bom senso para lidar com os visitantes são fatores que

pesam, já que estes têm os recepcionistas como principais senão únicos a quem recorrer.

Grandes fileiras de bancos podem ser vistas, onde os pacientes sentam para

aguardar serem chamados para os trabalhos, nesta parte voltados principalmente para o

de Tronos, e onde às vezes os “branquinhos” – médiuns iniciantes na doutrina cuja

vestimenta é totalmente branca – podem sentar-se enquanto cantam hinos da doutrina. À

esquerda, logo se vê vários quadros com imagens dos chamados espíritos de luz, mas os

maiores deles são o de Mãe Yara e outro com retrato da fundadora da religião, a

médium já falecida dita clarividente Tia Neiva – ambos com iluminação especial.

Ao longo de todo o templo, notar-se-á que em quase todos os locais são

afixados quadros com representações desse tipo, que os religiosos consideram ser

espíritos de luz – dentre eles principalmente, ministros, guias missionárias, pretos-

velhos, caboclos, médicos de cura, princesas, cavaleiros dos mais variados tipos e outras

entidades de algum modo importantes para a doutrina do Vale do Amanhecer.

À direita, ver-se á, além do outro lado do templo, o local reservado para o

trabalho de Randy e logo ao lado aquele onde ocorrem a benção do ministro Gamurio e

os trabalhos de Mesa Evangélica e de Leito Magnético. Estes dois últimos trabalhos

ocorrem numa mesa de formato triangular, formato este muito similar ao símbolo dos

Aparás, os médiuns de incorporação, que, quando não está sendo utilizada com tais fins,

conta com os chamados “faróis” nas pontas ou vértices da mesa, isto é, doutrinadores

que ficam em silêncio e com as mãos sobre a mesa, que são substituídos de uma em

uma hora.

142
À esquerda, o paciente veria ainda uma porta pela qual saem e entram os

médiuns com o que chamam de indumentárias e, logo ao lado desta, o Castelo de

Autorização, onde aqueles que são convidados ou recomendados a trabalhar e

desenvolver sua mediunidade e interessados em fazê-lo na casa devem passar para

conversar com as ninfas da falange missionária Dharman-Oxinto sobre os pré-requisitos

e as dúvidas que porventura venham a ter.

Um pouco mais à frente, à esquerda, encontra-se o Castelo dos Devas, local

em que os pacientes não costumam transitar e que é mais voltado para o corpo

mediúnico, que, dentre outras coisas, o utiliza para checar suas escalas de trabalho. Ao

lado deste, pode ser visto o Radar, um grande balcão elevado onde, além da chamada

Cruz do Doutrinador, há um quadro com a imagem do ministro Gamurio e outro com o

de Pai João de Enoque, local onde ficam os chamados Orixás, em número de três, todos

mestres e doutrinadores com tempo significativo “de doutrina”.

Os Orixás são as autoridades máximas do templo no dia em questão,

tomando as principais decisões com relação aos trabalhos, imprevistos, pacientes que

eventualmente causem problemas, etc. Eles são responsáveis, juntamente com outros

médiuns, pela dita abertura da Corrente Mestra, mas mudam sempre a depender do dia.

Há o primeiro, o segundo e o terceiro Orixás, sendo aquele o mais importante, e assim

por diante.

Em frente ao Radar há um corredor que conduz para o compartimente onde

ocorre o trabalho de Sudálio, que abriga também o trabalho de Defumação. Neste

corredor, além de uma estátua de Jesus Cristo com vestes verdes localizada exatamente

no meio, à esquerda, há duas entradas para o local supracitado, onde ocorrem a benção

do ministro Gamurio, o trabalho de Mesta Evangélica e de Leito Magnético.

143
A primeira delas possui o símbolo do doutrinador e a segunda o do apará. As

“Cortes” (filas de médiuns em dupla que caminham ao longo do tempo cantando)

passam sempre por esse local quando estão prestes a iniciar ou a encerrar os trabalhos

de Cruz do Caminho e Oráculo de Simiromba, dão uma volta em seu interior e sobem

na Pira, uma espécie de palco onde, além de um grande símbolo da religião, nos

primeiros domingos do mês, acompanhado de ninfas doutrinadoras, fica sentado o apará

pretensamente incorporado com o ministro Gamurio para conceder suas bênçãos aos

mestres, ninfas e pacientes, geralmente Mario, médium entrevistado.

Logo ao lado do balcão dos Orixás há um compartimento geralmente

utilizado por estes, pelo presidente do templo ou por outros mestres como uma espécie

de escritório, local onde alguns mestres mais experientes têm o costume de transitar,

aparentemente para pegar suas capas, etc. Algumas das entrevistas ali se deram. Há

ainda algumas imagens, sendo as mais importantes a da guia missionária da esposa do

presidente e do seu cavaleiro verde.

Ao lado dessa sala há uma fileira de bancos em frente dos quais ocorre o

trabalho de Tronos e, atrás destes, um espaço voltado e reservado para o trabalho,

exclusivo para médiuns, de Sanday Tronos, onde são incorporados os ministros e

cavaleiros verdes dos Orixás ou do presidente. Ainda em frente aos tronos há um

compartimento também de uso exclusivo dos médiuns, o Castelo do Silêncio, onde os

aparás se preparam para trabalhar. Dentro deste, além da recorrente cruz do doutrinador,

que está presente em quase todos os compartimentos reservados aos trabalho, há a

imagem da chamada Nossa Senhora do Apará voltada para um pequeno navio.

No final desse primeiro corredor do templo, antes de se virar à direita para

seguir para a segunda metade deste, há um local com alguns bancos para os pacientes

que aguardam sentados em fila pelo trabalho de Cura Iniciática, onde podem também as

144
ninfas e mestres ficarem sentadas cantando hinos. Ao lado da entrada do compartimento

voltado para esse trabalho, há uma mesa e uma cadeira onde costumam sentar-se os

recepcionistas para anotar os nomes dos pacientes principalmente para os trabalhos de

Oráculo de Simiromba, Randy e Cruz do Caminho.

No corredor perpendicular ao anterior, à esquerda, avista-se uma imagem de

Pai Seta Branca. À direita, mais bancos para os pacientes que aguardam pelo trabalho de

Junção, localizado no fim desse corredor. O compartimento do templo voltado para o

trabalho faz divisa com a saída da Cura Iniciática e com o Castelo do Doutrinador, sala

esta cujas paredes externas contam com as imagens das chamadas princesas, que sempre

têm rosas nelas dependuradas, diante das quais não é raro encontrar algum dos fiéis em

prece.

Dentro desse espaço, além de uma série de bancos, constam mais imagens

ainda, desta vez de diversas entidades, dentre eles os ministros e cavaleiros verdes de

vários mestres, sendo este talvez o local do templo em que conste o maior número de

representações das entidades cultuadas pelo “povo” do Gamurio. O principal artista por

trás de todos os símbolos é Vilela, que, segundo os informantes, apesar de não ser “da

doutrina”, sempre foi alguém da confiança de sua “mãe clarividente” ou “Koatay 108”,

isto é, Tia Neiva.

Mais à frente, à esquerda, ver-se-á o espaço do trabalho de Junção, duas

grandes imagens – Mãe Tildes e Tiãozinho – e logo após este, o espaço do “Oráculo”

(de Simiromba). Pode-se avistar novamente o local do Sudálio, desta vez à esquerda,

em frente do qual há um bebedouro com água retirada do próprio terreno no qual se

encontra o templo e que é algumas vezes indicada pelos ditos Pretos-velhos aos

pacientes nos tronos – a “água fluídica”, que a bebem ou a levam para casa, acreditando

estes que esta possua bons fluidos.

145
Restam ainda, antes da saída do templo, a área voltada ao trabalho de Cruz

do Caminho e, por último, uma pequena bancada onde podem os visitantes escrever

algum pedido, uma mensagem ou o nome de alguém que percebam como necessitando

de preces e de auxílio espiritual. Estes papéis são usualmente deixados numa pequena

caixa amarela defronte aos Orixás, e são utilizados principalmente no trabalho de Mesa

Evangélica.

A doutrina espiritualista cristã hoje em dia encontra-se dividida em duas

instituições, a Coordenação Geral dos Templos do Amanhecer (CGTA), cujo

responsável é Gilberto Zelaya, o chamado Trino Ajarã, e a Obras Sociais da Ordem

Espiritualista Cristã (OSOEC), liderada por Raul Zelaya, ambos filhos de Tia Neiva40.

Segundo alguns dos mais importantes e mais conhecedores da doutrina dos mestres do

Gamurio, tal divisão envolve tensão entre os descendentes da “clarividente”. Enquanto

ao primogênito, Gilberto, coube o papel de orientar, difundir e consolidar os templos

localizados fora de Brasília, Raul passou a ser a principal autoridade do Templo Mãe.

Apesar de tal cisma, não é incomum que os adeptos do Gamurio façam visitas a este,

inclusive para nele trabalhar em tais ocasiões. Essa contextualização, no entanto, se faz

mais importante por conta de o Gamurio ser vinculado e responder à CGTA e não à

OSOEC, fato que certamente possui uma série de implicações que não cabem ser

explicitadas neste trabalho.

7.2.1. História do TGA.

O Templo de Fortaleza nem sempre teve o nome atual, pois não foi o atual

presidente deste o seu fundador. Segundo o relato do presidente, o Adjunto Gamurio41,

40
Os nomes em questão não foram alterados.
41
O presidente é de fato assim tratado, principalmente nas emissões dos médiuns. Optar-se-á por trata-lo
assim para evitar criar mais um pseudônimo, mantendo oculto seu nome. Os nomes dos demais mestres
mencionados nesta seção não foram alterados desde que podem ter valor histórico.

146
O templo foi fundado em 15 de maio de 1985 por um grupo de três casais de mestres e

ninfas liderados pelo mestre Batista, que foram designados diretamente por Tia Neiva

para fazê-lo. Assim, o primeiro nome deste teria sido Humaitã do Amanhecer por conta

do ministro desse mestre, funcionando numa localidade chamada Tipuiu, que dista

alguns poucos quilômetros do atual templo.

Apesar de não ter sido seu fundador, o atual presidente entrou no templo

pouco tempo depois de sua fundação, em 01 de dezembro de 1985, aos 19 anos.

Relembra da simplicidade das instalações rústicas, com quase todas as estruturas

construídas de palhas da carnaúba, inclusive os tronos. O Adj. Gamurio relata que após

mais ou menos cinco anos da fundação do templo teriam conseguido um outro terreno,

cujas complicações de ordem ambiental os impediram de nele permanecer, conseguindo

então o terreno da localização atual, quando, apenas seis meses depois, já teriam um

construído um templo.

Entretanto, o fato de conseguir um terreno não significou que a instituição

viria necessariamente a garantir sua existência, pois o templo viria a passar por algumas

“gestões” após a saída do Adjunto Humaitã até que pudesse gozar da estabilidade

administrativa de que dispõe hoje. O templo fora então entregue para um dos mestres

designados por Tia Neiva que logo precisaria se afastar, vindo em 1988 a ser por ele

responsável Inácio, mestre de um templo de Olinda, o que implicou que este passasse a

se chamar Umariã do Amanhecer e que precisasse do apoio de diferentes mestres que

assumiriam a vice-presidência do templo, inclusive do Adj. Gamurio, que viria a ocupar

o cargo em 1993.

Com o “desencarne” do presidente, assumiria então seu filho, Mestre Zilcio,

que por questões profissionais não poderia administrar todos os templos pelos quais seu

pai era responsável, de modo que então chegaria à presidência no ano de 2000 o

147
Adjunto Gamurio, passando então o templo a se chamar Gamurio do Amanhecer, em

referência ao ministro que o rege. Aproximadamente um ano depois da mudança do

nome do templo, nos primórdios de 2001, este viria a ser inaugurado em sua

configuração espacial atual.

No entanto, o presidente do templo acredita, junto com os outros jaguares,

que a história do Povo de Gamurio não se limita ao que foi acima descrito. Segundo

alega o Adj. Gamurio, o ministro Gamurio teria comunicado em uma de suas primeiras

incorporações, por ocasião de sua benção nos primeiros domingos do mês, que ele e seu

Adjunto teriam sido mercenários na Escócia em encarnações passadas, quando então

teriam maltratado e matado muitos.

O Adj. Gamurio acredita que não estavam juntos somente ele e seu ministro,

que hoje pretensamente atuaria no plano espiritual enquanto ele trabalha no plano físico,

mas todos que hoje fazem parte do corpo mediúnico. Por conta dessas “heranças

transcendentais”, isto é, os males realizados nessas ditas vidas pregressas, o povo de

Gamurio precisaria reparar suas vítimas, que podem ser os pacientes e os supostos

espíritos sofredores que seriam auxiliados nos trabalhos.

Contudo, para fazê-lo, o Adj. Gamurio alega que não se deve utilizar as

mesmas “armas” do passado, mas sim outras, como a compreensão, o amor, a

humildade e tolerância. Tudo isso com a necessária disciplina e o devido respeito à

hierarquia, que são características percebidas pelo próprio líder bem como pelo seu

povo, nos quais se destacam sua esposa, que é Ninfa Lua, e seu filho, o Adjunto Naron,

vice-presidente do Templo.

148
7.2.2 Trabalhos do TGA.

Apesar de o trabalho de Tronos não ser o único pelo qual podem passar os

pacientes que nunca foram ao Gamurio do Amanhecer, pois, diferente dos demais, os de

Cruz do Caminho, Defumação, Sudálio e Alabá não requerem que estes tenham antes de

tudo conversado com as alegadas entidades do trabalho em questão, ele talvez seja de

fato o mais importante, desde que se constitui como a principal porta de entrada e o

ponto mais direto, privilegiado e profundo de contato que os pacientes podem ter com

as “entidades” da doutrina e, logo, também com a cosmovisão por ela implicada.

Esse trabalho é o primeiro daqueles voltados para os pacientes a ter início. É

frequentemente comparado a um confessionário, embora não ocorra num espaço

fechado e conte ainda com um terceiro elemento: no caso, o doutrinador, que no Vale

do Amanhecer é visto igualmente como um médium, ainda que de outro tipo: um

médium de incorporação “de olhos abertos”, cuja intuição e sentidos estariam aguçados,

provendo-o com uma atenção especial.

Enquanto a figura do doutrinador parece ter sido apropriada por Tia Neiva e

pelo Vale do Amanhecer a partir do doutrinador kardecista e adornada de outras

qualidades bem como adaptada à tônica da possessão caracteristicamente umbandista, o

mesmo não parece ter ocorrido com o apará, figura que, apesar do nome diferente,

ligado à noção de “aparelho”, é identificado com os médiuns de incorporação.

Além da acreditada incorporação pelas entidades, na maioria das vezes por

um Preto-velho (e raramente por um Caboclo), pretensamente servindo como veículo

desta para possibilitar o diálogo com os pacientes, sob o comando delas os aparás

saúdam espíritos do panteão espiritualista cristão (como “Salve Pai Seta Branca! Salve

Mãe Iara!”, etc.), realizam o que se diz serem limpezas de caráter energético e captam

as energias e espíritos negativos – momento em que fecham as mãos com vigor, como

149
se os segurassem – percebidos como trazidos pelos pacientes, que são doutrinados e

elevados pelo doutrinador.

O paciente é ouvido pela entidade que se acredita estar incorporada

enquanto o doutrinador, depois de apresentar a entidade que alega estar ali presente e de

solicitar ao paciente que diga seu nome completo e sua idade, que não cruze as pernas e

que mantenha as palmas das mãos voltadas para cima, atenta ao que é relatado pelos

pacientes e averigua que tipo de recomendações são dadas a estes. Caso o apará capte

algum espírito sofredor, este é doutrinado com determinadas palavras42 e depois se faz a

elevação43.

É comum que caso o doutrinador perceba algum tipo de interferência na

incorporação, geralmente atribuída a espíritos inferiores, conforme os exemplos

geralmente dados pelos jaguares, no sentido de que o paciente pague algo, tome uma

determinada medicação ou faça um ritual, etc., o doutrinador proceda com um corte,

fazendo um movimento com as mãos cuja trajetória indique o formato de uma cruz.

Como se pode observar, o paralelo com a confissão tem suas limitações.

Ainda que se possa argumentar que alguma forma de sigilo – deixando de lado o

problema de se o doutrinador fará jus a este e o de se o apará esquece realmente tudo o

que lhe é dito ou que supostamente é dito através dele – acabe sendo estabelecido por

conta da impossibilidade de ouvir o que se conversa graças à quantidade de pacientes e

de duplas e ao barulho resultante da interação entre estes, além das saudações das

entidades e das elevações dos doutrinadores, não é raro que os pacientes prestes a serem

atendidos, isto é, os das primeiras filas, consigam ouvir o que dizem os Pretos-velhos

aos pacientes, embora de fato seja tarefa mais difícil ouvir o que estes dizem àqueles.

42
Algo mais ou menos aproximado de “Salve Deus! Meu irmão, seja bem vindo a este Pronto-Socorro
Universal. Aproveite esta feliz oportunidade para compreender que já desencarnaste e que só através do
amor e do perdão encontrarás o equilíbrio da tua mente e a harmonia do teu coração. Vamos pedir a Jesus
Divino e Amado Mestre, que nesta bendita hora ilumine o teu caminho”.
43
“Ó, Obatalá! Ó, Obatalá! Entrego neste instante mais esta ovelha para o teu redil”.

150
Quando é chegada a vez de um determinado paciente, ele é chamado pelos

auxiliares do trabalho, que avistaram o sinal do doutrinador. Senta-se no trono ao lado

do apará e, como já se mencionou, este é orientado pelo doutrinador, que fica atrás de

ambos. Apesar da conversa se dar fundamentalmente entre paciente e “entidade”, não é

incomum nem que o doutrinador venha a intervir de modo a reforçar ou a de algum

modo traduzir o que esta dissera ao paciente nem que a própria se dirija ao doutrinador e

requisite sua confirmação, o que facilita maior interação também entre quem busca o

atendimento e o doutrinador.

Ao final, a suposta entidade indica por quais trabalhos – a lista destes será

aqui pormenorizada – o paciente deverá passar ao doutrinador, que registra num

pequeno papel e o entrega àquele. Além disso, ela pode achar conveniente comunicar ao

paciente, segundo seu alegado conhecimento, que este precisa trabalhar na Casa,

podendo inclusive adiantar se como doutrinador ou como apará. Nesse caso, o

doutrinador anota ainda a palavra “Autorização” no papel, o que quer dizer que, caso se

interesse, o paciente venha a visitar também o Castelo de Autorização.

Além da quantidade variável de duplas de aparás e doutrinadores, que

deverão ser sempre duplas de homens ou de homem e mulher, não importando qual

deles ocupe esta ou aquela função, se tem ainda o chamado comandante do trabalho,

que é sempre um mestre Sol, isto é, um doutrinador. Como há os tronos vermelhos e

amarelos44, este pode ter o auxílio de outro doutrinador para supervisionar os tronos da

outra cor, e ainda de um ou mais jaguares para encaminhar os pacientes para as duplas

disponíveis e para esclarecer os pacientes que saem dos tronos.

Os comandantes são os responsáveis por abrir o trabalho de tronos e por

fechá-lo, o que por sua vez ocorre em geral somente após todos os trabalhos terem

44
A divisão dos tronos entre vermelhos e amarelos parece ter um sentido que, pelo menos no TGA, caiu
em desuso.

151
encerrado. Isto também acontece por conta de eventuais emergências que o templo

venha a receber, como um paciente que chegue muito tarde e precise muito ser atendido

ou que ao sair de um trabalho precise de novo atendimento, com uma nova dupla de

apará e doutrinador sendo designada.

Ainda no que concerne aos tronos, resta sublinhar a centralidade do trabalho

para todo o templo, destacando que para que tanto este quanto outros ocorram faz-se

necessária a chamada abertura da Corrente Mestra, de modo que se este ritual não

ocorra uma série de trabalhos não ocorrem ou o fazem com uma série de limitações. É

importante destacar sua vinculação especial com o trabalho de Sanday Tronos, que

ocorre atrás dos tronos.

Outro aspecto importante é que nem sempre os pacientes conseguirão passar

por todos os trabalhos recomendados pelas entidades num mesmo dia – mesmo no caso

daqueles que são feitos várias vezes, como é a maioria; seja por conta da grande

quantidade de horas despendida no templo que estas atividades demandam, seja em

função das limitações do próprio templo, desde que alguns trabalhos funcionam apenas

em determinados dias ou por que o contingente de jaguares escalados para um dia

específico não permita dar conta da atividade.

Isso, logicamente, estimula o paciente a voltar no templo para conclui-los.

No retorno, porém, eles são orientados a passar novamente pelos tronos, desde que

durante o período variável em que passaram fora do templo podem ter sido alvos de

novas “obsessões” ou de outras “energias negativas” bem como se submetido a novos

conflitos em seus relacionamentos, sendo necessário para as pretensas entidades que

passem por outros trabalhos, o que cria uma espécie de ciclo de visitas ao Gamurio,

caso o paciente esteja motivado a retornar.

152
É indispensável dedicar alguma atenção aos demais trabalhos para que o

relato dos médiuns seja minimamente contextualizado e se torne inteligível. Antes que

se entre em um nível maior de detalhes acerca deste e dos trabalhos porvir, é importante

destacar que, consoante os jaguares do TGA, boa parte dos nomes de diversos

elementos da doutrina do Amanhecer teriam sido recebidos por Tia Neiva – através de

alegadas experiências fora do corpo nas quais ela teria sido treinada no Tibet pelo

monge Umahã e graças ao aprendizado adquirido pelo contato com Pai Seta Branca – ao

invés de criados, razão pela qual se desconhece a origem de tais termos.

Um dos primeiros trabalhos com os quais se teve contato foi o de Randy,

que está ligado, além da cura desobssessiva, também à cura física, segundo o “povo” de

Gamurio. É um trabalho ligado à legião de Mestre Lázaro, espírito de luz que teria

vivido na Grécia, destacando-se pelas proezas físicas. O formato do espaço dedicado a

ele é o da Elipse, que por sua vez é um símbolo de grande importância para a doutrina.

Um dos aspectos mais chamativos desse trabalho é que há uma espécie de maca onde

deve deitar-se um dos pacientes, que geralmente está padecendo de algum mal “físico”.

Acredita-se que uma das funções deste trabalho seja a de capturar os elítrios, que seriam

espíritos degenerados45 a quem os pacientes fizeram algum tipo de mal em encarnações

pregressas, e que por desejarem vingança não evoluíram.

Os pacientes, que precisam estar necessariamente em número ímpar, antes

de se sentarem diante do leito, põem um pouco de sal na boca e espalham perfume nas

laterais de sua testa, prática esta comum a muitos outros trabalhos. Outro aspecto

extremamente comum a este e a outros trabalhos da ritualística espiritualista cristã diz

respeito a uma estrutura em que interagem o Cavaleiro da Lança Reino Central,

representado pelo comandante do trabalho um mestre Sol, e, no caso do Randy, os

45
Diz-se que Tia Neiva teria visto que os elítrios aparentam-se com uma cabeça de macaco com braços e
pernas e que, ao serem doutrinados e elevados, se desabrochariam, voltando à sua forma humana.

153
Cavaleiros da Lança Lilás, Rósea e Vermelha, representados por outros doutrinadores

que portam uma lança. Os pacientes e jaguares são defumados em alguns momentos,

prática esta também recorrente em outros trabalhos.

Importa destacar que essa estrutura recorrente dos rituais da doutrina do

Amanhecer faz completo sentido dentro da infinidade de símbolos que na cosmologia

do espiritualismo cristão poderiam didaticamente ser sintetizados na dicotomia, na

oposição, ou, talvez, melhor que qualquer outro termo poderia vir a expressar, numa

dialética entre a chamada Força Sol – cujos desdobramentos parecem ser o doutrinador,

o ouro, a cor amarela, as setas voltadas para cima e, além de uma infinidade de outras

manifestações, a própria palavra “Amanhecer”, que indica ascenção – e a Força Lua –

que parece ligada aos aparás, à prata46, à cor lilás, às setas para baixo e, além de outros

elementos da doutrina, à palavra “Vale”.

Como em outros trabalhos, é comum ainda que os pacientes sejam

orientados, além de a mentalizarem seus objetivos, a não cruzarem as pernas e a

manterem as mãos espalmadas para cima sobre os joelhos, a não fecharem os olhos, que

por sua vez, caso não se faça, acabe se facilitando uma eventual incorporação, caso

sejam médiuns “desta ou de outra doutrina”. As entidades alegadamente incorporadas

pelos mestres e ninfas Lua, homens e mulheres aparás, respectivamente, são as dos

chamados Médicos de Cura e Povo das Águas. Enquanto as ninfas Lua ficam próximas

dos Cavaleiros da Lança Rósea, Vermelha e Lilás, os dois mestres Lua ficam sentados,

voltados para o paciente sob a maca.

46
O “fenômeno do ouro e da prata” é aludido no Turigano, e, além disso, se faz presente como importante
elemento capaz de prover o observador com a distinção entre mestres e ninfas Sol e Lua, que em suas
indumentárias de Falange é perceptível. Assim, além da imagem do sol ou da lua representados nas
roupas, se pode diferenciá-los através dos detalhes prateados e dourados, respectivamente para os aparás e
doutrinadores.

154
No final do Randy, após os representantes dos cavaleiros desempenharem

seus papéis conforme uma espécie de “roteiro”47 – alguns chegando até mesmo a ler

suas falas em cartões segurados por suas ninfas – e depois de fazerem suas emissões,

procedimento que na cosmovisão do Amanhecer possui diversas funções rituais e

significados, como, por exemplo, a de fazer com que o ectoplasma do médium se

espalhe pelo local facilitando as alegadas curas e a servir como chaves dos planos

espirituais, além de identificá-lo; e depois das incorporações, todos os doutrinadores,

sob o comando do Cavaleiro da Lança Reino Central, fazem três elevações.

No trabalho de Cura Iniciática, ou Sanday Cura, as entidades que ganham

destaque são as dos Médicos de Cura que estariam supostamente incorporadas nos

“aparelhos”, localizados, juntos de mestres e ninfas doutrinadoras atrás das poltronas de

alvenaria nas quais os pacientes ficam sentados. Essas entidades fazem gestos bastante

sutis com as mãos, apenas movendo os dedos devagar, e de forma bastante leve. Há um

limite de dez pacientes, que ficam sentados voltados para o Aledá, uma espécie de altar

sobre o qual, além da Cruz do Doutrinador, ficam alguns médiuns. Os pacientes, antes

de tudo, usam sal e perfume e então têm início as emissões, que não são muitas. Uma

vez que estas encerrem, os comandantes convocam as entidades, que supostamente

ficam incorporadas por volta de três minutos e, em seguida, o trabalho tem fim. Dentro

do local reservado a este trabalho há ainda duas vias de acesso para o Castelo de

Iniciação, espaço reservado para o corpo mediúnico.

No que se refere ao trabalho de Junção (ou Sanday Junção), que também

tem como função a desintegração dos chamados elítrios, importa ressaltar que,

aparentemente, as ninfas que auxiliam o comandante do trabalho não são tomadas por

nenhum espírito. Enquanto cantam o chamado Hino da Junção, mestres e ninfas vão

47
Esta também é uma prática bastante comum nos ritos do VDA, sendo pouco frequente que algum
jaguar saiba decorado o que é dito especificamente por cada cavaleiro ou outros personagens que venham
a ser representados num determinado trabalho.

155
dando passes nos pacientes. Os passes são procedimento padrão realizado pelos

jaguares, e consistem em que o adepto fique atrás do paciente, diga “Salve Deus!” e

então, após entrelaçar os dedos da mão esquerda com os da direita com o dorso das

mãos voltados para si, o jaguar posicione as mãos à frente dele sem tocá-lo, ficando

com a cabeça do paciente entre seus braços, depois dando três leves toques nas costas

dos pacientes e, finalmente, soltando as mãos e estalando os dedos.

Já no Sanday Junção ou simplesmente Junção incorporariam os

“abnegados” pretos-velhos nos aparás, que se encontram sentados alternadamente com

doutrinadores nos bancos dos dois lados das paredes do espaço em que o trabalho

ocorre. Não podem participar gestantes com até três meses de gravidez e nem crianças

de até dez anos. Enquanto as entidades saúdam diversos espíritos importantes para o

VDA sem parar e inclusive mais de uma vez, os adeptos acreditam que estes manipulam

energias, ao mesmo tempo em que os doutrinadores cantam hinos. Após as emissões do

comandante do trabalho e das duas ninfas (Sol e Lua) que o acompanha, o trabalho é

declarado aberto, quando então descem do Aledá para dar passes em todos os pacientes

junto do mestre responsável por defumar o ambiente.

O Oráculo de Simiromba, que é mais referido entre os jaguares e os

pacientes como Oráculo, é um trabalho de grande relevância para a doutrina do

Amanhecer desde que se alega que nele é incorporado Simiromba, outra alcunha de Seta

Branca. Para esta atividade inscrevem-se no máximo treze pacientes, mas apenas dez

podem dela participar, ficando os três restantes em fila de espera caso por alguma razão

algum dos dez não possa participar. O tempo de trabalho em si como experimentado

pelo paciente é bem curto, demorando mais em função da espera na fila de pacientes,

que ficam sentados no banco defronte ao espaço dedicado ao trabalho em silêncio e,

conforme orientação das ninfas que servem “vinho” (representado por suco de uva) e

156
que chamam cada um dos pacientes por vez, que permanecem mentalizando aquilo que

buscam. Como em todos os trabalhos do Gamurio, com exceção do de Tronos, os

pacientes não conversam com a dita entidade, e, no caso do trabalho em questão, nem

mesmo há aproximação, nada dela se ouvindo. O visitante simplesmente dá um ou dois

passos no sentido de entrar no espaço próprio ao trabalho, fica parado por alguns

segundos com as mãos levantadas na altura da cabeça voltadas para uma espécie de altar

onde, por conta da pouca iluminação, apenas se pode presumir que esteja sentado o

apará. Logo em seguida, o paciente se serve com um pequeno copo de suco e está

liberado para outros trabalhos.

Os trabalhos de Defumação e Sudálio ocorrem no mesmo espaço. Em

ambos, os pacientes se servem com sal e passam perfume como de praxe. Naquele, são

orientados a permanecer de olhos abertos, a não cruzar as pernas, a manter as mãos

sobre os joelhos e, mais importante, a mentalizar o motivo que os trouxe até o templo.

Basicamente, o mestre e a ninfa encarregados do trabalho emitem e um terceiro mestre

passa uma série de vezes com um defumador em volta dos pacientes. Apesar de ser um

dos ritos mais simples, é um dos mais recomendados pelas entidades nos Tronos. Já no

Sudálio, há médiuns do Aledá cantando e aparás sentados por toda parte, bem como

jaguares que controlam e manejam os pacientes conforme as “entidades” que vão

liberando outros visitantes. É um trabalho próprio dos Caboclos, embora também

possam ser incorporados Pretos-velhos, e os pacientes só podem passar por até três

deles. Os Caboclos parecem fortalecer os pacientes com seus gritos vigorosos que

saúdam várias entidades e com as intensas batidas que dão no próprio peito. No mesmo

espaço voltado para essas duas atividades ocorre também a chamada Linha de Passe,

que só acontece quando a “Corrente Mestra” não é aberta.

