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INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

LICENCIATURA EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

CADEIRA: CIÊNCIA POLÍTICA

A LEGITIMIDADE DO USO DA FORÇA DO PODER ESTATAL EM TEMPOS DE


PANDEMIA

Autor:

Ana Maria Armando

Chimoio

Agosto de 2022
ÍNDICE

Conteúd

1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................................1

1.1 Contextualização.......................................................................................................................1

1.1 Objectivos.................................................................................................................................1

1.1.1 Geral...................................................................................................................................1

1.1.2 Específicos.........................................................................................................................1

1.2 Metodologia..............................................................................................................................2

1.3 Estrutura do trabalho.................................................................................................................2

2. EMBASAMENTO TEÓRICO.......................................................................................................3

2.1 Poder de polícia, contexto histórico e conceito........................................................................3

2.2 A legitimidade do exercício de poder de polícia em tempos de pandemia...............................4

3. CONCLUSÃO..............................................................................................................................11

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................12
1. INTRODUÇÃO

1.1 Contextualização

A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, o qual apresenta um


quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves, como esclarece
o Ministério da Saúde (BRASIL, 2020). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a
maioria dos pacientes com COVID-19 (cerca de 80%) pode ser assintomática, e cerca de 20% dos
casos podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória, sendo que,
desses casos, aproximadamente 5% podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência
respiratória.

Com o advento da pandemia do novo Coronavírus (Covid-19), surgiu a necessidade de o


Estado brasileiro editar actos normativos para prevenir e controlar a doença. Essas medidas
invariavelmente determinam restrições a direitos fundamentais. Em que pese a actuação do poder
público conter respaldo legal, nota-se que o exercício do poder de polícia não é ilimitado, vez que,
pelo fato de atentar contra liberdades garantidas no texto constitucional, deverá a intervenção
obedecer ao equilíbrio entre autoridade e liberdade, mais precisamente, atender ao princípio da
proporcionalidade.

Embora o assunto proposto tenha sido objecto de análise pelos mais variados prismas
(políticos, económicos, sociais e até jurídico), a matéria ainda carece de uma investigação que leve
em conta os preceitos doutrinários tradicionais e contemporâneos dos direitos administrativo e
constitucional. O presente trabalho objectiva examinar a legitimidade da intervenção estatal
limitadora de direitos fundamentais.

1.1 Objectivos

1.1.1 Geral

 Compreender a legitimidade do uso da força do poder estatal em tempos de pandemia.

1.1.2 Específicos

 Caracterizar o poder de polícia no contexto histórico;


 Descrever a legitimidade do exercício de poder de polícia em tempos de pandemia.

1
1.2 Metodologia

De acordo com Furlanetti e Nogueira (2013), a metodologia é a sequência dos


procedimentos que são fundamentais para descrever a forma como será elaborado a pesquisa, em
razão de que responderá como é possível atingir as metas estabelecidas. Assim sendo, metodologia
exibe o universo em que é feito a pesquisa, o tipo, o método de análise e qual instrumento utilizado
para a colecta de dados para realizar a pesquisa.

A pesquisa bibliográfica foi elaborada por meio de livros, internet, artigos já publicados,
de maneira qualitativa, em que é um estudo não-estatístico. Segundo Vergara (2016), os dados
qualitativos são codificados, analisados e expostos de maneira mais estruturada. As pesquisas
bibliográficas contribuirão para o compreendimento dos possíveis encalces relacionados ao tema. O
material foi colectado nas bases electrónicas de dados Medline, Lilacs e SciELO. Foram
seleccionados os periódicos com textos completos, na área de administração pública.

1.3 Estrutura do trabalho

O presente trabalho está organizado em capítulos, com isso para uma melhor ilustração
segue abaixo o resumo da estrutura: Capitulo I: Introdução contendo os objectivos, a estrutura do
trabalho e Metodologia; Capitulo II: Revisão da Literatura; Capitulo III: Considerações finais;
Capitulo IV: Referências Bibliográficas (segundo a regra de APA).

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2. EMBASAMENTO TEÓRICO

2.1 Poder de polícia, contexto histórico e conceito

As sociedades patriarcais romana e grega introduzem o poder de polícia à sociedade


ocidental, com conceito próximo ao de política, ambos associados à constituição do Estado. Política
significava viver na polis, submetendo-se a uma forma de governo entre membros autónomos em
grau de igualdade, na qual decisões acontecem mediante compromissos e sem uso da violência. Já
polícia designava a actuação fora da polis, a vida familiar, em que o patriarca comandava seus
subordinados despoticamente, os bens e as pessoas da casa eram seus recursos, assim como o uso
da violência (BINENBOJM, 2016, p. 27-28).

