2019 Tese Efcosta
2019 Tese Efcosta
2019 Tese Efcosta
FORTALEZA
2019
EDSON FERREIRA DA COSTA
FORTALEZA
2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo (a) autor (a)
CDD 100
EDSON FERREIRA DA COSTA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof. Dr. Odílio Alves Aguiar (orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Eduardo Aras
Pontificia Universidad Católica Argentina (UCA)
____________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo César Maia Ferreira Filho
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
_____________________________________________________
Profa. Dra. Viviane Magalhães Pereira
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_____________________________________________________
Prof. Dr. Adauto Lopes da Silva Filho
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Dedico todo o meu esforço e o resultado deste
trabalho a minha mãe, In memoriam, a quem
sou grato por todas as minhas conquistas e pela
trajetória de vida que até então tenho realizado.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi marcado por uma série de desafios que foram sendo superados com ajudas de
pessoas que estiveram muito presentes ao longo de todo o processo, animando-me e dando-me
forças para que eu pudesse me fortalecer frente aos obstáculos que surgiram ao longo de todo
o caminho de elaboração da tese. Manifesto aqui minha gratidão a todas as pessoas que
estiveram comigo durante esses quatro anos e às instituições que me apoiaram ao longo da
pesquisa. A minha eterna gratidão à minha mãe, Maria Ferreira, In memoriam, que com todas
as suas limitações financeiras e culturais me possibilitou na infância um encontro com o mundo
do estudo. Ela representa toda a minha família que reconhece meu constante esforço de
superação em busca de meus objetivos. Aos meus amigos, que em suas particularidades,
ajudaram-me a superar o peso da seriedade frente à produção da tese. Ao meu orientador, Dr.
Odilio Alves Aguiar, que desde o mestrado demonstra confiança em meu trabalho, estando
sempre disponível para atender às minhas demandas. À UFMA, que me possibilitou, através do
colegiado de Licenciatura em Ciências Humanas - LCH, dedicar-me exclusivamente, durante
quatro anos ininterruptos, à minha pesquisa. À UFC que, através do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, possibilitou-me realizar esta formação de Doutorado. À CAPES,
através do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior – PDSE, que financiou o meu estágio
na Universidade de Salamanca/Espanha, experiência crucial para o amadurecimento do meu
trabalho, principalmente por ter sido nesse período que tive contato com um dos mais
reconhecidos especialistas em Ortega, o Dr. Domingo Sánchez. Ao professor Roberto Aras, da
Pontificia Universidad Católica da Argentina - UCA, por sua participação na reestruturação do
meu projeto e por todas as suas orientações ao longo desses anos estudando Ortega. E, por fim,
minha eterna gratidão a Rodrigo Leonardo por sempre acreditar no meu potencial, vibrando e
sofrendo com minhas conquistas e lutas ao longo destes últimos dez anos.
RESUMO
El presente trabajo defiende la concepción de vida como biografía desde una perspectiva
hermenéutica vivencial desarrollada a partir del pensamiento filosófico de José Ortega y Gasset.
Entre los textos que fundamentan los argumentos de la tesis, destacamos aquí "Historia como
Sistema", por ser el escrito que logra aglutinar las categorías centrales de la vida como biografía,
además de traer la narrativa como categoría central en la comprensión de la vida humana. Para
llegar a lo que nos parece ser una propuesta filosófica sobre la vida, hacemos una investigación
para justificar el escenario en que la cuestión del tema abordado pasa a ser gestada por el propio
filósofo. Retomamos la crítica por él hecha a la modernidad, teniendo como punto frágil el
modelo de racionalidad que, ante el fundamento antropológico por él presentado, parece ser
insostenible para dar cuenta de hacer una reflexión coherente con la realidad en discusión. La
razón pura que aparece en la Filosofía moderna en Descartes será la puerta de entrada y de
salida del pensamiento orteguiano, pues su perspectiva filosófica comienza con la crítica a la
razón moderna y de ella se aleja para originalmente presentar un camino que supere ese modelo
de racionalidad. A través de lo que él llamará razón vital e histórica, Ortega cree encontrar un
camino seguro dentro de la propia Filosofía para pensar cuestiones hasta entonces secundarias
a la reflexión filosófica. En verdad, él se propone, en el campo de la Filosofía, al mismo tiempo
que hizo en el campo de la vida: interconectar razón y vida como dos dimensiones inseparables
de lo humano, así como lo son el yo y la circunstancia. Pero hay que encontrar un camino de
comprensión que posibilite fundamentar tal reflexión, capaz de hacer que la temática de la vida
sea comprendida y reconocida como una realidad fundante. Y esa reconocemos que Ortega
encuentra en su propia razón histórica y vivencial, cuando presenta la narrativa como el camino
de comprensión necesario a la dimensión histórico-vivencial de lo humano. Conocer es vital
para Ortega, porque como acontecimiento personal, la vida humana tiene en su centro un sujeto
histórico que carece de ser y de saber sobre sí y sobre todas las demás realidades que tocan su
trayectoria de vida. Es ese querer saber que gesta un proceso de comprensión que llamamos
aquí de hermenéutica vital y que se justifica dentro de una comprensión biográfica de la vida.
1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 8
2 APRESENTAÇÃO DO TEMA........................................................................ 11
2.1 Biografia do tema............................................................................................... 11
2.2 Biografia do autor.............................................................................................. 22
2.2.1 A Filosofia........................................................................................................... 24
2.2.2 O periodismo........................................................................................................ 35
2.2.3 A política.............................................................................................................. 41
3 O CONTEXTO DO VITALISMO MODERNO............................................. 55
3.1 Antecedentes teóricos........................................................................................ 56
3.2 A crítica de Ortega ao vitalismo de Bergson e de Nietzsche............................ 58
3.2.1 A superação do vitalismo em Dilthey.................................................................. 65
3.2.1.1 Crítica de Ortega à Escola Histórica.................................................................... 70
3.3 A busca de Ortega para superar os limites do vitalismo moderno................. 72
3.3.1 Da razão vital à razão histórica........................................................................... 81
4 A VIDA NO SENTIDO BIOGRÁFICO .......................................................... 85
4.1 Fundamentos antropológicos da vida biográfica............................................. 90
4.1.1 A vida como acontecimento................................................................................ 96
4.1.1.1 Entre o tempo cronológico e o tempo vital.......................................................... 97
4.1.2 Entre a dramaticidade e a satisfação.................................................................. 103
4.1.3 Entre a liberdade e a determinação.................................................................... 114
4.1.4 Entre o autêntico e o inautêntico projeto de existência...................................... 121
5 A NARRATIVA COMO MÉTODO HERMENÊUTICO BIOGRÁFICO ... 128
5.1 O saber vital como saber biográfico................................................................. 130
5.2 A narrativa como método da razão vivente..................................................... 134
5.2.1 A razão histórica como narrativa....................................................................... 136
5.3 A razão vital e histórica como hermenêutica narrativa.................................. 140
5.3.1 Narrativa como método biográfico..................................................................... 142
5.3.2 A fala como recurso narrativo da razão histórica................................................ 148
5.4 Goethe como modelo de narrativa biográfica................................................... 151
6 CONCLUSÃO..................................................................................................... 161
REFERÊNCIAS.................................................................................................. 164
8
1 INTRODUÇÃO
Ortega propõe que, na compreensão da vida humana, a razão exerça sua função de
esclarecer de forma contínua as experiências de vida construídas pelos indivíduos através de
suas escolhas. Os temas da vida, da circunstância e da perspectiva estão perfeitamente
conectados entre si. Entretanto, os três implicam uma forma de individualismo que postula um
novo conceito de razão2. Ao propor um modelo de razão, que denomina razão histórica3 e
vivente, Ortega parte de uma análise da vida humana totalmente ancorada na historicidade da
vida que se compreende pela biografia dos indivíduos. Não é uma análise da História no sentido
dos acontecimentos do passado, mas da vida humana, sendo assim a análise é de cunho
ontológico existencial, pois a razão histórica visa analisar o que concretamente o homem faz da
sua própria vida. Não há como desmembrá-la da vida prática, por isso o método da narrativa,
para Ortega, é o mais coerente com esse modelo de razão capaz de pensar a vida em sua
dimensão vivencial.
Na leitura de Bonilla4, a filosofia raciovitalista de Ortega está impregnada de razão
histórica, porque a vida como tema central de sua obra aparece sempre como mudança e, em
sua compreensão, essa é a característica central da História. Por isso, é possível falar da
historicidade da razão vital e da vitalidade da razão histórica, “porque la vida sólo puede ser
comprendida históricamente y la historia sólo puede ser entendida si se analiza desde el punto
de vista de la vida humana”5.
A forma própria da razão histórica de compreender a vida acontece pela narração
dos acontecimentos que marcam toda uma trajetória de vida que não se esgota em um
acontecimento específico. Nela há uma multiplicidade de pontos de vista ou perspectivas,
experiências de vida e metáforas que tem a função de interpretar os objetos para esclarecer o
seu campo de significação dentro da vida que está sendo narrada. A narração origina-se da
condição histórica do homem, sendo ele mesmo capaz de compreender sua vida através do que
é contado pelos acontecimentos de sua existência. Pela narração, o homem é capaz de
compreender a si e o mundo em que vive, por isso, consideramos a razão narrativa como sendo
uma razão hermenêutica, isso porque “la razón histórica, pues, no se propone legislar sobre el
2
Cf. NICOL, 1950, p.310.
3 A primeira vez que Ortega usa essa expressão é em 1910 no texto El hecho de que existan cosas, volume VII,
p.206, nova edição. Em 1912, teoriza sobre a ciência histórica no curso Tendencias actuales de la filosofía e, em
1913, no curso Los problemas de la filosofía de la historia. Porém desenvolve com maior completude e clareza o
conceito de razão histórica e suas categorias em Historia como sistema e En torno a Galileu (Cf. BONILLA,
2013), textos correspondentes a seu momento de maturidade intelectual.
4 Cf. BONILLA, 2013.
5 Cf. BONILLA, 2013.
10
curso de los acontecimientos históricos sino hacer evidente la conexión que existe en la sucesión
de aquellos y, por la cual, toman una dirección y un sentido”6. Essa ideia de legislação da
história ou até mesmo da razão é fundamental, visto que ambas aparecem como dimensões da
vida que ajudam o homem a compreender a sua existência enquanto vida biográfica.
Esse aspecto da biografia da vida humana é a chave deste trabalho visto que, até o
momento, pouco se tem explorado a associação da narrativa com a razão biográfica na obra de
Ortega. A razão biográfica como um desdobramento da razão histórica aparece em nossa análise
como um recurso metodológico e hermenêutico da vida pessoal na compreensão das
experiências de vida e no entendimento da relação temporal dos acontecimentos da existência
que sempre ocorrem em primeira pessoa.
2 APRESENTAÇÃO DO TEMA
7 Ortega, desde a publicação de Meditaciones del Quijote (1914), apresentou interesse intelectual e político pelas
questões históricas e culturais da Espanha, propondo, assim como outros intelectuais, uma mudança na vida
cultural do país espelhada nas ideias iluministas e liberais da Europa do século XX.
8
Cf. ORTEGA Y GASSET, ed. MARIAS, 2010, p. 43-44.
9
Mesmo sofrendo fortes influências de Kant, Husserl, Nietzsche e Dilthey, Ortega não se apresenta como
representante de nenhuma corrente filosófica já existente. Em busca de uma originalidade de pensamento,
12
contemporâneo e, diferentemente do que poderia ocorrer, ele vai às fontes do que tinha de mais
atual naquele momento: a Filosofia alemã.
Além da preocupação circunstancial prática, no campo estritamente teórico, o
pensamento filosófico de Ortega busca encontrar um fundamento que supere a ontologia10
tradicional, especificamente o que aparece em Heidegger11. O conteúdo constitutivo da
realidade que toca todas as demais é marcado por uma dimensão ontológica dinâmica que
escapa a qualquer aspecto de uma realidade fixa e determinada. O que Ortega desenvolve ao
longo do seu pensamento é a concepção de uma realidade que se compreende através de
manifestações distintas do papel da razão enquanto faculdade humana que organiza e capta a
compreensão do sentido das coisas ao aparecer na vida concreta do indivíduo através da
constatação da vida como realidade radical12. A constatação é de que não há uma realidade na
vida humana que esteja separada do sujeito vivente, pois todas as demais realidades só ganham
sentido na relação com a vida humana. É a partir dessa concepção de vida que Ortega
desenvolve sua proposta filosófica do raciovitalismo.
Diagnosticada por Ortega em sua obra História como um sistema (1935), a
sociedade moderna caracteriza-se pela crença excessiva na razão físico-matemática que faz uso
de métodos objetivos para esclarecer os fenômenos da natureza, mas que, no campo dos
desenvolve ao longo de sua trajetória intelectual uma proposta de pensamento que vai ser definida como razão
vital e histórica.
10
Segundo Gracia (2014, p.7247), retomando a interpretação de José Gaos, há em Ortega uma antipatia congênita
pela ontologia. Contudo, será pela ontologia de Heidegger que Ortega percebe o significado da sua ontologia, ao
buscar contrapor-se à teoria do ser pela sua filosofia do sendo. A hegemonia do pensamento de Heidegger desde
os finais de 1927 interfere na postura filosófica de Ortega, que inicia uma disputa intelectual para firmar sua
originalidade filosófica frente às teorias que, de alguma forma, ameaçavam a sua construção intelectual, marcando
desde então uma linguagem filosófica do ser como construção teórica do sujeito vivente e relacional. Para reforçar
o sentimento de competição, os seus melhores discípulos encontravam-se fascinados por Heidegger: de Zubiri a
Gaos. Através de suas publicações e cursos, principalmente a partir de 1929, nota-se uma intensa campanha para
propagar o que já parece ser sua filosofia.
11 A obra de Heidegger a que Ortega faz referência é Ser e Tempo (1927). Ao ler essa obra, reclama o
reconhecimento de ter antecedido Heidegger em algumas ideias, que já teriam sido desenvolvidas por ele em 1914
ao apresentar o conceito de homem circunstanciado na publicação de Meditaciones del Quijote (1914). Porém,
enquanto Heidegger busca fundamentar uma metafísica via existência, Ortega preocupa-se em pensar a vida
mesma em seu desenvolvimento histórico. Segundo Bonilla (2002, p.375), a propagação de Heidegger ter
descoberto a ideia de vida e de existência enojava Ortega por dois motivos que aparecem na nota de seu artigo
Pidiendo un Goethe desde dentro (1932): o entendimento de que havia antecipado esses temas e o sentimento de
que não tinha sido compreendido. Nessa nota, além de criticar Heidegger, ele critica a possibilidade de o filósofo
alemão ter superado o substancialismo. Ortega considera que a ideia de Dasein era um caminho acertado para
superar a crise intelectual do Ocidente. Na leitura de Gracia (2014, p.10202), Ortega faz a crítica de que o tempo
da ontologia já terminara com os gregos e que não poderia, com autenticidade, voltar a passar a ninguém; por isso,
foi uma frivolidade, um capricho acadêmico de Heidegger, querer ressuscitá-la, com o que teria conseguido
somente fazer-se ele mesmo uma bagunça. Porém, mesmo que Ortega seja um crítico convicto de Heidegger, para
alguns estudiosos como Bonilla, o pensamento heideggeriano foi fundamental para Ortega objetivar o seu
pensamento através de uma maior clareza e sistematização do seu pensamento filosófico.
12 A partir de Qué es filosofía? (1929), a filosofia orteguiana segue com o conceito fundamental da vida humana
– a vida como realidade radical pela qual se deve compreender todas as demais (Cf. LASAGA, 2015, p.37).
13
assuntos humanos, apresenta-se frágil por fazer uso de categorias oriundas de uma realidade
natural. Aras13 entende que há dois momentos de Ortega frente à razão: um negativo e outro
positivo. O primeiro revela a postura crítica de Ortega, certamente ainda com forte influência
de suas leituras da crítica de Nietzsche à razão moderna; e o segundo é construtivo, ao conseguir
estruturar uma proposta metodológica de razão capaz de dar conta da vida humana, inicialmente
via razão vital e, em seguida, com clareza e maturidade de seu caminho filosófico, com a
definição da razão histórica e narrativa.
No entender de Medina14, o momento que caracteriza o primeiro Ortega propunha
uma filosofia centrada na diferença entre vida e cultura, pensada com base na categoria central
do sujeito, pensado à maneira kantiana. Compreende-se o homem como cosmopolita capaz de
produzir cultura e de realizar formas ideais válidas para toda a humanidade. Entretanto, Ortega
supera essa visão idealista ao reconhecer que tal proposta de inspiração kantiana se torna
inviável por se fundamentar em um modelo de razão pura, isenta de qualquer influência
sensível. Suay15 complementa, afirmando que Ortega critica o racionalismo da modernidade,
porque este quer contemplar as coisas a partir da tribuna da razão universal que,
pretensiosamente, funcionaria sem supostos nem condições, mas além do homem real. Ortega
acredita que a superação dessa forma de pensar acontece pela integração entre homem e
circunstância, preconcebendo o sujeito constituído em uma relação circunstancial. Integra-se a
essa dialética o perspectivismo oriundo de um pensamento circunstanciado pelo qual o
indivíduo e a circunstância são elementos constitutivos e indissociáveis da realidade radical,
que no entender do filósofo é a vida mesma enquanto acontecimento pessoal e intrasferível.
A crise da razão moderna está diretamente relacionada, para Ortega, aos limites que
essa mesma razão encontra ao ter que lidar principalmente com os assuntos humanos que
seguem uma lógica de compreensão distinta dos objetos da natureza16. O termo razão, do latim
ratio, em sua significação mais ampla, corresponde à faculdade ou condição do homem que
ganha uma série de significações. Razão de estar certo ou de ter uma atitude justa, razão como
motivo, razão como fundamento, razão como contexto, razão como justificação ou explicação,
razão como informação, razão como relação matemática e razão como raciocínio 17. Desses
vários significados que a palavra possibilita, em seu núcleo semântico está a ideia de conexão
e apreensão da realidade. Para Ortega, o verdadeiro sentido da palavra razão consiste em toda
ação intelectual que insere o homem em contato com a sua realidade18, sendo que “en cualquier
caso, la razón es averiguación, indagación y descubrimiento”19.
Frente a essa constatação, a postura de Ortega é de conciliação20 entre vida e razão,
fazendo dela uma “forma ou função da vida”. A questão posta é que esse mesmo modelo de
razão mecanicista serviu para pensar a vida humana via ciências do espírito. O dado é que, para
Ortega, buscar no humano o que se busca na natureza é uma quimera, por não haver no homem
uma substância capaz de garantir uma ontologia eleática, mas dinâmica. Em contraposição às
ciências da natureza, as ciências do espírito buscaram construir métodos para, assim como as
ciências naturais, chegarem a conceitos precisos sobre a realidade humana, porém, para Ortega,
incorreram em um erro clássico: partir da concepção grega de natureza humana, pois “la vida
humana, por lo visto, no es uma cosa, no tiene una naturaleza y, en consecuencia, es preciso
resolverse a pensarla con categorias, con conceptos radicalmente distintos de los que nos
aclaran los fenómenos de la materia”21.
Para Ortega, o grande problema da modernidade a partir de Descartes22 foi
construir uma teoria da racionalidade separada da vida. O mundo da vida parece ser
desqualificável frente ao mundo geométrico ao conceber uma razão superior a toda as demais
realidades e capaz de desvendá-las através de seus variados métodos. Essa forma de pensar
proveniente de uma razão pura adquire em Kant “sua franca fisionomia ao converter-se em
mera ciência do conhecimento”23. Contudo, as ciências do espírito não foram capazes de
construir uma crença nessa mesma razão que por séculos conseguiu estruturar conhecimentos
seguros no campo da natureza. Álvarez24 esclarece a crítica orteguiana ao resgatar o
contrassenso presente em uma razão que gesta a irracionalidade na recusa da compreensão
radical da vida humana ao ter sensibilidade somente para “a perfeição intelectual pura”. A razão
moderna se afirma demasiadamente pura pela exatidão matemática e seu rigor sublime para dar
conta desse espetáculo que é a vida humana, circunstanciada e indeterminada historicamente.
Ortega acusa as ciências do espírito de buscarem compreender o humano dentro
desse modelo de razão, acreditando na possibilidade de apreendê-lo em conceitos objetivos,
assim como faz Kant ao propor uma razão prática pura. Na obra Metafísica dos costumes, Kant
entende que a vontade (pura) é capaz de legislar por uma razão pura ausente da experiência,
capaz de garantir um princípio de universalidade, chegando a afirmar que a metafísica dos
costumes é propriamente a moral pura, na qual nenhuma antropologia (nenhuma condição
empírica de caráter fisiológico ou pragmático) é colocada como fundamento, e que “a Filosofia
moral fundada inteiramente na sua parte pura, aplicada ao homem, fornece-lhe como ser
racional leis a priori” (KANT, 2007, p. 16). Essa razão é capaz de edificar, por exemplo,
“conceitos políticos, assim elaborados, de uma ‘lógica exemplar’, ou seja, de um rigor
intelectual insuperável”25 capaz de afastar o erro. O problema anunciado por Ortega é que, de
Descartes a Kant, a Filosofia pensa a realidade a partir da teoria do conhecimento.
Para Ortega, a Filosofia grega e medieval, diferente da Filosofia moderna, foi uma
ciência do ser e não do conhecer. A pergunta passa do que posso conhecer para como posso
conhecer. A verdade é posta em questão. Seguindo os neokantianos, Ortega atribui a Kant
intenções de uma fundamentação epistemológica das ciências, distanciando-o do interesse em
problematizar a metafisica. Essa postura orteguiana tem sua gênese no pensamento de seu
mestre Hermann Cohen “a saber que el 'giro copernicano' de Kant invirtió la disposición de la
mente antigua ante el objeto” (GARCÍA, 1990, p. 69).
No entanto, a vida humana enquanto realidade radical que acontece em primeira
pessoa carece ser pensada dentro dos limites e ditames de sua historicidade. Entende-se, assim,
que o homem não tem natureza26, mas história27, e esta, é um quehacer constante em meio ao
exercício da liberdade. A expressão na literatura orteguiana caracteriza a vida como
ontologicamente incompleta, trazendo a figura do herói28 para anunciar a luta que o homem
trava para fazer sua própria vida, que, por ser em circunstância, aparece sempre como algo a
ser feito, indefinido.
O conceito de razão vital29, desenvolvido por Ortega para pensar a vida humana na
sua constituição circunstancial, parece ser razoável ao propor uma compreensão do homem
historicamente circunstanciado que não pode ser completamente compreendido por uma razão
pura de herança cartesiana. A modernidade marca a crença no primado de uma razão positivista
que pensa o humano por categorias das ciências naturais. A partir da ideia desenvolvida em
Historia como sistema (1935) de que o homem não tem natureza, mas história, essa tentativa
de compreensão do humano justifica a descrença contemporânea nas ciências do espírito que
não conseguem, com a mesma exatidão das ciências da natureza, clarificar os fenômenos
humanos. O fracasso dessa razão herdeira da razão físico-matemática frente aos assuntos
humanos é a porta de entrada da reflexão filosófica de Ortega ao reconhecer que tal constatação
“deixa o caminho livre para a razão vital e histórica” (ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 35).
O esclarecimento do que vem a ser a vida humana marca o argumento principal no
pensamento filosófico orteguiano. A vida humana enquanto acontecimento pessoal e
intransferível, no qual todas as demais realidades aparecem, faz com que a vida seja
compreendida pelo conteúdo de sua historicidade e não pelos mecanismos naturais que as
circunstâncias biológicas marcam na existência humana por uma “absoluta atualização”. O fato
de a vida humana não possuir uma substância ontológica30 significa que não existe no homem
uma substância capaz de justificar sua vida pessoal, assim a compreensão do humano parece
não passar pelo que ele é, mas sim pelo que ele vive. Ortega estrutura uma concepção de vida
humana partindo da existência histórica concreta do sujeito vivente que conecta circunstância
28
O herói Orteguiano que aparece nas Meditaciones del Quijote (1914) denota o herói que habita em cada
indivíduo, porque, analogamente, cada pessoa é seu pequeno cavaleiro, ou seu modesto cidadão; fazer da sua
realidade uma realidade mais cheia de si mesmo é encher de sentido o próprio eu, porém o eu somente se chama a
si mesmo completando o que germina em seu entorno, entendendo-o, dotando-o de sentido, e essa é a chave de
compreensão antropológica de Ortega. Ortega lê a novela realista do século XIX como um desmoronamento banal
das ilusões do herói, porque o herói aspira pouca coisa. O herói é aquele que busca ser ele mesmo ante sua
circunstância, por isso todos buscam ser esse herói que quer ser, mas que não será nunca, pois ser herói consiste
em ser uno, negar-se a repetir os gestos que o costume, a tradição, ou o que os instintos biológicos lhes forçam a
fazer. Todos levam esse herói que luta com a conveniência e com a sensatez, o prático e o útil, mas que leva, ao
mesmo tempo, escondido em si, o plebeu interior que se burla a si mesmo e carece de prudência, vivendo na
fronteira entre o ridículo e o trágico (Cf. GRACIA, 2014, p. 3115-3143).
29 Para Marías, a razão vital põe o homem em contato com a realidade mesma, ou seja, com sua própria vida. Por
isso, a forma concreta da razão vital é a razão histórica, pois, por ela, a vida ganha sentido pelas experiências.
Nesse sentido, é que parece ser compreensível a definição da razão vital como método feita pelo comentador
orteguiano (Cf. MARÍAS, 1948, p. 58; 88).
30
A filosofia orteguiana não parte de uma perspectiva ontológica ao propor a inversão do ser pelo sendo.
17
e perspectiva31, ou seja, o aqui e agora com que cada um forçosamente lida no cotidiano da sua
vida.
Nicol integra o grupo de especialistas em Ortega que divide o pensamento
raciovitalista em dois períodos32: o primeiro, mais biológico33; e o segundo, mais historicista34.
Os primeiros escritos de Ortega sofrem influência do pensamento de Nietzsche e de Bergson e
os posteriores, publicados a partir de 1924, aproximam-se, em parte, do historicismo presente
nas obras de Dilthey35 e de Heidegger36. Mesmo marcando essa divisão, a vida humana é o tema
central de sua obra e perpassa todos os momentos do seu pensamento filosófico. El tema de
nuestro tiempo (1923) e Las Atlántidas37 (1924) são as duas obras desse primeiro momento
vitalista. Na última obra citada, Ortega ensaia adentrar a perspectiva histórica do seu
pensamento, avançando na sua concepção de razão histórica nos escritos posteriores – Filosofía
de Hegel y la historiología (1928) e Pidiendo un Goethe desde dentro (1932). Contudo, a
maturidade de um pensamento mais historicista advém com a publicação de Historia como
sistema (1935), obra que traz uma abordagem ontológica da história em relação à vida humana.
31 Essa concepção aparece em Verdad y perspectiva 1916) e, na compreensão de Nicol, é muito mais problemática
que resolutiva. Sob clara influência de Nietzsche e Dilthey, Ortega corre o risco de cair em um relativismo ao
inserir tal concepção em um individualismo em que a verdade é proveniente do lugar que o indivíduo ocupa no
mundo. O próprio Dilthey buscou encontrar uma solução para validar uma verdade supraindividual e Ortega, ao
longo de suas obras, parece expor uma preocupação de não cair em um relativismo, ligando ao assunto central de
seu pensamento filosófico, a vida, interações que levam o homem a dialogar com o seu entorno ou circunstância
(Cf. NICOL, 1950, p. 310).
32 Essa divisão na obra de Ortega não é tão clara, pois ele não assume o interesse de situar seu pensamento em
uma linha de pensamento europeu. As ideias que ele adotou foram para apoiar uma posição original frente à
realidade espanhola (Cf. NICOL, 1950, p. 313).
33 A divisão parece ser um pouco problemática, porque, para alguns especialistas em Ortega, seria um erro acusá-
lo de biologista, visto que, se assim fosse, ele compreenderia a vida em sua dimensão histórica natural, reduzindo
o homem à vida animal, porém o que Ortega faz desde as Meditaciones del Quijote (1914) é refletir sobre a vida
em toda a sua amplitude. O que aparece claramente em sua obra é um certo psicologismo, principalmente em El
tema de nuestro tiempo (1923), mas ele logo supera tal perspectiva ao fazer uma revisão de interpretação do
conceito de vida nas obras posteriores. A vida deve ser pensada a partir dela mesma e não de uma estrutura ou
categoria específica, mas tudo deve ser explicado e compreendido a partir da vida que é temporal, histórica e
circunstancial, visto que a vida é uma realidade em processo, que está em constante devir, bem diferente do que
concebe o idealismo hegeliano em que a história é uma manifestação ordenada do Espírito absoluto (Cf. LASAGA,
2015).
34 A história é um tema recorrente nos escritos de Ortega desde a sua formação acadêmica. Ao doutorar-se em
Filosofia, defende a tese intitulada Los terrores del año mil. Crítica de una leyenda (1904). Sob influência do
pensamento neokantiano, a história estará ligada ao tema da cultura, compreendendo-a como reconstrução
orgânica das variações de um sujeito, da cultura ou do conjunto de atividades espirituais características dos
homens. Na maturidade do seu pensamento, compreende a história como resposta aos problemas vitais situados
circunstancialmente por cada homem e, por essa razão, a cultura deve ser analisada historicamente como parte que
integra a vida individual e interindividual e não como verdadeira substância da história (Cf. BONILLA, 2013).
35 Na obra Mundo histórico, Dilthey diz ser a hermenêutica uma técnica para a compreensão das manifestações da
vida. Em Las Atlántidas (1914), Ortega escreve algo parecido ao afirmar que a história não consiste senão uma
hermenêutica ou interpretação das vidas (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. III).
36 Na obra Pidiendo un Goethe desde dentro (1932), Ortega reivindica conceitos de Heidegger que acredita ter
publicado treze anos antes da publicação de O ser e o tempo (1927) (Cf. NICOL, 1950, p. 320).
37
Essa é a primeira defesa escrita da razão histórica como núcleo do seu sistema filosófico (Cf. GRACIA, 2014,
p. 5874).
18
38
Cf. NICOL, 1950, p. 310.
39 A primeira vez que Ortega usa essa expressão é em 1910, no texto El hecho de que existan cosas, volume VII,
p.206, nova edição. Em 1912, teoriza sobre a ciência histórica no curso Tendencias actuales de la filosofía e, em
1913, com o curso Los problemas de la filosofía de la historia. Porém, desenvolve com maior amplitude e clareza
seu pensamento através dos conceitos de razão, história e narrativa em Historia como sistema (1935) e En torno a
Galileu (1933), textos correspondentes a seu momento de maturidade intelectual (Cf. BONILLA, 2013).
40 ARAS, 2008, p. 203.
19
essa mesma vida tem que ser pensada com base em sua historicidade. Nesse caso, as categorias
de vida e de história dialogam pelo conector da existência que é a vida humana.
Em Historia como sistema (1935), Ortega chega a afirmar que a razão vital é
também razão histórica, pois a vida que é compreendida só pode ser compreendida em sua
dimensão histórica, pois não há nada mais legítimo no homem do que suas experiências de vida
e, ao narrá-las, o homem passa a compreender sua vida com base nos acontecimentos que
marcam sua existência, tendo como único limite o seu passado. Entender o passado como único
limite significa que não há no homem uma natureza determinante, nem uma categoria
ontológica absoluta que oriente sua existência, o que o homem tem de concreto é sua vida, que
demanda um esforço pessoal para sua realização e compreensão. Assim, o homem é sempre um
peregrino, um emigrante ontológico, que carece de uma substancialidade, tendo como conteúdo
exclusivo de sua existência a sua história de vida (SEVILLA, 2012, p. 141).
Ao narrar uma vida, o homem não insere nessa narrativa somente elementos
individuais, mas também as ideias e crenças que marcam as interferências coletivas na vida
individual, porque a história não é um fato isolado, mas um sistema das experiências humanas
feitas pelo próprio homem em um movimento dialético com a circunstância que é um horizonte
de latência em que as experiências se fazem presentes. Para Ortega, ao compreender a vida na
sua dimensão pessoal e intransferível, é preciso pensar conceitos que não sejam os mesmos já
pensados pelos gregos de herança eleática como unidade, invariabilidade e permanência, pois
a vida deve ser pensada por novos conceitos, como experiência de vida, esforço e trasmundo,
entre outros46.
O tema da biografia47 aparece em Ortega relacionado diretamente à fase histórica
da Filosofia da razão vivente, quando, na prática, passa a se interessar por uma escrita que parte
de uma compreensão da vida como acontecimento pessoal. Os textos sobre Goethe, Velázquez
e Goya manifestam uma forma de pensar que busca compreender como cada indivíduo vai
realizando a sua trajetória de vida, indo além de uma simples preocupação em explanar ideias
de natureza conceitual, ou de manifestar formas de atuação profissional.
46
Cf. LASAGA, 2015.
47
Já em 1912, em uma carta a Frederico Onís, Ortega faz referência à biografia no plano pessoal como reconstrução
orgânica das variações do sujeito (Cf. BONILLA, 2002, p. 166). No entanto, nesse período, Ortega ainda não havia
desenvolvido a sua teoria da razão histórica e o tema da biografia aparecia muito mais como referência a um
aspecto da história pessoal, pois não tinha a pretensão de apresentá-la como categoria central do seu conceito de
vida humana. É em Pidiendo un Goethe desde dentro (1932) que Ortega apresenta claramente o tema da biografia
que, diretamente relacionado à sua perspectiva histórica, segue um ciclo comum à vida humana: infância, auge e
declínio. Isso para afirmar que existem etapas do pensamento e que ao se deparar com determinados temas, é
possível buscar a sua genealogia.
21
48
KUJAWSKI, 1994.
22
de nuestro tiempo (1923). Nessa obra, Ortega busca submeter, sem muita originalidade49, a
razão dentro do desenvolvimento biológico da vida. Compreendê-la implica o reconhecimento
do entorno do sujeito que, imbuído em diversos mundos, constitui-se com eles. Superar
qualquer forma de redução da vida é o caminho encontrado no seguimento do pensamento de
Ortega para manter uma coerência com a realidade humana. “El procedimiento de la razón vital
ya no será una mera dialéctica conceptual, utópica y ucrónica, sino un acompañamiento de la
vida en el que la razón se dirige hacia lo concreto, lo mudable y lo contingente”.50 A razão põe-
se a compreender não o que há de fixo e determinado, mas as variações que acontecem na
própria vida, pois até mesmo a razão deve ser exercitada, uma vez que faz parte da dimensão
da vida e não funciona dela dissociada, como se fosse uma realidade em si mesma, assim como
não o é a história, a cultura e, muito menos, o indivíduo existente.
Justifica-se, assim, a vida como objeto fundamental no entendimento da integração
indivíduo e realidade. Nas Meditaciones del Quijote (1914), o homem circunstanciado é o
primeiro informe de que a razão carece de elementos concretos, pois a salvação da vida passa
pelo reconhecimento e pela compreensão do entorno do eu. Casagrande 51 escreve que a razão
pura sufoca a vida, quando não leva em conta o fato de que existe uma conexão ampla entre as
coisas, o que não se compreende pelo cálculo puro. Viver é estar situado em uma circunstância
e esta carece de sentido. Com a razão vital histórica, Ortega não só pretende fazer
compreensíveis a história e a realidade humana, mas, prioritariamente, dar o verdadeiro sentido
da razão para a vida, enaltecendo-a em sua função iluminadora do viver.
49 Essa afirmação fundamenta-se no que os críticos falam a respeito do que Ortega escreve na obra, visto que não
há nada de novo em sua crítica, pois o texto parece ser carregado do que Nietzsche já fizera ao criticar o primado
do racionalismo moderno frente ao esquecimento da dimensão espontânea da vida.
50 ARAS, 2008, p. 201.
51
CASAGRANDE, 2002.
23
(2014), tal obra é a mais detalhada e metódica. Porém, essa biografia não esgota a vida de
Ortega em seus detalhes, pois, como o próprio Javier afirma52, uma biografia, assim como toda
história, é uma interpretação, uma invenção sobre a base de uns certos fatos.
Buscaremos, então, fazer uma apresentação narrativa dos fatos em vista de ser fiel
ao método que procuramos defender neste trabalho, que é o da narrativa como método
biográfico. Contudo, não nos propomos a discorrer sobre todos os aspectos da história de vida
de Ortega, mas a elucidar o que, de certa forma, nos ajuda a contextualizar o universo histórico
circunstancial das ideias que são trabalhadas ao longo desta tese. Didaticamente, estruturamos
este tópico com base nos três aspectos vivenciais que marcam a história de vida de Ortega: sua
vocação para a escrita elucidada no periodismo; sua entrega ao ofício intelectual pela Filosofia;
e seu comprometimento social através de sua vida política.
O universo intelectual de Ortega sofre grande influência de seu pai como periodista,
no sentido de encontrar na cultura familiar uma atenção primordial para a produção de ideias e,
ao mesmo tempo, um universo de trabalho que lida diretamente com a vida pública, coisa que
estará presente em Ortega como periodista, professor, palestrante e político. O El Imparcial
(1867), um dos jornais de maior circulação na Espanha de sua época, será um veículo, entre
tantos outros, que transmitirá as ideias de Ortega53. O pai de Ortega, Ortega Munilla54, via no
editorial uma ferramenta fundamental para a restauração espanhola, agregando por meio de sua
prática periodista uma série de intelectuais e políticos de sua época, chegando a acreditar na
possibilidade de formar ou derrubar um governo, tamanha era a sua crença na força das ideias
e na credibilidade que se tinha no que era produzido pelo El Imparcial. Além dessa influência
periodista, Ortega encontra em sua infância um ambiente familiar favorável ao reconhecimento
da sua vocação intelectual através do material bibliográfico que dispunha na biblioteca da
família com obras de clássicos catalãs e franceses, assim como de filósofos como Kant,
Schopenhauer e Nietzsche, entre outros.
