Jogos Constituintes - Julieta J.
Jogos Constituintes - Julieta J.
Jogos Constituintes - Julieta J.
brincar simbólico, que tem seu marco inicial no jogo do Fort-Da. Mas como considerar o
Pelo brincar a criança produz uma resposta, opera uma passagem da passividade à
atividade, aponta Freud. Mas se ser bebê implicaria um tempo essencialmente marcado
simbólico, propriamente dito, precisam se operar para que venha a se instaurar o Fort-Da?
Este capítulo dedica-se a considerar que, se o brincar implica um gozo – tal como
Freud nos permite pensar a partir do texto "Além do princípio do prazer" –, o é no árduo
inscrição, tal traçado, já está em jogo no laço mãe-bebê, configurando, desde os primórdios
estabelecer a partir de jogos constituintes do sujeito, que são seus precursores e que já se
produzem como primeiras circunscrições de um litoral entre gozo e saber. Esses jogos têm
a peculiaridade de não ser nem só do bebê nem só da mãe, mas criações produzidas no laço
mãe-bebê. A mãe sustenta a possibilidade de tais produções e até mesmo suscita que sejam
postas em ato, e, quando o bebê entra no jogo, quando nele engaja gozosamente seu corpo,
saber, do objeto ao sujeito, na medida em que a mãe e o bebê, em tais jogos, transitam
195
incessantemente de uma a outra dessas posições.
É justamente por esses jogos de litoral serem constituintes do sujeito que eles
ocupam um lugar central na clínica, tanto com bebês quanto com crianças que, mesmo não
sendo mais bebês, não chegaram a produzi-los enquanto resposta psíquica diante do Outro.
Situaremos, a seguir, o brincar da criança para depois podermos retomar esse tempo
primordial dos jogos constituintes do sujeito como inscrição de um litoral entre gozo e
saber.
que situa, desde o inconsciente parental, seu lugar na filiação, sexuação e identificação – e
faz-de-conta, que a criança ensaia respostas que a tiram de um lugar de passividade diante
do Outro. Tal recurso psíquico torna possível uma esfera protegida para o exercício de uma
atividade pela qual não é preciso se responsabilizar, afinal, do que é produzido dentro
dessa esfera não se cobra valor de ato, é uma brincadeira. Dentro dela é possível matar,
morrer, ser o mais ferrenho inimigo, enfrentar os maiores dilemas morais e depois sentar
Isso não tira a seriedade do brincar, na medida em que, com ele, a criança liga,
elabora, faz série singular dos acontecimentos de sua vida. Brincar é sério porque
478
Julieta Jerusalinsky. Capítulo: "temporalidade e clínica com bebês" em Enquanto o futuro não vem – a
psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês; Alfredo Jerusalinsky. Psicanálise e desenvolvimento
infantil, p.50.
196
possibilita articulações significantes diante de acometimentos do real, servindo-se para
como se, que se evoca: o marco do brincar simbólico, tempo em que a criança goza dos
deslocamentos a que o significante dá lugar, das metáforas que ele possibilita e por meio
das quais uma coisa pode ser tomada por outra – um pano pode virar capa; um pau de
goza dos jogos em que se projeta enquanto realizadora dos ideais-do-eu, buscando
desejo é o desejo do Outro,479 por meio de tal brincar a criança se joga, se lança a ocupar a
brincar se produza e que se possa outorgar credibilidade a esta ficção, na medida em que
ela é a materialização imaginária que dá ao sujeito a garantia ficcional de que poderá vir
a ser.480
– desejo em torno do qual se produz uma equivalência entre crescer, virar adulto e realizar
o ideal-do-eu.482
de seu corpo e a dilatação imaginária dentro da qual lhe é possível tecer seus desenlaces
ficcionais, a criança produz um ganho de gozo, mas somente por meio do árduo trabalho
de operar uma torção temporal que, tal como os derretidos relógios de Salvador Dali,
479
Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 172.
480
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
481
Sigmund Freud (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 151.
482
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem – A psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
80.
197
permite – em tal dobra em que se aloja o sujeito – uma articulação entre o "agora", o "eu
era"e o "vir a ser". Por isso, se brincar comporta um gozo da infância, também comporta
um árduo trabalho psíquico desse sujeito em constituição, trabalho no qual o próprio corpo
fica convocado, e muitas vezes até a exaustão. Por isso, quando as crianças brincam e são
Brincar de faz-de-conta é uma produção que pode ser posta em cena de modo
solitário ou ser compartilhada com outros parceiros, o que exige uma intensa negociação
precisará contar com certa abertura à alteridade, a fim de poder estabelecer de modo
coletivo as vicissitudes das personagens, e também com certa mobilidade psíquica para
poder mudar de posição no jogo com o parceiro – alternando os lugares filho-pai, filha-
mãe, mau-bom, vítima-algoz – em prol de uma trama coletiva que se articula com e além
de sua posição na cena. Por isso, brincar com pares, com semelhantes, é constituinte para a
criança.483 Mas, na medida em que tais personagens e seus desenlaces fantasiosos são
precisará também partilhar esses conflitos psíquicos com seus companheiros de jogo,
encontrar certo ponto de identificação e certa acolhida para eles na trama coletiva. Daí que
ficção de si mesma como possibilidade de vir a ser e enquanto resposta ao seu Outro.
Neste contexto, o objeto brinquedo, mesmo não sendo indiferente, conta menos pelas
suas características reais do que por prestar-se à trama que, com ele, a criança dá lugar.
483
Como o próprio Sigmund Freud (1909) afirma em Análise da fobia de um menino de cinco anos, p. 26.
198
Vale menos pelo que é em si do que por adaptar-se ao argumento que interessa encenar.
Esta diferença entre o brinquedo como objeto em si e o ato de brincar, mesmo podendo
brinquedo – tal é a importância dele no brincar que Freud situa a necessidade da criança de
real484 como a principal diferença entre brincar e devanear. Mas, se brincar é operar em
torno da falta – do que falta para ser grande, para realizar ideais –, o valor dos brinquedos é
tanto maior pelas metáforas que possibilitam do que pelo achatamento sobre suas
características reais. Nesse sentido, se o apoio nesses objetos é necessário, o excesso deles
também pode ser obstáculo ao ato do brincar simbólico. O fato de esses brinquedos serem
lúdicos,485 nos quais se mantém fixada ao uso sugerido pelos objetos, em lugar de poder
produção não se mantém com a mesma força ao longo de toda a infância. Após certa
elaboração, esse modo de brincar cede, pelo menos em parte, dando lugar ao interesse
pelos jogos de regras, nos quais se estabelece a oposição entre vencedor-perdedor, certo-
ideal-do-eu exigem que se cumpra um papel em relação à lei. Apesar de que o brincar da
criança continue não tendo o valor de um ato, os adultos, e até mesmo os colegas de
brincadeira, demandam que ela observe a existência do "modo certo de jogar". Já não é
qualquer coisa que vale simplesmente por estar articulada pelo bel-prazer de seus ensaios
484
Freud (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 150.
485
Jean Piaget (1959). El nacimento de la inteligencia en el nino.
