IRDI Kupfer
IRDI Kupfer
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Resumo IRDI: UM INSTRUMENTO
Este artigo relata a história
da proposta e da validação QUE LEVA A
do instrumento Indicadores de
Risco para Desenvolvimento PSICANÁLISE À POLIS
Infantil (IRDI), composto de
31 indicadores clínicos de refe-
rência para o acompanhamento
de problemas ou entraves no Maria Cristina Machado Kupfer
desenvolvimento psíquico de
crianças de zero a dezoito meses.
Leda Mariza Fischer Bernardino
Aborda as discussões geradas no
interior do campo psicanalítico
em torno da criação daquele
instrumento e da promulgação
da Lei nº 13.438, examinando
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p62-82.
criticamente as objeções a esta
levantadas por psicanalistas e
técnicos do Ministério da Saúde.
Finaliza com propostas de refor-
mulação de alguns pressupostos A história dos IRDI
do IRDI e de manutenção de
outros, passados quase vinte anos
desde sua criação.
Descritores: psicanálise; indi-
cadores clínicos; desenvolvimento
E m 1998, Josenilda Caldeira Brant (já
falecida), na época consultora da área da Saúde
psíquico. da Criança, do Ministério da Saúde (MS), e Maria
Eugênia Pesaro, técnica da mesma área naquela
ocasião, procuraram Maria Cristina Kupfer, docente
do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (IPUSP), com um intuito preciso. Ambas
iniciavam a revisão de um manual – Saúde da criança:
acompanhamento para o crescimento e desenvolvimento infan-
til (Brasil, 2002) – e interessavam-se em incluir nele
indicadores de desenvolvimento psíquico.
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desenvolvimento psíquico está cres- se os indicadores têm ou não valor
cendo de modo significativo. Brant preditivo, e sim o quanto podem guiar
já havia aberto no manual um capí- a leitura dos bebês e a sinalização de
tulo especial para essa área e, em que uma desconexão entre o bebê e
2005, Ana Cecília Sucupira, na época seus pais pode estar ocorrendo, o que
coordenadadora da área de Saúde da justifica uma intervenção a tempo e
Criança do Ministério da Saúde, tam- não o estabelecimento de um diagnós-
bém incluiu na caderneta o capítulo tico. Mas o GNP sabia da importância
“Desenvolvendo-se com afeto”, no de seguir os critérios de uma pes-
qual o espírito dos Indicadores de quisa dita científica pela ciência hoje
Risco para Desenvolvimento Infantil dominante para fazer valer os IRDI
(IRDI) já estava presente2. e permitir sua inclusão nas práticas
Agora, em 2017, pelo menos seis de saúde de nosso tempo. Isso foi o
indicadores inspiraram o texto sobre que aconteceu em 2017, quando o
desenvolvimento dirigido às mães3. grupo responsável pela construção
Foram necessários dezessete anos da caderneta3 incluiu apenas o mate-
para que o Ministério da Saúde fizesse rial oriundo de pesquisas validadas e
valer o investimento feito em 2000, e o publicadas em veículos acadêmicos de
IRDI passasse a integrar uma política excelência , estando então a pesquisa
pública no Brasil. IRDI habilitada a ser considerada.
A ideia de risco também não é
própria à psicanálise, mas está pro-
Por que e como foram fundamente presente na semiologia
feitos os IRDI pediátrica. Falar de risco não é psica-
nalítico, mas falar de risco é essencial
do ponto de vista da saúde pública. O
Todo o conhecimento de que GNP nunca desconsiderou essa dissi-
se servem os técnicos do MS para metria, e nunca reduziu sua pesquisa
orientar políticas públicas precisa à validação de um instrumento de
vir chancelado pelo selo da pesquisa detecção de risco. Sabia, ao contrário,
empírica, experimental e feita com que sua validação, longe de trazer
populações. A experiência teórica e uma certeza – nunca dissemos que
clínica da psicanálise, contudo, não os indicadores preveem seguramente
se adequa a nenhum desses critérios. problemas ulteriores – abriria portas
Para ser levada em conta nos manuais à consideração da vida psíquica dos
e normas do MS, a pesquisa IRDI bebês e do sofrimento que poderia
precisou então segui-los: foi expe- advir da presença de desconexões
rimental, quantitativa e considerou com seus cuidadores. Era apenas isso.
uma amostra de 700 crianças. Para A seleção de 31 indicadores e
um psicanalista, não está em questão a realização da pesquisa resultaram
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O IRDI é também um roteiro de trabalho. Ele indica
nortes de leitura, ajuda a ver o que é tão difícil de ver e
de acompanhar: um sujeito nascendo. Busca reintroduzir
nas práticas de nosso tempo o sujeito excluído da ciência.