Essa dicotomia entre poderes adquiriu nova dinâmica durante o período feudal europeu.
Ali, o senhor feudal, assemelhado ao patriarca, exercia polícia sobre seus servos, vassalos e
familiares, bem como praticava política com os demais senhores feudais com os quais não possuía
relação de subordinação (BINENBOJM, 2016, p. 28-29).

Percebe-se que o poder de polícia deixa o âmbito doméstico, passando a actuar também na
vida dentro da polis, vez que se concentram na mesma figura, Estado e patriarca, pelo menos em
relação ao feudo independente. Essa ampliação do poder de polícia é intensificada durante o
período absolutista europeu, sistema político contraposto ao modelo feudal, no qual o rei, embora
considerado primeiro entre iguais, tinha poder bastante limitado ou até mesmo figurativo.

O poder político era, na verdade, fragmentado entre a igreja, o monarca e a nobreza


(ASSIS, 2016, p. 3-4). Diferente de sua contraparte feudal, o rei absolutista exercia de fato o poder.
O monarca baixava leis, instituía e cobrava tributos, comandava o exército, nomeava funcionários,
organizava a justiça etc. (ARRUDA, 1974, p. 61).

Essa dimensão do poder de polícia, que de fato continha toda a actividade administrativa,
justificando inclusive a expressão Estado de Polícia, começou a ter suas primeiras restrições
durante a Revolução Francesa, sendo efectivamente afectado por dois grandes giros do direito
administrativo: o regime democrático constitucional, contemporâneo ao pós-guerra, que busca a
legitimidade da organização e funcionamento da Administração Pública em oposição ao regime
autocrático; e o pragmático, esforço concentrado na aproximação entre teorias e experiências de
fato, analisando decisões ante as consequências práticas, em contexto concreto, sem referência a
premissas teóricas inquestionáveis (BINENBOJM, 2016, p. 23-60).

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O democrático constitucional influencia os aspectos político-jurídicos do poder de polícia,
superando o conceito de seu exercício em razão de uma supremacia geral do Estado sobre o
particular em favor de uma fonte de legitimidade extraída dos direitos fundamentais e da
democracia, sem chegar a formar uma sujeição completa em favor do particular, mas se tratando de
um conjunto de compromissos entre particular e colectividade que habilitam e delimitam a
actividade ordenadora do poder de polícia (BINENBOJM, 2016, p. 63-65).

Já a contribuição pragmática implica em submeter o texto constitucional que legitima o


poder de polícia a uma análise que considera as consequências práticas das decisões para
enfrentamento de problemas concretos (BINENBOJM, 2016, p.66-68). Trata-se de compromisso
entre o fundamento e o caso concreto na busca pela eficiência.

Assim, o poder de polícia actualmente é entendido como ordenação económica e social


que conforma liberdade e propriedade por prescrições estatais, objectivando protecção aos direitos
fundamentais e colectivos definidos democraticamente de acordo com a Constituição, erigindo um
sistema de incentivos a comportamentos sociais desejáveis e desestimulando indesejáveis de acordo
com finalidades político-jurídicas predeterminadas (BINENBOJM, 2016, p. 71). Esse sentido
amplo abrange os poderes Legislativo e Executivo. Numa interpretação mais restrita, poder de
polícia se dá nas intervenções estatais gerais, como regulamentos, ou específicas, como
autorizações ou licenças, emanadas pelo Poder Executivo para prevenir actividades particulares de
encontro ao interesse social. Esse sentido é chamado de polícia administrativa (MELLO, 2010, p.
822).

A polícia referida difere da polícia judiciária, vez que a primeira se predispõe unicamente a
impedir e paralisar actividades anti-sociais; já a última se preocupa com a responsabilização dos
violadores da ordem jurídica. Cabe ressaltar que, enquanto a judiciária observa as regras da
legislação processual penal, a administrativa é regida pelas normas administrativas (MELLO, 2010,
p. 835).

2.2 A legitimidade do exercício de poder de polícia em tempos de pandemia

Os tópicos anteriores levam à constatação de que poder de polícia e direitos fundamentais


se relacionam intrinsecamente e atuam de forma que um limita o outro. Ou seja, a actuação
ordenadora do Estado pode restringir liberdades individuais, mas por elas também é limitado, na
medida em que o poder público, durante sua actividade regulatória, não poderá se afastar dos
valores albergados na Constituição e provocar a aniquilação das garantias alcançadas.