Desde muito cedo, seus mestres parecem reconhecer em Ortega uma mente aberta
ao universo intelectual, demonstrando precocemente55 uma afeição pela leitura. Quando estava
no internato dos jesuítas, Colégio San Estanislao de Kotska, em Málaga, sempre que recebia a
52
Retirada da reportagem sobre a fala de Javier Zamora, Como se escribe una vida, em ocasião do evento em Soria
(Cf. Diario de Sória, miércules, 18 de Julio de 2018, p. 26, Caderno Cultura).
53
Em 1913, frustrado com a postura do jornal da família, Ortega rompe com o periódico devido a publicações
contra o Partido Liberal (Cf. GRACIA, 2014, p. 2903).
54
Nascido na zona periférica de Madrid, dramaturgo e novelista, casa-se com Dolores Gasset, filha do dono do El
Imparcial (Cf. GRACIA, 2014, p. 254).
55
Sabiam de sua excepcionalidade todos os que deviam saber: seus pais, professores e colegas (Cf. GRACIA,
2014, p. 185).
24
visita dos pais, pedia que levassem livros de clássicos da literatura nacional e universal, pois as
leituras disponibilizadas pelos jesuítas pareciam não lhe despertar grande admiração, assim
como a prática pedagógica por eles desenvolvida, que passou a ser motivo de crítica por parte
de Ortega ao considerar o ensino dos jesuítas carente de conteúdo filosófico, de ciência e de
fraternidade humana. O interesse de Ortega pela leitura fez com que, muito cedo, ele
frequentasse as livrarias e as bibliotecas de Madrid, nutrindo uma dimensão da sua vocação
através da leitura, a ponto de gastar, no início de sua vida acadêmica, praticamente todo o seu
dinheiro com a compra de livros.
O interesse pela vida intelectual provavelmente levou Ortega para outro ambiente
profissional que, a princípio, não fora planejado por seus pais. Ortega chegou a cursar Direito56,
mas abandonou o curso para cursar Filosofia57 e Letras na Universidad Central de Madrid,
dando sequência a um interesse que fora despertado no período colegial, quando teve contato
com a Filosofia pelas obras de Nietzsche. Essa admiração juvenil estará presente no início da
sua vida profissional, quando o vitalismo terá uma certa influência no seu modo de pensar a
vida humana.
Considerando o que vamos desenvolver ao longo da tese, destacamos três aspectos
da biografia de Ortega, a filosofia, o periodismo e a política, como recursos que nos ajudam a
conhecer um pouco mais o autor e, principalmente, a entender o caminho que ele fez para pensar
uma filosofia centrada na vida prática do indivíduo. Sob o tema da vocação, faremos uma breve
apresentação da vida de Ortega, buscando identificar como ele viveu determinados
acontecimentos e de que forma eles se configuram na sua história de vida.
2.2.1 A Filosofia
56
Cursou com os jesuítas no Internato de Estudos Superiores. Administrativamente, a Instituição dependia da
Universidade de Salamanca (Cf. GRACIA, 2014, p. 334).
57
Entre 1899 e 1900, Ortega abandona o curso de Direto, concluindo o curso de Filosofia no ano de 1902 e, em
1904, defende sua tese de doutorado intitulada Nota sobre los legendarios trabajos del año mil (Cf. MUNILLA,
2002, p. 40).
58
Ortega viaja pela primeira vez sem dominar o alemão e com pouco dinheiro, dispondo de uma bolsa de estudo
que pouco dava para se manter. Além da dificuldade com a língua e com questões financeiras, Ortega revela não
encontrar em Leipzig um ambiente que lhe despertasse interesse pela cidade, passando parte do seu tempo
estudando em sua habitação, vivendo essa primeira experiência de fevereiro a outubro de 1905. Nesse primeiro
momento, seu interesse transitou pela literatura – Maurice Barrés e Chateubriand –, pela ciência natural – Darwin
–, pela filosofia de Platão, pela literatura de Lope de Veja e Cervantes e pelas aulas de Psicologia de Wundt e as
de grego de Hernan Mirsch (BONILLA, 2002, p. 46).
25
sua trajetória de vida pessoal e profissional ao se deparar com a possibilidade de se tornar uma
referência no campo da Filosofia59. Foi a partir daí que Ortega teve a oportunidade de conhecer
e conviver com ícones da Filosofia que permitiram a ele uma nova descoberta: a possibilidade
de pensar uma Filosofia a partir da realidade da Espanha. Essa descoberta de Ortega se torna
pública com Meditaciones del Quijote60 (1914), que é um marco no seu pensamento.
Em 1906, movido por uma convicção intelectual, Ortega retorna à Alemanha, agora
para a cidade de Marburgo61, para estudar a pré-história do criticismo filosófico. Nesse período,
ele tem contanto com duas grandes referências do neokantismo: Hermman Cohen62 e Paul
Natorp63, que se tornaram conhecidos principalmente através da revista Kant-Studien, fundada
em 1896 por Hans Vaihinger. A conhecida Escola de Marburgo, que tinha como grande
representante Cohen, tomava a consciência como elemento central da epistemologia,
concebendo que se podia alcançar um idealismo objetivo na realidade dos fenômenos para a
consciência, tendo como propósito fundamental encontrar a lógica do conhecimento puro e que
se estendia também para uma concepção ética da vontade pura, tomando como base os
conceitos kantianos de dever e de imperativo categórico. Por sua vez, Natorp não se inclinava
tanto para a epistemologia, mas para o criticismo prático a partir das modernas ciências do
psicologismo e da sociologia, tendo interesse pela pedagogia social sob influência de Pestalozzi.
É com Nartorp que Ortega encontra uma maior afinidade por se interessar pelo pensamento
mais prático.
Esse pensamento se aplica à análise que Ortega faz da Espanha no sentido de que a
ciência não aparece como necessária do ponto de vista material, senão para suprir uma
59
Nesse período, Ortega visualizava também a Filologia e o Periodismo como oportunidades de carreira
profissional.
60
Por volta de 1910, Ortega demonstra um grande interesse pelas ideias de Simmel, o que, de certa forma, vai
influenciar suas ideias sobre a vida que aparecem na publicação de 1914. No entanto, a reflexão entre o yo e a
circunstância que aparece nas Meditaciones já estava presente em 1906 no seu artigo “Pedagogia del paisaje”.
61
Aqui Ortega tem o contato com o neokantismo e começa uma jornada que durará 10 anos de interesse pelo
pensamento kantiano que se inicia com os seus estudos em Berlin em 1906. Nesse período, ele passa a se dedicar
aos estudos do idealismo platônico e kantiano, chegando a afirmar em carta a seu pai que o mundo para si é o
mundo das ideias e a matemática é a máxima expressão desse mundo, tamanha influência exerciam esses autores
sobre o jovem filósofo. O interesse por Platão e por Kant se justifica pelo desejo de inserir na Espanha uma força
de pensar que se contrapunha à Espanha inimiga da cultura e da humanidade ao abominar a propagação de um
pensamento idealista que, de alguma forma, contrariasse as ideias impregnadas na consciência das pessoas pelo
catolicismo exacerbado. Contudo, Ortega é também, em parte, crítico à disciplina alemã que segundo ele inutilizou
a espontaneidade, chegando a uma espécie de beataria do idealismo e do liberalismo (BONILLA, 2002, p. 64-65).
Muitos intelectuais começam a estudar o kantismo e o neokantismo sob influência de Ortega, sendo que, em 1911,
muitos dos que estavam fazendo esses estudos, o faziam por sua recomendação, destacando-se entre eles Cejador,
Maeztu e Unamuno.
62
Ortega segue com Cohen, de outubro a março de 1907, com os cursos: “Sistema kantiano”, “Ética e estética” e
um “Seminario de Filosofia”.
63
Estuda com ele “Psicologia general” e “Pedagogia general”. De Natorp, aprende grande parte de sua crítica à
fenomenologia de Husserl (Cf. ORRINGER, 1979, p. 24).
26
necessidade de homens das ciências no intuito de, posteriormente, criar uma cultura científica.
Para Ortega, o grande problema não estava no povo, mas principalmente nos escritores, nos
políticos e nos catedráticos, pois não faziam ciência rigorosa. Além disso, para Ortega, Kant é
a referência desse rigor que supõe domínio da crítica da razão pura, crítica da razão prática e
metafísica dos costumes. Na prática, o que faltava na Espanha eram professores qualificados,
bibliotecas, bolsas de estudo, laboratórios, serviços de arquivos e proteção de publicações.
Contudo, existia um grupo de jovens dispostos a mudar essa realidade, demonstrando interesse
pela dedicação aos estudos, dentre os quais se destaca a figura do jovem Ramón Pérez de Ayala.
Mesmo sob grande influência da Escola de Leipzig e de Marburgo, o que Ortega
fez, mesmo em contato com o neokantismo, foi traçar, aos poucos, um caminho que lhe permitiu
ser reconhecido como um dos maiores pensadores do mundo contemporâneo, tornando-se
grande referência em Filosofia fora do binômio Alemanha e França. Porém não é possível
entender esse caminho sem considerar o que o mundo germânico representou para Ortega,
principalmente porque ele mesmo reconheceu não saber Filosofia antes de estudar na
Alemanha.
Assim como Ortega, ao estudar de forma aprofundada autores como Kant e Dilthey,
muitos de sua geração tiveram o privilégio de estudar diretamente com teóricos que eram
referências no conhecimento filosófico, principalmente na Alemanha cuja Filosofia dispunha
de prestígio por toda a Europa devido ao idealismo e ao positivismo, ideário que foi importado
para a Espanha pelos kraussistas. É interessante ressaltar também que, além do prestígio
intelectual, a Alemanha despontava na Europa por seu progresso tecnológico e pela ciência
experimental (BONILLA, 2002, p. 52-53).
Durante sua permanência na Alemanha, Ortega demonstrou grande interesse em
estudar o pensamento kantiano e aprofundou seus conhecimentos sobre Kant sob a influência
das aulas de Riehl e de Georg Simmel, por meio dos quais se familiarizou com a crítica da razão
pura; já Cohen e Natorp foram seus dois grandes mestres do neokantismo. Contudo, ainda que
tenha sido influenciado por essa escola alemã e tenha se tornado uma das grandes referências
no domínio das ideias kantianas, seu interesse por Kant não fez de Ortega um representante do
kantismo, nem do neokantismo na Espanha. Na verdade, contrariando o que se poderia esperar,
ele volta à Espanha sem tornar-se um representante do idealismo alemão e, ao longo dos seus
trabalhos, progressivamente, adota uma postura crítica a essa corrente filosófica.
Sua estadia na Alemanha, além de proporcionar seu enriquecimento intelectual,
fortaleceu sua consciência das limitações do seu país, sendo exemplos delas a baixa qualidade
27
intelectual e as escassas bibliotecas64 de alto nível científico e filosófico. A luta contra essa
realidade nacional uniu Ortega a um grupo de intelectuais que compartilhava o propósito de
articular mudanças estruturais na sociedade espanhola. Mas, como o próprio Ortega reconhece,
uma vida é sempre marcada por inúmeras contradições que se compreendem na biografia. A
vida de Ortega não foi diferente, mas será principalmente na política que perceberemos
especificamente algumas contradições na sua vida social.
Ortega inicia sua vida profissional na academia como professor de Psicologia,
Lógica e Ética na Escola Superior do Magistério de Madrid em 1909 e, em 1910, assume a
cátedra de Metafísica de Nicolás Salmerón, falecido dois anos antes. Ele começa, nesse período,
a ser convidado para ministrar conferências, dentre as quais a ocorrida em outubro desse ano
no Teatro Ateneo, intitulada “Los problemas nacionales e juventude”, que é considerada uma
das maiores conferências ministradas por ele. Nessa conferência, ele defende o progresso da
Espanha via revolução socialista com a reconstrução liberal pela Pedagogia, mas sem revolução
armada. Ortega defendia as ideias socialistas, mas não compartilhava do marxismo, nem
militava pelo partido, por não simpatizar com os argumentos da luta de classes e não acreditar
que a igualdade social seria possível por meio do viés econômico. Para ele, o socialismo era um
meio de se chegar à ciência, à cultura e à moral65. Por isso, sua aproximação com o partido
radical liberal é somente ideológica, principalmente por defender também a necessidade de uma
mudança cultural, posto que, para Ortega, os meios pelos quais essa mudança poderia se fazer
não eram aqueles defendidos pelos ativistas socialistas.
Ortega vê na educação o caminho para a revolução cultural, para ele, tão necessária
à Espanha naquele momento. A atuação de Ortega como professor de Filosofia será
fundamental no exercício de sua vocação pedagógica por influenciar vários jovens 66 no
comprometimento com a formação de uma nova cultura de pensamento na Espanha, passando
a ser visto por eles como referência de uma possível mudança na vida intelectual e política do
país. Essa expectativa será, de certa forma, frustrada em alguns momentos pelas circunstâncias
pessoais67 e políticas de Ortega.
64
Aos vinte e poucos anos, Ortega sonhava em superar o tradicional subjetivismo espanhol e encontrou no
idealismo ético e objetivo, mesclado a um socialismo pedagógico, a possibilidade de alcançar uma cultura de
valores universais baseada na ciência. Esse encantamento leva Ortega a propor ao seu pai que a Sociedade Editorial
da Espanha – Trust de la Prensa –, organizasse uma conferência com cientistas espanhóis de alto nível e começasse
a formar uma Biblioteca de Cultura, pois ele mesmo faria as traduções (Cf. BONILLA, 2002, p. 60-61).
65
Cf. BONILLA, 2002, p. 96.
66
Alguns nomes se destacam do ciclo de alunos que passaram a demonstrar admiração e interesse pelas ideias de
Ortega: Julián Marías, María Zambrano e Xavier Zubiri, entre outros.
67
Algumas vezes, a produção intelectual e sua atuação como articulador da mudança social da Espanha ficaram
comprometidas por problemas de saúde, tendo sido acometido por um câncer e passado por algumas crises de
depressão. O exílio também foi bastante agressivo aos anseios de Ortega, separando-o de seus discípulos, amigos
28
Ortega retorna à Alemanha em janeiro de 1911 com uma outra beca68, a da Junta
para Ampliação dos Estudos e Investigações Científicas, com o objetivo de aprofundar seus
conhecimentos sobre Kant. Nesse período, vai para Marburgo69, onde passa a ler com Hartmann
a obra de Lask, Die logik der philosophie die kategorienlehre, em que rompe com a dualidade
sujeito-objeto da epistemologia kantiana. Nesse momento, Hartmann procura romper com o
neokantismo de Cohen e encontra em Leibniz a saída para essa ruptura. Sob sua influência,
Ortega passa a ler Hegel, mas o considera menos refinado que Kant. Ademais, Ortega,
juntamente com outros colegas, começava a se interessar também pela fenomenologia de
Husserl, que publicou, em 1911, na Revista Logos, o artigo “La filosofia como ciencia estricta”.
Com Lask, ele tinha em comum a busca por uma lógica da lógica, no intuito de criar um sistema
capaz de alcançar verdades no campo da Filosofia.
Ainda em 1911, segundo Bonilla (2002) Ortega ministrou cursos sobre
fenomenologia em Gotinga, publicando dois anos depois Las ideas relativas a una
fenomenologia pura, em que apresenta o conceito de epokhé. Nesse momento, sua filosofia
estava fundamentada na consciência que tinha em conta a atitude apriorística – na qual se dão
as ideias – frente à atitude natural. As ideias se dão a priori e, por essa razão, a fenomenologia
não se fundamenta no conhecimento empírico. Essa dimensão idealista da fenomenologia
desperta por muito pouco tempo o interesse de Ortega, que passa a se contrapor, em sua forma
de pensar, ao que aparece na fenomenologia, pelo erro de elevar a consciência ao plano da
realidade. Em 1915, ele prepara um curso que demonstra a influência da fenomenologia sobre
o seu pensamento, “Sistema de Psicologia”, no qual buscava construir um sistema psicológico
diferente do desenvolvido pela Psicologia fisiológica. Nesse período, encontrava-se próximo às
ideias de Husserl e Dilthey e começava a vislumbrar a sua teoria da razão vital, a qual
considerava ser uma ciência fenomenológica descritiva, mas que superava o método
fenomenológico em alguns aspectos, tais como compreender o fenômeno como distinto do real
e o perspectivismo das coisas, entre outros.
Além de demonstrar um certo interesse pela fenomenologia nesse período, Ortega
passa a se interessar pela Psicanálise freudiana, mas não se sente plenamente convencido,
chegando a considerar a Psicanálise muito mais uma “justificação científica de confessionário”,
e família e inibindo a sua produção intelectual na Espanha devido às perseguições do Regime de Franco às suas
ideias liberais. Porém, a maior crítica que se voltava contra Ortega durante o franquismo foi o fato de ele não ser
católico, sendo que o regime era clerical ultraortodoxo.
68
O pedido tinha sido feito em 1909, mas devido à paralisação das políticas educativas por parte do Governo
Maura, só lhe foi concedido no ano seguinte após um novo pedido.
69
Esse retorno de Ortega à Alemanha marca o que Bonilla (2002) vai considerar como o caminho de sua
maturidade.
29
70
Javier de San Martin (1998, p. 12) afirma que Meditaciones del Quijote (1914) é um excelente ensaio de Filosofia
da cultura, porém não cultura como resultado da reflexão, senão da cultura em que os homens vivem, na que o
mundo se apresenta em um jogo de presença e latência, da realidade efetiva e sensorial, cultura no sentido de ver
o que é a vida humana.
71
A contraposição a Hegel aparece em Ortega frente a temas como história, dialética e limitação. Contudo, para
Sánchez (2000, p. 37), a relação entre Ortega e Hegel se mostrará bem ambígua, pois aparecerão temas e expressões
hegelianas que Ortega parece não suportar, ainda que pareça sentir necessidade de ler Hegel. Entre 1928 e 1931,
Ortega publica artigos referentes a Hegel: “La filosofía de la historia de Hegel y la historiologia”, “Hegel y
América” e “En el centenario de Hegel”.
72
Destacamos a palavra em maiúscula, porque Ortega está discutindo a Política no sentido pleno do termo, e não
enquanto atividade partidária, mesmo que em sua trajetória se façam presentes algumas atuações como
representante político. Entretanto, o que determina mesmo sua participação é sua ação como articulador de ideias
que influenciarão momentos importantes na história política da Espanha.
73
Em agosto de 1917, Ortega escreve o segundo tomo de El Espectador, no qual se evidencia o seu desejo de
seguir sua vocação através da frase de Aristóteles “seamos con nuestras vidas como arqueiros que tienen un
blanco”, resultado ainda da sua estadia em sua primeira viagem à Argentina no ano anterior. A partir desse
momento, o folhetim se torna espanhol e argentino e sofre influência da biologia/Uexküll ao substituir o yo pelo
termo “nuestra vida”, em uma referência ao diálogo entre o eu e a paisagem.
74
Ortega encontra no pensamento de Leibniz o apoio para superar o ceticismo e o racionalismo, ao extrair dele a
ideia do indivíduo como necessário e da realidade como manifestação em perspectivas individuais. Também é da
ideia leibniziana de substância como mudança ativa que Ortega vai assegurar sua intuição da razão vital (Cf.
BONILLA, 2002, p. 245).
30
Argentina, onde viveu uma das experiências mais frutíferas de sua vida profissional como
filósofo, escritor e orador75.
Foi na Argentina, certamente, quase em proporção maior que na Espanha, que
Ortega ganhou um enorme prestígio frente às autoridades políticas, aos intelectuais e aos
apreciadores da cultura. A convite da Instituição Cultural Espanhola em Buenos Aires, segue
para a capital argentina em 07 de julho de 1916 para ministrar um curso de nove lições na
Faculdade de Filosofia de Buenos Aires sobre os então atuais problemas da Filosofia, um
seminário sobre La Crítica de la Razón Pura e duas conferências sobre a estética das
Meditaciones del Quijote. Foi nessa viagem que Ortega conheceu Victoria Ocampo76 e, desde
então, manteve com ela uma amizade de longos anos, sendo, na Argentina, uma presença
marcante em sua vida, principalmente durante a ditadura militar.
Essa experiência em Buenos Aires fará de Ortega uma referência da Espanha na
Argentina e fortalecerá ainda mais a sua vocação filosófica e periodista através de suas palestras
e publicações. Depois da Alemanha, será a Argentina o lugar que ganha na vida de Ortega um
espaço significativo para o seu crescimento e reconhecimento como intelectual. Nos teatros
Odeón e La Comedia, em 1916, Ortega comprime e resume, como em poucos lugares, os
elementos centrais de seu pensamento: sua pedagogia de entusiasmo vitalista, de resistência ao
utilitarismo, contra a noção darwinista da vida humana e em favor de Nietzsche, que preferiu
uma moral dinâmica e criadora a uma moral escravista, centrada na humildade, na renúncia à
energia e na descrição do entusiasmo (GRACIA, 2014, p. 3994). Suas ideias asseguraram a ele
um prestígio que, ao retornar para a Espanha, em 1917, o tornam embaixador cultural da
Argentina no país.
Já em 1920, a vida filosófica de Ortega girava em torno da publicação de uma série
de artigos que formam sua obra de ensaios analíticos sobre a atualidade espanhola, destacando
principalmente o que ele já vinha anunciando nas suas publicações anteriores sobre a
enfermidade social da Espanha77 ao se contrapor à ideia de que todo o mal do país se encontrava
nos políticos. Mais precisamente, ele identifica esse mal como sendo o “particularismo”, por
ser a Espanha formada por uma cultura que alimenta o espírito de uma consciência que não se
preocupa em contar com o outro. Desde então, Ortega passa a defender uma aristocracia
75
Para Gracia (2014), essa viagem à Argentina reforça uma característica de Ortega já criticada por Pérez de
Ayala: o pedantismo intelectual que o tornava um sábio petulante.
76
De família aristocrata e adepta aos movimentos feministas, intelectuais e antifascistas na Argentina, sofrerá a
influência de Ortega, principalmente na busca de superar o machismo através da liberdade de pensamento.
77
O problema da Espanha para Ortega está na atrofia das energias espirituais e na falta de independência intelectual
devido ao dogmatismo religioso (Cf. GRACIA, 2014, p. 1217).
31
78
Desde 1915, Ortega já fala em razão vital como ciência fenomenológica descritiva do tipo da lógica, da ontologia
e da matemática. Porém, essa intuição só começou a ser desenvolvida no curso de 1921, em suas aulas de metafísica
na Universidade Central (Cf. BONILLA, 2002, p. 222-223). O sistema da razão vital não é apresentado por Ortega
ao público formulado de modo categórico e concluído; seu método ambulatório, que entrega seu pensamento em
forma de artigos sem estar desenvolvido por completo, senão minimamente, exige de seus leitores que construam
em seus cadernos o desenho de uma filosofia que não se oferece como tal, mas que espera ser assim interpretada
(Cf. GRACIA, 2014, p. 3754).
79
Outras publicações também foram feitas sobre o tema, porém como obras póstumas: Qué es filosofía, Qué es
conocimiento e Unas lecciones de metafísica.
32
80
Uma série de artigos publicados em El Sol.
33
81
Conflito armado ocorrido de 1936 a 1939 entre os republicanos, em aliança com anarquistas e comunistas, e os
nacionalistas, majoritariamente aristocratas liderados pelo general Francisco Franco, que ao vencer a guerra
governou a Espanha até sua morte em 1975.
82
Em 1929, Ortega considera necessário encontrar outras formas de atuar em seu ofício de filósofo, acreditando
ser necessário fazer um tipo de livro que esteja além dos artigos de periódicos. É o que ele vai chamar de segunda
navegação. É nesse período que projeta falar sobre o interior de Goethe desde a sua razão vivente através de uma
análise biográfica (Cf. GRACIA, 2014, p. 8143). Atrelado a uma preocupação estilística, Ortega passa a preocupar-
se em expor sua teoria filosófica em busca de sistematizar suas ideias de forma a se contrapor aos que o criticavam
de não ter um sistema. Na Universidade, seus cursos versavam, principalmente, sobre a crítica a Descartes e a
Galileu e buscavam explicar pela razão histórica a existência contingente e evolutiva do homem.
34
ser biográfico, pelo qual, na interpretação de Bonilla (2002, p. 388), tem o interesse de
desenvolver o seu conceito de razão vital e história. Entre o referido ano e 1934, Ortega publica
um texto que caracteriza bem essa fase do seu pensamento: “Guillermo Dilthey y la idea de la
vida”, publicado pela Revista de Occidente83. A preocupação de Ortega naquele momento,
principalmente frente ao pensamento de Heidegger, é mostrar que tinha chegado de forma
autônoma ao seu pensamento filosófico, mesmo que outros84 tenham intuído a vida como
dinâmica, racional e vital. Nesse período, a grande influência no pensamento de Ortega veio
pelo historicismo de Dilthey85.
Com o Regime de Franco, Ortega começa sua trajetória de exílio que, de certa
forma, provoca uma fenda na sua produção intelectual. Ele teve que abandonar seu país e passar
a viver entre França, Portugal e Argentina. Em 1939, ao retornar à Argentina, a convite da
Sociedade de Amigos das Artes, ministra seu curso sobre “El hombre y la gente”86 na Faculdade
de Filosofia e de Letras de Buenos Aires, em que segue trabalhando com suas ideias
sociológicas, por meio das quais faz uma crítica à sociedade como mecanismo de alteração e
alienação da vida humana. Na prática, Ortega encontra um ambiente pouco favorável às suas
ideias devido à forte influência do positivismo na formação acadêmica dos argentinos. No ano
seguinte, Ortega já desfruta de um clima mais ameno ao ministrar cursos na mesma Instituição,
conseguindo além de ministrar suas palestras e cursos, reeditar seus escritos pela Editora
Espasa-Calpe.
Quase todos os textos de Ortega desse período estão relacionados à razão histórica,
entre eles destacam-se “Ideas e crencias” e “La aurora de la razón histórica”, publicados para
complementar o curso sobre “El hombre y la gente”. Ortega parece reencontrar na década de
1940 o seu caminho na realização pessoal, enquanto vocacionado à vida intelectual. E a
Argentina segue sendo sua segunda casa, ao acolhê-lo como referência do pensamento
hispânico na América Latina. Naquele momento, é claro para Ortega o caminho que trilha na
83
Fundada por Ortega, em 1923, se caracteriza por ser, desde seus primeiros números, uma publicação atenta às
correntes mais inovadoras dentro do pensamento e da criação artística e literária. Foi um dos veículos de maior
difusão da cultura espanhola e europeia. Segundo Bonilla (2002), foi um dos projetos mais apaixonados de Ortega,
que atuou como diretor e colaborador. No período de sua administração, a Revista passou por uma série de
problemas, principalmente financeiros, sofrendo uma significativa mudança quando seu irmão, Manuel, assumiu
a direção, ocupando-se principalmente das questões da contabilidade da empresa. Com isso, a nova estrutura
possibilitou o pagamento de colaboradores e a captação de intelectuais de renome. A sede da Revista era mais do
que um espaço empresarial, era um ponto de encontro e de discussão de ideias através das numerosas tertúlias que
lá aconteceram.
84
Spinoza, Vico, Leibniz, Bayle, Voltaire, Fichte, Goethe, Brentano, Dilthey e Bergson.
85
Ortega faz uma análise mais completa da obra de Dilthey, Introducción a las ciencias del Espirito, no seu
prólogo aos alemães.
86
Juntamente com “La aurora de la razón histórica”, os dois grandes projetos de Ortega nos anos 1940.
35
Filosofia, interligando todos os temas à sua razão histórica, reforçando a base de sua
antropologia na concepção metafísica de realidade radical. Certamente, chega ao que nos parece
ser o fechamento de sua perspectiva histórica com o método antropológico da narrativa no qual
a compreensão do humano passa pelo contínuo contar que possibilita captar o homem no que,
para Ortega, é a sua “possível” natureza: a historicidade da sua vida.
Devido a problemas políticos e de saúde, Ortega não consegue dar sequência à sua
obra, retomando somente em 1944 o que ele havia começado a falar no final dos anos 1920 e
no decorrer dos anos 1930 na Argentina e na Espanha. Contudo, será no prólogo escrito para o
texto de Julián Marías, Historia de la filosofia, que Ortega insiste na historicidade como caráter
constitutivo do ser humano, aplicando sua perspectiva mais biográfica da razão histórica nos
textos sobre Velázquez e Goya. Bonilla (2002) ressalta que Ortega buscava compreendê-los
dentro de seu tempo, através da intimidade que marca a vida de cada um. Por meio de
Velázquez, Ortega vê as vigências da Espanha encerrada em si mesma, marcada pelas guerras
religiosas internacionais e civis; já Goya lhe permitiu o aprofundamento no plebeísmo espanhol
do século XVIII.
2.2.2 O periodismo
Sua vocação para o periodismo aparece com a publicação do seu primeiro artigo,
“Glosas”, em El Faro de Vigo87, no ano de 1901, por intermédio de seu tio Ramón Gasset. Daí
em diante, segundo a compreensão de Marías (1971, p. 118), essa será uma forma permanente
de divulgação de suas ideias. Mesmo que Ortega não tenha se considerado um periodista, sua
atuação em vários jornais espanhóis, principalmente refletindo sobre aspectos culturais e
políticos, o coloca em um lugar privilegiado na divulgação de ideias e articulação de opiniões
por meio da imprensa escrita espanhola. Em 1904, ele começou a colaborar com El Imparcial,
publicando no mesmo ano vários artigos de crítica literária.
Logo que foi para Alemanha, sua dificuldade com a língua o limitava em
publicações sobre política e cultura. Naquele primeiro momento, uma das formas encontradas
por Ortega para conseguir recursos para se manter na Alemanha foi o envio de artigos para
serem publicados no jornal da família. Depois, em 1906, já morando em Berlin88, passou a ser
corresponsável pelo jornal da referida cidade, no qual publicou uma série de artigos sobre a
87
Ortega via no referido jornal um ensaio de pedagogia política favorável ao liberalismo e à revolução (Cf.
GRACIA, 2014, p. 1412).
88
Um dos aspectos que chama a atenção de Ortega na capital alemã é a abertura aos estrangeiros.
36
universidade alemã. Nesse momento, Ortega demonstra maior interesse pela escrita científica
do que jornalística.
Ao regressar à Espanha, em 1906, sob um possível encantamento com a Filosofia
germânica, Ortega se convence da necessidade de introduzir a ciência e o pensamento alemão
na Espanha, iniciando esse propósito em um projeto editorial de seu pai com publicação de
obras alemãs e inglesas traduzidas inclusive por Ortega. Na leitura de Bonilla (2002), nesse
período, ele acreditava que o fim da estagnação espiritual espanhola somente seria possível por
meio da educação, elevando previamente o nível cultural da população, mas, para isso, era
preciso que as pessoas estivessem convencidas de que a realidade pode ser reformada pelas
intenções dos indivíduos.
A ciência idealizada no início do século XX foi objeto de crítica de Ortega e
conceituada por ele como mito em La desumanización de la arte (1925). O grande problema
por ele identificado é que a ciência não se propunha a resolver os problemas fundamentais,
estando voltada somente para as verdades exatas. Entretanto, esse mesmo século arrasou com
as ilusões de Ortega sobre si mesmo como idealizador de grandes planos e exigências
inutilizáveis nas novas sociedades de massa, em plena expansão industrial e em plena
transformação social. De acordo com Gracia (2014), Ortega viveu o drama de ver democracias
capitalistas indóceis, suficientes, arbitrárias, liberadas do acatamento da lei de casta dos
melhores, sob o desmantelamento de todas a certezas com Nietzsche, com o princípio da
incerteza e com sua própria razão vital, paradoxalmente.
Em 1915, Ortega passou a fazer parte da “Liga de Educação Política”, tornando-se
idealizador e diretor da revista España, na qual publicou quase toda a sua obra e marcou uma
presença de orientação intelectual. Naquele mesmo ano, Ortega renuncia à direção da Revista,
abdicando de seus direitos como sócio fundador. Suas publicações no periódico seguiram
somente até o ano seguinte. Ele também criou e dirigiu as revistas El Clarin, Europa89e Revista
del Occidente. Devido à sua facilidade de falar sobre conceitos complexos da Filosofia, Ortega
ganha cada vez mais prestígio frente à comunidade intelectual da Espanha, que se somou ao
grande prestígio por sua participação principalmente no El Sol e na Revista del Occidente.
Com a criação do diário El Sol90, Ortega passa a influenciar o periódico com seu
conhecimento intelectual, tornando-se, em 1920, editor e assíduo colaborador, funções que
89
Revista de curta duração criada em 1909 que teve como único objetivo respaldar a Conjunção Republicano-
Socialista, findada em maio de 1910 após a vitória dos liberais em Canalejas (Cf. GRACIA, 2014, p. 1902).
90
Segundo Bonilla (2002, p. 184), o periódico nasceu com o objetivo de contribuir com a criação de uma Espanha
melhor. Nele Ortega assume um compromisso que não será visto em nenhum outro periódico dos quais ele fará
parte, pelos inúmeros artigos editoriais, com e sem assinatura, e por seu ativismo político através de um jornal que
37
desenvolveu até 1931. Nesse período, Ortega, Urgoiti e Félix Lorenzo são vistos como os
grandes interventores da vida pública espanhola, principalmente através do referido periódico.
Entretanto, Ortega não vê no periodismo um destino para a Espanha, mas um meio pelo qual
poderia contribuir para a mudança da mentalidade dos espanhóis, sendo eles o meio para
qualquer mudança efetiva. Nesse período, Ortega passa a comentar, nos editoriais e nos artigos
publicados, fatos relevantes da vida pública como o fim Primeira Guerra Mundial, a
decomposição dos grandes partidos políticos, a instabilidade governamental e a intervenção
direta e indireta das juntas. As ideias de Ortega tornam-se guias do movimento por uma nova
Espanha, que tinha como referência a Europa.
A Revista del Occidente, fundada em 1923, foi um dos projetos de maior
preferência de Ortega, à qual manteve-se ligado até 1936, atuando como diretor e colaborador.
Vários foram os intelectuais que contribuíram com suas publicações, pois Ortega buscava a
colaboração de nomes de reconhecimento nacional e internacional. Mesmo não sendo um
projeto político, a Revista impactou a transformação da realidade nacional espanhola através da
divulgação de muitas ideias de pensadores influentes. Ela não representava somente um meio
de divulgação impressa de ideias, mas, através de periódicas reuniões em sua sede, muito se
articulava nas tertúlias91 que lá aconteciam.
Parte de El tema de nuestro tiempo (1923) e de Las atlántidas (1924) resultaram
das publicações no El Sol, que trazia pelos textos de Ortega um conteúdo filosófico, o que ele
vai chamar de razão vital e histórica. Muitos de seus artigos, publicados primeiramente em El
Sol, eram reproduzidos também em La Nación92. Nesse momento, Ortega vivia praticamente
da sua produção intelectual através das publicações de seus livros e artigos traduzidos em várias
línguas e vendidos na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, sendo a Argentina o
país onde possuía o maior prestígio naquele momento. Em Buenos Aires e por quase todo o
país, escutava-se falar do jovem mestre espanhol, de cujas conferências participavam
celebridades, ministros, reitores, decanos, professores, periodistas e interessados de um modo
geral em seu pensamento.
se caracterizava pela organização do que era publicado sobre uma Espanha que almejava ser culta, burguesa, liberal
e socialista. No período da ditadura militar, o periódico torna-se o principal veículo de enfrentamento ao Estado.
Como resposta, são instituídos decretos que encareciam absurdamente a publicidade e limitavam o tamanho dos
periódicos. Para Ortega, o principal objetivo dessa ação era desvalorizar o El Sol (Cf. GRACIA, 2014, p. 4488;
4772).
91
A tertúlia representava para Ortega um complemento de seu trabalho intelectual, dos seus estudos filosóficos e
de sua obra através dos muitos encontros que aconteciam entre alunos, amigos e interessados no que ali se discutia.
Além da sede da Revista, outro ponto de encontro de Ortega era a Residência dos Estudantes.
92
Desde 1923, Ortega passou a publicar seus artigos no La Nación.
38
93
Para Ortega, a massa não significa aglomeração, nem aspecto quantitativo, mas o homem que psicologicamente
se deixa conduzir pela opinião da maioria. Para ele, esse modelo de homem é fruto da democracia liberal e da
técnica pela naturalização da cultura e pelo discurso político igualitário. Esse modelo de homem desencadeia uma
sociedade desqualificada e, por isso, ele estava convencido de que tanto a Espanha como a Europa necessitavam
de uma minoria seleta, esforçada e capaz de construir novos ideais para a vida pública.
39
que comprometiam a autenticidade da vida humana, tão fundamental para pensar a vida em sua
forma mais evolutiva. A liberdade é o elemento essencial da vida autêntica e, certamente, esse
tema ganha uma importância maior para Ortega devido ao ambiente de privação em que vivera
por causa da guerra na Espanha e da Segunda Guerra Mundial94.
