Tribunais Comunitarios

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

O PAPEL DOS TRIBUNAIS COMUNITÁRIOS


NA PREVENÇÃO E RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS DE TERRAS E OUTROS

1. Introdução
2. Metodologia e caracterização da amostra
3. Sistemas costumeiros de uso da terra
4. Origem e evolução dos tribunais comunitários como
instâncias oficiais de resolução de conflitos
5. Resultados do estudo sobre acesso, posse e transmissão
6. Papeis relativos das instituições na prevenção de conflitos
7. Recorrência e resolução dos conflitos de terras
8. Conclusões e Recomendações

Maputo, Setembro de 2002

Cruzeiro do Sul – IID CFJJ

José Negrão João Carlos Trindade


João Donato André Cristiano José
Telma Mbeve Joaquim Fumo
Sandra Bulha Ambrósio Cuahela

FAO – Projecto GCP/MOZ/069/NET

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1. INTRODUÇÃO

O presente relatório inscreve-se nas actividades desenvolvidas no âmbito do Projecto


GCP/MOZ/069/NET, estabelecido entre a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e a Alimentação (FAO) e o Governo da República de Moçambique, cujo
objectivo geral é o de apoiar a implementação de três diplomas legais recentes e
inovadores no ordenamento jurídico moçambicano: a Lei de Terras, a Lei do
Ambiente e a Lei das Florestas e Fauna Bravia.

Este objectivo geral desdobra-se em quatro objectivos específicos, assim escalonados:

1 – Fortalecer a compreensão dos membros do judiciário sobre as referidas leis e


diplomas regulamentares, de modo a melhor habilitá-los a decidir sobre os litígios
que, nos respectivos domínios, venham a ser submetidos à sua apreciação. Para o
efeito, e no decurso dos três anos de duração do Projecto, serão realizados cursos de
formação específica de âmbito regional, envolvendo um total de 270 magistrados
judiciais e do Ministério Público, e produzidos os respectivos manuais e restante
material pedagógico;

2 – Elaborar uma série de textos jurídicos de referência, sob a forma de opiniões


doutrinárias e de comentários às três mencionadas leis, os quais servirão de fonte de
direito e de jurisprudência, bem como de instrumentos de trabalho para os
magistrados, advogados, técnicos jurídicos, docentes e estudantes de Direito;

3 – Facilitar o desembaraço das regras de procedimento nos tribunais moçambicanos,


particularmente as que se prendem com as questões ambientais e de terras, e
promover a formação jurídica e a reestruturação do sistema de administração da
justiça. Este objectivo será prosseguido através da troca de experiências técnicas entre
membros do Judiciário de Moçambique e do Brasil, realizando-se, com essa
finalidade, uma viagem de estudo de seis magistrados moçambicanos a São Paulo e
Pernambuco, e outra, de retribuição, de magistrados brasileiros a Moçambique;

4 – Desenvolver e testar, numa base piloto, metodologias e material didáctico para a


formação dos membros dos tribunais comunitários sobre os princípios constitucionais
e os princípios basilares das novas leis.

Como actividade preparatória deste Objectivo 4, foi estabelecido, na Carta de Acordo


(“Letter of Agreement”) relativa ao primeiro ano do Projecto e assinada pelo
representante residente da FAO e pelo director do Centro de Formação Jurídica e
Judiciária (CFJJ), um plano de trabalho visando “investigar a fundo o interface entre
o sistema judicial e os sistemas costumeiros de administração da justiça e
compreender as ligações, os fluxos de informação e as interdependências entre
ambos”. É em cumprimento desse plano de trabalho que se apresenta agora o relatório
da acção de investigação desenvolvida.

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O estudo foi conduzido em parceria por equipas de investigadores do CFJJ e do


Cruzeiro do Sul1 e iniciou-se com a consulta de documentação relevante disponível
nas duas instituições, e bem assim com a elaboração dos instrumentos de recolha de
informação, nomeadamente os questionários e os guiões de entrevista. Discutiu-se,
igualmente, as características da amostra atendendo à heterogeneidade sócio-cultural
do país.

Nessa perspectiva, para além da província de Nampula, que vem mencionada no


Documento do Projecto (“Project Document”), seleccionou-se como área de estudo,
em consequência do trabalho de revisão da literatura e dos encontros entre as equipas
de investigação, a província de Manica. A escolha foi justificada pelas circunstâncias
de haver nesta província registos relativamente volumosos de conflitos de terra (e
outros relacionados com o acesso e a gestão dos recursos naturais), de ela se situar no
interior do país e ter como regime sucessório predominante o sistema costumeiro
patrilinear e de, nessa medida, representar uma comparação significativa ao contexto
cultural de Nampula.

Os mesmos critérios de representatividade orientaram a indicação dos distritos onde a


investigação viria a ter lugar: Rapale (Postos Administrativos de Rapale-sede e
Mutivasse) e Angoche (Postos Administrativos de Angoche-sede, Namitória e Aúbe),
na província de Nampula; e Manica (Postos Administrativos de Manica-sede,
Mavonde, Vanduzi, Machipanda e Messica) e Tambara (Postos Administrativos de
Tambara-sede e Nhacafula), no distrito de Manica. A unidade base para a amostragem
foi o Posto Administrativo, tendo-se em consideração a dispersão geográfica e a
manutenção das características gerais da população alvo.

No total, foram administrados 3.371 inquéritos válidos. Foi definida uma amostra de
600 inquéritos por distrito, sendo 100 destinados às sedes distritais e os restantes aos
postos administrativos e respectivas localidades. O levantamento quantitativo foi
acompanhado por um outro de ordem qualitativa, nomeadamente entrevistas a grupos
alvo, tais como juizes dos tribunais comunitários, administradores, autoridades
tradicionais, entre outros.

Localmente recrutaram-se grupos de inquiridores, a quem foi prestada uma formação


prévia. Devido aos constrangimentos próprios dos distritos, a constituição dos grupos
de inquiridores foi bastante heterogénea, o que veio a reflectir-se na menor qualidade
de alguns dos inquéritos preenchidos.

1
Instituto de Instituto de Investigação para o Desenvolvimento, instituição privada sem fins lucrativos
registada junto do Ministério para o Ensino Superior, Ciência e Tecnologia.

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2. METODOLOGIA E CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA

O tamanho da amostra foi fixado em 200 entrevista por cada unidade de amostragem,
tendo-se em consideração a eventual variabilidade das respostas, os dados recolhidos
nos censos populacional e agro-pecuário dos anos 1997 e 2000, respectivamente. A
margem de erro das respostas situa-se entre os 3% e 4% o que se julga ser suficiente
para a caracterização das práticas actuais nos sistemas de uso dos recursos e na
prevenção e gestão dos conflitos de carácter fundiário.

TAMANHO DA AMOSTRA Valores reais


Posto Administrativo Nº
Entrevistas
Distrito Manica - Prov. Manica
Manica Sede 122
Mavonde 162
Vanduzi 284
Machipanda 368
Messica 212
Distrito Tambara - Prov.
Manica
Tambara Sede 603
Nhacafula 596
Distrito de Rapale - Prov. Nampula
Rapale Sede 175
Mutivasse 200
Distrito de Angoche - Prov. Nampula
Angoche Sede 200
Namitória 200
Aube 249
Total 3371

Tabela 1: Distribuição da amostra

O levantamento quantitativo foi acompanhado por um outro de natureza qualitativa


onde se identificaram os seguintes grupo-alvo: tribunais comunitários, tribunais
distritais e provinciais, administrações públicas e organizações da sociedade civil2.

Para além das entrevistas directas, foi consultada a documentação disponível em cada
uma das instituições, bem como, se fez uso da rede de organizações que colaboram
com a Campanha Terra, incluindo os arquivos locais de Organizações Não-
Governamentais nacionais e estrangeiras.

A razão da selecção destes distritos prende-se com o cruzamento de uma série de


variáveis, consideradas como indispensáveis para a caracterização da situação do País

2
Para efeitos deste inquérito teve-se por sociedade civil: toda a forma organizacional de cidadãos,
sujeita a uma estrutura comummente reconhecida pelos mesmos e cuja adesão se caracteriza por ser de
livre e espontânea vontade.

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no domínio do uso dos recursos naturais pelas populações rurais. As seguintes


variáveis foram identificadas pela equipa como sendo as mais representativas:

⋅ Nível de urbanização
⋅ Culturas agrárias praticadas
⋅ Quantidade de biomassa e sua utilização
⋅ Actividades empresariais
⋅ Passado histórico recente na área da administração
⋅ Confissão religiosa da maioria
⋅ Sistema de direito costumeiro de uso da terra

Assim, os Distritos foram seleccionados por reunirem as características abaixo


mencionadas.

Distrito de Manica

⋅ Padrão de assentamento concentrado com características urbanas


⋅ Grande diversidade de culturas alimentares pelo sector familiar com taxas de
colocação no mercado acima da média nacional
⋅ Uso generalizado de carvão vegetal e de materiais definitivos na construção
das habitações
⋅ Existência de um sector empresarial agrário moçambicano de origem
camponesa, quer a título privado quer em formas associativas
⋅ Administração sob o controlo do Governo desde a altura da Independência
⋅ Maioria cristã, com forte influência evangélica
⋅ Direito costumeiro da terra: sistema de territórios consignados

Distrito de Tambara

⋅ Padrão de assentamento disperso com características rurais


⋅ Culturas alimentares, principalmente, para consumo e acesso ao mercado via
venda de produtos de origem florestal como lenha e estacas para construção
civil.
⋅ Área florestal por excelência, que se caracteriza pelo uso sustentável dos
recursos florestais pela população mas com uma forte presença de madeireiros,
aparentemente, sem grande controlo no abate.
⋅ Actividades empresariais exógenas às comunidades locais, em particular
madeireiros
⋅ Área que durante a guerra esteve sob controlo da RENAMO.
⋅ Predominância de religiões baseadas em crenças locais
⋅ Direito costumeiro da terra: sistema de dependência de grupo

Distrito de Rapale

⋅ Padrão de assentamento densamente concentrado com característica rurais.


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⋅ Culturas industriais do algodão e caju e alimentares com predominância para a


mandioca.
⋅ Praticamente inexistência de floresta indígena o que acarreta uma elevada
percentagem da despesa doméstica na aquisição de combustíveis lenhosos.
⋅ Actividades empresariais de carácter endógeno às comunidades locais, em
particular para a produção do algodão, através das grandes companhias, e na
aquisição de caju, através de redes de comercialização sedeadas nas cidades.
⋅ Zona sob controlo do governo desde a época da independência
⋅ Maioria cristã com maior incidência na Igreja Católica
⋅ Direito costumeiro da terra: sistema de casamento preferencial

Distrito de Angoche

⋅ Padrão de assentamento densamente concentrado com características urbanas.


⋅ Culturas industriais de derivados do coco e de caju e culturas alimentares com
predominância para o arroz nas zonas baixas e o milho junto com mandioca
nas dunas costeiras.
⋅ Utilização do mangal como combustível doméstico e algum carvão de madeira
de cajueiro dada a inexistência de floresta indígena
⋅ Actividades empresariais locais com forte ligação aos sistemas registados3 de
comercialização sedeados nas cidades.
⋅ Embora o governo tivesse controlado grande parte do distrito em causa
durante a maioria dos anos da guerra houve e há uma forte influência da
RENAMO na gestão administrativa do território.
⋅ Maioria professa religião muçulmana.
⋅ Direito costumeiro da terra: sistema de segurança de três gerações.

O levantamento quantitativo realizado permitiu confirmar algumas destas


características gerais e especificar outras, conforme se pode ver na Tabela 2. Para
além disto, foram tidos em consideração alguns aspectos básicos relacionados com a
pessoa entrevistada, como a idade, o sexo, a posição social e o local de trabalho ser na
ou fora da machamba. Dentro de cada um destes grupos a selecção foi aleatória.

Ao nível de cada Posto Administrativo as comunidades foram escolhidas com base na


mais recente listagem dos aglomerados populacionais a que se teve acesso4. Após uma
primeira escolha aleatória no gabinete, verificavam-se as condições de acesso e de
habitacionais quando da ida ao terreno. Algumas rectificações foram então tomadas
para que se conseguisse cobrir a amostra previamente estabelecida.

3
Para efeitos deste relatório preferiram-se as designações de registado e não-registado em lugar de
formal e informal ou não-formal. Crê-se que o que distingue a natureza das múltiplas actividades de
carácter económico desenvolvidas pelas populações não é o facto de ser formal ou informal, uma vez
que não há acção que implique contratos que não esteja sujeita a formalidades, mas sim o facto de ser
ou não registado através da escrita e potencialmente junto dos serviços do Estado.
4
Trata-se das listas elaboradas pelo Cruzeiro do Sul baseadas nos dados dos recenseamentos
populacional e eleitoral em confronto com as listagens históricas dos anos 60 e 70.

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No geral a amostra seleccionada é suficientemente ampla e cobre a diversidade das


situações consideradas típicas no País, pelo que os resultados podem, com as devidas
cautelas, ser generalizáveis ao resto de Moçambique com uma margem aceitável para
as condições nacionais.

CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA Valores %


Manica Tambara Rapale Angoche Totais
Sexo do entrevistado
Masc. 61 52 72 74 65
Fem. 39 48 28 26 35
Grupo etário
< 40 anos 52 62 54 52 55
> 40 anos 48 38 46 48 45
Escolarização
Analfabetos 37 59 50 58 51
C/ escolaridade 63 41 50 42 49
Religião professada
Muçulmana 7 3 58 68 34
Cristã 53 48 41 31 43
Outras 40 49 1 1 23
Uso da terra
Sim 97 96 94 95 96
Não 3 4 6 5 4
Posse de árvores de fruta
Sim 81 45 68 70 66
Não 19 55 32 30 34
Utilização de outros recursos ("mato"; fauna; pesca)
Sim 97 97 55 25 68
Não 3 3 45 75 32
Conflitos nos dois últimos anos
Sim 34 6 12 7 15
Não 66 94 88 93 85
Tabela 2: Características básicas da amostra por distrito e posto administrativo seleccionados.

Em termos de análise agregados há a destacar:


i. a íntima relação das famílias entrevistadas com a agricultura, incluindo as que
se encontram em zonas predominantemente urbanas, como é o caso dos
distritos de Manica e Angoche;
ii. a elevada percentagem de famílias com árvores de fruta como fonte de
rendimento com excepção do distrito de Tambara onde os níveis de
rendimento per capita são os mais baixos das zonas seleccionadas, ou seja, as
fruteiras constituem uma forma de investimento explícita dos agregados
familiares;
iii. a quase inexistência de outros recursos onde a densidade populacional, como é
o caso do distrito de Angoche e a tendência para os mesmos adquirirem a
qualidade de mercadoria;
iv. a significativa percentagem de conflitos fundiários no geral e em particular no
distrito de Manica.