157
Outro ritual de grande significado para o Vale é o de Cruz do Caminho, por

conta de sua relação com outra entidade muito importante: Mãe Yemanjá. Além dessa

entidade, também são incorporadas as suas Sereias, isto é, o chamado Povo das Águas.

É um rito de certo modo parecido com o Oráculo e que possui ligação com este desde

que, aparentemente Mãe Yemanjá é supostamente incorporada naquele e então levada

até a “Cruz”; contudo, aqui se adentra por pouco tempo o espaço no qual ele ocorre e,

caso seja o primeiro ou o segundo paciente na fila, pode-se ter uma melhor

compreensão do que ocorre já que se é convidado para adentrar, sentar e participar da

abertura deste, que envolve uma série de detalhes, os quais não cabem ser aqui

pormenorizados. Dentro desse espaço, que é pouco iluminado, podem ser vistas uma

imagem da “mãe clarividente” do VDA e ainda figuras ligadas ao Egito. Quando o

paciente entra na Elipse, rapidamente toma sal e perfume e então, sem tocar, se

aproxima da ninfa Ajanã – isto é, de incorporação – que têm um véu lilás sobre a cabeça

e as mãos como que em vibração, que ficam voltadas para o paciente. Após alguns

segundos, sinaliza-se para que o paciente saia.

Resta agora apresentar os trabalhos que quase se poderia dizer que têm

verdadeiros templos voltados apenas para eles, como é o caso do de Turigano, de

Estrela de Sublimação e de Alabá, que são realizados fora do templo principal, onde

ocorrem todas as atividades que acabamos de descrever. Eles requerem maior

quantidade de tempo, que varia dentre uma hora e meia a duas horas e meia, e, com

exceção do Alabá, exigem um contingente de mais de cem adeptos para que possam

ocorrer.

O trabalho de Turigano é o que tem maior duração. Aqui se faz ainda mais

nítida a impressão que fora se apurando ao longo de muitas observações dos mais

diferentes trabalhos: o de que o paralelo com o teatro é uma perspectiva bastante rica no

158
sentido de lançar luz, compreender e analisar todos esses rituais. Fica mais evidente o

fato de que alguns espíritos de luz, guias e mentores bem como uma série de outros

personagens estão sendo representados não somente através das pretensas incorporações

que nele têm lugar, mas também pelos outros partícipes do ritual. Nele, revive-se o

drama de Pytia, suposta encarnação pregressa de Tia Neiva que teria de resgatar uma

rainha exilada que fora sequestrada e presa pelo espartano Leônidas. Um grande espaço

coberto abriga dezenas de médiuns e também de pacientes, que são divididos entre

homens e mulheres, que entram, respectivamente, por um portão com um grande sol e

uma grande lua, e como de praxe pegam sal e perfume, sendo todos servidos com água

vez por outra pelas Samaritanas – e, no caso dos jaguares, ainda com “vinho” (suco de

uva). Há uma quase que constante movimentação de adeptos, seja para serem

“aprisionados” em certas câmaras e então incorporarem, seja para se dirigir a

determinados pontos como a Chama Iniciática e emitir ou ainda para trocar de lugar

com outros jaguares. Neste trabalho, que segue a estrutura a que já se fez menção do

Cavaleiro da Lança Reino Central e demais Cavaleiros, as ninfas representantes de

todas as Falanges fazem suas emissões, isso sem levar em conta a emissão e as falas de

vários outros adeptos.

O trabalho de Estrela de Sublimação também envolve, assim como no

Turigano, a estrutura de interação à qual já se aludiu entre o representante do Cavaleiro

da Lança Reino Central com os representantes dos demais Cavaleiros, mas

principalmente entre aquele e um Ajanã, isto é, um Mestre Lua (apará), que no caso da

Estrela – maneira como é frequentemente referida pelos jaguares do Gamurio – se trata

do representante de Vancares e de outros mestres aparás, que ficam em lados opostos do

espaço do trabalhos, cada qual fazendo dupla com sua ninfa. Entre eles, uma mesa em

formato de estrela de seis pontas, nas quais ficam sentados aparás e, atrás deles,

159
doutrinadores, que também ficam nas regiões entre as pontas. É onde, após a negação da

entrada de ninfas de determinada falange no espaço do trabalho pelas ninfas Gregas e o

sua posterior autorização de outra falange (que tem acesso a este através de uma Fila

Magnética que conecta o espaço do Turigano a este), bem como após estas deitarem de

bruços nas Esquifes – que estão bem quentes graças à exposição ao sol ao longo do dia

– se tem início a Mesa Evangélica, em que os alegados Pretos-velhos incorporados

prendem as energias negativas, que por sua vez são doutrinadas e elevadas pelos

mestres e ninfas Sol, e, depois, a chamada Contagem, na qual todos os aparás do

trabalho incorporam o Povo das Águas. Ao final, os pacientes recebem rosas e as ninfas

deitadas nas Esquifes podem finalmente levantar-se.

Resta tratar do último dos trabalhos abertos para os visitantes, no caso, o de

Alabá, que ocorre nos três dias que antecedem e que sucedem o dia da lua cheia além do

próprio dia em questão. São sete dias ao todo em que, independente da abertura do

templo, este ocorre. O espaço tem o formato da elipse e nas extremidades desta se tem

poltronas de alvenaria onde ficam sentados os aparás, que incorporariam Pretos-velhos,

atrás dos quais ficariam posicionados os doutrinadores, que, como nos Tronos,

apresentam a entidade e solicitam que o visitante diga seu nome completo e idade e que

não feche os olhos. Basicamente, o que as pretensas entidades fariam seria uma limpeza

nos pacientes através de suas saudações estereotipadas e dirigem palavras de conforto e

alento a estes, que, assim como no Sudálio, passam por no máximo três entidades.

Enquanto os doutrinadores que ficam atrás das poltronas emitem e proferem as palavras

que constam no seu script, suas entidades não atendem nenhum paciente, e o trabalho só

se encerra quando, após o último emitir, os alegados espíritos conversam com os

doutrinadores rapidamente e desincorporam.

160
Longe de contentar-se com a exposição aqui pretendida, que pode ser dita

insuficiente no que concerne a todos os trabalhos aos quais se tentou lançar alguma luz

a fim de dar base ao que fora manifestado pelos aparás nas entrevistas realizadas, é

preciso que digamos que o TGA conta ainda com muitos outros trabalhos, que por sua

vez são voltados apenas para o corpo mediúnico, ainda que alguns deles sob certas

condições possam ser observados de fora. Dentre eles, podem ser mencionados os

trabalho de Leito Magnético, Abatá, Mesa Evangélica, sendo talvez os mais

interessantes para os objetivos deste pesquisa o de Sessão Branca, no qual acredita-se

que índios do Alto Xingu que saem do corpo ao dormir seriam incorporados; o de

Angical, nos quais são os chamados espíritos cobradores dos mestres pretensamente

incorporados e, por último, os de Aramê e de Julgamento, que parecem bem próximos e

implicam na condição de prisioneiro, que por sua vez requer trajes especiais para as

ninfas e mestres. Estes dois e o Angical foram inclusive mencionados nas entrevistas48.

48
Cabe acrescentar ainda o trabalho de Pajé, que é voltado para crianças. Infelizmente, não se teve
oportunidade para observar este trabalho, bem como os outros voltados para o corpo mediúnico cuja
premissa de que não são voltados para os pacientes, categoria na qual o autor inevitavelmente acabou se
enquadrando, impedia sua participação. Entretanto, o presidente do TGA chegou a consentir que o
pesquisador participasse do trabalho de Sessão Branca, o que acabou não ocorrendo por conta do tempo
de trabalho já se encontrar demasiadamente avançado. Este foi o caso também no que se refere às
Obrigações do CEUJMJ e às Reuniões Mediúnicas do CEGM, das quais também só se pôde começar a
participar muito tarde.

161
PARTE IV

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE

DOS RESULTADOS

162
CAPÍTULO 8
A EXPERIÊNCIA DOS MÉDIUNS.

“Da sua mente parte, com certeza, se não o espírito ele não ia se ligar a

você, ele vinha sozinho e se materializava. Ele precisa do que você tem,(...)

do seu conhecimento, (...) da sua mente, (...) do seu ectoplasma, (...) das suas

palavras. (...) Cada um que vem ele vem preparado, ele falaria na língua que

ele quisesse, só que ele vem dentro de uma cultura, e ele respeita isso da

cultura, né? Ele respeita essa cultura desse país, desse estado, desta casa, e

também do apará. (...) Da sua mente sempre vai ser, mas não vai ser por que

você quis e teve interferência, no máximo vai ser por que ele pegou até como

resposta pra você, por que tudo que nós temos os nossos mentores eles

utilizam, nada se perde” (Vera, médium do TGA)

Neste capítulo, talvez o mais importante do trabalho, dedicar-se-á a

apresentar um resumo das entrevistas realizadas com os médiuns do CEGM, do

CEUJMJ e do TGA nos três subcapítulos. Explorar-se-á as respostas dos diferentes

médiuns de cada grupo às perguntas concernentes a cada uma das categorias

estabelecidas a priori que serviram como base para a realização da entrevista

semiestruturada e também para com as categorias que venham a emergir, buscando-se

explicitar as principais tendências em comum encontradas no relato dos médiuns de

cada grupo e os eventuais aspectos destoantes ao final, quando se apresentará uma

síntese dos resultados.

8.1. A experiência dos médiuns do Centro Espírita Grão de Mostarda

De família predominantemente católica “não praticante”, a médium

Eugênia, que é professora aposentada e tem 59 anos, tivera como referência kardecista

apenas o pai, que apenas lia obras espíritas. Uma das razões para não ter se tornado

163
católica é o fato de ter sofrido humilhações e perseguições públicas em uma instituição

educacional administrada por freiras, onde, em função de padecer na época de

epilepsia49, acabava se tremendo muito ao ser chamada para fazer leituras, o que lhe

rendera ameaças, perseguições por colegas e inclusive o rótulo de “anormal” por parte

de uma Irmã. Isso tudo a marcou de maneira ímpar, de modo que constantemente se

referia a tais acontecimentos. Recorda-se de ter ido a outros centros espíritas antes, mas

apenas como frequentadora, chegando ao CEGM em 1990, quando tinha 36 anos,

convidada por um amigo de trabalho com o qual desabafara acerca da vida que levava,

começando então a fazer um curso com Rogério (doutrinador). Pouco tempo depois,

passou a trabalhar na casa, ficando na recepção, fazendo cursos, dando passes, etc., até

que, após mais ou menos vinte anos como trabalhadora, ao fazer um curso de

mediunidade para se “reciclar”, descobriu-se médium.

Eugênia se lembra de, na parte prática do curso, que estipula ter durado um

ano aproximadamente, ao tentar psicografar, não “vir nada, um branco total” mesmo

depois de alguns dias tentando. Após certo tempo, passou a ser surpreendida por

histórias que lhe ocorriam fora das mediúnicas. Depois, passou a escrevê-las nas

próprias reuniões, resultando que o doutrinador Miranda viria a lhe comunicar que era

médium, iniciando então a participar da mediúnica dirigida por Rogério, na qual já

trabalha há quatro ou cinco anos, primeiramente psicografando e só nessa reunião

desenvolvera a psicofonia, que segundo a médium é quando “o espírito se aproxima,

(trecho inaudível) [conta] a história dele e a gente passa”. Para Eugênia, a mediunidade

pode ser definida como um dom, que, por ser dado, implica que aquele que é seu

portador é cobrado no sentido de “trabalhar em prol do seu próximo”, isto é, que

possibilite que os espíritos da mediúnica “coloquem seu sofrimento”. Dera bastante

49
Disse ter ouvido de um psiquiatra que sofria de Fobia Social.

164
ênfase ao fato de se considerar uma médium “totalmente” consciente – “só passa aquilo

que a gente deixar passar”, não os deixando dizer palavrões – e, só tendo trabalhado

como médium no “Grão”, no qual já está há 24 anos, considera a atividade positiva

desde que esta tem como característica fundamental a voluntariedade.

Sua preparação para as reuniões envolve basicamente não fazer refeições

pesadas50 e manter bons pensamentos, o que, para ela, assim como a reforma interior,

ajuda sempre e em tudo. Às vezes, antes da reunião, sente “uma angústia, a vida sem

sentido, um monte de coisa, chega e o espírito vem”. Diz que as sensações variam

conforme o tipo de espírito que se aproxima, mencionando o caso dos “vampiros”, que

provocam mal-estar ao chegar, o que atribui aos seus “fluidos pesados”. Quando estes

se afastam, sente alívio. No caso dos suicidas, ao se aproximarem, sente falta de ar,

dores, angústia e tristeza, e, ao partirem, sente pena. Segundo ela, “toda vida é

comunicação de espírito sofredor”, embora sinta seu pai próximo nas reuniões e acredite

ter um anjo da guarda, para ela um espírito mais evoluído, fazendo questão de

diferenciar sua concepção daquela do catolicismo.

Na sua visão, o CEGM é “uma continuação da minha família”, onde tem

muitos amigos, encontrando nas práticas de estudo em grupo oportunidade para

prosseguir aprofundando seu conhecimento religioso – que para ela tem mais caráter

doutrinário; mas também para “ler mais português” (era professora da língua). No

entanto, mais que o Centro, que a própria atividade mediúnica e até que os oito anos de

terapia que disse ter feito, para ela é a doutrina “a coisa mais importante... na minha

vida” e que mais lhe ajudou. Assim, a doutrina espírita é vista como a razão das

mudanças percebidas em si, como ter se tornado menos materialista e mais leve, saber

50
Sugestão dada nas mediúnicas. Alega-se que os espíritos que se suicidaram ingerindo muitos remédios
podem fazer os médiuns vomitarem.

165
relevar mais as desavenças e atrair mais as pessoas para si. O exercício da mediunidade,

portanto, seria apenas um cargo, mais um dos trabalhos possíveis dentro do Centro.

Alega que, principalmente no início, tivera dúvidas e se questionara se tudo

não seria fruto de imaginação, parte disso permanecendo ainda hoje no que diz respeito

à psicofonia ainda que em menor grau, razão pela qual esta acaba se sentindo mais

confortável com a psicografia (na qual simplesmente “a história vem”), mesmo sendo

aquela a única modalidade que pratica. Uma série de acontecimentos narrados por

Eugênia, entretanto, são vistos como constatações ou como evidências contrárias ao seu

temor, dentre eles eventos em casa e nas próprias reuniões. É o caso da ocasião narrada

em que após “dar” a comunicação de um espírito que falecera de câncer, que “morreu

fumando”, algumas pessoas sentiram um forte cheiro de cigarro. Um dos mais

chamativos diz respeito ao que interpretou como uma comunicação de sua mãe,

incorporada em outro médium, que lhe dissera que “os sonhos que você tem comigo não

são sonhos”. Apesar de ter se referido a vários acontecimentos, um dos casos que mais

destacou foi o de um escritor cético que ao chegar no “outro lado” precisou se

comunicar para parar de sofrer, tendo retornado depois algumas vezes para agradecer

pela “luz” e para dizer que fundara um grupo no lado espiritual para os céticos que lá

chegavam. Ela possui tais psicografias até hoje.

“Eu acho que não tenho o que duvidar não da minha mediunidade”, diz após

narrar tais eventos. A médium acha que é sua missão realizar esse trabalho para ajudar

os “espíritos sofredores”, pois tem uma impressão (menos que certeza) de que deve

muito graças aos males praticados nesta e nas muitas outras vidas que acredita ter tido,

supondo que numa delas foi um “dono de escravos”, tendo justificado tal suposição

baseando-se em sensação que teve em casa certa vez de que estava rodeada por

escravos. Atribui também o sofrimento decorrente do que vivera no “colégio de freira”

166
às suas “outras vidas”. “Eu tenho muita comunicação com freira, muita, vem muita

freira através de mim, vem umas freiras que não são pessoas boas, mas vêm freiras boas

também”, confessando apreciar esteticamente missas, igrejas e imagens sacras, inclusive

relatando visões de si própria como freira – tanto na mediúnica quanto em casa. Não

admite que essa visão e as comunicações possam ser justificadas por seu “trauma” na

escola, e mostrando-se convencida de que nada de sua experiência subjetiva possa ter

influenciado em alguma comunicação. “Então eu acho que é da outra vida”, diz.

A médium Zíbia, também professora aposentada, de 58 anos, cresceu em

ambiente familiar católico do interior que, no entanto, era bastante afeito à prática de

reuniões espíritas no próprio lar, rememorando com bom humor de espiá-las. Nesse

sentido, relatou “experiências espíritas” desde a infância, como a de quando teria visto

uma tia falecida por quem muito nutria afeto, que fizera, segundo ela, a rede em que

estava deitada levitar. “Minha mãe sempre acreditava em mim, meus pais”, recorda.

Atualmente, além de espírita, Zíbia é também Rosacruz, considerando esta – que para

ela não é religião – mais ampla e também mais importante em sua vida que a doutrina

kardecista. Contudo, sem encontrar na Rosacruz a possibilidade de “trabalhar essa

mediunidade”, que é por ela vivida como um imperativo, “o local mais certo seria o

espiritismo, pra mim eu me adapto dentro do espiritismo”, cuja cosmovisão é por ela

basicamente tratada como a de um “mundo entrelaçado (...) tá entrelaçado os dois

mundos, espiritual e material”. Zíbia estimou que seu primeiro contato com livros de

Kardec deva ter ocorrido por volta do ano de 1966, quando, por conta de um

“casamento desastroso”, não era autorizada pelo ex-marido a frequentar religiões.

Lembra-se com pesar do período em que vivera com este, mencionando que, com

apenas dezesseis anos, morando numa cidade nova, sem amigos e familiares e dois

167
filhos ainda pequenos, tinha visões de “letreiros luminosos” com salmos bíblicos,

experiências estas que muito lhe marcaram apesar do medo que na época lhe suscitaram.

Uma vez rompido o relacionamento, a médium viria à Fortaleza, onde,

segundo lembra, a primeira coisa que fez foi buscar um centro espírita e uma loja

Rosacruz. Antes de chegar ao CEGM, porém, disse ter trabalhado por cerca de dez anos

num outro centro, onde conheceu, em termos de espiritismo, seu “mestre” – termo que

utiliza com reservas por ser próprio da Rosacruz. Refere ter feito seu primeiro curso de

desenvolvimento da mediunidade nesse centro, precisando fazê-lo novamente por conta

do medo, desta vez com prática, para que sua mediunidade fosse “educada” pois que

para ela já era desenvolvida, precisando apenas “desinibir”. Segundo Zíbia, apesar do

considerado desenvolvimento já obtido, começara praticando a psicografia, atividade

esta que, assim como a mediunidade de “ouvir”, não lhe agrada tanto quanto a de “ver”,

a ponto de que, quando passa muito sem ter, sente falta. Não gosta de “escrever o

pensamento dos outros” e diz ser a audiência perturbadora quando se trata de “barulhos”

e não de sons mais harmônicos. Pensa ter sido a psicofonia a principal aquisição – já

que as “visões” eram sua principal vivência – dos cursos de desenvolvimento, que a

médium voltaria a fazer já no “Grão”. Por questão de desavenças com a “ala

conservadora” do seu primeiro centro, acabou se afastando deste, buscando outras

instituições espíritas e só então chegando ao CEGM, onde diz estar há cerca de vinte

anos. Não considera o Centro em questão importante, alegando que poderia trabalhar

em outro, não tendo jamais se perguntado sobre a razão que lhe faz nele permanecer

trabalhando. Referiu que “tanto faz ser médium lá no Grão”, não considerando este

como local exclusivo de prática da mediunidade, prosseguindo afirmando que “não fico

fazendo mediúnica aqui em casa por que não é bom (...) mas eu não posso dizer ao

espírito que ele não venha aqui... Ele vem!”.

168
Apresenta como elemento quase constante da sua trajetória relacionada à

mediunidade a dúvida: “Comecei duvidando e hoje ainda me vejo duvidando”. Outro

aspecto igualmente recorrente diz respeito à ideia de associação entre a experiência e a

insanidade, que no início lhe causava medo, de modo que, nas suas próprias palavras,

“Muitas vezes eu me pergunto se aquilo num é loucura”. No que se refere à concepção

de mediunidade, “é um canal que tá aberto para ver esse mundo espiritual, por que

muitas vezes é como se fosse assim um rádio que tá ligado”. Nos dias de mediúnica,

preza por descansar após o almoço, dando porém mais destaque à sua “preparação

mental” – que para ela é necessária que ocorra sempre – em detrimento das “etiquetas”

dos médiuns. Relata incorporar principalmente homossexuais, atribuindo como causa

para isso a crença de que fora uma em uma de suas encarnações – alegando tê-las

“descoberto” em “experimentos” da Rosacruz, crendo ter vivido na Europa e nos

Estados Unidos – além de Pretos-velhos, sofredores, suicidas e outros espíritos mais

significativos, como André Luiz numa psicofonia, Manuel Bandeira em uma poesia

psicografada e Mario Kaula Bandeira, fundador do CEGM, também numa psicografia.

Referiu saber o que diz no momento da comunicação sem, no entanto, lembrar-se

depois, sentindo sua “consciência turbada” (sic.). Enfatiza que as sensações que

acompanham os espíritos dependem principalmente do que eles sentem. Sua principal

razão para continuar praticando a mediunidade é a gratificação obtida com “o contato

com o mundo espiritual”, tendo dado como exemplo a notícia que teve do “reencarne”

de seu pai, embora refira que eventos como esses não ocorram sempre, sendo um dos

fatores principais a crença de estar ajudando pessoas que “desencarnaram”, mas não

sabem. Refere já ter se perguntado se algo seu interferira nas comunicações, buscando

fazer uma “barreira”, separar assim como alega fazer com os termos espíritas e

Rosacruz, dizendo porém que “sempre tem algo do médium”. As mudanças pelas quais

169
passou são por ela atribuídas mais ao processo natural de amadurecimento e às

doutrinas espírita e Rosacruz do que à própria prática de mediunidade. Não reconhece

nenhum tipo de impacto no que diz respeito à sua família, trabalho ou lazer, com

exceção de ter mencionado que perdera alguns amigos pelo fato de ter se tornado

espírita. Zíbia narrou ainda repetidas vezes episódios de tensão e conflito com

doutrinadores, especialmente com Rogério, “Mas eu vou discutir com o doutrinador,

que é o sabe-tudo (...)?”. Num deles, um dos espíritos manifestados teria dado uma

“lição” neste, que faz “separações” e intervenções das quais discorda profundamente,

além de divergirem politicamente.

Cândido, 64 anos, supervisor de produção aposentado, médium que refere

ter sido “católico praticante” antes de sua conversão ao espiritismo, identifica em sua

trajetória religiosa anterior algumas “tendências” para a doutrina. Apesar de não ter se

declarado como vinculado a nenhuma outra fé além da católica, sua mãe era médium

umbandista, fato este que, como se poderá perceber, tem importante influência em sua

prática mediúnica. Por conta dessas tendências que antes lhe assustavam – sonhos,

visões, sensações de presença e vozes que ouvira a partir do fim da infância e do início

de sua adolescência; após certo tempo, por volta dos dezessete a dezoito anos, veio a

compreensão de que era médium, o que ocorreu, portanto, “bem antes” de “passar” para

o espiritismo. “Eu tinha muito tato pra lidar, né, com... com... com os espíritos (...), eu

conversava com eles... Numa boa, mas eu não sabia que eu poderia ser médium”,

recorda. Segundo se pode depreender de seu relato, a conclusão à qual chegou, em si,

não fora suficiente para que viesse a buscar uma religião mediúnica, já que só viria a

conhecer o espiritismo, chamado de “encontro da minha vida”, praticamente dez anos

depois, o que tampouco o convenceria a fazê-lo de imediato, “até que a espiritualidade

me desse a intuição que eu procurasse um centro espírita, e eu procurei naturalmente”, o

170
que por sua vez parece ter ocorrido há mais de quinze ou dezesseis anos atrás, que é o

tempo de prática mediúnica que Cândido diz possuir. Pode-se estipular que um dos

fatores possivelmente influentes nessa latência entre o reconhecimento de que era

médium e a busca de fato por um centro espírita, bem como entre o primeiro contato

com a doutrina e este, além de certa resistência, a expectativa de acabar tomando os

rumos da mãe: “por que eu pensava que ia ser um médium, mas um médium de

Umbanda, sabe?”.

Fez “testes” e começou a trabalhar em mediúnicas num outro centro espírita,

do qual saiu por conta da ausência de cursos, do pouco estudo e da falta de

compromisso dos participantes da atividade, coisas que parecem não faltar no CEGM,

que é o segundo e atual centro do médium. Diz que “não é o centro espírita que precisa

do médium, é o médium que precisa do centro espírita” e que sua “casa” é tão

importante quanto qualquer outra, destacando a doutrina ainda que se referindo a outros

aspectos, como a proximidade de casa, os bons amigos que nele fez, a estrutura e os

cursos, que para ele parecem fundamentais. Neste chegando, após conversar com o

doutrinador Miranda sobre sua “facilidade de perceber espírito”, teria iniciado seu

primeiro curso de mediúnica, contando com duração de dois anos e mais seis meses de

prática, tendo, ao longo desse tempo, perdido boa parte de seu medo – a ponto de ter

dado comunicação na primeira oportunidade. Ao final das práticas, mencionou que o

doutrinador tratava com cada um dos iniciantes. Um aspecto sublinhado pelo

entrevistado foi o de que a educação mediúnica teria lhe provido com o que chama de

“filtração”, habilidade que envolve a distinção a ser feita pelo médium entre espíritos

que realmente têm “necessidade” de se comunicar, que precisam de “tratamento” ou que

comparecem para “pedir perdão” – devendo ainda avaliar se há tempo para todos estes –

e aqueles que chegam “próximo à consciência” deste para “atrapalhar a reunião”, para

171
falar mal das pessoas, ou simplesmente para perturbar sua concentração e “brincar com

você”. Assim, aprendera que nem toda comunicação pode ou merece ser dada.

Contudo, a despeito do fato de ser médium espírita, referindo-se à

mediunidade como um “dom de família”, fica claro que, no caso de Cândido, além do

guia que alega ter apesar de desconhecer, dos suicidas e de outros tipos de

“desencarnados”, o médium declara por ele se comunicarem Pretos-velhos, Caboclos e,

ainda mais importante, um guia chamado “Sargento de Cavaleria”, na sua crença um

“militar do bem”, que, segundo ele, já se fizeram presentes em mediúnicas “aqui no

Grão de Mostarda”, sendo marca destes pedir “licença ao presidente da mesa”, de modo

que ele próprio procede à uma distinção entre o guia da Umbanda e o Kardecista. O

médium disse não ter ido à Umbanda por acreditar ter uma “qualidade de mediunidade

(...) completamente diferente”, crendo ser a desobsessão seu diferencial em termos de

objetivos apesar de também receber os “amigos da Umbanda”. Sentia que “tinha que ir

mais na frente um pouco” em relação à mãe, que teria sido a primeira a incorporar o

“Sargento”. Considera-se um médium consciente e do tipo exclusivamente

“psicofônico”, dizendo não ter dom para a psicografia – interpretando suas visões de

antes como um “chamado” para sua “missão espírita”. Embora Cândido não tenha

conseguido expressar o que entende por mediunidade, descreveu em detalhes como se

processa e quais as sensações próprias da psicofonia, na qual afirma sentir um

“impacto” decorrente do “acoplamento” em seu “cérebro” pelo espírito, que fica atrás

dele e não literalmente “incorporado”. Consoante ele, “cada caso é um caso”, razão pela

qual a partir daí o que sente varie segundo o espírito, que ao sair deixa geralmente o

médium relaxado ou cansado. Sua preparação para as reuniões envolve buscar bons

pensamentos, boa alimentação, não beber ou praticar sexo, não ver programas de

violência e ouvir músicas suaves. Ao sair das reuniões, busca “refletir tudo aquilo que

172
passou, vou procurar entender”. Uma significativa mudança percebida, que por sua vez

é atribuída principalmente à doutrina (seu “equilíbrio de vida”), diz respeito à paciência

e à tolerância adquiridas, exemplificadas pelo médium através da intuição obtida da

“espiritualidade” para a superação de problemas com o filho. Quanto ao animismo, já se

questionou acerca da legitimidade da comunicação de uma amiga “desencarnada”,

trabalhadora do “Grão”, preocupação que, no entanto, fora sanada pelo doutrinador

Rogério, que a teria reconhecido. Marcou-lhe especialmente a visão do avô

“desencarnado”, que viera avisá-lo da partida da avó – que ocorrera pouco tempo

depois. Nas palavras de Cândido, a partir daí “passei a acreditar mais em mim e no que

eu via”.

Franco, funcionário público, 55 anos, médium do CEGM há doze anos (e

trabalhador deste há dezoito), refere ser o espiritismo sua “primeira e única religião”,

comparado por ele a uma “ave de grande asas” (sic). Remete a origem da sua “missão”

mediúnica à adolescência, por volta dos doze e catorze anos, fase de sua vida em que

em função da curiosidade teria frequentado a Umbanda como “visitante” para observar

“aquilo que ocorria dentro de mim”, chegando a sentir “aquela energia, aquela coisa

estranha, aquele negócio diferente”, tivera um “clarão” de sua mediunidade. Fez

menção à possibilidade de já nestas ocasiões estar “mediunizado” sem saber e, como

evidência por ele percebida de sua “tendência (...) do extrafísico” desde a infância,

destaca duas cenas: a de, ainda adolescente, “agir da forma de um índio guerreiro” na

casa de sua avó, “como se eu tivesse com arco e flecha na mão, tivesse ou caçando, ou

pescando” e a ocasião em que, após uma entidade ter dado nele um passe numa Festa de

Iemanjá, teria se percebido “girando em alta velocidade” e “rodopiando sem controle”,

sentindo tontura e a vista escurecida.

