Racionalismo de Descartes

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O RACIONALISMO DE DESCARTES

http://aesjt.pt/moodle/course/view.php?id=621

MÓDULO IV UNIDADE 1

O CONHECIMENTO E A RACIONALIDADE O CONHECIMENTO


CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA

CAPÍTULO 2 – TEORIAS EXPLICATIVAS DO CONHECIMENTO: O RACIONALISMO DE


DESCARTES

Síntese da teoria cartesiana do conhecimento

O projeto Construir um sistema de verdades indubitáveis em que de uma verdade que seja
impossível considerar falsa possamos deduzir outras verdades que sejam certezas
absolutas.

As razões de ser do 1. O sistema dos ditos conhecimentos do seu tempo era constituído por verdades e
projeto falsidades.

2. Temos de separar o verdadeiro do falso e justificar que o que acreditamos ser


verdadeiro é absolutamente verdadeiro.

3. O sistema dos ditos conhecimentos do seu tempo não tinha bases firmes e estava
desorganizado a tal ponto que havia falsidades na base do sistema e verdades noutros
pontos desse sistema.

4. Temos de encontrar uma verdade indubitável que sirva como base ao sistema dos
conhecimentos e permita organizá-lo firme e seguramente.

A estratégia Vamos submeter ao exame rigoroso da dúvida as bases em que assentava o sistema
dos conhecimentos estabelecidos.
para atingir esse
objetivo 1. Consideraremos falso o que não for absolutamente verdadeiro ou indubitável.

2. Consideraremos enganadora qualquer faculdade que alguma vez nos tenha


enganado ou de que cujo funcionamento correto possamos por muito pouco que seja
suspeitar.

A dúvida será por isso aplicada de forma hiperbólica.

3. As bases do sistema dos ditos conhecimentos que vamos examinar


implacavelmente são:

– A crença de que os sentidos são fontes fiáveis de conhecimento sobre as


propriedades dos objetos físicos.

– A forte crença de que existem realidades físicas;

– A crença de que as mais fiáveis produções do nosso entendimento – as matemáticas


– são um modelo de verdade indubitável.

O que passar neste exame rigoroso será indubitavelmente verdadeiro.

O que não passa no 1. Os sentidos não são dignos de confiança quanto às informações quer sobre as
exame da dúvida qualidades das coisas sensíveis quer sobre a existência dessas mesmas coisas.
metódica/hiperbólica
As ilusões dos sentidos e o argumento de que não temos forma de distinguir
absolutamente o sonho da realidade, o fictício do real levam-nos a negar o empirismo
(que o conhecimento comece com a experiência sensível) e a crença de que o mundo
físico indubitavelmente existe.
2. O correto funcionamento do nosso entendimento (razão) é colocado sob suspeita
devido ao argumento de que Deus pode tê-lo criado destinado a confundir o falso
com o verdadeiro.

Os objetos sensíveis e os objetos inteligíveis – exemplificados pela matemática – são


colocados sob suspeita e por isso deles não pode derivar-se conhecimento algum.

O que resiste à Resiste à dúvida a existência do sujeito que de tudo duvida. «Duvido – penso – logo
dúvida. existo» é uma verdade indubitável porque a existência de quem duvida não pode ser
objeto de dúvida nenhuma.

Caraterísticas da 1. É primeira porque impõe-se no momento em que de tudo se duvida.


primeira verdade
2. É primeira porque não deriva de nenhuma outra (teria de haver outra, o que não
acontece).

3. É objeto de intuição existencial e não de dedução – será o ponto de partida de todas


as deduções que faremos para construir o sistema firme dos conhecimentos.

4. É, por isso, o primeiro princípio do sistema dos conhecimentos.

5. Corresponde à existência de um sujeito cuja natureza ou essência consiste em


pensar.

6. É uma ideia ou verdade inata porque se impõe como absolutamente indubitável


independentemente da experiência. Nasce connosco e descobrimo-la como certeza
sem apoio empírico.

7. É um critério ou modelo de verdade, dada a evidência, clareza e distinção, com que


se impõe.

Verdades 1. A alma é distinta do corpo.


indubitáveis que
Todas as coisas sensíveis – incluindo o meu corpo ‒ podem não passar de realidades
deduzimos da
que só existem em sonho. Mas existo e disso não posso duvidar. Se não preciso do
primeira verdade
corpo para existir, então a alma – o que eu sou – é distinta do corpo e mais fácil de
conhecer do que este.

2. Deus existe.

Se duvido e nada conheço a não ser que existo e sou um ser pensante, então
sou imperfeito. Mas de onde veio esta ideia? Comparei as minhas qualidades
com as que caraterizam um ser perfeito. Logo, sem a ideia de um ser perfeito –
do que é ser perfeito ‒, não saberia que sou imperfeito.
Mas sou a causa desta ideia? Sou o seu autor? Não, porque ela representa
mais perfeição do que a que possuo e poderia causar. Logo, só um ser perfeito
é causa da ideia de perfeito. Quem é esse ser? É Deus. Logo, Deus existe.

A importância da 1. Afasta-se a desconfiança no funcionamento correto do nosso


existência de Deus entendimento.
como ser perfeito Provado que Deus não pode enganar, podemos confiar nas operações do
nosso entendimento/razão. O critério da evidência é fundamentado de modo
que aquilo que considero claro e distinto – evidente – é claro e distinto,
absolutamente indubitável.

2. Supera-se, em parte, o solipsismo.

Com efeito, Deus é ser cuja existência que não depende do sujeito pensante.

3. Deus é o fundamento metafísico das crenças verdadeiras. Garante-as


absolutamente, porque garante que as evidências atuais são realmente
indubitáveis como também que o serão sempre. O conhecimento torna-se
assim um conjunto de verdades objetivas, independentes do sujeito pensante.

A recuperação da Descartes apercebe-se de que há ideias das coisas que não são produzidas pelo sujeito
crença na existência pensante. Existindo, devem ter uma causa: as próprias coisas sensíveis. Esta propensão
do mundo físico ou crença natural é legítima e fundada dado que Deus, a quem a devo, não me engana.

