Tese - Fabricio Santiago Almeida - 2022 - Completa

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Fabricio Santiago Almeida

A Estética Fisiopsicológica em Nietzsche: Uma Expressão da Vontade de


Potência

Rio de Janeiro
2022
Fabricio Santiago Almeida

A Estética Fisiopsicológica em Nietzsche: Uma Expressão da Vontade de Potência

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Estética e Filosofia da Arte

Orientadora: Prof.a Dra. Rosa Maria Dias

Rio de Janeiro
2022
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CCS/A

N677 Almeida, Fabricio Santiago.


A Estética Fisiopsicológica em Nietzsche: Uma Expressão da Vontade de
Potência / Fabricio Santiago Almeida. – 2022.
92 f.

Orientadora: Rosa Maria Dias.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

1.Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 – Teses. 2. Filosofia alemã –


Teses. 3. Estética – Teses. I. Dias, Rosa Maria. II. Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 1(430)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese
desde que citada a fonte.

___________________________ ____________________
Assinatura Data
Fabricio Santiago Almeida

A Estética Fisiopsicológica em Nietzsche: Uma Expressão da Vontade de Potência

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
Concentração: Estética e Filosofia da Arte

Aprovada em 07 de março de 2022.


Banca Examinadora:

__________________________________________
Profª. Dra. Rosa Maria Dias (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

__________________________________________
Prof. Dr. Tito Marques Palmeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

__________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Marques Cabral
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

__________________________________________
Prof. Dr. Miguel Angel Barrenechea
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________________
Prof. Dr. Geraldo Pereira Dias
Faculdade Católica da Paraíba

Rio de Janeiro
2022
DEDICATÓRIA

À minha querida esposa Nathalia Claro. Te amo!


AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha esposa Nathalia Claro que, com sua atenciosa leitura e correção
constantes, e com sua poesia, apolínea e dionisíaca, integrou todos os belos momentos dessa
pesquisa. Agradeço especialmente à minha mãe, Maria Lúcia, a quem devoto minha vida e
quem nunca poupou esforços para garantir aos filhos o direito aos estudos. Sem a sua preciosa
contribuição carinhosa e seu apoio eu não teria concluído o doutorado, uma das etapas mais
importantes de minha vida no sentido intelectual.
Aos meus irmãos, Charles Santiago e Rodrigo Santiago, por nossa amizade e
companheirismo. Aos meus filhos, Helena, Benjamin e Jad, pelo amor, compreensão e carinho
constantes. Ao amigo Leandro Costa, professor da Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR), pela leitura gentil e indicações bibliográficas.
À professora e amiga Rosa Maria Dias por sua dedicada e preciosa orientação, desde o
início até a conclusão desta tese.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (POSFIL/UERJ) por todas as infinitas contribuições intelectuais. Aos
secretários Daniel e Luiz Cláudio, pelas constantes informações e auxílios a mim fornecidos.
Aos professores, Miguel Angel Barrenechea, Tito Marques Palmeiro, Alexandre Cabral
e Geraldo Dias pela valorosa participação em minha banca avaliadora.
Aos colegas de trabalho na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), pela
generosidade nos incentivos da carreira e pela possibilidade de afastamento de minhas
atribuições como docente para o desenvolvimento de meus estudos.
“Embriagai-vos!

Deveis andar sempre embriagados. Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não
sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é
preciso que vos embriagueis sem descanso.

Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.

E si, alguma vez, nos degraus de um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna de
vosso quarto, despertardes com a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao
vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo que gene, a tudo o
que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são. E o vento, a vaga, a
estrela, o pássaro, o relógio vos responderão:

- É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-
vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!”

Charles Baudelaire
RESUMO

ALMEIDA, Fabricio Santiago. A Estética Fisiopsicológica em Nietzsche: Uma expressão da


Vontade de Potência. 2022. 92 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

A presente tese objetiva considerar a estética fisiopsicológica enquanto uma expressão


da Vontade de Potência em Friedrich Nietzsche. A vontade de potência é compreendida em sua
incondicionalidade como o movimento de acúmulo e descarga de energia que não conhece
nenhuma exceção. Escudando-se nessas noções, a Vontade de Potência é espaço para hierarquia
valorativa cuja interpretação antiteleológica, ou seja, o além-do-homem, busca intensificar e
superar a si mesmo a partir da condição fisiopsicológica. Nesse sentido, a hipótese desta tese é
que a estética em Nietzsche tem seu engendramento nos mais íntimos labirintos dos impulsos
da predisposição fisiopsicológica, sendo o Grande Estilo a arte que não se fia na razão, mas na
vontade criadora do artista, o que implica a criação a partir da Vontade de Potência. Deste
modo, a fisiopsicologia da arte pode ser interpretada como uma investigação sobre as
motivações psicológicas e orgânicas que influenciam o artista em um transbordamento criativo
das suas forças instintivas mediante o entorpecimento dos sentidos do corpo. Por corpo
designamos a configuração de forças que concorrem de maneira a determinar o modo como
algo se torna. Assim considerado, diferentemente do mundo idealizado forjado pela tradição
filosófica, que delegou ao erro a transitoriedade da vida pelo fato desta jamais corresponder à
necessidade determinada pela “pequena razão”, na arte tem-se este mundo que não nega o devir
e que traduz a vida como a tensão de forças. O resultado dessa tensão é a embriaguez. O artista
embriagado é, então, como a criança que teve a inocente e despretensiosa coragem de dizer sim
a vida.
.
Palavras-chave: Fisiopsicologia. Estética. Embriaguez. Vontade de Potência. Nietzsche.
ABSTRACT

ALMEIDA, Fabrício Santiago. Physiopsychological Aesthetics in Nietzsche: An expression


of the Will to Power. 2022. 92 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

This thesis aims to consider the physiopsychological aesthetics as an expression of the


Will to Power in Friedrich Nietzsche. The will to power is understood in its unconditional nature
as the movement of accumulation and discharge of energy that knows no exception. Shielding
itself in these notions, the will to power has space for a value hierarchy whose anti-teleological
interpretation, that is, the beyond-man, seeks to intensify and surpass itself from the
physiopsycological condition. In this sense, the hypothesis of this thesis is that Nietzsche's
aesthetics is engendered in the most intimate labyrinths of the impulses of physiological
predisposition, with grand style being the art that does not rely on reason, but on the creative
will of the artist, which implies the creation from the will to power. In this way, the physiology
of art can be interpreted as an investigation into the psychological and organic motivations that
influence the artist in a creative outpouring of his instinctual forces through the numbing of the
body's senses. By body we designate the configuration of forces that concur in order to
determine the way in which something becomes. Thus considered, unlike the idealized world
forged by tradition, which delegates the transience of life to error because it never corresponds
to the need determined by "little reason", in art there is this world that does not deny becoming
and that translates life as the tension of forces. The result of this tension is drunkenness. The
intoxicated artist is, then, like the child who had the innocent and unpretentious courage to say
yes to life.

Keywords: Physiopsychology. Aesthetics. Intoxication. Will to Power. Nietzsche.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

NT O Nascimento da Tragédia

HH I Humano, Demasiado Humano (Vol. I)

A Aurora

GC A Gaia Ciência

ZA Assim Falou Zaratustra

BM Para Além do Bem e do Mal

GM Genealogia da Moral

CW O Caso Wagner

CI Crepúsculo dos Ídolos

NW Nietzsche contra Wagner

AC O Anticristo

EH Ecce Homo
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................... 10
1 O CORPO RECUPERADO.................................................................................... 18
1.1 “A Psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais”:
Nietzsche e os primórdios de uma Fisiopsicologia....................................................24
1.2 “Não sou um médico de almas”: das Ciências Naturais à crítica do Idealismo
Alemão........................................................................................................................ 30
1.3 “Quem tem de ser um criador sempre destrói”: Nietzsche contra os
desprezadores do corpo.......................................................................................... 35
2 A VONTADE DE POTÊNCIA: A SUPERAÇÃO DA PSICOLOGIA
NEGATIVA............................................................................................................... 41
2.1 “Eu ensino aos homens uma nova vontade”: A elaboração do conceito de Vontade
de Potência................................................................................................. 41
2.2 “O Animal Avaliador”: A Noção de Credor e Avaliador na Psicologia do
Sacerdote.................................................................................................................... 50
2.3 “O Arauto da Boa-Nova”: A Vontade de Potência conforme seus
intérpretes................................................................................................................. 58
3 DA SUPERAÇÃO DA DÉCADENCE ESTÉTICA À ESTÉTICA
FISIOPSICOLÓGICA.............................................................................................. 62
3.1 “O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões”: a
embriaguez como condição sacralizadora da arte......................................................
64
3.2 “A embriaguez da Grande Vontade que exige tornar-se arte”: o Grande
Estilo e a Fisiopsicologia............................................................................................ 69
3.3 “Zaratustra, que pretendes, agora, entre os que dormem?”: da embriaguez à
plenitude...................................................................................................................... 75
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 85
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 88
10

INTRODUÇÃO

A temática da estética fisiopsicológica surgiu em minhas inquietações há mais de uma


década, enquanto um jovem estudante de Filosofia da Universidade Federal da Bahia.
Germinada durante minhas leituras na graduação, ela vagou comigo, em meu interior, como um
não-nascido, uma queimação desconcertante, até o instante em que encerro esta tese. O choro
deste rebento repercute as perguntas fundamentais do presente estudo: Como a arte emana de
nossos impulsos corporais? Qual é a função da embriaguez na criação artística? O que é a
Vontade de Potência? São questões que substanciam a relação da arte como potência da
existência humana e que foram postas e exaustivamente exploradas pelo filósofo alemão
Friedrich Nietzsche.

A questão da arte atrelada a um impulso humano atravessa o expediente nietzschiano:


desde sua primeira grande obra O Nascimento da Tragédia, em 1872, enquanto um jovem
professor de filologia da Universidade da Basileia, admirador da música de Richard Wagner e
da filosofia de Arthur Schopenhauer, amante da música e otimista em relação ao espírito
alemão. E, depois, sob o lume de seus escritos tardios a partir de 1878, já desiludido com
Wagner e com o “ser alemão”, insatisfeito com a tradição filosófica, sobremaneira com a
metafísica, distanciando-se do romantismo tardio e profundamente voltado aos avanços da
ciência de sua época e dos estudos da fisiologia e psicologia humana. Como se nota, a leitura
de Nietzsche se faz em águas turvas, em leitos de pensamentos que produzem ondas que
chocham, quebram e renovam o movimento incessante.

Ler Nietzsche não é, portanto, um assunto plácido - é preciso, sem retenções, confrontar
a dimensão aterrorizante de seu pensamento. Observando que a filosofia para Nietzsche, ao
contrário de Aristóteles, não começa com admiração, mas com horror1. O horror, em Nietzsche,

1
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche sugere retornar ao mundo da estética e abandonar a ética e a moral
dos idealistas. Após revisar os mitos de Prometeu e de Édipo, Nietzsche não se refere apenas ao próprio
Cristianismo, mas também a toda filosofia socrática e peripatética. Para o filosofo, o apolíneo vive de costas para
a realidade numa espécie de ilusão, um sonhador ingênuo que, ao acordar, fica obviamente horrorizado; aqui
encontramos a figura do horror como princípio da realidade. Conforme Nietzsche, a tendência que começa com
Sócrates e culmina com Eurípides expulsou o elemento dionisíaco da tragédia e reconstruiu a arte em uma
perspectiva moral. “Tão prodigioso é o poder da arte apolínea, que transfigura as coisas mais horríveis aos
nossos olhos, por aquela alegria que sentimos quando contemplamos a aparência, a visão, por aquela felicidade
redentora que nasce para nós da forma externa, de a aparência"(NT, 2008: 74). Sobre a relação de Nietzsche com
o horror, conferir: KORSTANJE, Maximiliano E. Contribuciones y limitaciones del existencialismo
nietzschiano al estudio del horror. Astrolabio. Revista internacional de filosofia, Barcelona, v. 8. nº 1, fev. 2009.
11

é a trágica compreensão de que a existência é ao mesmo tempo apavorante e absurda, como


proferido pelo sábio Silenus e retratado por Nietzsche em o Nascimento da Tragédia: “O melhor
de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso,
porém, o melhor para ti é logo morrer” (NIETZSCHE, NT; §3). Mas se para Silenus, era melhor
não termos nascido, para Nietzsche o caráter trágico da existência não deve ser negado ou
velado - a vida é isto e precisa ser revalorizada. Como vorazmente argumentará mais tarde em
Além do bem e do mal: “Para novos filósofos, não há outra escolha, para espíritos fortes e
suficientemente independentes, tanto para poder dar um impulso a juízos de valor opostos,
reformar, inverter os valores eternos” (NIETZSCHE, BM; §203).

Assim começa sua batalha: a superação de um niilismo soberbo, para ele um estado de
consciência ascético, associado ao pensamento socrático-platônico e legitimado pelo
cristianismo, que deve ser confrontado e vencido. Vencido como? Pela embriaguez. A
embriaguez é para Nietzsche a vontade potencializada da criação de novos valores e tal criação
somente se concretiza através da arte, pois a natureza da arte é justamente o berço da
transvaloração e da superação de uma vontade de verdade. Em sua fase mais tardia, a que nos
interessa neste trabalho, Nietzsche denotará que a fisiopsicologia da embriaguez é a condição
primordial da dinâmica criativa, daquilo que ele chamou de “Psicologia do Artista “em
Crepúsculo dos Ídolos: “A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de
toda a máquina: senão não se chega à arte” (NIETZSCHE, CI, IX, §8).

Ao eixo da embriaguez e para onde mirar é decisivo, inicia-se a viagem pela filosofia de
Nietzsche nesta tese. É a filosofia como sublimidade e, portanto, algo que requer grande
coragem para ser cumprida. É bem verdade que Nietzsche não tolera otimistas como Sócrates,
mas exige figuras como Zaratustra, espíritos livres capazes de enfrentar a dimensão pessimista
da existência e que não se deixam vencer pela resignação, amando a vida em sua totalidade
horrível e questionável. Amar a vida para Nietzsche é, portanto, amar o corpo que produz a
arte: ora, como poderia a filosofia ter desprezado o corpo?

É difícil, todavia, ler Nietzsche apenas a partir da interioridade de sua doutrina filosófica,
subtraindo-a do tempo histórico a partir de uma temporalidade lógica. É fortuito buscar, ainda,
caminhos de compreensão na exterioridade das causas históricas, dos eventos científicos,
políticos, econômicos, ideológicos, de acordo com o sincronismo de suas evoluções ou

KAIN, Philip J. Truth, and the Horror of Existence. History of Philosophy Quarterly, London, Vol. 23, No. 1,
pp. 41-58, jan. 2006.
12

revoluções, que incidem sobre autor/obra. Para Friedrich Nietzsche, este controverso filósofo
cuja biografia e cujos contextos históricos europeus, parecem ser verticalmente relevantes a
constituição de sua obra e, sobremaneira, da diferenciação (e da aparente contradição) das fases
desta obra, devemos nos valer de uma combinação de métodos de exegese, um leque de
perspectivas para cada um dos filósofos que se sentam na mesa da consciência do senhor
Nietzsche: um Nietzsche filósofo, um Nietzsche filólogo, um Nietzsche artista, um Nietzsche
médico da cultura.

A partir dessas perspectivas sobre o filósofo, leituras equivocadas, apressadas ou


tendenciosas foram realizadas sobre Nietzsche ao longo da tradição filosófica do século XX e,
não raramente, ainda repercutem na atualidade. Otto Maria Carpeaux (2016) em “Nietzsche e
as consequências” denotou as irreparáveis interpretações sobre o filósofo até 1942: uma
recepção amarga, que o vinculava, em solo alemão, desde uma apostasia wagneriana ao
antissemitismo e, por outro lado, em terreno estrangeiro, à libertinagem (e não à crítica da
moralidade), resumindo o filósofo a um verdadeiro “rebarbarizador da Europa” (CARPEUX,
2016).

Não obstante, a questão “Como ler Nietzsche” tem sido alvo de extensos estudos na
contemporaneidade, e seus resultados têm nos apontando orientações interessantes. Uma
resposta foi elaborada por Scarlet Marton (2010; 2018) em Como ler Nietzsche? Sobre a
interpretação de Patrick Wotling e no artigo mais recente Ler Nietzsche como “nietzschiano”:
Questões de método. No primeiro trabalho, Marton (2010) analisa o trabalho do intérprete
Patrick Wotling, quem se indispôs contra uma leitura radicalmente subjetiva de Nietzsche e
quem denotou a necessidade de se estudar as razões próprias das obras nietzscheanas, da origem
de suas ambiguidades, da razão pela qual seria inadmissível analisá-lo como se analisa outros
sistemas. Wotling (1995) em Nietzsche et le problème de la civilisation buscou apreender a
especificidade do pensamento de Nietzsche evitando reduzir seus escritos a uma mera crítica
da moralidade, do cristianismo e/ou da metafísica. O autor opta por analisar o filósofo a partir
da “civilização”, indicando-a como o eixo central de todo o questionamento nietzschiano, desde
o pensamento estético a questão do eterno retorno, orientando-se, deste modo, a partir de uma
leitura estrutural do filósofo. Para Marton (2010), a leitura estrutural de Wotling é de
fundamental importância para a compreensão do texto filosófico. Todavia, denota a autora que
“(...) essa abordagem constitui apenas uma primeira etapa do trabalho exegético. É certo que se
13

trata de uma etapa necessária; também é certo que ela terá de ser completada pela abordagem
genética” (MARTON, 2010, p. 48).

No segundo artigo, Marton (2018) toma como ponto de partida a análise das próprias
passagens em que Nietzsche fornece a seus leitores as indicações de como desejaria ser lido2.
Cabe lembrar que Nietzsche se localiza em meio de uma reformulação epistemológica do final
do século XIX no âmbito da filosofia anglo-saxônica apregoada na expressão linguist turn - um
movimento de aproximação dos intelectuais aos estudos da linguagem3. Os textos de Nietzsche
emergem a reformulação do problema epistemológico da Filosofia Alemã em termos da relação
entre a linguagem, a realidade e o pensamento humano. O autor, não raramente, deixou claro
em seus escritos que sua filosofia só seria alcançada por seus leitores se estes últimos fossem
bons filólogos. Como ele expõe em Aurora: “(...) [a filologia] ensina a ler bem, ou seja,
lentamente, com profundidade, olhando para trás e para diante, com segundas intenções,
deixando as portas abertas, com dedos e olhos delicados... Meus pacientes amigos, este livro
deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendei a ler-me bem!” (NIETZSCHE, A, §5).
Marton (2018), todavia, observa que as indicações do filósofo são insuficientes, e bem
resume o problema ao concluir:

[...] No trato com os escritos nietzschianos, não há um único método a ser seguido.
Vários são os expedientes a que o estudioso terá de recorrer: a análise estrutural e a
abordagem genética dos textos, a visão de conjunto da obra, sua contextualização
tanto no quadro da história da filosofia quanto no da história cultural e factual
europeia, a pesquisa das fontes de que o filósofo se serviu e se apropriou, os estudos

2
Em Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, escreve Nietzsche em seu 2º Prefácio: “O leitor de
quem espero algo deve ter três qualidades: ele deve ser calmo e ler em pressa, não deve sempre privilegiar a si e
a sua cultura, não deve enfim esperar por encerrar um quadro de resultados. (...) Esse livro é destinado aos
leitores calmos, aos homens que não foram ainda arrastados pela pressa vertiginosa de nossa época precipitada e
que não experimentaram um prazer idolatra de se deixar esmagar por suas rodas – portanto, a bem poucos
homens!”. O mesmo ocorre no prefácio de Aurora, onde Nietzsche reafirma a necessidade de um leitor calmo:
“Antes de tudo, vamos dizê-lo lentamente... Este prefácio chega tarde, mais não muito tarde; que importam,
realmente, cinco ou seis anos? Um tal livro e um tal problema não têm pressa; e, além disso, somos amigos do
lento, eu bem como meu livro. Não foi em vão que fui filólogo, e talvez ainda o seja. Filólogo quer dizer
professor de leitura lenta: acaba-se por escrever também lentamente. Agora isso não só faz parte de meus
hábitos, mas até meu gosto se adaptou a isso — um gosto maldoso talvez? — Não escrever nada que não deixe
desesperada a espécie dos homens “apressados”. De fato, a filologia é essa arte venerável que exige de seus
admiradores antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, tomar tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento —
uma arte de ourivesaria e um domínio de ourives aplicado à palavra, uma arte que requer um trabalho sutil e
delicado e que nada realiza se não for aplicado com lentidão. Mas é precisamente por isso que hoje é mais
necessário que nunca, justamente por isso que encanta e seduz, muito mais numa época de “trabalho”: quero
dizer, de precipitação, de pressa indecente que se aquece e quer “acabar” tudo bem depressa, mesmo que se trate
de um livro, antigo ou novo. — Essa própria arte não acaba facilmente com o que quer que seja, ensina a ler
bem, isto é, lentamente, com profundidade, com prudência e precaução, com segundas intenções, portas abertas,
com dedos e olhos delicados... Amigos pacientes, este livro não deseja para ele senão leitores e filólogos
perfeitos: aprendam a me ler bem!”
3
Cf. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Traduzido por José Laurênio de
Melo. São Paulo: EDUSP, 1992.
14

de recepção de suas ideias, a investigação acerca das estratégias que elegeu, o exame
dos múltiplos estilos de que lançou mão [...]. (MARTON, 2018, p. 21).

Portanto, para bem lermos Nietzsche, buscamos nesta tese realizar a apreensão dos
múltiplos métodos de acesso ao pensamento nietzschiano, valendo-nos da verdade material seus
textos autorais, sem perder de vista, todavia, a exegese dos métodos, isto é, os movimentos
históricos que constituíram a estrutura de sua obra filosófica. No caso deste trabalho,
analisaremos as obras localizadas entre o segundo e o terceiro período do autor, sem, todavia,
considerá-las estanques, uma vez que o corpo de obras nietzschiano dialoga com o processo
histórico da produção do pensamento do autor.

Para a organização e demarcação conceitual, é mister denotar que nos atentamos a


clássica divisão realizada pelo germanista Charles Andler (1931)4 dos escritos filosóficos de
Nietzsche em três períodos, a saber: Pessimismo romântico; Positivismo cético e Filosofia do
eterno retorno. Interessa-nos, portanto, a passagem do segundo para o terceiro período, que
abraça a elaboração dos temas do naturalismo, da fisiopsicologia, da vontade de potência, da
transvaloração de todos os valores e do niilismo. Pensamentos singulares expressados nas
seguintes obras: Assim falou Zaratustra, Além do bem e do mal, Genealogia da moral,
Crepúsculo dos ídolos, O Anticristo, O caso Wagner, Ecce homo e Nietzsche contra Wagner,
além dos fragmentos póstumos do mesmo período.