173
Esta cena tem um lugar especial na memória do médium, que, após ter sido

amparado pela mesma entidade, ouviu desta que iria ser “um grande médium” e que

precisava “desenvolver”, embora segundo ele a juventude lhe tivesse impedido de fazê-

lo. Somente no ano de 1996, conversando com uma amiga sobre o tema, as dificuldades

da vida e “aquela história de que eu faço as coisas e não dá certo”, Franco seria

convidado ao “Grão de Mostarda”, onde viria a iniciar o CBE e, logo em seguida, “jogar

tudo pra cima”, para no ano seguinte responder ao “chamado”, retornando graças à

“insistência” de Rogério, que é seu “guru” da doutrina espírita. Demonstrou gratidão e

reconhecimento para com a “casa” que o acolheu e onde começou a se “encontrar”,

destacando as “grandes amizades” nela feitas – enfatizando o encorajamento da

“moçada” mais experiente como Mario Kaula, Rogério e o Diretor Doutrinário; mas

principalmente, aproximando-o da doutrina de Kardec, que lhe deu sua “direção”, “um

roteiro muito... um rumo, um oriente” (sic). Relembrando seus percalços, o médium

enxerga neles, além da influência de entidades “querendo impedir nossa entrada na

doutrina”, do que tem “plena convicção”, muitas dúvidas e inseguranças quanto à

autenticidade das percepções dele, pensando tudo não passar de “imaginação” e

“fantasia” ou que todas as pessoas as vivenciassem, que por sua vez foram fatores

aludidos de forma recorrente pelo entrevistado. Terminado o curso inicial, que o

instigou a “devorar” os livros da doutrina e o “despertou”, o entrevistado teria

começado a Iniciação Mediúnica em 1998, curso em que os “coordenadores vão

percebendo”, de modo que, embora tenham chegado a cogitar que ele viria a ser

doutrinador, um deles reconhecera seus “reflexos” e “sentimentos”, que não eram por

ele interpretados como indícios de mediunidade por pensar ser “a coisa mais normal do

mundo”, mas principalmente por achar que “o mal de todo médium, a dúvida de todo

174
médium é dar a comunicação consciente”. Só viria a participar de uma mediúnica de

fato no ano de 2003, quando identificaria quais não podiam ser pensamentos seus.

Nesse ínterim, a despeito de alegar ser um médium consciente, Franco

parece nutrir esperanças de um dia vir a “dar uma comunicação inconsciente”,

considerando ficar “ainda mais... mais certo da minha mediunidade”. Ensaiando sua

definição de mediunidade, faltaram-lhe palavras para expressar suas ideias, fazendo

menção a ela como “um sentido (...) tão forte, talvez, quanto a tua visão”, acreditando

tê-la para ajudar as pessoas que tenha “prejudicado numa outra vida”, o que faz com

prazer e satisfação. Quanto mais sente que consegue ajudá-los, mais vontade tem de

continuar, segundo ele. Apesar de se referir a percepções, declara que além destas seu

único tipo de mediunidade é a psicofonia, na qual sente o espírito “dizendo assim dentro

da minha cabeça”. Refere preparar-se nos dias da mediúnica buscando manter-se atento,

orando para seu guia logo pela manhã e tentando “andar o mais reto possível”,

percebendo que sua conduta influencia no desempenho nas mediúnicas. “Médium é

médium vinte e quatro horas. Até quando você tá dormindo... Você pode tá trabalhando

no plano espiritual”, justifica. Os espíritos que mais narrou receber foram chefes de

grupos que no “umbral” escravizam outros espíritos e que perseguem os trabalhadores e

pessoas que buscam o Centro, além de “vampiros” e outros espíritos sofredores como

drogados, alcoólatras, etc., afirmando ser raro receber espíritos mais elevados. Quanto à

chegada dos espíritos, diz que “depende muito da entidade”, sentindo tremores,

formigamento e, às vezes, não notando sua aproximação, sentindo mais “firmeza”

quando isso ocorre. Deu bastante ênfase às intensas “dores físicas” experimentadas, que

o deixam positivamente surpreso. Quando são os espíritos supracitados, provocam mal-

estar e, ao partirem, deixam o médium “aniquilado” por conta da “energia” que

“sugam” deste.

175
O médium admitiu sem dificuldades que o fenômeno do animismo já

ocorrera com ele, embora tenha acabado falando mais acerca da possibilidade de que a

impressão envolva a artimanha de algum espírito “enganador”. Atualmente, Franco se

percebe mais compreensivo por conta da doutrina e enxerga um ponto negativo além

dos positivos já mencionados: as tentações se tornam maiores. Caso tivesse sua

mediunidade retirada, diz que iria “continuar trabalhando” no CEGM. Resta ressaltar a

afinidade e a admiração do médium pelo doutrinador Rogério, que foi mencionado com

frequência pelo entrevistado. Um dos episódios interessantes diz respeito aos chamados

“bloqueios” de comunicação do médium por insegurança, ficando com a consciência

pesada por conta de não ter ajudado e, assim, levando “carão” das entidades, deixando

também o dirigente irritado. Fez referência a acontecimentos curiosos, como espíritos

da umbanda “fazendo estágio” no “Grão”, comunicações de espíritos muçulmanos e de

torturados pela ditadura militar, evento histórico que acabara de completar 50 anos.

Quadro 2. Síntese dos achados das entrevistas e aspectos mais recorrentes relativos ao CEGM.

Aspectos mais
Categorias/Médiuns Eugênia Zíbia Cândido Franco
recorrentes
Educação Ambiente Católico, filho Sem religião,
católica, hoje familiar católico de mãe visitante na Influências
espírita. simpático ao umbandista, Umbanda, hoje católica e
Percurso religioso
espiritismo, hoje hoje espírita. espírita. umbandista
Rosacruz e marcantes.
espírita.
Dom que Canal aberto Dom de família. Difícil de definir. Certa
implica que para o mundo Dificuldade para Sentido mais forte inefabilidade.
aquele que o espiritual, como expressar sua que a visão, Percebida como
Definição de
recebeu um rádio ligado. compreensão, função de ajudar dom, canal e
mediunidade
trabalhe em não conseguiu pessoas que possa sentido cujo
prol do conceituar. ter prejudicado propósito é a
próximo. (vidas passadas). caridade.
Idade adulta. Infância. Adolescência. Adolescência:
Curso de Experiências Sonhos, visões, clarão ao visitar a Mais
Início das mediunidade espíritas sensações de Umbanda. frequentemente
experiências para se (espírito da tia presença e ouvir remetido à
reciclar (após falecida levita vozes. adolescência.
20 anos). sua rede).
De início, não Já era Dois anos e Cogitado que Não há tempo
conseguia desenvolvida, meio de curso seria doutrinador. definido para os
Desenvolvimento psicografar. precisou educa- mais seis meses Coordenador cursos pelos
da mediunidade Histórias lhe la e desinibí-la. de prática, além percebera reflexos quais passam os
ocorriam fora Tinha muito de cursos e sentimentos. médiuns, que
da mediúnica medo, precisou anteriores. Cinco anos para iniciam pela

176
e ela escrevia, fazer mais Perdera o medo. participar da psicografia e
fazendo-o cursos. Aquisição da primeira têm como
depois nas Começou com filtração: mediúnica, momentos altos
reuniões. psicografias. distinção entre quando aprendera do processo a
Começou na Aquisição os espíritos a distinguir seus psicofonia, o
mediúnica e só fundamental: necessitados de pensamentos e os controle sobre
então dar perdão e dos espíritos. os espíritos e a
iniciaram as comunicações. tratamento e os perda do medo.
comunicações. zombeteiros.
Psicofonia e Psicofonia, Psicofonia. Psicofonia e Psicofonia,
Tipos de
psicografia. psicografia, Visões no percepções. psicografia e
mediunidade
visões e “ouvir”. início: chamado. percepções.
Totalmente Permanece Consciente. Consciente.
consciente, só consciente, mas Desejo de um dia Relatam
Percepção do nível
passa o que não recorda dar comunicação permanecer
de consciência
deixa passar. tudo. inconsciente: não conscientes.
ter mais dúvidas.
Bons Descanso após o Bons Dias de reunião:
pensamentos, almoço. Ênfase pensamentos. oração para os Busca por
reforma maior, porém, Não beber, fazer guias logo pela pensamentos
íntima. Não na preparação sexo ou ver manhã. Anda o positivos.
Preparação para a
faz refeições mental. programas mais reto possível Cuidados
incorporação
pesadas violentos. para que sua relacionados
Comer bem, conduta não principalmente
ouvir músicas prejudique seu à alimentação.
leves. desempenho.
Depende do De acordo com “Impacto” no Formigamentos e
espírito. Antes o que o espírito acoplamento no tremores, mas
da reunião: em questão cérebro. depende do
As sensações
Angústia, vida sente. Variações espírito. Às vezes
trazidas e
Aproximação da sem sentido. dependem dos não nota.
deixadas variam
entidade Vampiros: casos. Espíritos
segundo o
Mal-estar, elevados pedem
espírito.
Suicidas: licença.
dores, falta de
ar e tristeza.
Aliviada De acordo com Relaxamento ou Mal-estar.
Variam
Afastamento da (vampiros). o que o espírito cansaço. Aniquilado.
conforme o
entidade Sente pena dos em questão
espírito.
suicidas. sente.
Suicidas, Suicidas, Suicidas, Sofredores, chefes
espíritos espíritos sofredores, “perseguidores”
Suicidas,
sofredores, sofredores, Pretos-velhos, de grupos,
espíritos
freiras, homossexuais, Caboclos, vampiros,
sofredores e
Entidades mais vampiros e Mario Kaula Sargento de muçulmanos,
entidades da
importantes “escritor”. Bandeira, Cavaleria. torturados da
Umbanda,
Pretos-velhos, Ditadura,
principalmente
André Luiz, entidades
Pretos-velhos.
Manuel umbandistas.
Bandeira.
Pergunta-se se Dúvida como Questionamento Muitas dúvidas Relatam
não é fruto de aspecto quase sobre a sobre a interferências
sua constante em comunicação de autenticidade de como
Interferências de imaginação. sua trajetória uma amiga do suas vivências. possibilidade,
conteúdos psíquicos Insegurança é como médium, CEGM, falecida Admite o dificilmente
dos médiuns na maior na inclusive nos há pouco tempo, animismo, mas sem em seguida
performance. psicofonia, dias atuais. apresentando mais enquanto dar exemplos de
apresentando, Pergunta-se se em seguida a possível evidências
porém, não se trata de confirmação do artimanha de favoráveis à
confirmações loucura. Faz dirigente, que a espíritos legitimidade da

177
de sua barreira, mas teria enganadores. comunicação.
mediunidade. reconhece que reconhecido. Apresentam
sempre há algo dúvidas.
do médium.
Menos Via-se muito Paciência e Amadurecimento. Percepções
materialista, perdida antes. tolerância Doutrina é o positivas
mais leve. Atribuídas ao maiores. Causas motivo central. atribuídas mais
Transformação da
Razão: amadurecimento principais: à doutrina
autopercepção
doutrina. natural e às doutrina e espírita que ao
doutrinas (Rosa- espiritualidade. trabalho
cruz também) mediúnico.
Sabe relevar Hoje aceita que Intuição sobre Estuda e debate Impacto
desavenças, não é louca, problemas com muito com esposa positivo
Consequências do atrai mais perdeu o medo e o filho, (católica) e percebido no
trabalho como pessoas. não se vê superando-os. colegas de sentido de
médium diferente das trabalho. aproximação
pessoas. Questiona-os com as pessoas
bastante. (socialização).
Psicografias Visões de Influência do Idas à Umbanda:
do escritor letreiros universo perceber suas
cético luminosos com umbandista experiências.
posteriormente salmos bíblicos. marcante. Forte conexão
Experiências e
convertido e Episódios de com figuras de
aspectos mais -
comunicações tensão com autoridade:
significativos
e visões doutrinador. entidade
relacionadas a Notícia de que o umbandista
freiras. pai reencarnaria. (mandato) e
doutrinador (guru)

8.2. A experiência dos médiuns do Centro Espírita de Umbanda Jesus, Maria e José

Dona de casa de 54 anos, Margarida fora católica até a idade de dezessete

anos, quando ainda pretendia ser freira mesmo sendo seu pai espírita e sua mãe

umbandista, que teriam ouvido de uma entidade em determinada ocasião que “eles iam

ter um filho que ia pertencer a eles, no caso os Orixá” (sic). Nessa idade, narrou ter sido

acometida por “problemas de saúde” que envolviam dores de cabeça, “tonteiras” e

pesadelos, necessitando então procurar médicos e inclusive psicólogos e psiquiatras,

tendo se submetido a diversos exames – nada sendo constatado – e tratamentos

farmacológicos, em função dos quais afirma ter tido melhoras rápidas, mas jamais

permanentes, e hoje possuindo problema de estômago por conta da quantidade de

medicamentos. Os profissionais a informaram que ela “não tinha nada”, até que ouvira

de um médico que “não era da matéria e sim do espírito” a origem de sua condição,

tendo então o mesmo recomendado que “procurasse um Centro de Umbanda”.

178
Ainda “muito católica”, a jovem Margarida relutara e não queria aceitar a

ideia apesar de ter visitado terreiros em sua infância com os pais, embora não entrasse

no salão e, portanto, não participasse. Declarou que, tendo ido ao Centro, ouviu do Pai

de Santo deste que era “média” (sic.), precisando “abrir mão da outra religião” e

começando em seguida o desenvolvimento, vindo a receber, após sete meses, seu

“primeiro guia”, quando então cessariam seus sintomas. Nesse terreiro conheceu seu já

falecido marido, casou-se e conheceu Mãe Graça, que era sua Irmã de Santo. Mudou-se

para São Paulo, onde ficaria por três anos “trabalhando” apenas em casa, e depois

voltou para o Centro, nele ficando até 2006, quando dele sairiam graças a um “atrito”

entre seu marido e o Yalorixá. Após alguns anos afastada da Umbanda, a médium

buscara o CEUJMJ com o companheiro, precisando novamente se afastar por alguns

meses em decorrência da doença deste. Depois de que “Deus levou ele”, Margarida

retomou sua prática religiosa no Centro, onde já conta três dos seus vinte e três anos de

Umbanda, religião que lhe deu paz e para ela significa “tudo”: saúde, harmonia e

felicidade. Em termos de fé, não se considera católica, pois não comunga e nem se

confessa embora vá a missas, reze e tenha seus santos católicos. No que diz respeito ao

Centro de Mãe Clara, líder que já “sentou”51 alguns de seus guias, Margarida recorda

que este provocou nela uma atração desde o princípio, tendo-a acolhido e ajudado

quando, em suas palavras, “já tava querendo... já num ter mais destino na minha vida”,

declarando que este não “tem defeito nenhum”, destacando principalmente a

organização da casa e os ensinos da Yalorixá.

Apesar de ter desenvolvido em outro terreiro, aparentemente os processos

envolvidos são bem similares: o Pai de Santo lhe dera seu Orixá (Ogum e Oxum) e

“lava sua cabeça” (da médium) após o “banho de ervas”, só então chamando os guias

51
“Assentou”, provavelmente.

179
que pertencem à corrente daquele, que, depois de virem, cantam seu “ponto”, se

apresentando e “abrindo a sua coroa pra outros guias”. Dois importantes aspectos desse

demorado processo parecem ser a “firmação” das principais entidades de um Filho de

Santo e o ganho do “controle”, embora este último fator entre em contradição com o

fato de que se declara “totalmente inconsciente” durante a incorporação, quando “apaga

(...) o seu ouvido, a sua visão... e a sua consciência”. Dispõe ainda de outras

modalidades da experiência, como ouvir e ter visões, sonhos e sensações,

exemplificando-as. Nos termos da entrevistada, a mediunidade seria uma “forma” de

“contato... direto... com a natureza e, acima da natureza, com Deus”, contextualizando

sua referência à natureza com o trabalho envolvendo os elementos, como fogo, água,

terra, etc. Sua preparação nas vésperas das Giras envolve não beber ou fazer sexo e não

ir a “lugares impuros”. Facilitam sua incorporação a concentração, a reza para seu “anjo

de guarda” se afastar, a chamada dos guias, o pedido para que a Gira seja de paz e para

“dar força” à assistência. Além do “toque que tá tendo” (do Ogã), reconhece

aproximações diferentes, sentindo a coluna dobrar quando é Preto-velho e “calor dos

pés, da cabeça” quando Exus, o que sinaliza que “tem que se entregar” e “soltar o

corpo”. Aqueles, ao partirem, deixam dores na coluna, enquanto os Caboclos dores nos

braços e as “crianças”, cansaço. Seus guias são: Maria Légua (Mestre), a de sua

preferência por ser a menos vaidosa e que mais “vem” e conversa, que “foi cangaceira...

da época do Lampião”; O Erê Luizinho, que morrera aos sete anos assassinado pelo

próprio “pai”; Maria Conga, Preta-velha cozinheira de “Casa Grande” que teria vindo

do Congo; A Pomba-gira Sete Saias, que fora uma vaidosa cigana e, por fim, o “brabo”

Caboclo Sete Flechas, de quem Margarida pouco sabe – deve tais histórias ao marido,

que era muito curioso e os questionava. Referiu jamais ter sentido qualquer interferência

sua no que as entidades fazem: “não sei imitar nenhum deles”, diz, e percebe mudanças

180
na saúde e na “visão do mundo”, por sua vez decorrentes da habilidade de enfrentar e

aceitar, se vendo menos “chorona” e “besta”, que são sinais do que refere como uma

“afirmação” de si – associado ao fato de não fazer nada “sem orientação deles”. A

médium lamenta não poder deixar as “sementes” – deixadas pelos próprios pais – para

os filhos, que não são da Umbanda, tendo narrado episódios interessantíssimos

associados a quando um deles sofrera um assalto (visão de “morcego gigante” ou

“Tranca-rua”, ambos ligados a Exu) e à morte do marido (quando sentiu “um abraço

bem apertado”), que entende como exemplos do “quanto a gente tem, como a gente é

médium”.

O tocante depoimento do médium Ismael, que tem 24 anos e ajuda nos

afazeres do CEUJMJ, onde reside, foi certamente um dos mais difíceis de obter pelo

fato deste ter falado e se aprofundado bem menos que os demais. Ismael referiu ter sido

sempre umbandista embora tenha feito menção a algumas idas à Igreja Universal

quando criança, mostrando-se pouco disposto a entrar em detalhes acerca de sua “longa

história”, que parece ter sido repleta de dificuldades. Segundo este, que nos momentos

iniciais da entrevista mostrou-se contidamente emocionado, sua vinculação com a

Umbanda existe graças ao fato de toda a sua família, com exceção da irmã, ter deixado a

religião e, assim, restado apenas ele como “herdeiro” a quem caberia “continuar” o

legado da família – que, por sua vez, “se acabou”, como referiu o entrevistado em certo

momento – relacionado ao culto dos chamados guias. Apesar de hoje relatar ser

umbandista “por amor”, o que realmente o conduzira à religião fora a “dor”:

inicialmente, o médium disse “não gostar dessas coisas”, contudo, insatisfeito com a

Igreja Universal, ele viria a incorporar, pela primeira vez, com apenas oito anos de

idade, quando o índio “Pombo Roxo” viria comunicar sua herança “do sangue mesmo”,

fazendo com que começasse a desenvolver aos nove anos. Dissera ter buscado a ajuda

181
de um Pai de Santo, vindo a morar no Centro deste, onde começou sua iniciação. Pouco

tempo depois, o abandonaria por conta de problemas com o líder, chegando até o

CEUJMJ, cujas Mães de Santo lhe abririam “as portas” para ele, abrigando-o. Como

será possível perceber, a situação de vulnerabilidade social de Ismael associada ao

acolhimento pelos Centros parece vincular-se com vários aspectos de sua experiência

relacionada à religião.

Assim, a Umbanda para ele significa “muita coisa, caridade, ajudar o

próximo, dar ajuda àqueles que precisa mesmo” (sic), bem como o terreiro, além de ter-

lhe trazido paz, verdade, sabedorias e evoluções, é importante principalmente por conta

do “amor delas duas” (Mães de Santo), e da caridade. O vínculo maternal com estas

parece mesmo quase literal, notadamente nos “puxão de orelhas” que alega receber, o

que parece valer também para as entidades, conforme se pode observar na sua expressão

do que seria a mediunidade: “Ter eles [guias] como fossem meus pais. (...) Tenho eles

assim como... Fosse gente da minha família. (...) Pra mim, isso é o mundo espiritual”

(sic). Ainda nesse sentido, sente por seu Mestre (João Baraúna) e por sua Preta-velha

(Mãe Santana), respectivamente, “amor de pai” e “amor de mãe”, dizendo gostar mais

da última. Suas outras entidades são João Pescador (Povo da Maresia), Pai Miguel

(Preto-velho), Ogum Naruê, Caboclo Serra Negra, Exu do Rio e o Erê Chiquinho, nas

quais encontra ajuda, proteção, “passo” de cura e força. No que concerne ao seu

desenvolvimento, referiu ter demorado cerca de três ou quatro anos para receber sua

primeira entidade, considerando o processo “igual um... livro, cada página diferente”

(sic), razão pela qual se vê ainda como desenvolvente. Ismael percebe como principal

aprendizado decorrente do desenvolvimento o espelhar-se na “Guna Forte” (Mãe Clara)

e na Mãe Pequena, relatando ainda ter levado de dois a três anos para ter sua primeira

entidade “afirmada”. Um sinal por ele reconhecido da chegada das entidades é a

182
sensação comparada à de pôr “o dedo na energia”, depois do qual vem um “abalo”.

Quando estas se vão, experimenta um “empurrão”, por ele interpretado como o “anjo de

guarda” “empurrando seu espírito de volta”, e, uma vez de volta a si, se sente leve.

Além de incorporar – o que faz de modo inconsciente, como se saísse de si, “passando

em algum canto (...) ou eu tô viajando. (...) Igual os sonhos”; o médium alegara que

ainda na infância via “sombras”, hoje interpretadas como seus guias, e escutar, mas

“baixo”, embora se remeta principalmente a eventos oníricos, dizendo que “as coisa...

que pra mim... assim... vai acontecer, aí eu vejo assim no sonho” (sic.), embora só se

recordando de um em que trabalhava com seu Mestre em sua “coroa” na beira do mar.

Mencionou “preceitos” para os dias de sessão, tais como manter a “mente limpa e corpo

sadio”, o que é feito consoante o médium de segunda a sexta-feira, quando seu corpo

“são pra eles mesmo” (sic). Além destes, “esquecer o povo lá de fora” e buscar pensar

nos guias e na ajuda que poderá dar ao próximo são fatores que contribuem com que

incorpore com sucesso. Ismael afirmou jamais perceber qualquer interferência sua e

nem mesmo se questionar sobre isso, sentindo apenas que certa vez a “corrente ficou

baldeada” e que “não corresponderam” pelo fato de ter ido a uma “balada” no dia

anterior. Isso parece conectado à mudança percebida pelo entrevistado em si, que “era

de festa” e passou a “buscar amigos de fora” por oposição aos “de farra”, estando um

pouco mais afastado, inclusive, dos familiares. Um dos principais pontos positivos de

ser médium sublinhado por ele envolve “ajudar o próximo”. Ismael pretende “crescer na

Umbanda”, sonhando em, no futuro, ser um “Zelador de Orixá”, embora não almeje ter

seu próprio terreiro.

A vendedora Mazé, de 45 anos, onze dos quais já trabalha no terreiro de Mãe

Clara, declara ter sido sempre umbandista, e, mais especificamente, como

constantemente frisado por esta, do Catimbó – que considera ser suas “raízes”; embora

183
jamais tenha deixado de ir a missas. Apesar dos pais serem católicos, recorda com bom

humor de suas idas ainda na infância com colegas para um “terreiro pequenininho”, de

seu interior, também de Catimbó, onde, às vezes, durante os trabalhos acabava

dormindo. Somente aos vinte e dois anos, quando já residia em Fortaleza, a médium se

lembra de ter retornado a frequentar ainda apenas na assistência outro Centro, o mesmo

por onde passaram Mãe Graça, Margarida e, provavelmente, Ismael. Casada, disse

mentir para o esposo para ir às escondidas aos terreiros, pois ele não gostava que os

frequentasse, situação impeditiva que duraria somente até a morte deste, quando então

se lembra de se “aprofundar” na Umbanda, o que viria a ser feito justamente no

CEUJMJ, que considera ser sua “primeira Casa”.

Antes de “entrar pras corrente” (sic), porém, segundo Mazé, teria passado

por uma “fase ruim”, na qual perdera o emprego e, também sem companheiro, viria a

ser convidada por Mãe Graça a morar no Centro, onde algum tempo depois teria seu

filho, consolidando, então, sua adesão. Ouvia falar muito de Mãe Clara e, quando

retornou ao local, sentiu com este uma “ligação”, uma “energia” que jamais sentira nos

demais, “uma coisa assim mágica”, destacando sua simplicidade e o fato da Mãe de

Santo ser “catimbózeira” e não candomblecista, mas principalmente por esta não fazer o

que chama de “misturadas”, se referindo ao Omolocô. Para ela, a Umbanda a fez

“vitoriosa”, relatando que já adquiriu “muitas coisas boas”, que por sua vez dependeram

da forma como realiza seus pedidos a Deus e lida com suas entidades, com as quais

trabalha “sempre pro bem”. “Eu trato a Umbanda... como... até um refúgio. Você tá com

um problema, é tão bom o Caboclo chegar e lhe dar aquela palavra amiga ali, aumentar

sua estimação, levantar seu astral, é muito bom” (sic), prossegue a médium, que é grata

à Casa que a acolheu, a apoiou e onde iniciou sua “vida religiosa e espiritual”, embora

estreite sua vinculação com esta principalmente e quase exclusivamente através da

184
figura de Mãe Clara, conforme expressa: “enquanto ela existir, eu tô aqui”. A Mãe de

Santo é por ela vista com grande apreço e como fonte de “ensinamentos” e de

discernimento entre o que o “pode e não pode” um médium.

Quando convidada a definir o que entende por mediunidade, Mazé ressaltara

o respeito e a dignidade pela oportunidade de “receber sua entidade” bem como o

“mentalizar coisas boas na sua mente” para que não se levante “falso” ou se conte

mentiras. Acredita ser dotada de tal capacidade por conta de ficar “fora de si”, não sentir

o chão e experimentar uma “energia” considerada boa e uma “força... de incorporar, de

receber”. No que concerne à sua evolução como médium, alega não ter precisado

desenvolver pelo fato de sua primeira incorporação, no caso, de Dona Cigana52, ter se

dado numa “Festa de Louvação das trunqueira [Exus e Pombo-giras] da Casa”, isto é,

antes mesmo de ter iniciado nas Giras de Desenvolvimento, quando teria ouvido da

Yalorixá que “tinha muita... muitas corrente”, que estavam dela tão próximas que “não

precisei desenvolver”, conforme expressa a entrevistada, que, entretanto, já se

considerava médium muito antes, desde que “já sentia a energia” nas visitas a outros

centros, o que, quando percebido, deixava-a “com anseio, com medo” e a fazia se retirar

do local – fase esta, portanto, que, junto de toda a bagagem de contato com a Umbanda

desde a infância, a médium parece ignorar como etapa desse processo. Adota como

“preceito” para sua preparação o esforço para ficar por uma semana – embora tenha

falado também em dois dias – com a “aura purificada, limpa” e com a mente e o corpo

sem bebida, sem sexo e sem carne vermelha para ter “mais força, mais energia” nas

incorporações. Antes de entrar para a Gira, refere realizar um “ritual” que envolve

banhos de limpeza, velas acesas para o anjo da guarda e suas entidades, rezar e

conversar com seu “povo”, pedindo, sobretudo, para que não mintam (enfatizou várias

52
Segundo Mazé, a “sofrida” entidade teria ido morar num “cabaré” após ter os pais assassinados,
embora jamais tenha sido prostituta.

185
vezes), que abençoem quando não souberem responder as pessoas e que não as “bote

pra baixo” e sim “levante o astral”.

Mazé diz já saber antes as entidades do dia por conta das orientações do

Centro, mencionando mentalizar elementos ligados às entidades, como matas para os

Caboclos, por exemplo, chamando-as desde que entra para trabalhar, o que faz de modo

“totalmente inconsciente”. Ao “espertar”, sente-se leve ou “tonta” e com “dor de

cabeça” quando ainda há alguma “radiação”, sinal de que algum guia ainda precisa vir,

segundo ela para “levar alguma coisa de ruim” – o que às vezes ocorre sem que desperte

para mediar o processo; sensações que persistem caso a médium não deixe as deixe

“passar”. Sua “família espiritual”, que adquiriu em questão de um ano e meio de

trabalho, consiste da Pombo-gira Dona Cigana, o Juremeiro Pereira, o Seu Rompe Mata

(Índio) e os seus preferidos, o Erê Joãozinho e a Preta Mandinga (Preta-velha). Esta

“tomou a frente” de outra Preta-velha, no caso, de Mãe Caciana, assim como fez o

Caboclo referido com o Lírio Verde – embora a médium ainda estivesse por definir com

a Mãe de Santo qual deles permaneceria ligado à sua coroa. Aludiu ainda à necessidade

de que todo médium “tem que ter a sua linha de espiritismo” para receber espíritos de

pessoas falecidas e ao fato de já terem ocorrido reuniões e palestras desse tipo no

CEUJMJ, embora ela mesma tenha relatado bastante medo. No que se refere aos tipos

de mediunidade, tratou mais de distinguir entre médiuns com facilidade para trabalhar e

aqueles que “demoram”, bem como os que permanecem conscientes, “metade, metade”,

etc, referindo-se ainda a sonhos com entidades. Percebendo-se como muito “farrista” no

passado, Mazé refere hoje viver para sua religião, apontando como seu lazer as

louvações umbandistas que costuma ir em outros terreiros. Um aspecto marcante de seu

depoimento foi sua menção ao imperativo de estar “sempre com estima pra cima”,

lamentando que como médium “não pode ter nenhuma negatividade”, dando o exemplo

186
da “peia” que levou por “não andar direitinho, do jeito que eles querem”, razão pela

qual acredita ter engravidado, e da incorporação ser afetada. Igualmente chamativa fora

a constante alusão da médium ao que chama de “acasalar” com a maior parte das

entidades, que diz respeito ao que se poderia chamar de habilidade performática. No que

tange à sua Preta-velha, diz que “ela realmente me cobre”, isto é, “você vê mesmo uma

Preta-velha”, o que é percebido, segundo ela, inclusive pelos outros Filhos de Santos,

cujos guias ao se apresentarem “abalam” a entrevistada, o que é por ela interpretado

como alguma afinidade com suas “correntes”.

Bárbara, que é vendedora e tem 29 anos, estima ter entrado no Centro de

Mãe Clara há mais de dez anos atrás, quando tinha por volta de dezoito. Filha de mãe

protestante, ela considera ter sido evangélica até os onze ou doze anos, quando por

opção própria viria a abandonar a religião materna, passando então a ir a missas na

igreja católica, prática que até hoje permanece. Apontou a curiosidade e o envolvimento

com a capoeira como fatores que a conduziram ao mundo da Umbanda cearense, indo

ao CEUJMJ pela primeira vez com a irmã tencionando “observar”, pois, como disse

várias vezes, “não sabia o que era Caboclo na minha vida”, achando a Gira do dia

“muito bonita”. Quando “já tava começando a trabalhar” como médium no Centro, o

que já faz há oito anos, porém, a jovem médium viria a passar por uma “época muito

difícil” devido a um “desentendimento” com algumas pessoas deste, que a teriam

levado para outro terreiro. Neste, a entrevistada relatou ter sido instigada pela outra Mãe

de Santo, junto de outros Filhos de Santo, a acompanha-la em suas bebedeiras

excessivas, a ponto de a própria mãe, mesmo evangélica, tê-la estimulado a voltar a

trabalhar com Mãe Clara, o que só teria feito após, mesmo com o “voto” de “garra” e de

“força de vontade” ser humilhada pela outra “consagrada” líder. Recorda que, em fase

de “dificuldade muito grande financeira”, ao descobrir quem era seu Mestre

187
(Raimundão), fora a pé ao centro da cidade para comprar sua imagem, retornando então

para mostrá-la à Yalorixá, que se rira desta por afirmar não se tratar da entidade,

expondo a médium para os demais adeptos. Depois de muitas lágrimas derramadas, “ele

me pegou no meio da rua (...) assim só pra mostrar quem era”, acreditando Bárbara que

ele a “deixou em casa”, já que não se lembrava de como voltara. Tal experiência foi de

grande importância para sua trajetória na Umbanda, que nas suas palavras “é uma parte

do que eu sou hoje em dia”, desde que a médium utiliza o que vivera em outro terreiro

para valorizar o CEUJMJ, que, na figura de Mãe Clara, “puxou muito a minha orelha

pra mim mostrar” (sic) a “mulher” que é hoje. Este é encarado por ela como uma

“Escola”, destacando o “ensinamento” e o “alicerce” deste recebidos.

