Pierre Clastres Arqueologia Da Violencia
Pierre Clastres Arqueologia Da Violencia
Pierre Clastres Arqueologia Da Violencia
arqueologia da violência
2 INTRODUÇÃO
PIERRE CLASTRES
arqueologia da violência
pesquisas de antropologia política
Tradução Paulo Neves
Prefácio Bento Prado Jr.
Posfácio Eduardo Viveiros de Castro
7 PREFÁCIO (por Bento Prado Jr.)
CAPÍTULO 1
27 O último círculo
CAPÍTULO 2
53 Uma etnografia selvagem
CAPÍTULO 3
65 O atrativo do cruzeiro
CAPÍTULO 4
75 Do etnocídio
CAPÍTULO 5
89 Mitos e ritos dos índios da América do Sul
CAPÍTULO 6
135 A questão do poder nas sociedades primitivas
CAPÍTULO 7
145 Liberdade, Mau encontro, Inominável
CAPÍTULO 8
163 A economia primitiva
CAPÍTULO 9
185 O retorno das Luzes
CAPÍTULO 10
197 Os marxistas e sua antropologia
CAPÍTULO 11
215 Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas
CAPÍTULO 12
255 Infortúnio do guerreiro selvagem
1. Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado [1], trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac
Naify, .
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Pierre Clastres, o respeito pelo mestre da etnologia francesa não o con-
duzia a uma denegação do passado ou da ilosoia: a prática da análise
estrutural não interrompeu o convívio, por exemplo, com a ilosoia
alemã. Caso raro, para quem se lembra da atmosfera intelectual da
época, quando o “estruturalismo” (o efeito ideológico ou mundano da
análise estrutural) se apresentava como uma espécie de Juízo Final da
Razão, capaz de neutralizar todas as ambiguidades da História e do Pen-
samento. Se não me falha a memória, no início dos anos , mesmo du-
rante sua dura convivência com os “primitivos” do Paraguai, Clastres
não interrompeu sua meditação a respeito da Carta sobre o humanismo
e dos Ensaios e conferências de Heidegger. Herético de primeira hora, e
no momento mais vigoroso e dogmático da vaga “estruturalista”, não
hesitava em vislumbrar, na hegemonia dos modelos linguísticos na prá-
tica das ciências humanas, algo como um eco da hegemonia do Logos,
da ideia de que “a linguagem é a mansão do Ser” e de que o Homem
“habita a linguagem”. Para a ortodoxia da época, docemente positivista,
mais que heresia, tal sintonia seria perigoso sintoma de “irracionalismo”
ou obscurantismo.
Avesso, assim, ao cientiicismo do tempo, é compreensível que
Pierre Clastres se distanciasse desde sempre da vertente puramente
formalista por onde deslizava então boa parte dos discípulos de Lévi-
-Strauss. Mas essa heresia primeira não se fundava apenas numa ques-
tão de gosto ilosóico ou, mais simplesmente, de uma opinião externa à
prática cientíica. Detenhamo-nos, por um instante, no belíssimo ensaio
“La Philosophie de la cheferie indienne” [A ilosoia da cheia indígena],
publicado em 1, acessível ao leitor na edição brasileira de A socie-
dade contra o Estado, que exprime exemplarmente o primeiro momento
da obra. O texto nos importa porque, sendo ponto de partida, revela
com clareza o ponto de heresia que começamos a descrever: esse clina-
men, cujo último resultado é o presente volume e a forma que o anima.
Não é apenas a presença da palavra ilosoia no título (e que, no entanto,
tem história), nem a ausência de qualquer algoritmo ao longo do texto,
que nos interessam no momento (embora uma e outra coisa não sejam
indiferentes na deinição de um estilo). O que nos interessa nesse en-
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saio, que alcançou grande notoriedade logo após sua publicação, é o
modo pelo qual ele põe em xeque a transparência da troca e da comuni-
cação como regra de constituição da sociedade. Não cabe, aqui, resumir
esse texto mais que conhecido, mas sublinhar a maneira sutil pela qual
o autor mostra como o exercício do poder nas sociedades primitivas
introduz um mínimo de obscuridade na clareza da pura reciprocidade.