O mundo em guerra passa por experiências de privação de liberdades e incitação à
discórdia que favorecem a formação de indivíduos desorientados pela limitação de suas vidas.
A vida de Ortega é um reflexo da vida de tantos outros que sofrem as consequências do
autoritarismo e da cultura bélica que massifica e priva o homem de suas liberdades individuais,
assim como forma indivíduos marcados pela experiência que será um tema muito presente nos
escritos de Ortega dos anos 1940, a solidão. Na leitura de Bonilla (2002), o ano de 1941
intensificou essa experiência de Ortega que viu seus projetos comprometidos pelas limitações
físicas que passara a enfrentar, pois, além dos problemas políticos, vivenciou delicados
problemas de saúde95. Foi um ano sem cursos, sem conferências e sem publicação em La
Nación96.
Ortega retoma sua produção depois que fixa residência em Portugal97 em 1942, mas
muitos dos ensaios e livros escritos nesse período ficaram inéditos até sua morte. Nessa mesma
época, começou um projeto editorial, Azar, mas não teve sucesso. Também foi readmitido na
Universidade, mas não retornou às suas atividades, constando somente como integrante do
escalão de catedráticos. É em Portugal que Ortega reencontra a tranquilidade para dar sequência
aos seus projetos, retomando sua apresentação da razão histórica em um curso ministrado em
1944 na Universidade de Lisboa98. Nesse mesmo ano, publicou, na Espanha, nos Cuadernos de
Adán, o texto “Ni vitalismo, ni racionalismo”, mas, devido à censura estabelecida pela lei de
imprensa em 1938, Ortega se mantinha moderado, evitando publicar seus textos nos periódicos,
como fez ao recusar o convite de colaborar com o jornal catalão Vanguardia Española.
94
Em 1941, Hitler havia dominado quase toda Europa, exceto a Grã-Bretanha, a Espanha, a Suíça, a Suécia e
Portugal. Parte da Europa foi posta a serviço da máquina de guerra alemã, muitos prisioneiros, judeus e de outras
etnias, foram levados a trabalhar nas indústrias de guerra, muitas transformadas em campos de concentração e
extermínio.
95
Desde o exílio na França, Ortega enfrentou problemas renais que, com o passar do tempo, foram se agravando.
96
Nesse ano, Ortega rompe mais uma vez com o jornal. A primeira vez ocorrera no exílio na França, por não se
sentir apoiado durante a sua crise financeira.
97
Ortega fixa residência em Lisboa até sua morte, devido à proximidade com a Espanha. Depois da sua viagem à
Argentina, em 1939, o retorno a Portugal, em 1942, tem como única motivação ficar próximo dos seus filhos (Cf.
GRACIA, 2014, p. 9684).
98
Somente em 1945, treze anos depois de viver em Portugal, é que Ortega volta à Espanha com o objetivo de
divulgar suas ideias filosóficas.
40
2.2.3 A política
99
Aos 20 anos, Ortega já havia proposto um instituto como esse através de um centro de conferências, mas o
projeto ficara apenas na proposta. Somente na década de 1940, ele retoma essa ideia e cria o Instituto com o fim
de discutir questões de História e de Historiologia no intuito de anunciar um novo modo de fazer História.
100
Ortega considera a atuação política como sendo uma obrigação moral – Política no sentido pleno do termo,
enquanto compromisso do homem com a sociedade em que vive. A situação da Espanha fez de Ortega um
intelectual comprometido com as questões políticas do seu país (BONILLA, 2002, p. 126). A vida de Ortega é
marcada por uma forte cultura política, pois, desde cedo, se deparou com um ambiente familiar que lidava com
política e com questões políticas. Seu pai e seu irmão mais velho, Eduardo, foram deputados, seu tio Rafael foi
ministro, e sua família teve uma enorme influência no parlamento espanhol através do diário El Imparcial, dirigido
por seu pai de 1900 a 1906 (Cf. GRACIA, 2014, p. 392).
101
Os movimentos de base liberal representaram na Espanha, assim como em boa parte da Europa, uma luta contra
a religião que, por sua vez, passou a ser vista como empecilho para essa pretensa transformação do homem. No
entanto, mesmo Ortega sendo adepto das ideias liberais, sua postura frente à religião será considerada moderada,
até porque conserva dentro de seu ambiente familiar, através de sua esposa Rosa, uma influência profundamente
católica, chegando a ser motivo de polêmica a sua relação com a religião nos últimos momentos de sua vida ao
receber, a pedido de Rosa, o sacramento da extrema unção.
41
um dos problemas a ser superado por meio de uma nova consciência social e política centrada
no exercício das liberdades individuais.
Retomamos aqui alguns aspectos históricos da circunstância espanhola, com base
na interpretação de Marías (1960), que conduz a sua leitura sob o olhar do historiador espanhol
Moratín, apresentando o cenário da Espanha dos séculos XVII ao XX, isso porque “o intento
de compreender o que foi a Espanha no entorno de 1900 exige lançar o olhar sobre o caminho
pelo qual se chegou ali” (MARÍAS, 1960, p. 3). O ponto de partida para essa compreensão
encontra-se no antigo regime, datado por volta do final do século XVIII. Marías (1960)
denomina esse período de “instalación”, no qual a Espanha apresentava uma vida coletiva
plenamente vigente e estável. As vigências básicas eram aceitas e, até o fim do reinado de
Carlos III (1788), a “sociedade descansa sobre um fundo de concórdia” (MARÍAS, 1960, p.34).
O povo vive sob um regime plebeísta e populista, no qual a aristocracia copia os
costumes populares. Essa concórdia revela uma Espanha extremamente voltada para os seus
costumes, cultivando uma população apegada às tradições e fechada aos avanços que
despontavam na Europa. Mesmo pairando sobre a sociedade em geral uma espécie de
encantamento pelo que era manifestação da cultura hispânica, alguns de seus membros,
influenciados pelo que estava sendo produzido nos países vizinhos, fomentavam, em pequeno
número, a possibilidade de produções semelhantes às europeias. A tensão que introduz o
movimento interno espanhol é a que existe entre o popularismo e o espírito da ilustración: “[...]
o estado de oposição afeta só as minorias dirigentes: o povo permanece instalado em suas
formas tradicionais, às que precisamente se sente muito apegado, que tem para ele sabor e pleno
sentido que constituem o alvéolo em que consideram possível a felicidade” (MARÍAS, 1960,
p. 34).
A grande questão não estava ligada diretamente a uma desigualdade social, pois, no
final do regime do reinado de Felipe V, já havia ocorrido uma melhora extraordinária, superior,
comparável a todas que foram conseguidas durante os séculos passados juntas. O que Marías
(1960) busca aclarar, sendo, na verdade, aquilo que nos interessa nesta pesquisa, é o espírito
que se formou em torno dos costumes populares. Toda a sociedade, até a aristocracia, imitava,
na corte, os costumes populares, participando das formas de vida do povo em geral, através dos
modos de vestir-se, cantar, dançar, ir às touradas e ao teatro e falar. Essa é, para Marías (1960),
a raiz do populismo, considerado por ele como o grande “tirón hacia abajo” da vida espanhola
frente ao universal impulso ascensional que caracterizava naquele tempo as sociedades
europeias.
42
Essa minoria, formada por racionalistas, a maioria deles composta por educadores
impregnados pelas ideias da enciclopédia102, alavancavam o movimento dos ilustracionistas,
que incorporavam nos seus hábitos o espírito dominante europeu, principalmente da França,
Inglaterra, Holanda, Itália e Prússia. Isso fazia com que eles se sentissem chamados a superar o
populismo, que se manifestava intensamente no plebeísmo, estabelecendo novas normas e
formas de conduta. A primeira iniciativa começa com Feijó, na publicação do Teatro Crítico
Universal, que fomentava a ideia da propagação do seguimento ao espírito dominante do século.
Esse movimento se justificava no desnível absoluto da Espanha no campo da educação
(Universidades) e da ciência. Alimentados por um ideal de adesão popular, os idealizadores do
movimento passaram a acreditar que a população poderia aderir às ideias por eles apresentadas,
buscando, assim, uma nova forma de ser hispânico. Eles eram plausíveis e bem-intencionados,
recorda Marías (1960), referindo-se aos amigos Del pais, aos técnicos e investigadores e aos
jovens do Instituto Gijón. No entanto, careciam de arranque para converter tudo isso em uma
empresa nacional, faltando a eles, ao lado do mundo popular, força de incitação. Não havia uma
figura representativa que alavancasse o movimento a ponto de provocar na sociedade uma
transformação que possibilitasse a saída da Espanha do estado de pura espontaneidade em que
se encontrava. Quem mais se aproximou desse ideal foi Goya, genial pintor, porém faltava-lhe
“sabor y fuerza de incitación” (MARÍAS, 1960, p. 36).
Contrariamente, o populismo apresentava-se bem mais atrativo, visto que até
mesmo os mentores desse movimento de contracultura aderiam a diversas manifestações
populistas. Conforme Marías (1960), a prova é que eles mesmos, os ilustrados, cediam a esse
encanto a que formalmente resistiam. Nesse período, a Espanha comportava diversos partidos,
toureiros e atores, entre outros, porém o que ocorria era uma convivência harmônica no seio da
sociedade, que se inicia no final do reinado de Felipe V e passa por Fernando VI e Carlos III,
mantendo-se em uma vida de concórdia e associação. Esclarece Marías (1960, p. 38):
Por isso o partidismo se dava dentro de uma convivência fundada na concórdia [...]
com mútua admiração entre os bandos hostis e entre as grandes tendências em que se
divide a vida espanhola: se aos ilustrados ‘se les van los ojos’ buscam o popular de
que, por princípio, renegam, os populares e assim os plebeístas admiram e respeitam
as figuras que unem ao seu prestígio intelectual a exemplaridade da conduta.
102
Sob a influência do iluminista, era difundida por uma minoria a centralidade da razão na organização da
sociedade. O Enciclopedismo, oriundo do Ilustracionismo, foi um movimento filosófico-cultural francês que
buscava catalogar todo o conhecimento humano a partir de princípios racionais. Impulsionado por intelectuais
como Voltaire, Diderot e d’Alembert, além de Montesquieu, Rousseau, Buffon e do barão d´Holbach, buscou-se
desenvolver uma obra monumental, que constava de 28 volumes (17 de textos e 11 de lâminas), no que se resumiria
todo o saber de seu tempo.
43
há que perceber que a grande maioria dos “ilustrados” espanhóis eram sinceramente
católicos, com freqüência fervorosos – jovens – e que os anticlericais atacam os
eclesiásticos em nome da religião, quero dizer, enquanto os consideram indignos dela
e de seus deveres, não a religião mesma. São inimigos da inquisição, que lhes parece
uma desonra da religião e da Espanha; querem superar muitas formas dominantes no
culto, no teatro, no ensino, porque lhes parecem profanação do catolicismo e
impróprias do século, porém aceitam integralmente a fé e a moral cristã, e a autoridade
da igreja. São por demais, ao menos os homens verdadeiramente representativos,
moderadíssimos politicamente, conservadores e inimigos de toda subversão e
violência.
O antigo regime, que foi considerado no reinado de Carlos III como exemplo de
Despotismo Esclarecido, entra em declínio com a ocupação francesa, em 1808; a abertura de
44
Quando digo aceitação da realidade, não quero dizer “conformidade” com ela, muito
menos “conformismo”, pelo contrário: aceitação da realidade tal como é, e encontram
que é, paradoxalmente, inaceitável. Quero dizer com isto que lhe vão tomar
precisamente como algo no qual se pode ficar, porém de onde se pode partir. O
naufrágio em que consiste a realidade espanhola vai ser o ponto de partida.
103
Ortega publica em El Imparcial um artigo intitulado “Refuerma del caráter, no refuerma de los costumbres” (5
de outubro de 1907), em que critica claramente o Partido Conservador por não ter o direito de proibir o povo de
ter um determinado costume quando, na verdade, os conservadores não haviam criado nem uma escola popular,
nem leis sociais. Para ele, educação e leis são as bases para a reforma do caráter (BONILLA, 2002, p. 68).
104
O maior desafio encontrado por Ortega na formação de um partido liberal novo e enérgico estava na Monarquia,
porque desdenhava do povo e de suas necessidades, além de ser anti-intelectual, tendo como preocupação exclusiva
o modo de vestir e o esporte, além de primar pelo autoritarismo (Cf. BONILLA, 2002, p. 103).
105
O socialismo espanhol para Ortega deveria ser de propaganda proletária e não burguesa. Diferentemente do que
ocorrera na Inglaterra e na Alemanha, o socialismo na Espanha nasceu por trabalhadores e, somente depois, ganhou
a simpatia dos intelectuais (Cf. GRACIA, 2014, p. 1413).
47
106
Não podemos esquecer que a Espanha do início do século XX sofre de uma forte influência da moral cristã que
se expressa em todos os aspectos sociais, inclusive na política, através de posturas conservadoras em defesa da
moralidade e dos costumes religiosos.
107
Luis Araquistáin, Luis de Zuluera, Fernando de los Ríos, Lorenzo Luzuriaga e Ramón Pérez de Ayla, entre
outros. Já Unamuno, mesmo defendendo uma proposta de europeização, não fica convencido com o idealismo
propagado por esses jovens encantados pela Europa, sendo que sua maior defesa será pela africanização da Europa,
ao entender que a Espanha tinha a necessidade de aprender com a África e ao mesmo tempo deveria ensinar a seus
povos o modo hispânico de viver, pensar e sentir. Ortega não concorda com essa proposta de Unamuno, pois
considerava que a Espanha vivia um mal secular de desorganização administrativa, com a falta de cultura moderna.
Para ele, antes de tudo, o país necessitava de uma reforma educacional pela ciência, propondo para isso a criação
de uma biblioteca científica sob a direção do historiador Eduardo Hinoja (Cf. BONILLA, 2002, p. 86; 93). Os dois
grandes nomes para Ortega da europeização na Espanha eram Pablo Iglesias e Francisco Giner de lo Ríos, ambos
defendiam o socialismo e a educação. Enquanto Fichte e Lassale eram para Ortega as referências de nacionalismo
e socialismo.
108
Esse nome corresponde a um título de Paul Natorp e será título de uma conferência de Ortega em Bilbao em
1910. Ortega, juntamente com a sua geração, defendia uma educação baseada na consideração social do indivíduo,
dando maior relevância ao comunitário que ao individual. O indivíduo deveria ser educado em função das
necessidades sociais. As principais influências dessa forma de pensar provinham da Pedagogia social de Herbart,
Pestalozzi e Natorp. No caso de Ortega, a maior influência era Platão, principalmente na elaboração e no
cumprimento das leis (Cf. BONILLA, 2002, p. 126).
109
Político espanhol com formação jurídica e histórica.
110
Unamuno será um dos críticos a esse germanismo de Ortega, chegando a pretender publicar um artigo se
contrapondo à Filosofia defendida por Ortega. No entanto, ambos tinham em comum o interesse pela elevação da
cultura. A tensão entre os dois é aliviada após um encontro em 1912, em Salamanca. Em 1914, quando Unamuno
é destituído da reitoria da Universidade de Salamanca pelo ministro Francisco Bergamín García, por perseguição
política, Ortega entra em sua defesa, preparando um manifesto contrário ao que tinha se passado e escrevendo um
artigo intitulado “En defensa de Unamuno”. Como nesse período Ortega já havia se tornado um nome de prestígio
na Espanha e uma referência frente à Espanha Oficial, Restauração, muitos recorriam a ele em busca de apoio e
orientações.
48
propunha Costa, mas sim através da elevação da ciência pela qual o povo desfrutaria dos seus
benefícios.
Em 1913, Ortega organiza a política pedagógica com a publicação do manifesto
constitucional da Liga de Educação Espanhola – LEP – por ele redigido. Os integrantes do
movimento buscavam criar um instrumento político distinto dos partidos conservadores,
entendendo que a participação política não deveria ficar restrita aos políticos, mas estender-se
a todos os cidadãos. Para isso, traçavam o plano da formação de uma minoria capaz de educar
as massas111.
Ortega trabalha com a ideia de uma aristocracia intelectual formada por intelectuais
e gente de talento capaz de estender o conhecimento a grandes parcelas da sociedade. Essa elite
teria a função de fazer com que os espanhóis entendessem que podiam reger suas vidas por
ideias de maior humanidade e justiça. O trabalho seria formar um conjunto de ideias políticas
através do apanhado de informações de todo o território espanhol, a fim de entender o que é a
Espanha, contando efetivamente com a atuação das províncias112. Cabe lembrar que a Espanha
entra no século XX como um país predominantemente agrário, sem muito encanto pelas
mudanças culturais e políticas vividas pelos outros países da Europa, que se tornavam cada vez
mais adeptos das ideias socialistas e liberais.
Contudo, as ideias liberais se faziam cada vez mais presentes em Ortega e, nelas,
ele vislumbrava uma Espanha capaz de excluir do Estado toda a influência conservadora que
dificultava a instauração de novas formas sociais fortalecidas pelo humanismo e pelo progresso
como possibilidade de uma melhoria efetiva da condição individual e social do homem. Essa
era a ideologia liberal que, de certa forma, motivava a atuação de Ortega no campo da política,
juntamente com a crítica socialista à organização da produção e do assalariado. Por mais que
Ortega aparecesse como crítico, na leitura de Bonilla (2002), ele será na política sempre
moderado, sem assumir frente aos movimentos e aos regimes políticos da sua época –
Monarquia e República – uma postura de hostilidade.
111
O conceito de massa em Ortega será trabalhado na sua obra Rebelión de las masas, seu livro que ganhou maior
repercussão internacional, sendo traduzido para várias línguas – 1931, alemão; 1932, inglês; 1933, holandês e
português, entre outras traduções. Para Sánchez (2009, p.15), esse livro representa um clássico da literatura
orteguiana incitado por um cenário social e político nacional e internacional. A obra é formada por uma compilação
de artigos publicados em um folhetim do El Sol, de outubro de 1929 até fevereiro de 1930, finalizando sua
impressão em 26 de agosto do mesmo ano, tendo como tema central a Europa.
112
Cf. BONILLA, 2002, p. 134.
49
113
Uma das razões que justificava a não militância de Ortega no Partido Socialista da Espanha (PSOE) era que o
partido se constituiu sem intelectuais, reduzindo a interpretação histórica e política ao materialismo dialético (Cf.
BONILLA, 2002, p. 137).
114
Deputado por Guadalajara, de 1888 a 1936, e pertencente ao Partido Liberal.
115
Com a queda do governo de Maura, em julho de 1919, se constitui o governo de um outro conservador, Joaquín
Sánchez de Toca, que fora considerado por Ortega como pior do que o governo anterior. Ele o qualifica de solidário
às representações militares contra a greve de 1917, em que o governo autorizou a intervenção do exército contra
os trabalhadores na Catalunha. Ortega passa a ser visto como o ideólogo da reforma radical da política espanhola
pelo seu crescente prestígio em várias esferas da sociedade e pela sua forte influência nos meios de propagação de
ideias, como o El Imparcial.
50
para o país naquele momento seria dar o governo aos socialistas e aos regionalistas116 por serem
livres de radicalismos extremos. El Imparcial incentivava a união de ambos, mas, na prática, o
que se via era uma crescente desunião entre seus representantes. Ortega propunha a criação de
um diretório formado por profissionais de um modo geral como alternativa para superar a crise
política pela qual passava a Espanha. Para tanto, entendia ser necessária uma tríplice reforma:
constitucional, de descentralização117 do governo e político-social. Com a queda do governo de
Maura, em 09 de novembro de 1918, é dado um passo na Espanha para a criação de um governo
de concentração liberal sob a articulação de Manuel García Prieto118.
Em 1919, começou-se a falar na Espanha em ditadura, a pedido de editorias como
El Debate, La Accíon e La correspondência. Cambó era um dos que se matinha a favor desse
novo regime como via de resolução dos problemas sociais e políticos. Porém, o posicionamento
de El Sol e de Ortega eram contrários a qualquer uso de força para estabelecer um governo,
entrando em defesa de uma autoridade moral emanada da opinião pública. Ainda assim, Ortega
chegou a acreditar que o Golpe Primo de Rivera119, em 1923, parecia ser um sintoma de
vitalidade frente a uma política conservadora que impedia a renovação da Espanha. Da mesma
forma, os representantes do El Sol acreditaram momentaneamente que a ditadura120 em curso
seria um passo para uma nova situação liberal e democrática na Espanha. O regime de Rivera
não foi considerado fascista, mesmo assim Ortega adota um posicionamento crítico frente ao
regime através de suas publicações no jornal. Contudo, seu posicionamento aparece de forma
116
A confiança de Ortega nos regionalistas se dava pelo convencimento de que a vida nacional se regeneraria
através da revitalização da política local e do trabalho de Cambó, que defendia a hierarquia das soberanias em
vista de uma Espanha Federativa. Por isso, através de El Sol, divulgava a participação dos regionalistas na
formação de um novo governo espanhol e a socialização de uma classe trabalhadora equiparada à burguesia em
matéria econômica, jurídica, intelectual e moral, sendo necessárias uma imposição equitativa e uma resolução mais
audaz dos conflitos entre capital e trabalho, em que o Estado deveria assumir um papel mais ativo com reformas
através do “Ministério de Organização do Trabalho” (Cf. BONILLA, 2002, p. 194).
117
Ortega defendia uma organização federativa com mais independência para as regiões espanholas.
118
Esse governo era temido por Ortega pela possibilidade da volta dos velhos partidos, porém foi um governo de
curta duração, conseguindo sobreviver apenas um mês, dando sequência ao governo de Romanones que defendia
uma nova política com fortalecimento de novos partidos democráticos, encontrando assim apoio na opinião
pública.
119
Militar que encabeçou o Diretório Militar em que todos os poderes do Estado ficaram concentrados nos
militares, tendo como inspiração do seu governo a ditadura de Mussolini na Itália, governou a Espanha de 1923
até 1930, quando foi expulso pelos próprios militares. Esse ano foi marcado pela rebeldia dos estudantes que se
organizaram e foram às ruas em protesto contra à ditadura de Rivera. Intelectuais de reconhecimento nacional e
internacional, como Rios, Valdecasas e Ortega, entre outros, aderiram ao movimento passando a publicar textos
contra o regime e se demitindo de suas cátedras.
120
A ditadura começa com o fechamento do Congresso dos Deputados, com a suspensão das garantias e das
liberdades constitucionais e com a destituição dos governos locais, substituindo-os por governos militares, ficando
sob o poder dos militares até 1925, sendo que em 1924 os governadores civis recuperaram suas funções das mãos
dos governadores militares. Para Ortega, em resposta a Rivera, o atalho da ditadura requerido por alguns e
estimulado pela direita governista é sempre enganoso. O que se aprende com esse regime na Europa é o fracasso
dos países que tiveram o exército como casta social superior (Cf. GRACIA, 2014, p. 4685).
51
bem moderada, diferente do adotado por Unamuno que, devido a suas duras críticas, sofre
perseguições, tendo que se exilar na França.
Em 1925, El Sol passa a tecer críticas mais explícitas ao regime ditatorial, pedindo
eleições gerais e o restabelecimento das liberdades constitucionais suspendidas. Nesse
momento, Ortega manteve-se mais distante das polêmicas periodistas, dedicando-se mais à
família e a viagens pela Espanha e pela França, além de seguir ministrando seus cursos na
Universidade e seus seminários nas Residências dos Estudantes e das Senhoras e no Instituto
Escola.
No ano seguinte, Ortega retoma suas ideias de reforma política 121 se contrapondo
claramente à ditadura militar de Rivera através do discurso de restauração da Espanha. Não foi
difícil para começar a sofrer perseguição por parte da censura, principalmente no principal
veículo de protesto utilizado por ele, o periódico. É nesse período que Ortega escreve um artigo
político intitulado “Mirabeau o El Político”, defendendo a política como ação e não como ideia,
apresentando Mirabeau como arquétipo político da união entre intelectualidade e ação. Com
isso, Ortega defende a necessidade de uma nova sociedade espanhola que passa pela renovação
das instituições por meio de uma política liberal e democrática e pelo fortalecimento das
províncias.
Ortega também publicou um artigo intitulado “Maura o la política. La autonomia
regional y sus razones”, em que, ao refletir sobre a reforma da política espanhola, propunha
uma política para as províncias que partisse das próprias províncias, de modo que as dez grandes
regiões da Espanha assumissem a maioria das competências da administração pública e ao
mesmo tempo a responsabilidade sobre elas. Teriam uma assembleia legislativa e fiscalizadora
composta por deputados eleitos democraticamente, sendo que, da assembleia, deveria sair um
governo executivo. Nessa proposta, seriam competência do Estado: o exército, a justiça, a
comunicação, os assuntos exteriores, a Educação, o Direito, a Ciência e a Economia.
O sonho de um Estado novo que poderia vir pela ditadura se apresentava cada vez
mais fracassado e se intensificava progressivamente a postura repressora contra às cabeças
contrárias ao prolongamento dessa fase política. O El Sol aparecia como um dos veículos de
maior crítica às decisões tomadas pelo governo. Em 1929, o protesto estudantil contra a decisão
de favorecimento das instituições religiosas teve como represália o fechamento da universidade
e a perseguição de vários estudantes, junto com a demissão de professores, entre eles Ortega122.
Nesse período, Ortega havia iniciado o seu curso na Universidad Central sobre “Qué es
121
Desde o verão de 1922, Ortega quase não havia escrito nada sobre política.
122
Mesmo sendo demitido de suas funções acadêmicas, Ortega seguiu ministrando seus cursos.
52
123
Além das pressões sofridas pelo regime, outro fator determinante para essa mudança de Ortega foi o contato
com a obra de Heidegger, que o incitou a sistematizar seu pensamento que, desde 1925, perseguia uma certa
originalidade. No entanto, ele começa a ter a sensação de estar pensando algo novo desde o curso ministrado no
Centro de Estudos Históricos (1915-1916) e nas conferências em Buenos Aires (1916).
124
Maria Zambrano, uma das fiéis seguidoras de Ortega e ativista política do movimento socialista na Espanha,
será, no campo da política, uma de suas críticas ao requerer de Ortega uma postura mais engajada. Pelo que
representava para muitos jovens enquanto um intelectual de referência, a sua participação direta nos problemas
nacionais foi sempre almejada por aqueles que buscavam um nome para referendar as ações políticas, sociais e
partidárias na Espanha. Na crítica a Heidegger, Zambrano se aproxima de Ortega ao concordar com a crítica à
ontologia heideggeriana do ser como construto do homem e não como manifestação.
125
Ortega não defendia a religião católica, mas procurava evitar toda mostra de anticlericalismo.
126
Para Unamuno, essa conferência era um artificio de Ortega para se apresentar como candidato a presidente no
ano seguinte.
53
127
Ortega tenta explicar o que vem a ser um partido nacional através de uma série de artigos intitulada “Hacia un
partido de la nación” publicada no diário de Luz. A Espanha passava por problemas estruturais no mercado
estrangeiro, na propriedade e na sociedade.
128
Brigas, revoltas, atentados e assassinatos entre esquerda e direita favoreciam um clima bélico, resultando na
morte de mais de três centenas e em mais de mil feridos. Entre os fatores que desencadearam esse estado de
violência está a revolta dos militares com seus apoiadores e o discurso da esquerda de que a República precisava
de uma revolução do proletariado para um Estado socialista (Cf. BONILLA, 2002, p. 411).
54
129
España invertebrada revela em seu prólogo um Ortega em pleno desengano altivo, sem deixar saída e fonte
irreversível de amargura. As novas páginas que inclui no último capítulo agravam, e muito, o perfil público de
Ortega no momento em que se busca encontrar uma saída prática para os problemas da Espanha. Desde então,
começam a aparecer críticas que reforçam o perfil de um Ortega que se convertera em um liberal ideológico sem
um programa de medidas políticas reais (Cf. GRACIA, 2014, p. 8397-8433).
130
Por não dominar o inglês, sua amiga e tradutora, Helena Weyl, o aconselhou a não se exilar nos Estados Unidos.
55
131
Alguns especialistas, como Nicol, consideram que há no pensamento orteguiano dois momentos: um mais
vitalista, sob influência do pensamento de Nietzsche; e outro, já definitivo, que está estruturado em uma
perspectiva histórica um pouco próxima ao que Dilthey desenvolve. Porém, Ortega não reconhece em nenhum dos
dois autores essa influência, sendo somente Kant o filósofo que ele declara ser o grande influenciador do seu
pensamento por um determinado período.
132
Desde 1914, é a intuição do fenômeno “vida humana” a base de todo o pensamento de Ortega.
133
Para Ortega, o idealismo reconhecia a consciência como realidade radical sem elucidar o que de fato é a
consciência. Husserl tenta corrigir esse erro, identificando o conteúdo da consciência na sua teoria
fenomenológica. No entanto, o que ele encontra é uma consciência pura – um eu que se dá conta do seu entorno.
É a pura contemplação que transforma o mundo em puro sentido. Ambas as correntes buscam uma realidade
primeira para fundamentar todas as demais. Isso faz, na visão de Ortega, que Husserl caia nos mesmos erros do
idealismo, pois, em comparação com a figura do “Rei Midas”, a consciência transforma tudo em sentido (Cf.
ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 55-63). Para Meliá (2009, p. 9), mesmo que Ortega tenha afirmado abandonar a
fenomenologia, o que lhe parece de fato ter sido abandonado pelo filósofo espanhol foi a concepção de consciência
que marca o pensamento de Husserl.
56
cartesiana deve ceder lugar a uma razão que considere a vida individual e espontânea, e essa
será, para Ortega, a razão vital, que depois aparece também como razão histórica134.
Ortega se depara com uma problemática em torno do tema da vida que aparece já
nos gregos135, mas que ganha força e visibilidade na modernidade através do pensamento de
Bergson e de Nietzsche. Para os mecanicistas, como Descartes e Hobbes, a vida deriva de uma
organização físico-química da própria matéria corpórea do ser vivo, enquanto para os vitalistas,
especificamente Bergson, a vida depende de um princípio de natureza espiritual, o qual ele vai
chamar de elã vital136.
Podemos considerar que o século XIX foi o século da descoberta da vida na
Filosofia, quando se começa a pensar uma Filosofia fora do idealismo e do positivismo
presentes no pensamento moderno. De Voltaire a Hegel, há o predomínio da razão lógica,
mesmo quando o conteúdo da vida e da história são pensados. Somente na metade do século
XIX, o tema da vida passa a fazer parte do interesse dos pensadores que dedicam seus trabalhos
a refletir sobre a existência, o homem, a história e a vida em sua dimensão natural e factual,
através de conceitos flexíveis.
Na compreensão de Marías (1987, p. 213-214), somente Maine de Biran137 é quem
alcança com consistência a realidade da vida, que até então estava presa à concepção
sensualista, centrada na sensibilidade e na experiência. Com ele, inicia-se a compreensão da
vida como realidade pessoal distinta e resistente à ideia de coisa. Existe um eu e o mundo
circundante, que depois aparecem em Ortega como inter-relacionados.
134
Ao ter clareza da historicidade como caminho de reflexão, Ortega vai chamar a razão vital também de razão
histórica.
135
Para Aristóteles, a vida está diretamente relacionada a um movimento natural que comporta uma substância
biológica e que obedece a um ciclo vital. Na compreensão biológica, a vida segue um movimento natural interno
regulado pela matéria que compõe cada ser vivo e que se caracteriza por uma certa espontaneidade que segue um
ciclo comum a todos: nascer, crescer, se reproduzir e morrer. Em Aristóteles, essa definição já está presente no Da
alma ao definir a vida como “nutrição, crescimento e a destruição que se originam por si mesmos” e que possuem
em si um princípio capaz de regular todo o movimento presente em cada um desses processos. Aristóteles não está
se referindo a nada fora da matéria, ou de um princípio regulador fora da natureza, mas ao movimento que é próprio
aos seres vivos e que os diferencia dos seres inanimados pela capacidade de seguir um clico autorregulativo. O
conceito de vida está diretamente relacionado à física aristotélica pela concepção de alma dividida em três partes:
sensitiva, apetitiva e intelectiva. As duas primeiras estão diretamente relacionadas à dimensão biológica do ser
vivo e a segunda, à sua dimensão racional.
136
Consciência criadora que extrai de si mesma tudo o que produz (Cf. ABBAGNANO, p. 1195-1196).
137
Filósofo do século XIX que desenvolveu uma teoria antropológica em que distingue vida animal de vida
humana e de vida espiritual.
57
138
Primeiro autor a pensar com clareza a vida humana como realidade existente (Cf. MEDINA, 1993, p. 242).
139
Marías (1960, p. 90) retoma a concepção de Walter Lowrie que fez a observação de que o emprego do termo
existência, muito mais abstrato do que vida, leva à suposição de que a palavra vida foi evitada por suas associações
românticas, sentimentais e biológicas.
58
140
Cf. BERGSON, Conferências, 1974, p. 77 (Col. Pensadores).
141
Nesse mesmo ano, 1929, na conferência “La filosofia del espírito”, Ortega afirma que o bergsonismo tende a
uma forma de anti-intelectualismo estéril, ao acreditar que Bergson faz parte de um grupo de pessoas que opõem
ciência à vida, vida à ciência, e filosofia à vida (Cf. GULLY, 2013, p. 172-173).
142
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VII, p. 266-268.
59
143
Cf. BERGSON, L’évolution créatice, p. 166-179; MARÍAS, 1960, p. 104.
60
a vida é, acima de tudo, uma tendência para agir sobre a matéria bruta. O
sentido dessa ação não se acha, sem dúvida, predeterminado: daí a
imprevisível variedade das formas que a vida, ao evoluir, semeia no seu
caminho. Mas essa ação apresenta sempre, em grau mais ou menos elevado, o
caráter da contingência; implica pelo menos um rudimento de escolha. Ora,
uma escolha supõe representação antecipada de várias ações possíveis. É,
portanto, necessário que na própria ação se delineiem para o ser vivo
possibilidades de ação (BERGSON, 2010, p. 114).
As ciências positivas não são capazes de entender a consciência, visto que o método
positivista visa manipular e classificar as coisas pela experimentação. Esse tipo de
procedimento é possível para as experiências externas, de natureza prática e concreta, ou seja,
do natural e social; mas com as experiências interiores somente é possível obter um
conhecimento da essência das coisas intuitivamente pela consciência dos fatos vividos.
Para Bergson, o ser humano é constituído de consciência, memória e liberdade. A
consciência é a conversão da atenção para o mundo interior, dividindo-se, como experiência,
em dois aspectos: o que se ocupa das coisas externas, pela percepção; e outro, que permite um
aprofundamento em si mesma pela duração. A duração corresponde à própria experiência
vivida, sendo ela o próprio eu enquanto consciência, memória e liberdade. A duração da vida
não é um instante que substitui outro instante: se assim fosse, não haveria outra coisa senão o
presente, não haveria prolongamento do passado no atual, não haveria evolução, nem duração
concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que segue avançando 144. Existir,
portanto, consiste efetivamente em mudança que implica uma criação indefinida.
144
Cf. BERGSON, 1974, p. 77.
62
145
O interesse de Ortega pelo filósofo alemão aparece desde a sua vida escolar, porém sua forte influência em
relação ao seu pensamento vitalista advém principalmente de sua temporada de estudos na Alemanha, quando
entrou em contato com sua obra através das aulas de Simmel, o qual se opunha aos conceitos nietzscheanos de
massa e de homem. Para Marías (1966), há em Nietzsche a consciência de valor e de estimativa, apresentando em
64
render-se aos seus movimentos naturais. O entusiasmo de Ortega por Nietzsche faz com que,
no início do seu pensamento, se aproprie de suas muitas ideias e estruture uma obra, El tema de
nuestro tiempo (1924)146, com concepções e críticas muito próximas às que Nietzsche já fizera
em relação à modernidade. Por isso,
Segundo Marías (2004, p. 401), a obra de Nietzsche revela uma forte influência de
Schopenhauer e Wagner e uma grande sensibilidade e preocupação com a vida, tendo como
tema central de seu pensamento o homem e a vida humana. “Schopenhauer pone el valor
absoluto en lo no-vivir, Nietzsche – tan próximo en el planteamiento de la cuestión – invertirá
la solución y pondrá como valor definitivo, correspondiente la elevación e intensificación de la
vida como valor definitivo para el segundo” (MARÍAS, 1960, p. 96). No entanto,
diferentemente de Schopenhauer, a vida, em Nietzsche, revela-se pela exaltação da vontade.
Através da crítica ao pensamento socrático, que aparece claramente no Nascimento
da tragédia no espírito da música, Nietzsche assume uma postura de afirmação da vontade de
poder, contrapondo-se ao que Kierkegaard anunciara em seu pensamento sobre o aspecto
negativo da vontade pela negação da vontade de viver. O caminho do pensamento de Nietzsche
é afirmativo em relação à vida e sua crítica vai se estruturar em torno da moral cristã por negar
a dimensão espontânea da vida pelos afetos, assim como a herança grega socrática que abriu
caminho para um pensamento puramente teorético através da afirmação do espírito apolínio.
Seu vitalismo estrutura-se em uma perspectiva de vida muito próxima do
pensamento mitológico dionisíaco em que a desrazão é necessária na efetivação da vida e o
seu pensamento um acentuado interesse pelo indivíduo enquanto tal. Cerezo (1984) foi um dos estudiosos que, no
seu livro La voluntad de aventura, se dedicou à influência de Nietzsche em Ortega.
146
Considerado por Cerezo (1984) como sendo o mais nietzschiano dos livros de Ortega.
