LilithMedeiamulheres Silva 2021
LilithMedeiamulheres Silva 2021
LilithMedeiamulheres Silva 2021
LILITH E MEDEIA:
MULHERES-PESADELO DA SOCIEDADE PATRIARCAL
NATAL/RN
2021
ALINE LAYANE SOUTO DA SILVA
LILITH E MEDEIA:
MULHERES-PESADELO DA SOCIEDADE PATRIARCAL
NATAL/RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
LILITH E MEDEIA:
MULHERES-PESADELO DA SOCIEDADE PATRIARCAL
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Profa. Dra. Regina Simon da Silva
Orientadora
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
______________________________________
Prof. Dr. Mauro Dunder
Membro interno
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
______________________________________
Profa. Dra. Maria Mirtis Caser
Membro externo
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
A todas as mulheres.
AGRADECIMENTOS
Começo agradecendo a minha mãe, Laécia; a minha irmã, Alane; aos meus
avós e minhas tias pelo apoio e amor.
Agradeço a todos os meus amigos, em especial a Mikaelly Carvalho, Rafael
Vale, Gabriella Kelmer, Jéssica Martins e Ana Luíza Cavalcante por estarem junto a
mim nessa jornada, por toda paciência, amizade e abraços tão calorosos.
Agradeço a minha filha, Cecília. O amor da minha vida. Nem um verso de
poesia pode fazer entender o que significam simplicidade, leveza e graciosidade de
ser como você pode.
Agradeço a minha companheira e grande amiga, Fladmylla Ohana, por
absolutamente tudo. A única pessoa capaz de transformar um “agradecimento” de
Dissertação em post-it1.
Agradeço ao Professor Marcos Tindo por cada vez que me fez acender uma
nova lâmpada em minha mente.
Agradeço, principalmente, a minha orientadora Professora Regina Simon por
me apontar, incessantemente, o Norte. Obrigada por me ensinar a ler, a escrever, a
pensar e a pesquisar.
E, por fim, a CAPES: o presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de Financiamento 001.
This research aims to compare the works Medea, by Euripides (2010), “The Alphabet
of Ben Sira”, version provided by Eisenstein (2008), and Luz del Fuego: a bailarina do
povo, by Cristina Agostinho (1994), elucidating the nightmare woman archetype of
patriarchal society in literature. This archetype of nightmare woman carries a series of
characteristics, she can be cruel, lascivious, infanticidal and even divine. That said, it
is possible to analyze the mythological narratives identifying the profiles of the
transgressor woman of the patriarchy, who contrasts and reaffirms herself in the body
and in the life of the historical character Dora Vivacqua in the skin of Luz del Fuego.
Arranged in five chapters, this Dissertation has comparative perspectives based on the
theoretical discussions of Gerda Lerner (2019), Monique Wittig (2006), Rosie Marie
Muraro (1997), Pierre Bourdieu (2012) and Jean Delumeau (2001) to analyze the
history of the patriarchal system, its mechanisms, tools and discourses. Regarding the
theory of mythologies, we will use Joseph Campbell and Bill Moyers (1990), Martha
Robles (2006), Robert Graves and Raphael Patai (2018), among others. Through the
theories sewn to literary narratives, it is clear that literature speaks of the society in
which it takes shape, being both descriptive and prescriptive. Thus, it is understood
that mythological women, such as Medeia and Lilith, and historical women, such as
Luz del Fuego, walk both ways, as literature describes them because they existed –
even if it is in the form of myth – and prescribes them so that they do not exist again,
due to the antagonism they provoke, oscillating between fascination and dread.
1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 12
2 MULHERES TRANSGRESSORAS: RECORTE DAS OBRAS.............. 16
2.1 FIGURAS MITOLÓGICAS....................................................................... 18
2.1.1 Medeia, de Eurípides............................................................................. 18
2.1.2 Lilith e “O Alfabeto de Ben Sira”........................................................... 21
2.2 PERSONAGEM REAL............................................................................. 24
2.2.1 Dora Vivacqua em Luz del Fuego: a bailarina do povo........................ 24
3 COMO O HOMEM CHEGOU AO PODER................................................ 27
3.1 A ORIGEM DA DOMINAÇÃO MASCULINA SOBRE A MULHER........... 28
3.2 A CATEGORIA DE SEXO NA SOCIEDADE PATRIARCAL.................... 34
3.3 JEOVÁ, ADÃO, ZEUS E JASÃO: PERSONIFICAÇÕES DO
PATRIARCADO....................................................................................... 42
3.3.1 Jeová, o Deus por excelência do patriarcado..................................... 44
3.3.2 Adão, ditador de nomes e papéis......................................................... 50
3.3.3 Zeus e seu presente de grego.............................................................. 54
3.3.4 Jasão: homem, grego e príncipe.......................................................... 59
4 UM MITO CHAMADO MULHER: NA TRAGÉDIA, NO TEXTO
RELIGIOSO E NA VIDA REAL................................................................ 65
4.1 O ÓDIO E O MEDO À MULHER NO OCIDENTE.................................... 68
4.2 LILITH E MEDEIA: A RELAÇÃO ENTRE A MULHER, O PODER E O
MAL.......................................................................................................... 73
4.3 MEDEIA E O DISCURSO MACHISTA DE UMA SOCIEDADE QUE
REPUDIA A MULHER.............................................................................. 80
4.4 LILITH: UMA MULHER EM FUGA E EM EXÍLIO.................................... 92
4.5 LUZ DEL FUEGO: A REALIZAÇÃO DO MITO........................................ 97
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 119
REFERÊNCIAS....................................................................................... 121
ANEXOS – FOTOS SOBRE A VIDA E A PESSOA DE LUZ DEL
FUEGO.................................................................................................... 129
12
1 INTRODUÇÃO
Mito: palavra tão antiga e tão emblemática. Tão discutida e ainda assim,
inesgotável. Este trabalho tenta, mais uma vez, discorrer sobre palavras tantas vezes
já ditas, ouvidas e vividas. Tenta tecer atentamente fio por fio, como Aracne que
entrelaça os fios para que no fim a tapeçaria revele uma mensagem. Os fios são os
mesmos, fiados há séculos, mas eis que a tecelã é outra e tece em busca da
mensagem escondida em cada trama e urdume.
Pergunta-se: por que estudar mitologia? Muitas pessoas indagam isso por
julgar que a mitologia está ultrapassada ou que já foi esgotada de sentidos. No
entanto, o que as pessoas parecem não entender é que a mitologia fala de nós, e,
como se fosse um espelho, precisamos admirá-la para nos compreender tanto
individualmente como coletivamente. Elaine C. Prado dos Santos, na Apresentação
de O Livro da Mitologia, de Thomas Bulfinch, diz:
Assim, podemos dizer que o valor que a mitologia tem para a sociedade é
essencialmente o imaterial, que é composto de significações e experiências ideárias.
Os mitos nos conduzem às nossas próprias jornadas, nos ombros dos heróis, das
bruxas, das deusas, dos sátiros. Com a mitologia, podemos compreender as relações
humanas e suas consequências, suas dores, suas conquistas; podemos vivenciar a
excitação de um assassino, a rejeição de um amante ou o poder de uma mulher.
Dessa forma, podemos considerar que a mitologia tem o poder de refinar o ouro
13
A relação entre mito e realidade não costuma ser tão direta, mas
podemos supor que ninguém poderia inventar o conceito de uma
assembleia de deuses se não tivesse, em algum momento, vivenciado
e conhecido alguma instituição semelhante na Terra (LERNER, 2019,
p. 187).
Assim, o mito fala do que se vê, do que se experiencia e, por meio dessa
premissa, levantamos a hipótese: uma vez que alguém, notando que a sociedade
caminha por um rumo onde os homens comandam, pôde observar mulheres como
Luz del Fuego que desejam sair desse rumo e caminhar por outra via, esse alguém
14
poderia ter notado que tais mulheres não se assemelham – e nem desejam fazê-lo –
às outras que seguem a procissão do patriarcado debaixo do jugo2 masculino; e, por
se rebelarem, elas causam uma espécie de desordem à ordem imposta pelo homem.
Assim, de acordo com Lerner (2019, p. 27-28), como a escrita3 e afins se tornaram
um domínio masculino, os registros são criados e interpretados por homens que
tiveram o cuidado de glosar, acima de tudo, a si e suas ideias. Logo, podemos
entender o processo de apagamento e de misoginia que as mulheres foram vítimas
em narrações como o mito. O homem, tendo o poder da voz, da palavra e da escrita,
criou narrativas sobre essas mulheres para que outrem as conhecesse. Sintetizando,
nossa hipótese aponta que, muito antes de Dora Vivacqua nascer, Luz del Fuego já
existia; e, através da literatura, deparamo-nos com as luzes de Luz em Lilith e em
Medeia. Portanto, a mulher-pesadelo existe na literatura porque existe na sociedade.
É disso que se trata essencialmente o arquétipo4. Trata-se de existir como uma
entidade eterna e assumir nome e forma, de quando em quando, surgindo como
mágica para ensinar novas lições, com outra roupagem; seja na vida, seja na arte.
A seguir, no segundo capítulo desta Dissertação, intitulado “Mulheres
transgressoras: recorte das obras”, apresentaremos nossas heroínas: as mitológicas
Medeia, Lilith e a personagem histórica Luz del Fuego e seus respectivos autores,
uma em cada subtópico.
No terceiro capítulo faremos uma odisseia pelo tempo com a ajuda de Gerda
Lerner, Monique Wittig e Rosie Marie Muraro para compreendermos “Como o homem
chegou ao Poder”. Nessa jornada, nos confrontaremos com figuras proeminentes do
patriarcado: Jeová, Adão, Zeus e Jasão, e demonstraremos como eles contribuíram
para a subjugação das mulheres no Ocidente e, por conseguinte, das nossas
heroínas. Contudo, a tentativa de dominá-las acarretou reações perturbadoras, como
verificaremos ao decorrer deste trabalho.
No quarto capítulo, que entendemos como sendo uma tapeçaria, analisaremos
como Medeia, Lilith e Luz dispõem dos mesmos fios, mas tecem de maneiras
2 “JU.GO, s.m., canga para atrelar o boi ao carro ou a outro utensílio agrícola; pressão, autoritarismo”
(SCOTTINI, 2017, p. 326).
3 Apesar de a escrita, assim como praticamente tudo na sociedade, ter sido usurpado pelo domínio
masculino, “a primeira poetisa conhecida da história” foi uma mulher: a sacerdotisa acádia Enheduanna
(LERNER, 2019, p. 99).
4 Segundo Carl Gustav Jung, em sua obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2000), “O conceito
diferentes os seus destinos. Porém, ao final, o resultado são imagens que narram
histórias muito parecidas, de finais trágicos, já que Lilith foi transformada em demônio
(a fim de cometer crimes hediondos contra a descendência de Adão); Medeia tornou-
se fugitiva (e horrendamente criminosa, assim como Lilith) e Luz del Fuego acabou
brutalmente assassinada.
Por fim, após as Considerações Finais e as Referências, teremos uma seção
com fotos para ilustrar a vida da mulher-pesadelo capixaba, Luz del Fuego, como
forma de homenagem e perpetuação dessa incrível e necessária mulher.
16
dentre vários exemplos, é a Luz del Fuego, bailarina capixaba, famosa nos anos 1950,
que incendiou com seu fuego o Rio de Janeiro da época e continua a aquecer nossos
corações. A seguir, apresentamos com mais detalhes nossas personagens – primeiro
as mitológicas e, logo após, a histórica.
espectro ou outro, é possivel que os dois significados fizessem parte de uma Medeia
primordial que não seria execrada se carregasse algum apelo de acepção sexual.
De toda maneira, Medeia nem sempre foi retratada como maligna e sombria. A
deusa que um dia teria sido apresentada como fonte de inteligência, sabedoria, poder,
curas e prodígios extraordinários teria sido ressignificada como fonte de morte,
vingança, ira, sombras etc. Olga Rinne (2017) explica que tal conversão dos atributos
de Medeia à malignidade pode ter sido motivada por uma campanha proposital, pois,
provavelmente, ela teria sido cultuada em Corinto, terra helênica, o que era visto como
culto “bárbaro”, ou seja, era um culto não grego, por isso, indigno.
Olga Rinne (2017) aponta que aos poucos Medeia teria sido reduzida e
obscurecida, sendo assim foi transfigurada na temida bruxa da Cólquida, que tinha
como pai o rei Eetes (ou Aetes), o deus da mente perversa, segundo Martha Robles
(2006, s. p.). Eetes era filho do deus-Sol Hélio e a mãe poderia ser Hécate, poderia
ter sido Ídia (“aquela que sabe”) ou Neera (“a nova”). Todas essas supostas mães de
Medeia seriam representadas como forças lunares, então, nessas versões, Medeia
teria o sangue do Sol e da Lua. Outras versões incluem nomes de outras mães e
podem também retratar Medeia como sobrinha ou irmã da poderosa Circe (amante de
Odisseu), irmã ou não de Faetonte e quase sempre aparece como meia-irmã de
Apsirto e Calcíope.
Conforme Olga Rinne (2017), com uma árvore genealógica repleta de deuses
e deusas da mais alta estirpe, a pátria de Medeia não seria uma terra de mortais.
Localizada no Cáucaso, a terra que depois se chamaria Cólquida, tinha por nome Ea6,
e a ilha de Circe, flutuante em frente ao país, chamava-se Eea. Ambos são interjeições
de pasmo e admiração, podendo representar também sons de queixa, lástima e arfar
de suspiros. Essa terra seria o local de repouso do Sol, e no palácio de Eetes haveria
um poço com quatro bocas que jorravam leite, vinho, azeite e água cristalina. Dentro
do palácio ou em um bosque de árvores de carvalhos estava guardado o velocino de
ouro que tinha como vigia um dragão insone. Essa terra escondida por trás de neblinas
6O Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque faz a seguinte definição: ἒᾶ: interjeição de espanto
e descontentamento especialmente atestada entre os trag: e os comediantes, e antes de uma pergunta,
às vezes fora do verso. No uso de ἒᾶ ver E. Fraenkel, Agamenon, 580, No. 4. E.: 2ª pessoa. para
impetuoso. ἐάω se tornam interjeição, cf. Schwyzer, KZ 60, 1933, 141 sq. (CHANTRAINE et al., 1968,
p. 307, tradução nossa).
20
era mágica e receptáculo de inúmeros mistérios. Assim, Medeia, como nativa dessa
terra, não poderia ser nada menos que estupenda.
Contudo, quando o poeta Eurípides escreveu sua peça para contar uma fração
da história da princesa colquídia, no concurso de tragédias das Grandes Dionísias
(festival ofertado ao deus Dioniso), em 431 a. C., Medeia talvez já fosse uma feiticeira
obscura. Porém, as características horrendas pelas quais a filha de Eetes é até hoje
conhecida foram, indubitavelmente, atribuídas pelo poeta. Segundo Olga Rinne
(2017), em uma versão antiga da história da mulher-pesadelo, Medeia teria sido rainha
de Corinto (terra que, já comentamos, promoveria um culto a ela como deusa), mas
os coríntios, achando-se insatisfeitos com o regime dela, acabaram por assassinar
seus filhos. Eles, de acordo com a autora (RINNE, 2017) e com Martha Robles (2006),
eram quatorze crianças, sete meninas e sete meninos. Então, os coríntios, a fim de
apagar a memória da matança, teriam subornado Eurípides com quinze talentos de
prata para que pusesse a culpa das mortes das crianças sobre Medeia. O poeta
também teria alterado para dois filhos assassinados em vez de quatorze – talvez
soasse mais verossímil assassinar somente duas crianças em um ato só.
Antes de Eurípides, Medeia não era assassina dos filhos. Essa nova versão
chocou extremamente as pessoas da época assim como ocorre na atualidade, uma
vez que, tal como compreendemos a maternidade por influências cristãs e gregas,
uma mãe não suportaria ver seus filhos mortos, quanto mais matá-los à bruta.
Eurípides expôs ao mundo uma mulher perversa que ninguém jamais esqueceria. E é
sobre essa Medeia que vamos nos debruçar nesta Dissertação: a Medeia das
fantasias de Eurípides, a Medeia transgressora e perturbadora, a Medeia mulher-
pesadelo.
A peça em questão começa com a Nutriz, serva de Medeia, relembrando ao
público a história da sua senhora com os argonautas. Como é marca de Eurípides, de
maneira breve, em um monólogo, ela tanto alude a episódios anteriores como situa a
plateia sobre as questões centrais do enredo a serem apresentadas. A dinâmica que
a Nutriz explica para o público é a seguinte: Jasão seria o príncipe herdeiro do reino
de Iolcos, que foi usurpado por seu tio Pélias. Quando alcançou a maior idade, ele foi
em busca de reaver o reino de seu pai para si. Então, o tio lhe fez uma proposta: dar-
lhe-ia o reino de bom grado, se Jasão trouxesse o velocino de ouro que ficava
escondido nos confins do mundo no reino da Cólquida, reinado pelo temível Eetes.
Jasão foi ao encontro do velocino em um navio chamado Argo, com o apoio de mais
21
Lilith: demônio-mulher que vaga pela noite com suas asas negras e seus longos
cabelos em busca de uma vítima indefesa; assassina de bebês recém-nascidos e de
suas mães recém-parturientes; incubo que arrasta os que tranquilamente dormem
para sonhos envoltos de luxúria e paixão. Lilith é apresentada no Zohar, o Livro do
22
Esplendor (obra da Cabala judaica, datada por volta do século XIII) com essas
características descritas acima. E o texto ainda ensina como se proteger dessa
deidade considerada altamente perigosa até os dias de hoje pelos judeus. Mas, a
narrativa mais conhecida sobre Lilith é, irrefutavelmente, a contada no mito adâmico
descrito em “O Alfabeto de Ben Sira”. E antes de adentrarmos mais profundamente
sobre o mito, vamos conhecer a obra.