O problema é o do chefe, sujeito de um poder sem eicácia e de um
discurso sem interlocutores. Nesse ponto crítico, uma sociedade que se
desdobra segundo o esquema da reciprocidade encontra sua sombra ou
seu negativo: o lugar onde se interrompe qualquer comunicação. E, no
entanto, esse negativo possui substância, já que é indispensável à cos-
tura da sociabilidade. A lição que daí se tira é a seguinte: não basta cons-
truir os modelos da troca para captar o ser dessa sociedade. Para tanto,
é preciso captar algo como uma intencionalidade coletiva, mais profunda
do que as estruturas que a exprimem, a qual funda justamente uma so-
ciabilidade que cerca o poder como negativo, para prevenir sua separação
do corpo social, assim como é capaz de transformar a linguagem (que
era signo) em valor. Desde o primeiro momento, ontologia do social e
relexão sobre o Poder estão intimamente associadas.
Mas, com essa decisão teórica, não é apenas o famoso império da
“estrutura” que entra em crise, pois, com ele, é o io diacrônico das “i-
losoias da história” que sofre um grande abalo. Não é paradoxal, com
efeito, que uma sociedade se organize para impedir o nascimento de
uma igura que ela desconhece? O tempo, tal como nós o representamos
comumente, não é severamente subvertido? Presente, Passado, Futuro
dão cabriolas e parecem embrulhar-se de maneira incompreensível. Mas,
simpliiquemos e datemos: é no im da década de e no começo da
seguinte que Pierre Clastres abre o segundo momento de seu itinerário.
É aí que começa a tirar os efeitos teóricos mais gerais de seus primeiros
trabalhos e passa da pura etnologia para aquilo que poderíamos chamar
de crítica da etnologia. As chamadas ciências humanas pensariam, hoje,
as sociedades primitivas de modo diverso da ilosoia clássica? De fato, a
metafísica clássica (e as ciências humanas dela dependentes) habituou-
-nos a pensar o tempo como linear e a história como cumulativa: ima-
Prefácio 11
ginemos uma linha ascendente, que conduz do menos ao mais, do nada
ao ser, do possível ao real. Já Bergson denunciava uma coisa e outra,
particularmente em sua bela crítica da ideia do nada e da ilusão retros-
pectiva. Decifrar o passado como um presente incompleto é descrever o
passado como perfurado pelos alvéolos do nada, diria Bergson. Não é
muito diferente o que diz Clastres a respeito da representação dominante
das sociedades sem Estado: esse organismo que abriga, em seu interior,
o volume de uma pura ausência. Mas será bem assim, ou tal proposição
deriva da ilusão retrospectiva e das miragens da ausência, fantasmas de
nosso pensamento? Ilusão retrospectiva, miragem da ausência, concepção
do Estado como destino da humanidade – todos esses pré-juízos estão
entrelaçados na representação tradicional do primitivo e da Razão, que
permanece viva em grande parte da etnologia, na ilosoia da história e
da política em nossos dias. Mas – esta é a insidiosa pergunta formulada
por Pierre Clastres – e se tentássemos pensar de maneira diferente? Por
que não pensar a sociedade primitiva em sua plena positividade, liberta
da relação linear que a condena ao seu outro ou a seu depois? Com essa
questão, o panorama problemático muda de igura: o que se descreve
como carência pode perfeitamente ser descrito como a autarquia de uma
sociedade indivisa. O nascimento do Estado não precisa necessariamente
ser considerado como a passagem do vazio ao pleno; pode ser visto,
mesmo, como queda, passagem da indivisão para a divisão.
. Cf. Claude Lefort, “Marx: de uma visão da história a outra”, in As formas da história. São
Paulo: Brasiliense, 1.
