LilithMedeiamulheres Silva 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ALINE LAYANE SOUTO DA SILVA

LILITH E MEDEIA:
MULHERES-PESADELO DA SOCIEDADE PATRIARCAL

NATAL/RN
2021
ALINE LAYANE SOUTO DA SILVA

LILITH E MEDEIA:
MULHERES-PESADELO DA SOCIEDADE PATRIARCAL

Dissertação de Mestrado apresentada ao curso


de Pós-graduação em Estudos da Linguagem,
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Literatura Comparada.

Orientadora: Profa. Dra. Regina Simon da Silva.

NATAL/RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Aline Layane Souto da.


Lilith e Medeia: mulheres-pesadelo da sociedade patriarcal /
Aline Layane Souto da Silva. - 2021.
137f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Regina Simon da Silva.

1. Medeia (Mitologia grega) na literatura - Dissertação. 2.


Lilith (Mitologia semítica) - Dissertação. 3. Luz del Fuego,
1917-1967 - Dissertação. 4. Arquétipo - Dissertação. 5. Mitologia
- Dissertação. I. Silva, Regina Simon da. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091-055.2

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


ALINE LAYANE SOUTO DA SILVA

LILITH E MEDEIA:
MULHERES-PESADELO DA SOCIEDADE PATRIARCAL

Dissertação apresentada ao curso de Pós-


graduação em Estudos da Linguagem, da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Literatura
Comparada.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________
Profa. Dra. Regina Simon da Silva
Orientadora
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________
Prof. Dr. Mauro Dunder
Membro interno
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________
Profa. Dra. Maria Mirtis Caser
Membro externo
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
A todas as mulheres.
AGRADECIMENTOS

Começo agradecendo a minha mãe, Laécia; a minha irmã, Alane; aos meus
avós e minhas tias pelo apoio e amor.
Agradeço a todos os meus amigos, em especial a Mikaelly Carvalho, Rafael
Vale, Gabriella Kelmer, Jéssica Martins e Ana Luíza Cavalcante por estarem junto a
mim nessa jornada, por toda paciência, amizade e abraços tão calorosos.
Agradeço a minha filha, Cecília. O amor da minha vida. Nem um verso de
poesia pode fazer entender o que significam simplicidade, leveza e graciosidade de
ser como você pode.
Agradeço a minha companheira e grande amiga, Fladmylla Ohana, por
absolutamente tudo. A única pessoa capaz de transformar um “agradecimento” de
Dissertação em post-it1.
Agradeço ao Professor Marcos Tindo por cada vez que me fez acender uma
nova lâmpada em minha mente.
Agradeço, principalmente, a minha orientadora Professora Regina Simon por
me apontar, incessantemente, o Norte. Obrigada por me ensinar a ler, a escrever, a
pensar e a pesquisar.
E, por fim, a CAPES: o presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de Financiamento 001.

1 Ver episódio 24 da quinta temporada da série Grey’s Anatomy.


.

Não há no céu fúria comparável ao amor transformado em ódio,


nem há no inferno ferocidade como a de uma mulher
desprezada.
William Congreve
RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo comparar as obras Medeia, de Eurípides


(2010), “O Alfabeto de Ben Sira”, versão disponibilizada por Eisenstein (2008), e Luz
del Fuego: a bailarina do povo, de Cristina Agostinho (1994), elucidando o arquétipo
de mulher-pesadelo da sociedade patriarcal na literatura. Esse arquétipo de mulher-
pesadelo carrega uma série de características, podendo ser ela cruel, lasciva,
infanticida e até mesmo divina. Posto isso, pode-se analisar as narrativas mitológicas
identificando os perfis da mulher transgressora do patriarcado, que se contrasta e se
reafirma no corpo e na vida da personagem histórica Dora Vivacqua na pele de Luz
del Fuego. Disposta em cinco capítulos, esta Dissertação conta com perspectivas
comparatistas baseando-se nas discussões teóricas de Gerda Lerner (2019), Monique
Wittig (2006), Rosie Marie Muraro (1997), Pierre Bourdieu (2012) e Jean Delumeau
(2001) para analisar a história do sistema patriarcal, seus mecanismos, ferramentas e
discursos. No tocante à teoria sobre as mitologias, se recorrerá a Joseph Campbell e
Bill Moyers (1990), Martha Robles (2006), Robert Graves e Raphael Patai (2018),
entre outros. Por meio das teorias costuradas às narrativas literárias, percebe-se que
a literatura fala da sociedade em que toma forma, podendo ser tanto descritiva como
prescritiva. Assim, entende-se que mulheres mitológicas, como Medeia e Lilith, e
históricas, como Luz del Fuego, caminham nas duas vias, pois a literatura as descreve
porque existiram – ainda que seja em forma de mito –, e as prescreve para que não
voltem a existir, devido ao antagonismo que provocam, oscilando entre o fascínio e o
pavor.

Palavras-chave: Medeia; Lilith; Luz del Fuego; arquétipo; mitologia.


ABSTRACT

This research aims to compare the works Medea, by Euripides (2010), “The Alphabet
of Ben Sira”, version provided by Eisenstein (2008), and Luz del Fuego: a bailarina do
povo, by Cristina Agostinho (1994), elucidating the nightmare woman archetype of
patriarchal society in literature. This archetype of nightmare woman carries a series of
characteristics, she can be cruel, lascivious, infanticidal and even divine. That said, it
is possible to analyze the mythological narratives identifying the profiles of the
transgressor woman of the patriarchy, who contrasts and reaffirms herself in the body
and in the life of the historical character Dora Vivacqua in the skin of Luz del Fuego.
Arranged in five chapters, this Dissertation has comparative perspectives based on the
theoretical discussions of Gerda Lerner (2019), Monique Wittig (2006), Rosie Marie
Muraro (1997), Pierre Bourdieu (2012) and Jean Delumeau (2001) to analyze the
history of the patriarchal system, its mechanisms, tools and discourses. Regarding the
theory of mythologies, we will use Joseph Campbell and Bill Moyers (1990), Martha
Robles (2006), Robert Graves and Raphael Patai (2018), among others. Through the
theories sewn to literary narratives, it is clear that literature speaks of the society in
which it takes shape, being both descriptive and prescriptive. Thus, it is understood
that mythological women, such as Medeia and Lilith, and historical women, such as
Luz del Fuego, walk both ways, as literature describes them because they existed –
even if it is in the form of myth – and prescribes them so that they do not exist again,
due to the antagonism they provoke, oscillating between fascination and dread.

Keywords: Medea; Lilith; Luz del Fuego; archetype; mythology.


LISTA DE COMPONENTES DOS ANEXOS

Figura 1 – Família Vivacqua............................................................................. 129


Figura 2 – Ficha de inscrição do Clube Naturalista Brasileiro.......................... 129
Figura 3 – O belíssimo rosto de Luz del Fuego................................................ 130
Figura 4 – Luz del Fuego (à direita), então com 8 anos, fantasiada para o
Carnaval em Cachoeiro de Itapemirim............................................. 130
Figura 5 – Recibo de pagamento da internação de Luz del Fuego (então com
19 anos de idade) no hospital psiquiátrico em Belo
Horizonte......................................................................................... 131
Figura 6 – Luz fantasiada de Eva, chegando ao Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, no Carnaval de 1948.......................................................... 131
Figura 7 – Luz em companhia de sua serpente, Cornélio................................ 132
Figura 8 – Luz fantasiada de “Grande Dama”, no Carnaval carioca nos anos
1950................................................................................................. 132
Figura 9 – Fotografia de uma cena de um dos filmes em que Luz atuou......... 133
Figura 10 – Luz del Fuego com uma de suas cobras......................................... 133
Figura 11 – Luz como candidata a deputada pelo Partido Naturalista Brasileiro
(PNB)............................................................................................... 134
Figura 12 – Luz fantasiada de “Noivinha Pistoleira” no Teatro Municipal do Rio
de Janeiro, no Carnaval de 1952...................................................... 134
Figura 13 – Capa do romance escrito por Luz: Trágico Black-out, publicado em
1947................................................................................................. 135
Figura 14 – Filme Luz del Fuego, interpretado por Lucélia Santos.................... 135
Figura 15 – Charge “Roubo na Ilha do Sol”......................................................... 136
Figura 16 – Escola de Samba “Chega Mais”...................................................... 136
Figura 17 – Luz repousando da Ilha do Sol........................................................ 137
Figura 18 – Luz, então com 50 anos, pouco antes de sua morte....................... 137
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 12
2 MULHERES TRANSGRESSORAS: RECORTE DAS OBRAS.............. 16
2.1 FIGURAS MITOLÓGICAS....................................................................... 18
2.1.1 Medeia, de Eurípides............................................................................. 18
2.1.2 Lilith e “O Alfabeto de Ben Sira”........................................................... 21
2.2 PERSONAGEM REAL............................................................................. 24
2.2.1 Dora Vivacqua em Luz del Fuego: a bailarina do povo........................ 24
3 COMO O HOMEM CHEGOU AO PODER................................................ 27
3.1 A ORIGEM DA DOMINAÇÃO MASCULINA SOBRE A MULHER........... 28
3.2 A CATEGORIA DE SEXO NA SOCIEDADE PATRIARCAL.................... 34
3.3 JEOVÁ, ADÃO, ZEUS E JASÃO: PERSONIFICAÇÕES DO
PATRIARCADO....................................................................................... 42
3.3.1 Jeová, o Deus por excelência do patriarcado..................................... 44
3.3.2 Adão, ditador de nomes e papéis......................................................... 50
3.3.3 Zeus e seu presente de grego.............................................................. 54
3.3.4 Jasão: homem, grego e príncipe.......................................................... 59
4 UM MITO CHAMADO MULHER: NA TRAGÉDIA, NO TEXTO
RELIGIOSO E NA VIDA REAL................................................................ 65
4.1 O ÓDIO E O MEDO À MULHER NO OCIDENTE.................................... 68
4.2 LILITH E MEDEIA: A RELAÇÃO ENTRE A MULHER, O PODER E O
MAL.......................................................................................................... 73
4.3 MEDEIA E O DISCURSO MACHISTA DE UMA SOCIEDADE QUE
REPUDIA A MULHER.............................................................................. 80
4.4 LILITH: UMA MULHER EM FUGA E EM EXÍLIO.................................... 92
4.5 LUZ DEL FUEGO: A REALIZAÇÃO DO MITO........................................ 97
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 119
REFERÊNCIAS....................................................................................... 121
ANEXOS – FOTOS SOBRE A VIDA E A PESSOA DE LUZ DEL
FUEGO.................................................................................................... 129
12

1 INTRODUÇÃO

Mitos são pistas para as potencialidades


espirituais da vida humana. [...] Céu e inferno
estão dentro de nós [...] Todos os deuses,
todos os céus, todos os mundos estão dentro
de nós.
Joseph Campbell

Mito: palavra tão antiga e tão emblemática. Tão discutida e ainda assim,
inesgotável. Este trabalho tenta, mais uma vez, discorrer sobre palavras tantas vezes
já ditas, ouvidas e vividas. Tenta tecer atentamente fio por fio, como Aracne que
entrelaça os fios para que no fim a tapeçaria revele uma mensagem. Os fios são os
mesmos, fiados há séculos, mas eis que a tecelã é outra e tece em busca da
mensagem escondida em cada trama e urdume.
Pergunta-se: por que estudar mitologia? Muitas pessoas indagam isso por
julgar que a mitologia está ultrapassada ou que já foi esgotada de sentidos. No
entanto, o que as pessoas parecem não entender é que a mitologia fala de nós, e,
como se fosse um espelho, precisamos admirá-la para nos compreender tanto
individualmente como coletivamente. Elaine C. Prado dos Santos, na Apresentação
de O Livro da Mitologia, de Thomas Bulfinch, diz:

A existência de mitos é de suma importância para o imaginário


coletivo, pois a essência do mito é ser, efetivamente, uma
representação coletiva, ao expressar e explicar tanto o mundo quanto
a realidade humana, transmitida por intermédio de várias gerações. O
mito conta, por ser uma narrativa; explica, por se tratar de um
acontecimento ocorrido no tempo fabuloso dos começos, pressupondo
que se retorne ao começo, em direção ao arquétipo; e, por fim, revela
o ser, revela o deus, apresentando-se como uma história sagrada
(SANTOS apud BULFINCH, 2013, p. 14).

Assim, podemos dizer que o valor que a mitologia tem para a sociedade é
essencialmente o imaterial, que é composto de significações e experiências ideárias.
Os mitos nos conduzem às nossas próprias jornadas, nos ombros dos heróis, das
bruxas, das deusas, dos sátiros. Com a mitologia, podemos compreender as relações
humanas e suas consequências, suas dores, suas conquistas; podemos vivenciar a
excitação de um assassino, a rejeição de um amante ou o poder de uma mulher.
Dessa forma, podemos considerar que a mitologia tem o poder de refinar o ouro
13

humano encriptado em nossos âmagos. E se a mitologia não surge em nossa vida,


nosso interior poderá ter uma grande dificuldade em organizar o caos que lá reside
desde a tomada de consciência de estar no mundo e se achar como um ser:

As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da


educação de toda gente. Tendo sido suprimidas, toda uma tradição de
informação mitológica do Ocidente se perdeu. Muitas histórias se
conservavam, de hábito, na mente das pessoas. Quando a história
está em sua mente, você percebe sua relevância para com aquilo que
esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe está
acontecendo. Com a perda disso, perdemos efetivamente algo,
porque não possuímos nada semelhante para pôr no lugar. Esses
bocados de informação, provenientes dos tempos antigos, que têm a
ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, que
construíram civilizações e enformaram religiões através dos séculos,
têm a ver com os profundos problemas interiores, com os profundos
mistérios, com os profundos limiares da travessia, e se você não
souber o que dizem os sinais ao longo do caminho, terá de produzi-
los por sua conta. Mas assim que for apanhado pelo assunto, haverá
um tal senso de informação, de uma ou outra dessas tradições, de
uma espécie tão profunda, tão rica e vivificadora, que você não
quererá abrir mão dele (CAMPBELL; MOYERS, 1990, p. 15).

Consequentemente, julgamos que a mitologia e seu estudo são tanto


importantes como necessários. Reconhecer os arquétipos conforme Elaine Santos, e
aprender com eles como falou Campbell. Acreditamos que os mitos são histórias reais,
mas com o brilho do fantástico. É a verdade que a civilização deixa exalar de seus
poros. Consideramos que se o autor (individual ou coletivo) concebeu uma narrativa
com uma lição em plano de fundo, é porque de alguma maneira essa narrativa faz
ligação com o real e faz mais sentido que uma proibição ou recomendação direta
porque habita na terra do sonho, onde a verdade nos toca sem que haja grande
resistência por nossa parte:

A relação entre mito e realidade não costuma ser tão direta, mas
podemos supor que ninguém poderia inventar o conceito de uma
assembleia de deuses se não tivesse, em algum momento, vivenciado
e conhecido alguma instituição semelhante na Terra (LERNER, 2019,
p. 187).

Assim, o mito fala do que se vê, do que se experiencia e, por meio dessa
premissa, levantamos a hipótese: uma vez que alguém, notando que a sociedade
caminha por um rumo onde os homens comandam, pôde observar mulheres como
Luz del Fuego que desejam sair desse rumo e caminhar por outra via, esse alguém
14

poderia ter notado que tais mulheres não se assemelham – e nem desejam fazê-lo –
às outras que seguem a procissão do patriarcado debaixo do jugo2 masculino; e, por
se rebelarem, elas causam uma espécie de desordem à ordem imposta pelo homem.
Assim, de acordo com Lerner (2019, p. 27-28), como a escrita3 e afins se tornaram
um domínio masculino, os registros são criados e interpretados por homens que
tiveram o cuidado de glosar, acima de tudo, a si e suas ideias. Logo, podemos
entender o processo de apagamento e de misoginia que as mulheres foram vítimas
em narrações como o mito. O homem, tendo o poder da voz, da palavra e da escrita,
criou narrativas sobre essas mulheres para que outrem as conhecesse. Sintetizando,
nossa hipótese aponta que, muito antes de Dora Vivacqua nascer, Luz del Fuego já
existia; e, através da literatura, deparamo-nos com as luzes de Luz em Lilith e em
Medeia. Portanto, a mulher-pesadelo existe na literatura porque existe na sociedade.
É disso que se trata essencialmente o arquétipo4. Trata-se de existir como uma
entidade eterna e assumir nome e forma, de quando em quando, surgindo como
mágica para ensinar novas lições, com outra roupagem; seja na vida, seja na arte.
A seguir, no segundo capítulo desta Dissertação, intitulado “Mulheres
transgressoras: recorte das obras”, apresentaremos nossas heroínas: as mitológicas
Medeia, Lilith e a personagem histórica Luz del Fuego e seus respectivos autores,
uma em cada subtópico.
No terceiro capítulo faremos uma odisseia pelo tempo com a ajuda de Gerda
Lerner, Monique Wittig e Rosie Marie Muraro para compreendermos “Como o homem
chegou ao Poder”. Nessa jornada, nos confrontaremos com figuras proeminentes do
patriarcado: Jeová, Adão, Zeus e Jasão, e demonstraremos como eles contribuíram
para a subjugação das mulheres no Ocidente e, por conseguinte, das nossas
heroínas. Contudo, a tentativa de dominá-las acarretou reações perturbadoras, como
verificaremos ao decorrer deste trabalho.
No quarto capítulo, que entendemos como sendo uma tapeçaria, analisaremos
como Medeia, Lilith e Luz dispõem dos mesmos fios, mas tecem de maneiras

2 “JU.GO, s.m., canga para atrelar o boi ao carro ou a outro utensílio agrícola; pressão, autoritarismo”
(SCOTTINI, 2017, p. 326).
3 Apesar de a escrita, assim como praticamente tudo na sociedade, ter sido usurpado pelo domínio

masculino, “a primeira poetisa conhecida da história” foi uma mulher: a sacerdotisa acádia Enheduanna
(LERNER, 2019, p. 99).
4 Segundo Carl Gustav Jung, em sua obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2000), “O conceito

de arquétipo [...] constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a


existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar”
(JUNG, 2000, p. 53).
15

diferentes os seus destinos. Porém, ao final, o resultado são imagens que narram
histórias muito parecidas, de finais trágicos, já que Lilith foi transformada em demônio
(a fim de cometer crimes hediondos contra a descendência de Adão); Medeia tornou-
se fugitiva (e horrendamente criminosa, assim como Lilith) e Luz del Fuego acabou
brutalmente assassinada.
Por fim, após as Considerações Finais e as Referências, teremos uma seção
com fotos para ilustrar a vida da mulher-pesadelo capixaba, Luz del Fuego, como
forma de homenagem e perpetuação dessa incrível e necessária mulher.
16

2 MULHERES TRANSGRESSORAS: RECORTE DAS OBRAS

[...] a mulher é o ser que projeta a mais negra


sombra ou a mais clara luz em nossos sonhos.
A mulher é fatalmente sugestiva: ela vive uma
outra vida que não a sua; ela vive
espiritualmente nas imaginações que ela
própria povoa e fecunda.
Charles Baudelaire

De acordo com a ciência psicanalítica, a psique do ser humano se divide em


duas esferas que se complementam e se influenciam: o consciente e o inconsciente.
Jung (2000), por meio de seus estudos, concluiu que o inconsciente, por sua vez,
também é composto de duas esferas: uma individual – que conserva memórias e
informações esquecidas e/ou reprimidas de si mesmo – e outra coletiva – que seria
um conjunto de padrões comportamentais que foram se formando a partir de
experiências vividas repetidamente, durante várias gerações e assim se cristalizaram
no inconsciente partilhado por um povo. Dessa forma, Jung (2000) entende o
arquétipo como uma forma corporificada de experiências, memórias, comportamentos
e conhecimentos de pessoas antepassadas que se solidificaram no inconsciente
coletivo. Por consequência, podemos admitir que ninguém se desenvolve
completamente alienado de sua sociedade. Todos são influenciados pelos contextos
históricos, sociais, econômicos e culturais de onde vivem e de onde seus ancestrais
viveram.
Então, sendo o arquétipo desenvolvido por meio da repetição de uma mesma
experiência vivida numerosas vezes, por pessoas distintas e em inúmeras épocas,
Jung pôde observar e nomear alguns arquétipos, como exemplo: a mãe, o pai, o herói,
o sábio, o trapaceiro etc. No entanto, Jung aponta que podem existir incontáveis
arquétipos e, através de nossos estudos, identificamos um que não foi analisado pelo
psicanalista suíço. Esse arquétipo difere dos outros, pois representa uma mulher
antagonista ao patriarcado, desordeira, execrada, vista pela civilização patriarcal pelo
viés da depreciação, do escárnio e do horror. Ela é tida como tudo o que uma mulher
bem quista e idealizada não poderia ser: violenta, sangrenta, lasciva, bestial. Ela é um
pesadelo e, como tal, não pode ser controlado, apreendido ou conduzido. Assim,
nomeamos o arquétipo da mulher transgressora da ordem patriarcal como mulher-
pesadelo.
17

Para compreendermos melhor a mulher-pesadelo, percebamos a função dos


sonhos (e, com isso, também a função dos pesadelos, já que eles são, comumente,
caracterizados como “sonhos ruins”5) junto ao inconsciente – de onde emergem os
arquétipos. Jung explicita que a humanidade apenas alcança sua realização por meio
da tomada de conhecimento e de aceitação de seu inconsciente, conhecimento esse
que só pode ser acessado através dos sonhos e de seus inúmeros símbolos. E ele
afirma ainda que cada sonho pode ter uma mensagem individual e pessoal, assim
como, podem estar carregados de semânticas provenientes da memória coletiva.
Posto isso, os desejos e os medos da sociedade se revelam a um indivíduo quando
seu inconsciente está vulnerável, sem barreiras protetoras: “[...] nos recusamos a
admitir é que dependemos de ‘forças’ que fogem ao nosso controle” (JUNG, 2000, p.
82).
Jung (2000) assinala que o homem se acredita dono de si e de sua alma.
Porém, jamais poderia sê-lo sem ser capaz de controlar seu ânimo, suas emoções,
ou os componentes que surgem do seu inconsciente à sua revelia. À vista disto, o
pesadelo de uma sociedade em que o homem é o controlador de tudo é, justamente,
uma mulher que o homem não tem poder de controlar. O que seria mais aterrador
para um homem dominador que uma mulher que ele não possui meios de manejar?
Essa mulher é a mulher-pesadelo. Pesadelo dos homens. Pesadelo para o
patriarcado. Pesadelo para as mulheres que se encontram subjugadas, que
interiorizaram o seu papel de inferior e impõem os ditames do patriarcado a outras
mulheres. Mas ela também é um sonho de emancipação a toda e qualquer mulher
que renuncia aos falsos privilégios comprados com sua obediência imposta.
A mulher-pesadelo consiste em uma mulher que não obedece à ordem
estabelecida de inferiorização do seu gênero. Conforme o Estado Arcaico foi
emergindo e se desenvolvendo, a dominância e a lei do mais forte foram se
estabelecendo, resultando, entre outras coisas, na supremacia do homem sobre a
mulher. No entanto, algumas mulheres não aceitaram ser subjugadas, e o pavor que
elas causaram por desestabilizar a ordem foi tamanho que se encontra mitificado.
Medeia e Lilith são exemplos dessas mulheres-pesadelo na esfera do imaginário. E,
como já falamos, a literatura mitológica deixa exalar a verdade social de nossas
experiências. Logo, é evidente que a mulher-pesadelo existe de carne e osso. Um,

5 Ûlos Óneiros: Sonho funesto (BRANDÃO, 1986, p. 124).


18

dentre vários exemplos, é a Luz del Fuego, bailarina capixaba, famosa nos anos 1950,
que incendiou com seu fuego o Rio de Janeiro da época e continua a aquecer nossos
corações. A seguir, apresentamos com mais detalhes nossas personagens – primeiro
as mitológicas e, logo após, a histórica.

2.1 FIGURAS MITOLÓGICAS

2.1.1 Medeia, de Eurípides

A carruagem de Medeia puxada por serpentes


— as serpentes são animais do mundo
subterrâneo — tinha asas porque ela era ao
mesmo tempo deusa da Terra e da Lua.
Robert Graves

Medeia é uma personagem muito antiga do ideário mitológico grego que


povoou os pensamentos de filósofos e poetas por séculos em múltiplas versões. As
interpretações sobre ela variam amplamente, tanto quanto à sua essência como à sua
genealogia. Segundo Olga Rinne em sua obra Medeia: A redenção do feminino
sombrio como símbolo de dignidade e sabedoria (2017), Medeia, em uma de suas
versões, teria sido uma deusa pré-helênica. Ela aparece pintada em vasos passeando
em um carro mágico carregado por serpentes aladas; aparece também com uma
pequena caixa de remédios, carregando ervas medicinais ou ao lado de um caldeirão
de onde pula um cordeiro ou um jovem. A autora explica que esses motivos estão
dispostos nesses vasos porque, antes de se montar o panteão dos deuses segundo
a ordem patriarcal, Medeia era uma deusa que dominava a arte de curar, de
rejuvenescer e de imortalizar.
Ainda de acordo com Olga Rinne (2017), Medeia significaria “a do bom
conselho”. Todavia, ao verificarmos a raiz etimológica de Μήδεια no Dictionnaire
Étymologique de la Langue Grecque (1968), pudemos perceber que existem duas
palavras homônimas das quais o nome da princesa bruxa poderia ter derivado. A
palavra μήδεα pode significar tanto “pensamentos, preocupações” (o que estaria
consonante com Rinne por exprimir o sentido de cuidado) quanto “genitália
masculina”, o que poderia atribuir uma conotação sexual à personagem. Então,
levando em consideração que, geralmente, os personagens do sistema ideário grego
reúnem um conglomerado de elementos que nem sempre são exclusivamente de um
19

espectro ou outro, é possivel que os dois significados fizessem parte de uma Medeia
primordial que não seria execrada se carregasse algum apelo de acepção sexual.
De toda maneira, Medeia nem sempre foi retratada como maligna e sombria. A
deusa que um dia teria sido apresentada como fonte de inteligência, sabedoria, poder,
curas e prodígios extraordinários teria sido ressignificada como fonte de morte,
vingança, ira, sombras etc. Olga Rinne (2017) explica que tal conversão dos atributos
de Medeia à malignidade pode ter sido motivada por uma campanha proposital, pois,
provavelmente, ela teria sido cultuada em Corinto, terra helênica, o que era visto como
culto “bárbaro”, ou seja, era um culto não grego, por isso, indigno.
Olga Rinne (2017) aponta que aos poucos Medeia teria sido reduzida e
obscurecida, sendo assim foi transfigurada na temida bruxa da Cólquida, que tinha
como pai o rei Eetes (ou Aetes), o deus da mente perversa, segundo Martha Robles
(2006, s. p.). Eetes era filho do deus-Sol Hélio e a mãe poderia ser Hécate, poderia
ter sido Ídia (“aquela que sabe”) ou Neera (“a nova”). Todas essas supostas mães de
Medeia seriam representadas como forças lunares, então, nessas versões, Medeia
teria o sangue do Sol e da Lua. Outras versões incluem nomes de outras mães e
podem também retratar Medeia como sobrinha ou irmã da poderosa Circe (amante de
Odisseu), irmã ou não de Faetonte e quase sempre aparece como meia-irmã de
Apsirto e Calcíope.
Conforme Olga Rinne (2017), com uma árvore genealógica repleta de deuses
e deusas da mais alta estirpe, a pátria de Medeia não seria uma terra de mortais.
Localizada no Cáucaso, a terra que depois se chamaria Cólquida, tinha por nome Ea6,
e a ilha de Circe, flutuante em frente ao país, chamava-se Eea. Ambos são interjeições
de pasmo e admiração, podendo representar também sons de queixa, lástima e arfar
de suspiros. Essa terra seria o local de repouso do Sol, e no palácio de Eetes haveria
um poço com quatro bocas que jorravam leite, vinho, azeite e água cristalina. Dentro
do palácio ou em um bosque de árvores de carvalhos estava guardado o velocino de
ouro que tinha como vigia um dragão insone. Essa terra escondida por trás de neblinas

6O Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque faz a seguinte definição: ἒᾶ: interjeição de espanto
e descontentamento especialmente atestada entre os trag: e os comediantes, e antes de uma pergunta,
às vezes fora do verso. No uso de ἒᾶ ver E. Fraenkel, Agamenon, 580, No. 4. E.: 2ª pessoa. para
impetuoso. ἐάω se tornam interjeição, cf. Schwyzer, KZ 60, 1933, 141 sq. (CHANTRAINE et al., 1968,
p. 307, tradução nossa).
20

era mágica e receptáculo de inúmeros mistérios. Assim, Medeia, como nativa dessa
terra, não poderia ser nada menos que estupenda.
Contudo, quando o poeta Eurípides escreveu sua peça para contar uma fração
da história da princesa colquídia, no concurso de tragédias das Grandes Dionísias
(festival ofertado ao deus Dioniso), em 431 a. C., Medeia talvez já fosse uma feiticeira
obscura. Porém, as características horrendas pelas quais a filha de Eetes é até hoje
conhecida foram, indubitavelmente, atribuídas pelo poeta. Segundo Olga Rinne
(2017), em uma versão antiga da história da mulher-pesadelo, Medeia teria sido rainha
de Corinto (terra que, já comentamos, promoveria um culto a ela como deusa), mas
os coríntios, achando-se insatisfeitos com o regime dela, acabaram por assassinar
seus filhos. Eles, de acordo com a autora (RINNE, 2017) e com Martha Robles (2006),
eram quatorze crianças, sete meninas e sete meninos. Então, os coríntios, a fim de
apagar a memória da matança, teriam subornado Eurípides com quinze talentos de
prata para que pusesse a culpa das mortes das crianças sobre Medeia. O poeta
também teria alterado para dois filhos assassinados em vez de quatorze – talvez
soasse mais verossímil assassinar somente duas crianças em um ato só.
Antes de Eurípides, Medeia não era assassina dos filhos. Essa nova versão
chocou extremamente as pessoas da época assim como ocorre na atualidade, uma
vez que, tal como compreendemos a maternidade por influências cristãs e gregas,
uma mãe não suportaria ver seus filhos mortos, quanto mais matá-los à bruta.
Eurípides expôs ao mundo uma mulher perversa que ninguém jamais esqueceria. E é
sobre essa Medeia que vamos nos debruçar nesta Dissertação: a Medeia das
fantasias de Eurípides, a Medeia transgressora e perturbadora, a Medeia mulher-
pesadelo.
A peça em questão começa com a Nutriz, serva de Medeia, relembrando ao
público a história da sua senhora com os argonautas. Como é marca de Eurípides, de
maneira breve, em um monólogo, ela tanto alude a episódios anteriores como situa a
plateia sobre as questões centrais do enredo a serem apresentadas. A dinâmica que
a Nutriz explica para o público é a seguinte: Jasão seria o príncipe herdeiro do reino
de Iolcos, que foi usurpado por seu tio Pélias. Quando alcançou a maior idade, ele foi
em busca de reaver o reino de seu pai para si. Então, o tio lhe fez uma proposta: dar-
lhe-ia o reino de bom grado, se Jasão trouxesse o velocino de ouro que ficava
escondido nos confins do mundo no reino da Cólquida, reinado pelo temível Eetes.
Jasão foi ao encontro do velocino em um navio chamado Argo, com o apoio de mais
21

48 heróis, 1 heroína (Atalanta) e dos deuses. Ao chegar na terra de Eetes, depois de


inúmeras aventuras, o rei, pai de Medeia, desafiou o herói a realizar tarefas
impossíveis, que foram concluídas graças à magia e à inteligência de Medeia. Mesmo
assim, o rei Eetes não iria entregar o velocino e planejava matar Jasão, mas Medeia
mais uma vez salva o argonauta, ajuda-o a roubar o velocino e eles fogem juntos,
pois, antes da fuga Jasão havia prometido, tendo por testemunha os deuses, que lhe
seria fiel por toda a eternidade e a levaria com ele se ela lhe desse o velocino, para
que, enfim, reconquistasse sua terra natal. Na fuga, o rei Eetes manda seu filho Apsirto
para caçar Medeia e trazê-la de volta para casa. Porém, Jasão e Medeia terminam
matando o meio-irmão desta e jogam seus pedaços no mar, em direções diferentes,
para que seus compatriotas perdessem tempo recolhendo os pedaços do corpo,
aumentando assim as chances de escapar da caçada. Chegando em Iolcos, Pélias se
recusou a devolver o trono a Jasão. Posto isso, Medeia se vingou do velho rei,
enganando suas filhas, induzindo-as a matar e esquartejar o pai para um ritual que
faria Pélias rejuvenescer. Mas Medeia, obviamente, não cumpre o combinado e o rei
acaba morto pelas mãos das próprias filhas. O horror desse ato teria causado furor no
povo do reino: o casal foi obrigado a viver em exílio, em Corinto, que agora tem por
rei Creon (ou Creonte). Este, sabendo das façanhas de Jasão, oferece sua filha,
herdeira do trono, a ele em casamento, que não se furta a recursar. Então,
entendemos que a tragédia gira em torno da traição de Jasão e a fúria da princesa da
Cólquida, que arrasta todos para o chão, enquanto ela escapa mais uma vez. Mas
agora ela sai sublimemente voando na sua carruagem dourada.

2.1.2 Lilith e “O Alfabeto de Ben Sira”

“Desde o início de sua criação, foi somente um


sonho”, disse uma vez o Rabi Simon ben
Laqish: e o sonho, para o homem, é a voz
potente de seu espírito e de sua profundidade
interior.
Roberto Sicuteri

Lilith: demônio-mulher que vaga pela noite com suas asas negras e seus longos
cabelos em busca de uma vítima indefesa; assassina de bebês recém-nascidos e de
suas mães recém-parturientes; incubo que arrasta os que tranquilamente dormem
para sonhos envoltos de luxúria e paixão. Lilith é apresentada no Zohar, o Livro do
22

Esplendor (obra da Cabala judaica, datada por volta do século XIII) com essas
características descritas acima. E o texto ainda ensina como se proteger dessa
deidade considerada altamente perigosa até os dias de hoje pelos judeus. Mas, a
narrativa mais conhecida sobre Lilith é, irrefutavelmente, a contada no mito adâmico
descrito em “O Alfabeto de Ben Sira”. E antes de adentrarmos mais profundamente
sobre o mito, vamos conhecer a obra.
“O Alfabeto de Ben Sira” ([1200?]) é um texto em forma de prólogo, que narra
a história de Ben Sira como fenômeno de sabedoria e intelectualidade. Sira conta
sobre sua concepção (em que ele, assim como outros grandes sábios, teria sido
concebido sem conjunção carnal de suas mães com alguém do sexo masculino),
sobre seu nascimento, sobre o intento frustrado de um rabino lhe alfabetizar e lhe
transferir conhecimentos, bem como a sua saga por ser um gênio frente à invídia de
homens poderosos. Por sua inteligência prodigiosa, Ben Sira teria sido chamado à
Corte do rei Nabucodonosor, na Babilônia. O rei, interessado na engenhosidade de
Sira, lhe faz questões que são respondidas com 22 narrativas (cada uma se iniciando
com uma letra do alfabeto hebraico). Entre as tais narrativas está a de Lilith, que
investigamos nesta pesquisa.
Para Barbara Black Koltuv, “O Alfabeto de Ben Sira”7 é um midrash, ou seja, é
um escrito que faz reflexões sobre textos religiosos. Então, o texto de Ben Sira
(suposto autor8) não seria “o original” inspirado por Deus, mas uma reflexão de um
profeta sobre um mito que permearia a tradição oral judaica. No entanto, temos o
dever de esclarecer que para alguns pesquisadores esse texto tem outra feição: a
estudiosa Janet Howe Gaines, especialista em estudos da Bíblia como literatura, do
Departamento de Inglês da Universidade do Novo México, considera a obra como uma
simples sátira, um texto irreverente. Segundo ela, a linguagem seria repulsivamente
grosseira e lidaria com temas vulgares e esdrúxulos na esfera religiosa, como

7 Segundo o site Sefaria, O Alfabeto de Ben Sira foi composto, aproximadamente entre os anos 400 e
1200 da Era Comum.
8 De acordo com Bíblia Sagrada, Ben Sira teria sido o autor da obra A Sabedoria de Sirach, ou, como

é mais conhecido o Livro de Eclesiástico, escrito entre 190 e 180 a. C., em Jerusalém e traduzido para
a Língua Grega por seu próprio neto em 132 a. C. no Egito. Segundo Ephraim Nissan: “De acordo com
um texto medieval em hebraico, provavelmente da Mesopotâmia Caliphal (no século VIII, segundo Eli
Yassif), Ben Sira — que leva o nome do autor homônimo do antigo livro da sabedoria, fora do cânone
bíblico judaico, mas mencionado na literatura talmúdica – supostamente nasceu da filha do profeta
Jeremias depois que ela foi acidentalmente inseminada em um banho público com o sêmen de seu
próprio pai” (NISSAN, 2016, p. 2, tradução nossa). Assim, o Ben Sira que é personagem-narrador de
O Alfabeto de Ben Sira não é o mesmo que o Sira autor do Livro de Eclesiástico. O verdadeiro escritor
e autor de O Alfabeto de Ben Sira é desconhecido.
23

flatulência, cópula com animais, masturbação, incesto. Por isso, estaríamos lidando
com um texto que foi satirizado e provavelmente servia de recreação entre estudantes
rabínicos. O que seria a verdade para alguns, seria uma zombaria para o autor.
Contudo, o texto foi aceito como parte dos textos sagrados por místicos judeus
estudiosos na Alemanha medieval. Ademais, mesmo que “O Alfabeto de Ben Sira”
tivesse sido escrito para ser uma paródia burlesca do mito, ainda assim se falaria dele.
Uma paródia não é uma mentira, mas um texto que usa de artifícios para ridicularizar
algo que se tem como real. Logo, lidaremos com o texto do ponto de vista da
reminiscência do mito.
A edição de “O Alfabeto de Ben Sira” (2008) que vamos utilizar é a do
importante pesquisador judeu chamado Judah David Eisenstein, que está disposta na
biblioteca on-line de textos rabínicos, chamada Sefaria. Como o texto é de origem
hebraica é escrito na língua hebraica. Porém, o site nos dá a opção de versão
traduzida na Língua Inglesa e nós fizemos a tradução para a Língua Portuguesa.
Agora, já conhecendo a obra, poderemos nos ater ao mito em que Lilith é tida
como a primeira mulher que andara sobre a terra. Lilith teria sido a primeira esposa
de Adão, feita do barro igualmente a ele. Entretanto, Adão se negava a reconhecer a
paridade entre os dois. Por conseguinte, em decorrência da opressão exercida por
seu marido, Lilith pronunciou o nome inefável de Deus e fugiu. Adão logo se queixa a
Jeová pela fuga de sua mulher. Dessa maneira, Deus enviou três anjos para coagi-la
a retornar com a ameaça: se não voltasse, cem de seus filhos morreriam diariamente.
Mesmo assim ela se negou. Então, ela fez um acordo com os anjos que, se a
deixassem livre, ela cumpriria o seu propósito que era o de dar fim aos bebês, todavia,
se eles carregassem amuletos com os nomes ou os símbolos dos anjos, ela não lhes
faria mal. De acordo com Martha Robles (2006), ela se vingaria pela morte dos filhos,
matando os descendentes de Adão. Assim, sendo convertida em um demônio noturno
que mata bebês e acasala com os anjos caídos que habitam as margens do Mar
Vermelho, Lilith é aterradora à pseudovirtude judaica. Contudo, se para os judeus Lilith
causa horror, pânico e pavor, para nós, que desenvolvemos esta pesquisa, ela seria
um arquétipo que surge para dar certo equilíbrio a esse mundo que se encontra
subjugado pela dominância masculina.
Tanto Lilith quanto Medeia são projeções da fobia da sociedade patriarcal. Elas
não existiram de fato: são mitos, são narrativas contadas como exemplo daquilo que
é inadmissível ser, do vergonhoso, do trágico, do inaceitável, do repugnante. Porém,
24

mesmo com esses exemplos de mulheres que o patriarcado repudia, existem


mulheres reais que abandonam o ideal feminino patriarcal e enveredam pelo caminho
da transgressão. Luz del Fuego foi uma mulher de carne e osso que não seguiu o
padrão esperado e prova, diante dos nossos olhos, que a mulher violadora dos
princípios patriarcais não existe somente na literatura. Logo, o arquétipo da mulher-
pesadelo existe, genuinamente, como antagonista e contraventora do patriarcalismo.