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3. SISTEMAS COSTUMEIROS DE USO DA TERRA

A eficiência e a eficácia dos sistemas costumeiros do uso da terra em Moçambique


foram claramente evidenciadas durante o reassentamento de cerca de cinco milhões de
cidadãos que teve lugar no pós-guerra. Foi digno de registo o facto de nenhum
conflito de terras de maior dimensão ter sido registado ou pedida a intervenção
externa para a sua resolução.

A partir de 1992, quando da assinatura do acordo de paz entre o Governo e a


RENAMO, teve lugar um processo de reassentamento que se caracterizou por a
selecção dos locais para onde as famílias se deveriam deslocar ser da inteira e livre
vontade dos cidadãos envolvidos. Nem o Estado, nem qualquer outra instituição,
intervieram na identificação de espaços físicos onde o reassentamento deveria
acontecer. Alguns cidadãos voltaram ao espaço das antigas Aldeias Comunais, outros
foram para as terras que lhes tinham sido atribuídas quando do tempo colonial e
outros ainda foram para as antigas zonas dos seus antepassados5.

Uma das peculiaridades da legislação sobre a terra em Moçambique é o facto de


sustentar que nesta matéria se deve adoptar o princípio da unicidade pela incorporação
da diversidade no sistema legal. Isto é, em lugar de um sistema dualista, onde o direito
costumeiro é codificado e corre em paralelo com o direito estatutário como é corrente
nas antigas colónias inglesas, ou do sistema unitário exclusivo, onde os direitos
costumeiros são totalmente ignorados como foi prática no tempo colonial, a legislação
Moçambicana suporta que a Lei é única mas deve ter mecanismos de incorporação
das várias práticas e sistemas costumeiras em força no País desde que não contrariem
os princípios e os direitos consagrados na Constituição da República.

Assim, qualquer acção de formação junto dos tribunais comunitários e outras


instituições que lidem com os sistemas costumeiros, requer primeiro, que se saibam
quais as características destes sistemas, que se conheçam as suas especificidades em
função de variáveis como o crescimento populacional e o aumento das actividades no
mercado6, e que se identifique a dinâmica de transformação em curso.

Como atrás foi referido, em cada um dos distritos seleccionados há um sistema


costumeiro de uso da terra específico. Seguem-se algumas das características desses
sistemas de acordo com os trabalhos de pesquisa realizados em Moçambique sobre
esta problemática7.
5
As aldeias comunais foram constituídas no âmbito da socialização do campo, tendo em termos
técnicos, constituído um dos maiores fracassos da política agrária no pós-independência. Já
administração colonial portuguesa tivera severos reveses quando procedeu à divisão de terras entre
portugueses e moçambicanos quando da constituição das chamadas reservas indígenas a partir da
década de 1910. Para muitos cidadãos, os territórios ocupados ou conquistados ao longo da história
pelos antepassados míticos ou reais continuam sendo as terras das linhagens onde os espíritos
familiares se encontram.
6
De acordo com a teoria evolucionária dos direitos de propriedade, o aumento populacional em
conjunto com o aumento das actividades do(s) mercado(s) resultam no aumento das situações de
conflito e, consequentemente, no aumento da procura por parte do cidadão de uma segurança de posse
de terra sem margem para dúvidas.
7
As descrições que se seguem foram adaptadas do artigo de José Negrão Sistemas Costumeiros da
Terra em Moçambique; in: Santos;Trindade et. al. “Conflito e Transformação Social: uma paisagem
das justices em Moçambique”, CEA-UEM/CES-UC, 2000:vol. 2, pp.10.1-10.43. As fontes e a
bibliografia utilizadas poderão ser aí consultadas.

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Sistema de territórios consignados – Distrito de Manica

O sistema dos territórios consignados verifica-se onde antigos reinos e impérios


dominaram as terras e as gentes até finais do sec. XIX.

Neste sistema quando um homem casa a sua família tem de pagar o lobolo à família
da mulher. O lobolo representa não só a garantia de transferência dos potenciais filhos
de um espaço territorial para outro, mas também a expressão pública de que a família
receptora da filha lhe garanta acesso à terra para habitação, agricultura e recolecção.

A família receptora adjudica terra ao casal no território da sua unidade espacial de


habitação, produção e consumo, mais conhecida por muti.8 Para além de ser uma
unidade espacial ela é também um organismo social de estrutura bem definida onde se
encontra a família rural regulamentada por leis consuetudinárias que são aceites por
todos.

Faz parte da estrutura a dependência do chefe comunitário para a adjudicação dos


direitos de usufruto das terras necessárias. Quando do casamento, se o chefe da “casa”
não tiver mais terra para adjudicar, deverá recorrer ao chefe da aldeia. Caso este
também não consiga encontrar terra para os jovens nubentes, então deverá entrar em
contacto com o “cabo de terra” para saber da possibilidade de ter acesso a terra
virgem ou a terra por empréstimo. Se mesmo assim o problema não ficar resolvido,
então o chefe comunitário é contactado, competindo-lhe optar entre adjudicar terra de
acesso comum, contactar com os chefes comunitários vizinhos, ou solicitar à
administração mais área para a sua comunidade.

Até ao Século XIX os territórios hoje sob o controlo do Estado, eram regidos pelo
chefe da terra, autoridade suprema ao nível territorial a quem competia convocar a
guerra em caso de tentativa de ocupação por outros povos. O poder do chefe
comunitário sai reforçado com o aumento do número de “súbditos” e faz-se exercer
através do monopólio de adjudicação de novas terras e do papel judicial que lhe é
reconhecido em situação de conflito. Está-se assim perante um sistema de territórios
consignados hierarquicamente do nível superior ao inferior, um sistema onde a noção
de território do Estado está claramente implantada, um sistema onde não é a ocupação
que determina o espaço da jurisdição mas este que decide sobre o acesso à terra.

Acredita-se que qualquer ocupação indevida ou ilegal pode ser sujeita à punição dos
espíritos dos antepassados dos “donos” legítimos da terra em causa. Para além disto, o
infractor sujeita-se a ser votado ao ostracismo social, sendo excluído de participar nas
redes de segurança e de obrigação mútua que se estabelecem através do casamento e
dos processos de herança. Desta forma há um reconhecimento tácito, por parte de
todos os que não têm possibilidade ou não querem romper com as dependências
estruturais, das formas consuetudinárias da concessão dos direitos de acesso à terra.

8
A muti é composta por um conjunto interligado de elementos como limites, casas, cozinhas, currais,
sombras, locais sagrados, casa de banho e espaços de acesso à água, à lenha e demais recursos e deriva
o nome da designação clânica do chefe do agregado. O seu crescimento e a sua distribuição espacial
são pensados em função do código cosmológico astral, especialmente do Sol e da Lua em seus
movimentos e ciclos circulares, marcando e organizando o horizonte por pontos referentes – os pontos
cardeais

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É por esta razão que o lobolo desempenha um papel primordial no sistema de


adjudicação da terra. Ele é a expressão máxima das obrigações mútuas entre as
linhagens aliadas, noutras palavras, ele constitui garantia contra os riscos da
reprodução social com que a família se depara geração após geração.

Até meados do século, e ainda hoje se passa embora de forma esporádica, era prática
comum que, a par do lobolo, se praticasse o sororato, ou seja a possibilidade de
casamento com a irmã mais nova da noiva. Este hábito foi caindo em desuso com o
avanço da urbanização, mas ainda é frequente encontrarem-se formas de poligamia
entre os mais favorecidos que têm por objectivo o alargamento das redes de segurança
social e o reforço da segurança alimentar do marido pela abertura de uma machamba
só para si que é trabalhada por todas as suas mulheres sob a direcção da primeira
esposa.

Se em vida existia o sororato a morte era acompanhada pelo levirato, ou seja, a união
marital da viúva com o irmão mais velho do defunto, continuando a usufruir de todos
os direitos e deveres de “esposa da família”. O acesso à terra ficava assim
condicionado pelo uso, de acordo com o que era determinado pela família receptora.
Com o tempo e, possivelmente, porque a terra disponível foi diminuindo, o levirato
foi caindo em desuso carecendo a viúva de autorização especial para permanecer na
terra da família receptora. Esta autorização poderia ser revogada ao fim de alguns
anos se a família receptora assim o entendesse, situação que usualmente acontecia
quando as crianças já estavam crescidas. Nestas circunstâncias, a segurança de acesso
à terra pela mulher era tanto maior quanto maior fosse o número de filhos e quanto
mais velho fosse o marido.

Na morte do marido a terra é herdada exclusivamente pelos varões da família. As


mulheres, por força do sistema de alianças de parentesco, são excluídas da partilha
uma vez que se subentende a sua inserção numa família receptora via casamento. O
controlo das terras da parcela familiar, assim como os bens e as obrigações do
defunto, ficam sob custódia e responsabilidade do filho primogénito, mas de forma
nenhuma adquire direitos de propriedade, nem pode alienar ou ceder, ainda que
temporariamente, sem consultar os seus pares (tios e primos). É com base nesta regra
de ouro, que a família garante a estabilidade do seu património usando-se todo o tipo
de ameaças relacionadas com os espíritos e a feitiçaria como medida preventiva.

Uma outra das medidas preventivas é a dos ritos de purificação após a morte do
anterior “dono”. Estes ritos têm por finalidade objectiva garantir o uso “devido” da
terra em função dos interesses e da reprodução da família. A purificação é uma
limpeza temporária dos espíritos “maus”, que a qualquer momento podem regressar
caso não sejam cumpridas as regras estabelecidas. Os ritos de purificação são dos
momentos simbólicos cuja origem se perde na memória dos séculos e deles se crê
depender o presente e o futuro da parcela familiar.

Nos nossos dias começa a ser cada vez mais usual que à viúva seja dado o mesmo
estatuto que à mulher divorciada por considerada culpa própria (adultério,
esterilidade, mau comportamento e acusação de feitiçaria), ou seja, a viúva é expulsa
das terras da família receptora e enviada de volta à família de origem. No entanto,
sempre que se verifica falta de terra a família de origem tem relutância em aceitar de

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volta a viúva desprezada ou a divorciada escorraçada, uma vez que ela não está
“contada” entre os que devem ter acesso à terra adjudicada à parcela familiar.

Constata-se também, que estes casos de descriminação da mulher são mais comuns
entre os casais onde o lobolo tem um papel meramente simbólico. Sempre que a
prática de expulsão por ambas as famílias se enraíza as mulheres casadas ficam numa
situação de debilidade de direitos no seu relacionamento diário com o cônjuge, uma
vez que não têm qualquer segurança de acesso à terra se tiverem de regressar à sua
terra de origem.

Uma forma de acesso à terra é o empréstimo. Uma família que tenha terras que não
estão sendo usadas, nem estão em pousio, pode emprestar a uma outra família ou
individualmente. O empréstimo está sujeito a várias regras, a mais importante é o
carácter temporário, quase de “emergência”, da transmissão dos direitos de
exploração e a proibição de plantio de árvores pelo ocupante. A proibição do plantio
de árvores deve-se ao carácter temporário da concessão de terra da família a um
vizinho com o qual não estão estabelecidas relações de aliança via casamento.

Ultimamente, em zonas onde a procura de terra é maior, começam a surgir cada vez
mais casos de aluguer de terras, cujas normas em pouco variam daquelas que regem o
empréstimo. A relação contratual em pouco ou nada beneficia o ocupante, não lhe dá
segurança de posse nem perspectiva de continuidade. Os contratos de exploração são,
habitualmente por campanha agrícola e não renováveis.

O sistema de territórios consignados está baseado numa série de pressupostos cuja


alteração de qualquer um deles, leva à alteração dos direitos e em alguns casos, à
ruptura do sistema. Entre os pressupostos contam-se:

⋅ disponibilidade de terra “virgem” sempre que o aumento populacional o exija;


⋅ disponibilidade de territórios de recolecção por régulo;
⋅ fluidez no estabelecimento de alianças entre linhagens via casamento (lobolo);
⋅ direitos da mulher de acesso à terra via casamento, via sororato, via levirato, via
cedência temporária de direitos de exploração (empréstimo e aluguer) ou via
autorização revogável.

Sempre que se verifica a alteração de qualquer um destes pressupostos a elasticidade


do sistema é testada, podendo incorporar a mudança ou entrar em ruptura. A
incorporação da mudança aconteceu quando a evolução das formas de casamento se
manifestou na diminuição relativa do valor do lobolo e no desaparecimento gradual
do sororato e do levirato. Nesse caso o sistema admitiu a permanência da “mulher sem
cônjuge” no território da família receptora ou de origem. Porém, o sistema começou a
entrar em ruptura, quando, após a Independência Nacional o lobolo foi proibido ou
quando após a assinatura do Acordo de Paz em 1992 o grande aumento de procura de
terras por terceiros provocou a escassez relativa de terra.

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Sistema de dependência de grupo – Distrito de Tambara

A terminologia sobre o parentesco do povo que fala cisena gombe reflecte a estrutura
económica das famílias rurais. Para este povo há três níveis principais para a referência
do parentesco: o dos avós, antepassados do pai e da mãe, o nível do ego, e o das
crianças. Apesar das diferenças identificáveis através das formas de tratamento, a
terminologia do parentesco baseia-se nas gerações.

A nomenclatura utilizada para identificar os parentes corresponde aos relacionamentos


entre os membros da família alargada e reflecte-se na administração dos territórios e nas
formas de adjudicação da terra. Embora este sistema tenha sido identificado numa zona
específica do País, na região centro, é provável que seja idêntico em regiões com
características similares, solos pobres, fraca produtividade, baixa densidade populacional
e na periferia de um grande império que se desmoronou por volta do século XV.

As famílias vivem num grande território comum e recebem terra para fazer as suas
machambas directamente do chefe comunitário. Entre as famílias alargadas
estabelecem-se relações económicas e sociais que não ocorrem entre as famílias
nucleares. O chefe da família alargada, que é o guardião da linhagem, reconhece
somente a autoridade do chefe comunitário, que é o responsável pela segurança e
reprodução das várias linhagens.

Porém, a família nuclear tem a sua própria identidade económica e o seu próprio local
habitacional. Ela tem de produzir rendimentos suficientes para cobrir as despesas de
consumo, contribuir para as linhagens com as quais mantêm relações de afinidade e
cumprir as obrigações para com a família alargada.

Quando o chefe da família nuclear morre deixa mulher ou mulheres e filhos, mas o único
herdeiro legítimo é o seu irmão mais velho. Se por qualquer razão este estiver
incapacitado, o legal depositário será ou o primeiro filho do irmão ou o seu primeiro
filho. Só os bens móveis são herdados, a propriedade imobiliária tal como a terra, as
árvores ou a casa, deve reverter para a comunidade, mantendo a família do malogrado
tão somente os direitos de propriedade sobre os frutos e as árvores que pertenciam ao seu
parente.