Em seu esforço por expressar sua concepção de mediunidade, a despeito da

reserva de esta ser “uma coisa que a gente não explica”, que “não tem uma palavra”,

declarou se tratar de “uma coisa que fica total no fora do controle da gente” com

diversos tipos (escutar, ver e incorporar) e usos (de má fé e para o bem). Um aspecto

interessante de sua definição diz respeito à sensação de estar “fora do seu corpo”

quando o médium se encontra “sombreado” e quando está dormindo (“como tivesse

você, mas sem ser você”) – mencionando um sonho que teve enquanto estava de licença

do trabalho no qual se vira assinando um contrato, fato que viria a se consolidar

posteriormente, embora já desconfiasse antes do sonho que isso poderia ocorrer. O

referido sombreamento é uma etapa própria do processo de aprendizado da

incorporação no qual se recebe apenas a “sombra” do guia, que apenas “se encosta, se

aproxima”, “como se tivesse gritando no seu pé do ouvido”, nos termos da entrevistada.

Bárbara iniciara o desenvolvimento no CEUJMJ, momento em que era reduzido o seu

conhecimento da religião graças ao fato de ser “alheio” a esta devido à criação

evangélica, somente com o tempo começando a “sentir corrente”, embora só quando de

188
volta ao terreiro recebesse “uns Caboclinho”, de modo que apenas então teria indícios

de sua mediunidade, para além das anteriores sensações, sentimentos e do “sentido” de

“que vai acontecer alguma coisa”. Nesse sentido, destacou o “tempo” como importante

fator para que deixasse apenas de receber a “energia” da entidade, ainda somente “lhe

cobrindo”, até que passe a ficar “cem por cento incorporado”, bem como a preparação e

a disponibilidade para os guias, processo no qual o Filho de Santo “sofre muito”,

sentindo enjôo, tontura, mal estar e até dor de ouvido. Segundo Bárbara, isso ocorre

graças à sensação de que “Caboclo pesa” – expressão por ela utilizada repetidas vezes

ao longo da entrevista em diversos sentidos – bem como graças à energia dos guias.

Segundo a entrevistada, estes, por sua vez, muito cobram os médiuns, e a médium diz

ter muita responsabilidade com “eles”, de modo que, nos “tempinhos de férias”, sente

dor de cabeça, mal estar e tontura, referindo-se ainda à ajuda que crê ter recebido,

interpretada como o fato de estar sempre empregada e que “nunca faltou comida”.

Como principais produtos do seu aprendizado, apontou, além da visão acerca da religião

diferente da professada pelos evangélicos e pela Mãe de Santo anterior, o “suor

derramado” para “ajudar uma pessoa a se levantar”, a evolução como médium “com o

passar dos anos” e, como consequências desta, a maior “força” das entidades e o maior

controle sobre elas.

Bárbara alega, no que se refere a tipos de mediunidade, a intuições e

“premonição”, bem como a sonhos, nos quais acredita trabalhar junto de seu

inconsciente, razão pela qual as vezes acorda “baqueada” (sic.), a escutar vozes lhe

chamando, a ver “sombras” – o que muito teme – e, por fim, o seu preferido, a

incorporação. A entrevistada se “resguarda” por três dias sem “namorar”, evitando

“carnes vermelhas” e “comidas pesadas”, usando roupas claras e buscando “aliviar o

pensamento” de problemas e “aborrecimentos” principalmente no dia da Gira. Para

189
facilitar sua incorporação, imagina conteúdos relacionados às entidades do dia,

sentindo-se muito cansada ao desincorporar, quando volta a sentir falta de ar e tontura

(“maresia”). Bárbara jamais se questionou sobre possíveis interferências dela no

desempenho das entidades, embora reconhecera que isso seja comum nos

desenvolventes. Refere ter mudado “cem por cento”, especialmente em relação à bebida

e parcialmente e ao seu “estilo depressivo” graças à missão implicada pela descoberta

da mediunidade, hoje se dedicando aos dois trabalhos e à família. Suas entidades são:

Jurema (Cabocla), Chiquita Preta e Raimundão (Mestres), Caboclinho das Matas (Erê),

Ogum Beira Mar, Nega Ana (Preta-velha), Pomba-gira das Almas e Seu Tiriri (Exu).

Quadro 3. Síntese dos achados das entrevistas e aspectos mais recorrentes relativos ao CEUJMJ.

Aspectos mais
Categorias/Médiuns Margarida Ismael Mazé Bárbara
recorrentes
Católica, hoje Umbandista Sempre Evangélica na Adesão à
umbandista, desde a infância, umbandista, infância, Umbanda sem
frequenta visitas rápidas a mas continua umbandista excluir certo
missas ainda igrejas indo a missas. atualmente, idas a nível de
Percurso religioso
hoje. evangélicas no missas “uma vez participação em
passado. na vida”. rituais e
festividades
católicas.
Contato direto Ter os guias Receber Não se explica, Contato direto
com a como pais, entidade. Ficar não há uma com energias e
natureza e como família. fora de si, sentir palavra, da ordem incorporação
Definição de
com Deus. força/energia do sentir: fora do dos guias,
mediunidade
boa para controle. Tipos e implicando
incorporar. usos diversos. ausência de
controle.
Início das Adolescência. Infância. Idade adulta. Adolescência.
Adolescência
experiências
Yalorixá Como as Amplo contato Sombreamento: Duração
comunicara diferentes com o universo guia só se variável do
seu Orixá, páginas num umbandista encosta. Leva processo, mas
guias foram livro. Dois/três desde criança: tempo até que este longo. Destaque
chamados, se anos para não precisou deixe de cobrir dado à primeira
apresentaram receber o desenvolver, para incorporar entidade
Desenvolvimento com o ponto e primeiro guia. recebeu o totalmente recebida, à
da mediunidade abriram a Três/quatro anos primeiro guia (disponibilidade). firmação dos
coroa para os para que fosse antes de se Final: Entidades guias, ao
demais. Foram firmado. filiar. Já sentia fortes e mais controle
sendo Inspiração nas correntes antes. controladas. Sofre adquirido e às
firmados e Yalorixás. muito: Caboclo Mães de Santo.
mais pesa. Processo
controlados. “sofrido”.
Incorporação, Incorporação e Incorporação e Incorporação, Principalmente
Tipos de
sonhos, visões sonhos hoje. Via sonhos. premonições, incorporação,
mediunidade
e sensações. e ouvia (baixo) sonhos, escutar sonhos e visões.

190
quando criança. vozes, visões de
sombras.
Totalmente Inconsciente, Totalmente Inconsciente.
Percepção do nível inconsciente. como se inconsciente. Inconscientes
de consciência Consciência estivesse durante o transe.
apagada. viajando.
Não bebe, não Preceitos: Preceito: de dois Se resguarda por
Preceitos: corpo
pratica sexo e Manter mente e dias a uma três dias: sem
e mente limpos,
não visita corpo limpos semana, corpo e refeições pesadas,
sem álcool, sexo
lugares durante a mente sem carne carne vermelha e
e carne
impuros. semana. vermelha, sexo namorar. Alivia o
vermelha por
Concentra-se, Esquecer e álcool (aura pensamento nos
período de dois
Preparação para a pede que o pessoas de fora. purificada) – dias de Gira.
a sete dias. O
incorporação anjo de guarda Pensa nos guias mais energia e
pensamento
se afaste e que e na caridade. força na
concentra-se no
possa ajudar incorporação.
afastamento do
as pessoas. Acende velas,
mundo externo
banhos, rezas e
e se volta ao
conversa com
espiritual.
seu povo.
Toque do ogã. Pôr o dedo na Orientações do Imagina
Sensações energia. Abalo. Centro. conteúdos ligados Depende do
diferentes a Mentaliza aos guias do dia guia a ser
Aproximação da depender da elementos em questão. incorporado de
entidade entidade. ligados aos Repentinamente acordo com as
guias desde que perde a noção do orientações do
começa o que faz. Centro.
trabalho.
Depende da Empurrão de Espertar. Sente- Muito cansada. Sensação de
entidade. seu espírito pelo se leve. Tontura e falta de leveza.
Afastamento da
Necessita de anjo de guarda. ar. Necessidade Precisam de
entidade
ajuda. Leveza. de Auxílio. ajuda para se
recompor.
Maria Légua, João Baraúna, Mestre Pereira, Raimundão e
Maria Conga, Pai Miguel, Preta Mandinga, Chiquita Preta,
Luizinho, Chiquinho, Joãozinho, Nega Ana,
Juremeiros,
Pomba-gira Ogum Naruê, Dona Cigana, Caboclinho das
Entidades mais Pretos-velhos,
Sete Saias, João Pescador, Seu Rompe Matas, Pomba-
importantes Caboclos, Erês,
Caboclo Sete Serra Negra, Matas e “linha gira das Almas e
e Exus.
Flechas. Exu do rio. de espiritismo”. Seu Tiriri,
Cabocla Jurema,
Ogum Beira-Mar.
Diz não saber Nenhuma, Pede para que Não reconhece
Interferências de
imitá-las. apenas quando os guias não nenhuma. Comum
conteúdos psíquicos Raramente
bebera e os mintam ao não nos
dos médiuns na reconhecidas.
guias não saberem desenvolventes.
performance
corresponderam. responder.
Enfrentamento Menos de farra Farrista antes, Bebia muito:
Atribuídas
, aceitação e que antes. hoje vive para a mudou cem por
principalmente
Transformação da autoafirmação religião. cento. Estilo
à Umbanda e
autopercepção resultante de Vitoriosa. depressivo:
não somente à
orientações mudou em parte.
mediunidade.
das entidades.
Saúde e Afastamento de Seu lazer são as Atualmente se Certa restrição
Consequências do mudança na familiares e louvações em dedica à da socialização:
trabalho como cosmovisão amigos de festa. outros Centros. Umbanda, ao negação do
médium pessoal. Passou a buscar trabalho e à mundo
outros amigos. família. “profano”.
Experiências e Visão de Situação de Imperativo: Mestre
-
aspectos mais morcego vulnerabilidade estima sempre Raimundão ter

191
significativos gigante/Tranca em razão da para cima e nela incorporado
-rua quando o qual enxerga o andar direito. no meio da rua
filho fugia de mundo Acasalada, para mostrar
uma assalto, espiritual como coberta pelos quem era diante
sensação de família. guias: das humilhações
ser abraçada Incorporação habilidade sofridas no outro
quando o por Pombo performática. Centro.
marido Roxo e sua Acolhida no
falecera. herança. Centro.

8.3. A experiência dos médiuns do Templo Gamurio do Amanhecer

A apará Lucia, assessora aposentada de 63 anos que por quarenta e oito anos

de sua vida fora católica, antes de chegar ao Vale do Amanhecer, religião da qual já é

adepta há doze anos – oito dos quais como médium de incorporação – passou dois anos

nos “Kardecistas”, onde jamais participara de “mesas”. Embora considere a “igreja

católica” “a base de todas as religiões”, sua curiosidade a levou a questionar a visão

implicada pelo catolicismo, que passou a lhe parecer limitada, desejando “avançar” sem,

no entanto, encontrar nele “espaço” ou “quem te diga: ‘existe um horizonte, existe uma

vida nova lá do outro lado’”, quando, então, graças a problemas familiares, a

entrevistada viria a passar por mudanças, que hoje acredita ser fruto da “espiritualidade

conspirando”. Já conhecedora do “evangelho” e do espiritismo, buscava ajudar uma

sobrinha que incorporava uma “falange sofredora” em casa, até que, sem seus esforços

surtirem efeito, lhe indicaram uma “casa espírita”, no caso, o TGA, onde conseguira

“curas com ela”. Ainda espírita, retornaria ao “Gamurio” para ajudar uma amiga, sendo

desta vez ambas chamadas nos Tronos para trabalhar, começando o desenvolvimento

como Doutrinadora, passando, assim, pela Iniciação, Elevação de Espadas e Centúria ao

decorrer de quatro anos até que, num trabalho de Mesa Evangélica, teve “sensações

diferente” (sic), “como que flutuasse”, comunicando a experiência ao Adjunto Gamurio,

que lhe sugeriu que fizesse um “reteste”: “incorporei na hora”, recorda Lucia. Declara

não ter envolvimento com outras religiões graças à orientação dadas aos mestres de que

não se deve “cruzar corrente” no Vale do Amanhecer, doutrina cujo significado para

192
ela, que nela se sente “realizada”, está associado ao “salto de qualidade muito grande”

operado não somente em sua “caminhada”, mas principalmente no “entendimento” da

ninfa Lua – por sua vez resultante da ideia de reencarnação e do aprofundamento na

“religião espírita” – das “situações difíceis”, encaradas como “grande oportunidade”

para “resgatar débitos” com “inimigos nossos” de “vidas passadas”: “só através do amor

e do perdão é que nós temos a consciência e podemos evoluir”, trecho por ela citado do

“canto” da sua falange, Cigana Aganara. A entrevistada descreve maravilhar-se com o

Gamurio do Amanhecer “como espírita mesmo”, lugar onde se nutre “respeito (...) pela

nossa missão”.

“A mediunidade tem muito a ver com a ciência”, acredita a ninfa, que a

define primeiramente como “dom de Deus”, e como “sensibilidade” às “energias”, à

“tristeza” e à “harmonia” circundantes com maior frequência e facilidade, discernindo

logo em seguida a “mediunidade de doutrina”, segundo ela “mais equilibrada” que a de

incorporação justamente por não receber espíritos, que, no VDA bem como na sua

própria experiência, só são incorporados “cinquenta por cento” para que a apará possa

ter ainda algum “domínio” e se “equilibrar”. A despeito de não ser propriamente um

tipo de mediunidade, a ninfa declara que é comum que se trabalhe dormindo e que

“quando a gente não entende, a gente diz sonho”. Lucia acredita que a “irradiação” e a

“presença” sentidas dos “irmãozinhos” e dos mentores, assim como a sensação de não

conseguir “abrir os olhos” na incorporação, são os principais aspectos que lhe fazem

apará, declarando-se realizada neste papel graças aos “trabalhos maravilhosos” do

Templo, especialmente aos Tronos. No que se refere ao desenvolvimento como ninfa

Ajanã, que envolve sete “aulas” e “treinamentos” nos Tronos (Pretos-velhos), na Cura

Iniciática (Médicos de Cura) e no Sudálio (Caboclos) – ao final dos quais quem “libera”

o “aparelho” para trabalhar é o próprio mentor; declarou de início sentir “todo o corpo

193
impregnado”, sem que a “vovó” no entanto falasse, de modo que precisou continuar

depois da sétima aula. Orientada pelo instrutor a se entregar à “espiritualidade” para

resolver o quer que estivesse “travando”, Lucia teve um “toque” de que talvez ela

mesma o estivesse fazendo ao “mentalizar o povo de Aruanda”, com quem tinha

“sintonia muito grande”. Logo após pedir aos mentores para receber a entidade

“determinada” para ela, Vovó Catarina do Oriente viria a se manifestar. Quanto à

preparação para os trabalhos, que é igualmente importante durante o desenvolvimento, a

entrevistada declarou não existirem “restrições” relacionadas à alimentação, relações

sexuais, “farra”53, ressaltando porém que se pode sair da “linha, (...) da sua conduta” e

assim “receber energias negativas”. Antes dos trabalhos, “sioniza com sal e perfume”,

se sintoniza com os mentores, se concentra e se mediuniza, para então sair do Castelo

do Silêncio, fazer reverências, ir até à Pira e só então se encaminhar para os Tronos. As

entidades, ao se aproximarem, fazem com que Lucia experimente “um choque elétrico”

de intensidade variável de acordo com o seu tipo, bem como um tremor e uma sensação

de presença, sendo um fator facilitador da conexão com tais espíritos o “trabalho

frequente”. Além da Preta-velha referida, que é o espírito de luz da qual a médium mais

se sente próxima, recebe ainda o Médico de Cura Dr. André Luiz e o Caboclo Pena

Branca, destacando-se ainda sua guia missionária Alesca Verde, que pela sua descrição

parece assemelhar-se sobremaneira com uma espécie de anjo da guarda; os

“sofredores”, por quem sente “grande compaixão”; e o Povo Cigano, simbolizado pela

Cigana Valquíria, pois acredita ter “sangue cigano” pelo fato de o pai acolher ciganos

no próprio sítio no interior, sendo tal afinidade para ela mais uma evidência de que foi

“líder de grupos ciganos em vidas passadas”. Lucia admite que a personalidade do apará

possa vir a interferir, embora afirme jamais ter ocorrido com ela, que hoje é mais

53
Os adeptos do VDA não bebem. Este, bem como não se usar “entorpecentes”, é um dos requisitos para
que se inicie na doutrina.

194
“suave”, tolerante e “tranquila” que antes, quando era doutrinadora (e, segundo ela,

“altamente explosiva”). Com relação à família, não a “evoluiu” nem a desgastou. A

entrevistada vê como ponto negativo de ser apará não poder conversar com os

“cobradores” no trabalho de Angical assim como o doutrinador, já que está justamente

com eles incorporados. Fundamentalmente, a mediunidade é, para ela, uma “missão”.

Vera, 32 anos, administradora, relata ter sido adepta do catolicismo, credo de

sua “base familiar”, até por volta do ano de 2000, quando passaria a buscar “templos”

kardecistas, até que no mesmo ano ou no seguinte viria a ingressar na “doutrina”.

Diferentemente do que recorda ter vivido no espiritismo, do qual participou “muito

pouco, muito leve”, sua trajetória como católica fora intensa, participando ativamente

dos “movimentos” da igreja onde, junto de seu irmão – hoje padre, era catequista, a

ponto de ter declarado que “por pouco” não se tornara freira. Refere ter buscado o

Gamurio do Amanhecer graças à indicação de uma tia pelo fato de ter “certas visões”

consideradas anormais de “vultos rápidos”, de “retratos se transformando” e de “como

se fosse uma fumaça criando uma imagem, (...) aparecendo figura de um rosto”, que por

sua vez a amedrontavam, a assustavam, lhe provocavam “sensações ruim” (sic), fazendo

com que a atual ninfa não as deixasse “concluir” – simplesmente “neutralizava” e saía

“de onde estivesse”, principalmente de “casas antigas” com muitos retratos. A médium,

que ao longo da entrevista utilizara inúmeras vezes os termos “denotar” e “denotação”

em sentidos e contextos pouco usuais e de forma bastante singular, associa a saída do

catolicismo com as “mil perguntas” que se fazia diante do que experimentava: “Por que

existe? E se existe, de onde vem? (...) É bom? É ruim?”, todas “interrogações”

claramente associadas à crença em espíritos que tampouco o kardecismo com suas

reuniões e “palestras soltas” fora capaz de responder aos seus anseios, com a reduzida

“praticidade” por ela percebida quando comparado ao VDA, que “traz Jesus vivo para

195
cada um, ou pra prática ou pra mente” bem como o “cuidado” e o “acalento” de que

necessita o “corpo físico”. Apesar do cessar de tais visões, Vera afirma ainda hoje ter

sensações “extra-sensoriais”, por ela descritas como relacionadas a sentir “energias” de

si mesma, de outras pessoas e de “algo externo” através do que “sabe que existe o além

de você”, embora alegue não ter “uma clareza... chegando ao teor físico”. Assim,

mencionou a experiência ocorrida “até bem pouco tempo” de sentir “presença de...

como se fosse pessoas e até minha cama chega baixar (...) como se alguém sentasse”

(sic.), em função da qual fez um “trabalho especial” no TGA – que, além de tê-la

acolhido, é sua “base de doutrina”, uma das “terras mais corretas possíveis” cuja energia

é “familiar” e, por fim, “espiritualmente falando, é a minha casa”, conclui.

No que diz respeito ao desenvolvimento, a entrevistada estima ter ficado

mais de um ano “frequentando como paciente”, quando era convidada a trabalhar no

templo pelos Pretos-velhos, mas “não entendia”, pois pensava ser “normal convidar”.

Com a entrada na religião, a ninfa desenvolveria primeiramente como apará, fazendo

sua Iniciação, Elevação de Espadas e Centúria, depois fazendo o “reteste” após parar de

ter a sensibilidade, implicando em um novo desenvolvimento como doutrinadora, novos

trabalhos, etc., encarado por ela como um provável “merecimento de desenvolver uma

outra área que eu necessitava, de fortalecimento pra caminhada”. Um “tempo depois” da

mudança, passou a se “sentir muito ruim”, tendo ido “seis vezes pra emergência” de um

hospital antes de recorrer ao Adj. Gamurio, que, ao fazer a “puxada”, fez com que Vera

incorporasse. No primeiro teste, Vera recorda ter ouvido do comandante que ela teria

“as duas mediunidades”, embora pelo fato de ser “muito sensível” este a teria

denominado como apará a despeito do “muito medo do sentir” dela e da consequente

preferência por “ser doutrinadora”. A ninfa, que pertence à falange das Samaritanas,

menciona que a partir da terceira aula iniciou a parte “prática” do treinamento na Mesa

196
Evangélica sem que tenha conseguido estar apta a trabalhar ao final das sete aulas por

conta dos “bloqueios naturais” e do medo, assim como da “entrega diferente” requerida,

processo por ela vivido ao longo de quase um ano, ao final do qual aprendera a

“trabalhar à imagem de Jesus viva”. Segundo ela, o jaguar pouco a pouco adquire o

“reconhecimento” da “manipulação diferenciada” do Preto-velho – no seu caso Vovó

Catarina de Aruanda durante o desenvolvimento e, atualmente, Pai Joaquim das Almas;

que quando chega a um nível de “certa intimidade” percebida pelo instrutor, este

“começa a chamar os demais”: o Caboclo Pena Amarela e o Dr. Bezerra de Menezes.

Um outro aspecto chamativo aludido pela entrevistada foi o ganho do “conhecimento

das sensações” típicas dos Cavaleiros de Oxóssi e do Povo das Águas e o aguçamento

das “técnicas” de incorporação – por sua vez diferenciada da “projeção” da Condessa de

Natahy, entidade que costuma “representar” em alguns trabalhos, estado no qual se

sente “oitenta por cento” consciente e cujo senso de realidade é maior se comparado ao

da incorporação.

“Uma interligação que nós temos entre o céu e a terra, muito simbólica,

profunda e clara” realizada fundamentalmente através da “sensibilidade” é o que Vera

concebe como a mediunidade do apará. Durante a incorporação, a ninfa Ajanã refere

ficar “trinta, quarenta por cento” consciente, não lembra de “muita coisa não”: “fica pra

você o que é pra ficar pra você”, diz. Declara não haver “nenhuma restrição” além das

usuais a drogas e aponta como fatores facilitadores da incorporação, além da sionização,

“esquecer suas coisinhas, esvaziar e entrar em sintonia”. A aproximação dos “mentores”

envolve “leve peso” e “sonolência”, como num “dia meio assim que vai gripar”, e ainda

a “energia” de cada um deles: a suavidade própria do Médico de Cura, a força mais

“branda” dos Pretos-velhos e a firmeza e a bravura dos Caboclos – enquanto os espíritos

sofredores trazem “entrave na garganta”, “peso enorme” e “vontade de chorar”. A saída

197
das entidades envolve “a sensação quando você vai se entregando” e também

sentimentos de “alívio”, “retorno”, “conforto”, “renovação”, como se fosse

“acordando”. Vera refere sentir-se mais próxima não das entidades que incorpora, mas

de sua Guia Missionária, Avaluza Lilás (“anjo da guarda”); da Grande Samara,

“mentora” de sua Falange; e da Condessa de Natanhy. A ninfa tem uma peculiar visão

sobre a interferência de aspectos de sua personalidade54, embora se refira a uma “teima

individual” e “natural” principalmente no início do desenvolvimento. Observa “certo

crescimento” desde que tornou-se apará, mudando principalmente sua “forma de ver a

vida”, percebendo-se como mais “pacífica” e “branda” além de acreditar ter um outro

“entendimento”, que por sua vez implica em ter “sensação de caráter” e de “pré-

julgamento” sobre os outros. Diante da indagação acerca da possibilidade de sua

mediunidade cessar, disse que simplesmente pediria a “fita de doutrinadora”, se vendo

no futuro “no Vale”.

O mestre Mario, funcionário público de 46 anos, narra que por conta do que

crê ter sido um “problema com mediunidade” aos catorze anos de idade, “saía de si”,

ficava “descontrolado” e “quebrava tudo”, a ponto de precisar de três irmãos não apenas

para contê-lo e amarrá-lo, sem conseguir lembrar-se do que fizera após o “apagão”.

Buscara, assim, a ajuda de um Pai de Santo umbandista, por quem foi orientado por

cerca de um ano visando desenvolver-se como médium, quando então tudo voltara ao

“normal”, ajudando-o bastante. No entanto, a “curiosidade”, que lhe levara muitas vezes

até Igrejas Evangélicas, e o incentivo da mãe – interessada que o filho não mais bebesse

– lhe fizeram ir ao encontro do templo recém-aberto próximo de sua casa, o Humaitã do

Amanhecer, onde depois levara também o próprio Pai de Santo, que depois da visita lhe

dissera para esquecer tudo que ouvira sobre a Umbanda e que ali era “sua casa”. No ano

54
A citação literal de sua perspectiva sobre tal tópico se encontra no início do presente capítulo.

198
de 1985, “encantado” com o “chamado” da doutrina, Mario entraria para o ainda rústico

templo e faria seu primeiro teste, que o faria começar como doutrinador a despeito de

ter trabalhado na Umbanda. Um ano depois, o então mestre Sol sofria de “dores de

cabeça”, sendo chamado repentinamente por uma das entidades nos Tronos que lhe

orientara a fechar os olhos, fazendo com que incorporasse. Dessa forma, o entrevistado

afirma já ser apará há vinte e nove anos no VDA, doutrina que lhe chamou bastante

atenção por se “ajudar sem receber nada”, reconhecendo-a ao menos para ele como a

“religião certa” e na qual diz se encontrar, funcionando como um “caminho de

evolução” e como “válvula de suspiro” para o pagamento de seu “débito cármico”.

Talvez um dos mestres mais antigos da história do Gamurio do Amanhecer, o médium o

considera sua “casa”, que ajudou a construir com as próprias mãos, referindo-se

literalmente a esse processo, e relatou, ao tratar de um exemplo, sentir-se “culpado”

caso um trabalho que requer um mestre Ajanã venha a deixar de ocorrer.

O entrevistado, que possui grande importância no cotidiano do templo –

notadamente pelo fato de ter atingido um dos pontos mais altos hierarquicamente, sendo

“regente” da Falange dos Magos, e de ser um dos aparás mais experientes, o que pode

ser constatado por ser ele o “aparelho” através do qual o ministro Gamurio dá suas

bênçãos mensais; entende a mediunidade como uma “dádiva de Deus” dada com o

propósito de “fazer caridade na lei do auxílio”55 – e de, assim, pagar a “dívida cármica”

e colher “bônus”; que em grande parte depende do “acreditar” e, portanto, da “mente”,

sendo o apará a “voz de Deus” e os médiuns de incorporação “a espiritualidade aqui na

Terra”: “Nós somos o anel e o dedo”, “a luva e a mão”, conforme expressa em seu

discurso no que concerne à dependência dos espíritos de luz dos “encarnados”. Do

mesmo modo que Lucia, ao responder a maioria das perguntas, o mestre Lua tendeu a

55
Expressão exaustivamente repetida ao longo da entrevista.

199
remeter-se mais à doutrina e ao modo como esta entende os temas em questão do que à

sua própria experiência – sendo esta uma das razões pelas qual a entrevista teve maior

duração – de modo que ao tratar do desenvolvimento, por exemplo, começou abordando

as dificuldades em termos de “interpretação” dos sinais da incorporação pelo

“branquinho” (iniciante)56, só afirmando após ser novamente confrontado que demorou

apenas uma semana para “dar o nome” do Preto-velho Pai Jacó de Aruanda, com quem

mais trabalha e a quem mais fez referência; na semana seguinte já se apresentando o

Caboclo Tupinambá e o Médico de Cura Dr. João Magalhães Ferreira, que foram lhe

“lapidando”, embora tenha precisado fazer mais que as sete aulas obrigatórias. Nesse

sentido, os maiores aprendizados com o “aperfeiçoar” da mediunidade, inicialmente

“mais forte”, foram o respeito às “leis da doutrina” e à hierarquia, a “fazer caridade na

lei do auxílio” e, o mais importante, a “deixar a doutrina entrar nele”, do contrário,

jamais se tornaria um “soldado de Pai Seta Branca”, pois para sê-lo, para ele, é

necessário que se desprenda e deixe “lá fora” o livre-arbítrio, que “às vezes atrapalha

nossa jornada” desde que de tal modo não se pode ser um “cumpridor de leis e de

ordem”, pois que este “faz você achar que é melhor”. Nesse ínterim, comparou Jesus a

um “general”, Simiromba a um “tenente” e os “comandantes” a sargentos.

Mario referiu ficar “semiconsciente” durante o “transe”, destacando que

“tem algo errado” se o apará se sente inconsciente, precisando este “procurar o

presidente”. Ele “recebe a intuição” – o mentor “põe na mente dele” – e sente “vontade

de dar aquela mensagem, aquele conselho”, sentindo “no decorrer do tabalho” como se

tirasse um “cochilo”. Relatou que o VDA “não prega” que nenhum hábito seja abolido

no que tange à preparação do apará, que no seu caso se limita à sionização, a sentar no

Castelo do Silêncio e a se livrar dos pensamentos e do “estresse” do “mundo lá de fora”,

56
Também pelo fato de ser procurado por estes para tirar suas dúvidas. Relatou ainda ter visões e ouvir
vozes quando iniciante, além de sentir arrepios, tudo isso sendo encarado como “distúrbio”.