“O Alfabeto de Ben Sira” ([1200?]) é um texto em forma de prólogo, que narra
a história de Ben Sira como fenômeno de sabedoria e intelectualidade. Sira conta
sobre sua concepção (em que ele, assim como outros grandes sábios, teria sido
concebido sem conjunção carnal de suas mães com alguém do sexo masculino),
sobre seu nascimento, sobre o intento frustrado de um rabino lhe alfabetizar e lhe
transferir conhecimentos, bem como a sua saga por ser um gênio frente à invídia de
homens poderosos. Por sua inteligência prodigiosa, Ben Sira teria sido chamado à
Corte do rei Nabucodonosor, na Babilônia. O rei, interessado na engenhosidade de
Sira, lhe faz questões que são respondidas com 22 narrativas (cada uma se iniciando
com uma letra do alfabeto hebraico). Entre as tais narrativas está a de Lilith, que
investigamos nesta pesquisa.
Para Barbara Black Koltuv, “O Alfabeto de Ben Sira”7 é um midrash, ou seja, é
um escrito que faz reflexões sobre textos religiosos. Então, o texto de Ben Sira
(suposto autor8) não seria “o original” inspirado por Deus, mas uma reflexão de um
profeta sobre um mito que permearia a tradição oral judaica. No entanto, temos o
dever de esclarecer que para alguns pesquisadores esse texto tem outra feição: a
estudiosa Janet Howe Gaines, especialista em estudos da Bíblia como literatura, do
Departamento de Inglês da Universidade do Novo México, considera a obra como uma
simples sátira, um texto irreverente. Segundo ela, a linguagem seria repulsivamente
grosseira e lidaria com temas vulgares e esdrúxulos na esfera religiosa, como
7 Segundo o site Sefaria, O Alfabeto de Ben Sira foi composto, aproximadamente entre os anos 400 e
1200 da Era Comum.
8 De acordo com Bíblia Sagrada, Ben Sira teria sido o autor da obra A Sabedoria de Sirach, ou, como
é mais conhecido o Livro de Eclesiástico, escrito entre 190 e 180 a. C., em Jerusalém e traduzido para
a Língua Grega por seu próprio neto em 132 a. C. no Egito. Segundo Ephraim Nissan: “De acordo com
um texto medieval em hebraico, provavelmente da Mesopotâmia Caliphal (no século VIII, segundo Eli
Yassif), Ben Sira — que leva o nome do autor homônimo do antigo livro da sabedoria, fora do cânone
bíblico judaico, mas mencionado na literatura talmúdica – supostamente nasceu da filha do profeta
Jeremias depois que ela foi acidentalmente inseminada em um banho público com o sêmen de seu
próprio pai” (NISSAN, 2016, p. 2, tradução nossa). Assim, o Ben Sira que é personagem-narrador de
O Alfabeto de Ben Sira não é o mesmo que o Sira autor do Livro de Eclesiástico. O verdadeiro escritor
e autor de O Alfabeto de Ben Sira é desconhecido.
23
flatulência, cópula com animais, masturbação, incesto. Por isso, estaríamos lidando
com um texto que foi satirizado e provavelmente servia de recreação entre estudantes
rabínicos. O que seria a verdade para alguns, seria uma zombaria para o autor.
Contudo, o texto foi aceito como parte dos textos sagrados por místicos judeus
estudiosos na Alemanha medieval. Ademais, mesmo que “O Alfabeto de Ben Sira”
tivesse sido escrito para ser uma paródia burlesca do mito, ainda assim se falaria dele.
Uma paródia não é uma mentira, mas um texto que usa de artifícios para ridicularizar
algo que se tem como real. Logo, lidaremos com o texto do ponto de vista da
reminiscência do mito.
A edição de “O Alfabeto de Ben Sira” (2008) que vamos utilizar é a do
importante pesquisador judeu chamado Judah David Eisenstein, que está disposta na
biblioteca on-line de textos rabínicos, chamada Sefaria. Como o texto é de origem
hebraica é escrito na língua hebraica. Porém, o site nos dá a opção de versão
traduzida na Língua Inglesa e nós fizemos a tradução para a Língua Portuguesa.
Agora, já conhecendo a obra, poderemos nos ater ao mito em que Lilith é tida
como a primeira mulher que andara sobre a terra. Lilith teria sido a primeira esposa
de Adão, feita do barro igualmente a ele. Entretanto, Adão se negava a reconhecer a
paridade entre os dois. Por conseguinte, em decorrência da opressão exercida por
seu marido, Lilith pronunciou o nome inefável de Deus e fugiu. Adão logo se queixa a
Jeová pela fuga de sua mulher. Dessa maneira, Deus enviou três anjos para coagi-la
a retornar com a ameaça: se não voltasse, cem de seus filhos morreriam diariamente.
Mesmo assim ela se negou. Então, ela fez um acordo com os anjos que, se a
deixassem livre, ela cumpriria o seu propósito que era o de dar fim aos bebês, todavia,
se eles carregassem amuletos com os nomes ou os símbolos dos anjos, ela não lhes
faria mal. De acordo com Martha Robles (2006), ela se vingaria pela morte dos filhos,
matando os descendentes de Adão. Assim, sendo convertida em um demônio noturno
que mata bebês e acasala com os anjos caídos que habitam as margens do Mar
Vermelho, Lilith é aterradora à pseudovirtude judaica. Contudo, se para os judeus Lilith
causa horror, pânico e pavor, para nós, que desenvolvemos esta pesquisa, ela seria
um arquétipo que surge para dar certo equilíbrio a esse mundo que se encontra
subjugado pela dominância masculina.
Tanto Lilith quanto Medeia são projeções da fobia da sociedade patriarcal. Elas
não existiram de fato: são mitos, são narrativas contadas como exemplo daquilo que
é inadmissível ser, do vergonhoso, do trágico, do inaceitável, do repugnante. Porém,
24
de livre foi morar com sua irmã, Mariquinhas, mas de lá fugiu para o Rio de Janeiro,
pois o desejo dela era ser, ademais de livre, artista. Dora não sabia ainda que tipo de
artista seria, mas sabia que sua vida estava destinada a afetar as pessoas.
Dos anos 1930 aos 60, Dora Vivacqua aterrorizou, como também encantou a
badalada cidade do Rio de Janeiro. Assumindo a persona de Luz del Fuego, era
naturalista, bailarina, atriz e feminista (ainda que não tivesse plena consciência disso).
Em meados dos anos 50, Luz comprou uma ilha na Baía da Guanabara a qual nomeou
de Ilha do Sol e lá fundou o primeiro clube de nudismo da América Latina, intitulado
Clube Naturalista Brasileiro (Figura 2). Através da biografia romanceada de Cristina
Agostinho, escrita em colaboração com Branca de Paula e Maria do Carmo Brandão,
podemos conhecer melhor a mulher-pesadelo capixaba.
No prefácio de Luz del Fuego: a bailarina do povo (1994) conta-se como
sucedeu a feitura do livro. Comenta-se crises, lutas, bloqueios, discussões, conflitos,
pausas e quando as pesquisas eram engavetadas. Porém, Luz vinha-lhes trazer
desassossego, acabar-lhes com vossa paz. Dado a inúmeros e intensos percalços,
as escritoras decidiram que Cristina Agostinho escreveria a obra, mas que Branca de
Paula e Maria do Carmo Brandão seriam as revisoras e editoras do texto. Então, por
Cristina Agostinho ter dado voz a Luz por meio de suas palavras, vamos destacar sua
biografia.
Mineira, nascida em Ituiutaba, em 1949, Cristina Agostinho é formada em
Direito e Letras. A produção literária da autora inclui livros infanto-juvenis dos quais
recebeu dois prêmios nacionais: o Selo de Ouro da Fundação Nacional do Livro Infantil
e Juvenil e Prêmio João de Barro. No âmbito da memória social, escreveu as obras:
Pedreira Prado Lopes: memórias de uma favela (2000); Nativos e Biribandos:
memórias de Trancoso (2004). Em termos de memória biográfica, Agostinho têm
projetos que apresentam como foco grandes e expressivas personalidades femininas
da América Latina, assim como Luz del Fuego. São elas: a pintora mexicana Frida
Kahlo; a poetisa uruguaia Delmira Agustini; a poetisa argentina Afonsina Storni; a
compositora, cantora, ceramista e artista plástica chilena Violeta Parra e a
revolucionária e heroína cubana Haydée Santamaría Cuadrado. Além de publicações
em livros, Agostinho participa de projetos institucionais que promovem o acesso à
educação, cultura e literatura em Minas Gerais e trabalha com crítica literária,
escrevendo colunas em revistas e jornais.
26
Luz del Fuego: a bailarina do povo, sem dúvidas, é uma de suas obras mais
aclamadas, pois resgatou das sombras, da marginalização e do apagamento a mais
memorável vedete brasileira. A pioneira na causa naturalista. O pesadelo que
suscitava as fantasias de mulheres e de homens. A mulher das cobras. O assunto
proibido que surgia sempre entre cochichos fugazes. Sedutora? Diabólica?
Megalomaníaca? Narcisista? Exibicionista? Histérica? Provocadora? Talvez. O certo
é que Luz del Fuego ilumina o leitor com um brilho tão intenso que lhe causa vertigem.
Sua existência sacode a moral dos que se envolvem com a sua história, e por isso ela
é uma mulher-pesadelo, a qual compararemos às narrativas de Medeia e Lilith.
27
Quando o homem ainda vivia na longínqua Pré-história, a vida era regida por
cooperação. Segundo Rose Muraro (1997), como as condições de vida eram hostis,
os membros de uma mesma sociedade se ajudavam entre si. As pessoas não se
coibiam ou se subjugavam. Ainda que as mulheres tivessem certo status por gerar
vidas e assim se assemelharem à Deusa-Mãe, não havia repressão entre gêneros,
inclusive as relações entre os pares eram menos duras e não havia centralização de
poder. Para Gerda Lerner (2019, p. 137) havia “[...] complementaridade –
interdependência mútua –, as pessoas aceitavam prontamente que grupos divididos
por sexo tivessem atividades, privilégios e obrigações diferentes”. A liderança não
29
A essa altura, o homem já entendia que a sua força muscular lhe daria o poder
para comandar a sociedade. Todavia, o homem ainda resguardava algum respeito
pelas mulheres, e elas ainda tinham poder de decisão. De acordo com Muraro (1997),
eles ainda não haviam descoberto que cumpriam um papel na reprodução,
acreditavam que as mulheres geravam filhos por bênção dos deuses. Contudo,
durante o Neolítico, o homem descobriu seu papel na geração da vida, o que destituiu
a mulher de uma imagem sagrada e o homem passou a controlá-la como controlava
seu rebanho; sobretudo sua sexualidade. Ela deveria sair da casa do pai, seu primeiro
detentor, para a casa de seu marido, segundo detentor, virgem.
A mulher, que antes estava presa à sua função reprodutora pelo bem da
espécie, agora desempenharia esse papel porque seu trabalho reprodutivo se tornara
uma moeda. Para Lerner (2019, p. 132), “[...] a pureza feminina se torna um recurso
familiar, guardado com zelo pelos homens da família”. Ademais da questão da honra
– representada na mulher pela virgindade que seu corpo encerra e se constitui em um
atributo que ela guarda a fim de que seus parentes homens usem como bem entender
–, existia a questão prática e econômica: “o grande valor que as filhas tinham para
uma família era o potencial de serem noivas. O preço de noiva recebido por uma filha
costumava ser usado para financiar a aquisição de uma noiva para o filho” (LERNER,
2019, p. 144).
Desse modo, o homem, se auto-outorgando dono de terras, rebanhos,
escravos e mulheres, tinha a importante tarefa de assegurar que suas conquistas
permanecessem dentro do seu grupo familiar. Consequentemente, surge a questão
da herança, da linhagem e da sucessão, sendo necessário instituir um contrato
matrimonial, em que o casamento seria monogâmico (para a mulher, diga-se de
passagem) e o homem lhe garantiria proteção e lhe proveria teto, comida e
33
vestimenta. A quebra desse contrato seria desonrosa para o homem e fatal para a
mulher (isto é, passível de morte)9.
Por conseguinte, nasce a sociedade patriarcal. Centralizada na figura do pai,
provedor, viril, bravo e de masculinidade exacerbada: “já não são mais os princípios
feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte”
(MURARO, 1997, p. 7).
A mulher passa de “semideusa”, portadora do milagre da vida, para depositório
de sêmen, parideira de filhos pertencentes ao homem, bem como cuidadora deles.
Propriedade do homem, curadora de seus interesses, de seu lar:
9 A Revista Marie Claire publicou em 4 de fevereiro de 2011 uma matéria de nome “Esta mulher pode
salvar Sakineh”. A matéria consiste em uma entrevista com a ativista Mina Ahadi, fundadora do Comitê
Internacional contra o Apedrejamento, que tentava salvar a iraniana Sakineh Ashtiani, então com 43
anos, pois estava sendo acusada de adultério. No Irã, país majoritariamente mulçumano, o adultério
feminino é um crime inafiançável que tem como punição a pena máxima: o apedrejamento em praça
pública. A história de Sakineh chamou muita atenção internacional, tanto que países que tinham um
bom relacionamento com o Irã manifestaram publicamente seu apoio à iraniana, pedindo que sua pena
fosse revisada. A matéria segue explicando como o caso mudou de figura e de pena várias vezes,
sendo até adicionada a acusação de conluio com o assassinato do próprio marido. Ao ser indagada
pela revista como teria surgido o Comitê que visa salvar a vida de mulheres e homens que são
condenados ao apedrejamento público, Mina Ahadi conta que o desejo nasceu da indignação que
sentiu sobre um outro caso de acusação de adultério: “Em 2001, fiquei estarrecida com o caso de
Maryam Ayoubi, a iraniana mãe de dois filhos que foi apedrejada em Teerã no dia 11 de julho, sem que
ninguém tivesse, de fato, provado que ela fosse culpada. O apedrejamento não é algo cultural, como o
atual governo do Irã quer propagar, mas uma atrocidade introduzida pelo aiatolá Khomeini depois da
revolução de 1979. Fiquei tão horrorizada que comecei a pensar o que sentia uma mulher que estava
a ponto de morrer de forma tão bárbara por ter tido uma relação extraconjugal e decidi lutar criando
uma organização que chamasse a atenção do mundo para o problema (MAGALHÃES-RUETHER,
2011, s. p.)”.
10 Sobre o papel e a individualidade da mulher como sujeito, Gerda Lerner traz a seguinte contribuição:
“Elise Boulding, em seu resumo do passado das mulheres, sintetizou conhecimentos antropológicos
para apresentar uma interpretação bem diferente. Boulding enxerga nas sociedades neolíticas um
compartilhamento igualitário de trabalho no qual cada sexo desenvolveu habilidades e conhecimento
apropriados essenciais para a sobrevivência do grupo. Ela nos conta que a coleta de alimentos exigia
um conhecimento elaborado de ecologia, plantas, árvores e raízes, além de suas propriedades como
alimento e medicamento. Descreve a mulher primitiva como guardiã do fogo doméstico, como a
inventora de recipientes de argila e tecido, que permitiam que os excedentes da tribo fossem guardados
34
que, por sua vez, passa a pertencer ao homem: “ela passa a se ver com os olhos do
homem, isto é, sua identidade não está mais nela mesma e sim em outro. O homem
é autônomo e a mulher é reflexa. Daqui em diante, como o pobre se vê com os olhos
do rico, a mulher se vê pelo homem” (MURARO, 1997, p. 12).
Se outrora o homem, a mulher e a natureza viviam em harmonia, esse tempo
acabou, sem quase nenhum resquício, rastro ou lembrança. E a desarmonia causada
pela escassez de alimento ou pela disputa de território passou a não ser mais o
principal motivo das guerras. O homem começou a amar a guerra e deu a desculpa
de lutar pela honra – embora o amor pela guerra esteja muito mais associado ao poder
e a glória. O ego do macho alfa precisava de constante estímulo e a paz já não
apetecia mais o interior do homem desejoso de elogios, bajulações e prêmios. Assim,
o homem inventou a noção de império para lutar e inflar seu ego. A guerra não tinha
mais a ver com sobrevivência, e sim com ganância, subjugação, dominação,
demonstração de braveza e masculinidade. Quando as nações não tinham como
financiar as guerras, os homens criaram jogos, arenas. Mediam forças entre si ou
contra animais – quando não forçavam escravos a medir por eles. Não importando
qual o meio de ostentar poder, mas sempre inventando pretexto para alimentar a
própria megalomania.
Nas discussões expostas até o momento, pode-se dizer que encontramos
algumas das respostas para as questões sobre como e por que a sociedade se tornou
patriarcal, dando ao homem a detenção absoluta do poder. No tópico a seguir, tentar-
se-á evidenciar os artifícios que o homem criou e que corroboram para que o
despotismo sobre a mulher perdure até os dias de hoje.
para épocas de escassez. Descreve ainda a mulher como alguém que extraía de plantas, árvores e
frutas os segredos da transformação de seus produtos em substâncias curativas, tinturas, cânhamo,
fios e roupas. A mulher sabia como transformar matéria-prima e animais mortos em alimento. Suas
habilidades devem ter sido tão diversas quanto as do homem, e por certo tão essenciais quanto as
dele. Ela tinha talvez mais conhecimento ou pelo menos tanto quanto o homem; é fácil imaginar que
devia ser o suficiente para ela. Na criação de rituais e ritos, de música, dança e poesia, ela teve tanta
participação quanto ele. E, ainda assim, devia ser responsável por gerar e criar filhos. A mulher, na
sociedade pré-civilizada, deve ter sido igual ao homem e pode muito bem ter se considerado superior
a ele” (LERNER, 2019, p. 73).