2.2 PERSONAGEM REAL

2.2.1 Dora Vivacqua em Luz del Fuego: a bailarina do povo

Amo a solidão e a natureza. Ambas existem


dentro e fora do meu coração.
Luz del Fuego

Dora Vivacqua nasceu em plena segunda-feira de Carnaval, dia 21 de fevereiro


de 1917, em Cachoeiro de Itapemirim, no Estado do Espírito Santo. Décima-quinta
filha de Etelvina Souza Monteiro Vivacqua e José Antônio Vivacqua (Figura 1), sempre
foi a mais espevitada da prole numerosa. Aos 3 anos, mudou-se com sua família para
Minas Gerais e lá viveu parte de sua juventude. Após a mudança para Minas, a família
Vivacqua se inseriu na aristocracia mineira de tal forma que fundou em sua própria
casa um espaço cultural chamado Salão Vivacqua. No decorrer dos anos 1920, a
família recebia jornalistas, artistas e intelectuais para saraus litero-musicais no Salão.
O mais famoso, sem dúvidas, foi Carlos Drummond de Andrade, que vivia de paqueras
com a irmã preferida de Dora, Mariquinhas. Mas o romance não engrenou e
Mariquinhas acabou se casando com outro homem.
De família abastada e extremamente conservadora, Dora enfrentou muitos
julgamentos e represálias. Foi internada duas vezes em hospitais psiquiátricos a cargo
de seu comportamento livre e desenfreado. A primeira vez que foi internada ocorreu
por ser flagrada com o cunhado pela irmã Angélica. Dora denunciou o assédio, porém
a família preferiu acusá-la de esquizofrênica a atribuir culpa a Carlos, o abusador. A
segunda vez foi por aparecer diante de um rapaz que trabalhava na fazenda de seu
irmão, nua, coberta por algumas folhas e com duas cobras entrelaçadas em seus
braços. Mas foi liberada por seu irmão Achilles, assim como da primeira vez. Depois
25

de livre foi morar com sua irmã, Mariquinhas, mas de lá fugiu para o Rio de Janeiro,
pois o desejo dela era ser, ademais de livre, artista. Dora não sabia ainda que tipo de
artista seria, mas sabia que sua vida estava destinada a afetar as pessoas.
Dos anos 1930 aos 60, Dora Vivacqua aterrorizou, como também encantou a
badalada cidade do Rio de Janeiro. Assumindo a persona de Luz del Fuego, era
naturalista, bailarina, atriz e feminista (ainda que não tivesse plena consciência disso).
Em meados dos anos 50, Luz comprou uma ilha na Baía da Guanabara a qual nomeou
de Ilha do Sol e lá fundou o primeiro clube de nudismo da América Latina, intitulado
Clube Naturalista Brasileiro (Figura 2). Através da biografia romanceada de Cristina
Agostinho, escrita em colaboração com Branca de Paula e Maria do Carmo Brandão,
podemos conhecer melhor a mulher-pesadelo capixaba.
No prefácio de Luz del Fuego: a bailarina do povo (1994) conta-se como
sucedeu a feitura do livro. Comenta-se crises, lutas, bloqueios, discussões, conflitos,
pausas e quando as pesquisas eram engavetadas. Porém, Luz vinha-lhes trazer
desassossego, acabar-lhes com vossa paz. Dado a inúmeros e intensos percalços,
as escritoras decidiram que Cristina Agostinho escreveria a obra, mas que Branca de
Paula e Maria do Carmo Brandão seriam as revisoras e editoras do texto. Então, por
Cristina Agostinho ter dado voz a Luz por meio de suas palavras, vamos destacar sua
biografia.
Mineira, nascida em Ituiutaba, em 1949, Cristina Agostinho é formada em
Direito e Letras. A produção literária da autora inclui livros infanto-juvenis dos quais
recebeu dois prêmios nacionais: o Selo de Ouro da Fundação Nacional do Livro Infantil
e Juvenil e Prêmio João de Barro. No âmbito da memória social, escreveu as obras:
Pedreira Prado Lopes: memórias de uma favela (2000); Nativos e Biribandos:
memórias de Trancoso (2004). Em termos de memória biográfica, Agostinho têm
projetos que apresentam como foco grandes e expressivas personalidades femininas
da América Latina, assim como Luz del Fuego. São elas: a pintora mexicana Frida
Kahlo; a poetisa uruguaia Delmira Agustini; a poetisa argentina Afonsina Storni; a
compositora, cantora, ceramista e artista plástica chilena Violeta Parra e a
revolucionária e heroína cubana Haydée Santamaría Cuadrado. Além de publicações
em livros, Agostinho participa de projetos institucionais que promovem o acesso à
educação, cultura e literatura em Minas Gerais e trabalha com crítica literária,
escrevendo colunas em revistas e jornais.
26

Luz del Fuego: a bailarina do povo, sem dúvidas, é uma de suas obras mais
aclamadas, pois resgatou das sombras, da marginalização e do apagamento a mais
memorável vedete brasileira. A pioneira na causa naturalista. O pesadelo que
suscitava as fantasias de mulheres e de homens. A mulher das cobras. O assunto
proibido que surgia sempre entre cochichos fugazes. Sedutora? Diabólica?
Megalomaníaca? Narcisista? Exibicionista? Histérica? Provocadora? Talvez. O certo
é que Luz del Fuego ilumina o leitor com um brilho tão intenso que lhe causa vertigem.
Sua existência sacode a moral dos que se envolvem com a sua história, e por isso ela
é uma mulher-pesadelo, a qual compararemos às narrativas de Medeia e Lilith.
27

3 COMO O HOMEM CHEGOU AO PODER

Durante a chamada Pré-história, a experiência


de inúmeros povos foi de harmonia, de
equilíbrio, de respeito, de parceria. Há poucas
evidências disso – mas as que existem são
bastante convincentes –, pois esses povos,
que não viviam sob a lógica da dominação, não
erigiram grandes monumentos, nem castelos,
nem desejaram deixar marcas de sua
“grandiosidade”.
Rita Mendonça

Como Gerda Lerner propõe no início do segundo capítulo de sua obra A


Criação do Patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens (2019), a
civilização, desde o início dos tempos, foi construída por homens e mulheres
conjuntamente. E, para Rose Marie Muraro (1997) na introdução de O Martelo das
Feiticeiras, acredita-se que há mais de dois milhões de anos homens e mulheres
vivem na Terra; sendo que, por volta de ¾ desse tempo, viveram sob a cultura de
coleta, pesca e caça de pequenas presas. De acordo com Muraro, a força física não
era o principal fator para a sobrevivência. Assim, a mulher exercia papel crucial na
manutenção dessas civilizações como seres sagrados, provedoras da vida e
fornecedoras de fertilidade para a terra e os animais. Havia a divisão de papéis e
tarefas, mas não existia desigualdade em razão dos diferentes gêneros: “nessas
sociedades, os sexos eram considerados ‘complementares’; seus papéis e status
eram diferentes, mas nivelados” (LERNER, 2019, p. 44, grifos da autora).
Contudo, essa realidade mudou. As mulheres não são mais vistas como figuras
sagradas, muito pelo contrário: são vistas como inferiores e, por isso, devem ser
subjugadas. Essa “recente” perspectiva, que vem acompanhando as Eras, é fruto do
sistema da sociedade patriarcal, em que o homem como pai/chefe de família detém o
poder de vida e de morte dos demais membros do grupo familiar e mais ainda sobre
a mulher. Nessa lógica, o filho do sexo masculino quando chega à maioridade,
emancipa-se, direito que, apesar de também ser concedido à mulher por lei – na
maioria das civilizações ocidentais – não liberta a pessoa do gênero feminino de fato,
pois, mesmo teoricamente emancipada, a mulher continua sob poderio masculino em
diversos âmbitos e de diversas maneiras.
Como e por que a sociedade mudou sua estrutura, inferiorizando o gênero
feminino? Como o homem assumiu o poder na sociedade? Quais os mecanismos de
28

que o patriarcado dispõe para a cristalização do poder do homem? As próximas


seções deste capítulo pretendem tratar dessas questões sob os olhares da escritora
e intelectual feminista brasileira Rose Marie Muraro (1930-2014), da escritora e
poetisa francesa Monique Wittig (1935-2003) e da historiadora austríaca Gerda Lerner
(1920-2013). Essas autoras nos darão respaldo teórico-crítico para a compreensão e
a análise de figuras patriarcais marcantes no ocidente, como Jeová, Adão, Zeus e
Jasão.
A eleição desses patriarcas se justifica tanto pelo motivo evidente da dicotomia
junto às personagens objeto deste estudo (Adão e Jasão) quanto pelo motivo de que
tanto Jeová quanto Zeus ocuparam o maior posto nas religiões que foram cultuadas
em civilizações que serviram de elementos estruturadores e modeladores para o
Ocidente.
A seguir, discutiremos alguns princípios e possíveis causas da origem e da
evolução do patriarcado e como esse sistema se mantém através de uma categoria
de sexo, no entender de Monique Wittig. Para Gerda Lerner, tal fenômeno se trata de
uma série de mudanças sociais, mecanismos que se estenderam até a
contemporaneidade.

3.1 A ORIGEM DA DOMINAÇÃO MASCULINA SOBRE A MULHER

Eles [os homens] substituíram a descendência


matrilinear pela patrilinear e, para garantir a
autoridade paternal, exigiram a virgindade
feminina antes do matrimônio e a fidelidade
absoluta da esposa no casamento.
Gerda Lerner

Quando o homem ainda vivia na longínqua Pré-história, a vida era regida por
cooperação. Segundo Rose Muraro (1997), como as condições de vida eram hostis,
os membros de uma mesma sociedade se ajudavam entre si. As pessoas não se
coibiam ou se subjugavam. Ainda que as mulheres tivessem certo status por gerar
vidas e assim se assemelharem à Deusa-Mãe, não havia repressão entre gêneros,
inclusive as relações entre os pares eram menos duras e não havia centralização de
poder. Para Gerda Lerner (2019, p. 137) havia “[...] complementaridade –
interdependência mútua –, as pessoas aceitavam prontamente que grupos divididos
por sexo tivessem atividades, privilégios e obrigações diferentes”. A liderança não
29

estava no controle de uma só família ou de um gênero só. Existiam rodízios, e as


relações de poder tinham muito mais fluidez. Como os homens não tinham ciência da
sua participação na reprodução, não exigiam fidelidade por parte das mulheres. A
sociedade era matrilinear, ou seja, a linhagem era regida por uma ancestral mulher e
era matrilocal, pois as mulheres permaneciam no grupo social e os homens eram os
que saiam da tribo. Como os instrumentos, as ferramentas e os alimentos eram de
toda a tribo, não existia propriedade privada. Então, a necessidade de deixar herança
era inexistente, assim como o conceito de sucessão. Desse modo, os pudores
relacionados à sexualidade não incluíam a noção de exclusividade a um(a)
parceiro(a), embora esse exclusivismo pudesse acontecer de maneira espontânea.
Rose Muraro (1997) argumenta que ainda hoje existem sociedades
remanescentes dessas culturas em regiões da Indonésia e na África. Contudo, para
Gerda Lerner (2019), usar como parâmetro as sociedades de caçadores-coletores
contemporâneas para avaliar sociedades de 5000 a. C. seria um tanto especulativo;
pelo fato de que essas sociedades também passaram por processos ao longo do
tempo e, apesar de serem minimamente igualitárias, são androcêntricas. Assim,
poderia admitir-se que o patriarcado fosse algo natural, o que definitivamente não é,
de acordo com Lerner. Para a autora austríaca, “o período de ‘estabelecimento do
patriarcado’ não foi um ‘evento’, mas um processo que se desenrolou durante um
espaço de tempo de quase 2.500, de cerca de 3100 a 600 a. C.” (LERNER, 2019, p.
32-33, grifos da autora). E, se aceitamos o patriarcado como uma série de processos
históricos e mutáveis, admitiremos que ele não seja estático, nem seja determinado
pela natureza ou pré-determinado biologicamente. Entretanto, se fosse, ainda poderia
ser mudado, já que a ordem natural sofre constantes transformações no processo de
civilização, que consiste, exatamente, no homem dominar e se apartar da natureza,
do estado selvagem e do rural. No entanto, como os homens ditam o passo e o modo
do processo de civilização, eles são os maiores e quase exclusivos beneficiados
nesse processo.
Não obstante, antes da civilização se modernizar e se industrializar e até
mesmo surgir o Estado, a humanidade estava em harmonia com a natureza e não se
achava uma criação à parte dela. Com o transcorrer das Eras, o homem passou por
algumas mudanças significativas que contribuíram para que a sociedade ficasse “mais
masculina”. O homem não via mais a natureza como uma divindade que ele deveria
amar e respeitar, mas sim como algo a ser dominado:
30

Aos poucos, os homens começaram a não mais viver com seus


rebanhos. Os rebanhos passaram a pertencer aos homens. Foram
transformados em objetos de posse. A relação mantida com os
rebanhos mudou. As pessoas isolavam um domínio – o rebanho – no
qual não se consideravam mais inseridas. Dessa forma, consolidou-
se a divisão entre donos de rebanho (pastores) e rebanho
(ALBUQUERQUE, 2007, p. 35).

Com a escassez de recursos, como os alimentos de coleta e a caça de


pequenos animais, os grupos migravam cada vez para mais longe de suas terras
natais em busca de alimento. Dessa maneira, o homem começa o processo de
embrutecimento, visto que se fez necessária a caça de grandes presas. Uma simples
armadilha não seria mais suficiente. O homem precisaria entrar em combate corporal
com feras para poder garantir alimento para si e seu grupo social. E não era só contra
grandes animais que lutavam: batalhavam também contra outros povos, pois, às
vezes, as novas terras já estavam habitadas e então, um grupo entrava em combate
com outro, gerando guerras. De acordo com Gerda Lerner, as duras condições de
vida e sobrevivência requeriam sacrifícios tanto de homens quanto de mulheres:

Era preciso ter coragem para deixar o abrigo da caverna ou cabana


para enfrentar animais selvagens com armas primitivas, vagar longe
de casa e arriscar encontros com tribos vizinhas possivelmente
perigosas. Homens e mulheres devem ter desenvolvido a coragem
necessária para a autodefesa e a defesa da prole (LERNER, 2019, p.
72).

Eram exigidos esforços de todos para garantir a sobrevivência da espécie.


Como a mulher era a única que poderia (pode) gerar a prole, dedicava a vida adulta a
engravidar, parir e amamentar. Portanto, era necessário que as atividades
econômicas exercidas pelas mulheres favorecessem as condições de seu ofício
materno. Dessa forma, as mulheres estariam fora das caçadas a grandes animais.
Afinal, seria extremamente dificultoso fazer essa atividade juntamente com uma
criança,

[...] pois ficariam sobrecarregadas fisicamente com filhos na barriga,


nos quadris ou nas costas. Além disso, embora um bebê carregado
nas costas possa não ser um impedimento para a mãe participar de
uma caçada, um bebê chorando pode ser (LERNER, 2019, p. 71).
31

Nesse período, as pessoas tinham a curva etária curta e a mortalidade infantil


era enorme. As mulheres tinham que parir muitos filhos para que alguns chegassem
à vida adulta. As mulheres não poderiam viver correndo riscos, então, caçadas e
guerra não eram opções viáveis. Não por questões de papéis de gênero impostas,
mas de sobrevivência da família ou grupo social. Dessa maneira, as mulheres
precisavam desempenhar atividades domésticas combinadas à criação dos filhos, já
que assim era o meio mais funcional que garantia a sobrevivência de homens e de
mulheres, pois as tribos que não zelavam pela prole ou pelas mulheres grávidas eram
comumente extintas.
No Neolítico, a vida era brutalmente dura para homens e mulheres. Era
imprescindível que todos fizessem o necessário para a sobrevivência do grupo. Nada
obstante, com o passar das Eras, só os esforços dos homens foram louvados, os das
mulheres não. Em termos práticos, um dia, para a sobrevivência da espécie, o
determinismo biológico foi essencial. Porém, há tempos saímos do Neolítico:

Posto isso, quero enfatizar que minha aceitação de uma “explicação


biológica” só é aplicável aos primeiros estágios do desenvolvimento
humano e não significa que a divisão sexual do trabalho ocorrida
depois, com base na maternidade, seja “natural”. Pelo contrário,
mostrarei que a dominância masculina é um fenômeno histórico
porque surgiu de um fato biologicamente determinado e tornou-se uma
estrutura criada e reforçada em termos culturais ao longo do tempo.
(LERNER, 2019, p. 71, grifos da autora).

Um dos fenômenos que poderia ter reforçado o papel do homem dominador,


segundo Lerner, teria sido a ascensão do prestígio do homem caçador-guerreiro. A
figura do bravo guerreiro surge como herói de todos, salvando seu povo da fome e da
morte. Evidentemente, essa não seria a única nem a principal causa, mas que ganhou
certa notoriedade já que os tradicionalistas se embasaram no argumento do homem
caçador-guerreiro para validar uma “verdadeira” superioridade masculina. Lerner vê
nesse prestígio do homem guerreiro um evento que, gradativamente, institucionalizou-
se – e não uma prova da superioridade varonil. E, para complementar o pensamento
de Lerner, Muraro acrescenta como esse papel social passou de estritamente
necessário para louvável e, muitas vezes, até desejável.

É só nas regiões em que a coleta é escassa, ou onde vão se


esgotando os recursos naturais vegetais e os pequenos animais, que
se inicia a caça sistemática aos grandes animais. E aí começam a se
32

instalar a supremacia masculina e a competitividade entre os grupos


na busca de novos territórios. Agora, as sociedades devem competir
entre si por um alimento escasso, a fim de sobreviver. As guerras se
tornam constantes e passam a ser mitificadas. Os homens mais
valorizados são os heróis guerreiros. Começa a se romper a harmonia
que ligava a espécie humana à natureza, porém ainda não se instala
definitivamente a lei do mais forte (MURARO, 1997, p. 6).

A essa altura, o homem já entendia que a sua força muscular lhe daria o poder
para comandar a sociedade. Todavia, o homem ainda resguardava algum respeito
pelas mulheres, e elas ainda tinham poder de decisão. De acordo com Muraro (1997),
eles ainda não haviam descoberto que cumpriam um papel na reprodução,
acreditavam que as mulheres geravam filhos por bênção dos deuses. Contudo,
durante o Neolítico, o homem descobriu seu papel na geração da vida, o que destituiu
a mulher de uma imagem sagrada e o homem passou a controlá-la como controlava
seu rebanho; sobretudo sua sexualidade. Ela deveria sair da casa do pai, seu primeiro
detentor, para a casa de seu marido, segundo detentor, virgem.
A mulher, que antes estava presa à sua função reprodutora pelo bem da
espécie, agora desempenharia esse papel porque seu trabalho reprodutivo se tornara
uma moeda. Para Lerner (2019, p. 132), “[...] a pureza feminina se torna um recurso
familiar, guardado com zelo pelos homens da família”. Ademais da questão da honra
– representada na mulher pela virgindade que seu corpo encerra e se constitui em um
atributo que ela guarda a fim de que seus parentes homens usem como bem entender
–, existia a questão prática e econômica: “o grande valor que as filhas tinham para
uma família era o potencial de serem noivas. O preço de noiva recebido por uma filha
costumava ser usado para financiar a aquisição de uma noiva para o filho” (LERNER,
2019, p. 144).
Desse modo, o homem, se auto-outorgando dono de terras, rebanhos,
escravos e mulheres, tinha a importante tarefa de assegurar que suas conquistas
permanecessem dentro do seu grupo familiar. Consequentemente, surge a questão
da herança, da linhagem e da sucessão, sendo necessário instituir um contrato
matrimonial, em que o casamento seria monogâmico (para a mulher, diga-se de
passagem) e o homem lhe garantiria proteção e lhe proveria teto, comida e
33

vestimenta. A quebra desse contrato seria desonrosa para o homem e fatal para a
mulher (isto é, passível de morte)9.
Por conseguinte, nasce a sociedade patriarcal. Centralizada na figura do pai,
provedor, viril, bravo e de masculinidade exacerbada: “já não são mais os princípios
feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte”
(MURARO, 1997, p. 7).
A mulher passa de “semideusa”, portadora do milagre da vida, para depositório
de sêmen, parideira de filhos pertencentes ao homem, bem como cuidadora deles.
Propriedade do homem, curadora de seus interesses, de seu lar:

A mulher fica, então, reduzida ao âmbito doméstico. Perde qualquer


capacidade de decisão no domínio público, que se torna inteiramente
reservado ao homem. A dicotomia entre o privado e o público
estabelece, então, a origem da dependência econômica da mulher, e
esta dependência, por sua vez, gera, no decorrer das gerações, uma
submissão psicológica que dura até hoje. Todo o período histórico até
os dias de hoje transcorreu nesse contexto. A cultura humana passou
de matricêntrica a patriarcal (MURARO, 1997, p. 7-8).

A mulher passa de sujeito/indivíduo10 para propriedade/objeto. Força de


trabalho, escrava do lar, dos filhos e marido. Ela perde o poder de autossignificação,

9 A Revista Marie Claire publicou em 4 de fevereiro de 2011 uma matéria de nome “Esta mulher pode
salvar Sakineh”. A matéria consiste em uma entrevista com a ativista Mina Ahadi, fundadora do Comitê
Internacional contra o Apedrejamento, que tentava salvar a iraniana Sakineh Ashtiani, então com 43
anos, pois estava sendo acusada de adultério. No Irã, país majoritariamente mulçumano, o adultério
feminino é um crime inafiançável que tem como punição a pena máxima: o apedrejamento em praça
pública. A história de Sakineh chamou muita atenção internacional, tanto que países que tinham um
bom relacionamento com o Irã manifestaram publicamente seu apoio à iraniana, pedindo que sua pena
fosse revisada. A matéria segue explicando como o caso mudou de figura e de pena várias vezes,
sendo até adicionada a acusação de conluio com o assassinato do próprio marido. Ao ser indagada
pela revista como teria surgido o Comitê que visa salvar a vida de mulheres e homens que são
condenados ao apedrejamento público, Mina Ahadi conta que o desejo nasceu da indignação que
sentiu sobre um outro caso de acusação de adultério: “Em 2001, fiquei estarrecida com o caso de
Maryam Ayoubi, a iraniana mãe de dois filhos que foi apedrejada em Teerã no dia 11 de julho, sem que
ninguém tivesse, de fato, provado que ela fosse culpada. O apedrejamento não é algo cultural, como o
atual governo do Irã quer propagar, mas uma atrocidade introduzida pelo aiatolá Khomeini depois da
revolução de 1979. Fiquei tão horrorizada que comecei a pensar o que sentia uma mulher que estava
a ponto de morrer de forma tão bárbara por ter tido uma relação extraconjugal e decidi lutar criando
uma organização que chamasse a atenção do mundo para o problema (MAGALHÃES-RUETHER,
2011, s. p.)”.
10 Sobre o papel e a individualidade da mulher como sujeito, Gerda Lerner traz a seguinte contribuição:

“Elise Boulding, em seu resumo do passado das mulheres, sintetizou conhecimentos antropológicos
para apresentar uma interpretação bem diferente. Boulding enxerga nas sociedades neolíticas um
compartilhamento igualitário de trabalho no qual cada sexo desenvolveu habilidades e conhecimento
apropriados essenciais para a sobrevivência do grupo. Ela nos conta que a coleta de alimentos exigia
um conhecimento elaborado de ecologia, plantas, árvores e raízes, além de suas propriedades como
alimento e medicamento. Descreve a mulher primitiva como guardiã do fogo doméstico, como a
inventora de recipientes de argila e tecido, que permitiam que os excedentes da tribo fossem guardados
34

que, por sua vez, passa a pertencer ao homem: “ela passa a se ver com os olhos do
homem, isto é, sua identidade não está mais nela mesma e sim em outro. O homem
é autônomo e a mulher é reflexa. Daqui em diante, como o pobre se vê com os olhos
do rico, a mulher se vê pelo homem” (MURARO, 1997, p. 12).
Se outrora o homem, a mulher e a natureza viviam em harmonia, esse tempo
acabou, sem quase nenhum resquício, rastro ou lembrança. E a desarmonia causada
pela escassez de alimento ou pela disputa de território passou a não ser mais o
principal motivo das guerras. O homem começou a amar a guerra e deu a desculpa
de lutar pela honra – embora o amor pela guerra esteja muito mais associado ao poder
e a glória. O ego do macho alfa precisava de constante estímulo e a paz já não
apetecia mais o interior do homem desejoso de elogios, bajulações e prêmios. Assim,
o homem inventou a noção de império para lutar e inflar seu ego. A guerra não tinha
mais a ver com sobrevivência, e sim com ganância, subjugação, dominação,
demonstração de braveza e masculinidade. Quando as nações não tinham como
financiar as guerras, os homens criaram jogos, arenas. Mediam forças entre si ou
contra animais – quando não forçavam escravos a medir por eles. Não importando
qual o meio de ostentar poder, mas sempre inventando pretexto para alimentar a
própria megalomania.
Nas discussões expostas até o momento, pode-se dizer que encontramos
algumas das respostas para as questões sobre como e por que a sociedade se tornou
patriarcal, dando ao homem a detenção absoluta do poder. No tópico a seguir, tentar-
se-á evidenciar os artifícios que o homem criou e que corroboram para que o
despotismo sobre a mulher perdure até os dias de hoje.

3.2 A CATEGORIA DE SEXO NA SOCIEDADE PATRIARCAL

Com o predomínio da palavra de Cristo no


centro da religiosidade imperial, essa presença
(culto feminino) seria deposta por um

para épocas de escassez. Descreve ainda a mulher como alguém que extraía de plantas, árvores e
frutas os segredos da transformação de seus produtos em substâncias curativas, tinturas, cânhamo,
fios e roupas. A mulher sabia como transformar matéria-prima e animais mortos em alimento. Suas
habilidades devem ter sido tão diversas quanto as do homem, e por certo tão essenciais quanto as
dele. Ela tinha talvez mais conhecimento ou pelo menos tanto quanto o homem; é fácil imaginar que
devia ser o suficiente para ela. Na criação de rituais e ritos, de música, dança e poesia, ela teve tanta
participação quanto ele. E, ainda assim, devia ser responsável por gerar e criar filhos. A mulher, na
sociedade pré-civilizada, deve ter sido igual ao homem e pode muito bem ter se considerado superior
a ele” (LERNER, 2019, p. 73).
35

patriarcado tão vigoroso que, a partir dos


séculos V ou VI de nossa Era e até a ascensão
do feminismo contemporâneo, apagou da
história tanto a presença como a simbologia
relacionada às mulheres. [...] Quanto mais se
consagrava a pureza de Maria, mais se
expandiam os muitos títulos dos quais era
credora; e quanto mais se multiplicavam as
associações bíblicas – que os patriarcas
enalteciam com discussões de fé –, maior o
confinamento das mulheres da Antiguidade
aos limites da erudição medieval ou ao mundo
do mito e da poesia.
Martha Robles

Como foi possível observar na seção anterior, as mulheres se tornaram


propriedade do homem11. Monique Wittig (2006) em seu ensaio “La Categoría de
Sexo” aclara e delineia o paradigma da relação entre homem/mulher instituída pelo
patriarcado. Tal paradigma age na mesma dialética senhor/escravo 12, ou seja,
dominante/dominado: “como não existem escravos sem senhores, não existem
mulheres sem homens”13 (WITTIG, 2006, p. 22, tradução nossa).
Essa dialética dominante/dominado surgiu nas sociedades fruto de embates
econômicos e sociais, como se pôde observar, anteriormente. Para Gerda Lerner
(2019, p. 23), “[...] a escravidão teve início com homens escravizando mulheres [...]”.
A historiadora austríaca acredita que os homens “treinaram” para escravizar outros
povos usando pessoas do sexo feminino: primeiro com as mulheres do seu grupo, e
depois com mulheres de outros grupos. Possivelmente, mulheres foram sequestradas,
compradas em comércios ou se tornaram presas de guerra. A escravidão existia antes

11 “[...] senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste
a grande derrota histórica do sexo feminino” (BEAUVOIR, 1970, p. 74).
12 “Certas passagens da dialética com que Hegel define a relação do senhor com o escravo se

aplicariam muito melhor à relação do homem com a mulher. O privilégio do senhor, diz, vem de que
afirma o Espírito contra a Vida pelo fato de arriscar sua vida; mas, na realidade, o escravo vencido
conheceu o mesmo risco, ao passo que a mulher é originalmente um existente que dá a Vida e não
arrisca sua vida: entre ela e o macho nunca houve combate. A definição de Hegel aplica-se
singularmente a ela. ‘A outra [consciência] é a consciência dependente para a qual a realidade
essencial é a vida animal, isto é, o ser dado por uma entidade outra’. Mas essa relação distingue-se da
relação de opressão porque a mulher visa e reconhece, ela também, os valores que são concretamente
atingidos pelo homem: ele é que abre o futuro para o qual transcende. Em verdade, as mulheres nunca
opuseram valores femininos aos valores masculinos; foram os homens, desejosos de manter as
prerrogativas masculinas, que inventaram essa divisão: entenderam criar um campo de domínio
feminino — reinado da vida, da imanência — tão somente para nele encerrar a mulher; mas é além de
toda especificação sexual que o existente procura sua justificação no movimento de sua
transcendência: a própria submissão da mulher é a prova disso” (BEAUVOIR, 1970, p. 85, grifos da
autora).
13 Versão em espanhol: “Como no existen esclavos sin amos, no existen mujeres sin hombres”.
36

como graus de subserviência e trabalho forçado. E, para a institucionalização da


escravidão, eram necessários resultados positivos, que foram sendo obtidos com o
passar dos anos com a escravidão de mulheres e crianças:

[...] para estender o conceito e transformar os escravizados em


escravos, de alguma forma diferentes de seres humanos, os homens
já deviam saber que essa classificação funcionaria de fato. Sabemos
que constructos mentais costumam vir de algum modelo da realidade
e consistem de um novo ordenamento de experiência passada. Essa
experiência, disponível aos homens antes da invenção da escravidão,
era a subordinação de mulheres do próprio grupo (LERNER, 2019, p.
112, grifos da autora).

Um dos principais mecanismos para a escravização era a legitimidade na


diferença biológica e/ou aparente. O escravizado é o outro, o estranho, o estrangeiro.
Essa diferença servia para sustentar o argumento da escravidão tanto para o
dominador quanto para o dominado. Gerda Lerner argumenta que, em virtude da
morte, da separação ou do abandono de um homem em relação a uma mulher, esta
ficaria vulnerável e à margem da sociedade. À vista disso, os homens, possivelmente,
puderam observar essa latente vulnerabilidade nas mulheres e aprenderam como se
utilizar das distinções para hierarquizar e estratificar pessoas e grupos. Essa
descoberta coincide com o surgimento do Estado arcaico e, com o desenvolvimento
do Estado, houve um aperfeiçoamento dos meios de escravização e subjugação:
“essas diferenças podem ser ‘naturais’ e biológicas, como sexo e idade, ou podem ser
criadas pelo homem, como aprisionamento e marcação a ferro” (LERNER, 2019, p.
113, grifo da autora). Mas, para além da diferença, seria preciso que o escravizado
aceitasse seu status inferior e a condição de subjugação como fato. O homem sendo
mais forte fisicamente tinha claro o argumento da diferença e da superioridade. Desse
modo, a mulher que se encontrava em condição que pudesse ser vendida, estuprada
e escravizada, tal qual seus filhos, poderia facilmente aderir à crença de ser inferior.
Para além da coerção, a dominância também conta com recursos como
condição vitalícia de subjugação para o indivíduo e seu grupo social – assim o
indivíduo não vislumbraria outra realidade por falta de exemplos próximos: se todas
as pessoas de uma determinada raça, nacionalidade ou gênero que se teria
conhecimento vivessem em uma mesma condição de dominância, este seria o seu
papel na sociedade e não teria como mudá-lo –: castigos físicos como estupros e
mutilações, quebra de laços afetivos e alienação familiar. Geralmente, os filhos de
37

uma mulher escravizada eram separados dela muito pequenos e, segundo Gerda
Lerner (2019), o senhor de escravos que soubesse de uma relação de afetividade
entre pessoas, estuprava uma na presença da outra para humilhá-las e para que se
percebessem impotentes, e depois ainda as apartava. Logo, uma mulher
completamente solitária, provavelmente, jamais se rebelaria. E, mesmo que uma
mulher não fosse inscrita como escrava, ainda era inscrita como propriedade de algum
homem e passaria pelas mesmas formas de subjugação, ainda que em graus e
intensidades diferentes.
Neste passo, a cultura da supremacia se tornou institucionalizada, tomando
para si o discurso do direito natural. Da mesma maneira como o senhor teria direito
natural de dominação sobre o escravo, o homem teria sobre a mulher. A própria
natureza, supostamente, teria criado os escravos e as mulheres inferiores e fracos
para que tivessem seus guardiões e senhores. Porém, segundo Monique Wittig (2006)
– que corrobora em partes com Gerda Lerner (2019) –, a relação dominante/dominado
não está ligada de forma nenhuma a um sexo biológico predestinado ou naturalmente
favorecido:

Porque não há nenhum sexo. Só há um sexo que é oprimido e outro


que oprime. É a opressão que cria o sexo e não o contrário. O contrário
seria dizer que é o sexo que cria a opressão, ou dizer que a causa (a
origem) da opressão encontra-se no próprio sexo, em uma divisão
natural dos sexos que preexistiria à (ou que existiria fora da)
sociedade14 (WITTIG, 2006, p. 22, tradução nossa).