200
apontando “o acreditar” e a concentração como fatores facilitadores, afirmando apenas

que evita comer muito por conta de ter sua digestão prejudicada graças ao tempo que

permanece sentado. Segundo ele, a aproximação do espírito varia “de apará pra apará” e

de se está em jogo o “ensombreamento”, a “irradiação” ou a “incorporação”, embora em

geral seja “leve”. Relata sentir-se “pisando nas nuvens” e “maravilhado” em decorrência

do que acredita ser uma “troca de energias” resultante da desincorporação do mentor,

sentida como um “despertar”. Quando questionado acerca das histórias de suas

entidades, incluindo Anatama e Efajano Verde – seu Ministro e Cavaleiro Verde,

respectivamente – o entrevistado declarou desconhecê-las, tendo apontado, ao contrário,

para a história do presidente do templo com o Ministro Gamurio. Segundo Mario, a

incorporação deste é mais “tranquila”, “forte” e “sublime” e nela seu “nível de

consciência (...) é menos” (sic.), o que se daria por causa de sua hierarquia mais elevada

e da necessidade de protegê-lo, já que em tais ocasiões alega ficar por até seis horas

incorporado, sem sentir fome ou sede ao terminar. O apará jamais se perguntou acerca

de possíveis interferências suas e, diante da questão sobre o cessar sua mediunidade,

disse simplesmente que se tornaria doutrinador. Hoje, encontra no VDA sua realização e

sua “paz de espírito”, que contrasta com sua “personalidade de não aceitar muitas

coisas”, com a “loucura” e com o “trabalho” que dera aos pais no passado.

A ninfa Lua Carmen, de 53 anos, desempregada, fora católica por muito

tempo, embora em seu percurso religioso conte com passagens por igrejas evangélicas e

messiânicas e pelo contato com o espiritismo e religiões afro-brasileiras, aludindo a

experiências com as quais se debatia desde a infância, como “percepções”, “intuições”,

“pensamentos”, sonhos, déjà-vu e ainda a ouvir vozes, que a despeito de terem-na feito

se perguntar se não estava enlouquecendo, não recebiam qualquer significação, muito

menos a de que hoje são dotadas. Conheceu o VDA no ano de 2002, visitando um

201
templo por um ano em Manaus, cidade onde morou no mesmo período. Ao voltar para

São Paulo, passou a frequentar a religião em Limeira, onde, em 2005, passou a ser

“aspirante” desta, inicialmente como doutrinadora – por conta de sua “teimosia” e de

sua “insegurança” – e depois como apará – quando já sentia maior “firmeza” e as

“tonturas” e um “mal-estar no estômago” começaram a despontar; mudando-se com sua

família em 2010 para Fortaleza, desde então trabalhando no “Gamurio”.

A entrevistada recorreu à doutrina do Amanhecer graças a um “processo de

separação muito doloroso” em razão do qual recorda ter sofrido intensamente,

“chorando” e ficando “triste” a ponto de adoecer (“depressão”) quando residia

“sozinha” no Amazonas. Narrou algumas vivências interpretadas como indícios de sua

mediunidade, dando destaque principalmente a duas do momento em questão que a

marcaram de sobremaneira: um “sonho” ou “visão” – não soube precisar – na qual via

“o caso” de seu marido chegar com ele em casa e este lhe comunicava de sua intenção

de separar-se, o que fez com que as “coisas” começassem a “clarear” para ela; e de ter

ouvido, quando estava próxima à janela de seu apartamento, uma “voz” que lhe dizia

repetidamente “se joga daí!”. Em função de tais episódios e do seu “momento de dor” –

hoje pela médium vistos como fase pela qual “tinha que passar”57; o Vale do

Amanhecer para ela significa uma “vitória” em sua vida por conta de ter com a

dedicação à religião conseguido organizá-la, notadamente no que diz respeito à

“salvação” de seu casamento, atribuindo esta ao encontro consigo, com seus trabalhos –

por ela percebidos como próximos à sua atividade profissional, “voltado com pessoas”

(sic.) (Recursos Humanos) – e com seus mentores da doutrina, sendo grata a estes e

também ao “corpo mediúnico” pelo fortalecimento e pela confiança adquiridas. No que

concerne ao TGA, apesar de declarar que “aonde você for, a doutrina é a mesma”,

57
Neste ponto, por vezes referiu-se como “nós”, aludindo provavelmente à perspectiva do casal ou dos
demais jaguares do TGA, ligados à ideia do pagamento de reajustes e cobranças.

202
experiência adquirida com as muitas viagens que mencionou fazer a outros templos,

Carmen aponta como atrativos a proximidade de casa, o fato de seu esposo já frequentá-

lo antes e de o templo ser “iniciático” e “quase completo”, tendo assim “mais tempo” e

“mais trabalhos desenvolvido” (sic.), precisando, dessa forma, de mais médiuns, o que

faz com que se sinta necessária, sendo o templo no qual é recepcionista “parte

fundamental” de sua “caminhada doutrinária”.

Se a mediunidade em acepção ampla é por ela definida como “sensibilidade”

a “energias”, este “presente muito grande” no caso do apará se distingue por uma

diferença de grau e de qualidade, já que este “sente mais forte a presença” do espírito,

que por sua vez pode ser incorporado, embora com este constitua uma “parceria” na

qual nenhum dos dois “toma a frente”. Essa consciência parcialmente preservada e os

“cinquenta por cento de incorporação” que alega ser própria de seu estado subjetivo,

bem como de outros médiuns, envolve, além disso, o controle e o filtro por ela

realizados principalmente no caso dos “sofredores”. “Nós somos um grupo: (...) mentor

de luz, princesa, Preto-velho, o médium de incorporação e o doutrinador”, diz a ninfa.

No que respeita ao seu desenvolvimento como apará, Carmen recorda que nas sete aulas

além dos ensinamentos, “técnicas, práticas diferentes”, aprendera também

“comportamentos” e a “controlar o aparelho” visando “dar vazão ao mentor”, processo

para ela descrito como “difícil” “pelo fato de ser cinquenta por cento” e devido ao fato

de se ver como “um pouco teimosa” e “rebelde”, sentindo a “energia”, mas ainda

insegura e sem acreditar; somente tarde baixando “um pouquinho a guarda” e deixando

sua Preta-velha chegar, levando como principal aprendizado a percepção de que

aprenderá sempre, o que diz ser válido ainda atualmente, vendo o VDA como uma

“faculdade”.

203
A médium, que é Cigana Aganara e diz já ter recebido sua guia missionária

(Analude Lilás)58, tem a companhia de Caboclo Pena Branca e Dr. Orlando do Oriente,

dos quais teve visões apenas na primeira incorporação deles, e, por fim, de Vovó

Catarina de Aruanda, a quem mais se sente conectada por trabalhar bastante com ela

(Tronos, Alabá e Pajézinho) e por esta ter comunicado em sua primeira incorporação

que a acompanha “desde pequena”. Segundo a ninja Ajanã, a doutrina “não proíbe

nada” no que concerne à preparação, afirmando apenas no caso de incorporações mais

profundas de “altas hierarquias” manter-se calma, buscar fazer refeições mais leves, não

comer carne vermelha e “entrar em sintonia” com a entidade59, procedendo quando está

no templo com os rituais típicos, o esvaziamento da mente e “puxando a energia” do

mentor. As “energias completamente diferentes” das entidades influem na aproximação

destas, cujas características do Médico de Cura e da Preta-velha se opõem às do

Caboclo. O afastamento das entidades por vezes resulta do pedido destas ou do

doutrinador, depois do qual ainda sente “tontura”, “tremorezinhos” e certo abalo.

Quanto às interferências e as muitas dúvidas da entrevistada sobre a incorporação –

“projeção”, como muitas vezes se expressou; declara que o apará que não as tem, “não é

(...) um apará cem por cento”, em função das quais às vezes “corta” a mensagem ou nela

“dá uma contornada”, ao contrário do que lhe orientam. As transformações por ela

percebidas “como jaguar” – e não só como apará – envolvem conhecimento doutrinário,

humildade e menores arrogância e vaidade. Apesar de ver seu trabalho no TGA como

responsabilidade mas não como obrigação, refere que o filho adolescente que não é da

doutrina “cobra um pouco” sua presença graças à sua dedicação demasiada à religião,

na qual se vê no futuro independentemente da função – caso sua mediunidade cessasse.

58
No trabalho de “Troca de Rosas”, segundo ela ocorrido sempre no dia 30 de outubro em comemoração
ao aniversário de Tia Neiva.
59
Citou Vovó Marilu, Rainha de Sabá, Grande Samara e Mãe Tildes.

204
Quadro 4. Síntese dos achados das entrevistas e aspectos mais recorrentes relativos ao TGA.

Aspectos mais
Categorias/Médiuns Lucia Vera Mario Carmen
recorrentes
Bastante Quase se tornou Ex-umbandista, Pouco católica, Ex-católicos,
católica, freira, passou ia muito à passagem por nítida influência
kardecista por rapidamente por igrejas igrejas do Espiritismo
dois anos, hoje “templos” evangélicas. evangélicas, Kardecista. Não
Percurso religioso
apenas no kardecistas, hoje Hoje é somente messiânica, “cruzam
Vale do da Doutrina do “do centros espíritas e corrente” depois
Amanhecer. Amanhecer. Amanhecer”. afro-brasileiros. de aderirem ao
VDA atualmente. VDA.
Sensibilidade Interligação Dádiva de Deus Presente muito
às energias simbólica, para fazer grande.
circundantes profunda e clara caridade na lei Sensibilidade Sensibilidade.
com maior entre o céu e a do auxílio, forte às energias e Presente, dádiva
Definição de
frequência e terra: pagar a dívida à presença do ou dom
mediunidade
intensidade; sensibilidade. cármica e colher espírito. recebido de
incorporação. bônus. Depende Capacidade de Deus.
Dom de Deus. do acreditar. incorporá-lo:
parceria (grupo).
Idade adulta, Idade adulta. Adolescência. Idade adulta.
Sensação de Visões de vultos Problema com Infância: ouvir
Início das
flutuar na e retratos se mediunidade: vozes, sonhos Idade adulta.
experiências
Mesa modificando. descontrole, saía intuições, déjà-vu,
Evangélica. Sensações ruins. de si, etc. e pensamentos.
Precisou de Mais de sete Aperfeiçoament Sete aulas: Difícil Curso com sete
mais que sete aulas: bloqueios o: mediunidade processo. aulas de
aulas e naturais e medo. deixa de ser tão Teimosia e duração. No fim
treinamentos Entrega. forte como no insegurança: com delas, os aparás
básicos Acompanhada início. Uma dúvidas, não dava não estão
(Tronos, Cura primeiro por semana para dar o nome do prontos: seus
e Sudálio). O uma Vovó. o nome do mentor. “Baixar a medos, dúvidas
próprio Reconheciment mentor, na guarda” para dar e expectativas
mentor é quem o da semana seguinte vazão. Visões: intervêm
Desenvolvimento
libera o apará. manipulação do do Caboclo e Caboclo e Méd. fortemente.
da mediunidade
Recebera a mentor. Nível Médico de Cura. de Cura (somente Aliada a entrega
entidade de intimidade: Lapidado por ao darem seus à doutrina, o
“determinada” demais são estes. Precisou nomes). Técnicas treino de
e não a que chamados. mais que de sete e comportamentos técnicas de
queria ou que Aguçamento das aulas. Deixou a aprendidos. reconhecimento
se técnicas: doutrina entrar Controle do de um mentor
identificava. sensações de nele. aparelho. possibilita a
outras Aprendizado manifestação
entidades. constante. dos demais.
Incorporação e Incorporação, Incorporação e Incorporação e
Doutrinação Doutrinação Doutrinação Doutrinação
(quatro (pequeno (apenas no (cinco anos
Incorporação e
primeiros período), início). iniciais).
Tipos de tempo mais ou
anos). Sonhos. Projeção, Irradiação e “Projeção”.
mediunidade menos longo de
Sensações “ensombreamen
doutrinação.
“extra- to”.
sensoriais” e de
presença.
Cinquenta por Trinta ou Semiconsciente. Cinquenta por
cento quarenta por Mentor “bota” cento
Percepção do nível incorporada. cento intuições em sua incorporada. Semiconscientes
de consciência. Apará com consciente, não mente. .
algum lembra de muita
domínio. coisa, apenas do

205
que deve ficar
para ela.
Sem Nenhuma Nenhum hábito Sem proibições. Ausência de
restrições. Não restrição. abolido. Evita Altas hierarquias: restrições
sair da linha Sionização. comer muito. Mantêm-se calma, relacionadas a
ou da conduta. Esquecer suas Acreditar, faz refeições mais hábitos, exceto
Sionização coisas, concentrar-se, leves e sintoniza uso de drogas.
Preparação para a (sal e esvaziando-se. livrar-se dos com a entidade. Sionização,
incorporação perfume), Sentar-se no pensamentos/ Práticas típicas de concentração,
concentração e Castelo do estresse do preparação. “esquecimento”
sintonização Silêncio. mundo lá fora. Sioniza, esvazia a do mundo
com mentores. Senta-se no mente e puxa a exterior e
Reverências. Castelo. energia da esvaziamento
Sionização. entidade. mental.
Choque Leve peso e Leve. Depende Energias dos
elétrico, sonolência. ainda do apará e diferentes Variações
tremores e Depende da do tipo de espíritos influem. dependem
Aproximação da
sensação de energia dela. incorporação P.-v. e Méd. de principalmente
entidade
presença. Como num dia (irradiação, Cura: suavidade. do espírito em
Intensidade em que vai “ensombreamen Caboclo: maiores questão.
variável. gripar. to”, etc.). agitação e tremor.
Energia Sensação de Despertar, Tremores, tontura
Sensações de
limitada, se entrega, alívio, pisando nas e abalo. Própria
Afastamento da despertar e de
recuperando. conforto, nuvens: troca de entidade pede ou
entidade limitação
renovação e de energias. o doutrinador.
temporária.
acordar. Maravilhado.
Vovó Catarina Pai Joaquim das Pai Jacó de Vovó Catarina de
Pretos-velhos,
do Oriente, Almas, Caboclo Aruanda, Aruanda, Caboclo
Caboclos,
Caboclo Pena Pena Amarela, Caboclo Pena Branca, Dr.
Médicos de
Branca, Dr. Dr. Bezerra de Tupinambá, Dr. Orlando do
Cura, Guias
Entidades mais André Luiz, Menezes, João Magalhães Oriente, Analude
Missionárias,
importantes Alesca Verde, Avaluza Lilás, Ferreira, Lilás, Cigana
Ministros,
Cigana Grande Samara, Anatama, Valquíria, Rainha
Mentoras de
Valquíria, Condessa de Efajano Verde, de Sabá, Vovó
Falange e
Povo Cigano e Natanry e Gamurio e Marilu, M. Tildes
sofredores.
sofredores. sofredores. sofredores. e sofredores.
Possíveis, mas Espírito utiliza a Jamais se Muitas dúvidas e A despeito das
Interferências de jamais ocorreu cultura e o perguntou questionamentos dúvidas e
conteúdos psíquicos com ela. ectoplasma do sobre. ocorrem até hoje. inseguranças
dos médiuns na apará sem Corta e contorna frequentes, as
performance. depender da mensagens em reconhecem
vontade deste. função disso. raramente.
Suave, Certo Paz de espírito e Crescimento
tolerante e crescimento: aceitação, como jaguar.
tranquila. mais pacífica e atribuídos Mais
Transformação da Como branda. Novos principalmente à conhecimento, Atribuídas à
autopercepção doutrinadora: entendimento e doutrina. Vê as maior humildade, doutrina.
faísca de fogo, visão da vida. coisas de modo vaidade e
explosiva. diferente. arrogância
menores.
Nem evolução Pré-julgamento Nada o separa Filho se queixa de Identificação e
ou desgaste do caráter das da doutrina, pouca atenção. dedicação
Consequências do (família) pessoas. exceto ele. elevadas ao
trabalho como VDA afetam
médium relações com
pessoas de fora
da doutrina.
Experiências e Identificação Recorrência: Visão sobre a Dimensão grupal
aspectos mais com povo “denotar”. Vê a doutrina e o do trabalho -
significativos cigano (pai os questão da livre-arbítrio. mediúnico.

206
recebia): Líder interferência do Paralelo com o Confissão de
deles em vidas médium de Militarismo. dúvidas sobre as
passadas. modo peculiar. Min. Gamurio. interferências.

207
CAPÍTULO 9

IDENTIDADE E EXPERIÊNCIA DOS MÉDIUNS:

CONVERGÊNCIAS E DISSONÂNCIAS

“O mito possui duas funções principais. A primeira é responder àquele tipo

de perguntas esquisitas que as crianças se fazem, como: ‘Quem criou o

mundo? Como ele irá acabar? Quem foi o primeiro homem? Para onde vão

as almas após a morte?’ (...). A segunda função do mito é justificar um

sistema social existente e seus ritos e costumes tradicionais”

(Robert Graves, tradução nossa)

Neste capítulo, apresentar-se-ão as principais semelhanças e contrastes que

emergiram e resultaram das entrevistas, das audições destas e do processo de escrita do

capítulo anterior no que se refere às categorias exploradas, articulando-as sempre com

as observações realizadas em campo. Visa-se, assim, esclarecer e analisar a relação

entre o médium e os espíritos e entidades e a repercussão da vivência mediúnica,

buscando pôr à prova o modelo de análise dos dados proposto, isto é, o da identidade

psicossocial.

Como seria de se esperar de uma pesquisa realizada no Brasil, no que tange

à trajetória religiosa dos médiuns entrevistados, ficou patente a frequente influência

católica sofrida pela maior parte destes principalmente na infância devido à educação e

ao ambiente familiar. Com exceção de Franco, que via o frequentar a igreja como uma

obrigação que a mãe lhe impunha, todos os outros médiuns espíritas se declararam

anteriormente como católicos, mesmo Eugênia que a despeito de seu complexo com o

tema das freiras é apreciadora de arte sacra. Nesse ínterim, a médium umbandista

Margarida, assim como Vera, do VDA, por pouco não fora freira, e mesmo atualmente

costuma ir a missas e a eventos festivos da igreja, como por sinal é costume de outros

208
dois médiuns entrevistados e das Mães e Filhos de Santo do CEUJMJ. Lucia e Carmen,

do TGA, também eram católicas, embora aquela um tanto mais que a última. A

influência da Umbanda nos médiuns de forma geral fora a segunda mais forte,

principalmente em Cândido, cuja mãe era umbandista e de quem herdara o Sargento de

Cavaleria, Franco, que visitava terreiros para observar o que com ele se passava, e

Zíbia, que relatou já ter incorporado Pretos-velhos. Depois desta, o Espiritismo

Kardecista foi o mais referido, em especial por três médiuns do Vale do Amanhecer,

que tiveram um contato mais ou menos breve com este antes de serem da religião, e por

Mazé, que fez menção à chamada “linha de espiritismo”, que, segundo ela, apesar de

seu medo e de jamais tê-la recebido, todo médium deve ser capaz de incorporar, razão

pela qual Mãe Clara já tentou algumas vezes fazer “mesa branca” no Centro, embora

sem sucesso. Cabe ressaltar, ainda, uma observação no que concerne ao peso da

doutrina espírita, provenientes do trabalho etnográfico: no CEUJMJ, apesar do

depoimento de Mazé, o espiritismo se fez praticamente ausente, sendo raras as vezes em

que se observou um ou outro resquício de referência àquele, dando-se exatamente o

contrário no cotidiano do TGA, onde, apesar de não poderem “cruzar corrente”60,

muitos dos jaguares e até pacientes pertencem ou pertenceram a um ou a outro centro

espírita da cidade mais do que a terreiros, o que pôde ser notado mesmo nas entrevistas

com as menções à Kardec e sua doutrina pelos aparás, alguns deles chegando até a tratar

quase indiscriminadamente esta e a doutrina do Amanhecer61. A última religião mais

frequente no discurso destes fora a evangélica, à qual apenas uma das médiuns de fato

60
A orientação de não “cruzar corrente” é dada ao paciente interessado em ingressar no VDA no Castelo
de Autorização juntamente com a premissa de que este, uma vez jaguar, passe a deixar de usar drogas. Os
jaguares não podem ser adeptos de outras religiões, segundo estes, por conta da natureza diferente da
energia “manipulada” no Vale – o que fora muitas vezes aludida pelos entrevistados. Ressalvas são feitas
a casamentos, batizados e outros eventos e acontecimentos religiosos aos quais sejam convidados.
61
Cabe, porém, observar que o discurso predominante do corpo mediúnico quando o objeto de discussão
é o seguidor do Espiritismo Kardecista é de considerá-los demasiado estudiosos e, no entanto, pouco
dotados de energia, enquanto que a Umbanda é retratada de modo geral como utilizando-se da energia em
questão para propósitos julgados baixos e negativos.

209
fora seguidora – e apenas na infância – Bárbara, e que Carmen e principalmente Mario

referiram ir algumas vezes. Na realidade do CEUJMJ, a relação com os evangélicos é

frequentemente atualizada em decorrência do preconceito sofrido e da luta contra a

intolerância religiosa e a favor dos direitos e da livre expressão da “cultura de terreiro”.

Quando solicitados a fornecer sua definição de mediunidade, grande parte

dos entrevistados apresentou dificuldades para expressar o que entendem pelo termo.

Nesse sentido, o médium espírita Cândido não conseguiu chegar de todo modo a uma

resposta que considerasse satisfatória por conta de esta lhe parecer algo da esfera do

sublime e do imponderável. Bárbara apontou igualmente para semelhante problema ao

relatar não existir “uma palavra” capaz de exprimir, explicar e fazer justiça aos

verdadeiros significados e sentimentos dos quais este é dotado. Apesar de ambos serem

os casos mais ilustrativos, a maioria dos médiuns mostrou-se em maior ou menor

medida limitada diante da manifestação do afeto tão nitidamente expresso em suas

feições e em seu tom de voz ao esforçar-se pela conceituação de algo “tão sutil”

(conforme Franco), razão pela qual poderia ser de fato chamada, segundo a

compreensão da psicologia complexa, inspirada por Otto Rank, de experiência do

numinoso, a ponto de para Mario esta ser “tudo” e para Ismael, uma missão que deseja

levar não somente para o resto de sua vida, mas também pela qual deseja “voltar”

(reencarnar). De modo geral, os médiuns caracterizaram a mediunidade como um dom,

uma dádiva ou um presente que creem ter recebido de Deus envolvendo a dita

capacidade de sentir energias de forma mais intensa que a maioria das pessoas –

embora todas sejam consideradas médiuns no VDA e no Espiritismo Kardecista –

tornando-se assim aptas a transmitir mensagens ou a incorporar espíritos

desencarnados que buscam auxiliar os vivos ou que necessitam ser esclarecidos para

deixá-los em paz, sendo de tal modo os três beneficiados (o “medianeiro” incluso),

210
cumprindo-se o objetivo da caridade. Para os médiuns umbandistas, além disso, tal

concepção implica necessariamente em uma ausência de controle da parte do médium.

Um fator curioso relacionada à ênfase na dimensão da “sensibilidade” dada pelos aparás

do Templo Gamurio do Amanhecer fora o fato das respostas destes terem nessa

categoria apresentado significativo alinhamento, mais até do que seria de esperar dos

médiuns espíritas, que são bem mais afeitos a uma prática rotineira de estudo

doutrinário.

O início das experiências dos médiuns fora mais frequentemente remetido à

adolescência e à idade adulta e, depois, à infância. Vale ressaltar, entretanto, que alguns

dos médiuns apontaram certos acontecimentos de sua infância como a gênese de sua

mediunidade (Zíbia e Ismael), enquanto outros, mesmo relatando que apenas na

adolescência ou na idade adulta passaram a perceber sinais posteriormente identificados

como de emergência da mediunidade, recordaram-se de eventos anteriores a estes que

pareciam antecipar tal conclusão, embora no período em questão ainda não tivessem

sido significadas ou interpretadas de tal maneira (Eugênia, Vera e Carmen, por

exemplo). Assim, se faz necessário afirmar que o início das experiências não coincide

necessariamente com a data na qual abraçaram a mediunidade enquanto missão ou que

ouviram de alguém que seriam médiuns e que precisavam, portanto, trabalhá-la. Fora

inclusive muito mais frequente que os entrevistados referissem que, por conta de uma

série de fatores, dentre eles o medo e o choque entre sistemas de crença e visões de

mundo, somente algum tempo depois de receberem tal mandato estes viessem de fato a

levá-los a sério. De todo modo, quando não fora a própria família em grande parte e de

certo modo a responsável por deixar a mediunidade como herança ou por pelo menos

proporcionar um clima favorável e facilitador de experiências mediúnicas,

especialmente no caso de Zíbia, Cândido, Margarida, Ismael e Vera, o próprio contato

211
prévio com algum credo com certo destaque à possessão e um determinado histórico

relacionado a tal contexto se fizeram recorrentes e muito mais significativamente

correlacionado com o momento a partir do qual o entrevistado passou a construir e a

assumir a identidade de médium do que a fase da vida na qual os primeiros sinais

vieram à tona62. No que se refere a esta, enquanto no Espiritismo Kardecista e na

Umbanda a maior parte dos médiuns mencionou a adolescência como momento inicial,

no VDA o mesmo se deu com a idade adulta.

O desenvolvimento da mediunidade dos médiuns parece não estar limitado

por um período de tempo determinado de modo preciso e estático. No CEGM, o tempo

que estes dispendem realizando inúmeros cursos não apenas para a iniciação na

mediunidade – mas que esta parece exigir quase que como um pré-requisito – é

variável, embora a duração aludida pelos médiuns seja geralmente contada em termos

de anos, sendo de tal modo o que parece exigir mais tempo. No caso da Umbanda,

embora Ismael tenha declarado ter precisado de dois ou três anos para receber seu

primeiro guia, as outras médiuns estimam ter sido necessário um período de cerca um

ano para que a primeira incorporação ocorra, de forma que ter meses como parâmetro

parece mais adequado. No Vale do Amanhecer, por sua vez, a única das religiões que

delimita a duração de tal processo a um número mínimo de sete aulas, ocorridas

semanalmente aos domingos, é quase de se esperar que os aparás sintam necessidade de

fazer mais aulas, conforme o relato de todos os médiuns e em especial o de Mario, que

conhece bastante do processo e é procurado pelos “branquinhos” para tirar dúvidas. A

contagem em semanas é mais apropriada neste caso. Cabe destacar, nesse ínterim, que a

menor ou maior duração do período no qual o médium se desenvolve depende,

sobretudo, do seu próprio engajamento, da sua motivação e dos seus receios,

62
É conveniente aqui recobrar a noção de feedback entre crença e experiência de Maraldi (2011).

212
inseguranças e expectativas a respeito da religião e da incorporação. Nesse sentido, é

esclarecedor o depoimento de uma desenvolvente do CEUJMJ entrevistada que

comparara o percurso de dois Filhos de Santo que contavam com tempo aproximado de

participação no Centro, um deles já trabalhando com todas as suas entidades e outro

ainda mal recebendo seu primeiro guia.

De modo geral, os medos dos médiuns com relação aos espíritos tendem,

cada vez mais, a deixar de existir enquanto que suas inseguranças e dúvidas quanto à

veracidade daquilo que experimentam em especial no TGA e no CEGM continuam

tendo espaço mesmo após certo tempo de experiência, diferente do que relatam ocorrer

os médiuns do CEUJMJ, onde estas aparentam ter o mesmo destino que o medo. Em

compensação, segundo Bárbara e Mazé, as entidades maltratam bastante o

desenvolvente no processo, querendo assim sinalizar para o sofrimento – em alguns

momentos até físico, já que estes rodopiam, cambaleiam e às vezes até caem –

envolvido no processo no qual o guia precisa destituir do iniciante o controle de seu

corpo, para assim assumi-lo efetivamente. Este parece ser o caso principalmente pelo

fato de que, enquanto que, no início, é mais ou menos tolerável que o apará

“branquinho” e principalmente o médium espírita dê comunicações de modo

inconsciente ou pouco consciente, também é compreensível que reste ao desenvolvente

na Umbanda por certo tempo algum nível de consciência durante o transe. Pôde-se,

assim, identificar nas três religiões alguns momentos que parecem servir como

demarcações que discriminam um médium iniciante de um mais experiente: no Vale do

Amanhecer, mais que o momento em que os mentores apresentam seus nomes, a

autorização do próprio Preto-velho para que o “aparelho” trabalhe nos Tronos; na

Umbanda, o momento no qual o desenvolvente deixa de estar apenas “sombreado”

pela energia do “Caboclo” – e, portanto, ainda consciente, segundo Bárbara – e passa a

213
incorporá-lo; e, no Espiritismo Kardecista, o instante a partir do qual o médium é

convidado a participar das reuniões mediúnicas propriamente ditas, onde as

comunicações são privilegiadas em detrimento da psicografia. No intervalo entre esses

dois momentos parece se estabelecer certa tensão entre duas atitudes pertinentes ao

médium, a saber, a entrega para o espírito e o controle sobre este, que vão pouco a

pouco se ajustando entre si e se articulando com o que dispõe um determinado médium

em termos de repertório de experiência nesse sentido e com que o conhecimento

religioso considera o ideal. Enquanto os médiuns do Espirismo Kardecista acabam

dando mais ênfase ao controle, e assim também o fazem os da Umbanda, os aparás do

TGA destacam mais a entrega, inclusive à própria doutrina, como o faz Mario. O

controle em questão diz respeito no caso destes e dos médiuns espíritas ao que deve e

pode ou não ser dito ou feito e ainda, consoante Cândido, sobre quais supostas entidades

que se aproximam do médium têm ou não o direito de se manifestar (“filtração”).

Eugênia apresenta como exemplo o fato de não falar palavras de baixo calão mesmo

quando o “irmãozinho” deseja fazê-lo e Carmen afirma tentar “contornar” o que sua

Preta-velha lhe inspira a dizer quando se trata de algo possivelmente incômodo para o

ouvinte, ainda que, segundo ela e também Lucia, o propósito central no VDA de tal

controle seja fundamentalmente o de não deixar que os sofredores falem, em primeiro

plano, ou expressem sua dor sem limites, embora bater nos Tronos e chorar ainda esteja

dentro do que é considerado aceitável. Ainda sobre o controle, é interessante apresentar

a comparação à qual procedeu Mario entre o momento de emergência da mediunidade,

no qual esta é um tanto mais intensa, e aquele em que esta já se encontra desenvolvida,

quando é consideravelmente mais contida, que por sua vez não é estranha à vivência de

outros médiuns, inclusive dos outros dois grupos. De resto, vale ressaltar a notável

semelhança entre a chamada do guia, que depois “abre a coroa” do médium para as

214
demais entidades, no desenvolvimento na Umbanda, e a apresentação do Preto-velho no

curso do VDA, que permite a apresentação do Médico de Cura e do Caboclo. Por outro

lado, há na Umbanda a chamada firmação ou afirmação das entidades, que parece ser

outra etapa na evolução da performance do médium incorporado, enquanto que, a

despeito de todos passarem pelas chamadas graduações (Iniciação, Elevação de

Espadas e Centúria), nem todo apará no TGA chega necessariamente à condição de

Carmen, Mario e Vera, que recebem ainda espíritos de luz com certo destaque na

doutrina do Amanhecer e que implicam em outras modalidades de incorporação e em

percepção diferente do nível de consciência e dos sentidos durante o transe. O ponto

mais alto no CEGM, por sua vez, é simplesmente a possibilidade de após um longo

aprendizado finalmente praticar a psicofonia e pouco a pouco, aperfeiçoá-la. Influências

indispensáveis e constantes ao longo de todo o curso do que poderia se chamar de

evolução da mediunidade nas três religiões são ainda o que os médiuns acreditam ser

confirmações de outrem no que se refere à autenticidade e veracidade do que fora

comunicado pelo médium incorporado e às vitórias e conquistas atingidas pela

assistência e pelos pacientes supostamente graças aos conselhos ou intervenções das

entidades (ZANGARI, 2003).