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veio a tornar-se única no marxismo hoje dominante. É o que transpa-
rece, por exemplo, no prefácio ao livro de Marshall Sahlins e nos vários
textos que polemizam de maneira tão alegre e cruel com os etnomar-
xistas. Ao contrário dessa visão, não é a divisão econômica que cria as
condições do poder separado; pelo contrário, é a emergência do Estado
ou da divisão social que desencadeia a Necessidade, destino e economia.
Eis, portanto, que este itinerário fecha seu círculo: saindo da ilosoia,
passando pelo trabalho etnográico de campo, lá descobrindo a articu-
lação entre a ontologia do social e a relexão sobre o Poder, ampliando
o alcance teórico do primeiro passo na direção de uma crítica das ciên-
cias humanas, somos devolvidos às questões fundamentais da ilosoia
política (em tempo, se Clastres era leitor de Heidegger, sempre foi leitor
atento da Filosoia do direito de Hegel e do Contrato social de Rousseau).
Antes mesmo da publicação, em 1, de A sociedade contra o Estado,
seus ensaios já haviam sido acolhidos como ponto de referência essen-
cial da ilosoia francesa. É o que eu podia perceber, acompanhando os
cursos das universidades de Paris, já em 1, antes talvez do que o pró-
prio Clastres, muito ocupado em seu trabalho solitário. Mas, repito, o
círculo se fecha com o terceiro momento da obra, e sua expressão exem-
plar é o texto sobre La Boétie, também presente neste volume. O Ino-
minável, expressão que igura no título desse ensaio, dá o que pensar.
Pois não é apenas a uma antropologia política que se chega ao im do
itinerário (ou ao reinício de uma perpétua reiteração), mas à imbricação
entre antropologia, política e metafísica – ou melhor, à arqueologia si-
multânea desses discursos, hoje dispersos. Se o etnólogo era obrigado a
abandonar sua sociedade, a exilar-se numa sociedade outra, para melhor
compreender a sua, o pensador, ao contrário do cientista, é obrigado a
desertar o pensamento político presente, buscar seu outro no passado,
para melhor assimilar aquilo que rumina no presente. Principalmente
se esse outro, como La Boétie, começa por colocar em questão a evidên-
cia que normalmente (dos clássicos aos contemporâneos) se via como
ponto de partida: o paradoxo, por ele formulado, da submissão como
objeto de desejo, e não como destino sofrido do exterior. Tarefa inútil,
Prefácio 13
talvez, para os cientistas políticos, para quem a política não oferece mis-
tério, mas indispensável para aqueles a quem a história contemporânea
obrigou a desconiar de suas mais caras certezas. O que é o Poder? Seria
esta uma pergunta vã?
Fixei três pontos e tracei uma linha, de maneira grosseira, como soem
fazer os leigos. Sobretudo não pude sequer evocar a isionomia viva do
autor e do homem livre que deixou passar por seu pensamento (não
recalcou) o horror dos dois “mundos” que dividem nosso planeta. Pelo
menos mostrei alguns dos momentos do impacto que o pensamento de
Pierre Clastres exerceu sobre seu amigo brasileiro.
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LEMBRANÇAS E REFLEXÕES SOBRE PIERRE CLASTRES:
ENTREVISTA COM BENTO PRADO JÚNIOR
Realizada em sua casa em São Carlos (sp), em julho de , por Piero
de Camargo Leirner e Luiz Henrique de Toledo,11 para a Revista de
Antropologia do Departamento de Antropologia Social da sp.
15
Professor, conte sobre seu encontro com os Clastres.