Como o Estado emergiu juntamente com o princípio do direito natural à


dominação e seu exercício, as principais instituições na sociedade reforçam a cultura
da subjugação da mulher: a igreja, a escola, o local de trabalho estão sempre
reforçando o lugar e o papel das mulheres em todos os âmbitos. No prefácio do livro
da Gerda Lerner, Lola Aronovich explana sobre isso: “o patriarcado mantém e
sustenta a dominação masculina, baseando-se em instituições como a família, as
religiões, a escola e as leis. São ideologias que nos ensinam que as mulheres são
naturalmente inferiores” (ARONOVICH apud LERNER, 2019, p. 21). E muitas das
mulheres reforçam essas ideologias, pois elas sentem que ao lado do opressor gozam

14Versão em espanhol: “Porque no hay ningún sexo. Sólo hay un sexo que es oprimido y otro que
oprime. Es la opresión la que crea el sexo, y no al revés. Lo contrario vendría a decir que es el sexo lo
que crea la opresión, o decir que la causa (el origen) de la opresión debe encontrarse en el sexo mismo,
en una división natural de los sexos que preexistiría a (o que existiría fuera de) la sociedad”.
38

de algum privilégio ou respeito. O patriarcado não poderia se sustentar sem que


muitas das próprias mulheres lhe aderissem:

[...] o sistema patriarcal só funciona com a cooperação das mulheres,


adquirida por intermédios da doutrinação, privação da educação, da
negação das mulheres sobre sua história, da divisão das mulheres
entre respeitáveis e não respeitáveis, da coerção, da discriminação no
acesso a recursos econômicos e poder político, e da recompensa de
privilégios de classe dada às mulheres que se conformam. As
mulheres participam no processo de sua subordinação porque
internalizam a ideia de sua inferioridade (ARONOVICH apud LERNER,
2019, p. 21).

Dessa maneira, a sociedade caminha e resiste às mudanças (se estas


favorecerem o gênero feminino). As mulheres até hoje estão relegadas a seu serviço
sexual. Embora tenhamos saído da Idade da Pedra e a sobrevivência da espécie não
dependa mais do útero feminil – a mulher não é mais a única fonte de calor, abrigo e
alimento para a prole –; contudo, ela ainda é condicionada a fazê-lo. Para alguns
cientistas tradicionalistas, a maternidade considerada inata estaria codificada nos
genes das mulheres, então, a sociedade seria mais desenvolvida se a mulher
cumprisse o papel que está impresso em seus cromossomos. Destituir o papel de mãe
da mulher acarretaria o atraso da evolução social. Entretanto, Gerda Lerner aponta
que esse discurso machista é mais um de tantos que usa do mais frágil e banal
argumento para aprisionar a mulher a um serviço materno: “do ponto de vista de quem
não é cientista, a falácia mais óbvia dos sociólogos é desconsiderar a história ao
negligenciar o fato de que homens e mulheres modernos não vivem em estado
natural” (LERNER, 2019, p. 46).
Com o advento da modernização e da Revolução Industrial, o homem pôde
evoluir e se livrar do exacerbado esforço físico, já que as máquinas substituíram a
força de seu braço. No entanto, as mulheres continuam a serem tratadas como as do
período Neolítico, em que a sua vida se restringia a parir e criar membros da mesma
espécie. Gerda Lerner aponta que Freud, ao falar da mulher, erroneamente, relega-a
ao seu sexo como sina e ponto final. Ele, como cientista e homem de seu tempo, usa
de sua ciência para endossar que para a mulher a anatomia determina seu destino,
mas Gerda Lerner o atualiza: a “[...] anatomia já foi destino. Essa declaração é precisa
e leva em consideração o contexto histórico. O que já foi não é mais, não precisa nem
deve mais sê-lo” (LERNER, 2019, p. 84, grifos da autora). Agora, nem o trabalho
39

sexual da mulher parturiente nem a agressividade do homem são mais necessárias


para a conservação do grupo social. Todavia, a civilização continua a reforçar os
privilégios do homem dominador e as obrigações servis femininas, o que, para
Monique Wittig (2006), pode ser mudado se as mulheres lutarem contra a estrutura
que as oprime, contra seus destinos que foram traçados por mãos masculinas:

Enquanto não existir a luta das mulheres, não haverá conflito entre os
homens e as mulheres. O destino das mulheres é a realizar três
quartos do trabalho na sociedade (tanto na esfera pública quanto na
privada) além do trabalho corporal da reprodução segundo a
imposição pré-estabelecida. Ser assassinada e mutilada, torturada e
maltratada física e mentalmente, ser estuprada, surrada e ser forçada
a se casar, este é o destino das mulheres. E é claro que não se pode
mudar o destino. As mulheres não sabem que estão totalmente
dominadas pelos homens, e quando o reconhecem “quase não podem
acreditar”. Geralmente, como último recurso diante da realidade nua e
crua, se recusam a “acreditar” que os homens as dominam
conscientemente (pois a opressão é ainda mais horrenda para as
oprimidas do que para os opressores). Por sua vez, os homens sabem
perfeitamente que dominam as mulheres (“Somos os senhores das
mulheres”, disse André Breton) e eles têm sido educados para fazê-
lo. Não precisam expressá-lo constantemente, pois raramente se fala
sobre a dominação daquilo que já se possui15 (WITTIG, 2006, p. 23-
24, tradução nossa, grifos da autora).

Segundo Monique Wittig (2006), o dominante se recusa a refletir e a mudar


essa estrutura que favorece o homem como supremo porque ele vive livre pela
sociedade, em que é dono de tudo o que vê. É dono do fruto do ventre da mulher,
assim como é dono do fruto de seu trabalho. E, como o modelo de sociedade livre de
opressão feminina deixou de existir com o fim da Pré-história, é demasiado fácil para
o homem argumentar que sempre foi assim, sempre será e não há outro jeito de ser.
Além do mais, a natureza já os fizera para desempenhar tais papéis. A mulher foi
convertida de tal forma em objeto que o seu sexo é generalizado, categorizado. Um

15 Versão em espanhol: “Mientras no haya una lucha de las mujeres, no habrá conflicto entre los
hombres y las mujeres. El destino de las mujeres es aportar tres cuartas partes del trabajo en la
sociedad (tanto en la esfera de lo público como de lo privado), trabajo al que hay que añadir el trabajo
corporal de la reproducción según la tasa preestablecida de la demografía. Ser asesinada y mutilada,
ser torturada y maltratada física y mentalmente; ser violada, ser golpeada y ser forzada a casarse, éste
es el destino de las mujeres. Y por supuesto no se puede cambiar el destino. Las mujeres no saben
que están totalmente dominadas por los hombres, y cuando lo admiten, “casi no pueden creerlo”. Por
lo general, como último recurso ante la realidad desnuda y cruda, rechazan “creer” que los hombres las
dominan conscientemente (porque la opresión es aún más terrible para las oprimidas que para los
opresores). Por su parte, los hombres saben perfectamente que dominan a las mujeres (“Somos los
amos de las mujeres”, dijo André Bretón) y han sido educados para hacerlo. No necesitan decirlo
constantemente, pues rara vez se habla de dominación sobre aquello que ya se posee”.
40

homem é um indivíduo. É um presidente, um médico, um juiz, um piloto de avião. Uma


mulher é somente seu sexo, seu corpo:

Basta ler as entrevistas a mulheres de projeção nas revistas para ver


que sempre se desculpam. Inclusive, hoje em dia, os jornais reportam
que “dois estudantes e uma mulher”, “dois advogados e uma mulher”,
“três viajantes e uma mulher” têm feito isso ou aquilo. A categoria de
sexo é a categoria que une as mulheres porque elas não podem ser
pensadas fora dessa categoria. Somente elas são sexo, o sexo, e
transformaram sua essência em sexo, seus corpos, seus atos, seus
gestos; até mesmo os assassinatos de que são alvo e os
espancamentos que recebem são sexuais. Sem dúvida, a categoria
de sexo aprisiona firmemente as mulheres16 (WITTIG, 2006, p. 28,
tradução nossa, grifos da autora).

A mulher está presa ao seu sexo porque este é o desejo do homem, que quer
diminui-la, restringi-la e dominá-la. Onde quer que a mulher se encontre, o patriarcado
demarca seu corpo como um território. De acordo com a escritora francesa, no âmbito
doméstico, a mulher é mãe, cuidadora de filhos, faxineira. Tem obrigações a ser
cumpridas pelo resto de suas vidas, regidas pelo marido, incluindo “[...] transferência
de sua reprodução em nome do marido, coabitação noite e dia, coito forçado,
transmissão legal de residência implicada pela noção jurídica de abandono do
domicílio conjugal [...]”17 (WITTIG, 2006, p. 27). O homem é tão dono do corpo da
mulher, que, conforme Monique Wittig (2006), existe implicitamente uma política
policial de não interferir quando uma mulher é agredida por seu marido. Teoricamente,
isso vem mudando com leis como a Lei Maria da Penha18, que pretende combater a

16 Versão em espanhol: “Basta con leer las entrevistas a mujeres excepcionales en las revistas para
ver que siempre se disculpan. E incluso en la actualidad, los periódicos informan de que “dos
estudiantes y una mujer”, “dos abogados y una mujer”, “tres viajeros y una mujer” han hecho esto o
aquello. La categoría de sexo es la categoría que une a las mujeres porque ellas no pueden ser
concebidas por fuera de esa categoría. Sólo ellas son sexo, el sexo, y se las ha convertido en sexo en
su espíritu, su cuerpo, sus actos, sus gestos; incluso los asesinatos de que son objeto y los golpes que
reciben son sexuales. Sin duda la categoría de sexo apresa firmemente a las mujeres”.
17 Versão em espanhol: “[…] cesión de su reproducción puesta a nombre del marido, coito forzado,

cohabitación día y noche, asignación de una residencia, como se sobreentiende en la noción jurídica
de «abandono del domicilio conyugal […]”.
18 Lei Federal Brasileira. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Esta Lei foi criada com o objetivo de

punir e coibir atos de violência doméstica contra a mulher. A Lei carrega esse nome como forma de
reparação simbólica por parte do Estado brasileiro pela omissão diante às agressões e às tentativas
de assassinato (uma vez com arma de fogo, no qual o agressor forjou um arrombamento domiciliar
para poder matar a esposa que resultou em paraplegia para a vítima e outra com afogamento e indução
de eletrochoque) sofridas por Maria da Penha Maia Fernandes durante 23 anos de casamento com
Marco Antônio Heredia Viveros, que foi condenado duas vezes, mas sempre saiu em liberdade.
Mediante à impunidade, Maria da Penha agiu junto ao Centro pela Justiça pelo Direito Internacional
(CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), para denunciar o
Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, o
41

violência doméstica. Não obstante, é importante ressaltar que a própria existência da


lei é uma das provas contundentes da esmagadora realidade das mulheres sob o
regime patriarcal: “a promulgação de uma lei sempre indica que a prática que está
sendo criticada ou sobre a qual se está legislando existe e se tornou problemática na
sociedade” (LERNER, 2019, p. 140).
No âmbito público (conquistado em termos parciais pela mulher somente no
séc. XX), a mulher não está mais livre ou mais segura. Pode-se pensar que os homens
teriam medo de represália por haver risco de testemunhas, porém, não é isso que
acontece. Os locais públicos são, mais que todos os outros, de domínio masculino,
assim, a mulher pode estar longe de casa, mas o homem não. O mundo é a casa dele.
Para Monique Wittig (2006), a mulher é tão reduzida à categoria de seu sexo que
precisa prestar uma espécie de serviço sexual forçado (semelhante ao serviço militar
forçado para os homens) e ainda assim ser bonita, brilhante e sorridente sempre que
for notada. Entretanto, o ideal é que seja silenciosa e invisível.
Segundo a autora, enquanto a mulher viver sob a réstia de seu sexo, ela,
enquanto indivíduo, não poderá existir. A estrutura patriarcal está muito arraigada à
dualidade macho/fêmea, de forma que, para destruir a figura do macho dominante,
seria necessário destruir a figura da fêmea subjugada. No entanto, a questão da
quebra de gênero como solução para uma nova construção social não faz parte
diretamente do escopo a que se dedica esta pesquisa.
Por fim, pode-se concluir que o poderio masculino sobre a mulher não nasceu
de uma predestinação do sexo biológico ou de uma supremacia natural, e sim, nasceu
da valorização do ser macho em um contexto de fome, medo e miséria. Porém, uma
das principais manobras para a cristalização esteve intimamente ligada à ação do
homem de reduzir a mulher à categoria de sexo feminino: “a categoria de sexo é a
categoria que institui a escravidão para mulheres [...]”19 (WITTIG, 2006, p. 28,
tradução nossa), tornando-a objeto, seja na esfera privada, seja na esfera pública.

que resultou na condenação do país por negligenciar as vítimas de abuso doméstico e não criar
mecanismos para punir os agressores, bem como conter a violência contra a mulher. Com a
condenação, o Brasil também foi forçado a tomar outras medidas como: a resolução do processo penal
que Maria da Penha foi vítima; investigação sobre o proceder do processo; ressarcimento material e
simbólico pelo desleixo e tolerância por parte do Estado e a criação de políticas públicas com o objetivo
de prevenir, extinguir e punir a violência contra a mulher. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), em seu relatório publicado em 2015, a Lei Maria da Penha contribuiu com a redução
de 10% no aumento da taxa de feminicídios domésticos.
19 Versão em espanhol: “La categoría de sexo es una categoría que determina la esclavitud de las

mujeres […]”.
42

Dos primordiais mecanismos para que se logre essa redução da mulher apenas a uma
simples categoria são a violência, o estupro e a coerção. As mulheres sofrem tantas
violências e de tão diferentes maneiras que já se encontram naturalizadas; inclusive,
entre as próprias mulheres. Muitas vezes, as mulheres são as primeiras propagadoras
do discurso que reforça o controle do homem, coagindo umas às outras, em vez de
se ajudarem mutuamente.
Contudo, uma mulher não é só uma mulher. Já está na hora do mundo
reconhecer isso e vencer a barreira da opressão e da dominância masculina. E, para
quebrar com essa tradição de dominância, precisamos entender como o patriarcado
usou de simbologias e personas outorgantes para se sustentar e se legitimar.
Gerda Lerner (2019) aponta que dentre os pilares do pensamento ocidental, os
três principais são: o Antigo Testamento, o Pensamento Grego e a Ciência – que teve
a contribuição dos dois primeiros. Para esta pesquisa, não lidaremos diretamente com
a ciência, mas sim com suas matrizes influenciadoras. A seguir, por meio da mitologia,
buscaremos compreender como os deuses Jeová e Zeus, como figuras
representantes de poder e masculinidade, usurparam o maior posto no panteão dos
deuses instituindo o patriarcado e a misoginia como leis divinas e como esses deuses
teriam transferido e legitimado a ideia da superioridade masculina às suas criaturas
prediletas: os homens.

3.3 JEOVÁ, ADÃO, ZEUS E JASÃO: PERSONIFICAÇÕES DO PATRIARCADO

Ao longo da história, a humanidade passou por


diversas experiências, construiu impérios
gigantescos, desenvolveu tecnologias,
desenvolveu-se artisticamente.
Gradativamente, a deusa-mãe dos povos
supostamente atrasados foi substituída pelos
deuses da Idade Antiga: autoritários,
poderosos e punitivos. Surgiram a partir de um
novo modelo de sociedade: a patriarcal.
Enquanto a cultura matrística valoriza a
interpessoalidade, a cultura patriarcal valoriza
o domínio.
Bruno Pinto de Albuquerque

Segundo Gerda Lerner (2019), no Período Neolítico, o culto a Deusa-Mãe era


vastamente difundido, dado que, averiguando uma extensa gama de evidências que
trazem a mulher na sua função materna de forma divinizada (como pinturas rupestres
43

e esculturas que evidenciam os seios, quadris e/ou umbigo da mulher, bem como
esculturas de mulheres parindo), podemos chegar à conclusão que se trata da
possível primeira expressão religiosa. Tendo em vista que a gestação feminina era
um mistério e que o primeiro, bem como o mais duradouro, laço afetivo entre as
pessoas fosse o da mãe com sua prole, não se admira que a primeira divindade que
ocupasse o ideário do ser humano fosse justamente uma Deusa-Mãe. As pessoas
acreditavam que a Deusa-Mãe teria parido o universo e que ela mesma nutria a terra
de seus próprios seios. Ela seria a própria natureza que gera a vida e solveria tudo
para a morte, num ciclo equilibrado e intermitente.
Para Gerda Lerner (2019), o advento da agricultura de arado, o aumento do
militarismo, o surgimento do Estado arcaico, a presença de reinados fortemente
estabelecidos, juntamente com a possível descoberta da participação do homem na
procriação acarretaram modificações no ideário sobrenatural. A Deusa-Mãe, que teria
parido o universo, posteriormente, surge como parturiente também de um filho homem
que se tornará seu marido e eles gerarão outros deuses. Podemos assinalar aqui
como exemplo disso a titã grega Gaia que gerou espontaneamente três filhos e depois
se casou com um deles, Urano. E deles nasceram outros titãs que formaram um
panteão, mas a deusa primordial não se estabelece no trono. Para Lerner, o padrão
observável seria: “[...] primeiro, o rebaixamento da imagem da Deusa-Mãe e a
ascensão e posterior dominância de seu consorte/filho; depois a fusão deste com um
deus da tempestade em um Deus-Criador, que lidera o panteão de deuses e deusas”
(LERNER, 2019, p. 188).
Com a sociedade liderada por homens, o panteão dos deuses não poderia ter
como líder uma deusa – principalmente, porque, muitas vezes, os soberanos
legitimavam o direito ao posto por uma linhagem ou por uma espécie de bênção divina.
Se o principal trono celestial fosse ocupado por uma deusa, daria o direito de uma
mulher ocupar o principal trono terreno; assim seria a rainha a maior figura de poder
no Estado, e não o rei. A autoridade divina não outorgaria somente o direito sobre um
posto, mas também o direito de um território, templos, dinheiro, enfim, poder. Dessa
maneira, a política transformou a religião de maneira gradativa e eficaz. Esta passa a
ser prescritiva e não descritiva: as pessoas não deixaram de cultuar a Deusa-Mãe por
vontade própria, mas foram obrigadas a abandonar a prática aos poucos. De acordo
com Lerner, podemos ter um exemplo dessa prática de mudança consciente da
44

mitologia a partir dos sacerdotes que buscavam ascender o poder dos deuses que
eles cultuavam, e assim ascender o próprio poder:

[...] Samuel Noah Kramer explica essa mudança na teogonia como


resultado da crescente influência de sacerdotes, que estão associados
a templos e cidades específicos e seus soberanos. Esses sacerdotes
passam a registrar os mitos antigos de maneira a servirem a fins
políticos. Kramer observa na lista a ausência de Namu, a Deusa-Mãe,
antes aclamada como criadora do universo e mãe dos deuses. Ele
acredita que seus poderes tenham sido transferidos a seu filho Enki
[...] (LERNER, 2019, p. 196).

De forma semelhante, a religião hebraica também passou por reformas. Os


patriarcas, a fim de aumentarem seu poderio, suas terras e rebanhos, também
elegeram um deus para legitimar suas ações. Esses homens alegaram ter alianças
com o seu deus, que seria único em tudo. Único no céu, único em sapiência, em
consciência e poder; e esse deus escolheu uma nação para levar seus mandamentos
e assim corrigir o mundo de falhas. Este deus, que dentre muitos nomes, também é
chamado de Jeová, teria prometido uma terra em que corre leite e mel, para aqueles
que seguissem sua lei e aderissem à suposta aliança. Desse modo, fica muito claro
como uma invasão a uma terra fértil seria legitimada por uma promessa outrora feita
a um profeta qualquer: “terra, poder e qualidade de nação eram promessas implícitas
na aliança” (LERNER, 2019, p. 237). Posto isto, para compreendermos nossa
civilização e sua estrutura, precisamos conhecer o deus fabricado à imagem e à
semelhança dos homens dominadores, o Deus-Pai, o maior patriarca.

3.3.1 Jeová, o Deus por excelência do patriarcado

Ó SENHOR, Deus do nosso antepassado


Jacó, bendito sejas para sempre! Tu és grande
e poderoso, glorioso, esplêndido e majestoso.
Tudo o que existe no céu e na terra pertence a
ti; tu és o Rei, o supremo governador de tudo.
Toda a riqueza e prosperidade vêm de ti; tu
governas todas as coisas com o teu poder e a
tua força e podes tornar grande e forte
qualquer pessoa.
(1 Crônicas 29:10-12)

Como comentamos anteriormente, os patriarcas fundaram uma nova crença


que os respaldaria em suas ambições e conquistas. No entanto, a fé nesse deus
45

também exigiria o abandono de outras divindades, bem como total intolerância a


esses deuses e seus cultos. Com a popularização do culto ao deus Baal e a deusa
Aserá, ao longo do reinado do rei Acabe e Jezebel, sua rainha estrangeira, os hebreus
tomaram uma atitude para a erradicação do culto a esses deuses que alegaram serem
falsos e profanadores da existência do “verdadeiro deus”: “inspirada pelos profetas
Elias e Eliseu, a adoração apenas a Jeová foi restabelecida depois de um golpe
político e do assassinato de 400 sacerdotes de Baal em 852 a. C.” (LERNER, 2019,
p. 210). A quebra com a aliança de Jeová acarretaria muitas consequências ao macho
da espécie humana. O homem que não fizesse parte da comunidade a qual Jeová
seria seu único deus e senhor não possuiria legitimidade para se apossar de terras e
nem para impor a suposta superioridade masculina, pois não faria parte do povo
eleito20.
Jeová realizou algumas alianças com os seus intermediários homens, dentre
eles estão: Abraão, que teria sido o primeiro patriarca a quem esse deus único se
revelou, prometendo-lhe terra e uma descendência que seria tão numerosa quanto o
pó da terra (Gênesis 13:16) em troca de que o seu povo eleito tivesse uma marca
dessa promessa. A marca requerida foi a circuncisão do pênis que até hoje se realiza
entre os judeus (povo descendente dos hebreus); depois veio Moisés, que,
resgatando os hebreus do Egito e conduzindo-os por 40 anos pelo deserto a tal terra
prometida, apresentou as tábuas com os dez mandamentos, extinguiu o culto às
divindades que carregavam a simbologia do touro21, substituindo esse símbolo de
adoração pela Arca da Aliança; e finalmente, Davi, que além de ser descendente de
Abraão, pôde justificar suas empreitadas militares e seu direito à liderança pela unção
recebida do profeta Samuel. E, assim, esses patriarcas aniquilaram a figura da Deusa-
Mãe, como também de outro qualquer deus, impondo uma divindade única e
masculina:

20 Gostaríamos de deixar bem claro e frisado que quando falamos sobre a legitimidade que o homem
teria utilizado através da religião hebraica/ judaica/ cristã para instituir o sistema patriarcal, não estamos
atribuindo toda culpa da criação e instauração dessa estrutura a essas cosmogonias. Compreendemos
que a religião que tem como centro o deus Jeová foi (e é) um dos inúmeros mecanismos que o
patriarcado se utilizou (e se utiliza) para ascender e se estabelecer no poder no Ocidente. É óbvio que
no Oriente o patriarcado surgiu, se desenvolveu e se instaurou tão solidamente quanto no Ocidente.
Porém, os processos que o Oriente passou para a instauração patriarcado se deu por meio de outros
mecanismos que não fazem parte do recorte desta pesquisa.
21 Segundo William G. Dever, em Did God Have a Wife?, Jeová, antes de usurpar o poder e suprimir

os outros deuses, também fora representado como touro (DEVER, 2005, p. 258).
46

O que é mais impressionante é a omissão de qualquer papel simbólico


ou ritualístico da mãe no processo de procriação. Deus abençoa a
semente de Abraão como se fosse autógena. A imagem dos seios da
deusa da fertilidade amamentando a terra e os campos foi substituída
pela imagem do pênis circuncidado, símbolo do contrato entre homens
mortais e Deus. A imortalidade coletiva, na forma de muitas gerações
de crianças, terra, poder e vitória sobre os inimigos, é prometida às
pessoas da aliança, caso cumpram com suas obrigações, dentre as
quais a circuncisão é a principal (‘E o varão incircunciso, que não tiver
circuncidado a carne do prepúcio, esta alma será extirpada de seu
povo; ele quebrou a Minha aliança’ [Gênesis 17:14].) (LERNER, 2019,
p. 238-239).

Se um dia os símbolos divinos envolviam seios, 22 quadris ou vulva, já não


seria mais assim daí em diante. A Deusa-Mãe foi destronada, seu poder usurpado e
lentamente foi apagada. Esse fenômeno, de acordo com Gerda Lerner (2019),
aconteceu em diversas culturas e em épocas diferentes no Ocidente, mas
geralmente apresenta os mesmos processos históricos: “onde quer que ocorram
essas mudanças, o poder da criação e da fertilidade é transferido da Deusa para o
Deus” (LERNER, 2019, p. 188). Inclusive, segundo Raphael Patai em seu livro The
Hebrew Goddess (1990), antes de Jeová estabelecer sua dominância, havia duas
deusas (que depois seriam assimiladas por Jeová) que apareceram como agentes
criadoras: Ruah, que aparece em a Canção da Criação, como uma ave que choca
um ovo sobre o caos e assim cria o universo; e Shekhinah, também conhecida como
esposa de Deus, que tendo a forma de uma nuvem, detinha o poder criador antes do
deus macho.
Entretanto, exterminar as práticas de cultos a outros deuses por violência
direta não bastaria. As pessoas precisariam acreditar que um deus macho e único
seria o responsável pela criação de tudo que existe. Foi então que o hebraísmo se
utilizou de um outro sistema simbólico de criação. A criação a partir da poderosa voz
de Deus: “nada existe a não ser que tenha um nome. O nome significa existência”
(LERNER, 2019, p. 193).

22Embora o falo tenha se tornado o símbolo central do patriarcado, assim como das religiões patriarcais
como o hebraísmo, o judaísmo, o muçulmanismo e o cristianismo, William G. Dever (2005) aponta que
o epíteto “El-Shadday” que Jeová carrega faz referência a dois deuses primitivos: El (que seria o deus
da tempestade) e Shadday (deusa que representaria a Terra e as montanhas seriam seus seios).
Assim, “El-Shadday” seria um deus masculino com seios femininos. Evidentemente, essa noção foi
perdida ao longo dos anos, e os atributos femininos assimilados foram esquecidos, apagados e
encobertos.
47

Gerda Lerner (2019) explica que, de acordo com evidências, no período entre
o terceiro e o segundo milênio a. C., esse novo conceito de criação surge no
pensamento sacro. Muitas vezes, antes de existir a matéria da criatura, sua essência
já era pré-determinada pelo nome, como quando Jeová nomeou ao filho de Davi por
Salomão e prometeu que o reinado dele seria pacífico, porque Salomão deriva da
palavra hebraica “shalom”, que significa “paz e segurança” (1 Crônicas 22:9). A
nomeação poderia acontecer após ao nascimento e também depois de um marco na
narrativa da personagem, gerando renomeações e epítetos: “a nomeação tem
profundo significado no sistema de crenças da Antiga Mesopotâmia. O nome revela a
essência de quem o carrega; ele também tem poder mágico” (LERNER, 2019, p. 194).
Outro exemplo disso na mitologia judaica-cristã pode ser observado quando Jacó, já
adulto, passa a se chamar Israel, pois, segundo o Gênesis, Jacó lutou com Deus e
venceu, então este nome em hebraico se assemelha com “luta com Deus” ou “Deus
luta” (Gênesis 32:26-31). O nome revela que Jacó, depois dessa experiência, não é
mais o mesmo. Portanto, Deus o renomeia para que todos, ao ouvirem seu nome,
saibam quem Israel é e o que representa. Dessa forma, para Jeová criar, basta falar
e a mágica acontece: “— que haja luz! E a luz começou a existir” (Gênesis 1:3). A
criação se manifesta a partir de um nome (o que podemos definir por nome próprio
ou substantivo), um conceito que revela sua essência e seu destino.
Quando Jeová fala é o suficiente para que se suceda. A sua voz e sua palavra
devem ser ouvidas e cumpridas; e os homens a quem Jeová falaria, fariam se realizar
as vontades e os mandamentos do deus macho – tal como eles. Como já dissemos,
os profetas de Jeová são homens, os reis de Jeová são homens, seus juízes e
sacerdotes são homens. Evidentemente, temos o conhecimento de algumas
profetisas e juízas na tradição hebraica, como: Miriã (Êxodo 15:20), Débora (Juízes
4:4), Hulda (2 Crônicas 34:22), Noadia (Neemias 6:14) e uma profetisa sem nome
(Isaías 8:3) – o que representa casos pontuais e contundentemente ignorados nas
recontagens posteriores dos mitos. Como exemplo disso, segundo Fridlin (1989),
quando os cantos do Êxodo são reiterados no Sidur, que é o livro de orações do
judaísmo rabínico, a referência a Miriã é completamente omitida. Também em
Apocalipse 15:3-4, oriundo do arcabouço do recém-surgido cristianismo (na época,
ainda ligado à tradição judaica), também Miriã desaparece. Quanto às demais, é mais
difícil constatar essa ausência porque toda a narrativa em que elas se inserem
costuma ser ignorada. Além da batalha de Monte Tabor (em que aparece Débora),
48

raramente sequer são mencionadas nos livros de educação religiosa ou mesmo nas
cerimônias. Podemos assinalar como uma forte evidência desse apagamento o livro
de catequese Eu Creio – pequeno catecismo católico (2004), em que essas profetisas
e juízas não são contadas, com exceção de Miriã (Miriam), a qual apenas o nome é
mencionado uma única vez e junto a outros nomes de personagens bíblicos, mas
nenhuma alusão é feita à história da profetisa. Por outro lado, os profetas homens
como João Batista, Elias, Isaías, João etc., são largamente citados.
No entanto, não há notícias de sacerdotisas hebraicas. No estabelecimento do
sacerdócio (Êxodo 28:1) é explicitado que os sacerdotes serão os descendentes
homens de Aarão. Dessa maneira, sabendo-se que o estabelecimento do templo (e,
portanto, de toda a casta sacerdotal) é o movimento final que antecede o
estabelecimento do texto sagrado, e, portanto, de todo o judaísmo (posteriormente,
também o cristianismo) como nós conhecemos hoje, é lícito ver aí a culminação do
apagamento do protagonismo feminino na história mítica de Israel.
Apesar de as origens do texto e das instituições da religião hebraica estarem
envoltas na bruma do tempo, o momento mais antigo em que é possível falar que o
texto ainda não se tinha cristalizado é durante as reformas de Esdras e do Cisma
Samaritano (que ocorrem na mesma época) por volta de 450 a. C. O texto samaritano
até hoje diverge da Torá rabínica em pontos importantes, e no próprio livro de Esdras-
Neemias há menção de que o texto da Lei era desconhecido do público (Neemias 8:7-
8). Para Gerda Lerner, Esdras e Neemias foram os responsáveis pela fusão final dos
livros do Pentateuco, quando o reino de Judá se encontrava subjugado pelo domínio
persa. Isso “representou a canonização da Lei Judaica e a realização suprema do
pensamento religioso judaico no período arcaico” (LERNER, 2019, p. 206).
Gunneweg (2005) fala sobre esse momento histórico em que a religião é
estabelecida não mais em bases tribais étnicas, mas num texto codificado, ao qual
deve obediência jurídica aquele que a confessa. Esse é o início do judaísmo (antes,
pode-se falar em religião hebraica ou judaísmo antigo).
É importante ressaltar que Esdras era descendente do último Sumo Sacerdote
do Primeiro Templo (cuja existência tem muito de mítica, todavia provavelmente teve
uma base na realidade), ou seja, ele tinha o conhecimento necessário e todo o
interesse investido em reservar o papel sacerdotal para si e para os homens da sua
família. Mantendo a base da religião num texto (quer esse texto lhe preexistisse ou
não), era bem menos viável uma reforma que retirasse o poder da religião das mãos
49

deles e de seus descendentes homens. De acordo com Lerner (2019), tanto o avanço
cultural/conceitual do judaísmo quanto os conceitos patriarcais estruturadores do
monoteísmo judaico foram influenciados pelos mesmos contextos históricos. Logo,
não há como se dissociar o monoteísmo judaico – a qual o cristianismo é oriundo –
da centralização do poder masculino e do sistema patriarcal.
A mulher, estando relegada à esfera privada, estava alienada tanto da sua
própria religião quanto do mundo. Convencida de que gozava de um precioso
privilégio, não precisaria aprender a ler (logo, não poderia decifrar por si mesma os
textos sagrados), não precisaria ir a templos ou tendas religiosas em busca de
conhecimento e estaria “isenta” do serviço religioso público. A mulher poderia viver
uma vida feliz e prosaica junto aos filhos encarcerada em casa. Ela aprenderia os
mandamentos de um suposto deus que regeria a sua vida pela boca do homem a
quem pertencesse; seu pai, seu irmão ou seu marido e como seria a curadora dos
interesses do seu proprietário, estaria encarregada de doutrinar a prole segundo tais
interesses. É imperativo o fato de que a esfera doméstica da religião era subordinada
(e quase uma repetição reafirmativa) dos ditames da esfera pública. Jamais seriam
toleradas inferências ou interpretações que fugissem de alguma maneira aos
ensinamentos e regras patriarcais. Sem o conhecimento da teocracia que a oprimia,
como perceberia suas incoerências e como lutaria por melhoria? E ainda que o
fizesse, quando percebesse a tremenda desvantagem a qual estaria submersa, seria
tarde demais:

Ele fez pacto e contrato apenas com os homens. A circuncisão como


símbolo de aliança expressava essa realidade. Apenas homens
podiam fazer a mediação entre Deus e os humanos. Isso manifestava-
se de modo simbólico no sacerdócio de exclusividade masculina, nas
várias formas de se excluir as mulheres do ritual religioso mais
importante e significativo: ou seja, a exclusão da formação do minyan;
os assentos segregados no templo; a exclusão como participantes
ativas das funções do templo etc. Às mulheres era negado o igual
acesso ao aprendizado religioso e ao sacerdócio; dessa maneira,
negou-se a elas a capacidade de interpretar e alterar o sistema de
crenças religiosas (LERNER, 2019, p. 247, grifo da autora).

Mas antes dos profetas e reis de Jeová, existiu o primeiro homem ao qual Deus
teria transferido o dom na nomeação e a autoridade masculina. Para tornar mais
compreensível a ideia de que a figura masculina é o agente nomeador e significador
das coisas – e, com isso, também da mulher – recorremos a dois mitos de criação,
50

ambos muito conhecidos no Ocidente: um hebraico/cristão, em que o nomeador é


Adão, e o outro mito é grego, no qual o nomeador é Zeus, o rei dos deuses olimpianos.

3.3.2 Adão, ditador de nomes e papéis

[…] se dice que el gran tamaño de Adán y su


semblante radiante pasmaron de tal modo a
los ángeles que lo llamaron “el Santo”, y
volvieron temblando al Cielo. Preguntaron a
Dios: “¿Puede haber dos poderes divinos, uno
aquí y el otro en la Tierra?”
Robert Graves e Raphael Patai

Sabe-se que os mitos da origem do mundo, bem como a criação do ser


humano, da fauna e da flora são narrativas comuns que surgiram entre os povos de
todos os continentes para dar explicação à existência do mundo. Para os ocidentais,
os mitos de criação da humanidade mais difundidos são o da mitologia cristã (que traz
Adão e Eva como centro da narrativa) e os da mitologia grega da Antiguidade Clássica
(que tem como personagem principal Pandora e conta com o mito das cinco raças).
A mitologia cristã está disposta em uma coleção de livros, chamada Bíblia23.
Ela começa com o livro do Gênesis, descrevendo como Deus teria criado em seis dias
o Universo e tudo que há nele; e termina com o livro do Apocalipse que seria sobre
profecias do fim do mundo. No início do Gênesis (1:25-26), Deus criou o homem no
sexto dia, após já ter criado toda a natureza:

Deus fez os animais, cada um de acordo com a sua espécie: os


animais domésticos, os selvagens e os que se arrastam pelo chão. E
Deus viu que o que havia feito era bom.
Aí ele disse: — Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como
nós, que parecerão conosco.

Na última linha supracitada, Deus diz que os humanos se “parecerão conosco”;


isso poderia denotar que Deus não estaria sozinho e seria uma evidência da
remanescente crença politeísta a qual já nos referimos no tópico anterior. Voltando à
narrativa da criação, vê-se que Deus teria criado o ser humano para se reproduzir e

23A versão da Bíblia que adotamos para esta Dissertação foi a Católica Apostólica Romana, traduzida,
editada e comentada pela Editora Paulinas. A eleição por essa versão se deu pelo motivo da quantidade
de livros que a Bíblia católica tem em detrimento da Bíblia protestante, sendo a quantidade,
respectivamente, 73 e 66 livros.
51

para reinar sobre todas as criaturas da Terra (Gênesis 1:28), inaugurando aí a ideia
de sucessão e descendência que depois será firmada em aliança com o povo eleito
de Deus:

E os abençoou Deus dizendo: — Tenham muitos e muitos filhos,


espalhem-se por toda a terra e a dominem. E tenham poder sobre os
peixes do mar, sobre as aves que voam no ar e sobre os animais que
se arrastam no chão.

