Companhia Viva
Companhia Viva
Companhia Viva
Anne Alvarez
Tradução
Gabriel Hirschhorn
Revisão técnica
Mas (diz Kundera) não é isso o que conta. Ela não de-
seja transformar o passado em poesia, ela quer devol-
ver o
passado a seu corpo perdido. Porque, se a frágil
estrutura de suasmemórias colapsa como uma tenda
mal montada, tudo o que restará a Tamina será o
pre-
sente, esse ponto invisível, esse nada que se move len-
tamente na
direção da morte. (Kundera, 1981, p. 86)
o coito. A obscenidade dos movimentos estampada n0s uma unidade de medida, e talvez isso Ihes desse o de-
Elas tinham
os meios
escolhidos.
terríveis que fossem
corpos infantis abole a antinomia entre obsceno e ino- sejo de escapar, por mais
memória nem esperança,
quando não não existe essa
cente, entre o puro e o imundo. A sensualidade se torna Ås vezes,
numa espécie de aceitação
absurda, a inocência se torna absurda, o vocabulário existe que vai além do desespero,
algo vou descrever pa-
das crianças psicóticas que
se decompöe, e Tamina se sente enjoada, como se seu resignada. Algumas
se é que algum
dia souberam que pode -
de seu analista anterior, achei excepcionalmente dificil fazer con- um quebra-cabeça era uma
dia no jardim de infância, disse que
tato emocional - em parte por conta de muitos anos de condições
"mamãe Eu costumava vê-lo na escadaria da clínica, e
quebrada.
inadequadas de tratamento, mas também em razão de seu profun- olhar
ele era uma criança bonita, de aparência delicada, com um
do e crónico retraimento. O diagnóstico foi confirmado diversas boneca de pano vida. Ele não tinha a agilidade e a
perdido de sem
vezes por profissionais de diferentes escolas de pensamento, mas
graça que muitas crianças autistas têm. Depois de um ano de trata-
devo dizer que ele era muito diferente e, de certa forma, muito
primeira terapeuta, finalmente se referiu a si
mes-
mento com sua
mais enfermo que o tipo de criança autista que se apresenta mais
mo como "eu'. Isso aconteceu depois de um episódio dramático
ativamente retraida e tem alguma estrutura de personalidade. A Ela tinha se ele a confundia
cansado da forma como
com sua mäe.
personalidade de Robbie parecia quase inteiramente sem forma. constantemente com sua avó, que ajudava a criá-lo. A me gritou
Ele me ensinou muito, em parte devido à lentidão de sua melhora, você tem que aceitar isso!. Como tan-
com ele: "Eu sou sua mäe e
sobre a natureza dos estados de dissolução e colapso, mas também
tos outros aparentes avanços nos primeiros anos do tratamento,
sobre as condições necessárias nele e em mim
para que algu-
-
-
História
Indicação
Os pais e os avós maternos de Robbie vieram do exterior um
Robbie foi encaminhado para uma consulta 4
aos anos de ida- ano antesde ele nascer. Ele é o filho do meio, com um irm o dois
de, com uma observação do médico da
família apontando que es- anos mais velho e uma irm oito anos mais nova. Ele nasceu com
tava atrasado em termos de fala e
era muito retraído. Ele fez testes
comportamento e que, por vezes, um atraso de três semanas e meia do previsto, e sua mäe teve uma
ao mesmo tempo. Precisamos estar atentos cuidadosamente ao logo foi perdida. à minha mão
com gosto e pra-
torno de si e a amarrar
para mim na época, em termos do desejo de Robbie por conta- certamente não em uma criança. Eu tinha uma
-
contato
os doentes
mentais e de conseguir
to. Não compreendi, até muito mais tarde, que não se tratava de possibilidade de salvar teorias de Melanie Klein,
das
um comovente símbolo de contato - diferentemente da ponte, essa c o m eles;
além disso, tinha a ajuda
nascimento e que
s o m o s seres
sociais desde o
brincadeira não dava acesso a um relacionamento vivo, firme e que
declarou que não humanos
nosso
interesse pelo mundo e pelo universo
móvel; era muito mais limitada e sem saída. A terrível ilha da sen- mesmo
na primeira e mais intima e
Aprendemos que
n e c e s s a r i a m e n t e
positivo. terríveis fen-
era e produzir
mente
contra si mesma
denota
colocar a Mas isso
podia na vida mental.