65
homem se expande pela espontaneidade147 e pela atenção ao natural através do prazer muito
presente na sua concepção de “eterno retorno”, uma vez que o homem tem a possibilidade de
querer a vida infinitas vezes.
No entanto, o bem máximo é a própria vida que “culmina na vontade de poder”
(MARÍAS, 2004, p. 402). O “super-homem” é aquele capaz de superar a si mesmo através da
superação de valores que neguem a vitalidade, na construção de novos valores que o
impulsionem no desejo de expandir-se cada vez mais. Esse vitalismo que marca o pensamento
de Nietzsche influenciará Ortega a negar a perspectiva reducionista e finalista da vida,
enfrentando, dessa forma, a teoria darwinista de evolução para adaptação ao meio físico por
meio de sua concepção de vida como elaboração relacional entre o homem e a circunstância.
Meliá (2009, p. 19) defende, em sua tese de doutoramento, que Dilthey é o principal
adversário de Ortega e não Heidegger, como muitos afirmam ser. Ao conhecer o pensamento
historicista de Dilthey, Ortega busca precisar ainda mais a dimensão histórica da sua visão de
Filosofia e persegue, até os últimos momentos de sua trajetória intelectual, a apresentação do
que ele vai chamar de razão vital e histórica. Foi por meio desse encontro que Ortega passou a
sustentar a realidade radical que se alcança por meio da razão histórica.
Ortega reconhece o mérito de Dilthey de ter sido o primeiro a trazer o tema da vida
humana para a discussão filosófica. Essa foi a sua grande contribuição como vocacionado à
história, porém, na compreensão de Ortega, Dilthey não chega ao entendimento de uma razão
histórica, sendo seu pensamento histórico sobre a vida muito mais uma intuição148.
Dilthey pertence à geração de Brentano, Nietzsche e James. Sua grande
contribuição, na leitura de Ortega, foi descobrir a ideia da vida, apesar de não elaborar uma
teoria ou uma doutrina sobre o tema (MARÍAS, 1966, p. 220). Ortega reconhece chegar à
Filosofia da existência através de Dilthey, mas considera o termo existência errôneo, porque
vida seria o termo mais adequado para falar da trajetória humana. Em 1913, ninguém suspeitava
que havia em Dilthey uma filosofia da vida. Ele era visto somente como um excelente
147
Para Nietzsche o espontâneo provém do biológico, da força vital. Para Ortega, a vida é marcada pela cultura e
pela espontaneidade, sendo que o espontâneo provém do que o homem pode realizar independentemente das
determinações biológicas ou culturais.
148
Ortega reconhece que Dilthey foi o primeiro a explorar a concepção de homem associada à vida, mas sem
avançar o suficiente de modo que conseguisse perceber que sua concepção de vida era a sua grande intuição (Cf.
ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VI, p. 222).
66
Dilthey entende a vida psicofísica como uma estrutura interna do indivíduo que
sucede da própria vida e a integra às demais realidades circundantes, as quais também
interferem nessa estrutura (SÁNCHEZ, 2013, p. 31). Através do pensamento, o homem toma
consciência das conexões da vida psíquica, sendo a compreensão uma parte constitutiva da
psique humana. A vida se exterioriza e se manifesta de três formas: linguagem, ação e vivência.
149
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VI, p. 165.
150
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VI, p. 166.
67
151
Cf. SÁNCHEZ, 2013, p. 23.
68
producto intelectual sino que es un elemento real de la vida” (SÁNCHEZ, 2013, p. 24). No
entanto, a vontade, para Dilthey, será determinante e suficiente para estruturar seu método
hermenêutico centrado na história e na psique humana, na vida vivida.
Na compreensão de Marías (2004), Dilthey não faz um sistema da história nem da
vida, mas apenas tem um contato imediato com a realidade da vida e, consequentemente, da
história. “Dilthey nos trouxe o historicismo, que é certamente uma doutrina, mas antes um modo
de ser: a consciência histórica, cuidando de tirar ao termo consciência seu matiz intelectualista
e doutrinal” (MARÍAS, 2004, p. 421). Nele, o tema da vida alcança seu maior desenvolvimento
no século XX, ao considerar que a vida só pode ser entendida a partir dela mesma, aplicando
como método do seu historicismo a hermenêutica, pois o conhecimento é resultado de uma
interpretação que sucede a vida. Uma teoria representativa da realidade pela consciência ou
pela natureza não cabe na compreensão da vida. Em relação ao conhecimento da realidade, não
é possível uma penetração da mente no real, fala-se de uma compreensão do real, sendo que
não se trata de buscar uma verdade absoluta, na vida, na história ou na própria racionalidade.
Dilthey descobre a vida em sua dimensão histórica (MARÍAS, 1966, p. 222) e essa
é a sua grande contribuição à Filosofia. Ao conceber o homem como ser histórico, a vida passa
a ser compreendida na sua historicidade. Porém, esse tema não está desenvolvido no individual,
pois pensa a vida em sua totalidade, posto que a vida individual é uma parte da vida em geral.
Há, entre as coisas, uma correlação, importando para ele aprofundar esse problema na estrutura
da vida que, para o homem, “é um enigma que pede compreensão” (MARÍAS, 1966, p. 223).
Desenvolve sua técnica de interpretação através do seu método hermenêutico de compreensão
da vida, do eu ao outro, ou do próximo à natureza. “La necesidad de una fundamentación de las
ciencias del espíritu, históricas, humanas, lleva Dilthey a su método histórico y esencialmente
empírico” (MARÍAS, 1960, p. 109-110). Com isso,
el papel, por tanto, de las ciencias del espíritu es: descripción y análisis de la
estructura y desarrollo de la vida psíquica, donde las vivencias juegan un papel
central; y comprensión e interpretación de las manifestaciones de vida a través
de sus expresiones (SÁNCHEZ, 2013, p. 31).
Essa dimensão empírica leva Husserl a criticar esse método por considerá-lo
fundamentado nos fatos da vida espiritual empírica, a qual, por seu conteúdo histórico,
desencadeia um relativismo em que as ideias de verdade, teoria e ciência, assim como todas as
demais, perdem sua validade absoluta, não sendo coerente em uma teoria forte chegar a
conceitos rígidos por fundamentos históricos.
69
En mi obra no hay apenas ideas que coincidan con las de Dilthey, ni siquiera
que las incluyan y supongan como precedente – esto es lo que lamento! Por
eso he perdido diez años! Pero hay más: mis problemas y posiciones no sólo
no coinciden e incluyen como precedentes las de Dilthey, sino que parten ya,
desde su primer paso, de una estación más allá de Dilthey en la trayectoria de
la idea de la vida (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VI, p. 174; MARÍAS, 1961,
p. 322).
152
Cf. MARÍAS, 1961, p. 320.
70
de Dilthey. Ortega não vê esse encontro com o pensamento de Dilthey como uma coincidência
com aquilo que ele próprio vinha produzindo sobre o conceito de vida, para ele, trata-se de uma
correspondência, visto que ambos trazem para o centro da Filosofia a vida como preocupação
primeira e concebida por sua historicidade.
No entanto, razão histórica para Ortega não é a mesma ideia de razão histórica para
Dilthey. Enquanto, o historicismo de Dilthey reclama uma compreensão racional da história,
instituindo método específico para isso, Ortega busca compreender a vida como conteúdo
histórico, concebendo-a como realidade histórica e racional, em que a vida constitui a razão e
a história e, por esse motivo, pode ser compreendida em sua dimensão mais radical, a vida
individual.
Para Ortega, Dilthey não chegou à razão histórica e a prova é que considera a
Filosofia, junto à religião e à literatura, uma possibilidade permanente e, portanto, a-histórica.
Em Ortega, tudo é posterior ao acontecimento da vida e tudo sempre provém de algo anterior,
até mesmo a Filosofia resulta desse acontecimento que leva o homem a buscar novas formas de
compreender a realidade.
Ao criticar a fenomenologia de Husserl, que considera o eu e a coisa como
idealidade, Ortega afirma que ambos são realidade mesmo, não havendo consciência como
forma primária da relação entre sujeito e objeto, pois o que há é o homem sendo com as coisas
e as coisas sendo com o homem, e nisso consiste a vida. Com esse argumento, afirma ser
equivocado considerar que Dilthey influenciou seu pensamento, visto que ele não tinha ideia
dessas coisas e, sob forte influência da fenomenologia, acreditava na ideia de consciência153.
153
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 1120.
71
ao reconhecer que ela pouco tem servido para o avanço posterior da ideia de vida, mesmo sendo
esta sua grande contribuição, a grande ideia que aparece no pensamento de Dilthey. Para
Ortega, não é claro o tema fundamental publicado no primeiro tomo da Introdução às ciências
do espírito, porém é evidente que se tratava de um tema nunca abordado na Filosofia: o tema
da vida humana.
No primeiro contato de Ortega com Dilthey, através da Biografia de
Schleiermacher, lamenta não ter conhecido antes sua obra Introdução às ciências do espírito,
pois, para ele, ali está sua principal intuição, mesmo que Dilthey não tenha se dado conta disso.
Assim, Ortega considera que Dilthey ficara no meio do caminho de sua própria ideia. Essa
referência à obra de Dilthey tem em Ortega uma certa defesa das acusações de que sua obra
teria sofrido grande influência desse filósofo. Contudo, a justificativa de Ortega é uma forma
de afirmar que suas ideias coincidem com as de Dilthey, mas não procedem delas; e mais, para
ele, não há nada em Dilthey que se possa aproveitar para os termos decisivos da sua razão
vital154.
No entanto, a “Escola Histórica” contribuiu para a superação da visão naturalista
do homem do século XVII ao se contrapor à ideia de natureza pela ideia de história. Ela é a
primeira, na visão de Ortega, a se deparar com o homem em sua realidade e não em suas
idealizações, quando passa a observar o mundo mutável. Entretanto, como limitação, se
contenta em observar e descrever, esquecendo outra dimensão da história que é o pensar o
visto155.
A crítica orteguiana tem como argumento central a ideia de que a história não
consiste somente em sua dimensão factual, que está restrita a um acontecimento passado, a
história, para Ortega, é a história dos homens e, por isso, atuante. Por esse motivo, acredita que
a ciência histórica de Dilthey está fundamentada na crítica à epistemologia kantiana, a qual não
consegue superar por fundamentar as condições do conhecimento em aspectos epistemológicos
de natureza volitivas e sentimentais, por meio de uma atitude de radical empirismo. Para
Dilthey, é preciso tomar os fatos da consciência como eles se apresentam e são, pois não existe
uma realidade além deles e todo fato da consciência se apresenta em conexão com outros fatos.
Para Ortega, isso levou Dilthey ao seu grande erro, pois ficou prisioneiro do irracionalismo vital
frente ao racionalismo intelectual, não acertando na dimensão racional da vida.
154
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VII, p. 226-231.
155
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VII, p. 232-237.
72
156
Desde 1914, Ortega critica explicitamente a ética kantiana e neokantiana ao se contrapor à ideia de uma moral
geometricamente perfeita.
157
Interpretação que o homem dá a sua vida e uma série de soluções, mais ou menos satisfatórias, que inventa para
solucionar os problemas e necessidades vitais (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 226).
158
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 73; ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 256.
159
Para Ortega, a modernidade representa uma cruzada contra o cristianismo ao demolir, pela razão, o transmundo
celestial cristão pelo primado da razão inaugurado em Descartes. Começa-se a falar na Teologia e na Filosofia da
modernidade ao distinguir vida antiga e vida moderna, fazendo com que os exercícios religiosos passem a se opor
ao que se chamou de devoção moderna (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 73).
160
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 55.
73
161
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 19.
162
Foi no Renascimento que, ao retornar à crença no aspecto natural, pondo o homem no centro, é que se pode
dizer que se passou a gestar a confiança na razão físico-matemática que vai estruturar toda a nova ciência e
instaurar o homem novo (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 19).
163
O diagnóstico de uma existência humana tem que começar por suas convicções (Cf. ORTEGA Y GASSET,
2008b, p. 15).
74
século XVI ao XX. A questão posta por Ortega refere-se exclusivamente à insuficiência dos
métodos aplicados pelas ciências da natureza à realidade humana. Para ele, a grande expressão
do utopismo da ciência é o pronunciamento do fisiólogo Loed, considerando que chegará o
tempo em que os atos morais serão explicados pelo tropismo.164
Uma das características apresentadas por Ortega em relação à ciência moderna é a
independência dos saberes, sendo essa mesma independência o motivo da crise dessa ciência165.
A exatidão das ciências, algo muito peculiar à Física moderna, enquanto pretensão de encontrar
objetivamente suas verdades, faz com que, frente ao universo entendido como um imenso
problema, essa crença excessiva caia em descrença, pois as ciências em suas particularidades
não deram conta de resolver os problemas, mesmo os basicamente epistemológicos. A falta de
uma verdade integral faz com que o homem ponha em questão os saberes particularizados do
conhecimento científico.
Para Ortega, o homem do século XV está perdido em si mesmo, desarraigado de
um sistema de convicções. Uma das principais atividades que marca a vida humana é o
conhecimento, ou seja, a apreensão do real pelo pensamento, em que um tem que se identificar
com o outro. Para os antigos, esse processo se constitui pela análise das coisas por si mesmas,
não pondo em questão o conhecimento em si. Na modernidade, a realidade é o que está dentro
do pensamento e o homem passa a se contentar em conhecer o próprio pensamento. Isso é o
que faz Descartes quando concebe que a verdade consiste na chegada do intelecto à realidade e
em uma certa qualidade do sujeito cognoscente, cuja necessidade do conhecimento é o
esclarecimento de como funciona a inteligência do sujeito; o problema agora não está na
realidade, mas no próprio sujeito do conhecimento, ou seja, a questão da verdade fica reduzida
à subjetividade. Descartes rompe com toda interpretação dada no Renascimento ao proclamar
o abandono da tradição e dos clássicos, construindo um discurso de superioridade do presente
sobre o passado. O livro agora é o próprio mundo e a fé passa a ser no homem, que é visto como
antecipador de si mesmo166.
Em seu texto “Vicisitudes en las ciencias” (1930), Ortega fala de um imperialismo
das ciências físicas – Biologia e Matemática – e da História no século XIX. No entanto, ele
considera essa ideia fantasiosa, pois a crença que sustentou essa ciência foi relativizada, já que
até mesmo o Universo tem suas contradições, não se reduzindo a uma perspectiva euclidiana.
164
O Sr. Loeb, assim como toda sua geração, acreditava no futuro de uma física da moral (Cf. ORTEGA Y
GASSET, 2008b, p. 24).
165
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 39-55.
166
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 235.
75
Para Ortega, não ter a precisão matemática foi um erro que levou à criação da Física. Porém,
isso não está fora da sua compreensão de vida, porque o erro provém da vida que é também
falta e opressão.
A razão vital ou vivente167 é gestada na crítica à própria modernidade, que se
sustenta na razão pura para propor um modo de reflexão que considera a razão físico-
matemática como órgão de compreensão da realidade. A crítica orteguiana não vai de encontro
à razão, mas à racionalidade implementada na modernidade, que além de propor uma razão
superior à vida, contribui, pela ciência, para a construção de uma visão antropológica concebida
a partir de um modelo de homem atrelado às ideias postas pelos saberes especializados.
Na obra En torno a Galileo168 (1933), Ortega identifica a gênese da modernidade
como resultado de uma grave crise histórica da fé frente à razão. Uma crise significa uma
mudança de mundo que se diferencia do mundo vigente em relação ao que o sucede, tendo o
caráter de catástrofe pelo fato de o homem não saber o que fazer por não saber o que pensar. A
princípio, aparece como algo negativo, pois o homem em crise encontra-se vivendo uma
experiência de desorientação, entregue ao caos da circunstância, sem clareza do que pode de
fato ser importante para a sua vida.
Essa experiência Ortega vai chamar também de descrença169, pois o homem
desorientado é o homem que perde as crenças que orientam o seu fazer e encontra-se sem
convicções. Em torno desse estado de negação, surgem, na visão de Ortega, novas tendências
positivas. A experiência de crise possibilita ao homem criar novas formas de vida, novas
convicções, e isso é muito positivo para a vida humana, visto que, segundo a leitura de Ortega,
o homem que não reconhece suas autênticas necessidades, que não pensa a si mesmo, vive de
forma irresponsável, atropelado/alterado pela circunstância, o que, em excesso, leva à
barbárie170.
Entretanto, a crise não é simplesmente uma categoria da História, ou uma palavra
de dimensão intelectualista e cientificista, mas uma modalidade radical que toma a vida
humana. Em sua vida, o homem sempre se depara com crises, que são associadas aos problemas
167
Esse termo Ortega vai utilizar em sua fase mais historicista, quando entende claramente a vida como a
dramaticidade que se passa em cada indivíduo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. X, p. 31).
168
Essa obra é, na verdade, um curso de doze lições dado por Ortega na Universidade Central Madrileña em 1933,
que tinha o objetivo de esclarecer como foi que o homem obteve, na modernidade, a fé última na ciência (Cf.
ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 86).
169
Ortega também vai chamar essa experiência de convicções negativas, pelas quais o homem não tem segurança
para orientar suas escolhas (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 90).
170
Esse é um tema que aparece frequentemente inserido na crítica social que Ortega faz às sociedades do século
XX, devido ao advento de um tipo de homem que perde o contato com a sua subjetividade, tornando-se dócil aos
mecanismos de socialização. O excesso de alteração leva à barbárie pela perda da capacidade de reconhecimento
da vida como um acontecimento pessoal e intransferível (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 97).
76
oriundos do próprio viver. No sentido vital, problema significa não saber qual é a autêntica
atitude a respeito de si e em qual pensamento se pode acreditar verdadeiramente. Com isso, em
uma perspectiva vital, a solução do problema não se encontra no descobrimento de uma lei
científica, mas no encontrar-se a si mesmo171. Essa é, na visão de Ortega, a missão superior do
homem, que consiste em resolver sua vida lealmente.
Ortega identifica esse homem como desorientado de si mesmo172 por não ter
consciência de sua individualidade e por desconhecer sua história. Portanto, entender a
modernidade requer elucidar as situações que a antecederam, isso porque, em cada tempo
histórico, o homem vive situações distintas: o cristão, a negação do mundo; o grego, a confiança
na razão; o romano, a confiança no Estado; o asiático e o judaico, a desconfiança de si mesmo;
e o homem moderno, 173o reencontro com a natureza que ficou suprimida na vida medieval pela
estrutura do cristianismo que reconhece a nulidade do homem e da natureza para ser absorvido
por Deus. A descoberta de um novo tipo de ciência por Galileu e Descartes retoma a fé e a
crença do homem em si mesmo perdida pela concepção cristã do pecado e pela falta de
confiança em si mesmo ao descobrir a radical dependência a um poder superior.
O homem que nasce na modernidade é o homem cartesiano, gestado na Idade
Média, a partir de Copérnico com sua obra De Revolutionibus Orbium Caelestium174. A ciência
passa então a ser o parâmetro para a compreensão de tudo, e a perspectiva da vida se confunde
com a do saber científico. O homem que faz ciência passa a servir de base para suas convicções
e instala-se o que Ortega vai intitular de “império da ciência”175.
Esse modelo de saber tem como fundamento um modelo de racionalidade que busca
esclarecer todas as questões com base em uma razão isenta de sensibilidade. Frente a esse
modelo de racionalidade, Ortega propõe uma razão vivente que antepõe a vida ao exercício da
razão. Essa discussão aparece claramente quando Ortega faz uma crítica à História enquanto
ciência puramente factual, sendo que, para ele, a História deve considerar a vida em que os
fatos estão envoltos, ou seja, a História é a história da vida humana e não de fatos isolados dos
indivíduos176.
171
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 110.
172
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 119.
173
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 115.
174
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 83.
175
Significa reconhecer a crença como preponderante no saber científico, de modo particular na Física e em tudo
que se constitui nos diversos laboratórios. Esse tipo de saber, na visão de Ortega, precisa ser superado pelo saber
vital (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 126).
176
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 23.
77
A crítica de Ortega aparece muito mais incisiva e presente em vários de seus textos
sobre Descartes177 como protagonista da razão moderna enquanto razão que desqualifica o
mundo imediato, concebendo-o como ilusório. Essa crítica aparece fortemente em Ortega e nos
parece ser a porta por onde adentra em seu pensamento, pois o que é tido como sendo ilusório
e desqualificado para adequar-se a um pensamento racional, Ortega entende como razão
primeira de toda e qualquer forma de compreensão. Fala-se aqui da vida na sua dimensão mais
primária, ou seja, como acontecimento que se constitui na particularidade e na singularidade
dos indivíduos. É essa vida que interessa a Ortega e que vai ser fonte do desenvolvimento de
todo o seu pensamento sobre o humano. Para Ortega, o grande erro da modernidade178 foi
acreditar que o homem consiste em pensar. Sem desqualificar essa faculdade, o que nos parece
acontecer em sua proposta filosófica é um movimento para interligar vida e pensamento,
considerando que, como faculdade humana, o pensamento é constitutivamente histórico.
Começamos então a visualizar a gestação de um pensamento que, assim como o próprio Ortega
afirma, “[...] no va contra la razón, puesto que no admite otro modo de conocimiento teorético
que ella: va sólo contra el racionalismo”179.
Figuras como Platão, Descartes, Kant e Leibniz aparecem nas críticas de Ortega
como representativas da forma de pensar que enaltece a razão e descredencia a vida como órgão
de compreensão. Em Teeteto, Platão reconhece a forma exemplar da razão em que a
racionalidade reduz a mente humana à função de decomposição das coisas em vista de um
princípio de natureza racional. Para Ortega, essa forma extrema de conceber a razão cai em um
irracionalismo por desconsiderar outras formas de compreensão que não sejam simplesmente
pela razão pura/formal. Em Leibniz, não é diferente, pois ele designa a razão com a mesma
fórmula de Platão, em que o princípio de todo o conhecimento é o princípio de dar razão, o
princípio da prova, em que se faz necessária uma conexão entre o sujeito e o predicado dela. A
razão, à qual Ortega se refere e que critica no racionalismo, é a razão analítica que consiste em
uma mera análise ou definição do objeto/realidade com o objetivo exclusivo de ter acesso ao
seu interior, reduzindo-a a simples operação formal.
Ortega denuncia isso como sendo a cegueira do racionalismo, que não permite ver
as coisas além do que pode ser visto pela forma ideal ou lógica. Contrariamente a essa visão
racionalista, Ortega entende que a contingência da realidade faz com que as coisas possuam
177
Entre as referências ao filósofo francês, destacamos o texto Lectura y comentario de las obras de Descartes
(1933) (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 38-48).
178
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 159.
179
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 213.
78
uma estrutura distinta das ideias e que a identificação entre coisas e ideias não seja mais do que
uma transgressão do racionalismo no uso apressado e limitado da razão, impondo sobre o
mundo uma estrutura subjetiva. Ela passa a ser uma contrafigura do que deve ser, da idealidade,
e isso, para Ortega, nada mais é do que o misticismo180 da razão presente na modernidade.
A razão vital aparece em Ortega como o fundamento da sua crítica a formas
extremas de compreensão moderna que estão presentes tanto no realismo, ao conceber o pensar
como resultado do ser, quanto no idealismo à moda de Kant, pela estrutura do ser proveniente
do próprio pensar, na postura mais extrema que seria o ceticismo, em que nada coincide com o
ser, ou mesmo em uma posição mais moderada, em que o ser coincide, em parte, com o pensar,
ainda que existam zonas irracionais no mundo.
Ortega entende que a razão vital aparece como uma razão capaz de superar essa
incapacidade racional de pensar determinadas realidades fora do mundo da Física. É o que
Bergson faz quando chama esse tipo de conhecimento de “bom sentido”. Esse termo, Ortega
entende como sendo uma razão mais ampla, em que alguns objetos são irracionais em uma
visão da razão pura, mesmo que a vida vá além dos problemas postos no campo teórico e esses
problemas de ordem prática também devam ser vistos pelo prisma da razão. Por isso, considera
que a ciência moderna vive uma nova crise no pensamento ocidental e afirma que “la ciencia
está en peliglo”181. É a passagem de uma fé viva na ciência para uma fé inerte. Com essa
perspectiva, ele indaga: O que a ciência tem hoje a dizer sobre o homem? 182 Sobre as grandes
mudanças humanas, a ciência não tem nada de preciso a dizer e é esse não saber dizer que, para
Ortega, abre uma lacuna para uma nova forma de pensar e compreender o fenômeno humano.
Entendida como razão naturalista, a ciência moderna, na visão orteguiana, fracassa
frente à totalidade da existência humana, por deter-se em um único aspecto da dimensão da
vida que é a natureza, e é desse desequilíbrio entre o natural e o existencial que a razão vital
busca dar conta. Quanto a isso, Ortega não anuncia um fracasso da ciência, mas o fracasso do
que se propôs a partir dela, o fracasso do “utopismo científico”, em que se buscou resolver
todos os problemas do Universo pelos métodos naturalistas. Por isso, entende que essa postura
nada mais é do que mera “calenda grega”, “beataria científica”. Hoje, compreende-se que a
ciência pela razão pura não consegue explicar toda a realidade e todos os fenômenos humanos,
pois seus métodos não são suficientes para dominar os enigmas do Universo, principalmente
180
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 219.
181
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 21.
182
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 21.
79
no campo do humano, visto que “la razón física no puede decirnos nada claro sobre el
hombre”183.
É contra o radicalismo presente na ciência moderna que Ortega se posiciona indo
em defesa da espontaneidade da vida ao considerar que o fracasso da razão física frente aos
assuntos humanos deixa “[...] la vía libre para la razón vital y histórica”184. Isso porque o
conceito de natureza presente na modernidade não explica o destino humano, pois a vida
humana não consiste na natureza biológica185. Por isso, a ciência racionalista não consegue dar
respostas coerentes para os dramas humanos. Assim, acreditando na necessidade de um novo
saber para a compreensão do humano, Ortega propõe uma razão que nasce do sujeito vivente e
a ele auxilia em sua relação com o mundo enquanto ser vivente e histórico.
A crítica de Ortega não fica restrita às ciências da natureza, mas diante delas, ele
acusa as ciências humanas186 de não pensarem a vida em sua dimensão vivencial. Acusa os
representantes187 das ciências do espírito de investigarem o humano com as ideias naturalistas,
caindo no mesmo erro das demais ciências, ao se apropriarem de categorias fundadas em uma
ontologia da res. O exemplo clássico apresentado por Ortega é o de Geist188, que, apesar de
propor uma oposição ao conceito de natureza, apresentava um conceito cujo movimento interno
é fixo, estático e pré-estabelecido. O intelecto, proto coisa, identifica e coisifica toda a
realidade.
O idealismo atribui o conceito de Geist ao homem, na medida em que não é
natureza; mas, ao tentar compreender o humano como realidade espiritual, os fenômenos
humanos passam a demonstrar a mesma resistência a serem aprisionados em conceitos como
se fossem uma coisa que possui uma identidade. Schopenhauer aparece como um dos grandes
críticos desse período, pois entendia que a vida é regida pela vontade e não pela razão, assim
como compreendia Hegel189. Ortega compartilha dessa crítica e a direciona à Filosofia da
História, afirmando que essa é uma interpretação equivocada do homem como realidade
183
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 25.
184
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 26.
185
Ortega se contrapõe a qualquer fundamento que enquadre a vida em uma única dimensão de viver. Nesse
sentido, pensar a vida a partir da matéria é enquadrá-la em categoria de coisa, que não se aplica, pelo menos no
que o pensamento orteguiano se propõe a superar.
186
Nas quais incluem as ciências do espírito, as ciências morais e as ciências da cultura (Cf. ORTEGA Y GASSET,
2008b, p. 28).
187
Hegel será uma das figuras mais representativas dessa corrente, antecedido por Descartes que já havia
posicionado a razão como valor supremo. Ortega chega a escrever, entre 1928 e 1931, alguns textos sobre Hegel,
mas não é possível identificar aproximações entre ambos, apenas uma clara diferença de conteúdo e método (Cf.
SÁNCHEZ, 2000, p. 253).
188
Referente ao que estará presente na Filosofia da História através do conceito idealista de espírito.
189
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 28.
80
190
Ortega se refere a toda a tradição filosófica que se fundamenta no princípio invariável que, desde os gregos,
aparece na categoria do Ser (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 30-35).
191
Referência às ciências do espírito que, para Ortega, também pode ser compreendido como idealismo (Cf.
ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 36).
192
Ortega vai chamar de naturalismo todo o pensamento desde Parmênides que crê no princípio de identidade (Cf.
ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 553).
193
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 37.
81
194
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 55.
195
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 96.
196
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 224.
82
[...] ahora ser real tiene un nuevo sentido: significa, frente a independencia,
depender el uno del otro, ser inseparables, mutuo serse. Las cosas me son y yo
soy las cosas, estoy entregados a ellas – éstas me cercan, me sostienen, me
hieren, me acarician. Entre ellas y yo no hay eso que se llama consciencia,
cogitativo ni pensamiento: la relación primaria del hombre con las cosas no es
intelectual, no es de simple darse cuenta, pensarlas o contemplarlas – que más
quisiéramos -, sino que es estar directamente con ellas y entre ellas y por parte
de las cosas actuar efectivamente sobre mí (ORTEGA Y GASSET, O.C., v.
IX, p. 505).
197
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 517.
198
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 517.
83
quanto a razão que vai dar conta de fazer a abordagem sobre a vida cotidiana. Por isso, essa
razão está diretamente relacionada à biografia, pois sendo a biografia o que cada um faz da sua
vida199, a razão adequada para pensar a vida nessa dimensão requer um lançar-se no mundo dos
acontecimentos pessoais em vista de compreender como cada indivíduo vai realizando suas
escolhas.
Nesse sentido, a razão histórica é uma razão que parte da História, mas não como
uma razão que se realiza na História ao estilo hegeliano. Não é a esse tipo de realização que
Ortega se refere. A razão lança-se sobre a História não para imprimir nela conteúdo de
racionalidade, mas para compreender os acontecimentos que estão diretamente relacionados à
vida individual. Por isso, Ortega vai entender a razão histórica como rigoroso conceito, logos,
pois, por ela, o homem busca compreender o que ele faz de si mesmo, interpretando sua vida e
buscando a gênese dos acontecimentos. Podemos dizer que esse modelo de razão apresentado
por Ortega no contexto da biografia é uma razão hermenêutica, pois objetiva estruturar uma
compreensão da vida a partir das vivências do sujeito, do que cada um atribui como significado
às experiências de vida.
Para Ortega, a aurora da razão histórica dar-se-á pela absorção do passado pelo
homem, porque ele é “[...] el único ente que está hecho de pasado, que consiste en pasado, si
bien que no sólo de pasado” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 594). O fim da citação é
bem significativo, pois ao mesmo tempo em que o modelo de razão apresentado por Ortega
enaltece o passado como sendo algo necessário no processo de compreensão da vida, há no
homem outra dimensão temporal que o lança para além do passado, que é o futuro. No entanto,
a partir dessa compreensão de razão orteguiana, impõe-se uma questão: como a razão histórica
vai dar conta de pensar o humano sendo que a vida se faz no futuro enquanto pretensão de ser?
Não fica difícil esclarecer a questão, porque, em Ortega, a temporalidade da vida não é
dissonante, posto que passado, presente e futuro dialogam sempre dentro do tempo vital –
possibilidade que se justifica pela capacidade humana de recordar o vivido. A recordação será,
em Ortega, uma ferramenta necessária ao exercício do progresso humano, pois, ao dar-se conta
do passado, o homem tem a possibilidade de lançar-se para o futuro com uma margem de
segurança.
199
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 121.
85
200
ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 670.
201
Essa é uma crítica de Ortega ao culturalismo e à fenomenologia que pensaram a vida depois dos conceitos de
cultura e de consciência (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 37).
86
se contrapor à ideia de transcendência para afirmar a vida como um “valor em si mesmo”. Isso
porque essa ideia possibilita confundir o interesse da vida pelas coisas202 com as próprias coisas,
pois não são os valores transcendentais que dão sentido à vida, mas esta que tem a necessidade
de entusiasmar-se com algo diferente dela203.
Para Ortega, tanto o cristianismo quanto o budismo pregam doutrinas em que a vida
fica suprimida por outras dimensões que não são ela mesma. No budismo, o único valor que se
atribui à vida é o da aniquilação, pela qual se chega à plenitude da vida, ou seja, pela anulação
do sujeito. Já no cristianismo, a vida ganha sua plenitude não no sujeito, mas na posse de Deus,
em uma vida que é extrínseca à vida material. Tal concepção parece ser superada na
modernidade, quando, pelo primado da razão, parece existir para o homem somente esta vida.
Sua postura em relação a esse aspecto da modernidade parece ser de concordância, porque é na
modernidade que se inicia a revelação dos valores vitais204.
Essa perspectiva de Ortega é uma crítica a concepções que sempre analisaram a
vida por um viés que não fosse ela mesma. O clássico exemplo está nos valores transcendentes
à própria vida e fontes de seu sentido defendidos pela aniquilação do desejo, na doutrina
budista, e pelo primado da graça, na concepção cristã. O desejo é apresentado por Ortega como
a função vital que melhor simboliza a dimensão altruísta da vida por ser um constante
movimento por algo que não é a si mesmo205.
Ortega compreende que, em todas as culturas, quando se buscou o valor da vida,
recorreu-se às coisas que estão além dela mesma, fosse na cultura ou mesmo em um Ser
transcendente, havendo em ambos uma negação de todo o valor intrínseco ao movimento
natural da vida em direção às demais realidades como essenciais no processo do viver. Podemos
considerar que, nesse momento, Ortega ainda fala do que é natural à própria vida: a sua
dimensão biológica que envolve principalmente a dimensão psicológica do homem. Esse
primeiro momento nos parece fundamental no pensamento orteguiano, porque ele se volta para
a vida mesma e a coloca como conteúdo originário do seu fazer filosófico. Para ele, as
categorias utilizadas pelos antigos e modernos para explicar o Universo não são suficientes,
mesmo que não seja possível se desfazer delas de imediato. Mas quais categorias ou atributos
202
O conceito de coisa em Ortega tem uma conotação ontológica, pois se refere a tudo que tem seu próprio ser, ou
seja, “todo aquello cuyo modo de ser consiste en ser lo que ya es y en el cual, por tanto, coincide, desde luego, su
potencialidad con su realidad – lo que puede ser con lo que, en efecto, es ya” (ORTEGA Y GASSET, 2010a, p.42).
Por essa razão, o respectivo conceito não se aplica ao homem, mas ao mundo.
203
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p.131.
204
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 119-128.
205
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 123-128.
87
serão postos por Ortega no que ele vai chamar de uma nova Filosofia206? A primeira questão
colocada por ele parte da evidência própria da vida por ser um dado que o indivíduo encontra
sem poder contestá-lo.
Por isso, a sua pretensão não é pesquisar sobre a vida biológica, pois a entende
como uma construção teórica que nasce dentro da biografia de determinados homens, os
biólogos. Segundo Ortega (2012), vida enquanto biologia é para os gregos zoé, ou seja, vida
orgânica. Bíos para os gregos estava relacionado à vida no sentido biográfico como conduta,
pois
[...] el hombre más humilde e ignorante habla de su “vida”, e nos dijo que “le
va bien o mal en la vida”, “que ha fracasado o triunfado en la vida”, “que está
harto de la vida”, en sentido, en fin, en que el enamorado, por lo menos el
enamorado español, al pasar por unos de esos instantes tropicales frecuentes
en el amor llama a su amada de “vida mía” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v.
IX, p. 680).
Assim, o saber que se construiu em torno dessa dimensão da vida foi um saber
prático.
Em 1944, ao ministrar o seu curso sobre “La razón histórica”, Ortega chega a falar
em uma “autobiografia”, por meio da qual cada um poderia, através do estudo que ele estava
propondo, chegar a uma compreensão da sua própria vida, acreditando despertar nos seus
ouvintes, através de sua fala, uma visão imediata da vida, uma evidência do que é seu próprio
e pessoal viver. A crença orteguiana resulta da capacidade do indivíduo de perceber a própria
vida pessoal, sendo capaz de reconhecer o que lhe é peculiar e personalíssimo. Levar alguém a
essa experiência requer realizar o grande desafio de levá-lo ao subsolo de sua intimidade onde
palpita o drama de cada um. Outro desafio prático apontado por Ortega para chegar à
compreensão biográfica é a dimensão dramática da vida pessoal, pois o comum é a negação da
dramaticidade da vida pela fuga da própria realidade pessoal pelo mecanismo de distração,
evitando o que de fato constitui a própria vida207.
Para tanto, é preciso o reconhecimento de duas características fundamentais do
viver: ele é pessoal e intransferível. É preciso entender que a vida acontece em primeira pessoa
206
Para pensar a vida, Ortega insiste na superação da Filosofia tradicional e aqui, de modo bastante claro, significa
a superação do idealismo e da ontologia clássica para, assim, pensar a vida com base em uma perspectiva vivencial
(Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 267).
207
“Lo cualdicho con otros términos equivale a que cada uno de nosotros se ocupa muy principalmente en evitar
ser el que irremediablemente es” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 681). Significa dizer que esse contato
consigo, o reconhecimento da vida pessoal, não é uma experiência fácil, pois implica um contato dramático com
o próprio drama que se é.
88
e que cada acontecimento não é uma abstração, mas sim o que cada um realiza dentro da sua
dimensão pessoal. São essas duas dimensões que passam a estruturar toda a teoria orteguiana
da vida biográfica.