Para isso, o IRDI força a barra, como disse Dominique
Fingermann (2015) em um debate em torno da pesquisa,
de um diálogo com a Ciência, na tentativa de subverter
essa exclusão.
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O segundo argumento é o perigo redes sociais, a Lei foi atacada por ser
de judicialização que uma Lei como a patologizante, medicalizante e por
nº 13.438 pode provocar. Um pediatra aumentar o número de falsos positivos.
pode ser processado porque não pre- Esses são perigos que o GNP
viu, por exemplo, o autismo de uma reconhece como reais. O problema
criança de um ano que acabou sendo não está nesses argumentos farta-
diagnosticado apenas aos três. mente conhecidos, mas nas confusões
O terceiro argumento do MS cometidas pelos atacantes.
mostra o descalabro com que a O grupo confundiu seus inimi-
Lei tramitou. Seus propositores gos. Supondo que o GNP estava
em Brasília não levaram em conta em acordo com as forças políticas
todo um projeto de saúde brasileiro reacionárias atualmente em ação no
orquestrado pelo SUS, e não se arti- país, o grupo atacante julgou que seus
cularam com uma política pública de colegas precisavam ser atacados publi-
saúde pensada de modo global. A camente e supôs, de modo leviano,
Lei foi proposta como o são quase que haviam proposto a lei para dela
todas as leis brasileiras: a partir de auferir ganhos financeiros. Dividiu
uma iniciativa isolada. E quando o forças em uma guerra fratricida, e
MS foi consultado, seu parecer foi diminuiu a força do GNP, já reduzida,
negativo (pelas razões anteriormente de interferir, com a psicanálise, nas
elencadas). Diante desse resultado, a políticas públicas do MS. Foi um tiro
tramitação saiu do âmbito do MS e no pé, como disse Leda Bernardino.
prosseguiu no Ministério da Justiça, Vejamos, uma a uma, as críticas
razão pela qual a Lei foi assinada levantadas contra o IRDI.
pelo ministro da Justiça e não pelo
da Saúde. Como se não bastasse, não
passou por consulta pública, o que é Críticas ao tratamento
obrigatório em qualquer tramitação estatístico generalizante
de lei no país.
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nefastos (Guarido, 2007; Kammers, 2015). O saber dos pais e da
cultura diante das dificuldades inerentes à vida é substituído pelo
conhecimento da medicina, conhecimento esse no qual a noção de
sujeito não está incluída. Assim, as manifestações que podem ser
imputadas à presença de um sujeito são reduzidas a funcionamentos
neuroquímicos e, portanto, combatidas por meios farmacológicos.
O que há de medicalizante no IRDI? Em que esse instrumento
transforma a vida dos bebês em desordens neuroquímicas?
O instrumento IRDI não é medicalizante porque não transforma
bebês em incubadoras, em germem de doenças futuras. Ao contrário:
ao dar oportunidade, quando necessário, a uma intervenção a tempo,
chama pais e bebês à vida, ao contato e à manifestação do desejo, o
que é contrário à medicalização da infância.
O IRDI, se bem aplicado, não aumenta a quantidade de falsos
positivos. Ao contrário: pode ajudar a diminuir o enorme movimento
da medicina, já em curso, de patologização e de medicalização da
infância. O IRDI permite que algumas crianças sejam desviadas do
curso a que já estão condenadas. Como a resistência francesa fazia,
ao desviar trens carregados de judeus do curso que teriam tomado
em direção aos campos de concentração.
Muitas crianças sinalizadas podem apresentar indicadores ausen-
tes em função da precariedade social de suas famílias – neste caso,
um assistente social sendo acionado, e a situação precária da família
se modificando, rapidamente a criança retoma o andamento de sua
constituição psíquica!
Cabe aos criadores do IRDI zelar para que ele seja bem transmitido
e bem aplicado. Se, porém, isso não puder ocorrer e o IRDI for mal
aplicado, o cenário que já está em curso em nada mudará. Vale a pena,
então, correr o risco de o esforço com o IRDI não dar resultados tão
bons como os esperados – formação adequadamente transmitida,
uso criterioso do instrumento e cuidado para não fechar diagnósticos.