1. A razão é a fonte ou origem do conhecimento.


Só as verdades descobertas pela razão e deduzidas desta têm direito ao título de
O racionalismo
conhecimento. O princípio do sistema dos conhecimentos é uma verdade puramente
cartesiano
racional. Os sentidos não merecem confiança.
2. O ideal de conhecimento em Descartes é o de um sistema dedutivo análogo ao
modelo do raciocínio matemático que sempre o deslumbrou.
De uma verdade indubitável – a existência do eu – deduz outras verdades que devem
apresentar a mesma clareza e distinção. A matemática é um ideal metodológico e não a
rainha das ciências, dado que esse estatuto de ciência primeira pertence à metafísica.
3. As ideias que desempenham um papel decisivo no conhecimento são ideias inatas.
Ideias como as de eu e de Deus formam-se no pensamento sem o contributo da
experiência. São ideias que, mediante a reflexão puramente racional, a razão descobre
em si, atualizando o que potencialmente existe na alma desde que existimos. O
inatismo é a afirmação da autonomia da razão em relação à experiência.
4. A dúvida metódica está ligada à natureza racionalista da filosofia de Descartes.
A vontade de duvidar parte da ideia de que a razão não pode atingir a verdade
subordinando-se à experiência, aos sentidos. A dúvida cumpre a função de devolver a
razão à plena posse de si mesma, torna-a autónoma ao libertá-la da dependência em
relação aos sentidos e dos falsos pontos de partida.

II

TEXTOS SOBRE DESCARTES

O conceito de ciência

«A ciência é um conhecimento certo e evidente.»

«A ciência diz-se de uma única maneira: “toda a ciência é um conhecimento


certo e evidente”. Por conseguinte, a ciência demarca-se, claramente, não só
do que é falso, mas também do que é duvidoso ou meramente provável.
Descartes chega mesmo ao ponto de dizer que é preferível ser ignorante a
possuir conhecimentos duvidosos ou prováveis.

Um homem que duvida de muitas coisas não é mais sábio do que aquele que
nunca pensou nelas; é-o até menos do que este último, se formou sobre
algumas uma falsa opinião. Por isso mais vale nunca estudar do que ocupar-se
de objetos de tal modo difíceis que, sem podermos distinguir o verdadeiro do
falso, sejamos forçados a admitir por certo o que é duvidoso, pois não há então
tanta esperança em aumentar a doutrina quanto o perigo de a diminuir. Como
consequência, rejeitamos todos os conhecimentos que não passam de
prováveis e declaramos que é preciso confiarmos unicamente no que é
perfeitamente conhecido e de que não se pode duvidar.

Regras para a direção do Espírito, II.

Numa primeira fase, Descartes considera que, e entre as ciências do seu


tempo, só duas resistem a esta exigência da sua nova conceção de ciência: a
Aritmética e a Geometria. Mais tarde, porém, afirma que há outras verdades, as
quais, não cabendo propriamente no espaço das ciências geométricas ou
matemáticas, não deixam de ser tão certas e evidentes como elas ou talvez
mesmo até mais: é o caso das verdades metafísicas, relativas à natureza
pensante do espírito (mente), à distinção da mente relativamente ao corpo e ao
conhecimento da existência de Deus.

Por conseguinte, Descartes não defende que verdades dignas de tal nome
sejam só as da Aritmética e da Geometria, mas revelará sempre a tendência
para considerar que toda a verdade deve assemelhar-se, pela sua certeza e
evidência, à das demonstrações daquelas duas ciências. Tais demonstrações,
com efeito, são uma espécie de exemplo concreto e já realizado de uma
ciência que merece tal nome; e, por outro lado, o cultivo dessas disciplinas,
desde tempos imemoriais e de forma ininterrupta, é índice de que o espírito
humano não se deixou perverter completamente pelo emaranhado das
opiniões prováveis ou simplesmente falsas e que as “sementes de verdade”, de
que a humana razão dispõe, só necessitam de uma boa ocasião e de um bom
método para se desenvolverem em todas as suas potencialidades.

Descartes tem uma conceção sistemática e dedutiva da ciência. O saber, a


ciência verdadeira é uma longa cadeia de razões que se inferem umas das
outras e não um amontoado de verdades isoladas. A dimensão sistemática da
conceção cartesiana da ciência exprime-se nas metáforas a que o filósofo
recorre para falar do seu projeto global: o modelo arquitetónico (o edifício da
ciência), ou o modelo orgânico (a árvore). Daí a necessidade de procurar os
“fundamentos”, as “raízes”, os “alicerces”, expressões que percorrem de
uma ponta à outra os textos cartesianos.

Rejeitando como falso o que é meramente provável ou duvidoso, exigindo


sólidos fundamentos, a conceção cartesiana de ciência revela-se como
tendencialmente dogmática.»

António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do


Jogo, pp. 204-205 e 212.

As regras do método
«O Discurso do Método reduz a quatro os preceitos ou regras fundamentais do
método cartesiano. São elas:

1. A regra da evidência: “nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a


conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação
e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão
clara e distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o
pôr em dúvida”.

2. A regra da análise ou da divisão: “dividir cada uma das dificuldades que


tivesse de abordar no maior número possível de parcelas que fossem
necessárias para melhor as resolver”.

3. A regra da dedução e da ordem: “conduzir por ordem os meus


pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos
mais compostos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se
prendem naturalmente uns aos outros”.

4. A regra da enumeração: “fazer sempre enumerações tão completas e


revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir”.

A primeira é uma regra de prevenção e de critério absoluto e preside a todas as


verdades, tanto às simples e primeiras como às mais complexas e últimas.

A segunda aplica-se sobretudo às questões complexas, que, para poderem ser


resolvidas mais facilmente, terão de ser decompostas nos seus elementos mais
simples e por isso também mais claros e evidentes.