Na verdade, conheci Pierre antes de Hélène. Foi logo depois da volta
de minha primeira viagem à França, em 1. No segundo semestre
desse ano, Fernando Henrique me convidou à sua casa para que eu
conhecesse dois antropólogos franceses que passavam pelo Brasil em
direção ao Paraguai: Pierre Clastres e Lucien Sebag. Hélène icara
em Paris – ela aguardava, se a data acima está correta, o nascimento
de seu ilho Jean-Michel. Algum tempo depois (dois anos?), acom-
panhada de seu ilho, foi encontrar-se com Pierre entre os índios do
Paraguai, que deram ao menino o belo nome de Baimamá (pequena
coisa redonda).
Aliás, não é só a mim que falta a memória. Recentemente, para esta-
belecer alguns dados biográicos do autor para a nova edição de A sociedade
contra o Estado,2 a coordenadora telefonou-me perguntando a respeito de
datas: estadias no Brasil, cursos na sp etc. Telefonei para a Hélène em
busca de ajuda, mas seu auxílio foi muito pequeno. Os tempos passam…
De qualquer maneira, a partir da segunda estadia de Pierre no
Brasil, icamos muito próximos. Muitas manias, teóricas e outras, nos
eram comuns. Frequentemente, na rua Maria Antonia [no centro de São
Paulo], Pierre me perguntava: “Que horas são?”. E à minha resposta
acrescentava: “Il faut commémorer cela!”. Aprendi então algumas ver-
sões do ato da libação em argot, como: se jetter quelque chose derrière la
cravate ou se picrâter la cervelle.3 Em 1, quando fui cassado pelo ai-
e tive de retornar à França, acabei alugando um apartamento no limite
de Paris, entre Vanves e Issy-les-Moulineaux, bem perto do dos Clas-
tres, com quem mantive contínua e perfeitamente fraternal convivência
até agosto de 1. Para mim foi um profundo abalo saber, três anos
mais tarde, do acidente que o levou à morte. Naqueles anos chegamos
a passar (eu, Lúcia e nossos ilhos) três férias juntos: no Laric, num pe-
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queno castelo do século xvi nos Alpes [ver foto p. , supra], de proprie-
dade dos pais de Hélène; nas Cévennes, numa casa secundária de Pierre
e Hélène; e na Gasconha, em Boussens, na casa do pai de Clastres. É
curioso notar que Pierre, ino escritor, era gascão (como D’Artagnan) e
só veio a aprender o francês na escola.
. Texto de 1, publicado sob o título “Troca e poder: ilosoia da cheia indígena”, in
A sociedade contra o Estado, op. cit., cap. .
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O que mais me marcou na obra de Clastres foi o fato de sua ideia
central colocar em xeque uma espécie de “evolucionismo” implícito na
antropologia política, exemplarmente ilustrada, no século xix, pela ilo-
soia da história de Engels, que passou a fazer parte do abc do marxismo
ou, pelo menos, do marxismo vulgar.
Trata-se de uma relação com a ilosoia seguramente diversa da
que encontramos em Lévi-Strauss. Para este, passar para a antropolo-
gia era livrar-se de uma carga inútil. Para ele, a ilosoia sempre esteve
ligada à ilosoia praticada na universidade, ao vazio das “disserta-
ções”, em que é possível demonstrar tudo ou nada por meio de uma
dialética puramente abstrata – no fundo, mera retórica. Para Lévi-
-Strauss tudo se passa como se a ilosoia fosse essencialmente uma
ilusão, ou uma forma pobre do pensamento selvagem. É o que se pode,
talvez, vislumbrar num parágrafo muito curioso de O totemismo hoje.
Em certo momento desse livro, ele sublinha como alguns textos de
Bergson são esclarecedores para a compreensão da mitologia de uma
tribo indígena da América do Norte. Esclarecedores, por mostrar uma
ainidade profunda com essa mitologia. Bergson, penseur sauvage…
Sendo capaz de explicar a mitologia, o antropólogo explica também a
metafísica bergsoniana…5
No caso de Clastres, não encontramos nada de semelhante a essa
arrogante diminuição da ilosoia. Não tinha a pretensão de escrever
como ilósofo – ou, pelo menos, como ilósofo “proissional”, se tal
coisa existe. Mas sua prática da etnograia acaba por desaguar na re-
lexão ilosóica. É talvez por essa razão que a obra de Pierre, como a
de Hélène, está voltando a ser pontos de referência essenciais, como se
fosse necessário transcender, de algum modo, o estilo do “estrutura-
lismo”, para manter seu espírito mais vivo e assegurar sua permanência,
para além das ondulações supericiais dos maneirismos, da moda inte-
lectual ou da ideologia.