Vendo Deus que seu trabalho havia terminado, ao sétimo dia, descansou.
Posteriormente, a narrativa da criação do ser humano retorna com o enredo em que
o homem foi feito da terra e, para torná-lo vivente, Jeová soprou em suas narinas o
fôlego da vida. Depois que Adão foi animado pelo espírito de Deus, Ele levou a Adão
todas as outras criaturas para que fossem nomeadas por aquele que seria o senhor
sobre todas elas. Para Gerda Lerner (2019), a narrativa aí traz um conceito diferente
de criação; pois Jeová não cria Adão apenas por chamar seu nome; ele é fabricado
do barro, mas o sopro é o que aviva a sua matéria – o que estaria de acordo com a
proposta dela, já citada, de que a Deusa-Mãe é usurpada e suprimida pelo poder de
um Deus-Criador que foi assimilado a um deus da tempestade e do sopro (ar ou
vento). Observamos que, em outros trechos da Bíblia, essa simbologia de Jeová como
deus da tempestade, de ventos, tormentas, nuvens, trovões etc., aparece com certa
recorrência, como exemplo: Salmos 29, Salmos 83:15, Salmos 148:8, Isaías 29:6,
Jeremias 23:19, Jeremias 30:23, Ezequiel 13:13, Ezequiel 38:9, Hebreus 12:18-21,
entre muitos outros. “Sendo assim, o sopro divino cria, mas o ato humano de nomear
dá significado e ordem. E Deus dá a Adão o poder desse tipo de nomeação”
(LERNER, 2019, p. 226), como podemos observar nestas palavras:

Depois que o SENHOR Deus formou da terra todos os animais


selvagens e todas as aves, ele os levou ao homem para que pusesse
nome neles. E eles ficaram com o nome que o homem lhes deu. Ele
pôs nomes nas aves e em todos os animais domésticos e selvagens.
Mas para Adão não se achava uma ajudadora que fosse como a sua
outra metade.
Então o SENHOR Deus fez com que o homem caísse num sono
profundo. Enquanto ele dormia, Deus tirou uma das suas costelas e
fechou a carne naquele lugar. Dessa costela o SENHOR formou uma
mulher e a levou ao homem. Então o homem disse:
“Agora sim!
Esta é carne da minha carne
e ossos dos meus ossos.
52

Ela será chamada de ‘mulher’


Porque Deus a tirou do homem” (Gênesis 2:19-23).

Nesse trecho do Gênesis, podemos refletir sobre a relação de Jeová com Adão
e este, com a mulher. Primeiro, como já observamos, Deus transfere a Adão o dom
nomeador. Gerda Lerner (2019) atenta que se pode fazer a interpretação da palavra
hebraica adam (Adão para a Língua Portuguesa) como “humanidade”, dessa maneira,
Jeová teria dado ao gênero humano o poder de nomear. Porém, a própria Bíblia ceifa
essa suposição, já que, em toda ela, são os homens que nomeiam e não as mulheres.
Então, “[...] Deus concedeu o poder somente, e de modo específico, ao ser humano
do sexo masculino” (LERNER, 2019, p. 226). Gerda Lerner ressalta outra suposição
que consiste em avaliar que esse dom teria sido transferido somente a Adão nesse
momento, pois a mulher não teria sido criada ainda, mas essa interpretação,
obviamente, não se sustenta; porque o ato de nomear ocorre novamente na narrativa
mais à frente, em Gênesis 2:23, em relação a própria mulher, em que Adão lhe põe
um nome do mesmo jeito que faz a todas as outras criaturas. É possível perceber que
cada um é nomeado pelo seu Senhor. Adão por Deus. Eva por Adão:

Nesse caso, nomear não só é um ato de criatividade, como define


Mulher de modo muito específico, como parte “natural” do homem,
carne de sua carne, em uma relação que é uma inversão peculiar do
único relacionamento humano para o qual tal afirmação pode ser feita,
a saber, o da mãe com a criança (LERNER, 2019, p. 226, grifo da
autora).

Adão, sendo o nomeador de tudo, estabelece uma série de dicotomias. Adão


versus animais. Adão versus plantas. Adão versus Eva. E nessas dicotomias ele age
como a força dominante e/ou superior. A Bíblia mostra que Adão não só a chama de
mulher pela oposição direta do ser homem, tanto quanto escolheu seu nome próprio
atribuindo-lhe uma essência, um destino, um papel: “o homem pôs na sua mulher o
nome de Eva por ser ela a mãe de todos os seres humanos” (Gênesis 3:20). Nessa
parte, o editor24 faz um grifo na palavra “Eva” e na nota de rodapé esclarece que Eva
em hebraico significa “vida” e soa semelhante à palavra que significa “seres
humanos”. No entanto, observando o dicionário A comprehensive etymological
dictionary of the Hebrew language for readers of English (1987), percebemos que a

24A versão da Bíblia utilizada para este trabalho conta com comentários e notas atribuídos ao próprio
editorial.
53

palavra “Eva”, que em hebraico se escreve “‫ ”חוה‬se assemelha à palavra “‫”חיה‬, que
significa “animal”. Como nos textos mais antigos da Torá, a letra ‫(ו‬vav) e a letra ‫(י‬iod)
eram muitas vezes intercambiáveis, e como a raiz de ambas as palavras é a palavra
“‫”חיים‬, que significa “vida”, o significado de “Eva” estaria mais aproximado a “mãe de
todos os viventes” em vez de “seres humanos”. Logo, entendemos que existe uma
tênue distinção entre ser “mãe de todos os seres humanos” a ser “mãe dos viventes”,
que, para nós daria uma outra noção ao papel de Eva, como se a primeira mulher
estivesse mais condicionada a ser uma vivente, semelhante aos animais, do que
propriamente humana, como Adão.
Eva, criada da costela25 de Adão, foi feita para ser esposa dele (não importando
se isso seria do agrado dela ou não). Uma ajudadora idônea como a Bíblia afirma, e
como já diz seu próprio nome, criada também para ser mãe. Papel imposto de
antemão, sem qualquer consulta a ela sobre a escolha de gerar e seus desejos para
com sua própria vida.
Sendo Jeová o deus do patriarcado, ele elege o macho como a matriz da vida,
da lei, da ordem. Adão pare Eva de seu interior, mas de uma maneira que destitua o
ato de criação do gênero feminino. Ela é criada a partir do osso26 do macho. Uma vez
que a mulher tenha sido criada de uma partícula do homem, isso conferiria a ele uma
autoridade maior que o mesmo teria diante aos animais e às plantas. A mulher, por
assim dizer, teria sido parida pelo homem por meio da costela que saiu de seu próprio
corpo. Segundo Gerda Lerner (2019), o homem, com esse ato, se define como a mãe
do gênero feminino. Destacamos que a mulher representaria apenas parte de sua

25 Sobre a anedota da criação de Eva, Graves e Patai nos trazem uma perspectiva em que a narrativa
da retirada da “costela” de Adão seria um mito etiológico para explicar como o ser humano perdeu a
cauda: “La creación de Eva por Dios con la costilla de Adán – mito que establece la supremacía
masculina y oculta la divinidad de Eva – carece de análoga en el mito del Mediterráneo o del Medio
Oriente primitivo. La fábula tal vez se deriva iconotrópicamente de un relieve o una pintura antigua
donde aparecía la diosa desnuda Anat suspendida en el aire observando a su amante Mot dando muer
le a su mellizo Aliyan; Mot (confundido por el mitógrafo con Yahvéh) introducía una daga curva bajo la
quinta costilla de Aliyan y no le quitaba la sexta. Apoya la fábula conocida un oculto retruécano con
tsela, la palabra hebrea que significa ‘costilla’. Eva, aunque destinada a ser la compañera de Adán,
demostró que era una tsela, un “obstáculo” o ‘infortunio’. La creación de Eva con la cola de Adán es un
mito todavía más perjudicial, tal vez sugerido por el nacimiento de un niño con el vestigio de una cola
en vez de un coxis, lo que no es infrecuente” (GRAVES; PATAI, 2018, p. 77). Contudo, segundo Ziony
Zevit em What Really Happened in the Garden of Eden? (2013), o osso de Adão, do qual Eva teria sido
criada, seria o osso do pênis, observado em outros primatas, mas não no homo sapiens – o que ainda
assim seria uma evidência que a narrativa de Adão e Eva seria um mito etiológico, porém, para explicar
a perda do osso na genital masculina humana.
26 Na Teogonia de Hesíodo, Zeus pede a Prometeu que faça um sacrifício. Nesse sacrifício, os deuses

ficariam com os ossos da oferenda, que representaria a eternidade e supremacia dos deuses, e os
homens ficariam com a carne, que representa a decrepitude e finitude humana.
54

carne, apenas uma partícula, enquanto o corpo inteiro, como representação de


totalidade e perfeição, seria o próprio Adão. Dessa forma, a simbologia aponta que
Eva deveria submissão ao seu Homem, sua Mãe, seu Nomeador, Senhor e Marido.
Eva teria sido “fabricada” para e a partir de Adão. A ele foram dados poder e
autoridade divinos transferidos pelo próprio Deus. No entanto, a necessidade da
afirmação do poder de Adão diante de Eva, estabelecendo de antemão seu nome e
seu papel, poderia evidenciar uma precaução para prevenir um mal para si ou, quiçá,
seria fruto de uma frustração experimentada anteriormente. No capítulo “Um mito
chamado mulher: na tragédia, no texto religioso e na vida real”, teremos um
subcapítulo em que aprofundaremos a discussão acerca dessa hipótese, introduzindo
a discussão sobre uma outra “primeira mulher”: a mulher-pesadelo, Lilith.
Não obstante, Eva, apesar de ser “idônea” e desempenhar a função que lhe foi
imposta, foi tida como aquela que trouxe desgraça à humanidade. Essa atribuição a
faz semelhante a outra mulher que também foi criada “perfeita”, no entanto, era um
receptáculo de tribulações. No tópico a seguir veremos como o deus do trovão da
mitologia grega também usou uma mulher para implementar e fortalecer o patriarcado,
culpabilizando-a segundo seus caprichos.

3.3.3 Zeus e seu presente de grego

O sistema olímpico familiar foi então


combinado nos termos de uma conciliação
entre as visões helênica e pré-helênica: uma
família divina com seis deuses e seis deusas,
chefiada pelos cossoberanos Zeus e Hera,
formando um Conselho de Deuses ao estilo
babilônico. Mas, após uma rebelião da
população pré-helênica, descrita na Ilíada
como uma conspiração contra Zeus, Hera
tornou-se subserviente a ele.
Robert Graves

Nos tópicos anteriores, pudemos perceber como a sociedade se transformou


gradativamente: modificou e ressignificou seu sistema de simbologias sacras a fim de
instaurar um crescente pensamento e uma estrutura que em tudo favorecesse o
homem. Por conseguinte, lidamos com a “morte” da Deusa-Mãe e a ascensão de um
deus masculino intempestivo e punitivo. Anteriormente, traçamos a linha da Grande
Deusa até Jeová, o Deus judaico-cristão, que, com sua palavra e autoridade, instituiu
55

mandamentos que desde Adão outorga a supremacia masculina. Agora, vamos traçar
a linha partindo da Deusa até Zeus, o rei do Monte Olimpo.
Se na mitologia cristã temos a Bíblia como a palavra de Jeová para que as
pessoas não se olvidassem ou se desviassem de seus mandamentos patriarcais, na
mitologia grega temos as obras de Hesíodo que, pela possível inspiração das
Musas27, conta à humanidade a história dos deuses, dos titãs e – como era de se
esperar – a origem de tudo que há no universo. E, apesar da literatura mitológica
grega não conter mandamentos e restrições claras e cruas como na Bíblia, os mitos
geralmente traziam uma moral ou lição. A mitologia, portanto, servia como um recurso
pedagógico para a civilização grega.
Gerda Lerner explica (2019) que a Grécia, do oitavo ao quinto séculos a. C.,
era uma civilização com estratificação de classe, com a prática escravagista
consolidada e inteiramente patriarcal (semelhantemente aos seus vizinhos
Mesopotâmia e Israel), e que, a despeito das acaloradas e polêmicas discussões
sobre a vida doméstica das mulheres tidas como respeitáveis, bem como os
ambientes segregados entre homens e mulheres, a sujeição tanto social como legal
em que as mulheres viviam era indubitável. Então, o pensamento e literatura de
Hesíodo acompanham essas mudanças e agem naquele mesmo esquema que já
citamos e que Lerner desvendou para nós:

Sua obra Teogonia define e elabora a ascensão do deus da


tempestade, Zeus, à principal posição no panteão grego dos deuses.
Com certeza, Hesíodo não inventou esse mito de transformação, que
é um tanto semelhante aos mitos mesopotâmicos que discutimos, nos
quais deuses homens tomam o poder das forças do caos relacionadas
às deusas da fertilidade. A Teogonia de Hesíodo reflete uma mudança
nos conceitos de religião e gênero, o que já havia ocorrido na
sociedade grega. Como descrito por Hesíodo, o conflito entre os
deuses manifesta-se em termos de tensão entre homens e mulheres
e entre gerações (LERNER, 2019, p. 251).

Gerda Lerner (2019), como mostra a citação, faz uma análise comparada dos
fenômenos de instituição patriarcal entre as culturas banhadas pelo Mediterrâneo.
Podemos perceber que os gregos deixaram o rastro de como Zeus chegou ao trono –

27Deusas das artes, da história e da literatura. É comum que os poetas gregos da Antiguidade Clássica
evocassem as Musas antes de escreverem seus poemas épicos, pois somente elas conhecem a
história de tudo e podem contar para que saibam. Até mesmo Zeus solicita que as Musas o contem
suas próprias histórias.
56

diferente da mitologia cristã que apagou o quanto pôde a lembrança da Deusa


primordial. Segundo uma das versões do mito da origem, Gaia, a Deusa-Mãe, juntou-
se com seu filho Urano e eles tiveram muitos filhos. Essa união pode ser interpretada
como não consensual, forçosa e violenta, visto que, no poema, Hesíodo diz que Gaia
foi “comprimida” por Urano. E, segundo Jaa Torrano (comentarista e tradutor da obra
de Hesíodo), a fecundação de Urano sobre a Terra “não conhecia regras nem a
reflexão sobre conveniências e consequências” (HESÍODO, 1995, p. 52). Assim,
podemos intuir que, desde tempos remotos, os mitos apresentavam que a dominação
patriarcal, comumente, se estabelece sob o signo da violência, do estupro e da
coerção.
Dentre a vasta prole gerada por Gaia e Urano, está Cronos, o titã do Tempo.
Cronos, incitado por sua mãe – que se indignava e desejava vingança pela opressão
que os filhos sofriam sendo escondidos na escuridão dentro de si –, tomou o poder do
pai, castrando-o com uma foice dada pela mãe. Destaquemos aqui a importante
simbologia da castração: o símbolo maior de poder e domínio para o patriarcado é o
pênis, que foi ceifado pelo filho macho. Gaia detinha a foice, mas não poderia usá-la,
pois ela não teria um falo para legitimar a sua tomada de poder. Dessa forma,
compreendemos que a narrativa coloca Gaia na posição que o patriarcado deseja: ela
se insurge por meio de um macho e não por contra própria, como também sua
insurreição é motivada pelo apelo maternal e não por estar oprimida e subjugada.
Cronos, após destronar o pai, evitou ao máximo que o mesmo ocorresse
consigo, devorando os filhos recém-nascidos. No entanto, Zeus escapa de ser comido
pelo titã, pois sua mãe Reia o troca por pedras envoltas por um pano. Então, enquanto
Cronos, despreocupado, reina sobre o universo, Zeus cresce escondido de seu pai.
Quando atinge certa idade, luta contra Cronos e rouba-lhe o poder tantas vezes já
roubado. Mas, Zeus herda de seu pai o medo de ser traído por sua própria prole.
Assim, usando de artimanhas, logra devorar sua esposa, Métis, para que ela não
tenha filhos e ele não corra nenhum risco. Zeus, dessa maneira, de acordo com Gerda
Lerner, assimila o dom de procriação da esposa. Porém, Métis foi engolida já grávida
e a criança se desenvolve na cabeça de Zeus. Conta a Teogonia que Zeus não
suportava as dores de cabeça a ponto de pedir para que lha partissem. Quando o
crânio do deus dos raios é rompido, nasce Atena, já adulta com armadura e tudo.
Dessarte, podemos entender que as dores representariam as dores do parto e que
Zeus agora tinha uma filha parida de seu crânio. Ela, nascida da cabeça de um deus
57

macho, embora fosse uma deusa fêmea, teria atributos masculinos e passaria a
representar forças de ordem, justiça e sabedoria. E, como observa Gerda Lerner
(2019), Zeus, da mesma forma que Jeová, toma o trono e o dom da procriação sem
precisar de uma figura feminina para o ato criador. Logo, podemos dizer que as obras
de Hesíodo cumpriram um papel equivalente ao Gênesis. Lerner ressalta que as
tenções e as contradições existentes entre as diferentes classes sociais e a tentativa
de ascensão da classe rural pobre para a média contribuíram para a misoginia nos
poemas de Hesíodo no século VII a. C.:

A misoginia de Hesíodo é tanto consagrada quanto mítica. Em sua


comparação da “boa esposa” – casta, trabalhadora, frugal e alegre –
com a “má esposa”, ele determina padrões para a definição de gênero
por homens de sua classe e encontra um bode expiatório conveniente
para os males da sociedade de seu tempo. Em sua versão do mito de
Pandora, consegue o que o mito hebraico conseguiu na história da
Queda – culpa a mulher e sua natureza sexual por trazer a maldade
para o mundo (LERNER, 2019, p. 251, grifos da autora).

As obras Teogonia e Os trabalhos e os dias, de Hesíodo (VIII a. C. - VII a. C.)


são as mais referenciadas dentre a mitologia grega no que concerne à origem das
coisas. Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo narra “O mito das cinco raças”, que seriam
respectivamente: a raça de ouro, a raça de prata, a raça de bronze, a raça dos heróis
e a raça de ferro (Hesíodo lamenta por ter nascido nela). Mas antes de enunciar “O
mito das cinco raças”, Hesíodo narra o mito de Prometeu e Pandora.
Pandora28, como o nome já diz, detentora de todos os dons, teria sido a primeira
mulher criada. E sua criação também servia a um propósito: não necessariamente
para gerar filhos aos homens, e sim como objeto de vingança a estes. Estando Zeus
em desavença com Prometeu que lhe roubou o fogo para dar aos humanos, Zeus
maquinou um mal terrível como vingança:

Filho de Jápeto, mais que todos fértil em planos, alegras-te de ter


roubado o fogo e enganado minha inteligência, o que será uma grande
desgraça para ti próprio e para os homens futuros. Para compensar o
fogo lhes darei um mal, com o qual todos se encantarão em seu
espírito, abraçando amorosamente seu próprio mal (HESIODO, 2012,
p. 65).

28Pandora (Πανδώρα) Παν – Pan: “tudo/ todo(s)”/ δώρα – dora: “dom/dons”. “Pandora, porque todos
os que têm moradas olímpias deram essa dádiva, desgraça para os homens que vivem de pão”
(HESÍODO, 2012, p. 69).
58

Zeus pediu que Hefesto29, o deus inventor, fabricasse uma mulher com feições
respeitáveis e aos deuses olímpicos que lhe enchessem de dons, porém a Hermes
pediu que desse um mau caráter: “então, o mensageiro matador de Argos fez em seu
peito mentiras, palavras sedutoras e um caráter fingido, por vontade de Zeus que
grave troveja [...]” (HESIODO, 2012, p. 67). E assim se fez Pandora. Prometeu, ciente
que Zeus era ardiloso e vingativo, avisou a seu irmão Epimeteu que nada recebesse
do rei dos deuses. Contudo, quando Epimeteu foi presenteado com uma mulher tão
linda quanto uma deusa, nem pensou em recursar.
Pandora, após estar na Terra, removeu a tampa do jarro que continha dentro
todos os males, restando guardada apenas a Antecipação30. Por conseguinte, o
homem passou a conhecer a fome, a doença, o trabalho, a fadiga. A culpa é atribuída
a ela, sem embargo, não se discute que Zeus foi o idealizador dela e que,
possivelmente, por vontade dele, teria sido que ela tivesse removido a tampa, pois no
mito Hesíodo diz que ela teria se apressado a baixar a tampa “[...] por vontade de
Zeus que ajunta nuvens, o detentor da égide” (HESÍODO, 2012, p. 71).
Pandora, sem escolha, teria trazido desventuras aos homens, tal como Eva.
Recordemo-nos mais uma vez que Eva também sofreu com a mesma acusação por
comer do fruto do conhecimento. E, apesar das mulheres satisfazerem aos propósitos
para os quais teriam sido criadas, não encontram gozo ou bom logro com isso. Ao
contrário: carregam uma série de estigmas pelo fato de serem mulheres. Quando bom,
são ligadas a papéis de esposas, mãe, donas de casa; quando mau, são lascivas,
falsas, perigosas, vulgares. Indireta e diretamente, o discurso misógino de que a
mulher precisa estar alinhada com os papéis de mãe, esposa e dona de casa, caso
contrário é uma mulher que nega o plano natural de sua própria existência e, portanto,
é uma aberração, possui uma força brutal que atravessa as Eras. O discurso machista
vira uma cartilha aderida por todos em uma comunidade. Veremos, posterior e mais
detalhadamente, como a misoginia se torna senso comum na boca das pessoas em

29 Nas tradições orais mais antigas do mito, Prometeu é tanto o criador como o nomeador de Pandora,
a primeira mulher desta geração humana.
30 Nessa tradução de Os trabalhos e os dias, o tradutor escolheu traduzir o termo para Antecipação,

porém, comumente se traduz por Esperança. Ele não explica o porquê da escolha, no entanto, pode-
se encontrar equivalência se pensarmos a Esperança como um sentimento fatigoso de anseio, assim
como a Antecipação.
59

Medeia, de Eurípides. Entretanto, inicialmente, conheçamos Jasão, marido de


Medeia, um exemplo de homem medíocre que o patriarcado privilegia.

3.3.4 Jasão: homem, grego e príncipe

Jasão ficou paralisado, estupefato,


perguntando-se como poderia realizar essas
façanhas extraordinárias, mas Eros disparou
uma de suas flechas, cravando-a fundo no
coração de Medeia.
Robert Graves

Jasão31, segundo a tradição grega, foi um príncipe nascido no reino de Iolcos


(Tessália). Filho do rei Esão e da rainha Alcimede (ou Polimede), enfrentou grandes
tribulações desde muito jovem. Quando ainda era uma criança bem pequena, seu tio,
Pélias, resolveu usurpar o trono de Iolcos, que pertencia a seu meio-irmão.
Pélias e Esão tinham a mesma mãe, chamada Tiro; mas seus pais eram
diferentes. O pai de Esão era o rei Creteu – que, ao morrer, deixou a coroa para seu
primogênito – e o pai de Pélias era Posseidon. Assim, por ser filho de um deus, Pélias
acreditava que era mais digno que o meio-irmão, filho de um reles mortal, para ocupar
o trono. À vista disso, o usurpou.
Em uma das versões do mito, Pélias teria matado Esão e se casado,
forçosamente, com a cunhada, Alcimede (mãe de Jasão). Em uma outra, Esão, já
idoso, teria confiado seu reino ao irmão. Todavia, geralmente, as versões concordam
que Jasão é salvo da truculência do tio: “protegido e criado pelo centauro Quíron32,
Jasão aprendeu com ele todas as habilidades necessárias a um guerreiro e recebeu
seus cuidados nos momentos mais difíceis em que o herói deveria consumar suas
façanhas” (ROBLES, 2006, s. p.).
Enquanto Jasão vivia seu exílio aprendendo com o sábio centauro, Pélias se
tornava cada vez mais tirano e paranoico. Hera, observando que o rei, no alto de sua
arrogância, não lhe rendia tributos, decidiu vingar-se. Por isso, começa a trama de
Jasão, Medeia, os argonautas e outros, pelo capricho da deusa, rainha do Olimpo.

31 JASÃO, em grego o ’Ι άσων, provém etimologicamente, consoante Carnoy, da raiz indo-europeia


eis-, is-, que expressa a ideia de curar: com efeito, ι`΄ασις (íasis) é cura. (BRANDÃO, 1987b, p. 175).
32 Segundo Junito Brandão: “foi o grande educador de heróis, entre outros, de Jasão, Peleu, Aquiles e

Asclépio” (BRANDÃO, 1987a, p. 90).


60

Junto às Moiras, Hera traça os destinos dos gregos e colcos. Pélias, perturbado
por pesadelos, decide consultar um oráculo que lhe revela notícias ainda mais
horrendas. O oráculo o adverte que ele será deposto por um guerreiro calçado
somente em um dos pés. Contudo, não diz quem seria o tal guerreiro nem quando
isso ocorreria.
Os anos passam e quando Jasão está em uma caçada com seus amigos,
decidem beber a água de um rio. Lá, encontram uma idosa de olhos verdes que
precisa atravessá-lo. Jasão prontamente se oferece para carregar a doce senhora
durante o percurso. Entretanto, quando Jasão e a idosa estão ainda no meio da
travessia, o rio começa a se agitar e um monstro surge das profundezas. O herói luta
até quase a exaustão, então a velha mulher sugere que o jovem a solte e salve a si
mesmo. Jasão recusa a oferta e logo o rio se acalma. Enfim, eles conseguem terminar
a travessia e o herói percebe que lhe falta um calçado. A velha, que na verdade é
Hera, revela-se aos rapazes e aconselha Jasão a retornar ao reino de seu pai e a
seguir sua jornada, descalço de um pé.
Assim, o jovem inicia sua aventura sem ter a mínima noção que faz parte de
um enredo dirigido pelos deuses. Vai até Iolcos e, ao confrontar o tio, recebe uma
proposta: Pélias entregará o trono ao sobrinho se este provar que tem valor para ser
rei do local. A prova requerida era o velocino de ouro que estava guardado por um
dragão insone, na longínqua terra dominada pelo malévolo rei Eetes. Obviamente,
Jasão recebeu a missão de seu tio não para provar nada, mas para morrer durante a
empreitada. O que Pélias não sabia era que a sua derrocada já estava traçada e que
pereceria vítima da própria prole.
Jasão, com ajuda de Atena, consegue uma nau e acompanhantes para seguir
com ele na jornada até o velocino. Depois de inúmeras provas e aventuras, os
argonautas chegam à terra de Medeia. Agora, o trabalho da conquista do tosão teria
de ser exclusivo de Jasão. No entanto, as tarefas que precisaria realizar em um só
dia, antes que o sol se pusesse, eram impossíveis ao imaturo herói, se não contasse
com nenhum auxílio:

[...] pôr o jugo em dois touros bravios, presentes de Hefesto a Eetes,


touros de pés e cornos de bronze, que lançavam chamas pelas narinas
e atrelá-los a uma charrua de diamante; lavrar com eles uma vasta
área e nela semear os dentes do dragão morto por Cadmo na Beócia,
presentes de Atená ao rei; matar os gigantes que nasceriam desses
61

dentes; eliminar o dragão que montava guarda ao Velocino, no bosque


sagrado do deus Ares (BRANDÃO, 1987b, p. 183).

Ainda que as tarefas fossem impossíveis ao herói e Jasão não tivesse


consciência disso, a vitória era certa. Medeia, já apaixonada, muito provavelmente
pela influência dos deuses, acudiu ao grego com suas magias e artimanhas: “sob
juramento solene de casamento e de levá-la para a Grécia, [...] Jasão recebeu de
Medeia todos os recursos necessários para uma vitória completa” (BRANDÃO, 1987b,
p. 183). Após a conquista do velo, o rei Eetes recusa-se a cumprir a promessa e
ameaça incendiar a Argo. Sem demora, Jasão, Medeia e os argonautas fogem da
Cólquida em posse do velocino e do filho mais jovem de Eetes, Apsirto, como refém.
Uma versão diz que Medeia mata, esquarteja e se desfaz ela mesma das partes do
corpo do irmão. Porém

segundo uma outra versão, Eetes enviara Apsirto com um exército em


perseguição dos fugitivos, mas tendo-se este adiantado muito,
deixando o exército para trás, Jasão o teria assassinado,
traiçoeiramente, com auxílio de Medeia, no templo de Ártemis, na
embocadura do Íster, isto é, do Danúbio inferior (BRANDÃO, 1987b,
p. 184).

Depois de escaparem e Medeia assegurar por meio de seus poderes o retorno


de todos, os argonautas se dispersaram e, então, Jasão e Medeia chegaram a Iolcos.
Pélias, que não esperava o retorno do sobrinho, recusou a devolução do trono, o que
fez com que Medeia, mais uma vez, agisse em defesa dos interesses de seu amado.
A bruxa da Cólquida enganou as filhas do rei Pélias, e este acabou morto, o que não
fez Jasão digno da coroa. O povo, enfurecido pela barbárie, expulsou-os e eles se
dirigiram a Corinto, onde viveram em exílio até que a tragédia de suas vidas, enfim,
se concretizasse.
Embora Jasão seja visto e nomeado como herói, em nossa concepção, ele não
seria um herói dentro do conceito grego. Um herói seria aquele que se assemelha aos
deuses e, por isso, recebe o seu favor: “[...] o que se espera dos heróis é o mesmo
que se espera dos deuses” (AZEVEDO, 2001, p. 328). Todavia, atenção: algumas
atitudes só seriam justificáveis se cometidas pelos deuses, já que eles podem tudo.
Ao homem convém a virtude e a honra, sem mais. O herói precisa executar grandes
feitos, ser bravo, glorioso, honrado e brutal, mas sua brutalidade não pode ser
desmedida. Contudo, Jasão não é este herói. Antes de tudo, ele foi um brinquedo,
62

uma peça no tabuleiro de Hera, usado para ferir o rei Pélias. E foi também um parasita
na expedição argonáutica, fazendo insurgir desavenças entre os guerreiros:

As posturas de muitos dos heróis da Argonáutica em relação a Jasão


e suas ações – ou a sua falta de ação – servirão para delinear o
personagem. Jasão muitas vezes é duramente criticado por seus
companheiros, dos quais se destaca a figura de Idas, que desafia a
autoridade de Jasão como líder da expedição. Sarcástico e cruel, nas
palavras de Beye (1982, 85-86), Idas provoca Jasão já no primeiro
canto, durante o banquete em honra a Apolo, realizado após os
preparativos para a partida. Ao interpelar Jasão, que naquele
momento estava cabisbaixo e reflexivo como se estivesse abatido (I,
460-461), Idas, bêbado e intempestivo, vocifera contra ele por achar
que a posição meditativa significava que o jovem estava tomado pelo
medo (DINIZ, 2010, p. 53).

Na ida até a Cólquida, Jasão se apoiou nos argonautas para conseguir chegar
ao destino; chegando lá, só pôde conquistar as provas impostas por Eetes graças a
Medeia – algo que também foi reprovado pelos companheiros navegantes. Um herói
não pode apoiar-se em uma mulher para provar seu valor como guerreiro. Ainda que
essa posição seja obviamente machista – já que inferioriza o poder da mulher e
valoriza o poder do homem –, e seria prudente da parte de Jasão, como um homem
grego, corroborar com esse discurso da superioridade masculina, ele escolhe outra
tática. Quando lhe convém, ele esquece do machismo explícito e de sua “posição
superior” para conseguir o que quer; e isto, precisamente, é que faz de Jasão um
herdeiro do patriarcado de Zeus, assim como Adão é herdeiro de Jeová. E, mesmo
que Jasão não tenha ligação direta com Zeus dentro da narrativa, a covardia, a falta
de lealdade, a avidez por conquistar o que se deseja sem nenhum escrúpulo e o
privilégio – mesmo que não se mereça – apenas por ser macho é uma herança
patriarcal outorgada pelo direito natural masculino de dominar todas as coisas, que se
encontra representado na figura do rei olimpiano. Atentemos que, segundo as
narrativas, Zeus seria perfeito e mesmo suas atitudes atrozes seriam justificáveis.
Porém, a atrocidade do homem não é justificada. E, para todos os efeitos, a perfídia
de Jasão ao substituir Medeia é injustificável. Percebamos que Zeus trai a sua esposa
com o mundo inteirinho, mas nunca a substitui. Então, Jasão goza dos privilégios
masculinos outorgados pela figura de Zeus, sem embargo, extrapola de seus direitos
e não possui meios honrosos para justificar suas atitudes.
63

Segundo Brandão (1987a), para a tradição grega, assim como nas religiões
indo-europeias, o touro simboliza a violência, a virilidade, a fecundidade. Dessa forma,
o enfrentamento de Jasão contra os touros não seria só uma prova fatal, seria uma
prova de virilidade, de confirmação da sua índole verdadeiramente heroica e do
merecimento da admiração dos deuses. Uma vez que o touro é um símbolo da mais
alta estirpe sagrada que representou muitos deuses que arrogavam poder – como
Jeová (deus hebraico), Zeus e Urano (deuses gregos), Mitras (deus persa), Indra
(deus indiano) etc. –, o seu defrontamento significaria que a animalidade divina do
touro teria sido sobrepujada por um homem que alcançara o controle de suas próprias
paixões e forças instintivas. Portanto, o herói que derrota o touro, animal hierático,
aproxima-se dos deuses viris, poderosos, opulentos, vitoriosos, firmes, contudo,
nunca descontrolados:

Consoante a interpretação ético-biológica de Paul Diel, os touros


representam com sua força bruta o domínio perverso. Seu sopro é a
chama devastadora. O atributo de bronze acrescentado ao “símbolo
pé”, que é uma imagem frequente no mito grego, caracteriza um
estado da alma. Aplicados aos touros, os pés de bronze configuram o
traço marcante da tendência dominadora, a ferocidade e o
endurecimento do espírito. Hefesto forjou dois touros de pés de
bronze, ferozes e violentos, aparentemente indomáveis, que lançavam
chamas pelas narinas. Uma das provas que o rei Eetes impôs a Jasão,
para que ele obtivesse o velocino de ouro, era colocar o jugo nesses
animais. Tal condição significava que o herói teria primeiro que
dominar o ímpeto de suas próprias paixões, antes de tentar a
conquista desse símbolo da perfeição espiritual, isto é, Jasão deveria
primeiro sublimar seus desejos instintivos e desordenados
(BRANDÃO, 1987a, p. 38, grifo do autor).

No entanto, ainda que tenha completado as provas, Jasão falhou. O herói


venceu os touros, os gigantes e o dragão por causa de Medeia, então seus feitos não
são seus, e sim da colquídia. E, além da notável falta de força e heroísmo, Jasão seria
desonroso aos deuses por quebrar juramentos. Ao conseguir o auxílio da princesa
bruxa, Jasão jurou casar-se com ela, tendo por testemunha os deuses, entretanto, só
cumpriu o prometido por ação do medo que sentia do rei Eetes:

O casamento de Jasão ainda não se havia realizado porque, conforme


seria comprovado mais tarde, ele não tinha um verdadeiro interesse
nesta princesa bárbara e, sem dúvida, já vinha pensando em um meio
de descumprir sua promessa em qualquer das escalas do trajeto,
quando já não precisasse de seus feitiços e se sentisse a salvo. Não
64

obstante, quis o destino modificar seus planos, uma vez que Alcínoo,
que já havia sido avisado pelos mensageiros de Eetes, prontificou-se
a devolver Medeia caso esta ainda fosse virgem. Intimidado perante a
possível vingança que recairia sobre ele, Jasão pediu o auxílio de
Areteia, a esposa do rei, e ela providenciou para que os esponsais do
herói e de Medeia fossem celebrados secretamente em uma caverna
chamada Crátis (ROBLES, 2006, s. p.).

Ou seja, ele se casou por causa de sua covardia e não porque prometeu. E,
depois de todas essas empreitadas à sombra de outrem, a ignávia de Jasão só se
reafirmou. Contra o tio, deixou que Medeia resolvesse o problema e não impôs sua
dominância a Iolcos como se esperaria de um príncipe legítimo. Chegando a Corinto,
firma compromisso com a princesa local, na surdina, pelas costas da mulher-
pesadelo. Em seguida, não se incomoda pela eminência do exílio dos próprios filhos,
não obstante, quando já não tem mais logradouro real (por Medeia matar a noiva e o
rei) nem a prole que carregaria sua descendência, chora como um menino indefeso.
Dessarte, Jasão não seria um herói, seria apenas um homem que esperava ter tudo
somente por ser homem, o que, na visão grega que Aristóteles difundiu, seria factível
(ainda que vergonhoso, considerando uma posição de herói mítico):

A visão de mundo de Aristóteles é tanto hierárquica quanto


dicotomizada. A alma comanda o corpo; o pensamento racional
comanda o emocional; humanos comandam os animais; homens
comandam mulheres; senhores comandam escravos; e gregos
comandam bárbaros. Tudo o que o filósofo precisa para justificar as
relações de classes existentes na sociedade é mostrar como cada um
dos grupos subordinados é, “por natureza”, designado a ocupar sua
posição adequada na hierarquia (LERNER, 2019, p. 255-256, grifo da
autora).