A terceira visa assegurar a homogeneidade e continuidade do encadeamento


das razões, de modo a garantir que a ciência seja um todo único de verdades
dispostas entre si segundo uma série ordenada.

A quarta pretende garantir a completude, passando um olhar de verificação


sobre o processo de modo a assegurar-se de que em cada uma das verdades
deduzidas se dão as notas que as tornam verdadeiras, uma vez que é
impossível ao homem ter de todas e de cada uma delas a intuição imediata da
sua evidência.»

António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do


Jogo, p. 218.
3
A intuição e a dedução

A intuição

Para Descartes, não há senão duas vias pelas quais se pode chegar ao
conhecimento certo das coisas. Essas duas vias correspondem a outras tantas
operações da razão. São elas: a intuição e a dedução. Vejamos o que o filósofo
entende por estas expressões e como concebe a relação entre elas no
processo de constituição da ciência.

A intuição. «Por intuição entendo [...] o conceito que a inteligência pura e atenta
forma com tanta facilidade e distinção que não resta absolutamente nenhuma
dúvida sobre aquilo que compreendemos». (1)

O conceito de intuição não era novo e era abundantemente usado nos escritos
escolásticos. Todavia, Descartes tem consciência de que o usa num sentido
absolutamente novo e adverte os seus eventuais leitores de que não o
confundam com o sentido do uso corrente de tal termo. Em que consiste essa
novidade?

Tentemos alinhar as caraterísticas essenciais desse olhar atento do espírito a


que Descartes chama intuição.

a) Ela é instantânea, ao contrário da dedução que se dá em cadeia


sucessivamente e exige, por conseguinte, o tempo e o recurso à memória. A
intuição é um puro olhar do espírito dirigido a objetos de natureza intelectual
que imediatamente são apreendidos na sua evidência e captados pelo espírito
com absoluta certeza.

b) A intuição de que fala Descartes é uma intuição de natureza intelectual


‒ intuição intelectual, como lhe chama ‒, e não uma intuição de natureza
sensível. Ela é um ato da «pura inteligência» e não uma «produção da
imaginação» a partir dos dados sensíveis. Ela «nasce exclusivamente da luz da
razão».

c) Deste modo, os conceitos que são objeto de intuição caraterizam-se


pela sua simplicidade, pela sua clareza, distinção e evidência imediata;
em suma, pela sua absoluta certeza. É por isso que são as ideias de
natureza intuitiva que se constituem como princípios e fundamentos de outros
conhecimentos. A filosofia cartesiana revela-se como o esforço por chegar a
encontrar quais são ou qual é essa intuição intelectual mais originária de todas,
que é capaz de fundar todas as outras e de onde todas as outras recebem a
sua luz e certeza.

d) Assim, não é qualquer objeto que é suscetível de constituir-se como


objeto de uma intuição, mas tão só aqueles que primam pela sua natureza
absolutamente racional. Descartes indica algumas dessas certezas intuitivas:
a consciência da própria existência e do próprio pensamento, as propriedades
das figuras geométricas.

A dedução
Por dedução «entendemos toda a conclusão necessária tirada de outras coisas
conhecidas com certeza».

Descartes sabe que a maior parte das verdades a que o espírito humano tem
acesso é de natureza dedutiva e não de natureza intuitiva. O homem não tem
uma intuição única e total do conjunto das verdades e de todas as
consequências que se podem extrair de um único princípio. O homem não tem
imediatamente presente, com absoluta evidência ao seu espírito e de uma só
vez, toda a série de verdades que constituem o corpo da ciência. Só uma
inteligência infinita e intemporal como a de Deus poderia ter uma tal intuição.

A necessidade que o espírito humano tem de recorrer à dedução para progredir


na ciência é, antes de mais, um sinal inequívoco do seu caráter limitado e do
caráter progressivo do conhecimento humano. Nem todas as verdades são por
si imediatamente evidentes, mas poderão ser absolutamente certas para o
espírito se este as deduzir de princípios evidentes e verdadeiramente
conhecidos, por meio de um movimento contínuo e sem interrupções.

Assim, por duas razões se distingue a dedução da intuição:

a) A evidência das verdades deduzidas não é imediata e atual, mas


mediada por outras verdades primeiras a que há necessidade de recorrer.
Daí que Descartes diga que a certeza destas verdades deduzidas das
primeiras seja, num certo sentido, retirada da memória e não da inteligência,
embora seja a inteligência a reconhecê-la.

b) A dedução processa-se sucessivamente, segundo um movimento


ininterrupto, ao passo que a intuição se dá instantaneamente, como
vimos.

Embora «se possa dizer que a evidência das verdades deduzidas e a certeza
que o espírito delas tem seja, em certo sentido, uma evidência e certeza
diferidas, isso não implica todavia que elas sejam menos verdades do que
aquelas das quais recebem a evidência. Não há lugar, na ciência cartesiana,
para verdades autênticas e verdades a meias. Há uma única cadeia de
verdades que apenas se distinguem entre si pelo facto de umas serem mais
simples e outras mais complexas, pelo facto de as que são mais simples
serem, por isso também mais evidentes e primeiras na apreensão por parte do
espírito e as complexas só sucessivamente virem a ser deduzidas das
primeiras e nesse sentido serem elos sucessivos de uma cadeia contínua como
é a ciência.»

António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do Jogo, pp.
209 -213.
4
As ideias

«Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias das suas obras, mas as
exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do Método e
nas Meditações Metafísicas. Nelas, Descartes mostra que o nosso espírito possui três
tipos de ideias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade:

1. Ideias adventícias (isto é, vindas de fora) ou empíricas: são aquelas que têm origem
nas nossas sensações, perceções, lembranças; são as ideias que nos surgem por
termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem. Por
exemplo, a ideia de árvore, de pássaro, de instrumentos musicais, etc. Não
correspondem, geralmente, à realidade das próprias coisas. Assim, andando à noite
por uma floresta, vejo fantasmas. Quando raia o dia, descubro que eram galhos
retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento. Olho para o céu e vejo, pequeno, o
Sol. Acredito, então, que é menor do que a Terra, até que os astrónomos provem
racionalmente que aquele é muito maior do que esta.