Para orientar as cerimónias fúnebres é escolhida uma pessoa que não pertence à
linhagem. Este indivíduo é investido de um poder especial, o kufa, e torna-se o chefe das
cerimónias, administrador das despesas do funeral e o “sentenciador” durante a
distribuição dos bens móveis do falecido. De acordo com as leis consuetudinárias os
bens móveis não podem ser usufruídos pelos membros da família alargada, sob o risco
de incorrer em sacrilégio ou morte, o chocolo.

Existem, entretanto, duas modalidades para a transferência dos bens móveis, aos
membros da família alargada, sem o risco de chocolo: primeiro, através da doação dos
bens antes da morte do proprietário; segundo por meio da sua conversão e acumulação
em dinheiro.

A primeira forma não obedece a regras específicas, se bem que seja dada preferência aos
membros da família alargada, em particular ao irmão mais velho ou ao primeiro filho
nascido. O beneficiário torna-se então, o dono legítimo dos bens doados na condição de

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

só ter acesso aos bens após a morte do doador e de assumir o dever de cuidar dos filhos
do doador. Trata-se, na prática, de uma forma de crédito reembolsado após a morte. Da
mesma forma que a prestação deve ser a favor dos descendentes também as dívidas do
malogrado, das quais não há testamento, são assumidas pelo legal depositário.

A segunda forma consiste na conversão dos bens do doador em dinheiro ou mesmo


através de especulação financeira (em moeda ou em gado) durante o tempo de vida do
beneficiário, como forma de garantir o futuro dos descendentes e da reprodução da
família alargada ao nível do grupo territorial.

Os bens pessoais, tais como vestuário e utensílios, são vendidos sob o olhar do líder das
cerimónias fúnebres. Parte das receitas são utilizadas para as despesas fúnebres, bebida e
comida durante o período de luto, e o remanescente incluindo a poupança do falecido, é
confiado ao legal depositário. O legítimo herdeiro torna-se assim responsável pela
adjudicação do dinheiro e da utilização dos bens pelos menores e pela viúva com quem
casa (levirato). A terra, as árvores e as casas revertem para a comunidade, sob a
responsabilidade do chefe comunitário.

As terras sob jurisdição dos chefes comunitários são parte do território ancestral,
pertencem aos espíritos dos antepassados, aos pais da designação clânica de cada família
alargada. Os espíritos mitológicos do clã são os que se "apropriam da terra" e os únicos
que têm o poder de “fazer chover”. As cerimónias da chuva, ntsembe, são conduzidas
pelos chefes da família alargada que vivem na mesma área.

O chefe comunitário atribui a terra por família alargada. O chefe desta tem o dever de
controlar a terra em uso pelas famílias nucleares sob sua responsabilidade. Devido à
prática da devolução da parcela de terra pertencente à família nuclear após a morte do
chefe de família, verifica-se uma gradual rotação de parcelas de terra entre as famílias
alargadas que vivem na mesma zona do chefe comunitário. No passado, a rotatividade
das parcelas correspondia ao ciclo biológico da vida humana, nos últimos cinquenta
anos, o gradual empobrecimento dos solos implicaram rotatividade bienal das parcelas
dentro da área adjudicada à família alargada.

Em síntese:
i na altura do casamento a família nuclear recebe, através do chefe da família
alargada, um novo lote de terra no território do chefe comunitário;
ii a nova parcela de terra recebida pela família nuclear torna-se parte da área
pertencente à família alargada;
iii em cada dois anos as famílias nucleares, que vivem na zona pertencente à família
alargada, trocam entre si as parcelas de terra;
iv no caso de falecimento do chefe da família nuclear, a parcela em uso é
incorporada na área do chefe comunitário;
v posteriormente, esta parcela é adjudicada a indivíduos, recém-casados, de uma
outra família alargada mas,
vi se nessa parcela houver árvores de fruta estas pertencem eternamente aos
descendentes do seu primeiro utente.

Se determinada família não tem parcelas disponíveis para a rotação bienal aludida em
iii., é frequente pedi-las emprestadas a uma outra família alargada. A transferência

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

temporária é supervisionada pelo chefe comunitário que assume igualmente


responsabilidades judiciais em caso de conflito.

Uma parcela de terra em nenhuma circunstância pode ser alugada ou alienada. Somente
as árvores podem ser alienadas. Neste sistema, a terra não tem valor mercantil uma vez
que o acesso, a posse e o controlo estão dependentes da dinâmica do grupo. Embora seja
frequente, o empréstimo de parcelas de terras é considerado como excepção imposta pela
relativa escassez de terra na região.

O motor da dinâmica do grupo que estimula a inter-dependência reside na circulação da


mulher através do matrimónio. Entre os povos que seguem este sistema não existe
exogamia clânica e a interdição de casamento só ocorre entre membros da família
alargada com o mesmo apelido. Mais ainda, combinam-se casamentos preferenciais
entre primos cruzados e são comuns os casamentos com as irmãs da primeira esposa.

A segurança de acesso à terra pela mulher, não está baseada no facto de ela ser filha ou
esposa, como se viu noutros sistemas acima mencionados, mas sim no facto de ser tia
residente na casa do pai. A primeira filha, mesmo mudando de residência com o
casamento, é a principal responsável pela educação dos seus sobrinhos, filhos do irmão.
A mãe só é responsável pela educação das crianças até que estas se possam alimentar e
vestir sem precisarem de ajuda (até aos 6 ou 7 anos), daí em diante a responsabilidade
educacional é transferida para a comunidade, tendo por tutora a irmã do marido.

A prática de casamento com várias irmãs estabelece igualmente uma complexa rede
de inter-dependências. Enquanto que o trabalho da primeira esposa é na totalidade
pertença da família do marido, a segunda e terceira mulher contribuem somente para
as despesas correntes da casa do marido. O rendimento adquirido através da
comercialização de excedentes ou de outras actividades produtivas é geralmente
transferido para a casa do pai e pertence à família que "fornece" as esposas. No caso
de morte do marido só a primeira mulher é herdada pelo irmão do marido, a segunda e
terceira esposas são livres de regressar à casa paterna e casar de novo. Caso o herdeiro
seja o primogénito, a primeira mulher recebe o título de mãe-viúva e a sua irmã (a
segunda mulher do de cujus), torna-se a mulher do depositário legal.

Sistema de casamento preferencial – Distrito de Rapale

Dos quatro sistemas costumeiros aqui apresentados, o do casamento preferencial é o


que mais alterações tem registado ao longo do tempo e no espaço geográfico. Este
sistema é dominante nas regiões onde a sucessão do poder linhageiro é transmitido
pela linha materna e exercido pelos varões que têm laços de parentesco com a
genearca. Moçambique é um dos poucos locais do mundo onde ainda é possível
estudar o sistema matrilinear.

As formas de acesso, posse e controlo da terra foram alvo de uma série de mudanças
ao longo dos anos, sendo de destacar entre os factores que mais influenciaram essa
mudança:

o exercício do poder ao nível das chefaturas e das linhagens a partir do sec. XIX;

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

a gradual venda de excedentes de cereais e de oleaginosas para o mercado;


a produção da cultura industrial do algodão e do tabaco (a partir de 1940), e
a apanha da castanha de caju para processamento industrial a partir de 1960.

Os principais veículos para as sucessivas formas de adaptação à mudança foram:

a progressiva adopção do casamento patrilocal ou virilocal (a mulher ir viver para


o território residencial do marido) em detrimento do matrilocal ou uxorilocal (o
marido ir viver para o território residencial da esposa) ou ainda de um território
neutro;
a crescente autonomização dos segmentos de linhagem, constituídos por quatro
gerações de uma genearca, em relação à matrilinhagem e ao seu território;
o fraccionamento da gestão do chefe comunitário de várias linhagens para
unidades mais pequenas correspondentes às matrilinhagem com exclusão das
“terras dispersas” dos maridos (áreas dispersas ou concentradas de cajueiros,
algodão e tabaco geridas directamente pelos maridos).

Embora se possa verificar uma certa tendência evolutiva ao longo das décadas, seria
imprudente afirmar-se que há homogeneidade de manifestações em todo o território
sempre que se reúnem condições idênticas. Não há evidência que permita concluir
estar-se perante uma sucessão de fases históricas cujo resultado, em última instância,
seja a passagem de um sistema matrilinear para um sistema patrilinear. Tanto quanto a
investigação permitiu saber é que o sistema costumeiro de casamento preferencial se
foi adaptando aos factores exógenos trazidos pela história, sem entrar em ruptura e
sem adquirir um padrão uniforme de mudança, embora apresente características
comuns no espaço territorial em estudo.

Uma característica básica do sistema de parentesco matrilinear é a permissão de


casamentos matrilocais e patrilocais. Desde que há registo histórico, a linhagem
regente e todos os que com ela mantêm laços de afinidade, podem optar pelo
casamento patrilocal. No decorrer do Século XX foi sendo cada vez maior o número
dos que podiam adoptar a forma patrilocal, as regalias dadas aos chefes foram sendo
alargadas com a monetarização da economia, com o aumento da densidade
populacional, com a proximidade dos centros urbanos e ainda, para alguns estudiosos,
com a adopção do islamismo.

A escolha do local do domicilio conjugal não pode ser vista somente como um
problema de supremacia psicológica sobre aquele que se transfere, mas sobretudo por
ser o local do domicilio que determina o local de casamento dos filhos (dentro ou
fora) e, como tal, a transmissão dos direitos de propriedade e de autoridade.

Estudos recentes revelam ser cada vez mais frequente o casamento em terra sob
controlo do marido, sendo este mais comum quando o sistema de herança sob as
árvores e a terra é pela via paterna. Foi registado ainda, a existência de tensões e
fricções latentes e permanentes entre o pai dos filhos e o irmão da mãe sobre o local
de residência da noiva e entre os velhos e os jovens, onde os primeiros usam as
mulheres afins a quem atribuem a gestão da terra e acertam casamentos quando da
altura dos ritos de iniciação como forma de ter no seu espaço territorial os que mais
lhes convêm. Do desenrolar destas fricções saem mais ou menos reforçados a
autoridade e o prestígio do chefe comunitário e da piamwene (irmã ou filha

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

primogénita da irmã deste) que desempenha um papel de guardiã da integridade e da


coesão do grupo9.

Quando o casamento é patrilocal a terra é adjudicada ao varão, na altura do


casamento, pelo chefe do segmento de linhagem. A mulher, na sua própria
comunidade tem acesso e usufrui das formas de compropriedade consuetudinárias nas
terras da matrilinhagem. Ao casar a mulher vai para a aldeia do marido, onde o
acesso, o controlo e a posse da terra ficam dependentes deste e do seu pai ou tio
materno. Por essa razão, o divórcio e a viuvez (quando não acompanhado de segunda
núpcias com um dos familiares do ex-marido) são motivo para cessação dos direitos
adquiridos pela mulher na terra do marido e, como tal, razão para expulsão e retorno à
terra da mãe.

No caso do casamento matrilocal a mulher, para além da garantia do direito de acesso


por nascimento, usufrui das formas de compropriedade consuetudinárias nas terras da
matrilinhagem. Contudo o controlo do uso dos recursos - o que produzir e como
preservar - é exercido pelo tio materno, sob quem recai a responsabilidade da
matrilinhagem, e transmitido na sua morte para o filho mais velho da filha
primogénita da sua mãe. No caso de morte da mulher, uma outra com a mesma
designação clânica substitui-se à viúva assumindo o estatuto, o marido e as terras.

O território é ocupado unicamente pelas mulheres da matrilinhagem, ou seja aquelas


que têm a mesma designação clânica, desta forma são excluídas as primas cruzadas
pelo lado da mãe e tanto as cruzadas como as paralelas pelo lado do pai. Consideram-
se primos paralelos os filhos das irmãs da mãe e dos irmãos do pai e são primos
cruzados os filhos dos irmãos da mãe e das irmãs do pai.

Antes da exploração das culturas industriais ou onde estas ainda não se fazem sentir
em grande escala, ao casar, o homem tem de trabalhar na “terra da sogra” por duas ou
três campanhas agrícolas, a fim de provar a sua dedicação à mulher escolhida e a sua
maturidade para constituir família. Passado esse tempo, ele pede um terreno à família
da mulher dentro do território ou uma “terra dispersa” no território do chefe, mas fora
das terras da família da mulher para onde se deslocava com a sua esposa. As razões
para pedir uma “terra dispersa”, podiam e podem ser várias, mas as mais frequentes
são a falta de espaço no território da mulher, incompatibilidade de feitios com a sogra
e o desejar ter a sua própria parcela e local de residência.

Sobre a “terra dispersa” o tio materno da mulher não tem qualquer poder de decisão
sobre o que produzir. O controlo do recurso pelo tio só é válido no território
matrilinear, na “terra dispersa” o controlo é da responsabilidade do marido. Contudo,
os direitos adquiridos sobre a “terra dispersa” que lhe foi concedida são limitados ao
preceito de que a terra continua sendo património da comunidade hospedeira, regra
esta que também lhe é aplicada em relação à terra da sua matrilinhagem de origem e
sobre as “terras dispersas” que foram concedidas pelo seu chefe aos maridos das

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A diluição da autoridade do chefe comunitário em favor do reforço do chefe do segmento de linhagem
é acompanhada da individualização da família nuclear em relação ao seu segmento de linhagem.
Quando comparadas a distribuição espacial do início do século, com meados e a actual, verifica-se que
as unidades territoriais são menores, que chefes de segmento de linhagem se passaram a auto-intitular
de chefes comunitários e que os celeiros da matrilinhagem deixaram de existir em benefício do celeiro
do segmento de linhagem.

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

irmãs. A relação do homem que segue o casamento matrilocal passa assim,


indirectamente, pela função de tio materno das suas sobrinhas, com limitações, na
qualidade de marido na chefatura da mulher, caso o chefe lhe tenha concedido uma
“terra dispersa”.

Com a disseminação da cultura do algodão e do tabaco e o aumento da migração


sazonal de mão-de-obra masculina, passou a haver uma imposição de prestação de
serviços pré-nupciais na “terra da sogra” mais volumosos e mais regulares o que
contribuiu para o aumento de tensões familiares, a fragilização dos papeis sociais do
chefe e da irmã ou filha primogénita e uma crescente instabilidade nos casamentos. O
homem assenhorou-se do controlo total da “terra dispersa” optando por ela para a
cultura de rendimento e reservando a parcela da mulher para as culturas alimentares.

O homem de casamento matrilocal transmite em herança para o seu filho primogénito


o controlo sobre o uso da “terra dispersa”. Passa assim a haver uma dupla
subordinação por parte do filho, pois, por um lado está subordinado ao pai de quem
recebe os direitos de controlo do recurso e, por outro, está subordinado ao seu tio
materno com quem tem a mesma designação clânica.