A tese central deste trabalho é a de que a estética fisiopsicológica é, nos trabalhos tardios
de Nietzsche, um subproduto da doutrina da Vontade de Potência. Embora pareça-nos, por
vezes, que a discussão sobre esta doutrina está saturada no quadro intelectual dos intérpretes
nietzschianos5, um mergulho mais denso em suas obras faz emergir indagações consistentes
que necessitam de respostas, ou ainda, de tentativas de uma explicitação etiológica. O lugar do
Corpo na Doutrina da Vontade de Potência ainda não é um consenso: qual a natureza das
interações pulsionais? Haveria uma hierarquia entre os impulsos de um corpo biológico sobre
as pulsões psíquicas deste mesmo corpo? O conceito “fisiopsicologia” parece buscar um justo-
meio nesta labuta, e suas origens nos levam a um contexto interessante onde pesquisadores

4
Cf. ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie e sa pensée. 3 vols. Paris: Gallimard, 1931.
5
Os robustos trabalhos realizados a nível nacional sobre o expediente nietzscheano, sobremaneira que tratam da
fisiopsicologia, constituem referências ímpares para os pesquisadores interessados nos estudos sobre o filósofo
alemão. A tese de Scarlet Marton “Nietzsche - das forças cósmicas aos valores humanos”, defendida em 1979, é
ainda uma literatura fundamental nos estudos nietzscheanos. Arrojam-se competentemente aos trabalhos de
Marton, os estudos conduzidos pela professora Rosa Maria Dias, com ênfase na publicação “Nietzsche: vida
como obra de arte” de 2011. Chamamos atenção ainda para a recente tese de Saulo Krieger, de 2019, “O cerne
oculto do projeto nietzschiano: Logos vs. pathos no ato de filosofar”.
15

franceses, ingleses e alemães preencheram o cenário intelectual europeu com avanços na


psicologia experimental e nas experimentações das ciências naturais, isto tudo circundando e,
possivelmente, incidindo sobre Friedrich Nietzsche em seus escritos tardios.

O que nos é claro é a centralidade do corpo em sua terceira fase, e arguiremos neste
trabalho que o corpo deve ser entendido como um fenômeno múltiplo de forças irredutíveis que
subordinam a consciência: um corpo que filosofa, que é ele mesmo uma grande razão, e não
meramente um manequim de carne subordinado ao cérebro. Durante a terceira fase de seu
pensamento, Nietzsche se afasta de suas preleções iniciais realizadas em O Nascimento da
Tragédia as quais justificavam o mundo como fenômeno estético em contraposição à ciência
moderna. Destarte, o filósofo desbrava o caminho aberto por Baruch Spinoza, retomando o
conceito de corpo, desenvolvendo-o de maneira a ser correlacionado como o fio condutor dos
problemas morais e epistemológicos do homem. “O corpo é uma grande razão, uma
multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”
(NIETZSCHE, ZA, § 35).

A recuperação do corpo como problema filosófico deriva da crítica de Nietzsche a a


desvaloração dos valores supremos, de uma decadência da tradição filosófica com o idealismo
e da denegação da noção platônico-socrático-cristão ancorada na metafísica. Em Assim falou
Zaratustra, o filósofo denota que os valores vigentes estão fundamentados no mundo
metafísico, sendo necessária a supressão desta fundamentação para a criação de novos valores
inteiramente fisiopsicológicos. “Foram os doentes e moribundos que desprezaram o corpo e
terra, e inventaram a coisas celestiais, e as gostas de sangue redentores” (NIETZSCHE, ZA,
Dos Trasmudanos) argumenta o andarilho de Nietzsche.

Trazendo consigo os devidos anticorpos contra a decadência de sua época, Nietzsche


deteve-se na análise da mais insidiosa forma de décadence, a saber, aquela que está relacionada
à moral cristã: “[…] denomina-se o cristianismo a religião da compaixão – A compaixão está
em oposição às emoções tônicas, que elevam a energia vital: tem efeito depressivo”
(NIETZSCHE, AC, §7). Deste modo, Nietzsche assumiu-se como um médico da civilização
decadente, e propôs um contra ideal a tradição idealista a partir da condenação da modernidade
cristã que, ao longo dos séculos, engessou e condenou os impulsos humanos. Como elucida
Frezzati Jr. (2018, p. 12) ao dizer que “[…] o médico nietzschiano antagoniza-se àquele
proposto pela tradição filosófica: não é um médico de almas”.
16

Na concepção nietzschiana, a repartição entre corpo e alma, comum na tradição idealista


de Platão e retomada na modernidade por Descartes, é inexistente, e a possibilidade da alma se
inscreve na articulação de elementos como razão e subjetividade que são indissociados ao corpo
e inteiramente submetidos a ele. “É decisivo quanto ao destino do povo e da humanidade, que
se comece a cultura a partir do lugar correto - não a partir da "alma": o lugar correto é o corpo,
os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto segue daí...” (NIETZSCHE, CI, IX, §47). Para o filósofo,
o corpo, seus instintos e funções gerais são a fonte da consciência, da vontade e da razão. A
vitalidade humana está, portanto, diretamente relacionada aos contornos e ao funcionamento de
toda a experiência humana comunicável e empirica.

No tocante aos animais, foi Descartes quem, com audácia admirável, primeiramente
ousou compreender o animal como máquina: toda a nossa fisiologia se empenha em
demonstrar essa tese. E coerentemente não situamos o homem à parte, como Descartes
ainda fez: o que hoje entendemos do homem vai exatamente até onde ele é entendido
como máquina. Antes se concedia ao homem o “livre arbítrio”, como dote vindo de
uma ordem mais elevada: hoje lhe tiramos até mesmo a vontade, no sentido de que
não se pode mais entender por isso uma faculdade. O velho termo “vontade” serve
apenas para designar uma resultante, uma espécie de reação individual que
necessariamente sucede a uma quantidade de estímulos, em parte contraditórios, em
parte harmoniosos; - a vontade não “atua” mais, não “move” mais... Outrora se via na
consciência do homem, no “espírito”, a prova de sua origem mais elevada, de sua
divindade (NIETZSCHE, AC, §14).

Longe de se deter em uma demolição epistemológica da verdade e da realidade,


Nietzsche fundamentou a própria epistemologia na fisiopsicologia, argumentando que os
processos corporais limitam e direcionam a gramática, a lógica e a causalidade ─ os princípios
subjacentes pelos quais conhecemos o mundo. Logo, para Nietzsche, a arte consiste em uma
manifestação de instintos fisiológicos que, são eles mesmos, psicologícos, e que se tornam
conhecidos por meio da consciência, argumentando que o próprio intelecto é apenas o sintoma
e o instrumento de "uma pulsão corporal".

Neste sentido, o corpo é o espaço de interpretação do filósofo, uma vez que a


consciência confunde a unificação-simplificação do signo consciente com a unificação do caos
pelo corpo, promovendo um curto-circuito no corpo como jogo de unidade-pluralização das
pulsões - superestimar o consciente seria considerar o signo como uma coisa em si.
Considerando essa questão, Nietzsche recoloca a consciência diante da pluralidade invisível do
corpo à qual ela está submetida:

Em todo esse processo nosso intelecto não é, ao contrário, senão o instrumento cego
de outro instinto que é o rival daquela cuja violência nos atormenta, quer seja a
necessidade de repouso ou o medo da vergonha e de outras consequências lamentáveis
ou ainda o amor (NIETZSCHE, A, § 109).
17

No sentindo exposto, a intenção dos capítulos é, inicialmente, remontar a progressão


histórica dos movimentos de Friedrich Nietzsche a partir de 1878, para depois discutir em suas
obras a questão do corpo e da embriaguez artística na fisiopsicologia da arte e na pulsão da
Vontade de Potência. No primeiro capítulo, realizaremos uma abordagem de ordem genética,
a interpretação consistirá em reaprender, conforme à intenção do autor, essa ordem por razões
contextuais, na tentativa de não separar suas teses dos movimentos que as produziram: do
afastamento de Nietzsche do romantismo alemão, de sua leitura da psicologia francesa e de sua
aproximação das ciências naturais. Longe de elaborarmos uma biografia do autor, como já bem
realizaram Paul Janz e Rudiger Safranski, apontaremos aqui posições, aproximações e rupturas
nas cadeias de relação estabelecidas por Nietzsche que nos permitem inferir uma inflexão sobre
seu pensamento estético fisiopsicológico.
No segundo capítulo, realizamos um estudo sobre os conceitos de Vontade de Potência
e de estética fisiológica, abordando a elaboração destes argumentos nas obras de Nietzsche para
depois realizar uma incursão nos principais intérpretes desses conceitos: Heidegger, Muller
Lauter, Felix Guattari e Deleuze. Compreendendo que para alcançarmos uma compreensão
sobre a fisiopsicologia, é necessário entender a discussão sobre psicologia negativa em
Nietzsche, realizamos neste capítulo uma análise sobre o que Nietzsche chama de psicologia
do sacerdote. Essa discussão perpassa a construção da oposição Credor/Devedor, estabelecida
na Segunda Dissertação da obra Genealogia da Moral. A partir dessa incursão, apontaremos a
crítica nietzschiana à Sócrates e à Wagner a fim de demonstrar uma possível superação da
fórmula de décadence.
No terceiro capítulo, abordaremos a passagem da decadência artística para uma estética
fisiopsicológica partir da questão da embriaguez. Grande parte das discussões sobre a questão
da embriaguez nos escritos de Nietzsche tomam, em suas próprias descrições, o conceito
alemão de Rausch como ponto de partida. De acordo com essas descrições, a embriaguez
enquanto Rausch é, de certa maneira, uma forma de auto-esquecimento arrebatador. Já em seus
primeiros escritos, como O Nascimento da Tragédia, Nietzsche associou o Rausch ao caótico
princípio dionisíaco, em oposição ao princípio formador apolíneo, que envolve uma destruição
do princípio de individuação, resultando na dissolução das fronteiras entre os indivíduos e a
fusão com a "misteriosa unidade primordial” no cerne da natureza. Em seu período tardio,
todavia, em obras como Crepúsculo dos Ídolos, tanto o apolíneo quanto o dionisíaco são
concebidos como condições da embriaguez, contudo, não mais como condição de dualidade.
18

1 O CORPO RECUPERADO

Por volta de 1878, à época da publicação de Humano, Demasiado Humano, o fascínio


de Friedrich Nietzsche sobre obra de Richard Wagner ruiu e o filósofo assumiu uma postura
decisiva: o rompimento com o romantismo alemão e o afastamento da metafísica artística. É
necessário pontuar, como bem elucida Remedios Availla Crespo (2015) que Nietzsche manteve
uma relação singular com o romantismo tradicional (Frühromantik) da geração de Hegel,
Hölderlin, Schelling e Schlegel durante toda sua vida. Deste modo, o romantismo a qual
ferozmente Nietzsche condenou era o tardio (Spätromantik), descrito pelo filósofo como um
tipo decadente que emergia o conflito aberto entre o romântico e o dionisíaco 6. Nesse ringue,
Nietzsche reconheceu a música alemã, sobretudo as obras de Wagner, descrevendo-as mais
tarde em seu “Ensaio de autocrítica” como “(...) um afundamento, um retorno e prosternação,
ante uma velha de fé, ante o velho deus” (NIETZSCHE, Ensaio de autocrítica §6).

Até 1878, Nietzsche havia elevado Wagner a um tipo supra-histórico7 de arte, uma
experiência magnífica, ou como melhor foi descrito em sua Quarta Consideração
Extemporânea, “(...) o sentido da verdade e da realidade em meio a homens adormecidos,
confusos e atormentados (...)” (NIETZSCHE, WB, p. §07). De fato, Wagner ostentava a
centralidade das primeiras obras de Nietzsche, como O Nascimento da Tragédia, de 1872,
período de juventude em que o filósofo havia conhecido o refinado compositor, tornando-o uma
espécie de mentor cultural. Dessa relação que perdurou quase uma década, Nietzsche
caracterizou a música de Wagner em seus escritos como o mais alto nível da arte alemã,
entendendo-a como o renascimento do espírito dionisíaco na arte. O fascínio de Nietzsche se
deveu, em muito, ao compartilhamento de gostos que tinha com Wagner, logo que ambos eram

6
Conforme Judith Norman em “Nietzche and the early Romantism”, o filósofo alemão se relacionava
positivamente com o chamado Romantismo Inicial ou Círculo de Jena. Esse movimento, em voga entre 1797 e
1802, teve como principais figuras August e Friedrich Schlegel, Novalis, Tieck, Schleiermacher e Schelling, e os
escritos que publicaram na década de 1790, principalmente no jornal Ateneu. Os Românticos de Jena, enquanto
“grecófilos”, não tinham nada a ver com o romantismo rousseauniano, não realizavam um culto ao gênio e
tampouco valorizavam a emoção acima da razão. O que era central para esse movimento era o profundo
ceticismo sobre a viabilidade das atitudes tradicionais em relação à verdade, a teoria da arte intelectualmente
rigorosa que deu peso particular à ludicidade, a escrita fragmentada, a noção de ironia literária e o senso de que
os filósofos deveriam se tornar artistas e que a filosofia, em si, deveria ser um berço da arte. Cf. NORMAN,
Judith. Nietzsche and Early Romanticism. In: Journal of the History of Ideas 63.3 (2002) 501-519.
7
Nietzsche define o suprahistórico como aquilo que confere à existência o caráter de eterno e que significa
sempre o mesmo, ou seja, a metafísica Cf. NIETZSCHE, Friedrich: Escritos sobre Educação(Tradução de Noéli
Correia de Melo sobrinho); Rio de Janeiro- São Paulo: Editoras Loyola e Editora PUC-RIO, 2003.
19

profundos admiradores da arte clássica grega e da filosofia de Arthur Schopenhauer8, bem como
eram profundos críticos da decadência artística que, segundo os mesmos, dominava o mundo
moderno. O ápice dessa relação pode ser depreendido a partir da Quarta consideração
extemporânea, onde Nietzsche analisou a música de Wagner não como uma mera atração
cultural, mas como uma possibilidade política de renovação da cultura alemã, uma poderosa
força de resistência para a radical transformação das estruturas da sociedade moderna. Tanto
para Nietzsche quanto para Wagner, a arte era a própria expressão da vida e não uma mera
recreação desta (NIETZSCHE, WB, §9).
Mas o projeto filosófico sobre Wagner ruiu e esse ruir iniciou ainda durante os primeiros
festivais do Festspielhaus Bayreuth, em 1876 (SAFRANSKI, 2002)9. É simplório dizer que o
desencantamento de Nietzsche sobre Wagner se realizou somente com o cristianismo da peça
Parsifal que estreou apenas em 1882, naquela casa de ópera. Naturalmente, a estreia de Parsifal
afetou vertiginosamente o filósofo (levando-o a elaborar uma reação simbólica através do
personagem Zaratustra, anos mais tarde). Todavia, o incômodo de Nietzsche era anterior, e não
se resumia no cristianismo de Wagner, mas sobremaneira, como escreve em uma carta de 1878,
na “(...) vaporização metafísica de tudo o que é verdadeiro e simples, a luta contra a razão por
meio da razão, que quer ver em cada uma das coisas um prodígio e uma quimera”
(NIETZSCHE, Correspondecias III, 2012, trad. nossa)10. A atmosfera metafisica que cercava
Wagner, sobretudo durante a inauguração de Bayreuth, não foi despercebida por Nietzsche
quem redigiu inúmeras cartas criticando o aspecto mítico que as peças de Wagner assumiam no
palco. Enquanto Wagner aferrava-se ao encantamento dos mitos, Nietzsche percebeu que a
consciência mítica moderna era oca. Isto é, da morte dos deuses emergia somente o
acontecimento estético, que não deveria ser transformado em fato religioso.
Como observa Rudiger Safranski (2012), outras questões sensíveis como a extrema
vaidade de Wagner que não se deixava confrontar facilmente com as ponderações de Nietzsche,
bem como o apreço das elites pela composição de Wagner (elites essas que Nietzsche

8
Como escreve Anna Hartmann Cavalcanti na Introdução da Quarta Extemporânea: “Da mesma forma, a partir
de suas conversas com Nietzsche e da discussão de seus textos, Wagner pode ampliar e aprofundar sua
compreensão da filosofia de Schopenhauer, que desempenha um papel central no último período de sua
produção teórica e musical, assim como seu conhecimento da arte e da cultura antigas. Em Sobre a designação
“drama musical” (1872), Wagner reflete sobre a estética de Schopenhauer a partir das concepções elaboradas por
Nietzsche em O nascimento da tragédia, especialmente a de que a música engendra a imagem como expressão
alegórica de si própria”.
9
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche Biografía de su pensamento. Traducción del alemán por Raúl Gabás. Fabula.
2002.
10
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Correspôndencia III - Enero de 1875 a Diciembre de 1879. Tradução e
notas de Andrés Rubio. Organização Luis Enrique de Santiago Guervós. Editorial Trotta. Madrid. 2012.
20

considerava vazias de qualquer reflexão intelectual), arrojaram-se no desencantamento do


filósofo. Nietzsche, conforme suas próprias correspondências, viu-se sob um feitiço no qual ele
próprio não havia conseguido filosofar apropriadamente sem estar cego pelo lume do “mito”.
E, quando conseguiu quebrar o encantamento, por volta de 1878, deixou claro que renunciava
sua defesa do “delírio consciente” que Wagner havia apregoado ao relacionar a arte à religião
(relação detalhadamente assumida no texto de Wagner chamado Sobre a Religião e o Estado).
Em 1877, o filósofo chegou de escrever em seu diário que seus livros anteriores deveriam ser
renunciados11 e que a respectiva ideia de uma arte supra-histórica era agradável, porém
insustentável (este pensamento foi publicizado uma década mais tarde em seus últimos anos de
lucidez, na obra Ecce Homo, em 1888, na seção “O nascimento da tragédia” §1): “Para ser justo
com o Nascimento da Tragédia será preciso esquecer algumas coisas. Ele influiu e mesmo
fascinou pelo que nele era erro – por sua aplicação ao wagnerismo como se este fosse um
sintoma de ascensão”.
Com o fim do fascínio do wagnerismo, Nietzsche iniciou sua segunda fase intelectual.
Reaproximando-se da filosofia atomista de Demócrito, que já havia sido discutida em suas
preleções de juventude12 (SOUZA 2007)13 o filósofo abandonou o idealismo wagneriano e abriu
sendas pelas ciências da natureza, iniciando-se pelos caminhos mais antigos dos pré-socráticos.
Demócrito representou para ele a objetividade cientifica, tanto que escreveu em Humano
Demasiado Humano: “(...) os filósofos de Tales a Demócrito me parecem dificilmente
reconhecíveis; quem é capaz de recriar essas figuras, no entanto, caminha entre imagens do
mais puro e poderoso dos tipos” (NIETZSCHE, HDH, §261). A filosofia de Demócrito previa
que tudo na existência era provido de átomos objetivamente físicos e, portanto, a natureza não
era equipada de qualquer sentido. Ora, todas as concepções humanas que atribuíam qualidades
sensíveis ao universo eram, portanto, enganosas. Demócrito se opunha ao idealismo platônico,
estabelecendo uma imagem niilista de um universo longe de qualquer moralidade ou sentido
metafísico, um universo que estava para além do bem e do mal. O atomismo de Demócrito, que

11
“Aos leitores de meus escritos anteriores quero declarar explicitamente que eu renunciei aos pontos de vista
metafísicos em relação a arte, os quais essencialmente dominavam ali: são agradáveis, porém insustentáveis”
(NIETZSCHE, 8, 463)
12
Nina Power (2001) em On the Nature of Things: Nietzsche and Democritus, sugere que Nietzsche se
aproximou de Demócrito após a descoberta do livro História do materialismo de Friedrich Albert Lange em
1866. Nietzsche chegou de declarar esse livro como "a obra filosófica mais significativa que apareceu na última
década". Mais tarde, no mesmo ano, em uma carta a Muschacke, ele também comentou: "Kant, Schopenhauer, e
este livro de Lange - não preciso de mais do que isso”. Conforme Power, assim como podemos considerar O
nascimento da tragédia como inspirado e imbuído do pensamento de Schopenhauer, podemos ver
simultaneamente evidências claras do impacto de Lange examinando as notas de Nietzsche sobre Demócrito.
13
SOUZA, Maria Cristina dos Santos de. Demócrito: o racionalismo como representação artística do mundo,
segundo o filosofo Friedrich Nietzsche. Revista Filosofia, Fortaleza (CE), V. 4, n. 7, inverno, 2007.
21

reaparece nos escritos tardios de Nietzsche, embora de forma mais indireta, é uma arena
principal para sua abordagem futura sobre a Vontade de Potência.
Conforme Nina Power (2001), Demócrito é importante para Nietzsche, não apenas
porque ele evita as armadilhas do materialismo ingênuo ou dogmático (como a postulação de
um mecanismo cego ou de uma adesão estrita aos dados dos sentidos), mas porque, ao contrário,
ele parte da ideia de um universo cético, não teleológico e, em última análise, não sentimental,
que fornece recursos para as próprias ideias de Nietzsche sobre a "natureza das coisas". As
noções de Demócrito de força e matéria, como o movimento eterno dos átomos no vazio e a
invisibilidade perceptiva e da necessidade ontológica dessas unidades corpusculares, conduzem
Nietzsche por uma jornada complexa que o levará através da física das partículas pontuais do
físico jesuíta Roger Boscovich, assim como muitas outras conceituações científicas que o
conduzirão à formulação do conceito de 'Vontade de Potência'.14
Deste modo, a partir de 1878, Nietzsche se voltou à natureza. Sua busca por um princípio
antimetafísico o levou a se distanciar do trágico e se aproximar de um naturalismo normativo.
O filósofo avançou pelas ciências naturais, buscando nelas subsídios para a compreensão
adequada do homem desmistificado. Todavia, Nietzsche não se deixou desmedir pela frieza
científica: se era mérito da ciência esfriar as paixões, a filosofia não deveria ir muito longe
nisso, pois a sociedade não só estava ameaçada por paixões desmedidas, mas também pelo
biologismo dos positivistas. Deste modo, em Humano Demasiado Humano, Nietzsche projetou
um sistema bicameral como meio auxiliar contra o duplo perigo do vitalismo desenfreado e
esperou que uma cultura superior desse aos homens duas câmaras cerebrais, "(...) uma para
perceber a ciência e a outra para perceber a não-ciência" (NIETZSCHE, HH II, §209).
Nesse contexto, o filósofo passou a defender a vida que é consciente de que não pode
haver vida em uma única peça, mas que o mundo da vida consiste em vários mundos. Na
verdade, os dois mundos, o da ciência e o da não-ciência, eram, para ele, subdivididos em
diferentes disciplinas científicas e esferas culturais, como religião, política, arte e moral. Como