2. Ideias factícias ou da imaginação: são aquelas que criamos mediante a nossa


imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de ideias adventícias
que estão na nossa memória. Por exemplo, cavalo alado, fadas, elfos, duendes,
dragões, super-homem, unicórnio etc. São as fabulações das artes, da literatura, dos
contos infantis, dos mitos, das superstições. Estas ideias não correspondem a nada que
exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós, mesmo quando as
recebemos já prontas de outros que as inventaram.

3. Ideias inatas: são aquelas que não poderiam vir da nossa experiência sensorial
porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir da nossa
fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô-las a partir da nossa
memória.

As ideias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com
elas. Por exemplo, a ideia do infinito (pois não temos qualquer experiência do infinito),
as ideias matemáticas (a matemática pode trabalhar com a ideia de uma figura de mil
lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais tivemos e jamais teremos a perceção de uma
figura de mil lados).
Essas ideias, diz Descartes, são “a marca do Criador” no espírito das criaturas racionais,
e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Como as ideias
inatas são colocadas no nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é,
corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos
julgar quando uma ideia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as ideias factícias
são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós). Ainda segundo Descartes,
as ideias inatas são as mais simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e
sim não compostas de outras ideias). A mais famosa das ideias inatas cartesianas é o
“Penso, logo existo” ou a ideia de Eu. Por serem simples, as ideias inatas são
conhecidas por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional.»
http://afilosofiadacaixapreta. blogspot. pt/2010/08/filosofia-de-rene-descartes. html
5

Críticas a Descartes

Será que ele duvida de tudo?


«Embora a dúvida metódica pareça questionar tudo o que poderia possivelmente
levantar qualquer tipo de dúvidas, tal não se verifica de facto. Descartes confia na
exatidão da sua memória por exemplo, nunca colocando em questão o facto de ter
sonhado no passado ou a convicção de que os seus sentidos o tenham por vezes
enganado. Não questiona, ainda, que os significados que associa a determinadas
palavras sejam os mesmos de que fizera uso anteriormente.
No entanto, não se trata de um problema relevante para o entendimento de
Descartes. A Dúvida Cartesiana continua a constituir uma poderosa forma de
ceticismo, tendo o filósofo resolvido apenas duvidar do que lhe era possível duvidar.
Uma forma mais extrema de ceticismo poderia ter minado por completo a sua
capacidade para a reflexão filosófica.

Crítica ao Cogito
Umas das críticas habitualmente dirigidas ao conceito cartesiano de Cogito, em
particular quando é apresentado sob a forma de «Penso, logo existo», é que este parte
do princípio de que a afirmação geral «todos os pensamentos implicam alguém que os
pense» é verdadeira, hipótese que Descartes nunca tenta estabelecer ou tornar
explícita. Esta crítica baseia-se no pressuposto de que Descartes apresentou a
conclusão «eu sou» como resultado de uma inferência logicamente válida, efetuada
nos seguintes moldes:
Todos os pensamentos implicam alguém que os pense.
Neste momento existem pensamentos.
Logo, quem os pensa tem de existir.
No entanto, esta crítica não afeta o conceito de Cogito tal como ele é formulado nas
Meditações Metafisicas, uma vez que no texto não é em parte alguma sugerido que se
trata de uma inferência lógica. Descartes, pelo contrário, parece estar a advogar a
necessidade de introspeção por parte do leitor ou da leitora e a desafiá-los para
duvidar da verdade da asserção «eu penso, eu existo».

O Círculo Cartesiano
Depois de Descartes ter determinado a veracidade da sua própria existência enquanto
ser pensante por meio do Cogito, a totalidade do seu projeto de reconstrução
encontra-se assente em dois fundamentos: a existência de um Deus benevolente e o
facto de tudo aquilo em que se pode acreditar de forma clara e distinta ser verdade.
Ambos são, em si mesmos, discutíveis.
Contudo, existe uma acusação mais fundamental que é muitas vezes dirigida à
estratégia de Descartes, nomeadamente a de que quando o filósofo argumenta a favor
da existência de Deus confia na noção de ideias claras e distintas e que quando
argumenta a favor da doutrina das ideias claras e distintas pressupõe a existência de
Deus. Por outras palavras, Descartes argumenta em círculo.»

Nigel Warburton, Grandes Livros de Filosofia, Lisboa, Edições 70, pp. 75-76.
6

Alguns aspetos revolucionários da teoria cartesiana

1. UMA NOVA CONCEÇÃO DE CIÊNCIA


«Todas as ciências não são senão o conhecimento humano, que permanece sempre
uno e idêntico, por mais diferentes que sejam os objetos aos quais se aplica.» (R.D.E.)
Esta é uma ideia fundamental do pensamento cartesiano: a ideia da unidade do corpo
das ciências. Como está expresso no texto, esta unidade baseia-se na unidade e
identidade do espírito humano, do sujeito pensante.
Sejam quais forem os objetos ou assuntos a que se aplique, o espírito humano
permanece o mesmo no seu modo de conhecer. Tal como a luz do Sol é única e
idêntica por mais diversos que possam ser os objetos que ilumina, assim o nosso
conhecimento é único e idêntico, seja qual for a diversidade dos objetos que investiga.
Dado que a luz não muda quando mudam os seus objetos, por analogia diremos que o
nosso modo de conhecer e o conhecimento não variam quando mudam os objetos que
consideram.
As várias ciências não são diversas maneiras de conhecer ou diversas luzes sobre
diferentes objetos. São diversas paisagens que uma mesma luz (um mesmo modo de
conhecer) ilumina.
Esta conceção cartesiana de ciência é radicalmente diferente da conceção dominante
(aristotélico-tomista), que diferenciava as ciências conforme os objetos e estabelecia
uma hierarquia entre elas, baseada no grau de inteligibilidade contido nesses objetos.
Toda a ciência, segundo essa conceção, é ciência de um determinado objeto e recebe
as suas caraterísticas desse objeto (lembrar a alegoria da linha em Platão e a
hierarquia das ciências em Aristóteles). A atenção incidia no objeto. A ciência não era
encarada do ponto de vista do sujeito. Assim, era irredutível a diversidade das ciências.