. Cf. Henri Bergson, Les Deux sources de la morale et de la religion [1]. Paris: pf, 1.
. Cf. “A sociedade contra o Estado”, in A sociedade contra o Estado, op. cit., cap.11, pp. -.
. Nicole Loraux, “Note sur l’Un, le Deux et le Multiple”, in M. Abensour, L’Esprit des lois
sauvages: Pierre Clastres ou une nouvelle anthropologie politique. Paris: Seuil, 1, pp. 1-.
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Teria havido uma influência dele sobre a filosofia que se fazia no Brasil naquela época?
Sua inluência no Brasil foi notável. Como já disse, fui muito sensível às
suas ideias e iz delas o uso de que fui capaz. Mas sobretudo me é possí-
vel, hoje, perceber retrospectivamente como sua inluência se alastrou
mais largamente. É clara para mim, agora, a forte inluência exercida
sobre colegas de meu departamento, em especial Marilena Chauí e Sér-
gio Cardoso (curiosamente, parece que os antropólogos da sp manti-
veram uma discreta distância em relação ao trabalho de Clastres).
Sua inluência tinha muito a ver com sua personalidade, seu estilo in-
quieto, uma espécie de anarquismo não somente pensado mas vivido. Sem-
pre foi muito avesso aos cerimoniais da universidade, mais chegado a um
boteco do que a um seminário formal. Estilo que convergia, aliás, com mi-
nhas preferências (lembro-me de ele me dizer em 1 ou no início de :
“O Fernando Henrique [Cardoso] e o [José Arthur] Giannotti não gostam
muito de boteco, não é?”. Ao que respondi: “Infelizmente não”).
. Cf. José Arthur Giannotti, Trabalho e relexão. São Paulo: Brasiliense, 1, p. 1:
“Muitas vezes Clastres faz mais metafísica do que teoria, toma a ótica do Ser abstrato, com a
simplicidade de quem come chocolate. Se existe metafísica em comer chocolate, para pensá-
-la convém lembrar que o chocolate precisa ser produzido antes de ser comido, e o Ser, um
conteúdo para ser efetivamente pensado”.
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ponder imediatamente. No dia seguinte, todo alegre, trouxe a resposta; a
palavra seria… “ni noticia”, e acrescentou: Guarani legítimo! O segundo,
a quem Clastres perguntara o nome de uma ave que sobrevoava a paisa-
gem, respondeu prontamente: “tatu”. Prelibava, certamente, os mal-en-
tendidos em que seu interlocutor se enredaria com esse uso extravagante
da língua indígena!
Outra situação pouco confortável era a das lutas com os Yanomami,
gente muito forte. Clastres também era forte e praticava caratê constan-
temente (pude vê-lo, nas férias que passamos juntos, exercitando-se em
quebrar tijolos e pedaços de madeira com a “lâmina” da mão, que era
sempre necessário enrijecer). Mas ele temia que, entre os Yanomami, o
bom esporte se tornasse luta real e – por que não? – mortal. Recorria en-
tão a um golpe infalível: fazia cócegas no adversário. Prática inédita que
desmontava os índios, que, morrendo de rir, interrompiam a peleja.
Ironia, talvez?
Ironia, certamente, e formidável piada, de um grande especialista nesse
gênero literário. Mas, também, enorme equívoco. Voltaire não podia
entender Rousseau, que airmava explicitamente que não se pode re-
gredir na História.