14
Embora exceda o propósito dos objetivos dessa tese, vale-nos recomendar a leitura do artigo “Nietzsche e
Boscovich: das ações físicas aos preconceitos sensoriais” de Adilson Felicio Feiler. Destacamos o seguinte
trecho do artigo: “Ao traduzir a atomística temporal de Boscovich para uma atomística sensorial, Nietzsche,
embora o faça de uma maneira não tão clara e definida, se apropria desta leitura da física como de um
instrumental fundamental para pensar questões que estão para além da ciência natural. Questões estas que
apontam, inclusive, para elementos epistemológicos relativos às noções de matéria e forma, causa e efeito, bem
como elementos morais e éticos relativos às noções de sujeito e objeto. Nietzsche se identifica com Boscovich
basicamente pelo afastamento da noção de matéria, que carrega toda a sorte de dicotomias, em função da noção
de força. E a noção de força, por sua vez, motiva uma leitura do vir-a-ser do mundo como vontade de potência”
(FEILER, 2019). Cf. FELICIO FEILER, Adilson. Nietzsche E Boscovich: Das Ações Físicas Aos Preconceitos
Sensoriais. Univ. philos., Bogotá , v. 36, n. 72, p. 279-303, June 2019.
22

argumenta José Nicolau Julião (2018), o propósito de uma cultura mais elevada permaneceu
nessa segunda fase de Nietzsche, porém o acesso a essa refundação não partiu mais de uma
percepção metafísica de cultura supra-histórica, mas se desenvolveria, para o filósofo, através
das ciências e da reavaliação da moral ocidental (JULIÃO, 2018). Com as ciências, disse
Nietzsche, “(...) os homens podem decidirem se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo
que antes se desenvolviam inconsciente e acidentalmente: hoje podem criar condições melhores
para a procriação dos indivíduos” (NIETZSCHE, HH I, §24).
Por volta de 1880, porém, a saúde de Nietzsche agravou, e os textos escritos nesse
período são atravessados pela dor física. Gradativamente, a temática da fisiologia se apropriou
de suas reflexões filosóficas. Como ele mesmo denotou em obras a partir de Além do Bem e do
Mal, a fisiologia passou a constituir um continuum junto à percepção e a consciência em sua
filosofia, e a atenção se tornou uma espécie de cone luminoso móvel que iluminava partes
alternadas da vida e as empurrava para a zona do visível e do pensável. Nesse ponto, Nietzsche
se voltou a arte não mais como um fazer metafísico, mas a trouxe para um campo
fisiopsicológico de compreensão. A arte, agora, era entendida como própria do estímulo do
corpo humano que busca incansavelmente fugir do tédio.
Nietzsche passou a entender o homem como um animal exclusivamente entediado,
dotado de consciência, com um horizonte de passado e futuro, que nunca está inteiramente
preenchido com o seu presente. Por isso mesmo, o homem percebe algo que nenhum animal
conhece: o tédio. Para escapar do tédio, o homem joga, inventa, busca criar (SAFRANSKI,
2002). O jogo é a arte do próprio estímulo dos afetos; como é, por exemplo, a música. Como
ele mesmo denota em Humano Demasiado Humano:
Para escapar ao tédio, ou o homem trabalha além da medida de suas necessidades
normais ou inventa o jogo, isto é, o trabalho que não deve satisfazer nenhuma outra
necessidade a não ser a de trabalho. Quem se fartou do jogo, e não tem novas
necessidades que lhe dêem motivo para trabalhar, é às vezes tomado pelo desejo de
uma terceira condição, que está para o jogo assim como o pairar para o dançar, e o
dançar para o caminhar, uma movimentação jubilosa e serena: é a visão da felicidade
que têm os artistas e filósofos. (NIETZSCHE, HH, §611).

A partir da temática do corpo se desenvolveu a última e derradeira fase intelectual de


Nietzsche, também chamada de “fase de maturidade”. Em seus escritos maduros, Nietzsche se
ocupa da relação da arte com a fisiopsicologia. Para desenvolver essa relação e recuperar a
questão do corpo que foi esquecido pela filosofia tradicional, Nietzsche perfaz a discussão sobre
a função dos valores na vida humana. Se, como ele acreditava, a vida não possui nem carece de
valor intrínseco e, no entanto, está sempre sendo avaliada, então tais avaliações podem ser
interpretadas como sintomas da condição do avaliador. Em seus livros desenvolvidos a partir
23

da terceira dissertação de A Genealogia da Moral, Nietzsche se voltou a uma análise


investigativa dos valores culturais fundamentais da filosofia, da religião e da moralidade
ocidental, os quais ele caracterizou como expressões do ideal ascético que sublimaram a questão
do corpo na tradição filosófica.
Segundo Nietzsche, a tradição judaico-cristã tornou o sofrimento tolerável ao interpretá-
lo como uma intenção divina e uma oportunidade de expiação. O cristianismo, portanto, deve
seu triunfo à lisonjeira doutrina da imortalidade pessoal, isto é, à presunção de que a vida e a
morte de cada indivíduo têm um significado cósmico. Da mesma forma, a filosofia tradicional
expressou o ideal ascético ao privilegiar a alma sobre o corpo, a mente sobre os sentidos, o
dever sobre o desejo, a realidade sobre a aparência, o atemporal sobre o temporal. Enquanto o
Cristianismo prometeu a salvação para o pecador que se arrepende, a filosofia ofereceu
esperança de salvação, embora fosse uma esperança secular. Para o filósofo alemão, comum à
religião e à filosofia tradicionais era a suposição de que existência requer explicação,
justificação ou expiação. Essa suposição distorceu a experiência em favor de algum outro
mundo “verdadeiro”. Todas essas características da cultura humana poderiam ser lidas como
sintomas de uma vida em declínio, uma vida decadente.
Não obstante, “Niilismo” foi o termo que Nietzsche usou para descrever a
desvalorização dos valores mais elevados postulados pelo ideal ascético. Ele conceituou a época
em que viveu como de um “niilismo passivo”, ou seja, como uma época que ainda não sabia
que os valores religiosos e filosóficos haviam se dissolvido com o surgimento do positivismo
do século XIX. Com o colapso das bases e sanções metafísicas e teológicas para a moralidade
tradicional, apenas uma generalizada sensação de falta de propósito e falta de sentido
permaneceria. E o triunfo da falta de sentido é o triunfo do niilismo: “Deus está morto”.
Nietzsche declarou, muito embora a maioria das pessoas não pudesse aceitar o eclipse do ideal
ascético e a falta de sentido intrínseca da existência. Porém, para o filósofo, tal constatação
proporcionaria as pessoas buscar suplantar valores absolutos para dar sentido à vida.
Nesse cenário, com a publicação de sua obra magna Assim Falou Zaratustra, Nietzsche
identificou a própria vida como “Vontade de Potência”, isto é, com instinto de crescimento e
durabilidade. Esse conceito forneceu outra maneira de interpretar o ideal ascético, uma vez que
para Nietzsche todos os valores supremos da humanidade carecem dessa vontade. Assim, a
filosofia, a religião e a moralidade tradicionais, para o filósofo, foram as máscaras de uma
Vontade de Potência deficiente. Os valores sustentadores da civilização ocidental têm sido
produtos sublimados da decadência em que o ideal ascético endossou a existência como dor e
24

sofrimento. Finalmente, com a crítica ao ideal ascético, Nietzsche deslocou a concepção sobre
o corpo, antes visto como uma mero recipiente da alma, demonstrando-o como precondição da
razão e da criação. E, a partir dessa ressignificação do corpo, Nietzsche reconfigurou o
entendimento sobre a arte, compreendida agora a partir do campo fisiológico dos impulsos que
reafirmam a vontade de vida.

Neste capítulo, pretendemos recuar aos primórdios da teoria da fisiopsicologia em


Nietzsche, que remonta, por um lado, a influência da psicologia experimental francesa, e por
outro, a influência das ciências naturais na propensão de retomada do corpo como interesse
primeiro da ciência. Importante ressaltar, como denota Erik Blondel (1986) que Nietzsche
procurou criticar tanto o idealismo espiritualista quanto o mecanicismo ou o biologismo (este
último presente em certa medida no psicologismo experimental de Theodore Ribot, de modo
que é completamente equivocado apontar os teóricos franceses como um terreno único da
psicofisiologia nietzschiana). Para Nietzsche, o idealismo subutilizava o corpo, enquanto no
biologismo o corpo foi conceituado de forma puramente objetivista. A isso o autor opõe, por
um lado, a primazia do corpo e, por outro, uma concepção não-empírica. Isto posto, tecemos
um necessário recuo ao final do século XIX.

1.1 “A Psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais”:


Nietzsche e os primórdios de uma fisiopsicologia.

A relação entre os eventos históricos e a significação filosófica, e sua consequente


exteriorização intencional a partir da escrita, é evidente quando analisamos os textos de
Nietzsche e realizamos uma investigação da geist que circundava suas obras. Ao nos voltarmos
a chamada “fase tardia” do filósofo, os aspectos ali vazados remetem à uma das grandes crises
do século XIX: o cataclisma da psicologia especulativa e a assunção das ciências naturais, fatos
que permitiram o avanço da psicologia nas ciências experimentais e da retomada do corpo
fisiológico como fio condutor desses estudos.
Régis Ouvrier-Bonnaz (2007) elucida que, até 1870, a psicologia mantinha relações
profundas com a filosofia em uma abordagem reflexiva, onde os fatos da consciência eram
separados da realidade, interpretados como dados divinos dentro de uma tradição puramente
metafísica. Em outras palavras, perdurava até então uma psicologia “espiritualista”, advogada
por intelectuais como Victor Cousin, e seu discípulo, Théodore-Simon Jouffroy,
25

O que provocou este cataclisma? A resposta é variada, ancorada em uma cadeia de


conjunções de diferentes movimentos intelectuais: na Inglaterra, descrevendo o mecanismo da
evolução das espécies, Charles Darwin abalou os dogmas religiosos sobre a origem do homem
e o seu desenvolvimento neste mundo; na França, na mesma época, Auguste Comte atribuiu à
ciência o papel de unificação social, anteriormente confiado à religião, ou seja, a ciência deveria
permitir fundar racionalmente a ordem social. O positivismo de Comte, explica Ouvrier-Bonnaz
(2007), tem uma influência incontestável na aparição e no desenvolvimento de uma psicologia
científica, embora Comte não tenha previsto um lugar para a psicologia na sua classificação das
ciências.
Sob o corolário dos movimentos de Darwin e Comte, os círculos intelectuais franceses
começaram a questionar as tradicionais noções de alma imortal, de consciência, de vontade e
de livre arbítrio que subsidiavam a psicologia até aquele momento. A publicação de Principles
of Physiological Psychology15 de Wilhelm Maximilian Wundt, em 1873, abriu veredas para a
demarcação de um novo domínio na ciência: o estudo do aparelho psíquico interligado ao
conjunto orgânico e fisiológico do homem. Na esteira dos debates franceses sobre o “estatuto
da alma”, também foram arguidas as metodologias de investigação comuns a época, bem com
os limites epistemológicos entre a Filosofia, a Psicologia e a Fisiologia. Progressivamente,
buscou-se, nas palavras Galton Darwin, o estabelecimento de um “clero científico”, a partir de
pressupostos da biologia e da fisiologia, uma disposição antagônica da ciência empírica ao
papel da religião como elemento de regulação social (OUVRIER-BONNAZ, 2007).
Neste interim de debates, destacaram-se os estudos de um jovem doutorando da École
Normale Supérieure, Theodule Ribot, quem se dispôs a substituir a psicologia metafísica em
vigor por uma psicologia empírica. Ribot amparou-se na abordagem experimental de Wundt, e,
fundamentou-se ainda, nas críticas positivistas de Comte, no biologismo de Spencer, e no
materialismo alemão. Com a defesa de sua tese de doutorado, em 1873, Ribot confrontou a
antiga psicologia espiritualista com os pressupostos de uma psicologia cientifica, inicialmente
chamada de “psicologia experimental e comparada”, uma ciência que se distinguia da filosofia
por não se ater em especulações ontológicas, mas em objetos de análise empíricos. Em 1879,
com a publicação de “A psicologia alemã contemporânea (1879)”, Ribot deu ênfase aos
aspectos fisiológicos desta nova psicologia experimental com o argumento de que “[...] todo
estado psicológico determinado está ligado a um ou vários acontecimentos físicos determinados

15
WUNDT, Wilhelm. Principles of physiological psychology. London: Swan Sonnenschein & Co. Lim., 1904.
26

que conhecemos bem em muitos casos, pouco ou mal em outros” (RIBOT, 1879, p. 11, trad.
Frezzati Jr.)16.
Na Alemanha, uma década seguinte após a emergência da crise da psicologia
tradicional, o filósofo Friedrich Nietzsche publicou o seu “prelúdio a uma filosofia do futuro”,
a obra Além do Bem e do Mal, um trabalho exponencial na qual ele aprofundou o interesse sobre
a superação da metafísica para o desvelamento da verdade e argumentou em favor de uma
“fisiopsicologia” enquanto morfologia e teoria do desenvolvimento da filosofia da Vontade de
Potência”. Para Wilson Antônio Frezatti Jr. (2018), não se tratou de uma mera coincidência de
pensamentos, mas de uma expressão da influência da psicologia experimental francesa na
maturação do pensamento crítico de Nietzsche.
Desde o início, alertamos que não estamos considerando Nietzsche um cientista nem
um seguidor das ideias de Ribot. O que queremos fazer é mostrar que o filósofo
alemão compartilhava uma série de questões com a discussão francesa. Ele foi, para
nós, sem dúvida, inspirado por ela e por algumas noções que se faziam presentes, mas
isso não significa que Nietzsche simplesmente as utilizou como conceitos científicos.
Ele as modificou e as usou de acordo com suas necessidades filosóficas. (FREZZATI
JR, 2018, p. 09).

Não é nosso foco nos estendermos na provável relação entre Nietzsche e Ribot, tão bem
explorada na obra Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX de Frezzati Jr. Um recuo
breve se faz necessário, todavia, para iniciarmos nossas incursões sobre as concepções
antimetafísicas e fisiopsicológicas em Nietzsche. É mister denotar antes, a autonomia do
pensamento nietzschiano, que, não raramente, se confronta com os fisiologistas da época como
Herbert Spencer e August Comte (grandes influências em Theodore Ribot), sobre questões
como altruísmo e má causalidade: “Nossos socialistas são décadants, mas também o sr. Herbert
Spencer é um décadant – ele vê o triunfo do altruísmo como algo desejável” (NIETZSCHE,
CI, §37). E ainda: “Que odor de catolicismo anti-alemão existe na sociologia de Auguste Comte
com a sua lógica dos instintos, tão romanas” (NIETZSCHE, BM, §48).

Cabe explanar, como bem elucida David Hurrel (2020), que Nietzsche caracteriza
alguns indivíduos influentes - como Sócrates e Wagner - como “decadentes” porque promovem
valores inibidores da vida que potencialmente minam o florescimento da humanidade. Um
exemplo claro, mas menos proeminente, de tal decadente é Herbert Spencer para Nietzsche.
Embora as observações de Nietzsche sobre Spencer sejam muito menores do que aquelas sobre
Sócrates e Wagner, elas ainda têm uma importância considerável para a compreensão da

16
RIBOT, Theodore. La psychologie allemande contemporaine (école expérimentale) (fac símile da edição
original: Paris: Librairie Germer Baillière, 1879). Paris, FR: L’Harmattan, 1879.
27

filosofia de Nietzsche - particularmente suas visões sobre moralidade e ciência - e,


consequentemente, seu papel em sua concepção de decadência. Para Nietzsche, Spencer era o
epítome do pior tipo de cientista do século XIX. Alguém que estava tão completamente
convencido da verdade objetiva de sua teoria da ética evolucionária, que não estava inclinado
a considerar a perspectiva de que pudesse ser apenas uma interpretação possível entre muitas
alternativas. Como escreve em Genealogia da Moral:

Sob influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a “adaptação”, ou


seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a
vida como uma adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas
(Herbert Spencer). Mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua Vontade de
Potência; com isto não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas,
agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças
cuja ação necessariamente precede a “adaptação”; com isto se nega, no próprio
organismo, o papel dominante dos mais altos funcionários, aqueles nos quais a
vontade de vida aparece ativa e conformadora. Recorde-se o que Huxley criticou em
Spencer — o seu “niilismo administrativo”: mas trata-se de bem mais que de mera
“administração. (NIETZSCHE, GM II §12).

Nietzsche nunca chegou de citar Ribot, nem negativamente, nem como elogio, e embora
os trabalhos de Ribot tenham sido um caminho provável no expediente tardio do filósofo, é
preciso ressalvar a observação de Edmilson Paschoal (2002, p. 253) que “(...) o material
coletado de Ribot em particular e da psicologia francesa do século XIX em geral, adentra na
obra de Nietzsche como parte de uma tese formulada por ele e jamais pensada por Ribot: a
doutrina da Wille zur Macht”. De fato, a Doutrina da Vontade de Potência é crucial na distinção
da fisiologia em Nietzsche daquela fisiologia explorada pelos teóricos franceses e ingleses. A
partir desta Doutrina, Nietzsche buscou superar a metafísica e combater a moral cristã com a
valorização da fisiologia, descrita pelo filósofo como uma “dinâmica da luta dos impulsos por
mais potência” e não somente vinculada a processos físico-químicos como ocorria entre os
franceses.

De todo modo, alguns pontos são relevantes e devem ser considerados como uma ponte
entre as inquietações do círculo intelectual francês com as inquietações da terceira fase de
Nietzsche em um amplo quadro intelectual. Como observa Paschoal (2020) que a intersecção
da filosofia e das ciências naturais, e sobremaneira, a relação da psicologia com a esfera da vida
e, por conseguinte, entre a psicologia e a fisiologia são presentes tanto nos estudos de Ribot
quanto nos de Nietzsche. Além disso, observa Paschoal (2020) que o papel atribuído à doença
deve ser considerado em ambos os intelectuais, papel este que não possui traços meramente
negativos, mas que emerge como um elemento importante “tanto em termos de conhecimento
do homem quanto de seus estados de saúde” (PASCHOAL, 2020).
28

Em razão disso, Patrick Wotling (1999) denota que a psicologia é um aspecto revelador
do pensamento nietzschiano. Para esse pesquisador, a elaboração de uma psicologia
inteiramente nova é formada do questionamento de Nietzsche da psicologia idealista que reinou
na tradição metafísica com sua condição substancialista de sujeito. Com sua crítica destrutiva,
Nietzsche abraçou o processo de reconstrução da filosofia a partir da reformulação da
psicologia, ou como ele mesmo chamou de uma “grande psicologia”, temática que emerge em
suas primeiras obras do terceiro período como Assim Falava Zaratustra e Além do Bem e do
Mal.

De fato, no aforismo 23 de Além do Bem e do Mal, ao rever os Preconceitos dos


Filósofos, Nietzsche percebeu com otimismo os movimentos da psicologia experimental
francesa – sem, todavia, referi-la propriamente, dizendo somente que: “O psicólogo novo, para
acabar com a superstição que se multiplicou em torna da noção de alma, lançou-se de certo
modo a um novo deserto e a uma nova desconfiança” (NIETZSCHE, BM, §23). O filósofo
denota que aos psicólogos novos era legada a tarefa, ou condenação, de “inventar e talvez —
quem sabe? — também a descobrir” as nuances do fenômeno humano dissociadas, naquele
instante, das especulações outrora metafisicas.

Embora estes breves reconhecimentos, Nietzsche tomou a si o ato pioneiro de ousar


explorar as profundezas da psicologia sem preconceitos e apreensões de ordem moral. Como
bem denotou Roberto Barros (2015) que a interpretação da racionalidade, da verdade e do
conhecimento enquanto produtos transitórios da configuração orgânico-psíquica dos homens
direcionou Nietzsche a ocupar-se com a questão das formas de representação do mundo por
meio do entendimento, o que então o remete não à psicologia racional, mas ao inconsciente do
pensamento.

Contrariando o entendimento substancialista da psicologia tradicional, Nietzsche


criticou a concepção que coloca uma unidade subjetiva como responsável pelo querer,
argumentando que o “querer” deve ser pensado como um complexo de afetos, sensações e
pensamentos. Além disso, o filósofo teceu uma consistente crítica à consciência, observando
que ela não se opõe a atividade dos afetos, que apenas se desenvolveu para atender a
necessidade de comunicação.
No fragmento 23 de Além do Bem e do Mal, Nietzsche escreve:
Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais:
não ousou descer às profundezas [...] Uma autêntica fisiopsicologia tem de lutar com
29

resistências inconscientes no coração do investigador, tem ‘o coração’ contra si: pois


a psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais.

Nietzsche utiliza os conceitos de psicologia e fisiologia sempre numa aproximação. Isso


nos indica que a ideia de fisiopsicologia deve ser entendida numa imbricação resultante da
Vontade de Potência. Contudo, o conceito de psicologia está inteiramente deslocado dos
preconceitos morais e metafísicos e, nesse sentido, a fisiologia toma um partido positivo quando
se desvincula do sagrado na filosofia nietzschiana, tal como escreve o filósofo: “Em termos
fisiológicos: na luta contra a besta, tornar doente pode ser o único meio de enfraquecê-la. Isso
compreendeu a igreja: ela estragou o ser humano, ela o debilitou – mas reivindicou tê-lo
‘melhorado’” (NIETZSCHE, CI, VII, §2). Pois, no seu entender, a fisiopsicologia é a base da
avaliação das produções humanas, ou seja, das configurações fisiológicas. Deste modo, para
Nietzsche, a fisiologia nada mais seria que uma interpretação do corpo e, deste modo, devemos
entender o termo fisiopsicologia como a dinâmica de pulsões e o corpo como uma configuração
de impulsos que lutam por mais potência. Como esclarece André Itaparica (2021, p. 08):
Em sua economia interna, a vontade de potência pressupõe desvios, sublimações, e
rearranjo de suas formas. A vontade de potência apresenta-se no âmbito orgânico
como impulsos fisiológicos, que também terão uma expressão psicológica, mas em
um registro em que se desenvolve em direção a uma “fisiopsicologia” (ITAPARICA,
2021, p 8).

A psicologia para Nietzsche aparece de duas maneiras, a saber, psicologia negativa e


em seguida uma psicologia relacionada aos impulsos fisiológicos. Nietzsche critica a noção de
psicologia negativa ao denunciar uma relação com a transcendência, como fica patente no
fragmento 26 de O Anticristo:
A desobediência a Deus, isto é, ao sacerdote à “Lei”, recebe então o nome de “pecado”
os meios de “reconciliar com Deus” são, como é de esperar, meios com os quais a
sujeição ao sacerdote é garantida ainda mais solidamente: apenas o sacerdote
“redime”. Psicologicamente, em toda sociedade organizada em torno ao sacerdote os
“pecados” são imprescindíveis. (NIETZSCHE, AC, §26).

