Aos Jovens Piotr Kropotkin - PDF
Aos Jovens Piotr Kropotkin - PDF
Aos Jovens Piotr Kropotkin - PDF
Piotr Kropotkin
É aos jovens que quero falar hoje. Que os velhos — os velhos de coração e de espírito, bem
entendido — ponham o livro de lado para não fatigarem inutilmente seus olhos com uma leitura que
nada lhes dirá.
Suponho que vos aproximais dos dezoito ou vinte anos; que acabais vosso aprendizado de
uma profissão ou vossos estudos; que ides entrar na vida. Possuis, acredito, o espírito liberto das
superstições, que vos procuraram inculcar: não tendes medo do diabo e não ireis ouvir deblaterar os
padres e os pastores. Além do mais, não sois um destes janotas, tristes produtos de uma sociedade
em declínio, que exibem sobre as calçadas suas calças mexicanas e seus rostos simiescos, e que já
nessa idade possuem apetites de prazer a qualquer preço..., suponho, ao contrário, que possuís o
coração em seu devido lugar, e é por isto que vos falo.
Uma primeira questão, sei disso, apresenta-se a vós. “— O que eu me tornarei!”, vós vos
perguntastes muitas vezes. Com efeito, quando se é jovem, compreende-se que, após ter estudado
uma profissão ou uma ciência durante vários anos — às custas da sociedade, observai-o bem —,
não é para fazer dela um instrumento de exploração, e seria preciso ser bem depravado, bem
carcomido pelo vício, para nunca ter sonhado, um dia, aplicar sua inteligência, sua capacidade, seu
saber, para ajudar na libertação daqueles que pululam hoje na miséria e na ignorância.
Sois daqueles que sonharam, não é verdade? Bem, o que fareis para que vosso sonho torne-
se uma realidade?
···
Não sei em que condições nascestes. Talvez, favorecido pela sorte, fizestes estudos
científicos; sois médico, advogado, homem de Letras ou de ciência que ireis vos tornar; um amplo
campo de ação abre-se diante de vós; entrais na vida com vastos conhecimentos, as aptidões
desenvolvidas; ou, então, sois um honesto artesão, cujos conhecimentos científicos limitam-se ao
pouco que aprendestes na escola, mas que tivestes a vantagem de conhecer de perto o que é a vida
de rude labuta do trabalhador de nossos dias.
Detenho-me na primeira suposição para, em seguida, voltar à segunda; admito que
recebestes uma educação científica. Suponhamos que ireis vos tornar... médico.
Amanhã, um homem sem agasalhos virá buscar-vos para socorrer um doente. Conduzir-vos-
á por uma destas ruelas onde os vizinhos quase podem dar-se as mãos por sobre as cabeças dos
passantes; subis, em um ar impuro, à luz vacilante de um lampião, duas, três, quatro, cinco escadas
cobertas de sujeira deslizante e, em um quarto escuro e frio, encontrareis a enferma, deitada sobre
um catre, recoberta de farrapos imundos. Crianças pálidas, lividas, tiritando de frio sob andrajos,
observam-vos com olhos arregalados. O marido labutou toda sua vida de doze a treze horas diárias
em qualquer tipo de trabalho: agora, está desempregado há três meses. O desemprego não é raro em
sua profissão: repete-se periodicamente todos os anos; mas, outrora, quando se encontrava
desempregado, a mulher ia trabalhar como diarista... lavar vossas camisas, talvez, ganhando uns
poucos trocados por dia; mas eis que ela se encontra acamada há dois meses, e à miséria ergue-se
hedionda diante da família.
O que aconselhareis à enferma, doutor? Vós, que haveis adivinhado que a causa da doença é
anemia profunda, falta de boa alimentação, ausência de ar puro? Um bom bife todos os dias, uma
caminhada ao ar livre, um quarto seco e bem arejado? Que ironia! Se ela pudesse fazê-lo, já o teria
feito sem esperar vossos conselhos!
Se tiverdes um bom coração, a palavra franca, o olhar honesto, a familia contar-vos-á muitas
coisas. Ela vos dirá que do outro lado do tabique, essa mulher que tosse, a ponto de vos partir o
coração, é a pobre passadeira; que no andar de baixo todas as crianças têm febre; que a lavadeira do
térreo também não verá à primavera, e que na casa ao lado é ainda pior.
O que direis a todos estes enfermos? Boa alimentação, mudança de clima, um trabalho
menos penoso?... Desejaríeis poder dizê-lo, entretanto, não ousais, e saís com o coração em
pedaços, e com a maldição sobre os lábios.
No dia seguinte, ainda refletis sobre os habitantes do pardieiro, quando vosso colega vos
conta que um criado veio buscá-lo, em carruagem, desta vez. Era para a moradora de uma rica
mansão, para uma dama, esgotada por noites sem sono, que dedica toda sua vida às toaletes, às
visitas, ao baile e às querelas com um marido grosseiro. Vosso colega aconselhou-lhe uma vida
menos inepta, uma alimentação menos picante, passeios ao ar livre, a calma de espírito e um pouco
de ginástica no quarto, para substituir, até um certo ponto, o trabalho produtivo!
Uma morre, porque durante toda sua vida jamais comeu o bastante e nunca repousou o
suficiente; a outra definha, porque durante toda sua vida nunca soube o que é o trabalho...