Em um primeiro momento208, Ortega fala de uma determinação presente na vida,
referindo-se a uma lei que está atrelada a um processo interno de ordem psicológica, chegando
a afirmar categoricamente que a vida humana é vida psicológica209. E mais, fala de um
imperativo vitalista que seria algo muito próprio do homem contemporâneo como uma forma
de elevar a vida como princípio da realidade. Seria um esforço de viver para a vida mesma, e
não mais para o que dela deriva210. Essa ideia de vida psicológica é superada por Ortega pela
compreensão da vida biográfica que tem uma constituição fundamentalmente histórica e
vivencial.
A dimensão histórica da vida, na teoria vital de Ortega, aparece principalmente pelo
interesse do filósofo na vida cotidiana211 enquanto busca compreender o fundamento de uma
teoria filosófica da vida pelo dinamismo histórico que marca a trajetória da vida pessoal dentro
de um determinado tempo de vida. O conceito de história será compreendido na obra orteguiana
via conceito de geração212: nela a dimensão da temporalidade se faz presente e a constitui na
relação direta com o homem de uma época. Com isso, Ortega busca romper com teorias da vida
que sejam posteriores à própria compreensão da dimensão pessoal do viver.
208
Ainda sob influência do vitalismo nietzschiano, Ortega compreende a vida como processo interno que cumpre
uma lei de desenvolvimento, porém essa lei não pode ser vista à moda grega, como contingência externa que
determina os processos subjetivos.
209
Ao afirmar que a vida humana é psicológica, Ortega busca sustentar que, fora dela, a vida é outra coisa,
interindividual, social, evidenciando a dimensão da convivência como uma dimensão vital do humano (Cf.
BONILLA, 2002, p. 233). O princípio da nova ética proposta por Franz Brentano e as ideias expostas por Scheler
em Der formalismus in der Ethik (1913) foram as guias da superação almejada por Ortega.
210
Em En torno a Galileo (1933), Ortega reconhece que até então se tem vivido para a religião, para a ciência,
para a moral, para a economia, porém não se tem vivido para a vida. Na Idade Média, Deus foi o valor supremo,
enquanto, na modernidade, a cultura assumiu seu lugar, sendo ambos referência para pensar as questões vitais. O
que se pensa sobre a vida nesses dois momentos será sempre com base nesses dois parâmetros que fundamentam
o agir humano. Por isso, o esforço de Ortega será de elevar a vida ao estatuto de realidade por meio de uma
compreensão metafísica da vida como realidade radical.
211
O cotidiano marca a dimensão histórica da vida pelo que se vive dentro da trajetória de vida de cada indivíduo.
Por isso, o cotidiano estará diretamente relacionado à vida pessoal que acontece diariamente (Cf. ORTEGA Y
GASSET, 2010b, p. 25).
212
O conceito de geração exposto extensamente pela primeira vez em seu curso “En torno a Galileo” (1933) será
fundamental para chegar à compreensão histórica. A história de geração é o principal método de investigação
histórica que, pela análise da convivência de cada geração, chega à descoberta do espírito do tempo de uma
geração. Cada geração é constituída por homens que são dotados de características físicas comuns, disposições e
preferências, mas que marcam diferenças no seu modo de ser em relação às gerações que os antecedem. Ortega
divide as gerações em três grupos: os jovens, os maduros e os idosos. Cronologicamente, são três tempos distintos
da história humana, mesmo sendo contemporâneos. Aqui não está em questão o tempo cronológico, mas o tempo
vital. Mesmo que todos estejam no mesmo espaço de tempo, a maneira como vivem esse tempo é distinta.
89
Quando Ortega fala de vida humana, ele está referindo-se à vida de cada um, à vida
em sua dimensão pessoal e biográfica213; porém não se pode confundir vida com biografia. A
vida é uma realidade que possui uma estrutura biográfica que pode ser contada e narrada na sua
dimensão imediata. Em El hombre y la gente (1939), Ortega esclarece que a vida a que ele se
refere é a vida no sentido biográfico e não biológico214, ou seja, é o que cada um faz de si através
de suas escolhas, as quais não seguem uma lógica natural, mas dependem do que cada um faz
em meio às possibilidades que lhes são dadas pelas circunstâncias em que vive. Nesse sentido,
a biografia é a trajetória de vida que cada indivíduo traça através de suas escolhas.
Ortega reconhece que o caminho pelo qual ele trilha na estruturação do seu
pensamento raciovitalista tem origem nas leituras por ele feitas sobre o tema da vida em duas
principais correntes filosóficas: o idealismo215 e a fenomenologia. Pelo idealismo, percebe que
a realidade radical para pensar a vida humana se encontra na cultura; e pela fenomenologia, tal
base está na consciência. Ambas perseguem uma realidade primeira que fundamente as demais
realidades, mas negam em suas concepções a possibilidade de a vida ser essa realidade por
entenderem que falta à vida um conteúdo racional. Para Ortega, tais correntes parecem mutilar
o espírito humano e por isso decide fazer o caminho inverso. Ele parte da vida mesma e não da
abstração conceitual. Ele estrutura seu pensamento pela via do vitalismo racional em que
existência e circunstância fazem parte do mesmo acontecimento, da própria vida, mas sem
desqualificar a razão nos assuntos da vida.
A vida de cada um, a vida biográfica, “es un organismo donde nada es inerte: todo
lo que en ella se hace se hace por algo y para algo, queramos o no” (ORTEGA Y GASSET,
O.C, v. IV, p. 580). Esse fazer por algo é o fazer do próprio homem que, livremente, é capaz de
elaborar a si, porque esse fazer é sempre com vistas a realizar alguma coisa, e a radical
realização é a própria vida. Para viver, o homem se cerca de muitas coisas, das circunstâncias
às suas faculdades, e conta com elas para poder superar os desafios impostos pelo que lhe
dificulta a realização da sua vida. Aqui a ideia de organismo é significativa, pois, quando se
trata de um organismo, se faz referência a algo vivo, e a vida é sempre movimento. É esse fazer
que fundamentará toda a concepção de vida biográfica, ou seja, é o que o homem faz da sua
213
Para Marías (1983, p. 24), o sentido primário da vida não é biográfico, mas a biografia é uma dimensão que
caracteriza a vida humana que se constitui pelo que cada um vai fazendo dessa realidade que acontece
circunstancialmente.
214
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 51.
215
Para Molinuevo (1984, p. 20), a ruptura de Ortega com o idealismo e seu método de salvação cobra sentido no
intento de compreender que o caminho que ele faz de crítica a essa corrente filosófica é com o objetivo de recuperar
a crítica da história pessoal.
90
vida ao longo da sua história. A biografia é sempre o fazer humano e é nesse sentido que Ortega
apresentará as ações que o homem faz com vistas a conquistar sua vida.
Para fundamentar a ideia aqui defendida, da vida enquanto dimensão biográfica,
consideramos necessário destacar as categorias desenvolvidas por Ortega que justificam a vida
como biografia. Até os escritos de El tema de nuestro tiempo (1923), ele não demonstra ter
claro o conceito-chave que marcará o seu pensamento histórico da teoria da vida. A vida até
então ainda estava justificada por categorias que transitavam entre o biológico e o psíquico216,
como temos o emblemático conceito de espontaneidade que aparece fortemente na obra aqui
referida. Assim, nos tópicos seguintes, vamos destacar as categorias que consideramos
fundamentais dentro de uma compreensão biográfica da vida no intuito de sustentar a tese de
que a biografia em Ortega é uma categoria antropológica pela qual se organiza toda a
compreensão vivencial da vida humana.
Marías217 será um dos comentadores de Ortega que mais defende a presença de uma
metafísica no pensamento orteguiano através do conceito de vida como realidade radical218. No
que tange ao fundamento, concordamos com o comentador, pois reconhecemos que existe em
Ortega uma busca de propor um conceito-chave capaz de estruturar todas as demais
compreensões no campo da vida. Existe, na gênese do raciovitalismo, uma concepção de
realidade que antecede a preocupação histórica de Ortega com a dimensão circunstancial. Essa
análise se justifica inclusive por ser esse um dos seus objetivos na superação da ontologia
clássica por meio da historicidade da vida humana.
Em seu pensamento, Ortega vai sustentar que há uma realidade primária capaz de
justificar todas as demais realidades, mas que não está na subjetividade do sujeito pelo
pensamento, nem nas coisas pela sua manifestação objetiva, pois o que há de primário capaz de
possibilitar o reconhecimento de tudo o que será definido como realidade é a vida. Esse será o
216
Em El tema de nuestro tiempo (1923), vida é vida psíquica, movimento orgânico, vida interior em um meio
biológico humano, impulso interior. Entretanto, essa concepção é superada com a definição de vida biográfica, em
que o orgânico ou o psíquico são ingredientes da vida. O conceito de vida no pensamento de Ortega passa por
quatro compreensões: a vida é ideal (escritos da juventude); a vida é pluralidade, situação, circunstância
(Meditaciones del Quijote); a vida é impulso interior (El tema de nuestro tiempo); e a vida é facticidade, o que
faço e o que me passa (Qué es filosofia?) (Cf. ARROYO, 1968, p. 133).
217
Cf. MARÍAS, 1971, p. 26.
218
Carvalho (2015, p. 167) afirma que o tema da vida ganhou densidade metafísica no pensamento de Ortega nos
anos 1920, quando suas considerações foram inseridas na tradição filosófica do Ocidente.
91
argumento central de Ortega que lhe possibilitará propor uma forma de pensar que põe no centro
da compreensão o acontecimento originário de tudo o mais: a vida em sua realização pessoal.
O caminho que Ortega faz para chegar a essa compreensão não passa por uma
estruturação teórica via conceito de realidade, mas pelo reconhecimento da vida como realidade
radical. Assim, o que Ortega faz é uma constatação, porque ela antecede toda e qualquer teoria,
que nela tem sua gênese por meio da racionalidade humana que indaga, interpreta e define o
mundo com base na dimensão da vida.
Vida humana, para Ortega, está em uma esfera individual e, portanto, é um
acontecimento pessoal no qual todos os demais acontecimentos aparecem. Compreender a vida
humana como realidade radical significa entendê-la como a vida de cada um; as demais vidas,
para serem reconhecidas como tais, devem aparecer na vida pessoal. Comparada a um
espetáculo, a vida do outro pode ser vista, mas não pode ser vivida por quem a vê.
Quando Ortega apresenta a vida como realidade radical, ele não está querendo
justificá-la como realidade mais elevada, mas retoma a etimologia do conceito radical para
esclarecer que se trata da raiz das demais realidades.
Al llamarla “realidad radical” no significo que sea la única ni siquiera que sea
la más elevada, respetable o sublime o suprema, sino simplemente que es la
raíz – de aquí, radical – de todas las demás en el sentido de que éstas, sean las
que fueren, tienen, para sernos realidad, que hacerse de algún modo presentes
o, al menos anunciarse en los ámbitos estremecidos de nuestra vida (ORTEGA
Y GASSET, 2010a, p. 47).
219
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 179.
92
descobre a si e o mundo, mas a vida antecede essa dimensão consciente. Certamente, essa é
uma clara contraposição à concepção cartesiana de sujeito. Em um trocadilho, retomando
Descartes, poderíamos entender: vivo logo existo.
Para Ortega, o pensar não é anterior ao viver, mas parte dele e, como tal, a vida
passa a ser, em sua visão, a realidade indubitável. Todas as demais realidades supõem uma vida
que as reconhece como realidade, portanto “la realidad radical que hemos encontrado, para en
ella hacer pie firme, es la vida, la de cada cual” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 529).
Por ser a vida uma realidade que toca diretamente a dimensão pessoal e nela se realiza, essa
vida como radical inclui uma existência particular desse acontecimento e, enquanto tal, imprime
no homem a responsabilidade sobre seu próprio existir, que se caracteriza pelo reconhecimento
dessa realidade como indubitável, ou seja, a vida se impõe como certeza absoluta ao longo de
toda a existência humana.
A vida como acontecimento pressupõe do homem a sua capacidade de agir para
primeiramente conquistar a si mesmo com tudo que a sua condição de existência lhe possibilita.
Por isso, na visão de Ortega, viver é trabalhoso, pois requer que o homem se ocupe sempre com
assuntos que estão diretamente relacionados à sua presença no mundo.
A definição do que é a vida para cada um, seguramente, é o que faz Ortega trazer
para o centro da sua teoria filosófica a vida como realidade radical. Nesse processo, ele busca
apresentar as categorias que estão diretamente relacionadas a essa experiência vivencial que
acontece originariamente em primeira pessoa. Ao inserir o tema da vida pessoal no campo da
Filosofia, Ortega elabora uma proposta para que o homem contemporâneo passe a reconhecer
a sua própria vida como questão fundamental, evitando o equívoco de partir de outras realidades
que não sejam sua vida para significá-la e explicá-la. Considera ser o maior erro da Filosofia
não ter buscado uma nova realidade que preceda todas as demais. Para Ortega, a realidade
precedente é a própria vida e, por isso, a entende como radical. Assim, por considerar
equivocada a ontologia presente no idealismo e na fenomenologia, ele decide buscar uma saída
para pensar a vida no que ele considera ser a sua dimensão mais originária.
Criticando a fenomenologia220 e o idealismo alemão, Ortega passa a se dedicar ao
tema da vida ao considerar que essas duas correntes filosóficas deixam uma lacuna na
compreensão da vida enquanto acontecimento vivencial que escapa ao campo da teoria e que
deve ser compreendida como realidade radical capaz de se ligar a todas as demais. Através da
220
A postura crítica de Ortega frente à fenomenologia de Husserl se contrapõe ao primado da consciência, sendo
que, para Ortega, tal perspectiva não considera a vida em si mesma. (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 55-63).
93
vida o homem se comunica com todo o universo221. Essa compreensão será fundamental para
o que depois Ortega vai definir como vida biográfica, a partir da sua concepção de razão
histórica222.
Na lição X da obra Qué es filosofía? (1957), Ortega afirma que os conceitos de
realidade desenvolvidos na ontologia tradicional não servem para esclarecer o que ele entende
por vida humana, reforçando a necessidade de uma nova ontologia223 para adequar à sua teoria
da vida. Realidade para os antigos corresponde à coisa, algo que possui um ser fixo, uma
essência ou substância. O termo realidade radical não se adequa à ontologia tradicional de
herança grega, porque a realidade à qual Ortega se refere como preexistente implica uma
dinâmica que não se adequa ao que os gregos entendiam como ser. A ontologia grega é marcada
por uma concepção de coisa como realidade fixa, permanente. Para Parmênides, ser vem de
“sedere”, estar sentado, significando um estado de quietude. Para Ortega, esse conceito, que se
expressa pela substância, não serve para pensar a vida, pois a vida,
221
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 50.
222
Segundo Bonilla (2002, p.393), Ortega vê na razão vital e histórica o principal instrumento para conhecer o
homem como ser biográfico e histórico.
223
Ortega vai entender o viver como o ponto de partida para o que ele chama de uma nova ontologia na qual a
vida também passa a ser nova a partir de uma compreensão histórica das vivências pessoais (Cf. ORTEGA Y
GASSET, 2010b, p. 176).
224
A mudança não será uma experiência acidental, para Ortega, ela é uma realidade que se impõe ao homem como
parte da sua vida, “en ella la ‘substancia’ es precisamente cambio” (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 40).
94
significa intimidade consigo e com as coisas, pois a vida integra a si e tudo que a constitui e a
circunda, e o existir humano é um coexistir, ou seja, “todo vivir es ocuparse con lo otro que no
es uno mismo, todo vivir es convivir con una circunstancia”225 (ORTEGA Y GASSET, 2010b,
p. 186).
Não são duas realidades paralelas, mas duas realidades que se constituem em
relação uma com a outra, “el mundo es lo que está siendo para mí, en dinámico ser frente y
contra mí, y yo soy el que actó sobre él, el que lo mira y lo sueña y lo sufre y lo ama o lo detesta”
(ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 179). Isso porque o homem se descobre tendo que ser em
uma conjuntura de determinadas circunstâncias. O ser estático passa a ser substituído pelo ser
atuante: mundo e homem funcionando um sobre o outro. Sendo assim, a vida como realidade
radical corresponde a
225
Nesse aspecto, Ortega parece concordar com Heidegger sobre o fato de que o homem é afetado pelas coisas
que compõem o seu mundo. Esse mundo, para Ortega, será associado a temas, assuntos, por não ficar restrito aos
aspectos corpóreos.
95
solidão226. Não ter a capacidade de pertencimento e de reconhecimento da vida como sua escapa
ao campo da normalidade e chega à condição da loucura, em que o indivíduo não consegue dar-
se conta da dimensão pessoal da vida, passando a viver fora de si pela incapacidade de
compreender-se como autor de sua própria vida. A incapacidade de ver a vida como
acontecimento pessoal leva o homem a equiparar-se aos demais seres vivos que não conseguem
fazer esse reconhecimento. Ortega persegue, em toda a sua obra, essa dimensão ativa da vida
como uma condição necessária para falarmos de vida humana. Assim, são atributos da realidade
radical: o existir para si mesmo, no sentido de ser capaz de inteirar-se de si; o dado da evidência,
que é a vida para o homem; e o ter que encontrar-se no mundo e nele dar-se conta de si mesmo.
Viver em primeira pessoa implica assumir o compromisso frente à existência
pessoal, ao ter que eleger sempre determinadas formas de vida. Isso parece superar o que Ortega
defende sob influência do vitalismo nietzschiano, quando compreende a vida como um
movimento espontâneo de ordem biológica. Ninguém é substituível no acontecimento da vida.
Cada um tem que suportar seus alvoroços, apurar suas amarguras, aguentar suas dores e
fervilhar em seus entusiasmos227. Viver é uma experiência particular, porque “la vida es siempre
personal, circunstancial, intransferible y responsable” (ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 65).
As experiências de convivência não são capazes de transferir a responsabilidade da vida pessoal
para um outro, sendo o outro sempre um absolutamente outro228.
Porém essa vida que é pessoal apresenta uma abertura a todas as demais realidades
e nelas se manifesta, pois nenhum conhecimento é independente da vida humana, mas nela
aparece através da abertura vivencial do homem frente ao mundo. Sendo assim, a experiência
do sujeito vivente é uma experiência altruísta229, pois viver é abrir-se a tudo que envolve o
homem nessa experiência do existir.
Certamente, para Ortega, esse é o principal fundamento filosófico do seu conceito
de vida, pois, a partir dele, é que todas as demais realidades passam a ser pensadas. Tudo o que
é realidade só é enquanto tal porque o homem, ao viver, a reconhece, de modo que a vida é a
realidade originária. E mais, para Ortega, tudo que nela aparece será vida, vida porque passa a
fazer parte do universo pessoal que a encontra.
226
A vida como solidão corresponde à vida como pessoal, ou seja, “la vida es soledad, radical soledad”. É um
acontecimento único e particular que marca uma história de vida, porque cada indivíduo tem que viver a sua vida
sem a possibilidade de transferir essa experiência vital para outra pessoa (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p.92).
227
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 16.
228
A vida do outro será, para Ortega, sempre um espetáculo sobre o qual, diante dos seus dramas vitais, se tem
apenas suposições dos sinais comunicados na relação entre os indivíduos (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010a, p.46).
229
Ortega considera um erro associar a vida ao egoísmo, posto que, na verdade, o que acontece ao homem na sua
trajetória de vida é um abrir-se ao mundo (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 130).
96
Ortega reconhece ser difícil partir dessa compreensão dentro da Filosofia, pois
implica se desfazer dos conceitos antigos e abrir-se à intuição das coisas que estão sendo ditas
sobre a vida230. Entretanto, o que ele propõe é o exercício de lançar o olhar para a vida mesma
e percebê-la como de fato acontece, e não uma adequação a conceitos pré-existentes. É abrir-
se à vida como um acontecimento único e pessoal.
230
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 420.
231
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 557.
97
232
A vida humana nunca será determinada, mas, ao viver, o homem se depara com determinações que se
apresentam na relação com a circunstância. Assim, uma vez que sua vida acontece com a circunstância, o homem
transita sempre entre a liberdade e as determinações (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 205).
233
O futuro não é somente uma realidade que se impõe ao homem, mas também uma categoria ontológica da vida,
pois, para Ortega, a vida como quehacer é o que ainda não é, ou seja, a vida é sempre pretensão de ser (Cf.
ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 191).
234
Esse fazer está diretamente relacionado à necessidade do homem de antecipar imaginariamente seu futuro
através de um projeto de vida (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 175-176).
235
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 324.
236
Enquanto o mundo se apresenta como fatalidade, a vida, pela liberdade, se apresenta ao homem com uma
margem de possibilidades. Por isso, para Ortega, as escolhas são sempre escolhas possíveis (Cf. ORTEGA Y
GASSET, 2010b, p. 189).
98
experiência temporal não separa o homem do presente, muito menos do passado. Pelo futuro,
o homem descobre o passado e dele carece para que realize seus projetos vivenciais. Sendo
assim,
237
O fato de a escolha partir de um sistema de preferências significa que a ação humana está sempre limitada a um
universo de possibilidades (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 208).
238
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 209.
99
239
Nessa obra, diferente do El tema de nuestro tiempo (1923), Ortega já apresenta uma aproximação muito mais
clara do que será sua proposta filosófica ao unir História e Filosofia. Os temas relacionados à vida estão muito
mais próximos de conceitos da História.
240
Ortega considera o conceito de geração fundamental para entender as mudanças que caracterizam a vida humana
(Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 10).
241
Como ciência, a História é a análise dos fatos a partir de um determinado olhar teórico (Cf. ORTEGA Y
GASSET, O.C., v. V, p. 237-238).
242
Ortega fala de uma estrutura objetiva em que a vida acontece, no caso, corresponde ao mundo em que cada
indivíduo vive a sua vida (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 33).
100
na história dos indivíduos, pois, segundo o método de geração apresentado por Ortega, o
passado se atualiza na história de vida que presentifica os acontecimentos em forma de
atualidade. Por isso a História será entendida por Ortega como a ciência do reviver o passado.
A geração como método de investigação histórico considera a vida pessoal como
objeto de sua investigação ao partir da concepção de herança histórica. A história não tem como
compreender os acontecimentos isolados, mas sempre interligados, pois as histórias de vida
nunca são solitárias, estão sempre dentro de um tempo histórico, por ser o “el hombre [...] un
venir de algo y un ir al otro algo” (ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 181). Essa ideia de herança
histórica Ortega retira de Goethe, o qual entende o homem como herdeiro e não como sucessor.
Assim, ao nascer, o homem encontra modos de vida que irão interferir diretamente no seu modo
de ser.
Cada homem vive em uma atualidade, dentro de um tempo presente marcado por
um sistema de crenças que, para Ortega, é o mesmo que mundo ou paisagem vital. Essa
paisagem ou estrutura da vida muda em cada geração, porque a vida humana não é estática,
posto que, como acontecimento, está sempre sofrendo mudanças, as quais variam o tipo de
homem de uma determinada época, pois o destino humano é marcado pela historicidade da sua
vida. Ademais, a realidade histórica avança pelo que Ortega vai chamar de razão vivente, que
é uma razão dialética, uma vez que cada geração emerge da geração anterior que a predetermina.
A ideia de passado está relacionada às limitadas possibilidades da ação humana,
pois o passado atua de forma negativa sobre o homem, limitando o que ele pode ser, por ser o
que ele deixou de ser. Isso se faz presente para Ortega através da experiência de vida243, que
significa o conhecimento do passado vivido conservado no eu pela memória e acumulado na
atualidade. Implica dizer que a vida não se compõe somente do passado pessoal, mas também
com os antepassados que se fazem presentes pela memória. Assim, a vida assume a dimensão
de absoluta atualidade, sendo que o passado, ao atuar sobre o homem, se presentifica e, se é
possível falar em uma natureza, ou identidade, para Ortega, essa seria o passado pessoal e
coletivo que atua sobre a vida dos indivíduos particulares.
A realidade que a vida é adquire um saber que é experiência de vida. Isso não é uma
invenção filosófica, mas do homem comum;
243
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 44.
101
ese nombre dice muy bien que es el proceso mismo de nuestro vivir, que es la
serie misma de las cosas que nos pasan quien nos enseña lo que es nuestra
vida. Pero dice además que este saber no es como los demás, algo que queda
fuera de nuestra viviente realidad, sino que entra a formar parte de nuestro
vivir mismo o, dicho con otras palabras, que por uno de sus lados nuestra vida
consiste en experiencia de la vida (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. X, p. 17).
244
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. X, p. 18.
245
Para viver, o homem necessita formar convicções, porém a sua existência compartilha convicções comuns que
são soluções intelectuais que caracterizam o mundo vigente de cada homem (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a,
p. 36; 52).
246
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 52.
247
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 45.
102
convivência exemplificam o que Ortega apresenta através do conceito de gerações que não
atende à dimensão cronológica, mas vital.
Ortega vai comparar a vida humana a um filme que se constitui pelas experiências
de vida que se acumulam ao longo do tempo e se conservam dentro da vida de cada um. É essa
dimensão da “experiência de vida” que Ortega se propõe a elevar ao status de teoria248. Será
esse saber vital249, que se constitui no tempo, que fará parte do programa filosófico de Ortega
na sua proposta de razão histórica. Compreender o cotidiano que marca a vida pessoal é que
interessará a Ortega; e mais, trazer essa discussão para dentro da Filosofia. Assim, ele vai
afirmar que a Filosofia nunca se interessou pelo homem vulgar, ou seja, pela vida pessoal que
se realiza no cotidiano da vida de cada um. Por isso, essa dimensão da vida espera uma reflexão
plena da vida, com vistas a devolver seu profundo sentido. Por isso Ortega pretende, em seu
programa de análise da vida humana, redescobrir a fundo o saber vital que milenarmente o
homem vem construindo. Portanto,
és ese saber causante de que un segundo amor sea, por fuerza, distinto del
primero porque sabe y a lo que fue este primero y lo lleva, por tanto, como
enrolado dentro de sí. De modo que si usamos la imagen, como veremos,
antiquísima y universal que nos presenta la vida como un camino que hay que
correr o recurrir – de ahí expresiones como ‘cuso de la vida’, curriculum vitae,
tomar una carrera, etcétera – diremos que conforme caminamos, el camino
que es nuestra vida, ese camino lo conservamos y lo sabemos, esto es, que el
camino de la vida ya recorrido se va enroscando o envolviendo o enrollando
sobre sí mismo como un film y al llegar al término de la vida el hombre se
encuentra llevando sobre su espalda, diríamos, pegado a ella, todo el rollo o
rolo de su vida vivida – es decir, que se encuentra cargado con la ‘experiencia
de la vida’, como la uva en la hora vendimial del otoño ha acumulado y
conserva dentro de sí todos los soles del estío. Este jugosísimo tema, la
“experiencia de la vida”, está prácticamente intacto, no ha sido nunca hasta
ahora elevado a teoría y nos dará bastante que hablar en este curso”.
(ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 679).
248
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 679.
249
O saber vital, para Ortega, corresponde à capacidade humana de saber a que ater-se. É o conhecimento sobre si
e sobre o mundo que permite conduzir a vida sem perder de vista a capacidade de gerir a própria história. O
contrário seria a desorientação que impossibilita o protagonismo da vida (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV,
p. 589).
103
Enquanto acontecimento, a vida humana será definida por Ortega como drama250,
por ser o drama uma experiência marcada pela insegurança do que as incertezas dos
acontecimentos podem gerar ao longo das escolhas e das vivências de cada pessoa. Certamente,
essa será uma das categorias centrais na compreensão da vida biográfica, pois somente uma
realidade marcada pela dramaticidade vive sob o risco da incerteza da não realização do que se
projeta a ser251. Ortega chega a falar na individualidade como uma utopia por não se realizar
totalmente, porque o homem tem a incerteza em sua condição de existir – retomando um dito
popular do século XV: “sólo me es seguro lo inseguro e incerto” (ORTEGA Y GASSET, 2010a,
p. 33). Ser homem não é uma garantia dada pela existência, mas é sempre possível o mais
radical de todos os retrocessos da história humana: o regresso do homem à escala animal.
A saída do homem da dimensão animal252 em que ele se encontra ao passar a existir
é garantida por sua capacidade de pensar a si mesmo, e “sin retirada estrategia a sí mismo, sin
pensamiento alerta, la vida humana es imposible” (ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 42). Esse
pensamento a que Ortega faz referência não diz respeito somente à construção de ideias sobre
o mundo, mas a uma tomada de consciência da insegurança da vida, que implica sempre um
pensamento de alerta; e isso marca profundamente o destino humano.
Para Ortega, a concepção de homo sapiens do século XVIII deve ser substituída
pela de homo insciens253. A ignorância254 parece muito mais coerente para o homem do que o
domínio das coisas pelo pensamento, visto que ele não sabe tudo de que necessita para viver.
O pensamento não é um regalo natural que o homem encontra, mas algo que resulta da
necessidade que ele tem de organizar suas atividades psíquicas, não sendo o pensar um dom
natural, mas uma conquista laboriosa, precária e volátil do homem. Sem essa atividade, o
homem não consegue escapar da escala zoológica, por isso o viver é um constante vigiar a si
mesmo. Com isso, Ortega constrói uma leitura pragmática do pensamento, como algo elaborado
250
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 36.
251
Segundo Arroyo (1968, p. 229), a razão histórica se preocupa com essa dimensão biográfica que envolve
situação e facticidade.
252
Em Meditaciones de la técnica (1939), Ortega traça o processo evolutivo do homem à condição humana, ao
destacar que a vida animal consiste na evolução natural e na dependência do meio em que vive; já o homem, ao
superar a dimensão biológica a que circunstancialmente está submetido, inicia um processo de reconhecimento da
sua pessoalidade, distanciando-se do animal por sua capacidade reflexiva. Porém, essa capacidade humana de
reflexão e criação tem sua gênese na problemática indeterminação da vida.
253
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 35.
254
Cf. Porque se vuelve a la filosofía (1930); O.C., v. IV, p. 590.
104
pelo homem com a finalidade de superar a condição em que ele se encontra, o drama de viver
na insegurança que é própria da vida humana.
A vida aparece ao homem como problema, pois, ao se deparar com o mundo, o que
lhe é dado de imediato é um problema: a própria vida como quehacer255. Seu existir está dado,
mas o modo como vai realizar sua vida não está determinado. A única determinação que
encontra está no universo circunstancial que compõe sua vida, mas que não é sua vida. O que
está dado é a determinação do agir frente às coisas, mas não é presente aquilo que tem de fazer.
Certamente, isso caracteriza muito bem a dimensão dramática da vida, visto que o homem
caminha sempre em uma pequena margem de segurança, mas que não é suficiente para
assegurar toda a sua trajetória de vida, por ter que conquistar a cada momento a si mesmo ou,
como o próprio Ortega afirma, o homem tem que ganhar a vida256.
Viver é um ato da vontade257 que provém da necessidade258 e da adequação259. Para
Ortega, a vontade manifesta o pulso vital260 do indivíduo pela necessidade de modificar a
realidade, corrigindo e ampliando suas necessidades orgânicas. Essa compreensão do desejo
como força vital se encontra um pouco mais desenvolvida em Meditaciones de la técnica
(1939). Nesse escrito, ele apresenta o viver como a necessidade originária e as demais
atividades como consequências dessa escolha primeira261.
No primeiro momento do pensamento de Ortega, essa ideia de desejo vital está
bastante associada a uma compreensão vitalista da vida e da cultura262. A cultura consiste em
fatos orgânicos subjetivos que cumprem leis objetivas que se moldam a um regime transvital263,
ou seja, provém de atividades biológicas, como o desejo e o pensamento, mas que não têm um
fim em si mesmas. Pensa-se sempre alguma coisa, assim como deseja-se sempre algo. São
funções biológicas que emanam do sujeito, mas que dependem de fatores externos para se
255
Esse conceito é central para compreendermos a dimensão biográfica da vida, pois sendo a vida uma tarefa, isso
significa que está por ser feita, “la vida es quehacer” (ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 13). Como o homem faz e
o que o leva a assumir essa tarefa vital, parece-nos ser o que faz Ortega relacionar drama e desporte, circunstância
e liberdade.
256
ORTEGA Y GASSET, 1965, p. 41.
257
Tanto em El tema de nuestro tiempo (1923) como em Meditaciones de la técnica (1939), é sempre o querer
fazer algo. É por meio dela que o homem modifica a realidade.
258
Para Ortega, a vida é necessária no sentido subjetivo como escolha deliberada. Viver não é uma necessidade
imposta, mas resultado do desejo humano de continuar existindo (Cf. ORTEGA Y GASSET, 1965, p. 16).
259
O homem tem a capacidade de modificar a realidade para adaptá-la às suas necessidades orgânicas e subjetivas.
260
Cf. ORTEGA Y GASSET, 1965, p. 100.
261
Cf. ORTEGA Y GASSET, 1965, p. 16.
262
Nesse momento, ainda é evidente a influência do culturalismo neokantiano e do vitalismo nietzschiano em
Ortega, ao associar a vida à cultura. Ao longo dos seus escritos, vamos percebendo, principalmente depois da
década de 1930, que a vida aparece como categoria antropológica profundamente marcada por reflexões que
associam vida e história.
263
São as leis objetivas que ultrapassam a utilidade biológica e que são válidas por si mesmas, tais como: a justiça,
a verdade, a retidão, a moral e a beleza (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 103-104).
105
desenvolverem. Entende Ortega que existe uma série de fenômenos vitais de dupla
dinamicidade, de necessidade mútua: por uma parte, são produtos espontâneos do sujeito
vivente; e, por outra, levam em si a necessidade de se submeterem a um regime de leis objetivas.
O exemplo clássico é o pensamento: “para ser verdadero [...] necesita coincidir con las cosas,
con lo transcendente de mí; mas, al proprio tiempo, para que ese pensamiento exista, tengo yo
que pensarlo, tengo que adherir a su verdad, alojarlo íntimamente en mi vida, hacerlo inmanente
al pequeño orbe biológico que yo soy” (ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 102).
A experiência do desejo vital está diretamente relacionada à ideia de vida como
quehacer, que requer do homem o exercício da sua capacidade criativa, por ser o homem o que
é e o que faz264. A consciência do existir é, para Ortega, o grande descobrimento que possibilita
ao homem caminhar no mundo como homem livre, em parte, das inúmeras determinações
circunstanciais. O termo nuestra vida significa, portanto, a tomada de posse da vida pessoal ao
percebê-la e senti-la, marcando, dessa forma, uma distinção em relação a todos os demais seres
vivos. “Vivir es saber que lo que hacemos, es, en suma, encontrarse a sí mismo en el mundo y
ocupado con las cosas y seres del mundo” (ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 185).
Nesse primeiro momento, Ortega realiza uma aproximação do biológico à cultura,
das funções orgânicas à ação do homem, as quais são integradas pela realidade radical: a vida.
O fenômeno vital tem duas vertentes: o biológico e o espiritual. Com isso, Ortega recusa a cisão
feita na modernidade entre o orgânico e a cultura, ou entre a vida infraespiritual 265 e a
transvital266. No entanto, em sua compreensão, há uma interseção entre ambas, de modo que
ele não reconhece a cultura cindida das funções orgânicas e, portanto, para ele, “no hay cultura
sin vida, no hay espiritualidad sin vitalidad” (ORTEGA Y GASSE, 2006, p. 105), visto que a
cultura também está submetida às leis da vida, não podendo ser pensada objetivamente somente
por leis transvitais. Fundamentado nessa perspectiva vitalista, Ortega acredita que o homem
não escapa da estima puramente vital, sendo “urgente dar fin a la tradicional hipocresía, que
finge no ver en ciertos individuos humanos, culturalmente poco o nada apreciables, una
magnifica gracia animal” (ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 134).
Mesmo seguindo uma perspectiva vitalista, Ortega já preludia o tema da história
em El tema de nuestro tiempo (1923), ao reconhecer que a vida como mudança267 é história.
264
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 183.
265
Sinônimo de vida espontânea, corresponde à vida no sentido biológico, sem nenhum sentido e valor fora do
organismo (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 104).
266
Que não tem o biológico como fim em si mesmo, no caso, são os elementos da cultura (Cf. ORTEGA Y
GASSET, 2006, p. 103).
267
Ortega, em 1923, já entende que a vida é essencialmente ação e movimento (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006,
p. 137).
106
Essa decisão frente à vida é intransferível e não cabe a um outro a tarefa de decidir
sobre a vida pessoal e, se assim o é, “cuando me pongo en manos de otro soy yo quien ha
decidido y sigue decidindo que él me dirija: no transfiero, pues la decisión, sino tan sólo su
mecanismo” (ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 27). Essa experiência vital reforça o argumento
da vida como drama, por trazer ao indivíduo a consciência da insegurança que acompanha todo
o seu existir, pois a vida não consiste no que está aí, mas no que acontece, no que cada um faz
do seu existir. Eis o paradoxo da condição humana, por ser “el hombre [...] la única realidad, la
cual no consiste en ser sino que tiene que elegir su proprio ser” (ORTEGA Y GASSET, 2010a,
p. 51). Esse argumento é o que melhor sustenta a vida na sua dimensão biográfica, pois o
268
Ortega fala de uma espontaneidade biológica, que certamente estaria mais próxima de uma compreensão
vitalista da vida humana e que aparece principalmente em sua obra El tema de nuestro tiempo (1923). Além disso,
nos escritos históricos, o sentido dado a esse termo tem uma conotação mais voltada para a liberdade de ser própria
de uma vida biográfica.