199
ficcionais de si.
toda a infância, mas que não permanece sempre igual, pois, ainda que apresente uma
insistência em torno de certos temas, vai articulando diferentes respostas da criança diante
do Outro.
borda entre gozo ao saber. Daí que se intervenha com e a partir do brincar na psicanálise
com crianças, inclusive de crianças que ainda não acederam à fala – por serem ainda muito
pequenas ou por, mesmo tendo idade para fazê-lo, estarem acometidas por psicopatologias
inscrições constituintes do sujeito na infância. Isto porque, ainda que testemunhar o brincar
possibilite ao psicanalista produzir uma leitura acerca das respostas que a criança vem
elaborando diante de seu Outro, não é em si uma produção que tenha por alvo mostrar-se a
um espectador. Apesar de que o brincar implique uma posta em cena, uma encenação
lúdica que, tal como a encenação teatral, possibilita o acesso a um gozo,488 é um jogo no
qual a criança joga com o deslocamento de posição entre ator e espectador de seu próprio
486
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
487
Lembrando aqui a célebre correlação estabelecida por Melanie Klein entre o brincar para a criança e os
sonhos para os adultos. Melanie Klein (1926). Fundamentos psicológicos del análisis del niño, p. 27-28.
488
Tal como aponta Sigmund Freud, (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 150: A linguagem acolheu
parentesco entre o brincar infantil e a criação poética, chamando ambos "Spiel" (que pode ser traduzido
tanto por jogo quanto por brincadeira), assim como as encenações teatrais são denominadas de «Lustspiel»
[«comedia»; literalmente, «jogo de prazer»], «Trauerspiel» [«tragédia»; «jogo de luto»], w designando
«Schauspieler» [«ator dramático»; «o que joga ao espetáculo»] a quem as encena.
200
drama deslocado a um marco ficcional.
Freud, mas, enquanto a criança não oculta seu desejo de ser grande, o adulto faz de tudo
para ocultar o desejo que se coloca em seu fantasiar, pois ele denuncia sua infantilidade.489
Esta afirmação de Freud revela o quanto, ainda que ambas as produções comportem um
desejo, este parece operar em direções opostas; o brincar da criança tenta trilhar o percurso
que vai do objeto a (em torno do qual se busca articular o percurso de recuperação de
passivas), ao eu-ideal (procurando se fazer valer das insígnias fálicas para ocupar o lugar
de objeto de desejo do Outro materno, como fica evidente nas primeiras gracinhas que um
poder obter prazer por meio da busca de realização de certo ideal cultural); já as formações
tanto embaraça os adultos: que o prazer jamais se desvincula de suas formas mais infantis,
mais primordiais.490
Isto nos permite afirmar com todas as letras que, enquanto no adulto o chiste, o
sonho, o ato falho, o devaneio, fazem comparecer o desejo nas formações do inconsciente,
inconsciente em formação.
Portanto, que o brincar nem sempre seja ocultado não equivale a dizer que seu
objetivo seja o de uma demonstração ou mostração. Prova disso é que, como um dos
efeitos do recalque, a criança passe a reclamar ativamente privacidade para tal exercício de
gozo, solicitando ao adulto que sorrateiramente se intromete curioso para assistir a cena
489
Idem, p. 151.
490
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
201
produzida pelas crianças que saia, pois estão brincando. Até mesmo antes de poder
formular tal pedido de privacidade é frequente que a criança, entretida com sua produção
de faz-de-conta, suspenda o brincar e iniba tal produção quando se percebe observada por
um adulto.
Se o que a criança faz com o brincar é o árduo trabalho de buscar situar-se como
adulto enquanto Outro encarnado, se no que ela insiste com o seu brincar é em poder
quando este procura fazer-se realmente presente onde é fundamental sua ausência real, a
fim de que a própria criança possa por em jogo a presença-ausência a partir da transmissão
simbólica da qual se faz herdeira –, ela tem toda a razão de recriminá-lo e pedir que se
retire.
externo cuja função seria a de traduzir uma espécie de inconsciente exposto. Ele, pela
transferência, faz parte da estrutura do paciente e, portanto, está tomado como parte
integrante da cena do brincar. Intervém aí permitindo que se relance o brincar pelo qual se
Isto frequentemente implica poder brincar com certos conteúdos que resultam
insuportáveis para os pais e que, inclusive, tangem temas proibidos pela educação familiar
ou escolar, tais como melecas, transbordamentos, palavrões e que não são nada edificantes
mas que, no entanto, são centrais para que a criança possa ser detentora de um saber que
202
É um grande problema que faz obstáculo, resistência à análise, quando a intervenção
visa estabelecer uma espécie de tradução em palavras da ação da criança, de explicitar sua
simbólico da metáfora por ela produzida procurou trabalhosamente recobrir (como seria
lhe dizer, diante do jogo do Fort-Da: eu entendo que o carretel é a mamãe). Isto leva a
fechar o sentido de uma cena em que se cristaliza o lugar do sujeito em relação ao objeto e
pode muito bem vir a suspender o jogo, considerando, claro, que a criança já estava
produzindo ali uma simbolização – ou seja, em lugar de ficar chorando quando a mãe ia
embora, fazia algo que operava uma passagem do gozo ao saber- fazer.
Por outro lado, podemos considerar que o que Melanie Klein faz com o pequeno
Dick, de quatro anos –, que estava a empurrar um trenzinho, ao lhe dizer "trem papai,
quando este diz "estação", "estação mamãe" – também implica operar uma passagem,
elevando a pura cena repetitiva de achatamento sobre o real dos objetos a uma
simbolização.492
co! Cadê Santiago?", apresentada no primeiro capítulo. Tal jogo permite operar uma
letra que opera de modo suplementar, como criação, possibilitando a Santiago, na medida
Evidentemente esta discussão é bastante longa, mas o que procuramos apontar é que
491
Melanie Klein (1930). A importância da formação dos símbolos no desenvolvimento do ego, p. 249-264.
492
Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 83-86.
203
efeito da leitura do analista acerca do que está em causa para o paciente, possibilitando-lhe
vindas sobre a borda, no jogo de oposição dos significantes, nos quais a criança pode, a
partir da transferência com o psicanalista, jogar o jogo de relançar seu desejo. Trata ao
a repetição. Pode passar assim do chafurdar no gozo a um saber fazer ali com isso.
produzindo novas operações em torno das cifras que para ela insistem. Em lugar de ficar
capturada no enigma, pode passar a operar com suas cifras. Daí a pertinência do brincar na
clínica com crianças. Ele possibilita, pela transferência, a transposição de registros pelo
qual o brincar, ainda que nunca deixe de dizer respeito a um real (e a insistência pulsional
demonstra isso), deixa de ser só real, pode possibilitar uma articulação imaginária e
simbólica.
Vemos como interrogar a função do brincar na análise com crianças nos leva, em
última instância, a interrogar o que se considera estar em jogo em uma análise. Apontar
uma e outra vez a repetição, por meio de uma suposta compreensão sobre o assunto, não
leva o analisando muito mais longe do que ser exaustivamente reendereçado ao mesmo
ponto. Convenhamos que, para isso, ele não precisa do psicanalista, ele trilha o caminho
sozinho, como o burro do leiteiro. Depois de uma intervenção dessas, ele pode talvez
Intervir por meio de uma tradução que busca o fechamento em uma compreensão
493
Ver, a este respeito, capítulo "Leitura de bebês".
494
Ainda que possa parecer pequena e o é, já que é no detalhe do trocadilho, sabemos o quanto um pequeno
elemento é capaz de subverter toda uma estrutura.