Se vós sois uma dessas naturezas fracas, que se habituam a tudo, que, diante dos fatos mais
revoltantes, aliviam-se com um suave suspiro e com um chope, então, acostumar-vos-eis, com o
tempo, a estes contrastes, e, com a ajuda da natureza animalesca, só tereis uma idéia: ajustar-vos nas
fileiras dos boas-vidas para nunca vos encontrardes entre os miseráveis. Porém, se sois “um
homem”, se cada sentimento se traduz em vós por um ato de vontade, se a fera que reside em vós
não matou o ser inteligente, então, retornareis um dia para vossa casa dizendo: “Não, é injusto, isto
não deve continuar assim. Não se trata de curar as enfermidades, é preciso preveni-las. Um pouco
de bem-estar e de desenvolvimento intelectual bastariam para apagar de nossas listas a metade dos
doentes e das doenças. Ao diabo, as drogas! Ar, alimento, um trabalho menos embrutecedor, é por aí
que é preciso começar. Sem isto, toda esta profissão de médico não é senão engodo e falsa
aparência”.
Nesse dia, então, compreendereis o socialismo. Desejareis conhecê-lo de perto, e se o
altruísmo não é para vós uma palavra sem significado, se aplicais ao estudo da questão social a
severa indução do naturalista, acabareis por vos encontrar em nossas fileiras, e trabalhareis, como
nós, pela revolução social.
···
Contudo, talvez direis: “Ao diabo, a prática! Assim como o astrônomo, o físico, o químico,
dediquemo-nos à ciência pura. Esta sempre dará seus frutos, ainda que seja para as gerações
futuras!” Tratemos, de início, de nos entendermos quanto ao que procurareis na ciência. Será apenas
o prazer — com certeza imenso — que o estudo dos mistérios da natureza e o exercício de nossas
faculdades intelectuais nos dão? Neste caso, perguntar-vos-ei em que o cientista, que cultiva a
ciência para passar agradavelmente sua vida, difere desse alcoólatra que só procura na vida o prazer
imediato, e o encontra no vinho? O cientista, sem dúvida, escolheu melhor a fonte de seus prazeres,
visto que a sua oferece-lhe os mais intensos e duráveis, mas é tudo! Ambos, o alcoólatra e o
cientista, têm o mesmo objetivo egoista, o prazer pessoal.
Porém, não desejais esta vida de egoísta. Trabalhando pela ciência, entendeis trabalhar pela
humanidade, e, é por esta idéia que vos guiareis, na escolha de vossas pesquisas...
Bela ilusão! E quem de nós não a acariciou em determinado momento, quando se integrava
pela primeira vez à ciência!
Contudo, se de fato sonhais com a humanidade, se é a ela que visais em vossos estudos, uma
formidável objeção vai se erguer diante de vós, pois, por pouco que tenhais o espirito justo,
observareis, de imediato, que, na sociedade atual, a ciência é apenas um objeto de luxo, servindo
para tornar a vida mais agradável a algumas pessoas e permanecendo absolutamente inacessível à
quase totalidade da humanidade.
Com efeito, há mais de um século que a ciência estabeleceu sadias noções cosmogônicas,
mas a quanto se eleva o número daqueles que as possuem ou que adquiriram um espírito crítico na
verdade científica? Apenas alguns milhares que se perdem em meio a centenas de milhões,
dividindo ainda preconceitos e superstições dignos de bárbaros, expostos, por conseguinte, a sempre
servir de joguetes aos impostores religiosos.
Ou, então, lançai um olhar sobre o que a ciência fez para elaborar as bases racionais da
higiene física e moral. Ela vos diz como devemos viver para conservar a saúde de nosso corpo,
como manter em bom estado nossas aglomerações humanas; indica o caminho da felicidade
intelectual e moral. Porém, todo o imenso trabalho, realizado nestes dois sentidos, não permanece
inaplicado em nossos livros?
E por que isto? — Porque a ciência, hoje, é feita apenas para um punhado de privilegiados,
porque a desigualdade social, que divide a sociedade em duas classes, a dos assalariados e a dos
detentores do capital, faz de todos os ensinamentos sobre as condições da vida racional uma
zombaria para nove décimos da humanidade.
Eu poderia ainda vos citar muitos exemplos, mas resumo: basta que saiais do gabinete de
Fausto, cujos vitrais enegrecidos de poeira mal deixam penetrar, sobre os livros, a claridade do dia,
observai ao vosso redor, e a cada passo vós mesmos encontrareis as provas que corroborarão esta
idéia.
Já não se trata, neste momento, de acumular as verdades e as descobertas científicas.
Importa antes de mais nada disseminar as verdades adquiridas pela ciência, fazê-las entrar na vida,
fazer delas um domínio comum. Importa fazer com que todos, toda a humanidade, torne-se capaz de
assimilá-las, aplicá-las: que a ciência cesse de ser um luxo, que ela seja a base da vida de todos. A
justiça assim o quer.
Direi mais: é o próprio interesse da ciência que o impõe. A ciência só realiza progressos
reais, quando uma nova verdade já encontra um meio preparado para aceitá-la. A Teoria da Origem
Mecânica do calor, enunciada no século passado, quase nos mesmos termos enunciados por Hirn e
Clausius, permaneceu durante oitenta anos enterrada nas teses acadêmicas, até que os
conhecimentos físicos tivessem sido bastante propagados para criar um meio capaz de aceitá-los.
Foi necessária a sucessão de três gerações para que as idéias de Erasmo Darwin sobre a adaptação
das espécies fossem acolhidas, de modo favorável, pela boca de seu neto, e para que fossem
admitidas pelos cientistas acadêmicos, não sem pressão, é verdade, por parte da opinião pública. O
cientista, assim como o poeta ou o artista, é sempre o produto da sociedade na qual se movimenta e
aprende.