269
O termo responsabilidade aparece diretamente relacionado à biografia, porque viver é responsabilidade
individual, já que cada indivíduo é responsável pelo que faz da sua vida (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 51).
270
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 39.
271
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 189.
107
homem, para ser algo, carece de fazer, porém o que fará não está prefixado biologicamente,
cabendo-lhe a inteira responsabilidade do que faz de si mesmo.
Por não caminhar sobre um mar de certezas272, a ação do homem se sustenta em
algumas convicções que buscam amenizar a insegurança que lhe é própria por meio de um
horizonte de verdades sobre o mundo. Ao formar convicções, o homem constrói um conjunto
de seguranças pelas quais ele passa a organizar a sua vida.
Viver é, na concepção de Ortega, estar sustentado em alguma convicção. As
convicções representam o universo de certezas que geram segurança, possibilitando ao homem
continuar existindo sobre algo que lhe parece importante para lidar com as indeterminações da
vida. Ortega distingue a convicção positiva da negativa. Esta corresponde ao pouco grau de
importância que as convicções desempenham no agir humano, elas são consideradas ideias
duvidosas, que não asseguram ao homem as bases para a construção de sua vida. Já a certeza,
a convicção positiva, é o que caracteriza a crença. Essa relação se estabelece segundo o
argumento de que a relação do homem com as crenças consiste em contar sempre com elas ao
longo da sua existência.
O tema das convicções aparece diretamente relacionado ao conceito de vida como
escolha deliberada em que o homem decide viver, mesmo em meio às adversidades que as
circunstâncias impõem, dificultando a sua permanência no mundo. Decidir não provém
simplesmente de um impulso aleatório, mas, segundo Ortega, a decisão por algo requer sempre
convicções do que são as coisas e os homens. Isso ocorre porque o homem está sempre em
alguma crença e a estrutura da vida273 depende dessas seguranças que se expressam em suas
crenças. A crença274 não é um mecanismo intelectual, mas uma função vivente de orientação
da conduta da vida.
Para Ortega, na crença se está, ou seja, não é algo em que se pensa para agir, por
isso não se reduz à dimensão cognitiva, sendo uma ideia que motiva a ação, a tal ponto que o
homem se orienta por ela sem necessitar de um esforço mental. Por isso, Ortega compreende a
crença como um fenômeno vital com o qual o homem conta sempre275, pois vive-se dela. Ele a
272
Uma das categorias que define a vida biográfica é a insegurança. Esse tema está bastante presente na concepção
de vida de Ortega, sendo, para ele, a motivação do agir humano (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 36).
273
Ortega fez referência a duas estruturas: a estrutura do mundo, que é o conjunto de convicções que o homem
encontra no mundo; e a estrutura da vida, que são as convicções pessoais (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p.41-
43).
274
Em seu curso sobre Ideas y Creencias (1934), publicado no diário argentino La Nación (1936), Ortega apresenta
as crenças como a base sobre a qual a vida acontece. O homem necessita sempre contar com elas para dar sequência
ao seu agir no mundo. Assim, as crenças são fundamentais para a conduta humana, pois delas advém a orientação
do homem frente ao desafio de sua existência. Ortega afirma inclusive que as crenças “no son ideas que tenemos,
sino ideas que somos” (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 23-38).
275
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 26.
108
considera o estrato básico mais profundo da arquitetura humana, tanto que, para analisar uma
época, é preciso conhecer as crenças que conduziram a ação dos homens no tempo investigado.
Usando a metáfora da terra firme276, Ortega afirma que é na crença que acontece a
vida, pois possibilita que o homem esteja no mundo com uma margem de segurança. Quando a
realidade passa a ser problematizada, aparece o que ele chama de dúvida 277. Nela, o homem
passa a viver inseguro, carecendo de ideias que lhe deem estabilidade. O homem em dúvida
encontra-se em um abismo, caindo, sem certezas. Por isso, forçosamente, na dúvida, o homem
se agarra ao intelecto, buscando criar ideias que sejam capazes de reordenar o seu viver. O mar
de dúvida278 é a figura metafórica encontrada por Ortega para visualizar o estado de insegurança
do homem ao carecer de certezas que assegurem o seu viver, isso, porque, no fundo, o homem
é crédulo, sua vida é formada pelas crenças que possui. As crenças,
[...] constituyen la base de nuestra vida, el terreno sobre que acontece. Porque
ellas nos ponen delante lo que para nosotros es la realidad misma. Toda
nuestra conducta, incluso la intelectual, depende de cuál sea el sistema de
nuestras creencias auténticas. En ellas “vivimos, nos movemos y somos”
(ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 29).
Quando uma determinada certeza é posta em dúvida, nasce a crise279, ou seja, aquela
ideia, que antes orientava a conduta de uma pessoa ou grupo social, não é mais creditada 280. O
homem em crise encontra-se entregue ao caos da pura circunstância. É o que Ortega chama de
lamentável desorientação281. No entanto, a positividade da descrença está na possibilidade que
276
Metaforicamente, Ortega compara crença à terra firme para justificar que, na crença, o agir humano acontece
sem problematização. Não se questiona se a terra está ou não firme para caminhar, simplesmente se caminha até
o momento que o caminho traga alguma insegurança e incerteza (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 34).
277
Esse termo aparece muitas vezes na obra de Ortega e quase sempre relacionado a Descartes. Contudo, quando
nos referimos aqui a tal expressão, queremos elucidar a dimensão da incerteza ou insegurança que marca a relação
do homem com o mundo; não nos propomos a fazer nenhuma discussão metodológica do conceito. Anterior à
dúvida metódica existe, para Ortega, a dúvida sobre a própria vida, sobre o que cada um faz de si em meio ao
mundo que o desafia sempre (Cf.; ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 516-517).
278
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 632.
279
É a experiência humana que, de certa forma, põe o indivíduo em contato com a sua condição de indigente, no
sentido de que nada na vida é tão seguro que possa dar uma certeza definitiva de como será a vida de uma pessoa.
Na crença, há sempre o risco da mudança por razões pessoais e circunstanciais. A crise é a experiência de dúvida
em que, na analogia do naufrágio, o homem se vê perdido, tendo que buscar mentalmente novas ideias que
justifiquem seu agir a ponto de dar uma segurança tal que não precise pensar sobre elas (Cf. ORTEGA Y GASSET,
2007, p. 34-38).
280
O exemplo clássico por ele apresentado é o cristianismo a partir do século XV. O surgimento de teorias
científicas nesse mesmo período, como a de Galileu e Copérnico, assim como a teoria filosófica de Descartes, dois
séculos depois, significa que aquela forma de pensar própria do mundo medieval não corresponde mais à exigência
daquela geração. Nesse período da História, “o homem faz com que a razão pura sirva de base ao sistema de suas
convicções. Se vive da ciência” (ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 86).
281
É o mesmo que não saber o que se passa (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 119).
109
ela oferece ao homem de buscar novas ideias, porque, “para que el hombre deje de creer en
unas cosas es preciso que germine ya en él la fe confusa en otras” (ORTEGA Y GASSET,
2008a, p. 91).
A vida se define, assim pensa Ortega, por meio das convicções, do repertório de
opiniões que o homem tem sobre o mundo. Tanto que, em sua visão, não há vida humana sem
interpretação do mundo e de si mesma, assim como é impossível pensar a vida para o homem
sem convicções últimas. Nas questões mais importantes da realidade, o homem tem de possuir
uma opinião, um pensamento, pois disso dependem suas decisões, sua conduta e sua vida. Isso
porque ter uma opinião sobre “una cosa no es sino saber a qué atenerse sobre ella, esto es, fijar
mi posición sobre la cosa” (ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 94. Grifo do autor).
Ortega fala em dois princípios que possibilitam a construção da história: a dimensão
construtiva do homem frente ao mundo; e a mudança do mundo que gera mudança na estrutura
do drama vital. Da mesma forma que o homem sempre está fazendo o mundo com base em suas
convicções, o homem também é, por ele, constantemente modificado, mudando sempre a sua
estrutura de vida. Essa dimensão do individual e do coletivo é outro drama com que o homem
lida, pois, ao mesmo tempo em que cria mundos para si, essa criação acontece em meio ao que
já se encontra estabelecido, tendo o homem que lidar com a fatalidade do mundo282. Assim, os
mundos não são oriundos somente de um exclusivo processo de liberdade, eles também são
produzidos de acordo com o horizonte com que cada um se depara em sua vida, pois toda vida
humana está ancorada em outras vidas – vidas que a antecedem e vidas que a sucedem. No
entanto, o cuidado283 com a vida deve sempre estar presente através da preocupação com o
próprio viver.
Drama, portanto, na literatura orteguiana, não corresponde a uma metáfora284, mas
a uma realidade vital que o homem enfrenta ao dar-se conta da sua vida que originariamente é
um problema presente ao longo da sua existência. A principal metáfora usada por Ortega para
282
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 188.
283
Ortega prefere o sentido dado no espanhol antigo em que cuidado significa preocupação. No idioma usual, essa
palavra indica angústia, momento difícil, porém, para Ortega, preocupar-se significa levar a sério aquilo que gera
a preocupação (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 571). Uma vida despreocupada vive à deriva, subjugada
pelas correntes sociais (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 214). Esse será um dos temas mais explorados em El
hombre y la gente e em Rebelión de las masas.
284
De acordo com Martín, a filosofia de Ortega não é metafórica. Contudo, é possível identificarmos em seu
pensamento filosófico o uso de metáforas como um procedimento explicativo que o filósofo utiliza para fazer
referência a algumas realidades que parecem difíceis de compreender. Isso porque, para ele, a metáfora vai além
de um recurso estético, que pode ser requerida para compreender e explicar qualquer coisa que escape à
compreensão imediata, ou como ele mesmo afirma, pode ser um procedimento intelectual pelo qual se consegue
apreender o que está longe da nossa potência conceitual (Cf. MARTÍN, 1999, p. 353-359).
110
explicar essa realidade da vida é a do náufrago285. Naufragar é ser lançado em um ambiente que
exige do tripulante um esforço para sobreviver, equiparando-se ao homem ao viver, pois, não
sabendo o que pode lhe acontecer, precisa se esforçar para superar o drama de existir desprovido
de certezas.
Não sendo mais que sua própria vida, cabe ao homem decidir o que dela fará a cada
instante. Entretanto, o homem não somente tem de decidir sobre si e sobre as coisas, como tem
de determinar o que vai ser. Esse é o mais grave do fazer humano, pois consiste no que ele
escolhe para si diante das diversas possibilidades de ser que ele pode inventar ou que a ele se
apresentam.
A vida humana não está aí como está a vida para os demais entes naturais que
mudam necessariamente dentro de uma certa previsibilidade. Assim, cabe ao homem criar
possibilidades que assegurem minimamente suas decisões. Com isso, Ortega desaloja a reflexão
sobre a vida da ontologia para a existência, ao considerar que não cabe buscar o que a vida é,
mas sim procurar saber como ela acontece.
Viver é ver-se obrigado a decidir o que se quer ser e o que fazer em um futuro
imediato, isso por três razões fundamentais:
La vida no es dada hecha sino que tiene que hacérsela cada cual y el espíritu
del hombre no es primariamente espectador de su existencia sino autor de esta:
tiene que irla decidiendo de momento a momento (ORTEGA Y GASSET,
2010b, p. 230).
285
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 32.
111
é também um problema, cuja natureza é teórica, por meio do qual se busca saber como as coisas
são. Para Ortega, a teoria é atividade cognitiva que tem como finalidade problematizar o ser das
coisas. O conhecimento significa o esforço do homem em extrair do caos um esquema de ordem
correspondente às convicções vigentes sobre o cosmos. Querendo ou não, o homem vive com
convicções e de convicções, sendo a vida “absoluta convicción” (ORTEGA Y GASSET, 2010b,
p. 231).
Tejada (2003) afirma que o homem-náufrago caminha através dos problemas da
vida, que são sempre desestabilizadores e flutuantes como o elemento líquido, mas esse homem
nunca perde suas circunstâncias286. Nesse sentido, Ortega afirma que a vida é luta, conquista e
ação do homem para conquistar, ganhar a própria vida. Ser requer do homem sua própria
atuação, “el hombre, quiera o no, tiene que hacerse a sí mismo” (ORTEGA Y GASSET, 1965,
p.46). Pela existência lhe é dada a abstrata possibilidade de existir, “porque el ser del hombre
no le es dado, sino que es, por lo pronto, pura posibilidad imaginaria, la especie humana es de
una inestabilidad y variabilidad incomparable con las especies animales” (ORTEGA Y
GASSET, 1965, p. 44).
O humano, portanto, não é seu corpo, nem sequer sua alma. Ambos, para Ortega,
correspondem a uma coisa. Contudo, para o homem, a vida não é uma coisa, senão um drama,
sendo assim
Para Ortega, na aventura do viver, o homem busca a felicidade, porém essa é uma
luta que tende a seguir por toda a vida, pois a felicidade plena escapa ao ser humano, porque a
vida é indeterminação e isso aparece como um problema que põe o homem como ser
angustiado, por isso Ortega afirma que “[...] donde no hay angustia no hay vida humana”
(ORTEGA Y GASSET, O.C, v. V., p. 697). Portanto, o homem necessita sempre lidar com essa
experiência da angústia por ser a vida um grande problema. Ortega considera o homem o único
ser infeliz, constitutivamente infeliz, mas que está cheio de ânsia de felicidade, “[...] todo lo
286
Cf. TEJADA, in. ZAMBRANO, 2011, p. 20.
112
que el hombre hace lo hace para ser feliz” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. X, p. 26). Isso por
não ser adaptado à circunstância, não coincidindo seus desejos com o mundo em que vive, pois,
se assim o fosse, o homem, para Ortega, seria feliz.
Dentro desse universo do quehacer, o homem não tem alternativa ao escolher viver,
a não ser sempre estar fazendo algo, isso porque o abandono dessa atividade existencial o leva
ao aniquilamento. Por isso, dentre os fazeres que o homem pode executar, está aquele que
Ortega considera o mais terrível: o suicídio (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 694). Tirar
a própria vida é uma possibilidade que está sempre à disposição do homem. O contrário implica
sempre agir, conduzir a vida nas mais simples e nas mais complexas situações que a ele se
apresentam.
Esse tema está também relacionado à dimensão dramática da vida em que Ortega
nega a concepção existencialista da vida como nada ou somente como drama ou angústia. Para
ele, se a vida fosse somente isso certamente o homem tenderia ao suicídio. Na raiz da vida há
junto a “angustia” uma “in-finita alegría deportiva que lleva entre otras cosas al gran juego que
es la teoría y, especialmente su superlativo – la filosofía” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX,
p. 1140). A vida, portanto, “[…] es precisamente la unidad radical y antagónica de esas dos
dimensiones entitativas: muerte y constante resurrección o voluntad de existir malgré tout,
peligro y jocundo desafío al peligro, ‘desesperación’ y fiesta, en suma, ‘angustia’ y ‘deporte’”
(ORTEGA Y GASSET, O.C, v. IX, p. 1142, grifo do autor). Ortega não acredita no sentimento
trágico da vida, como se essa fosse sua última finalidade e, por isso, ele percebe como arbitrária
a posição trágica de Kierkegaard, Unamuno e Heidegger.
Certamente, essa dimensão do drama vital presente no pensamento de Ortega ganha
outra perspectiva através da aceitação livre da penosa tarefa que a vida impõe ao homem que
decide seguir vivendo. A essa decisão Ortega vai chamar de deporte287. Assim, entende que a
vida não pode ser concebida como uma tragédia, mas como o meio pelo qual o trágico aparece
como sendo uma das possibilidades do viver. Ortega afirma não acreditar que o “sentimento
trágico da vida”288 seja a formalidade última do existir humano, afirmando que “la vida no es
pues una tragedia. Es en la vida donde las tragedias se producen e son posibles” (ORTEGA Y
287
Amoedo (2014) reforça a dimensão do esforço presente no conceito de deporte de Ortega, que se diferencia da
característica do jogo pelo aspecto da distração. A vida como desporte significa uma vida dedicada a superar os
limites que o próprio existir nos impõe. Não podemos deixar de atender, acima de tudo, ao lugar central que a
categoria de esforço tem nesta referência direta ao desporto e que permitirá o seu uso analógico nas considerações
orteguianas sobre a vida, em termos biológicos e, mais estritamente, em termos antropológicos, com especial
interesse no plano ético e no plano da compreensão filosófica do próprio filosofar (Cf. AMOEDO, 2014, p. 72).
Para Molinuevo, o adjetivo “deportivo” utilizado por Ortega para definir a vida confere a ela um caráter dramático,
porém não agônico no sentido trágico (MOLINUEVO, in. El Espectador, 2012, p. 27).
288
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 1143.
113
GASSET, O.C., v. IX, p.1143). Ele considera essa ideia de sentimento trágico uma visão
romântica e, como tal, arbitrária.
Para tanto, insere a categoria de deporte como outra dimensão que irrompe a
dimensão biológica ao lançar o homem no campo do que ele deseja ser e não no que ele é. Para
Ortega, essa dimensão marca o aspecto positivo que alivia o drama de viver. A vida marcada
profundamente pela busca de ser faz com que essa busca seja não somente angustiante, mas
também satisfatória, entusiasta, impedindo que o homem encare a vida de forma desesperadora.
Através da concepção de deporte, Ortega dá um salto na compreensão da vida,
impedindo que seu pensamento caia em uma perspectiva existencialista. Ao mesmo tempo em
que a vida é falta e desventura, ela também é entusiasmo e aventura, pois, na compreensão de
Ortega, se não existisse na vida essa segunda dimensão, o homem certamente a abandonaria.
Por isso, ela transparece a união indissolúvel entre angústia e exercício desportivo, ou seja,
como angústia e, ao mesmo tempo, conquista entusiasta. Essas duas dimensões revelam que o
homem está vivo, pois, sem vida, não há angústia e muito menos conquista. O fato de a vida
ser compreendida como deporte não significa que a angústia deixe de fazer parte da vida
humana, no entanto, mesmo sentindo angústia frente à vida, o homem aceita a tarefa de viver,
aceita a vida como sendo esse esforço, transformando-a em “empresa”289 (ORTEGA Y
GASSET, 2008a, p. 218). Desse modo, se o homem continua na vida, é porque aceitou a penosa
tarefa que ela é.
A ideia de deporte reforça o argumento de Ortega de que a vida não é somente
desventura. O homem não se constitui somente na falta que está em sua condição de vida, mas
também em sua capacidade de superação, a qual lhe permite encarar a vida com entusiasmo, ou
seja, ao invés dessa falta ser vista como opressão, o homem a transforma em tarefa entusiasta
por meio da qual vai encontrando sentido no seu fazer. Por esse motivo, transforma a vida em
aventura. A ideia de deporte está relacionada à dimensão laboral da vida, pois significa
superação da dimensão dramática do não ser. Assim, “para sentir la angustia es preciso seguir
en la vida. Se yo me voy de la vida se acaba la angustia, la angustia deja de ser y con ella la
vida. Pero seguir en la vida es aceptar libérrimamente la angustiosa tarea. Y esto es la definición
del esfuerzo deportivo” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 540). Nesse sentido, para
Ortega, existe uma dimensão da vida que supera em parte essa dimensão dramática da angústia
289
Ortega vai chamar a aceitação do drama frente à vida de empresa vital, pois, mesmo a vida se apresentando
com incerteza, o homem segue fazendo suas escolhas e atuando no mundo (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a,
p.218).
114
A vida como criação290 pessoal somente é possível porque a liberdade faz parte da
condição humana, sendo o homem livre para escolher e determinar como será sua vida. Essa
ideia orteguiana está diretamente associada à de projeto vital, tendo como principal argumento
a capacidade criativa que implica sempre o exercício da liberdade humana frente às inúmeras
possibilidades que são apresentadas ao ser humano. Para Ortega, o homem, queira ou não, é
livre291, forçosamente ele necessita exercitar a sua liberdade, pois a vida implica sempre o fazer
algo, e esse fazer pressupõe escolhas.
Em contraposição à ontologia tradicional292, a ideia de liberdade reforça uma
compreensão da vida humana como carente de uma identidade constitutiva e, por conseguinte,
organizada em uma dimensão estritamente histórica. Paradoxalmente, o único ser fixo e estável
na liberdade é a inestabilidad293. Não há no homem um estado permanente capaz de dar uma
definição definitiva de como será sua vida. O como será vai sendo elaborado ao longo da
história de vida que implica escolher possibilidades para viver. Isso, para Ortega, resulta em
elaborar uma ontologia não eleática294, pois o homem é uma “entidad infinitamente plástica”
(ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 39).
A mudança não é algo acidental que depende de determinados fatores, ela é uma
parte constitutiva da vida, sendo a vida “substancialmente” mudança295. É dentro dessa
dimensão de instabilidade da vida que podemos compreender a sua dimensão projetiva que
vitalmente é o mesmo que uma pretensão de ser dentro de um programa de existência que tem
como aspiração escapar da condição humana de indigente296, que potencializa a dimensão da
liberdade pela intenção de realizar um modo de existência, pois “es el hombre la única realidad,
290
Ortega usa também o termo empresa vital para reforçar a ideia de atividade realizada pelo homem para superar
a experiência humana de angústia e falta. Esse termo será bastante utilizado nos seus escritos, sempre relacionado
à dimensão laboral do homem no comprometimento com a realização do seu projeto de existência (Cf. ORTEGA
Y GASSET, 2010b, p. 218).
291
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 39.
292
O conceito de res foi estabelecido pela ontologia tradicional; o termo vai sempre conjugado com o de natura,
como sinônimo ou princípio (ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 30).
293
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 39.
294
Da doutrina do ser como identidade (Cf. ORTEGA Y GASSET O.C., v. IX, p. 549).
295
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 40.
296
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 539.
115
la cual no consiste simplemente en ser sino que tiene que elegir su proprio ser” (ORTEGA Y
GASSET, 2010a, p. 51).
Pela liberdade de ser, o homem tem a possibilidade de irromper o peso da
circunstância ao realizar ações que não estejam objetivamente associadas ao atendimento de
uma determinação circunstancial. Entretanto, na circunstância, a vida é insegurança. Contudo,
nos parece problemática, em Ortega, a afirmação de que a vida é circunstancial, pois, se assim
o fosse, certamente estaria completamente voltada para a circunstância, e não é isso que
percebemos no seu pensamento sobre a vida. O correto é o que ele faz em Meditaciones del
Quijote (1914), definindo a vida não pelo “como”, mas pelo “com”297. O decidir por isto ou
aquilo é o que marca o caráter da liberdade do homem, e a atualidade do mundo em que cada
um vive sua vida é o que limita essa liberdade. Nesse caso, se é livre para escolher isto ou
aquilo, esta ou aquela forma de vida.
Por ter que escolher sua maneira de ser no mundo, o homem “es por fuerza, libre”
(ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 30). Viver é, portanto, sentir-se fatalmente forçado a exercitar
a liberdade, pelo poder de decisão do que se pretende ser no mundo. Essa condição de liberdade
presente no homem é considerada por Ortega como algo estupendo por oferecer a possibilidade
de escolha do que se quer ser. Ao mesmo tempo em que a liberdade é um privilégio, é
igualmente a atividade mais difícil para o homem, porque requer dele a responsabilidade sobre
sua vida.
Isso significa que o homem tem, como ocupação fundamental, a necessidade de
eleger para si o que ele quer ser. A cada instante, o homem tem de escolher o que fazer e o que
ser, como uma necessidade própria da vida humana. É essa necessidade de escolher que
imprime no homem a autenticidade da sua vida e o define enquanto humano. O imperativo da
invenção é o imperativo autêntico da vida, e toda vida humana tem que inventar sua própria
forma. Sem ela, a vida humana é falsificada.
É de Goethe que Ortega retira a ideia de vida como invenção de si mesmo,
considerando a fantasia298 como a faculdade projetiva do homem. Ontologicamente, Ortega
297
O tema da circunstância já aprece diretamente relacionado à temática da vida em Ortega desde 1914, quando
ele vai definir, em Meditaciones del Quijote, o homem como sendo com sua circunstância. Essa dimensão
relacional será a grande contribuição da perspectiva antropológica orteguiana por ir além do simples espaço físico
geográfico em que cada indivíduo se encontra ao viver. Na definição “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la
salvo a ella no me salvo yo”, Ortega anuncia, intuitivamente, toda a chave da sua dimensão antropológica que
aparecerá no conceito de vida nos seus escritos seguintes (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010c, p. 77).
298
A fantasia é uma faculdade primordial para Ortega, porque, por meio dela, o homem tem a capacidade de
projetar-se no mundo, criando realidades adequadas ao seu projeto de existência. Sem essa capacidade, o homem
não teria como superar a escala zoológica, ficando preso às determinações circunstanciais. Essa capacidade está
diretamente associada à dimensão da interioridade humana, a mesma que Ortega vai chamar de mundo interior,
116
associa o homem a um novelista299 por ter de inventar seu programa de existência, sempre, sem
descanso. Associada a um gênero literário, a vida não tem uma raiz biológica, mas se faz
mediante o que o homem vai realizando ao longo de sua trajetória de vida. Essa ideia da
invenção reafirma o pensamento de que a fantasia é a faculdade primordial do homem.
Comparada a um gênero literário, a vida humana é resultado da invenção livre, sendo o homem
um novelista de si mesmo e, enquanto tal, inventa sua própria vida.
Nessa ideia de vida como novela, Ortega aborda um outro elemento da literatura: o
protagonista300. Viver significa realizar a existência em primeira pessoa, e isso passa por um
protagonismo individual, em que cada um é responsável, por sua conta e risco, por sua vida,
não sendo possível transferir para terceiros essa atividade vital. O conceito de liberdade, em
Ortega, insere-se em uma perspectiva criadora da vida humana como parte da constituição de
si.
Além disso, no exercício da liberdade, o homem se depara com uma outra realidade
que será central na perspectiva antropológica de Ortega, pois, ao mesmo tempo em que o
homem é livre para fazer as suas escolhas, essa liberdade é limitada por um universo de
possibilidades que favorecerá ou dificultará a sua ação no mundo. Isso é o que Ortega vai
chamar de circunstância, a qual está diretamente relacionada à vida, porque a vida humana
acontece em meio a uma multiplicidade de coisas que são indispensáveis para o viver.
O conceito de circunstância é um tema recorrente na obra de Ortega, sendo,
portanto, indispensável abordá-lo na compreensão da vida enquanto dado imediato que consiste
no diálogo dinâmico entre o eu e a circunstância. Como já exposto, essa ideia aparece
primeiramente em Meditaciones del Quijote (1914) e segue sem sofrer mudanças em todos os
seus escritos.
Quando Ortega fala de circunstância, ele não está se referindo ao que os biólogos
denominavam de Uexküll, um lugar determinado. Ele chama a atenção para tudo que o homem
precisa para viver, tendo que lidar com o mundo sob pena de sucumbir, porque viver significa,
na compreensão de Ortega, intimidade consigo e com as coisas. Isso não significa uma
dependência unilateral, mas uma interdependência, uma correlação entre o yo e o mundo. Desse
modo, existir passa a ser compreendido como coexistir. O ser estático é substituído pelo ser
atuante: mundo e homem funcionando um com o outro. Essa relação não é compreendida por
ensimesmamento ou reflexão, todas correspondem à mesma realidade que é o momento de contato do homem
consigo mesmo, que possibilita a invenção de si e de tudo que seja favorável ao seu viver.
299
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 31.
300
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 15.
117
uma visão romanceada da vida, pois o fato de ser marcada por uma relação não exclui dessa
relação o conflito: “una realidad que consiste en que un yo vea un mundo, lo piense, lo toque,
lo ame o deteste, le entusiasme o le acongoje, lo transforme y aguante y sufra, es lo que desde
siempre le llama ‘vivir’, ‘mi vida’, ‘nuestra vida’, la de cada cual” (ORTEGA Y GASSET,
2010b, p. 179).
Para sua nova filosofia, Ortega define três expressões que estão diretamente
relacionadas ao que ele pretende desenvolver na sua teoria da vida: encontrar-se, mundo e
ocupar-se301. Viver, para o homem, consiste em encontrar a si mesmo no mundo302, tendo que
ocupar-se com as coisas e com os seres do mundo, pois “todo vivir es ocuparse con lo otro que
no es uno mismo, todo vivir es convivir con una circunstancia” (ORTEGA Y GASSET, 2010b,
p. 186), sendo isso uma atividade vital. E mais, para Ortega, a descoberta da vida requer a
descoberta do mundo. É no mundo que o homem se descobre vivendo e tem de exercitar sua
liberdade, sendo limitado pela determinação de ter de lidar com o mundo em que vive, não lhe
sendo possível viver em um mundo que não seja aquele no qual se encontra.
Ortega vai atribuir outros termos para designar o que ele considera ser a
circunstância como uma coisa que, diferentemente do sujeito, aparece como assunto303 com que
o homem precisa lidar, pois está diretamente relacionada à vida humana. Para Ortega, homem
e circunstância se integram em uma relação na qual “el dado radical e insofiscitable no es mi
existencia, no es yo existo – sino que es mi coexistencia con el mundo” (ORTEGA Y GASSET,
2010b, p. 170). Essa interação não é somente de natureza material, mas também idealizadora.
Circunstância, na literatura orteguiana, pode ser entendida também como mundo ou
universo, ou seja, tudo quanto há na relação do homem com as coisas reais e fantásticas. Por
isso, viver requer que o homem aceite sua inexorável circunstância. É incontestável que o
homem vive em circunstância, mas também é fato que, sendo livre, pode modificá-la. Porém,
como conteúdo do mundo que o homem encontra na sua vida, viver implica primeiramente lidar
com essa realidade que a ele se impõe: pelo tempo cronológico; pela cultura, com suas normas
e valores; pelos demais homens, com suas características e modos de vida; pelo corpo, com
seus traços fisiológicos e psicológicos; pelo ideológico; e por tudo que o homem descobre como
parte do seu viver.
301
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 185.
302
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 186.
303
Significa o mesmo que temas que importam ao homem, e o tema de maior importância é a própria vida (Cf.
ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 68).
118
304
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 40.
305
Na conferência ministrada sobre a realidade pessoal em 1924, intitulada “Vitalidad, alma, espirito”, Ortega
distingue três esferas de personalidade: a alma carnal, parte da psique que vive fundida ao corpo pelo qual o
somático, o psíquico, o corporal e o espiritual emanam e se nutrem; o espírito, que é a parte mais pessoal do
indivíduo, sendo o conjunto de atos íntimos de que cada pessoa se sente verdadeiramente autor e protagonista,
como a vontade e o pensamento; e a alma propriamente, a região considerada menos iluminada, a região dos
sentimentos e emoções, dos desejos, dos impulsos e dos apetites. Esses três centros pessoais estão
indissoluvelmente articulados em cada vida humana, e o caráter da pessoa provém da combinação dos três
elementos, tanto em quantidade quanto em ordem (Cf. BONILLA, 2002, p. 232).
306
A cultura, para Ortega, terá dois sentidos: o primeiro como busca de sobrevivência em relação à experiência de
desolamento ontológico em que o homem precisa fazer suas escolhas (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V,
p.122); e o segundo que corresponde às escolhas que aparecem como soluções satisfatórias oriundas da
interpretação humana do mundo e de si mesmo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 258).
119
mundo vigente, o homem produz outros mundos, de acordo com o que encontra, partindo das
convicções do seu tempo. O mundo é o que o homem faz material e mentalmente para assegurar
a sua existência, sendo a vida o conjunto de fazeres, ações e comportamentos criados pelo
homem. É o que se faz a cada instante e esse fazer não é, na perspectiva de Ortega, um fazer da
consciência307, mas sim da própria vida, que requer que o homem a reconheça e a realize dentro
de um campo de possibilidades. Com isso, a Filosofia, para Ortega, deve assumir a obrigação
de ajudar o homem contemporâneo na definição e reflexão da vida pessoal, auxiliando-o com
categorias que sejam capazes de possibilitar uma compreensão do seu cotidiano.
Ao mesmo tempo em que o homem encontra na circunstância uma margem de
segurança para seguir vivendo, o contrário também acontece em sua relação com o universo
das coisas. Na circunstância, o homem vivencia a experiência da desorientação, porque o
mundo não é um reflexo do que muitas vezes se impõe a ele como forma de vida autêntica. No
encontro com esse mundo que, a princípio, para Ortega, será o mundo imediato em que o
homem encontra sem buscar, acontece o encontrar a si mesmo. Diferentemente da visão do
idealismo, segundo a qual entende-se que, para chegar a consciência de si, é preciso abstrair as
coisas308, viver, para Ortega, é encontrar-se entre as coisas, pois, na relação com elas, o ser
humano sente a necessidade de conhecê-las além do imediato309. Disso nasce a
ontologia/metafísica na perspectiva Orteguiana. O ser é originado nessa curiosidade própria do
homem que busca, por meio do conhecimento, o “ser latente de las cosas”310.
Nesse caso, reforça a ideia de que o homem é interação com o seu mundo
circunstancial, o qual não aparece simplesmente como uma paisagem em que ele se coloca
como espectador311, uma vez que é parte integrante da vida.
Nacemos juntos con él y son vitalmente persona y universo como esas parejas
de divinidades de la antigua Grecia y Roma que nacían y vivían juntas. [Pues
del mismo modo el hombre y su circunstancia forman y integran la vida, y el
uno no es anterior al otro. Vivir es convivir en una circunstancia]. Vivimos
307
Uma clara alusão ao seu posicionamento contrário ao primado da consciência que aparece tanto no idealismo
como na fenomenologia. Isso porque, para Ortega, não é a consciência que inclui o sujeito no mundo, mas a vida.
Com essa visão, ele acredita ter superado o idealismo (ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 195).
308
ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 382.
309
A pergunta sobre o que é algo significa que o homem não se contenta com o mundo imediato, o qual não supõe
um exercício mental. Quando a pergunta pelo ser das coisas entra no cenário humano, ela revela um ente
descontente com o tipo de conhecimento que a pura relação entre ele e mundo proporciona, não parecendo este ser
suficiente para a sua compreensão de mundo (Cf. ORTEGA Y GASET, O.C., v. IV, p. 575). E mais, existe um
fator vital no homem que o leva a questionar o mundo, porque a vida é interrogação (Cf. ORTEGA Y GASSET,
2010b, p. 235).
310
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 382.
311
Significa dizer que o homem não é espectador, senão autor de sua existência, tendo que tomar decisões a todo
momento (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 230).
120
aquí e ahora – es decir, que nos encontramos en un lugar del mundo y nos
parece que hemos venido a este lugar libérrimamente. La vida, en efecto, deja
un margen de posibilidades dentro del mundo pero no somos libres para estar
o no en este mundo que es ella hora. Sólo cabe renunciar a la vida pero si se
vive no cabe elegir el mundo en que es ella hora. Esto da a nuestra existencia
un gesto terriblemente dramático (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII,
p.503).
312
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 202.
313
O yo é um conceito fundamental na filosofia orteguiana por marcar no seu pensamento a singularidade do
indivíduo que, ao viver, vive em primeira pessoa. A vida é sentida e realizada sempre por um sujeito existente que
pensa, sente, deseja e realiza sua vida. Ortega reconhece que esse termo tem suas ambuiguidades na Filosofia por
já ter sido exaustivamente trabalhado pela corrente racionalista e pela idealista, de modo particular por Descartes,
Kant e Husserl. Se para Descartes, Kant e Husserl, o yo estava diretamente relacionado à consciência, para Ortega,
o yo é a pessoalidade presente na vida de cada um. Para Marías (1967, p. 408), o yo é a totalidade da pessoa, e a
circunstância compreende a “outra metade”.
121
que ser en un elemento distinto de mí mismo, ajeno a mí, que no me acepta sin más, que no
coincide sin más conmigo, con mis ideas, con mis quereres, con mis deseos. Este elemento en
el cual tiene que existir el hombre es la circunstancia” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX,
p.532).
A vida em circunstância, portanto, relaciona “[…] fatalidad y libertad, es ser libre
dentro de una fatalidad. Esta fatalidad nos ofrece un repertorio de posibilidades determinado,
inexorable, es decir, nos ofrece diferentes destinos” (ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 206).
Pela liberdade, o homem se livra de uma possível determinação circunstancial, mas segue no
mundo com limitadas possibilidades, ou seja, “[…] la vida es, a lar par, fatalidad y libertad, es
posibilidad limitada pero posibilidad, por tanto, abierta [...]” (ORTEGA Y GASSET, 2010b,
p.206). Em síntese, a vida transita entre essas duas dimensões: a fatalidade e a liberdade, e o
que temos de história de vida implica sempre o que cada um faz diante dessas duas realidades
que se impõem.
A vida humana assume uma dimensão profética314, em certo sentido, pois pode
antecipar o futuro através de um projeto de existência. Não que o homem tenha o dom de saber
o que acontecerá futuramente, mas é possível construir um saber a partir da necessidade de
direcionar o sentido da sua existência “futurista”315. A cada instante se abrem, frente ao homem,
várias possibilidades, de modo que é preciso antecipar a direção ou o sentido de sua existência
através de um programa de vida316. Assim acontece, porque a vida é projeto e, enquanto tal,
314
Em nota, Ortega adverte que não segue o método do profetismo histórico de Spengler, pois defende a ideia de
que o profetismo só é possível dentro de uma vida e não fora dela (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 87).
315
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 175-176.
316
Equivale a projeto vital e programa de existência. Através da categoria de projeto, Ortega busca destacar a
dimensão ontológica do homem enquanto criador de modos de ser, mas essa criação, de certa forma, atende a uma
necessidade interior de realização dentro de um determinado modo de ser autêntico. Porém, percebemos que nem
sempre a condução da vida atende a esse apelo interior.