204
imaginária vai em uma direção clínica. Contar com a letra que insiste para transliterá-la,
minimamente dar lugar a algo de novo com o que insiste de novo. Há uma diferença
Que a criança não circule pela palavra com o mesmo desembaraço de um adulto, não
nunca foi garantia de que ele esteja dizendo algo que efetivamente importa. Assim como o
o trilho dos melhores hábitos sociais, não coloca necessariamente em jogo o que
efetivamente conta. Tanto o discorrer da fala quanto a sucessão de cenas do brincar podem
interessa para o sujeito: entre o gozo e o saber, entre pulsão e significante. É intervir ali
com isso que possibilitará à criança tecer um saber-fazer diante dessa borda que para ela
Nesse trabalho do brincar o gozo da criança ainda não está fixado, diferentemente do
adulto, que já tem inscrito o fantasma. Com o trabalho do brincar ela opera a
inscrição, o traçado primordial, desde o qual um sujeito poderá vir a se situar. Daí que letra
e gozo estejam em jogo nos primórdios do brincar enquanto jogos constituintes do sujeito –
495
Ver recortes clínicos a seguir.
496
Jacques Lacan (1976-1977). Seminario 24, L’insu que sait de l’une-bevue s’aile à mourre, clase 1, Las
identificaciones, de 16/11/76; O que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que dá à arte da qual se é capaz
um valor notável. Jacques Lacan (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma, p. 59.
205
enquanto jogos de litoral sustentados no laço com Outro encarnado.
Isto nos leva a interrogar acerca dos primórdios do brincar, antes do estabelecimento
do faz-de-conta, antes do estabelecimento deste jogo do vir a ser. Certamente um bebê não
tramitação do conflito edípico, consegue articular com o brincar; ele não conta com a
mesma extensão simbólica diante do Outro que lhe possibilite dar lugar a essa montagem
sustentados no laço com o Outro encarnado. Tais jogos são produzidos em um tempo em
que está ainda sendo constituída a borda que permitirá à criança vir a enunciar um aqui e
O Fort-Da não tem toda a extensão simbólica que caracteriza o faz-de-conta, mas
apresenta todas as características que permitem situá-lo como marco inicial do brincar
cena em que Freud lê como um jogo a produção de seu neto Ernest, de 18 meses, a lançar
um carretel para trás da borda da varanda com acortinado de seu berço, de modo que ele ali
desaparecesse, e depois produzisse seu retorno, puxando o carretel pela cordinha nele
497
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 25-29.
206
amarrada. Quando sua mãe se ausentava, o pequeno menininho se punha a brincar com
esse objeto, estabelecendo uma série articulada de ausência e presença, na medida em que,
descontinuidade do seu olhar sobre esse objeto. Além disso, ele acompanhava tal produção
não só por uma intensa expressão de interesse e satisfação,498 mas também por uma
produção sonora de "ooo", "aaa", que Freud lê não como uma simples interjeição, mas
como as palavras alemãs fort (foi, vai embora) e da (cá, aqui está), respectivamente. É
preciso dizer, e isto é importante para o nosso tema, que Freud tampouco chega a tal leitura
sozinho. Ele faz valer a atribuição de sentido que a mãe faz à produção sonora do
Freud conta que, com a articulação de tal jogo, a criança, em lugar de se pôr a chorar
diante da partida da mãe, se põe a brincar. Produz com isso uma realização cultural:
objetos que tinha a seu alcance, esse desaparecer e regressar.500 É importante considerar o
quanto a criança só não chora aí na medida em que tal operação lhe permite trocar a
Representar tal ausência, apoderar-se dela, representa uma perda em um plano e um ganho
em outro. A criança agora pode apoderar-se da situação: se na vivência era passivo, era
afetado por ela, agora se punha em um papel ativo, repetindo-a com o jogo, apesar de que
fosse desprazerosa.501
em que a criança se situa como senhora de uma atividade; nesse jogo há uma oposição
498
Idem.
499
Idem.
500
Idem.
501
Idem.
207
presença-ausência; e, além de tal oposição ser produzida, também é designada, nomeada
Daí que seja tão infrutífera a discussão acerca do que o carretel representaria. O
carretel pode ser a mãe que ele expulsa e recupera, mas também pode ser ele mesmo na
descontinuidade de ser visto ou não por este Outro primordial. Pouco importa. O que está
que recairia sobre o objeto em si (carretel) e muito mais o jogo de oposição significante a
que a criança dá lugar, usando-o como simples pretexto: trata-se de brincar com a
articulação de uma série de presenças e ausências a partir da qual a criança começa a poder
ao ter-se entre dois significantes não cai junto com a ausência materna. Ernest se entretém
entre o "ooo"e "aaaa". Aí não só representa a ausência da mãe, como nela se representa o
próprio sujeito, na mesma medida em que Lacan nos diz que o significante representa o
Mas quais são as condições precursoras para que este jogo possa chegar a se
estabelecer?
502
Jacques Lacan (1964). El seminário. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
244.
208
VI.3. Jogos de litoral como precursores do Fort-Da
Se tanto interessa ao bebê a superfície e o buraco é porque o que está em jogo aí,
quanto à constituição do sujeito, é o traçado de uma borda, que, com tais jogos, retoma a
Lacan, no texto "Lituraterra", coloca que é a letra que faz borda entre o gozo e o
saber. Consideramos que o que está em jogo já nesses precursores do Fort-Da é a própria
inscrição da letra, que traça o litoral entre um e outro sem jamais esgotar sua
descontinuidade. Jogar com a letra que faz litoral entre o gozo e o saber – aí, mais do que
em uma cortante linha de fronteira, se produz um ir e vir que, tal como as ondas na areia,
duas substâncias de diferentes ordens. O que está em jogo no brincar do bebê é um intenso
trabalho de construir litoral. O bebê não tem como armar tal litoral senão com e a partir do
preciso que se inscreva uma alternância simbólica, e é sobre tais descontinuidades que se
um jogo sobre as zonas erógenas em torno dos buracos corporais – olhos, boca, narinas,
503
Ver a este respeito: Alfredo Jerusalinsky. La educación es terapéutica? (Parte I), p. 11-16; Ricardo
Rodulfo. O brincar e o significante.
504
Isto é algo que, quando não se inscreve, ou se inscreve de modo anômalo, produz sintomas no
funcionamento das funções corporais, muito frequentemente denominadas como quadros psicossomáticos e
com incidência relevante na clínica com bebês.
209
orelhas, ânus, uretra – , zonas de trocas, onde o jogo simbólico de presença e ausência se
em seu próprio corpo, assim como no corpo materno. Ele passa a buscar o olhar, excitar-se
corporalmente com a voz, endereçar as vocalizações à mãe, olhar o buraco por onde a voz
materna sai, sentir em sua pele a expulsão de ar que a acompanha, dirigir sua mão até esse
rosto materno, implica-se num jogo de tentar capturar com a própria mão o objeto de
satisfação que a pulsão circunda em seu circuito.505 Trata-se, nesse momento primordial do
Vemos como esse jogo sustentado no laço com a mãe, que põe em movimento para o
bebê uma pulsão que circula entre o corpo materno e o seu próprio, torna imprescindível o
Outro no circuito de satisfação, a presença da inscrição materna que, como diz certa
extrapolam a pura satisfação das necessidades, assim como supõe um brincar por parte do
bebê quando este realiza produções que levam a uma satisfação além da necessidade.
Temos aí um primeiro tempo do brincar: um brincar que é suposto no bebê por parte da
505
Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
185.