2. UMA NOVA CONCEÇÃO DE MÉTODO


Falar de uma ciência universal ou unitária implica falar de um método universal: os
objetos (as realidades a conhecer) podem variar, mas o modo como conhecemos é
sempre o mesmo, isto é, segundo as regras metodológicas da evidência, da análise, da
síntese, da enumeração e segundo duas operações que são a intuição e a dedução.
O método é nas suas linhas gerais o seguinte:
a) No que respeita ao conhecimento da realidade o movimento é das ideias para as
coisas. Estas só serão objetos de conhecimento certo e evidente se as ideias que delas
formarmos forem claras e distintas, isto é, evidentes. Nunca atribuiremos às coisas
senão o que captamos com evidência nas ideias que delas formamos.
b) Antes de conhecer, devemos estabelecer as condições da verdade. Ou seja, antes de
falarmos das coisas, devemos encontrar a linguagem correta do seu conhecimento.
c) Devemos organizar os conhecimentos, isto é, ordená-los segundo um sistema de
relações de dependência.

3. UMA NOVA CONCEÇÃO DE VERDADE


Para Descartes, importa afirmar a autonomia da razão. Ela não deve perder a sua
unidade submetendo-se aos factos e modelando-se por eles. Deve construir uma
totalidade sistemática, uma unidade dedutiva, submetendo-se apenas às regras que
ela mesma estabelece.
Deste modo a verdade já não será, como se pensava, o acordo do juízo com a coisa
mesma. É aqui evidente uma profunda inversão da atitude do sábio: é a ordem do real
que deve harmonizar-se com ou submeter-se à ordem das razões (da Razão) fundada
na veracidade do Ser absolutamente perfeito: Deus.
Tal como não podemos ler o livro do mundo se não constituirmos a língua que o vai
tornar inteligível, não podemos seguramente conhecer a verdade sobre as coisas sem
antes definirmos o que é a verdade. O conhecimento da verdade, o que ela é, em que
consiste, é a condição prévia que nos tornará capazes de dizer, com segurança, que
conhecemos as coisas.
Como é exposto na 1.ª regra do método, a verdade consiste na clareza e distinção das
ideias. Deixou de ser a adequação ou conformidade do espírito com o real. Passou a
ser uma simples qualidade interna da ideia.
Para Descartes, é esgotar energias e engenho tentar ajustar o pensamento às coisas.
Estas, tal como o livro que por si só, sem a criação de um dicionário, é ilegível, são
ininteligíveis. Tal como a língua que vai decifrar o livro do mundo não está neste, a
verdade não está nas coisas e, logo, é um contrassenso entendê-Ia como adequação
do pensar às coisas.
Sobre esta conceção de verdade é visível a influência dos estudos matemáticos de
Descartes, das suas investigações nesse domínio. Nas matemáticas, a verdade de uma
ideia não é atestada senão pela certeza que nela intuímos, independentemente da
experiência.

4. UMA NOVA CONCEÇÃO DE METAFÍSICA


Quer para Descartes quer para o saber tradicional, a metafísica é a ciência dos
primeiros princípios. A semelhança acaba, contudo, aqui:
Vejamos as diferenças:
a) Para a tradição, a metafísica era a ciência dos primeiros princípios do ser, ao passo
que para Descartes ela é a ciência dos primeiros princípios do conhecimento.
b) O que Descartes considera como primeiros princípios do sistema do saber nunca
antes tinham sido considerados primeiros princípios. São princípios como a existência
do sujeito pensante, a distinção alma-corpo e a existência de Deus.
Dizer «penso logo existo» não é, de modo nenhum, uma novidade mas, dizer que a
proposição «eu penso logo existo» é o primeiro princípio do sistema do saber e que
Deus está na base deste sistema enquanto garantia da objetividade ou imutabilidade
dos conhecimentos que o constituem, é algo de radicalmente novo.
c) O que os filósofos até aí consideraram como primeiros princípios do sistema do saber
eram realidades das quais não tinham um conhecimento claro e distinto e daí a
fragilidade do edifício científico tradicional.
d) Para a filosofia tradicional de inspiração aristotélica e também platónica, a
metafísica era o momento culminante do sistema do saber (era o seu fecho), ao passo
que para Descartes a metafísica era a base do sistema, o seu momento inicial.
e) A tradição aristotélica construía o sistema do saber a partir da experiência o que,
segundo Descartes, punha em causa a autonomia da razão.
5. UMA NOVA CONCEÇÃO DE DEUS
a) Deus como garantia da verdade
Deus é a «raiz da árvore do saber». Se o Cogito, o «Eu penso logo existo», é a primeira
certeza que eu descubro, ela não é contudo fundamento da objetividade e da
imutabilidade do saber. O sujeito pensante constitui conhecimentos, mas a garantia de
que eles não são subjetivos, variáveis, só pode ser dada por Deus. Só o Ser eterno
assegura o que é próprio de um conhecimento científico: ser sempre verdadeiro.
Esta tese era surpreendente para os contemporâneos de Descartes, formados no
espírito da filosofia tomista. Para esta, a afirmação da existência de Deus é posterior à
certeza sobre a existência das coisas sensíveis. Daí o remontar das coisas sensíveis a
Deus como de um efeito a uma causa.
«É um dos traços caraterísticos da filosofia cartesiana a necessidade de fazer apelo a
Deus para garantir as nossas verdades (transformá-las em conhecimentos objetivos). A
filosofia escolástica, à qual se censura o facto de constantemente fazer intervir a
Teologia, não se servia de Deus para chegar ao mundo (nem para fundar a ciência),
mas do mundo para atingir Deus». (Étienne Gilson)
Em Descartes, só o recurso a Deus e à sua veracidade garante a validade da forte
inclinação que sinto em crer na existência das coisas sensíveis e o caráter absoluto das
verdades racionais. A respeito deste último tema, declara que «o ateu não pode ser
geómetra». Entendamos bem esta tese! O ateu pode demonstrar teoremas, e ficar
persuadido tal como aquele que admite Deus, mas não pode, sem a garantia divina,
estar certo de que o teorema permanecerá verdadeiro. O seu saber será pontual e
parcial, a bem dizer fugaz, e não aquilo a que podemos chamar participação na
verdade eterna.

