Alencastro 2018

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África, números do tráfico atlântico


In Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes, Dicionário da Escravidão e Liberdade,
Companhia das Letras, São Paulo, 2018, pp. 57-63

Luiz Felipe de Alencastro

O tráfico transatlântico de escravos africanos tomou no Brasil uma dimensão


inédita no Novo Mundo. Do século XVI até 1850, no período colonial e imperial, o país
foi o maior importador de escravos africanos das Américas. Foi ainda a única nação
independente que praticou maciçamente o tráfico negreiro, transformando o território
nacional no maior agregado político escravista americano. Consubstancial à organização
do Império do Brasil, a intensificação da importação de escravos africanos após 1822
explica a longevidade do escravismo até sua abolição em 1888.
O primeiro ponto a ser delimitado é o período em que perdurou o comércio de
africanos para o Brasil, ou seja, os anos 1550-1850. Os dados disponíveis assinalam que
os primeiros desembarques de cativos africanos ocorreram nos anos 1560 em
Pernambuco. Contudo, a data geralmente utilizada como início do tráfico é o ano de
1550. Da mesma forma, o final do tráfico clandestino para o Brasil é fixado em 1850,
embora 6900 africanos escravizados ainda tenham sido desembarcados no país entre
1851 e 1856.
O segundo ponto importante, e bem mais complexo, se refere ao número de
africanos legal e ilegalmente introduzidos no Brasil. Tema que é objeto de controvérsias
iniciadas no século xix. Tal debate também ocorre em outros países americanos,
europeus e africanos envolvidos no comércio de escravos. Philip D. Curtin, em sua obra
pioneira, The Atlantic Slave Trade — A Census (1969), na qual sistematiza as
estatísticas de obras impressas sobre a deportação de africanos, redigiu um capítulo
intitulado “The Slave Trade and the Numbers Game”. Nele, Curtin aponta a grande
variação das cifras atribuídas por diversos autores ao tráfico atlântico, e desautoriza a
maior parte das estimativas. Porém, relativamente ao Brasil, ele conclui que o livro de
Maurício Goulart, A escravidão africana no Brasil (1949), oferecia a descrição e os
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números mais exatos sobre o tráfico brasileiro. Advogado sem vínculos universitários,
Goulart trabalhou com os dados do arquivo do Instituto Histórico do Rio de Janeiro e da
historiografia, para corrigir “delirantes conjeturas” sobre os números do tráfico
elaboradas, entre outros, por Calógeras e Rocha Pombo. Incluindo pistas ainda
inexploradas, o livro de Goulart não recebeu a consideração que merece. Pierre Verger
retoma os estudos da tradição historiográfica baiana e os amplia, com a documentação
inglesa e portuguesa, para enfatizar o caráter bilateral do tráfico negreiro. Publicado em
1968, o livro de Verger se concentra nas trocas entre a Bahia e o golfo de Benim nos
séculos xviii e xix, fazendo pouca referência ao Rio de Janeiro e a Angola, tornados os
maiores polos negreiros do Atlântico.