506
Momento primordial do erotismo tão claramente situado pela poesia de Caetano Veloso (1991). A tua
presença morena, in: Circulado vivo: A tua presença/ entra pelos sete buracos da minha cabeça/ a tua
presença/ pelos olhos, boca, narinas e orelhas/ a tua presença/ paralisa meu momento em que tudo
começa/a tua presença/ desintegra e atualiza a minha presença/ a tua presença/ envolve meu tronco, meus
braços e minhas pernas/ a tua presença/ é branca, verde, vermelha, azul e amarela/ a tua presença/ é negra,
negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra/ a tua presença/ transborda pelas portas e pelas
janelas/ a tua presença/ silencia os automóveis e as motocicletas/ a tua presença/ se espalha no campo
derrubando as cercas/ a tua presença/ é tudo o que se come, é tudo o que se reza/ a tua presença/ coagula o
jorro da noite sangrenta/ a tua presença/ é a coisa mais bonita em toda a natureza/ a tua presença/ mantém
sempre teso o arco da promessa.
210
mãe. Ele fica evidente quando, diante do bebê já satisfeito que realiza uma sucção esparsa
ao seio, a mãe afirma "agora está só de brincadeira!"507 e permite brevemente tal produção
em lugar de interrompê-la bruscamente. Ela não achata a pulsão oral sobre a ingestão de
alimento nutritivo; ela a extrapola, brinca de morder as mãozinhas e pezinhos do bebê. Este
é o bebê que depois se oferece à mãe como objeto apetitoso ao desejo materno,
Em um segundo tempo este jogo se relança, além das fronteiras do corpo materno e
buracos, fendas, perfurações da casa, a deter-se sobre seus cantos, bordas, degraus. Passa a
ter interesse nas relações continente-conteúdo, explorando gavetas, tirando e pondo objetos
descontinuidade dessa sensação na pele, em um segundo tempo busca produzir este jogo
com a comida, espalhando-a sobre as mãos e sobre a mesa, assim como com água, barro,
Ainda que tal produção se estenda e diversifique, o fascínio pelas bordas perdura
pelo resto da vida. Basta ir até uma praça ou quintal de escolinha infantil para
perceber que para gozar as férias costumam se produzir árduos deslocamentos até alguma
507
Silvia Peaguda. Juegos precursores del Fort-Da, p. 35-41.
508
O terceiro tempo do circuito pulsional é descrito por Lacan e desenvolvido por Laznik como valioso
indicador clínico. Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del
psicoanálisis, p. 186; Marie-Christine Laznik (1996). Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome
autística?
211
borda, entre o céu e a terra, no cume das montanhas, entre a terra e o mar, no litoral.
A extensão do jogo do bebê para outros territórios, que não o corpo materno,
depende da oferta substitutiva que a mãe venha a realizar.509 Ela oferece um chocalho em
um gesto substitutivo do corpo materno, enquanto objeto de satisfação,510 para que o bebê
possa suportar sua breve ausência, para que fique entretido, ou seja, para que ele se tenha
da mãe. Esse objeto, por ser substitutivo, introduz uma presença sobre o fundo de uma
ausência.
um objeto transicional – como substitutivo do objeto do desejo que circula entre o bebê e a
mãe e que permite uma metáfora de "este é o outro". Mas a transicionalidade, seja em
criança se, por sua vez, a mãe toma a criança como transicional para ela e não como a sua
realização fálica definitiva. Somente assim haverá, entre um e outro, espaço para a
precursores do Fort-Da.
Como terceiro tempo, encontramos dois precursores diretos desse jogo. O primeiro
deles é o que podemos chamar de jogo de lançamento de objetos para que o outro
recupere. Freud nos fala dele logo antes do jogo do Fort-Da, e de um modo um tanto
indiferenciado a ele. Conta-nos que seu neto exibia o incômodo hábito de jogar longe de
si, para um canto ou para baixo da cama todos os pequenos objetos que encontrava a seu
509
Podemos considerar aí a importância justamente atribuída por Winnicott à mostração de objeto, ou
apresentação de objeto, como uma das importantes incumbências da função materna. Donald Winnicott
(1960). La relación inicial de una madre con su bebé, p. 34.
510
Silvia Peaguda. Juegos precursores del Fort-Da.
511
Já que além do objeto transicional a criança pode preferir entoar uma melodia ou roçar um tecido, como
fenômeno transicional, como aponta Donald Winnicott (1971). Realidad y juego, p. 20.
212
alcance, de modo que não costumava ser tarefa fácil juntar seus brinquedos.512
Ora, ainda que tal jogo seja um precursor direto do Fort-Da, são os outros que
precisam ali recuperar os objetos para o bebê, detalhe que faz toda a diferença. Ou seja, é
para que a criança possa gozar da infância. Quando isto está instaurado na relação com seu
Outro é usual que o bebê de seis meses vocalize ou olhe expectante para a mãe em uma
clara demanda de que ela recupere o objeto que ele deixou cair, do berço, da banheira ou
do cadeirão de comer. Assim como é usual que os pais falem do árduo trabalho de
insatisfação do bebê. Sem esta dimensão inicial não há como se estabelecer o laço da
criança com o Outro encarnado, estendendo o arco de seu circuito pulsional e situando-o
em um endereçamento.
margem de tais relatos clínicos, fala-se de uma ausência de brincar, em lugar do qual
direção sem que a criança busque recuperá-los ou espere que outros o recuperem para ela.
Isto jamais é uma simples coincidência. Encontramos aí os efeitos de uma não instauração
objeto para a criança.513 Por isso, torna-se central na clínica considerar como instaurá-lo,
512
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 26.
513
Ou seja, se isto não é produzido com os objetos, por parte de um bebê entre os 6 e 12 meses, é porque não
se instalou em relação aos objetos pulsionais.
213
que ela joga ou deixa cair – ora colocando-se como destinatário do arremesso inicialmente
permitindo-lhe retomar ou abandonar esse objeto que passamos a sustentar em uma série
para ela – com nosso gesto de recuperação, com a entoação de nossa voz, com nosso olhar.
rosto do bebê com um paninho e logo se interroga pela ausência, dizendo "cadê?", seguida
Ainda que não costume ser referido ou especificado como diferenciado do Fort-Da,
Freud fala do jogo do cadê-achou no texto "Inibição, sintoma e angústia", afirmando que,
desespero.515 Situa-o como central para que o bebê não fique para sempre exposto a uma
angústia primordial, experimentada como uma dor dilacerante na ausência da mãe. Nesse
jogo, o tempo de ausência não pode se prolongar muito, ou o bebê fica efetivamente
ele apresenta três importantes diferenças: em primeiro lugar, precisa ocorrer pela
presença ocorre efetivamente com o outro e não pelo brincar do bebê com um objeto
substitutivo; e, por último, é o outro que coloca as palavras que marcam a descontinuidade,
514
Este jogo, em algumas regiões, é também denominado de cu-co, fazendo referência ao passarinho que
aparece e desaparece no relógio acompanhado do som que anuncia a passagem das horas. Ver, a este
respeito, recorte clínico I, apresentado na passagem I.6. "Cu-co! cadê Santiago?"
515
Sigmund Freud (1926). Inibições, sintomas e ansiedade, p. 195.
214
que nomeia a oposição significante entre o cadê e o achou.
sustentar-se psiquicamente. A angústia dos oito meses516 é uma angústia primordial própria
da constituição em que, ao não se encontrar com a mãe que sustenta seu reconhecimento, o
bebê experimenta um estranhamento de si mesmo que coloca em questão seu próprio ser.