Porém, se vos imbuirdes destas idéias, compreendereis que, antes de mais nada, é importante
produzir uma profunda modificação nesse estado de coisas, que, hoje, condena o cientista a
regurgitar verdades científicas e a quase totalidade dos seres humanos a permanecer o que era há
cinco, dez séculos, isto é, no estado de escravos e máquinas incapazes de assimilar as verdades
estabelecidas. E, no dia em que vos imbuirdes desta idéia, ampla, humanitária e profundamente
científica, nesse dia, perdereis o gosto pela ciência pura. Vós vos colocareis à procura dos meios
para operar esta transformação e, se não renunciardes à imparcialidade que vos guiastes em vossas
investigações cientificas, adotareis necessariamente a causa do socialismo; fareis cessar os sofismas
e vireis juntar-vos a nós; fatigado de trabalhar para fornecer prazeres a esse pequeno grupo, que
deles já possui uma grande parte, colocareis vossa inteligência e vossa dedicação a serviço imediato
dos oprimidos.
E estejais certo de que, então, o sentimento do dever cumprido e um acordo real se
estabelecendo entre vossos sentimentos e atos, encontrareis, em vós, forças, de cuja existência
nunca havíeis suspeitado. E quando, um dia — e não está longe apesar do que pensem vossos
professores — a modificação, pela qual tereis trabalhado, realizar-se, então, extraindo novas forças
do trabalho científico coletivo e no concurso poderoso dos exércitos de trabalhadores, que virão se
pôr a seu serviço, a ciência tomará um impulso, comparado ao qual os lentos progressos de hoje
parecerão simples exercícios escolares.
Então, desfrutai a ciência: este prazer será para todos!
II
Se terminais vossos estudos de Direito e se vos preparais para O fórum, pode ocorrer que
também tenhais ilusões a respeito de vossa atividade futura — admito, portanto, que sois dos
melhores que conhecem o altruísmo. Pensais, talvez: “Consagrar a vida a uma luta sem trégua nem
mercê contra todas as injustiças; aplicar-se constantemente para fazer triunfar a Lei, expressão da
justiça suprema: qual vocação poderia ser mais bela?” e entrais na vida cheio de confiança em vós
mesmos, na vocação que escolhestes.
Pois bem, abramos ao acaso a crônica judiciária e vejamos o que vos dirá a vida.
Eis um rico proprietário; ele pede a expulsão de um camponês, que não paga o arrendamento
acertado. Do ponto de vista legal, não há hesitação possível: uma vez que o camponês não paga,
deve abandonar as terras. Porém, se analisamos os fatos, eis o que aprendemos:
O proprietário sempre dissipou suas rendas em alegres festins, o camponês sempre
trabalhou. O proprietário nada fez para melhorar suas terras, entretanto, o valor triplicou em
cinqüenta anos, graças à mais-valia dada ao solo pelo traçado de uma ferrovia, por novas estradas
vicinais, pelo aterro dos pântanos, pelo arroteamento de terrenos incultos; e o camponês, que
contribuiu em grande parte para dar esta mais-valia à terra, está arruinado; preso nas mãos dos
negociantes, perdido em dívidas, não pode mais pagar o proprietário das terras. A lei, sempre do
lado da propriedade, é formal; ela dá razão ao proprietário. Vós, porém, em quem as ficções
jurídicas ainda não mataram o sentimento de justiça, o que fareis? Pedireis que se jogue o camponês
na estrada — é a lei que o ordena — ou, ainda, pedireis que o proprietário restitua ao arrendatário
toda a parte da mais-valia que é devida ao trabalho deste último? É a equidade que vô-lo dita. De
que lado colocar-vos-eis? A favor da lei, mas contra a justiça? Ou, então, pela justiça, mas contra a
lei?
E, quando operários puserem-se em greve contra seu patrão, sem previni-lo com quinze dias
de antecedência, de que lado estareis? Do lado da lei, isto é, do lado do patrão que, aproveitando-se
de um tempo de crise, percebia lucros escandalosos (leiam os últimos processos), ou contra a lei,
mas a favor dos operários que percebiam, durante esse mesmo tempo, salários de 2,50 francos e
viam suas mulheres e seus filhos definharem? Defendereis esta ficção, que consiste em afirmar a
“liberdade de negociações”? Ou apoiareis a equidade, em virtude da qual um contrato fechado entre
aquele que jantou muito bem e aquele outro que vende seu trabalho para comer, entre o forte e o
fraco, não é um contrato?
Eis um outro fato. Um dia, em Paris, um homem rondava perto de um açougue. Pegou um
bife e pôs-se a correr. Prenderam-no, interrogaram-no e descobriram que se tratava de um operário
desempregado, que ele e sua família nada tinham para comer havia quatro dias. Suplicaram ao
açougueiro para que deixasse o homem ir embora, mas o açougueiro quis o triunfo da justiça! Deu
prosseguimento à ação e o homem foi condenado a seis meses de prisão. É assim que o deseja a
cega Themis. E vossa consciência não se revoltará contra a lei e contra a sociedade, ao ver que
condenações análogas acontecem todos os dias?
Ou, então, pedireis a aplicação da lei contra este homem que, mal tratado, achincalhado
desde a infância, tendo crescido sem ter escutado uma palavra de simpatia, acabe matando seu
vizinho para lhe tomar um pouco de dinheiro? Pedireis que o guilhotinem, ou — o que é pior — que
o trancafiem por vinte anos em uma prisão, quando sabeis que ele é mais doente que criminoso e
que, em todo caso, é sobre toda a sociedade que recai este crime?
Pedireis que se jogue no xadrez esses tecelões que, em um momento de exasperação,
puseram fogo na fábrica? Que se envie aos pontões-prisões este homem que atirou em um assassino
coroado? Que se fuzile este povo insurreto, que finca sobre as barricadas a bandeira do futuro?
Não, mil vezes não!