Acrescido o fato de ser príncipe e grego, ele pensou que o mundo seria seu
muito facilmente. Acabou que Jasão se mostrou não um herói nem um anti-herói, mas
sim um pseudo-herói. Porém, nem por isso menos patriarcalista. Jasão usou o quanto
pôde de todos os privilégios que só um homem, um príncipe e um grego teriam em
uma sociedade essencialmente patriarcal. Usou e descartou quando estes já não
serviam mais aos seus propósitos e planos. Logo, podemos constatar, por meio de
Jasão, quanto a estrutura da sociedade patriarcal sustenta os privilégios masculinos,
elevando a status de herói um homem medíocre e dependente, que, no final, ainda se
disse vítima de Medeia.
65

4 UM MITO CHAMADO MULHER: NA TRAGÉDIA, NO TEXTO RELIGIOSO E NA


VIDA REAL

Que há de ser a mulher senão uma adversária


da amizade, um castigo inevitável, um mal
necessário, uma tentação natural, uma
calamidade desejável, um perigo doméstico,
um deleite nocivo, um mal da natureza pintado
de lindas cores.
Malleus Maleficarum

Como vimos anteriormente, Wittig esclarece que o mundo tal como


conhecemos representa-se de forma dual/binária e que essa dualidade reflete forças
ou conceitos opostos: senhor versus escravo, homem versus mulher, em que uma das
forças é o dominante e a outra é o dominado. Na dualidade masculino x feminino,
temos o embate milenar dos gêneros, em que o homem é a imagem e semelhança de
Deus, o virtuoso, inclinado para as coisas boas e santas; a mulher, por outro lado,
seria maldosa, maliciosa, fonte de dor e pecado. Segundo o filósofo e sociólogo
francês Pierre Bourdieu (1930-2002), em sua obra A Dominação Masculina (2012), as
oposições entre masculino e feminino colocam a mulher como a antagonista, o outro
lado, o lado negativo da força. E, como o homem é bom, dele é a responsabilidade de
manter sob controle a mulher. Então, por meio da força bruta, entre outros meios de
dominação, como a violência simbólica de que fala Bourdieu, fez-se outorgar sua
pseudossuperioridade.
E, de acordo com o historiador francês Jean Delumeau (1923-2020) em seu
livro A História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada (2001), essa
dicotomia foi levada às mais sérias e duras consequências, pois, na Idade Média, a
mulher é vista como algo tão perigoso que é considerada uma “Agente de Satã”
(inclusive, esse é o título do capítulo desse livro que trata da fobia em relação à
mulher, como também de outras minorias igualmente demonizadas). Como já
sabemos, ela é fonte de todo o mal em muitas religiões, mitos e crenças populares.
Pandora, com a sua urna ignóbil, trouxe à humanidade toda dor e sofrimento. Eva, por
sua vez, logrou a mesma façanha ao provar a maçã e oferecê-la a Adão (DELUMEAU,
2001), introduzindo, assim, o sofrimento no mundo, tornando-se a culpada por
condenar o homem e sua descendência a chorar, suar pelo sofrimento do labor,
sangrar e morrer. A mulher é vista como uma criatura terrível que horripila o homem:
66

“A mulher lhe é ‘fatal’. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade,
de encontrar o caminho de sua salvação” (DELUMEAU, 2001, p. 313, grifo do autor).
Para neutralizá-la, seria necessário que o homem subjugasse a mulher antes que ela
trouxesse mais desventuras ao mundo. Ainda segundo Delumeau, a mulher causa
inquietude ao homem por representar um algoz que o domina por seus impulsos e
desejos sexuais. Ele assinala que, na literatura, por meio das narrativas de Ulisses
e Quetzalcoatl, o homem se perde em sua jornada caso caia na armadilha sexual
feminina. Dessarte, para não ser capturado pelo visgo feminil, o homem recorre à
amizade:

“como se [a amizade] fosse uma invenção dos homens para dominar


seu velho medo da mulher”. A ligação amistosa aparece então como
um meio de “neutralizar a magia feminina, efeito do poder da mulher
sobre a vida e de sua conivência com a natureza”. A partir daí,
“sujeitar a mulher é dominar o caráter perigoso que se atribui à sua
impureza fundamental e à sua força misteriosa” (DELUMEAU33,
2001, p. 314).

A ideia de que a mulher é perigosa, e que mesmo quando é boa é porque ela
trama algo, consolidou-se ao longo do tempo. Consequentemente o homem, mais do
que a qualquer coisa, teme a mulher: “como não temer um ser que nunca é tão
perigoso como quando sorri?” (DELUMEAU, 2001, p. 314). Embora o homem seja
mais forte fisicamente e ocupe espaços onde reside o poder, a mulher continua sendo
para ele uma constante ameaça, pois, segundo Delumeau, existem inúmeras e
complexas raízes do medo da mulher entranhadas no homem, como sua
obscuridade, seus mistérios, suas astúcias, suas regras, sua maternidade:

Para o homem a maternidade permanecerá provavelmente sempre


um mistério profundo e Karen Horney sugeriu com verossimilhança
que o medo que a mulher inspira ao outro sexo prende-se
especialmente a esse mistério, fonte de tantos tabus, de terrores e
de ritos, que a religa, muito mais estreitamente que seu companheiro,
à grande obra da natureza e faz dela “o santuário do estranho”
(DELUMEAU, 2001, p. 311, grifo do autor).

Sendo “inocente” e quase “indefeso” contra tantos segredos e ardis, o homem


resguarda o medo contra o sexo oposto, e esse temor tornou-se fobia, resultando em

33 Nesse trecho, Delumeau faz referência a Marie-Odile Métral. Cf. La mariage. Les hésitations de
l’Occident. Paris, 1977, p. 125.
67

várias formas de dominação e violência misógina, corroborando para a estrutura social


patriarcal e machista que impera até os dias de hoje. Uma prova dessa fobia é a caça
às bruxas na Idade Média que tinha por guia um livro misógino, o Malleus
Maleficarum, publicado pela primeira vez em 1487, que declara que a bruxaria,
sendo a aliança com o diabo, a perfídia de feitiçaria, se encontra mais
costumeiramente na mulher (DELUMEAU, 2001). Conforme Delumeau, o Malleus
Maleficarum reúne numerosas referências literárias, religiosas e até mesmo pagãs
para justificar seu horror ao feminino. Delumeau destaca algumas falas de Catão de
Utica, político da época de Júlio César, da longínqua Roma, que os inquisidores
glosaram no Malleus Maleficarum para insultar e ridicularizar o ser do gênero
feminino:

“Se não houvesse a malícia das mulheres, mesmo não dizendo nada
das feiticeiras, o mundo estaria liberto de incontáveis perigos”. A
mulher é uma “quimera [...]. Seu aspecto é belo; seu contato fétido,
sua companhia mortal”. É “mais amarga que a morte, isto é, que o
diabo cujo nome é a morte segundo o Apocalipse” (DELUMEAU,
2001, p. 327, grifos do autor).

Fundamentada nesses discursos perversos, a tamanha misoginia orquestrada


pela Igreja Católica Apostólica Romana irrompeu em um pavor de furor
extremamente agressivo e violento. A fé teria de ser defendida com unhas e dentes.
Satanás estaria à espreita do bom homem cristão, pronto para lhe devorar a alma.
Posto isso, já que as mulheres seriam os receptáculos do maligno, seria necessário
expurgá-las com torturas e fogo para conseguir contê-las. O resultado foi uma
matança sistemática de mulheres que marcou a história de tal maneira que a Idade
Média tem o epíteto de período de “caça às bruxas”:

[...] em razão do genocídio cometido contra milhares de mulheres,


que foram torturadas e queimadas vivas, na Europa e nas Américas,
em nome da manutenção do poder do homem. A mulher que fosse
acusada de possuir conhecimentos e poderes desconhecidos e não
dominados pelo homem era apontada como feiticeira ou bruxa
(BARRETO, 2007, p. 17).

Por conseguinte, toda e qualquer mulher poderia ser considerada bruxa.


Bastaria entender de ervas e chás ou fazer partos. Sendo sempre uma ameaça, a
mulher, dentre todas as criaturas, seria naturalmente a mais perigosa. Imagine,
68

então, aquela que de fato teria poderes ocultos e não pudesse ser controlada?
Diante desse questionamento, trataremos aqui Lilith e Medeia como arquétipos de
mulheres como essas: as perigosas, as bruxas, as indomáveis. Elas, que foram tão
demonizadas como temidas e endeusadas. Buscaremos fazer uma ligação dos mitos
de Lilith e Medeia ao discurso dos homens sobre as mulheres terríveis, as agentes
de Satã, as bruxas.

4.1 O ÓDIO E O MEDO À MULHER NO OCIDENTE

[...] a mulher é animal imperfeito, sempre


decepciona e mente.
Malleus Maleficarum

Segundo Delumeau (2001), alguns grupos sociais foram brutalmente


marginalizados durante a Idade Média. Os principais grupos que eram malvistos e
causavam grande tensão social foram nomeados de “Agentes de Satã”. O autor não
defende a premissa que, de fato, esses grupos tinham parte com Satã, entretanto os
nomeia desse jeito em virtude do discurso que se fazia em torno deles: por
pertencerem às minorias que, de alguma forma, não estavam totalmente inseridas nos
preceitos e normas cristãs vigentes na época. Logo, estariam, através de suas
práticas e/ou suas essências, a serviço de Satã. Segundo Delumeau, os agentes de
Satã eram: 1) os idólatras e muçulmanos; 2) o judeu; e 3) a mulher. E é sobre esse
último agente que aqui vamos nos debruçar.
Sob a guerra dos sexos, homem e mulher vivem em constante embate. O
homem busca a afirmação da sua superioridade e a mulher a negativa desta. O
homem se reafirma através da sua força física e a mulher por sua inteligência (tida
astúcia). Como vimos, a mulher, desde a Antiguidade, estava mais ligada à natureza
e assim descobria e compartilhava segredos com ela: “[...] os primeiros humanos a
descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compará-los com
o ciclo do próprio corpo. Mulheres também devem ter sido as primeiras plantadoras e
as primeiras ceramistas [...]” (MURARO, 1997, p. 7). Sapientes, desprovidas de
grande força física e estando reclusas ao âmbito doméstico, desenvolveram poderes
e saberes que o homem não compreendia: “porque mais próxima da natureza e mais
bem informada de seus segredos, a mulher sempre foi creditada, nas civilizações
tradicionais, do poder não só de profetizar, mas também de curar ou de prejudicar
69

por meio de misteriosas receitas” (DELUMEAU, 2001, p. 311). Contudo, não foi
somente por estar mais próxima à natureza que a mulher desenvolveu certas
habilidades ocultas e/ou silenciosas. De acordo com Bourdieu (2012), pela própria
condição de ser um indivíduo dominado, a mulher foi estimulada, ou melhor, obrigada
a ser mais observadora, atenta, vigilante. Afinal, vulnerável a castigos cruéis ou ao
rechaço, a mulher não poderia se dar ao luxo de não estar alerta a todo tempo. Então,
o que podemos chamar de “intuição feminina”, por exemplo, é, quando muito, um
artifício para a sobrevivência. Desse modo, segundo Wayne N. Thompson, as
mulheres tiveram de se tornar “[...] mais sensíveis aos sinais não verbais (sobretudo
à inflexão) que os homens, as mulheres sabem identificar melhor uma emoção não
representada verbalmente e decifrar o que está implícito em um diálogo [...]”
(THOMPSON apud BOURDIEU, 2012, p. 42).
Com toda essa subjetividade, a mulher é vista pelo homem como criatura
instintiva, emocional e irracional. Para se afastar de aspectos femininos, talvez não só
por repúdio, mas também por inveja e medo, o homem se autocredita e se vangloria
como ser mais racional e controlado em contraposição a ela (DELUMEAU, 2001). E,
mesmo se colocando em um patamar de superioridade, é inegável que, para além da
repulsa, também existe o fascínio para com o sexo oposto. Igualmente atraído e
repelido, o homem vivencia um conflito em relação a sua antagonista. Delumeau
(2001) ressalta que na Antiguidade o tema da mulher como ser de aparência graciosa
e sedutora, porém podre por dentro, era comum. A mulher é para o homem um
catalizador de forças opostas que o desestabiliza:

Essa ambiguidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a


morte foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa
pelo culto das deusas-mães. A terra mãe é o ventre nutridor, mas
também o reino dos mortos sob o solo ou na água profunda. É cálice
de vida e de morte. É como essas urnas cretenses que continham a
água, o vinho e o cereal e também as cinzas dos defuntos
(DELUMEAU, 2001, p. 312).

Tal qual Delumeau, Lerner (2019) acredita que a mulher ser vista como fonte
de vida e de morte seria uma reminiscência dos cultos à Grande Deusa. Seio que
nutre e ventre que sangra. A mulher é o mais doce e irresistível convite à desventura.
Portanto, o homem aprende que deve afastá-la e não se entregar aos seus encantos.
Ela é uma armadilha, como as sereias na Odisseia que seduziam os marinheiros para
70

a morte. O homem a deseja, mas sabe que não pode querê-la. Nessa agonizante
tarefa de rechaçar a criatura mais cobiçável, o homem se enche de frustações e as
projeta na figura feminina, culpando-a por todas as coisas ruins, desde a suposta
expulsão do Éden: “o homem procurou um responsável para o sofrimento, para o
malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher”
(DELUMEAU, 2001, p. 314). E, para a culpabilização, controle e dominação da
mulher, o homem busca argumentos e justificativas que seriam indiscutíveis, como
a suposta palavra de Deus:

Que as mulheres sejam submissas a seu marido como ao Senhor;


com efeito, o marido é chefe [= cabeça] de sua mulher, como Cristo
é chefe da Igreja, ele, o Salvador do corpo. Ora, a Igreja se submete
a Cristo; as mulheres devem, portanto, e da mesma maneira,
submeter-se, em tudo, a seus maridos (Efésios 5:22-24 apud
DELUMEAU, 2001, p. 315).

A imagem da mulher subjugada na referida citação está disposta na Bíblia,


conforme vimos anteriormente. Segundo Eliana Branco Malanga em sua obra A
Bíblia Hebraica como obra aberta – uma proposta interdisciplinar para a semiologia
bíblica: “[...] a Bíblia é o livro que mais foi publicado e lido no Ocidente, tanto antes
como depois da invenção da imprensa, configurando-se como um fenômeno de
comunicação em massa” (MALANGA, 2005, p. 18). Como literatura mais publicada
e lida no Ocidente, não se admira que a Bíblia tenha sido utilizada como suporte
básico para a misoginia. Começando por Eva, aquela que primeiro pecou:

Tertuliano, dirigindo-se à mulher, diz-lhe: “[...] Tu deverias usar


sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitência,
a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero
humano [...]. Mulher, tu és a porta do diabo. Foste tu que tocastes a
árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violastes a lei divina”
(DELUMEAU, 2001, p. 315-316, grifos do autor).

Delumeau esclarece que não foi o cristianismo que inventou o medo da


mulher, porém, é fato que, desde a aurora da sociedade, ele reiterou e acalorou esse
componente até as portas do século XX (DELUMEAU, 2001). A Bíblia, “a palavra de
Deus”, foi criada para a perfeita instauração do patriarcado, pois, como já vimos, ela
foi escrita por mãos masculinas para assegurar o poderio e a supremacia do macho
humano. Logo, era/é a ferramenta ideal para a mulher ser subjugada, humilhada,
71

reduzida e massacrada pelo homem. Diante disso, com o respaldo desse livro, se
reintegrava o antigo ideário da mulher como criatura podre, comparando-a a coisas
imundas e repulsivas. Para Delumeau (2001), foi precisamente o medo da mulher e
de seus atributos sedutores que conduziram os escritos monásticos da Idade Média,
direcionando-os à compreensão de que a essência da mulher é pura imundice. De
tempos em tempos, era necessário reiterar os perigos da mais deliciosa aliada do
Diabo. Um exemplo que podemos ostentar é o escrito do abade de Cluny chamado
Odon (século X):

A beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que


está sob a pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago.
Quando nem sequer podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe
ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de
excremento? (DELUMEAU34, 2001, p. 318).

No título A Diabolização da Mulher de sua obra, Jean Delumeau explica que,


na época de Petrarca (poeta e intelectual italiano), o medo da mulher aumenta, pelo
menos, em uma fração da elite ocidental (DELUMEAU, 2001). O autor destaca que
pela obsessão da busca da virtude e pelo sentimento de estarem sendo acuados
pelos infinitos planos de Satã para capturar suas almas, os cristãos fervorosos
resolveram utilizar todas as suas forças para acabar com as investidas diabólicas.
Nesse estágio, ser espelho e exemplo de Cristo era imprescindível. Com isso, a
libido, vigorosamente reprimida, converte-se em agressividade que recebeu voz por
meio das pregações, especialmente durante o século XII. De acordo com Delumeau
(2001), inúmeras dessas pregações se perderam, contudo, as que chegaram até nós
nos dão indícios do que tratava a maioria desses sermões, e aí encontramos mais
evidências da ação misógina da Igreja. Delumeau (2001) mostra que uma parte dos
discursos misóginos estavam engendrados na seguinte base teológica: “[...] a mulher
é um ser predestinado ao mal. Assim, jamais tomaremos precauções suficientes
contra ela. Se não a ocupamos com sãs tarefas em que não pensará ela?”
(DELUMEAU, 2001, p. 320). Dessa forma, a escravidão feminina, instituída desde
tempos remotos, como pudemos ver sob a ótica de Gerda Lerner anteriormente,
estava mais uma vez afirmada e assegurada. Para controlar essa bestial criatura era

34
A referência usada por Delumeau para a fala de Odon, abade de Cluny, foi: Y. Lefevre em Histoire
mondiale de la femme, II, Paris, 1966, p. 83.
72

necessário enchê-la de tarefas. A administração e os afazeres domésticos, a criação


dos filhos, bem como as obrigações matrimoniais não eram tão somente atribuições,
mas também manobras de controle e aplicação forçada de penitência. O abuso
contra a mulher não era só consentido, como também recomentado, encorajado e
prova de subserviência a Deus. Para Friedrich Engels em seu livro A Origem da
Família, da Propriedade Privada e do Estado (1986), a mulher foi a primeira criada,
corroborando com a fala de Gerda Lerner sobre a mulher ter sido a primeira mão de
obra escravizada da civilização.
Os sermões eram variadíssimos para tripudiar e escarnecer a figura da
mulher. Nesses sermões, as mulheres eram chamadas de chamariz do Diabo,
comparadas a animais, suas belezas eram malditas, suas roupas e acessórios eram
recriminados, suas palavras eram desacreditadas. Para Delumeau (2001), essas
declarações não só insurgiam mentiras contra as mulheres, como isentavam o
homem. Dessa forma, o medo delirante dos clérigos reprimidos passou a ser
discurso comum na boca de todo e qualquer leigo da Igreja, tal como o discurso
misógino de Hesíodo e Aristóteles que veremos na obra de Eurípides. Sexo e pecado
estavam confundidos num mesmo sentido, e de mesma maneira, Eva e o Demônio.
Sendo Satã, a mulher e o mal uma espécie de trindade maligna e profana a
ser combatida, os cristãos não ficaram somente na denúncia: foram muito além do
discurso. Houve uma dizimação, um extermínio de mulheres em consequência de
tanto ódio e fobia disseminados. De acordo com Muraro (1997), as estatísticas são
horripilantes. A autora cita o livro The Feminist Press (1973), de Deirdre English e
Barbara Ehrenreich, que traz informações sobre a queima e a morte de mulheres no
decorrer de quatro séculos:

A extensão da caça às bruxas é espantosa. No fim do século XV e


no começo do século XVI, houve milhares e milhares de execuções
– usualmente eram queimadas vivas na fogueira – na Alemanha, na
Itália e em outros países. A partir de meados do século XVI, o terror
se espalhou por toda a Europa, começando pela França e pela
Inglaterra. Um escritor estimou o número de execuções em
seiscentas por ano para certas cidades, uma média de duas por dia,
“exceto aos domingos”. Novecentas bruxas foram executadas num
único ano na área de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como.
Em Toulouse, quatrocentas foram assassinadas num único dia; no
arcebispado de Trier, em 1585, duas aldeias foram deixadas apenas
com duas mulheres moradoras cada uma. Muitos escritores
estimaram que o número total de mulheres executadas subia à casa
dos milhões, e as mulheres constituíam 85% de todos os bruxos e
73

bruxas que foram executados. Outros cálculos levantados por


Marilyn French, em seu já citado livro, mostram que o número mínimo
de mulheres queimadas vivas é de cem mil (MURARO, 1997, p. 13,
grifo da autora).

Mulheres queimadas vivas, torturadas até confessarem atos indizíveis, mortas


aos montes. Diante de tanta crueldade, questiona-se: quem seria o real agente de
Satã? Não seria o Diabo a própria fobia? A despeito dessas provocações, já que o
Demônio pode ser considerado um ser tão mitológico quanto o Leão de Nemeia 35, o
fato é que a misoginia, esta sim, é factual e palpável. Como vimos, esse ódio e a
fobia à mulher não é “prerrogativa” exclusiva do cristianismo, nem do período da
Idade Média. A misoginia encontra-se entranhada na nossa sociedade em diversos
ambientes desde antes do surgimento do Estado Arcaico; ela é a base da estrutura
de nossa civilização.
A seguir, veremos como Lilith e Medeia revolucionaram – ou pelo menos
tumultuaram – a ordem patriarcal e consequentemente, despertaram absolutos
pavor e ódio na sociedade e como o poder dessas mulheres foi interpretado como
algo maligno a ser temido e combatido.

4.2 LILITH E MEDEIA: A RELAÇÃO ENTRE A MULHER, O PODER E O MAL

O vocábulo mulher é usado para indicar a


lascívia da carne.
Malleus Maleficarum

Conforme as discussões apresentadas, vemos que a mulher por si só é um


pesadelo. Ela tem poderes, mistérios e segredos que amedrontam o homem. Então
este, sem remédio para seus medos, reage agressivamente tentando reprimi-la e
controlá-la. No entanto, existem aquelas que resistem ao poder masculino de
dominação, por vezes, tomando atitudes tão cruéis quanto as que sofrem. A
resistência, a rebeldia e a insubordinação que algumas mulheres adotam são
inaceitáveis para uma sociedade que se estrutura a partir do domínio supremo do
homem. Elas ferem a ordem, perturbam o social, golpeiam e profanam a moral. Por
isso, são demonizadas. É preciso tolhê-las. Mais do que isso, é preciso evitar que
elas surjam. A preocupação consciente e/ou inconsciente de impedir que essas

35 Monstro mitológico, morto por Hércules em um dos seus 12 trabalhos.


74

mulheres aflorem na sociedade resulta em histórias populares, lendas e mitos. Esse


medo que se converte em mito viaja pelas Eras, tornando-se um arquétipo que
ganha forma e nome de tempos em tempos. Elas são tudo de mais horrendo:
lascivas, ferozes, sanguinárias, infanticidas. Conforme nos fala Delumeau (2001), as
injúrias propagadas contra as mulheres julgadas feiticeiras residem no inconsciente
coletivo “sem idade”, ou seja, não é possível dizer quando começou: “por trás das
acusações feitas nos séculos XV-XVII contra tantas feiticeiras que teriam matado
crianças para oferecê-las a Satã encontrava-se, no inconsciente, esse temor sem
idade do demônio fêmea assassino dos recém-nascidos” (DELUMEAU, 2001, p.
312).
Lilith e Medeia aterrorizam o ideário patriarcal com as forças desses
aterradores pesadelos: mulher demônio, mulher assassina de crianças, juntamente
com os estereótipos de mulher voluptuosa e que pratica o mal através de seu poder.
Iniciando por Lilith, tida como “a primeira feminista”36, pois desafiou a ordem
pré-estabelecida, reivindicando paridade junto a Adão e instaurando a primeira
transgressão ao ousar imaginar-se igual ao homem. E, por causa dessa ousadia,
eles discutiam constantemente: “ela disse: ‘eu não vou me deitar abaixo’. E ele disse:
‘não vou me deitar abaixo de você, mas apenas no topo. Pois você está apta apenas
para estar na posição inferior, enquanto eu fui feito para ser o superior37”
(EISENSTEIN, 2008, s. p., tradução nossa). Lilith, ao reivindicar o protagonismo, fere
o status de superioridade de Adão, sua virtus. De acordo com Bourdieu (2012), o ato
sexual também está engendrado numa dinâmica de forças opostas: “alto/baixo”, “em
cima/embaixo”, “seco/úmido”, “quente/frio”, “ativo/passivo”, “móvel/imóvel”. Com isso,
o homem, que se vê do lado positivo e superior da força, não pode ceder ao seu posto
no sexo, que segundo o próprio Bourdieu, é, também, um ato de dominação:

Resulta daí que a posição considerada normal é, logicamente,


aquela em que o homem “fica por cima”. Assim como a vagina deve,
sem dúvida, seu caráter funesto, maléfico, ao fato de que não só é
vista como vazia, mas também como o inverso, o negativo do falo, a

36 Embora o feminismo, como nomenclatura e conceito, tenha se desenrolado durante o século XIX,
não significa que as mulheres feministas não tenham existido antes em essência. Mulheres-pesadelo,
que buscavam sua emancipação e autonomia, sempre existiram. E, quando observamos suas histórias
e exemplos, percebemos o feminismo de forma muito clara, ainda que não tivesse carregado uma
bandeira. Então, Lilith, como “primeira mulher” e primeira transgressora do patriarcado, seria “a primeira
feminista”.
37 Versão em inglês: “she said: 'I will not lie below'. And he said: 'I will not lie beneath you, but only on

top. For you are fit only to be in the bottom position, while I am to be the superior one'”.
75

posição amorosa na qual a mulher se põe por sobre o homem é


também explicitamente condenada em inúmeras civilizações 38
(BOURDIEU, 2012, p. 27, grifo do autor).

Bourdieu esclarece que a mulher estar por cima na relação sexual é uma prática
condenada em muitas civilizações, já que caracteriza um jogo de dominação, e
evidentemente, a mulher jamais poderia ser a dominadora. Muraro (1997) corrobora
essa análise e acrescenta uma outra importante razão para que a mulher não possa
ocupar a posição de dominante. A mulher estaria ligada, através do sexo, a um
conhecimento condenado:

[...] o conhecimento do bem e do mal, que vem da experiência


concreta do prazer e da sexualidade, o conhecimento totalizante que
integra inteligência e emoção, corpo e alma, enfim, aquele
conhecimento que é, especificamente na cultura patriarcal, o
conhecimento feminino por excelência (MURARO, 1997, p. 10-11).

Esse conhecimento, que já discutimos pela teoria de Lerner (representada na


figura da serpente), foi uma das formas de poder mais demonizadas e mais
combatidas desde a tomada do poder pelo deus usurpador. Tão temido que os
inquisidores do Malleus Maleficarum fizeram relação direta da sexualidade à violação
da fé. Muraro (1997) divide as grandes premissas do Malleus em sete tópicos, entre
os quais um diz que o Diabo domina o corpo e a alma dos homens devido aos atos
sexuais, visto que o primeiro homem pecou, justamente, pela via do sexo, fazendo
disso o ponto mais fraco de todos os homens.
Uma vez que a fraqueza do homem residiria na sexualidade e esta seria
incitada pela mulher, o bom cristão precisaria reconhecer as várias feições de
armadilha que o Demônio, através da fêmea, se utilizaria para atrair a sua divina alma.
Delumeau (2001) relata que o frei Alvaro Pelayo escreveu, em torno de 1330, a obra
De planctu ecclesiae (O pranto da Igreja). Tal livro, em sua segunda cisão, traz um
extenso catálogo com os 102 vícios e más ações da mulher. Assim como no Malleus
Maleficarum, a sexualidade feminina é retratada de forma absolutamente perigosa e
nefasta. Tanto que muitos dos seus vícios e más ações estão ligadas propriamente à

38O grifo de autor na palavra inverso traz a seguinte nota: segundo Charles Malamoud, o sânscrito usa
para qualificá-la a palavra Viparita, “invertido”, empregada também para designar o mundo ao contrário,
o sentido de cima embaixo.
76

sexualidade, e um dos vícios descritos, que podemos relacionar à reivindicação de


Lilith, teria sido o causador do dilúvio:

Ela atrai os homens por meio de chamarizes mentirosos a fim de


melhor arrastá-los para o abismo da sensualidade. Ora, “não há
nenhuma imundície para a qual a luxúria não conduza”. Para melhor
enganar, ela se pinta, se maquia, chega até a colocar na cabeça a
cabeleira dos mortos. Fundamentalmente cortesã, gosta de
frequentar as danças que acendem o desejo. Transforma “o bem em
mal”, “a natureza em seu contrário”, especialmente no domínio
sexual. “Ela se acasala com os animais”, coloca-se sobre o homem
no ato de amor (vício que teria provocado o dilúvio), ou, “contra a
pureza e a santidade do casamento”, aceita unir-se a seu marido à
maneira dos animais. Umas desposam um parente próximo ou seu
padrinho, outras são concubinas de padres ou de leigos. Algumas
têm relações sexuais muito cedo após um parto ou no período das
regras (DELUMEAU, 2001, p. 323, grifos do autor).

Com tantos escritos apresentados, pode-se pensar que a demonização do


poder que tem a sexualidade da mulher finaliza aí, mas, não. Delumeau assinala no
título “Uma iconografia frequentemente malévola” que nas estampas pictóricas a
mulher também foi terrivelmente representada. Por vezes, falsamente elevada a uma
figura lânguida e etérea. Sublime e pueril, fora de contextualização sexual, exaltando
a imagem virginal numa investida antiEva. Essa iconografia seria um agente tolhedor
da sexualidade feminina, valorizando somente o ato de procriar. Da mesma forma que
a Virgem Maria, a mulher teria que viver sua sexualidade na prerrogativa,
exclusivamente, da maternidade e jamais do prazer. Podemos ressaltar que um dos
epítetos principais de Maria é precisamente a palavra “Virgem”, o que enfatiza o seu
trabalho reprodutivo e a redução de sua pessoa à categoria de seu sexo. Ainda que
de maneira divinizada, ela serve aos propósitos patriarcais para ceifar e controlar a
sexualidade das mulheres:

O poder da Virgem está na capacidade de apelar à misericórdia de


Deus; vem da maternidade e do milagre de sua concepção imaculada.
Ela não tem poder por si só, e as próprias fontes de seu poder de
intercessão a separam de modo irrevogável das outras mulheres. Ao
contrário, a deusa Ishtar e outras deusas como ela tinham poder por
si mesmas – o mesmo tipo de poder que os homens tinham, derivado
da bravura militar e da capacidade de impor sua vontade sobre os
deuses ou influenciá-los. E, ainda assim, Ishtar era mulher, dotada da
mesma sexualidade das mulheres comuns (LERNER, 2019, p. 186).
77

Não obstante, como já sabemos, a ação coibidora do poder feminino não ficou
somente na exaltação da virgindade e do celibato. Para afastar a vivência da
sexualidade livre e prazerosa como a da deusa Ishtar, o vasto material pictórico de
que fala Delumeau também contava com o irresistível “[...] poder sedutor da mulher
que conduz os homens à perdição” (DELUMEAU, 2001, p. 346). Em uma das
gravuras descritas que exprime esse conteúdo está Medeia. Fonte de inspiração para
muitos artistas no século XVI, a representação de Etienne Delaune tem como tema a
“‘Bela sentada sobre a Besta’ [...] ‘o mundo que, pelos prazeres que faz gozar arrasta
o homem para o abismo [...]’” (DELUMEAU, 2001, p. 346). Delumeau (2001)
descreve que o cenário tem a seguinte composição: existem duas opções de escolha
para um jovem. Uma opção representa a virtude, um anjo celestial, coroado com
uma auréola e vestido apenas com uma toga flutuante, gracioso e divinal. A outra
opção, representando o vício, é Medeia, trajada na última moda como uma meretriz
e sentada sobre um pavão, é a personificação da mulher: “[...] sentada sobre uma
besta de sete cabeças. Sorridente, coroada, vestida de maneira exótica, o colo
desnudo, ela segura alto a taça dos prazeres enquanto o demônio, que a espera nas
chamas de um precipício, lhe faz sinal de se aproximar” (DELUMEAU, 2001, p. 346).
Para Delumeau (2001, p. 346), Medeia é uma persona bivalente, “[...] que
exprime ao mesmo tempo a sedução e a violência femininas”. Violência, pois, como
já observamos, para alcançar seus objetivos, Medeia não se poupa a estender corpos
por onde passar, se necessário julgar. E, segundo a narrativa de Eurípides, Medeia
arrasou os corpos dos próprios filhos por vingança ao seu marido. Lilith, talvez,
comungue da mesma sede de vingança que nutrira Medeia:

“Me deixe em paz! Eu fui criada apenas para causar doenças aos
bebês. Se a criança é do sexo masculino, eu tenho domínio sobre
ele por oito dias após seu nascimento e, se for menina, por vinte
dias”. Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith, eles insistiram
que ela voltasse. Mas ela jurou a eles pelo nome do Deus vivo e
eterno: “sempre que eu vir vocês ou seus nomes ou suas formas em
um amuleto, não terei poder sobre aquela criança”. Ela também
concordou em ter cem filhos morrendo todos os dias e, portanto,
todos os dias cem demônios perecem, e pela mesma razão,
escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos das crianças
pequenas. Quando Lilith vê seus nomes, ela se lembra do juramento,
e a criança se recupera39 (EISENSTEIN, 2008, s. p., tradução nossa,
grifos do autor).

39Versão em inglês: “’Leave me! I was created only to cause sickness to infants. If the infant is male, I
have dominion over him for eight days after his birth, and if female, for twenty days’. When the angels
78

Lilith diz que foi criada apenas para adoecer os bebês. Teria Deus ele próprio
criado a primeira infanticida? Ou o seu caráter assassino teria surgido quando Deus
criou Eva para substituí-la no Jardim das Delícias? Segundo Barbara Koltuv (2017), a
serpente do Éden poderia ser associada a própria Lilith, que teria induzido Eva a
buscar o prazer, a liberdade sexual e o conhecimento que advém dele. E como as
duas trabalharam juntas para a queda do homem, estariam fadadas a se odiarem: “o
Zohar (76b) explica que, uma vez que Eva gerou Caim da imundície da serpente, ela
estava sujeita à punição pela ‘serva’ e ‘criada’ de Deus, Lilith, que podia arrebatar-lhe
as crianças recém-nascidas (Zohar II 96a-b)” (KOLTUV, 2017, p. 118, grifos da
autora).
Essa é uma das versões sobre Lilith como assassina de crianças. Porém,
existem muitas outras versões dessa mesma narrativa e, frequentemente, elas entram
em acordo que os amuletos eram necessários para barrar a sua maligna ação.
Mas, quando a ameaça não pode ser impedida com um amuleto? Quando a
ameaça é a própria mãe? Segundo Gerda Lerner, “a indiferença ou negligência da
mãe significava morte certa. A mãe que dava a vida tinha, de fato, poder sobre a vida
e a morte” (LERNER, 2019, p. 70). Entretanto, no caso de Medeia, não foi a
indiferença nem negligência que mataram seus filhos. Ela mesma os teria matado com
suas próprias mãos. Medeia seria a figura exata da mãe que pare, nutre e mata. E
mesmo que essa ação inegavelmente cruel tenha ocorrido por motivo de vingança,
Martha Robles nos oferece uma perspectiva que talvez apazigue nossos corações:

Foi em meio a tal mortandade que Zeus enamorou-se de Medeia, pois


admirava sua têmpera. Ela o recusou, talvez porque em seu íntimo
não havia mais lugar para abrigar o desejo, mesmo que se tratasse do
senhor do Olimpo. Vigilante da eterna luxúria do marido, Hera
agradeceu a Medeia pela atitude que havia tomado e prometeu a
imortalidade a seus filhos caso os imolasse sobre o altar de seu templo
(ROBLES, 2006, s. p.).

Hera, talvez, tenha sido a única figura feminina que tivera alguma compaixão
pela pobre Medeia diante de seu sofrimento. De acordo com Delumeau, as mulheres

heard Lilith's words, they insisted she go back. But she swore to them by the name of the living and
eternal God: ‘whenever I see you or your names or your forms in an amulet, I will have no power over
that infant’. She also agreed to have one hundred of her children die every day. Accordingly, every day
one hundred demons perish, and for the same reason, we write the angels names on the amulets of
young children. When Lilith sees their names, she remembers her oath, and the child recovers”.
79

eram mais creditadas ao ciclo do eterno retorno, que conduz todas as criaturas da
vida para a morte e vice-versa. Logo, as mulheres seriam igualmente criadoras e
destruidoras:

Daí os nomes incontáveis das deusas da morte. Daí as múltiplas


lendas e representações de monstros fêmeas. “A mãe ogra [Medeia
é uma delas] é um personagem tão universal e tão antigo quanto o
próprio canibalismo, tão antigo quanto a humanidade” (DELUMEAU,
2001, p. 312, grifos do autor).