Vê-se então assaltado por uma interrogação radical: "essa não é a mamãe. E eu?".
ou seja, brincará de produzir falta no Outro. É frequente que ela se esconda quando a mãe
retorna de um breve período de ausência, por exemplo, do trabalho. A criança, que sentiu a
sua falta, agora goza de fazer falta ao Outro. Mal pode conter o riso em seu esconderijo
enquanto a mãe a procura. Esta cena resulta bastante insuportável para a criança pequena,
que não aguenta ficar escondida, na medida em que estar ausente para o Outro que a
O bebê que brinca de cadê-achou é um bebê cujo erotismo está enlaçado ao Outro.
O olhar do Outro encarnado para ele conta. Tanto é que tal produção convive com a de
fazer gracinhas para fazer-se olhar – tais como bater palminhas, piscar, dar tchau. Tais
gracinhas têm o valor de recursos articulados a ideais sociais que permitem ao bebê fazer-
se interessante para esse Outro encarnado cujo olhar, cuja voz, cujo endereçamento
Como continuar uma série após uma separação? Algo vem depois da ausência? É a
516
René Spitz (1965). El primer año de vida del niño, p. 118-124.
215
anterior, se encontrar com um agente da função materna que acolha e se implique no
cálculo com o gozo da criança. É preciso um Outro que acolha a demanda do pequeno
sujeito. Está bem que tem que ser guiado pela lei simbólica, mas tem que encontrar o
modo de satisfazê-lo sem colidir com a lei.517 Nos jogos de litoral, enquanto constituintes
produzir litoral ao gozo do bebê que é ofertado e sustentado pela mãe, mas, uma vez que o
bebê nele engaja o gozo de seu corpo, a mãe prontamente lhe atribui a autoria e o saber
medida em que a mãe e o bebê, nesses jogos de litoral, circulam incessantemente pela
posição de objeto e sujeito. Ora detendo um saber, ora engajando seu corpo no gozo
propiciado pelo outro. Isto é central para a constituição e para que posteriormente possa
revisitar seu laço com a mãe, enquanto Outro encarnado. Brincará de reversão de lugares
com ele, elaborando, por meio de cenas substitutivas com brinquedos, as passagens da
uma revolta inequívoca contra a passividade.518 O brincar de bonecas das meninas nesse
momento representa menos uma passagem à posição feminina por identificação à mãe, do
517
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
518
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 271.
519
Idem, ibidem.
216
VI.4. Jogos de temporalidade intersubjetiva:
estabelecimento de um litoral entre gozo e saber. No entanto, há outro aspecto no qual este
Espaço e tempo, ambos estão implicados na inscrição do litoral produzido nos jogos que
Se o Fort-Da joga com a borda entre o "aqui e o lá", em termos espaciais, o "um,
dois, três eeee.. já!" joga com a fina lâmina que separa (entre o eeee arrastado e o já) a
cedo no laço mãe-bebê. Exemplo disso é a mãe que, movendo a mão em direção ao bebê,
anuncia: olha a aranha descendo, vem chegando, vem chegando, eeeee.... chegou! –
A borda temporal que esse jogo tece não diz respeito a um tempo do relógio, mas a
temporalidade intersubjetiva que permeia esse jogo ri mesmo antes que a aranha chegue a
fazer as cócegas em seu corpo. Ele já sabe, ele antecipa o gozo que está por vir.
520
Jean Bergès (1988a). O corpo e o olhar do Outro, p. 54; Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem –
a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p. 157.
217
Os jogos de expectativa e precipitação se colocam em cena, por exemplo, nas
cantigas e parlendas infantis. Se inicialmente a mãe joga com o ritmo da música, o que
oferece cantigas e parlendas nas quais produz uma espera para que a fala ou gesto da
expectativa até o momento certeiro em que a fala da criança precipita-se nessa esperada
realização.522
um circuito com o Outro, o jogo de pega-pega, por sua vez, coloca em relevo a dimensão
exemplo), ou em que é preciso lançar o próprio corpo em uma corrida no momento em que
se é convocado a precipitar-se no "já"; jogos nos quais é preciso virar estátua quando é
dada a ordem, ou sentar-se na cadeira quando a música para. Todas estas são versões que
vão tornando mais complexos, mediando com mais regras, estes jogos de expectativa e
precipitação no ato.523
bebê. Em tais cuidados, a mãe espera as realizações do bebê com uma certeza antecipada,
mas, quando ele se precipita na realização do ato esperado – por exemplo, ao caminhar ou
ao falar as primeiras palavras –, isso toma a todos de surpresa. Ora, o que surpreenderia,
sendo que é um ato esperado? Na medida em que a criança engaja seu gozo em tal
521
Ângela Vorcaro. O organismo e a linguagem maternante: hipótese de trabalho sobre as condições do
advento da fala e seus sintomas. Ver também capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês", desta
tese.
522
Veja-se, por exemplo, a cantiga popular Atirei um pau no gato, em que toda uma história é contada até
que o gato berra, e aí a pequena criança pode dizer o esperado: miau! Ou em Escravos de Jó, em que as
estrofes: tira-bota deixa ficar coincidem com um gesto que é demandado.
523
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
296.
218
produção, os pais passam a atribuir a ela o saber sobre isso, passam, então, da posição dos
Esse jogo temporal também é retomado mais adiante pela criança quando brinca de,
deslocamentos temporais e espaciais nos quais o objeto nunca está no espaço e tempo onde
Que o bebê antecipe no jogo com a mãe o que está por vir e que a mãe se
surpreenda diante das realizações do filho, implicam um jogo de inscrição de litoral entre
gozo e saber sustentado nesse laço em torno da dimensão temporal. Se a mãe inicialmente
detinha um saber, por uma certeza antecipada, na medida em que o bebê engaja seu gozo
no jogo, a mãe se surpreende, passando para o bebê a autoria sobre tal produção, supondo
antecipam o gozo que está por vir diante de alguém que sustentaria o arco da promessa de
realização.525 Por outro lado, frequentemente encontramos, e não por coincidência, pais
que padecem e temem por atrasos das produções do filho e clamam por sua adequação
524
Idem, p. 160-166.
525
Ver acima nota 506 acerca da música A tua presença morena.
219
suposto sem-sentido. O gozo aí transborda, mas não se articula sua borda em relação à
produção de um saber.