O tipo de mediunidade mais recorrente em sentido amplo, como já seria de

se prever, foi a incorporação, sendo igualmente comum que os entrevistados citassem

sensações de presença. Entretanto, apesar de se esperar que, no caso da doutrina

Kardecista, que conta com classificações de modalidades do dito fenômeno, os médiuns

as relatariam se utilizando de tais nomenclaturas, estes mencionaram somente63 a

psicografia, prática cujo sentido no CEUJMJ está associado principalmente aos

63
Isto pode estar associado à própria cultura, orientação e interpretação da doutrina espírita do grupo em
questão. Segundo uma informante de outro centro espírita investigado como contra-campo, na cena
espírita cearense certas “casas” se especializam e destacam mediunidades ou dimensões diversas da
doutrina de Kardec, citando exemplos de casas mais conhecidas pelo estudo, outras pela cura, pelas
cirurgias espirituais, etc.

215
momentos iniciais da fase prática dos cursos de iniciação e priorizado, portanto, para

treinar os iniciados e facilitar sua desinibição; e a psicofonia, que é utilizado de maneira

indiscriminada da expressão “incorporação”, ainda que seja digna de nota a menção de

Cândido a uma espécie de “acoplamento” do espírito no cérebro do médium do qual

resultaria o “impacto” que sente, deixando entrever que possivelmente a preferência

pelo primeiro termo ao invés do segundo revele, de um lado, a busca por um vocábulo

que soe melhor à inspiração cientificista própria do espiritismo e, do outro, o destaque

simultâneo das dimensões daquilo que se concebe como de ordem mais cognitiva e,

quiçá, neural ou cerebral, e da fala – por oposição ao segundo, que enfatiza que o

espírito ou entidade dispõe do corpo inteiro do médium (e todas as suas potencialidades

comunicacionais) e não apenas de parte dele. Isso não significa, contudo, que os

médiuns espíritas não possam ter seus corpos inteiros em movimento – em especial da

cintura para cima, já que ficam sentados – durante as chamadas comunicações ou que

não sejam performáticos. Comparados aos do Vale do Amanhecer e da Umbanda, suas

performances aparentam mais sutis, especialmente dos últimos, que não só conversam

sentados, mas dançam, pulam, deitam, gritam, cantam, etc. As vivências oníricas são

enfaticamente consideradas mediúnicas nos três grupos (principalmente no CEUJMJ e

no TGA), onde o discurso de que estas, ao invés de se tratarem de eventos desprovidos

de sentido conforme usualmente se imagina, são na realidade ocasiões em que os

médiuns se consideram na verdade estar trabalhando, nem que seja no chamado mundo

espiritual, constando como exemplo disso o sonho de Ismael trabalhando na praia com

uma de suas entidades e o de Bárbara, que se vira assinando um papel na noite anterior à

sua demissão64. A vivência de longe mais chamativa e peculiar do ponto de vista da

fenomenologia das experiências mediúnicas foi a de certa médium que – apesar de não

64
A médium fez questão de sublinhar, porém, que já esperava que isso ocorresse, pois estava de licença.

216
considerá-las como sonhos a despeito de declarar pelas razões a seguir não lhe

agradarem seu sono pela tarde, quando geralmente estas ocorrem –, com certa cautela65,

narrara que um espírito por vezes se deita em sua cama e se faz passar por seu cônjuge,

acariciando-a e até mesmo a levando a ter orgasmos, que diz refere ter aproveitado nas

ocasiões em que ocorreram embora tenha dado a entender que nem sempre elas lhe

agradassem. Tão frequentemente relatada quanto os sonhos foram as ditas visões,

apesar de que Cândido, por exemplo, tenha as experimentado apenas antes de, de fato,

passar a participar das mediúnicas. O mesmo ocorrera com Vera, embora, a despeito de

algumas visões narradas por Carmen quando já fazia o curso, seja necessário recordar

que além da incorporação e da doutrinação, no TGA costumeiramente se menciona que

a visão, ou nos termos da doutrina do Amanhecer, a clarividência – talvez o que se

poderia identificar como um terceiro tipo de mediunidade do VDA – fosse capacidade

exclusiva de Tia Neiva66. Interessa observar que todos os aparás referiram já ter

desenvolvido sua mediunidade de doutrina – a outra modalidade mais comum no TGA

– e, mais curioso ainda, três deles, antes de serem aparás, precisaram passar certo tempo

como doutrinadores, desde um até cinco anos, até que passassem a ser Ajanãs, inclusive

Mario, que já incorporava antes na Umbanda (embora somente por um ano). Isso pode

apontar, como já se fez notar em outros exemplos mencionados anteriormente, que, em

certo sentido, uma vivência de contato e de internalização da doutrina favorece a

construção de um repertório de técnicas, comportamentos e até de percepções que

proporcionam, mais que as sete aulas do curso, uma base necessária e indispensável

65
Não se mencionou o nome ou o grupo do qual a médium em questão faz parte por duas razões:
primeiro, por conta de esta ter, num primeiro momento, solicitado que o entrevistador não realizasse o
registro desse tipo de mediunidade e, em segundo lugar, pelo fato de esta antever que seus pares
religiosos avaliariam negativamente tais experiências. No entanto, ao final, esta voltou atrás quando foi
mais uma vez informada do fato de que não seria identificada. Portanto, visando preservá-la, mais do que
simplesmente não associar tal relato a nenhuma das médiuns, se considerou ser mais prudente não
associá-la igualmente a nenhuma das religiões, tendo em vista minar a possibilidade de que membros
destas possam identificá-la ao terem acesso ao trabalho.
66
É importante mencionar, contudo, que a esta são atribuídas principalmente as grandes visões
(revelações) e não quaisquer destas, razão pela qual Carmen possivelmente não hesitou em narrar as suas.

217
para os aparás em questão. O último tipo mais recorrente fora o ouvir vozes,

destacando-se a que Carmen recorda ter escutado, dizendo-lhe para dar fim à sua vida.

No VDA e na Umbanda poucos médiuns coincidiram na menção ao sombreamento e,

internamente àquele, a projeção (ou representação) e a irradiação.

A categoria cujos resultados dos três grupos religiosos mais divergiram foi,

certamente, a da percepção do nível de consciência pelos médiuns. É de impressionar

que os espíritas de modo geral tenham respondido afirmando permanecerem de todo

conscientes, alguns deles fazendo questão de frisar que “totalmente”, como Eugênia, e

outros, como Franco, que consideram ser justamente este o grande fardo dos médiuns

espíritas, fantasiando este poder um dia ao menos ter a capacidade de dar uma

comunicação na qual não registrem e se recordem de absolutamente nada, ficando,

portanto, completamente inconscientes, tendo, assim, a tão almejada prova cabal de seu

“sentido”. Algumas exceções, porém, são dignas de nota: o fato de Zíbia ter declarado

não lembrar-se de tudo que fora dito e o relato de uma médium iniciante que, muito

embora tenha confessado ser inconsciente – o que parecia afligi-la –, a ponto de narrar

que certa vez até mesmo teria se levantado da “mesa” e se direcionado à porta, como se

quisesse deixar a sala da reunião, numa segunda observação de uma “mediúnica” disse

ao dirigente, com a honra de quem se sente progredindo e aprendendo, ter se sentido

mais consciente, percepção com a qual este concordou. Na Umbanda, os médiuns dizem

estar inteiramente inconscientes durante o transe, sem ter consciência de nada do que

ocorre com seu corpo ou ao seu redor, razão pela qual não se recordam de nada, embora

Bárbara refira no desenvolvimento não ser incomum que o médium sinta sua

consciência preservada, ainda que isto só se dê nos primórdios. É curioso o relato de

Ismael, que enquanto está “apagado” diz ter a sensação de estar passando por certos

cantos ou “viajando”. O sentido da ausência completa de “noção” e da impressão de

218
ficar fora de si parece apontar, como em semelhante caso, para uma crença paranormal

ou anômala igualmente intrigante, a saber, o que se convencionou chamar de

experiência fora do corpo (EFC). Isso parece ser reforçado pelas seguintes evidências: a

alusão de Bárbara ao fato de que outras pessoas já lhe comunicaram se sentir de tal

modo bem como à sua própria vivência em especial quando, no início, se encontrava

“sombreada”; a comparação desta e de Ismael de seu nível de consciência com o de

estar dormindo tanto quanto ao “espertar” ou “acordar” ao desincorporarem; o pedido

de Margarida para que o anjo de guarda se afaste para que possa incorporar somado ao

narrado “empurrão” deste contra o espírito de Ismael; e, por fim, mas igualmente

importante, a visão de Bárbara de seu próprio corpo, embora não se sentisse ou se

reconhecesse nele. A contradição entre, de um lado, o testemunho de Zíbia, que não se

recorda de tudo depois da comunicação, e a ainda aludida falta de reconhecimento da

aproximação do espírito da parte de Franco em algumas vezes e, do outro, o discurso

corrente dos médiuns espíritas acerca de permanecerem completamente conscientes

somada ao paradoxo entre o relato dos umbandistas de que permaneceriam inteiramente

inconscientes e o fato de, ao mesmo tempo, terem sinalizado como ganho do

desenvolvimento justamente o controle sobre as entidades levanta o questionamento de

se a total (in)consciência ao longo do transe não seria mais uma hipérbole cujo sentido

real seria o de apontar uma tendência do médium a se aproximar mais de um dos polos

do que do outro: o da consciência permanecendo intacta ou de sua completa inibição.

Tremendamente impressionante, porém, é o fato de que no Vale do Amanhecer, que das

três religiões é a que do ponto de vista histórico foi a última a surgir e que sincretiza

talvez em igual medida justamente as outras duas, o depoimento dos aparás em relação

a tal categoria – também de todos eles, como nas outras duas religiões, o que é

justamente a semelhança disfarçada entre diferenças tão chamativas entre todas elas,

219
isto é, o fato de nenhum médium ter destoado radical ou significativamente dos demais

– consiste precisamente numa síntese das respostas dos médiuns espíritas e

umbandistas, sendo, portanto, semiconscientes. Destacam-se, aqui, a preservação de

trinta ou quarenta por cento de consciência aludida por Vera, que contrasta um pouco

dos cinquenta por cento de incorporação mencionado por todos; os oitenta por cento de

“presença” referentes à mediunidade de projeção da Condessa de Natanry relatados pela

mesma; e a quase total inconsciência de Mario quando incorporado pelo Ministro

Gamurio.

A preparação para a incorporação envolve, acima de tudo, uma prática em

grande parte assemelhada a um processo, um devir ou um aquecimento – que requer,

portanto, uma quantidade tempo, por sinal, variável67 – cujas características mais

marcantes são o tomar como objeto da atenção do médium os conteúdos de sua própria

consciência – intenções, pensamentos, pedidos, percepções, desejos, preces, memórias,

sentimentos, atos, preocupações, etc. – e, além disso, o conferir a eles dois destinos

possíveis: a uns, fundamentalmente aqueles avaliados como prejudiciais, como, dentre

alguns destes, o estresse do cotidiano e do trabalho, os pensamentos negativos, as

imagens associadas a pessoas e os conflitos íntimos, o do esquecimento ou do

esvaziamento, retirando destes e do mundo externo o foco (limpeza) e, a outros,

considerados bons ou positivos, o de se tornarem alvos centrais do processo

(concentração), voltando-os para Deus e para as entidades, espíritos, mentores e guias

(“família espiritual”) e para suas características, bem como para o que na crença dos

médiuns se trata do mundo espiritual (sintonização). Aliado a esta prática, que uma das

médiuns denominou de preparação mental, há uma prática que para os entrevistados é

mais voltada à dimensão corporal – mas que não parece completamente dissociada

67
No Espiritismo Kardecista e no VDA, geralmente ao decorrer do próprio dia em que o médium virá a
incorporar e, no caso da Umbanda, por vezes de um dia a uma semana.

220
daquela ainda que bem menos enfatizada, em especial no VDA –, que por sua vez

concerne principalmente à restrição de certos hábitos alimentares (“carne vermelha”,

refeições pesadas, “comer bem”, etc.) e, em menor medida, limitações envolvendo

primeiramente a ingestão de álcool, depois, sexo e, por último, lazeres em geral. Na

Umbanda, os entrevistados recorreram com frequência à noção dos “preceitos” e, no

Vale do Amanhecer, além da concentração e da sintonização, que conduzem à

mediunização, a chamada sionização e o momento de sentar no Castelo do Silêncio para

a mentalização descrita acima em linhas gerais.

O aspecto mais central e geral no que diz respeito à categoria da

aproximação das entidades foi o de esta ser em grande parte relativa às características

de cada um desses espíritos – e também dos médiuns e dos tipos de incorporação –, de

modo que se deixou entrever também a ideia de que cada um deles parece trazer

“energias” não apenas de qualidade diferentes, mas também, em especial no caso do

VDA, de intensidades variáveis, como parece particularmente notável a distinção em

grau crescente entre os Médicos de Cura, que evocam leveza e sutileza de movimentos,

os Pretos-velhos, um pouco mais fortes, mas igual e simultaneamente leves e brandos, e

os Caboclos, que fazem com que os médiuns fiquem agitados. Já na Umbanda, os

médiuns sentem a coluna dobrar pouco a pouco em função de um peso nela sentido,

uma grande quantidade de calor no corpo (nos pés principalmente), delicadeza e a

sensação de marejar no que concerne, respectivamente, os Pretos-velhos, os Exus, os

Erês e o “Povo da Maresia”. Nos três grupos investigados pôde se observar, às vezes, a

alusão a uma espécie de impacto, abalo ou choque elétrico, bem como a tremores, não

sendo raro também que os médiuns simplesmente se deem conta tardiamente do que se

encontram fazendo ou fizeram durante a incorporação. Assim, por exemplo, os médiuns

espíritas podem sentir o que a posteriori vem a ser interpretado como a proximidade dos

221
espíritos sofredores não apenas no momento exato da reunião mediúnica, mas durante o

dia ou mesmo ao longo da semana, tal como Eugênia, que relata algumas vezes sentir

angústias e a “vida sem sentido”, e é por sinal muito frequente que estes sintam mais as

emoções e sensações desagradáveis provenientes dos sofredores, que os entrevistados

acreditam se tratarem de suicidas, vampiros, doentes, acidentados, viciados, alcoólatras,

etc., do que as de uma polaridade mais agradável, associada por sua vez aos

consideravelmente menos mencionados espíritos evoluídos, que, segundo Cândido,

pedem a autorização do dirigente para se comunicarem. Já a aproximação das entidades

no CEUJMJ e dos espíritos de luz no TGA parece ser dotada de uma maior

previsibilidade, já que dependem, no caso daquele, das orientações do próprio Centro e

das Mães de Santo, bem como de seu calendário de Giras e de festividades – e, assim,

do “toque” do Ogã – e, no que se refere ao último, do trabalho em questão; sendo

prudente, contudo, atentar para as exceções, como as incorporações mais ou menos

repentinas de certas entidades que não temos como garantir se foram ou não planejadas

nas Obrigações no terreiro e à crença de que às vezes podem os Caboclos se fazerem

presentes nos Tronos e os Pretos-velhos no Sudalio. Os aparás se referiram com maior

frequência à leveza, talvez em decorrência justamente das vivências associadas aos

Pretos-velhos e Médicos de Cura. As médiuns Mazé e Carmen chegaram a distinguir,

inclusive, a aproximação de entidades de mesma linha devido às características de

temperamento destas.

As emoções e sensações experimentadas quando do afastamento das

entidades variam, assim como no caso da categoria anterior, a depender mais ou menos

do tipo de espírito, entidade ou mentor. Assim, no caso da Umbanda, após a pretensa

incorporação de um Preto-velho, as médiuns relataram sentir dores nas costas, bem

como cansaço quando as chamados Crianças desincorporam e dores nos braços no que

222
diz respeito aos Caboclos (em função de seu alegado peso “de homem”), enquanto que

no Espiritismo Kardecista, por exemplo, os médiuns podem sentir pena ou

simplesmente alívio ou relaxamento com o acreditado afastamento dos espíritos

sofredores, enquanto que os “vampiros” e os “chefes” de grupos perseguidores podem

deixar cansaço e mal-estar, ou pior, aniquilamento, como atesta Franco. Essas sensações

desagradáveis tenderam a ser mais relatadas no CEUJMJ e mais ainda no CEGM,

embora, de modo geral, tenham sido as menos expressivas. Anteriores a estas em

termos de frequência encontram-se, especialmente no caso do CEUJMJ e do TGA, as

consideradas agradáveis, principalmente relacionadas à leveza, ao alívio, ao

relaxamento, à renovação e, por conseguinte, ao espertar ou despertar, o que se conecta,

por sua vez, à questão do sentimento de limitação do controle de seu corpo e de suas

funções psíquicas pelo próprio médium, que vão pouco a pouco retornando ao estado

costumeiro. Em razão deste, os doutrinadores do VDA se mostram preocupados quanto

ao estado do apará e a Cambone ou outros Filhos de Santo do CEUJMJ geralmente os

auxilia no seu “retorno”.

As entidades mais importantes foram, sem dúvida, as da Umbanda, em

especial os Pretos-velhos, referidamente incorporados por médiuns não apenas do Vale

do Amanhecer, onde possuem grande destaque notadamente pelo fato de serem aquelas

com as quais os aparás mais costumam trabalhar (nos Tronos, trabalho mais importante)

e que exercem o importante papel de facilitar a incorporação das demais entidades e de

autorizar os médiuns a trabalhar, mas também no Espiritismo Kardecista, por Zíbia e

Cândido, que, por sua vez, descreve o Sargento de Cavaleria como da Umbanda,

aproximando-se pela sua descrição do que no CEUJMJ seria um Ogum. Em menor

medida, se dá destaque ainda aos Caboclos, que em ocasiões especiais podem

comparecer nos Tronos do VDA, mas cuja interação com o público é bem menos

223
significativa que a ocorrida na Umbanda, e menos importante ainda no CEGM, embora

Cândido e, discretamente, também Franco os mencionaram. Fala-se aqui em entidades

da Umbanda por uma razão clara: além delas em conjunto acumularem grande

influência sobre o VDA, este último médium relatara ainda que entidades da Umbanda

teriam por algum tempo feito uma espécie de treinamento no centro espírita investigado

e não se pode esquecer que Zíbia tratou de uma situação de tensão envolvendo a

incorporação de um Tranca-rua. Ainda que se possa argumentar que as entidades da

Umbanda adquiram funções e sentidos diferentes em cada um dos grupos das demais

religiões – fato do qual não se pode discordar por completo –, é impossível

desconsiderar que, a despeito destas perderem no TGA e no CEGM uma parte das

características, por exemplo, do Preto-velho, como o fumar cachimbo, o uso de ervas, o

beber café, a pipoca, etc., outra parte parece ser preservada e permanece comum embora

mais ou menos alterada, como a humildade, a sabedoria, a simpatia, o acolhimento, a

consolação, etc. – do contrário nem mesmo seriam denominados de tal forma. Por

último, destacam-se os espíritos sofredores, especialmente no TGA e no CEGM, cujas

práticas religiosas parecem ter como objetivo comum a desobsessão, pela quais são eles

responsáveis, sendo apenas mencionados por Mazé os chamados “Eguns” ou entidades

da “linha de espiritismo”, isto é, justamente os supostos desencarnados que se acredita

de algum modo prejudicando os encarnados. Além dos supracitados, há no CEGM

grande destaque para os suicidas. No CEUJMJ, os Mestres ou Juremeiros, que

comparecem em quase todas as Giras, os Caboclos, Pretos-velhos, Exus e Erês e, em

menor medida, os Oguns e o Povo do Mar. Já no TGA, além dos Pretos-velhos,

Caboclos e Médicos de Cura, assumem importante destaque ainda as Guias

Missionárias das ninfas e os Ministros dos mestres – por vezes comparados ao que se

costuma chamar de anjo da guarda em função de, assim como também o Cavaleiro

224
Verde no caso do mestre, regerem especificamente um indivíduo – bem como as

Mentoras de Falange e, por último, o Povo das Águas e os Cavaleiros de Oxóssi, dentre

outras entidades do panteão quase infinito do Vale do Amanhecer. É curioso observar,

porém, que a quase totalidade dos médiuns não possui conhecimento algum acerca de

suas histórias, constituindo as exceções mais significativas à tal regra os espíritos

sofredores incorporados nas mediúnicas, que geralmente narram sua história, e a

médium umbandista Margarida.

A categoria da interferência de conteúdos psíquicos do médium na

performance apresentou-nos um cenário comum especialmente caso comparado o que é

narrado pelos médiuns espíritas e pelos aparás. Quando não reagem tal como os

médiuns da Umbanda, que – à exceção de Bárbara, que enxerga mais os

questionamentos e dúvidas nos desenvolventes, e de Ismael, que chegou a dar o

exemplo de quando o fato de ter bebido na véspera de uma Gira “baldeara” sua

“corrente” sem que os “Caboclos” o correspondessem – referem nem mesmo se

perguntarem acerca de interferências de elementos de vivências suas no modo pelo

qual suas entidades procedem, por exemplo, com as pessoas da assistência; eles

assumem a insegurança, a dúvida e as perguntas sobre a possibilidade de certas coisas

não se tratarem de “coisas” de sua “cabeça” ou frutos de sua imaginação quase que

como subprodutos inerentes ao seu ofício de caridade e como resultantes da dicotomia

entre o plano terreno e o espiritual, embora sejam dignas de nota uma observações

relativas à tal reconhecimento, a saber, a de este acabar adquirindo certo caráter

dissimulatório, desde que parecem tentar disfarçar ou mascarar o fato de que, a

despeito de os médiuns terem-nas confessado sem grandes dificuldades quando se trata

de admiti-las como possibilidade ou a um nível hipotético, dificilmente apresentam

situações concretas ou cenas de sua trajetória que as exemplifiquem de modo a elucidá-

225
las, referindo-se a estas, ao invés disso, quase sempre quando em seguida tiveram a

confirmação de outras pessoas, razão pela qual, no fundo, acabam não se distinguindo

tanto dos umbandistas quanto a primeira impressão provocada poderia deixar parecer.

Ilustram bem tal recurso retórico a dúvida de Cândido sobre a comunicação da amiga

dada através dele e a confirmação do dirigente e a interferência sentida por Franco que,

no entanto o doutrinador viria a atribuir não ao médium, mas a um espírito “enganador”,

de certo modo descartando a influência de seu amigo. Isso não é estranho ao TGA,

cujos doutrinadores podem “cortar” os mentores nas ocasiões em que identificam algum

tipo de trato diferente do que a doutrina prevê como adequado, que são por seu turno

mais identificadas como envolvendo a participação desses tipos de entidades e quase

nunca ao próprio apará. Destacou-se de tais tendências gerais observadas a perspectiva

de Vera, que considerou positivamente a insegurança envolvendo o tema dessas

interferências, de modo que identifica a mente do médium, bem como a cultura e o

contexto no qual está inserido como fonte da qual se utiliza o que esta acredita ser o

espírito, embora faça a ressalva de que este processo não está submetido à volição do

apará.

Finalmente, restam serem abordadas as transformações da autopercepção e

as consequências do trabalho como médium, categorias cujo trato separado é pouco

interessante diante do que ficará exposto a seguir. Sublinha-se que, de um ponto de vista

amplo, mais que a percepção da modificação de um ou outro aspecto específico da

representação que os entrevistados fazem de si mesmos para um único e determinado

ponto, o que esteve em jogo com relação a tais transformações indica mais propriamente

uma dispersão do sentido das novas características com as quais os médiuns passaram a

se identificar, embora haja a tendência comum de estes se perceberem em grande

medida mais calmos, pacíficos, tranquilos, leves, pacientes, etc., o que revela

226
justamente o denominador comum de uma avaliação de todo positiva das mudanças

efetuadas – às vezes chamadas de vitórias – não apenas sobre si mesmos, mas sobre seu

conhecimento e visão da vida e do mundo. As repercussões do trabalho dos médiuns

entrevistados tocam principalmente a dimensão da socialização e das relações sociais,

no caso do Espiritismo Kardecista sendo comum que estes sintam uma tendência a

aproximar-se das pessoas: Eugênia enxerga que as atrai em função das desavenças

deixadas de lado, Zíbia se sente menos diferente delas, Cândido é mais compreensivo

com o filho e ímpeto de Franco pelo estudo da doutrina lhe faz interagir mais com as

pessoas a fim de lhes fazer mais questionamentos. O fato de, no CEUJMJ, os médiuns

relatarem consumir menos álcool e serem menos “de farra” se associa em grande parte à

presença quase que constante não apenas no seu próprio terreiro mas também em Giras

e Festas de outros terreiros, de modo que parece que entre em jogo uma espécie de

negação aos locais e relações próprias de um mundo considerado profano, o que parece

se repetir no caso dos médiuns do TGA, cujo tempo e frequência no templo é tão grande

que não é estranho que os casais se identifiquem tanto com a doutrina e se dediquem de

tal forma a esta que não apenas a formação de laços mais sólidos com pessoas de fora

desta parece significativamente diminuída, mas também que os médiuns às vezes têm de

ouvir inclusive de seus parentes que precisam de mais tempo para eles (caso do filho de

Carmen) não querem abandoná-la ou reduzir sua participação nem mesmo por

solicitação de cônjuges (Mario). A ligação entre as duas categorias é o fato de os

médiuns identificarem como causa comum entre elas não todo o tempo a que se

dedicam ao trabalho enquanto médiuns de incorporação e todo o investimento afetivo

exigido por ele, mas algo anterior ou simultâneo e inseparável deste: a conversão, a

adesão e o trabalho de forma geral voltado às religiões em questão propriamente ditas,

seja a doutrina espírita, a doutrina do Amanhecer, ou a “ciência” umbandista.

227
9.1. A experiência mediúnica e as (id)entidades à luz da Identidade Social e da

Psicologia Analítica.

Para dar início à análise e à interpretação aqui pretendidas utilizando o

referencial da identidade psicossocial, nos parece pertinente apresentar uma perspectiva

da experiência mediúnica nascida, antes de tudo e mais do que somente dos achados das

entrevistas, das observações nos campos e dos insights provenientes destas, embora ela

tampouco seja estranha às contribuições das pesquisas revisadas no início deste

trabalho, de modo especial àqueles que parecem mais afeitos a uma compreensão

psicossocial do assunto. Lançaremos mão da teoria da Identidade Social e da Psicologia

Analítica ao decorrer do texto uma vez e sempre que algum dos pontos necessite de

maior esclarecimento, requerendo maior atenção de nossa parte, mas também quando

estas se mostrarem capazes de enriquecer de modo ímpar nossa leitura.

Mais que um fenômeno limitado pelas fronteiras do que poderíamos

reconhecer somente no médium e do que poderia ser circunscrito à esfera da

subjetividade e da intimidade deste, a mediunidade de incorporação possui um caráter

em grande parte relacional. Não é estranho se pensar em tal experiência como algo

dependente em grande medida da alteridade quando se recorda que a existência de um

pretenso médium é condicionada não apenas pela crença na realidade de que espíritos

outros possam temporariamente assumir o lugar do que o médium pensa ser o do seu

próprio espírito, mas, também, pela necessidade de outro sujeito que demande de uma

questão, padeça de um mal ou a quem simplesmente uma determinada mensagem deva

ser dada e encaminhada, razão pela qual a mediunidade perde importante parte de seu

significado caso seja subtraído o interlocutor de tal dinâmica, pois, como pudemos ver,

um dos principais propósitos desta é justamente a caridade.

228
Contudo, entre o médium e o paciente, a assistência ou as pessoas que

buscam a doutrina espírita, entram em cena ainda a influência de outros personagens de

grande importância. O caso onde isso se torna mais evidente é justamente o Vale do

Amanhecer, desde que nos “confessionários”, isto é, nos Tronos, temos a presença de

um terceiro elemento estranho à comparação com os dois elementos próprios da

confissão no catolicismo: o doutrinador, que, além de acreditar “fazer a doutrina” dos

espíritos sofredores porventura captados pela entidade incorporada, pode cortar o que

esta venha a dizer caso haja algo de inadequado em termos doutrinários sendo

transmitido ao paciente, de modo que temos aqui um nítido exemplo de como a

tessitura da narrativa a ser elaborada acerca do paciente e a este comunicada

participa não apenas o próprio apará, mas também o doutrinador. Situações

semelhantes podem ser observadas ocorrendo na Umbanda, quando a Cambone relata às

vezes precisar informar às entidades incorporadas do avançado da hora para que estas

desincorporem ou, mais grave, quando estas (ou o médium) são impelidas a partirem

por serem identificadas como entidades “baixas” em função de suas ações; e ainda mais

no Espiritismo Kardecista, onde terminaram por se acumular mais, sendo exemplo

destas o episódio em que um dos médiuns sentiu-se desestimulado a voltar a fazer suas

comunicações pelo fato de o doutrinador tê-lo frustrado para que comunicasse o

“pensamento” do espírito e não seu “dialeto” e o mencionado por Zíbia, no qual um

dirigente queria impor a um Tranca-Rua que se comunicava que desfizesse o trabalho

que teria feito para um dos visitantes do Centro. O fato de termos nas três religiões em

questão papéis bastante diferentes desempenhando funções que se aproximam no

sentido de complementar o aparente e inevitável prejuízo parcial e temporário do nível

de consciência do médium de incorporação parece indicar que, segundo a visão

corriqueira presente nos círculos cujo sistema de crença é afeito às concepções

229
espiritualistas, esta é completamente necessária para que se estabeleça uma espécie de

equilíbrio, categoria cara ao pensamento mágico subjacente e próprio de tais crenças.

Tal complementação ou compensação é realizada na direção de uma

“hiperconsciência”, utilizando-se justamente da exaltação de processos psicológicos

que parecem ausentes em quem incorpora, como a atenção e a consciência, já que

algumas das tarefas da Cambone, além de o de segurar a Gira, são, tanto quanto as do

Ogã, também o de “proteger” os médiuns, estando atento para que a disputa no nível

dos pensamentos e as distrações dos demais Filhos de Santo e da assistência não

prejudiquem a “corrente”. Assim, é característica indispensável aos doutrinadores e

dialogistas espíritas o conhecimento da doutrina e de sua aplicação, técnicas de

persuasão e convencimento, bem como, também no caso dos doutrinadores do Vale do

Amanhecer, a cuidadosa escuta e a observação minuciosa do que o paciente ou a

entidade narram para darem suas orientações. A simbologia do doutrinador como

“mestre Sol” elucida tal argumento.