Se a psicologia metafísica havia fechado os olhos para os dados fisiológicos, é a partir


da interferência nietzschiana que podemos concebê-la como um processo fisiopsicológico. O
que desejava Nietzsche, como ele declara, era conceber a psicologia “(...) sob as espécies de
uma morfologia e de uma genética da vontade de potência” (NIETZSCHE, BM, §23), partindo
de uma interpretação fisiológica dentro de um quadro de inserção da filosofia nas ciências
naturais.
Neste ponto, podemos considerar a posição do filósofo Richard Schacht quem denota
Nietzsche como um pensador naturalista, com a ressalva, é claro, que o filósofo não se limitava
a um tipo de naturalismo (existem muitas concepções de “naturalismo” na literatura filosófica;
30

e seria um erro supor que qualquer um deles em particular é o que Nietzsche defendeu ou se
moveu em direção). Alguns tipos de “naturalismo” o próprio Nietzsche desdenhava ou, no
mínimo, criticava: por exemplo, o tipo "mecanicista" que ele chama de uma das formas “mais
estúpidas” de avaliar e construir a arte, como consta em A Gaia Ciência (GC, § 373). Além
disso, Nietzsche rejeita certos tipos de naturalistas em Além do Bem do Mal (BM, §21) que são
“condicionados pela causa e efeito” e produzem, segundo o filósofo, “as cretinices mecanicistas
em voga, que querem que toda causa impulsione e pressione até produzir um efeito”. Portanto,
devemos olhar essa aproximação de Nietzsche com as ciências naturais atentamente.

1.2 “Não sou um médico de almas”: das Ciências Naturais à crítica ao Idealismo
Alemão.

É necessário considerarmos neste trabalho qual tipo de naturalismo poderia ser


identificado no corpo de ideias do autor, particularmente no que se refere à ciência, tal como
esta passou a ser entendida pelas ciências naturais modernas. É notório que o próprio Nietzsche
faz, não raramente, um uso positivo da linguagem do naturalismo para caracterizar seus
próprios esforços e projetos filosóficos. Como ocorre no início de A Gaia Ciência quando
escreve: “Podemos começar a nos naturalizar humanos em termos de uma pura, recém-
descoberta e recém-redimida natureza!”- isto é, “natureza reconcebida em uma totalmente não-
deificada maneira, purificada de todos os vestígios da ideia de Deus” (NIETZSCHE, GS, §109).
Já em Além do Bem e do Mal, ele proclamou a tarefa de "retraduzir o homem de volta à
natureza" e de tornar possível que de agora em diante o homem esteja diante do homem
endurecido na disciplina da ciência, diante de outra natureza, particularmente no sentido de ser
“surdo às lisonjas de todos os pássaros metafísicos, que não cessam de cantar: "és mais, mais
alto, és de outra origem!" — eis nossa incumbência'” (NIETZSCHE, BM, §230). Nietzsche,
portanto, está longe de ser hostil ou desdenhoso das ciências naturais, quanto mais a Ciência de
maneira mais geral. Em verdade, desde a publicação de Humano, Demasiado Humano, ele
atribuiu grande importância para a ciência natural (bem como para a ciência histórica, cultural,
linguística e psicológica) na sofisticação do pensamento filosófico, levando em conta o que
pode ser aprendido sobre o homem e sobre o mundo onde estamos a partir da investigação
natural-científica.
31

Não obstante, em novembro de 1887, conforme explana Safranski (2002), Nietzsche


pediu ao seu editor Constantin Georg Naumann, para que entregasse cópias de sua obra
Genealogia da Moral para um séquito de nomes de intelectuais das ciências naturais, dentre os
quais destacamos Wilhelm Wundt e Emil DuBois-Reymond. Nas franjas do debate científico
do final do século XVIII, estes cientistas se debruçavam sobre diferentes estudos do mundo
natural sobre as quais desenvolviam experiências extensivas a fim de compreender questões
relacionados com o corpo humano, com a vida orgânica e com a descrição dos processos
fisiológicos. Tais cientistas mantinham um compromisso com a pesquisa experimental,
representando tanto o ethos quanto as práticas instrumentais dos modernos laboratórios de
pesquisa na Europa. A relação de Nietzsche com estes cientistas remonta o interesse do filósofo
sobre a fisiologia, bem como sobre seu “estudo das estruturas de dominação”. Este último
interesse também foi acoplado a duas outras tarefas: uma descrição da epistemologia que
deveria ser centrada no afeto e no instinto e, a mais importante, uma compreensão dos valores
morais em termos de "valores naturalistas", visando a uma "naturalização da moralidade". Este
interesse de Nietzsche sugere que sua principal preocupação não recaia somente sobre questões
da metafísica da cultura, da arte e da existência humana, que, por vezes, são atribuídos ao seu
trabalho.
É interessante reparar, como bem fez Regiane Lorenzetti Collares17, que esse
naturalismo fisiológico em Nietzsche deve ser interpretado, ainda, como uma reação “bem-
humorada” ao idealismo alemão. Conforme a autora, a partir de seu segundo período, Nietzsche
passou a relacionar o espírito humano a uma “força digestiva” que justifica e fundamenta nossas
ideias. Com essa preposição, Nietzsche escarneceu os espíritos idealistas que “constipam” o
corpo, que dificultam sua digestão por serem muito pesados. As questões sobre o
processamento orgânico se tornam metáforas recorrentes nos escritos de Nietzsche que, cada
vez mais próximo das ciências naturais, passa a relacionar a filosofia à digestão em suas críticas
à tradição filosófica e à religião. Por exemplo, observa Collares (2012), Nietzsche vê a ascese
do budismo como “decorrente de uma excessiva alimentação de arroz entre os indianos,
provocando uma espécie de amolecimento das vísceras. Já o cristianismo é comparado à
cachaça:
O que o espírito alemão poderia ser, quem já não teve seus pensamentos melancólicos
a respeito disso! Mas esse povo se imbeciliza voluntariamente há quase mil anos: em
nenhum outro lugar se abusou tão viciosamente dos dois grandes narcóticos europeus,
o álcool e o cristianismo” (NIETZSCHE. CI VIII, §2).

17
COLLARES, Regiane Lorenzetti. A digestão do idealismo alemão pelo pensamento de Nietzsche. Estudos
Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-64, jan./jun. 2012.
32

Ou ainda: “A nobreza alemã está quase ausente na história da cultura elevada: adivinha-
se a razão...cristianismo, álcool – os dois grandes meios de corrupção” (AC §60). Collares
(2012) refere-se a um “metabolismo do idealismo” presente em Ecce Homo, onde Nietzsche
denota a “digestão” do movimento idealista alemão que, em certo grau, constitui sua
formulação filosófica de uma fisiologia da arte. Não raro, o autor utiliza expressões como
intestino, alimentação, estômago em sua crítica ao idealismo; expressões que não são arguidas
ao acaso, mas que expõem na ordem daquilo que possa preservar a vitalidade orgânica que
funde corpo e pensamento. O filósofo alemão utiliza o conceito décadence para indicar uma
forma de “doença” que atinge principalmente a modernidade, sendo que esta seria, em rigor,
uma decadência cultural. A esse respeito, escreve: “A partir da ótica do doente ver conceitos e
valores mais saudáveis [...] esse foi meu exercício mais longo, a minha verdadeira experiência”
(EH, “por que sou tão sábio”, §1).
Para Nietzsche, portanto, o fio condutor do acesso aos fenômenos se dá pela expressão
da Vontade de Potência, sendo essa encerrada no jogo de impulsos do corpo, uma atividade
corporalizada que “julga ser a indigesta atmosfera idealista da cultura moderna” - não só
presente na filosofia, mas também na moral, na arte, na política, na religião e na ciência de seu
tempo. Em meados da década de 1880, a doutrina da Vontade de Potência se torna um problema
de fundamentos psicológicos e, sobremaneira, fisiológicos. Em Além do bem e do mal,
Nietzsche sugere que na Vontade de Potência “todas as funções orgânicas (autorregulação,
assimilação, nutrição, excreção e metabolismo) ainda estão sinteticamente ligadas”, de modo
que esta doutrina, à medida que se torna superficialmente manifesta em nossas unidades,
realmente descreve "[o] mundo visto de dentro" (NIETZSCHE, BM, §36). Podemos, em nossa
vida diária, não prestar muita atenção às células e ao citoplasma e, em vez disso, ler o mundo
através da “realidade” de nossos “desejos e paixões” como um modelo explicativo disponível
para nós.
Mas o que está sempre em jogo para Nietzsche, no entanto, é a "realidade de nossos
impulsos" que preenche a lacuna, por assim dizer, entre nosso mundo cotidiano e sua inserção
no corpo, em nossa fisiologia, em nossos afetos e na matéria (NIETZSCHE, BM, § 36) Em
outras palavras, os impulsos não são simplesmente expressões de nossa existência volitiva, mas
sempre possuem uma facticidade fisiológica e, portanto, biológica. Falar de uma “vontade” de
potência, por outro lado, como o próprio Nietzsche teve que admitir, sempre implicou uma
“falsa reificação”.
33

Portanto, qualquer estudo filosófico que tome como análise a estética e a filosofia da
arte no pensamento de Nietzsche se depara com a projeção de um pensamento fisiológico
basilar, uma filosofia ancorada no corpo (lieb), na corporação e na corporeidade (lieben) da
arte, contraposta à estetica idealista tradicional. Como declara o filósofo em seu último ano de
lucidez no ensaio Contra Wagner: "Estética é nada além de um tipo de fisiologia
aplicada"(NIETZSCHE, CW). A tarefa de entender a estética nietzschiana escuda-se nos
processos orgânicos do ente e nos demanda a minuciosa compreensão do corpo enquanto uma
organização pulsional hierarquizada que obedece a lógica da Vontade de Potência - uma reunião
de impulsos que configuram o maior fio condutor interpretativo do homem (BARRENECHEA,
2011).

A recuperação do corpo como problema filosófico deriva da crítica de Nietzsche a


desvaloração dos valores supremos, de uma decadência da tradição filosófica com o idealismo,
e da denegação da noção platlônico-socrático-cristão ancorada na metafísica. Em Assim falou
Zaratustra, o filósofo denota que os valores vigentes estão fundamentados no mundo
metafísico, sendo necessária a supressão desta fundamentação para a criação de novos valores
inteiramente fisiológicos. “Foram os doentes e moribundos que desprezaram o corpo e terra, e
inventaram a coisas celestiais, e as gostas de sangue redentoras” (NIETZSCHE, ZA, “Dos
trasmundanos”) argumenta o andarilho de Nietzsche.

Conforme o filósofo alemão, uma vez destruídos os valores metafísicos, outras


apreciações valorativas surgiriam em algum momento e em algum lugar - caso contrário, o
niilismo se tornaria atuante. Não bastava, porém, evidenciar a origem humana dos valores, era
preciso ainda, levar em consideração o ponto de partida para avaliação. A quem interessa então
valorar desta ou daquela forma? Essa questão conduz à perspectiva de uma interpretação
realizada pelos próprios impulsos, pois além da origem há a vontade que introduz a depender
de que tipo de impulso ou complexo de impulsos interessa um determinado tipo de valor, isto
é, sua efetiva procedência.

Trazendo consigo os devidos anticorpos contra a decadência de sua época, Nietzsche


deteve-se na análise da mais insidiosa forma de décadence, a saber, aquela que está relacionada
à moral cristã: “[…] denomina-se o cristianismo a religião da compaixão – A compaixão está
em oposição às emoções tônicas, que elevam a energia vital: tem efeito depressivo”
(NIETZSCHE, AC, §7). Deste modo, Nietzsche se assumiu como um médico da civilização
decadente, e propôs um contra ideal a tradição idealista a partir da condenação da modernidade
34

cristã que, ao longo dos séculos, engessou e condenou os impulsos humanos. Como elucida
Frezzati Jr. (2018) ao dizer que “[…] o médico nietzschiano antagoniza-se àquele proposto pela
tradição filosófica: não é um médico de almas” (FREZZATI JR, 2018, p. 187).

Na concepção nietzschiana, a repartição entre corpo e alma, comum na tradição idealista


de Platão e retomada na modernidade por Descartes, é inexistente, e a possibilidade da alma se
inscreve na articulação de elementos como razão e subjetividade que são indissociados ao corpo
e inteiramente submetidos a ele. “É decisivo quanto ao destino do povo e da humanidade, que
se comece a cultura a partir do lugar correto - não a partir da "alma": o lugar correto é o corpo,
os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto segue daí...” (NIETZSCHE, CI IX, §47). Para o filósofo,
o corpo, seus instintos e funções gerais são a fonte da consciência, da vontade e da razão. A
vitalidade humana está, portanto, diretamente relacionada aos contornos e ao funcionamento de
toda a experiência humana comunicável e empírica.

No tocante aos animais, foi Descartes quem, com audácia admirável, primeiramente
ousou compreender o animal como máquina: toda a nossa fisiologia se empenha em
demonstrar essa tese. E coerentemente não situamos o homem à parte, como Descartes
ainda fez: o que hoje entendemos do homem vai exatamente até onde ele é entendido
como máquina. Antes se concedia ao homem o “livre arbítrio”, como dote vindo de
uma ordem mais elevada: hoje lhe tiramos até mesmo a vontade, no sentido de que
não se pode mais entender por isso uma faculdade. O velho termo “vontade” serve
apenas para designar uma resultante, uma espécie de reação individual que
necessariamente sucede a uma quantidade de estímulos, em parte contraditórios, em
parte harmoniosos; - a vontade não “atua” mais, não “move” mais... Outrora se via na
consciência do homem, no “espírito”, a prova de sua origem mais elevada, de sua
divindade (NIETZSCHE, AC, §14).

Longe de se deter em uma demolição epistemológica da verdade e da realidade,


Nietzsche fundamentou a própria epistemologia na fisiologia, argumentando que os processos
corporais limitam e direcionam a gramática, a lógica e a causalidade ─ os princípios subjacentes
pelos quais conhecemos o mundo. Nesse sentido, para Nietzsche, a arte consiste em uma
manifestação de instintos fisiológicos que se tornam conhecidos por meio da consciência,
argumentando que o próprio intelecto é apenas o sintoma e o instrumento de "uma pulsão
corporal".

Para Nietzsche, o corpo é o espaço de interpretação, uma vez que a consciência confunde
a unificação-simplificação do signo consciente com a unificação do caos pelo corpo,
promovendo um curto-circuito no corpo como jogo de unidade-pluralização das pulsões. Neste
sentido, superestimar o consciente seria considerar o signo como uma coisa em si.
Considerando essa questão, Nietzsche recoloca a consciência diante da pluralidade invisível do
35

corpo à qual ela está submetida. Nos Fragmentos Póstumos, Nietzsche deixa evidente que a
consciência não é autônoma, mas está submetida ao corpo e sua fisiologia:

Ponto de partida: do corpo e da fisiologia: por quê? - Nós obtemos a correta


representação da espécie de nossa unidade subjetiva, a saber, como governantes à testa
de uma comunidade, não como 'almas' ou 'forças vitais'; do mesmo modo, da
dependência desses governantes com relação aos governados e às condições da
hierarquia e divisão do trabalho como possibilitação simultaneamente das
singularidades e do todo. Do mesmo modo, como as unidades viventes
permanentemente surgem e morrem e como ao 'sujeito' não pertence eternidade; de
que também no obedecer e comandar se expressa o combate e de que à vida pertence
um cambiante determinar fronteiras de poder. Pertence às condições segundo as quais
pode haver governo certa incerteza em que o governante deve ser mantido a respeito
das disposições particulares e até das perturbações da comunidade. Em resumo:
obtemos uma apreciação também para o não-saber, o ver por alto, o simplificar, o
falsear, o perspectivo. (NIETZSCHE, FP, b, 1990).

1.3 “Quem tem de ser um criador sempre destrói”: Nietzsche contra os desprezadores
do corpo.

A questão do corpo como problema filosófico surge nos primeiros trabalhos de


Nietzsche como em O Nascimento da Tragédia, porém somente se estrutura nas obras de
maturidade do autor, isto é, em seu terceiro período, estabelecendo terreno para a fisiologia da
vontade de potência (MARTON, 2016). A publicação de Assim Falou Zaratustra, entre 1883 e
1885, assentou a recuperação do corpo nos escritos de Nietzsche como fio de interpretação da
vida humana, e de sua crítica aos “últimos homens” que desprezam a fisiologia. O "último
homem" é aquele que se tornou mera rotina: os valores morais da sociedade o moldaram. Nesse
sentido, o pensamento de Nietzsche está ligado à tarefa da transvaloração dos valores, uma vez
que deve haver uma mudança de tais valores. A esse respeito, escreve o filósofo: “Mudanças
de valores – isso é mudança nos criadores. Quem tem de ser um criador sempre destrói” (ZA,
“Das mil metas e uma só meta”). Portanto, na mudança de criadores, há também mudança de
valores. Para isso seria necessária uma crítica à compreensão platônico-socrático-cristã.

Para contrapor à ideia do último homem, Nietzsche propõe a figura do filósofo


legislador. Mediante a figura de tais filósofos, Nietzsche pretende, em nosso entender, não
apenas destronar as referências valorativas cardeais de nossa cultura, mas também acrescentar
à dimensão teórico-especulativa de sua filosofia uma face eminentemente educacional, como
atividade de modelagem e cultivo de um novo tipo cultural de homem – a tais filósofos caberia,
portanto, a hercúlea tarefa de instituir novas tábuas de valor, explorando, de resto, novos rumos
para a experiência do homem consigo mesmo e com a humanidade de modo geral. Para tanto,
36

seria preciso uma colisão de consciência para que o homem se coloque no palco da existência
como um legislador e comandante de seu próprio destino. O que equivale a dizer que os valores
tradicionais precisam ser destronados a partir de uma guerra de consciência para que surjam os
novos homens do porvir.

Salta aos olhos dos leitores atentos que esses homens do porvir são para Nietzsche uma
tipologia conforme a qual há diversas composições de forças entre os indivíduos, assim como
ocorre no interior de cada um conforme a dinâmica vital, ora forte ora fraco. Pois esses “novos”
homens não devem se abster dessa dinâmica natural do vir-a-ser, uma vez que os filósofos
legisladores seriam justamente aqueles que não se contrapõem a essa dinâmica, quer dizer, ao
vaivém da potência. Pois o filósofo legislador é aquele que conclui, por assim dizer, a terceira
fase da transvaloração dos valores, ou seja, cabe a eles a criação dos novos valores,
consequentemente, eles são um novo tipo cultural que não se caracteriza como forte ou fraco.
A esse respeito Nietzsche escreve:

Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem “assim deve
ser”, eles determinam o para onde? E para quê? do ser humano, e nisso têm a seu
dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os
subjugadores do passado – estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que é e foi
torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. Seu “conhecer” é criar, seu
criar é legislar, sua vontade de verdade é – Vontade de Potência. – Existem hoje tais
filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos?... (BM, §
211).
Esse conhecer, criar e legislar, seria para o filósofo alemão, uma vontade de verdade 18,
uma criação artificial ou uma ficção útil. A criação dos filósofos legisladores não tem a
pretensão de se tornar um ideal, mas um direcionamento do “para onde?” Ou do “para que?”
do homem. Por isso, há uma utilidade nessa vontade de verdade, ao contrário de ser apenas um
ideal, uma crença ou um preconceito moral. Essa criação seria uma autossuperação dos
trabalhadores filosóficos que passariam, então, a comandar seus próprios destinos, quer dizer,

18
Essa vontade de verdade é oposta àquela criticada por Nietzsche no fragmento 344 de A Gaia Ciência, onde
essa noção é entendida como um ideal. Após analisar a crítica feita por Nietzsche à vontade de verdade, bem
como ao impulso ao conhecimento, ao que nos parece, a tradição filosófica se deixa caracterizar pela falta de
cautela crítica, já que toma por verdade objetiva e transparente o que não passaria de um esquema humano de
simplificação e formulação dos acontecimentos. Os filósofos dogmáticos, por sua vez, ao serem guiados pela
vontade de não querer enganar, nem sequer a si mesmos, teriam veiculado um preconceito moral, supondo que
querer enganar seria uma imperfeição, uma carência e, por conseguinte, que a verdade teria mais valor que a
falsidade. Nesse sentido Nietzsche escreve: “Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo
o resto só tem um valor de segunda ordem. – Essa incondicionada vontade de verdade: o que é ela? É a vontade
de não se deixar enganar?” Cf. A Gaia Ciência, § 344. Essa vontade de verdade seria, no entender do filósofo,
uma crença ou um preconceito moral.
37

eles são opostos ao homem da modernidade que precisa de um ideal de felicidade, uma espécie
de autoengano para se perceber como homem.

Essa forma de ver o filósofo legislador não corresponde a indivíduos despóticos,


militares, ditadores ou precursores de guerras. Esse tipo cultural de homem deve ser avaliador,
medidor e criador de novas possibilidades de vida e de novos sentidos para a humanidade. Cabe
a ele ser um legislador cultural que consiste em fecundar e estimular consciências, o que não
significa propor uma elevação pela força física ou bélica. É nesse sentido que a figura do
filósofo legislador instaura a noção da transvaloração de todos os valores, já que estes visam à
alteração radical de todos os parâmetros axiológicos do Ocidente. Todavia, é preciso destacar
que Nietzsche não propõe um novo modelo de estado, mas de um novo tipo cultural de homem,
ou seja, sua proposta é essencialmente educativa, ou melhor, propostas pedagógicas culturais,
ao contrário do que se percebe com a nivelação da modernidade, isto é, o último homem.

No processo nivelador, o ideal de igualdade e liberdade nada mais é do que uma


autoridade infundida no corpo social para unificação orgânica entre as diferentes esferas. O que
temos é um despotismo camuflado e renovado, em suma, o poder de governar está restrito a
poucos. O mando não pode ser o resultado de uma simples preponderância, ele deve ter o ideal
do filósofo legislador nietzschiano, ou seja, criar condições e principalmente um comando de
si mesmo. Esse comando não depende da força, mas da potência que organiza a partir do agôn19
como era feito entre os gregos. Nesse sentido, o princípio de organização não é de dominação,
mas do poder depurado de toda vontade de dominar. Por isso, Nietzsche evidencia que a meta
do filósofo legislador não é dominar o outro, mas a si próprio. A esse respeito, escreve o
filósofo:

Um movimento é incondicional: a nivelação da humanidade, grandes formigueiros


etc.

O outro movimento: meu movimento: é, ao contrário, o aguçamento de todos os


antagonismos e abismos, eliminação de igualdade, a criação de Ultra-Poderosos.

Aquele gera o último homem. Meu movimento, o além-do-homem.

A meta não é, de modo algum, compreender os últimos como os senhores dos


primeiros, mas duas espécies devem subsistir uma ao lado da outra – possivelmente
separadas. (FP. 7 [21], primavera-verão de 1883. 2005, p. 24).