122
317
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 176.
318
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 437.
123
cada indivíduo é um determinado projeto de existência que se apresenta ao homem como uma
necessidade para a sua realização319. Todos os indivíduos são chamados a ser de um
determinado modo em todas as dimensões que tocam a sua vida. Assim, o homem não se realiza
somente no desempenho de um determinado ofício, pois este é apenas um aspecto do viver.
Portanto, temos que
la vocación, en suma, anticipa toda una vida con todos sus lados, facetas y
dimensiones, sólo no anticipa, claro está, lo que procede la circunstancia.
Anticipa íntegramente el que tengo que ser, pero no anticipa el que luego en
choque con la circunstancia, sino precisamente lo otro que ella. Por eso, toda
vida es trágica en su esencia: porque es contradicción, porque es tener que
realizar la vocación que soy yo en el mundo, en el contra-yo (ORTEGA Y
GASSET, O.C., v. VIII, p. 439).
[…] no sólo para la filosofía sino, por ejemplo, también para pasear por el
campo, para gozar con las comidas delicadas, para charlar con los amigos, y
no con cualesquiera, sino con los que tengan condiciones determinadíssimas;
y lo mismo soy vocación para enamorarme de una mujer que no es cualquiera,
sino de cualidades muy precisas, tanto que acaso no existe (ORTEGA Y
GASSET, O.C., v. VIII, p. 439).
Viver com base na vocação é deixar-se conduzir por essa voz interior que “grita”322
diante das escolhas individuais. Essa ideia de grito leva a uma compreensão da vocação como
319
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 438.
320
Ortega fala de um chamado a ser um ente individualíssimo e único. Toda vocação é um chamado para ser a si
mesmo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 439).
321
O objetivo e a meta da vida pessoal, tanto para Ortega quanto para Heidegger, são ser realmente a si mesmo
(Cf. JASPE, 1997, p. 52).
322
Diante da recusa de uma escolha correta, é clara a manifestação do que seria a autêntica decisão. Quando se
quer que dois sejam cinco, a voz interior grita que esse pensar não é autêntico (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a,
p. 178).
124
algo que, enquanto presença, se coloca independente do desejo, ainda que ela signifique aquilo
que de melhor pode existir no campo das escolhas individuais, sendo uma referência capaz de
conduzir o homem para uma trajetória de vida autêntica.
No entanto, essa voz é obscurecida pelas paixões e pelos apetites que estão muito
mais presentes ao longo da vida. Ortega entende que o ensimesmamento ou exercício de uma
vida interior é o caminho para se descobrir a vocação, evitando que as obscuridades das paixões
impeçam o homem de escolher a si mesmo323.
Diferentemente da circunstância, que imprime determinação de forma impositiva à
vida humana, a vocação, mesmo sendo uma forma de chamamento, é uma proposta que se
apresenta na vida individual e depende de cada um segui-la ou não. A vocação “[...] no me es
impuesta, sino propuesta, y aunque no está en mi mano tener o no tener esa vocación, quedo
frente a ella en una esencial libertad: puedo o no, serle fiel o infiel” (MARÍAS, 1983, p. 24).
González (2001) julga que a missão do ser humano consiste em atender a essa voz, ainda que
seja sempre livre para realizar ou não a trajetória324 efetiva da sua vida.
Ortega se apropria da biografia de Goethe para desenvolver um pouco mais essa
sua compreensão do conceito de vocação. Goethe desde dentro (1932) não se trata de uma
biografia de natureza psicológica, mas de uma narrativa que destaca as impressões que a vida
do poeta alemão deixara em Ortega, desenvolvendo como tema norteador a vocação. Algumas
características marcam tanto o homem que vive de forma autêntica como aquele que nega seu
destino. Destino, vocação e autenticidade parecem se confundir nessa obra, ao insistir em um
modo de vida que reflita a conexão entre a vida interior e a relação com o mundo. O homem
que vive da sua vocação, vive mais leve do peso da existência, enquanto aquele que nega essa
vivência interior encara a vida com fadiga em tudo o que faz.
Associada à temática da vocação, Ortega fala de outra categoria: o destino. Cada
indivíduo encontra na vida um lugar a partir do qual reconhece a sua autenticidade. No entanto,
a vida não deixa de ser falta e, por isso, mesmo aquilo que aparece ao homem como lhe sendo
autêntico de viver não exclui dele a liberdade de deixar-se conduzir pelo que não seja o seu
destino. Ser conduzido pelo destino é, para Ortega, viver na sinceridade por atender ao que
existe de mais autêntico no homem: a sua vida pessoal.
323
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 179.
324
Este tema é mais desenvolvido por Marías, que dedica até mesmo um título de sua obra a ele. Para esse
estudioso, cada vida pertence a uma pluralidade de trajetórias, com desiguais graus de realização (Cf. MARÍAS,
1983, p. 23-28).
125
325
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 297.
326
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 436.
327
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 437.
328
Fundamentos da falsificação da vida: não aceitamos em todo o rigor e com clareza as circunstâncias que nos
rodeiam; vivemos em circunstâncias imaginárias; e oprimimos o destino com a construção de um programa vital
que não é sincero, não é autenticamente nosso, não é nossa vocação (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p.
510). A falsificação da vida pode acontecer, porque a tarefa de autoformação está sempre exposta ao fracasso (Cf.
DOMÍNGUES, 1997, p. 17).
126
dimensões presentes na vida humana, pois, ao mesmo tempo em que ela representa o momento
de autenticidade do homem pelo seu poder de criação e adaptação da realidade ao mundo
interior, Ortega vai afirmar que, aos poucos, a cultura perde sua dimensão de autenticidade ao
conduzir o homem a um processo de socialização em que ele apenas reproduz o que foi pensado,
criado e vivido significativamente por outros homens. A questão não são as coisas em si, mas
o distanciamento do homem de si mesmo através das coisas.
O fenômeno da socialização329 implica uma falsificação da vida humana330, pois
sendo a vida um acontecimento pessoal, ao cair no coletivo, o homem passa a ser conduzido
por outros. Os conceitos de homem-masa e la gente331 são as grandes representações da
falsificação da vida humana, ou seja, todos e, ao mesmo tempo, ninguém determinado332. O
exemplo dado por Ortega são os fatos sociais333 que, sendo constitutivos dos usos, obrigam os
indivíduos a reproduzirem determinados comportamentos na convivência com outros
indivíduos por uma imposição cuja autoria, se interrogado, o sujeito que reproduz não é capaz
de identificar. Esse não é, para Ortega, um comportamento humano, mas aparece na relação
dos homens entre si, pois o social surge no espaço da convivência, no encontro de vidas
individuais. Essa convivência tem como fatos a companhia e a comunicação, as quais marcam
o mundo das relações interindividuais. Nesse sentido, a questão que sustenta a crítica
sociológica de Ortega é: quem é o sujeito desses fatos? Quando Ortega usa o termo sujeito, ele
está referindo-se à dimensão da autoria dos fatos. Se o humano é tudo que o homem cria dentro
da sua dimensão pessoal através do exercício da liberdade, o que escapa ao individual entra,
para Ortega, no espaço da circunstância que, por sua vez, é alteração.
O grave problema identificado na leitura sociológica de Ortega é a perda da
autenticidade humana pelo aprisionamento no mundo que o próprio homem se encarrega de
criar. No entanto, a vida é sempre marcada pelo conflito entre o pessoal e o coletivo, o eu e a
329
O homem que leva uma vida falsa é o que vai arrastado de um lado a outro pelas opiniões dos demais,
acomodado a viver na conta dos outros. Para Domingues, a salvação está no reencontro do homem consigo mesmo
(Cf. DOMINGUES, 1997, p. 19).
330
ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 259.
331
Ambos os conceitos representam um tipo de homem que perde a sua individualidade e deixa-se guiar por fatores
que inibem a sua consciência de pessoalidade e sua capacidade de escolher seu modo de vida em sinceridade com
um projeto de existência pessoal. Em El hombe y la gente (1939), Ortega tece uma crítica ao processo de
socialização que afasta o homem da sua dimensão solitária através da assimilação do coletivo, ocasionando a perda
do protagonismo individual. O mesmo ocorre na crítica que Ortega já havia feito em Rebelión de las masas (1930)
com a figura do “mocinho satisfeito”, que vive adaptado ao presente, acomodado e seguro de si, desprovido da
consciência do esforço das gerações anteriores para obter as conquistas pessoais e coletivas.
332
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 17.
333
Formas de comportamento humano que o indivíduo cumpre porque, de uma maneira ou de outra, em uma ou
outra medida, não têm remédio, são impostas na convivência pela sociedade. Um dos seus efeitos no indivíduo é
automatizar parte de sua conduta pessoal (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 16).
127
334
Cf. DOSSE, 2015, p. 11-18.
335
Assim como Ortega, Sartre será um crítico da forma mecanicista das narrativas existenciais por se ater somente
aos acontecimentos e esquecer do sujeito vivente. Em suas biografias, ele não realiza uma narrativa dos fatos
vividos, ou uma biografia da linhagem, seu método implica que a biografia seja realizada com base no sujeito
concreto através do esclarecimento das condições epocais, materiais, antropológicas e sociológicas que o
determinaram. O método biográfico em Sartre foi sendo construído no desenrolar de sua obra teórica e literária
tendo dois momentos crucias de fundamentação teórico-metodológica: a Psicanálise Existencial e os aportes
técnicos da Questão de Método (Cf. SCHNEIDER, 2008, p. 294; 297).
129
336
Cf. DOSSE, 2015, p. 5-18; 229-296.
337
Destacamos aqui a dimensão ontológica pela simples razão de esclarecer que, ao fazer referência à categoria
central do seu pensamento, a vida, Ortega busca saber o que ela é. Essa busca deságua na compreensão mais
completa do seu pensamento vital que é a vida como biográfica. Essa vida tem como pressuposto prático
fundamentar uma compreensão do sujeito vivente que passa muito mais por uma compreensão antropológica, pois
a preocupação orteguiana não é saber o que é o homem, mas quem ele é.
338
A realidade histórica do destino humano avança dialeticamente entre o passado e o que passa. Ortega vai chamar
essa de dialética de vida, que não é a dialética conceitual hegeliana, de uma razão pura, pois Ortega fala da dialética
de uma razão muito mais ampla, a dialética da vida, da razón viviente (ORTEGA Y GASSET, 2010a, p. 173-174).
339
Isso porque, no homem, nenhum fato define sua vida, pois, ontologicamente, ele está sendo;
antropologicamente, acontecendo; e, racionalmente, se compreendendo dentro de toda uma trajetória de vida que
inclui o vital e o cronológico.
130
340
Para Meliá, a vida entendida como biografia está na base da hermenêutica narrativa, sendo esta uma
hermenêutica filosófica de corte narrativo que tem como método narrar de onde vem e para onde vai a vida de
cada pessoa (Cf. MELIÁ, 2009, p. 35; 64). Porém cabe esclarecer que o pensamento de Ortega se insere em uma
tradição filosófica hermenêutica como modo de compreensão da vida. Nesse sentido, o que fazemos nesta tese é
inserir Ortega nessa tradição filosófica ao considerarmos que o conceito central de vida humana não é entendido
em uma tradição filosófica que não tenha por base a compreensão como necessidade vital. Isso porque o nosso
lugar de fala é a Filosofia e, enquanto tal, o caminho percorrido em nossa investigação nos leva a uma forte
associação entre antropologia e hermenêutica, diríamos até que a antropologia presente no pensamento de Ortega
deságua em uma hermenêutica da vida humana. Por isso, falamos de uma hermenêutica vivencial que em Ortega
assume a narrativa como método vivencial, no qual a compreensão da vida individual passa pela possibilidade de
contar o que se passa com cada indivíduo ao longo de suas histórias de vida.
341
Cf. MARÍAS, 1971, p. 36.
342
Cf. MARÍAS, 1971, p. 37.
343
Para Ortega, a teoria tem suas raízes essenciais na vida (Cf. O.C., v. IV, p. 284), sendo um ato originado no
sujeito que pergunta pelo ser a ponto de formar um conjunto de conceitos que tem um conteúdo mentalmente
enunciável (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 517).
344
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 382.
345
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 383.
346
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 387.
131
vida. Pensar a Filosofia por esse viés é pensá-la enquanto criação humana proveniente de certas
necessidades vitais que determinam o exercício da razão. Aqui, interessa-nos destacar o que
Ortega apresenta como terceiro princípio, que é o conhecimento347. Associar a vida ao
conhecimento significa dizer que conhecer é uma necessidade humana para situar-se no mundo
e que o conhecimento não tem um fim em si mesmo quando se trata da vida, uma vez que é
uma elaboração humana que surge da necessidade de compreender o acontecimento principal
que marca todos os demais: a própria vida. É inevitável conhecer, porque a vida como tarefa
tem de ser pensada, escolhida, e, para isso, o homem carece do uso da sua faculdade de pensar
para conduzir-se no mundo, caso contrário, o seu conduzir seria automático, e isso somente
seria possível se a vida estivesse completamente determinada por alguma natureza.
Fazendo referência a Aristóteles, Ortega retoma criticamente o que ele vai chamar
de a raiz da Filosofia348. O filósofo grego compreende que há algo que pulsa além das coisas
que despertam no homem o desejo de conhecer, sendo nele natural a curiosidade. O querer
saber se justifica no exercício da visão, da memória, da experiência e da inteligência, e o
conhecimento é proveniente do conjunto dessas faculdades349. Ortega recusa essa ideia do
conhecimento como oriundo de faculdades, ou proveniente de uma natureza própria ao
homem350. O conhecer “[...] no es una faculdad, dote o mecanismo; es, por el contrario: una
tarea que el hombre se impone” (ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 219). Na sua concepção, é
uma tarefa que se impõe, não dependendo simplesmente do exercício das faculdades mentais,
mas resulta de uma necessidade vital que leva o homem a exercê-las.
Portanto, o conhecimento não é algo que esteja no campo da natureza fazendo parte
da dimensão instintiva do homem, de modo que não é o homem que tende naturalmente ao
conhecimento, mas sim a sua problemática relação com o mundo que o desafia a conhecer. A
origem do conhecimento, em Ortega, acarreta a dimensão dramática da vida, aspecto
antropológico que marca todas as dimensões do humano. Por isso, a origem do conhecimento,
para Ortega, está muito mais próxima da visão platônica que a percebe como proveniente da
insuficiência dos dotes humanos351. O “não saber” é uma condição que está na origem do
347
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 100.
348
A referência é a metafísica aristotélica que parte da compreensão de que os homens sentem, por natureza, um
afã de conhecer que revela um não se contentar com a presença imediata das coisas através da busca pelo ser (Cf.
ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 218).
349
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 218.
350
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 219.
351
Considera que somente Platão entreviu que a raiz do conhecimento está na insuficiência dos dotes humanos,
no fato terrível de o homem “não saber” (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 220).
132
352
Entende que o esforço de buscar o ser brota da ignorância – o mais autêntico suposto do conhecimento –,
privilégio que “solo un ente que es por naturaleza ignorante es capaz de movilizarse en la direción de conocer”. A
ignorância é um não saber de algo que falta ao homem (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 586).
353
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 232.
354
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 38.
355
Conceito e pensar se diz em grego logos. Não há pensar sem conceitos, os conceitos são sempre fragmentos da
intuição que está em uma cósmica arquitetura. Todo saber requer evolução, porque o que pensamos é sempre mais
amplo do que aquilo que é pensado. Pensar é aceitar a estrutura do mundo, copiá-la, descrevê-la. O fato do pensar
ser contínuo, faz com que todo o conceito leve a pensar algo mais. Essa continuidade do pensar provém de que,
na intuição, aparece o gigante contínuo do ser ou do Universo. Essa concepção provém de Platão, para quem cada
conceito implica a totalidade intuitiva do Universo, sendo o inteligível um corpo sistemático e tudo nele parte do
todo. Não há conceitos soltos, cada conceito é elaborado em função do todo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v.
VIII, p. 168).
356
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 323.
357
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 101.
133
pensada pelo homem. Partir da vida como realidade radical equivale a reconhecer que a
consciência é somente uma ideia que o homem descobre e inventa ao realizar o seu viver.358
No curso En torno a Galileo (1933), Ortega avança nessa compreensão ao fazer
uma discussão sobre o papel da História como ciência hermenêutica359, discordando de Ranke
sobre a História tratar do passado como se o fato fosse separado da vida. Para Ortega, a realidade
dos fatos é a significação dada pelo homem, não sendo um puro acontecer, mas um acontecer
em relação com as coisas e com os homens, de modo que a História, em seu primeiro trabalho,
tem o papel de interpretar os fatos dentro de um sistema vital, ou seja,
a la luz de esta advertencia, bien obvia por cierto, la historia deja de ser la
simple averiguación de lo que ha pasado y se convierte en otra cosa un poco
más complicada – en la investigación de cómo han sido las vidas humanas en
cuanto tales. Conste, pues; no lo que ha pasado a los hombres, ya que, según
hemos visto, lo que a alguien le pasa sólo se puede conocer cuando se sabe
cuál fue su vida en totalidad (ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 22-23).
358
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 102.
359
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 22.
360
Essa estrutura tem a ver com a condição humana que deve ser levada em conta em qualquer interpretação da
realidade, inclusive da própria vida. Dela deve partir qualquer esquema interpretativo. No entanto, quando Ortega
faz referência a essa estrutura, ele chama a atenção principalmente para a dimensão histórica que marca as
trajetórias individuais por ser a vida um drama que acontece em circunstância (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008a,
p. 24; 32).
361
Essa definição de Ortega nos parece ser a mais completa que ele desenvolve em sua concepção de vida
biográfica, pois, ao substituir o conceito de natureza pelo de história no tocante à vida humana, ele traz para dentro
da discussão filosófica a necessidade de compreender o homem inserido em uma estrutura mutável que não se
134
esgota em nenhuma perspectiva teórica e nem se estatiza em uma única compreensão. Isso requer um saber aberto
aos acontecimentos, e esse, certamente, Ortega acredita ser possível por meio da razão vital e histórica.
362
Cf. MARTÍN, 1999, p. 218.
363
Cf. BONILLA, 2002, p. 440.
364
ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 96.
135
vida é a realidade fundamental que precisa ser compreendida, e essa compreensão acontece na
esfera individual pela história de vida, porque, para Ortega, a razão vital deve ser entendida
como sendo a mesma coisa que viver365.
A vida pede compreensão por ser “[...] un puro y universal acontecimiento que
acontece a cada cual y en que cada cual no es, a su vez sino acontecimiento” (ORTEGA Y
GASSET, 2008b, p. 37), por isso o homem se esforça em saber para se situar no mundo. Nesse
sentido, há na raiz da razão vital o reconhecimento da necessidade humana de lidar com o
mundo dos sentidos, compreendendo ou mesmo atribuindo sentido, pois os princípios que
marcam toda e qualquer teoria366, na visão de Ortega, são impostos por urgências vitais, por
necessidade de compreensão, sendo assim, o homem “[...] necesita saber, que necesita – quiera
o no – afanarse con su medios intelectuales, es lo que constituye indubitablemente la condición
humana” (ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 26).
Mas não somente o indivíduo deve buscar compreender o seu próprio cotidiano,
pois também deve ser função da Filosofia ter como questão primária entender o que é o
cotidiano da vida, principalmente para esclarecer a dimensão histórica do humano367.
Diferentemente do modelo de racionalidade de herança cartesiana, Ortega busca apresentar uma
dimensão da razão que se propõe a pensar o homem em sua dimensão vivencial, que se volta
para a vida enquanto acontecimento que está em constante mudança, reforçando o que ele já
havia afirmado em 1923, quando disse que “la razón pura tiene que ceder su imperio a la razón
vital” (ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 118). O sentido de realidade agora muda, pois, enquanto
para Descartes ser real significava cisão entre sujeito e mundo e o primado do pensamento, para
Ortega, o real ganha um novo sentido: frente à independência cartesiana, denota a inserção da
interdependência em um mútuo ser, ou seja,
[...] ahora ser real tiene un nuevo sentido: significa, frente a independencia,
depender el uno del otro, ser inseparables, mutuo serse. Las cosas me son y yo
soy las cosas, estoy entregados a ellas – éstas me cercan, me sostienen, me
hieren, me acarician. Entre ellas y yo no hay eso que se llama consciencia,
cogitatio ni pensamiento: la relación primaria del hombre con las cosas no es
intelectual, no es de simple darse cuenta, pensarlas o contemplarlas – que más
quisiéramos -, sino que es estar directamente con ellas y entre ellas y por parte
de las cosas actuar efectivamente sobre mí (ORTEGA Y GASSET, O.C., v.
IX, p. 505).
365
ORTEGA Y GASSET, 2008a, p. 87.
366
Para Ortega, são urgências da vida (Cf. ORTEGA Y GASSET, O. C., v. VIII, p. 519).
367
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 24.
136
Em La razón histórica (1944), Ortega afirma que é preciso tomar contato com a
vida pessoal369 através da filosofia da razão vital e histórica que se propõe a dar conta de pensar
os assuntos da vida cotidiana, possibilitando elevar o tema da vida ao patamar de um dos mais
importantes temas do século vigente. Desse modo, uma das análises de Ortega sobre a vida
humana buscará descobrir a fundo o sentido que possuem muitas expressões da fala cotidiana
familiar, coloquial e vernácula, nas quais se conserva acumulada a espontânea experiência da
vida, o saber vital que, milênio a milênio, há sido feito sem querer qualquer homem. Nessa
proposta, ao partir de uma preocupação personalíssima, em que o importante é a vida de cada
um e não uma concepção geral de vida, a Filosofia aparece interessada em outra forma de saber.
Deparamo-nos aqui com uma questão de fundo que é analisar se a proposta de razão
orteguiana consegue pensar a realidade a que ele se propõe. Partindo de Ortega, o que ele tem
anunciado é a necessidade de uma nova razão, ou a substituição da razão pura de origem
368
Para Ortega, pela dimensão da historicidade do humano, a vida é acumulativa, e o que se pode fazer é refletir
cientificamente sobre esse fato enorme e infinitamente substancioso que é a experiência de vida (Cf. ORTEGA Y
GASSET, O.C., v. X, p. 17).
369
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 678.
137
cartesiana pela razão vital e histórica. Quanto à necessidade de uma nova compreensão da vida,
consideramos que Ortega consegue estruturar sua crítica a ponto de deixar clara a necessidade
de uma razão coerente com a realidade posta por ele em questão, no caso, a vida em sua
dimensão pessoal.
Para Ortega, a razão histórica é a que consegue pensar a vida em sua perspectiva
filosófica, ou seja, é a razão adequada para pensar a vida como biografia que acumula um
conteúdo histórico. Assim, ele vai entender a razão histórica como uma razão posterior que se
lança nos acontecimentos do indivíduo, que vai vivenciando ao longo da sua vida diversas
experiências que o definem em sua trajetória vital. Essa dimensão da mudança marca tanto a
vida individual quanto a razão que vai pensar a vida cotidiana. Por isso, essa razão está
diretamente relacionada à vida como biografia, pois, sendo a biografia o que cada um faz da
sua vida, a razão adequada para pensar a vida nessa dimensão requer um lançar-se no mundo
dos acontecimentos pessoais em vista de compreender como cada indivíduo vai realizando suas
escolhas em um contínuo compreender a si e o mundo em que vive.
A nova filosofia proposta por Ortega tem em sua raiz duas palavras-chave:
encontrar-se e ocupa-se. Encontrar-se consigo consiste em ocupar-se com coisas relacionadas
à própria vida e, por isso viver implica dar-se conta de si e do mundo em que se encontra, “vivir
es encontrarse en un mundo” (ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 186). Ortega faz referência a
Heidegger nessa forma de compreender a vida e com ele concorda que o mundo afeta o
homem370. Não há vida sem ocupação com as coisas, com a circunstância em que se vive. Essa
dependência da pessoa com o mundo implica que se ocupe dele e com ele.
Nesse sentido, a razão histórica é uma razão que parte da História, mas não como
uma razão que se realiza na História ao estilo hegeliano. Não é a esse tipo de realização que
Ortega se refere. A razão lança-se sobre a História não para imprimir nela conteúdo de
racionalidade, mas para compreender os acontecimentos que estão diretamente relacionados à
vida individual. Diríamos que, em Ortega, a mesma seriedade dada à ciência na modernidade
para compreender o mundo das coisas deve ser dada, na contemporaneidade, à razão vital do
mundo da vida. Por isso, Ortega vai entender a razão histórica como sendo rigorosos conceitos,
logos, pois, por ela, o homem busca compreender o que ele faz de si mesmo, interpretando sua
vida e buscando a gênese dos acontecimentos. Podemos dizer que esse modelo de razão
apresentado por Ortega no contexto da biografia é uma razão hermenêutica, porque objetiva
370
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 186.
138
estruturar uma compreensão da vida a partir das vivências do sujeito e do que cada um atribui
como significado às experiências de vida.
Para Ortega, a aurora da razão histórica dar-se-á pela absorção do passado pelo
homem, por ser ele “[...] el único ente que está hecho de pasado, que consiste en pasado, si bien
que no sólo de pasado” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 594). O fim da citação é bem
significativo, pois, ao mesmo tempo em que o modelo de razão apresentado por Ortega enaltece
o passado como sendo algo necessário no processo de compreensão da vida, há no homem outra
dimensão temporal que o lança para além do passado, que é o futuro, assim como já trabalhamos
anteriormente.
No entanto, podemos lançar uma questão a partir dessa compreensão de razão
orteguiana: como a razão histórica vai dar conta de pensar o humano sendo que ele mesmo
entende que a vida se faz no futuro enquanto pretensão de ser? Não fica difícil esclarecer a
questão, porque, em Ortega, temporalidade e vida não são dissonantes, posto que passado,
presente e futuro dialogam sempre dentro do tempo vital. Isso se justifica pela capacidade
humana de recordar371 o vivido, e a recordação será, em Ortega, uma ferramenta necessária ao
exercício do progresso humano, pois, ao retomar o acontecido, ao dar-se conta do passado, o
homem tem a possibilidade de prever seu futuro.
O que Ortega pretende com a razão histórica é, para ele, algo mais pretencioso do
que aquilo que Descartes fizera ao retroceder ao passado filosófico para superar a Filosofia
escolástica. O homem precisa, pela razão histórica, buscar uma base de compreensão que está
na vida e, para isso, é necessário entrar em contato com o fenômeno da vida individual. Ortega
afirma (O.C., v. IX, p. 557):
371
Aparece, em Ortega, como uma categoria histórica no sentido de ser uma interpretação da vida pessoal (Cf.
ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 252)
139
372
Cf. REGALADO, 2007, p. 111-112.
141
p.112) de que, desde os primeiros escritos de Ortega, existe em seu pensamento uma dimensão
hermenêutica, visto que, já em Meditaciones de Quijote (1914), Ortega fala do desejo humano
de conhecer como sendo algo vital.
Nessa mesma obra, Ortega compara a vida a um elemento fundamentalmente
hermenêutico, a vida como texto eterno, porém, como recorda Regalado (2007, p. 113), o jovem
Ortega não se preocupa com a posse de uma doutrina hermenêutica, nem com o
desenvolvimento de sua técnica. Somente em suas obras futuras, nas lições elaboradas entre
1929 e 1932, publicadas com o título Qué es conocimiento? (1931), Ortega apresenta um
esforço de desenvolver com mais clareza o conceito de vida fundamento pelos princípios
ontológicos da razão histórica e da hermenêutica.
Apenas a partir dos anos 1930, Ortega passa a desenvolver uma hermenêutica
adequada à ideia de vida como realidade radical e como história, pois, até então, principalmente
nos seus escritos de grande relevância desse período, como El tema de nuestro tiempo (1923),
a ideia de vida ainda se encontra associada a uma dimensão vitalista. Com a guinada histórica
na compreensão da vida pelo conceito de vida biográfica, Ortega persegue um outro caminho
de compreensão que vai encontrar na história a justificação de uma compreensão hermenêutica
da vida pela atividade vivencial do homem de conquistar a si mesmo ao partir da compreensão
de que “la vida de cada cual – no la biológica, sino la biográfica – es un organismo donde nada
es inerte [...]” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 580).
Há sempre o que fazer! Esse é o imperativo orteguiano. E nesse fazer a busca de
compreender o que se faz é uma atividade fundamental da existência humana que será a chave
de compreensão da hermenêutica vivencial em Ortega. Essa dimensão da vida, que aparece
claramente no texto “Qué es el conocimiento?” (1931) com a ideia vital da pergunta373, forma
parte essencial da dimensão biográfica que, segundo Regalado (2007, p. 166), sustenta a ideia
de uma razão histórica.
O termo “hermenêutica” aparece pela primeira vez nos escritos de Ortega em Las
Atlântidas (1924) para afirmar que a doutrina da paisagem vital é decisiva para a história e “[...]
no consiste sino en una hermenéutica o interpretación de las vidas ajenas” (ORTEGA Y
GASSET, O.C., v. III, p. 754). Já aparece nesse texto a dimensão da vida como múltipla em
seu acontecer e a necessidade de compreendê-la dentro de um esquema de interpretação da
própria vida em sua dimensão histórica. Nos anos que se seguem ao ensaio sobre Kant de1924,
Ortega adota uma técnica interpretativa biográfica fundamentada na ideia de que a vida possui
373
Perguntar, para Ortega, é um preocupar-se e essa preocupação é a marca da ocupação humana com o que tem
de ser feito da vida e do mundo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 571).
142
uma estrutura hermenêutica e que o compreender se assenta na vida mesma, pois ela interpreta
a si mesma374. Esse entendimento é fundamental para a estruturação da dimensão histórica do
pensamento de Ortega, pois a História agora será posta a serviço da compreensão da vida, dos
indivíduos em suas vivências pessoais.
374
Cf. REGALADO, 2007, p. 120.
375
Cf. RÜSEN, 2016, p. 45-57.
376
Cf. MELIÁ, 2009, p. 42.
377
Cf. REGALADO, 2007, p. 119.
378
A ideia de Dilthey de vida histórica como um texto a decifrar e de que a investigação do passado consiste em
um deciframento não entusiasmou Ortega que concebeu a razão histórica como uma narração, termo que está mais
ajustado ao caráter temporal e dinâmico da vida do homem (Cf. REGALADO, 2007, p. 122).
379
Preferimos usar a categoria antropologia que ontologia por concordarmos com J. San Martín que Ortega,
diferentemente de Heidegger, nutre um interesse antropológico e não ontológico por dedicar-se à busca da
compreensão do sentido da vida humana em sua dimensão pessoal.
380
Em En torno a Galileo (1933), a história deixa de ser simples averiguação do passado e se converte em
investigação de como foram as vidas humanas enquanto tal (Cf. REGALADO, 2007, p. 120).
143
Marías (1971, p. 37) reafirma a proposta de Ortega ao defender que a razão vital
pode ser melhor compreendida pela expressão razão vivente, que corresponde à vida no seu
efetivo movimento, em seu viver biográfico, em que a razão aparece como órgão de
compreensão do que se passa, o que faz com que o homem entenda o que lhe acontece e, para
entender, ele não tem outra alternativa a não ser contar uma história. Em outras palavras, isso
significa que a narrativa é o método existencial que o homem criou para contar o que ocorre em
sua vida ou, como bem define Meliá (2009, p. 34), a vida entendida como biografia está na base
da hermenêutica narrativa, pois o homem compreende a vida pela narração. E mais, fazer
Filosofia, segundo o pensamento de Ortega, de certo modo, é fazer uma leitura narrativa da
vida.
Essa ideia aparece claramente em Historia como sistema381 (1935), quando Ortega
apresenta a narrativa como o modo de compreensão da vida humana, visto que se “la razón,
consiste en una narración. [...] Para comprender algo humano, personal o colectivo, es preciso
contar una historia” (ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 47). A narração é contar o acontecido
e, enquanto tal, é um modo adequado para compreender a vida, sendo ela sempre marcada pelo
que se passa na dimensão pessoal de cada indivíduo. É importante destacar que essa narração
não tem como fim o acontecido, ou os fatos, mas o esclarecimento das vivências humanas. Por
esse motivo, a narração em Ortega é vital e não histórica382. Diríamos, para não cairmos em
uma ambiguidade, que se narra o que é vivido pelas pessoas. Sendo assim, a narração traz a
história como conteúdo de seu modo de contar a vida como acontecimento vital.
Diferentemente da hermenêutica crítica presente em Heidegger e Gadamer, Ortega
vê na narrativa383 um modo de proceder do homem na relação com a sua própria história de
vida. A narração será, para Ortega, o meio pelo qual o homem busca a compreensão de seu agir,
pois, enquanto responsável por sua história de vida, carece de compreensão do que lhe acontece,
por ser “[...] la vida constitutivamente experiencia de la vida” (ORTEGA Y GASSET, 2010b,
p. 43). É nesse sentido que a narração, enquanto método biográfico, está plena de conteúdo
histórico, pois o homem busca compreender o que, de certa forma, faz parte do seu existir, de
modo que é pela narrativa que ele compreende o que lhe passa.
381
Destacamos principalmente o capítulo VII, porque é nele que Ortega parece melhor sintetizar a sua proposta
filosófica de uma razão narrativa.
382
Cf. MELIÁ, 2009, p. 36.
383
Segundo Molinuevo, nessa época, a vida e o pensamento de Ortega adquirem uma textura etimológica. A
perspectiva agora é da razão histórica, razão que vai até a raiz das coisas através da linguagem e, especialmente,
ao núcleo da realidade radical, da vida, através da vida pessoal cujo dizer é narrativo. A partir daí, Ortega
desenvolve meditações fundamentais: uma sobre a origem e a estrutura da sociedade, em El hombre y la gente; e
outra sobre a origem da Filosofia no contexto de uma modernidade alternativa, em Sobre la razón histórica,
Introducción a Velásquez e La idea de principio en Leibniz (Cf. MELIÁ, 2009, p. 44-45).
144
Narrar é o exercício racional feito pelo homem no contato com a sua vida, realizado
como forma de trazer para o presente o acontecido, por essa razão aquilo que se narra implica
sempre uma transparência, pois somente é possível contar o que, de alguma forma, se tem
domínio. Certamente, esse é o grande desafio encontrado no exercício da narrativa biográfica,
porque o homem tende a olhar muito mais para o que ocorre fora de si. Seguramente, em relação
a essa temática, encontramos em Ortega a proposta de uma prática vital por meio da qual o
indivíduo seja capaz de se apropriar da sua história através de um processo de compreensão
contínua do que lhe passa, trazendo para o presente os acontecimentos do passado.
Essa experiência tem uma dimensão socializadora, porque o homem possui uma
necessidade de comunicação e sua vida é marcada pelo que lhe acontece. E é por meio dessa
dimensão histórica da vida que a compreensão de si carece também da compreensão
circunstancial. Parece-nos que Regalado (2007, p. 120) entende bem essa dimensão ao destacar
que o conceito de biografia presente no texto Goethe desde dentro (1932) é essencial para o
projeto filosófico da razão histórica e responde à consciência do caráter hermenêutico da vida
mesma e da dinâmica da relação entre o homem e sua circunstância. No projeto de Ortega, é
preciso que o biógrafo veja como foi objetivamente essa vida, ou seja, é preciso observar como
o indivíduo viveu a sua história, e isso significa que, em uma perspectiva biográfica, é
necessário relacionar o indivíduo ao fato vivido, pois uma biografia unifica sempre as
contradições384 de uma existência que se relaciona com outros modos de vida.
Ao trazer a narrativa para o seu pensamento biográfico, Ortega não nos parece
preocupado em reforçar uma metodologia histórica de registrar fatos e acontecimentos, pois,
contrariamente, sua pretensão era fazer com que o homem entendesse sua própria trajetória, sua
história de vida na relação com o que lhe passa ou acontece. Por isso, os fatos isolados não terão
importância no pensamento de Ortega, mas ganham relevância quando são pensados a partir de
um ser vivente.385
384
Regalado (2007, p. 121-122) considera que essa definição orteguiana exclui o conceito de necessidade
psicológica que Dilthey havia posto como um dos fundamentos de sua ciência histórica. Ao enfrentar-se com a
vida de Dilthey, Ortega partiu da premissa de que uma vida vista em sua intimidade não tem forma, já que não é
objeto senão de executividade e, enquanto tal, é sempre inconclusa e indeterminada. A ideia da contradição que
marca uma vida será fundamental para compreender o conceito de vida biográfica em Ortega. Contrário a uma
unidade de significados sustentada por uma conexão interna, Ortega se opõe a essa ideia de Dilthey, ao considerar
que a vida é marcada por uma série de contradições. Assim, a biografia consiste em um método que desmascara
as contradições de uma vida. Goethe será, para Ortega, o modelo do que ele, nesse momento, se propõe ao se
interessar por um estilo de escrita biográfica, pois, por meio da figura do poeta alemão, ele apresenta as
contradições entre o individual e o genérico. Além de Goethe, Ortega também escreve outros ensaios biográficos:
Vives, Goya e Velázquez.
385
O conceito de vida como interpretação de si mesma marca, em Ortega, um giro hermenêutico, que justifica a
narração como método para a compreensão desses acontecimentos, que não será histórica, mas vital (Cf. MELIÁ,
2009, p. 24; 36).
145
386
Cf. MELIÁ, 2009, p. 37.
387
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 51.
146
programa de vida, cria personagens, acumula formas de ser, e isso não se compreende pela via
da lógica, mas pela história de vida, pois não é somente o resgate de uma forma de pensar, e
sim, de uma forma de viver.