E o senhor acha que a experiência de campo foi muito transformadora para Clastres
em relação à sua pessoa?
Creio que sim. Basta pensar em seu itinerário: iniciou o curso de iloso-
ia em 1 e deve tê-lo terminado em 1, quando começou a assistir
às aulas de Lévi-Strauss e interessar-se mais pela antropologia. Vejamos
as datas [apanha um exemplar de A sociedade contra o Estado e passa
em revista as datas e os dados biográicos]: “[…] Durante as aulas de li-
cenciatura começa a interessar-se por estudos etnológicos, seguindo o
curso de Lévi-Strauss no Collège de France a partir de 1”.10 Pro-
vavelmente assistimos juntos às aulas de Lévi-Strauss no ano letivo
de 1-. Não me lembro dele nas aulas, nem seria possível lembrar.
Recordo que frequentei o curso ao lado do Fernando Henrique e do
Giannotti. Essas aulas eram assistidas por umas cem pessoas, mais ou
menos. [Continua lendo] “Em defende sua tese de doutorado ‘Vida
social de uma tribo nômade – os índios Guayaki do Paraguai’.” A tese
. Cf. Crônica dos índios Guayaki [1]. São Paulo: Editora , 1.
1. P. Clastres, A sociedade contra o Estado, op. cit., p. .
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se transformaria em seu primeiro livro. Note-se que entre o começo do
interesse pela antropologia e a redação desse excelente livro medeiam
apenas cinco anos. É a história de uma conversão, de uma mudança de
hábitos que não são apenas intelectuais, mas que atingem a carne da
vida cotidiana na sua totalidade. Provavelmente essa conversão não foi
tão difícil, porque aparentemente ele sempre havia sido algo rebelde
diante das regras que governam nosso cotidiano. Estava de algum modo
preparado para uma conversão que não foi apenas do olhar ou da teo-
ria, mas uma transformação de seu próprio modo de viver, na sua mais
trivial materialidade. Certa vez falou-me, por exemplo, sobre a diicul-
dade que tinha no Paraguai, logo de início, em simplesmente dormir. Em
noites de frio mais intenso, os índios dormiam em volta da fogueira sem
a menor diiculdade, pois giravam espontaneamente o corpo de maneira
a aquecê-lo de todos os lados, como um frango no espeto de um grill
elétrico. Mas ele acordava constantemente, semiassado de um lado e
gelado do outro. Só aos poucos aprendeu a técnica do que poderíamos
chamar de “sono giratório”. Como se vê, tornar-se etnógrafo implica,
entre outras coisas, drásticas transformações de nossas inconscientes
“técnicas corporais”. Sem esquecer que Pierre efetivamente aprendeu
a “andar na loresta”. Depois desse aprendizado (que nos faz lembrar
do aprendizado dos “adventícios”, que se tornavam “bandeirantes” ao
indianizar-se, mudando o modo de pisar, conforme a descrição de Sér-
gio Buarque de Holanda11), acometido de forte malária, foi capaz de
caminhar mais de quilômetros através da loresta, para buscar o ne-
cessário atendimento médico no mundo urbano.
Por isso podemos até evocar essa inspiração maussiana em seu trabalho de campo.
Ele se aproxima muito mais do refinamento etnográfico maussiano do que do for-
malismo derivado da obra de Lévi-Strauss.
Certamente. Ele teve uma experiência de campo, de pura etnograia,
muito mais extensa do que a do próprio Lévi-Strauss, não?
11. Cf. Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras [1]. São Paulo: Companhia
das Letras, 1, cap. 1.
Mudando um pouco de foco, é interessante como ele faz da guerra um fator positi-
vo, tal como fica marcado em seus últimos escritos. A guerra é tomada a partir,
digamos, de sua contrapartida mais positiva para a sociedade.