Esta dupla subordinação acabou por ser resolvida através do casamento preferencial
entre primos cruzados. O homem na qualidade de pai dos seus filhos varões e na
qualidade de tio das suas sobrinhas dá preferência ao casamento entre eles, para que
os seus descendentes venham a ter a sua designação. Assim, os netos têm a mesma a
designação clânica que o avô e o filho mantêm, por força da herança o controlo sobre
a terra e as árvores.

Este sistema de casamento preferencial com vista a assegurar o controlo da terra, vem
a consolidar-se e ganhar novas características com a generalização da compra da
castanha de caju para processamento industrial. Ele passou a verificar-se não só entre
primos cruzados, mas também com a neta materna da primeira mulher. A árvore,
como rezam os direitos consuetudinários em todo o país, é de propriedade individual.
Com o cajueiro aumentou a tendência para ao controlo do recurso terra se juntar
também a propriedade da terra onde o cajueiro está plantado.

Embora os direitos consuetudinários não permitam a alienação da terra, tão somente


dão prioridade de acesso ao dono das árvores, com o decorrer dos anos o dono da
árvore na “terra dispersa” passou a exercer direitos de empréstimo e mesmo, em
circunstâncias excepcionais, de venda terra a terceiros. Sobre o cajueiro, tal como já
acontecera com o coqueiro ao longo da costa, verificou-se a transferência do direito à
árvore para o direito à terra, introduzindo-se alterações profundas nos antigos direitos
costumeiros da terra. Ao direito de fruição e transmissão veio juntar-se o direito de
alienação e troca.

Obviamente que estas alterações vieram a reflectir-se num papel cada vez mais
dependente da mulher em relação ao homem no acesso à terra. Na década de 1990 a
situação de pobreza generalizada contribui para o surgimento dos “sem terra” em
algumas zonas junto à costa, afectando, particularmente, as mulheres dos pobres. Não
foi a falta de terra que conduziu à pobreza, mas foi a pobreza que criou os “sem terra”.

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

A situação de “sem terra” não é absoluta, fica-se “sem terra” quando as áreas da
família nuclear estão em pousio ou são terras marginais com rendimentos muito
baixos. De acordo com alógica interna do sistema estas famílias deveriam recorrer às
terras da matrilinhagem, todavia assim não acontece ou porque elas já estão
totalmente ocupadas pelos mais velhos (casamento matrilocal) ou porque a mulher
veio viver junto do marido (casamento virilocal).

Uma vez que a parcela matrilinear não pode ser alugada, o aluguer de terra faz-se
junto dos que têm “terras dispersas” ou individual. Bens como fios de prata, anéis de
ouro e relógios, são pelas mulheres penhorados junto dos “banqueiros do povo”. O
dinheiro é entregue ao dono da terra e restituído (após a dedução da taxa de juro
estabelecida em função do período e do montante requerido) com a entrega de parte
da colheita. Há quem penhore a sua própria terra que está em pousio, como garantia
de restituição do dinheiro que foi concedido a crédito. Como a dívida não prescreve,
há casos de transferência total de propriedade da terra para os penhoristas.

Sistema de segurança de três gerações – Distrito de Angoche

Nas margens do rio Zambeze há um povo que fala a língua Chiphodzo e que pratica o
sistema de herança baseado em três gerações. No Distrito de Angoche os costumes entre
os povos costeiros, em particular os que falam a língua Khoti em muito se assemelham
ao do sistema de segurança de três gerações.

Este povo é patrilinear, o casamento é patrilocal e os laços de parentesco matrimonial


são por regra exogâmicos, i.e. o filho da filha (neto) recebe a designação clânica do seu
avô paterno e não através do seu avô materno. É provável que se encontrem outros
povos ou comunidades rurais em Moçambique que tenham um sistema consuetudinário
idêntico uma vez que se trata de uma forma hábil de lidar com a reprodução social em
momentos de escassez de terra.

Quando a velhice traz a morte, os bens do homem são, por norma, herdados pelo seu
irmão mais velho. O matrimónio não dá à viúva direito de acesso à herança. A terra, por
seu turno, não é transferida aos herdeiros legítimos, nem à viúva e muito menos à
comunidade. Ela fica sob responsabilidade do primeiro filho varão. A transferência de
direitos e deveres ocorre numa cerimónia, conhecida por Kufa, que conta com a
participação de toda a linhagem. Se a criança mais velha (do falecido) for uma rapariga
esta não pode assumir a administração da terra herdada. Mais tarde, quando da morre do
primeiro filho varão a responsabilidade pela administração da terra e das árvores é
transferida ao seu primeiro filho, ou seja o primeiro neto do falecido velho. Nestas
circunstâncias o primeiro neto não pode tomar decisão sobre a terra sem o consentimento
prévio dos tios paternos.

Se, por qualquer impedimento o primeiro filho estiver impossibilitado de cuidar da


parcela do pai, o irmão deste (o tio) assume a responsabilidade até que os anciãos da
linhagem indigitem o filho que deve assumir a função de chefe da família.

A segurança económica da mulher até que ela se torne viúva, ou a dos seus
descendentes, geralmente não é da responsabilidade dos parceiros do seu clã mas dos

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

parceiros com a designação clânica de seu marido. Esta instituição é assegurada pelos
rituais associados ao matrimónio (ver Caixa .....).

O filho encarregue pela gestão das árvores e da terra tem duas responsabilidades
principais; primeiro, anualmente cuidar da comercialização dos frutos das árvores
herdadas e da divisão equitativa dos rendimentos por todos os irmãos; segundo, distribuir
parcelas da terra do velho aos irmãos mais novos e aos filhos e sobrinhos na altura do
casamento destes.

Ao filho mais velho não é permitido plantar árvores de fruta nas terras de seu falecido
pai. Os benefícios provenientes da terra do pai revertem a seu favor enquanto ele estiver,
temporariamente, a cultiva-la. Todavia a receita proveniente da venda anual de cocos,
bananas ou mangas, cujas árvores foram plantadas pelo seu pai, deve ser dividida por
todos.

A repartição pelos herdeiros legítimos é equitativa, mas só os filhos varões são


considerados herdeiros válidos. Em caso de conflito gerado pela divisão do rendimento
monetário, os irmãos mais velhos são chamados a solucionar o diferendo, se estes não
conseguirem, então os tios devem tomar a decisão final. Só quando o irmão se recusa a
dividir o dinheiro ou no caso de o ter gasto na totalidade é que é pedida a intervenção do
chefe comunitário. Para prevenir que tais conflitos surjam, os irmãos costumam optar
pela venda das árvores do pai.

Para a família e a comunidade a distribuição das terras do velho pelos descendentes na


altura do casamento, é a mais importante função da herança. O sistema de atribuição da
terra é simples. Suponhamos que um velho morre sem que os seus filhos estejam
casados. Quando um destes se casa a esposa vem para o território onde reside a linhagem
do marido. Nessa altura o irmão mais velho entrega-lhe uma parcela da terra do pai. Esta
terra torna-se propriedade sua e ninguém pode reclamar direitos sobre propriedade
herdada.

Contudo, como é pouco frequente que o pai morra antes de os filhos se casarem, tem-se
a situação mais complexa em que o velho morre deixando filhos e netos. O primeiro
filho varão assume a responsabilidade sobre a terra do pai. As irmãs do primeiro filho
varão, nessa altura já abandonaram a linhagem por força do casamento, mas os filhos dos
seus tios estão ainda no local, casando-se e exigindo terra. De acordo com as leis
consuetudinárias deste sistema, tais parcelas deverão ser partes do terreno originário do
avô. Isto significa que cada homem deve ter terra suficiente para si e para a adjudicação
após a sua morte aos netos com a mesma designação clânica.

A adjudicação de terra directamente a um filho só tem lugar somente quando a terra do


avô, por qualquer razão, já tenha sido totalmente distribuída. Tal situação é cada vez
mais frequente. Várias causas podem contribuir para isso, por exemplo, o avô durante a
vida não ter conseguido maiores quantidades de terra ou o que é mais usual, a terra do
avô ter sido expropriada a favor de terceiros ou do Estado. Face a tais constrangimentos
históricos, cresceu a tendência para cada homem a ter terra suficiente: para si, para os
netos com a mesma designação clânica e para alguns dos seus filhos que, eventualmente,
não tivessem recebido terras do avô. Este é pois o sistema de três gerações onde os
riscos dos descendentes tendem a ser minimizados pelas duas gerações anteriores.

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

A administração da terra do pai e sua distribuição entre os descendentes elegíveis tem


pois particular relevância na comunidade. Os direitos do primeiro filho varão sobre a
terra são numerosos e ilimitados. Se um irmão mais novo precisar de uma árvore da terra
do pai, para, por exemplo, construir uma almadia (pequena embarcação ribeirinha), ele
tem de pedir permissão ao seu irmão mais velho. Se o consignatário não estiver de
acordo não há instância superior a recorrer. Todavia o filho mais velho pode decidir
deitar abaixo todas as árvores sem que para isso tenha de consultar ou solicitar a
permissão tanto dos irmãos como do tio.

Mas tal não se passa em relação à alienação da propriedade, caso o fiel depositário o faça
os seus irmãos e tios têm o direito de solicitar a maldição contra o ofensor. A alienação
indevida da terra herdada recai sobre a alçada do feiticeiro, o Kumbaissa. Por outras
palavras, tal infracção constitui matéria suficiente para a condenação à morte, quais são
os mecanismos de persuasão deste direito, uma vez que “os netos terão de comer desta
terra”.

Na altura do casamento então, o homem tem acesso à terra através da herança e durante
a sua vida conjugal através da aquisição ou por outras formas de transacção. Devido ao
número de membros abrangidos pelo esquema de segurança de três gerações e por causa
dos constrangimentos da terra impostos pela presença das empresas e de pequenos e
médios privados, a parcela de terra herdada é geralmente pequena e de baixo
rendimento. Contudo ela joga um papel relevante nas alianças matrimoniais
estabelecidas, não só porque assegura o local de residência durante os primeiros anos do
casal (até ao primeiro parto), mas também porque é uma das garantia dada pela linhagem
do noivo à família da noiva.

No caso de não restar terra do avô o pai do noivo tem o dever de procurá-la entre as
famílias vizinhas. Se houver terra disponível no território da comunidade, o pai do noivo
pode solicitar uma parcela, caso não, pode fazê-lo no território de um aoutra comunidade
sob determinadas condições e acordos testemunhados. Todavia, como é cada vez mais
difícil encontrar terra disponível seja onde for, a alternativa passou a ser a compra ou o
aluguer anual de uma parcela. Pedir emprestado deixou de ser alternativa viável.

A impossibilidade de empréstimo não está relacionada com as leis consuetudinárias.


Quando havia terra suficiente era normal pedi-la emprestada e o aluguer é que constituía
excepção, hoje porém passou a ser o contrário. A lei consuetudinária permite a ocupação
de uma parcela que não está sendo utilizada, desde que haja permissão por parte da
família proprietária. Se no terreno em causa houver árvores de fruta, o utente não pode
colher a fruta mas tem a permissão de consumir a que cai no chão e mesmo de plantar
novas árvores. Se o proprietário ou a sua família solicita a devolução do terreno, este tem
que pagar pelas árvores plantadas e pelas benfeitorias feitas.

A norma sobre o uso da terra e não das árvores está relacionada com a do arrendamento.
As parcelas de terra são arrendadas anualmente, como esta prática é recente ela suscita
várias interpretações, discrepâncias e até mesmo conflitos no caso da venda. Muito antes
da prática do arrendamento, na altura em que era comum o empréstimo da terra, a
alienação de fruteiras e do terreno anexo fazia parte das transacções económicas das
famílias rurais deste sistema. Estava claro que a terra sem árvores de fruta não podia ser
alienada. Somente algumas árvores tinham valor de mercado, como os coqueiros e as
mangueiras, outras como as bananeiras e as papaieiras não o tinham. Ao serem vendidas,

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

vinham com elas a propriedade de todas as outras árvores de fruta que estavam no
terreno. O preço da venda não tomava em consideração aspectos como, por exemplo, se
as parcelas associadas eram ou não extensas, irrigadas ou não, se aptas para a lavoura ou
"cansadas".

Nos nossos dias, devido à crescente escassez de terra, a questão do valor da alienação
não é assim tão simples. Embora todos sejam peremptórios em afirmar que a terra por si
só, i.e. “a terra dos cereais”, não pode ser alienada, todos reconhecem que quando a
parcela associada é maior, está perto de um rio e tem ou não terra fértil, o valor das
árvores aumenta.

Por um lado o sistema tem por objectivo a segurança de acesso à terra por três gerações,
mas por outro lado, à medida que a procura aumenta, o valor da terra também aumenta
podendo por em causa a reprodução social da comunidade.

É para fazer face a esta situação que, normalmente os irmãos optam pela alienação das
árvores do pai e não permitem o plantio de novas árvores nas terras herdadas.

As instituições locais contornaram assim o problema das árvores, mas não o da tentação
da venda da terra em si. Nos territórios onde a terra tem valor mercantil a solução para
este problema é composta por duas regras: primeiro a terra não pode ser alienada se nela
não houver árvores; segundo existe uma restrição de carácter consensual para a alienação
de árvores/terra entre indivíduos com a mesma designação clânica. A transferência de
terra entre indivíduos do mesmo clã exige a presença dos chefes comunitários e a
anuência dos guardiães de ambas linhagens. Desta forma é muito pouco provável que
seja permitida a alienação em circunstâncias que representem risco para as gerações
vindouras.

Caso estes mecanismos de preservação do sistema não funcionem, a segurança de acesso


à terra pela mulher, garantida pelo complexo cerimonial do casamento, fica severamente
afectada. Até à data não foi registado nenhum caso em que tal tenha acontecido mas é
provável que venha acontecer. A generalização da compra e venda de terras por razões
exógenas às comunidades que seguem este sistema pode constituir uma severa ameaça à
segurança de acesso à terra por parte da mulher.

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

4. ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS TRIBUNAIS COMUNITÁRIOS COMO


INSTÂNCIAS OFICIAIS DE RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS

Os tribunais comunitários constituem hoje, na configuração que lhes é dada pela Lei
nº 4/92, de 6 de Maio, uma instância “oficial” (no sentido de ter sido criada por
diploma normativo estatal) de resolução de conflitos. Dado que eles representam, até
certo ponto, uma continuidade dos “tribunais populares de base” previstos na anterior
Organização Judiciária10, importa realçar a evolução das suas principais
características institucionais (o respectivo enquadramento nos sistemas de
administração da justiça, o perfil dos juízes que os compõem, o tipo de conflitualidade
que são chamados a dirimir, etc), tendo por base os contextos sócio-políticos que lhes
estão subjacentes.