19
O potencial autorregulador do agôn é uma consequência intrínseca da própria necessidade e virtude da
competição. O homem livre só poderia existir na sociedade grega se fosse possível contrapor-lhe a outros
homens. Essa disputa das capacidades competitivas de todos significaria a elevação do agôn, a alma dinâmica da
própria polis.
38

É importante notar que o filósofo alemão não defende a hegemonia de um sobre o outro,
mas enfatiza a diferença como pressuposto essencial para o modelo oposto ao da modernidade
com seu ideal de igualdade. O modelo pensado por Nietzsche se caracteriza como uma versão
ampliada do corpo humano, onde não existe soberania, mas alternância de poder. Não há, nesse
caso, subjugadores, apenas a luta entre os diferentes.

Nesse sentido, em contraste com os ideais platônicos e cristãos, que vêem este mundo
como uma mera sombra totalmente imperfeita do mundo real, o personagem Zaratustra, alter
ego de Nietzsche, ama este mundo e a vida. É emblemático que Zaratustra saia da caverna com
o conhecimento da verdade, não com o conhecimento de que a verdade é impossível de
alcançar. Nietzsche vê a raça humana como um estágio na evolução dos animais para o "Além-
do-homem", uma corda (uma ponte?) Entre os animais e o Além-do=homem.20 Nietzsche não
fornece uma definição científica desta criatura, em particular não sabemos se se refere a uma
nova espécie biológica, a uma máquina ou simplesmente ao equivalente da iluminação budista.
Frases como "O homem é algo que deve ser superado" não deixam bem claro se esse Além-do-
homem será obra de humanos capazes de transcender as limitações das gerações atuais ou obra
de evolução biológica. Frases como "Todos os seres até agora criaram algo além de si mesmos"
são provavelmente apenas uma deturpação da teoria da evolução de Darwin (que era uma coisa
totalmente nova na época de Nietzsche): obviamente, não é o verme que cria outra espécie, mas
a combinação de variações e seleção ao longo de milhões de anos.

20
Na terceira seção do Prólogo de Zaraustra, escreve Nietzsche sobre o Além-do-homem: “Quando Zaratustra
chegou à cidade mais próxima, na margem da floresta, ali encontrou muita gente reunida na praça; pois fora
anunciado que um equilibrista5 andaria na corda. E Zaratustra assim falou à gente: Eu vos ensino o Além-do-
homem .6 O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora,
criaram algo acima de si próprios: e vós quereis ser a vazante dessa grande maré, e antes retroceder ao animal do
que superar o homem? Que é o macaco para o homem? Uma risada, ou dolorosa vergonha. Exatamente isso deve
o homem ser para o Além-do-homem: uma risada, ou dolorosa vergonha. Fizestes o caminho do verme ao
homem, e muito, em vós, ainda é verme. Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que
qualquer macaco.7 O mais sábio entre vós é apenas discrepância e mistura de planta e fantasma. Mas digo eu que
vos deveis tornar fantasmas ou plantas? Vede, eu vos ensino o Além-do-homem! O Além-do-homem é o sentido
da terra. Que a vossa vontade diga: o além-do-homem seja o sentido da terra! Eu vos imploro, irmãos,
permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores,
saibam eles ou não. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra
está cansada: que partam, então! Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus morreu, e com isso
morreram também os ofensores. Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as
entranhas do inescrutável do que o sentido da terra! Uma vez a alma olhava com desprezo para o corpo: e esse
desdém era o que havia de maior: — ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e
à terra. Oh, essa alma mesma era ainda magra, horrível e faminta: e a crueldade era a volúpia dessa alma! Mas
também vós, irmãos, dizei-me: o que conta vosso corpo sobre vossa alma? Não é ela pobreza, imundície e
lamentável satisfação? Na verdade, um rio imundo é o homem. É preciso ser um oceano para acolher um rio
imundo sem se tornar impuro. Vede, eu vos ensino o Além-do-homem: ele é este oceano, nele pode afundar o
vosso grande desprezo” (NIETZSCHE, ZA, Prólogo, §3).
39

Depois de retornar à sua caverna na montanha por alguns anos, Zaratustra tem um sonho
que ele interpreta como uma mensagem de que seu ensino está sendo distorcido. Ele se junta a
seus seguidores e lhes fala sobre a "Vontade de Potência". Schopenhauer pensava que tudo o
que existe tem e é movido pela “vontade”, seja uma pedra ou um gênio científico. Essa é a
vontade de viver. Mas Nietzsche pensa que existe uma força mais poderosa em ação,
particularmente na natureza humana: a "Vontade de Potência". Zaratustra é dilacerado por
dúvidas sobre sua filosofia, pois percebe que está sendo muito racional como Apolo e não
suficientemente irracional como Dioniso. Tentando recuperar esse equilíbrio, ele encontra
consolo em cantar e dançar. Um sonho estragado perturba sua paz de espírito e ele encontra
alguém que o lembra de que a vida parece não ter sentido. Zaratustra duvida que seu "além-do-
homem" seja mais um projeto sem sentido e se ele mesmo seja um revolucionário ou
simplesmente mais um intelectual da velha tradição cultural. Uma série de encontros aprofunda
ainda mais seu estado de incerteza. Contudo, afirma Nietzsche na boca de Zaratustra: “Vede,
eu vos ensino o Além-do-homem! O Além-do-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade
diga: o Além-do-homem seja o sentido da terra” (NIETZSCHE, ZA, Prólogo, §3)21. Dizer que
o além-do-homem é o sentido da terra significa dizer que o homem superou a decadência
fisiológica de milênios e pode ir além do niilismo22.

Essa nova tipologia se contrapõe aos trabalhadores filosóficos ou aos homens científicos
que se encontra em toda a história da filosofia, pois, a natureza dionisíaca é o elemento
primordial para o ato da criação, já que os novos filósofos precisam de algum modo, da
autossuperação. Nesse sentido, Nietzsche busca a educação clássica como exemplo dessa
natureza dionisíaca com o intuito de demonstrar um Sim à vida. A esse respeito, escreve o
filósofo: “pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, se
expressa o fato fundamental do instinto helênico – sua ‘vontade de vida’” (NIETZSCHE. CI X,
§4). Essa vontade de vida encontra-se justamente com os filósofos legisladores. Esse legislador
que é denominado também de além-do-homem valoriza o corpo em detrimento da consciência,
pois esse pensamento é notável na filosofia nietzschiana. Nesse sentido, os impulsos devem
tomar a palavra e não a consciência ou o pensamento como faz o homem moderno e toda a
tradição filosófica. Nesse caso, o corpo não é mais a parte fundamental para a interpretação do
mundo, e sim a consciência. Mas a filosofia nietzschiana desmistifica essa compreensão

21
A tradução utilizada para esta citação traduz o conceito Übermenssch para Além-do-homem , porém, a
tradução utilizada nesta tese é “além-do-homem...
22
O conceito niilismo será discutido no segundo capítulo dessa tese.
40

admitindo que o corpo seja a grande razão das relações complexas com a realidade; é o corpo
que interpreta o mundo, portanto, ele é superior à consciência. A esse respeito, lê-se:
O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade unânime, um estado de guerra e paz,
um rebanho e o seu pastor. Essa pequena razão a que dás o nome de teu espírito, ó
meu irmão, é apenas um instrumento do teu corpo, e um bem pequeno instrumento,
um brinquedo da tua grande razão. (NIETZSCHE. ZA, “dos desprezadores do
corpo”).

Falar da criação de novos valores e da valorização do corpo, necessariamente falamos


dos filósofos legisladores, ou do übermensch. Pois a criação de novos valores que depende da
atividade artística, mas que não mascara o vir-a-ser seria a meta desse tipo de homem. Porém,
essa criação não depende de um ideal, mas do próprio excesso de força, ou seja, a partir de si
mesmo. Por isso, a criação na perspectiva nietzschiana deve ser pensada sempre de forma
dionisíaco-apolínea, quer dizer, a transformação do excesso de força em beleza. Nesse sentido,
esse novo tipo de homem se assemelha à natureza que mostra a sua beleza ingênua. Porém, por
trás dessa ingenuidade existe o vir-a-ser, ou seja, a força pulsionais da criação. A partir dessa
compreensão das forças pulsionais, Nietzsche elabora a crítica ao idealismo alemão.
A crítica de Nietzsche sobre o idealismo alemão recai sobre as ponderações de Kant e
Hegel acerca dos fenômenos. Sobre Kant, Nietzsche se apõe ao dualismo entre a aparência e a
manifestação do fenômeno, e em Hegel, à ontologia do absoluto que ele aponta como
decadente. O cerne desta crítica ao idealismo alemão está, portanto, no acesso a realidade dos
fenômenos, acesso este que para Nietzsche só se dá a partir da estética. Nesse sentido, o filósofo
alemão escreve: “Nosso intelecto, nossa vontade, e igualmente nossas sensações dependem de
nossas estimativas de valor, e essas correspondem a nossos impulsos e suas condições
existenciais. Nossos impulsos são redutíveis à vontade de potência” (NIETZSCHE, KSA
11.661, Nachlass/FP 40[61]). Esta teoria de Nietzsche ele chama de “doutrina perspectivística
dos afetos”. Como explica Bonaccini (2007) que, esteticamente, a vontade de potência
configura uma certa relação de forças que percebemos como a “realidade”, mas como as forças
em tensão mudam de lugar e de senhor, muda com elas nossa percepção, nossa perspectiva e
nossa realidade. Assim, somente uma certa estética pode capturar o jogo de forças da vontade
de potência que constitui a realidade e a vida.
41

2 VONTADE DE POTÊNCIA: A SUPERAÇÃO DA PSICOLOGIA NEGATIVA

Neste capítulo, pretendemos fazer um estudo sobre os conceitos de vontade de potência


e de estética fisiológica, realizando um recuo histórico na elaboração destes argumentos para
depois realizar uma incursão nos intérpretes desses conceitos. Para alcançarmos uma
compreensão sobre a fisiopsicologia, é necessário entender a discussão sobre psicologia
negativa em Nietzsche, também chamada pelo autor de psicologia do sacerdote. Essa discussão
perpassa a construção da oposição Credor/Devedor, estabelecida na Segunda Dissertação de
Genealogia da Moral. A fim de fundamentar esta incursão utilizaremos ainda da discussão
proposta pelos autores Felix Guattari e Deleuze, em Anti-Édipo.

2.1 “Eu ensino aos homens uma nova vontade”: a elaboração do conceito de Vontade de
Potência.

O conceito de vontade de potência é apresentado por Nietzsche pela primeira vez em


sua obra publicada Assim Falou Zaratustra. Na seção “Das mil metas e uma só meta”, diz o
andarilho: “Uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada povo. Olha: é a tábua de suas
superações; olha, é a voz de sua Vontade de Potência” (NIETZSCHE, ZA, “Das mil metas e
uma só meta”). O amiúde desta seção está na criação de um valor singular: as mil metas a qual
se refere Nietzsche são os diversos valores que existem e que guiam as ações dos indivíduos em
coletividade. Zaratustra observa, em suas andanças pela terra, que para o homem fugir de um
moral de rebanho e do ressentimento que pesa a consciência, é necessário que crie uma única
meta em sua radical singularidade, a partir da voz de sua “vontade de potência”, isto é, de seu
corpo e da pluralidade de forças que existem no corpo. A partir de então, esse conceito é sempre
identificado numa relação com o corpo. Como explana Deleuze em sua interpretação do
conceito:
O que é o corpo? Nós não o definimos dizendo que é um campo de forças, um meio
provedor disputado por uma pluralidade de forças. Com efeito, não há ‘meio’, não há
campo de forças ou de batalhas. Não à qualidade de realidade, toda realidade já é
qualidade de forças. Nada mais do que quantidade de forças ‘em relação de tensão’
umas com as outras, toda força está em relação com outras, quer para obedecer, quer
para mandar. O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e forças
dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social,
político (DELEUZE. 2001, p, 21).

Mas é com a elaboração do Crepúsculo dos Ídolos que Nietzsche redimensiona seu
projeto na elaboração do conceito de vontade de potência e o transforma em transvaloração de
42

todos os valores. Nesse sentido, a nossa discussão do conceito de vontade de potência sempre
estará relacionada aos conceitos de niilismo, psicologia do sacerdote, superação da décadence
e por fim, como uma fisiopsicologia. É consenso que a doutrina da vontade de potência se
tornou o conceito mais controverso entre os estudiosos de Nietzsche. O filósofo alemão inicia
sua empreitada de elaboração dessa doutrina na obra Assim Falou Zaratustra, mas é
desenvolvida em todo seu itinerário intelectual após essa obra. Contudo, a vontade de potência
passa a adquirir um sentido mais amplo sobretudo em Além do bem e do mal, quando
relacionado ao niilismo e à psicologia.
Nietzsche descreve três etapas em que ocorre o niilismo enquanto estado psicológico. O
fragmento em que se identifica tal abordagem é intitulado como “Queda dos valores
cosmológicos” e é dividido em duas seções. Busca-se analisar esse fragmento por partes:

O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer, primeiramente, quando tivermos


procurado em todo acontecer por um “sentido” que não está nele: de modo que afinal
aquele que procura perde o ânimo. Niilismo é então o tomar-consciência do longo
desperdício de força, o tormento do “em vão”, a insegurança, a falta de ocasião para
se recrear de algum modo, de ainda repousar sobre algo – a vergonha de si mesmo,
como quem tivesse enganado por demasiado tempo [...] agora se concebe que com o
vir-a-ser nada é alvejado, nada é alcançado... Portanto, a desilusão sobre uma pretensa
finalidade do vir-a-ser como causa do niilismo (NIETZSCHE. Obras incompletas,
“Sobre o niilismo e o eterno retorno”, coleção Os Pensadores, fragmento §12. 1884-
88. p.388).

Conforme se percebe no trecho acima, Nietzsche mostra que o homem buscou um


sentido no devir de todas as coisas, e de repente toma consciência de que todo o esforço
empenhado na busca desse sentido foi “em vão”. Não há uma meta a ser atingida. Todo o
processo do acontecer das coisas tende apenas para o nada. Não existe um alvo. E essa tomada
de consciência revela para o homem que ele foi enganado por demasiado tempo; o que vem a
causar uma grande vergonha. Afinal, tudo parecia, segundo a razão, ter um propósito, uma
ordem e, no entanto, todo empreendimento, todo esforço e toda atividade visando alcançar esse
sentido perde o seu valor. É nesse momento que o homem, pela primeira vez, vai ao fundo. E
ir a busca de um sentido é ir em busca de um fundamento.

O niilismo como estado psicológico ocorre, em segundo lugar, quando se tiver


colocado uma totalidade, uma sistematização, ou mesmo uma organização, em todo
acontecer e debaixo de todo acontecer [...] Uma espécie de unidade, alguma forma de
“monismo”: e em decorrência dessa crença o homem em profundo sentimento de
conexão e dependência diante de um todo infinitamente superior a ele [...] Mas vede,
não há um tal universal! No fundo, o homem perdeu a crença em seu valor, quando
através dele não atua um todo infinitamente valioso: isto é, ele concebeu um tal todo,
para poder acreditar em seu valor (NIETZSCHE, Obras incompletas, “Sobre o
niilismo e o eterno retorno”, coleção Os Pensadores, fragmento §12. 1884-88. p.388).
43

O niilismo aqui ocorre quando o homem crê em uma totalidade, em uma unidade
sistematizada e organizada que sustenta todo o devir. Essa crença, em uma espécie de unidade
de um Ser, faz com que o homem crie para com ele um “profundo sentimento de conexão e
dependência”, que faz com que a confiança no valor de si mesmo só se sustente pela atuação
dessa divindade nele. Essa divindade pode ser descrita como uma superioridade infinita, na qual
foi depositada a crença na fundamentação de todos os valores. O problema, para Nietzsche, é
justamente o fato de o homem depender dessa universalidade altamente valorizada para poder
acreditar em seu próprio valor. Mais uma vez se tem o sentimento de fracasso perante a vida,
como diz Heidegger (2007b, p. 48): “se a crença em uma unidade que atua através do todo é
frustrada, então se percebe que não se tende para nada com todo agir e com todo atuar (‘devir’)”.

Tendo noção dessas duas compreensões: a) “de que com o vir-a-ser nada deve ser
alvejado” e b) “de que sob todo vir-a-ser não reina nenhuma grande unidade em que o indivíduo
pode submergir totalmente como em um elemento de supremo valor”23; o homem enxerga como
“escapatória” a criação de um além-mundo, suprimindo e condenando este do vir a ser como
ilusório e dando àquele o status de verdadeiro. No entanto, o homem descobre que esse “mundo
verdadeiro” foi criado “somente por necessidades psicológicas” e que, consequentemente, não
possui nenhum direito sobre ele. Segundo Nietzsche, surge assim, portanto, a última forma do
niilismo que é a “descrença num mundo metafísico”. Essa decepção força o homem a assumir
que só existe o mundo do vir a ser enquanto verdadeiro. O que se torna difícil para ele, uma vez
que não consegue suportar a transitoriedade deste mundo que agora tem a sua negação
impossibilitada.

A criação de um mundo suprassensível após o homem perceber que suas tentativas ao


fundamentá-lo (seja ela com a noção de finalidade ou de unidade) foram frustradas, é uma
espécie de ato de desespero. O homem cria um “mundo verdadeiro” para pôr nele um valor
assegurando em seu próprio valor. É criando esse mundo transcendente que se pode suportar o
mundo de transitoriedade. Esse processo que perpassa toda história do pensamento ocidental
tem o seu marco na filosofia socrático/platônica que cria a dicotomia fundamental da metafísica
tradicional. São eles que postulam um mundo ideal, transcendente, onde todos os valores
existem “em si”; um mundo infinitamente superior ao mundo terreno, considerado o mundo
aparente.

23
Cf. NIETZSCHE. Obras incompletas, “Sobre o niilismo e o eterno retorno”, coleção Os Pensadores,
fragmento §12. 1884-88. p.431
44

O problema, segundo Nietzsche, ganha uma dimensão muito mais abrangente e perigosa
quando o cristianismo se apropria do mundo suprassensível de Platão e o configura como a
morada eterna de Deus. E o pior: esse lugar é prometido para os “bons” ao passo que o mundo
sensível nada mais é do que uma espécie de “vale das lamentações”, que deve ser encarado
apenas enquanto uma travessia dolorosa que tende para a bem-aventurança eterna e
transcendente. Eis o porquê que Nietzsche classifica, no “Prólogo” de Para além do bem e do
mal, o cristianismo como um “platonismo para o povo”. Se o homem não encontra os valores
“sentido”, “unidade”, “totalidade”, “meta” neste mundo do vir a ser, no mundo transcendente
eles existem. Mas o homem descobre que esse mundo é fictício e só foi criado por carecimentos
psicológicos. Quando esse mundo superior cai, torna-se necessário afirmar esse mundo do devir
como o único. Quais as consequências dessa terrível realidade? Heidegger (2007b, p. 50) diz
que:

Assim, surge um estado intermediário peculiar: 1. O mundo do devir, isto é, a vida


empreendida aqui e agora com suas regiões em constante alteração, não pode ser
negado como real. 2. Esse mundo mesmo que se mostra como único real, porém, não
possui inicialmente nem fito nem valor, e, por isso, não se pode suportá-lo. Não reina
simplesmente o sentimento de ausência de valor do real, mas reina também o
sentimento de perplexidade no interior daquilo que é unicamente real; falta a
intelecção do fundamento dessa situação e da possibilidade de sua superação.
(HEIDEGGER, 2007 b, p. 50).

Os estados psicológicos do niilismo acima explanados mostram que Nietzsche tenta dar
a orientação do movimento histórico-filosófico da metafísica tradicional que fundamentou toda
a história europeia. Os valores erigidos foram tragados pela realidade do devir:

- O que aconteceu, no fundo? O sentimento da ausência de valor foi alvejado, quando


se compreendeu que nem com o conceito “fim”, nem com o conceito “unidade”, nem
com o conceito “verdade” se pode interpretar o caráter global da existência. Com
isso, nada é alvejado e alcançado; falta a unidade abrangente na pluralidade do
acontecer: o caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso... não se tem
absolutamente mais nenhum fundamento para se persuadir de um verdadeiro mundo...
Em suma: as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, com as quais tínhamos imposto ao
mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós – e agora o mundo parece sem
valor... (Obras incompletas, “Sobre o niilismo e o eterno retorno”, coleção Os
Pensadores, fragmento §12. 1884-88. p.389).

Tendo em vista toda explanação acima, pode-se, inocentemente, cair no erro de acreditar
que todos esses estados psicológicos do niilismo se contradizem com a primeira noção
apresentada neste trabalho, acerca do que seja essencialmente o niilismo, ou seja, “o fato de os
valores supremos se desvalorizarem”. Todavia, afirma-se que para Nietzsche não existe apenas
uma forma de niilismo, mas sim diversas variantes, sendo aquela a sua principal e mais
45

devastadora. E aqui, mais uma vez recorre-se a Heidegger, que aborda esse suposto problema
de maneira riquíssima. Segundo o filósofo:

Niilismo e niilismo são coisas diferentes. Niilismo não é, em primeiro lugar, o


processo de desvalorização de todos os valores supremos, nem tampouco apenas a
retirada desses valores. A inserção desses valores no mundo já é niilismo. A
desvalorização dos valores não termina em um movimento no qual os valores vão se
tornando paulatinamente sem valor, tal como um riozinho que se perde na areia. O
niilismo consuma-se na retirada dos valores, no afastamento violento dos valores. O
que Nietzsche procura fazer é deixar claro para nós essa riqueza interna da essência
do niilismo ([HEIDEGGER, 2007 b, p. 59).

A criação de um mundo suprassensível, bem como a inserção de valores nele, como fez
Platão e os cristãos, é o que dá forma ao niilismo negativo. Para Nietzsche, essas são as duas
matrizes para essa espécie de niilismo que tem como característica principal a negação da vida
em nome de outra melhor; a negação desse mundo em prol de outro, onde os valores superiores
– Bem, Deus, Verdade – identificam-se ao Ser. Para o filósofo, a noção de Deus foi inventada
como antítese à vida justamente porque em Deus está a verdade, o Ser, o eterno e imutável, ao
passo que a vida é devir, é vir a ser e, por isso, é condenado a ser aparência, portanto, uma
mentira. O que faz com que o niilismo negativo aconteça é o que Nietzsche chama de “vontade
de verdade”, ou seja, uma necessidade psicológica do homem em crer que existe algo de
absoluto e, assim sendo, a verdade se identifica com o divino. Essa “vontade de verdade” foi a
base de toda filosofia até Nietzsche, segundo ele mesmo. O “Filósofo da suspeita” denuncia
esses niilistas negativos pela boca do seu Zaratustra:

Sofrimento e impotência – foi o que criaram todos os trasmundanos; e a breve loucura


da felicidade, que apenas o ser mais sofredor experimenta [...] Foram os doentes e
moribundos que desprezaram corpo e terra e inventaram as coisas celestiais e as gotas
de sangue redentoras; mas também esses doces, sombrios venenos eles do corpo e da
terra! Queriam escapar à sua miséria, e as estrelas lhes eram distantes demais. Então
suspiraram: ‘oh, se houvesse caminhos celestes, para nos esgueirarmos em outro ser
e outra sorte! – e inventaram suas artimanhas e sangrentas poções (NIETZSCHE. ZA,
“Dos trasmundanos”).