b) Deus como criador das essências e das existências


Neste ponto, Descartes está em desacordo com quase todos os teólogos, sobretudo S.
Tomás. Só Guilherme de Ockham, teólogo franciscano do século XIV, ao que parece
desconhecido de Descartes, ousara dizer que todas as verdades (essências) lógicas,
matemáticas ou morais, são criadas. Por outras palavras, o ato de criação divino não
obedeceu, não foi orientado por verdades ou princípios lógicos e morais. Tudo foi
criado por Deus (este ser vivo, esta verdade matemática, etc.) de forma soberana,
absolutamente livre. Ao decidir que 2 + 2 são 4 e outras verdades, Deus fê-lo
arbitrariamente. A decisão é gratuita, não submetida a nenhuma lei. Assim é porque
Deus assim quis. Deus poderia ter feito com que 2 + 2 não somassem 4, poderia ter
criado outras verdades em vez daquelas que soberanamente incutiu no nosso
entendimento de uma vez para sempre.
«As verdades matemáticas que denominais eternas foram estabelecidas por Deus e
dele dependem inteiramente, tal como o resto das criaturas»
Se fez uma coisa e não outra, a razão disso é-nos incompreensível, pois, apesar de
Deus ser cognoscível, os seus desígnios ou finalidades são, segundo Descartes,
insondáveis.
7
A filosofia cartesiana é racionalista
Todas as ciências são a razão humana em exercício, são objetivações da razão humana
que, por si só, independentemente dos sentidos e de preconceitos, constitui o edifício
do saber. Esta autonomia da razão manifesta-se no facto de ela encontrar em si
própria, não só as chamadas verdades, mas o critério da verdade. Como é evidente no
itinerário metafísico cartesiano, depois de depurada, purificada, a razão descobre na
certeza da sua existência enquanto sujeito puro o modelo da certeza, o critério da
verdade. Só depois a procura do saber se iniciará, consistindo, como se sabe, numa
descoberta cada vez mais profunda de si mesmo por parte do sujeito. É em si mesmo
que o sujeito pensante (a razão) encontra uma «imagem» racional, do mundo e,
previamente, de Deus.
É a exigência de autonomia da razão que determina todo o percurso metafísico de
Descartes. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à posse de si mesma,
libertando-a, na constituição do saber, de dependências exteriores, não racionais. A
realidade é em si mesma racional. Portanto, é a razão, e só ela, que deve conhecê-la.
É em si e por si que a razão descobre Deus como ser perfeito que garante a
objetividade dos seus conhecimentos e é a razão que define em que consiste a
essência da realidade física: só é real o que é racional.
Evidencia-se o tema da autonomia da razão dizendo que o racionalismo cartesiano é
um inatismo. As ideias claras e distintas sobre as coisas são, no fundo, a nossa própria
razão, pois só podem ser tiradas dela. As verdades racionais não provêm do exterior,
caso contrário não seriam racionais mas sim fatuais ou fictícias.
Deste modo, conhecer a verdade é reconhecê-la, atualizar, mediante um método
correto, algo que, enquanto seres racionais, possuímos desde sempre. O próprio
Descartes diz que ao conhecer «não me parece que aprenda algo de novo mas sim que
me recordo do que já sabia antes» (5.ª Meditação).
Por isso as verdades racionais não se ensinam. Só aprendemos a reencontrá-Ias. As
verdades racionais, como as matemáticas, não são recebidas, não têm nenhuma fonte
exterior à razão. O inatismo é a plena afirmação da autonomia da razão: em termos de
conhecimento, o inatismo funda ou justifica a recusa de toda e qualquer autoridade
exterior.
Compreende-se assim que Descartes defenda a constituição do edifício do saber por
um só arquiteto.

Texto de Luís Rodrigues


TEXTOS DE DESCARTES
1

Descartes resume a sua teoria do conhecimento

«Gostaria de expor as razões que servem para provar que os verdadeiros princípios
que permitem alcançar o mais alto grau da sabedoria, que consiste no soberano bem
da vida, são aqueles que expus neste livro; e, para tanto, apenas duas são necessárias:
a primeira, que os princípios sejam muito claros; e a segunda, que deles se possa
deduzir todas as outras coisas. Na verdade apenas existem estas duas condições
exigidas por esses princípios. Ora, posso facilmente provar que são muito claros: em
primeiro lugar pela forma como os encontrei, isto é, rejeitando todas as coisas em que
podia encontrar a mínima oportunidade de duvidar; é certo que aquelas que não
puderam ser rejeitadas por este processo, e desde que passamos a considerá-las, são
as mais evidentes e as mais claras que o espírito humano consegue conhecer. Aquele
que pretende duvidar de tudo não pode no entanto duvidar que existe enquanto
duvida, e que aquele que assim raciocina, não podendo duvidar de si próprio e todavia
duvidando de tudo o resto, não é aquilo a que chamamos corpo, mas sim aquilo a que
chamamos alma ou pensamento. Assim. Considerei o ser ou a existência de tal
pensamento, como o primeiro princípio, do qual deduzi muito claramente os
seguintes: que Deus existe e é o autor de tudo o que existe no mundo e que, sendo a
fonte da verdade, não criou o nosso entendimento de tal maneira que este se possa
enganar no juízo que faz das coisas e das quais tem uma perceção muito clara e muito
distinta. São estes os princípios de que me sirvo no que respeita às coisas imateriais ou
metafísicas, dos quais deduzo, muito claramente os princípios das coisas corporais ou
físicas: que há corpos extensos em comprimento, largura e altura, que tomam diversas
formas e se movem de diversas maneiras. Eis, em poucas palavras, os princípios donde
deduzo a verdade das outras coisas.»