Medeia divide com Lilith a fama de assassina de infantes. Contudo, o fato de


Medeia ser a algoz dos próprios filhos resulta em um horror maior: além de macular
a santidade da maternidade, ela ainda o faz pelo motivo de vingança. Medeia tem
um poder que é considerado aterrador. Ela é livre de todas as amarras emocionais
que alguém poderia ter. Nem o amor de mãe a detém de executar o mal que está
disposta a causar. Na obra de Eurípides, a Nutriz de Medeia adverte do perigo em
confrontá-la: “Ela é terribilíssima. Ninguém que a enfrente logra o louro facilmente”
(EURÍPIDES, 2010, p. 27).
A mulher-pesadelo colquídia é implacável e disso todos na Grécia sabiam.
Quando pela ira era inflamada, não havia quem a contivesse. Seus conhecimentos e
poderes advindos de seu avô Hélio, de Circe e de Hécate são um absoluto mistério
para os mortais. Devido a suas atitudes, ela é aclamada por alguns, por outros é
difamada e por todos é temida. Em uma conversa com o rei Creon de Corinto, ela diz:
“saber tenho de sobra e inveja alheia há quem me louve a fleugma, há quem critique,
desdém também. Te atemorizo? Longe de mim ser dona de um saber assim”
(EURÍPIDES, 2010, p. 51).
A ira de Medeia é conhecida e notória em várias passagens na obra de
Eurípedes. Por exemplo, a fala do rei Creon que, só de observar sua feição,
experimenta tanto horror e temor que expulsa Medeia e seus filhos das terras sob seu
domínio: “teu rosto fosco, a raiva contra o esposo, ordeno que os remova para longe,
sem esquecer a dupla que pariste!” (EURÍPIDES, 2010, p. 49). O Coro também se
espanta diante da raiva de Medeia que acarreta acontecimentos terríveis: “por que
o peso da cólera tomba em tua ânima na tétrica permutação de delitos?”
(EURÍPIDES, 2010, p. 137). Mesmo a própria colquídia deixa claro que sua ira é
avassaladora e que atentará contra seus filhos para lograr a vingança que sua alma
deseja: “arraso o alcácer de Jasão e sumo, pela sanha fatal contra os meninos que
80

mais amo no mundo [...]” (EURÍPIDES, 2010, p. 99). E quando o Coro tenta apelar
para seu instinto materno, Medeia responde que a dor pelos filhos seria a que mais
faria o marido penar: “CORO: matas quem germinou do teu regaço? MEDEIA: é a
mordida que fere mais o esposo” (EURÍPIDES, 2010, p. 101).
Se a princesa da Cólquida é capaz de fazer escorrer o sangue do fruto de seu
próprio ventre, o que seria capaz de fazer a outrem? Podemos observar que a fúria
poderosa de Medeia seria tão devastadora que arrasaria reinos: arruinou o reino
pertencente ao seu pai, o rei Eetes, quando matou seu irmão, Apsirto, deixando assim
a Cólquida à mercê de ataques de terceiros que desejassem ascender ao trono, já
que a coroa desprovida de herdeiros se tornou fraca e desprotegida; arruinou o reino
de Iolcos assassinando o rei Pélias; e, por último, mas não menos importante, arruinou
o reino de Corinto, matando o rei Creon e sua filha, sucessora ao trono, desposada
por Jasão.
Dessa forma, vemos que Medeia representa tudo o que o homem teme. Ela é
ardilosa, sedutora, violenta e destemida. Ela, assim como Lilith, é um pesadelo. Elas
são o oposto exato do feminino idealizado pelo patriarcado, como já dissemos, a
Virgem Maria: mulher mansa, ingênua, subserviente, taciturna, boa esposa, não
desfruta do prazer sexual e, acima de tudo, exemplo máximo de figura materna. Lilith
e Medeia representam a transgressão dos valores impostos às mulheres. Elas
desestruturam o patriarcado, pois o poder não está nos homens, está nelas. E,
mesmo que sofram represálias, elas possuem meios de revide, sendo este o maior
de todos os medos do homem. A mulher que tem o poder de fazer o que quiser
humilha a crença da superioridade masculina e isso não se pode suportar.
Uma das maneiras de se combater a mulher transgressora é matando-a.
Tanto que, sob a ação da Santa Inquisição, milhares de mulheres foram mortas,
acusadas de bruxaria e/ou conluio com o Diabo. Porém não se pode matar todas as
mulheres do mundo. A humanidade necessita delas nem que seja para procriar. E a
mulher não deseja continuar relegada somente a esse papel, de forma que é
necessário que exista enfim a transgressora paridade entre os gêneros.

4.3 MEDEIA E O DISCURSO MACHISTA DE UMA SOCIEDADE QUE REPUDIA A


MULHER
81

A Medeia de Eurípedes representa a mulher


que vive inteiramente a tensão em relação à
própria liberação do jugo patriarcal e das leis
impostas pelo homem. Medeia, como Lilith,
primeiro triunfa e depois entra em contenda
com o homem que a rejeita e a exclui.
Roberto Sicuteri

Medeia, princesa da Cólquida, filha do rei Eetes, neta do deus Hélio (deus sol),
depois de ter usado seus poderes mágicos para fazer com que Jasão conseguisse o
velocino de ouro – com a finalidade de recuperar o trono de Iolcos –, fugiu na nau
Argo para poder viver ao lado de seu amante. Contudo, de nada adiantaram seus
esforços e artifícios: Jasão não recupera o trono de Iolcos e eles são obrigados a viver
em exílio, em Corinto, terra helênica do rei Creon.
Após Medeia, Jasão e os filhos que tiveram durante as jornadas se
estabelecerem nessa nova terra, o argonauta contrai novo casamento com a filha do
rei Creon (a quem Eurípedes não nomeia em sua obra), abandonando Medeia e a
prole. Segundo Marta Robles (2006), Jasão usou Medeia deliberadamente para
alcançar seus objetivos e não se casou prontamente com ela, pois maquinava como
se livrar da promessa assim que atingisse o sucesso que desejava. Entretanto, dadas
as circunstâncias que obrigavam Jasão cada vez mais a precisar dela, por fim casou-
se, o que não quer dizer que cumpriu a sua promessa, porque, no final, foi-lhe desleal
e traiçoeiro. No entanto, o torpe herói, em sua infinita estupidez, não imaginava jamais
que seria alvo da mulher mais poderosa da Terra.
Ao saber de tamanha traição, Medeia se enche de fúria, prometendo aos sete
ventos que se vingaria de tal situação dolosa. E é a partir desse episódio que começa
a obra de Eurípedes. Como Medeia, anteriormente (não na obra de Eurípedes, e sim
em outras em que ela também é personagem, e o autor alimenta seu texto dessas
narrações, iniciando a sua própria in medias res40), se revelou poderosa e perigosa,
os personagens da peça não poupam depreciações ou envilecimentos contra a
protagonista. Medeia é veementemente demonizada, seja por sua personalidade,
suas atitudes, sua nacionalidade ou seu gênero.
A personalidade de Medeia caracterizada por ser abrasiva e violenta não
estaria adequada para uma mulher. Seu temperamento é constantemente reprovado

Vem do latim e significa “no meio das coisas”. É um recurso literário em que a narrativa tem início no
40

meio da história e não no começo de tudo.


82

durante a obra. A primeira a censurar a natureza de Medeia é sua própria Nutriz. Ela
diz: “é crua em seu jeito de ser; o íntimo da mente altiva horripila” (EURÍPIDES, 2010,
p. 33). Dito isso, pensando sob a lógica que desenvolvemos de como a mulher foi
convertida em objeto e propriedade do homem, não espanta que ela precise seguir
uma cartilha de comportamentos, sentimentos, palavras etc. para que agrade a seu
dominador, bem como a sociedade que existe sob o regime da dominância. Segundo
Pierre Bourdieu:

A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos


simbólicos, cujo ser (esse) é um ser-percebido (percipi), tem por efeito
colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor,
de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar
dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes,
disponíveis. Delas se espera que sejam “femininas”, isto é,
sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou
até mesmo apagadas. E a pretensa “feminilidade” muitas vezes não é
mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas
masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de
engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em
relação aos outros (e não só aos homens) tende a se tornar
constitutiva de seu ser (BOURDIEU, 2012, p. 82, grifos do autor).

Nesse sentido, observamos que Medeia não satisfaz às expectativas de


feminilidade de que fala Bourdieu. Medeia não é submissa, não é discreta e, como
disse a Nutriz, o íntimo da colquídia é de causar horror. A Nutriz, que esteve ao lado
de Medeia toda sua vida desde o seu nascimento na Cólquida, repete o discurso
machista que dita o passo da sociedade patriarcal. Como já comentamos, a civilização
regida pelo homem não seria tão forte se não contasse com o apoio das próprias
mulheres. Na peça de Eurípides, não é só a Nutriz que fala “a linguagem do
dominador”. O Coro, constituído por um grupo de mulheres que testemunham o drama
de Medeia, também o fazem: “ouço a voz, ouço a voz atroz da infeliz colquídia [...]”
(EURÍPIDES, 2010, p. 37). Mais uma vez se fala do jeito da princesa-bruxa. Uma
mulher não pode ter voz, segundo Bourdieu, por isso espera-se que seja contida, logo,
uma voz atroz é inadmissível. E mesmo que elas tenham presenciado ou sabido de
toda a dor e humilhação que Medeia passara, desaprovam contundentemente seu
comportamento. Ainda que o abandono de uma mulher e seus filhos possa lhes causar
uma espécie de simpatia mesclada com desprezo (o que podemos caracterizar como
pena), as mulheres do Coro findam por naturalizar o caráter lastimoso do ser feminil:
83

“multipenoso leito feminino, frutuosa fonte de revés à vida!” (EURÍPIDES, 2010, p.


139).
A índole de Medeia é tão fortemente reprovada que sua imagem é
frequentemente associada a figuras bestiais. Como quando a Nutriz conversa com o
Coro em relação ao comportamento destrutivo da senhora, diz: “temo não convencê-
la, mas não me furto ao encargo, apesar do olhar de toura feito leoa que mira o avanço
dos servos no pós-parto, na hipótese de um terceiro que lhe queira aconselhar”
(EURÍPIDES, 2010, p. 41); ou pela fala de Jasão ao saber da morte dos filhos: “é claro,
Zeus, como ela me rechaça, como essa fêmea horrível me arruína, leoa algoz de
prole, abominável?” (EURÍPIDES, 2010, p. 153). Essa depreciação ocorre porque, na
sociedade grega, o homem é quem precisa e deve externar bravura e crueldade. Ele
se faz temer, respeitar e admirar pelo sangue que derrama. Quando um homem é
comparado a um animal é por bravura; a mulher é pelo horror, pela irracionalidade. A
mulher assumindo uma característica substancialmente masculina se torna
repugnante. De acordo com Bourdieu:

Ser “feminina” é essencialmente evitar todas as propriedades e


práticas que podem funcionar como sinais de virilidade; e dizer de uma
mulher de poder que ela é “muito feminina” não é mais que um modo
particularmente sutil de negar-lhe qualquer direito a este atributo
caracteristicamente masculino que é o poder (BOURDIEU, 2012, p.
118, grifos do autor).

No caso de Medeia, não se referem a ela dizendo-a “muito feminina”, mas


encargam sobre ela a sua falta de feminilidade por não aceitar sua sina de dor
submissamente. O fato é que não entendem que a Medeia não lhe interessa o que
digam, porque ela não só tem poder, como é o poder e não iria deixar de ser fiel à sua
própria natureza por causa do que os gregos julgam por certo e errado. E, mesmo
sabendo que Medeia faz o que quer, do jeito que quer e na hora que quer (tal qual um
“homem”), Jasão insiste em relegá-la a um ideal de mulher mansa e prosaica que
aceita tudo o que lhe dizem. Ele se utiliza de artifícios mesquinhos e distorce a
situação a fim de culpabilizar a ex-esposa pela conjuntura desagradável da separação
que deveria ser levada de maneira amena. Ele alega que é um homem bondoso e faz
de tudo para o bem dela e dos meninos. Ou seja, ser traída, abandonada e exilada
não é problema se ela pudesse ver pelo lado bom, o que se recusa a fazer: “requeiro
o testemunho dos eternos para o fato de eu pretender dar tudo de que precises, mas
84

o bem não te agrada. Altiva, agravas o difícil” (EURÍPIDES, 2010, p. 79). Jasão aponta
Medeia como ingrata, já que o bem que ele desejava fazer a ela, trocando-a, não lhe
agrada; e, ainda por cima, evoca os deuses por testemunha de sua bondade. Ele se
autocredita como elevado, mesmo ele próprio sabendo que a usou e agora está
descartando-a. Nesse jogo de dissimulação em que Jasão faça o que faça é elevado
e Medeia é inferiorizada e tida como desprezível, podemos observar a misoginia
estrutural na figura do vir (homem em latim). Conta-nos Bourdieu (2012) que o vir
remete a virtus, ou seja, o ser homem está atrelado à virtude, à honra por excelência;
por consequência, o simples fato de ser homem legitima suas ações como virtuosas,
ainda que sejam execráveis:

Em oposição à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode


ser defendida ou perdida, sua virtude sendo sucessivamente a
virgindade e a fidelidade, o homem “verdadeiramente homem” é
aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe
é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a glória e a distinção
na esfera pública (BOURDIEU, 2012, p. 64, grifo do autor).

Se o dever como homem de Jasão é buscar a honra acima de tudo, ocupando


o maior posto na esfera pública que puder, não estaria errado em trocar a esposa
estrangeira por uma princesa helênica que lhe renderia um trono. Ele argumenta que
sua escolha pela princesa de Corinto foi por política, além de fazer um favor a Medeia
e seus filhos: “põe na cabeça, de uma vez por todas: não foi por outra que subi ao
leito régio, mas por querer salvar a ti e aos dois meninos, pai de irmãos dos filhos de
agora, príncipes, bastiões do alcácer” (EURÍPIDES, 2010, p. 75-77). Jasão deixa claro
que a política está acima do casamento e que, se Medeia chora pelos filhos, não
haveria necessidade de tanto drama, já que o herói os elevaria pelo parentesco com
os vindouros príncipes e princesas:

Obstino-me em propiciar aos filhos irmãos, reunir estirpes, congregar


as duas numa. Eis como prosperamos. Por que precisas tanto de teus
filhos? A mim convém que os filhos do futuro auxiliem os que hoje
vivem. Erro? Tua discordância se resume à cama. A que ponto
chegais, mulheres: credes ter tudo se o casório vai de vento em popa,
e o belo e o conveniente nada valem caso o deleite falte ao leito!
(EURÍPIDES, 2010, p. 73).

Jasão, por trás da dissimulação, do pseudoaltruísmo, revela seu egoísmo da


maneira mais pérfida. No trecho citado, ele minimiza o pesar da ex-esposa.
85

Menospreza-a por ela dar valor a um casamento que para ele não tem serventia, a
dar valor a filhos que na convivência com ela não teriam futuro. E ressalta que a ele,
sim, os filhos têm utilidade. E, ao dizer que a discordância da mulher-pesadelo “se
resume à cama”, voltamos à discussão da mulher ser intrinsecamente sexual, e reitera
a acepção de Medeia como lasciva e por isso bestial. Recordemos que a etimologia
de seu nome pode carregar uma semântica sexual que, talvez, Eurípides tenha
explorado nesse trecho da tragédia. À vista disso, vemos a estrutura machista nua e
crua. Uma mulher que, apesar de poderosíssima, precisa aceitar que é descartável
aos interesses masculinos e ainda assim execrada. Como vimos em Lerner
anteriormente, o homem dispõe da mulher e dos filhos como sua propriedade na
civilização mesopotâmica, e na civilização grega não era diferente. Os filhos que
Medeia teria parido não eram dela, então não havia motivo para chorar por eles.
Contudo, para compreendermos melhor o sentimento dessa mulher que sofre pelo
seu destino e pelos frutos de seu ventre, vejamos Martha Robles que explica com
exatidão sua dor:

O perjúrio de Jasão completa o binômio dramático de uma mulher que


teve de compreender que não importava quão poderosa fosse sua
magia, quão elevada sua linhagem, quão incondicional sua entrega ou
quão ilimitada sua crueldade, bastava ser desprezada no leito para ver
esvaecer seu semblante e perder a posição que ocupava no mundo
(ROBLES, 2006, s. p.).

Além de menosprezar a importância que Medeia daria ao casamento deles e


aos filhos, Jasão também menospreza as ações que ela adotou para ajudá-lo,
conferindo somente a Afrodite e a Eros os sucessos de sua trajetória, ou melhor, ela
teria sido só uma ferramenta para que ele alcançasse seus objetivos. Porém, nada do
que fez é mérito dela. A glória pertence ao herói em consequência do favor dos
deuses:

Afirmo alto e bom som: se o barco não naufragou, foi por querer de
Cípris. Chega de autolouvor! Foi Afrodite! És sutil, mas te irrita o fato
de Eros, por meio de seus dardos indesviáveis, ter te forçado a me
salvar a pele. Evitarei minúcias de somenos; não desmereço teu
pequeno auxílio, mas não comparo ao que me deste o que eu,
salvando-me, te propiciei (EURÍPIDES, 2010, p. 71).
86

Ao se referir aos dardos de Eros, o herói enfatiza precisamente que o deus


alado atingiu a princesa da Cólquida e o amor que ela sentia a forçou a todas as suas
ações. Como ele diz, os dardos são indesviáveis. Não havia como ela escapar de
fazer tudo o que fosse da vontade de Jasão, o amado dos deuses. Com o apoio de
Lerner, aqui podemos refletir que a relação de Medeia com a sociedade e até mesmo
com os deuses perpassa por sua relação com um homem:

O homem toma seu lugar na hierarquia de classes com base em sua


profissão ou no status social de seu pai. Sua posição de classe pode
se manifestar pelo sinal comum visível – roupas, local de residência,
ornamentos ou a falta deles. Para a mulher, [...] as distinções de classe
têm como base sua relação – ou a falta dela – com um homem que a
proteja e seu comportamento sexual (LERNER, 2019, p. 181).

Medeia não precisa de proteção. Ela não precisa de um homem para


intermediar sua relação com o mundo e outros indivíduos. Não obstante, como ela é
mulher, essa mediação é feita a sua revelia, pois os deuses outorgam a Jasão fazê-
lo, tal como Jeová teria feito com Adão e seus patriarcas.
Não bastando a redução do seu ser como uma ferramenta de logro ao sucesso,
ele inverte a situação afirmando que o que ele havia realizado por ela superava o que
ela havia feito por ele. Esse grande “feito”, concretizado pelo grego para Medeia, foi
tirá-la das terras bárbaras e levá-la ao mundo verdadeiro: a Grécia.

[...] Me explico: teu logradouro é grego, não é bárbaro, prescindes do


uso cru da força bruta, não ignoras justiça e normas. Gregos,
unânimes, aclamam: “Sapientíssima!”. Celebridade, alguém
recordaria teu nome em tua terra tão longínqua? (EURÍPIDES, 2010,
p. 71, grifo do tradutor41).

Como podemos observar, a depreciação e o escárnio de Jasão não se limitam


ao nível pessoal, mas também atingem sua nacionalidade. Ele argumenta que só
agora Medeia era alguém, pois ela já não habitava terra bárbara, e isso se somaria a
lista dos favores que ele lhe fez. Jasão apresenta aí o princípio da hegemonia grega
– aqui já abordado no tópico em que discutimos o falso herói. Do mesmo modo que
os pensamentos difundidos por Aristóteles, esse princípio tem sua base na afirmação

41O tradutor da obra de Eurípides nessa edição é Trajano Vieira. Como não existem os mesmos sinais
gráficos de que dispomos na Língua Portuguesa na Língua Grega clássica, os sinais são adicionados
pelo tradutor para nossa melhor compreensão literária.
87

da diferença e da superioridade helênica em detrimento de outrem, assim como a


superioridade do senhor de escravos e a superioridade do homem. Por diversas
vezes, ele chama Medeia de bárbara, isso porque bárbaro é aquele que balbucia, ou
seja, um ser involuído que sequer sabe falar. Na citação, ele demonstra que hoje ela
vive em uma civilização, onde as pessoas conhecem a justiça e as leis, e não em um
lugar onde a brutalidade reina. Além disso, ainda se utiliza de um pseudoelogio para
dizer que se hoje ela é famosa ou reconhecida, foi porque ele a havia salvado de um
destino ignoto em uma terra desprezada pelos deuses nos confins do mundo. No calor
da discussão, a xenofobia de Jasão aflora ainda mais depois que ele descobre que
Medeia matou seus filhos. Atribui-lhe à crueldade por ser bárbara, comparando-a às
mulheres gregas que são devidamente adestradas: “[...] dizimados por causa de uma
cama, algo impensável entre as moças gregas [...]” (EURÍPIDES, 2010, p. 145).
Portanto, se a ordem natural é a descrita acima, Jasão, sendo grego, homem,
herói e príncipe, estava no topo da cadeia hierárquica social. Uma vez que Jasão
consegue, enfim, o que desejou e esperou a vida toda – ser herdeiro direto de um
trono –, achou que não precisaria mais da bárbara da Cólquida e então deixa que
todos os seus sentimentos de repulsa a ela venham à tona. O herói argonauta não
economiza insultos àquela que lhe deu e lhe fez de tudo. Entre as muitas formas com
que Jasão envilece Medeia, uma das mais enfáticas é ligada propriamente ao seu
gênero, visto que ele argumenta que suas atitudes deploráveis e ínfimas são comuns
ao seu sexo. Ele lamenta a existência do gênero feminino, enfatizando que dele é que
se advém o mal entre os homens, corroborando com aquele velho ideário da mulher
como criadora e fonte de todos os males, que tiveram como seus primeiros bodes-
expiatório Eva, na sociedade hebraica, e Pandora, na grega: “pudéramos procriar
diversamente e preterir a raça das mulheres imune ao mal, o homem viveria!”
(EURÍPIDES, 2010, p. 73). O grego lamenta a infeliz dependência que os homens têm
das mulheres para gerar os filhos. A mulher é um problema para o homem e ele lida
minimamente com ela porque é absolutamente obrigado pela pura necessidade de
procriar e ter uma descendência. Como Lerner comenta, Aristóteles iguala as
mulheres aos escravos que: “[...] com seus corpos, servem às necessidades da vida
[...]” (LERNER, 2019, p. 274). Ou seja, eles servem com seus corpos aos anseios de
seus dominadores: os escravos com seus serviços braçais e as mulheres com seus
serviços braçais e de procriação.
88

Na sociedade grega, o prazer entre homens era bastante comum e, em alguns


casos, era mais que incentivado, como na relação pedagogo e aluno (o que se chama
hoje de pederastia), bem como entre soldados. Os espartanos, por exemplo,
formavam pares em seus treinamentos com seus amantes, assim, no calor da batalha,
eram mais fortes porque lutavam por si, por sua pátria e por seu amado. Às mulheres
restava o labor parturiente e só:

As mulheres eram encaradas como intelectual, física e


emocionalmente inferiores; os homens tendiam a se reunir em grupos
em que se formavam pares. Plutarco, ao discorrer sobre o assunto,
afirmou: “o verdadeiro amor não tem lugar no Gineceu; e eu afirmo
que não é amor o que vocês sentem pelas mulheres ou pelas moças.
Seria tão absurdo como chamar de amor o que as moscas sentem
pelo leite, as abelhas pelo mel e os cozinheiros pelas carnes e iguarias
que preparam” (Sobre o Amor, 750 a. C.). Disse ainda: “com efeito, o
Amor é o que vos liga a almas jovens e bem-nascidas que através da
amizade vos conduz a virtude…” (CORINO, 2006, p. 20, grifos do
autor).

E se o amor verdadeiro somente existiria entre os compatriotas, suportar uma


mulher grega pelo pretexto de gerar filhos já poderia ser asqueroso, quem dirá uma
mulher bárbara e assassina da própria descendência: “mulher odiosa, plenirrepulsiva
aos numes e a mim, a todo mundo [...]” (EURÍPIDES, 2010, p. 143). Dessa forma,
Jasão teria se deitado com uma bárbara repulsiva para pousar uma coroa em sua
têmpora, todavia, de nada adiantou. O que lhe restava era maldizê-la. E todos a
maldisseram – inclusive a própria Medeia.
Corroborando o discurso do mal ligado ao sexo feminino, vemos Medeia falar
em seu próprio gênero como algo lamentável e sofrido. Afinal, ela teria percebido que
o ideal de felicidade pautado em se casar e ter filhos seria uma ilusão. Desesperada,
desamparada e – embora poderosíssima – abatida por uma sociedade de estrutura
machista, se inflama pela ira, pela desilusão, pelo desespero, pelo pesar. O papel de
esposa e mãe é vorazmente arrancado dela sem nenhum remorso ou recompensa.
Objeto de um homem, que mesmo mesquinho é herói, peça no xadrez olimpiano, ela
se rende ao discurso que a esmaga e deixa escapar de sua boca as palavras da
dominância: “mulher é amedrontável, ruim de pugna, não suporta a visão da lança
lúgubre, mas se maculam a honra em sua cama, não há quem lhe supere a sanha
rubra” (EURÍPIDES, 2010, p. 47). Nessa fala, Medeia deixa claro que não é próprio
da natureza feminina lutar, porém se ela é atacada no único lugar que seria apropriado
89

para ela, roubam-lhe o leito conjugal, uma ira sem tamanho se acende. Dessa
maneira, a bruxa lamenta a sorte de seu gênero: “longe de mim descrer, mas é do
sexo frágil ser vítima do mar de lágrimas” (EURÍPIDES, 2010, p. 109). Aqui podemos
perceber o discurso da dor como destino da mulher. Medeia e todas as pessoas do
gênero feminino teriam herdado de Eva e/ou Pandora a sina de dor. Como em Os
trabalhos e os dias, de Hesíodo, o Gênesis reafirma a dicotomia em que o preço do
homem é o suor do trabalho e o preço da mulher é a dor e a sofreguidão:

A dicotomia é reforçada na história da Queda, quando a divisão sexual


do trabalho é decretada por Jeová, agora como castigo. Adão
trabalhará com o suor do próprio rosto; Eva dará à luz com dor e criará
as gerações. Vale notar que a punição lançada torna o trabalho do
homem um fardo, mas condena à dor e ao sofrimento não o trabalho
dela, mas seu corpo fértil, resultado natural da sexualidade da mulher
(LERNER, 2019, p. 231).

O ser feminil de Medeia, que um dia deixou as terras da Cólquida para se


aventurar seguindo a paixão por Jasão, recebe a sua paga. Sofre as consequências
de suas ações, bem como as consequências de ser mulher, estrangeira e bruxa; e
acha em si a substância do mal, creditando ao seu sexo, tal como fizeram os outros
personagens, o talento para se alinhar com o que é atroz: “tens ciência; ademais, a
raça fêmea ignora como haurir algo elevado, sábia quando edifica o horror do fado”
(EURÍPIDES, 2010, p. 61). Segundo Medeia, as coisas boas para as mulheres são
impossíveis de se conceber, mas o mal é natural para elas como respirar. Podemos
resgatar o mesmo discurso da mulher como fonte de todo o mal que já comentamos.
De todo modo, segundo Bourdieu, a mulher não tem como escapar de ser creditada
ao que é funesto. Diga o que diga, faça o que faça, ela é o mal e não há o que discutir:

As mulheres, façam o que fizerem, estão, assim, condenadas a dar


provas de sua malignidade e a justificar a volta às proibições e ao
preconceito que lhes atribui uma essência maléfica – segundo a
lógica, obviamente trágica, que quer que a realidade social que
produz a dominação venha muitas vezes a confirmar as
representações que ela invoca a seu favor, para se exercer e se
justificar (BOURDIEU, 2012, p. 44).

Não existe um meio de a mulher ser virtuosa já que a virtude é própria do


homem. A estrutura da sociedade patriarcal não dá à fêmea nenhuma opção a não
ser a de ser miserável, seja rainha, bruxa, deusa ou escrava. Se o destino da mulher
90

é sofrer e ser inclinada para tarefas lúgubres é porque esse foi o destino que o
patriarcado lhe deu. E Medeia, ainda que fale contra si e a raça feminina, compreende
que a sina que tem não poderia ser outra:

Entre os seres com psique e pensamento, quem supera a mulher na


triste vida? Impõe-se-lhe a custosa aquisição do esposo, proprietário
desde então de seu corpo — eis o opróbrio que mais dói! E a crise do
conflito: a escolha recai no probo ou no torpe? À divorciada, a fama de
rampeira; dizer não! ao apetite másculo não nos cabe. Na casa nova,
somos mânticas para intuir como servi-lo? Instruem-nos? Se o duro
estágio superamos, sem tensão conosco o esposo leva o jugo — quem
não inveja? —, ou melhor morrer. Quando a vida em família o entedia,
o homem encontra refrigério fora, com amigo ou alguém de mesma
idade. A nós, a fixação numa só alma. “Levais a vida sem percalço em
casa” (dizem), “a lança os põe em risco.” Equívoco de raciocínio!
Empunhar a égide dói muito menos que gerar um filho. Sei bem que
nossas sendas não confluem: dispões de pólis, elos de amizade, lar
paternal, desfrutes na vivência; quanto a mim, só, butim em solo
bárbaro, sem urbe, rebaixada por Jasão, sem mãe, sem um parente,
sem... que a âncora soerga longe deste pesadelo! (EURÍPIDES, 2010,
p. 45; 47, grifos do tradutor).

Poderíamos dizer que essa é uma das falas que mais elucidam a estrutura
machista e a triste condição da mulher à mercê do homem e suas regras. Hesíodo
lamenta ter nascido na Era da raça de ferro e, de modo igual, Medeia lamenta ser
mulher, porque este viver é um mar de infortúnios. Longe de poder preterir a sorte de
se tornar uma esposa, ainda precisa pagar o dote para se casar (diferente da
sociedade mesopotâmica em que o homem paga o dote, e precisamente, por pagar
pela mulher é que todo tipo de crueldade pode ser feito a ela). Como a filha de Eetes
diz, a mulher paga para que um homem seja déspota de seu corpo e essa é a maior
dor. Seria equivalente a um escravo pagar a seu dono para ser escravizado. E se a
mulher desejar se separar, será mal falada. Na palavra “divorciada”, o comentarista
põe uma nota explicando que, no século V a. C., o divórcio para a mulher era permitido
em decorrência do mal comportamento do marido. Ela poderia voltar para a casa de
seu pai, mas não seria uma atitude bem-vista. Ademais, Medeia, sendo rechaçada
pelo marido, não poderia voltar para a Cólquida, logo, além de mal falada, não tinha
para onde ir.
Seguindo na mesma linha, Medeia diz que não se pode dizer “não” à procura
do par para a relação sexual, validando a fala de Wittig ao dizer que o coito forçado é
uma das obrigações femininas. Portanto, além de poder ser estuprada pelo marido,
91

tem que ser vidente (mântica) em seu ofício de escrava para poder adivinhar como
servi-lo. Medeia enfatiza que sequer os homens têm a boa vontade de instruir as
mulheres. Para além, se mesmo assim, a mulher consegue superar o estágio inicial
do casamento, cambaleando entre o trabalho de escrava, serva sexual e oráculo, o
relacionamento segue o curso com o marido carregando o jugo. No entanto, se a
mulher não conseguir mediar suas obrigações impossíveis, o homem sai de casa e
faz da vida o que quiser para o próprio deleite na companhia de um amigo ou parente,
já a mulher está fadada a ficar trancada em casa e fixar-se nessa realidade. A ela não
é permitido ter amigos. O seu amigo, o seu destino, o seu tudo é seu marido. E no
final ainda precisa ser grata a esse esposo, pois ele a protege. Ele é o guerreiro que
empunha a espada para que a mulher tenha uma “vida feliz”, “sem dificuldades” “nem
perigos” em casa. Entretanto, ela segue dizendo que prefere a guerra a parir. Ao final,
Medeia repreende as mulheres do Coro que a julgam mal por querer vingança. Ela
então deixa evidente que se a situação de uma mulher é difícil em circunstâncias
comuns, a dela é muito pior, por já não contar com o apoio de ninguém. Ela está
sozinha e submersa num mar de desventuras.
Medeia, com toda a sua fúria e temperamento feroz, faz da peça de Eurípedes
inovadora para época (e surpreendente até hoje). A peça traz a narrativa de uma
mulher forte, poderosa, engenhosa, vingativa e nada subserviente. O discurso
machista corre pela boca da maioria dos personagens e assim pode-se ver o fardo
que se carrega por ser mulher, ainda mais agravado por contextos sociais como: ser
estrangeira – dita bárbara –, em terra helênica; não ter apoio familiar e/ou apoio
amistoso (destaquemos que a ajuda de Egeu para com Medeia foi um negócio, uma
permuta e não amizade); e não ter comportamento aceitável (socialmente falando).
Medeia não era obediente, como se espera de uma mulher. Ignorou o desejo
do pai e fugiu com o homem que ela queria. Não era mansa, nem frágil e não era
detida por medo ou por efeito de ameaça. E, como se pode ver na obra de Eurípedes,
ela diz: “[...] matarei a corja à bruta, mesmo se morrer” (EURÍPIDES, 2010, p. 59).
Desse modo, podemos ver que levou suas decisões até as últimas consequências.
Medeia definitivamente não cumpriu o papel designado, sem embargo, serviu ao
patriarcado do mesmo jeito. Ao assumir a brutalidade masculina, tornou-se exemplo
da mulher indesejável e destruidora de lares. Imagine como seria essa história, que é
uma tragédia, se Medeia não carregasse o estigma de ser mulher? Provavelmente
seria chamada de heroína, da mesma forma que Jasão é chamado de herói, como
92

Ulisses, como Eneias, como Agamenon ou Aquiles, em que seus atos de violência
não os depreciam – muito pelo contrário, os dignificam. O herói que mais mata ou que
mata pelo ideal da conquista, honra e/ou vingança é o mais admirado. Uma mulher
que mata não inspira respeito nem admiração. Ela inspira horror, pelo simples fato de
ser mulher.
Como pudemos verificar, a mulher foi vítima do patriarcado de diversas
maneiras. Desde a significação do seu ser até as atribuições absolutamente
desumanas como fonte do mal, do trabalho e até da morte. Porém, mesmo com total
desvantagem nesse sistema, algumas mulheres ousaram subverter o jogo do
patriarcado e se tornaram “reis” de seus tabuleiros. Essas mulheres, que propagaram
seus espíritos através das Eras e dos corpos, surgiram de tempos em tempos como
pesadelos súbitos para assombrar a civilização sob dominância masculina. Elas
viraram mito e estão em todos os lugares, sussurrando palavras de liberdade e
rebeldia às mulheres de cada época. Por conseguinte, a seguir veremos como Lilith
voou para o campo das ideias e consolidou seu reino em nossos imaginários.
Veremos como a mulher-pesadelo lidou com o poder, mesmo esse não sendo feito
para ela, e as consequências dessa transgressão.

4.4 LILITH: UMA MULHER EM FUGA E EM EXÍLIO

Passei tristonho dos salões no meio,


Atravessei as turbulentas praças
Curvado ao peso de uma sina escura;
As turbas contemplaram-me sorrindo,
Mas ninguém divisou a dor sem termos
Que as fibras de meu peito espedaçava.
O exilado está só por toda a parte!
Fagundes Varela

Conforme vimos no subcapítulo “Adão, ditador de nomes e papéis”, Adão


poderia ter tolhido Eva de antemão para evitar danos, ou poderia ter tomado tais
atitudes por já ter vivenciado algum tipo de frustração em tempos anteriores.
Passemos a analisar o livro bíblico para identificar a possibilidade dessa hipótese.
Pode-se verificar que em Gênesis 2:23 Adão disse: “agora sim! Esta é carne da minha
carne e ossos dos meus ossos”. Ao dizer “agora sim”, poderia denotar a existência de
uma mulher anterior, que não seria feita dos ossos de Adão. Outra passagem que
93

pode induzir a acreditar nessa mulher anterior está no Gênesis 1:27: “assim Deus
criou os seres humanos; ele os criou parecidos com Deus. Ele os criou homem e
mulher”. Aqui, poder-se-ia interpretar que Deus havia criado o homem e a mulher num
mesmo ato e da mesma maneira. Todavia, o texto bíblico não oferece evidências mais
substanciais do que essas, fazendo-nos supor que essa hipótese não passaria de
pura especulação. Porém, como a mitologia cristã tem suas raízes na mitologia
hebraica e nem todos os livros de origem hebraico-judaico fazem parte da Bíblia,
podemos verificar a hipótese de uma mulher anterior em livros hebraicos como o
Talmud, “O Alfabeto de Ben Sira”, o Zohar e a Cabala. Essa mulher teria por nome
Lilith e existem algumas versões de como ela teria sido gerada.
Lilith, segundo “O Alfabeto de Ben Sira”, foi criada da mesma matéria que Adão.
Deus os havia criado para coabitar como um casal, porém eles não se entendiam.
Segundo Graves e Patai (2018, p. 58, tradução nossa), Adão e Lilith viviam em pugna
constante: “Adão e Lilith nunca encontraram harmonia juntos, pois quando ele
desejava deitar-se com ela, Lilith se sentia ofendida pela posição somenos que ele
exigia”42. Ela se indignava por Adão se julgar superior e impor que ela sempre
estivesse por baixo dele no ato sexual, e ela rechaçava a ideia de ser inferior somente
por ser mulher. Para ela, se foram criados iguais, iguais eram. Eles não encontraram
acordo, então Lilith foi embora. Adão, como mais tarde faria em relação à Eva, queixa-
se a Deus por causa de sua mulher:

Adão estava em oração diante de seu Criador: “Soberano do


universo!” Ele disse: “a mulher que você me deu fugiu”.
Imediatamente, o Santo, bendito seja Ele, enviou esses três anjos para
trazê-la de volta. Disse o Santo a Adão: “se ela concorda em voltar, o
que é feito é bom. Caso contrário, ela deve permitir que cem de seus
filhos morram todos os dias”. Os anjos deixaram Deus e perseguiram
Lilith, a quem alcançaram no meio do mar, nas poderosas águas em
que os egípcios estavam destinados a se afogar. Eles disseram a
palavra de Deus, mas ela não desejou voltar. Os anjos disseram:
“afogar-te-emos no mar”43 (EISENSTEIN, 2008, s. p., tradução nossa,
grifos do autor).