Outra vertente da temática envolve os aspectos legais e diplomáticos do


contencioso anglo-brasileiro sobre comércio ilegal de africanos (1831-1850), que
sempre interessou especialistas do Direito Internacional e do Itamaraty. Assim, em
1916, João Luiz Alves, futuro ministro da Justiça e do STF, publica na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um estudo detalhado, e até hoje citado, sobre
o assunto. O livro de Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade (1970)
amplia tal abordagem, situando pela primeira vez o tráfico brasileiro no contexto da Pax
Britannica. Comparando o Brasil com Cuba e outras zonas de tráfico e explorando mais
intensamente os registros britânicos, David Eltis (Economic Growth and the Ending of
the Transatlantic Slave Trade, 1987) retomou dados de Bethell e corrigiu para cima as
cifras de Goulart e Curtin sobre o tráfico brasileiro da primeira metade do século XIX.
Cifras abrangentes consolidadas no site Trans-Atlantic Slave Trade Database
(TSTD 2006, atualizado em 2012), organizado principalmente por David Eltis e David
Richardson, mas que contou com a colaboração de pesquisadores brasileiros, e
notadamente de Manolo Florentino e Daniel Domingues, oferecem um panorama amplo
e, em boa medida, definitivo, do tráfico e do transporte transatlântico de africanos. Na
circunstância, cerca de 36 mil viagens, correspondendo a 70% do volume estimado de
viagens negreiras para as Américas, iniciadas em 1502 nas Antilhas e concluídas em
1866 em Cuba, estão registradas no TSTD. O monumental Atlas do tráfico transatlântico
(2010) de D. Eltis e D. Richardson completa o TSTD. Salvo outra referência, as análises
que se seguem se baseiam no TSTD e no Atlas. Como ficou dito, acima, as datas se
referem ao período 1550-1850 para evitar distorções nos cálculos globais, visto que nas
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décadas 1850 e 1860 o tráfico para o Brasil praticamente cessa mas aumenta fortemente
em direção à Cuba.
Os números do Database têm uma reconhecida precisão. A razão é simples.
Empreitado por governos e companhias mercantis, o comércio transatlântico de
africanos deixou numerosos registros navais, portuários, fiscais e contábeis. No período
do tráfico clandestino brasileiro (1831-1856), informações dos cônsules e espiões
ingleses (o mais célebre dos quais foi um carioca cujo codinome era “Alcoforado”),
agregados às CPIs sobre o tráfico instauradas pelo Parlamento britânico nos anos 1840,
fornecem um quadro bastante completo deste contrabando que gerou fortunas no Brasil
e em Portugal. Graças ao trabalho acumulado por gerações de especialistas, tais dados
puderam ser cotejados e apresentados nos quadros interativos do website do TSTD.
Isto posto, convém examinar mais de perto as cifras e a historiografia recente.
Observe-se que o Database não inclui as rotas indiretas de tráfico e que os números
relativos aos séculos XVI e XVII são esparsos. Além disso, os registros escondem certas
fraudes. Assim, na época filipina (1580-1640), para pagar um imposto de exportação
menor, negreiros saídos de Bissau ou de Luanda declaravam os portos brasileiros como
destino, mas rumavam para as Antilhas ou Buenos Aires, onde os preços dos escravos
eram mais altos e havia contrabando de prata espanhola. Desse modo, os registros do
TSTD sobre as importações brasileiras podem estar sobre-estimados, indicando uma
utilização mais intensa do trabalho compulsório indígena na primeira metade do século
XVII. No auge do ouro, no século XVIII, aconteceu o inverso. Africanos foram
contrabandeados das Antilhas para as regiões mineiras do Mato Grosso e Minas Gerais,
através da bacia amazônica e do Maranhão. Também é provável que o número de
moçambicanos desembarcados no Brasil século XVIII seja um pouco superior aos 6.924
indivíduos registrados no TSTD como sendo provenientes dos portos da África do
sudoeste. Na primeira metade do século XIX, incluindo os anos do tráfico clandestino
(1831-1850), as estatísticas são mais precisas pelas razões apontadas acima. Note-se,
entretanto, que nos 1848-1850, quando os preços no Brasil caíram por causa do grande
afluxo de negreiros, houve reexportação de africanos para o Caribe. Tomando em conta
essas considerações, calculo que o total de africanos desembarcados no Brasil, em cerca
de 14. 910 viagens transcorridas nos três séculos, 1550-1850, atinja 4.800.000, pouco
menos que os 4.860.000 constantes no Database. Globalmente, as importações
brasileiras no mesme período representam 46% do total dos escravizados
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desembarcados. Pelos motivos indicados acima, o número de embarques nos portos