René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa Edições 70, p. 16.

A dúvida como estratégia para procurar uma verdade indubitável

«1. Para examinar a verdade é necessário, pelo menos uma vez na vida, pôr todas as
coisas em dúvida, tanto quanto se puder.
Porque fomos crianças antes de sermos homens, e porque julgámos ora bem ora mal
as coisas que se nos apresentaram aos sentidos quando ainda não tínhamos completo
uso da razão, há vários juízos precipitados que nos impedem agora de alcançar o
conhecimento da verdade; [e de tal maneira nos tornam confiantes que] só
conseguimos libertar-nos deles se tomarmos a iniciativa de duvidar, pelo menos uma
vez na vida, de todas as coisas em que encontrarmos a mínima suspeita de incerteza.
2. Há, também, que considerar como falsas todas as coisas de que se pode duvidar.
Será mesmo muito útil rejeitarmos como falsas todas aquelas coisas em que pudermos
imaginar a mínima dúvida, de modo a que [se descobrirmos algumas que apesar de tal
precaução] nos pareçam claramente verdadeiras, possamos considerar que também
elas são muito certas e as mais fáceis que é possível conhecer.»

René Descartes, Princípios da Filosofia, Edições 70, Lisboa, p. 27.

O conhecimento tem de ser constituído por verdades absolutas

«REGRA II ‒ Importa lidar unicamente com aqueles objetos para cujo conhecimento
certo e indubitável os nossos espíritos parecem ser suficientes.

Toda a ciência é um conhecimento certo e evidente; nem aquele que duvida de muitas
coisas é
mais sábio do que quem nunca pensou nelas; parece até menos douto que este
último, se formou uma opinião errada a respeito de algumas. Por isso, é melhor nunca
estudar do que ocupar-se de objetos de tal modo difíceis que, não podendo distinguir
o verdadeiro do falso, sejamos obrigados a tomar como certo o que é duvidoso,
porque então não há tanta esperança de aumentar a instrução como perigo de a
diminuir. Por conseguinte, mediante esta proposição, rejeitamos todos os
conhecimentos somente prováveis, e declaramos que se deve confiar apenas nas
coisas perfeitamente conhecidas e das quais não se pode duvidar.»

René Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Edições 70, Lisboa, p. 5.

A descoberta de uma verdade indubitável e da que dela imediatamente se deduz

«7. Só poderemos duvidar se existirmos; este é o primeiro conhecimento certo [que


se pode adquirir].
Como rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar ou que imaginamos ser falso,
supomos facilmente que não há Deus, nem Céu, nem Terra, e que não temos corpo.
Mas enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas poderíamos igualmente
supor que não existimos: com efeito, temos tanta repugnância em conceber que
aquele que pensa não existe verdadeiramente ao mesmo tempo que pensa que
[apesar das mais extravagantes suposições] não poderíamos impedir-nos de acreditar
que a conclusão penso, logo existo não seja verdadeira, e por conseguinte a primeira e
a mais certa que se apresenta àquele que conduz os seus pensamentos por ordem.
8. A seguir também se conhece a distinção entre a alma e o corpo.
Também me parece que este é o meio mais adequado para conhecer a natureza da
alma enquanto substância completamente distinta do corpo porque, examinando o
que somos, nós, que pensamos agora estamos persuadidos de que fora do
pensamento não há nada que seja ou exista verdadeiramente, e concebemos
claramente que, para ser, não temos necessidade de extensão, de figura, de estar em
qualquer lugar, nem de outra coisa que se possa atribuir ao corpo, e que existimos
apenas porque pensamos. Por conseguinte, a noção que temos de alma ou de
pensamento precede. a que temos de corpo, e esta é mais certa visto que ainda
duvidamos que que no mundo haja corpos, mas sabemos seguramente que
pensamos.»

René Descartes, Princípios da Filosofia, Edições 70, Lisboa, p. 29.

O Cogito como modelo e critério de verdade

«Agora fecharei os olhos, taparei os ouvidos, porei de parte todos os sentidos,


apagarei também do meu pensamento todas as coisas corpóreas, ou pelo menos,
porque isto é quase impossível, não as tomarei em conta, por inanes e falsas, e,
dialogando só comigo próprio e inspecionando-me mais intimamente, procurarei
tornar-me o meu próprio eu progressivamente mais conhecido e familiar. Eu sou uma
coisa que pensa, quer dizer, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas
coisas, que ignora muitas, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente.
Porque como atrás notei, embora as coisas que sinto ou que imagino não sejam
possivelmente nada fora de mim, todavia aqueles modos de pensar que chamo
sensações e imaginações existem em mim, de facto, enquanto são certos modos de
pensar. E com estas poucas palavras, enumerei tudo o que verdadeiramente sei, ou
pelo menos, tudo aquilo que até agora notei que sabia. Neste momento vou
considerar com mais exatidão se em mim há outros conhecimentos que não tomei em
conta até agora. Estou certo de que sou uma coisa que pensa. Mas sei o que se requer
para que eu tenha a certeza de alguma coisa? […] Parece-me que já posso estatuir
como regra geral que é absolutamente verdadeiro tudo aquilo que compreendo clara e
distintamente.»
René Descartes, Meditações da Filosofia Primeira, 3.ª Meditação
6

Ideias inatas, adventícias e factícias

«O erro principal e mais frequente que se pode descobrir nos juízos consiste em que
afirmo que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes a certas coisas
que estão fora de mim. Se considerasse as próprias ideias como certos modos do meu
pensamento e nãos as referisse a qualquer outra coisa, dificilmente me poderiam
oferecer matéria de erro.
Porém, destas ideias parece-me que umas são inatas, outras adventícias, outras feitas
por mim próprio. Porque que eu compreenda o que é “coisa”, o que é “verdade”, o
que é «pensamento», parece-me que reside na minha própria natureza e que o não
recebo de outra parte. Mas que eu ouça agora um ruído, que veja o Sol, que sinta o
calor das chamas, isto, segundo julguei até agora, procede de certas coisas situadas
fora de mim. E, por último, as Sereias, os Hipogrifos, e seres semelhantes, são
inventados por mim próprio. Mas também posso crer que as ideias são todas
adventícias, ou todas inatas, ou todas factícias, uma vez que ainda não descobri
claramente a sua origem verdadeira.»
René Descartes, Meditações da Filosofia Primeira, 3.ª Meditação.