A queda e fragmentações No en-
das e explosões
encontrado no
não significado.
ser
significado pode eram o
comportamento
que reais n o
As dificuldades de Robbie em manter com outros seres huma- Robbie os problemas em
outras
com eu tinha visto
tanto, como
mente suscetível a separações e mudanças. Ele já tinha passado por que ele vezes,
de
sensação, às
mesmo
psicóticas
crianças era a
al- o problema
Mais que isso,
mudança de terapeuta, e suas esperanças de ficar preso
a
uma racterísticas.
absolutamente
nada nele.
descrevi foram terrivelmen- não existir
guém de maneira emaranhada como simplesmente
nascimentos,
te frustradas n o segundo ano de tratamento pelos
A LONGA QUEDA
46 ANNE ALVAREZ 47
erradas. Inú-
agora acho que eram tão inúteis quanto
teis porque não desencadearam nenhuma resposta dele
Um mês depois, notei que, ocasionalmente, um pouco de cor evitaram a questão de como realmente era
e porque
aparecia em seu rosto perto do fim das sessões. Ele estava menos
estar com ele; erradas porque ele queria muito pouco
descontrolado e mais verbal, mas às vezes também havia algo mais
morto nele. A seguir, uma sessão em detalhe: naquele momento. Desejo era principalmente o que fal-
tava em suas sessões naquele período. No entanto, sua
Quando entrei na sala de espera, sua única reação ao falta de desejo, creio eu, não significava que tivesse um
sentimento de completude arrogante e onipotente sobre
me ver foi irar-se com o rosto sem
expressão e pedir sobre si mesmo. Ele não se comportava, como algumas
doces à senhora D (que o trouxe da escola para o tra-
tamento). Ela disse "depois"e, então, ele veio na minha crianças autistas, como se estivesseparaíso, como se
no
parece que
mais perto disso, e acho que isso o ajudou:
gui chegar um pouco
pouco mais perto,
mas
A brincadeira da massinha continuou por algum tem- bastante tímida. O que ele
via era o nada. depois, pe-
Instantes
foi
com o olhar morto de "gelo". In-
po, e de novo ele olhou pela janela de cera da tampa de u m pote e chamou
gou um pouco
Então correu a porta, colocou suas mãos
nela, e sentindo como uma espécie de pessoa-mãe
para terpretei que
estava me
mesma e dos meus vínculos como marido que ele ima semanas.
doces seios
maternos
deliciosos e
vivo confiável, tampouco
mantinha tão distante pênis
eu tivesse e que me
ginava que reconfortantes.
assustada por
dele. Além disso, queria que eu ficasse
umas
Eu
olhou-me nos olhos desse jeito por um longo tempo.
50 A LONGA QUEDA
ANNE ALVAREZ 51
que é indiferente de forma mais fria e insensível. E talvez houvesse tanto tempo para cair". É dificil transmitir o sentimento terrivel
algo frágil em seu cérebro desde o princípio que o tenha tornado que eu frequentemente tinha a respeito de quão longe ele tinha
tão vulnerável. Outras crianças sobreviveram ao tipo
de separa- caído ou tinha se afastado. Minhas tentativas de mostrar que en-
tendia o quão abandonado ele tinha se sentido o que poderia ter
-
ção que ele sofreu aos 18 meses sem ficarem destruidas. Qualquer
mais moderadamente ou deliberadamente
que fosse a causa, seu mundo interno ficou extraordinariamente ajudado um paciente
retraído -
foram inúteis. Eu estava longe demais. Em Sob o vulcão,
empobrecido. Ele parecia não ter virtualmente nada, nem mesmo
cônsul alcoólatra
esposa distante de um re-
de Malcolm Lowry, a
os mais patológicos mecanismos de defesa aos quais recorrer em descobre que
torna para tentar salvá-lo dele mesmo. Quando ela
momentos de estresse. mais?" Ele pen-
ele estava fora de alcance, grita: "Vocè não me ama
Mas sua
No verão e no outono do ano em que Robbie tinha 8 anos, sa consigo mesmo: "Ela não percebe? Claro que eu a amo.