35
11 “[...] senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste
a grande derrota histórica do sexo feminino” (BEAUVOIR, 1970, p. 74).
12 “Certas passagens da dialética com que Hegel define a relação do senhor com o escravo se
aplicariam muito melhor à relação do homem com a mulher. O privilégio do senhor, diz, vem de que
afirma o Espírito contra a Vida pelo fato de arriscar sua vida; mas, na realidade, o escravo vencido
conheceu o mesmo risco, ao passo que a mulher é originalmente um existente que dá a Vida e não
arrisca sua vida: entre ela e o macho nunca houve combate. A definição de Hegel aplica-se
singularmente a ela. ‘A outra [consciência] é a consciência dependente para a qual a realidade
essencial é a vida animal, isto é, o ser dado por uma entidade outra’. Mas essa relação distingue-se da
relação de opressão porque a mulher visa e reconhece, ela também, os valores que são concretamente
atingidos pelo homem: ele é que abre o futuro para o qual transcende. Em verdade, as mulheres nunca
opuseram valores femininos aos valores masculinos; foram os homens, desejosos de manter as
prerrogativas masculinas, que inventaram essa divisão: entenderam criar um campo de domínio
feminino — reinado da vida, da imanência — tão somente para nele encerrar a mulher; mas é além de
toda especificação sexual que o existente procura sua justificação no movimento de sua
transcendência: a própria submissão da mulher é a prova disso” (BEAUVOIR, 1970, p. 85, grifos da
autora).
13 Versão em espanhol: “Como no existen esclavos sin amos, no existen mujeres sin hombres”.
36
uma mulher escravizada eram separados dela muito pequenos e, segundo Gerda
Lerner (2019), o senhor de escravos que soubesse de uma relação de afetividade
entre pessoas, estuprava uma na presença da outra para humilhá-las e para que se
percebessem impotentes, e depois ainda as apartava. Logo, uma mulher
completamente solitária, provavelmente, jamais se rebelaria. E, mesmo que uma
mulher não fosse inscrita como escrava, ainda era inscrita como propriedade de algum
homem e passaria pelas mesmas formas de subjugação, ainda que em graus e
intensidades diferentes.
Neste passo, a cultura da supremacia se tornou institucionalizada, tomando
para si o discurso do direito natural. Da mesma maneira como o senhor teria direito
natural de dominação sobre o escravo, o homem teria sobre a mulher. A própria
natureza, supostamente, teria criado os escravos e as mulheres inferiores e fracos
para que tivessem seus guardiões e senhores. Porém, segundo Monique Wittig (2006)
– que corrobora em partes com Gerda Lerner (2019) –, a relação dominante/dominado
não está ligada de forma nenhuma a um sexo biológico predestinado ou naturalmente
favorecido:
14Versão em espanhol: “Porque no hay ningún sexo. Sólo hay un sexo que es oprimido y otro que
oprime. Es la opresión la que crea el sexo, y no al revés. Lo contrario vendría a decir que es el sexo lo
que crea la opresión, o decir que la causa (el origen) de la opresión debe encontrarse en el sexo mismo,
en una división natural de los sexos que preexistiría a (o que existiría fuera de) la sociedad”.
38
Enquanto não existir a luta das mulheres, não haverá conflito entre os
homens e as mulheres. O destino das mulheres é a realizar três
quartos do trabalho na sociedade (tanto na esfera pública quanto na
privada) além do trabalho corporal da reprodução segundo a
imposição pré-estabelecida. Ser assassinada e mutilada, torturada e
maltratada física e mentalmente, ser estuprada, surrada e ser forçada
a se casar, este é o destino das mulheres. E é claro que não se pode
mudar o destino. As mulheres não sabem que estão totalmente
dominadas pelos homens, e quando o reconhecem “quase não podem
acreditar”. Geralmente, como último recurso diante da realidade nua e
crua, se recusam a “acreditar” que os homens as dominam
conscientemente (pois a opressão é ainda mais horrenda para as
oprimidas do que para os opressores). Por sua vez, os homens sabem
perfeitamente que dominam as mulheres (“Somos os senhores das
mulheres”, disse André Breton) e eles têm sido educados para fazê-
lo. Não precisam expressá-lo constantemente, pois raramente se fala
sobre a dominação daquilo que já se possui15 (WITTIG, 2006, p. 23-
24, tradução nossa, grifos da autora).
15 Versão em espanhol: “Mientras no haya una lucha de las mujeres, no habrá conflicto entre los
hombres y las mujeres. El destino de las mujeres es aportar tres cuartas partes del trabajo en la
sociedad (tanto en la esfera de lo público como de lo privado), trabajo al que hay que añadir el trabajo
corporal de la reproducción según la tasa preestablecida de la demografía. Ser asesinada y mutilada,
ser torturada y maltratada física y mentalmente; ser violada, ser golpeada y ser forzada a casarse, éste
es el destino de las mujeres. Y por supuesto no se puede cambiar el destino. Las mujeres no saben
que están totalmente dominadas por los hombres, y cuando lo admiten, “casi no pueden creerlo”. Por
lo general, como último recurso ante la realidad desnuda y cruda, rechazan “creer” que los hombres las
dominan conscientemente (porque la opresión es aún más terrible para las oprimidas que para los
opresores). Por su parte, los hombres saben perfectamente que dominan a las mujeres (“Somos los
amos de las mujeres”, dijo André Bretón) y han sido educados para hacerlo. No necesitan decirlo
constantemente, pues rara vez se habla de dominación sobre aquello que ya se posee”.
40
A mulher está presa ao seu sexo porque este é o desejo do homem, que quer
diminui-la, restringi-la e dominá-la. Onde quer que a mulher se encontre, o patriarcado
demarca seu corpo como um território. De acordo com a escritora francesa, no âmbito
doméstico, a mulher é mãe, cuidadora de filhos, faxineira. Tem obrigações a ser
cumpridas pelo resto de suas vidas, regidas pelo marido, incluindo “[...] transferência
de sua reprodução em nome do marido, coabitação noite e dia, coito forçado,
transmissão legal de residência implicada pela noção jurídica de abandono do
domicílio conjugal [...]”17 (WITTIG, 2006, p. 27). O homem é tão dono do corpo da
mulher, que, conforme Monique Wittig (2006), existe implicitamente uma política
policial de não interferir quando uma mulher é agredida por seu marido. Teoricamente,
isso vem mudando com leis como a Lei Maria da Penha18, que pretende combater a
16 Versão em espanhol: “Basta con leer las entrevistas a mujeres excepcionales en las revistas para
ver que siempre se disculpan. E incluso en la actualidad, los periódicos informan de que “dos
estudiantes y una mujer”, “dos abogados y una mujer”, “tres viajeros y una mujer” han hecho esto o
aquello. La categoría de sexo es la categoría que une a las mujeres porque ellas no pueden ser
concebidas por fuera de esa categoría. Sólo ellas son sexo, el sexo, y se las ha convertido en sexo en
su espíritu, su cuerpo, sus actos, sus gestos; incluso los asesinatos de que son objeto y los golpes que
reciben son sexuales. Sin duda la categoría de sexo apresa firmemente a las mujeres”.
17 Versão em espanhol: “[…] cesión de su reproducción puesta a nombre del marido, coito forzado,
cohabitación día y noche, asignación de una residencia, como se sobreentiende en la noción jurídica
de «abandono del domicilio conyugal […]”.
18 Lei Federal Brasileira. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Esta Lei foi criada com o objetivo de
punir e coibir atos de violência doméstica contra a mulher. A Lei carrega esse nome como forma de
reparação simbólica por parte do Estado brasileiro pela omissão diante às agressões e às tentativas
de assassinato (uma vez com arma de fogo, no qual o agressor forjou um arrombamento domiciliar
para poder matar a esposa que resultou em paraplegia para a vítima e outra com afogamento e indução
de eletrochoque) sofridas por Maria da Penha Maia Fernandes durante 23 anos de casamento com
Marco Antônio Heredia Viveros, que foi condenado duas vezes, mas sempre saiu em liberdade.
Mediante à impunidade, Maria da Penha agiu junto ao Centro pela Justiça pelo Direito Internacional
(CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), para denunciar o
Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, o
41
que resultou na condenação do país por negligenciar as vítimas de abuso doméstico e não criar
mecanismos para punir os agressores, bem como conter a violência contra a mulher. Com a
condenação, o Brasil também foi forçado a tomar outras medidas como: a resolução do processo penal
que Maria da Penha foi vítima; investigação sobre o proceder do processo; ressarcimento material e
simbólico pelo desleixo e tolerância por parte do Estado e a criação de políticas públicas com o objetivo
de prevenir, extinguir e punir a violência contra a mulher. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), em seu relatório publicado em 2015, a Lei Maria da Penha contribuiu com a redução
de 10% no aumento da taxa de feminicídios domésticos.
19 Versão em espanhol: “La categoría de sexo es una categoría que determina la esclavitud de las
mujeres […]”.
42
Dos primordiais mecanismos para que se logre essa redução da mulher apenas a uma
simples categoria são a violência, o estupro e a coerção. As mulheres sofrem tantas
violências e de tão diferentes maneiras que já se encontram naturalizadas; inclusive,
entre as próprias mulheres. Muitas vezes, as mulheres são as primeiras propagadoras
do discurso que reforça o controle do homem, coagindo umas às outras, em vez de
se ajudarem mutuamente.
Contudo, uma mulher não é só uma mulher. Já está na hora do mundo
reconhecer isso e vencer a barreira da opressão e da dominância masculina. E, para
quebrar com essa tradição de dominância, precisamos entender como o patriarcado
usou de simbologias e personas outorgantes para se sustentar e se legitimar.
Gerda Lerner (2019) aponta que dentre os pilares do pensamento ocidental, os
três principais são: o Antigo Testamento, o Pensamento Grego e a Ciência – que teve
a contribuição dos dois primeiros. Para esta pesquisa, não lidaremos diretamente com
a ciência, mas sim com suas matrizes influenciadoras. A seguir, por meio da mitologia,
buscaremos compreender como os deuses Jeová e Zeus, como figuras
representantes de poder e masculinidade, usurparam o maior posto no panteão dos
deuses instituindo o patriarcado e a misoginia como leis divinas e como esses deuses
teriam transferido e legitimado a ideia da superioridade masculina às suas criaturas
prediletas: os homens.
e esculturas que evidenciam os seios, quadris e/ou umbigo da mulher, bem como
esculturas de mulheres parindo), podemos chegar à conclusão que se trata da
possível primeira expressão religiosa. Tendo em vista que a gestação feminina era
um mistério e que o primeiro, bem como o mais duradouro, laço afetivo entre as
pessoas fosse o da mãe com sua prole, não se admira que a primeira divindade que
ocupasse o ideário do ser humano fosse justamente uma Deusa-Mãe. As pessoas
acreditavam que a Deusa-Mãe teria parido o universo e que ela mesma nutria a terra
de seus próprios seios. Ela seria a própria natureza que gera a vida e solveria tudo
para a morte, num ciclo equilibrado e intermitente.
Para Gerda Lerner (2019), o advento da agricultura de arado, o aumento do
militarismo, o surgimento do Estado arcaico, a presença de reinados fortemente
estabelecidos, juntamente com a possível descoberta da participação do homem na
procriação acarretaram modificações no ideário sobrenatural. A Deusa-Mãe, que teria
parido o universo, posteriormente, surge como parturiente também de um filho homem
que se tornará seu marido e eles gerarão outros deuses. Podemos assinalar aqui
como exemplo disso a titã grega Gaia que gerou espontaneamente três filhos e depois
se casou com um deles, Urano. E deles nasceram outros titãs que formaram um
panteão, mas a deusa primordial não se estabelece no trono. Para Lerner, o padrão
observável seria: “[...] primeiro, o rebaixamento da imagem da Deusa-Mãe e a
ascensão e posterior dominância de seu consorte/filho; depois a fusão deste com um
deus da tempestade em um Deus-Criador, que lidera o panteão de deuses e deusas”
(LERNER, 2019, p. 188).
Com a sociedade liderada por homens, o panteão dos deuses não poderia ter
como líder uma deusa – principalmente, porque, muitas vezes, os soberanos
legitimavam o direito ao posto por uma linhagem ou por uma espécie de bênção divina.
Se o principal trono celestial fosse ocupado por uma deusa, daria o direito de uma
mulher ocupar o principal trono terreno; assim seria a rainha a maior figura de poder
no Estado, e não o rei. A autoridade divina não outorgaria somente o direito sobre um
posto, mas também o direito de um território, templos, dinheiro, enfim, poder. Dessa
maneira, a política transformou a religião de maneira gradativa e eficaz. Esta passa a
ser prescritiva e não descritiva: as pessoas não deixaram de cultuar a Deusa-Mãe por
vontade própria, mas foram obrigadas a abandonar a prática aos poucos. De acordo
com Lerner, podemos ter um exemplo dessa prática de mudança consciente da
44
mitologia a partir dos sacerdotes que buscavam ascender o poder dos deuses que
eles cultuavam, e assim ascender o próprio poder:
20 Gostaríamos de deixar bem claro e frisado que quando falamos sobre a legitimidade que o homem
teria utilizado através da religião hebraica/ judaica/ cristã para instituir o sistema patriarcal, não estamos
atribuindo toda culpa da criação e instauração dessa estrutura a essas cosmogonias. Compreendemos
que a religião que tem como centro o deus Jeová foi (e é) um dos inúmeros mecanismos que o
patriarcado se utilizou (e se utiliza) para ascender e se estabelecer no poder no Ocidente. É óbvio que
no Oriente o patriarcado surgiu, se desenvolveu e se instaurou tão solidamente quanto no Ocidente.
Porém, os processos que o Oriente passou para a instauração patriarcado se deu por meio de outros
mecanismos que não fazem parte do recorte desta pesquisa.
21 Segundo William G. Dever, em Did God Have a Wife?, Jeová, antes de usurpar o poder e suprimir
os outros deuses, também fora representado como touro (DEVER, 2005, p. 258).
46
22Embora o falo tenha se tornado o símbolo central do patriarcado, assim como das religiões patriarcais
como o hebraísmo, o judaísmo, o muçulmanismo e o cristianismo, William G. Dever (2005) aponta que
o epíteto “El-Shadday” que Jeová carrega faz referência a dois deuses primitivos: El (que seria o deus
da tempestade) e Shadday (deusa que representaria a Terra e as montanhas seriam seus seios).
Assim, “El-Shadday” seria um deus masculino com seios femininos. Evidentemente, essa noção foi
perdida ao longo dos anos, e os atributos femininos assimilados foram esquecidos, apagados e
encobertos.
47
Gerda Lerner (2019) explica que, de acordo com evidências, no período entre
o terceiro e o segundo milênio a. C., esse novo conceito de criação surge no
pensamento sacro. Muitas vezes, antes de existir a matéria da criatura, sua essência
já era pré-determinada pelo nome, como quando Jeová nomeou ao filho de Davi por
Salomão e prometeu que o reinado dele seria pacífico, porque Salomão deriva da
palavra hebraica “shalom”, que significa “paz e segurança” (1 Crônicas 22:9). A
nomeação poderia acontecer após ao nascimento e também depois de um marco na
narrativa da personagem, gerando renomeações e epítetos: “a nomeação tem
profundo significado no sistema de crenças da Antiga Mesopotâmia. O nome revela a
essência de quem o carrega; ele também tem poder mágico” (LERNER, 2019, p. 194).
Outro exemplo disso na mitologia judaica-cristã pode ser observado quando Jacó, já
adulto, passa a se chamar Israel, pois, segundo o Gênesis, Jacó lutou com Deus e
venceu, então este nome em hebraico se assemelha com “luta com Deus” ou “Deus
luta” (Gênesis 32:26-31). O nome revela que Jacó, depois dessa experiência, não é
mais o mesmo. Portanto, Deus o renomeia para que todos, ao ouvirem seu nome,
saibam quem Israel é e o que representa. Dessa forma, para Jeová criar, basta falar
e a mágica acontece: “— que haja luz! E a luz começou a existir” (Gênesis 1:3). A
criação se manifesta a partir de um nome (o que podemos definir por nome próprio
ou substantivo), um conceito que revela sua essência e seu destino.
Quando Jeová fala é o suficiente para que se suceda. A sua voz e sua palavra
devem ser ouvidas e cumpridas; e os homens a quem Jeová falaria, fariam se realizar
as vontades e os mandamentos do deus macho – tal como eles. Como já dissemos,
os profetas de Jeová são homens, os reis de Jeová são homens, seus juízes e
sacerdotes são homens. Evidentemente, temos o conhecimento de algumas
profetisas e juízas na tradição hebraica, como: Miriã (Êxodo 15:20), Débora (Juízes
4:4), Hulda (2 Crônicas 34:22), Noadia (Neemias 6:14) e uma profetisa sem nome
(Isaías 8:3) – o que representa casos pontuais e contundentemente ignorados nas
recontagens posteriores dos mitos. Como exemplo disso, segundo Fridlin (1989),
quando os cantos do Êxodo são reiterados no Sidur, que é o livro de orações do
judaísmo rabínico, a referência a Miriã é completamente omitida. Também em
Apocalipse 15:3-4, oriundo do arcabouço do recém-surgido cristianismo (na época,
ainda ligado à tradição judaica), também Miriã desaparece. Quanto às demais, é mais
difícil constatar essa ausência porque toda a narrativa em que elas se inserem
costuma ser ignorada. Além da batalha de Monte Tabor (em que aparece Débora),
48
raramente sequer são mencionadas nos livros de educação religiosa ou mesmo nas
cerimônias. Podemos assinalar como uma forte evidência desse apagamento o livro
de catequese Eu Creio – pequeno catecismo católico (2004), em que essas profetisas
e juízas não são contadas, com exceção de Miriã (Miriam), a qual apenas o nome é
mencionado uma única vez e junto a outros nomes de personagens bíblicos, mas
nenhuma alusão é feita à história da profetisa. Por outro lado, os profetas homens
como João Batista, Elias, Isaías, João etc., são largamente citados.