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esclarecer essa articulação e mostrar ser operados fora do setting tradicio-
sua pertinência, deve-se apresentar nal, desde que sustentados pela ética
brevemente uma noção psicanalítica psicanalítica e pela produção posta à
de educação, sem a qual esse articu- prova ao ser apresentada à comuni-
lação não se sustenta. dade” (Bernardino, 2017, p. 33), o que
Do ponto de vista da psicanálise, a os pesquisadores fizeram a cada nova
educação é muito mais do que adestra- etapa da pesquisa, levando à discussão
mento e transmissão de informações. em colóquios e congressos nacionais e
A educação é o processo pelo qual um internacionais os impasses e achados,
sujeito se constitui. Assim, educar é fun- buscando essa interlocução.
dar um sujeito. Mas nas psicopatologias
da primeira infância, um sujeito não
poderá advir ou encontrará obstáculos Em relação aos ganhos
para o seu advento. financeiros do grupo IRDI
Se nas psicopatologias da pri-
meira infância está comprometida a
emergência de um sujeito, se educar Quem ganha com a adoção do
é o processo pelo qual este se consti- IRDI em equipamentos de saúde
tui, então a educação e o tratamento pública? Perguntam os detratores do
convergem: tratar é educar; educar IRDI. A resposta é simples: sendo de
é tratar. livre acesso, o IRDI é gratuito. Então
Graças ao modo de entender edu- o grupo GNP poderia ganhar com
cação da perspectiva da psicanálise, capacitações?
conjuga-se tratar com educar (Kupfer, Sim, os psicanalistas que criaram
2000). Conjuga-se prevenir e/ou tra- o IRDI podem receber pelos cursos
tar com promover saúde ou educar. que fizerem. Tanto quanto qualquer
Estamos aqui articulando: pre- psicanalista que, ao divulgar a psica-
venção, quando intervimos a tempo; nálise, cobra por esses cursos. Se isso
e promoção, quando procuramos for condenável, conclamamos então
condições de subjetivação, ou seja, de todos os psicanalistas a fazer gratui-
uma educação que dê lugar ao sujeito tamente qualquer curso que divulgue
e seu dizer. a psicanálise.
Prevê-se o sujeito para que ele Essa questão, de fato, está mal
possa advir. O sujeito precisa ser ante- colocada; o importante é lutar para
cipado, pré-vindo, além de “pré-visto” que o poder público providencie
e “pré-dito”, no campo do Outro cursos em que a dimensão do desen-
(Motta, 2002). volvimento psíquico seja incluída. E
“Atos sustentados pela aborda- que as especializações dos médicos
gem psicanalítica, como a detecção em pediatria incluam esse tema
muito cedo ou a prevenção, podem como de relevância e concernindo
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dividem em grupos que pensam a as operações psíquicas de causação
estrutura como definida desde muito do sujeito (alienação e separação) –
cedo, por operações lógicas que não entendidas como operações lógi-
precisariam do desenvolvimento para cas – se entrecruzam com o tempo
ocorrer; e grupos que concebem, na maturativo e do desenvolvimento.
infância, um entrecruzamento entre Da mesma forma, a operação edípica
estrutura e desenvolvimento. Os (outra operação lógica de constituição
integrantes do GNP, em sua maioria do sujeito) só poderia ocorrer num
(já que nem todos eram lacanianos e segundo tempo e é dependente de
alguns eram originários de escolas do condições cognitivas e desenvolvi-
primeiro grupo aqui citado), são par- mentais da criança para chegar às suas
tidários do segundo grupo, composto consequências estruturais. E, ainda, é
por psicanalistas com extensa clínica necessário o tempo da adolescência,
com bebês e crianças pequenas e com entendido primordialmente como
trabalhos clínicos e teóricos sobre, por operação psíquica – mas que requer
exemplo, a mudança de encaminha- o desenvolvimento e a puberdade
mento estrutural no tempo da infân- biológica como seus disparadores –,
cia, tendo em vista a maleabilidade para confirmar a inscrição ou não de
psíquica das crianças (Jerusalinsky, mecanismos psíquicos estruturais.