4
Verifica-se então o problema: quando a intervenção estatal limitadora de direitos
fundamentais será legítima? Quando existir equilíbrio entre autoridade e liberdade. Quando houver
efectiva e real supremacia do interesse colectivo. Quando a coerção mantiver fina sintonia entre as
razões e os objectivos que a fundamentam. Em síntese, quando a actuação do poder público for
proporcional. Explica-se antes de adentrar na investigação da proporcionalidade na seara da
administração pública, tema de interesse do artigo, necessárias algumas considerações gerais sobre
esse importante postulado jurídico.

Existem princípios que são mais fáceis de compreender do que de conceituar. A


proporcionalidade é um deles. Ela esteve presente em diversos ramos do Direito, seja na aplicação
da pena criminal, seja na noção de abuso do civilista ou, ainda, como meio de conter a
discricionariedade do Poder Estatal no âmbito administrativo (TAVARES, 2015, p. 629).
Personificava, o referido dogma, a exigência de racionalidade, a obrigação de que a conduta do
poder público sempre fosse provida de uma parcela mínima de sustentabilidade racional.

O conceito de proporcionalidade foi empregado pela primeira vez em 1802, por Von Berg,
na Alemanha, e somente depois de um século, foi efectivamente utilizado no campo do Direito de
Polícia, por obra do Superior Tribunal Administrativo da Prússia. Cumpre ressaltar ainda acerca da
jurisprudência constitucional da Alemanha onde, muito cedo, sedimentou-se o entendimento de que
a proporcionalidade consubstanciava relevante meio de controle estatal, visando a observância e
concretização dos direitos fundamentais do cidadão (ANTUNES, 2006, p. 11).

Para Paulo Bonavides (2006, p. 393), o aludido princípio possui dois principais sentidos:
amplo e restrito. Em sentido mais amplo, é a regra fundamental a quem devem obedecer tanto aos
que exercem, quanto os que padecem do poder. Numa dimensão menos larga, se caracteriza pelo
fato de presumir a existência da relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios
que são levados a cabo. Logo, nesta última acepção, haverá violação do princípio toda vez que os
meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados, e/ou quando a desproporção
entre meios e fim é particularmente evidente ou manifesta.

Será proporcional a opção que melhor atender a tarefa de optimização das regras em
disputa, considerando-se que cada qual apresenta pesos variáveis de importância conforme o caso
concreto que esteja em exame (HESSE, 1983, p. 46).

Dessa forma, o princípio da proporcionalidade, conhecido por limite dos limites, atua
como ferramenta indispensável para impingir a legitimidade e a adequação das normas com os

5
ditames da justiça e da razão. Todavia, o exercício do referido método interpretativo não pode ser
realizado de forma crua, pouco elaborada e com base em critérios subjectivos. O referido postulado
possui dimensões que condicionam a sua aplicação e eliminam o perigo da subjectividade. Essas
dimensões são concretizadas por meio da observação dos subprincípios da adequação, necessidade
e proporcionalidade em sentido estrito.

No artigo “O proporcional e o razoável”, Luis Virgílio Afonso da Silva aborda assim o


assunto:

A real importância dessa ordem fica patente quando se tem em mente que a aplicação da
regra da proporcionalidade nem sempre implica a análise de todas as suas três sub-regras. Pode-se
dizer que tais sub-regras relacionam-se de forma subsidiária entre si. Essa é uma importante
característica, para a qual não se tem dado a devida atenção. A impressão que muitas vezes se tem,
quando se mencionam as três sub-regras da proporcionalidade, é que o juiz deve sempre proceder à
análise de todas elas, quando do controle do ato considerado abusivo. Não é correto, contudo, esse
pensamento. É justamente na relação de subsidiariedade acima mencionada que reside a razão de
ser da divisão em sub-regras.

Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da


necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da
adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema
já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade. Assim, a aplicação da
regra da proporcionalidade pode esgotar-se, em alguns casos, com o simples exame da adequação
do ato estatal para a promoção dos objectivos pretendidos. Em outros casos, pode ser indispensável
a análise acerca de sua necessidade. Por fim, nos casos mais complexos, e somente nesses casos,
deve-se proceder à análise da proporcionalidade em sentido estrito. (SILVA, 2002, p. 34).