No entanto, não há notícias de sacerdotisas hebraicas. No estabelecimento do
sacerdócio (Êxodo 28:1) é explicitado que os sacerdotes serão os descendentes
homens de Aarão. Dessa maneira, sabendo-se que o estabelecimento do templo (e,
portanto, de toda a casta sacerdotal) é o movimento final que antecede o
estabelecimento do texto sagrado, e, portanto, de todo o judaísmo (posteriormente,
também o cristianismo) como nós conhecemos hoje, é lícito ver aí a culminação do
apagamento do protagonismo feminino na história mítica de Israel.
Apesar de as origens do texto e das instituições da religião hebraica estarem
envoltas na bruma do tempo, o momento mais antigo em que é possível falar que o
texto ainda não se tinha cristalizado é durante as reformas de Esdras e do Cisma
Samaritano (que ocorrem na mesma época) por volta de 450 a. C. O texto samaritano
até hoje diverge da Torá rabínica em pontos importantes, e no próprio livro de Esdras-
Neemias há menção de que o texto da Lei era desconhecido do público (Neemias 8:7-
8). Para Gerda Lerner, Esdras e Neemias foram os responsáveis pela fusão final dos
livros do Pentateuco, quando o reino de Judá se encontrava subjugado pelo domínio
persa. Isso “representou a canonização da Lei Judaica e a realização suprema do
pensamento religioso judaico no período arcaico” (LERNER, 2019, p. 206).
Gunneweg (2005) fala sobre esse momento histórico em que a religião é
estabelecida não mais em bases tribais étnicas, mas num texto codificado, ao qual
deve obediência jurídica aquele que a confessa. Esse é o início do judaísmo (antes,
pode-se falar em religião hebraica ou judaísmo antigo).
É importante ressaltar que Esdras era descendente do último Sumo Sacerdote
do Primeiro Templo (cuja existência tem muito de mítica, todavia provavelmente teve
uma base na realidade), ou seja, ele tinha o conhecimento necessário e todo o
interesse investido em reservar o papel sacerdotal para si e para os homens da sua
família. Mantendo a base da religião num texto (quer esse texto lhe preexistisse ou
não), era bem menos viável uma reforma que retirasse o poder da religião das mãos
49
deles e de seus descendentes homens. De acordo com Lerner (2019), tanto o avanço
cultural/conceitual do judaísmo quanto os conceitos patriarcais estruturadores do
monoteísmo judaico foram influenciados pelos mesmos contextos históricos. Logo,
não há como se dissociar o monoteísmo judaico – a qual o cristianismo é oriundo –
da centralização do poder masculino e do sistema patriarcal.
A mulher, estando relegada à esfera privada, estava alienada tanto da sua
própria religião quanto do mundo. Convencida de que gozava de um precioso
privilégio, não precisaria aprender a ler (logo, não poderia decifrar por si mesma os
textos sagrados), não precisaria ir a templos ou tendas religiosas em busca de
conhecimento e estaria “isenta” do serviço religioso público. A mulher poderia viver
uma vida feliz e prosaica junto aos filhos encarcerada em casa. Ela aprenderia os
mandamentos de um suposto deus que regeria a sua vida pela boca do homem a
quem pertencesse; seu pai, seu irmão ou seu marido e como seria a curadora dos
interesses do seu proprietário, estaria encarregada de doutrinar a prole segundo tais
interesses. É imperativo o fato de que a esfera doméstica da religião era subordinada
(e quase uma repetição reafirmativa) dos ditames da esfera pública. Jamais seriam
toleradas inferências ou interpretações que fugissem de alguma maneira aos
ensinamentos e regras patriarcais. Sem o conhecimento da teocracia que a oprimia,
como perceberia suas incoerências e como lutaria por melhoria? E ainda que o
fizesse, quando percebesse a tremenda desvantagem a qual estaria submersa, seria
tarde demais:
Mas antes dos profetas e reis de Jeová, existiu o primeiro homem ao qual Deus
teria transferido o dom na nomeação e a autoridade masculina. Para tornar mais
compreensível a ideia de que a figura masculina é o agente nomeador e significador
das coisas – e, com isso, também da mulher – recorremos a dois mitos de criação,
50
23A versão da Bíblia que adotamos para esta Dissertação foi a Católica Apostólica Romana, traduzida,
editada e comentada pela Editora Paulinas. A eleição por essa versão se deu pelo motivo da quantidade
de livros que a Bíblia católica tem em detrimento da Bíblia protestante, sendo a quantidade,
respectivamente, 73 e 66 livros.
51
para reinar sobre todas as criaturas da Terra (Gênesis 1:28), inaugurando aí a ideia
de sucessão e descendência que depois será firmada em aliança com o povo eleito
de Deus:
Vendo Deus que seu trabalho havia terminado, ao sétimo dia, descansou.
Posteriormente, a narrativa da criação do ser humano retorna com o enredo em que
o homem foi feito da terra e, para torná-lo vivente, Jeová soprou em suas narinas o
fôlego da vida. Depois que Adão foi animado pelo espírito de Deus, Ele levou a Adão
todas as outras criaturas para que fossem nomeadas por aquele que seria o senhor
sobre todas elas. Para Gerda Lerner (2019), a narrativa aí traz um conceito diferente
de criação; pois Jeová não cria Adão apenas por chamar seu nome; ele é fabricado
do barro, mas o sopro é o que aviva a sua matéria – o que estaria de acordo com a
proposta dela, já citada, de que a Deusa-Mãe é usurpada e suprimida pelo poder de
um Deus-Criador que foi assimilado a um deus da tempestade e do sopro (ar ou
vento). Observamos que, em outros trechos da Bíblia, essa simbologia de Jeová como
deus da tempestade, de ventos, tormentas, nuvens, trovões etc., aparece com certa
recorrência, como exemplo: Salmos 29, Salmos 83:15, Salmos 148:8, Isaías 29:6,
Jeremias 23:19, Jeremias 30:23, Ezequiel 13:13, Ezequiel 38:9, Hebreus 12:18-21,
entre muitos outros. “Sendo assim, o sopro divino cria, mas o ato humano de nomear
dá significado e ordem. E Deus dá a Adão o poder desse tipo de nomeação”
(LERNER, 2019, p. 226), como podemos observar nestas palavras:
Nesse trecho do Gênesis, podemos refletir sobre a relação de Jeová com Adão
e este, com a mulher. Primeiro, como já observamos, Deus transfere a Adão o dom
nomeador. Gerda Lerner (2019) atenta que se pode fazer a interpretação da palavra
hebraica adam (Adão para a Língua Portuguesa) como “humanidade”, dessa maneira,
Jeová teria dado ao gênero humano o poder de nomear. Porém, a própria Bíblia ceifa
essa suposição, já que, em toda ela, são os homens que nomeiam e não as mulheres.
Então, “[...] Deus concedeu o poder somente, e de modo específico, ao ser humano
do sexo masculino” (LERNER, 2019, p. 226). Gerda Lerner ressalta outra suposição
que consiste em avaliar que esse dom teria sido transferido somente a Adão nesse
momento, pois a mulher não teria sido criada ainda, mas essa interpretação,
obviamente, não se sustenta; porque o ato de nomear ocorre novamente na narrativa
mais à frente, em Gênesis 2:23, em relação a própria mulher, em que Adão lhe põe
um nome do mesmo jeito que faz a todas as outras criaturas. É possível perceber que
cada um é nomeado pelo seu Senhor. Adão por Deus. Eva por Adão:
24A versão da Bíblia utilizada para este trabalho conta com comentários e notas atribuídos ao próprio
editorial.
53
palavra “Eva”, que em hebraico se escreve “ ”חוהse assemelha à palavra “”חיה, que
significa “animal”. Como nos textos mais antigos da Torá, a letra (וvav) e a letra (יiod)
eram muitas vezes intercambiáveis, e como a raiz de ambas as palavras é a palavra
“”חיים, que significa “vida”, o significado de “Eva” estaria mais aproximado a “mãe de
todos os viventes” em vez de “seres humanos”. Logo, entendemos que existe uma
tênue distinção entre ser “mãe de todos os seres humanos” a ser “mãe dos viventes”,
que, para nós daria uma outra noção ao papel de Eva, como se a primeira mulher
estivesse mais condicionada a ser uma vivente, semelhante aos animais, do que
propriamente humana, como Adão.
Eva, criada da costela25 de Adão, foi feita para ser esposa dele (não importando
se isso seria do agrado dela ou não). Uma ajudadora idônea como a Bíblia afirma, e
como já diz seu próprio nome, criada também para ser mãe. Papel imposto de
antemão, sem qualquer consulta a ela sobre a escolha de gerar e seus desejos para
com sua própria vida.
Sendo Jeová o deus do patriarcado, ele elege o macho como a matriz da vida,
da lei, da ordem. Adão pare Eva de seu interior, mas de uma maneira que destitua o
ato de criação do gênero feminino. Ela é criada a partir do osso26 do macho. Uma vez
que a mulher tenha sido criada de uma partícula do homem, isso conferiria a ele uma
autoridade maior que o mesmo teria diante aos animais e às plantas. A mulher, por
assim dizer, teria sido parida pelo homem por meio da costela que saiu de seu próprio
corpo. Segundo Gerda Lerner (2019), o homem, com esse ato, se define como a mãe
do gênero feminino. Destacamos que a mulher representaria apenas parte de sua
25 Sobre a anedota da criação de Eva, Graves e Patai nos trazem uma perspectiva em que a narrativa
da retirada da “costela” de Adão seria um mito etiológico para explicar como o ser humano perdeu a
cauda: “La creación de Eva por Dios con la costilla de Adán – mito que establece la supremacía
masculina y oculta la divinidad de Eva – carece de análoga en el mito del Mediterráneo o del Medio
Oriente primitivo. La fábula tal vez se deriva iconotrópicamente de un relieve o una pintura antigua
donde aparecía la diosa desnuda Anat suspendida en el aire observando a su amante Mot dando muer
le a su mellizo Aliyan; Mot (confundido por el mitógrafo con Yahvéh) introducía una daga curva bajo la
quinta costilla de Aliyan y no le quitaba la sexta. Apoya la fábula conocida un oculto retruécano con
tsela, la palabra hebrea que significa ‘costilla’. Eva, aunque destinada a ser la compañera de Adán,
demostró que era una tsela, un “obstáculo” o ‘infortunio’. La creación de Eva con la cola de Adán es un
mito todavía más perjudicial, tal vez sugerido por el nacimiento de un niño con el vestigio de una cola
en vez de un coxis, lo que no es infrecuente” (GRAVES; PATAI, 2018, p. 77). Contudo, segundo Ziony
Zevit em What Really Happened in the Garden of Eden? (2013), o osso de Adão, do qual Eva teria sido
criada, seria o osso do pênis, observado em outros primatas, mas não no homo sapiens – o que ainda
assim seria uma evidência que a narrativa de Adão e Eva seria um mito etiológico, porém, para explicar
a perda do osso na genital masculina humana.
26 Na Teogonia de Hesíodo, Zeus pede a Prometeu que faça um sacrifício. Nesse sacrifício, os deuses
ficariam com os ossos da oferenda, que representaria a eternidade e supremacia dos deuses, e os
homens ficariam com a carne, que representa a decrepitude e finitude humana.
54
mandamentos que desde Adão outorga a supremacia masculina. Agora, vamos traçar
a linha partindo da Deusa até Zeus, o rei do Monte Olimpo.
Se na mitologia cristã temos a Bíblia como a palavra de Jeová para que as
pessoas não se olvidassem ou se desviassem de seus mandamentos patriarcais, na
mitologia grega temos as obras de Hesíodo que, pela possível inspiração das
Musas27, conta à humanidade a história dos deuses, dos titãs e – como era de se
esperar – a origem de tudo que há no universo. E, apesar da literatura mitológica
grega não conter mandamentos e restrições claras e cruas como na Bíblia, os mitos
geralmente traziam uma moral ou lição. A mitologia, portanto, servia como um recurso
pedagógico para a civilização grega.
Gerda Lerner explica (2019) que a Grécia, do oitavo ao quinto séculos a. C.,
era uma civilização com estratificação de classe, com a prática escravagista
consolidada e inteiramente patriarcal (semelhantemente aos seus vizinhos
Mesopotâmia e Israel), e que, a despeito das acaloradas e polêmicas discussões
sobre a vida doméstica das mulheres tidas como respeitáveis, bem como os
ambientes segregados entre homens e mulheres, a sujeição tanto social como legal
em que as mulheres viviam era indubitável. Então, o pensamento e literatura de
Hesíodo acompanham essas mudanças e agem naquele mesmo esquema que já
citamos e que Lerner desvendou para nós:
Gerda Lerner (2019), como mostra a citação, faz uma análise comparada dos
fenômenos de instituição patriarcal entre as culturas banhadas pelo Mediterrâneo.
Podemos perceber que os gregos deixaram o rastro de como Zeus chegou ao trono –
27Deusas das artes, da história e da literatura. É comum que os poetas gregos da Antiguidade Clássica
evocassem as Musas antes de escreverem seus poemas épicos, pois somente elas conhecem a
história de tudo e podem contar para que saibam. Até mesmo Zeus solicita que as Musas o contem
suas próprias histórias.
56
macho, embora fosse uma deusa fêmea, teria atributos masculinos e passaria a
representar forças de ordem, justiça e sabedoria. E, como observa Gerda Lerner
(2019), Zeus, da mesma forma que Jeová, toma o trono e o dom da procriação sem
precisar de uma figura feminina para o ato criador. Logo, podemos dizer que as obras
de Hesíodo cumpriram um papel equivalente ao Gênesis. Lerner ressalta que as
tenções e as contradições existentes entre as diferentes classes sociais e a tentativa
de ascensão da classe rural pobre para a média contribuíram para a misoginia nos
poemas de Hesíodo no século VII a. C.:
28Pandora (Πανδώρα) Παν – Pan: “tudo/ todo(s)”/ δώρα – dora: “dom/dons”. “Pandora, porque todos
os que têm moradas olímpias deram essa dádiva, desgraça para os homens que vivem de pão”
(HESÍODO, 2012, p. 69).
58
Zeus pediu que Hefesto29, o deus inventor, fabricasse uma mulher com feições
respeitáveis e aos deuses olímpicos que lhe enchessem de dons, porém a Hermes
pediu que desse um mau caráter: “então, o mensageiro matador de Argos fez em seu
peito mentiras, palavras sedutoras e um caráter fingido, por vontade de Zeus que
grave troveja [...]” (HESIODO, 2012, p. 67). E assim se fez Pandora. Prometeu, ciente
que Zeus era ardiloso e vingativo, avisou a seu irmão Epimeteu que nada recebesse
do rei dos deuses. Contudo, quando Epimeteu foi presenteado com uma mulher tão
linda quanto uma deusa, nem pensou em recursar.
Pandora, após estar na Terra, removeu a tampa do jarro que continha dentro
todos os males, restando guardada apenas a Antecipação30. Por conseguinte, o
homem passou a conhecer a fome, a doença, o trabalho, a fadiga. A culpa é atribuída
a ela, sem embargo, não se discute que Zeus foi o idealizador dela e que,
possivelmente, por vontade dele, teria sido que ela tivesse removido a tampa, pois no
mito Hesíodo diz que ela teria se apressado a baixar a tampa “[...] por vontade de
Zeus que ajunta nuvens, o detentor da égide” (HESÍODO, 2012, p. 71).
Pandora, sem escolha, teria trazido desventuras aos homens, tal como Eva.
Recordemo-nos mais uma vez que Eva também sofreu com a mesma acusação por
comer do fruto do conhecimento. E, apesar das mulheres satisfazerem aos propósitos
para os quais teriam sido criadas, não encontram gozo ou bom logro com isso. Ao
contrário: carregam uma série de estigmas pelo fato de serem mulheres. Quando bom,
são ligadas a papéis de esposas, mãe, donas de casa; quando mau, são lascivas,
falsas, perigosas, vulgares. Indireta e diretamente, o discurso misógino de que a
mulher precisa estar alinhada com os papéis de mãe, esposa e dona de casa, caso
contrário é uma mulher que nega o plano natural de sua própria existência e, portanto,
é uma aberração, possui uma força brutal que atravessa as Eras. O discurso machista
vira uma cartilha aderida por todos em uma comunidade. Veremos, posterior e mais
detalhadamente, como a misoginia se torna senso comum na boca das pessoas em
29 Nas tradições orais mais antigas do mito, Prometeu é tanto o criador como o nomeador de Pandora,
a primeira mulher desta geração humana.
30 Nessa tradução de Os trabalhos e os dias, o tradutor escolheu traduzir o termo para Antecipação,
porém, comumente se traduz por Esperança. Ele não explica o porquê da escolha, no entanto, pode-
se encontrar equivalência se pensarmos a Esperança como um sentimento fatigoso de anseio, assim
como a Antecipação.
59
Junto às Moiras, Hera traça os destinos dos gregos e colcos. Pélias, perturbado
por pesadelos, decide consultar um oráculo que lhe revela notícias ainda mais
horrendas. O oráculo o adverte que ele será deposto por um guerreiro calçado
somente em um dos pés. Contudo, não diz quem seria o tal guerreiro nem quando
isso ocorreria.