A crítica de Nietzsche a esses criadores de Além-mundos é duríssima, porque, para ele,


aí reside o problema da humanidade depreciadora da vida. Principalmente os cristãos, que
acabaram por divinizar a morte, entendendo-a como uma cura para a doença que é a vida. Nesse
diapasão, Nietzsche abomina o símbolo do “Deus na Cruz”, que é um convite a todos a se
redimirem da vida, e em decorrência disso, renega também todos os símbolos cristãos: o que
seriam essas “artimanhas e sangrentas poções” inventadas por esses niilistas – no texto acima
– senão a sagrada comunhão dos católicos que creem na transubstanciação (transformação
milagrosa) do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo Redentor? Mas agora esses niilistas
negativos se deparam com o mais terrível dos acontecimentos: a morte de Deus. Com isso,
46

todos os valores supremos que se fundamentavam nele, todas as certezas metafísicas e também
morais se tornam, por sua vez, decadentes. Esse acontecimento abre a possibilidade para mais
dois tipos de niilismo. Mas como Deus morreu? Como Nietzsche pôde fazer tal anúncio? Qual
o fundamento para tal constatação?

A primeira vez em que Nietzsche anuncia a Morte de Deus é no aforismo 125 de A Gaia
Ciência. Esse anúncio é feito pela boca de um louco que se encontra em praça pública em plena
luz do dia com uma lanterna acesa nas mãos procurando por Deus. Transcrever-se-á esse
aforismo em sua completude pelo fato dele mostrar de forma clara todo o processo niilista que
resulta desse fato anunciado, além de sua forma poética extremamente bela e forte:

O homem louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:
“Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que
não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está
perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está
se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e
riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os
com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos –
vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos
beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que
fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos
movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás,
para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e
‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na
pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não
temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses
apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos
consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo
até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse
sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos
sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós?
Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele?
Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato,
a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou
o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em
silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é
ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou
ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das
estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para
serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua
constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o
homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem
aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são
ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE. GC,
§125).

Mais do que querer dizer que Deus não existe, Nietzsche se preocupa em mostrar por
que veio a existir e depois de muito tempo desapareceu a crença na existência de Deus. Mas é
principalmente com a Morte de Deus que se constata de maneira latente o niilismo da
47

modernidade. Esse fato, que Nietzsche considera um fato histórico, é a evidência de que a fé
em Deus e, consequentemente, as práticas sobre Ele erigidas, foram minadas e não possuem
mais uma razão de ser. Ou seja, é a constatação de que Deus se encontra ausente nas práticas e
nos pensamentos da sociedade ocidental. Com efeito, Deus estando morto, todos os valores
supremos, inclusive o seu próprio valor do homem, são dessacralizados. Não há nada mais de
sagrado em que se apoiar. Mas quem, efetivamente, matou Deus?

Nietzsche responde, por meio do louco, que foram os seres humanos, “vocês e eu! Nós
todos somos seus assassinos!”. Todavia, temos aqui como principal culpado, o homem
moderno. Contudo, a partir da morte de Deus, o corpo não tem mais culpa. Sim, é sobre o
homem moderno que recai toda responsabilidade pela perda da confiança em Deus. No entanto,
Deus estando morto, o mundo suprassensível também se mostra sem força de atuação, não
restando, assim, mais nada em que o homem possa se apoiar e em que ele possa se direcionar.
Não há mais finalidade para a existência humana. Não há mais um final redentor,
extramundano.

A partir desse momento, abrem-se mais duas possibilidades de niilismo, decorrentes do


niilismo negativo, com as quais o homem se depara e necessita se pôr em uma de suas vivências.
São eles o niilismo passivo e o niilismo ativo. Ele pode se posicionar de forma negativa ou
positiva perante a vida, perante a realidade deste mundo como ele é, ou melhor, com o seu vir
a ser. Sem esperanças futuras em um mundo metafísico, o homem pode sentir-se sufocado pela
descoberta da ausência de sentido da vida, entrando na pior espécie de desespero – a paralisante
– acreditando que na vida não há nada de valor; assim, ele se torna um niilista passivo,
ressentido, cansado, desesperado (no sentido de sem esperança alguma). Por outro lado, ele
pode superar-se, transvalorar todos os valores, ver a vida como o valor maior; pode alegrar-se,
amar a vida dionisiacamente, ser um niilista ativo, fazendo sua vontade atingir o máximo grau
de potência, fazendo com que aquilo que até então parecia horrível, aterrorizante, transforme-
se em plenitude. Nesse sentido, plenitude seria a expansão da força e da vontade em atividade
artística e de liberdade de si mesmo.

Ainda na perspectiva da superação do niilismo, faz-se necessário a compreensão do


projeto nietzschiano da transvaloração de todos os valores. Falar da superação dos valores em
Nietzsche deve-se tomar como ponto de partida o Assim falou Zaratustra. Nesse texto, encontram-
se argumentos que indicam a destruição dos valores, a ideia do amor pela terra e a glorificação da
vida, pressupostos indispensáveis na transvaloração de todos os valores.
48

Fica evidente ainda no prólogo que Zaratustra passou por uma transformação. Durante
uma década a personagem principal se isolou na solidão da caverna, onde se deu tal processo.
Assim nos relata seu autor: “Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão,
sem deles se cansar. No fim, contudo, seu coração mudou”. (Assim falou Zaratustra, prólogo,
1º seção). A transformação de Zaratustra nos vem à luz como um prelúdio ao grande anúncio
da morte de Deus. O primeiro interlocutor de Zaratustra percebe sua transformação e exclama:
Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-
se Zaratustra; mas está mudado [...] mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança,
Zaratustra, despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entrem os que dormem? Mal
sabia o interlocutor de Zaratustra que este tinha uma grande revelação a fazer: “será
possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?”.
(Assim falou Zaratustra, prólogo, 2º seção).
O anúncio de Zaratustra causaria uma completa reviravolta na cultura ocidental. Sua
retirada na solidão da caverna foi um apresto para o momento crucial na sua vida que só
aconteceria após o anúncio da morte de Deus: “a transvaloração dos valores”. Se os valores
vigentes estão fundamentados no mundo metafísico, era preciso então suprimir a sua
fundamentação, e a partir dessa tarefa corrosiva, criar os novos valores. Uma vez destruídos os
valores metafísicos, outros, humanos, demasiado humanos, surgiriam em algum momento e em
algum lugar. Pois a morte de Deus é que permitirá Nietzsche conceber o projeto mais importante
da sua vida.
A proposta de Zaratustra é dar a humanidade um duplo presente: um novo amor e um
novo desprezo, ou seja, o além-do-homem e denunciar o “último homem”. Este último é aquele
que assume o mundo transcendente e aceita a interpretação cristã do mundo como única e
verdadeira, além de representar o rebaixamento de valor do ser humano. O além-do-homem, ao
contrário, é aquele que aceita a morte de Deus e consequentemente a morte do homem enquanto
criatura frente ao criador. É esse que viabilizaria a criação de novos valores segundo Nietzsche.
Os valores vigentes, quem os criou foi o último homem. Esses valores desprezam a vida,
o corpo e a terra. Segundo o filósofo alemão, é preciso combatê-los para que surjam outros.
Com a criação dos valores metafísicos, a alma foi forjada para arruinar o corpo. Inventou-se
um “mundo verdadeiro”, fabulou a noção de Deus como “a máxima objeção contra a
existência”. 24
Essa é a denúncia que Nietzsche emprega como pressuposto para a criação de
novos valores, pois assim escreve: “O conceito de ‘Deus’ foi até agora a máxima objeção contra
a existência... Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade em Deus: com isto somente
redimimos o mundo”. (NIETZSCHE. CI VI, §8). Tornando-se criatura e criador de si mesmo,
o além-do-homem prezaria os valores em harmonia com a terra, com a vida e com o corpo.

24
Cf. Ecce Homo, Por que sou um destino, § 7.
49

Após o anúncio da morte de Deus com seu duplo sentido, Zaratustra acredita ter feito a
travessia do niilismo, - tarefa que só seria possível para o além-do-homem. No entanto,
Zaratustra encontra seu grande adversário, o adivinho. Essa figura funesta que representa o
niilismo e prega a esterilidade, ao contrário de Zaratustra. Enquanto este fala da abundância, do
excesso, do transbordamento e desce da montanha para trazer fogo aos homens ao mesmo
tempo em que quer ir à profundeza para sair fortalecido25, o adivinho prega o grande cansaço e
espera ser tragado pela profundeza com seu pensamento niilista.
É possível supor que Zaratustra outrora acreditasse em Deus e fora niilista, pois, no seu
percurso da descida da montanha, ele encontrou o ancião que lhe diz: “Não me é desconhecido,
este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado”.
(NIETZSCHE. ZA, prólogo, §2). A mudança da qual passou Zaratustra, pode ser entendida
como forma de demonstrar que é possível dar um novo sentido ao homem, ou seja, o sentido
do além-do-homem.
O projeto da transvaloração de todos os valores consiste em suprimir o solo a partir do
qual os valores até então foram engendrados. Nesse sentido, Nietzsche critica a metafísica, a
religião e a moral. Derrubar os ídolos, demolir os alicerces e acabar com os fundamentos dos
valores é o passo fundamental para realização do seu desígnio. Como diz o próprio filósofo:
“Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, faz parte de meu ofício”.
(NIETZSCHE. EH, prólogo §2).
Salta aos olhos à leitura do Assim falou Zaratustra aqueles a quem a personagem se
opõe, a saber, o cristianismo e o platonismo. A oposição ao cristianismo se caracteriza pelo fato
de Zaratustra enaltecer de forma exacerbada a terra e o agora; já ao platonismo, é a analogia
inversa, ou seja, é na caverna que Zaratustra se torna sábio e não fora dela. É por excesso de
sabedoria que o personagem desce da caverna para ter com os homens, não por constatar a
miséria deles. O que o move não é a dualidade entre a diversidade sensível e a verdade
inteligível, mas por compreender que tal dicotomia não existe. É abundância própria, o
transbordamento do mundo “aparente” que o impulsiona a trazer a boa nova a humanidade.
Ora, se o pressuposto da transvaloração é a inversão dos valores, então criar é
efetivamente o projeto nietzschiano. As novas tábuas de valores é tarefa dos filósofos
legisladores, porém, esses filósofos, segundo Nietzsche, ainda não tenham existido26. Mas

25
Cf. Assim falou Zaratustra I, “Da árvore da montanha”: “Quanto, mais (árvore) quer crescer para o alto e para
a claridade, tanto mais fortemente suas raízes tendem para a terra, para baixo, para a treva, para profundeza”.
26
Cf. NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal §211. Trad. Paulo César de Souza. 1992, p. 105-106. “Seu
‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é – Vontade de Potência. - Existem hoje tais
filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos?...”.
50

devem existir, já que a pedra fundamental foi lançada, - o anúncio da morte de Deus. O que o
filósofo alemão está propondo é a inovação dos filósofos como verdadeiros legisladores, não
apenas trabalhadores filosóficos, pois, onde estes se detêm os filósofos legisladores começam,
inovam e criam as novas tábuas de valores.
Não é com trabalhadores filosóficos que Nietzsche conta para assumir a tarefa da
transvaloração27. É necessário ser como os filósofos legisladores que inovam e dizem “assim
deve ser!” São eles que têm a missão filosófica de criar valores. Nietzsche assume essa missão,
pois considera o seu destino presentear um novo sentido à existência humana, e afirma: “Minha
fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para
diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos
ainda dissimulá-lo (...), mas amá-lo”. (NIETZSCHE. EH, “porque sou tão esperto”, §10.) Amar
o destino, não é resignar-se diante dele, é acima de tudo assumir a existência como ela é, mas
sem recortes ou restrições; é não procurar sentido em outro mundo; é aceitar de modo absoluto
e irrestrito tudo o que advém “sem desconto, exceção ou seleção”; é afirmar a vida no que ela
tem de mais alegre e exuberante, mas também terrível e assustador.
Essa afirmação, ao que tudo indica, Nietzsche se refere à expansão da vida, a vontade
criadora, como afirma o filósofo: “ É vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no
criar, está incluído o destruir” ( FP, maio-unho de 1888, KSA 13, 17[3], p. 521). O termo criar
para Nietzsche está intimamente ligado à ideia de vontade de potência e consequentemente à
fisiologia. Essa filosofia que enaltece a vida, que afirma o vir-a-ser e rejeita o transcendente só
pode ser entendida numa relação entre a psicologia e a fisiologia. Essa relação é denominada
pelo filósofo de fisiopsicologia, ou seja, é a afirmação da efetividade da vontade de potência.

2.2 “O Animal Avaliador”: a noção de Credor e Devedor na Psicologia do Sacerdote

A psicologia do sacerdote tem sua fundamentação a partir das noções de credor/devedor.


Nietzsche recorre à História para fazer sua genealogia dos valores, pois sem essa
fundamentação histórica não seria possível identificar a dupla origem dos juízos de valor bom
e ruim/bom e mau. Na obra Genealogia da Moral, fica patente a intenção do autor de evocar o
processo histórico quando relaciona as cores “azul” e “cinza” ao exercício dos historiadores na
análise documental. Nietzsche faz alusão às cores cinza e azul pra identificar os tipos de análises

27
Embora os trabalhadores filosóficos tenham a capacidade de dar início ao projeto da transvaloração, Nietzsche
não conta com eles já que estes não conseguem assumir tal empreitada por inteiro.
51

feitas até o seu presente. O azul representa as hipóteses inglesas com sua falta de documentação
e comprovação; A cor cinza, segundo o filósofo, é a cor do genealogista que busca na
verificação do passado da humanidade e o modo de construção da moralidade.
Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da
moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente
havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado
moral humano (NIETZSCHE, GM, prólogo § 7).

A partir da análise histórica, Nietzsche percebe que o valor bom está ligado às ações
altruístas, ou seja, as ações consideradas boas e desinteressadas que eram praticadas pelos bons,
mas elas são úteis a quem as pratica, o que faz delas não desinteressadas. Segundo Nietzsche,
as ações denominadas boas ou não-egoístas são, no fundo, egoístas por sua utilidade de tornar
bom quem a pratica. Por isso, a cor azul representa os ingleses que elaboram suas hipóteses a
partir de seus pontos de vista pessoais sem a devida comprovação histórica.
Neste ponto, consideramos instigante realizar a análise destes conceitos junto aos
filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que retomaram a discussão na obra Anti-Édipo (2011).
A esse respeito escrevem os filósofos: “Porque a Genealogia, na segunda dissertação, é sem
igual, a mais bem-sucedida tentativa de interpretar a economia primitiva em termos de dívida,
na relação credor-devedor” (DELEUZE; GUATARRI, 2011, p. 251). Importante denotar que
esta relação credor/devedor foi exposta primeiramente por Nietzsche na segunda dissertação da
Genealogia da Moral (2009).
Para Deleuze, a intenção principal de Nietzsche é introduzir na filosofia os conceitos de
sentido e valor. Para que surja uma filosofia moldada “a golpes de martelo”, a noção de valor
implicaria uma inversão crítica. A esse respeito escreve Deleuze em Nietzsche e a Filosofia
(2001):
Por um lado, os valores aparecem ou dão-se como princípios: uma avaliação supõe
valores a partir dos quais aprecia os fenômenos. Mas, por outro lado e mais
profundamente, são os valores que supõe avaliações, pontos de vista de apreciação,
donde deriva o seu próprio valor. O problema crítico é este: o valor dos valores, a
avaliação donde procede o seu valor, portanto o problema da sua criação (DELEUZE,
2001, p. 6).

Nietzsche faz referência à cultura e aos valores para falar do problema do


credor/devedor, tarefa que se ocupou na segunda dissertação da Genealogia da Moral. Para
Nietzsche, a cultura ocidental se caracteriza desde o ideal socrático como a cultura da vontade
de verdade, ou seja, nada é mais necessário do que a verdade, nesse sentido, o que é verdadeiro
tem o caráter de supremo bem. Essa cultura científica é para Nietzsche uma equivalência entre
52

o bem, o verdadeiro, o justo e o belo, de sorte que o erro e a ignorância da verdade são
considerados como a origem efetiva do mal.

A noção de credor-devedor é desenvolvida quando o filósofo alemão fornece uma


explicação genealógica alternativa para o desenvolvimento da moralidade. Em contraste com a
abordagem histórica adotada na primeira dissertação, neste segundo ensaio Nietzsche perfaz
um relato mais evolutivo e psicológico do desenvolvimento da moralidade através da
consciência dos seres humanos, utilizando-se, sobremaneira, dos conceitos de "má consciência"
e "culpa", considerados por ele mesmo como instrumentais. Ao examinar a moralidade judaico-
cristã, Nietzsche examina duas forças formativas: os contratos pré-históricos da relação credor-
devedor, bem como o surgimento da civilização humana a partir de um suposto estado de
natureza.

A crença na verdade como valor incondicional é, para Nietzsche, o resultado de uma


avaliação moral. Ora, se essa cultura científica tem um valor moral, é um paradoxo para a
própria ciência, pois esse valor não está baseado em leis, mas em certezas morais. Os filósofos
dogmáticos por sua vez, ao serem guiados pela vontade de não querer enganar, nem sequer a si
mesmos, teriam veiculado um preconceito moral, supondo que querer enganar seria uma
imperfeição, uma carência e, por conseguinte, que a verdade teria mais valor que a falsidade.
Essa vontade de verdade a qualquer preço é o que legitima os possíveis condicionamentos da
vida em geral. Portanto, para Nietzsche, essa vontade de verdade é hostil às condições vitais de
existência. Ora, se a vida deve ser assumida na sua totalidade, ou seja, no que há de bom e
trágico, essa vontade de verdade se revelaria numa vontade velada de morte.
Ao perceber que a cultura ocidental está eivada dessa vontade incondicional de verdade,
Nietzsche empreende uma genealogia da moral. Para tanto, faz-se necessário avaliar o valor
desses valores, pois esses valores foram os próprios homens que os engendraram. Em Assim
Falou Zaratustra, o autor escreve: Em verdade, os homens deram a si mesmos todo o seu bem
e mal. Em verdade, eles não o tomaram e não o acharam, não lhes sobreveio como uma voz do
céu” (NIETZSCHE. ZA, “Das mil metas e uma só meta”). Portanto, para o desenvolvimento
desta genealogia, o filósofo recorre à História para uma análise da eticidade do costume e
consequentemente da tradição. Mas sempre levando em consideração a singularidade do
pensamento como forma de singularizar o corpo.
Nesse processo de genealogia dos costumes, Nietzsche recorre à pré-história da
humanidade com o intuito de perceber que desse “terreno obscuro” da humanidade nasce uma
espécie rara da cultura, que Deleuze e Guattari irão denominar de socius. Nesse período da
53

humanidade, a eticidade dos costumes se revelava nas forças ativas, pois, para o filósofo, o
princípio primário da humanidade está ligado à vontade de potência ou as forças ativas. No
processo de evolução social, o homem perde seu princípio em prol da adaptação social. O
progresso é, para Nietzsche, uma ideia equivocada, pois a seu ver essa ideia é o contrário de
uma elevação das forças ativas do homem. Nesse sentido, as forças ativas aparecem no animal-
homem e nas formas elementares do direito como expressões miméticas da energia propulsora
da vontade de potência – força plástica e princípio artístico de organização, contrário ao
pequeno homem, ou, socius. A este o que interessa é a dívida e não a troca. “Codificar o desejo
– e o medo, a angústia dos fluxos descodificados – é próprio do socius” (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p 185).
Na eticidade primitiva, a hierarquia e a diferença eram características fundamentais
nesse tipo de organização. Porém, com a formação do Estado social o animal-homem foi
inserido nessa nova organização a qual o domesticou e anulou a vontade ativa. Portanto, a
eticidade primitiva se perdeu com a sublimação das pulsões mais rebeldes e selvagens do
animal-homem, o que Nietzsche chama de “antigos instintos da liberdade”. Eticidade para o
filósofo alemão são domínios antitéticos da liberdade, pois o homem livre é o homem não-ético,
já que ele não corresponde aos cânones da tradição.
O processo de vir a ser das mais refinadas formações da cultura superior que têm sua
origem na eticidade do costume e nos dispositivos rudimentares do direito primitivo é enfocado
por Nietzsche de um duplo ponto de vista: “macro-cósmico”, quando se trata da criação das
comunidades ou estados primitivos, constituídos com base na instituição forçada de diferenças
funcionais hierarquizadas e regramentos diversos de domínios de poder; do ponto de vista
“micro-cósmico” é quando se considera a introjeção ao nível da psiquê individual dos processos
de diferenciação e hierarquização de funções, por meio da qual se torna possível tanto o
desdobramento e especificação das funções quanto o concurso harmonioso de distintas
faculdades e disposições psíquicas.
Em Genealogia da Moral, Nietzsche retoma sua análise sobre os supremos valores da
cultura ocidental, porém, analisando seu surgimento, pois os valores foram engendrados em
algum momento e em algum lugar, portanto, para o filósofo alemão, não existem dados
definitivos, absolutos ou eternos. Nesse sentido, a justiça é analisada como um valor advindo
da moral. A ideia de justiça para Nietzsche está associada à ideia de moral, pois a justiça é a
garantia do bem comum, que por sua vez se baseia no princípio da moral da igualdade,
característica da sociedade oposta ao tipo de homem da pré-história da humanidade.
54

A pessoa é, nesse sentido, sujeito de direito e fonte de valor. A genealogia nietzschiana


é uma tentativa de inversão desse ponto de vista. Ao contrário de atribuir ao direito seu
fundamento na moral, Nietzsche atribui a moral justamente a noções elementares do direito da
primitiva obrigação contratual entre credor e devedor. Essa matriz se encontra no domínio
material das mais primitivas obrigações de direito pessoal no sentido de compra, venda e
comércio. A esse respeito, o filósofo afirma:

O sentimento de culpa, de obrigação pessoal, para retomar o fio de nossa


investigação, teve origem, como vimos, na mais antiga e primordial relação pessoal,
na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que pela primeira
vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra [...] Estabelecer preços, medir
valores, imaginar equivalências, trocar – isso ocupou de tal maneira o mais antigo
pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o pensamento: aí se
cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia situar o primeiro impulso do orgulho
humano, seu sentimento de primazia frente aos outros animais. Talvez a nossa
palavra “mensch” (manas) expresse ainda algo deste sentimento: o homem [mensch,
em alemão] se designava como o ser que mede valores, valora e mede, como o
“animal avaliador”. (NIETZSCHE. GM II, §8).