42 Versão em espanhol: “Adán y Lilit nunca hallaron armonía juntos, pues cuando él deseaba yacer con
ella, Lilit se sentía ofendida por la postura reclinada que él exigía”.
43 Versão em inglês: “Adam stood in prayer before his Creator: ‘Sovereign of the universe!’ He said: ‘the

woman you gave me has run away’. At once, the Holy One, blessed be He, sent these three angels to
bring her back. Said the Holy One to Adam: ‘If she agrees to come back, what is made is good. If not,
she must permit one hundred of her children to die every day’. The angels left God and pursued Lilith,
whom they overtook in the midst of the sea, in the mighty waters wherein the Egyptians were destined
to drown. They told her God's word, but she did not wish to return. The angels said: ‘We shall drown
you in the sea’”.
94

Vemos aqui figuras masculinas expressivas e de referência trabalhando como


uma equipe para que a instituição patriarcal atingisse seu máximo sucesso.
Consonante com o patriarcado, Jeová, como o maior patriarca, O Pai, O Rei, O
Senhor, ouve da boca de sua criatura primordial e basilar, Adão, que a mulher dada a
ele fugiu. Ele usa o termo “dada” porque ela é uma propriedade, e como um objeto foi
transferida de uma persona masculina para outra. Essa ideia de tratar a mulher como
uma propriedade do homem irá perdurar por séculos, chegando a estar inscrita na Lei,
como, por exemplo, no Código de Hamurabi44. Gerda Lerner comenta (2019, p. 128)
que duas premissas básicas sobre o tratamento da mulher no referido Código
determinam “[...] que parentes homens têm o direito de dispor de parentes mulheres
e (a de que) a esposa e os filhos de um homem fazem parte de sua propriedade e
devem ser usados como tal”. É quase como se Lilith fosse uma ovelha de seus
rebanhos, por isso Adão reclama que ela fugiu. Ou seja, ela escapou de um lugar que
não desejava estar. No entanto, Deus, ao ouvir que a mulher havia ido embora, não
se incomodou em perguntar a Adão o que sucedera para que ela tivesse tomado essa
atitude. Não perguntou porque não interessa. O lugar da mulher seria ao lado de seu
marido e não existiria justificativa para que ela não permanecesse em seu lugar. Como
foi dito por Wittig anteriormente, o casamento (ou nesse caso, união vitalícia imposta)
exige da mulher obrigações como coabitação diária, coito forçado, reprodução a
serviço do marido, entre outras. Sendo assim, Deus manda três anjos, figuras
masculinas, para que a coajam a retornar para cumprir com suas obrigações. Nessa
coerção, Deus usa a vida dos filhos de Lilith para chantageá-la. Como Lerner
esclarece, mulheres em situação de dominação podem, facilmente, ser coagidas em
razão da prole: “se uma mulher fosse capturada com os filhos, se sujeitaria a
quaisquer condições impostas pelos captores para garantir a sobrevivência deles”
(LERNER, 2019, p. 114). Então, os anjos, como capatazes de Deus, a fim de cumprir
o desejo dos patriarcas, perseguem Lilith, da mesma forma que muitas mulheres
também são perseguidas ao fugir. Às vezes, são mortas45 por terem fugido, inclusive,

44 Hamurabi foi um rei do Império Babilônico que compilou uma série de códigos de lei pré-existentes
e algumas já aplicadas há centenas de anos. Em razão da grande diversidade de povos com etnias e
culturas diferentes vivendo sob o reino de Hamurabi, seu código tem uma extensa variedade de
influências desses povos que se estendiam das regiões entre Eufrates e o Tigre (LERNER, 2019, p.
139).
45 Como exemplo de destino fúnebre para as mulheres que fogem, mas são capturadas, apresentamos

a matéria jornalística chamada Samia Shahid 'honour killing' death: Cleric 'threat' claims over marriage
95

na narrativa, Lilith também foi ameaçada de morte por afogamento. Jacine Porto
explica que as mulheres em situação de violência e subjugação reagem de infinitas
maneiras e umas das estratégias de enfrentamento contra a violação é a fuga46:
“algumas mulheres tentam livrar-se da agressão fugindo [...], mas, geralmente, eram
encontradas e por vários motivos, obrigadas a voltar [...]” (PORTO, 2004, p. 73, grifos
nossos).
Mesmo sendo perseguida, coagida e ameaçada, Lilith não voltou ao lugar
imposto a ela. Consequentemente, Adão estava sozinho de novo. Segundo Graves e
Patai (2018), Deus fez uma primeira Eva, a qual provocou repulsa a Adão (por ter
presenciado sua criação) e ele a rechaçou, (não se sabe o destino dessa mulher); em
seguida, fez a segunda Eva, que seria a mulher idônea. Não obstante, para Eva ser
idônea de verdade, ela teria que cumprir um papel maior do que ser mãe e/ou esposa:
ela teria que ser um exemplo da mulher que o patriarcado desejava. Uma mulher
oposta a Lilith (já que esta exprimia o pavor dos homens – seja seu marido, seu deus
ou seu caçador). Ela teria que ser uma mulher que aceitasse prontamente seu destino
de inferiorização, assédio e violência, pois Lilith, mulher-pesadelo, apesar de todas as
consequências negativas, não cedeu. E não o fez porque sabia que era igual a Adão,
não cedeu porque tinha desejos e opiniões. Eva não poderia ser assim.
Logo, os relatores da narrativa mitológica construíram a mulher desejada:
mansa, calada, submissa e culpada. Através da figura ordenadora e nomeadora de
Adão, a mulher foi construída destituída de identidade e autonomia, já que veio da
costela dele. Ao nascer, Adão lhe teria atribuído um nome que lhe impunha um dever
indelével: o de ser parideira e ela foi coibida de sentir desejo sexual (revelada na figura
da serpente). Adão a teria acusado de quebrar a ordem divina por comer o fruto da
Árvore do Conhecimento. Dessa forma, é incriminada por sua transgressão e
responsabilizada pela herança de pecado que o mundo carregaria:

(IQBAL, 2016) que conta a trágica história de Samia Shahid: atraída por sua mãe e irmã para a morte,
mas executada pelo pai e o primeiro marido, do qual teria fugido.
46 A fuga era e continua sendo um mecanismo de sobrevivência da mulher. Avani Santana,

coordenadora do Centro de Referência Clarice Lispector, em entrevista ao Diário de Pernambuco,


comenta que as mulheres que buscam por ajuda pelo Centro recebem orientações de como escapar
de um agressor. Na matéria, essas orientações recebem a nomenclatura de “planos de fuga”. Em outras
matérias jornalísticas, também podemos encontrar narrativas de mulheres que fugiram na tentativa de
sobreviver. Destacamos aqui: A fuga eterna de quem sofreu violência doméstica (SOARES, 2014) e
“’Nós só queremos sobreviver’: as irmãs sauditas que temem a pena de morte após fugirem do país”
(BBC.COM., 2019).
96

No contexto histórico da época em que Gênesis foi escrito, a serpente


era associada com clareza à deusa da fertilidade, representando-a
simbolicamente. Sendo assim, pela ordem de Deus, a sexualidade
livre e aberta da deusa da fertilidade deveria ser proibida para a mulher
caída. A forma pela qual sua sexualidade deveria se expressar era a
maternidade. Sua sexualidade foi definida para servir a função
maternal e limitada a duas condições: teria de se subordinar ao marido
e dar à luz os filhos com dor (LERNER, 2019, p. 242-243).

Posto isso, Eva, segundo os desejos dos patriarcas, cumpriu os propósitos


estabelecidos pelo patriarcado. Ela foi apartada de tudo o que faz de alguém um ser
humano, reduzida a um objeto útil para Adão. Representou aquela que traiu a raça
humana por se associar à serpente, acessando o conhecimento proibido – instituindo
que é cauteloso que a mulher permaneça ignorante; e viveu ao lado de Adão,
cumprindo seu papel de esposa, parindo seus filhos – de acordo com a Bíblia, foram
trinta e três filhos e vinte e três filhas. Tudo isso para impedir que Eva não se
convertesse em um pesadelo, mas sim em uma propriedade. Em contraponto, Lilith
não aceitou ser restringida a um papel. Ela assumiu o controle de seu destino por meio
da fuga e do exílio dando vida ao pesadelo do patriarcado: a mulher que não pode ser
submetida.
O exílio, inerente à condição humana, pode ser investigado por muitas áreas
do conhecimento, dado que o tema perpassa questões como: insegurança, perda,
medo, desarraigo, deslocamento etc. Segundo Maria José Queiroz em sua obra Os
males da ausência e ou a literatura do exílio (1998), o léxico “exílio” pode estar
vinculado às expressões como: Heimveh (alemão), mal du pays (francês),
homesickness (inglês) que exprimem o sentido de dor, perda ou ausência de raiz etc.
O exílio pode ser tanto voluntário como forçado e as nossas mulheres-pesadelo
experienciaram ambos. Medeia, quando fugiu com Jasão da Cólquida, exiliou-se
voluntariamente, tal como Lilith quando escapou do Éden. Contudo, com seus
deslocamentos, elas desafiaram os seus proprietários e uma vez longe de seus jugos,
mandamentos e “proteção”, não há mais como retornar. Segundo Guillén (2005), o
indivíduo pode vivenciar um outro tipo de exílio que não o físico: o metafórico, que
consiste no sentimento de não pertencimento do sujeito onde ele já se encontra
inserido, por isso, sofre o isolamento dentro de si mesmo, o que pode resultar na fuga
e/ou exílio voluntário geográfico. Essa sensação de não pertencimento em suas
pátrias é notória nas duas personagens, visto que optaram deliberadamente pela fuga.
Por conseguinte, desdenhando de seus locais de origem, sofrem o exílio forçado, por
97

assim dizer, o desterro, o banimento. Medeia, sendo banida da Cólquida, de Iolcos e


de Corinto; Lilith, banida do Jardim do Éden e de todas as partes, condenada a vagar
pela Terra e a castigar a descendência de Adão:

O Senhor, abençoado seja, retirou Lilith do fundo do mar e outorgou-


lhe o poder sobre todas aquelas crianças, os “pequenos rostos” dos
filhos dos homens, que estão sujeitas à punição pelos pecados de
seus pais. Ela andou então por todos os cantos do mundo. Aproximou-
se dos portões do paraíso terrestre, onde avistou os Querubins, os
guardiães dos portões do Paraíso, e sentou-se junto à espada
flamejante, cuja origem era semelhante à sua. Quando viu a espada
flamejante a girar, indicando que o homem havia pecado, fugiu e pôs-
se a andar pelo mundo, e, ao encontrar crianças sujeitas à punição,
maltratava-as e matava-as (KOLTUV, 2017, p. 37, grifo da autora).

À vista disso, Lilith e Medeia são andarilhas, forasteiras, mulheres de lugar


nenhum. Entretanto, embora o exílio, a fuga ou o deslocamento possa
semanticamente significar pesar, falta, vazio e perda, também pode expressar
liberdade. Como visto com Gerda Lerner (2019), as mulheres foram percebidas como
seres vulneráveis na sociedade, logo, podemos intuir por meio do exemplo das
mulheres-pesadelo que a fuga e o exílio se tornaram destino para as mulheres que
não se adaptaram ao casamento ou à maternidade sob o regime da dominância. Para
Hannah Arendt, poder deslocar-se é uma das maneiras mais antigas de liberdade,
pois se antagoniza ao cárcere: “sermos capazes de partir para onde quisermos é o
sinal prototípico de sermos livres, assim como a limitação da liberdade de movimento,
desde tempos imemoriais, tem sido a pré-condição da escravização” (ARENDT, 2008,
p. 12).
Segundo Guillén (2005), o exílio também poderia representar regeneração,
reedificação, refazimento, reestabelecimento, reconstrução: “o que importa, contudo,
é que o exílio, seja voluntário seja imposto, é uma forma de sobreviver sem haver a
perda da própria voz” (GUILLÉN, 2005, p. 10). Portanto, o exílio de Lilith e de Medeia
não seria apenas banimento, renúncia e afastamento, mas, acima de tudo, tratar-se-
ia de lutar por suas vozes, suas vontades e por controlar seus próprios destinos. Por
meio da fuga e do exílio, as mulheres-pesadelo impõem seus brados e desafiam o
patriarcado violento que as excluem do mundo em que o macho impera.
A seguir, nos depararemos com o arquétipo vivo, figura histórica, de carne e
osso, luz e calor, e buscaremos entender como a mulher-pesadelo veio à tona no
Brasil, na primeira metade do século XX, através do corpo da dançarina do povo.
98

4.5 LUZ DEL FUEGO: A REALIZAÇÃO DO MITO

Día vendrá en que no habrá tejedores y nadie


usará ropas. Todos nosotros estaremos
desnudos bajo al Sol.
Kahlil Gibran

No início do capítulo “O mito hoje” do livro Mitologias (1972) de Roland Barthes,


é dada uma definição para a palavra “mito” bastante coerente etimologicamente: “o
mito é uma fala”. Com isso, pode-se pressupor que “fala” seja somente uma oralidade,
não obstante, Barthes admite fala como mensagem, então, a mensagem amalgamada
na fala mítica pode ser transmitida também em código escrito ou por outras variadas
expressões:

Esta fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser
formada por escritas ou representações: o discurso escrito, assim
como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos,
a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica (BARTHES,
1972, p. 200).

Consequentemente, compreendemos que o mito pode se cristalizar em forma


de símbolos, emblemas, iconografias, fotos, placas, gestos etc. Na intenção de
simplificar o entendimento do mundo, o homem busca paradigmas e formas. Nisso,
aparecem os arquétipos de deuses, duendes, ogros, a velha sábia que mora no meio
do nada, heróis, fadas, bruxas etc. Para Carl Gustav Jung, o arquétipo seria um
conjunto de características e discursos que rompem gerações e civilizações. Sendo
um tipo de senso comum, um ideário coletivo que por vezes se manifesta em um
sujeito sem que ele conscientemente busque ser hospedeiro:

Os arquétipos são sistemas de prontidão que são ao mesmo tempo


imagens e emoções. São hereditários como a estrutura do cérebro. Na
verdade, é o aspecto psíquico do cérebro. Constituem, por um lado,
um preconceito instintivo muito forte e, por outro lado, são os mais
eficientes auxiliares das adaptações instintivas. Propriamente falando,
são a parte ctônica da psique – se assim podemos falar – aquela parte
através da qual a psique está vinculada a natureza, ou pelo menos em
que seus vínculos com a terra e o mundo aparecem claramente. Os
arquétipos são formas típicas de comportamento que, ao se tornarem
conscientes, assumem o aspecto de representações, como tudo o que
se torna conteúdo da consciência. Os arquétipos são anteriores à
consciência e, provavelmente, são eles que formam os dominantes
estruturais da psique em geral, assemelhando-se ao sistema axial dos
99

cristais que existe em potência na água-mãe, mas não é diretamente


perceptível pela observação. Do ponto de vista empírico, contudo, o
arquétipo jamais se forma no interior da vida orgânica em geral. Ele
aparece ao mesmo tempo que a vida. Dei o nome de arquétipos a
esses padrões, valendo-me de uma expressão de Santo Agostinho:
Arquétipo significa um “Typos” (impressão, marca-impressão), um
agrupamento definido de caracteres arcaicos, que, em forma e
significado, encerra motivos mitológicos, os quais surgem em forma
pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore (JUNG,
1985, p. 33-34, grifos do autor).

Jung nos esclarece que o arquétipo faz parte da nossa estrutura cerebral,
transcendendo o tempo, tornando-se característica da condição humana, se
manifestando espontaneamente em nossa sociedade, igualmente a fala mítica. Posto
isso, podemos perceber que o mito não foi deixado ou esquecido em tempos remotos.
Como nos diz Barthes, o mito pode estar em tudo: numa revista, num cartaz
publicitário, na televisão. Desse modo, identificamos que o mito e o arquétipo da
mulher-pesadelo podem residir no corpo da mulher real: a mulher de carne e osso.
Dessa maneira, a mulher-pesadelo da sociedade patriarcal não está somente
na imaginação de um(a) escritor(a): ela está no meio de nós. As mulheres-pesadelo
que abordamos nesta Dissertação são as míticas Medeia e Lilith, e é também a
personagem histórica Luz del Fuego (Figura 3). Mas, por serem um arquétipo, não
são somente elas. A mulher-pesadelo do patriarcalismo é aquela que não deseja um
casamento formal, que foge para longe do jugo opressor da família, que se expõe
lascivamente, que prefere o exílio a resignar-se, que procura seus próprios meios de
vida, que não se curva à demonização ou má fama atribuída a ela, que não deseja ser
mãe por convenção social, que quebra todo o padrão pré-estabelecido. Luz del Fuego
nasceu das entranhas de Dora Vivacqua que, por meio de sua vida e arte, deu vida e
eternizou a mulher-pesadelo.
Quando Dora (Figura 4) ainda era muito criancinha, ela e a sua família saíram
do Espírito Santo e se firmaram na capital mineira. Desde aí, a menina caçula dos
Vivacqua já demostrava o quanto era puro fogo. Luz del Fuego foi transgressora e um
verdadeiro pesadelo para a sua família, que era tradicionalista e religiosa. Sua mãe,
Etelvina Vivacqua, era a mais devota de todos os familiares. Dora, ao perceber que a
família tradicional (como a dela) tal qual a Igreja utilizava da perfídia e do falso
moralismo para manter as aparências enquanto escondiam práticas monstruosas,
segredos horrendos e indizíveis, não costumava economizar críticas mordazes e não
se adequava:
100

Não aceitava ordens, detestava que opinassem sobre sua vida. Na


escola era insolente. Respondia aos professores e durante os castigos
fazia caricaturas debochadas deles. Fora expulsa da aula de religião
porque falava que as missas domingueiras não passavam de exibição
dos grã-finos, fingindo sentimentos que não tinham. Que a esmola era
a mentira dos ricos para alimentar a ganância dos padres
(AGOSTINHO, 1994, p. 85).

Convém enfatizar que sua repulsa à Igreja não se deve necessariamente pela
falta de fé em Deus, e sim por ser contra o sistema dissimulado e mendaz, assim como
a família tradicional:

Irritam-me as missas de domingo. Quanto fingimento! Que ostentação


nos templos! Que intolerância com aqueles que procuram amparo em
suas portas! O meu Deus tem mais a ver com o Jesus da Galileia.
Aquele homem simples e humilde, coração generoso, capaz de
abraçar Madalena, a pecadora (AGOSTINHO, 1994, p. 55).

Respondona e impertinente, à medida que ela crescia, cresciam sua insolência


e seu desejo de liberdade. No intermédio da adolescência com a terna juventude, a
vida provinciana das Minas Gerais a enfadava. Então, logo se agitou para morar na
badalada cidade do Rio de Janeiro. Lá, viveu por algum tempo sob tutela do irmão
advogado e político Attilio Vivacqua47. Contudo, como era de se esperar, Dora não
aceitava as ordens do irmão, então Attilio passou a tutela para a irmã Angélica e seu
marido, Carlos.
Dora que recebia mimos e era bem tratada desde criança pelo cunhado, via
nele a esperança de retornar ao Rio de Janeiro. No entanto, Carlos abusou da
proximidade de Dora para cercá-la. Depois de um episódio de bolinação, a qual Dora
reagiu mal, Carlos passou a lhe encher de presentes. Acreditando que os regalos não
passariam de galanteios, Dora até brincava de forma a provocar o cunhado. Porém, o

47Attilio
Vivacqua foi um capixaba proeminente. Atuou no Direito (como jurista e professor), no
Jornalismo e, sobretudo, na política, tanto que existe uma cidade no Estado do Espírito Santo com seu
nome e o setor administrativo da Câmara Municipal de Vitória, capital do Espírito Santo, também o
homenageia. O Palácio Atílio Vivácqua (a escrita do nome do senador diverge a depender da fonte) foi
projetado pelo renomado arquiteto Carlos Alberto Vivácqua Campos (Bebeto Vivacqua) e inaugurado
10 de setembro de 1976, quando o Senador Attilio já estava falecido. Bebeto Vivacqua assinou outros
projetos importantes no Espírito Santo, como o Palácio do Café, o Parque Tancredo Neves, a Junta
Comercial, o Centro de Lazer da Ilha da Luz, o Hotel Vitória Palace, entre outros. A família Vivacqua é
homenageada largamente no Estado, além das homenagens já citadas, assinalamos o Terminal
Rodoviário Carlos Alberto Vivácqua Campos e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Elzira
Vivácqua dos Santos.
101

que para ela seria uma brincadeira, para Carlos era uma obsessão: ele passou a
importuná-la sexualmente. Quando Angélica flagrou o abuso do marido e tendo Dora
revelado que tal comportamento era recorrente, Angélica acusou a irmã caçula de ser
louca e a internou por dois meses no Hospital Raul Soares (Figura 5), no qual Dora
sofreu com tratamentos desumanos, como isolamento em solitária, sedação
excessiva e banhos gelados. Dora foi punida severamente, todavia Carlos continuou
a vida normalmente, inclusive, a sogra, Etelvina, o tratava como se nada tivesse
acontecido e duvidava piamente que seu genro poderia fazer tal ofensa a Deus
(AGOSTINHO, 1994).
Depois dos maus tratos sofridos, Dora ficou abalada e emagreceu quase dez
quilos. Achilles a liberou do hospital e a convenceu a passar uma temporada na
fazenda do irmão Archilau, no Espírito Santo. Com o tempo e o contato com a
natureza, seu vigor e humor foram se restaurando e não demorou muito para Dora
fazer travessuras e escandalizar os colonos da fazenda. Luz del Fuego, tal como Lilith
e Medeia, compartilhava de uma estreita relação com a natureza: Lilith no Éden,
Medeia na Cólquida e Luz na Ilha do Sol. Recordemos que a mulher que se relaciona
com a natureza tem sido execrada e taxada de selvagem, bestial, bruxa, nociva,
perigosa. Roger Bartha assinala que o homem civilizado teme a natureza, pois ela o
agride selvagemente por “conter signos e sinais de uma sabedoria profunda”48
(BARTHA, 1992, p. 20, tradução nossa). Esta sabedoria que a natureza comporta e
que divide com a mulher teria sido, como já comentamos, a causa de corrupções
terrenas, enfermidades, dores, sofrimentos e morte. Segundo Bartha:

[...] para Agostinho a natureza está, devido ao pecado original,


essencialmente contaminada pelo mal e os homens se encontram
irremissivelmente condenados ao sofrimento, sem possibilidade de
alcançar voluntariamente o estado de graça ao qual aspiravam os
monges do deserto49 (BARTHA, 1992, p. 58, tradução nossa).

Luz del Fuego carrega o estigma da mulher selvagem, que conversa com a
natureza e é perigosa, visto que cochicha segredos com ela. Certo dia, Dora foi
flagrada nua por um rapazinho que trabalhava na fazenda do irmão Archilau e ela,

48Versão em espanhol: “[...] signos y señales de una sabiduría profunda”.


49Versão em espanhol: “[...] para Agustín la naturaleza está, debido al pecado original, esencialmente
contaminada por el mal y los hombreas se encuentran irremisiblemente condenados al sufrimiento, sin
posibilidad de alcanzar voluntariamente el estado de gracia al cual aspiraban los monjes del disierto”.
102

com toda naturalidade, lhe pediu que fosse buscar uma câmera para fotografá-la com
“seu traje de Eva” (anos depois desse acontecido, na Figura 6, pode-se ver Luz del
Fuego vestida de Eva livremente). Quando o rapaz contou ao patrão que Dora estava
vestida apenas com folhas de parreira, com duas cobras-cipós entrelaçadas nos
braços e que queria registrar o look em fotografia, Archilau ficou consternado e
chamou um outro irmão, Archimedes, para resolver o que fazer com a irmã.
Archimedes e Dora tiveram uma grave briga que resultou em um ferimento de cinco
pontos na testa dele e uma nova internação em manicômio para ela (AGOSTINHO,
1994).
Antes de comentar a necessidade dos irmãos de controlar a jovem Luz,
destaquemos que as nossas três personagens têm proximidade com as serpentes.
Luz, aos seis anos, descobriu o interesse pelas cobras. Em uma das visitas ao
serpentário do Instituto Ezequiel Dias, Dora se agarrava às grades para não ir embora,
ficava em polvorosa quando algum funcionário manejava os seus répteis favoritos.
Mais tarde, além de criá-las, se apresentava com elas no teatro. Já Medeia,
iconograficamente, é representada em um carro mágico puxado por serpentes,
ademais de uma serpente50 ter guardado o velocino de ouro. E Lilith, que é
representada como uma cobra, inclusive pode se configurar na que convenceu Eva a
comer o fruto proibido, como discutimos anteriormente. Entretanto, se a lei de Deus
Pai aparta a mulher da serpente e institui que sejam inimigas para sempre, uma
mulher que convive com cobras não pode ser virtuosa. É aterradora, é demoníaca.
Para Alexander e Russel (2008), as características que são atribuídas aos demônios
na Antiguidade podem ser as mesmas atribuídas às bruxas na Idade Média. Dentre
uma das características, está a intimidade com cobras que, não coincidentemente,
também compõe a mulher-pesadelo:

Entre os mais terríveis demônios sumérios estava Ardat Lili ou Lilitu,


prima da greco-romana Lâmia e o protótipo da Lilith hebraica. Lilitu era
um espírito feminino; era frígida e estéril, dotada de asas e mãos e pés
com ganas; acolitada por corujas e leões, movia-se velozmente
durante a noite soltando uivos estarrecedores e seduzindo os homens
adormecidos ou bebendo-lhes o sangue. Um outro demônio do sexo
feminino, Labartu, saía com uma serpente em cada mão e atacava
crianças e suas mães ou amas. Contra semelhantes poderes era
necessária toda espécie de magia, incluindo amuletos, palavras

50As versões podem variar de “dragão insone” até “serpente insone”. Em latim, a palavra drago serve
para ambas as criaturas.
103

mágicas e exorcismos, mas sobretudo a proteção da divindade tutelar,


pois “o homem que não tem um deus quando caminha na rua, o
demônio envolve-o como um traje” (ALEXANDER; RUSSEL, 2019, p.
39, grifo dos autores).

Desde tempos antigos, a imagem de uma mulher com cobras nas mãos é
considerada horripilante (na Figura 7 é possível ver Luz com uma de suas cobras). A
mulher, de antemão, precisa ser controlada, e a que se associa com a serpente é a
figura do mal, então, o seu controle necessita ser imperativo e impiedoso.
Vimos por meio das teorias aqui abordadas que o homem institui e controla os
padrões que a mulher deve seguir. Para a dominação da mulher, o homem se utiliza
das instituições sociais como a Igreja, a família, a política e também a academia. Com
o advento das ciências da psique, os padrões de normalidade da psicologia feminina
foram reiterados à sua capacidade reprodutiva, à sua sexualidade e ao
comportamento predeterminado pela sociedade patriarcal. Então, as mulheres que
fugiam ao padrão de comportamento imposto ao seu gênero poderiam ser facilmente
controladas dentro de hospitais psiquiátricos sob justificativas misóginas. Como o
papel da mulher segundo o patriarcado seria o de ser passiva, lânguida, calma,
paciente, taciturna, complacente, casta, frugal, angelical, obediente, de casar-se com
um homem, procriar com ele, criar e educar seus filhos, aceitar suas violações e
traições etc. A transgressão desses padrões poderia facilmente ser transfigurada em
loucura a fim de punir e dominar a mulher:

E, era no momento das internações que esses “papéis femininos eram


invocados e qualquer outra estratégia de vida implicava na afirmação
de desadaptação ou de desadequação dessas mulheres às normas
vigentes”51. Situação análoga se desenrolava, por exemplo, no
Hospital Juquery, no Estado de São Paulo, onde, “as mulheres quase
sempre eram internadas por alegado distúrbio relativos sobretudo ao
espaço que lhes coube na definição de papéis sexuais e sociais [...] a
imagem ideal: boas mães, boas filhas e boas esposas”52 era um
elemento definidor nos processos de internação (FATURI, 2015, p. 89,
grifos do autor).

Luz, assim como Lilith e Medeia, recebeu duras investidas e punições para ser
controlada. Sem embargo, quando porventura elas reagiram, foram demonizadas,

51 Na citação, Fábio Rosa Faturi faz referência a obra A Construção do moderno e da loucura: Mulheres
no Sanatório Pinel de Pirituba (1929-1944) (VACARO, 2011).
52 Na citação, Fábio Rosa Faturi faz referência a obra O espelho do mundo: Juquery, a história de um

asilo (CUNHA, 1986).


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rotuladas de violentas, delirantes, loucas, histéricas. Vale ressaltar que histeria vem
da palavra grega hystera, que significa “útero”. A histeria seria um chilique de mulher,
causada pela infertilidade – visão difundida a partir da Antiguidade –, ou pela lascívia
e perversão sexual – percepção adotada desde o século XIX. No caso de Luz,
segundo sua irmã Angélica, foi atribuído um diagnóstico de esquizofrenia e a
internação teria sido recomendação médica: “o próprio psiquiatra lhe dissera que a
naturalidade com que Dora se despira para o exame clínico era um sintoma de
distúrbio psíquico. Qualquer moça ficaria envergonhada ao tirar a roupa diante de um
homem, mesmo sendo um médico” (AGOSTINHO, 1994, p. 117). O fato da nudez de
Luz ser encarada como loucura se deve à necessidade de controle do corpo livre. O
antigo ideário que liga a ocultação do corpo com a pureza foi ressignificado pela
psicanálise, ligando a ocultação corpórea com a sanidade. Por conseguinte, podemos
entender que as internações de Luz eram penalidade e tentativa de subjugação.
Porém, segundo Bruna dos Santos Beserra Pereira, é claro que nem todas as
mulheres que foram internadas em manicômios eram mulheres saudáveis vítimas de
encarceramento punitivo. Provavelmente, existiram aquelas que necessitavam de
tratamento médico: “no entanto, não se pode negar que o corpo feminino carregava
estigmas que o tornavam mais suscetível ao internamento” (PEREIRA, 2016, p. 92).
Pela segunda vez, Dora foi liberada por Achilles e foi morar um período na
cidade de Campos, no Estado do Rio de Janeiro. Depois, voltou para Cachoeiro de
Itapemirim e, posteriormente, conseguiu escapar para a cidade do Rio de Janeiro. Tal
qual Lilith e Medeia, Luz precisou fugir para poder ser quem era, para buscar sua
emancipação, sua voz. Seu primeiro logradouro foi o internato feminino, o Colégio
Imaculada Conceição, em Botafogo, no ano de 1937, quando Dora já estava
completando seus 21 anos.
No início de sua vida, Dora não fazia ideia de que tipo de artista desejava ser
ou que público gostaria de atrair, entretanto, sabia que sua vida estava destinada a
afetar as pessoas, como podemos observar no diálogo que segue entre Luz e sua
mãe:

— Uma artista famosa, é o que serei. Quero me exibir em público, ser


admirada, receber aplausos e flores.
— Nunca! Vida de artista é perdição que arrasta a alma para a
desgraça eterna no fogo do inferno.
105

— E o que me importa isso? De qualquer forma, quando eu for velha


como a senhora, já estarei as penas do inferno. A mocidade é curta e
a velhice, o castigo de viver.
— Jesus Sacramentado! Etelvina se desesperava. – Essa menina
quer me matar de desgosto! (AGOSTINHO, 1994, p. 96).

Atentemos que Etelvina, mãe de Luz, considera a vida de artista uma perdição
para a alma. Isso pode se dar pela dicotomia vida pública x vida privada. Segundo
Bourdieu (2012), a vida pública é de domínio masculino, em que os homens exibem
seus corpos e seus rostos, arrogam espaço, tomam a palavra – o que podemos incluir
o labor artístico, já que tal ofício exige que se exponha, se não, um produto
extracorpóreo: o próprio corpo do artista. Por outro lado, as mulheres estariam
condenadas a vida privada, oculta e reclusa, que jamais seria espaço de
contemplação de outrem que não pertencesse ao grupo familiar. Logo, para o gênero
feminino, a vida artística seria inviável ou, ao menos, vergonhosa/ indigna (na Figura
8 vemos Luz, nos anos 50, já famosa).
E, antes mesmo de ser a Luz del Fuego, por assim dizer, Dora se expunha e
era notável no espaço público. Passeava pela praia de Marataízes, no Espírito Santo,
de calcinha e bustiê improvisado e quando questionada acerca do sutiã, dizia: “não
vivo na Idade Média pra andar com armadura” (AGOSTINHO, 1994, p. 87).
Dora era implacável contra o conservadorismo. Como foi criada sob rédea curta
por uma mãe carola e irmãos políticos, advogados, fazendeiros, aprendeu logo cedo
como uma mulher de sociedade e de família tradicional deveria se comportar. Mas,
como vimos, de todos os papéis que ela estava disposta a desempenhar (sendo artista
ou não), o de mulher “bela, recatada e do lar” era o que ela não desempenharia, nem
que isso lhe custasse a vida:

— Que me importa o que pensem de mim? É minha vida. Faço dela o


que quiser! Repetia a todo instante.
— Escapar do cativeiro das normas sociais traz dor e sofrimento. Você
está preparada para isso, minha querida?
Mariquinhas perguntava apenas para certificar-se do indubitável.
Sabia que era uma questão de tempo. Dora jamais se deixaria
submergir no mundo incolor de uma vida prosaica (AGOSTINHO,
1994, p. 129).

Nessa citação, a irmã mais querida de Luz lhe adverte sobre os percalços que
ela terá de passar para poder viver sua própria vida como desejar. Lerner aponta que
dentre os muitos mecanismos de subjugação feminina estão a doutrinação de gênero
106

– que, por vezes é ministrada pelas mulheres ao redor; ensinando, vigiando e coibindo
umas às outras – e “[...] pela concessão de privilégios de classe a mulheres que
obedecem” (LERNER, 2019, p. 267). Desse modo, se a mulher se resignar ao cativeiro
que lhe é dado e se for obediente, usufruirá de pífias vantagens como estar “protegida”
da sociedade brutal por um homem de “bem”, como o cunhado Carlos, que lhe daria
o status de mulher casada, e, por isso, será qualificada socialmente como respeitável.
Apesar disso, um status vazio dado por uma sociedade hipócrita e legitimado
por um contrato de submissão não era o que Luz del Fuego queria. Inclusive, não
hesitava em externar suas ideias contraventoras, não poupava críticas e deboches à
Igreja ou ao modelo de família tradicional. Sobre virgindade, algo importantíssimo para
“moças de família”, dizia: “a virgindade é um estorvo. Mais cedo ou mais tarde vou me
livrar dela. Mas eu decido quando” (AGOSTINHO, 1994, p. 99). Para a sociedade
patriarcal, a virgindade da mulher se constitui como uma moeda valiosa, e Luz não
deixaria esse recurso ser usado por ninguém além dela mesma. Advogava por decidir
o destino do próprio corpo e zombava do estereótipo da moça indefesa buscando o
par ideal: “o mal das moças de Cachoeiro era acreditar em príncipes encantados. Elas
deviam ler menos romances de Madame Delly e não bancar as santinhas”
(AGOSTINHO, 1994, p. 87). Não se imaginava como uma esposa qualquer, em face
dos exemplos de casamentos falidos/charlatões de suas próprias irmãs, e
escandalizava pelo discurso antitradicional: “dizia preferir ser uma prostituta a posar
de mulher séria, esposa e mãe, ao lado de dois canalhas iguais a eles” (AGOSTINHO,
1994, p. 112), referindo-se aos cunhados provindos de “boa família”, “homens de
honra”, “tementes a Deus”, que não perdiam a oportunidade de assediá-la. Carlos,
como já comentamos, que causou uma das internações de Luz em um hospício, era
um reconhecido conquistador, que colecionava amantes por toda a cidade. A esposa,
Angélica, sabia dos fatos, contudo, se fazia de cega. E, quando presenciou a
infidelidade do marido, culpou a própria irmã lhe infringindo mais dor, pois era
necessário abafar o assunto para manter as boas e falsas aparências. Típico do
patriarcado: coerção, culpabilização, punição à mulher e isenção ao homem – o que
também ocorreu a Medeia e Lilith, que foram demonizadas, enquanto Jasão e Adão
foram isentos.
Luz del Fuego foi muitas vezes execrada, não obstante, nunca se manteve
resignada. E, por sua personalidade nada convencional, imagina-se que naquele
tempo nenhum homem a iria querer, menos ainda casar-se com ela. Entretanto,
107

contrariando as expectativas, os homens se aglomeravam para ter sua atenção: teve


vários amantes e recebeu muitas propostas de casamento. Uma das pessoas que lhe
propôs casamento foi José Mariano Carneiro da Cunha Neto, membro de uma das
famílias mais célebres do Rio de Janeiro, proposta comprovada pelo diálogo:

— Se você for minha mulher, não terá de trabalhar nunca.


Mais uma vez Mariano renovou sua proposta de casamento. Se
aceitasse, ele oficializaria o pedido perante a família dela. Mais uma
vez Dora repudiou a ideia.
— Ouça, meu amor. Gosto de você e podemos até viver juntos. Mas
não pretendo me casar. Não é por ter assinado um papel diante de um
idiota fantasiado que lhe serei fiel. Meu coração é o verdadeiro
documento de fidelidade (AGOSTINHO, 1994, p. 137).