Os anos passam e quando Jasão está em uma caçada com seus amigos,
decidem beber a água de um rio. Lá, encontram uma idosa de olhos verdes que
precisa atravessá-lo. Jasão prontamente se oferece para carregar a doce senhora
durante o percurso. Entretanto, quando Jasão e a idosa estão ainda no meio da
travessia, o rio começa a se agitar e um monstro surge das profundezas. O herói luta
até quase a exaustão, então a velha mulher sugere que o jovem a solte e salve a si
mesmo. Jasão recusa a oferta e logo o rio se acalma. Enfim, eles conseguem terminar
a travessia e o herói percebe que lhe falta um calçado. A velha, que na verdade é
Hera, revela-se aos rapazes e aconselha Jasão a retornar ao reino de seu pai e a
seguir sua jornada, descalço de um pé.
Assim, o jovem inicia sua aventura sem ter a mínima noção que faz parte de
um enredo dirigido pelos deuses. Vai até Iolcos e, ao confrontar o tio, recebe uma
proposta: Pélias entregará o trono ao sobrinho se este provar que tem valor para ser
rei do local. A prova requerida era o velocino de ouro que estava guardado por um
dragão insone, na longínqua terra dominada pelo malévolo rei Eetes. Obviamente,
Jasão recebeu a missão de seu tio não para provar nada, mas para morrer durante a
empreitada. O que Pélias não sabia era que a sua derrocada já estava traçada e que
pereceria vítima da própria prole.
Jasão, com ajuda de Atena, consegue uma nau e acompanhantes para seguir
com ele na jornada até o velocino. Depois de inúmeras provas e aventuras, os
argonautas chegam à terra de Medeia. Agora, o trabalho da conquista do tosão teria
de ser exclusivo de Jasão. No entanto, as tarefas que precisaria realizar em um só
dia, antes que o sol se pusesse, eram impossíveis ao imaturo herói, se não contasse
com nenhum auxílio:
uma peça no tabuleiro de Hera, usado para ferir o rei Pélias. E foi também um parasita
na expedição argonáutica, fazendo insurgir desavenças entre os guerreiros:
Na ida até a Cólquida, Jasão se apoiou nos argonautas para conseguir chegar
ao destino; chegando lá, só pôde conquistar as provas impostas por Eetes graças a
Medeia – algo que também foi reprovado pelos companheiros navegantes. Um herói
não pode apoiar-se em uma mulher para provar seu valor como guerreiro. Ainda que
essa posição seja obviamente machista – já que inferioriza o poder da mulher e
valoriza o poder do homem –, e seria prudente da parte de Jasão, como um homem
grego, corroborar com esse discurso da superioridade masculina, ele escolhe outra
tática. Quando lhe convém, ele esquece do machismo explícito e de sua “posição
superior” para conseguir o que quer; e isto, precisamente, é que faz de Jasão um
herdeiro do patriarcado de Zeus, assim como Adão é herdeiro de Jeová. E, mesmo
que Jasão não tenha ligação direta com Zeus dentro da narrativa, a covardia, a falta
de lealdade, a avidez por conquistar o que se deseja sem nenhum escrúpulo e o
privilégio – mesmo que não se mereça – apenas por ser macho é uma herança
patriarcal outorgada pelo direito natural masculino de dominar todas as coisas, que se
encontra representado na figura do rei olimpiano. Atentemos que, segundo as
narrativas, Zeus seria perfeito e mesmo suas atitudes atrozes seriam justificáveis.
Porém, a atrocidade do homem não é justificada. E, para todos os efeitos, a perfídia
de Jasão ao substituir Medeia é injustificável. Percebamos que Zeus trai a sua esposa
com o mundo inteirinho, mas nunca a substitui. Então, Jasão goza dos privilégios
masculinos outorgados pela figura de Zeus, sem embargo, extrapola de seus direitos
e não possui meios honrosos para justificar suas atitudes.
63
Segundo Brandão (1987a), para a tradição grega, assim como nas religiões
indo-europeias, o touro simboliza a violência, a virilidade, a fecundidade. Dessa forma,
o enfrentamento de Jasão contra os touros não seria só uma prova fatal, seria uma
prova de virilidade, de confirmação da sua índole verdadeiramente heroica e do
merecimento da admiração dos deuses. Uma vez que o touro é um símbolo da mais
alta estirpe sagrada que representou muitos deuses que arrogavam poder – como
Jeová (deus hebraico), Zeus e Urano (deuses gregos), Mitras (deus persa), Indra
(deus indiano) etc. –, o seu defrontamento significaria que a animalidade divina do
touro teria sido sobrepujada por um homem que alcançara o controle de suas próprias
paixões e forças instintivas. Portanto, o herói que derrota o touro, animal hierático,
aproxima-se dos deuses viris, poderosos, opulentos, vitoriosos, firmes, contudo,
nunca descontrolados:
obstante, quis o destino modificar seus planos, uma vez que Alcínoo,
que já havia sido avisado pelos mensageiros de Eetes, prontificou-se
a devolver Medeia caso esta ainda fosse virgem. Intimidado perante a
possível vingança que recairia sobre ele, Jasão pediu o auxílio de
Areteia, a esposa do rei, e ela providenciou para que os esponsais do
herói e de Medeia fossem celebrados secretamente em uma caverna
chamada Crátis (ROBLES, 2006, s. p.).
Ou seja, ele se casou por causa de sua covardia e não porque prometeu. E,
depois de todas essas empreitadas à sombra de outrem, a ignávia de Jasão só se
reafirmou. Contra o tio, deixou que Medeia resolvesse o problema e não impôs sua
dominância a Iolcos como se esperaria de um príncipe legítimo. Chegando a Corinto,
firma compromisso com a princesa local, na surdina, pelas costas da mulher-
pesadelo. Em seguida, não se incomoda pela eminência do exílio dos próprios filhos,
não obstante, quando já não tem mais logradouro real (por Medeia matar a noiva e o
rei) nem a prole que carregaria sua descendência, chora como um menino indefeso.
Dessarte, Jasão não seria um herói, seria apenas um homem que esperava ter tudo
somente por ser homem, o que, na visão grega que Aristóteles difundiu, seria factível
(ainda que vergonhoso, considerando uma posição de herói mítico):
Acrescido o fato de ser príncipe e grego, ele pensou que o mundo seria seu
muito facilmente. Acabou que Jasão se mostrou não um herói nem um anti-herói, mas
sim um pseudo-herói. Porém, nem por isso menos patriarcalista. Jasão usou o quanto
pôde de todos os privilégios que só um homem, um príncipe e um grego teriam em
uma sociedade essencialmente patriarcal. Usou e descartou quando estes já não
serviam mais aos seus propósitos e planos. Logo, podemos constatar, por meio de
Jasão, quanto a estrutura da sociedade patriarcal sustenta os privilégios masculinos,
elevando a status de herói um homem medíocre e dependente, que, no final, ainda se
disse vítima de Medeia.
65
“A mulher lhe é ‘fatal’. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade,
de encontrar o caminho de sua salvação” (DELUMEAU, 2001, p. 313, grifo do autor).
Para neutralizá-la, seria necessário que o homem subjugasse a mulher antes que ela
trouxesse mais desventuras ao mundo. Ainda segundo Delumeau, a mulher causa
inquietude ao homem por representar um algoz que o domina por seus impulsos e
desejos sexuais. Ele assinala que, na literatura, por meio das narrativas de Ulisses
e Quetzalcoatl, o homem se perde em sua jornada caso caia na armadilha sexual
feminina. Dessarte, para não ser capturado pelo visgo feminil, o homem recorre à
amizade:
A ideia de que a mulher é perigosa, e que mesmo quando é boa é porque ela
trama algo, consolidou-se ao longo do tempo. Consequentemente o homem, mais do
que a qualquer coisa, teme a mulher: “como não temer um ser que nunca é tão
perigoso como quando sorri?” (DELUMEAU, 2001, p. 314). Embora o homem seja
mais forte fisicamente e ocupe espaços onde reside o poder, a mulher continua sendo
para ele uma constante ameaça, pois, segundo Delumeau, existem inúmeras e
complexas raízes do medo da mulher entranhadas no homem, como sua
obscuridade, seus mistérios, suas astúcias, suas regras, sua maternidade:
33 Nesse trecho, Delumeau faz referência a Marie-Odile Métral. Cf. La mariage. Les hésitations de
l’Occident. Paris, 1977, p. 125.
67
“Se não houvesse a malícia das mulheres, mesmo não dizendo nada
das feiticeiras, o mundo estaria liberto de incontáveis perigos”. A
mulher é uma “quimera [...]. Seu aspecto é belo; seu contato fétido,
sua companhia mortal”. É “mais amarga que a morte, isto é, que o
diabo cujo nome é a morte segundo o Apocalipse” (DELUMEAU,
2001, p. 327, grifos do autor).
então, aquela que de fato teria poderes ocultos e não pudesse ser controlada?
Diante desse questionamento, trataremos aqui Lilith e Medeia como arquétipos de
mulheres como essas: as perigosas, as bruxas, as indomáveis. Elas, que foram tão
demonizadas como temidas e endeusadas. Buscaremos fazer uma ligação dos mitos
de Lilith e Medeia ao discurso dos homens sobre as mulheres terríveis, as agentes
de Satã, as bruxas.
por meio de misteriosas receitas” (DELUMEAU, 2001, p. 311). Contudo, não foi
somente por estar mais próxima à natureza que a mulher desenvolveu certas
habilidades ocultas e/ou silenciosas. De acordo com Bourdieu (2012), pela própria
condição de ser um indivíduo dominado, a mulher foi estimulada, ou melhor, obrigada
a ser mais observadora, atenta, vigilante. Afinal, vulnerável a castigos cruéis ou ao
rechaço, a mulher não poderia se dar ao luxo de não estar alerta a todo tempo. Então,
o que podemos chamar de “intuição feminina”, por exemplo, é, quando muito, um
artifício para a sobrevivência. Desse modo, segundo Wayne N. Thompson, as
mulheres tiveram de se tornar “[...] mais sensíveis aos sinais não verbais (sobretudo
à inflexão) que os homens, as mulheres sabem identificar melhor uma emoção não
representada verbalmente e decifrar o que está implícito em um diálogo [...]”
(THOMPSON apud BOURDIEU, 2012, p. 42).
Com toda essa subjetividade, a mulher é vista pelo homem como criatura
instintiva, emocional e irracional. Para se afastar de aspectos femininos, talvez não só
por repúdio, mas também por inveja e medo, o homem se autocredita e se vangloria
como ser mais racional e controlado em contraposição a ela (DELUMEAU, 2001). E,
mesmo se colocando em um patamar de superioridade, é inegável que, para além da
repulsa, também existe o fascínio para com o sexo oposto. Igualmente atraído e
repelido, o homem vivencia um conflito em relação a sua antagonista. Delumeau
(2001) ressalta que na Antiguidade o tema da mulher como ser de aparência graciosa
e sedutora, porém podre por dentro, era comum. A mulher é para o homem um
catalizador de forças opostas que o desestabiliza:
Tal qual Delumeau, Lerner (2019) acredita que a mulher ser vista como fonte
de vida e de morte seria uma reminiscência dos cultos à Grande Deusa. Seio que
nutre e ventre que sangra. A mulher é o mais doce e irresistível convite à desventura.
Portanto, o homem aprende que deve afastá-la e não se entregar aos seus encantos.
Ela é uma armadilha, como as sereias na Odisseia que seduziam os marinheiros para
70
a morte. O homem a deseja, mas sabe que não pode querê-la. Nessa agonizante
tarefa de rechaçar a criatura mais cobiçável, o homem se enche de frustações e as
projeta na figura feminina, culpando-a por todas as coisas ruins, desde a suposta
expulsão do Éden: “o homem procurou um responsável para o sofrimento, para o
malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher”
(DELUMEAU, 2001, p. 314). E, para a culpabilização, controle e dominação da
mulher, o homem busca argumentos e justificativas que seriam indiscutíveis, como
a suposta palavra de Deus:
reduzida e massacrada pelo homem. Diante disso, com o respaldo desse livro, se
reintegrava o antigo ideário da mulher como criatura podre, comparando-a a coisas
imundas e repulsivas. Para Delumeau (2001), foi precisamente o medo da mulher e
de seus atributos sedutores que conduziram os escritos monásticos da Idade Média,
direcionando-os à compreensão de que a essência da mulher é pura imundice. De
tempos em tempos, era necessário reiterar os perigos da mais deliciosa aliada do
Diabo. Um exemplo que podemos ostentar é o escrito do abade de Cluny chamado
Odon (século X):
34
A referência usada por Delumeau para a fala de Odon, abade de Cluny, foi: Y. Lefevre em Histoire
mondiale de la femme, II, Paris, 1966, p. 83.
72
36 Embora o feminismo, como nomenclatura e conceito, tenha se desenrolado durante o século XIX,
não significa que as mulheres feministas não tenham existido antes em essência. Mulheres-pesadelo,
que buscavam sua emancipação e autonomia, sempre existiram. E, quando observamos suas histórias
e exemplos, percebemos o feminismo de forma muito clara, ainda que não tivesse carregado uma
bandeira. Então, Lilith, como “primeira mulher” e primeira transgressora do patriarcado, seria “a primeira
feminista”.
37 Versão em inglês: “she said: 'I will not lie below'. And he said: 'I will not lie beneath you, but only on
top. For you are fit only to be in the bottom position, while I am to be the superior one'”.
75
Bourdieu esclarece que a mulher estar por cima na relação sexual é uma prática
condenada em muitas civilizações, já que caracteriza um jogo de dominação, e
evidentemente, a mulher jamais poderia ser a dominadora. Muraro (1997) corrobora
essa análise e acrescenta uma outra importante razão para que a mulher não possa
ocupar a posição de dominante. A mulher estaria ligada, através do sexo, a um
conhecimento condenado:
38O grifo de autor na palavra inverso traz a seguinte nota: segundo Charles Malamoud, o sânscrito usa
para qualificá-la a palavra Viparita, “invertido”, empregada também para designar o mundo ao contrário,
o sentido de cima embaixo.
76
Não obstante, como já sabemos, a ação coibidora do poder feminino não ficou
somente na exaltação da virgindade e do celibato. Para afastar a vivência da
sexualidade livre e prazerosa como a da deusa Ishtar, o vasto material pictórico de
que fala Delumeau também contava com o irresistível “[...] poder sedutor da mulher
que conduz os homens à perdição” (DELUMEAU, 2001, p. 346). Em uma das
gravuras descritas que exprime esse conteúdo está Medeia. Fonte de inspiração para
muitos artistas no século XVI, a representação de Etienne Delaune tem como tema a
“‘Bela sentada sobre a Besta’ [...] ‘o mundo que, pelos prazeres que faz gozar arrasta
o homem para o abismo [...]’” (DELUMEAU, 2001, p. 346). Delumeau (2001)
descreve que o cenário tem a seguinte composição: existem duas opções de escolha
para um jovem. Uma opção representa a virtude, um anjo celestial, coroado com
uma auréola e vestido apenas com uma toga flutuante, gracioso e divinal. A outra
opção, representando o vício, é Medeia, trajada na última moda como uma meretriz
e sentada sobre um pavão, é a personificação da mulher: “[...] sentada sobre uma
besta de sete cabeças. Sorridente, coroada, vestida de maneira exótica, o colo
desnudo, ela segura alto a taça dos prazeres enquanto o demônio, que a espera nas
chamas de um precipício, lhe faz sinal de se aproximar” (DELUMEAU, 2001, p. 346).
Para Delumeau (2001, p. 346), Medeia é uma persona bivalente, “[...] que
exprime ao mesmo tempo a sedução e a violência femininas”. Violência, pois, como
já observamos, para alcançar seus objetivos, Medeia não se poupa a estender corpos
por onde passar, se necessário julgar. E, segundo a narrativa de Eurípides, Medeia
arrasou os corpos dos próprios filhos por vingança ao seu marido. Lilith, talvez,
comungue da mesma sede de vingança que nutrira Medeia:
“Me deixe em paz! Eu fui criada apenas para causar doenças aos
bebês. Se a criança é do sexo masculino, eu tenho domínio sobre
ele por oito dias após seu nascimento e, se for menina, por vinte
dias”. Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith, eles insistiram
que ela voltasse. Mas ela jurou a eles pelo nome do Deus vivo e
eterno: “sempre que eu vir vocês ou seus nomes ou suas formas em
um amuleto, não terei poder sobre aquela criança”. Ela também
concordou em ter cem filhos morrendo todos os dias e, portanto,
todos os dias cem demônios perecem, e pela mesma razão,
escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos das crianças
pequenas. Quando Lilith vê seus nomes, ela se lembra do juramento,
e a criança se recupera39 (EISENSTEIN, 2008, s. p., tradução nossa,
grifos do autor).
39Versão em inglês: “’Leave me! I was created only to cause sickness to infants. If the infant is male, I
have dominion over him for eight days after his birth, and if female, for twenty days’. When the angels
78
Lilith diz que foi criada apenas para adoecer os bebês. Teria Deus ele próprio
criado a primeira infanticida? Ou o seu caráter assassino teria surgido quando Deus
criou Eva para substituí-la no Jardim das Delícias? Segundo Barbara Koltuv (2017), a
serpente do Éden poderia ser associada a própria Lilith, que teria induzido Eva a
buscar o prazer, a liberdade sexual e o conhecimento que advém dele. E como as
duas trabalharam juntas para a queda do homem, estariam fadadas a se odiarem: “o
Zohar (76b) explica que, uma vez que Eva gerou Caim da imundície da serpente, ela
estava sujeita à punição pela ‘serva’ e ‘criada’ de Deus, Lilith, que podia arrebatar-lhe
as crianças recém-nascidas (Zohar II 96a-b)” (KOLTUV, 2017, p. 118, grifos da
autora).
Essa é uma das versões sobre Lilith como assassina de crianças. Porém,
existem muitas outras versões dessa mesma narrativa e, frequentemente, elas entram
em acordo que os amuletos eram necessários para barrar a sua maligna ação.