Se raciocinardes, ao invés de repetir o que vos ensinaram; se analisardes e extrairdes a Lei
destas nuvens de ficções com as quais ela foi cercada para mascarar sua origem, que é o desejo do
mais forte, e sua substância, que sempre foi a consagração de todas as opressões legadas à
humanidade por sua sangrenta história — tereis um desprezo supremo por esta lei. Compreendereis
que, permanecer servidor da lei escrita, é pôr-se, a cada dia, em oposição à lei da consciência e
negociar com ela; e, como esta luta não pode durar, ou fazeis calar vossa consciência e tornar-vos-
eis um patife, ou, então, rompereis com a tradição e vireis trabalhar conosco pela abolição de todas
as injustiças: econômicas, políticas, sociais.
Neste caso, então, sereis socialista, sereis revolucionário.
E vós, jovem engenheiro, que sonhais melhorar, pelas aplicações da ciência na indústria, o
destino dos trabalhadores — que triste desencantamento, quantos dissabores vos esperam! Dais a
energia juvenil de vossa inteligência à elaboração de um projeto de ferrovia, que, serpenteando à
beira dos precipícios e perfurando o coração dos gigantes de granito, irá ligar dois paises, separados
pela natureza. Porém, uma vez em obras, vereis, nesse túnel sombrio, batalhões de operários
dizimados pelas privações e doenças, vereis outros voltarem para casa levando apenas alguns
trocados e os bacilos indubitáveis da tísica; vereis os cadáveres humanos — resultados de uma
abominável avareza — marcar cada metro de avanço de vossa via, e, concluida, vereis, enfim, que
se torna um caminho para os canhões dos invasores...
Haveis dedicado vossa juventude a uma descoberta, que deve simplificar a produção e,
depois de muitos esforços, muitas noites sem sono, eis que vos encontrais, enfim, de posse desta
preciosa descoberta. Vós a aplicais, e o resultado ultrapassa vossas esperanças. Dez mil, vinte mil
operários serão lançados na rua! Os que permanecem, crianças, em sua maioria, serão reduzidos ao
estado de máquinas! Três, quatro, dez patrões farão fortuna e “beberão o champanhe fartamente”…
É com isso que haveis sonhado?
Enfim, estudais os progressos industriais recentes e vereis que a costureira nada ganhou com
a descoberta da máquina de costura; que o operário do Gotardo morre de ancilostomíase, a despeito
das perfuradoras de coroas de diamante; que o pedreiro e o diarista estão desempregados, como
antes, ao lado dos elevadores Giffard — e se discutis os problemas sociais com esta independência
de espírito, que vos guiou em vossos problemas técnicos, chegareis necessariamente à conclusão de
que, sob o regime da propriedade privada e do salariado, cada nova descoberta, ainda que aumente
um pouco o bem-estar do trabalhador, nada mais faz senão tornar sua servidão mais pesada, o
trabalho mais embrutecedor, o desemprego mais frequente e as crises mais agudas, e aquele que já
tem para si todos os prazeres é o único que se aproveita dela seriamente.
O que fareis, então, uma vez chegado a esta conclusão? Ou começareis por fazer calar vossa
consciência por sofismas e, um belo dia, vos despedireis de vossos honestos sonhos de juventude e
procurareis apoderar-vos, por vós mesmos, do que dá direito aos prazeres — ireis direto ao campo
dos exploradores. Ou, então, se possuís coração, vós vos direis: “Não, não é tempo de se fazer
descobertas! Antes de mais nada, trabalhemos para transformar o regime de produção; quando a
propriedade individual for abolida, aí, então, cada novo progresso industrial se fará em benefício de
toda a humanidade; e esta massa de trabalhadores, hoje máquinas, amanhã seres pensantes,
aplicando na indústria sua intuição, apoiada pelo estudo e exercitada pelo trabalho manual, o
progresso técnico terá um desenvolvimento que fará em cinquenta anos o que sequer ousamos
imaginar hoje.”
···
E o que dizer ao professor — não àquele que considera sua profissão enfadonha, mas àquele
que, cercado por um bando feliz de crianças, sente-se bem sob seus olhares animados, no meio de
seus sorrisos infantis, e procura despertar nestas pequenas cabeças as idéias humanitárias que ele
próprio mantinha quando era jovem?
Vejo-vos, amiúde, triste, e sei o que vos faz franzir as sobrancelhas. Hoje, vosso aluno
preferido, que não está muito avançado em latim, é verdade, mas nem por isso deixa de ter um bom
coração, contava com entusiasmo a lenda de Guilherme Tell. Seus olhos brilhavam, ele parecia
querer apunhalar ali mesmo todos os tiranos; dizia com ardor este verso apaixonado de Schiller:
Porém, de volta à sua casa, sua mãe, seu pai, seu tio, o repreenderam abertamente pela falta
de respeito que teve com o pastor ou o guarda rural; encheramlhe os ouvidos durante uma hora,
falando “da prudência, do respeito às autoridades, da submissão”, de tal forma que ele deixou
Schiller de lado para ler A arte de fazer seu caminho no mundo!
E ainda ontem vos dizia que vossos melhores alunos estragaram-se: um deles, outra coisa
não faz senão sonhar com galões militares; o outro, em companhia de seu patrão, rouba o magro
salário dos operários, e vós, que havíeis colocado tantas esperanças nesses jovens, refletis agora
sobre a triste contradição que existe entre a vida e o ideal.
Ainda refletis nisso! Prevejo, porém, que em dois anos, após ter tido desilusão sobre
desilusão, colocareis vossos autores preferidos de lado e acabareis por dizer que Tell era sem dúvida
um paí muito honesto, mas, em suma, um pouco louco; que a poesia é uma coisa excelente junto à
lareira, sobretudo quando se ensinou, durante todo um dia, a regra dos juros compostos, mas que,
apesar de tudo, os poetas pairam sempre nas nuvens, e que seus versos nada têm a ver, nem com a
vida, nem com a próxima visita do inspetor...