Eu precisaria reler esses últimos textos. Mas posso dizer como ele
me apresentou a coisa. Falando dos Yanomami, dizia: aí temos uma
sociedade composta de várias tribos, dividida no meio pela linha
que separa amigos e inimigos, uma sociedade estruturada, enim, em
torno da Guerra. O que me lembro é que, segundo Clastres, o coe-
iciente de violência envolvido na guerra era quase igual a zero. As
aldeias eram cercadas por paliçadas altas e as incursões guerreiras
consistiam em raras iniciativas de poucos heróis que, durante a noite,
lançavam algumas lechas por sobre a paliçada, atingindo eventual
ou acidentalmente alguma criança ou algum animal, ferindo o om-
bro de um ou outro guerreiro que vagueasse pela noite. E, logo em
seguida, os atacantes fugiam o mais rápido possível para suas aldeias.
A violência eclodia, por assim dizer, fora da Guerra. E ela ocorria nas
festas em que uma tribo recebia outra, sua aliada, para uma confra-
ternização; sobretudo quando os convidados eram aliados distantes.
Como se o aliado mais distante fosse, mais que o inimigo, o ver-
dadeiro objeto da violência social. Algumas vezes (necessariamente
raras), em meio à festa, os convidados eram atacados; os homens
massacrados e as mulheres e crianças sequestradas. A violência era
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enorme, mas muito pouco frequente, pois de outro modo o sistema
não funcionaria, proibindo qualquer forma de aliança. Ela eclodia,
repito, entre aliados distantes, mas sempre aliados, como sempre
ocorreu na nossa Esquerda: o principal inimigo não é exatamente
a Direita, mas aquele que está à sua esquerda ou à sua direita dentro
da própria Esquerda, embora hoje utilizemos pouco as lechas e os ta-
capes [risos]. Assim, a violência é controlada e reduzida, mas jamais
eliminada, como seria o caso numa visão idílica e nostálgica (“idea-
lista”) da sociedade primitiva.
Tenho a impressão de que ele se aproximava de uma espécie de ar-
queologia da Guerra quando a morte interrompeu seu itinerário. Since-
ramente baseio-me mais em nossas conversas. Mas, se você me pergun-
tar como e onde termina a relexão de Pierre Clastres sobre a violência
e a política, responderei simplesmente: não sei.
Adeus viagens,
Adeus selvagens…
c. lévi-strass
“Escuta! É a corredeira.”1
A loresta ainda não permite ver o rio, mas o rumor das águas cho-
cando-se contra as grandes pedras se faz ouvir nitidamente. Quinze ou
vinte minutos de marcha e alcançaremos a piroga. Já não é sem tempo.
Um pouco mais e eu acabaria minhas cabriolas rente ao chão, com a
cara na lama, rastejando no húmus que sol nenhum jamais seca como
Molloy…2 Ainda que imaginá-lo na Amazônia seja meio difícil.
Há cerca de dois meses, Jacques Lizot e eu circulamos pelo ex-
tremo sul da Venezuela, no território dos índios Yanomami, ali conhe-
cidos pelo nome de Waika. Sua região é a última inexplorada (inexpug-
nada) da América do Sul. Beco sem saída tanto do lado venezuelano
como do lado brasileiro, essa parte da Amazônia opõe até hoje uma sé-
rie de obstáculos naturais à penetração: loresta ininterrupta, rios que
deixam de ser navegáveis quando nos aproximamos de suas nascentes,
afastamento de tudo, doenças, malária. Tudo isso é pouco atraente para
colonizadores, mas muito favorável aos Yanomami, que são a última so-
ciedade primitiva livre, na América do Sul com certeza e provavelmente
também no mundo. Quanto aos responsáveis políticos, aos homens de
empreendimento e inanças, estes se entregam cada vez mais à imagi-
nação, como os Conquistadores de quatro séculos atrás, e creem adivi-
nhar, nessa parte desconhecida da América do Sul, um novo e fabuloso
Eldorado, onde se encontrará de tudo: petróleo, diamantes, minérios
raros etc. Até que isso ocorra, os Yanomami permanecem os senhores
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exclusivos de seu território. Atualmente, muitos deles, como se dizia há
pouco, nunca viram brancos, e há apenas vinte anos quase todos igno-
ravam inclusive a existência dos Nabe. Inacreditável fortuna para um
etnólogo. Lizot estuda esses índios, já esteve com eles dois anos, que
não foram de repouso, fala perfeitamente sua língua e inicia agora uma
nova temporada. Eu o acompanho por alguns meses.