Mas, quando a ameaça não pode ser impedida com um amuleto? Quando a
ameaça é a própria mãe? Segundo Gerda Lerner, “a indiferença ou negligência da
mãe significava morte certa. A mãe que dava a vida tinha, de fato, poder sobre a vida
e a morte” (LERNER, 2019, p. 70). Entretanto, no caso de Medeia, não foi a
indiferença nem negligência que mataram seus filhos. Ela mesma os teria matado com
suas próprias mãos. Medeia seria a figura exata da mãe que pare, nutre e mata. E
mesmo que essa ação inegavelmente cruel tenha ocorrido por motivo de vingança,
Martha Robles nos oferece uma perspectiva que talvez apazigue nossos corações:
Hera, talvez, tenha sido a única figura feminina que tivera alguma compaixão
pela pobre Medeia diante de seu sofrimento. De acordo com Delumeau, as mulheres
heard Lilith's words, they insisted she go back. But she swore to them by the name of the living and
eternal God: ‘whenever I see you or your names or your forms in an amulet, I will have no power over
that infant’. She also agreed to have one hundred of her children die every day. Accordingly, every day
one hundred demons perish, and for the same reason, we write the angels names on the amulets of
young children. When Lilith sees their names, she remembers her oath, and the child recovers”.
79
eram mais creditadas ao ciclo do eterno retorno, que conduz todas as criaturas da
vida para a morte e vice-versa. Logo, as mulheres seriam igualmente criadoras e
destruidoras:
mais amo no mundo [...]” (EURÍPIDES, 2010, p. 99). E quando o Coro tenta apelar
para seu instinto materno, Medeia responde que a dor pelos filhos seria a que mais
faria o marido penar: “CORO: matas quem germinou do teu regaço? MEDEIA: é a
mordida que fere mais o esposo” (EURÍPIDES, 2010, p. 101).
Se a princesa da Cólquida é capaz de fazer escorrer o sangue do fruto de seu
próprio ventre, o que seria capaz de fazer a outrem? Podemos observar que a fúria
poderosa de Medeia seria tão devastadora que arrasaria reinos: arruinou o reino
pertencente ao seu pai, o rei Eetes, quando matou seu irmão, Apsirto, deixando assim
a Cólquida à mercê de ataques de terceiros que desejassem ascender ao trono, já
que a coroa desprovida de herdeiros se tornou fraca e desprotegida; arruinou o reino
de Iolcos assassinando o rei Pélias; e, por último, mas não menos importante, arruinou
o reino de Corinto, matando o rei Creon e sua filha, sucessora ao trono, desposada
por Jasão.
Dessa forma, vemos que Medeia representa tudo o que o homem teme. Ela é
ardilosa, sedutora, violenta e destemida. Ela, assim como Lilith, é um pesadelo. Elas
são o oposto exato do feminino idealizado pelo patriarcado, como já dissemos, a
Virgem Maria: mulher mansa, ingênua, subserviente, taciturna, boa esposa, não
desfruta do prazer sexual e, acima de tudo, exemplo máximo de figura materna. Lilith
e Medeia representam a transgressão dos valores impostos às mulheres. Elas
desestruturam o patriarcado, pois o poder não está nos homens, está nelas. E,
mesmo que sofram represálias, elas possuem meios de revide, sendo este o maior
de todos os medos do homem. A mulher que tem o poder de fazer o que quiser
humilha a crença da superioridade masculina e isso não se pode suportar.
Uma das maneiras de se combater a mulher transgressora é matando-a.
Tanto que, sob a ação da Santa Inquisição, milhares de mulheres foram mortas,
acusadas de bruxaria e/ou conluio com o Diabo. Porém não se pode matar todas as
mulheres do mundo. A humanidade necessita delas nem que seja para procriar. E a
mulher não deseja continuar relegada somente a esse papel, de forma que é
necessário que exista enfim a transgressora paridade entre os gêneros.
Medeia, princesa da Cólquida, filha do rei Eetes, neta do deus Hélio (deus sol),
depois de ter usado seus poderes mágicos para fazer com que Jasão conseguisse o
velocino de ouro – com a finalidade de recuperar o trono de Iolcos –, fugiu na nau
Argo para poder viver ao lado de seu amante. Contudo, de nada adiantaram seus
esforços e artifícios: Jasão não recupera o trono de Iolcos e eles são obrigados a viver
em exílio, em Corinto, terra helênica do rei Creon.
Após Medeia, Jasão e os filhos que tiveram durante as jornadas se
estabelecerem nessa nova terra, o argonauta contrai novo casamento com a filha do
rei Creon (a quem Eurípedes não nomeia em sua obra), abandonando Medeia e a
prole. Segundo Marta Robles (2006), Jasão usou Medeia deliberadamente para
alcançar seus objetivos e não se casou prontamente com ela, pois maquinava como
se livrar da promessa assim que atingisse o sucesso que desejava. Entretanto, dadas
as circunstâncias que obrigavam Jasão cada vez mais a precisar dela, por fim casou-
se, o que não quer dizer que cumpriu a sua promessa, porque, no final, foi-lhe desleal
e traiçoeiro. No entanto, o torpe herói, em sua infinita estupidez, não imaginava jamais
que seria alvo da mulher mais poderosa da Terra.
Ao saber de tamanha traição, Medeia se enche de fúria, prometendo aos sete
ventos que se vingaria de tal situação dolosa. E é a partir desse episódio que começa
a obra de Eurípedes. Como Medeia, anteriormente (não na obra de Eurípedes, e sim
em outras em que ela também é personagem, e o autor alimenta seu texto dessas
narrações, iniciando a sua própria in medias res40), se revelou poderosa e perigosa,
os personagens da peça não poupam depreciações ou envilecimentos contra a
protagonista. Medeia é veementemente demonizada, seja por sua personalidade,
suas atitudes, sua nacionalidade ou seu gênero.
A personalidade de Medeia caracterizada por ser abrasiva e violenta não
estaria adequada para uma mulher. Seu temperamento é constantemente reprovado
Vem do latim e significa “no meio das coisas”. É um recurso literário em que a narrativa tem início no
40
durante a obra. A primeira a censurar a natureza de Medeia é sua própria Nutriz. Ela
diz: “é crua em seu jeito de ser; o íntimo da mente altiva horripila” (EURÍPIDES, 2010,
p. 33). Dito isso, pensando sob a lógica que desenvolvemos de como a mulher foi
convertida em objeto e propriedade do homem, não espanta que ela precise seguir
uma cartilha de comportamentos, sentimentos, palavras etc. para que agrade a seu
dominador, bem como a sociedade que existe sob o regime da dominância. Segundo
Pierre Bourdieu:
o bem não te agrada. Altiva, agravas o difícil” (EURÍPIDES, 2010, p. 79). Jasão aponta
Medeia como ingrata, já que o bem que ele desejava fazer a ela, trocando-a, não lhe
agrada; e, ainda por cima, evoca os deuses por testemunha de sua bondade. Ele se
autocredita como elevado, mesmo ele próprio sabendo que a usou e agora está
descartando-a. Nesse jogo de dissimulação em que Jasão faça o que faça é elevado
e Medeia é inferiorizada e tida como desprezível, podemos observar a misoginia
estrutural na figura do vir (homem em latim). Conta-nos Bourdieu (2012) que o vir
remete a virtus, ou seja, o ser homem está atrelado à virtude, à honra por excelência;
por consequência, o simples fato de ser homem legitima suas ações como virtuosas,
ainda que sejam execráveis:
Menospreza-a por ela dar valor a um casamento que para ele não tem serventia, a
dar valor a filhos que na convivência com ela não teriam futuro. E ressalta que a ele,
sim, os filhos têm utilidade. E, ao dizer que a discordância da mulher-pesadelo “se
resume à cama”, voltamos à discussão da mulher ser intrinsecamente sexual, e reitera
a acepção de Medeia como lasciva e por isso bestial. Recordemos que a etimologia
de seu nome pode carregar uma semântica sexual que, talvez, Eurípides tenha
explorado nesse trecho da tragédia. À vista disso, vemos a estrutura machista nua e
crua. Uma mulher que, apesar de poderosíssima, precisa aceitar que é descartável
aos interesses masculinos e ainda assim execrada. Como vimos em Lerner
anteriormente, o homem dispõe da mulher e dos filhos como sua propriedade na
civilização mesopotâmica, e na civilização grega não era diferente. Os filhos que
Medeia teria parido não eram dela, então não havia motivo para chorar por eles.
Contudo, para compreendermos melhor o sentimento dessa mulher que sofre pelo
seu destino e pelos frutos de seu ventre, vejamos Martha Robles que explica com
exatidão sua dor:
Afirmo alto e bom som: se o barco não naufragou, foi por querer de
Cípris. Chega de autolouvor! Foi Afrodite! És sutil, mas te irrita o fato
de Eros, por meio de seus dardos indesviáveis, ter te forçado a me
salvar a pele. Evitarei minúcias de somenos; não desmereço teu
pequeno auxílio, mas não comparo ao que me deste o que eu,
salvando-me, te propiciei (EURÍPIDES, 2010, p. 71).
86
41O tradutor da obra de Eurípides nessa edição é Trajano Vieira. Como não existem os mesmos sinais
gráficos de que dispomos na Língua Portuguesa na Língua Grega clássica, os sinais são adicionados
pelo tradutor para nossa melhor compreensão literária.
87
para ela, roubam-lhe o leito conjugal, uma ira sem tamanho se acende. Dessa
maneira, a bruxa lamenta a sorte de seu gênero: “longe de mim descrer, mas é do
sexo frágil ser vítima do mar de lágrimas” (EURÍPIDES, 2010, p. 109). Aqui podemos
perceber o discurso da dor como destino da mulher. Medeia e todas as pessoas do
gênero feminino teriam herdado de Eva e/ou Pandora a sina de dor. Como em Os
trabalhos e os dias, de Hesíodo, o Gênesis reafirma a dicotomia em que o preço do
homem é o suor do trabalho e o preço da mulher é a dor e a sofreguidão:
é sofrer e ser inclinada para tarefas lúgubres é porque esse foi o destino que o
patriarcado lhe deu. E Medeia, ainda que fale contra si e a raça feminina, compreende
que a sina que tem não poderia ser outra:
Poderíamos dizer que essa é uma das falas que mais elucidam a estrutura
machista e a triste condição da mulher à mercê do homem e suas regras. Hesíodo
lamenta ter nascido na Era da raça de ferro e, de modo igual, Medeia lamenta ser
mulher, porque este viver é um mar de infortúnios. Longe de poder preterir a sorte de
se tornar uma esposa, ainda precisa pagar o dote para se casar (diferente da
sociedade mesopotâmica em que o homem paga o dote, e precisamente, por pagar
pela mulher é que todo tipo de crueldade pode ser feito a ela). Como a filha de Eetes
diz, a mulher paga para que um homem seja déspota de seu corpo e essa é a maior
dor. Seria equivalente a um escravo pagar a seu dono para ser escravizado. E se a
mulher desejar se separar, será mal falada. Na palavra “divorciada”, o comentarista
põe uma nota explicando que, no século V a. C., o divórcio para a mulher era permitido
em decorrência do mal comportamento do marido. Ela poderia voltar para a casa de
seu pai, mas não seria uma atitude bem-vista. Ademais, Medeia, sendo rechaçada
pelo marido, não poderia voltar para a Cólquida, logo, além de mal falada, não tinha
para onde ir.
Seguindo na mesma linha, Medeia diz que não se pode dizer “não” à procura
do par para a relação sexual, validando a fala de Wittig ao dizer que o coito forçado é
uma das obrigações femininas. Portanto, além de poder ser estuprada pelo marido,
91
tem que ser vidente (mântica) em seu ofício de escrava para poder adivinhar como
servi-lo. Medeia enfatiza que sequer os homens têm a boa vontade de instruir as
mulheres. Para além, se mesmo assim, a mulher consegue superar o estágio inicial
do casamento, cambaleando entre o trabalho de escrava, serva sexual e oráculo, o
relacionamento segue o curso com o marido carregando o jugo. No entanto, se a
mulher não conseguir mediar suas obrigações impossíveis, o homem sai de casa e
faz da vida o que quiser para o próprio deleite na companhia de um amigo ou parente,
já a mulher está fadada a ficar trancada em casa e fixar-se nessa realidade. A ela não
é permitido ter amigos. O seu amigo, o seu destino, o seu tudo é seu marido. E no
final ainda precisa ser grata a esse esposo, pois ele a protege. Ele é o guerreiro que
empunha a espada para que a mulher tenha uma “vida feliz”, “sem dificuldades” “nem
perigos” em casa. Entretanto, ela segue dizendo que prefere a guerra a parir. Ao final,
Medeia repreende as mulheres do Coro que a julgam mal por querer vingança. Ela
então deixa evidente que se a situação de uma mulher é difícil em circunstâncias
comuns, a dela é muito pior, por já não contar com o apoio de ninguém. Ela está
sozinha e submersa num mar de desventuras.
Medeia, com toda a sua fúria e temperamento feroz, faz da peça de Eurípedes
inovadora para época (e surpreendente até hoje). A peça traz a narrativa de uma
mulher forte, poderosa, engenhosa, vingativa e nada subserviente. O discurso
machista corre pela boca da maioria dos personagens e assim pode-se ver o fardo
que se carrega por ser mulher, ainda mais agravado por contextos sociais como: ser
estrangeira – dita bárbara –, em terra helênica; não ter apoio familiar e/ou apoio
amistoso (destaquemos que a ajuda de Egeu para com Medeia foi um negócio, uma
permuta e não amizade); e não ter comportamento aceitável (socialmente falando).
Medeia não era obediente, como se espera de uma mulher. Ignorou o desejo
do pai e fugiu com o homem que ela queria. Não era mansa, nem frágil e não era
detida por medo ou por efeito de ameaça. E, como se pode ver na obra de Eurípedes,
ela diz: “[...] matarei a corja à bruta, mesmo se morrer” (EURÍPIDES, 2010, p. 59).
Desse modo, podemos ver que levou suas decisões até as últimas consequências.
Medeia definitivamente não cumpriu o papel designado, sem embargo, serviu ao
patriarcado do mesmo jeito. Ao assumir a brutalidade masculina, tornou-se exemplo
da mulher indesejável e destruidora de lares. Imagine como seria essa história, que é
uma tragédia, se Medeia não carregasse o estigma de ser mulher? Provavelmente
seria chamada de heroína, da mesma forma que Jasão é chamado de herói, como
92
Ulisses, como Eneias, como Agamenon ou Aquiles, em que seus atos de violência
não os depreciam – muito pelo contrário, os dignificam. O herói que mais mata ou que
mata pelo ideal da conquista, honra e/ou vingança é o mais admirado. Uma mulher
que mata não inspira respeito nem admiração. Ela inspira horror, pelo simples fato de
ser mulher.
Como pudemos verificar, a mulher foi vítima do patriarcado de diversas
maneiras. Desde a significação do seu ser até as atribuições absolutamente
desumanas como fonte do mal, do trabalho e até da morte. Porém, mesmo com total
desvantagem nesse sistema, algumas mulheres ousaram subverter o jogo do
patriarcado e se tornaram “reis” de seus tabuleiros. Essas mulheres, que propagaram
seus espíritos através das Eras e dos corpos, surgiram de tempos em tempos como
pesadelos súbitos para assombrar a civilização sob dominância masculina. Elas
viraram mito e estão em todos os lugares, sussurrando palavras de liberdade e
rebeldia às mulheres de cada época. Por conseguinte, a seguir veremos como Lilith
voou para o campo das ideias e consolidou seu reino em nossos imaginários.
Veremos como a mulher-pesadelo lidou com o poder, mesmo esse não sendo feito
para ela, e as consequências dessa transgressão.
pode induzir a acreditar nessa mulher anterior está no Gênesis 1:27: “assim Deus
criou os seres humanos; ele os criou parecidos com Deus. Ele os criou homem e
mulher”. Aqui, poder-se-ia interpretar que Deus havia criado o homem e a mulher num
mesmo ato e da mesma maneira. Todavia, o texto bíblico não oferece evidências mais
substanciais do que essas, fazendo-nos supor que essa hipótese não passaria de
pura especulação. Porém, como a mitologia cristã tem suas raízes na mitologia
hebraica e nem todos os livros de origem hebraico-judaico fazem parte da Bíblia,
podemos verificar a hipótese de uma mulher anterior em livros hebraicos como o
Talmud, “O Alfabeto de Ben Sira”, o Zohar e a Cabala. Essa mulher teria por nome
Lilith e existem algumas versões de como ela teria sido gerada.
Lilith, segundo “O Alfabeto de Ben Sira”, foi criada da mesma matéria que Adão.
Deus os havia criado para coabitar como um casal, porém eles não se entendiam.
Segundo Graves e Patai (2018, p. 58, tradução nossa), Adão e Lilith viviam em pugna
constante: “Adão e Lilith nunca encontraram harmonia juntos, pois quando ele
desejava deitar-se com ela, Lilith se sentia ofendida pela posição somenos que ele
exigia”42. Ela se indignava por Adão se julgar superior e impor que ela sempre
estivesse por baixo dele no ato sexual, e ela rechaçava a ideia de ser inferior somente
por ser mulher. Para ela, se foram criados iguais, iguais eram. Eles não encontraram
acordo, então Lilith foi embora. Adão, como mais tarde faria em relação à Eva, queixa-
se a Deus por causa de sua mulher:
42 Versão em espanhol: “Adán y Lilit nunca hallaron armonía juntos, pues cuando él deseaba yacer con
ella, Lilit se sentía ofendida por la postura reclinada que él exigía”.