A mãe tem o intenso trabalho de produzir uma trama que não é fechada em torno do
corpo do bebê. Faz com ele um intenso trabalho de bordado, de bordejar os buracos
corporais. Sobre as descontinuidades reais do corpo ela borda um mapa erógeno, redesenha
suas bordas, fazendo inscrição em torno de cada uma de um litoral de gozo. Assim, as
corpo. Mas ela também estabelece no laço com o bebê, nos cuidados e jogos que implicam
Mas, para que tal inscrição materna opere, para que ela se produza, é preciso que
acolha o gozo do bebê ao mesmo tempo em que lhe faz litoral a partir de um saber. Assim,
quando a mãe fala ao bebê, quando lhe endereça palavras que quer que o bebê receba, o faz
utilizando uma forma de falar com ele particularmente convocante (articulando o gozo da
linguagem).526 O bebê não se engaja se o que está em jogo não for, por assim dizer,
cuidadosamente de propiciar transitivamente gozo a seu bebê de modo que este gozo, em
lugar de ficar achatado sobre uma zona corporal, torne imprescindível o Outro em seu
526
Ver a este respeito o capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
220
circuito. A mãe, de fato, perverte, corrompe a natureza, superpondo ao gozo do corpo do
Uma vez engajado, o gozo do corpo faz litoral com o saber. A dor sentida na carne
da pequena criança que cai requer o "ai!" que a mãe transitivamente coloca, emprestando
em cena seu próprio saber, do qual a criança se apropria para que a dor possa ser sua, para
Nos cuidados que uma mãe dirige ao bebê, nos jogos que coloca em cena com ele,
mãe como alguém que sabe e é por isso que ela pode outorgar um estatuto de fala às
É preciso que ocorra uma ilusão antecipadora desde a função materna, que a mãe
supostamente sabe de seu desejo – apesar de toda a insuficiência real de seu corpo –, para
que o bebê possa se constituir enquanto tal. Winnicott denominava isso de loucura
necessária das mães. É uma questão interessante pensarmos o quanto a nossa intervenção
não implica certa loucura necessária do clínico,530 na medida em que intervimos supondo
um sujeito uma vez que, para que a criança venha constituir-se enquanto tal é condição que
Então, se a sedução é condição necessária para a função materna, ela não se detém
527
O sentido de seduzir, para além de perverter, corromper, aponta a capacidade ou processo de atrair alguém
capciosamente ou através do estímulo à sua esperança ou desejo. In: Dicionário eletrônico Houaiss.
528
Ver a este respeito o capítulo "A maternidade além do gozo fálico".
529
O que a criança demanda à sua mãe com sua demanda é algo destinado, para ele a estruturar a relação
presença-ausência que o jogo original do Fort-Da estrutura e que é um primeiro exercício de mestria.
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 76. Optamos pela livre tradução a partir de
edição eletrônica estabelecida para circulação interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires.
530
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
132.
221
em tomar o bebê como um objeto para si, ela o faz por meio da loucura necessária,
a sedução que convoca o bebê a engajar o seu gozo em uma matriz simbolizante; entre a
prevenção das possíveis dificuldades e a surpresa com a criação do bebê é que pivoteia a
função materna sustentando, para o bebê, a inscrição da letra enquanto litoral entre gozo e
saber.
"A criação da criança" é uma frase que se presta a um equívoco entre genitivo
subjetivo e genitivo objetivo: o que estaria em jogo seria o modo como a criança é criada
Este equívoco é justamente o que opera nos jogos constituintes do sujeito nos quais
teria supostamente a capacidade de inventar, de realizar algo nunca antes realizado, que se
Mais precisamente: o Outro convoca o gozo da criança, mas, uma vez que esta se
engaja, é preciso que o Outro suponha, atribua à criança um saber sobre sua produção, para
531
Jean Bergès (1988a). O corpo e o olhar do Outro, p. 51-65.
222
que a própria autoria da criança possa vir a se estabelecer. Por isso, consideramos central
sustentar a dimensão equívoca "da criação da criança" para circunscrever o que se opera
como momento da vida relativa ao infans – enquanto aquele que ainda não fala. Que a
criança não circula pela linguagem com a mesma desenvoltura de um adulto é certo. No
entanto, é na linguagem que ela já tem um lugar demarcado, a partir do qual precisará
Mas o que fazer enquanto isso? Ou melhor, o que fazer para que tal passagem – do
ser falado ao falasser – possa vir a se produzir? O que fazemos na clínica com aqueles que
ainda não falam? Ora, brincamos. Não é que brincamos para simplesmente deixar passar o
levamos a sério esse brincar da criança. Essa é a inventiva saída que, enquanto analistas de
o que se faz de melhor em nossa cultura diante daquilo que a palavra não representou:
Criança (do latim creantia) é ao mesmo tempo ser que se encontra na infância e ato
e efeito de cuidar, como sinônimo de criação.532 Criar (do latim creare) diz de produzir
uma coisa que até então não existia. Engendrar, inventar, fundar, fazer nascer, fazer
criança diante de uma palavra que, por sua condição de infante, ainda se revela
532
Fontes consultadas: Dicionário Houaiss da língua portuguesa; Dicionário Larousse ilustrado; Dicionário
escolar Latino Português.
223
sustentar a condição para que ela possa vir a ser autora de atos criativos, sustentado seu
lugar de sujeito ali onde a fala ainda se revela insuficiente, mas que podem ser exercidos
na esfera protegida do brincar. Por isso, levar a sério o brincar implica dar valor de ato de
um sujeito às produções da criança, reconhecendo-a enquanto tal para que então ela possa,
"Agora estou com medo de uma palavra!", diz Estela, no começo de uma sessão.
Quando lhe pergunto de qual palavra, ela afirma que não pode dizê-la, pois a mãe lhe
disse que "poderia atrair coisas ruins". Quando lhe digo que se não me contar não poderei
ajudá-la e que ficar com medo certamente vai ser muito ruim, decide soletrá-la, na tentativa
de, ao romper a sonoridade no ato de sua pronúncia, evitar seus supostos efeitos maléficos.
Pergunto como foi que isso começou. Ela me conta que estava brincando de cantar
fonemas saxões que, no entanto, geralmente não formam palavra alguma) quando a mãe
lhe perguntou se ela sabia o que a música dizia. Ela não sabia. A mãe lhe conta que a
música falava do diabo e diz seu nome em inglês. Tratava-se da música Simpathy for the
devil.533 A partir de então ela descobre que Cruela Devil, vilã do filme e conto infantil
Diz, então, que quer brincar com argila. Brincadeira que costuma solicitar nas
533
Rolling Stones (1968). Album Beggars Banquet, gravadora Decca. Sua Letra diz: Pleaset to meet you,
hope you guess my name. Ah, hats puzzling you is the nature of my game. Em português: Espero que você
adivinhe meu nome. O que incomoda você é a natureza de meu jogo.
224
Há algumas sessões havia feito em argila a escultura uma menina dormindo sozinha
na cama (composta de menina com ursinho, cama e mesa de cabeceira com abajur). A
escultura exigiu bastante trabalho e mais de uma sessão entre confecção, pintura e
secagem, após o que pediu para dá-la de presente para o dia das mães, fato a que assenti,
De fato, isso fez a mãe solicitar algumas sessões para falar do assunto: Estela
dormia na cama com a mãe, para contento das duas diante do consentimento contrariado
importantes sintomas fóbicos que a impedem de realizar desde passeios escolares até
qualquer ato que implicasse o mais mínimo risco corporal (desde andar de patins até pular
do sofá).
A sessão em que me conta de seu "medo da palavra diabo" cai justamente no dia
dos namorados. Enquanto começamos a brincar com argila, conta-me que o pai não iria
comprar presente para a mãe porque, em lugar de trocar presentes, eles combinaram de sair
para jantar. Diz então que, como o pai não ia mesmo dar presente, ela poderia fazer um
presente para a mãe. Tal ato eu não consinto, situando que o presente que ela poderia dar já
havia sido dado: o do dia das mães. Aponto ainda que, se a mãe e o pai haviam combinado
Ela, que é uma menina bastante inteligente, logo responde, sorrindo: "Tá bom, eu
entendi!", e decide, dessa vez, fazer um boneco do Cebolinha.534 Pede que eu também faça
percebe que eu estou fazendo um diabo e ri. Logo diz que é um boneco grande.
534
Personagem da história de quadrinhos para crianças Turma da Mônica, de Maurício de Souza, cuja
principal característica é falar errado – o que não me parece uma escolha casual diante do temor que lhe
produziu que a mãe soubesse o que ela dizia sem saber.