“Ou, então, vossos sonhos de juventude tornar-se-ão a firme convicção do homem maduro.
Desejareis a educação ampla, humanitária, para todos, dentro e fora da escola, e, ao ver que ela é
impossivel nas condições atuais, vós vos agarrareis às próprias bases da sociedade burguesa. Então,
posto em disponibilidade pelo mister, deixareis a escola e vireis para o nosso lado, conosco, dizer
aos homens idosos, mas menos cultos do que vós, o que o saber possui de atraente, o que a
humanidade deve ser, o que ela pode ser. Vireis trabalhar com os socialistas pela completa
transformação do regime atual, no sentido da igualdade, da solidariedade, da liberdade.
···
Enfim, vós, jovem artista, escultor, pintor, poeta, músico, não observais que o fogo sagrado,
que tinha inspirado algum de vossos predecessores, falta-vos hoje, a vós e aos vossos! Que a arte é
banal, que a mediocridade reina?
E poderia ser de outra forma? A alegria de ter reencontrado o mundo antigo, de ter-se
fortalecido nas fontes da natureza que fez as obras-primas do Renascimento, já não mais existe para
a arte contemporânea: a idéia revolucionária deixou-a insensível até o presente momento e, na falta
de idéia, ela crê ter encontrado uma no Realismo, quando se esforça, hoje, para fotografar, em
cores, a gota do orvalho sobre a folha de uma planta, para imitar os músculos glúteos de uma vaca,
ou para retratar com minúcia, em prosa e verso, a lama sufocante de um esgoto, o quarto de uma
mulher galante.
Contudo, se assim é, o que fazer, direis.
Se o fogo sagrado, que dizeis possuir, é apenas um “pavio fumegante”, aí, então,
continuareis a fazer como havieis feito, e logo vossa arte degenerará em ofício de decorador para os
salões do lojista, de criador de libretos de operetas e de folhetins para um Girardin qualquer — a
maioria de vós já desce rápido este funesto declive...
Porém, se, de fato vosso coração bate em uníssono com o da humanidade, se, como
verdadeiro poeta, possuís um ouvido para escutar a vida, então, em presença deste mar de
sofrimentos, cuja onda vos encobre, em presença destes povos que morrem de fome, destes
cadáveres amontoados nas minas, e destes corpos mutilados jazendo em monticulos aos pés das
barricadas, destes comboios de exilados que vão se enterrar nas neves da Sibéria e nas praias das
ilhas tropicais, em presença da luta suprema que se trava, gritos de dor dos vencidos e de orgias dos
vencedores, o heroismo às voltas com a covardia, o entusiasmo em luta com a baixeza — não
podereis mais continuar neutro; vireis juntar-vos aos oprimidos, porque sabeis que o belo, o
sublime, a vida, enfim, estão do lado daqueles que lutam pela luz, pela humanidade, pela justiça!
···
III
Ou transigir sempre com sua consciência e acabar um belo dia por se dizer: “Pereça a
humanidade desde que eu possa gozar de todos os prazeres e tirar proveito disso enquanto o povo
for bastante parvo para me deixar fazêlo!” Ou, então, juntar-se aos socialistas e trabalhar com eles
pela completa transformação da sociedade. Esta é a consequência forçada da análise que fizemos.
Tal será a conclusão lógica, à qual deverá chegar, à força, todo ser inteligente, desde que raciocine
com honestidade sobre o que se passa em torno dele, por pouco que saiba ter razão sobre os
sofismas que lhe sopram ao ouvido sua educação burguesa e a opinião interessada daqueles que o
cercam.
Uma vez tirada esta conclusão, a questão “O que fazer?” apresenta-se de modo natural.
A resposta é fácil.
Basta que saiais deste meio no qual estais situado e onde é usual dizer que o povo é apenas
um monte de ignaros; vinde para este povo e a resposta surgirá por si mesma.
Vereis que em todos os lugares, na França bem como na Alemanha, na Itália como nos
Estados Unidos, em todos os lugares onde há privilegiados e oprimidos, realiza-se no seio da classe
operária um trabalho gigantesco, cujo objetivo é romper para sempre a servidão imposta pelo
feudalismo capitalista e lançar os fundamentos de uma sociedade estabelecida sobre as bases da
justiça e da igualdade. Já não basta, hoje, ao povo, exprimir suas reclamações por uma destas
canções cuja melodia partia-vos o coração, cantadas pelos servos do século XVII, e que ainda hoje
os camponeses eslavos cantam; trabalha com a consciência do que fez, e contra todos os obstáculos,
por sua libertação.
Seu pensamento se exercita, amiúde, em adivinhar o que se deve fazer a fim de que a vida,
ao invés de ser uma maldição para três quartos da humanidade, seja uma felicidade para todos. Ele
aborda os problemas mais árduos da Sociologia e procura resolvê-los com seu bom senso, seu
espírito de observação, sua rude experiência. Para se entender com outros miseráveis como ele
procura agrupar-se, organizar-se. Constitui-se em sociedades sustentadas com dificuldade por
pequenas cotizações; procura o entendimento através das fronteiras e, melhor que os retóricos
filantropos, prepara o dia em que as guerras entre os povos tornar-se-ão impossíveis. Para saber o
que fazem seus irmãos, para melhor conhecê-los, para elaborar as idéias e propagá-las, ele sustenta
— mas ao preço de muitas privações, de muitos esforços! — sua imprensa operária. Enfim, chegada
a hora, ergue-se e, avermelhando com seu sangue os paralelepipedos das barricadas, lança-se à
conquista destas liberdades que, mais tarde, os ricos e os poderosos saberão corromper em
privilégios para voltá-los ainda contra ele.