Por adequação entende-se que devem ser utilizadas medidas apropriadas para alcançar a
finalidade prevista no mandamento. Deve-se perguntar se o meio escolhido foi pertinente para
atingir o resultado almejado. Se não, desrespeitou-se o princípio da proporcionalidade e a escolha
será ilegítima. Exige-se, assim, que a opção adoptada seja apta a alcançar os objectivos pretendidos.
O aplicador da norma examinará se o meio é “simplesmente inadequado”, “objectivamente
inadequado”, “manifestamente inadequado ou desnecessário”, “fundamentalmente inadequado”, ou
se “com sua utilização o resultado pretendido pode ser estimulado” (MENDES; BRANCO, 2015, p.
332).

6
Em relação ao segundo subprincípio, a necessidade, exige-se que a decisão escolhida seja a
que produz menor prejuízo para o cidadão e para a colectividade, não podendo ser excessiva, nem
tampouco insuficiente. Nem de mais, nem de menos. Em outros termos, o meio não será necessário
se o objectivo almejado puder ser alcançado com a adopção de medida que se revele, a um só
tempo, adequada e menos onerosa (MENDES; BRANCO, 2015, p. 333). Um ato estatal que limita
um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objectivo perseguido não possa
ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o
direito fundamental atingido (SILVA, 2002, p. 38).

Em arremate, no tocante à proporcionalidade em sentido estrito, analisa-se as vantagens e


desvantagens que a medida trará. Lado positivo e negativo. Deve-se indagar se o benefício
alcançado com a adopção da medida sacrificou direitos fundamentais mais importantes do que os
que a medida buscou preservar. Não haverá proporcionalidade, na sua vertente estrita, se o que se
perde com a conduta é de maior relevo do que aquilo que se ganha (BARROSO, 2014, p. 375).

Assim sendo, forçoso concluir que, ainda que uma medida que limite um direito
fundamental seja adequada e necessária para promover outro valor constitucional, isso não
demonstra, por si só, que ela deve ser considerada como proporcional. Necessário é esse terceiro e
derradeiro exame, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito
fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que
fundamenta a adopção da medida restritiva.

Feitas essas ponderações sobre o princípio da proporcionalidade, passa-se a abordar a


inserção desse tema dentro do contexto ora investigado.

Para serem legítimas, as medidas de limitação de direitos devem manter congruência com
os motivos e fins que as justificam (MEDAUAR, 2018, p. 337). Será necessário que o Estado tenha
cuidado ao agir, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do
resultado pretendido pela lei (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 589). Como assevera José dos
Santos Carvalho Filho:

O princípio da proporcionalidade deriva, de certo modo, do poder de coerção de que


dispõe a Administração ao praticar actos de polícia. Realmente, não se pode conceber que a coerção
seja utilizada indevidamente pelos agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada
onde não houvesse necessidade. Em virtude disso, tem a doutrina moderna mais autorizada erigido
à categoria de princípio necessário à legitimidade do ato de polícia a existência de uma linha

7
proporcional entre os meios e os fins da actividade administrativa. (CARVALHO FILHO, 2017, p.
91).

Se o comportamento desrespeita o razoável, o resultado é que algumas pessoas são


prejudicadas pelo abuso de poder, demonstrando, assim, ofensa ao interesse público, alvo
pretendido pelo Estado. Exige-se adequação dos meios aos fins. Isto, ademais, não é novidade. É
velho e se conserva novo, actual, porque é indispensável à busca do equilíbrio entre o direito
individual e o interesse público (PIETRO, 2018, p. 85-86).

O direito administrativo foi concebido a partir de duas vigas-mestras: autoridade e


liberdade. A primeira é necessária de decorrência lógica do primado da supremacia do interesse
colectivo. Sem ela não há como vingar a ordem pública. Já a segunda, representa

o muro de contenção a impedir a ilegítima interferência do Estado na esfera individual.


Sem ela não se estabelece o Estado de Direito. A restrição administrativa que reprime direitos
públicos subjectivos não pode ultrapassar o necessário para a concretização do desejo social que
busca defender, haja vista que o objectivo não é reprimir os direitos dos cidadãos, ao revés, garantir
a sua fruição, adequando-o ao bem da sociedade.

A coerção das liberdades públicas somente poderá ocorrer para tutelar interesses
considerados maiores no caso concreto e exactamente no grau necessário ao atingimento da
finalidade pública, sempre atento à forma menos invasiva para o cidadão.

Ademais, pela excepcionalidade, o exercício da actividade oficial restritiva somente terá


espaço nos casos de perigo real de dano social. Por outras palavras, deve estar presente entre a
coibição e prejuízo impedido, refutando-se, assim, actos desproporcionais ou em desacordo com o
bem protegido. No que concerne à saúde, tem-se que se trata de preceito social fundamental
previsto especialmente nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988, que decorre
logicamente dos dois principais direitos do ser humano, a vida e a existência digna. Essa
constitucionalização consubstancia expressão do quilate jurídico que contempla a ordem social
numa época que a subjectivação se atrela à normatização, que apontam para a concretização de um
real Estado Democrático de Direito.