meses depois do nascimento de sua irm, senti como se o tivesse to que Robbie tenha
sentido o mesmo. Quanto a mim, estava como
vasculhando o fundo de um rio: esperando sinais de vidae
perdido emocionalmente em definitivo. Disse a ele que teríamos alguém
terrivelmente inerte.
arrastando
que parar de nos ver por alguns meses. Eu tinha considerado, com
um peso
torno desse tema
colegas da clínica, uma mudança de terapeuta, mas, afinal, decidi Havia, contudo,
minúsculas variações em
continuar com ele, apesar da longa interrupção. Isso se deu, em eram, para ele, muito mais dificeis
apocaliptico. Algumas situações um pouco-
As vezes, ele se aproximava
-
parte, porque ninguém com experiência estava disponível para de suportar que outras.
tentativas de se conectar a
atende-lo - pouquíssima gente tratava crianças autistas com o mé- de uma sessão e fazia pequenas
no meio
e fins de sessões
eram particu-
Começos
todo psicanalítico naquela época-, mas também porque ele já ti- alguma coisa e alcançáa-la. n e m deixar a
sala
vera uma mudança de terapeuta. Ainda me pergunto se essa foi ou larmente agoniantes para
ele. Não podia entrar
ao longo do
corredor. As ve
tocar as paredes
não a melhor decisão. Anos preciosos certamente foram perdidos. de brinquedos s e m
tocava seu nariz e
então a
a parede; outras vezes,
Ele tinha 13 anos quando começou a fazer cinco sessões por sema- zes, apenas roçava tarde, mais
duas coisas. Anos
tentasse conectar as
na. Ao mesmo tempo, outro terapeuta podia ter deixado a clínica. parede, como se
concordou que
essas coisas,
Outros pacientes que encaminhei de fato acabaram ficando sem quando conseguiu comigo sobre
falar
ai?"
"Oi. Você ainda está
a parede algo
como:
dizendo para
tratamento. Também sentia que Robbie era meu paciente e minha estava
m a s não n o passado.
Na
ele achou aquilo engraçado,
responsabilidade e, no fim das contas, acho que isso era importan- Nessa época,
perguntando para
dizer que não estava
te. Mas, à época, ele claramente se sentiu abandonado por mim. verdade, agora e u preferiria e u e toda a
reali-
Acho que a parede,
ela ainda estava lá.
Simplesmente se encolhia ou olhava para o espaço sem expressão. a parede s e
sessões. Acredi-
semana
entre as
na
dade material
desaparecíamos
Anos mais tarde, quando pôde sair e distanciar-se suficientemente "Vocè está ai? Tem alguém
to que estava perguntando algo como:
nem eu éramos suficientes para segurá-lo. Ele manteve um ou dois canais abertos. Sua principal via de
espera. Nem parede
a
descrever
morte. Robbie, porém, não vivenciava uma partida como a perda no, que ele adorava;
e ainda mais tarde, quando queria
se sentia deixado em um lugar fazia sons, mas sim com cores. Al-
de algo ou de alguém. Tampouco das pessoas, não o com
a voz
laranja-claro; outro,
estar. Na verdade, ele se sentia deixado em tinha uma voz amarela; outro, uma voz
em que não quisesse guém todos os
ou alguém com a
se A maioria das pessoas normais e
lugar nenhum. Ele não tinha perdido algo uma voz verde-escura.
modalidade sensorial para des
inclusive a si mesmo. Anos depois, usam imagens de alguma
paração; tinha perdido tudo, poetas
outra modalidade. Robbie, no entanto, nos
experiências de
chamou isso de "Apagou acabou o Robbie'. E eu era apagada crever
e seu tato eram quase
o mundo não tinha escolha. Seu ol fato
também. Esse estado de lugar nenhum significava que
-
primeiros anos,
de boas experiências. Tanto quanto conseguia,
humanas, o mundo suas únicas fontes
um possível mundo imaginativo com figuras Ou, talvez, eles estivessem fecha-
nos sustenta em perío- fechava-se para imagens e sons.