Que série de esforços continuos! Que luta incessante! Quanto trabalho recomeçado
constantemente, ora para preencher os vazios formados pelas deserções — em consequência da
lassidão, da corrupção, das perseguições; ora para reconstituir as fileiras abertas pela fuzilaria e pela
metralha; ora para retomar os estudos bruscamente interrompidos pelo extermínio em massa!
Seus jornais são criados por homens, que devem ter roubado da sociedade parcelas de
educação, privando-se de sono e alimento; a agitação é sustentada por trocados retirados do minimo
necessário, amiúde pão seco; e tudo isto sob a apreensão continua de ver, em pouco tempo, a
família reduzida à mais atroz das misérias, tão logo o patrão perceba que “seu operário, seu escravo,
trabalha pelo socialismo!”
Eis o que vereis, se caminhardes no sentido do povo.
···
E nesta luta sem fim, quantas vezes o trabalhador, sucumbindo sob o peso dos obstáculos,
não se perguntará em vão: “Onde estão, pois, esses jovens que estudaram às nossas custas? Esses
jovens que alimentamos e vestimos enquanto estudavam? Para quem, com o dorso curvo sob o
fardo, e o ventre vazio, construímos essas casas, essas academias, esses museus? Para que, com o
rosto pálido, imprimimos esses belos livros que não podemos sequer ler? Onde estão esses
professores que dizem possuir a ciência humanitária e para quem a humanidade não vale uma
espécie rara de lagarta? Esses homens, que falam de liberdade e nunca defendem a nossa, pisoteada
todos os dias? Esses escritores, esses poetas, esses pintores, todo esse bando de hipócritas que, em
uma palavra, com lágrimas nos olhos, falam do povo, e que nunca se encontraram ao nosso lado
para nos ajudar em nossos trabalhos?”
Uns satisfazem-se com sua covarde indiferença; outros, a maioria, desprezam “a canalha” e
estão prontos a precipitar-se sobre ela, no caso de ela ousar tocar em seus privilégios.
De vez em quando chega um jovem que sonha com tambores e barricadas e vem em busca
de emoções, mas deserta a causa do povo tão logo percebe que o caminho da barricada é longo, que
o trabalho é penoso e que, neste caminho. as coroas de louro que ele vem conquistar estão
misturadas a espinhos. Com maior frequência, são ambiciosos insaciados, que, após terem
fracassado em suas primeiras tentativas, procuram captar os votos do povo, mas, mais tarde, serão
os primeiros a troar contra ele, assim que este queira aplicar os princípios que eles próprios
professaram; talvez façam apontar os canhões contra a “vil multidão”, se ela ousar se mover antes
que, eles, os chefes, tenham dado o sinal.
Acrescentai a estúpida injúria, o arrogante desprezo, a covarde calúnia por parte da maioria,
e tereis tudo o que o povo agora recebe por parte da juventude burguesa, para ajudá-la em sua
evolução social.
···
E depois disso perguntarieis ainda: “O que fazer”, quando tudo está por ser feito! Quando
todo um exército de jovens teria como aplicar toda a força de suas energias, de suas inteligências, de
seus talentos para ajudar o povo na imensa tarefa, que ele empreendeu!
Vós, amadores de ciência pura, se fostes tocados pelos princípios do socialismo, se haveis
compreendido todo o alcance da revolução que se anuncia, não observais que toda a ciência deve
ser refeita para que seja colocada de acordo com os novos princípios; que se trata de realizar neste
domínio uma revolução cuja importância deve ultrapassar de muito aquela que se realizou nas
ciências no século XVIII? Não compreendeis que a história — hoje “fábula convencionada”, sobre
a grandeza dos reis, das grandes personagens e dos parlamentos — deve ser toda reformulada do
ponto de vista popular, do ponto de vista do trabalho realizado pelas massas nas evoluções da
humanidade? Que a Economia social — hoje, consagração da exploração capitalista — deve ser
toda elaborada de novo, tanto em seus princípios fundamentais quanto em suas inumeráveis
aplicações? Que a Antropologia, a Sociologia, a Ética devem ser por inteiro remanejadas, e que as
próprias Ciências Naturais, encaradas sob um novo ponto de vista, devem sofrer uma profunda
modificação quanto à maneira de conceber os fenômenos naturais e ao método de exposição? Pois
bem, fazei-o! Colocai vossa inteligência a serviço de uma boa causa! Sobretudo, porém, vinde
ajudar-nos com vossa lógica rigorosa para combater os preconceitos seculares, para elaborar, pela
sintese, as bases de uma organização melhor; sobretudo, ensinai-nos a aplicar em nossos raciocínios
a ousadia da verdadeira investigação científica e, dando o exemplo, mostrai-nos como se sacrifica a
vida pelo triunfo da verdade!
Vós, médico, ao qual a dura experiência fez com que compreendêsseis o socialismo, não vos
fatigueis dizendo-nos, hoje, amanhã, todo dia e em cada ocasião, que a humanidade caminha para a
degenerescência, se continuar nas atuais condições de existência e trabalho; que vossas drogas
permanecerão impotentes contra as doenças, enquanto 99% da humanidade vegetarão em condições
absolutamente contrárias ao que a ciência quer; que são as causas das doenças que devem ser
eliminadas, e o que é preciso para eliminar estas causas. Vinde, pois, com vosso escalpelo dissecar
com mão firme esta sociedade em via de decomposição, dizer-nos o que uma existência racional
deveria e poderia ser e, como verdadeiro médico, repetir-nos que ninguém deve se deter diante da
supressão de um membro gangrenado, quando ele pode infeccionar todo o organismo.