Sendo um das mais importantes mecanismos de composição extra-legal dos conflitos,


tanto pelo seu percurso e papel históricos, como pela função social que exercem, os
tribunais comunitários são as estruturas que, preferencialmente, assumem a função de
articulação entre as justiças comunitárias e a justiça judicial. Justifica-se, por isso, que
nos ocupemos aqui em caracterizá-los, ainda que de forma sumária, procurando
contextualizar a sua inserção nos sistemas de justiça moçambicano, de forma a
facilitar a compreensão das opções acolhidas nas conclusões.

A independência nacional trouxe como consequência, entre outras coisas importantes,


a ruptura com o quadro institucional anterior11. Particularmente na administração da
justiça, reconheceu-se que, no período colonial, o acesso à justiça era bastante
selectivo, estando a maioria da população moçambicana excluída dos mecanismos
instituídos para o seu exercício. O predomínio quase exclusivo de uma justiça
profissionalizada, baseada na escrita e numa linguagem estritamente técnica,
favoreceu essa apropriação dos mecanismos de acesso ao Poder Judicial por parte de
uma elite que tinha ao seu serviço toda uma estrutura burocrática de apoio. Por outro
lado, o sistema punitivo que integrava o direito colonial secundarizava as
necessidades de “reeducação” ou reintegtração social dos delinquentes.

Foi neste contexto que, após um amplo debate nacional estendido a todas as
províncias do país, se aprovou a primeira Lei da Organização Judiciária do pós-
independência, a qual veio instituir um sistema de tribunais populares, desde a
unidade administrativa mais baixa (a localidade) até à mais alta (com jurisdição em
todo o território nacional).

Inspirada, basicamente, nos mecanismos de resolução de litígios experimentados


pelos comités disciplinares da Frelimo nas zonas libertadas e pelos grupos
dinamizadores, já depois de estabelecidos os Acordos de Lusaka, que puseram fim à
luta de libertação nacional, a Justiça Popular moçambicana beneficiou ainda das “...
experiências revolucionárias de outros povos”12, de que são exemplos, entre outros,

10
Veja-se a Lei nº 12/78, de 2 de Dezembro, que vigorou até à aprovação da Lei Orgânica dos
Tribunais Judiciais (Lei nº 10/92).
11
Sobre as rupturas e continuidades nos processos políticos e jurídicos, ver Santos;Trindade et. al.
“Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justices em Moçambique”, CEA-UEM/CES-UC,
2000:4.
12
Veja-se a Resolução sobre Justiça, aprovada pela 8ª Sessão do Comité Central da Frelimo em
Fevereiro de 1976, em “Documentos da 8ª Sessão do Comité Central”, Frelimo, Maputo, 1976.

22
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

os tribunais populares cubanos e os tribunais vicinais chilenos durante o governo de


Allende.

A Lei da Organização Judiciária continha algumas particularidades importantes que


representam, na sua essência, as opções políticas do Estado no domínio da
administração da justiça. Assumiu-se a necessidade de construção de um modelo de
justiça de participação popular, socialmente integrado e que fizesse a intersecção entre
as justiças comunitárias (apoiadas, predominantemente, no bom senso, nos
“princípios que presidem à construção da sociedade socialista”13 e privilegiando a
oralidade como instrumento de condução e decisão dos conflitos) e a justiça judicial
(informada pela dogmática jurídica de matriz ocidental). Seria, pois, num esforço de
conjugação entre “modernidade” e “senso comum”, assentando ambos numa
“legalidade revolucionária”, que se construiria um sistema judiciário ao serviço do
povo14.

Sob a direcção do Ministério da Justiça, compunham o sistema judicial o Tribunal


Popular Supremo (como o mais alto órgão de administração da justiça), os Tribunais
Populares Provinciais, os Tribunais Populares Distritais e os Tribunais Populares de
Localidade ou de Bairro (constituindo a base do sistema).

Foram vários os mecanismos processuais introduzidos com o propósito de assegurar e


tornar cada vez mais ampla a participação popular na administração da justiça, mas de
todos merecem realce

• a colegialidade de todos os tribunais;


• a participação de juízes leigos nos tribunais populares distritais e de escalão
superior, a par dos juízes profissionais e em plena igualdade com eles, decidindo
tanto sobre a matéria de facto, como sobre a de direito;
• a composição dos tribunais populares de base, nos quais intervinham em exclusivo
juízes não profissionais, eleitos directamente pela comunidade;
• a interacção entre os tribunais e a comunidade, através da realização de
julgamentos, em assuntos de natureza criminal ou social, nos locais onde ocorreram
os factos controvertidos;
• a possibilidade de as partes poderem praticar por si todos os actos processuais que
lhes dissessem respeito, sem exigência de constituição de mandatário judicial15.

Estas características mostram, em suma, um esforço para o exercício da justiça de


forma integrada no respectivo contexto sócio-cultural, permitindo uma maior
proximidade entre os tribunais e os cidadãos e, consequentemente, ampliando as
possibilidades de acesso à justiça.

13
Ver artigo 38, nº 2, da Lei nº 12/78.
14
Contribuindo para o avanço da revolução, os tribunais populares eram considerados “como uma
arma permanente apontada ao inimigo da classe, aos reaccionários e aos traidores, aos sabotadores
da economia e aos exploradores sem escrúpulos, aos criminosos e bandidos marginais em todo o
país”. Os Tribunais Populares eram, assim, o instrumento que permitia ao Povo “resolver os
problemas e dificuldades que surgem na vida da comunidade, da Localidade, na Aldeia Comunal e no
Bairro Comunal”. Os tribunais populares eram ainda considerados o garante da consolidação e
Unidade do Povo moçambicano “a grande forja onde o Povo cria o direito novo que cada vez mais
rechaça o direito velho da sociedade da sociedade colonial- capitalista e feudal” (Preâmbulo da Lei nº
12/78).
15
Veja-se o artigo 3 do Decreto-Lei nº 4/75, de 16 de Agosto.

23
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Ao terminar a década de oitenta, o sistema entrou em acentuado declínio,


acompanhando o agravamento geral da situação interna do país, tanto do ponto de
vista político, como socio-económico16.

Na sequência da revisão constitucional de 1990, a nova Lei Orgânica dos Tribunais


Judiciais (Lei n.º 10/92, de 6 de Maio) veio excluir do Judiciário os tribunais de
localidade e de bairro, passando os tribunais de distrito a constituir a base da
pirâmide judicial17.

Os antigos tribunais populares de localidade e de bairro, estando fora do sistema


judicial, passaram a ser regulados por lei própria, a já referida Lei n.º 4/92, de 6 de
Maio (Lei dos tribunais comunitários). Todavia, conservaram algumas das
características do sistema anterior, como sejam o facto de serem integrados
exclusivamente por juízes leigos (eleitos), de dirimirem “pequenos conflitos de
natureza civil”, “questões emergentes de relações familiares que resultem de uniões
constituídas segundo os usos e costumes” ou conhecerem dos “delitos de pequena
gravidade, que não sejam passíveis de penas privativa de liberdade”, bem como o
dever de tentarem sempre a reconciliação das partes ou, quando esta não seja possível,
decidirem de acordo com a “equidade, o bom senso e com a justiça”.

Muito embora a nova lei tivesse conferido aos Governos Provinciais a


responsabilidade de instalarem os tribunais comunitários e de fixarem o montante da
“compensação” a ser atribuída aos respectivos juízes, o certo é que, na prática,
exceptuando alguns casos isolados (como aconteceu no Bairro Mateus Sansão
Mutemba, na cidade de Tete), não se verificou qualquer iniciativa de instalação de
novos tribunais comunitários (onde estes deixaram de existir, por diversas razões18),
nem se desenvolveu nenhum esforço sistemático de recapacitação dos tribunais em
funcionamento.

Grande parte dos tribunais continua a funcionar nos mesmos edifícios, desde a
implantação dos tribunais populares, não tendo beneficiado de qualquer obra de
conservação, nem dispondo de material básico para o seu funcionamento
(esferográficas, cadernos, papel, etc). Para além de péssimo estado de conservação,
continuam a funcionar nos (ou junto aos) edifícios dos Grupos Dinamizadores
(GD’s) e das Células do Partido Frelimo. Como é normal, esta circunstância reflecte-
se no grau de legitimidade local destes tribunais, em função da dimensão da
popularidade daquele partido político.

16
Entre as principais manifestações dessa crise podem apontar-se a radicalização do conflito armado
entre as forças governamentais e a Renamo; a crónica dependência alimentar do exterior, em resultado
da longa e persistente seca que assolou a região, afectando irremediavelmente toda a produção agrícola,
em especial a do sector familiar; e a agudização da crise económica internacional, cujos reflexos sobre
o continente se fizeram sentir de forma particularmente dramática (de tal modo que há quem considere
os anos oitenta como uma “década perdida para África” - M’baya, 1995: 62; Abrahamsson e Nilsson,
1996: i).
17
Sobre os diferentes caminhos de interpretação do preceito constitucional em causa, ver
Santos;Trindade et. al. “Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justices em
Moçambique”, CEA-UEM/CES-UC, 2000:4; Trindade, João “Moçambique: dos tribunais populares à
crise do judiciário”, Coimbra, 1996.
18
Como por exemplo, a guerra, o abandono dos juízes por falta de “estímulos” ou condições de
trabalho, a emergência e concorrência de outras instâncias de resolução de litígios, etc.

24
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

A eleição dos juízes é outra questão que condiciona em grande medida a legitimidade
local dos TC’s. As últimas eleições realizaram-se em 1987. Actualmente, a
“renovação” dos membros dos tribunais é feita, fundamentalmente, em função das
iniciativas locais, segundo critérios locais, fixados ao sabor das vicissitudes sociais (e
políticas) vividas. Em regra, serão os responsáveis dos GD’s e os Presidentes das
Aldeias quem os nomeiam.

Compreende-se que, também por este motivo, a mobilização dos TC’s seja
relativamente modesta nos locais onde o Partido Frelimo não goze de muita
popularidade e onde coexistem outros actores sociais, com diversas fontes de
legitimação.

Reflectindo a pluralidade política, social e cultural do país, o pluralismo jurídico é


uma realidade facilmente perceptível em Moçambique. Para além dos tribunais
oficiais (nos quais se incluem os TC’s, porque criados por iniciativa do Estado e
regidos por lei própria), existem outras constelações de produção e reprodução da
normatividade. Na base, também porque aí a presença do poder coercivo estatal é
muito mais ténue, a fragmentação das instâncias comunitárias é muito maior. Trata-
se, pois, de um mosaico de actores que, de forma dinâmica, diversificada e em função
dos contextos sociais, participam na actividade de resolução dos conflitos. Os TC’s,
as “autoridades tradicionais”, os membros dos GD’s, os secretários de bairro ou
aldeia, os lideres religiosos, os curandeiros, etc, são alguns dos actores que, umas
vezes cooperando e outras rivalizando (ou até ignorando-se mutuamente),
estabebelecem uma “divisão social do trabalho jurídico” mais ou menos rígida, ao
nível da base. A forma como cada uma se situa na “rede de interlegalidade”
condiciona as formas de acesso à justiça por parte das populações.

Contudo, apesar da falta de acompanhamento institucional, da falta de


regulamentação e implementação da lei dos tribunais comunitários, estes continuam
a ter potencialidades enormes que devem ser aproveitadas. Repare-se, no capítulo
seguinte, que, não obstante a apregoada crise de legitimidade e de desmpenho dos
TC’s, onde eles existem continuam a ser uma instância importante de resolução de
litígios, tendo níveis de mobilização bastante consideráveis. Esta “vitalidade órfã” e o
facto de o quadro legal existente apontar para as possibilidades de conservação de um
pluralismo democrático, sugerem-nos que se preste especial atenção aos TC’s como
instâncias comunitárias exemplares (para o futuro), porque portadoras de um
potencial de emancipação muito forte. Por outro lado, estando previstas as
possibilidades de recurso e de remessa dos casos para os tribunais judiciais, é através
dos TC’s que se estabeleceriam os canais privilegiados de articulação estreita entre a
justiça judicial e as justiças comunitárias. Assim, não só os mecanismos de acesso
estariam mais próximos de grande parte da população, como se abririam portas para
que os tribunais judiciais se “temperassem” culturalmente, exercendo uma justiça
culturalmente mais próxima dos cidadãos, isto é, uma justiça de integração e
emancipação social, tomando em conta os contextos sociais, culturais, políticos e
económicos em que os conflitos se produzem e reproduzem.

25
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

5. RESULTADOS DO ESTUDO SOBRE ACESSO, POSSE E TRANSMISSÃO

Os recursos naturais foram agrupados em três grandes categorias: terra; árvores de


fruto e outros recursos, onde estavam incluídos a fauna, a pesca e o “mato”,
subentendendo-se por este último zona de recolha de lenha, de materiais de
construção e outros de utilização doméstica.

Para efeitos da recolha e análise dos dados teve-se por economia familiar aquela em
que a adjudicação dos factores de produção se faz tendo por objectivos simultâneos,
(i) reforçar as redes sociais minimizadoras de riscos e (ii) multiplicar a produtividade
marginal de cada factor. Por seu turno entendeu-se ser a família rural a mais pequena
unidade de consumo, produção e distribuição das sociedades rurais africanas.

Com base nestes pressupostos teóricos tem-se por acesso à terra e demais recursos
como função de consumo, a utilização e posse da terra como função de produção e a
venda ou trespasse definitivo da terra como a função de distribuição.

Para cada um destes recursos foram formuladas quatro questões chave:

i. como teve acesso, trazendo implícita a função de consumo da unidade


doméstica;
ii. quem pode utilizar, com vista a se identificarem as relações intracomunitárias
e de género na definição da propriedade;
iii. quem pode vender, para se saber a que nível é tomada a decisão de alienação
de um recurso quando alcança a categoria de mercadoria;
iv. e por último, como procede para a transmissão definitiva de determinado
recurso a terceiros, com a finalidade de se identificarem os mecanismos
institucionais locais de prevenção e resolução de conflitos na implementação
da legislação.

Foram ainda estabelecidas as correlações entre algumas das características dos


respondentes com a finalidade de se cruzarem as respostas, se identificarem as
tendências de mudança, se aferir da distância entre o discurso e a prática e ainda de se
apreciar o papel das instituições universais, i.e. as confissões religiosas, nas práticas
locais.

Para o efeito, as respostas foram analisadas em função do sexo do respondente a fim


de se saber até que ponto as relações de género influenciam as percepções e as
práticas no uso, posse e transmissão dos recursos naturais pelas famílias e
comunidades rurais. Em função da idade para se saber é que os comportamentos
tendem ou não a ser diferenciados. Em função da escolaridade do respondente a fim
de se identificar o papel desempenhado pela escola no uso dos recursos e nas relações
intracomunitárias e familiares. Por último, em função da religião professada para se
identificarem eventuais alterações comportamentais.