de m e c a n i s m o s de
defesa. Naturalmente,
do motor de um táxi, do som
dos limpadores de para-brisa, mo dos mais
patológicos
ser absoluta-
qualquer barulho já que ninguém pode
homens trabalhando em construções, de quase isso é uma questão de grau,
percebia sobre
sua
que mais
seus se
luzes brilhantes machucavam de defesas. O
alto. Frequentemente sentia que mente destituído
ele
caminhão passou como um raio,
olhos e, uma vez, quando um
não só as orelhas -
dizendo "Machuca meu
cobriu sua cabeça -
ANNE ALVAREZ
LONGA QUEDA
54 A
mecanismo
outro iden-
dia todo escutando determi- envolvesse métodos
de projeção e
nhecia do mesmo hospital passava o
nenhuma capacidade que sentido
seu radinho de pilha. Ambas
más do self, no
nado ruido de estática específico em sentimentos ou partes
de
Tustin chamou de
tificação projetiva Klein. Ele não podia
se exilar
conseguiam criar quase que uma auto-hipnose. primeiramente
descrito por Melanie
não podia
ficar e lutar.
adere
"objetos autísticos" esses objetos de amor aos quais criança medo e da dor, tampouco
a
distanciar do e le-
e se
rigidamente e que podem ser eficientemente utilizados para
cortar
mecanismo de identificação
projetiva é muito complicado,
O diferentes
o contato com o mundo vivo (Tustin, 1981). descrever os muitos tipos
inteiro para
varia um capítulo diferentes
Mas um desses
estudados pela psicanálise.
No entanto, Robbie realmente era mais como uma ameba in- que foram
d e s e n v o l v i m e n t o pode
fazer depois
o que o
beb em
defesa. Tenho certeza que, às vezes, ele se desligava voluntariamen- tipos explica
experiência ruim: ele pode evacuá-la.
te-e, de fato, o elemento volitivo aumentou com o passar dos
anos de ter uma
recém-nascidos
bebês
e ele começou a desenvolver algo próximo de uma vontade. Minha esforçam muito para proteger
Mães se
sabemos também da enorme, e
dificuldade estava no fato de que, na maior parte do tempo, durante mas
de sentimentos de desamparo, desde o começo,
os bebës
esse doloroso periodo inicial, ele não parecia ter ido a lugar algum; crescente, capacidade que,
rapidamente versão mais
Um dos modos é
uma
não estava se escondendo, estava perdido. Se existe um equivalente também têm de autoproteção.
mental do coma profundo a que o cérebro pode estar submetido,
A LONGA QUEDA
56 ANNE ALVAREZ 7
sala cheia de estranhos falando. Mas o que ocorre quando o inevitá- desesperado, mas ainda mais morto.
menos
vel acontece e os estímulos assustadores ou dolorosos os atingem?
chora. Adultos fazem Bion (1962) escreveu que alguns pacientes psicóticos projetam
O bebê se assusta e, então, grita ou o mesmo
tão vasto que todos os fragmentos da expe-
em um espaço mental
após um choque -
ou conversam emocionados com amigos. Há, deles mesmos assim projetados se dispersam a grandes
riência e
obviamente, graus de patologia nessas projeções e evacuações. Se dos outros. O próprio Bion
fez trabalhos incríveis
distâncias uns
unir frag-
esfaqueamos alguém que nos ultrapassou muito agressivamente esquizofrênicos adultos muito doentes e conseguiu
com
em in-
em uma estrada, provavelmente somos esquizofrênicos paranoides apareciam
mentos do material
de pacientes que, às vezes,
mental
ou psicopatas. Se gritamos com nosso cônjuge ou parceiro porque anos. Ele destacou que o vasto espaço
tervalos de quatro
de tempo. Acredito que algo
acabamos de dar topada em uma cadeira, estamos apenas ten-
uma
se traduzir
em grandes períodos
pode Robbie nesses momentos.
do uma crise paranoide passageira. Se exclamamos "Ai" quando o como isso estivesse
acontecendo com
mui-
A rede ainda estava
dedo dói, apresentamos um mecanism0 projetivo comum e apa- foi para muito longe.
Muito saiu dele e
de iden-
usar métodos
rentemente bastante essencial. Levou anos até que ele pudesse
to frouxa. ou que
identificável e receptivo
em um objeto
Na visão kleiniana, a projeção é dirigida para dentro de uma tificação projetiva marca'. Enquanto isso,
chamava de "deixar uma
pode ter havido em seus gritos quando era bebê, mas duvido que
houvesse muita. Nada dentro dele parecia capaz de receber más