225
–– E se fosse o Chico Bento que dissesse isso? Dia bão, sô!535
–– É. Que parece que diz uma coisa, mas diz outra... Acho que agora eu perdi o
Tal recorte clínico nos permite pensar o quanto brincar é decifrar, não para positivar
O extremo dessa questão se coloca quando a criança passa a brincar com a língua,
chegando aos jogos de palavras. Durante bastante tempo ela é presa da língua, não
consegue apropriar-se de um saber que lhe permita achar a graça, recuperar o gozo, da
piada que ela mesma conta fazendo outro rir. Ou, como aponta Freud, ela é capaz de
produzir ditos ingênuos guiando-se pela mesma lógica da produção de um chiste, por
exemplo, a homofonia, mas sem ter tal intenção.536 É o outro que sabe e ela fica capturada
em um gozo que produz ao contar a piada, mas em relação ao qual não pode fazer-se
sujeito de um saber. Daí que seja um salto quando pode tomar a palavra como objeto de
jogo.
O jogo de palavras certamente é o jogo mais fino, sutil a que se pode chegar. Ao
brincar com a letra, tergiversando a língua por meio de um saber, se produz um mais-de-
gozar que leva a rir através da linguagem, com o corpo. Como uma criança de três anos
que ria ao dizer que "a locadora (de DVDs) era um lugar cheio de loucos", ou a de cinco
que, diante da insistência da mãe de que fizesse compressas para baixar a febre, retrucou:
535
Forma como, supostamente, esse personagem, que é "caipira" (tendo um sotaque interiorano específico),
diria: "Que dia bom!"
536
Sigmund Freud (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente, p. 208.
226
Se a letra inscreve litoral entre gozo e saber, o chiste, o jogo com a língua, ao tomar
Gostaria de trazer uma última vinheta clínica que não diz respeito ao tratamento de
um bebê, mas do de um menino de quatro anos que apresenta sérias dificuldades. Seu
Trago-o justamente porque certos jogos precursores do Fort-Da que, quando corre
tudo bem com uma criança, podem dar a impressão de serem espontâneos, na medida em
que são prontamente encadeados no laço com a mãe, na clínica revelam todo o árduo
Frederico chega com diagnóstico de autismo. Houve todo um trabalho com os pais
situando a diferença entre "ser" e "estar" autista, no sentido de apostar não na pura
repetição e perpetuação de seus sintomas, dando seu estado como definitivo, mas de uma
jogo estabelecido em sessões: ele corria e ela o pegava dizendo "peguei!". Ele passou, em
alguns momentos, a deixar escapar um "ei!". Isto ocorreu ao longo de um ano do primeiro
tratamento – o que não foi pouca coisa, considerando-se o quadro de absoluto mutismo
desse menino. Ele não só não emitia palavras, mas qualquer produção sonora modulada em
537
Contou com a parceria de um trabalho em equipe com fonoaudióloga, acompanhante terapêutico e equipe
escolar.
227
prosódia, a não ser alguns poucos gritos estridentes que não discriminavam entre a
que, desde o ponto de vista do real orgânico, não apresentou nenhum impeditivo que tenha
Tomo então o menino e seu jogo primordial. Ele corre e também dá alguns gritos que
próximo que consigo de um relinchar e a acompanhar seus passos por um verso: "Ico, ico,
ico, ico, o cavalo de Frederico!", percebendo, ao fazer tal proposta, que a onomatopéia do
galope coincidia com a terminação de seu nome. No jogo, o ritmo do verso acompanha o
ritmo de seus passos que, muitas vezes, também passo a acompanhar com o barulho de
galope de meus próprios pés ou com um estalo da língua (como costuma se fazer para
imitar o trote dos cavalos). Começo um tempo depois que ele começa, deixando um tempo
para que ele estabeleça uma espécie de convite à brincadeira. Paro logo que ele para. São
sessões intensas, nas quais o ritmo e o tempo são decisivos. Ele entra no jogo e começa a
modular seu grito como um relinchado e a ritmar seus passos como um galope, lançando-
me fugazes olhadelas.
A mãe, presenciando o jogo, conta que Frederico gostava muito, desde pequeno, de
um filme chamado Spirit – desenho animado sobre um cavalo selvagem que resistia a ser
domado pelo homem branco e que faz amizade com um índio. Conta-me que ele assistia ao
filme em uma época que ela esteve muito ausente, ocupando-se da outra filha. Assim a
cena ganha um sentido, articula-se para a mãe: o saber de um suposto sujeito e não mais o
estranhamento da doença.
"Vou te pegar!", dizia-lhe quando ele passava perto com um sorriso no rosto, como
que se oferecendo para ser pego. "Eu te peguei, cavalinho, eu te peguei, menininho!", eu
228
lhe dizia, fazendo-lhe cócegas. Ele ria, deixando ocasionalmente escapar um "ei!" e
Pouco a pouco, na cena clínica, foi estabelecendo uma série de palavras: tais como
"coca", para referir-se a um caminhão que tinha escrito o nome do refrigerante que, quando
ele lançava, eu recuperava para ele. Começamos, assim, a realizar uma brincadeira de jogar
um para o outro que durava uns dois lances. Nessa cena eu falava nos momentos de
descontinuidade: "um, dois, três e... já!", eu lhe dizia, ao lançar o caminhão; "Pegouuuu!"
quando ele o pegava; "Peguei!", quando eu o fazia; e "Opa! Caiu!", quando ele,
"Vou pegar... e... peguei!", o que, por vezes, fazia com que ele me olhasse e,
Que uma criança não olhe, não fale, geralmente leva quem está com ela a falar em
excesso como modo de procurar recobrir a angústia que a falta de encadeamento de sua
produção e a falta de endereçamento produz aos outros. Nos jogos aqui situados trata-se de
da ação que a criança está a fazer ou observar, como modo de convocá-la a se engajar, a
ligar o afeto que a atinge em seu corpo, ao jogo de uma série que procuramos sustentar
peguei!, cadê...achou, e.... já!, Epa lelê!, Oooô!, essas breves palavras, esses significantes,
essa alíngua que marca os pontos de descontinuidade que podem afetar a criança na
Certo dia ele trouxe um ônibus que a mãe lhe comprou na padaria. Quando abro a
229
porta do consultório, ele estava inconsolável e aos gritos na sala de espera porque a porta
porta. Nisso a mãe se dirigiu à porta do consultório decidida a comprar outro ônibus na
padaria, ao que eu disse claramente que não, afirmando: "Chega! A porta caiu, não tem
conserto, agora tem um buraco, vamos brincar com ele", então ele, além de chorar, passou
E eu lhe dizia: "É, caiu! Você quer, mas caiu", consolando-o, mas sem procurar
evitar o inevitável. Fomos até a sala e ele se interessou pela tinta. Eu então desenhei o
ônibus para ele contando a história da porta que caiu. Depois a mãe entrou e contei para
disse a mãe.
– É, mas aí ia ser OUTRO ônibus, com este que estragou dá para inventar uma
– Foi o papai que colocou quando contamos a história. Ele brincou com o ônibus o
Passamos a brincar de fazer a borda de vários objetos, desenhando com lápis. Ele
demandava essa brincadeira pegando a minha mão e colocando o objeto a ser desenhado
sobre o papel. Depois retirávamos o objeto e, dando-me a tesoura, dizia, muitas vezes, "co"
de cortar. Depois nos olhamos através do buraco que o objeto recortado havia deixado no
papel. Pedia-me "co", para colorir, e "co", para colar na porta de entrada do consultório –
justo ponto de corte entre dentro e fora, ponto de entrada e saída – na soleira da qual
passou a se despedir de mim quando eu lhe dizia "tchau", colocando-me dentro da sala e
fechando a porta.