Incluído no rol de direitos denominados de segunda dimensão, essa prerrogativa


constitucional caracteriza-se por outorgar ao indivíduo acesso a prestações estatais, revelando-se
como transição entre as liberdades formais abstractas para liberdades materiais concretas (SARLET

8
2012, p. 47-48). Dispõe então, o direito humano supracitado, de uma dúplice vertente, sendo a
primeira negativa ou omissiva, em que o Estado deve abster-se de práticas que prejudiquem a saúde
do cidadão, e a segunda, positiva ou comissiva, que impõe ao Governo a adopção de acções que
visem garantir o antevisto direito social.

Como se observa, incumbe ao ente estatal a implementação de políticas públicas que


proporcione à pessoa o mínimo de bem-estar. Por outras palavras, a efectividade e concretização do
direito à saúde depende da vontade política dos dirigentes e da actuação proactiva da Administração
Pública.

Consoante lição de Canotilho, "as normas de direitos fundamentais à prestação são, em


rigor, normas programáticas, isto é: regras juridicamente vinculativas que podem obrigar a uma
'política' activa, sem, contudo, fundamentarem pretensões de prestação subjectivas" (CANOTILHO,
2003, p. 475).

Destarte, extrai-se do comando legal que o respeito à higidez física é um direito do


indivíduo e um dever do Estado, pois, sem saúde, a dignidade e a vida, são ofertadas pela metade, o
que se perfaz inconcebível e intolerável perante a actual posição que esse considerável postulado
ocupa na moderna escala valorativa normativa.

Sendo protecção à saúde um interesse público e obrigação do Estado, logo, poderá ser
objecto de exercício do poder de polícia. Ademais, a vigilância epidemiológica, definida pela Lei n°
8.080/90 como “um conjunto de acções que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção
de qualquer mudança nos factores determinantes e condicionantes de saúde individual ou colectiva,
com a finalidade de recomendar e adoptar as medidas de prevenção e controle das doenças ou
agravos” decorre da obrigação constitucional de protecção à saúde (BRASIL, 1990, §2º do art. 6º).

Com efeito, condutas estatais restritivas de direitos fundamentais com base na prevenção e
contenção de epidemias podem ser adoptadas. Foi o que ocorreu no Brasil em 2006, diante
proliferação do mosquito transmissor da dengue, em que a União lançou e pôs em prática o
Programa Nacional de Controle da Dengue5, que dava amparo legal à execução das acções de
campo – imóveis fechados, abandonados ou com acesso não permitido pelo morador.

No caso específico da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), o Governo Federal,


escorado no interesse social, tem editado actos normativos7 que estabelecem medidas necessárias
para enfrentamento da doença. Essa conduta vem afectando vários direitos individuais8. Sem

9
adentrar no mérito das anunciadas restrições − diante da ausência de dados técnicos sobre a
enfermidade e em face do exíguo tempo transcorrido desde o seu aparecimento, verifica-se que esta
actuação de poder público é juridicamente possível, por estar fundamentada na lei e no bem estar
social, mas apenas será considerada legítima se observar os limites acima despendidos,
notadamente o princípio da proporcionalidade, medida suprapositiva das condutas do poder
executivo, que proíbe o excesso e preconiza a conformação entre os meios e os fins.

10
3. CONCLUSÃO

Diante do discutido, foi constatada a possibilidade de restrição ao direito fundamental de


locomoção sem que necessariamente seja a medida administrativa eivada por autoritarismo. No
discorrer do trabalho, foram analisadas as origens do poder de polícia, marcado por esforços
contínuos em afastar sua característica primordial e substituí-la por bases de legitimidade.

Em seguida, foi estudada a relação entre as medidas policiais e os direitos fundamentais,


abordando as áreas inalcançáveis e as possibilidades de intervenção para harmonizar a coexistência
destes com outros semelhantes e mesmo com interesses colectivos. A actuação do direito
administrativo durante as situações de emergência e excepcionais também foi analisada. Visitadas
as primeiras doutrinas a abordarem o assunto, entendeu-se pelas conclusões mais modernas que
propõem a existência de regime jurídico próprio em épocas imprevisíveis. Tal regime é
necessariamente temporário e com requisitos preestabelecidos.

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4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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