1993; Bernardino, 2004). Para esse Todo esse processo, evidentemente,
grupo, a consideração do tempo do o sujeito não o vive sozinho, mas
desenvolvimento é importante, já depende dos interlocutores que
que a criança terá de se constituir encontra em cada uma destas encru-
como sujeito, ou seja, a instalação do zilhadas nas quais, como diz Lacan em
sujeito psíquico se dará no decorrer O seminário 4 (Lacan, 1995), o sujeito
de sua evolução maturativa e desen- já não é mais quem pensava que era,
volvimental, considerando ainda que mas ainda não sabe quem poderá ser –
esta instalação ocorre em relação a tornando, nesse sentido, o trabalho
uma estrutura de Linguagem e que a transferencial do psicanalista uma
relação da criança com a linguagem abordagem fundamental quando há
depende de sua maturação e de seu risco de um sujeito não surgir e não
desenvolvimento. É esse raciocínio comparecer com seu dizer.
que embasa a importância da detecção Temos uma referência, entre
de sinais de risco, bem como a inter- outras, muita clara na obra de Lacan
venção a tempo, considerada essencial ao desenvolvimento. Trata-se do
para que a relação da criança com a Seminário 8, quando aborda a questão
linguagem enquanto estrutura possa das inscrições primordiais, em que
ocorrer, aproveitando sua condição textualmente ele afirma: “Isso se passa
gerúndio de formação psíquica e sua no desenvolvimento, não duvido. Não
abertura às inscrições. Nesse sentido, é uma etapa lógica, mas uma etapa do
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garantir que um sujeito advenha para poder dizer-se, seja
qual for seu destino, digamos, psicopatológico.
Se levado às creches, o que importa é valorizar o
ato educativo subjetivante do professor, e reintroduzir
o sujeito, que está excluído das práticas científicas atuais.
Mas também na creche poderá haver “tratamento”,
quando o IRDI acompanha um professor que se coloca
e é colocado como um Outro, e assim previne a tempo “a
instalação de defesas maciças de proteção do psiquismo
em risco” (Bernardino & Mariotto, 2010). Os IRDI nas
creches são uma forma de trazer o sujeito de volta ao seio
do ato educativo. Ele sempre esteve lá, mas a contempo-
raneidade insiste em negá-lo. Voltamos nossos esforços
para lembrar aos educadores que, desde cedo, é preciso
cuidar do advento do sujeito no bebê.
Com tudo isso, ajudaremos um bebê a se tornar
um sujeito do desejo. É por isso que o grupo IRDI está
sendo condenado?
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Se, no entanto, fala por meio da presença de um
indicador, nós nada sabemos de seu especial modo de
“indicar-se”. Mas o clínico, nesse momento, não precisa
saber o que diz o sujeito por trás do indicador presente.
Basta não esquecer que há ali um processo de consti-
tuição subjetiva em andamento, coisa que o indicador
pode apontar.
Não há, desse modo, nenhuma patologização em
curso, nenhum higienismo em ação. Não se busca doença,
não se busca o autismo: “uma pesquisa para a validação
de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento
infantil” (Kupfer & Voltolini, 2005, p. 359).
Esse era de fato o propósito do estudo estatístico.
Mas o que se perdeu de vista foi o fato de que o estudo
estatístico servia apenas como peça de convencimento:
os indicadores têm valor preditivo e por isso merecem
que os olhemos nas consultas regulares em saúde
publica. Não havia a intençao de estimular exercícios
de previsão, mas de chamar a atenção do clínico para
o valor da subjetividade. Pretendia-se formar o olhar
do pediatra para fazê-lo ver o que não está em sua
semiologia, mas pode estar. Sensibilizá-lo para o acom-
panhamento da saúde psíquica, ainda que não seja essa
sua vocação maior.
Não podemos deixar de citar, ainda, dois resultados
surpreendentes, que no après-coup podem aqui ser destaca-
dos. Em primeiro lugar, o efeito da descrição dos quatro
eixos na formação dos profissionais: a sistematização
teórica do que constitui, em essência, a noção de função
materna no pensamento lacaniano, produz um efeito de
descoberta e de reconhecimento que muito contribui
para uma transferência positiva com a psicanálise, e uma
abertura para essa transmissão. O segundo resultado foi o
achado estatístico, que mostrou, em números e de modo
objetivo, a importância determinante da função paterna
para a constituição subjetiva, tal como os pressupostos
freudianos e lacanianos sustentam, pois os indicadores
com maior potencial de previsibilidade foram justamente
aqueles do eixo função paterna!
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Referências
Notas
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detecção de problemas no desenvolvimento da criança. É um pro-
cesso contínuo, flexível, envolvendo informações dos profissionais
de saúde, pais, professores, entre outros” (Figueiras, 2015, p. 79).
[email protected]
R. Aramanaí, 335
05450-030 -São Paulo – SP – Brasil.
[email protected]
R. Mateus Grou, 57 – ap. 42
05415-050 – São Paulo – SP – Brasil.
Enviado em janeiro/2018.
Aceito em abril/2018.