Fica patente após esse fragmento que dívida e culpa são iguais obrigação do Direito
Penal, como esclarece o pesquisador Oswaldo Giacoia: “A dívida, no sentido econômico-
jurídico do termo, aquele sentimento e aquela noção de estar em débito, de ter dívidas, que
nasce no circuito da troca, da compra e da venda, do débito e do crédito, permite o desafogo da
má-consciência” (GIACOIA, 2021, p. 38). Nesse sentido, direito e dever nascem juntos. Para
Nietzsche, essa reciprocidade entre direito e dever não é uma qualidade inata ao animal-homem,
mas o resultado de um processo de domesticação ou formação do homem. Pois, a esse respeito
o filósofo afirma: “Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre os homens de poder
aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de ‘entender-se’ mediante um compromisso
– e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si”. (NIETZSCHE,
GM II, §8). Esse compromisso entre si é o que se pode denominar de direitos e deveres que um
tem sobre o outro. Para alcançar esse estágio de relação entre direito e dever foi preciso
domesticar o animal-homem por meio da eticidade dos costumes, o que consiste na obediência
aos costumes ou à tradição, com isso, o homem se encontra no âmbito da moral.
O homem confiável é aquele que se submete aos preceitos ordenadores, nesse caso, os
costumes. Essa formação é denominada por Nietzsche como a memória da vontade, ou seja,
querer ter sido o que não foi. A insurreição a esses costumes seria imoral perante a tradição.
Contudo, o filósofo vê um outro tipo na formação do animal-homem, ou seja, o
desenvolvimento do espírito, cujo resultado é o surgimento da liberdade como autonomia da
vontade na forma do indivíduo soberano e capaz de prometer.
55

A promessa é, para Nietzsche, parte da memória. Embora o filósofo enalteça o


esquecimento, ele aponta para a necessidade de se criar no homem uma memória, porém, essa
seria uma memória da vontade. Visto que a fixação da promessa requer não apenas o não deixar
de cumprir, mas o não querer não cumprir, o que seria o lado positivo da memória. Nesse
sentido, o filósofo afirma: “precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer
é uma força, uma vontade de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma
memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos” (NIETZSCHE,
GM II, §9). Esse querer da memória advém de um impulso interno, pois esse querer é uma
vontade ativa.
Porém, Nietzsche fala de um outro tipo de memória que é adquirido por meio de uma
instrumentação da dor e do sofrimento, pois tais são, segundo o filósofo, os mais poderosos
auxiliares da mnemotécnica. Mas esse tipo de memória torna o homem previsível ao seguir sem
reservas a eticidade dos costumes. Dessa forma, surge a razão, cuja finalidade é o domínio dos
afetos. Estes seriam os sujeitos de direito segundo o filósofo alemão, ao se relacionar pelo
direito pessoal de compra e venda/débito e crédito. Com o advento da ideia de direito e deveres
tem-se duas consequências: em primeiro lugar, que direitos e obrigações são graus de poder
cuja atribuição e manutenção exige reconhecimento, ou seja, pressupõem a existência de
domínio de relações pessoais; em segundo lugar, que tais domínios de relações se originam e
desenvolvem segundo o modelo do mais primitivo núcleo no interior do qual se originam
relações de poder, isto é, no domínio das relações de direito pessoal entre credor e devedor e
vendedor e comprador.
Nietzsche, ao analisar a pré-história da humanidade, percebe que o não cumprimento
das obrigações entre credor/devedor era reparado por meio da crueldade, justamente para gravar
na memória a ideia de obrigação. Nesse sentido, a vingança era vista como compensação do
prejuízo, isto é, o fazer sofrer era uma satisfação para o credor lesado. Portanto, havia uma
sublimação da dor, o que para Nietzsche é denominado de satisfação instintiva na gênese do
processo civilizatório. Porém, o filósofo alemão admite que a civilização enquanto processo de
domesticação do animal-homem é algo que se institui e consolida por meio de um prodigioso
exercício de crueldade. A transformação do animal-homem em animal social se deu numa
ruptura contra a qual não houve luta nem ressentimento, pois ela foi iniciada e concluída
exclusivamente por atos de violência.
A força instintiva do homem acabou interiorizada de forma tal que houve uma inversão
na forma de avaliação dos valores. O homem já não é um animal avaliador de sua existência,
56

mas de sua consciência. A interiorização do homem, Nietzsche denomina de desenvolvimento


da alma, pois assim afirma: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se
para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o
que depois se denomina sua ‘alma” (NIETZSCHE, GM II, §16). Com essa interiorização, os
instintos são inibidos em prol do tomar consciência dos atos, ou seja, a má consciência.
As relações entre vendedor/comprador e credor/devedor são para Nietzsche, o grau mais
baixo de organizações humanas. Essa obrigação contratual de equivalência tem seu fundamento
na ideia de justiça, pois a esse respeito Nietzsche escreve:
Cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago – o mais velho ingênuo cânon moral
da justiça, o começo de toda ‘bondade’, toda ‘equidade’, toda ‘boa vontade’, [...].
Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre os homens de poder
aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de ‘entender-se’ mediante um
compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso
entre si. (NIETZSCHE, GM II, §8).

Essa generalização transforma os mais complexos comunitários em sujeitos de direito.


A relação entre credor e devedor se tornou indispensável entre a coletividade, pois o homem
perdeu sua capacidade individual. A coletividade se comporta como protetor e credor de
determinadas obrigações, sua tarefa consiste em proteger o indivíduo contra as forças da
natureza e contra o arbítrio dos demais indivíduos. Com isso, o indivíduo deve prestar
obediência às regras e ditames obrigatórios da coletividade. O indivíduo que lesar uma dessas
regras deve pagar por sua falta, o que equivale a dizer o equivalente a tal lesão perturbadora. O
castigo na pré-história funcionava como o equivalente reparatório da desobediência às regras
coletivas de conduta.
Nesse sentido, o homem livre é considerado não-ético, portanto, ele deve ser punido por
isso. O castigo é uma restituição do culpado e o seu banimento da coletividade. Esta por sua
vez, demonstra seu poder na forma de punir o homem livre, pois sua punição é severa e violenta,
é uma exteriorização de crueldade. No direito pessoal entre credor e devedor, figuram,
doravante, de um lado os particulares como detentores do direito à proteção pela coletividade,
do outro, os devedores de obediência incondicional às normas e regras de conduta instituída por
ela. Quanto mais ameaçada em sua integridade esteja a coletividade, tanto mais cruel e
assustador se configurará o seu sistema de defesa, por isso, chama-se castigo equivalente à
violação da coletividade.
Há uma relação entre os indivíduos e seus antepassados. Essa relação segue o modelo
da obrigação resultante do crédito e do débito, pois a figura do ancestral comum passa a ser
interpretada como a do responsável pela doação dos mais preciosos dos bens, principalmente a
vida protegida e a prosperidade assegurada pela coletividade. Daí surge a dívida como
57

resultante dessa doação de obrigações, pois os ancestrais passam a ser vistos como espírito
protetores que velam pela segurança, bem estar e prosperidade de seus filhos. O que torna esse
ancestral como uma divindade doméstica, onde todo sacrifício é pouco para pagar essa dívida
impagável. Por isso, seguir as regras da coletividade é tão importante, já que foram os
antepassados que as criaram. Porém, essa obrigação tem sentido eminentemente jurídica, pois
o pagamento da dívida é uma contra-prestação de resgate e não uma piedade.
A obrigação é a apropriação da má consciência, ou seja, da consciência da culpa, que é
o processo da interiorização e espiritualização dos antigos instintos de liberdade. Impedida de
se exercer como assujeitamento do mundo exterior, a natureza conformadora e violenta de tais
cargas instintivas se voltam contra o próprio homem ao se interiorizar. Com essa interiorização,
as relações jurídicas se transfiguram em dever e culpa moral. Na figura do devedor, a culpa se
manifesta ao transgredir as regras da coletividade, ao exteriorizar seus instintos e se sentir
eternamente culpado por possuir tais instintos. A figura do credor não é mais o ancestral
comum, mas o ancestral primeiro, isso numa interpretação cristã, o Deus cujo princípio do
mundo se encontra Nele.
Desse modo, tendo o credor no além, o homem, em sua existência terrena, não é
devedor no sentido jurídico, mas culpado no sentido moral. Essa culpa se torna permanente e
impagável, pois a existência se origina no credor, ao mesmo tempo em que a dívida se origina
na existência do devedor e o próprio credor se sacrificou em prol do devedor. A esse respeito
Nietzsche escreve:
O próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si
mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio
homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é
de se dar crédito?), por amor a seu devedor!... ((NIETZSCHE, GM II, §21).

Com o advento do Deus cristão e principalmente com o seu sacrifício, a dívida atinge
proporções imensas, torna-se impagável, torna-se eterna: a responsabilidade-dívida transforma-
se em responsabilidade-culpa. À medida que Deus se oferece em sacrifício para pagar as
dívidas do homem, o resgate torna-se impossível, e a associação da dívida com a falta faz do
homem alguém responsável por essa falta e, portanto, culpado. Percebe-se dessa forma, que o
filósofo utiliza o termo culpa, e não dívida, pois culpa se relaciona com a qualidade negativa na
vontade de potência e com o sentido de dívida eterna para com o Deus cristão.
A eticidade dos costumes é entendida por Nietzsche como a obediência aos costumes
mediante as relações de forças. Os costumes são regras de conduta elaboradas pela autoridade
da tradição que, por sua vez, está fundamentada na noção de um ancestral primeiro, ou seja,
58

Deus. A pena e o castigo são instrumentos de domesticação do animal-homem à eticidade dos


costumes, ou seja, a obrigação para com a coletividade.
Na obra Anti-Édipo, Deleuze e Guattari desenvolvem sua teoria acerca da dívida que
vai contra a maioria das teorias econômicas baseadas em sistemas de câmbio. Ao invés de uma
teoria baseada nas trocas monetárias, os autores oferecem uma densa análise sobre o processo
social humano que remonta o conceito de credor-devedor em Nietzsche. Conforme Deleuze e
Guattari, a noção de culpa (dívida) que nos liga ao passado através das formas mais cruéis de
inscrição, que nos liga à memória biocósmica do anterior através da repressão daquelas
'intensidades noturnas' traçando a marca do sagrado e de sua lei, parece nos levar a concepção
de justiça e soberania.
Originalmente, nos dizem os filósofos, a justiça é a afirmação de uma equivalência entre
o prazer do credor pela dor infligida ao devedor e o prejuízo causado pela dívida não paga; a
memória é o produto de marcas inscritas no corpo por uma dívida não paga, lembretes vivos
que produzem a capacidade de lembrar o momento futuro em que a promessa deve ser
cumprida. Conforme Deleuze e Guattari, Nietzsche é um dos primeiros filósofos a romper com
a ética judaico-cristã ao mostrar como o julgamento submete o homem a uma dívida infinita
que ele não pode pagar. Isso significa que a doutrina do julgamento é apenas aparentemente
mais moderada do que um sistema de 'crueldade' segundo o qual a dívida é medida no sangue
e inscrita diretamente no corpo, uma vez que nos condena à infinita restituição e servidão.

2.3 “O Arauto da Boa-Nova”: a Vontade de Potência conforme seus intérpretes

Certamente Heidegger aparece com um dos pensadores mais influentes na


compreensão e crítica à noção de vontade de potência. Em nossa investigação, porém,
arguimos a ideia que Heidegger mantém, em sua tese, de que a filosofia da vontade de potência
de Nietzsche foi ainda uma filosofia metafísica. Para Heidegger, a metafísica é
fundamentalmente a história do esquecimento do ser e principalmente da questão da
temporalidade do ser. Como afirma o comentador João Evangelista Tude de Melo Neto (2021):

No entender de Heidegger, Nietzsche conduziu a tradição metafísica a sua fase de


acabamento, mas não a sua superação. Isso porque o pensamento nietzschiano, apesar
de constituir-se como essa derradeira etapa da história da metafísica, nela ainda estaria
inserido, pois a reflexão do filósofo do martelo também caracterizar-se-ia – nos termos
do filósofo da Floresta Negra – como um esquecimento do ser (NETO, 2021, p 193).
59

Porém, não basta apontar a tese de Heidegger de que a filosofia de Nietzsche é o fim
da metafísica, é preciso antes, examinar e ler com Heidegger as formulações nietzschianas. A
esse respeito, escreve o pesquisador e tradutor Marco Casanova, na obra Nietzsche II, de
Heidegger:
Por isso, todas as considerações acerca da interpretação heideggeriana do pensamento
de Nietzsche precisam ter em vista, por fim, essa peculiaridade hermenêutica
incessantemente velada no texto das preleções, mas constantemente vigente em seu
pano de fundo. Não para concordarmos simplesmente com a posição de Heidegger,
mas para ao menos sabermos de que é afinal que discordamos ou concordamos. No
momento em que temos clareza quanto a esse ponto, a tese heideggeriana acerca da
consumação da história da metafísica na obra de Nietzsche ganha contornos mais
nítidos (HEIDEGGER, 2007b, p VII).

Nesse sentido, a tese heideggeriana deve ser passada a limpo a fim de elucidar suas
posições. O entendimento sobre a acontecência do ser pela técnica em Heidegger também
deriva da leitura crítica de filósofos antigos e contemporâneos, dentre os quais os escritos de
Heidegger destacam Nietzsche e Junger. À Nietzsche, Heidegger dedicou a maior parte de sua
atenção na metade da década de 30, em sua análise da inversão do platonismo, isto é, do
esgotamento da metafísica. A inversão do platonismo de Nietzsche estrutura o pensamento
onto-historial de Heidegger no que concerne a observação de um ser para o devir no mundo
orientado pelo sentido da técnica.
A inversão não é certamente nenhuma virada mecânica, por meio da qual o mais
baixo, o sensível, assume o lugar do mais alto, o suprassensível, permanecendo os
dois inalterados juntamente com suas posições. A inversão é a transformação do mais
baixo, do sensível, na “vida” no sentido da Vontade de Potência, em cuja estrutura
essencial o suprassensível, enquanto asseguramento da consistência, é incorporado e
transformado (HEIDEGGER, 2007b, p. 68).

Em Heidegger, o conceito de “vontade de potência” era a consumação da metafisica


ocidental, sendo Nietzsche, portanto, o “último metafísico”28. Para Heidegger, Nietzsche com
sua metafísica da vontade de potência e através da ideia de além-homem (Übermensch) não fez
mais que consumar o esquecimento do ser e o domínio incondicional da totalidade do ente por
uma subjetividade ávida em dominar e controlar todas as dimensões do real. Cabe a ressalva
que, não se abstendo apenas à crítica à Nietzsche, Heidegger encontra nas obras nietzschianas
um aceno para a refundação da metafisica, em especial na A Gaia Ciência, uma espécie de

28
Para Ferreira Jr (2013), a leitura do além-do-homem, feita por Heidegger, colocando-o como consumação da
subjetividade cartesiana e seu ideal de dominação incondicional sobre a totalidade das coisas, negligência o fato
de que o além-homem, em Nietzsche, não é uma forma potenciada da subjetividade nascida com Descartes. Esta
crítica tem base nos comentários de Muller-Lauter, quem Müller-Lauter ressalta que a própria interpretação
heideggeriana da Vontade de Potência como princípio metafísico em Nietzsche seria equivocada, já que
Heidegger concebe uma unidade na Vontade de Potência a qual se manteria através da constante superação de si,
o que, por sua vez, exigiria que a totalidade do ente se manifestasse como eterno retorno do mesmo.
60

“arauto da Boa Nova” através da máxima da morte de Deus. Com Nietzsche, Heidegger (2007a)
assume que as sombras da morte de Deus ainda cobrem e hão de cobrir a terra por muito tempo,
ou seja, ao superar a metafísica sempre deparamos com seus resíduos. Essa ideia é corroborada
por Heidegger (2007a, p. 115), quando afirma: “(...) a arte como contramovimento em relação
ao niilismo e a arte como objeto de uma estética fisiológica”. É essa compreensão de arte que
se relaciona com a fisiologia que está imersa na interpretação da vontade de potência.
A condição fisiológica da qual o filósofo se refere é o estado dionisíaco, ou seja, a
sublimação dos impulsos vitais, a embriaguez necessária para a arte do “grande estilo” e da
vontade de potência. Quais são as características dos impulsos humanos, enquanto uma forma
da vontade de potência? Esse questionamento nos remeterá a uma discussão no sentido de
entender as relações dos conceitos de impulsos e teoria das forças.
Em relação aos comentários de Muller-Lauter, embora não raramente contradizem aos
de Heidegger, interessa sua percepção sobre o conceito nietzschiano de Vontade de Potência
que, conforme o próprio filósofo, foi fundamentalmente influenciada por Heidegger, como fica
patente no apontamento a seguir: “parece-me muito mais crescer, a partir do pensar de
Nietzsche, em medida ainda mais forte do que se tornou manifesto por meio das interpretações
até agora existentes” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 53). Nesse sentido, a interpretação desse
comentador denota que o cosmo é um conjunto plural de forças conflitantes o que o distancia
da compreensão heideggeriana da metafísica.
Discutir a vontade de potência leva a várias interpretações dos comentadores de
Nietzsche. Todavia, prefere-se, aqui, trabalhar com duas que até certo ponto são distintas: a de
Heidegger e a de Müller – Lauter. É relevante salientar que não se pretende estabelecer um
diálogo tenso entre esses dois autores, mas utilizar suas interpretações, principalmente naquilo
em que não há discordância em relação à vontade de potência e à fisiologia. Não interessa neste
trabalho a interpretação heideggeriana de que a filosofia nietzschiana consistia em levar a
metafísica até as últimas consequências, mas a compreensão do Grande Estilo como um efeito
da fisiologia. É essa compreensão de arte que se relaciona com a fisiologia que está imersa na
interpretação da vontade de potência. Nas palavras de Müller-Lauter (2009, p. 143), “a história
do niilismo não tem um começo. O niilismo é a expressão de décadence fisiológica”. Niilismo
é o movimento histórico reconhecido pela primeira vez por Nietzsche em que os valores
supremos como Deus, o Bem, a Verdade, desvalorizam-se e perecem, ou seja, entram em
decadência. O niilismo aqui não deve ser visto como um simples conceito abstrato, mas sim
61

como um fenômeno histórico-filosófico que embasa e orienta toda a história europeia. Ao termo
europeu, leia-se: ocidental.
Entender as noções de credor/devedor29 é imergir na psicologia do sacerdote, uma vez
que o sacerdote é sempre lembrado por Nietzsche em O Anticristo como o opositor das forças
vitais. Pois esta obra está eivada de denúncia da degeneração do homem enquanto uma tipologia
da décadence. Portanto, ao filósofo, cabe a expectativa de um novo olhar sobre o corpo, ou seja,
sua dinâmica da vontade. A isto, o filósofo contrapõe a psicologia negativa ligada ao sacerdote.
Assim escreve Nietzsche: “O sacerdote desvaloriza, dessacraliza a natureza: é a esse custo que
ele existe” (AC, §26). Seguindo a lógica do sacerdote da décadence, o filósofo alemão inclui
também a atividade artística enquanto décadence fisiológica.
Para Müller Lauter, o conceito de décadence sempre foi interessante a Nietzsche. Assim
afirma: “Desde cedo, Nietzsche refletiu sobre a questão da décadence, mas só em 1888, em seu
último ano de atividade, a palavra converteu-se num dos conceitos centrais do seu filosofar”
(MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 12). Neste sentido, o capítulo a seguir se destina a discussão
sobre a decadência.

29
A temática foi anteriormente discutida no segundo capítulo e nos auxilia a entender a chamada Psicologia do
Sacerdote.
62

3 DA SUPERAÇÃO DA DÉCADENCE ARTÍSTICA À ESTÉTICA


FISIOPSICOLÓGICA

Entre vários tipos de décadence em Nietzsche, situaremos nesse momento à décadence


artística e posteriormente à questão da fisiopsicologia da arte. Para tanto, o texto de Wolfgang
Muller-Lauter (1999), intitulado: Décadence artística enquanto décadence fisiológica. A
propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner, nos ajudará entender a
crítica e superação desse estado mórbido da arte. Nietzsche entende que a compaixão se opõe
aos afetos tônicos que elevam a energia vital (Cf, AC, §7). Wagner, para Nietzsche: “tinha a
virtude dos décadents, a compaixão” (CW, §, 7).
Não é a intenção escrever especificamente sobre a música de Wagner, mas o que esse
artista representa para Nietzsche, a saber, a decadência artística. Raramente o filósofo alemão
enaltece a arte wagneriana, contudo, são muitos os momentos em que o filósofo alemão faz
críticas ao músico. Pois os dois são filhos de seu tempo, mas Nietzsche soube se livrar da
décadence como filósofo e principalmente como antípoda de Wagner, assim escreve o filósofo:
“Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo, quer dizer, um decadente: mas eu
compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu” (CW, prólogo). Ao indicar
Wagner como um decadente, Nietzsche nos conduz a pensar em uma outra personagem
histórica que simbolizaria para o filósofo alemão como um decadente, a saber, Sócrates. Se por
um lado Sócrates aparece como um decadent na obra Crepúsculo dos ídolos, principalmente na
seção “O problema de Sócrates”; por outro, Wagner é a personagem principal da obra O Caso
Wagner. A semelhança dessas duas personagens para Nietzsche se torna patente justamente na
questão da décadence. Marton (2020) afirma que:
Não podemos deixar de notar a semelhança marcante entre esse capítulo ( CI, O
problema de Sócrates) e O caso Wagner. No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche mostra
que por meio da “superfetação do lógico” e dessa maldade raquítica, Sócrates
promove a expansão anormal da razão e, por conseguinte, o enfraquecimento das
pulsões. (Cf. GD/CI, O problema de Sócrates, 4, KSA 6.69) No Caso Wagner, revela
que, por meio da melodia infinita, o compositor leva ao exagero dos sentimentos, ao
êxtase, e, por conseguinte, ao extremo esgotamento. Nos dois casos, ainda que por
vias distintas, instalam-se perturbações no organismo, a ponto de levá-lo a perder o
equilíbrio. Enquanto Sócrates exprime a décadence na filosofia, Wagner a expressa
na música (CADERNOS NIETZSCHE, p 57).