Vós, que trabalhastes nas aplicações da ciência na indústria, vinde contar-nos com franqueza
qual foi o resultado de vossas descobertas; fazei entrever àqueles que ainda não ousam lançar-se
com coragem ao futuro, O que o saber já adquirido traz de novas invenções em seu bojo, o que a
indústria poderia ser em melhores condições, o que o homem poderia produzir, se produzisse
sempre para aumentar sua produção. Trazei ao povo o concurso de vossa intuição, de vosso espírito
prático e de vossos talentos de organização, ao invés de colocá-los em benefício dos exploradores.
Vós, poetas, pintores, escultores, músicos, se compreendestes vossa verdadeira missão e os
próprios interesses da arte, vinde, então, colocar vossa caneta, vosso pincel, vosso buril, em favor
da revolução. Contai-nos em vosso estilo figurado ou em vossos quadros surpreendentes as lutas
titânicas dos povos contra seus opressores; inflamai os jovens corações com esse belo sopro
revolucionário que inspirava nossos ancestrais; dizei à mulher o que a atividade de seu marido tem
de belo se ele dá sua vida à grande causa da emancipação social. Mostrai ao povo o que a vida atual
tem de feio e fazei-nos tocar nas causas desta feiúra; dizei-nos o que uma vida racional teria sido se
ela não se chocasse, a cada passo, contra as inépcias e as ignomínias da ordem social atual.
Enfim, vós todos que possuís conhecimentos, talentos, se tendes coração, vinde, pois, vós e
vossos companheiros, colocá-los a serviço daqueles que mais precisam. E sabei que, se vierdes, não
como senhores, mas como camaradas de luta; não para governar, mas para inspirar-vos em um novo
meio; menos para ensinar do que para conceber as aspirações das massas, adivinhá-las e formulá-
las, e depois trabalhar, sem descanso, continuamente, com todo o ímpeto da juventude, para fazê-los
entrar na vida — sabei que, então, mas só então, vivereis uma vida completa, uma vida racional.
Vereis que cada um de vossos esforços feitos neste sentido produz amplamente seus frutos; — e este
sentimento de concordância, estabelecida entre vossos atos e mandamentos de vossa consciência,
dará forças que não suspeitáveis existir em vós mesmos.
À luta pela verdade, pela justiça, pela igualdade, no seio do povo — o que encontrareis de
mais belo na vida?
IV
Foram-me necessários três longos capítulos para demonstrar aos jovens das classes
abastadas que, diante do dilema que a vida apresentar-lhes-á, eles serão forçados, se são corajosos e
sinceros, a virem se juntar aos socialistas e, com eles, abraçar a causa da revolução social. Esta
verdade é, todavia, muito simples! Porém, falando àqueles que sofreram a influência do meio
burguês, quanto sofisma a combater, quanto preconceito a vencer, quanta objeção interessada a
eliminar.
É-me fácil ser mais breve falando-vos, jovens do povo. A própria força das coisas leva-vos a
vos tornardes socialistas, por pouco que tenhais a coragem de raciocinar e agir de acordo. Com
efeito, o socialismo moderno saiu das próprias profundezas do povo. Se alguns pensadores,
oriundos da burguesia, vieram trazer-lhe a sanção da ciência e o apoio da filosofia, o fundamento
das idéias que eles anunciaram não deixa de ser um produto do espírito coletivo do povo
trabalhador. Este socialismo racional da Internacional, que é hoje nossa melhor força, não foi ele
elaborado nas organizações operárias, sob a influência direta das massas? E os poucos escritores,
que ofereceram seu concurso a este trabalho de elaboração, não fizeram outra coisa senão encontrar
a fórmula das aspirações, que já emergiram entre os operários?
Sair das fileiras do povo trabalhador e não se dedicar ao triunfo do socialismo, é
desconhecer seus próprios interesses, renegar sua própria causa e sua missão histórica.
···
Lembrai-vos do tempo em que, ainda criança, descíeis num dia de inverno para divertir-vos
em vossa escura ruela? O frio vos mordia os ombros através de vossas finas vestes e a lama enchia
vossos sapatos rasgados. Já naquela época, quando víeis passar de longe estas crianças roliças e
ricamente vestidas, que vos olhavam com um ar arrogante, sabíeis bem que esses fedelhos, vestidos
impecavelmente, não vos valiam, vós e vossos camaradas, nem por sua inteligência, nem pelo bom
senso, nem pela energia. Mais tarde, porém, quando tivestes de encerrar-vos em uma suja oficina,
desde as cinco ou seis horas da manhã, manter-vos doze horas junto a uma máquina barulhenta e,
vós mesmos máquina, seguir dia após dia, e durante anos a fio, seus movimentos de impiedosa
cadência, os outros, enquanto isso, iam tranquilamente estudar nos colégios, nas belas escolas, nas
universidades. E, agora, essas mesmas crianças, menos inteligentes, porém mais cultas que vós,
tornadas vossos chefes, vão gozar de todas as delícias da vida, de todos os benefícios da civilização
— e vós? O que vos espera?
Entrais em um pequeno apartamento escuro e úmido, onde cinco, seis seres humanos,
fervilham no espaço de alguns metros quadrados; onde vossa mãe, fatigada pela vida, mais
envelhecida pelas preocupações do que pela idade, oferece-vos, como refeição, pão, batatas, e um
líquido escuro qualificado com ironia de café; onde tendes, como distração, sempre a mesma
questão na ordem do dia, a de saber como pagareis amanhã o padeiro e depois de amanhã o locador!
Pois bem, será necessário que leveis a mesma existência miserável que vosso pai e vossa
mãe levaram durante trinta, quarenta anos: Trabalhar toda a vida para proporcionar a alguns todos
os gozos do bem-estar, do saber, da arte, e guardar para si a continua preocupação com o pedaço de
pão? Renunciar para sempre a tudo que torna a vida tão bela, para se dedicar a proporcionar todas
as vantagens a um punhado de ociosos? Desgastar-se no trabalho e só conhecer a penúria, se não a
miséria, quando o desemprego vier? É isso que cobiçais na vida?