africanos destinados ao Brasil — 5,5 milhões, 45% do total dos deportados da África -,
está provavelmente sobre-estimado no TSTD.
Dessa maneira, a cifra de africanos introduzidos no Brasil entre 1500 e 1850 (4,8
milhões) é conhecida com maior precisão do que o número de colonos, (até 1822), e
imigrantes portugueses vindos no mesmo período. Quanto à população indígena, os
cálculos são obviamente aleatórios. A cifra computada por John Hemming no livro Red
Gold (1978), que tem no cálculo da população indígena a mesma significação que o
livro de Goulart teve nas estimativas sobre o tráfico negreiro, é de 2,43 milhões de
índios presentes no século XVI nos territórios posteriormente incorporados às fronteiras
atuais do Brasil. No que concerne os portugueses, meus próprios cálculos indicam a
cifra de 750 mil indivíduos entrados entre 1500 e 1850. Ou seja, em cada 100 pessoas
desembarcadas no Brasil durante este período, 86 eram escravos africanos e 14 eram
colonos e imigrantes portugueses.
Para entender estas cifras convém examinar melhor as redes de trocas ligando os
portos brasileiros aos africanos
Basicamente, os africanos chegados ao Brasil vieram de duas áreas principais. A
primeira, formada pela baía de Benim e pelo golfo do Biafra, origem de 999.600
indivíduos desembarcados, e a segunda, situada no Centro-Oeste africano, e sobretudo
em Angola, de onde saíram 3.656.000 indivíduos (75% do total dos desembarques).
Deve ser ainda notada a chegada de 188.400 escravos da Senegâmbia e de áreas do
golfo de Guiné. A grande maioria (95%) dos escravos oriundos da África Oriental,
sobretudo de Moçambique, chegou no Brasil, e principalmente no Rio de Janeiro (82%),
na primeira metade do século XIX. É preciso sublinhar que os grandes portos negreiros
se situavam na proximidade de bacias hidrográficas extensas, como a do rio Senegal, do
Gâmbia, (Senegâmbia), dos rios Níger e Volta (golfo de Guiné), do rio Congo e do
Cuanza (Congo-Angola), do Zambeze e do Limpopo (Moçambique), permitindo o
transporte fluvial de cativos para os portos marítimos e ampliando o impacto do tráfico
no interior da África subsaariana. Assim, escravizados embarcados num determinado
porto podiam ter sido trazidos de comunidades situadas em regiões muito distantes do
litoral
Uma particularidade marcante nas redes sul-atlânticas é seu percurso bilateral:
95% das viagens que desembarcaram africanos nos portos brasileiros foram iniciadas
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nestes mesmos portos, sobretudo no Rio de Janeiro, na Bahia e em Recife (nesta