A despeito de toda a tensão inevitavelmente envolvida em momentos como

esses nos três contextos investigados, não se trataria de equívoco supor que eles talvez

ocorram mais do que os médiuns estariam dispostos a declarar e assumir, mas, ao

mesmo tempo possivelmente bem menos do que se pode imaginar. Isto pelo simples

fato de que, ao invés de meros conflitos interpessoais – embora seja displicente não

fazer jus ao fato de que, especialmente no caso espírita, estes sinalizem também

divergências de opinião, interpretação e orientação político-ideológicas entre “escolas”,

vertentes e perfis do kardecismo –, constituem o retrato do instante exato em que o

processo de “incorporação” passa a abranger não apenas aqueles recursos dos quais

o médium já dispõe de algum modo em termos de representação do espírito, mas

230
também uma maior quantidade de conhecimento espírita, umbandista ou do Vale do

Amanhecer.

Quando abordamos o tópico dos conflitos intragrupais e da assimilação de

tal conhecimento, é inevitável que a perspectiva da identidade social nos acene. Isto

pelo simples fato de que, além de estar em jogo uma operação de ordem cognitiva, esta

diz respeito fundamentalmente a um problema envolvendo o processo de categorização

social, isto é, quais os comportamentos, atitudes, ações, conselhos, etc. considerados,

segundo os valores e a cosmovisão do Espiritismo Kardecista, da Umbanda ou do Vale

do Amanhecer, adequados e inadequados, por exemplo, mas também de qual tipo de

pessoa é médium de incorporação e qual não é, quais os padrões de estímulos a serem

reconhecidos como próprios da aproximação dos diversos tipos de entidades, qual o

nível de consciência a ser percebido pelo médium durante o transe, quais tipos de

mediunidade são reconhecidos e quais não são autorizados, quais entidades, guias,

mentores e espíritos podem ou não incorporar, em quais contextos, etc. – sendo

pertinente desde então a comparação social68, isto é, principalmente como são valoradas

essas diversas categorias e como elas parecem denotar necessariamente que o médium

de um determinado grupo se identifique e se sinta pertencido à polaridade positivamente

avaliada e concernente a seu grupo em detrimento de sua antípoda, de modo que, quase

68
É interessante atentar para o fato de que, apesar de não ser este um dos objetivos deste trabalho, o autor
acabou tendo a oportunidade de vislumbrar ainda que de modo superficial esse intrigante processo
ocorrendo com a vivacidade própria da observação da realidade dos grupos religiosos investigados,
principalmente quando apresentava os objetivos desta pesquisa para os seus membros. Embora os
posicionamentos espíritas sejam um tanto mais “maleáveis” de acordo com a orientação dos que se
manifestaram, a Umbanda, vista com olhar cada vez menos preconceituoso, acaba por ter alguns de seus
rituais – de sacrifício de animais, como exemplificado por Zíbia – enxergados de modo negativo, o que se
estende também para o Vale do Amanhecer, igualmente encarado como mediunismo. Na Umbanda,
alguns dos médiuns enxergam que o VDA e os espíritas possuem uma abordagem negativa da
incorporação desde que a principal ênfase é dada sobre a desobsessão. No TGA, por sua vez, os espíritas
são vistos como estudiosos, mas pouco dotados de “energia”, algo que parece sobrar na Umbanda, mas
que é utilizado de maneira considerada negativa. Porém, há também posicionamentos favoráveis de todos
eles quanto aos demais, mas aqui o critério de categorização social salientado passa a ser outro: os que
crêem em espíritos e na reencarnação (espiritualistas e reencarnacionistas) versus os que não crêem
(católicos, evangélicos, ateus, etc.).

231
sempre os médiuns se veem guiados e protegidos pelos seus próprios mentores,

entidades, espíritos e anjos da guarda que compõem a parcela discriminada como

evoluída e “de luz” do que acreditam ser o mundo espiritual, que também tem sua

parcela de espíritos reconhecidamente “inferiores”.

Chegamos, aqui, finalmente ao que talvez possa ser considerado um dos

cernes de nossa interpretação da mediunidade de incorporação, a qual já foi

brevemente adiantada quando tratamos da perspectiva da identidade social e de certa

forma também quando se explorou a contribuição da psicologia junguiana. Ressalta-se

que nossa visão parece reforçada não apenas pelo potencial compreensivo e pelo ganho

que este poderá nos proporcionar para elucidar tema tão obscuro conforme se poderá

perceber ao fim desta análise, mas pelo fato de que, nas entrevistas, alguns dos médiuns

e outros adeptos importantes das religiões em questão cometeram com relativa

frequência lapsus linguae aos quais nossa atenção não pôde deixar de se voltar dado que

em conjunto pareciam corroborar com nossa perspectiva de que os espíritos são

aspectos da personalidade e da identidade dos médiuns, pois, às vezes, ao se referirem

às entidades, estes acabavam utilizando termos que remetiam a si próprios ao invés de

aos seres supostamente etéreos, como, por exemplo, ao usarem o pronome possessivo

“meu” ao invés de “dela” ou “dele”; enquanto que alguns médiuns da Umbanda e

outros adeptos desta69 chegaram até mesmo ao ponto de, quando pretendiam se referir

às entidades, acabavam por falar “id...entidade” ou “id...entidades” – ficando, assim,

explicado o título deste trabalho.

A categorização social e a comparação social nos conduzem justamente à

identidade social, que é “parte do autoconceito do indivíduo que deriva da consciência

de pertencimento dele a um grupo social (ou grupos) junto dos valores e da

69
Mãe Clara e o Ogã.

232
significância emocional desse pertencimento” (TAJFEL, 1982c: 24 apud MIRANDA,

1998). Se fizermos desta passagem uma leitura apressada e demasiado literal, nossa

interpretação das entidades como identidades ficaria bastante limitada pelo simples fato

de que a despeito dos lapsos comentados acima nem todos os médiuns os cometeram e

mesmo aqueles que os fizeram não se reconhecem concretamente no que imaginam

serem as entidades. Ora, mas e se nem todas as identidades de um sujeito estivessem

diretamente ligadas ao seu autoconceito, mas, indiretamente, acabassem sendo

implicadas por uma das que são assumidas? A nosso ver – isto é, de um ponto de vista

global e que tem por consideração mais a função e o efeito que as entidades parecem

exercer – este é justamente o papel da identidade mediúnica, que, a despeito de ser

constituída de uma parcela afirmativa, como a de ser voltada para a caridade, possui

uma outra parte que indica justamente aquilo que lhe falta para ser completa, isto é, as

entidades, já que apesar do discurso corrente no TGA e no CEGM de que “todos somos

médiuns”, os próprios sujeitos entrevistados, mesmo com todos os sinais nos quais já

reparavam antes de buscar um grupo religioso, curso ou desenvolvimento, só passam a

se perceberem de fato como médiuns quando a presença alegada de um espírito é

iminente, espírito este que se acredita possuir uma história específica e um nome

próprio bem como pertencerem a um dado contexto histórico e até a determinadas

classes, grupos, etnias, etc. – possuem uma identidade, enfim, e que, a despeito da

infinidade de entidades, que no VDA de modo especial parece assumir proporções

oceânicas, estas podem ser resumidas a duas categorizações principais70, como já se

referiu e como adiante haverá de ficar mais claro. Desse modo, a identidade de um

70
Para este trabalho, pelo menos, essas duas categorizações fundamentais, que podem sofrer uma série de
subdivisões entre Pretos-velhos, Caboclos, Exus, Médicos de Cura, anjos da guarda, etc., parecem
suficientes, já que tratar de cada uma delas extrapola nossos objetivos. No caso do Vale do Amanhecer,
outras identidades subgrupais – ligadas confessadamente ao autoconceito dos jaguares – podem ser
reconhecidas, já que estas ocorrem a depender do sexo, do tipo de mediunidade, das Falanges às quais
pertencem, dentre outros, como parece ser o caso das Falanges.

233
médium é como a de uma mãe, que só se forma de fato quando tem notícia de seu

primeiro filho e quando este é gestado, ou, melhor, como a de um ator, que não se

identifica como tal até que seja convidado pela primeira vez para desempenhar um

papel próprio numa peça – ou faça aulas de teatro –, de tal modo que, assim como estes,

um sujeito só se torna médium graças àquilo que é considerado ser uma entidade.

Neste ponto, poderia o leitor sentir a necessidade de aprofundar-se um

pouco mais acerca de como os espíritos que alegadamente incorporam nos médiuns dos

grupos em questão poderiam ser melhor interpretados. Ao assumir temporariamente a

identidade de tais espíritos, poderíamos dizer que ocorre talvez um aprofundamento da

autocategorização do sujeito no nível da identidade social de seu intragrupo, que

viabiliza tal momento e o legitima. Como já aludimos, não é difícil reparar que os

espíritos, guias e mentores de luz incorporados e adorados parecem ser revestidos,

acima de tudo, daquilo que os grupos em questão representam como valores,

comportamentos, atitudes, crenças, motivações, pensamentos e, em síntese, estilos de

vida categorizados como corretos e ideais – os chamados protótipos, de acordo com a

teoria da autocategorização.

Lembremos, pois, de alguns exemplos daquilo que estamos nos referindo

como protótipos: temos no Espiritismo Kardecista o relato de Zíbia, que acredita ter

dado comunicações de André Luiz, espírito de grande importância para os espíritas

brasileiros, e ter psicografado um dos responsáveis pela fundadação do CEGM,

enquanto que Eugênia teria psicografado um escritor cético que após “desencarnar”

teria aderido às crenças espíritas e até mesmo criado um grupo para outros ex-céticos;

Na Umbanda, temos a história da alegada entidade de Mãe Graça, Negro Chico, que

teria sido um feiticeiro das “sombras” no passado e que atualmente se dedica a desfazer

magias negras e a fazer limpezas espirituais, bem como Ogum Beira-Mar, suposta

234
entidade referida como guerreira e lutadora por Bárbara, e as entidades qualificadas por

Margarida como “simples”, como seu Erê e sua Juremeira (que, por sua vez, segundo

ela, não tem vaidade), e ainda a Preta Mandinga, preta-velha de Mazé cuja agitação e

rabugência não são vistas como negativas, mas como aspecto cômico e próprio da

velhice; E, no Vale do Amanhecer, o próprio ministro Gamurio, incorporado muitas

vezes por Mario, parece ser um ótimo exemplo disso, já que este dissera certa vez ao

seu adjunto que teria sido seu “general” numa vida passada, tendo ambos realizado

muitos males juntos, razão pela qual a pretensa entidade lhe convidara a fazer o dobro

do que um dia já foram capazes de fazer, apenas que para o bem; parecendo ser este o

caso de todos os ministros e guias missionárias dos mestres e ninfas, que segundo

alguns dos entrevistados estes teriam evoluído, enquanto que eles não, motivo pelo qual

são por eles guiados e protegidos; e ainda o da Preta-velha de Carmen, percebida como

acolhedora, carinhosa e “muito coração”.

Mas e quanto aos espíritos sofredores, eguns, cobradores e toda a sorte de

entidades avaliadas negativamente, o que teríamos a declarar à luz de tal perspectiva?

Bem, basta levar em conta a simples ideia de que estes são os representantes de todos os

sentimentos, valores, práticas e narrativas categorizadas como opostas àquelas

consideradas positivas pelos grupos em questão, de modo que entre os espíritas, com

grande frequência os chamados acidentados, drogadictos e alcoólatras, por exemplo,

acreditam não ter “desencarnado” por não crerem na vida após a morte ou por

desprezarem a influência do plano espiritual em suas vidas e, graças ao fato de os

ignorarem, segundo os espíritas, acabam por “obsediar” os vivos, que é uma prática

vista igualmente como lamentável. O caso da incorporação de espíritos céticos, dos

chefes de grupos de perseguidores dos indivíduos que buscam o auxílio da doutrina de

Kardec e de católicos profundamente avessos ao ideário espírita – que segundo o

235
doutrinador Rogério também comparecem bastante, como padres, bispos, etc. – são

ainda mais esclarecedores nesse sentido, embora nenhum deles supere os supostos

suicidas, que teriam cometido o equívoco segundo a doutrina espírita de tirar a própria

vida a fim de fazer cessar seu sofrimento de modo definitivo.

Deste modo, as sessões espíritas teriam como um de seus objetivos a

comparação social, no sentido da encenação e representação de uma batalha (também)

de caráter cognitivo entre categorias onde o próprio conhecimento religioso ou os

espíritos com os quais se identificam (“nós”), que podem ser traduzidos como

pensamentos e ideias, vencem outros espíritos (“eles”), saindo vitorioso desta o

pensamento do ingroup, o qual afirma sua superioridade pelo fato de assim ser

reconhecida por seus membros diante das demais71, que são “doutrinadas” e “elevadas”,

impactando, assim, de modo positivo na autoestima de todos os presentes e fomentando

e fortalecendo o sentimento de pertença ao grupo (vide Maraldi, 2011). Sobre isto, é

relevante atentar ainda para um fenômeno que se repetiu na realidade social das três

“casas” aqui investigadas, que foi de certa forma a recorrência da ideia da organização

do mundo espiritual em grupos, o que parece apontar para um reconhecimento latente

de nosso argumento: temos no CEGM, de um lado, as supostas “equipes” de psicólogos,

psiquiatras, médicos, enfermeiros e demais cuidadores “espirituais” mencionadas por

Rogério em uma doutrinação, as entidades umbandistas realizando um “estágio” no

Centro citadas por Franco e os grupos de torturados pela ditadura72 referidos por eles e,

do outro, os grupos de perseguidores dos espíritas e simpatizantes aos quais acabamos

71
Quando é central a aludida questão das dívidas de vidas passadas dos médiuns e dos doutrinadores,
bem como a incorporação de seus cobradores no Espiritismo Kardecista e no VDA, este argumento
facilmente se sustenta da seguinte forma: já não são mais os pretensos outros quem não compartilham das
crenças, hábitos e valores de seu endogrupo, mas eles próprios quem, em encarnações supostamente
pregressas, não se identificavam com estas.
72
É conveniente recordar que a orientação político-ideológica esquerdista de alguns dos membros do
CEGM, notadamente o doutrinador Rogério, parece explicar a razão das ditas incorporações de tais
grupos em virtude de eventos históricos importantes, tais como os cinquenta anos da deflagração do
Golpe Militar.

236
de nos referir; o grupo de entidades ligadas à “coroa” de Ismael e Mazé, referidos por

ambos como “família” ou como “família espiritual”, e o próprio fato de que tais

entidades são divididas em “linhas” (de Mar, das Matas, de Ogum, etc.) na Umbanda; e

no VDA, onde este último ponto também se repete, e no qual, além das chamadas

“falanges” de espíritos sofredores e cobradores, têm-se, a título de exemplo, mentores

“de Aruanda”, outros “do Oriente”, “das Almas”, e assim por diante.

No entanto, em face do que já pudemos observar, os seres espirituais

pretensamente incorporados parecem expressar dimensões ou aspectos prototípicos e

não a totalidade do protótipo73, havendo em suas diferenças refinadas gradações que

parecem tender a uma aproximação ou a um afastamento dela, do contrário, não nos

depararíamos absolutamente com nenhuma sorte de episódio envolvendo tensões e

conflitos no interior do intragrupo como os já mencionados. O desenvolvimento e a

evolução do médium dentro da religião e, como consequência, a sua

autoprototipicalização crescente, anuncia um efeito estruturador sobre o real, de modo

que concomitante a este parece haver um movimento inversamente proporcional no que

diz respeito à ênfase sobre as inseguranças, os medos e as dúvidas, devido talvez ao fato

de que até mesmo elas passam a ser categorizadas, o que depende do grupo, ou ao fato

de que a categorização dos estímulos sensoperceptivos pelo conhecimento religioso

parece assegurar o médium da autenticidade de sua experiência74. Por outro lado, em

contrapartida, se requer que o médium deixe suas expectativas, problemas e de certo

modo suas visões pessoais de lado para que partes do protótipo possam tomar seu lugar,

promovendo, assim, aprendizado. São exemplos disso os diversos conflitos entre


73
Não se deve perder de vista, porém, que os teóricos da Escola de Bristol parecem adotar tal conceito
principalmente como uma abstração cujo propósito central é o de fornecer uma direção que facilite a
análise de fenômenos intragrupais justamente por levar a prototipicalidade em consideração, fazendo-a
remeter-se ao contexto sem, contudo, associar tal leitura a qualquer purismo.
74
Quando os problemas, males e sintomas apresentados inicialmente pelos médiuns e também os dos
pacientes são de ordem psicogênica, não é estranho que a doutrinação e o fornecimento de uma
perspectiva socialmente real acerca destes – “intervenção” provavelmente ligada à sugestão – seja capaz
de exercer um efeito que explicaria as chamadas “curas”.

237
Rogério e Zíbia, cujos protótipos parecem em grande parte contagiados,

respectivamente, pelo socialismo e pela doutrina Rosacruz; os momentos em que o

Cambone precisa solicitar ao médium que traga outra entidade em função da

inadequação categorizada da que se acredita estar incorporada; e, os “cortes” feitos

pelos doutrinadores nos comportamentos inadequados dos mentores nos Tronos, ou,

melhor ainda, a alusão de Mario ao “livre-arbítrio” do médium como obstáculo para que

a doutrina “entre” neste. Nesse ínterim, convém destacar que este fora o médium no

qual protótipo pareceu mais acentuado, diante de, dentre outras coisas, sua menção ao

eventual rompimento com a atual mulher nos primórdios de seu relacionamento caso

esta não concordasse com sua grande dedicação à doutrina do Amanhecer; do fato de

enfatizar a dimensão de respeito à hierarquia e à disciplina requerida pela religião,

realizando comparações com o militarismo; e da sua grande influência e experiência no

VDA, simbolizada pela incorporação do ministro que dá nome ao templo (Gamurio).

Esta foi a religião onde a autoprototipicalidade pareceu mais acentuada, diante,

principalmente do maior número de respostas “padronizadas” ou homogêneas às

categorias sondadas. Isto pode ser explicado como uma possível tentativa de

compensação da pouca expressividade do Vale do Amanhecer em face do cenário

religioso brasileiro. Nesse quesito, esta é seguida pela Umbanda, talvez devido à razão

parecida, como a tônica social dos preconceitos, discriminações e intolerância religiosa

dos quais seus membros são vítimas. Nela, a autoprototipicalidade parece ser intensa em

Mazé, que, a despeito do orgulho de ser elogiada pelos pares graças ao fato de sua

performance ser reconhecidamente categorizada como referência para muitos – refere se

“acasalar” com muitas entidades e à percepção de que estas “cobrem” ela –, confessa

ser um dos pontos negativos do trabalho como médium a “obrigação” da perfeição que

238
as entidades impõem e cobram desta75. Em último lugar, temos o Espiritismo

Kardecista, que talvez devido a seu alcance e importância no meio religioso brasileiro,

pode se dar ao luxo de abranger diferentes orientações prototípicas em seu interior. A

maior ênfase cai justamente na médium cuja autoprototipicalidade fora a menor

identificada neste estudo, dado que nas diversas categorias respondeu do modo mais

diverso possível dos demais, provavelmente por ser também Rosacruz. Em alguma

medida, talvez não seja equivocado pensar que isso ocorra justamente pelo fato de no

Espiritismo Kardecista – ou, contextualizando melhor, no centro espírita investigado – o

maior destaque ser dado sobre o que poderíamos chamar de protótipos negativos, isto é,

sobre os espíritos sofredores, de modo que parece ser dada maior importância sobre

aquilo que não deve ocorrer ou se fazer do que ao seu contrário, e talvez por isso Zíbia

mencione os “mestres” da Rosacruz como inspiração. Por fim, apesar dos prováveis

sinais de despersonalização identificados sobretudo em Mario e em Mazé e também do

fato de que, segundo o que vimos na categoria das mudanças no autoconceito, os

entrevistados quase de modo unânime tenham atribuído a elevação de sua autoestima

fundamentalmente à religião e não à mediunidade, a “incorporação” das (id)entidades e

das parcelas do protótipo não resultam em efeitos necessariamente devastadores para o

indivíduo desde que são estimuladas e socialmente categorizadas como legítimas e até

bem-vindas. Consoante os aportes da perspectiva da identidade social, portanto, o que o

papel dos médiuns acaba não sendo tão diferente do que fazem os doutrinadores,

Cambones e Mães de Santo como querem os sujeitos desta pesquisa: doutrina-se e

implanta-se o conhecimento e a visão de mundo de tais religiões e de seus grupos em si

mesmo e nos outros tanto quanto aqueles o fazem.

75
Isso se fez presente de jeitos diferentes no discurso de vários médiuns, embora nunca confessados com
tamanha sinceridade. Os entrevistados aludiram a isso principalmente quando se perguntava justamente
acerca dos pontos negativos de seu ofício, embora sempre se ressaltando ao entrevistador que não eram
negativos.

239
É chegado um ponto, porém, em que a apreciação exclusiva da dimensão

sócio-identitária, dos aspectos puramente cognitivos e da configuração dada pelo grupo

no que tange à elucidação da natureza da relação dos médiuns com os chamados

espíritos esbarra num problema em que a própria perspectiva da identidade social parece

reconhecer a limitação de seu alcance apesar de toda a elegância e parcimônia

envolvidas na leitura do fenômeno; isto é, se, a despeito dos sinais de despersonalização

resultantes da despersonalização temporária (incorporação) socialmente estimulada

levadas à cabo num processo ocorrido a longo prazo e identificados fundamentalmente

de modo mais aprofundado nos dois médiuns mencionados, parte importante do

problema deste trabalho ficaria relegado ao que na visão em questão poderia se chamar

de identidade pessoal, que possui um antagonismo funcional com a social.

Neste nível, os fatores de ordem individual junto à tonalidade afetiva e ao

significado profundo da vivência psicologicamente real dos espíritos e entidades

clamam por uma perspectiva que os leve em consideração no escopo de sua

interpretação, necessidade que a Psicologia Complexa parece satisfazer. Diferente da

visão de Turner e Tajfel, que precisamos adaptar tendo em vista o fato de praticamente

todos os médiuns não reconhecerem os espíritos como parte de seu autoconceito ou de

sua consciência, não é estranho à teoria junguiana que estes não o façam desde que,

segundo ela, os chamados espíritos são projeções de conteúdos de um estrato da psique

distinto daquele sobre os quais o eu tem controle. Esse problema remete à ideia de Jung

de que a equivalência entre psique e consciência é insuficiente ainda para a explicação,

por exemplo, dos fenômenos das falhas de reação no experimento de associação de

palavras, dos atos falhos, dos lapsos de linguagem, dos sonhos, dos delírios e

alucinações na psicose, das visões e revelações religiosas, etc., todos eles interferências

240
de conteúdos estranhos na atividade da consciência que conduziram à postulação de que

estas se davam graças à autonomia dos complexos inconscientes. No entanto, a natureza

da eclosão e da manifestação desses complexos na consciência se distinguem em dois

tipos principais: aqueles que podem ser associados à experiências subjetivas e

reminiscências pessoais do indivíduo em questão e aqueles que remetem à algo de

ordem impessoal, que parecem mais ligados a conteúdos de dimensões coletivas, no

sentido de que seu conteúdo atualiza temas da história do pensamento humano que se

repetem com variações nas produções culturais dos diferentes povos, razão pela qual

são universais e, por isso mesmo, objetivos, já que tais motivos mitológicos são

acessíveis independentemente da cosmovisão na qual a pessoa se enquadra. Essa

distinção corresponde, respectivamente, à divisão dos complexos ideoafetivos entre

aqueles mais próximos do inconsciente pessoal e os do inconsciente coletivo, de tal

modo que haveria espíritos que se tratariam de projeções do inconsciente do próprio

médium e outros de regiões mais profundas da psique (JUNG, 1916-42/1983; JUNG,

1948/1984).

Não faltam exemplos provenientes de nossa investigação. Eugênia, talvez o

mais claro deles, se refere a “traumas” provenientes de cenas de sua época de infância

que envolviam coerção, humilhação e perseguição por freiras que davam aula em sua

escola e que lhe obrigavam a ler e a falar em público a despeito da grande ansiedade por

ela vivida quando diante de tais situações e do fato desta “tremer” bastante na frente de

todos. A despeito da médium não enxergar nenhuma relação com suas vivências

infantis, são justamente os supostos espíritos de freiras que ela relata incorporar com

muita frequência, sejam estas espiritualmente inferiores ou superiores, acreditando ela

que isto se dê graças às suas vidas passadas, numa das quais imagina ter sido uma

“irmã”, graças a uma visão que tivera de si mesma como freira. É interessante observar

241
aqui como a crença nas vidas passadas pode ser psicologicamente compreendida de

modo muito similar àquele pelo qual os espíritos são interpretados, isto é, elas tratam de

narrativas e de imagens nas quais os complexos de tonalidade afetiva do sujeito estão

constelados e, portanto, coincidem de algum modo com cenas emocionalmente

significativas de sua história. Esta seria, no entanto, o que Jung chamaria de uma

interpretação analítica ou ao nível do objeto, reduzindo o “mito” construído pela

médium aos seus antecedentes históricos, e que por sua vez, pelo fato de ignorar o

sentido indicado pela fantasia, clamaria pela complementação de uma apreciação ao

nível do sujeito, isto é, uma interpretação construtiva, que têm em vista a realização de

uma síntese de suas tendências de desenvolvimento. Chegamos, assim, à seguinte

interpretação da ressignificação da médium: Suas ações, especialmente a de se perceber

no papel de vítima mesmo após tanto tempo (refere que mesmo hoje seus traumas não

foram totalmente superados), foram as responsáveis pelo que sofrera, sendo ela própria

sua algoz – fora assimilada pelo seu próprio complexo. Ao mesmo tempo, precisara

passar por tudo aquilo para se tornar quem que é hoje: como as freiras, justamente

professora (de português, apesar de aposentada) e igualmente religiosa76.

Caso semelhante diz respeito à crença de Lucia de que, em uma de suas

vidas pregressas, teria sido líder de um povo cigano. A própria médium relata como

uma dessas evidências sua recordação de que, durante sua infância no interior, seu pai

recebia ciganos em seu sítio para ajudá-los. A fantasia relacionada às suas supostas

encarnações anteriores não pode ser simplesmente reduzida à sua reminiscência infantil

76
Esta interpretação, bem como as seguintes, não visa alcançar um status de adequação completa ou de
verdade definitiva, que em termos hermenêuticos é das coisas mais difíceis, pois são muitas as conclusões
possíveis. Elas são, muito mais, ensaios de como o método interpretativo de Jung pode ser capaz de
lançar luz sobre o significado psicológico dos espíritos, das fantasias e demais vivências dos médiuns,
constituindo-se como um referencial capaz de proporcionar ganhos em nossa compreensão. É importante
que isto seja dito diante principalmente do fato de que estamos cientes das limitações dos nossos dados, já
que não se procedeu a uma exploração em profundidade da biografia destes, que muito provavelmente
devem delas discordar, embora isso também não constitua o critério absoluto para julgá-la, desde que
provêm de pontos de vista baseado em premissas diferentes: o do leigo, mas religioso, autêntico
experimentador de suas vivências e a quem estas mais dizem respeito, versus o do especialista.

242
desde que a construção do sentido principal a que esta visa é justificar sua identificação

com as Ciganas Aganara e fortalecer a escolha por tal falange. Ainda a respeito de

Eugênia, é interessante observar como o episódio do suposto espírito escritor cético

arrependido tem como contexto, de um lado, as dúvidas, inseguranças77 e receios da

médium relacionados à autenticidade de suas comunicações e psicografias, ou seja, seu

ceticismo, e, de outro, os interesses desta por estética, arte, especialmente “sacra”, pela

literatura e pelo português, que é representado pelo escritor. Mais que isto, é

significativo o desenvolvimento de tal fantasia na seguinte direção: o escritor, isto é, o

aspecto criativo e valorativo de sua personalidade, é o que parece solucionar suas

dúvidas, pois ele próprio se converte ao kardecismo e auxilia outros céticos. Talvez não

por coincidência a médium encontre justamente na psicografia – justo na escrita – seu

tipo de mediunidade favorito78.

Outro exemplo igualmente chamativo é o de Ismael, que ainda quando

criança acredita ter recebido do chamado Caboclo Pombo Roxo a missão de seguir

trabalhando com entidades graças à desvinculação destes da Umbanda. Foi perceptível

sua apreensão logo de início em abordar a razão do acontecido, embora, segundo o que

mais adiante nos diria, algo bastante doloroso para o médium parece ter ocorrido desde

que sua família – tema e termo que se repetiram bastante, o que é indício claro de

complexo – inteira se separou desde então. A ideia das entidades como complexos

também aqui ganha força já que estes parecem ser a única coisa que Ismael herdara de

seus pais – e é interessante recordar a este respeito o quanto, para Jung, enquanto a

criança não possui um complexo de eu suficientemente estruturado, esta parece estar

precisamente sob o joguete dos complexos das figuras parentais, vivendo com estas em

78
É digno de nota recordar que ainda criança, ela era bastante insegura em decorrência de sua ansiedade e
da “tremedeira” ao falar em público na escola, razão pela qual talvez só tenha conseguido desenvolver sua
atividade criativa relegando-a ao inconsciente.

243
participação mística – os quais perdeu muito cedo (JUNG, 1932-34/1986). É tão

importante quanto isso, porém, recordar que a manifestação de seus complexos aparenta

compensar a ausência dos pais e provê-lo com o suporte emocional, nitidamente

expresso no fato de que o médium, ao ser solicitado a dizer como seria sua relação com

as entidades, respondeu que as tem como seus pais, bem como referido também com

relação às Mães de Santo, que lhe acolheram em sua casa, dando a ele significativo

suporte social.

Um dos exemplos mais peculiares nesse sentido parece ser a cena narrada

por Bárbara, na qual o Juremeiro Seu Raimundão a teria “pego” após ela ter sofrido

humilhações da Mãe de Santo de seu terreiro anterior. Segundo ela, a Yalorixá teria

feito isso por crer que a imagem do Mestre da médium não fosse aquela, tendo em

seguida exposto a imagem para os demais Filhos de Santo do Centro, que se riam, junto

da líder, de Bárbara. A médium recorda ter chorado bastante e, por conta de sua atitude

“de guardar coisas” e “depressiva”, não conseguir reagir à indignante situação. Seu

inconsciente, entretanto, não pôde suportar tamanha humilhação e ao mesmo tempo a

passividade unilateral de sua personalidade consciente: o próprio Raimundão

alegadamente se manifestara, segundo Bárbara, para afirmar sua imagem diante de

todos os presentes e “mostrar que era ele”, no “meio da rua” mesmo – o que pode ser

interpretado como a expressão da fúria da médium que não encontrava espaço em sua

disposição consciente demasiado limitada.