···
Talvez vos resignareis. Não antevendo saída para a situação, pode acontecer que vos digais:
“Gerações inteiras tiveram o mesmo destino e eu, que nada posso mudar desta situação, devo
sofrêlo também! Assim, trabalhemos, e tratemos de viver o melhor que pudermos.”
Seja! Contudo, a própria vida se encarregará de instruir-vos.
Um dia virá a crise, uma destas crises, não mais passageira como outrora, mas a que mata,
de repente, toda uma indústria, que reduz à miséria milhares de trabalhadores, que dizima as
famílias. Lutareis, como os outros, contra esta calamidade. Em pouco tempo, contudo, percebereis
como vossa mulher, vosso filho, vosso amigo, sucumbem pouco a pouco às privações,
enfraquecem-se a olhos vistos, e, por falta de alimentos, de cuidados, acabam por morrer sobre um
catre, enquanto a vida, despreocupada com aqueles que perecem, faz circular seus fluxos alegres
nas ruas da grande cidade, radiante de sol. Compreendereis, então, o que esta sociedade tem de
revoltante; pensareis nas causas da crise e vosso olhar sondará toda a profundidade desta
iniquidade, que expõe milhares de seres humanos à cupidez de um punhado de ociosos;
compreendereis que os socialistas têm razão, quando dizem que a sociedade atual deve ser, e pode
ser, transformada totalmente.
Um outro dia, quando vosso patrão procurar, por uma nova redução de salários, subtrair-vos
mais alguns trocados, para aumentar ainda mais sua fortuna, protestareis; todavia, ele vos
responderá com arrogância: “Ide pastar, se não quiserdes trabalhar por esse preço”.
Compreendereis, então, que vosso patrão não só procura vos tosquiar como a um carneiro, mas
também vos considera como de raça inferior; que, não contente de vos ter em suas garras pelo
salário, ainda aspira a fazer de vós um escravo, sob todos os pontos de vista. Assim, ou curvareis o
dorso, renunciareis ao sentimento da dignidade humana e acabareis por sofrer todas as humilhações,
ou, ainda, o sangue vos subirá à cabeça, tereis horror da declividade sobre a qual escorregais,
ripostareis e, jogado à rua, compreendereis que os socialistas têm razão quando dizem: “Revolta-te!
Revolta-te contra a escravidão econômica, pois ela é a causa de todas as escravidões!” Então, vireis
juntar-vos às fileiras socialistas e trabalhareis com elas pela abolição de todos os escravos:
econômico, político e social.
Em um desses dias conhecereis a história da jovem, cujo olhar, porte esbelto e conversa
animada eram tão amados por vós. Após ter lutado anos contra a miséria, deixou seu vilarejo para ir
para a grande cidade. Lá, ela sabia que a luta pela existência seria dura, mas, pelo menos, esperava
ganhar honestamente seu pão. Pois bem, agora sabeis o destino que ela teve. Cortejada por um filho
de burguês, deixou-se ludibriar por suas belas palavras, deu-se a ele com a paixão da juventude,
para se ver abandonada, ao fim de um ano, com uma criança nos braços. Sempre corajosa, não
cessou de lutar; mas sucumbiu nesta luta desigual contra a fome e o frio, e acabou por expirar, não
se sabe em qual hospital... O que fareis, então? Ou afastareis qualquer lembrança incômoda com
algumas palavras estúpidas: “Não foi a primeira, não será a última”, direis, e, numa tarde, escutar-
vos-ão em um bar, em companhia de outros brutos, ofender a memória da jovem com sujas
maledicências. Ou, então, esta lembrança vos apertará o coração; procurareis encontrar o covarde
sedutor para lançar-lhe seu crime ao rosto; refletireis sobre as causas destes fatos, que se repetem
todos os dias, e compreendereis que eles não cessarão enquanto a sociedade estiver dividida em dois
campos: de um lado, os miseráveis, e, de outro, os ociosos, estróinas de belas palavras e apetites
brutais. Compreendereis que é tempo de preencher este abismo de separação, e correreis para vos
juntar aos socialistas.
···
E vós, mulheres do povo? Esta história vos deixará insensíveis? Acariciando a cabeça loura
desta criança, que se aconchega a vós, nunca pensais no destino que está reservado à vossa
irmázinha, a vossos filhos? Desejais que vossos filhos também vegetem como vosso pai também
vegetou, sem outra preocupação senão a do pão, sem outras alegrias, além do cabaré? Desejais que
vosso marido, vosso filho, estejam sempre à mercê de qualquer um, que herdou de seu pai um
capital a explorar? Desejais que eles permaneçam sempre escravos do patrão, bucha de canhão dos
poderosos, esterco que serve de adubo aos campos dos ricos?
Não, mil vezes não! Sei que vosso sangue fervia, quando ouvistes que vossos maridos, após
terem começado ruidosamente uma greve, acabaram por aceitar, cabisbaixos, as condições ditadas
em tom arrogante pelos grandes burgueses! Sei que admirastes essas mulheres espanholas que vão,
à frente, apresentar seus peitos às baionetas dos soldados, quando de uma insurreição popular! Sei
que repetis com respeito o nome desta mulher, que foi cravar uma bala no peito do sátrapa, quando
ele se permitiu um dia ultrajar um socialista aprisionado. Sei também que vosso coração batia
quando líeis como as mulheres do povo de Paris se reuniam, sob uma chuva de obuses, para
encorajar “seus homens” ao heroísmo.
Sei disso, e é por isso que não duvido que acabareis por vos juntar àqueles que trabalham
pela conquista do futuro.
···