26
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Terra

Como teve acesso? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Direito de Família 31 58 54 39 46
Instituições Locais 28 10 5 2 11
Estado 5 2 2 3 3
Mercado 8 1 11 7 7
Sem sistema 14 28 20 47 27
Outros e Combinações 16 1 8 3 7

Quem pode utilizar? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Mulher e sua família 14 23 14 15 16
Homem e sua família 16 18 14 15 16
Ambos 46 50 67 72 59
Filhos 2 0 5 3 3
Outros e Combinações 22 9 0 1 8

Quem pode vender? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Mulher e sua família 13 12 14 14 13
Homem e sua família 52 37 40 40 42
Ambos 23 25 37 40 31
Filhos 5 2 7 4 4
Não se vende 7 24 3 3 9

Como trespassa? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Herança ou Doação via Família Mulher 8 9 13 5 8
Herança ou Doação via Família Homem 34 47 16 16 28
Registo Autoridades Tradicionais 25 11 31 8 19
Registo Autoridades Administrativas 7 0 15 42 16
Mercado 11 12 16 15 13
Outros e Combinações 15 22 9 15 15

A análise dos dados em relação à terra demonstra que:

- Os direitos costumeiros cobrem, directamente, a adjudicação de mais de 50% dos


casos;
- 27% de famílias que tem acesso à terra sem ser sob a tutela de qualquer sistema,
tal é de alguma forma preocupante pelo vacum institucional que representa;
- Cerca de 7% das famílias tiveram acesso à terra via mercado, todavia 13%
declararam trespassar definitivamente via mercado, o que demonstra uma
tendência para aumentar a participação no mercado fundiário;
- Independentemente do sistema costumeiro há uma percentagem significativa de
famílias em que ambos os membros decidem sobre a produção e sobre a decisão
de venda;
- Em Manica, onde o rendimento agrário é o mais elevado dos distritos estudados,
verifica-se um maior número de famílias que recruta força de trabalho;
- Em Rapale, o papel costumeiro da família da mulher está a ser substituído pela
família do homem e pelas autoridades tradicionais e administrativas.

27
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Árvores de fruta

Como teve acesso? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Direito de Família 17 56 41 32 37
Investimento 67 33 45 51 49
Mercado 12 0 13 13 10
Outros e Combinações 4 11 2 3 5

Quem pode utilizar? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Mulher e sua família 21 26 11 13 18
Homem e sua família 17 15 32 40 26
Ambos 22 25 27 35 27
Filhos 22 4 29 12 17
Outros e Combinações 18 30 1 1 12

Quem pode vender? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Mulher e sua família 12 9 11 12 11
Homem e sua família 44 27 44 49 41
Ambos 23 25 33 33 28
Filhos 15 3 9 5 8
Não se vende 6 37 2 2 12

Como trespassa? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Herança ou Doação via Família Mulher 7 8 10 4 7
Herança ou Doação via Família Homem 35 40 17 20 28
Registo Autoridades Tradicionais 17 6 36 6 16
Registo Autoridades Administrativas 6 0 16 48 17
Mercado 20 16 16 14 16
Outros e Combinações 16 30 5 7 15

A análise dos dados em relação às árvores de fruta demonstra que:

- O acesso, na maioria dos caos, tem lugar via investimento;


- Todavia a percentagem dos que tiveram acesso via mercado é maior do que na
terra, bem como dos que declararam utilizar a mesma via para a transmissão
definitiva, o que demonstra uma tendência para o investimento se realizar na
aquisição de árvores;
- Embora seja menor a percentagem de ambos na decisão de venda das árvores, é
significativo os que declaram que a decisão é do casal e não só de um dos
membros;
- Em Tambara, onde o plantio de árvores é o que tem menor significado dos
distritos estudados, verifica-se uma elevada percentagem de famílias que declaram
que as árvores não se vendem;
- O trespasse sob tutela das autoridades tradicionais em Rapale está de acordo com
o acima descrito, todavia a inclusão das autoridades administrativas em Angoche é
um caso a acompanhar.

28
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Outros recursos – fauna, pesca e “mato”

Como teve acesso? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Direito de Família 33 24 40 20 29
Instituições locais 37 6 11 4 15
Estado 7 23 4 4 10
S/Sistema e Combinações 23 47 44 73 47

Quem pode utilizar? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Mulher e sua família 26 31 17 7 20
Homem e sua família 13 6 13 32 16
Ambos 31 40 62 49 46
Filhos 5 0 7 10 6
Outros e Combinações 25 23 2 2 13

Como trespassa? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Herança ou Doação via Família Mulher 5 6 11 3 6
Herança ou Doação via Família Homem 23 20 14 10 17
Registo Autoridades Tradicionais 29 5 21 9 16
Registo Autoridades Administrativas 9 1 24 47 20
Mercado 9 12 12 16 12
Outros e Combinações 26 56 18 15 29

A análise dos dados em relação outros recursos demonstra que:

- É preocupante a elevada percentagem de famílias cujo acesso aos outros recursos


se dá de forma arbitrária, ou seja, sem qualquer sistema. Tal percentagem
demonstra duas coisas em paralelo, primeiro que os outros recursos continuam a
ser considerados como mato, e portanto o acesso não tem de ser normado,
segundo que nem o quadro institucional local nem o administrativo têm qualquer
controlo sobre o uso dos outros recursos;
- Uma vez mais se nota a tendência para o aumento da participação no mercado.
Embora ninguém tenha tido acesso via mercado, há 12% das famílias que se
referem a ele para a transmissão definitiva a terceiros;
- A utilização dos outros recursos, tarefa normalmente de responsabilidade
feminina, em 46% das famílias a decisão sobre o seu uso é assumida por ambos, o
que denota uma crescente co-participação do homem nas tomadas de decisão
sobre o uso dos outros recursos.

Os dados das análises por características dos respondentes que se seguem referem-se
às respostas às perguntas sobre terra. Todavia sempre que se verificam diferenças
significativas em relação às árvores de fruta e aos outros recursos elas estão
devidamente anotadas nos respectivos comentários.

29
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Análise em função do género do respondente

As respostas foram analisadas em função do sexo do respondente a fim de se saber até


que ponto as relações de género influenciam as percepções sobre as práticas no uso,
posse e transmissão dos recursos naturais pelas famílias e comunidades rurais.

Como teve acesso? Sexo Valores %


Forma Masculino Feminino total
Direito de Família 44 47 45
Instituições Locais 14 13 14
Estado 3 3 3
Mercado 6 5 5
Sem sistema 26 26 26
Outros e Combinações 8 7 7

Quem pode utilizar? Sexo Valores %


Forma Masculino Feminino total
Mulher e sua família 4 38 21
Homem e sua família 20 9 14
Ambos 65 39 52
Filhos 2 3 2
Outros e Combinações 11 11 11

Quem pode vender? Sexo Valores %


Forma Masculino Feminino total
Mulher e sua família 5 27 16
Homem e sua família 50 33 42
Ambos 33 21 27
Filhos 4 4 4
Não se vende 9 15 12

Como trespassa? Sexo Valores %


Forma Masculino Feminino total
Herança ou Doação via Família Mulher 5 14 9
Herança ou Doação via Família Homem 34 30 32
Registo Autoridades Tradicionais 20 15 18
Registo Autoridades Administrativas 16 8 12
Mercado 12 13 12
Outros e Combinações 14 20 17

Da análise das respostas em função do género do respondente concluiu-se:


- Não se registam diferenças dignas de menção no referente às formas de acesso
aos recursos;
- O mesmo, porém não acontece em relação ao uso. Enquanto os homens tentam
minimizar o direito das mulheres no uso dos recursos dizendo que o exercício
do mesmo depende de ambos, as mulheres reivindicam esse direito como seu e
da sua família;
- Também se registou disparidade em relação ao direito de venda. Neste caso
50% dos homens dizem ser deles esse direito, mas cerca de 25% das mulheres
reivindicam-no como seu.
- Em relação ao trespasse verifica-se uma ligeira diferença em relação às
mulheres que dizem que se faz via mulher e sua família.

30
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Análise em função da idade do respondente

Para a análise da variável da idade do respondente a população foi dividida em dois


grandes grupos, mais e menos de 40 anos de idade. O cruzamento tem por objectivos,
primeiro verificar se os comportamentos da nova geração são substancialmente
diferenciados dos da geração anterior e segundo, se o investimento sobre a
propriedade fundiária tende a aumentar ou a diminuir a médio prazo.

Como teve acesso? Idade Valores %


Forma < 40 anos > 40 anos total
Direito de Família 48 40 44
Instituições Locais 13 14 14
Estado 3 3 3
Mercado 5 6 6
Sem sistema 24 29 26
Outros e Combinações 7 9 8

Quem pode utilizar? Idade Valores %


Forma < 40 anos > 40 anos total
Mulher e sua família 15 20 17
Homem e sua família 16 15 15
Ambos 61 48 54
Filhos 1 3 2
Outros e Combinações 8 14 11

Quem pode vender? Idade Valores %


Forma < 40 anos > 40 anos total
Mulher e sua família 11 15 13
Homem e sua família 47 39 43
Ambos 28 30 29
Filhos 2 6 4
Não se vende 12 10 11

Como trespassa? Idade Valores %


Forma < 40 anos > 40 anos total
Herança ou Doação via Família Mulher 6 10 8
Herança ou Doação via Família Homem 33 32 32
Registo Autoridades Tradicionais 18 18 18
Registo Autoridades Administrativas 12 14 13
Mercado 14 11 12
Outros e Combinações 17 16 16

Da análise das respostas em função da idade do respondente concluiu-se:

- No referente às formas de acesso são menos os mais novos que o fazem à


revelia de qualquer sistema;
- Enquanto que no caso do direito de uso os mais novos têm maior tendência a
compartilhá-lo com o cônjuge do que os mais velhos;
- No entanto, em relação ao direito de venda, os mais jovens têm maior
tendência a atribuí-lo, exclusivamente, aos homens.
- Em relação ao trespasse não há diferenças baseadas na idade dignas de registo.

31
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Análise em função do nível de escolarização do respondente

A análise em função da escolaridade do respondente tem por objectivo saber se a


escola desempenha ou não algum papel nos comportamentos individuais e colectivos
em relação ao uso dos recursos.

Como teve acesso? Escolarização Valores %


Forma Analfabeto Alfabet. total
Direito de Família 43 42 42
Instituições Locais 12 15 13
Estado 2 3 3
Mercado 5 6 5
Sem sistema 28 21 25
Outros e Combinações 10 14 12

Quem pode utilizar? Escolarização Valores %


Forma Analfabeto Alfabet. total
Mulher e sua família 25 10 17
Homem e sua família 15 16 15
Ambos 49 59 54
Filhos 2 2 2
Outros e Combinações 9 14 12

Quem pode vender? Escolarização Valores %


Forma Analfabeto Alfabet. total
Mulher e sua família 18 8 13
Homem e sua família 36 50 43
Ambos 27 30 28
Filhos 5 3 4
Não se vende 14 9 11

Como trespassa? Escolarização Valores %


Forma Analfabeto Alfabet. total
Herança ou Doação via Família Mulher 10 6 8
Herança ou Doação via Família Homem 31 33 32
Registo Autoridades Tradicionais 17 20 18
Registo Autoridades Administrativas 13 13 13
Mercado 12 14 13
Outros e Combinações 19 14 17

Da análise das respostas em função do nível de escolarização do respondente


concluiu-se:

- No referente às formas de acesso são menos os alfabetizados que o fazem à


revelia de qualquer sistema e maior o número dos que investem no plantio de
árvores de fruta;
- Enquanto que no caso do direito de uso os alfabetizados têm maior tendência a
compartilhá-lo com o cônjuge do que os analfabetos;
- No entanto, em relação ao direito de venda, cerca de metade dos alfabetizados
contra 36% dos analfabetos, afirmam ser esse um direito exclusivo dos
homens;
- Em relação ao trespasse há uma ligeira diferença em favor dos alfabetizados
no registo das transacções.

32
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Análise em função da religião professada

A análise em função da religião professada pelo respondente pretende identificar até


que ponto é que instituições de carácter transversal19 influenciam os comportamentos
dos cidadãos na utilização dos recursos.

Como teve acesso? Religião Valores %


Forma Muçulmana Cristã Outra total
Direito de Família 43 44 42 43
Instituições Locais 4 18 20 14
Estado 2 4 3 3
Mercado 9 6 5 7
Sem sistema 36 19 21 25
Outros e Combinações 7 9 10 9

Quem pode utilizar? Religião Valores %


Forma Muçulmana Cristã Outra total
Mulher e sua família 14 13 18 15
Homem e sua família 13 16 19 16
Ambos 66 56 52 58
Filhos 3 3 1 2
Outros e Combinações 4 12 11 9

Quem pode vender? Religião Valores %


Forma Muçulmana Cristã Outra total
Mulher e sua família 13 13 13 13
Homem e sua família 37 47 48 44
Ambos 42 27 25 31
Filhos 4 4 5 4
Não se vende 3 10 10 8

Como trespassa? Religião Valores %


Forma Muçulmana Cristã Outra total
Herança ou Doação via Família Mulher 7 7 11 8
Herança ou Doação via Família Homem 15 35 42 30
Registo Autoridades Tradicionais 19 18 19 18
Registo Autoridades Administrativas 26 14 6 15
Mercado 17 13 9 13
Outros e Combinações 16 13 15 15

Da análise das respostas em função da religião professada pelo respondente concluiu-


se:
- No geral as maiores diferenças comportamentais verificam-se em relação aos
crentes muçulmanos.
- No referente às formas de acesso é bem maior o número de muçulmanos que o
faz à revelia de qualquer sistema, como também é menor a percentagem dos
que investem no plantio de árvores de fruta;
- No caso do direito de uso como no da venda, os muçulmanos são os que
apresentam maior tendência a compartilhá-lo com o cônjuge;
- Em relação ao trespasse são os muçulmanos que mais o fazem via mercado e
se preocupam em registar as transacções junto do Estado.
19
Entende-se por instituições transversais, aquelas cujas normas, costumes e regras são de origem
externa à comunidade mas foram incorporadas por esta nos seus comportamentos.