Partir da narrativa para compreender o humano é trazer para o presente o que se
passou com as vidas individuais, o que os homens fizeram em suas histórias, o que eles
construíram como possibilidades e escolheram como forma de vida. E como isso não é exercício
sobre algo estático, exige sempre que se conte, visto que as experiências passadas atuam sobre
o presente dos homens e limitam suas possibilidades futuras, pois “el hombre es lo que ha
pasado, lo que ha hecho” (ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 48). O desconhecimento do passado
é para o homem um problema, isso porque “el pasado es la fuerza viva y actuante que sostiene
nuestro hoy” (ORTEGA Y GASSET, 200b, p. 53). Por isso, Ortega alerta: o homem de hoje
pouco se interessa pelo seu passado, e isso é um risco, porque, por não saber o passado, o
homem o reproduz automaticamente e vive dele, pois o homem também é aquilo que o
antecede.
A razão histórica como narrativa é uma razão posterior, ela compreende o vivido e,
como tal, retoma a história de vida. Sendo a vida humana mudança, essa razão acompanha o
vivido, sem pretensão de determinar o homem em uma categoria ou tempo. Nesse caso, ela
aparece como a ciência do presente, por ser fundada na história, e esta, na compreensão de
Ortega, encontra o passado através da história de vida presente.
Há um aparente antagonismo entre o possível método e o conceito. Enquanto a vida
segue uma ontologia futurista, daquilo que será, a narrativa lança-se sobre o que foi, pois narrar
é contar um acontecido, e não se conta o futuro. Esse possível entrave temporal da narrativa se
apresenta por uma limitação da própria vida, pois o fato de o homem imaginar para si uma
forma de vida não significa que essa forma de vida será realizada como planejada. O homem
cria personagens imaginários, acredita em um determinado programa de vida como sendo seu
verdadeiro ser, busca fundir sua solidão no encontro com os outros, mas é na experiência que
tudo isso que está no campo das possibilidades sofre suas limitações e suas insuficiências. A
execução do projeto de vida se depara sempre com o universo da circunstância que limita não
somente o planejado, mas também a execução do que se planeja. Por isso, lançar o olhar sobre
um acontecido é tentar perceber como um determinado indivíduo ou povo realizou seus projetos
de existência.
Quando Ortega retoma a biografia de algum autor, principalmente a de Goethe, a
quem ele dedica claramente textos referentes à sua biografia, sua preocupação é tentar perceber
como ele viveu determinados acontecimentos, como isso aparece em sua vida, como os fatos
147
388
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 255.
389
Cf. ORTEGA Y GASSET, 2010b, p. 55.
148
A ideia anteposta traz uma crítica a qualquer forma de subjetivismo em que a razão
seja compreendida como órgão máximo da vida. Para Ortega, ela cumpre seu papel dentro da
vida ligando o homem à realidade pela via da compreensão. É esse o ponto importante da razão:
ligar o homem à realidade, compreender o que compõe a vida. Por isso, Ortega prefere
revelação390 ao termo operação. O revelar acontece na relação. No contato do homem com a
realidade, ele vai descobrindo a si e as coisas, ele vai encontrando sentido e elaborando sentido,
construindo mundos, e isso não é resultado somente de uma operação intelectual, pois o
intelecto é uma das faculdades entre outras que compõem a vida, sendo ele uma função
biológica formada de necessidades vitais391. Por esse motivo, a inteligência, para Ortega, não é
compreendida como uma coisa que se tem, mas uma coisa que se é, ou seja, a inteligência
consiste em uma atividade da pessoa pela qual ela cria e elabora verdades. Isso significa que a
razão auxilia o homem na relação consigo e com o mundo.
Compreender o transcendente significa compreender a própria história que se
manifesta, não no sentido hegeliano, mas enquanto conteúdo circunstancial que está presente
na vida de cada um. Por isso, a razão deve ser sensível ao que influencia a vida dos indivíduos
como caminho para compreender o que se é e o que se pretende ser.
Ortega esclarece melhor o que ele entende por narrativa no seu texto Qué es el
conocimiento? (1931), no tópico “Sobre el hablar y el preguntar”, quando, ao definir a vida
humana como biográfica, apresenta o falar como sendo uma das coisas que se faz na vida392. A
fala, para Ortega, consiste na narrativa por meio da qual se apresenta ao ouvinte o que está
ausente, o que este não presenciou, isto é, “hablar es [...] narrar. La narración presenta al oyente
lo ausente, lo que éste no ha presenciado” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 581).
Como a História é a história dos homens, do que eles vivem, narrar aparece como
uma necessidade, porque a vida é a vida de cada um, de modo que contar passa a ser uma
necessidade para que o homem conheça o outro e a si, pois a história pessoal está envolta em
uma história coletiva. Portanto, o narrar é o exercício de manifestação do oculto. Para
390
Para Ortega, revelar é o mesmo que inteirar-se de si e do mundo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII,
p.501). Por ela, o homem toma contato com uma realidade distinta dele (Cf. ORTEGA Y GASSET, 2008b, p. 53).
391
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. III, p. 397.
392
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 580.
149
fundamentar essa percepção, Ortega retoma a etimologia da palavra dizer: do latim deico; do
grego deiknumi; e do sânscrito disami, que significa mostrar, fazer ver393.
A narrativa como o exercício do falar leva o ouvinte à descoberta de algo que está
oculto a ele. Essa ideia de trazer o oculto como sendo a função da narrativa nos leva a estreitar
a nossa compreensão na defesa que estamos fazendo da narrativa como método vivencial, em
que precisamos conhecer a vida do outro e como ele vive para nos aproximarmos de uma
compreensão coerente. Por isso, é necessário que se conte, pois o não contar leva ao que é
comum na história dos homens: o esquecimento.
Aqui Ortega traz a discussão para o campo do falar como sendo algo revelador,
porque, na relação com as coisas, não é possível identificar uma autenticidade, por isso o
pensamento ou a fala são os lugares de manifestação das coisas em sua verdade, pois, descobrir
algo, requer esforço intelectual para superar a condição originária de ignorância. Ao juntar
pensamento e fala pela narrativa, Ortega liga pensamento e linguagem como funções vitais
inseparáveis. O pensamento puro cairia na crítica que o próprio Ortega fez ao idealismo; a fala,
por sua vez, é a possibilidade de manifestação de algo a outro indivíduo.
No texto “Realidad radical” (1930), ao discutir o conhecimento como um fazer
humano, Ortega identifica no ato de perguntar a busca pelo ser que está além do mundo
imediato. No entanto, o que nos parece relevante é que a pergunta vai aparecer como um modo
de falar que manifesta o pensamento e também um falar de si mesmo a um outro. Compreende
Ortega que “preguntar es un modo de hablar [...] Hablar es manifestar [...] Manifestar, poner de
manifiesto, desnudar a otro mis pensamientos” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. VIII, p. 387).
Enquanto o pensamento é um falar a si mesmo, falar é narrar ao ouvinte o que este não viu,
como uma forma de comunicação do que parece estar oculto pelo pensamento. Essa
compreensão de Ortega nos ajuda a reforçar o argumento da narrativa como uma comunicação
vital que se justifica pela vida biográfica enquanto acontecimento que requer sempre um
exercício de compreensão.
Assim, consideramos chegar ao argumento central de Ortega referente à sua
filosofia, o qual ele reforça no seu texto La razón histórica (1940), ao considerar que “la razón
pura [...] tiene que ser sustituida por una razón narrativa” (ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX,
p. 557). Somente um método adequado ao que de fato é a vida humana pode ser capaz de falar
sobre o homem, de entendê-lo em sua dimensão vivencial que escapa a qualquer categoria
ontológica essencialista. Essa razão é, para Ortega, a razón histórica394.
393
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IV, p. 581.
394
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 557.
150
395
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. IX, p. 685.
396
Cf. MELIÁ, 2009, p. 35.
151
397
Cf. MARTÍN, 1999, p. 13-14.
398
Em homenagem ao centenário do filósofo alemão, a pedido da revista de Berlin Die Newe Rundschau. Também
foi publicado na Revista de Occidente.
152
suas vidas fatos que justificam o que ele entende por vida biográfica. Ortega faz referência a
Goethe em outros escritos, mas nossa análise vai se deter no texto de 1932.
Nesse artigo, Ortega trabalha com as principais categorias 399 que marcam a vida
biográfica tendo como questão norteadora o drama da fidelidade à vocação. Goethe será uma
figura emblemática na elucidação dessa questão por viver mais voltado para o que foi sendo
feito da sua imagem como poeta, esquecendo-se do aspecto fundamental de uma existência
autêntica que é a consciência da dramaticidade da vida pela incerteza do que deve ser feito ao
longo da existência.
A biografia, em Ortega, também pode ser entendida como método no sentido de
investigar formas de vida. Através da narrativa da vida de Goethe, Ortega faz um pouco esse
exercício, ao laçar mão da biografia como método para falar do que cerca os indivíduos, ou
seja, da vida como manifestação pessoal.
O texto aqui trabalhado se adequa à segunda navegação400, a que nos parece chegar
pelo interesse sistemático pela biografia, principalmente a partir do seu projeto sobre Goethe,
em que demonstra claramente não estar interessando em descrever acontecimentos ou justificar
ideias, mas em apresentar como esse poeta alemão foi capaz de viver sua vida ou, como o
próprio Ortega afirma, destacar o seu interesse pelo material vital, que não consiste em uma
redução psicológica, mas “[...] el dentro de su vida, del drama de Goethe” (ORTEGA Y
GASSET, O.C., v. V, p. 125). A vida como resultado da relação entre homem e mundo tem um
conteúdo que, na dimensão biográfica, precisa ser analisado, pois esse conteúdo extrapola a
subjetividade por ser a vida constituída do que o homem faz no mundo.
A narrativa que Ortega elabora no referido artigo busca compreender não o Goethe
poeta, mas o principal acontecimento da sua história que foi a sua própria vida. Essa certamente
é o que Meliá (2009) vai afirmar ser o limite de Ortega em relação a Goethe, pois, ao se deter
399
Nesse ensaio, Ortega retoma, ou melhor, aplica as categorias que fazem parte da sua proposta filosófica de uma
razão vital e histórica como razão elucidativa da vida humana que, enquanto biografia, precisa ser compreendida
devido às contradições que marcam a história de vida de cada indivíduo. A importância de trazer Goethe por esse
olhar orteguiano não reside no que ele fez enquanto um clássico da poesia, mas sim em lançar o olhar para esse
homem que também foi marcado pelos dramas da vida e que se deixou levar pelas seguridades do mundo exterior
através daquilo que ele passou a representar para as demais pessoas. Vamos nos deparar com as principais
categorias que definem o que é a vida biográfica: drama, vocação, liberdade, fazer, tempo, náufrago e
autenticidade.
400
O termo transposto de Platão aparece em Ortega como um segundo momento que marca seu estilo de escrita
ao compilar vários de seus ensaios publicados em jornais, mas também para marcar seu novo caminho dentro da
sua vida profissional como articulador e inovador do pensamento filosófico. Essa fase, que segue até o fim de seus
dias, inicia-se em 1929 com o curso “Qué es filosofía?”, tendo sequência com outros escritos como “Qué es
conocimiento?” e “Unas lecciones de metafísica”, conferências redigidas entre 1931 e 1933, e “História como
sistema”, que aparece primeiramente em língua inglesa, texto apresentado em Oxford, em 1935.
153
sobre a vida desse clássico alemão, não é esse atributo que lhe interessa401. A busca pela
compreensão da vida que, muitas vezes, se esconde por trás de personagens que marcam a vida
pessoal, passa a ser o desafio de Ortega e, ao mesmo tempo, o caminho emblemático da sua
perspectiva biográfica da vida humana.
Por essa razão, analisamos esse escrito como uma forma de justificar que Ortega
não somente fala de uma vida biográfica como também, através do método da narrativa, aplica
a sua perspectiva filosófica aos seus escritos na segunda fase do seu pensamento, buscando
fazer a relação direta dos acontecimentos com a vida pessoal no intuito de captar como o
indivíduo vai vivenciando suas escolhas e realizando a sua história de vida em um constante
fazer. Mais do que trazer dados analíticos, o que nos propomos pela leitura desse escrito é
apresentar as categorias da vida biográfica no sentido de defender que o próprio Ortega faz uso
de uma hermenêutica vital através da narrativa.
Por meio da vida de Goethe, buscaremos analisar como Ortega esclarece as
contradições próprias de uma biografia. De acordo com Padilla (2005), a biografia, em Ortega,
se converte no gênero filosófico por excelência ao unificar as contradições de uma existência402.
Por isso, não se trata aqui de fazermos uma análise da vida do poeta, mas de compreendermos
como Ortega aplica sua antropologia através do homem Goethe.
Destacamos aqui a categoria central na compreensão da vida biográfica que é o
drama vital que se expressa na insegurança frente ao mundo e na necessidade de ter que fazer
a própria vida. É por meio dessa dimensão da incerteza, que caracteriza analogicamente a vida
como naufrágio, que Ortega começa a falar de Goethe para apresentar a necessidade da
consciência das incertezas que, na vida pessoal, marcam a história de cada indivíduo. A
pergunta fundamental feita por Ortega ao iniciar sua narrativa sobre Goethe visa aplicar a
categoria que atesta uma vida autêntica: a consciência do naufrágio403. Então, pergunta ele: Que
seria Goethe nesse tribunal? O que Ortega pretende é pôr em questão Goethe como figura
humana e não como um clássico. Por isso, já começa incitando o leitor ávido pela figura do
poeta, ao afirmar ser Goethe um clássico de segunda potência, que viveu de outros clássicos,
protótipo do herdeiro espiritual – consciência que, para Ortega, não é desconhecida por
Goethe404. E por desejar tanto ser um clássico da vida, é que Ortega considera necessário que
ele se justifique ante à vida. Chama-nos a atenção, nesse primeiro momento, o fundamento que
401
Cf. MELIÁ, 2009, p. 65.
402
Cf. PADILLA, 2005, p. 197.
403
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 122.
404
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 122-123.
154
vai sustentar as reflexões biográficas feitas por Ortega acerca de Goethe, pois a vida é a
categoria central pela qual tece uma série de compreensões que atribui ao homem Goethe e que
pode ser estendida para qualquer vida que venha a ser pensada com base em uma razão vivente.
Daí a importância de retomar o título do artigo, “Un Goethe desde dentro”, para que
a pergunta seja coerente com o que se propõe Ortega nesse texto: Quem é Goethe? Isso mostra
que Ortega não está preocupado em saber o que Goethe representa, muito menos qual é a
relevância de sua obra, mas sim elucidar o cotidiano de uma vida que também teve suas
contradições e que aqui aparece através do conceito de autenticidade ou de infidelidade à
vocação pessoal. Por isso, o que se produziu até então não seria suficiente para compreender
Goethe405 e, parece-nos, Ortega tem certeza de que é por meio da sua perspectiva biográfica
que será possível ver Goethe além do que pode ser visto no que até então se produziu de sua
personagem, ou como ele mesmo afirma, naquilo que os livros alemães até então trabalharam
sobre Goethe. Segundo Ortega, nesses escritos não se levantam questões sobre ele, não há
trabalho por “debaixo”406 de Goethe.
Para Ortega, é preciso colocar os clássicos diante do tribunal da vida autêntica, e
em especial Goethe, que é considerado um clássico – mesmo sendo para Ortega o mais
questionável de todos por ter vivido de outros clássicos, pretendendo ser um clássico da vida.
Os livros escritos sobre ele na Alemanha são, na visão de Ortega, uma verdadeira beataria com
vocábulos como gênio e titã, que só enaltecem a figura de Goethe. Uma das formas que Ortega
encontra para extrair benefício de sua obra é pondo em questão a sua biografia, pondo em
questão a sua vida. Extrai daí seu objetivo ao escrever sobre Goethe, pois diferentemente do
que se fazia na Alemanha, Ortega não tem a pretensão de reforçar o enaltecimento da sua
biografia. Na verdade, ele pretende apresentar um Goethe bem diferente do que até então vinha
sendo feito pelos biógrafos, que apresentam traços exteriores da vida de Goethe, por isso, o que
ele propõe é olhar para Goethe “desde dentro”.
Ortega muda a ótica da análise ao levar a reflexão para o próprio indivíduo no
intuito de fazer uma análise de Goethe coerente com a própria vida desse autor. O foco da
questão que norteia o ensaio sobre o poeta não está no que ele pode ser, pois isso já se sabe
através de seus biógrafos, principalmente pela eternização da sua personagem como gênio da
poesia, que não é a questão fundamental para Ortega. A ele interessa saber quem é Goethe, ou
405
Ortega faz uma crítica às biografias que existem sobre Goethe e que seguem uma ótica monumental e não
conseguem falar da vida do homem Goethe, mas do personagem literário em que ele se transformou (Cf. ORTEGA
Y GASSET, O.C., v. V, p. 123).
406
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 123.
155
seja, como ele viveu o drama da sua existência. Pensar uma vida desde dentro significa
responder à pergunta sobre quem é o eu de que se fala em todas as horas na existência
cotidiana407.
O olhar orteguiano se lança para a existência cotidiana com que todo os indivíduos
lidam diariamente ao longo de sua história de vida e que, muitas vezes, fica ocultada pela
sobreposição de alguns acontecimentos da vida pessoal ou pela determinação circunstancial
com que cada um lida em sua relação com as coisas e as demais pessoas. Para realizar essa
reflexão, é necessário, primeiramente, libertar-se da sugestão tradicional que sempre faz a
realidade ser alguma coisa, seja corporal, seja mental408.
A pergunta pelo quem abre a possibilidade de outras perguntas que trazem como
resposta um conteúdo extremamente biográfico. Quando perguntamos quem é alguém,
interessa-nos saber o que faz, o que pensa, o que sente, o que deseja, onde vive, quem é sua
família, quem são seus amigos e com o que trabalha, entre tantas coisas que são peculiares à
vida de cada pessoa.
A realidade a que Ortega se refere é a vida como acontecimento pessoal em que
carece ao homem realizar um projeto de existência que se impõe como condição de
felicidade409. E nisso consiste a segunda categoria que Ortega apresenta na definição da vida
nesse texto: o drama. A vida é constitutivamente uma luta frenética com as coisas e, ao mesmo
tempo, com o caráter pessoal para conseguir realizar o que se é como projeto410.
Essa consideração é, para Ortega, a marca distinta da sua estrutura biográfica que
busca compreender o drama vivido pelo homem na relação com o mundo. Com isso, Ortega
reforça que não pretende fazer uma biografia aos moldes psicológicos com vistas a descobrir o
407
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C, V, p. 124.
408
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C, V, p. 124.
409
Para Marías (1971, p. 82), a felicidade consiste em responder ao chamado da vocação, que se manifesta de
forma objetiva na vida pessoal, sendo que cada um, ao ter que realizar suas escolhas, encontra sempre um modo
de ser que lhe parece mais próximo daquilo que, em tese, é o ideal. O homem tem de se dedicar a ocupações ao
viver; entre as ocupações há duas classes distintas: as que vêm impostas pela necessidade, o trabalho; e as que são
escolhidas livremente, a vocação. Porém, o homem pode ou não escolher conduzir-se pelo seu projeto de
existência, mas esse não é construto de sua vontade ou de sua inteligência, pois a ele se impõe como possibilidade,
sendo o homem livre para seguir ou não o seu projeto vital (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C, v. V, p. 124). Para
Ortega, isso é o mais surpreendente do drama humano, a ampla margem de liberdade que o homem possui em
relação ao seu destino, podendo negá-lo ou realizá-lo e até ser infiel a si mesmo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C,
v. V, p. 126). Ortega chama a atenção para a distinção entre o dever moral e o dever vital. O dever moral é de
ordem intelectual, enquanto o vital está situado na região mais profunda e primária do ser humano, o ser radical
que está presente na vida de cada indivíduo através de seu projeto de existência. O termômetro dessa realização se
encontra no gosto ou no desgosto que se sente em cada situação da vida, sendo que “la felicidad le va avisando su
programa vital, su entelequia, y cuándo de desvía de ella” (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 130-131). A
não realização da vocação leva o homem a uma experiência de sofrimento que se manifesta em forma de dor,
angústia, raiva, mau humor, vazio; enquanto a coincidência das suas escolhas com o seu projeto de existência
produz o fenômeno da felicidade (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 131).
410
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 125.
156
caráter de um sujeito, pois essa perspectiva concebe que a vida se passa dentro do sujeito,
reduzindo-o à pura psicologia, posição que, para Ortega, deve ser superada. Para ele, é na
relação do homem com o mundo que deve se estruturar uma biografia.
Sendo assim, a biografia é uma narrativa objetiva do personagem que cada um é ao
longo de sua vida. Com isso, Ortega demonstra um esforço para superar a visão psicológica do
biógrafo por não perceber a biografia como uma busca pela descoberta do caráter de um
determinado homem. Não é o dentro do sujeito que interessa a Ortega, senão o dentro de sua
vida, o drama de seu existir411. A psicologia aparece, para Ortega, como mais uma informação
entre tantas outras que fazem parte da vida de um indivíduo, pois a vida não consiste somente
no que se passa na subjetividade de cada homem, mas também, e principalmente, no que ele
faz na sua relação com as coisas.
A perspectiva biográfica que Ortega traz por meio de Goethe reforça o elemento
fundamental da objetividade dos dramas vividos pelo homem na sua relação com a
circunstância, evidenciado a principal categoria do drama da vida que é a realização do
programa vital. Por isso, interessa a Ortega perceber e compreender como o homem vive seus
dramas. Ele defende que essa deve ser a tarefa do biógrafo: buscar compreender essa vivência
histórica que marca a vida de todos os homens. Por isso, o que ele faz no ensaio sobre Goethe
não se trata de “[...] ver la vida de Goethe como Goethe la veia, con su visión subjetiva, sino
entrando como biógrafo en círculo mágico de esa existencia para assistir el tremendo
acontecimiento objetivo que fue esa vida y del cual Goethe no era sino un ingrediente”
(ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 125. Grifos do autor).
Na biografia, existe um fato fundamental para Ortega: a luta do homem 412 com a
sua vocação. Cada homem porta em si, perante suas escolhas, uma série de possibilidades que
as aproximam ou distanciam do que ele considera ser seu destino. Buscar compreender como
cada um se porta diante dessa realidade que se impõe ao homem diante suas escolhas é, para
Ortega, o traço fundamental para analisar o drama da vida real com a vida possível. Essa é,
certamente, para Ortega, a maior de todas as lutas travadas pelo homem ao longo da sua história
de vida.
Considerando a estrutura da vida humana, Ortega destaca as duas questões mais
importantes para uma biografia. Uma consiste em determinar qual era a vocação do biografado,
pois cada vida é, para Ortega, uma ruína entre cujos escombros tem-se que descobrir o que, de
411
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 125.
412
O homem é, para Ortega, a soma de aparatos – alma, dotes, caráter, corpo – com que se vive, um ator
encarregado de representar o que é seu autêntico eu (Cf. ORTEGA Y GASSET, O, C., v. V, p. 125-126).
157
certa forma, a pessoa deveria ter sido e, para isso, é preciso que se construa uma vida imaginária
do indivíduo, o perfil de sua existência feliz sobre a qual se pode buscar as identificações que
o destino marcou. A outra consiste em examinar a fidelidade do homem a esse destino singular,
a sua vida possível. Isso permite determinar o grau de autenticidade da vida efetiva413.
Certamente, esse também é o grande drama de Goethe, o drama do seu destino.
Desse modo, para compreender esse drama, é preciso se aproximar de Goethe como um homem,
assim como de todos os outros, na luta com o seu destino individual que se apresenta como uma
tarefa problemática que se passa na história individual. Isso porque, para Ortega, o mais
interessante de observar não é a luta do homem com o mundo, mas a luta do homem com a sua
vocação414. Verificar como ele se comporta frente à sua vocação parece ser, para Ortega, uma
das mais importantes tarefas de um biógrafo com vistas a perceber a autenticidade e a
falsificação da vida.
Adentrar esse universo interior que marca o drama vital é, para Ortega, um exercício
que o biógrafo deve fazer ao se propor conhecer a vida de um sujeito. É o que ele faz ao buscar
compreender o drama da existência de Goethe que lhe requer adentrar sua história de vida e se
aproximar de seus dramas vitais. É esse o convite de Ortega: adentrar o drama de Goethe para
olhar um homem naufragado em sua própria existência, perdido nela, que a cada instante ignora
o que vai ser de si mesmo415. Ele mesmo traz a consciência de que a vida humana é luta, absoluta
e problemática tarefa, porque o ser humano quase sempre se apresenta inclinado sobre sua
própria vida416.
Certamente, Goethe não foi uma figura serena e segura de si e, provavelmente, essas
características se aproximam mais de sua imagem cristalizada pelos biógrafos. Por trás do
Goethe pensador e seguidor da concepção biológica417 da vida, se esconde um Goethe também
fracassado que não dá conta de cumprir o seu destino, um Goethe que não cumpre sua vocação.
Ortega lembra que, aos quarenta anos, Goethe se encontrava pelos caminhos da Itália se
perguntando se era poeta, pintor ou um homem de ciência. Com certeza, é o modelo de um
homem infiel ao seu destino, que se perde em seus inúmeros dotes, sendo protótipo da juventude
413
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 126.
414
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 126.
415
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 127.
416
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 127.
417
A imagem que Goethe tem da vida é uma imagem botânica, segundo a qual nela tudo devia seguir sem angústia,
sem dor, sem desorientação, de acordo com uma necessidade cósmica e com sua própria vida, incluindo nela sua
obra (Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 131). Essa imagem é a que Ortega busca desconstruir ao contrapor
o modo de pensar de Goethe com o seu modo de viver. A vida humana não pode ser vivida ao modo das plantas,
dos animais e do cosmo, sem questionamento sobre sua existência; diferentemente, o homem carece efetivar o
projeto de sua existência e seguir fazendo suas escolhas.
158
em que, inclinando-se a várias coisas, não se detém em algo determinado. Assim, acredita
Ortega, vivem os jovens perante suas inúmeras possibilidades.
Por traz de Goethe, há um homem que quis ser ele mesmo, mas cuja pessoalidade
se escondeu por trás do poeta, personagem que considera ter encontrado como o si mesmo, bem
diferente da figura literária de Fausto, que vive o drama de buscar seu destino, andando perdido
pelo universo, sem dar com sua própria vida. É esse Goethe que não se confunde com sua obra
que interessa a Ortega, é essa dimensão da vida que interessa à razão histórica pela narrativa
como recurso capaz de narrar aquilo que faz parte do universo pessoal e que, muitas vezes, fica
submerso nas opiniões e nos personagens que se constroem socialmente.
Esse Goethe conhecido por todos certamente não é o Goethe vivente, mas o Goethe
artificial, por isso, mesmo que a sua dimensão pública também faça parte da sua biografia,
existe uma outra dimensão que vai além do público: é a dimensão do vivido enquanto indivíduo
particular que comporta os dramas da sua existência. Isso porque, diferentemente do que se
passa em sua obra através de um otimismo pela natureza e de uma confiança no cosmo, existe
um homem preocupado com a sua vida, representando assim o elemento fundamental de uma
biografia: a contradição. É pela biografia que se unificam as contradições de uma existência418.
Ortega retoma uma característica de Goethe destacada pelos biógrafos que atesta a
dificuldade de Goethe em relação a uma vida voltada para sua vocação. O mau humor é um dos
sintomas que revelam uma vida contrária à vocação, e Goethe é uma pessoa que parece não
sentir deleite com a vida que tem. Isso, além de aparecer no seu mau humor, manifesta-se
também em sua expressão corporal tensa e rígida, mesmo demonstrando ter um caráter flexível
para mudança. É essa figura heterodoxa que Ortega procura apresentar: um homem cheio de
dotes, porém infiel ao seu destino, resultando em um permanente mau humor, assim como em
sua rigidez corporal, sua distância do próprio contorno e seu amargo gesto419, vivendo como
uma promessa420. É essa contradição, que aparece através de Goethe, que desperta interesse em
Ortega por elucidar a dimensão biográfica da vida que não se constitui de forma linear, mas que
vai se construindo pelo modo como o homem vai realizando suas escolhas, sendo esse o
principal dilema, não somente de Goethe, mas de qualquer homem: a fidelidade à sua vocação.
Há, na vida de Goethe, demasiadas fugas421, começando pela fuga dos amores reais
de sua juventude e a fuga para Weimar quando vai cursar “Ifigenismo” e lá passa a viver parte
418
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 132.
419
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 133.
420
Cf. MELIÁ, 2009, p. 67.
421
Cf. ORTEGA Y GASSET, O. C., v. V, p. 133.
159
de seus dias por sentir-se seguro naquele ambiente. Para Ortega, essa cidade exerce sobre
Goethe um efeito de petrificação, passando a ser, figurativamente, uma estátua por não ter mais
atmosfera e a viver no sentido inverso do seu destino. Ali, para Ortega, Goethe passa a
desviver422, por estar em um lugar que não contempla o que Goethe tem como possibilidade de
vida423. Weimar parece imprópria para um homem que Ortega considera ter uma natureza
esplêndida424. Essa cidade não somente separou Goethe do mundo como também o separou de
si mesmo425. Essas fugas estão relacionadas à vocação de Goethe que passará a ter breves
escapadas.
Todo o esforço de Goethe será para libertar-se do espaço-temporal, da concretude
do destino em que a vida precisamente consiste, assim pensa Ortega, ao entender que o poeta
alemão aspira ao utopismo e ao ucronismo426. O resultado é a produção de uma curiosa
deformação humana pela ausência do esforço e isso foi o que representou Weimar para Goethe:
um casulo que o protegeu dos conflitos entre si e o mundo. A infidelidade de Goethe a si,
conclui Ortega, ensina a fidelidade para consigo. É preciso ser fiel a si mesmo, dirá Ortega.
Nessa apresentação podemos perceber a aplicação de um conceito fundamental para
a compreensão da vida biográfica, que é a vocação. Para manter-se distante do conflito, o
homem pode deixar de seguir sua vocação e escolher situações mais cômodas, que não
impliquem muito esforço. Por isso, Goethe, para Ortega, é mais que um clássico, é uma vida
que comprova essa busca pela ausência do conflito. Toda a obra de Goethe e toda a sua
existência giram em torno de um tema substancial: o autêntico modo de ser do homem no
mundo e a sua luta para realizar-se dentro de um programa de existência427.
Portanto, ao lançar o olhar para a narrativa que Ortega faz da vida de Goethe, é
possível perceber o fundamento da biografia como a dimensão histórica da vida que implica o
reconhecimento do eu como pessoa e não como coisa. Isso significa que o conhecimento sobre
o que é a pessoa não interessa muito para Ortega, pois perguntar pelo que se é implica considerar
uma realidade fixa, e não é a isso que se refere a vida, já que a pergunta agora é quem é uma
determinada pessoa.
422
Cf. ORTEGA Y GASSET, O. C., v. V, p. 136.
423
Weimar é, para Ortega, um lugar sem atmosfera, um lugar geométrico, o espaço da abstração, da imitação, do
não autêntico, o reino do quase (Cf. ORTEGA Y GASSET, O. C., v. V, p. 136). Assim é Goethe, nada nele é
radical e em plenitude: um medíocre ministro, um régisseur que detesta o teatro, um naturalista que não acaba de
sê-lo e que, pela poesia, vive do simbolismo (Cf. ORTEGA Y GASSET, O. C., v. V, p. 136).
424
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 141.
425
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 141.
426
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. V, p. 139.
427
Cf. ORTEGA Y GASSET, O.C., v. X, p. 5.
160
Significa ainda lançar um olhar para a pessoa considerando a pessoa mesma, e não
o que ela pode representar. E mais, busca-se compreender o que acontece na vida sem a
pretensão de adequá-la a um determinado conceito, visto que cada pessoa é marcada por uma
singularidade que vivencia de formas diferentes situações comuns a outros. Cada indivíduo lida
de uma determinada forma com a circunstância, de modo que aquilo que para um pode ser
facilidade, para outro pode ser entrave. Na referência aos personagens de Cervantes, Don
Quijote e Sancho, Ortega sintetiza essa diferença vital que marca a vida em que “esto que a ti
te parece barbero, a mí me parece yelmo, y a otro lo parecerá otra cosa” (ORTEGA Y GASSET,
O.C., v. IX, p. 536). As pessoas são distintas a tal ponto que a relação com as coisas também o
será, de forma que cada pessoa lida com a circunstância de um modo diferente, marcando assim
diferentes relações entre o homem e o mundo.
161
6 CONCLUSÃO
um faz da própria vida, que está relacionado ao que o homem chama de sua vida e que orienta
seu modo de ser e de pensar.
Essa questão reforça a interpretação da literatura orteguiana no sentido de que a
vida deve ser reconhecida como uma realidade que carece de ser posta como assunto da História
humana, como conteúdo filosófico e como necessidade vital, uma vez que o homem tem de
compreender a si mesmo como condição de existência. Como definimos anteriormente, a vida
é um drama que a cada instante desafia o homem a exercitar a sua capacidade de escolha e de
ação na tentativa de superar o desafio de ter que acontecer historicamente em uma determinada
circunstância, visto não ser sua vida biológica, mas biográfica.
Como ser histórico, o homem é uma entidade infinitamente plástica que tem como
único limite para as suas escolhas o seu passado, não podendo, a qualquer instante, fazer de si
qualquer coisa. Com isso, justifica-se que a dimensão histórica do homem é um sistema de
experiências que estão acumuladas na sua história de vida, se fazem presentes no seu existir e
limitam as suas possibilidades ao inseri-lo em um universo de vivências presentificadas no seu
tempo de vida.
A clássica definição, do pensamento de maturidade de Ortega em Historia como
sistema, do homem como ser histórico nos traz o entendimento de que a vida não pode ser
justificada por acontecimentos isolados, mas na relação pessoal do homem com o mundo.
Compreender uma vida significa empreender o esforço de compreender as vivências que
marcam a história de vida do indivíduo, e isso não significa entender o passado como
acontecimento desconexo da vida e sem força de interferência nas escolhas, pois reforça a
dimensão da vida como acontecimento que integra fatos do passado com o presente, que são os
mesmos que possibilitam ao homem dar uma significação aos acontecimentos na sua existência.
Ortega chega a afirmar que o passado não é o que está lá, distante ou separado do presente, mas
o próprio eu ao se fazer presente pela história de cada um, que se faz adelante.
A História aqui não pode ser entendida como ciência dos fatos, mas como ciência
da própria vida. O esforço é entender o presente e, para isso, faz-se necessário presentificar o
passado, mas não como uma curiosidade de saber como as coisas aconteceram, e sim com vistas
a compreender como o homem foi se constituindo através das suas escolhas, que o fazem
desejar ser e agir de determinada maneira. Por isso, Ortega fala em uma nova ontologia na qual
não cabe perguntar o que é o homem, pois o homem não é nada além da sua vida, de modo que
a pergunta deve ser quem é o homem, pergunta que marca uma coerência com a dimensão
biográfica da vida humana.
163
Não ser capaz de dar-se conta da própria vida revela, para Ortega, uma dimensão
patológica do indivíduo que, na condição de demência, não é capaz de ver a si mesmo e sentir-
se em sua individualidade, faltando a ele a consciência de pertencimento. Fora de si, o demente
é possuído pelo outro, não sendo capaz de compreender a si e, com isso, de reconhecer a vida
pessoal.
Ortega atribui à Filosofia um novo papel que é refletir sobre a vida pessoal,
buscando novas categorias do viver que sejam diferentes do ser cósmico, dos antigos do
realismo clássico, e do ser subjetivo, dos modernos do idealismo. Essa ideia nos parece
fundamental para reconhecermos o esforço de Ortega em não sair da Filosofia. O fato de não
pensar a partir das categorias já existentes não inviabiliza, na visão de Ortega, a vida como
conteúdo filosófico, mas, inversamente ao que possa parecer, são as peculiaridades da vida
pessoal deixadas de lado ao longo da história da Filosofia por não parecerem conteúdo
filosófico que, nesse momento, se apresentam para Ortega como o grande tema a ser pensado
pela Filosofia na contemporaneidade.
Por isso, as críticas que aparecem ao longo deste trabalho estão diretamente
relacionadas a um modelo de razão que atenda o homem em sua condição de existência histórica
e passe a compreendê-lo a partir do que ele reconhece na sua vida cotidiana. O lugar da crítica
de Ortega tem o reconhecimento de um modelo de homem e de razão que marca um
determinado período da História da humanidade e que, assim como em outros momentos, chega
a um estado de esgotamento ao não conseguir corresponder às exigências vivenciais desse
mesmo homem. Sendo assim, reconhecemos na razão vivente o caminho encontrado pelo
filósofo, por meio do qual é capaz de assegurar uma compreensão do humano que se realiza
através de uma racionalidade narrativa ancorada na historicidade da vida humana.
Nesse sentido, nos aproximamos da leitura feita por Meliá (2009) sobre a
hermenêutica narrativa presente no pensamento de Ortega. Após todo o trabalho de análise da
teoria da vida biográfica, chegamos à conclusão de que há, em Ortega, um esforço de
desenvolver uma teoria da vida humana que parte de uma razão histórica e narrativa, que
encontra no passado o fio para tecer a compreensão da realidade presente do humano. Pela
narrativa, o homem encontra uma maneira de falar e de compreender sua própria historicidade
e sua relação com tudo que está associado ao acontecimento vital da sua história de vida.
164
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