43 Versão em inglês: “Adam stood in prayer before his Creator: ‘Sovereign of the universe!’ He said: ‘the
woman you gave me has run away’. At once, the Holy One, blessed be He, sent these three angels to
bring her back. Said the Holy One to Adam: ‘If she agrees to come back, what is made is good. If not,
she must permit one hundred of her children to die every day’. The angels left God and pursued Lilith,
whom they overtook in the midst of the sea, in the mighty waters wherein the Egyptians were destined
to drown. They told her God's word, but she did not wish to return. The angels said: ‘We shall drown
you in the sea’”.
94
44 Hamurabi foi um rei do Império Babilônico que compilou uma série de códigos de lei pré-existentes
e algumas já aplicadas há centenas de anos. Em razão da grande diversidade de povos com etnias e
culturas diferentes vivendo sob o reino de Hamurabi, seu código tem uma extensa variedade de
influências desses povos que se estendiam das regiões entre Eufrates e o Tigre (LERNER, 2019, p.
139).
45 Como exemplo de destino fúnebre para as mulheres que fogem, mas são capturadas, apresentamos
a matéria jornalística chamada Samia Shahid 'honour killing' death: Cleric 'threat' claims over marriage
95
na narrativa, Lilith também foi ameaçada de morte por afogamento. Jacine Porto
explica que as mulheres em situação de violência e subjugação reagem de infinitas
maneiras e umas das estratégias de enfrentamento contra a violação é a fuga46:
“algumas mulheres tentam livrar-se da agressão fugindo [...], mas, geralmente, eram
encontradas e por vários motivos, obrigadas a voltar [...]” (PORTO, 2004, p. 73, grifos
nossos).
Mesmo sendo perseguida, coagida e ameaçada, Lilith não voltou ao lugar
imposto a ela. Consequentemente, Adão estava sozinho de novo. Segundo Graves e
Patai (2018), Deus fez uma primeira Eva, a qual provocou repulsa a Adão (por ter
presenciado sua criação) e ele a rechaçou, (não se sabe o destino dessa mulher); em
seguida, fez a segunda Eva, que seria a mulher idônea. Não obstante, para Eva ser
idônea de verdade, ela teria que cumprir um papel maior do que ser mãe e/ou esposa:
ela teria que ser um exemplo da mulher que o patriarcado desejava. Uma mulher
oposta a Lilith (já que esta exprimia o pavor dos homens – seja seu marido, seu deus
ou seu caçador). Ela teria que ser uma mulher que aceitasse prontamente seu destino
de inferiorização, assédio e violência, pois Lilith, mulher-pesadelo, apesar de todas as
consequências negativas, não cedeu. E não o fez porque sabia que era igual a Adão,
não cedeu porque tinha desejos e opiniões. Eva não poderia ser assim.
Logo, os relatores da narrativa mitológica construíram a mulher desejada:
mansa, calada, submissa e culpada. Através da figura ordenadora e nomeadora de
Adão, a mulher foi construída destituída de identidade e autonomia, já que veio da
costela dele. Ao nascer, Adão lhe teria atribuído um nome que lhe impunha um dever
indelével: o de ser parideira e ela foi coibida de sentir desejo sexual (revelada na figura
da serpente). Adão a teria acusado de quebrar a ordem divina por comer o fruto da
Árvore do Conhecimento. Dessa forma, é incriminada por sua transgressão e
responsabilizada pela herança de pecado que o mundo carregaria:
(IQBAL, 2016) que conta a trágica história de Samia Shahid: atraída por sua mãe e irmã para a morte,
mas executada pelo pai e o primeiro marido, do qual teria fugido.
46 A fuga era e continua sendo um mecanismo de sobrevivência da mulher. Avani Santana,
Esta fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser
formada por escritas ou representações: o discurso escrito, assim
como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos,
a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica (BARTHES,
1972, p. 200).
Jung nos esclarece que o arquétipo faz parte da nossa estrutura cerebral,
transcendendo o tempo, tornando-se característica da condição humana, se
manifestando espontaneamente em nossa sociedade, igualmente a fala mítica. Posto
isso, podemos perceber que o mito não foi deixado ou esquecido em tempos remotos.
Como nos diz Barthes, o mito pode estar em tudo: numa revista, num cartaz
publicitário, na televisão. Desse modo, identificamos que o mito e o arquétipo da
mulher-pesadelo podem residir no corpo da mulher real: a mulher de carne e osso.
Dessa maneira, a mulher-pesadelo da sociedade patriarcal não está somente
na imaginação de um(a) escritor(a): ela está no meio de nós. As mulheres-pesadelo
que abordamos nesta Dissertação são as míticas Medeia e Lilith, e é também a
personagem histórica Luz del Fuego (Figura 3). Mas, por serem um arquétipo, não
são somente elas. A mulher-pesadelo do patriarcalismo é aquela que não deseja um
casamento formal, que foge para longe do jugo opressor da família, que se expõe
lascivamente, que prefere o exílio a resignar-se, que procura seus próprios meios de
vida, que não se curva à demonização ou má fama atribuída a ela, que não deseja ser
mãe por convenção social, que quebra todo o padrão pré-estabelecido. Luz del Fuego
nasceu das entranhas de Dora Vivacqua que, por meio de sua vida e arte, deu vida e
eternizou a mulher-pesadelo.
Quando Dora (Figura 4) ainda era muito criancinha, ela e a sua família saíram
do Espírito Santo e se firmaram na capital mineira. Desde aí, a menina caçula dos
Vivacqua já demostrava o quanto era puro fogo. Luz del Fuego foi transgressora e um
verdadeiro pesadelo para a sua família, que era tradicionalista e religiosa. Sua mãe,
Etelvina Vivacqua, era a mais devota de todos os familiares. Dora, ao perceber que a
família tradicional (como a dela) tal qual a Igreja utilizava da perfídia e do falso
moralismo para manter as aparências enquanto escondiam práticas monstruosas,
segredos horrendos e indizíveis, não costumava economizar críticas mordazes e não
se adequava:
100
Convém enfatizar que sua repulsa à Igreja não se deve necessariamente pela
falta de fé em Deus, e sim por ser contra o sistema dissimulado e mendaz, assim como
a família tradicional:
47Attilio
Vivacqua foi um capixaba proeminente. Atuou no Direito (como jurista e professor), no
Jornalismo e, sobretudo, na política, tanto que existe uma cidade no Estado do Espírito Santo com seu
nome e o setor administrativo da Câmara Municipal de Vitória, capital do Espírito Santo, também o
homenageia. O Palácio Atílio Vivácqua (a escrita do nome do senador diverge a depender da fonte) foi
projetado pelo renomado arquiteto Carlos Alberto Vivácqua Campos (Bebeto Vivacqua) e inaugurado
10 de setembro de 1976, quando o Senador Attilio já estava falecido. Bebeto Vivacqua assinou outros
projetos importantes no Espírito Santo, como o Palácio do Café, o Parque Tancredo Neves, a Junta
Comercial, o Centro de Lazer da Ilha da Luz, o Hotel Vitória Palace, entre outros. A família Vivacqua é
homenageada largamente no Estado, além das homenagens já citadas, assinalamos o Terminal
Rodoviário Carlos Alberto Vivácqua Campos e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Elzira
Vivácqua dos Santos.
101
que para ela seria uma brincadeira, para Carlos era uma obsessão: ele passou a
importuná-la sexualmente. Quando Angélica flagrou o abuso do marido e tendo Dora
revelado que tal comportamento era recorrente, Angélica acusou a irmã caçula de ser
louca e a internou por dois meses no Hospital Raul Soares (Figura 5), no qual Dora
sofreu com tratamentos desumanos, como isolamento em solitária, sedação
excessiva e banhos gelados. Dora foi punida severamente, todavia Carlos continuou
a vida normalmente, inclusive, a sogra, Etelvina, o tratava como se nada tivesse
acontecido e duvidava piamente que seu genro poderia fazer tal ofensa a Deus
(AGOSTINHO, 1994).
Depois dos maus tratos sofridos, Dora ficou abalada e emagreceu quase dez
quilos. Achilles a liberou do hospital e a convenceu a passar uma temporada na
fazenda do irmão Archilau, no Espírito Santo. Com o tempo e o contato com a
natureza, seu vigor e humor foram se restaurando e não demorou muito para Dora
fazer travessuras e escandalizar os colonos da fazenda. Luz del Fuego, tal como Lilith
e Medeia, compartilhava de uma estreita relação com a natureza: Lilith no Éden,
Medeia na Cólquida e Luz na Ilha do Sol. Recordemos que a mulher que se relaciona
com a natureza tem sido execrada e taxada de selvagem, bestial, bruxa, nociva,
perigosa. Roger Bartha assinala que o homem civilizado teme a natureza, pois ela o
agride selvagemente por “conter signos e sinais de uma sabedoria profunda”48
(BARTHA, 1992, p. 20, tradução nossa). Esta sabedoria que a natureza comporta e
que divide com a mulher teria sido, como já comentamos, a causa de corrupções
terrenas, enfermidades, dores, sofrimentos e morte. Segundo Bartha:
Luz del Fuego carrega o estigma da mulher selvagem, que conversa com a
natureza e é perigosa, visto que cochicha segredos com ela. Certo dia, Dora foi
flagrada nua por um rapazinho que trabalhava na fazenda do irmão Archilau e ela,
com toda naturalidade, lhe pediu que fosse buscar uma câmera para fotografá-la com
“seu traje de Eva” (anos depois desse acontecido, na Figura 6, pode-se ver Luz del
Fuego vestida de Eva livremente). Quando o rapaz contou ao patrão que Dora estava
vestida apenas com folhas de parreira, com duas cobras-cipós entrelaçadas nos
braços e que queria registrar o look em fotografia, Archilau ficou consternado e
chamou um outro irmão, Archimedes, para resolver o que fazer com a irmã.
Archimedes e Dora tiveram uma grave briga que resultou em um ferimento de cinco
pontos na testa dele e uma nova internação em manicômio para ela (AGOSTINHO,
1994).
Antes de comentar a necessidade dos irmãos de controlar a jovem Luz,
destaquemos que as nossas três personagens têm proximidade com as serpentes.
Luz, aos seis anos, descobriu o interesse pelas cobras. Em uma das visitas ao
serpentário do Instituto Ezequiel Dias, Dora se agarrava às grades para não ir embora,
ficava em polvorosa quando algum funcionário manejava os seus répteis favoritos.
Mais tarde, além de criá-las, se apresentava com elas no teatro. Já Medeia,
iconograficamente, é representada em um carro mágico puxado por serpentes,
ademais de uma serpente50 ter guardado o velocino de ouro. E Lilith, que é
representada como uma cobra, inclusive pode se configurar na que convenceu Eva a
comer o fruto proibido, como discutimos anteriormente. Entretanto, se a lei de Deus
Pai aparta a mulher da serpente e institui que sejam inimigas para sempre, uma
mulher que convive com cobras não pode ser virtuosa. É aterradora, é demoníaca.
Para Alexander e Russel (2008), as características que são atribuídas aos demônios
na Antiguidade podem ser as mesmas atribuídas às bruxas na Idade Média. Dentre
uma das características, está a intimidade com cobras que, não coincidentemente,
também compõe a mulher-pesadelo:
50As versões podem variar de “dragão insone” até “serpente insone”. Em latim, a palavra drago serve
para ambas as criaturas.
103
Desde tempos antigos, a imagem de uma mulher com cobras nas mãos é
considerada horripilante (na Figura 7 é possível ver Luz com uma de suas cobras). A
mulher, de antemão, precisa ser controlada, e a que se associa com a serpente é a
figura do mal, então, o seu controle necessita ser imperativo e impiedoso.
Vimos por meio das teorias aqui abordadas que o homem institui e controla os
padrões que a mulher deve seguir. Para a dominação da mulher, o homem se utiliza
das instituições sociais como a Igreja, a família, a política e também a academia. Com
o advento das ciências da psique, os padrões de normalidade da psicologia feminina
foram reiterados à sua capacidade reprodutiva, à sua sexualidade e ao
comportamento predeterminado pela sociedade patriarcal. Então, as mulheres que
fugiam ao padrão de comportamento imposto ao seu gênero poderiam ser facilmente
controladas dentro de hospitais psiquiátricos sob justificativas misóginas. Como o
papel da mulher segundo o patriarcado seria o de ser passiva, lânguida, calma,
paciente, taciturna, complacente, casta, frugal, angelical, obediente, de casar-se com
um homem, procriar com ele, criar e educar seus filhos, aceitar suas violações e
traições etc. A transgressão desses padrões poderia facilmente ser transfigurada em
loucura a fim de punir e dominar a mulher:
Luz, assim como Lilith e Medeia, recebeu duras investidas e punições para ser
controlada. Sem embargo, quando porventura elas reagiram, foram demonizadas,
51 Na citação, Fábio Rosa Faturi faz referência a obra A Construção do moderno e da loucura: Mulheres
no Sanatório Pinel de Pirituba (1929-1944) (VACARO, 2011).
52 Na citação, Fábio Rosa Faturi faz referência a obra O espelho do mundo: Juquery, a história de um
rotuladas de violentas, delirantes, loucas, histéricas. Vale ressaltar que histeria vem
da palavra grega hystera, que significa “útero”. A histeria seria um chilique de mulher,
causada pela infertilidade – visão difundida a partir da Antiguidade –, ou pela lascívia
e perversão sexual – percepção adotada desde o século XIX. No caso de Luz,
segundo sua irmã Angélica, foi atribuído um diagnóstico de esquizofrenia e a
internação teria sido recomendação médica: “o próprio psiquiatra lhe dissera que a
naturalidade com que Dora se despira para o exame clínico era um sintoma de
distúrbio psíquico. Qualquer moça ficaria envergonhada ao tirar a roupa diante de um
homem, mesmo sendo um médico” (AGOSTINHO, 1994, p. 117). O fato da nudez de
Luz ser encarada como loucura se deve à necessidade de controle do corpo livre. O
antigo ideário que liga a ocultação do corpo com a pureza foi ressignificado pela
psicanálise, ligando a ocultação corpórea com a sanidade. Por conseguinte, podemos
entender que as internações de Luz eram penalidade e tentativa de subjugação.
Porém, segundo Bruna dos Santos Beserra Pereira, é claro que nem todas as
mulheres que foram internadas em manicômios eram mulheres saudáveis vítimas de
encarceramento punitivo. Provavelmente, existiram aquelas que necessitavam de
tratamento médico: “no entanto, não se pode negar que o corpo feminino carregava
estigmas que o tornavam mais suscetível ao internamento” (PEREIRA, 2016, p. 92).
Pela segunda vez, Dora foi liberada por Achilles e foi morar um período na
cidade de Campos, no Estado do Rio de Janeiro. Depois, voltou para Cachoeiro de
Itapemirim e, posteriormente, conseguiu escapar para a cidade do Rio de Janeiro. Tal
qual Lilith e Medeia, Luz precisou fugir para poder ser quem era, para buscar sua
emancipação, sua voz. Seu primeiro logradouro foi o internato feminino, o Colégio
Imaculada Conceição, em Botafogo, no ano de 1937, quando Dora já estava
completando seus 21 anos.
No início de sua vida, Dora não fazia ideia de que tipo de artista desejava ser
ou que público gostaria de atrair, entretanto, sabia que sua vida estava destinada a
afetar as pessoas, como podemos observar no diálogo que segue entre Luz e sua
mãe:
Atentemos que Etelvina, mãe de Luz, considera a vida de artista uma perdição
para a alma. Isso pode se dar pela dicotomia vida pública x vida privada. Segundo
Bourdieu (2012), a vida pública é de domínio masculino, em que os homens exibem
seus corpos e seus rostos, arrogam espaço, tomam a palavra – o que podemos incluir
o labor artístico, já que tal ofício exige que se exponha, se não, um produto
extracorpóreo: o próprio corpo do artista. Por outro lado, as mulheres estariam
condenadas a vida privada, oculta e reclusa, que jamais seria espaço de
contemplação de outrem que não pertencesse ao grupo familiar. Logo, para o gênero
feminino, a vida artística seria inviável ou, ao menos, vergonhosa/ indigna (na Figura
8 vemos Luz, nos anos 50, já famosa).
E, antes mesmo de ser a Luz del Fuego, por assim dizer, Dora se expunha e
era notável no espaço público. Passeava pela praia de Marataízes, no Espírito Santo,
de calcinha e bustiê improvisado e quando questionada acerca do sutiã, dizia: “não
vivo na Idade Média pra andar com armadura” (AGOSTINHO, 1994, p. 87).
Dora era implacável contra o conservadorismo. Como foi criada sob rédea curta
por uma mãe carola e irmãos políticos, advogados, fazendeiros, aprendeu logo cedo
como uma mulher de sociedade e de família tradicional deveria se comportar. Mas,
como vimos, de todos os papéis que ela estava disposta a desempenhar (sendo artista
ou não), o de mulher “bela, recatada e do lar” era o que ela não desempenharia, nem
que isso lhe custasse a vida:
Nessa citação, a irmã mais querida de Luz lhe adverte sobre os percalços que
ela terá de passar para poder viver sua própria vida como desejar. Lerner aponta que
dentre os muitos mecanismos de subjugação feminina estão a doutrinação de gênero
106
– que, por vezes é ministrada pelas mulheres ao redor; ensinando, vigiando e coibindo
umas às outras – e “[...] pela concessão de privilégios de classe a mulheres que
obedecem” (LERNER, 2019, p. 267). Desse modo, se a mulher se resignar ao cativeiro
que lhe é dado e se for obediente, usufruirá de pífias vantagens como estar “protegida”
da sociedade brutal por um homem de “bem”, como o cunhado Carlos, que lhe daria
o status de mulher casada, e, por isso, será qualificada socialmente como respeitável.