33
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Em síntese:

i. A eficácia dos direitos costumeiros na adjudicação e distribuição dos recursos


foi uma vez mais comprovada, em particular no referente à terra. Quanto à
eficiência em função dos direitos fundamentais dos cidadãos consagrados na
Constituição da República não foram assinaladas preocupações dignas de
menção.

ii. Verifica-se que nos espaços territoriais sob a alçada dos sistemas de direitos
costumeiros o acesso à terra e aos outros recursos são, devidamente,
assegurados, tal como consta na Lei de Terras.

iii. Verifica-se ainda que onde o mercado tende a tomar preponderância, quer o
mercado fundiário quer o das árvores de fruta, os sistemas de direitos
costumeiros têm encontrado formas para acomodarem-se à mudança sem
entrarem em ruptura. Qualquer intervenção do Estado neste domínio, quer
com a finalidade de codificação quer com a de normalizar os sistemas de
direitos costumeiros ao nível nacional é de todo contraproducente.

iv. Contudo, a elevada percentagem de famílias que tem acesso à terra à revelia
de qualquer sistema de direito é um sinal preocupante porque demonstrativo
do vacum institucional existente o que não corresponde nem à letra nem ao
espírito da legislação nacional sobre o assunto.

v. Esta percentagem é ainda maior em relação ao acesso, consequentemente, uso


dos outros recursos, o que, para além dos potenciais conflitos que tal forma
acarreta, pode por em causa a sustentabilidade do uso dos recursos naturais
pelas comunidades. A questão da simples ocupação deve ser objecto de
ponderação de forma a se evitar uma situação de anarquia e consequente
constituição de feudos pelos mais poderosos.

vi. O mercado está a desempenhar um papel cada vez mais importante na


adjudicação dos recursos naturais conforme se pode verificar pela intenção
manifestada de a ele se recorrer em cada de trespasse. Embora tal fenómeno,
por si só, não constitua nenhum sinal de alerta em relação aos direitos do
cidadão e aos interesses do Estado, importa que se regulamente o seu
funcionamento de forma a se evitar a concentração de terras numa elite urbana
em detrimento dos direitos por ocupação consagrados na Constituição.

vii. Regra geral o discurso ideológico dos homens tem cariz patriarcal, enquanto
que o das mulheres se caracteriza pela afirmação dos seus direitos, em
particular dos adquiridos pelo trabalho. Esta diversidade de discursos deve ser
cautelosamente acompanhada face ao aumento das transacções feitas via
mercados fundiário e de árvores. Como os sistemas dos direitos costumeiros
tendem a favorecer o patriarcado e não a igualdade nas relações de género
(mesmo no caso das áreas cobertas pelo sistema de casamento preferencial tal
como se verificou) particular atenção deve ser dada a este tema, muito
possivelmente através de regulamentação específica.

34
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

viii. Todavia, embora se continue a verificar que as relações de género no seio da


família são desvantajosas em relação à mulher, há alguns sinais positivos em
direcção ao balanceamento nos processos de tomada de decisões sobre o uso
dos recursos. Quer os mais jovens quer os alfabetizados demonstraram
tendência para partilharem com o cônjuge as decisões sobre o uso dos
recursos. Contudo o mesmo não acontece em relação ao direito à venda, que
tanto os jovens como os alfabetizados reivindicam, exclusivamente, para os
homens. A educação do cidadão e o estímulo ao diálogo no seio da família e
na comunidade, são as alternativas possíveis de ser implementadas para, a
prazo, se vir a cumprir o princípio constitucional da igualdade de direitos entre
o homem e a mulher.

ix. As significativas diferenças comportamentais em função da religião


professada devem ser objecto de acompanhamento de forma a se evitar que a
interpretação local dos preceitos religiosos contradiga os princípios
constitucionais e demais legislação sobre o acesso, uso e distribuição dos
recursos naturais. Para tal, os tribunais comunitários deverão, sempre que
possível, contar com a participação de representantes das confissões religiosas
e estimular o debate entre os cidadãos, com a finalidade de se construírem
consensos ao nível local.

35
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

6. PAPEIS RELATIVOS DAS INSTITUIÇÕES NA PREVENÇÃO DE


CONFLITOS

Entre várias diferenças entre os sistemas de direitos costumeiros fundamentados na


oralidade e os sistemas de direito estatutário codificados há uma que tem um
significado fundamental. Enquanto os primeiros têm por objectivo a prevenção dos
conflitos os segundos têm por objecto a resolução das situações de conflituosidade.

Ao optar-se pela interacção dos dois tipos de sistemas na legislação sobre o acesso,
uso e distribuição dos recursos naturais em Moçambique, pretendia-se harmonizar a
prevenção com a resolução aproveitando com o que de melhor cada um poderia
contribuir.

Assim sendo, importa saber qual o grau de confiança que o cidadão tem nas várias
instituições que se sobrepõem ou interagem ao nível comunitário20, como indicador da
prevenção dos conflitos, e qual a eficiência das mesmas na resolução dos conflitos.
Para o efeito foram formuladas duas categorias de questões:

- a quem recorre por tipo de conflito, o que indica o nível de reconhecimento


dos diversos mecanismos de persuasão que actuam na prevenção dos conflitos;
- a quem recorre em função da dimensão do conflito, o que indica a interacção e
os papeis relativos de cada uma das instituições.

Com base em levantamentos preliminares e estudos de caso anteriormente


realizados21 foram identificadas cinco instituições como sendo as mais representativas
ao nível familiar e comunitário:

- a família, como célula base que, por excelência, desempenha o papel de


preventora de conflitos;
- as autoridades tradicionais, cujas funções reguladora e disciplinadora
desempenham um papel fundamental nas relações intracomunitárias;
- o Tribunal Comunitário, que apesar de há muito ter sido, praticamente,
marginalizado pelo sistema estatutário da justiça, continua em muitas
localidades desempenhando um papel de persuasão ao nível comunitário;
- as autoridades administrativas, que normalmente acumulam as funções de
executivo com as funções judiciárias do Estado e até, por vezes, com as
legislativas ao nível local;
- outras, onde se incluem as confissões religiosas, as organizações não-
governamentais e demais organizações da sociedade civil.

20
Para efeitos analíticos foi estabelecida uma tipologia das instituições que actuam ao nível local,
sendo: as Instituições Endógenas, p.e. autoridades tradicionais, cujo funcionamento depende
exclusivamente dos sistemas de direitos costumeiros que regulam as relações intra e inter-
comunidades; as Instituições Transversais, p.e. igrejas e associações, cujos procedimentos são
estipulados em função dos interesses dos seus membros; e as Instituições Exógenas, p.e. as do Estado,
cuja autoridade foi imposta por razões históricas e relações de poder não dependentes das comunidades
locais.
21
Vide Santos;Trindade et. al. “Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justices em
Moçambique”, CEA-UEM/CES-UC, 2000; Cruzeiro do Sul. 2000. Levantamento Sócio-Económico da
Província de Nampula; CS-IID, Maputo.

36
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Recorrência por tipo e de acordo com a dimensão do conflito

Questionado sobre, a quem recorre em caso de conflito e em função da dimensão do


mesmo, as respostas indicam os pesos e papeis relativos de cada uma das instituições.

Recorrência por tipo de conflito? Média dos 4 distritos Valores %

Forma Terras Roubo Danos Dívida Outros total


Família 13 17 14 25 43 22
Autoridades tradicionais 37 32 28 24 18 28
Tribunal comunitário 9 15 15 14 5 12
Autoridades administrativas 37 31 39 31 12 30
Outros e Combinações 4 5 5 5 22 8

Recorrência por tipo de conflito? Média dos 4 distritos Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Família 18 33 23 14 22
Autoridades tradicionais 29 46 28 9 28
Tribunal comunitário 16 0 16 14 12
Autoridades administrativas 24 14 27 55 30
Outros e Combinações 13 6 6 8 8

A quem recorre – pequeno? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Família 30 46 37 33 37
Autoridades tradicionais 35 42 32 11 30
Tribunal comunitário 13 0 11 6 8
Autoridades administrativas 10 3 17 46 19
Outros e Combinações 12 9 3 4 7

A quem recorre – grande? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Família 2 3 3 3 2
Autoridades tradicionais 34 57 24 7 31
Tribunal comunitário 15 0 25 20 15
Autoridades administrativas 45 36 48 69 49
Outros e Combinações 4 4 0 1 2
A análise destes dados permite concluir:
- A família desempenha um papel de relevo na área dos conflitos de pequena
dimensão e na resolução das questões da dívida o que demonstra a eficiência dos
mecanismos de persuasão inter pares;
- As autoridades tradicionais apresentam um peso idêntico, independentemente, do
tipo ou da dimensão do conflito, o que demonstra a sua estabilidade;
- O papel das autoridades administrativas aumenta com a dimensão e o tipo de
conflito, todavia, na sua ausência, como é o caso de Tambara, é substituído pelas
tradicionais e pela família;
- As outras instituições são as que têm menor influência, contudo não é de
desprezar o seu papel na resolução de pequenos conflitos de natureza diversa em
paralelo com a família;
- O papel dos tribunais comunitários, quando existem, faz-se sentir,
independentemente da natureza e da dimensão dos conflitos, tendo porém um peso
maior à medida que a complexidade destes aumenta.

37
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Análise em função das características do respondente

A análise que se segue refere-se às respostas para os conflitos de grande dimensão por
não terem sido detectadas diferenças significativas nas respostas acerca dos conflitos
de pequena dimensão.

A quem recorre – grande? Sexo Valores %


Forma Masculino Feminino total
Família 2 3 2
Autoridades tradicionais 33 39 36
Tribunal comunitário 15 9 12
Autoridades administrativas 47 46 47
Outros e Combinações 3 4 3

A quem recorre – grande? Idade Valores %


Forma < 40 anos > 40 anos total
Família 2 2 2
Autoridades tradicionais 33 37 35
Tribunal comunitário 12 14 13
Autoridades administrativas 50 44 47
Outros e Combinações 3 4 3

A quem recorre – grande? Escolarização Valores %


Forma Analfabeto Alfabet. total
Família 2 3 3
Autoridades tradicionais 35 34 35
Tribunal comunitário 11 15 13
Autoridades administrativas 50 44 47
Outros e Combinações 2 4 3

A quem recorre – grande? Religião Valores %


Forma Muçulmana Cristã Outra total
Família 2 3 0 2
Autoridades tradicionais 16 40 38 31
Tribunal comunitário 19 15 12 15
Autoridades administrativas 62 40 47 50
Outros e Combinações 1 3 3 2

A análise destes dados permite concluir:


- Verifica-se uma certa uniformidade nas respostas em função do sexo do
respondente, excepto para o caso da recorrência pelas mulheres aos tribunais
comunitários, dando preferência às autoridades tradicionais;
- Os mais jovens recorrem mais às autoridades administrativas e menos às
tradicionais que os mais velhos;
- Os alfabetizados preferem o recurso aos tribunais comunitários e menos às
autoridades administrativas que os analfabetos;
- Uma vez mais são as crenças religiosas que maior influencia têm sobre o
comportamento dos cidadãos. Os muçulmanos são os que mais recorrem às
autoridades administrativas e os cristãos às autoridades tradicionais. Os que menos
importância dão ao tribunal comunitário são os de outras religiões e os que menos
reconhecem outras instituições são os muçulmanos.
38
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Em síntese:

i. No domínio das instituições endógenas a família e as autoridades tradicionais


demonstram gozar de estabilidade e de serem eficientes na sua função de
prevenção de situações de conflito. Assim, importa dar o enquadramento
necessário sem contudo se interferir nas suas formas e mecanismos de
funcionamento.

ii. As autoridades administrativas tendem a, gradualmente, perderem o seu


carácter de instituições endógenas, como é demonstrado pelo aumento do peso
da sua dimensão em função da dimensão e da complexidade do conflito.
Todavia, é urgente separar as funções administrativas das judiciárias, evitar a
aplicação de medidas de carácter normativo por parte delas e instruí-las no
sentido de reconhecerem os tribunais comunitários, nomeadamente no caso da
instrução de processos e outros de natureza afim.

iii. As instituições transversais são as que menor peso representam, todavia,


importa enquadrá-las afim de se evitar que haja atropelos à Lei no exercício
das suas funções.

iv. Os dados demonstram que o Tribunal Comunitário apesar de se encontrar em


crise é uma instituição de interface intra-institucional. A sua presença,
independentemente da natureza e da dimensão dos conflitos, e aumento do
número de cidadãos que a ele recorre à medida que a complexidade dos
conflitos cresce, são indicativos do enorme potencial que representa no
estabelecimento de um sistema legal unitário com inclusão da diversidade.
Importa pois que particular atenção seja dispensada aos Tribunais Comunitário
a fim de se ultrapassar a situação de crise em que se encontram. Entre outras
medidas de carácter regulamentar que se julgarem necessárias, no domínio da
prevenção e resolução de conflitos de terras, há três que merecem particular
atenção:
a. que na composição dos Tribunais Comunitários conte com a inclusão
de assessores locais conhecedores das instituições transversais, a fim
de se garantir a interacção entre os sistemas costumeiros e o sistema
judicial;
b. que se mantenha o preceito legal da eleição periódica dos jurados ou
qualquer outra forma de crivo popular, afim de se evitar a possibilidade
de prepotência ou despotismo motivados por qualquer eventual acto de
corrupção;
c. que na defesa dos direitos constitucionais do cidadão se dê particular
atenção ao processamento dos casos relacionados com as mulheres e
com os mais pobres entre os pobres.

39
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

7. RECORRÊNCIA E RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE TERRAS

Cerca de 15% das famílias entrevistadas declararam terem tido conflitos de terras nos
últimos dois anos. O Distrito de Manica é o que mais altas percentagem apresenta e os
de Tambara e Angoche são os de mais baixa percentagem. À partida, o modelo
analítico que suporta serem o aumento da densidade populacional e das actividades do
mercado os geradores de conflitos, não se aplica à evidência empírica recolhida, uma
vez que Angoche ambas as variáveis também se fazem sentir, mas nem por isso o
número de conflitos é mais elevado.

Uma outra hipótese analítica suporta que quanto maior é a eficiência e inter-acção das
várias instituições menor são os conflitos fundiários22. Será que em Angoche o quadro
institucional é mais eficiente do que em Manica? E como explicar os 12% de conflitos
em Rapale e a baixa percentagem em Tambara? Mais ainda qual a eficiência relativa
das várias instituições na resolução destes conflitos? Qual é pois o papel dos Tribunais
Comunitários?

Perguntou-se aos entrevistados, a quem recorre em caso de conflito de terras e quem


resolveu o conflito.

A quem recorre conflito de terras? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Família 5 31 12 2 13
Autoridades tradicionais 52 52 33 12 37
Tribunal comunitário 7 0 16 15 9
Autoridades administrativas 28 12 38 71 37
Outros e Combinações 8 5 2 1 4

Quem resolveu o conflito de terras? Distrito Valores %


Forma Manica Tambara Rapale Angoche total
Família 16 39 7 20 20
Autoridades tradicionais 17 36 33 16 25
Tribunal comunitário 19 0 26 18 16
Autoridades administrativas 28 16 19 33 24
Outros e Combinações 20 10 16 13 15

Os dados falam por si:


- À família recorre-se menos do que a sua efectividade na resolução de conflitos;
- Em Manica a prioridade de recorrência é às autoridades tradicionais mas elas são
ineficientes na resolução dos conflitos enquanto que em Angoche, como no
conjunto dos outros distritos são as que mais eficientemente actuam;
- Com excepção do caso de Manica, onde se verifica um empate, as autoridades
administrativas são a mais ineficiente instituição na resolução de conflitos de
terras;
- Por seu turno a capacidade de resposta das instituições transversais é muito maior
do que aquela que o cidadão prevê;
- Os tribunais comunitários são os que, no conjunto, melhor desempenho
apresentam. Nos casos onde existem, foram mais eficientes do que se esperava.