230
Passou a controlar esfíncteres pedindo para fazer "cocô!". Começou a dizer algo
parecido com sim e com não, acompanhando tais significantes com claros gestos e
prosódia de agrado ou desagrado. Nas sessões, em alguns momentos, passou a sair da sala
Certo dia a mãe chegou contando que Frederico passou a chorar quando alguém saía,
preciso sustentar, pôr em jogo, com o bebê. Primeiro, para que haja Outro encarnado que
conte para ele, cuja presença e ausência façam registro, na medida em que ele também seja
convocado, levado em conta por esse Outro, sustentado em uma série. Colocam-se assim
em cena os jogos constituintes do sujeito sem os quais não têm como advir o brincar de
Fort-Da.
A história continua, mas interrompo o relato aqui, justamente para apontar o intenso
trabalho requerido para chegar a possibilitar aquilo que, na cena do Fort-Da de Ernest
Ico, coca, cai, cola, cocô, qué – mais adiante – o quê que é? Tênues deslocamentos
significantes produzidos a partir dos jogos constituintes do sujeito que, ao operarem sobre
o detalhe, sobre os cortes, os pontos de descontinuidade que afetam o corpo e que o fino
bordado da linguagem, ao estender seu fio, vão tecendo em torno do gozo do corpo, vão
231
VI.9. De novo! Repetição e criação com a letra no brincar
Afirmar que não se deve cobrar o valor de um ato ao brincar da criança, justamente
para não romper a esfera de proteção no qual se desenrola, não equivale a dizer que ele seja
um ato inconsequente para a constituição psíquica. Como nos lembra Freud, a criança leva
muito a sério o brincar, emprega nele grande quantidade de afeto. O oposto do brincar
não é a seriedade, mas a realidade efetiva 538 Em sua constituição psíquica é sim um ato
criança, mas diz respeito a um real que a implica em sua economia de gozo. Brincar tem
um caráter necessário quanto à estrutura do sujeito na infância por lhe permitir uma
articulação entre real, simbólico e imaginário, sendo fundamental para a sua economia de
gozo e para a produção de um saber-fazer que surte efeitos constituintes para o sujeito na
infância.
"De novo!", "mais um!" e "outra vez!" – nas voltas e reviravoltas do brincar insiste a
repetição, mas também se dá lugar à articulação de uma diferença (a algo de novo) em que
é produzido um retraçado desse litoral entre gozo e saber. Nesse retraçar não se eliminam
as inscrições anteriores, pelo contrário, são tecidos novos pontos de amarra nessa borda,
novos arremates, novos ancoradouros nesse litoral que coexistem com os anteriores.
Afinal, cada vez que se relança o um do "mais um!", que insiste na brincadeira, se procura
538
Sigmund Freud (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 149. Optamos, no entanto pela livre tradução a
partir da edição em espanhol, dado que em português utiliza-se o termo real em lugar de realidade.
232
faz-de-conta, nos jogos de regras, nos jogos de palavras, relança-se para a criança a
inscrição da letra no litoral entre gozo e saber. Ali retoma-se a letra transmitida como
amarelada de medo, tinha medo de tudo aquela chapeuzinho (...) não brincava mais de
nada, nem de amarelinha.540 Até que um dia, de tanto pensar no lobo, de tanto sonhar com
o lobo, encontrou o lobo. E, de tanto que ele disse "eu sou o lobo, lo-bo, lo-bo, lo-bo" para
Chapeuzinho, de repente ele virou bo-lo de lo-bo. Um bolo que Chapeuzinho Amarelo nem
quis comer, porque ela gostava mesmo era de bolo de chocolate. Assim, Chapeuzinho
deixa de ser amarela de medo porque passa a amar elos, a armar elos, a saber-fazer, a
criar.
incessante movimento erótico de ser devorada e devorar, tão bem retratados pela história
infantil de Chapeuzinho Vermelho, pode inventar. O Outro encarnado já não sabe tudo,541
pois a criança pode, diante da falta, do irremediavelmente insabido, pode produzir certo
ineditismo. Não à toa, Freud apontou o brincar das crianças como uma grande realização
cultural.542
Mesmo a criança não sendo um artista, no sentido de que suas produções não têm o
estatuto de um sinthoma,543 pois, diferentemente do adulto, seu gozo não se acha fixado, no
539
Francisco Buarque de Holanda (1979). Chapeuzinho Amarelo. Uma ilustração dessa obra, com autoria de
Ziraldo, consta nos anexos.
540
Idem.
541
Ao longo da primeira infância o bebê e a pequena criança sentem-se transparentes diante do Outro
encarnado, na medida em que o Outro detém um saber sobre seu gozo. Brincar com a falta, com a presença-
ausência que o Fort-Da articula, permite também estabelecer a dimensão do ocultamento, ou seja, de saber
algo que o outro não sabe. Daí a importância enquanto sintoma estruturante, das pequenas mentiras infantis e
dos gestos de ocultamento que implicam, por parte da criança, um árduo trabalho de separação de seu Outro
encarnado. Exemplo disso é uma pequena menininha de três anos que, diante da pergunta da mãe: "quem
bagunçou essa gaveta?", argumenta: "Não fui eu!", e, depois de uma pausa, acrescenta: "Você não estava
lá!", entregando a cena que busca ocultar.
542
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 27.
543
Tomamos, para isso, a grafia proposta por Lacan (1975-1976), no seminário 23, ao diferenciar symptôme
de sinthoma. O primeiro fica situado não como sinal de uma doença, mas como expressão de um conflito
233
entanto, ela pode "fazer artes", pode produzir travessuras. Nelas a criança não faz só o que
dela se espera, ela vai além da suposta complementaridade, operando certa travessia do
vir a produzir, diante da falta, uma criação suplementar Nesse sentido brincar é um
Por isso, um tratamento não vai na direção de que a criança simplesmente faça o que
dela se espera, mas na de dar lugar para que ela possa criar, servindo-se do simbólico, da
articulação dos jogos constituintes do sujeito operando com a letra no litoral entre gozo e
psíquico que, ao longo de uma análise, pode cair, tendo, portanto, um caráter contingente na resolução dos
conflitos psíquicos. O segundo faz suporte para o sujeito (p. 44), articulando por meio de um quarto nó
suplementar o registro real, o simbólico e o imaginário (p. 55), sendo central em sua economia de gozo e
desejo, não podendo cair e tendo, portanto, um caráter necessário, tal como escrever é para o escritor. (p. 71).
Alfredo Jerusalinsky, em Psicanálise e desenvolvimento infantil, aponta que na infância encontramos uma
duplicação do elo do real, na medida em que a criança se encontra com a dupla demanda do Outro: de que
seja criança e de que seja grande, entre a insuficiência real de seu organismo e a antecipação simbólica. Essa
duplicação resulta em uma série de formações psíquicas próprias da infância: o fato de o Outro ser
encarnado, o fato de a criança necessitar sustentar na relação de objeto uma transicionalidade entre ela e o
Outro, e na relação dialética entre o brincar e a realidade pelo qual a realidade está no que se brinca, mas o
que se brinca não está na realidade (p. 52-55). Por meio do brincar a criança produz um saber fazer.
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Jacques Lacan (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma, p. 71.
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