A recusa do casamento não era por não acreditar no amor ou na união entre
pessoas e sim porque acreditava que o casamento formal não faria da mulher uma
esposa, faria dela uma refém: “sou pelo divórcio. Se o adotassem, talvez me casasse.
Mas o casamento, da forma entre nós concebida, é contrato muito rígido para a
volubilidade de nossos dias” (AGOSTINHO, 1994, p. 35). E Luz estava certa, já que o
contrato de casamento impõe obrigações indeléveis à mulher, como vimos na teoria
de Wittig, enquanto o homem mantém sua liberdade e passa a possuir legalmente
autoridade máxima sobre a sua esposa.
Além de não aquiescer a ideia de casamento, também não concordava que a
mulher precisasse ser mãe e pensava que, por vezes, o aborto além de necessário
era legítimo: “nasci em 21 de fevereiro de 1917. Nunca um aborto foi tão necessário!
O aborto é ilegal, mas tantas vezes justificável. Infeliz da mãe que tem o filho sem
cogitar sequer das condições em que vai criá-lo” (AGOSTINHO, 1994, p. 43).
Recordemos que a mulher-pesadelo é tida como infanticida. O terror que o patriarcado
tem do infanticídio se aplica também ao aborto. E, seguramente, o horror a tais
práticas não se dá por uma motivação pró-vida, e sim por uma motivação pró-
propriedade privada. Gerda Lerner assinala que o Estado (na Antiguidade) tomou
precauções para que o feto/bebê fosse protegido sob risco de pena. Sobre um crime
contra uma mulher grávida que acarrete um aborto, a pena poderia variar dependendo
de quem seria o dono da mulher e, consequentemente, do bebê – quanto mais rico o
proprietário, mais alta a punição. No caso de aborto autoinduzido, seria considerado
crime contra o Estado, e a mulher teria que responder ao próprio rei. Contudo, não se
108

puniria abandono de bebê indesejado ou deficiente se ele fosse descartado por um


homem, pai de família (LERNER, 2019).
Ainda que essas leis descritas por Lerner fossem vigentes na sociedade
arcaica, hoje, em 2021, no Brasil, o aborto voluntário é crime descrito nos termos dos
artigos 124, 126 e 128, I e II do Código Penal. O aborto não é passível de penalidade
em três situações: caso a mulher tenha sido vítima de estupro comprovado; caso o
feto tenha anencefalia; e caso a gravidez apresente risco de vida para a mãe. Assim,
percebemos que o controle do corpo e da sexualidade feminil permanece até hoje
como propriedade da civilização patriarcalista e do Estado: “desde 1250 a. C., a partir
do uso de véu em público até a regulamentação de métodos contraceptivos e do
aborto por parte do Estado, o controle sexual das mulheres é uma característica
fundamental do poder patriarcal” (LERNER, 2019, p. 182).
Luz era uma mulher que lutava contra todo tipo de tartufismo por onde
estivesse: “a hipocrisia, por conveniência e interesse, adoeceu o corpo e a alma da
humanidade” (AGOSTINHO, 1994, p. 109). Ela acreditava que essa vida de aparência
em que se pauta a Igreja e a família tradicional precisava ser dissipada. Voltou-se para
questões mais essenciais da existência humana para elucidar as verdadeiras misérias
a ser combatidas: “para a sede, temos água, para a fome, temos o pão, para a
imoralidade, a nudez” (AGOSTINHO, 1994, p. 191). A nudez para Luz não era mero
exibicionismo ou ferramenta para a luxúria. A nudez era libertação, enquanto a luxúria
era alimentada pela vestimenta: “Glorita, a sedução não está na nudez – explicava. –
Está nas roupas que vestimos” (AGOSTINHO, 1994, p. 139). Segundo Luz, o
conservadorismo e as regras sociais tolhem a espontaneidade e a liberdade. Além de
gerar preconceitos, impedem o progresso do ser humano:

Ridículas maneiras, preconceitos seculares que entravam o progresso


dificultando a iniciativa. Ao homem, à mulher, o escravagismo de uma
cega obediência a modelos que apenas servem para sufocar nossas
ambições. Desde que não se prejudique o próximo, qualquer desejo
deverá ser satisfeito (AGOSTINHO, 1994, p. 160).

Dora Vivacqua era uma vanguardista. Quando decidiu ser dançarina, escolheu
o nome Luz Divina. Inicialmente, esse nome foi eleito para afrontar a sua mãe que
sempre foi carola (que depois de viúva, voltou-se em definitivo à devoção religiosa,
tornando-se freira, assumindo o hábito). Em seguida, a moça ganhou um batom
vermelho encarnado que se chamava Luz del Fuego. E aí encontrou o seu verdadeiro
109

nome. Todavia, foi por meio de leituras e pesquisas que, involuntariamente, Luz
encontrou-se com Lilith e Medeia:

O texto falava das mulheres da Macedônia, adeptas dos cultos de


Orfeu e de Baco, que arrastavam, nas danças, serpentes enroladas
em seus torsos, provocando espanto na assistência. Ficou em
polvorosa com a descoberta. Quando chegou à casa de Nila contando
o que pretendia, foi repreendida: — Dora, pare de invencionices. Você
não está vendo que isso é pura mitologia?
— Se for, melhor. Serei a primeira mulher no mundo a dançar com
cobras (AGOSTINHO, 1994, p. 146).

A última frase da citação anterior é bastante emblemática, pois podemos


observar uma face do mito atingindo a concretude. Apelidada de Lilith brasileira, Luz
del Fuego tornou-se um ícone. Fascinante e aterradora, ela dançava nua vestida
apenas com cobras que deslizavam pelo seu corpo (Figura 10). Sem vergonhas,
pudores ou medos, Luz encabeçou a luta pela iniciativa naturalista no Brasil. Em 1949,
fundou o Partido Naturalista Brasileiro53 (PNB) (Figura 11), que tinha como principais
pautas a defesa da mulher, do divórcio e da prática nudista. Mas o partido não foi
registrado formalmente por causa da oposição direta de seu irmão senador, Attilio
Vivacqua. No entanto, em 1950, Luz, que já havia adquirido a Ilha Tapuama de Dentro,
na Baía da Guanabara, transformou-a na “Ilha do Sol” e lá fundou o Clube Naturalista
Brasileiro, que foi o primeiro clube de nudismo da América Latina. As atividades
praticadas na Ilha do Sol envolviam: jogos de vôlei, natação e banhos de sol. A ilha
obteve seu auge quando artistas hollywoodianos a visitaram, como: Ava Gardner,
Errol Flynn, Tyrone Powel, Lana Turner, César Romero, Brigitte Bardot, Glenn Ford e
Steve MacQueen. Seu pioneirismo no que se refere à causa naturalista foi tanto que
o dia internacional em que se comemora o naturalismo é o dia de seu aniversário de
nascimento, dia 21 de fevereiro.

53Em entrevista ao Diário Carioca (1º/1/50), Luz apresenta à sociedade os ideais de seu partido: “contra
a realidade social, vestida e opressora, sem loucura, sem prostituição, sem penitenciárias, fundei o
Partido Naturalista Brasileiro. Hoje, o PNB representa uma grande força política. Muitas pessoas me
procuram, interessadas no programa do meu partido, já publicado de maneira esparsa pelos jornais.
Devo destacar, no entanto, que os principais pontos são: defender a mulher, perseguida pelos
preconceitos sociais; amparar os artistas em geral; fazer com que o governo estimule suas vocações,
proporcionando-lhes meios de estudo e trabalho; divulgar as criações artísticas nacionais em geral,
tanto no exterior como no território nacional; demonstrar e propagar a desnecessidade de certas peças
da indumentária usada pelo nosso povo, com relação ao clima do país; defender o divórcio como
medida moral; lutar pelo barateamento do custo de vida” (AGOSTINHO, 1994, p. 201).
110

Não obstante, seu pioneirismo não se resume ao naturalismo. Em um baile de


Carnaval realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Luz choca ao se fantasiar
de Noivinha Pistoleira (Figura 12) e dar tiros de revólver no teto do teatro para
denunciar um caso de feminicídio da época. Em São Paulo, apareceu fantasiada de
Iemanjá no Viaduto do Chá para fazer uma divulgação de um novo show. Contudo,
estava nua com cabelos e pelos tingidos de verde-esmeralda, o que trouxe alvoroço
à grande metrópole. Além de fazer shows de dança, Luz atuou em diversas peças de
teatro e protagonizou uma série de filmes, como “Folias Cariocas”, “A Nativa Solitária”
e “Não Me Digas Adeus”. Escreveu os livros: Trágico Black-Out (Figura 13), publicado
em 1947, que não obteve notável sucesso, pois contou com uma pequena tiragem (de
aproximadamente mil exemplares) e não foi muito divulgado – para além, seu irmão,
Attilio Vivacqua, comprou mais da metade dos volumes e os incinerou; A Verdade
Nua54, publicado em 1950, que era uma autobiografia e lá descrevia seus ideais
naturalistas e vegetarianos, mas a edição foi apreendida por sua família; e Rendez-
vous das Serpentes, que nunca foi terminado. Ademais dos filmes em que ela mesma
atuou (Figura 9), Luz conta com um filme que carrega seu nome, porém foi
protagonizado por Lucélia Santos e dirigido por David Neves, lançado em 1982 (Figura
14).
Mulher extemporânea, repudiava o preconceito: “num mundo que está
progredindo dia a dia, os preconceitos continuam amarrados a um poste”
(AGOSTINHO, 1994, p. 151). Inclusive, era ativista em causas como os direitos dos
LGBTs, com quem convivia e apoiava. Segundo Agostinho, a primeira vez que um
travesti se expõe à luz do sol sob o testemunho das ruas do Rio de Janeiro foi quando
Gilda (Agildo, empregado de Luz) aparece em companhia de Luz no centro da cidade
(AGOSTINHO, 1994). Karla Bessa, que analisa a figura de Luz del Fuego sob a
representação dela no já mencionado filme Luz del Fuego, de David Neves (1982),
apresenta uma série de apontamentos sobre a personagem. Uma de suas análises
percebe Luz e Gilda/Agildo como corpos marginais, passíveis de violência, disponíveis
a abusos e fetichizações:

54 Segundo Bessa: “Em A Verdade Nua, Luz deixa claras suas predileções estéticas e morais,
demonstrando uma formação intelectual ampla e vária, passando pela literatura, pela sexologia e pelas
artes de modo geral. Como sua ênfase é demonstrar que sua capacidade de pensar está para além da
‘esquisita e ‘excêntrica’ dançarina, como os jornais teimavam em julgá-la, Luz utiliza-se de vários
argumentos para elucidar sua filosofia de vida naturista como plenamente razoável, moderna, saudável,
culta e internacional. O livro que se pretende autobiográfico aproxima-se mais de um dispositivo
literário-político, no qual expõe sua filosofia de vida” (BESSA, 2020, p. 35-36).
111

Sua irreverência se faz notar na tela tanto na liberdade de expor o


corpo (nudez frontal, proibida pela censura até pouco tempo antes do
lançamento do filme), quanto no modo como se defende de uma
bárbara cena de estupro em uma de suas prisões, quando divide cela
com vários homens. Um deles, Agildo (Marco Soares), acompanha a
personagem de Luz por todo o restante da narrativa, sendo um amigo
constante e fiel. A parceria Luz/Agildo funciona como uma aliança
entre os diferentes tipos de corpos/vidas marginalizados, de um lado,
uma vedete dos palcos e da vida, ateia, assumindo suas escolhas
amorosas e sexuais e, de outro, um gay efeminado, negro, envolvido
com a polícia de costumes. Ambos expostos à fúria e ambiguidade
(misto de desejo e rejeição) com a qual a moral hegemônica lida com
as sexualidades e modos de vida dissidentes. Ambos unidos pelas
margens produzidas no jogo desigual das alteridades (BESSA, 2020,
p. 13).

Luz del Fuego, mulher-pesadelo, mulher marginal, mulher destemida, buscou


a liberdade cada instante de sua vida e acabou por tornar-se livre e independente
desde quando fugiu de casa. E um dos campos em que expressava mais liberdade
era a sua sexualidade: “Homem. Libido. Felicidade. Eis a vida” (AGOSTINHO, 1994,
p. 184). Com essa afirmativa de Luz, reiteramos o caráter lascivo da mulher-pesadelo.
De acordo com Roberto Sicuteri, a raiz Lil integra nomes de algumas divindades ou
maus espíritos assírio-babilônicas como Enlil, Ninhil, Mulil, Anlil. A mesma raiz na
Suméria e Oriente Médio teria associação a motivos eróticos: como libertinagem (Lulu)
ou lascívia (lulti)55. Na tradição acadiana e mesopotâmica, a raiz aparece nos nomes
dos demônios noturnos Lilitu, Lilu. Na epopeia de Gilgamesh se apresenta o nome
Lillake, “uma figura feminina demoníaca que habita dentro do tronco de um salgueiro,
que era religiosamente guardado pela deusa Inanna, a Senhora do Céu, equivalente
à nossa Vénus, deusa do amor e da guerra, análoga a Ishtar” (SICUTERI, 1987, s.
p.). O nome Lilith, pelo viés da etimologia hebraica, se acerca de Layl, Laylah ou ainda
lel ou lelath que significam “noite”, e exprimem o sentido de espírito noturno. Seja
aonde for, a raiz do nome de Lilith expressa a sexualidade feminina desenfreada,
noturna, misteriosa e monstruosa.
De modo igual, Medeia se insere no espectro da lascividade. Relembremos que
a etimologia do nome de Medeia pode ser dotada de acepção sexual e que na Idade
Média foi retratada na iconografia como a “Bela sentada sobre a Besta”. Medeia seria

55Roberto Sicuteri apresenta a seguinte fonte para a palavra lulti: JONES, Ernst. Psicoanalise
áeWincubo. Roma: Newton Compton, 1978.
112

o próprio chamariz do mal, atraindo por meio de sua sedução demoníaca o homem
indefeso. Na obra de Eurípedes, se diz que Medeia foi inflamada por Eros que é o
deus grego do amor carnal e voraz, pai da própria volúpia. A lascívia da colquídia
era tão devastadora que “o mundo nunca esqueceu a paixão de Medeia” (ROBLES,
2006, s. p.). E Luz, herdeira dessa paixão, nunca negou ou se envergonhou do
magnetismo sexual que insurgia nas pessoas:

Afinal, uma verdadeira sedutora é ao mesmo tempo aquela que ganha


o afeto de seus admiradores e os manipula ao seu bel prazer.
Importante notar o quão potente é este domínio, tanto para a
sobrevivência de Luz no âmbito material (trocas, favores), quanto para
abertura de linhas de fuga de uma subjetividade rebelde que não se
conforma ao destino que lhe estava reservado, no âmbito de uma
família falocêntrica, heterormativa e monogâmica; tripé este que cria a
expectativa de que, enquanto filha de uma família abastada venha
cumprir o ideal da mulher-mãe, figura essa que assombra a
personagem, como um corpo-memória que ela rejeita (BESSA, 2020,
p. 09).

Como dito por Bessa, Luz del Fuego rompia o padrão estabelecido numa
manobra rebelde. Ela entendia o jogo do patriarcado, flertava com ele, o seduzia e o
provocava. Por isso, sua personalidade sempre despertava o interesse dos homens
que amavam sua irreverência, no entanto, não viam a hora de tê-la domada: “homem
nenhum lhe poria cabresto. Nem por amor ela se sujeitaria” (AGOSTINHO, 1994, p.
141). E, quando eles não tentavam domá-la pelo apelo afetivo, tentavam exigindo
obediência por meio da chantagem financeira, contudo ela não se sentia nem um
pouco obrigada a permanecer em um relacionamento por causa de dinheiro,
comodidade, presentes ou medo da solidão:

— Vocês, homens, não prestam! Só porque pagam comida, roupa e


casa, se acham no direito de cobrar a fidelidade da mulher. Enquanto
isso se divertem lá fora. O meu preço é muito mais alto, meu querido.
Mais do que os brilhantes que me deu. Não sou tão perdulária com
meu amor a ponto de entregá-lo por ninharias. E amantes não me
faltarão, tenho certeza (AGOSTINHO, 1994, p. 142).

Na citação anterior, podemos destacar uma questão importante sobre a


condição da mulher: a vulnerabilidade do ser feminil numa sociedade patriarcal.
Relembremos que quando Lilith fugiu, Deus pai mandou três anjos-capatazes para
trazê-la de volta para seu dono, Adão. Quando Medeia estava por ser exilada de
113

Corinto, precisou implorar a Egeu que lhe desse asilo, pois sabia que se um homem
lhe desse abrigo, outros não iriam lhe importunar ou perseguir. Ou seja, a mulher
precisa estar debaixo de uma tutela patriarcal a todo custo. Seja de forma voluntária,
seja de forma forçosa, a mulher não pode estar livre do jugo masculino jamais:

[...] a grande maioria de mulheres solteiras é, por definição,


marginalizada e dependente da proteção de parentes homens. Isso se
provou verdadeiro ao longo da história até meados do século XX no
mundo ocidental, e hoje ainda é verdade na maioria dos países
subdesenvolvidos. O grupo de mulheres independentes e
autossuficientes que existe em toda sociedade é pequeno e, em geral,
bastante vulnerável ao desastre econômico (LERNER, 2019, p. 265).

Entretanto, quando a mulher foge da tutela patriarcal familiar, é a vez do Estado


controlar a besta. Luz del Fuego foi internada em hospitais psiquiátricos pela família
duas vezes, e, segundo Lana e Rocha, no ano de 1953, Luz teria sido presa e
processada por dirigir um carro conversível estando seminua. Por conseguinte, o
Ministério Público teria requisitado que ela realizasse testes que comprovassem sua
sanidade mental. Mais uma vez, a nudez (ou quase) de Luz escandalizava as pessoas
de forma que a única explicação que a sociedade patriarcal via para tal
comportamento era que fosse louca. Contra sua loucura, a intervenção misógina do
Estado estava justificada:

Em julho de 1955, o Diário Carioca anunciava que Luz del Fuego seria
internada por ser “louca presumível”. À Revista do Rádio, ela declarou:
“Doido é quem me chama de louca!”. “– Mas esse negócio de
internação no hospital não assusta você?”, indagou o repórter da
revista. “– Qual, meu velho, não conseguirão! [...] para ser internada
num hospício é preciso que toda a justiça brasileira fique doida
primeiramente”, Luz del Fuego respondeu (DOIDO..., 1955, p. 26).
Poucos meses depois, em setembro, o Correio da Manhã noticiava
que ela havia sido absolvida (LANA; ROCHA, 2019, p. 11).

Dentro da questão da vulnerabilidade feminina, podemos ressaltar a pena


sofrida por se sujeitar a proteção patriarcal. Luz diz, na última citação da biografia de
Agostinho, que o homem compra a fidelidade da mulher por meio de tudo que lhe
provê, contudo, não se sente na obrigação de lhe render igual fidelidade. Reiteremos
o discurso de Medeia da obra de Eurípides que citamos na página 90: Medeia fala da
dor de ser mulher por pagar para ter um homem que seja dono dela, e que quando
ele se sentir entediado pode encontrar alento na companhia de quem desejar, no
114

entanto, a mulher está relegada a viver somente para sua casa, sua família, seu
homem. Contudo, como elas são mulheres-pesadelo, não se rendem; mesmo que
chantageadas, resistem. Luz, ainda que amasse os homens, desconfiava deles, e
incentivava as mulheres a serem independentes e buscarem liberdade tanto financeira
como emocional:

Homens! Até um mísero cão leproso é mais grato do que um homem.


Se você dá comida a um cão e o acaricia, ele lhe abana a cauda. O
homem, não. Tão logo obtém o que se deseja, sacode os ombros e se
vai, em busca de mais uma trouxa, sempre a aguardá-lo com carinho.
Façamos nossa independência financeira e sentimental. A mulher que
se sustenta, sustenta a seus sonhos, concretiza seus ideais
(AGOSTINHO, 1994, p. 175).

Luz não aceitava ser inferiorizada. Advogava pela insurgência feminina. Uma
vez ou outra intercedia pelo revide: “se nós mulheres somos sempre consideradas
seres inferiores a vocês, devemos aproveitar todas as oportunidades para rebaixá-
los” (AGOSTINHO, 1994, p. 184). Assim como Lilith e Medeia, Luz, como mulher-
pesadelo, abandona o ideal da docilidade feminina e encontra refrigério na vingança,
ainda que ela não seja tão brutal ou poderosa quanto as nossas gárgulas mitológicas.
Por seu comportamento confrontador, insolente e desaforado, sofreu muitos
preconceitos. A Ilha, aos poucos, perdeu o público e se tornou o lugar de solidão e
exílio. Então, cada vez mais, estava vulnerável e desprotegida. E quando precisava
de ajuda de órgãos públicos de proteção, como a polícia, era ridicularizada: “—
Desguie. Desguie, belezura. Quem mandou fazer ponto numa ilha?” (AGOSTINHO,
1994, p. 234).
Dessa forma, vemos a questão da vulnerabilidade feminina e a necessidade de
se sujeitar a uma tutela por um outro viés: a isenção da proteção do Estado. Se uma
mulher vive livre e não tem um homem com proprietário dela, tampouco o Estado,
como curador dos interesses patriarcais, se obriga a exercer proteção a uma mulher
que não obedece às normas de dominação varonil. Desse modo, a Ilha do Sol foi alvo
de muitas invasões e assaltos que sempre encontravam negligência por parte da
polícia e deboche por parte dos jornais (Figura 15). Quando foi reportado o
desaparecimento de Luz e de seu caseiro, a polícia não se furtou a investigar
prontamente, pois acreditava que seria um golpe midiático para algum espetáculo da
115

artista. No entanto, após de um telefonema recebido pelo repórter Mauro Dias, do


jornal O Dia, o caso começou a ganhar notoriedade entre a polícia e a mídia.
Durante as investigações, descobriu-se que os assassinos já vinham
ameaçando Luz por ela os ter denunciado, já que eles usavam dinamites para pescar.
Porém, como a polícia a negligenciava deliberadamente, os assassinos Mozart e
Alfredo não se sentiram desencorajados a praticarem o crime. No dia 19 de julho do
ano de 1967, os irmãos pescadores Alfredo Teixeira Dias e Mozart Teixeira Dias
roubaram o barco de Luz del Fuego na surdina. Em seguida, avisaram-na sobre o
suposto roubo e se ofereceram para levá-la até onde estaria a sua nau. Luz entrou no
barco dos irmãos e foi brutalmente executada a pauladas na cabeça, desferidas por
Alfredo que usara um remo. Efetuado o assassinato, os irmãos retornaram à ilha para
matar Edgar, o caseiro, e roubar tudo quanto foi possível da ilha:

Pegaram a baleeira que estava no galpão e levaram para água.


Abriram a faca o ventre dos dois cadáveres e os amarraram juntos no
fundo do pequeno barco. Depois encheram-no de pedras e manilhas
e o rebocaram 400 metros fora para afundá-lo. Voltaram à ilha para o
saque. Levaram o que puderam (AUDI apud LANA; ROCHA, 2019, p.
16).

Os assassinos foram capturados e, em confronto com a polícia, Mozart matou


um policial com cinco tiros. E quando Mozart foi indagado por um jornalista se havia
se arrependido por ter matado Luz del Fuego por causa de uma importância em
dinheiro e bens tão irrisória, ele nem demorou a responder: “— de jeito nenhum.
Aquela puta preferiu me escorraçar a receber os meus carinhos” (AGOSTINHO, 1994,
p. 247). Ou seja, ele a matou não por vingança pelas denúncias que ela fez contra ele
ou por ganância ao seu dinheiro: matou-a porque ela era uma mulher “disponível” e
desprotegida que o rechaçou. Matou-a por ter seu orgulho de macho ferido. Como era
uma mulher, sozinha e livre sexualmente, que não tinha proteção de ninguém (nem
da família, nem de um marido, nem do Estado, nem da mídia), ela não poderia rejeitá-
lo. Se uma mulher é vista pela sociedade patriarcal como disponível, então está à
disposição para todos os homens que a desejem, ainda que ela não o queira. O
patriarcado se dá o direito do domínio do corpo e da sexualidade feminina. Então,
ainda que Luz tenha sido vítima de um assassinato brutal, ela é vista como a
causadora de sua própria desgraça por não se subjugar a tutela patriarcal, por excitar
o desejo dos homens, por não “se dar ao respeito”. Com isso, compreendemos que
116

Luz del Fuego foi vítima de feminicídio56, pois a sua condição de mulher acarretou sua
morte.
Durante as investigações, os corpos foram recuperados e devidamente
sepultados. Luz del Fuego foi enterrada no Cemitério São João Batista, no Rio de
Janeiro, sob holofotes. A sua família, assim como alguns artistas e amigos,
compareceu ao enterro. Segundo Agostinho, Luz sempre proferia em entrevistas e
entre amigos que deixaria seus bens para a Sociedade Protetora dos Animais,
entretanto, não havia registro em testamento. Por conseguinte, seus parentes se
digladiaram por seus bens:

Mesmo cientes da sua vontade, os irmãos não fizeram nenhuma


doação àquele instituto. E disputaram a herança – o domínio útil da
Ilha do Sol e a casa da Niemeyer – com o mesmo empenho com que
combateram e ignoraram a irmã em vida. A falta de preconceito com
relação aos bens materiais não impediu que procurassem, de todas
as formas, apagar a sua memória (AGOSTINHO, 1994, p. 256-257).

A perseguição, o silenciamento e apagamento que Luz sofreu durante toda a


sua vida foi notória. De acordo com Alves et al. (2016), Luz foi perseguida pela família
desde os 15 anos, quando se emancipou deles. E, para evitar associação com a
família, preferiu, por algum tempo, não revelar seu nome de batismo ou seu
sobrenome. Todavia, como a família não desistia de persegui-la, passou a expor sua
linhagem. “meu irmão, principalmente, vale-se do poder de senador, para impedir que
eu me exiba no Rio de Janeiro, em ‘boites’ ou teatros” (REVISTA DO RÁDIO apud
ALVES et al., 2016, p. 46, grifo dos autores). O irmão Attilio também foi o responsável
pelo fato de o PNB nunca ter sido registrado devidamente e, como já comentamos,
comprava os livros de autoria de Luz e os queimava, exterminando tudo o que podia
sobre os ideais e sobre a vida da irmã.
Hoje, a família não mais se envergonha57 de sua Luz. Segundo o Caderno D,
os sobrinhos de Luz deram origem a um documentário dirigido por Ricardo Sá, o qual

56 Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. A Lei considera que o assassinato seja feminicídio quando o
crime é consequência de menosprezo e/ou discriminação à condição da vítima ser mulher, ou quando
o crime ocorre envolvendo violência doméstica e/ou familiar.
57 Um dos frutos do recente orgulho que a família Vivacqua externa pelo parentesco com Luz é a

Dissertação de Mestrado de uma descendente sua que estuda duas cartas e um poema da nossa
mulher-pesadelo brasileira. O trabalho se intitula Lúdico Blackout: palavra poética e experiência
psicoativa (BOARIN, 2019).
117

se intitula “Tia Dora”58. Então, por mais que tivessem existido aqueles que a
execravam, a silenciavam e a apagavam, existiam, existem e sempre existirão
aqueles que lhe rendem homenagem. Um dos registros que buscou eternizar a figura
de Luz foi o filme de David Neves, como já comentado, que foi analisado por Bessa.
Através de seu artigo, pudemos ter acesso à intensão59 dos escritores do roteiro de
expressar sua admiração e respeito pela artista capixaba:

Agnaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho (1982:50) terminaram o


prefácio do livro/roteiro do filme Luz del Fuego com a seguinte
reflexão: [...] neste final de século, já é possível dizer (como nós
fazemos desde aquela época), sem causar espanto, que a última leva
de prisioneiros políticos a ser anistiada é a dos que foram acusados
dos chamados “crimes de costumes”; uma categoria na qual Dora
Vivacqua, Luz del Fuego, essa mulher de muita raça e extrema
coragem, se enquadrou, de modo perfeitamente lúcido e consciente,
a vida inteira. Círculo, ilha, prisão: é dessa maneira que vale a pena
lembrá-la - como uma guerrilheira contra a moral e os bons costumes.
[...] Assim, deixamos bem claro como a queremos lembrada: como
uma das figuras mais representativas de sua época; como uma mulher
digna do maior respeito (BESSA, 2020, p. 5-6).

Luz continua a ser lembrada, amada e homenageada. Em 2020, no Carnaval


em Vitória, capital do Espírito Santo, Estado natal de Dora, o mundo pôde assistir ao
desfile das escolas de samba e uma delas reverenciava Luz. A escola Chega Mais
enalteceu a artista capixaba com uma comissão de frente composta só de mulheres
(Figura 16). E, segundo Silvana Rocha, a cidade natal de Luz, Cachoeiro de
Itapemirim, vem demonstrando sinais de reconhecimento e resgate da memória da
mulher-pesadelo Vivacqua:

Para ratificar o que foi dito anteriormente sobre Luz del Fuego,
podemos citar uma caricatura imensa estendida, ao lado de outras
personalidades cachoeirenses, em frente ao Palácio Bernardino
Monteiro, sede da prefeitura, no Carnaval de 2009, como também o
fato de ela ter sido tema de “Cobra criada”, vencedora do 4º concurso

58 O curto documentário conta com a participação dos sobrinhos de Luz narrando como a família
encarava o parentesco com ela e como hoje é compreendido. Também podemos assistir trechos de
filmes de Luz, como A Nativa Solitária e Luz Divina, que possibilitam a indescritível emoção de ouvir a
linda voz dessa linda mulher.
59 “Embora os intentos dos roteiristas estejam claramente enunciados no livro, adianto que o filme é

omisso em nos revelar a guerrilheira na luta contra o moralismo. Ao produzir uma personagem marcada
por um forte tom de excentricidade e histeria, o enredo mais reitera os julgamentos que a debilitaram
ao longo de sua vida do que reforçam as camadas subjetivas e políticas de sua delirante (e talvez por
isso mesmo tão potente) revolta (aparentemente) moral. O contexto de produção do Luz del Fuego
filme esteve marcado por um forte legado de um cinema brasileiro de cunho erótico e machista, que
tinha no sexo e na nudez seu grande apelo de sucesso de bilheteria” (BESSA, 2020, p. 6).
118

de Marchinhas de Cachoeiro de Itapemirim de 2015. Fato curioso,


contudo, é um estêncil – onde se lê: “Luz del Fuego é de Cachoeiro” –
que surgiu no final de 2014, exatamente na rua Consta Pereira, em
frente à casa onde residiu a nossa personagem, e provavelmente no
local onde o seu pai foi assassinado (ROCHA, 2016, p. 14).

Luz del Fuego (Figura 17 e 18) não era uma mulher como as outras. Ela
propositalmente quebrava o ideário da mulher almejada e bem-quista da sociedade
patriarcal, onde quer que fosse. E, tal como Medeia e Lilith, assumiu os riscos de se
contrapor a toda uma sociedade misógina. Padeceu, mas inspirou. E, com todo o
esforço que existe para apagar o exemplo delas, geração pós geração, elas surgem
e acendem o desejo de liberdade das mulheres que continuam presas e sem
expectativas.
119

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se preocupe não, meu querido. Eu sou


uma Luz que não se apaga.
Luz del Fuego

Iniciamos esta Dissertação com uma breve Introdução sobre o trabalho.


Depois, nos debruçamos sobre o capítulo que se dedica a apresentar as personagens
e as obras que foram aqui estudadas, bem como seus respectivos autores.
No terceiro capítulo, entendemos por meio de Gerda Lerner, Monique Wittig e
Rosie Marie Muraro “Como o homem chegou ao Poder” e como se manteve nele até
a contemporaneidade. Com Gerda Lerner, aprendemos como os ofícios e os
sacrifícios masculinos e femininos, ao decorrer do tempo, em sua gama extensa de
eventos, acabaram por prestigiar e elevar o homem e por inferiorizar e subjugar a
mulher. Com Monique Wittig, compreendemos como a dialética homem versus mulher
contribuiu para uma categorização do gênero feminino que resultou na redução do
indivíduo mulher em apenas e nada mais que seu sexo. E a teoria de Rose Muraro
serviu de apoio às autoras já citadas. Nessa costura de teorias, pudemos
compreender como a cosmogonia serviu para consolidar o patriarcado e como os
deuses machos contribuíram para que os homens dominassem a Terra.
No quarto capítulo, pudemos entender apoiados em Pierre Bourdieu e Jean
Delumeau como a misoginia que existe desde a Antiguidade tomou proporções
extremas na Idade Média e como se cristalizou até hoje. Vimos como Medeia, apesar
de ter poderes quase ilimitados, foi reduzida a um degrau para alcançar os desejos
de um homem medíocre; como Lilith se tornou fugitiva, assassina, exilada e
demonizada, somente por querer ser um indivíduo; e como Luz del Fuego foi
execrada, punida, perseguida, assediada, negligenciada e assassinada por lutar para
fazer da sua vida o que ela queria.
Elas eram confrontadoras, sendo vistas até mesmo como violentas. Foram
perseguidas, ameaçadas, exiladas, excluídas, punidas (direta ou indiretamente),
representadas como não mulheres. Vivenciaram abandono, solidão. Por vezes,
assassinas de crianças: Medeia dos próprios filhos, Lilith dos filhos de Eva, e Luz, por
ser a favor da descriminalização do aborto – o que, em uma sociedade patriarcal, é
uma prática tida como similar ao assassinato. Medeia, por amor, tenta se submeter,
mas o jugo do patriarcado se mostra pesado demais e ela acaba se rebelando de
120

quando em quando em atos cíclicos e repetitivos; Lilith jamais cogita sua submissão;
e Luz del Fuego morre se rebelando até o último instante.
Seus finais são trágicos. E precisam ser para que, na pior das hipóteses, o
patriarcado as torne exemplos de desgraça e na melhor, sejam apagadas. A História,
como a ciência controlada pelo patriarcado, tenta apagar a mulher, seja ela pesadelo
ou não. Estamos no século XXI e não existe uma grande tradição de mulheres
escritoras, cientistas, conquistadoras, heroínas. A História tenta a todo custo extinguir
a imagem de personagens como Medeia, Lilith e Luz del Fuego – até porque o
exemplo é prejudicial. Afinal, o mau exemplo ainda é um exemplo, então, é factível.
Mas Luz, a exemplo da mulher-pesadelo no plano real, pagou com a vida. Vítima de
um feminicídio grotesco, vítima da fúria masculina, ela incorporou as dores e os
pesares das mulheres-pesadelo, em que uma mulher é morta pelo simples fato de ser
mulher.
Portanto, concluímos que o arquétipo da mulher-pesadelo reaparece
eventualmente, perpetuando o mito à revelia da História. Basta uma mulher se fartar
dos padrões impostos e começar a reivindicar direitos, voz, singularidade, igualdade
e liberdade. Reaparece quando uma mulher não se envergonha ou pede desculpas
por seu corpo, seus pensamentos, suas palavras. Reaparece quando a mulher exige
ser um indivíduo e não aceita ser adereço. E assim foram Medeia, Lilith e Luz del
Fuego. Seja escancarando a hipocrisia, lutando, fugindo, se exilando e até mesmo
morrendo, elas deixaram um legado e viveram nos corpos de muitas mulheres como:
Leila Diniz, Martha Anderson, Ítala Andi e Darlene Glória, entre tantas outras, famosas
ou não.
A História nunca conseguirá apagar, por definitivo, Medeia, Lilith e Luz del
Fuego (sejam reais ou mitológicas) porque sempre outra representante desse
arquétipo nascerá e lembrará ao mundo o gosto amargo que uma mulher-pesadelo
provoca. Amargor esse que apura na boca da própria mulher-pesadelo. Ela, mais do
que ninguém, conhece o sabor das consequências de sua contravenção.

E quem morre hoje, nasce outro dia para viver


amanhã e sempre.
Rita Lee
121

REFERÊNCIAS

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ANEXOS – FOTOS SOBRE A VIDA E A PESSOA DE LUZ DEL FUEGO

Figura 1 – Família Vivacqua60

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 2 – Ficha de inscrição do Clube Naturalista Brasileiro

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

60 Fotografia da família Vivacqua em 1923. Da esquerda para a direita, em pé: Abgail, Edelmira,
Mariquinhas, Angélica, Filomena, Margarida e Antônio Filho. Da esquerda para a direita, sentados:
Attilio, Etelvina, Antônio Vivacqua, Archilau, Achilles. Da esquerda para a direita, as crianças sentadas
no chão: Eunice, Cléa, Archimedes, Zezito e Dora (Luz del Fuego).
130

Figura 1 – O belíssimo rosto de Luz del Fuego

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 2 – Luz del Fuego (à direita), então com 8 anos, fantasiada para o Carnaval em
Cachoeiro de Itapemirim

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).


131

Figura 3 – Recibo de pagamento da internação de Luz del Fuego (então com 19 anos de
idade) no hospital psiquiátrico em Belo Horizonte

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 4 – Luz fantasiada de Eva, chegando ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no


Carnaval de 1948

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).


132

Figura 5 – Luz em companhia de sua serpente, Cornélio

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 6 – Luz fantasiada de “Grande Dama”, no Carnaval carioca nos anos 1950

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).


133

Figura 7 – Fotografia de uma cena de um dos filmes em que Luz atuou

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 8 – Luz del Fuego com uma de suas cobras

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).


134

Figura 11 – Luz como candidata a deputada pelo Partido Naturalista Brasileiro (PNB)

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 12 – Luz fantasiada de “Noivinha Pistoleira” no Teatro Municipal do Rio de Janeiro,


no Carnaval de 1952

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).


135

Figura 9 – Capa do romance escrito por Luz: Trágico Black-out, publicado em 1947

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 10 – Filme Luz del Fuego, interpretado por Lucélia Santos

Fonte: Bessa (2020, p. 04).


136

Figura 11 – Charge “Roubo na Ilha do Sol”

Fonte: Lana e Rocha (2019, p. 15).

Figura 12 – Escola de Samba “Chega Mais”

Fonte: Tompson (2020, s. p.).


137

Figura 13 – Luz repousando da Ilha do Sol

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

Figura 14 – Luz, então com 50 anos, pouco antes de sua morte

Fonte: Agostinho (1994, s. p.).

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