22
Trata-se da escola neo-institucionalista

40
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Análise em função das características do respondente

Os dados que se seguem referem-se às respostas dadas para a resolução dos conflitos,
contudo nos comentários é feita a análise comparativa com as respostas sobre as
intenções de recorrência.

Quem resolveu o conflito de terras? Sexo Valores %


Forma Masculino Feminino total
Família 18 20 19
Autoridades tradicionais 21 20 21
Tribunal comunitário 16 18 17
Autoridades administrativas 29 22 26
Outros e Combinações 17 20 18

Quem resolveu o conflito de terras? Idade Valores %


Forma < 40 anos > 40 anos total
Família 19 18 18
Autoridades tradicionais 21 21 21
Tribunal comunitário 18 16 17
Autoridades administrativas 25 27 26
Outros e Combinações 17 18 18

Quem resolveu o conflito de terras? Escolarização Valores %


Forma Analfabeto Alfabet. total
Família 17 20 18
Autoridades tradicionais 17 23 20
Tribunal comunitário 24 12 18
Autoridades administrativas 27 26 27
Outros e Combinações 15 20 18

Quem resolveu o conflito de terras? Religião Valores %


Forma Muçulmana Cristã Outra total
Família 16 19 16 17
Autoridades tradicionais 12 22 20 18
Tribunal comunitário 22 12 18 17
Autoridades administrativas 35 15 34 28
Outros e Combinações 16 32 12 20

A análise destes dados permite concluir:


- Verifica-se uma certa uniformidade nas respostas em função do sexo do
respondente, contudo, ao contrário da intenção de recorrência, os tribunais
comunitários são mais eficientes e as autoridades administrativas menos na
resolução dos conflitos denunciados por mulheres;
- Também no sentido inverso do da intenção de recorrência, os tribunais
comunitários resolvem mais casos de jovens e as autoridades administrativas
menos do que com os mais velhos;
- Surpreendentemente, os analfabetos são melhor atendidos pelos tribunais
comunitários e pelas autoridades administrativas que os alfabetizados;
- No domínio da religião são as instituições transversais as que mais casos de
conflitos resolvem quando comparadas com a intenção de recorrência. O caso
particular do papel destas intenções na resolução de conflitos de terras entre os
cristãos explica-se pela grande actividade da Igreja Católica nesta área, através da
Caritas e das Comissões de Justiça e Paz e Diocesianas de Terras.
41
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Sobre a natureza dos conflitos e o papel relativo dos tribunais comunitários

Importa saber a natureza, o tipo e os actores intervenientes nos conflitos fundiários, a


fim de se poder dimensionar o papel relativo que os tribunais comunitários possam vir
a desempenhar.

A esse propósito foram realizadas uma série de entrevistas em grupos foco com
representantes de organizações da sociedade civil, membros dos governos distritais,
autoridades tradicionais e juízes de tribunais comunitários. Da análise do material
coligido construiu-se a seguinte tipologia.

CONFLITOS DE TERRAS: Actores, Tipos e Natureza


Conflitos da iniciativa do Estado:
- relacionados com o postulado legal da consulta às comunidades – a consulta não
foi feita; foi feita junto de pessoas não representativas da comunidade; foi feita
com base duvidosa no Decreto 15/2000; foram utilizados editais em sua
substituição;
- falta de articulação entre o reconhecimento do direito constitucional de ocupação
por parte do cidadão e das comunidades e a emissão de licenças de corte florestal;
- adjudicação de terras ocupadas a terceiros;
- casos de corrupção na adjudicação de terras e venda dos direitos de uso e
aproveitamento;
- recurso à violência de forma arbitrária, incluindo detenções e espancamento;
- relacionados com a definição de zonas para a abertura de machambas ou para os
locais de comercialização.
Conflitos da iniciativa dos privados:
- derivados da não vedação das áreas de pasto;
- proibição dos direitos de passagem;
- proibição de acesso para fins de consumo a áreas sob concessão florestal ou fauna;
- açambarcamento e especulação com terras;
- recuperação de antigas propriedades à margem da Lei de Terras;
Da iniciativa das comunidades:
- disputa entre linhagens sobre quem eram os ocupantes num passado remoto;
- diferendos e disputas na delimitação das terras comunitárias;
- casos de corrupção e de venda de direitos de uso e aproveitamento a terceiros para
benefício de alguns em detrimento do conjunto dos membros da comunidade.
Da ausência de legislação:
- derivados da indefinição sobre os papeis das “autoridades comunitárias” do
decreto 15/2000 e os 3 a 9 representantes da comunidade que constam no anexo
técnico ao regulamento da Lei de Terras.

Face a este quadro importa:


- que o parlamento legisle sobre a articulação dos vários órgãos aos níveis distrital,
de localidade e comunitário;
- que o executivo reforce as acções de inspecção;
- que o judiciário facilite o acesso ao Tribunal Administrativo;
- que os tribunais comunitários sejam formados na área da instrução dos processos a
instâncias superiores e nas problemáticas de interacção com terceiros.

42
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Em síntese:

O quadro institucional surge como a variável que melhor explica as diferenças na


prevenção e na resolução dos conflitos que surgem nos locais seleccionados pela
amostra.

Este quadro institucional é constituído por uma série de instituições cujo desempenho
depende da fluidez da articulação entre elas. Quanto melhor os papeis relativos estão
definidos e melhor é o cumprimento das funções que lhes são atribuídas pela
sociedade em geral e pelas comunidades em particular, mais eficiente é o desempenho
e melhor são concretizados os direitos dos cidadãos e realizados os interesses do
estado em relação aos recursos naturais.

Detectaram-se uma série de anomalias no Estado enquanto instituição que se quer


representativa de todos os cidadãos. O legislativo tem de zelar pela uniformidade do
corpo legal, o governo tem de cumprir e zelar pela correcta implementação da Lei e o
judiciário tem de estabelecer um fluxo harmonioso entre os vários níveis, a partir da
Localidade.

A Escola e a Sociedade Civil têm um papel importante a desempenhar na educação


cívica da sociedade, em particular no referente ao reconhecimento e repeito dos
direitos das mulheres e dos mais pobres.

Os tribunais Comunitários devem ser objecto de duas acções em paralelo: (i) a


regulamentação do seu funcionamento para o caso específico do uso, acesso e
distribuição dos recursos naturais; (ii) e a formação dos seus juízes.

A formação, por seu turno, deverá assentar duas componentes fundamentais: (i) a
componente dos procedimentos para com o cidadão e as instituições locais no mais
completo respeito pelos direitos constitucionais; e (ii) a componente processual na
articulação com as instâncias superiores e nas áreas que envolvam a interacção com
terceiros.

43
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

8. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

O presente estudo tinha por finalidade identificar (i) o interface entre o sistema
judicial e os sistemas costumeiros (ii) compreender as ligações e os fluxos de
informação e (iii) as interdependências entre ambos.

Este estudo está integrado num programa mais amplo que é o de desenvolver e testar
(a) metodologias e (b) material didáctico para a formação dos membros dos tribunais
comunitários sobre (c) os princípios constitucionais e (d) os princípios basilares das
novas leis.

Para o efeito, a fim de se poderem compreender as ligações, os fluxos de informação e


as interdependências, o estudo incidiu sobre quatro diferentes camadas de
administração da justiça e teve por objecto analítico a interacção entre elas.

Conclusões

As camadas identificadas foram:


a camada das práticas judiciais comunitárias
a camada das práticas dos tribunais comunitários
a camada das práticas judiciais da Administração
a camada das práticas da justiça judicial

A análise sobre as práticas judiciais comunitárias orientou-se para a verificação da


eficácia dessas práticas em função dos corpos legais dos sistemas costumeiros, da
aplicação dos princípios basilares das novas leis e no respeito pelos princípios e
direitos consagrados na Constituição da República de Moçambique.

Concluiu-se que as práticas judiciais comunitárias:


são efectivas para mais de 50% das famílias inquiridas no quadro dos corpos
legais dos sistemas costumeiros que se referem à terra e às árvores de fruta e
fazem-se, grosso modo, de acordo com os princípios das novas leis e
constitucionais, com excepção da igualdade de direitos entre a mulher o e o
homem;
são efectivas para cerca de 25% da amostra em acções que, embora não regidas
pelos corpos dos direitos costumeiros, são práticas incorporadas, como seja o caso
do mercado de terras e investimento em árvores de fruta, do recrutamento
ocasional de força de trabalho e da tendência para uma alteração profunda nas
relações de género ao nível familiar (claramente fruto da reivindicação das
mulheres, por um lado, e do desenvolvimento do mercado fundiário, por outro) no
controlo dos recursos;
não são reconhecidas por cerca de ¼ dos inquiridos (sem qualquer correlação com
a idade, sexo ou nível de escolarização), não por estes reconhecerem a justiça
judicial em lugar da costumeira (como parece ser o caso entre os cidadãos
muçulmanos), mas por vacum institucional;
não são reconhecidas de todo no uso de outros recursos, como a fauna, a pesca e o
“mato”.

44
______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

Os tribunais comunitários são tribunais oficiais porque criados por iniciativa do


Estado e regidos por Lei Própria. Contudo, desde há muito que o Estado os votou ao
esquecimento, não se cumprindo a Lei em relação à eleição dos juízes nem à
separação do judicial do executivo, melhor do Partido Político que este representa. A
análise das práticas dos tribunais comunitários teve assim, por objectivos saber quão
eficazes são e qual o grau de confiança institucional que gozam junto dos cidadãos.

Concluiu-se que as práticas dos tribunais comunitários:


são efectivas entre 10% a 20% dos casos de conflitos identificados pelos
inquiridos, tendo maior intervenção à medida que a dimensão do conflito
aumenta;
são mais efectivas na resolução de conflitos fundiários do que o próprio cidadão
supõe, enquanto só 9% dos inquiridos declara recorrer ao tribunal comunitário
para a resolução de conflitos de terra, foram 16% os casos de conflituosidade
resolvidos por estes tribunais;
são deformadas pela falta de uniformidade de critérios (na ausência de
regulamentação e no não cumprimento do já prescrito pela Lei) e de
acompanhamento institucional, havendo casos de despotismo e compadrio, casos
de não reconhecimento do princípio constitucional de igualdade perante a Lei de
cidadãos de sexos diferentes ou de classes sociais distintas;
são dotadas de uma vitalidade própria mas diversa, desempenhando em alguns
casos um papel autónomo de persuasão ao nível local, mas noutros um papel
subordinado aos interesses de terceiros.

A análise sobre as práticas judiciais da Administração foi orientada para a


determinação da sua eficácia junto do cidadão e para a avaliação do grau de
substituição de funções do judicial pelo executivo.

Concluiu-se que as práticas judiciais do Estado:


são efectivas em cerca de 25% dos casos de conflito de terras, mas ficam aquém
da expectativa do cidadão em geral (uma vez que são 37% os que a elas recorrem
em primeira instância mas só 25% são por elas resolvidas) e das mulheres em
particular;
são mais solicitadas pelos jovens e pelos cidadãos muçulmanos, e à medida que a
dimensão do conflito aumenta ou que a complexidade ultrapasse o nível familiar
substituem-se em larga medida (cerca de 50% dos caos) ao judiciário ao nível
local, tendo-o por subordinado seu e interferindo directamente na sua composição
e no exercício das suas funções;
caracterizam-se pela total abstinência sempre que é o executivo a cometer uma
ilegalidade.

Por último a análise das práticas da justiça judicial teve por preocupação exclusiva
saber até que ponto existem e são tidas como efectivas pelos cidadãos e pelas várias
instituições que existem ao nível local.

Concluiu-se que as práticas justiça judicial:


não se fazem sentir ao nível local;

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______________________________________________________O Papel dos Tribunais Comunitários

são sistematicamente ignoradas pelo executivo, quer na prevenção quer na


resolução de conflitos;
por vezes, embora quase excepcionalmente, são chamadas a intervir
casuisticamente quando de conflitos com terceiros ou por recurso.

O estudo permitiu concluir que o interface entre o sistema judicial e os sistemas de


justiça costumeiros ocorre ocasionalmente, dependendo de região para região, da cor
política dos líderes locais e do nível de motivação e de sensibilidade do pessoal
administrativo em serviço no local.

Não há fluxos regulares nem institucionalizados de informação, as ligações embora


definidas nas suas linhas gerais, não são estabelecidas e usualmente são ignoradas e
substituídas quer pelo governo local, quer pelas autoridades das instituições populares
locais. Só em casos de maior monta e com o envolvimento de terceiros é que se
levanta a hipótese de remessa ou de recurso à justiça judicial.

Não se pode dizer que existam interdependências, uma vez que as ligações na maior
parte dos casos não estão estabelecidas e quando existem são informais, não
obedecendo a nenhuma regra de procedimentos ou de processamento. Em lugar de
interdependências constata-se existirem sobreposições e intersecções entre os vários
actores e os vários níveis de actuação.

Recomendações

1. Só é possível passar-se à formação dos membros dos tribunais comunitários quando


a sua actuação for regulamentada, que em matéria de procedimentos como em matéria
processual, na relação que se estabelece com a justiça judicial, com os serviços
administrativos e com as autoridades comunitárias. A elaboração de uma proposta de
regulamento e a recolha de consensos em torno dela são condições sine qua non para
se passar à segunda fase;

2. Uma segunda condição indispensável para a eficácia dos futuros graduados é que
os alunos sejam seleccionados de acordo com os critérios legais, afim de se garantir a
sua legitimidade junto das comunidades e das autoridades comunitárias e
administrativas;

3. Um primeiro corpo da estrutura curricular deve ser orientado para a aquisição de


conhecimentos e de habilidades sobre a articulação entre os vários actores e os vários
níveis, a saber, autoridades comunitárias, líderes locais da sociedade civil, autoridades
administrativas e representantes da justiça judicial;

4. Uma segunda parte do curso deve ser dedicada à apreensão dos princípios
constitucionais relacionados com os direitos humanos e com as normas de
convivência e autonomia das sociedades democráticas;

5. Uma terceira e última parte do curso será então dedicada à aquisição de


conhecimentos sobre os princípios basilares das novas leis dos recursos naturais, ao
desenvolvimento de capacidades no domínio da educação do cidadão, e na aquisição
de habilidades em matéria processual.

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