ordem). Em razão de correntes e ventos favoráveis no Atlântico Sul, a viagem de ida e
volta Brasil-África era, em média, 40% mais curta do que as viagens similares dos
portos antilhanos e norte-americanos até a África. A relativa segurança e facilidade
como se navegava da costa brasileira ao golfo de Guiné ou Angola, permitia que navios
de pequeno porte, como as escunas de dois mastros que navegavam no rio São
Francisco, empreitassem viagens negreiras. Além do mais, enfrentando ventos adversos,
os negreiros rivais europeus geralmente buscavam portos mais ao norte de Angola, na
área do estuário do Congo e acima dela. Circunstância que também protegeu a
predominância luso-brasileira na navegação bilateral sul-atlântica.
Mais instruídos pelo conhecimento empírico do que pela cartografia marítima,
negreiros oriundos dos portos brasileiros descentralizaram e informalizaram o tráfico no
Atlântico Sul. Efetivamente, a primeira descrição com as regras da marinharia
portuguesa de uma rota transatlântica Sul-Sul, a rota da Bahia ao golfo de Guiné, foi
elaborada em 1759 pelo engenheiro e cartógrafo baiano José Antônio Caldas. Bem
depois do mapeamento do Atlântico Norte. Aliás, o mapa completo das correntes do
Atlântico Sul só aparece em 1832, traçado pelo oceanógrafo inglês James Rennell.
Como observaram Eltis e Richardson, as trocas sul-atlânticas, que compõem as maiores
redes negreiras oceânicas, são as menos conhecidas pelos historiadores do Atlântico.
Neste contexto, emergiram quatro eixos principais e um eixo derivado unindo os
portos brasileiros à África. Em ordem crescente, o primeiro eixo é o mais tardio e o que
teve menor duração. Trata-se do circuito unindo a Amazônia à Guiné-Bissau, na
Senegâmbia. Esta rede dependia da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão (CGGPM, 1755-1778), criada pelo marquês de Pombal para administrar os
territórios das duas pontas do circuito marítimo, a Guiné-Bissau e a Amazônia. Distintas
do sistema náutico sul-atlântico, as rotas da CGGPM, integradas no Atlântico Norte,
configuravam um comércio triangular, no qual a viagem iniciada em Portugal seguia
para a Senegâmbia, embarcava cativos e rumava para São Luís ou Belém, de onde o
navio voltava para Lisboa com produtos da Amazônia.
O segundo eixo unia Pernambuco a Angola e, secundariamente, ao golfo de
Guiné. O terceiro ligava a Bahia ao golfo de Guiné e, em particular, à baía de Benim.
Aqui, o tabaco baiano, e às vezes pernambucano, aparecia como uma mercadoria de
exportação privilegiada, garantindo aos produtores escravistas regionais frete para os
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portos do Benim. Cabe observar que Pombal também tentou enquadrar o tráfico
pernambucano e baiano em companhias negreiras onde predominava o capital
metropolitano. Teve sucesso no primeiro caso, criando a Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba (1759-1780). Mas fracassou no segundo, deixando assim os
negreiros baianos -, e fluminenses -, os mais importantes da América portuguesa, fora
das companhias semi-estatais que passaram a controlar os portos de tráfico situados ao
norte do rio São Francisco.
Enfim, o quarto eixo conectava o Rio de Janeiro e seus portos subsidiários, a
Angola e, mais tarde, depois da chegada da Corte, a Moçambique e, pôr vezes, a outros
portos negreiros da África Ocidental. Da Guanabara, derivava uma rede vinculando o
tráfico fluminense ao Rio da Prata. Crescendo com as exportações para Buenos Aires na
época do contrabando da prata de Potosí, e para Minas Gerais na época do ouro e do
diamante, o negócio negreiro do Rio de Janeiro passa a depender menos da demanda
dos produtores açucareiros fluminenses e se avoluma com o deslanche da produção
cafeeira no Centro-Sul. Ampliando suas redes na costa africana, tanto em Angola, e em
particular em Benguela, como em Moçambique, o polo mercantil do Rio de Janeiro
transforma a cidade no maior porto negreiro das Américas. Note-se que a cachaça
fluminense servia regularmente de frete e de escambo nos portos angolanos. Depois da
abertura dos portos, em 1808, o Rio também passa a reexportar mercadoria europeias de
escambo para os portos africanos. A intensificação do tráfico fluminense decorre ainda
da retirada dos negreiros ingleses e americanos dos portos africanos, depois da abolição
do comércio transatlântico de africanos nos dois países, em 1807. Com novas e
volumosas mercadorias de escambo, os tumbeiros fluminenses captam a oferta negreira
em diversos portos africanos abandonados pelos americanos e ingleses. O gráfico anexo
mostra que foi neste período que o Brasil se consolida como o maior importador de
escravos do Novo Mundo. Mais amplamente, o gráfico ilustra a grande sincronia entre o
fluxo do tráfico atlântico de africanos. Em outras palavras, desde de 1550 até 1850,
todos os “ciclos” econômicos brasileiros — o do açúcar, o do ouro e o do café —
derivam do ciclo multissecular de trabalho escravo trazido pelos traficantes.
No total, a rede de tráfico baseada no Rio de Janeiro tem maior preeminência
econômica e política no país, embora o eixo Bahia-Benim tenha grande destaque
cultural no passado e no presente das relações entre a África e o Brasil.
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De fato, a hegemonia econômica e política, do Rio de Janeiro foi fundamental


para a afirmação da soberania do governo central sobre o território da América
portuguesa e para construção do Estado nacional. Tal hegemonia foi articulada pela
classe dirigente luso-brasileira agregada à Coroa e financiada pela expansão cafeeira no
Centro-Sul. Tudo isso só foi possível por causa do extraordinário crescimento do tráfico
negreiro no século XIX. Por causa da pilhagem das populações subsaarianas.

REFERÊNCIAS

CAPELA, José, O tráfico de escravos nos portos de Moçambique, Porto, Afrontamento,


2002.
CANDIDO, Mariana, An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its
Hinterland, Nova York, Cambridge University Press, 2013
CURTO, José C., Enslaving Spirits — The Portuguese-Brazilian Alcohol Trade at
Luanda and its Hinterland, c. 1550-1830, Leiden, Brill, 2004
DOMINGUES, Daniel, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, 1780-1867,
Nova York, Cambridge University Press, 2017
ELTIS, David, and DAVID Richardson. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New
Haven, Yale University Press, 2010.
FERREIRA, Roquinaldo, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and
Brazil during the Era of the Slave Trade, Nova York, Cambridge University
Press, 2012
FLORENTINO, Manolo, Em costas negras — Uma história do tráfico atlântico de
escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 1995.
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Trade, 1600-1830, Cambridge, U. K., Cambridge University Press, 2010
KLEIN, Herbert S., The Atlantic Slave Trade, Cambridge, U. K., Cambridge University
Press, 2010
MILLER, Joseph C., Way of Death — Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade
1730-1830, Madison, University of Wisconsin Press, 1988. 

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Fonte: TSTD

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