A intuição e a dedução

«Por intuição entendo, não a convicção flutuante fornecida pelos sentidos ou o juízo
enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito da
mente pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que
compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e
atenta, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão e que, por ser mais
simples, é ainda mais certo do que a dedução, se bem que esta última não possa ser
mal feita pelo homem, como acima observamos. Assim, cada qual pode ver pela
intuição intelectual que existe, que pensa, que um triângulo é delimitado apenas por
três linhas, que a esfera o é apenas por uma superfície, e outras coisas semelhantes,
que são muito mais numerosas do que a maioria observa, porque não se dignam
aplicar a mente a coisas tão fáceis.
Ora, esta evidência e esta certeza da intuição não são apenas exigidas para as simples
enunciações, mas também para quaisquer raciocínios. Seja, por exemplo, esta
consequência: 2 e 2 é igual a 3 mais 1; é preciso ver intuitivamente não só que 2 e 2são
4, e que 3e 1 são igualmente 4,mas, além disso, que destas duas proposições se
conclui necessariamente aquela terceira.
Poderá agora perguntar-se porque é que à intuição juntamos um outro modo de
conhecimento, que se realiza por dedução; por ela entendemos o que se conclui
necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza. Foi imperioso proceder
assim, porque a maior parte das coisas são conhecidas com certeza, embora não sejam
em si evidentes, contanto que sejam deduzidas de princípios verdadeiros, e já
conhecidos, por um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento, que intui
nitidamente cada coisa em particular: eis o único modo de sabermos que o último elo
de uma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo que não a prendamos intuitivamente
num só e mesmo olhar o conjunto dos elos intermédios, de que depende a ligação;
basta que os tenhamos examinado sucessivamente e que nos lembremos que, do
primeiro ao último, cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos.
Distinguimos portanto, aqui, a intuição intelectual da dedução certa pelo facto de que,
nesta, se concebe uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; além disso,
para a dedução não é necessário, como para a intuição, uma evidência atual, mas é
antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Pelo que se pode dizer
que estas proposições, que se concluem imediatamente a partir dos primeiros
princípios, são conhecidas, de um ponto de vista diferente, ora por intuição, ora por
dedução, mas que os primeiros princípios se conhecem somente por intuição, e, pelo
contrário, as conclusões distantes só o podem ser por dedução.
Eis as duas vias mais seguras para chegar à ciência; do lado do espírito não se devem
admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e passíveis de
erro.»

René Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Lisboa, Edições 70, p. 7.

A importância do método

«Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as
observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente
nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o
conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber.
Aqui, há duas observações a fazer: não tomar absolutamente nada de falso por
verdadeiro, e chegar ao conhecimento de tudo. Com efeito, se ignorarmos algo de
quanto podemos saber é apenas porque ou nunca divisamos uma via que nos
conduzisse a tal conhecimento, ou porque caímos no erro oposto. Mas se o método
nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual para não cairmos no erro
contrário à verdade, e do meio de encontrar deduções para chegar ao conhecimento
de tudo, parece-me que nada mais se exige para ele ser completo, já que nenhuma
ciência se pode adquirir a não ser pela intuição intelectual ou pela dedução, como
antes ficou dito.»

René Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Lisboa, Edições 70, p. 8.


9

Deus é o fundamento metafísico da objetividade do conhecimento

«Em que sentido se pode dizer que, se ignorarmos Deus, não podemos ter
conhecimento certo de nenhuma outra coisa.
Mas, quando o pensamento que desta maneira se conhece a si mesmo, não obstante
persistir ainda em duvidar das outras coisas, usa de circunspeção para tentar estender
o seu conhecimento mais além, encontra em si, primeiro, as ideias de várias coisas; e
enquanto as contempla simplesmente e não pode garantir que exista alguma coisa
fora de si semelhante a estas ideias, mas tão pouco o nega, não corre o perigo de se
enganar. Encontra também algumas noções comuns com as quais compõe
demonstrações que o persuadem tão absolutamente que não poderá duvidar da sua
verdade enquanto a isso se aplica. Por exemplo, tem em si as ideias dos números e das
figuras, e conta também entre as suas noções comuns esta: "se somarmos
quantidades iguais a outras quantidades iguais, os totais serão iguais" e muitas outras
tão evidentes como esta, por meio das quais é fácil demonstrar que os três ângulos de
um triângulo são iguais a dois retos, etc. Enquanto percebe estas noções e a ordem
pela qual deduziu esta conclusão ou outras semelhantes, o pensamento está muito
seguro da sua verdade; mas como não poderia pensar sempre nisto com igual atenção,
quando acontece lembrar-se de alguma conclusão sem ter em conta a ordem pela qual
pode ser demonstrada e, no entanto, pensa que o autor do seu ser teria podido criá-lo
de tal natureza que se enganasse em tudo o que lhe parece muito evidente, vê bem
que tem um justo motivo para desconfiar da verdade de tudo aquilo deque não se
apercebe distintamente e que não poderá ter nenhuma ciência certa até conhecer
aquele que o criou.»
Descartes, Princípios da Filosofia, § 13, Lisboa, Guimarães Editores, 1974, p. 22.

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