Passamos a primeira quinzena de dezembro fazendo compras em
Caracas: motor para a piroga, fuzil, alimentos, objetos de troca com os
índios, como facões, machados, quilômetros de linha de pesca de náilon,
milhares de anzóis de todos os tamanhos, pacotes de caixas de fósfo-
ros, dezenas de carretéis de io de costura (utilizado para prender as
plumas à lecha), o belo tecido vermelho que os homens utilizam para
suas tangas. De Paris, trouxemos uns dez quilos de iníssimas pérolas
negras, brancas, vermelhas e azuis. Como me surpreendo com as quan-
tidades, Lizot comenta brevemente: “Você vai ver. Isso desaparecerá
mais depressa do que imagina”. De fato, os Yanomami são grandes con-
sumidores, temos que aceitar esse fato se quisermos não apenas ser bem
acolhidos, mas simplesmente acolhidos.
Um pequeno bimotor do exército nos transporta. O piloto não quer
levar todo o nosso carregamento, por causa do peso. Abandonamos então
os alimentos. Dependeremos dos índios. Quatro horas mais tarde, após
ter sobrevoado a região das savanas e o começo da grande loresta ama-
zônica, aterrissamos mil e duzentos quilômetros ao sul, na pista da missão
salesiana estabelecida há dez anos na conluência do Ocamo e do Orinoco.
Breve parada, o tempo de saudar o missionário, um gordo italiano jovial e
simpático com barba de profeta; carregamos a piroga, o motor é ixado e
partimos. Quatro horas de piroga a montante.
É preciso celebrar o Orinoco? Ele merece. Mesmo próximo de sua
nascente, não é um jovem, mas um velho rio que faz rolar sem impa-
ciência, de meandro em meandro, sua força. A milhares de quilômetros
de sua foz, ele permanece ainda muito largo. Sem o ruído do motor e da
passagem do líquido sob o casco, nos acreditaríamos imóveis. Não há
paisagem, tudo é semelhante, cada lugar do espaço é idêntico ao pró-
ximo: a água, o céu e, nas duas margens, as linhas ininitas de uma lo-
32 CAPÍTULO 1
resta planetária… Não tardaremos a ver o interior de tudo isso. Gran-
des aves brancas decolam das árvores e voam em grupo diante de nós,
estupidamente; por im, elas compreendem que é preciso virar de bordo
e passam para trás. De vez em quando algumas tartarugas, um jacaré,
uma grande arraia venenosa confundida com o banco de areia… Não
muito mais. É durante a noite que os animais surgem.
Crepúsculo. Da imensidão vegetal emergem colinas dispostas
como pirâmides. Os índios nunca as escalam: lá residem enxames de
espíritos hostis. Ultrapassamos a embocadura do Mavaca, aluente da
margem esquerda. Algumas centenas de metros ainda. Uma silhueta
corre pela alta ribanceira, agitando um tição, e agarra a corda que lhe
lançamos: chegamos a Mavaca, entre os Bichaansiteri. Lizot construiu
ali sua casa, muito próxima do chabuno (casa coletiva). Cordialidade do
reencontro entre o antropólogo e seus selvagens; visivelmente os índios
estão felizes de revê-lo (na verdade, ele é um branco muito generoso).
Uma questão é logo resolvida: sou o irmão mais velho… Na noite já se
ouvem os cantos dos xamãs.
O último círculo 33