No entanto, aqui surge um importante problema, não somente no que diz

respeito a este caso em específico: a questão da médium ter supostamente sido possuída

por uma entidade associada à ancestralidade, se tratando, portanto da projeção de um

complexo com contornos próprios do inconsciente suprapessoal, mas que responde a

uma demanda instaurada, sobretudo, pela dinâmica da relação entre inconsciente

244
pessoal e a atitude de uma consciência demasiadamente unilateral. Este não é um

problema para a psicologia analítica que, a despeito da distinção de caráter didático

entre as duas instâncias do inconsciente, não reconhece, em termos empíricos, uma

separação de fato entre elas. Isto equivale a dizer que não existem, na prática,

manifestações de complexos ligados exclusivamente ao inconsciente pessoal do

médium e nem eclosões de motivos puramente arquetípicos – que poderiam ser

chamados talvez de complexos do inconsciente coletivo – desde que estas sempre têm

um indivíduo como porta-voz e aquelas ocorrem, igualmente, sempre num indivíduo

que participa de uma mentalidade específica, isto é, de uma consciência coletiva ou de

um espírito da época com determinadas atitudes. Assim, para citar outros exemplos, a

médium Vera reconhece que os guias se utilizam de tudo de que dispõe a mente do

médium, não pondo nada a perder nas comunicações, embora isso não esteja ao alcance

do arbítrio do médium, que quando lembra do que foi por ele dito é pelo fato de isto ser

de utilidade para si; as reações exageradas do médium Franco após a incorporação de

alguns espíritos são próximas daquelas diante do numinoso; e, ao contrário, Mazé, que

reveste sua Preta-velha de associações positivas por gostar de “velho”.

Destacamos essas percepções e fenômenos para enfatizar que segundo a

visão de Jung, a despeito de os espíritos serem projeções de complexos inconscientes, é

preciso cuidado com os excessos do racionalismo de nossa época que pode enxergar

nisso uma possibilidade de fazer remeter tudo ao inconsciente pessoal dos médiuns

como forma mais fácil de explicar tais “fenômenos”, enquanto que nem em todos os

casos aqui estudados, pelo menos, uma ligação de tal natureza possa ser estabelecida

sem certos riscos de se acabar despontando num reducionismo. Isto pelo fato de que os

chamados “vampiros”, bem como alguns dos pretensos espíritos, como Bezerra de

Menezes, André Luiz, etc., apesar das reações próprias do espiritismo de buscar

245
“desmistificá-las” – quiçá, de desmitifica-las –, são figuras envoltas em representações

de caráter mitológico e coletivo que apelam, concernem e tocam não apenas a

consciência e o inconsciente pessoais do médium, mas em dimensões mais profundas da

psique. O mesmo pode ser dito, por exemplo, dos Pretos-velhos e Caboclos,

personagens que remetem não apenas aos primórdios da constituição da alma

brasileira, mas a outras imagens de caráter arquetípico79, bem como outras entidades

do Vale do Amanhecer. Uma ideia “nativa” que parece reconhecer a necessidade dessa

cautela por parte dos médiuns e inclusive dos pacientes, da assistência e daqueles que

buscam o centro espírita e que está presente de formas diferentes nos grupos religiosos,

é a da obsessão, que, a nosso ver, pode ser aproximada com o conceito de inflação da

psicologia analítica – fenômeno típico do confronto entre consciente e inconsciente que

envolve a identificação de parte da psique com a atividade da vida psíquica inteira, ou

seja, do eu com a ação dos espíritos (PIERI, 2002) –, já que pressupor que os espíritos

ou complexos projetados pelo inconsciente coletivo podem ser reduzidos ao indivíduo

significaria pôr sobre os ombros deste mais do que poderiam suportar.

Por outro lado, a despeito dos esforços psicoterapêuticos reconhecidos por

Jung em relação ao Espiritismo Kardecista (como já referimos no capítulo 1) e que

podemos estender à Umbanda e também ao Vale do Amanhecer, todos estes

proporcionando aos seus adeptos – como todas as religiões quando vivenciadas com

significado – um contato com o numinoso capaz de promover a transformação da

personalidade e funcionando, portanto, como função transcendente; é necessário atentar

para a outra conotação do conceito de inflação, que significa justamente o oposto do

79
Quem sabe, ao velho sábio e ao herói, respectivamente, bem como os Exus podem ser associados ao
motivo do trickster e os Erês ao do puer aeternus. Embora tenhamos mencionado tal conexão superficial,
gostaríamos de sublinhar que esta se trata muito mais de uma impressão geral ou de uma suspeita do que
de uma interpretação de fato, não merecendo ser levada profundamente a sério, já que tal “colagem” entre
imagens da alma e arquétipos específicos não diz nada em termos empíricos. Uma exploração maior, mais
séria e mais competente desta ligação talvez mereça ser realizada. Tal empreendimento excede os nossos
objetivos.

246
exemplo anterior, que é, por sua vez, assemelhado à atitude frequente de negação das

influências às vezes óbvias dos participantes nas experiências: o risco de relegar em

demasia ao inconsciente coletivo partes importantes do inconsciente pessoal, e assim,

ocorrer a “perda da alma”, isto é, a neurose, destino não tão diferente do caso

anterior.

Retomando a questão da fabricação de todo o universo dramático da

mediunidade com o qual os não adeptos entram em contato, é necessário acrescentar

que além dos doutrinadores e da Cambone, contribuem com a performance mediúnica e

o produto final resultante dessa complexa interação ainda outras figuras. É o caso do

Ogã, ao qual já nos referimos de passagem, que além de sua própria “magia” inerente

aos ritmos que executa, que por sinal também possuem grande impacto sobre a

assistência, no sentido de conectá-la com as demais pessoas, carrega a importante

missão de facilitar através de sua música a alteração da consciência dos médiuns e de

veicular e de encher de vida as mensagens dos pontos cantados, bem como os seus

auxiliares, que com as maracas reverberam seu toque, e os auxiliares da Cambone, que

servem os médiuns incorporados com ervas, fumo, café, bebida, roupas, acessórios e

outros recursos de sua preferência e que parecem ampliar o carisma e,

consequentemente, o poder das entidades sobre a assistência. No Vale do Amanhecer,

outro ator relevante é o comandante do trabalho, cuja experiência lhe permite

supervisionar os Tronos, por exemplo, atentando não só para os imprevistos com os

pacientes, que às vezes aparentemente incorporam ou causam problemas, mas para as

duplas de aparás e doutrinadores, aquele no caso de fazer algo exagerado e estes,

quando distraídos. Têm-se ainda os médiuns de vibração no Espiritismo Kardecista,

que, embora não incorporem ou psicografem, são responsáveis pela manutenção de um

247
“padrão vibratório” considerado requisito indispensável e pelos quais todos os

partícipes acreditam ser afetados, podem contribuir também de outros modos, como, por

exemplo, ao final da “mediúnica”, relatando visões dos espíritos que se comunicaram,

dos episódios por estes narrados ou, ainda, confirmando ou contrastando o que

vivenciou com as experiências dos demais.

Por fim, para tornar ainda mais complexa a rede de interações na qual tem

parte o médium de incorporação, é importante notar que incidem sobre este e seu

trabalho ainda a experiência e as orientações de outros médiuns como ele, que por sua

vez devem impactar singularmente na moldagem de sua percepção e de sua

“interpretação” do que viriam a ser os sinais, por exemplo, da aproximação do espírito e

de como seria a natureza do processo, conforme nos relata Mario, que age junto aos

aparás em desenvolvimento, tirando-lhes as dúvidas, aconselhando-os em suas

inseguranças e esclarecendo suas expectativas as vezes altas em demasia. Embora no

Espiritismo Kardecista conste certa lógica de evitar o “estrelismo” dos médiuns mais

experientes, de modo que parte do destaque que se busca contornar acaba se voltando ao

doutrinador, não seria errado inferir que as performances dos pares cuja mediunidade é

mais desenvolvida servem de inspiração aos iniciantes – e isto especialmente por uma

razão bastante simples: o fato de atualmente não haver uma reunião dedicada apenas a

eles, de tal forma que não constitui grande risco apostar na influência exercida entre uns

e outros –, e na Umbanda observa-se que a principal encarregada de “chamar” as

entidades dos desenvolventes é justamente a “Guna Forte”, Mãe Clara, que por ser a

médium de maior carisma do Centro, é justamente aquela na qual os médiuns buscam

espelhar-se; enquanto outros médiuns experientes, inclusive a Mãe Pequena, auxiliam

os iniciantes permanecendo desincorporados, mas no momento seguinte passando a

incorporar.

248
Além de todos esses vínculos já expostos e do evidenciado papel que

desempenham direta ou indiretamente, de modo sutil ou exacerbado na construção de

todo o cenário no e do qual os médiuns se utilizam para intervir sobre aqueles que

buscam sua ajuda, uma categoria popular nos três grupos é a de energia. A crença em

fluidos, vibrações, ectoplasma, axé, etc. possibilita que não apenas os médiuns sintam-

se conectados entre si e com o que pensam ser o mundo dos espíritos, mas também com

todos os demais atores que participam do espetáculo80, de modo que a “energia”, a

despeito de sua natureza supostamente sutil, invisível e imaterial, parece se prestar ao

propósito bastante concreto de, além de promover uma atmosfera de afetos positivos

estimulante para a estadia e o trabalho de todos, ser capaz de tornar coesa e uníssona

a totalidade dos partícipes do rito mediúnico – e aqui é especialmente importante

destacar que a tradução metafórica de energias por afetos parece dar conta da leitura

da intenção destes de evitar conflitos e momentos de tensão como uma espécie de

homogeneização. Assim, além do que já fora mencionado quando tratou-se do médium

de vibração no Espiritismo Kardecista, no Vale do Amanhecer e na Umbanda é

influente a necessidade da abertura da “corrente mestra” e a formação da “corrente”,

respectivamente, em especial no caso desta, em que todos os Filhos de Santo se

encontram próximos uns dos outros, isto é, literalmente coesos.

80
O recurso ao teatro como metáfora pode, de um lado, facilitar a compreensão de alguns leitores e, de
outro, ser interpretado como uma apreciação que enxerga artificialidade, embuste ou simulação na
mediunidade. Não é objetivo nosso, entretanto, comunicar a “verdade absoluta” acerca da mediunidade e
resolver de modo definitivo o problema ontológico que esta nos coloca, mas sim propor uma
compreensão de caráter mais simbólico sobre esta. Além do mais, como já há muito se sabe acerca não
somente da segunda arte, mas de todas as artes e quiçá de toda forma produção criativa, a performance
dramática de um ator, ou melhor, de um grupo de atores, possui a capacidade não apenas de mobilizar as
profundezas de seu psiquismo, mas, também, de promover catarse em seus expectadores numa infinidade
de sentidos possíveis. Seguindo tal linha de raciocínio, a ideia de que podemos ser afetados inclusive por
coisas criadas tem para nós a vantagem de sensibilizar-nos ao que os médiuns e adeptos de tais religiões
vivem, embora sem que nos esqueçamos jamais de enxerga-lo também com a atitude possível de quem a
considera nada mais que uma peça.

249
Resta, por fim, comentar a respeito de que modo os resultados obtidos se

articulam no que se refere às nossas hipóteses. Primeiramente, de acordo com o relato

da maior parte dos sujeitos, não é a experiência mediúnica a principal responsável por

efetuar uma transformação significativa de sua identidade e personalidade, mas a

conversão e a adesão à religião ou a vivência religiosa em sentido lato, razão pela qual

a primeira de nossas hipóteses tenda a parecer refutada, sendo, contudo, necessário

atentar para o fato de que, a despeito disso, o ofício mediúnico não é percebido como

indiferente, já que parte importante dos médiuns, a despeito de enxergar outras

possibilidades de prosseguir com sua prática religiosa caso sua mediunidade cessasse,

esta é vista de modo quase que unânime como um dom e um privilégio sagrado.

Em segundo lugar, constatou-se uma repercussão percebida pelos sujeitos

como positiva em sua personalidade, estando ela intimamente conectada com o

sentimento de pertença e de identificação com os grupos que integram e, mais ainda,

com a religião da qual são adeptos, o que, juntamente do que acabamos de mencionar

no parágrafo anterior, corrobora nossa segunda hipótese.

Igualmente corroborada fora nossa última hipótese, observando-se alguns

indícios no que tange às diferentes categorias exploradas de que os entrevistados

participem do que poderia ser chamado de continuum experiencial-espiritualista,

compartilhando vivências similares no que concerne às múltiplas dimensões da crença

na capacidade de incorporarem espíritos e entidades – em grande parte graças ao

sincretismo –, embora variações importantes fiquem expressas, como, por exemplo,

àquelas referentes ao nível de consciência percebido pelos sujeitos durante o transe: os

espíritas kardecistas enfatizando a preservação da consciência, os umbandistas

declarando estarem inconscientes e os do Vale do Amanhecer numa posição

intermediária entre os anteriores.

250
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais que apresentar ao leitor uma síntese de nossos achados, que podem ser

facilmente consultados pelo leitor na Tabela 4 (a seguir) e, com uma riqueza maior de

detalhes, nas Tabelas 1, 2 e 3 localizadas no Capítulo 8, gostaríamos aqui de proceder a

uma avaliação das vantagens e das desvantagens da estratégia metodológica e teórica

adotadas, bem como de todo o trabalho e considerar as possibilidades de estudos futuros

vislumbrados a partir deste.

Torno aqui, a utilizar a primeira pessoa do singular, desde que me agradaria

expor um pouco mais da minha própria vivência ao realizar a pesquisa. Após o período

total de trabalho de campo – estive presente por cerca de cinco meses em cada uma dos

grupos, frequentemente realizando cerca de duas visitas por semana –, pondero se

mergulhei o suficiente na realidade vivida pelos adeptos de tais religiões para fornecer

uma visão satisfatória destas.

Embora essa reflexão diga respeito a todos os grupos, eu destacaria o caso

da Umbanda, pois me parece que, além do investimento pessoal dos adeptos desta, o

tempo de contato com ela é um fator indispensável para a compreensão da sua “ciência”

e do seu mistério, que são transmitidos oralmente – o que naturalmente exige de fato

maior tempo para deles se apropriar minimamente. Diferente do Espiritismo, onde a

alusão a livros não somente de Kardec é constante, e, em menor medida, do Vale do

Amanhecer, cujos livros sobre a doutrina (os de Mario Sassi, por exemplo) não são tão

citados pela maioria dos fiéis, o máximo que se teve de acesso a material bibliográfico

fora uma espécie de apostila recebida de uma das Mães de Santo com passagens de

textos publicados na internet que, contudo, não pareciam muito conectados com a

vívida tradição do Catimbó presente no cotidiano do terreiro.

251
Estou convicto, porém, da impossibilidade de, por mais longo que se

tornasse este trabalho, comunicar inteiramente todas as minhas ideias e minha

experiência, e mais ainda, tudo que observei da complexidade inerente ao universo das

crenças, ao imaginário religioso e ao contexto social no qual estes ganham vida e são

transformados continuamente. Não penso que, a despeito da alerta necessária para suas

limitações talvez intrínsecas aos objetivos por mim escolhidos, isso inviabilize ou

desautorize de modo algum meu trabalho cujo foco, diversamente de etnografias

clássicas realizadas por antropólogos, é o de fornecer um olhar amplo capaz de

contemplar o mosaico das diversas roupagens assumidas pela experiência mediúnica.

Eu diria, no entanto, que o Centro de Umbanda e, mais ainda, o templo do

Vale do Amanhecer me despertaram o desejo de investiga-los mais a fundo e

isoladamente, sobretudo pela razão de que ainda não são muitas as explorações acerca

deste último – talvez esta seja inclusive a primeira no campo da Psicologia, o que me

faz crer que a chamada doutrina do Amanhecer requer maior atenção por parte dos

cientistas da religião em geral.

Não entrevistei apenas médiuns, mas também outros sujeitos, dentre os

quais doutrinadores, dirigentes do Centro, Diretor Doutrinário, Ogã, Mães de Santo,

médiuns iniciantes, Cambone, Presidente e Vice-Presidente de templo, visitantes e

pacientes, a maior parte dos quais disponho de registros. A apreciação de elementos

trazidos por essas outras figuras se fizeram presentes em momentos específicos e,

embora o foco sobre as entrevistas exceda as intenções desta dissertação, me parece que

seria relevante segundo a perspectiva psicossocial aqui adotada delas tratar em outras

oportunidades, em especial aqueles cuja interação direta com os médiuns no momento

da incorporação é tão intensa: os doutrinadores, a Cambone e o Ogã.

252
Acrescento ainda que a despeito de toda a tentativa de construir essa sorte

de panorama do fenômeno religioso mediúnico, as limitações no sentido de generalizar

nossos resultados são inúmeras principalmente por não termos uma quantidade

confiável de médiuns entrevistados de cada uma das religiões em questão para tal

empreendimento e nem mesmo termos nos utilizado de uma estratégia quantitativa de

pesquisa complementar visando tal coisa.

Contudo, resta-me o intento de fazê-lo algum dia para sondar em que

medida eles respaldam os resultados deste estudo e mesmo para aprimorar o nosso

entendimento da experiência mediúnica, que requer, a meu ver e como já deixei claro no

início deste trabalho, aproximações metodológicas múltiplas e de áreas diversas em

diálogo, inclusive com experimentos envolvidos.

Esta é, por sinal, outra possibilidade investigativa que talvez, no futuro,

quando mais apropriado dos conhecimentos, técnicas e, enfim, de todos os meios

exigidos por ela e das quais hoje me considero ainda distante, eu possa vir a explorar;

embora me seja mais palatável, preferível e viável sob diversos pontos de vista os

estudos survey e envolvendo testes psicológicos, inventários e questionários diversos.

Retornando ao problema da generalização, por outro lado, não custa lembrar

que, apesar de termos observado constarem no cenário espírita, umbandista e

“espiritualista cristão” diversas tendências “filosóficas”, ênfases, tradições e orientações

político-ideológicas quase sempre conflitantes (ainda que possam até mesmo conviver

num mesmo centro ou templo) e que, por sua vez, multiplicam ainda mais as diferenças

entre as “casas”; os grupos religiosos aqui abordados respondem e se remetem a

instituições e organizações religiosas superiores compostas por outros grupos

semelhantes (FEEC e FEB no caso do CEGM e CGTA, no do TGA) ou estão

253
vinculados intimamente com estes (caso do CEGM), o que pode servir como indicador

aproximado do potencial alcance dos nossos resultados.

Ainda sobre a limitação da nossa visada ampla sobre as variedades da

experiência mediúnica, faz-se necessário recordar que há no Brasil outras religiões que

lidam com a dita possessão, como no caso dos neopentecostais e carismáticos católicos,

e outras que denominam as pessoas que o fazem de médiuns, como é o caso do

Candomblé, do Umbandaime e, segundo relatou-me um jaguar do Vale do Amanhecer,

também do Santo Daime, o que retoma a questão da possessão psicodélica explorada

por Luke (2014).

Esse, por sinal é certamente um dos meus principais interesses a partir deste

trabalho e provavelmente o mais imediato. Não apenas pela instigação experimentada já

na revisão desse texto e pelo fato mencionado por meu informante, mas principalmente

por ter descoberto, no processo final de redação desta dissertação, que a Jurema, tão

referida no CEUJMJ e amplamente aludida especialmente no nordeste, não se trata de

uma bebida qualquer, mas uma de propriedades psicodélicas assim como a ayahuasca.

Outras dificuldades, porém, emergem: em que momento e por quais razões sua

utilização pelos umbandistas cessou, qual era o sentido deste, como ele era e,

principalmente, terá tal prática sido completamente abolida, de fato?

Finalmente, sou de opinião de que o referencial da identidade psicossocial

serviu adequadamente aos nossos propósitos e foi capaz de elucidar de modo bastante

consistente o papel exercido pelo contato com os pretensos espíritos, entidades e

mentores na vida dos médiuns e dos grupos dos quais fazem parte. Uma observação a

mais cabe ser feita com relação à psicologia junguiana, porém: graças ao fato de só

termos assumido esta como complementar à perspectiva da identidade social em um

254
momento já consideravelmente avançado da pesquisa81, acabamos não incluindo nas

entrevistas, que poderiam ocorrer mais de uma vez, uma sondagem mais cuidadosa de

aspectos da biografia dos médiuns muito além daquilo que concernia à sua trajetória

com as religiões, o que certamente nos forneceria um quadro mais propício à análise por

ela requerida. Se assim tivéssemos procedido, teríamos muito mais indícios para julgar

se a interpretação dos espíritos como complexos de tonalidade afetiva projetados se

sustentaria juntamente de outras contribuições à luz da psicologia analítica. O curioso,

entretanto, foi que, como pudemos ver, mesmo não visando tais coisas de modo direto,

os médiuns nos apresentaram evidências que tendem nesse sentido.

Quadro 5. Síntese dos aspectos convergentes e dissonantes de maior destaque.

Categorias/Grupos Médiuns CEGM Médiuns CEUJMJ Médiuns TGA Síntese


Elemento mais
predominante:
fundamento
católico. Em
seguida, a segunda
Adesão à Ex-católicos,
maior influência
Umbanda sem nítida influência
Influências destacada antes da
excluir certo nível do Espiritismo
católica e adesão
Percurso religioso de participação em Kardecista. Não
umbandista propriamente dita
rituais e “cruzam corrente”
marcantes. à religião atual
festividades depois de
fora a da
católicas. aderirem ao VDA.
Umbanda, seguida
por sua vez da
espírita e, por
último, da
evangélica.
Certa Espécie de dom
Contato direto
inefabilidade. inefável, sagrado e
com energias e Sensibilidade.
Percebida como destinado à
Definição de incorporação dos Presente, dádiva
dom, canal e caridade de sentir
mediunidade guias, implicando ou dom recebido
sentido cujo energias e de
ausência de de Deus.
propósito é a conectar-se com
controle.
caridade. espíritos.
Mais
Adolescência e
Início das frequentemente
Adolescência Idade adulta. idade adulta. Por
experiências remetido à
último, infância.
adolescência.
Não há tempo Duração variável Curso com sete A duração do
Desenvolvimento
definido para os do processo, mas aulas de duração. processo não é
da mediunidade
cursos pelos quais longo. Destaque No fim delas, os fixa. O medo e a

81
Isso se deu em grande parte graças ao tempo despendido em duas tentativas de concessão de auxílio
financeiro por uma fundação de fomento à pesquisa.

255
passam os dado à primeira aparás não estão insegurança
médiuns, que entidade recebida, prontos: seus comparecem
iniciam pela à firmação dos medos, dúvidas e como empecilhos
psicografia e têm guias, ao controle expectativas para a adaptação
como momentos adquirido e às intervêm do médium às
altos do processo Mães de Santo. fortemente. Aliada entidades e para a
a psicofonia, o Processo a entrega à distinção entre os
controle sobre os “sofrido”. doutrina, o treino conteúdos desta e
espíritos e a perda de técnicas de os daquele. A
do medo. reconhecimento entrega e o
de um mentor controle
possibilita a relacionados às
manifestação dos entidades
demais. constituem
atitudes
fundamentais.
Maior destaque à
incorporação
Incorporação e (psicofonia
Psicofonia, Principalmente
Tipos de tempo mais ou inclusa), depois
psicografia e incorporação,
mediunidade menos longo de aos sonhos e
percepções. sonhos e visões.
doutrinação. visões e, por
último, ouvir
vozes.
Percepção do Relatam
Inconscientes Importante
nível de permanecer Semiconscientes.
durante o transe. divergência.
consciência conscientes.
Preceitos: corpo e Ênfase sobretudo
Ausência de
mente limpos, sem na “preparação
restrições
álcool, sexo e mental”: preces,
Busca por relacionadas a
carne vermelha práticas voltadas
pensamentos hábitos, exceto
por período de para as entidades-
positivos. uso de drogas.
Preparação para a dois a sete dias. O guias e a caridade,
Cuidados Sionização,
incorporação pensamento concentração e
relacionados concentração,
concentra-se no esvaziamento. Em
principalmente à “esquecimento”
afastamento do seguida, cuidados
alimentação. do mundo exterior
mundo externo e voltados ao corpo,
e esvaziamento
se volta ao alimentação
mental.
espiritual. principalmente.
Variam segundo o
Depende do guia a Variações espírito ou a
As sensações
ser incorporado de dependem entidade.
Aproximação da trazidas e deixadas
acordo com as principalmente do Sensações: leveza,
entidade variam segundo o
orientações do espírito em certo impacto
espírito.
Centro. questão. (choque) e
tremores.
Dependem
igualmente do
espírito.
Sensações
positivas foram as
Sensação de Sensações de
mais frequentes,
Afastamento da Variam conforme leveza. Precisam despertar e de
seguidas das de
entidade o espírito. de ajuda para se limitação
limitação
recompor. temporária.
decorrente da
volta do médium a
si. Sensações
negativas foram as
menos frequentes.
Entidades mais Suicidas, espíritos Juremeiros, Pretos-velhos, Entidades da

256
importantes sofredores e Pretos-velhos, Caboclos, Umbanda,
entidades da Caboclos, Erês, e Médicos de Cura, principalmente os
Umbanda, Exus. Guias Pretos-velhos.
principalmente Missionárias, Espíritos
Pretos-velhos. Ministros, sofredores
Mentoras de igualmente.
Falange e
sofredores.
Mais
Relatam
frequentemente
interferências
reconhecidas a
como
nível hipotético.
possibilidade,
A despeito das Apresentam, ao
Interferências de dificilmente sem
dúvidas e contrário,
conteúdos em seguida dar
Raramente inseguranças exemplos de
psíquicos dos exemplos de
reconhecidas. frequentes, as confirmação da
médiuns na evidências
reconhecem autenticidade das
performance. favoráveis à
raramente. experiências, o
legitimidade da
que se assemelha
comunicação.
à também
Apresentam
recorrente
dúvidas.
negação destas.
Reconhece-se
Percepções
Atribuídas como causa
positivas Mais
principalmente à principal a
Transformação da atribuídas mais à significativamente
Umbanda e não conversão à
autopercepção doutrina espírita atribuídas à
somente à religião e não a
que ao trabalho doutrina.
mediunidade. atividade
mediúnico.
mediúnica.
Impacto positivo Identificação e
percebido no Certa restrição da dedicação
Consequências do Principalmente no
sentido de socialização: elevadas ao VDA
trabalho como que se refere à
aproximação com negação do mundo afetam relações
médium socialização.
as pessoas “profano”. com pessoas de
(socialização). fora da doutrina.

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- VON FRANZ, M.-L. C. G. Jung: seu mito em nossa época. São Paulo: Cultrix,

1997.

- ZANGARI, W. Estudos Psicológicos da Mediunidade: Uma Breve Revisão. Revista

Portuguesa de Parapsicologia, Braga, Portugal, v. VII, n. 58, p. 8-12, 2000.

- ______. Experiências Anômalas em Médiuns de Umbanda: uma avaliação

fenomenológica e ontológica. Boletim Academia Paulista de Psicologia, v. 2/07, p.

67-86, 2007.

- ______. Incorporando papéis: Uma leitura psicossocial do fenômeno da

mediunidade de incorporação em médiuns de Umbanda. 2003. Tese (Doutorado em

Psicologia Social). – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2003.

- ZANGARI, W.; MARALDI, E. O. Psicologia da Mediunidade: do intrapsíquico ao

psicossocial. Boletim - Academia Paulista de Psicologia, v. 77, p. 233-252, 2009.

270
- ZANGARI, W.; MARALDI, E. O.; MARTINS, L. B.; MACHADO, F. R. Estados

Alterados de Consciência e Religião. IN: João Décio Passos; Frank Usarski. (Org.).

Compêndio de Ciência da Religião. 1ed. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013, v. 1, p.

423-435.

271
ANEXO I – Perguntas aproximadas relacionadas às categorias exploradas nas

entrevistas

Biografia relacionada ao percurso religioso


Você sempre foi umbandista/espírita/do Vale do Amanhecer? Você é
umbandista/espírita/do Vale do Amanhecer desde criança?
De quais religiões você já foi?
Desde quando você está no CEGM/CEUJMJ/TGA?
Como você chegou ao CEGM/CEUJMJ/TGA?
Você ainda tem algum envolvimento com outras religiões?
O que a Umbanda/o Espiritismo Kardecista/o Vale do Amanhecer significa pra você?
Por que o CEGM/CEUJMJ/TGA é importante para você?
Como médium, como você se imagina no futuro?
Qual o sentido da mediunidade na sua vida?
Se sua mediunidade cessasse, parasse ou acabasse, como você viveria ou se veria a
partir de então?
Definição de mediunidade
Nas suas palavras, o que seria a mediunidade?
Como é ser médium do CEGM/CEUJMJ/TGA?
Início das experiências
Desde quando você é médium?
Como você descobriu ser médium?
Você é médium desde criança?
Por quais motivos você acredita ser médium?
O que lhe fez continuar “exercendo” a mediunidade?
Desenvolvimento da mediunidade
Como foi o processo de desenvolvimento da sua mediunidade?
Quanto tempo demorou até que você deixasse de ser iniciante/desenvolvente?
Como é que você aprendeu a ser médium?
Quais foram os principais aprendizados?

272
Tipos de mediunidade
Quais tipos de mediunidade você pratica?
Como é cada um deles pra você?
Tem algum desses que goste mais?
O que você sente em cada um deles?
Percepção do nível de consciência
Você fica totalmente inconsciente?
Como você se descreveria ou se percebe quando está incorporado?
O quê e como você se sente quando o espírito/a entidade/o guia/o mentor fazem algo?
Preparação para a incorporação
Como costumam ser os dias em que você trabalha como médium?
O que você precisa fazer para conseguir incorporar/psicografar/ver/ouvir, etc.)?
Você precisa deixar de fazer alguma coisa, como beber, comer certas coisas, não fazer
sexo, não fumar ou outras coisas?
Tem algo que facilite a sua conexão com eles? O quê?
Aproximação da entidade
Como é que acontece quando o espírito/a entidade/o guia/o mentor está chegando?
Como você reconhece cada uma das entidades/espíritos/guias/mentores?
Afastamento da entidade
Como você se sente depois que o espírito/a entidade/o guia/o mentor se afasta, sai, vai
embora?
Como se sente depois que volta a si?
Entidades mais significativas
Quais são os espíritos/as entidades/os guias/os mentores que costumam vir?
Você tem alguma entidade/espírito/guia/mentor mais próxima de você do que outras?
Tem algum tipo de entidade/espírito/guia/mentor que venha com mais frequência?
Quais deles você mais gosta? Tem algum que lhe desagrade?
Tem algum que lhe chame mais atenção, ou seja mais importante?
Como é a sua relação com essas entidades/espíritos/guias/mentores?
Interferências de conteúdos psíquicos dos méduns na performance

273
Você já sentiu interferências na sua relação com eles?
Você já se perguntou se não teria algo de você interferindo?
Transformações da percepção de si
Você mudou muito desde que se tornou médium?
Como foi essa mudança?
Como você era quando não era médium?
Quais os pontos positivos de ser médium?
E os negativos?
Consequências do trabalho como médium
Você acha que ter se tornado médium lhe ajuda em outras esferas da sua vida, como
trabalho, faculdade, lazeres? Atrapalhou em alguma delas?
Como é sua relação com sua família e amigos desde que você se tornou médium?

274

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