Apesar disso, um status vazio dado por uma sociedade hipócrita e legitimado
por um contrato de submissão não era o que Luz del Fuego queria. Inclusive, não
hesitava em externar suas ideias contraventoras, não poupava críticas e deboches à
Igreja ou ao modelo de família tradicional. Sobre virgindade, algo importantíssimo para
“moças de família”, dizia: “a virgindade é um estorvo. Mais cedo ou mais tarde vou me
livrar dela. Mas eu decido quando” (AGOSTINHO, 1994, p. 99). Para a sociedade
patriarcal, a virgindade da mulher se constitui como uma moeda valiosa, e Luz não
deixaria esse recurso ser usado por ninguém além dela mesma. Advogava por decidir
o destino do próprio corpo e zombava do estereótipo da moça indefesa buscando o
par ideal: “o mal das moças de Cachoeiro era acreditar em príncipes encantados. Elas
deviam ler menos romances de Madame Delly e não bancar as santinhas”
(AGOSTINHO, 1994, p. 87). Não se imaginava como uma esposa qualquer, em face
dos exemplos de casamentos falidos/charlatões de suas próprias irmãs, e
escandalizava pelo discurso antitradicional: “dizia preferir ser uma prostituta a posar
de mulher séria, esposa e mãe, ao lado de dois canalhas iguais a eles” (AGOSTINHO,
1994, p. 112), referindo-se aos cunhados provindos de “boa família”, “homens de
honra”, “tementes a Deus”, que não perdiam a oportunidade de assediá-la. Carlos,
como já comentamos, que causou uma das internações de Luz em um hospício, era
um reconhecido conquistador, que colecionava amantes por toda a cidade. A esposa,
Angélica, sabia dos fatos, contudo, se fazia de cega. E, quando presenciou a
infidelidade do marido, culpou a própria irmã lhe infringindo mais dor, pois era
necessário abafar o assunto para manter as boas e falsas aparências. Típico do
patriarcado: coerção, culpabilização, punição à mulher e isenção ao homem – o que
também ocorreu a Medeia e Lilith, que foram demonizadas, enquanto Jasão e Adão
foram isentos.
Luz del Fuego foi muitas vezes execrada, não obstante, nunca se manteve
resignada. E, por sua personalidade nada convencional, imagina-se que naquele
tempo nenhum homem a iria querer, menos ainda casar-se com ela. Entretanto,
107
A recusa do casamento não era por não acreditar no amor ou na união entre
pessoas e sim porque acreditava que o casamento formal não faria da mulher uma
esposa, faria dela uma refém: “sou pelo divórcio. Se o adotassem, talvez me casasse.
Mas o casamento, da forma entre nós concebida, é contrato muito rígido para a
volubilidade de nossos dias” (AGOSTINHO, 1994, p. 35). E Luz estava certa, já que o
contrato de casamento impõe obrigações indeléveis à mulher, como vimos na teoria
de Wittig, enquanto o homem mantém sua liberdade e passa a possuir legalmente
autoridade máxima sobre a sua esposa.
Além de não aquiescer a ideia de casamento, também não concordava que a
mulher precisasse ser mãe e pensava que, por vezes, o aborto além de necessário
era legítimo: “nasci em 21 de fevereiro de 1917. Nunca um aborto foi tão necessário!
O aborto é ilegal, mas tantas vezes justificável. Infeliz da mãe que tem o filho sem
cogitar sequer das condições em que vai criá-lo” (AGOSTINHO, 1994, p. 43).
Recordemos que a mulher-pesadelo é tida como infanticida. O terror que o patriarcado
tem do infanticídio se aplica também ao aborto. E, seguramente, o horror a tais
práticas não se dá por uma motivação pró-vida, e sim por uma motivação pró-
propriedade privada. Gerda Lerner assinala que o Estado (na Antiguidade) tomou
precauções para que o feto/bebê fosse protegido sob risco de pena. Sobre um crime
contra uma mulher grávida que acarrete um aborto, a pena poderia variar dependendo
de quem seria o dono da mulher e, consequentemente, do bebê – quanto mais rico o
proprietário, mais alta a punição. No caso de aborto autoinduzido, seria considerado
crime contra o Estado, e a mulher teria que responder ao próprio rei. Contudo, não se
108
Dora Vivacqua era uma vanguardista. Quando decidiu ser dançarina, escolheu
o nome Luz Divina. Inicialmente, esse nome foi eleito para afrontar a sua mãe que
sempre foi carola (que depois de viúva, voltou-se em definitivo à devoção religiosa,
tornando-se freira, assumindo o hábito). Em seguida, a moça ganhou um batom
vermelho encarnado que se chamava Luz del Fuego. E aí encontrou o seu verdadeiro
109
nome. Todavia, foi por meio de leituras e pesquisas que, involuntariamente, Luz
encontrou-se com Lilith e Medeia:
53Em entrevista ao Diário Carioca (1º/1/50), Luz apresenta à sociedade os ideais de seu partido: “contra
a realidade social, vestida e opressora, sem loucura, sem prostituição, sem penitenciárias, fundei o
Partido Naturalista Brasileiro. Hoje, o PNB representa uma grande força política. Muitas pessoas me
procuram, interessadas no programa do meu partido, já publicado de maneira esparsa pelos jornais.
Devo destacar, no entanto, que os principais pontos são: defender a mulher, perseguida pelos
preconceitos sociais; amparar os artistas em geral; fazer com que o governo estimule suas vocações,
proporcionando-lhes meios de estudo e trabalho; divulgar as criações artísticas nacionais em geral,
tanto no exterior como no território nacional; demonstrar e propagar a desnecessidade de certas peças
da indumentária usada pelo nosso povo, com relação ao clima do país; defender o divórcio como
medida moral; lutar pelo barateamento do custo de vida” (AGOSTINHO, 1994, p. 201).
110
54 Segundo Bessa: “Em A Verdade Nua, Luz deixa claras suas predileções estéticas e morais,
demonstrando uma formação intelectual ampla e vária, passando pela literatura, pela sexologia e pelas
artes de modo geral. Como sua ênfase é demonstrar que sua capacidade de pensar está para além da
‘esquisita e ‘excêntrica’ dançarina, como os jornais teimavam em julgá-la, Luz utiliza-se de vários
argumentos para elucidar sua filosofia de vida naturista como plenamente razoável, moderna, saudável,
culta e internacional. O livro que se pretende autobiográfico aproxima-se mais de um dispositivo
literário-político, no qual expõe sua filosofia de vida” (BESSA, 2020, p. 35-36).
111
55Roberto Sicuteri apresenta a seguinte fonte para a palavra lulti: JONES, Ernst. Psicoanalise
áeWincubo. Roma: Newton Compton, 1978.
112
o próprio chamariz do mal, atraindo por meio de sua sedução demoníaca o homem
indefeso. Na obra de Eurípedes, se diz que Medeia foi inflamada por Eros que é o
deus grego do amor carnal e voraz, pai da própria volúpia. A lascívia da colquídia
era tão devastadora que “o mundo nunca esqueceu a paixão de Medeia” (ROBLES,
2006, s. p.). E Luz, herdeira dessa paixão, nunca negou ou se envergonhou do
magnetismo sexual que insurgia nas pessoas:
Como dito por Bessa, Luz del Fuego rompia o padrão estabelecido numa
manobra rebelde. Ela entendia o jogo do patriarcado, flertava com ele, o seduzia e o
provocava. Por isso, sua personalidade sempre despertava o interesse dos homens
que amavam sua irreverência, no entanto, não viam a hora de tê-la domada: “homem
nenhum lhe poria cabresto. Nem por amor ela se sujeitaria” (AGOSTINHO, 1994, p.
141). E, quando eles não tentavam domá-la pelo apelo afetivo, tentavam exigindo
obediência por meio da chantagem financeira, contudo ela não se sentia nem um
pouco obrigada a permanecer em um relacionamento por causa de dinheiro,
comodidade, presentes ou medo da solidão:
Corinto, precisou implorar a Egeu que lhe desse asilo, pois sabia que se um homem
lhe desse abrigo, outros não iriam lhe importunar ou perseguir. Ou seja, a mulher
precisa estar debaixo de uma tutela patriarcal a todo custo. Seja de forma voluntária,
seja de forma forçosa, a mulher não pode estar livre do jugo masculino jamais:
Em julho de 1955, o Diário Carioca anunciava que Luz del Fuego seria
internada por ser “louca presumível”. À Revista do Rádio, ela declarou:
“Doido é quem me chama de louca!”. “– Mas esse negócio de
internação no hospital não assusta você?”, indagou o repórter da
revista. “– Qual, meu velho, não conseguirão! [...] para ser internada
num hospício é preciso que toda a justiça brasileira fique doida
primeiramente”, Luz del Fuego respondeu (DOIDO..., 1955, p. 26).
Poucos meses depois, em setembro, o Correio da Manhã noticiava
que ela havia sido absolvida (LANA; ROCHA, 2019, p. 11).
entanto, a mulher está relegada a viver somente para sua casa, sua família, seu
homem. Contudo, como elas são mulheres-pesadelo, não se rendem; mesmo que
chantageadas, resistem. Luz, ainda que amasse os homens, desconfiava deles, e
incentivava as mulheres a serem independentes e buscarem liberdade tanto financeira
como emocional:
Luz não aceitava ser inferiorizada. Advogava pela insurgência feminina. Uma
vez ou outra intercedia pelo revide: “se nós mulheres somos sempre consideradas
seres inferiores a vocês, devemos aproveitar todas as oportunidades para rebaixá-
los” (AGOSTINHO, 1994, p. 184). Assim como Lilith e Medeia, Luz, como mulher-
pesadelo, abandona o ideal da docilidade feminina e encontra refrigério na vingança,
ainda que ela não seja tão brutal ou poderosa quanto as nossas gárgulas mitológicas.
Por seu comportamento confrontador, insolente e desaforado, sofreu muitos
preconceitos. A Ilha, aos poucos, perdeu o público e se tornou o lugar de solidão e
exílio. Então, cada vez mais, estava vulnerável e desprotegida. E quando precisava
de ajuda de órgãos públicos de proteção, como a polícia, era ridicularizada: “—
Desguie. Desguie, belezura. Quem mandou fazer ponto numa ilha?” (AGOSTINHO,
1994, p. 234).
Dessa forma, vemos a questão da vulnerabilidade feminina e a necessidade de
se sujeitar a uma tutela por um outro viés: a isenção da proteção do Estado. Se uma
mulher vive livre e não tem um homem com proprietário dela, tampouco o Estado,
como curador dos interesses patriarcais, se obriga a exercer proteção a uma mulher
que não obedece às normas de dominação varonil. Desse modo, a Ilha do Sol foi alvo
de muitas invasões e assaltos que sempre encontravam negligência por parte da
polícia e deboche por parte dos jornais (Figura 15). Quando foi reportado o
desaparecimento de Luz e de seu caseiro, a polícia não se furtou a investigar
prontamente, pois acreditava que seria um golpe midiático para algum espetáculo da
115
Luz del Fuego foi vítima de feminicídio56, pois a sua condição de mulher acarretou sua
morte.
Durante as investigações, os corpos foram recuperados e devidamente
sepultados. Luz del Fuego foi enterrada no Cemitério São João Batista, no Rio de
Janeiro, sob holofotes. A sua família, assim como alguns artistas e amigos,
compareceu ao enterro. Segundo Agostinho, Luz sempre proferia em entrevistas e
entre amigos que deixaria seus bens para a Sociedade Protetora dos Animais,
entretanto, não havia registro em testamento. Por conseguinte, seus parentes se
digladiaram por seus bens:
56 Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. A Lei considera que o assassinato seja feminicídio quando o
crime é consequência de menosprezo e/ou discriminação à condição da vítima ser mulher, ou quando
o crime ocorre envolvendo violência doméstica e/ou familiar.
57 Um dos frutos do recente orgulho que a família Vivacqua externa pelo parentesco com Luz é a
Dissertação de Mestrado de uma descendente sua que estuda duas cartas e um poema da nossa
mulher-pesadelo brasileira. O trabalho se intitula Lúdico Blackout: palavra poética e experiência
psicoativa (BOARIN, 2019).
117
se intitula “Tia Dora”58. Então, por mais que tivessem existido aqueles que a
execravam, a silenciavam e a apagavam, existiam, existem e sempre existirão
aqueles que lhe rendem homenagem. Um dos registros que buscou eternizar a figura
de Luz foi o filme de David Neves, como já comentado, que foi analisado por Bessa.
Através de seu artigo, pudemos ter acesso à intensão59 dos escritores do roteiro de
expressar sua admiração e respeito pela artista capixaba:
Para ratificar o que foi dito anteriormente sobre Luz del Fuego,
podemos citar uma caricatura imensa estendida, ao lado de outras
personalidades cachoeirenses, em frente ao Palácio Bernardino
Monteiro, sede da prefeitura, no Carnaval de 2009, como também o
fato de ela ter sido tema de “Cobra criada”, vencedora do 4º concurso
58 O curto documentário conta com a participação dos sobrinhos de Luz narrando como a família
encarava o parentesco com ela e como hoje é compreendido. Também podemos assistir trechos de
filmes de Luz, como A Nativa Solitária e Luz Divina, que possibilitam a indescritível emoção de ouvir a
linda voz dessa linda mulher.
59 “Embora os intentos dos roteiristas estejam claramente enunciados no livro, adianto que o filme é
omisso em nos revelar a guerrilheira na luta contra o moralismo. Ao produzir uma personagem marcada
por um forte tom de excentricidade e histeria, o enredo mais reitera os julgamentos que a debilitaram
ao longo de sua vida do que reforçam as camadas subjetivas e políticas de sua delirante (e talvez por
isso mesmo tão potente) revolta (aparentemente) moral. O contexto de produção do Luz del Fuego
filme esteve marcado por um forte legado de um cinema brasileiro de cunho erótico e machista, que
tinha no sexo e na nudez seu grande apelo de sucesso de bilheteria” (BESSA, 2020, p. 6).
118
Luz del Fuego (Figura 17 e 18) não era uma mulher como as outras. Ela
propositalmente quebrava o ideário da mulher almejada e bem-quista da sociedade
patriarcal, onde quer que fosse. E, tal como Medeia e Lilith, assumiu os riscos de se
contrapor a toda uma sociedade misógina. Padeceu, mas inspirou. E, com todo o
esforço que existe para apagar o exemplo delas, geração pós geração, elas surgem
e acendem o desejo de liberdade das mulheres que continuam presas e sem
expectativas.
119
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
quando em quando em atos cíclicos e repetitivos; Lilith jamais cogita sua submissão;
e Luz del Fuego morre se rebelando até o último instante.
Seus finais são trágicos. E precisam ser para que, na pior das hipóteses, o
patriarcado as torne exemplos de desgraça e na melhor, sejam apagadas. A História,
como a ciência controlada pelo patriarcado, tenta apagar a mulher, seja ela pesadelo
ou não. Estamos no século XXI e não existe uma grande tradição de mulheres
escritoras, cientistas, conquistadoras, heroínas. A História tenta a todo custo extinguir
a imagem de personagens como Medeia, Lilith e Luz del Fuego – até porque o
exemplo é prejudicial. Afinal, o mau exemplo ainda é um exemplo, então, é factível.
Mas Luz, a exemplo da mulher-pesadelo no plano real, pagou com a vida. Vítima de
um feminicídio grotesco, vítima da fúria masculina, ela incorporou as dores e os
pesares das mulheres-pesadelo, em que uma mulher é morta pelo simples fato de ser
mulher.
Portanto, concluímos que o arquétipo da mulher-pesadelo reaparece
eventualmente, perpetuando o mito à revelia da História. Basta uma mulher se fartar
dos padrões impostos e começar a reivindicar direitos, voz, singularidade, igualdade
e liberdade. Reaparece quando uma mulher não se envergonha ou pede desculpas
por seu corpo, seus pensamentos, suas palavras. Reaparece quando a mulher exige
ser um indivíduo e não aceita ser adereço. E assim foram Medeia, Lilith e Luz del
Fuego. Seja escancarando a hipocrisia, lutando, fugindo, se exilando e até mesmo
morrendo, elas deixaram um legado e viveram nos corpos de muitas mulheres como:
Leila Diniz, Martha Anderson, Ítala Andi e Darlene Glória, entre tantas outras, famosas
ou não.
A História nunca conseguirá apagar, por definitivo, Medeia, Lilith e Luz del
Fuego (sejam reais ou mitológicas) porque sempre outra representante desse
arquétipo nascerá e lembrará ao mundo o gosto amargo que uma mulher-pesadelo
provoca. Amargor esse que apura na boca da própria mulher-pesadelo. Ela, mais do
que ninguém, conhece o sabor das consequências de sua contravenção.
REFERÊNCIAS
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129
60 Fotografia da família Vivacqua em 1923. Da esquerda para a direita, em pé: Abgail, Edelmira,
Mariquinhas, Angélica, Filomena, Margarida e Antônio Filho. Da esquerda para a direita, sentados:
Attilio, Etelvina, Antônio Vivacqua, Archilau, Achilles. Da esquerda para a direita, as crianças sentadas
no chão: Eunice, Cléa, Archimedes, Zezito e Dora (Luz del Fuego).
130
Figura 2 – Luz del Fuego (à direita), então com 8 anos, fantasiada para o Carnaval em
Cachoeiro de Itapemirim
Figura 3 – Recibo de pagamento da internação de Luz del Fuego (então com 19 anos de
idade) no hospital psiquiátrico em Belo Horizonte
Figura 6 – Luz fantasiada de “Grande Dama”, no Carnaval carioca nos anos 1950
Figura 11 – Luz como candidata a deputada pelo Partido Naturalista Brasileiro (PNB)
Figura 9 – Capa do romance escrito por Luz: Trágico Black-out, publicado em 1947