Pensar na estética fisiológica enquanto um meio de superação da décadence é também


levar em consideração a crítica nietzschiana da psicologia da negação ou do sacerdote. A
psicologia do sacerdote que podemos entender como uma fórmula ou expressão da décadence,
segundo Nietzsche, tem seus principais expoentes Sócrates e Wagner. Tanto assim que o
63

filósofo identifica nessas personagens a expressão da décadence na moral, na religião, na


filosofia, na arte e na música. Todas essas expressões podemos encontrar referências tanto no
filósofo grego como no artista alemão.
Esse pensamento desrespeitoso, de que os grandes sábios são tipo de decadência,
ocorreu-me primeiramente num caso em que o preconceito dos doutos e indoutos se
opõe a ele do modo mais intenso: eu percebi Sócrates e Platão como sintomas de
declínio, como instrumento da dissolução grega, como pseudogregos. Aquele
consensus sapientiae – compreendi cada vez mais – em nada prova que eles tivessem
razão naquilo acerca do qual concordavam: prova, isto sim, que eles próprios, esses
mais sábios dos homens, em alguma coisa coincidiam fisiologicamente, para situar-se
– ter de situar-se – negativamente a vida (NIETZSCHE, CI II, §2).

Para fazer a crítica a arte moderna, Nietzsche escolhe Wagner, já que este, segundo o
filósofo alemão, seria o grande nome de artista da modernidade. Porém, Wagner tem a
característica da religião da compaixão, a esse respeito Nietzsche escreve: “Wagner tinha a
virtude dos décadents, a compaixão” (NIETZSCHE, CW, §7). Não só a compaixão, mas
também um verdadeiro cristão. Roger Hollinrake (1986), na sua obra Nietzsche, Wagner e a
filosofia do pessimismo, cita uma nota em que Nietzsche critica a obra Parsifal, de Wagner:
“Sou o mais desapontado de todos os wagnerianos: pois no momento em que era mais
respeitável do que nunca ser pagão, ele tornou-se cristão” (p. 184). A crítica de Nietzsche a
Wagner é quase sempre no sentido religioso, pois na arte do Grande Estilo não deve haver esse
sentido de inibição das forças, mas acima de tudo uma excitação da força. Ou como afirma
Deleuze: “A arte é o oposto de uma operação ‘desinteressada’, ela não cura, não acalma, não
sublima, não compensa, não ‘suspende’ o desejo, o instinto e a vontade. A arte, ao contrário, é
‘estimulante da vontade de potência’, ‘excitante do querer’” (DELEUZE, 2001, p.48). A arte
que estimula a vontade de potência que Nietzsche também chama também de estética
fisiológica tem uma relação intrínseca com a própria vontade que denominamos aqui de Grande
Estilo. E mais, “onde, sob qualquer forma, a vontade de potência declina, há também, toda vez,
uma regressão fisiológica, uma décadence” (AC, §17). Para Nietzsche, Wagner é o
representante dessa forma de arte. Tudo isso porque Nietzsche está influenciado pela arte grega
e chega inclusive à afirmação de que Wagner seria a renascença da arte grega na Alemanha.
Porém, essa afirmação perde sentido quando Nietzsche tem conhecimento do Parsifal de
Wagner.

Percebe-se, portanto, que Nietzsche não poupa crítica ao estado de decadência


fisiológica a Sócrates e à sua maneira fisiológica de negação à vida. No mesmo sentido vão as
críticas a Wagner. No fragmento 30 da seção IX de Crepúsculo dos Ídolos, intitulada: O direito
64

à estupidez, Nietzsche escreve: “[...] Em épocas tais, a arte tem direito a pura tolice – como
uma espécie de férias para o espírito, o engenho, o ânimo. Wagner compreendeu isso. A pura
tolice restaura...” (CI, IX, §30). A partir das críticas enunciadas, podemos pensar numa
superação desse estado de décadence. Qual seria então a superação desse estado? Em que
medida Nietzsche pretende apontar para uma superação? A resposta a essas duas questões é,
possivelmente, a estética fisiológica, especificamente, a embriaguez.

3.1 “O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões”: a embriaguez
como condição sacralizadora da arte.

O termo em alemão para embriaguez, utilizado por Nietzsche, é Rausch. Antes de


abordarmos a embriaguez (Rausch) especificamente nesse filósofo, é de grande contribuição
observar os usos do conceito Rausch no final do século XVIII. Em 1789, Johann Wolfgang von
Goethe, na encruzilhada onde o Iluminismo se encontrou com o Romantismo, descreveu-o
como uma aceleração do movimento que levava a uma alegria fluida ou uma exaltação contida.
Na obra Das roemisch karneval, descrevendo o carnaval romano que ele participara um ano
antes, Goethe escreveu sobre “a alegria extática e passageira” (Vorbeirauschenden Freude) que
se seguiu ao “apagamento da separação entre o alto e o baixo… Tudo se aproxima e você pega
o que gosta” (GOETHE, 1958, p. 34, trad. nossa).
Conforme Nitzan Lebovic (2004), o termo Rausch reapareceu em exemplos da poesia e
da prosa na primeira fase do romantismo: Os irmãos Jacob Wilheim Grimm explicaram Rausch
em seu Dicionário Alemão como “(...) uma nova palestra poética, Rausch significa também
tontura, embriaguez da alma, o deleite das faculdades interiores que levam a auto
esquecimento”. O Rausch estava também presente nas lendas recontadas por Achim von Arnim
e Clemens Berntano, na poesia e contos mágicos de Ludwig Tieck e Josef von Eichendorff e,
mais significativamente, na obra de Friedrich Hölderlin, quem enfatizou seu papel de poeta nos
mesmos termos que caracterizam o deus do vinho Dionísio, insistindo que escrever poesia era
o mesmo que entregar-se ao Rausch, uma embriaguez sem álcool. No poema Pão e Vinho,
Hölderlin relaciona a embriaguez ao esquecimento e a conceitua como sagrada:

Possamos em meio à treva encontrar algo palpável, Propiciar-nos o esquecimento, a


sagrada embriaguez, dar-nos A palavra transbordante que, como enamorados, Seja
insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa. E a sagrada memória em vigília até
o fim da noite (HÖLDERLIN, 1992, versos, 34-36, p. 53).
65

Nietzsche tomou o termo Rausch como um de seus principais conceitos, um fio que unia
todos os seus escritos, começando com a teoria da “Embriaguez Dionisíaca” versus a “Ordem
Apolínea” na obra O Nascimento da Tragédia (1872), e terminando em O Crepúsculo dos
Ídolos (1889), escrito em seu último ano de sanidade. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche
associou o Rausch ao caótico princípio dionisíaco, em oposição ao princípio formador apolíneo,
que envolve uma destruição do princípio de individuação, resultando na dissolução das
fronteiras entre os indivíduos e a fusão com a "misteriosa unidade primordial” no cerne da
natureza.
Já em Crepúsculo dos Ídolos, tanto o apolíneo quanto o dionisíaco foram concebidos
como condições da embriaguez, contudo, não mais como condição de dualidade. Nessa obra,
Nietzsche descreveu a embriaguez como um estado que produz o poder de visão na qual todo
o sistema emocional é afetado e intensificado. A essência da embriaguez, conforme o filosofo,
é a sensação de plenitude e de aumento de energia vital. A essa altura, Nietzsche havia
abandonado o ideal místico de atingir uma unidade para além da distinção sujeito-objeto. Mas
a ênfase ainda está em uma força que efetua de alguma forma o êxtase, embora este estado
agora seja conectado com a ultrapassagem dos limites que pertencem à ascensão da vida, ao
invés do desaparecimento das fronteiras que separam um indivíduo de outro. Nesse sentido, a
embriaguez em seus últimos escritos, é definida como a sensação de potência aumentada. A
ideia de que a embriaguez envolve, dentre outras coisas, uma transcendência da individualidade
ainda é presente nesta última concepção, novamente associada primordialmente com o
dionisíaco, que por sua vez é entendido como um desejo de unidade, um alcance além da
personalidade, do cotidiano, da sociedade, da realidade.
Nos Fragmentos Póstumos (escritos de 1884 à 1885), Nietzsche falou sobre Rausch
como o oposto do vazio descomunal que agride os homens, o oposto do sentimento desértico:
“O oposto desse sentimento é a embriaguez, na qual todo mundo por assim dizer se compacta
em nós e nós padecemos da felicidade da exuberância” (NIETZSCHE, FP, 25 (14)). O filosofo
continua abordando a invenção de meios de embriaguez em nossa era:
Nós todos conhecemos a embriaguez como música, como um entusiasmo cego, que
obnubila a si mesmo e como o louvor a alguns homens e eventos, nós conhecemos a
embriaguez do trágico, ou seja, a crueldade diante da visão do perecimento, sobretudo
quando é o nobre que perece: nós conhecemos as formas mais modestas de
embriaguez, o trabalho irreflexivo, o sacrificar-se como instrumento da ciência, um
fanatismo estúpido qualquer, um girar qualquer inevitável em mínimos círculos em
torno de si já possui forças embriagantes. (NIETZSCHE, FP, 25 (14)).

Se os primeiros românticos apresentavam Rausch como a transgressão de todos os


limites que separam os humanos da natureza ou do resto do universo e se concentrava na
66

experiência individual, o romantismo tardio resumido por Nietzsche usava o indivíduo como
um símbolo de uma unidade cósmica (mas não o coletivo humano). Para eles, o Rausch varreu
todo pensamento sobre limites, até mesmo a ideia de que alguém poderia transgredir limites por
meio de uma decisão consciente - de acordo com Nietzsche, não havia nada de consciente,
nenhuma escolha consciente sobre a transgressão. Em vez disso, as próprias forças da existência
conduziam o corpo de volta às raízes animalescas, uma fonte pré-histórica, antes do nascimento
da civilização moderna, antes que as dores e prazeres humanos fossem classificados pela
primeira vez por Sócrates e Platão.
Tratar da embriaguez em Nietzsche, nos impele a entender o fragmento 8 da seção IX,
do Crepúsculo dosa ídolos, cujo título é: “sobre a psicologia do artista”. Nesta seção, o filósofo
insiste em relacionar a estética à condição fisiológica: a embriaguez. Esse conceito de
embriaguez se confunde com a expansão de força e plenitude. Heidegger, ao comentar esse
fragmento diz que: “Nietzsche acentua na embriaguez duas coisas: 1. O sentimento de elevação
da força. 2. O sentimento de plenitude” (HEIDEGGER, 2007a, p 92). Nesse sentido, pode-se
entender que Heidegger está indicando que essa elevação da força faz da estética fisiológica
algo essencialmente corporal e psicológico ao mesmo tempo.
Grosso modo, a embriaguez seria a efetivação da vontade de potência. Mas a
pesquisadora Rosa Dias (2011, p. 68) reelabora a definição de embriaguez com a leveza que
lhe é própria: “Uma tensão de forças que em nos cresce sem cessar produz um estado de
plenitude, de superabundância de vida, que explode em ações [...] até que reflitam nossa própria
plenitude e nosso próprio prazer de viver”. Essa transfiguração de forças em plenitude nos faz
entender que a criação depende da vontade de querer sempre a expansão da vida e da própria
vontade. A partir desse ciclo ininterrupto, a embriaguez eleva o sujeito para além de si mesmo
e nesse instante a criação artística em forma de sublimação da vontade se efetiva. De modo
algum, essa saída de si mesmo quer dizer algo volátil. A esse respeito Heidegger escreve: “Fica
especialmente claro que Nietzsche não designa com o termo ‘embriaguez’ um estado fugidio
que, como uma ‘embriaguez’, rapidamente embriaga e se volatiza” (HEIDEGGER, 2007a, p
93). Seria, então, esse estado estético uma transfiguração ou uma explosão da vontade
fisiologicamente falando em uma divinização dionisíaca da fisiopsicologia.
Nesta forma de pensar a arte, os impulsos passam a fazer parte da criação do artista. São
os impulsos que precisam ser expressos, é a exteriorização da vontade. Nesse momento de sua
filosofia, a concepção de vontade é a mesma dos impulsos vitais que são exteriorizados, a esse
respeito escreve o filósofo: “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior [...]
67

a arte do grande ritmo, o grande estilo dos períodos, para expressar um imenso fluir e refluir de
paixão sublime” (EH, “por que escrevo tão bons livros”, §4). Esse fluir de paixão é denominado
por Heidegger de estética fisiológica.30 Para Nietzsche, a arte do Grande Estilo é a arte que leva
em consideração os impulsos, não por acaso ela aparece nos textos do filósofo com relação à
teoria dos afetos, pois comunicar um estado interno é justamente à expressão dos impulsos ou
da vontade em forma de arte.
Não seria demais pensar numa comparação entre o mundo como vontade e
representação proposto por Schopenhauer e os impulsos apolíneos e dionisíacos pensados por
Nietzsche em O Nascimento da tragédia. Apolo, o deus da beleza, do brilho, da aparência e da
ilusão, compara-se ao mundo da representação, ou seja, da individuação e da razão suficiente;
Dioniso, o deus da fúria sexual e do fluxo de vida, figura que reúne em sua natureza dor e
prazer, manifesta o Uno Primordial, a vontade mesma para além da representação. O que
equivale a dizer que a semelhança com Schopenhauer deixa de existir, uma vez que a metafísica
de artista é superada por Nietzsche com a ideia de fisiologia da arte, isto é, o Grande Estilo.
Pois a arte do Grande Estilo tem um caráter fisiológico, ou seja, comunicar um estado, uma
tensão interna, o fluir e refluir de paixões. Para Nietzsche, o ponto de partida para a criação
como obra de arte seria a vontade de potência. É dessa forma que a arte permitiria ao homem
uma elevação em detrimento do estado de mediocridade do homem moderno, já que é a partir
da atividade artística que o homem se contrapõe a toda negação da vida.

Essa é a fórmula dos espíritos livres que se direcionam rumo à autossuperação, sendo
que é a partir dela que o filósofo percebe surgir à nova aristocracia do espírito; com esta, o
homem teria a capacidade de se reconhecer como individualidade, colocando-se à frente com
suas virtudes, ao contrário dos “homens máquina” da modernidade.31 É essa característica dos
espíritos livres que leva o homem a transfigurar força em beleza, rigor moral em consciência,
dever em honestidade intelectual, severidade em doçura e dar à própria vida a bela forma da
obra de arte. Nietzsche aponta Goethe como exemplo desse artista.32 Segundo o filósofo, este
soube conquistar o domínio de si sem renunciar à sua natureza, característica do artista do

30
Cf. Heidegger. Nietzsche, I. “O grande estilo”. 2007, p. 114.
31
Esse conceito é utilizado por Nietzsche para indicar os homens que fazem parte de uma esfera robotizada da
humanidade com a ideia de universalização e igualdade entre os homens.
32
Cf. NIETZSCHE, F. “A Grande Política” Fragmentos. In: clássicos de Filosofia: Fragmento Póstumo, 35, [9],
maio-junho de 1885, p 25-26. Cadernos de Tradução nº 3. Tradução de Oswaldo Giacoia Jr. IFCH / UNICAMP,
2005.
68

Grande Estilo, ou seja, a arte dionisíaca. Ou como diz Heidegger: “O que Nietzsche denomina
o Grande Estilo está o mais próximo possível do estilo clássico” (2007, p. 114).

É com a arte que o homem se torna capaz de expressar seus impulsos, sendo que estes,
ao tomarem a palavra, terminam por destronar o estatuto privilegiado da consciência. Como
afirma Nietzsche: “ao nosso impulso mais forte o tirano em nós, submete não apenas nossa
razão, mas também nossa consciência” (BM, §158). É sem a consciência moral impressa pelos
valores da modernidade que os impulsos agem no homem, afinal, o homem para Nietzsche, não
é simplesmente um individuum, mas uma multiplicidade de impulsos que lutam
incessantemente em busca de domínio, cada um desejando impor sua própria perspectiva de
criação a partir dos impulsos. Pois estes segundo Müller-Lauter: “Assume a cada vez o domínio
no interior do conjunto de uma multiplicidade” (MÜLLER-LAUTER, p. 51).

O filósofo alemão busca a arte do Grande Estilo como expressão dos impulsos. Estes se
perderam na modernidade, cedendo terreno aos interesses pressupostos pelo utilitarismo e pelo
nivelamento do homem, mas Goethe, segundo o filósofo, soube guardar o sentido desse espírito
livre. A arte, da qual Goethe é o representante, não é o transe ou o êxtase, mas ocorre quando o
belo obtém vitória sobre o monstruoso, é o delírio da embriaguez. Esse delírio artístico precisa
ser direcionado, porém, esse direcionamento deve ser de acordo com a própria vontade do
artista. Como afirma Nietzsche:

O domínio sobre as paixões, não seu enfraquecimento ou extermínio! Quanto maior é


a força dominadora de nossa vontade, tanto mais liberdade pode ser dada às paixões.
O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões: ele é, porém,
forte o suficiente, de modo que faz desses monstros seus animais domésticos. (FP. 16
[7], primavera-verão de 1888. 2005 p. 48).
Nesse sentido, o artista do Grande Estilo é aquele que cria um estilo a partir de sua
vontade de potência. Dessa forma, o artista pensado por Nietzsche faz da vida sua arte, ao
contrário do artista moderno que espera pela superstição do gênio com sua inspiração divina
como numa espécie de demiurgo. Para o filósofo alemão, ao artista cabe criar a partir de seus
impulsos como forma de sublimação das energias vitais, ao mesmo tempo em que desconfia do
entusiasmo cego. Sublimar os impulsos seria o mesmo que uma espiritualização, não no sentido
religioso, mas uma excitação das energias vitais, pois estas precisam ser descarregadas como
afirma o filósofo alemão: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para
dentro – é isto que eu denomino a interiorização do homem: é somente com isso que cresce no
homem aquilo que mais tarde se denomina sua alma” (GM, II, §16).
69

Pensar na criação a partir das forças vitais é compreender que os impulsos ao tomarem
a palavra sublimam-se e se transformam em arte da criação, que, é anterior à razão, ou como
afirma Bornheim ao citar Hamann: “Só o conhecimento de nós mesmos, essa descida aos
infernos, nos abre o caminho da divinização” (BORNHEIM,1985, p. 82). Esse homem que
desce aos infernos, ou seja, caos da natureza e de si mesmo é o artista do Grande Estilo, ele cria
a partir da força criativa em vez da ordem e medida. Tal artista está acima das leis da ciência,
essa criação faz parte das paixões vitais. Portanto, as ações do homem devem ser conduzidas a
partir da força dos impulsos, por isso, insiste o filósofo, “não cometamos covardia em relação
a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! – É indecente o remorso”
(NIETZSCHE, CI I, §10). Esses atos são a expressão dos impulsos vitais do homem que não
devem ser negados ou suprimidos como fazem os moralistas. Essa expressão dos impulsos é o
que Nietzsche denomina de vontade potência.

3.2 “A embriaguez da Grande Vontade que exige tornar-se arte”: o Grande Estilo e a
fisiopsicologia.

Refletir sobre o Grande Estilo numa relação com a vontade de potência é pensar a vida
como obra de arte. Nesse sentido, Rosa Dias (2011) em seu livro Nietzsche, vida como obra de
arte, afirma que “(…) a vida, como vontade de potência, como eterno superar-se, é, antes de
tudo, atividade criadora e como tal é alguma coisa que quer expandir sua força, crescer, gerar
mais vida.” (DIAS, 2011, p. 34). É dessa forma que a arte possibilitaria ao homem uma
elevação em detrimento do estado de mediocridade do homem moderno, já que é através da
atividade artística que o homem se contrapõe a toda negação da vida. Com a negação da vida a
partir da tradição socrático-platônico-cristã, só resta proclamar a potência criadora como
alternativa de uma vida exuberante. A atividade criadora para Nietzsche não tem nenhuma
relação com a concepção metafísico-religiosa, pois a morte de Deus possibilita ao filósofo
retirar das palavras o tom sagrado, com isso, a criação adquire uma significação eminentemente
humana. A esse respeito Dias escreve: “criar é uma atividade constante e ininterrupta. É estar
sempre efetivando novas possibilidades de vida” (DIAS, 2011, p. 65). Essa criação é uma
atividade a partir da qual se produz constantemente vida, e vida para Nietzsche é vontade de
potência e nada além disso.
A vida como vontade de potência é compreendida por Nietzsche como vontade de vir-
a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no criar, está incluído o destruir. A potência para
70

expandir, o poder de criar, de crescer, de vencer as resistências é o que impulsiona o movimento


da vida, com isso, também o destruir. Não há construção sem destruição, ou seja, a criação é
vontade de vir-a-ser. No que diz respeito a esse processo ininterrupto da multiplicidade dos
impulsos criadores, Müller-Lauter (2009, p.68) escreve em sua obra intitulada Nietzsche: sua
filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia: “A efetividade a que se refere à
filosofia de Nietzsche é a da multiplicidade de vontades de potência, que diz respeito a
antagonismos interrelacionados, formando o mundo em tal relação”. É Nesta multiplicidade
antagônica que o artista do Grande Estilo cria e se integra à realidade, como afirma Scarlett
Marton:
Nietzsche já vislumbra um único e mesmo procedimento tanto na vida social e
psicológica quanto na fisiológica. O conceito de vontade de potência, servindo como
elemento explicativo dos fenômenos biológicos, será também tomado como
parâmetro para a análise dos fenômenos psicológicos e sociais (MARTON, 1990,
p.29).

A arte do Grande Estilo não pode ser comparada a arte do jovem Nietzsche, pois esta
tem uma influência da filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia schopenhaueriana
sobre a nietzschiana está expressa principalmente nos primeiros escritos. Dessa forma, o Grande
Estilo nada tem a ver com tal filosofia, pois a arte do Grande Estilo está mais ligada à fisiologia
do que a metafísica de artista - como é o caso da filosofia da arte de Schopenhauer. Nietzsche,
ao se contrapor à metafísica de artista, fala da arte como condição fisiológica. A condição
fisiológica da qual o filósofo se refere é o estado dionisíaco, ou seja, a sublimação dos impulsos
vitais, a embriaguez necessária para a arte do Grande Estilo e da vontade de potência. Ou como
afirma Heidegger: “Partindo da embriaguez como estado estético fundamental, passamos para
a beleza; a partir dela retornamos aos estados de criação e de recepção [...], pois vida é elevação
da vida, e a vida ascendente é a embriaguez” (2007a, p. 111).
Martin Heidegger, no primeiro volume do livro em que estão reunidas as suas preleções
sobre Nietzsche ministradas na Universidade de Freiburg em Brisgau entre os anos de 1936 e
1939, ao falar da estética nietzschiana em sua obra Nietzsche I, justifica a vontade de potência
como ponto fundamental do Grande Estilo. Assim escreve o filósofo:
Onde o grande estilo está presente, a arte é real na pureza de sua plenitude essencial.
Só se deve avaliar a arte segundo o que ela é em sua realidade essencial; somente
segundo essa sua realidade ela deve ser concebida como uma figura do ente, ou seja,
como uma figura da vontade de potência. (2007ª, p. 117).

O Grande Estilo deve ser ponderado em conjunto com a fisiologia, e consequentemente


com a teoria das forças em Nietzsche. Essa relação não é arbitrária, uma vez que o próprio
filósofo também a faz ao afirmar que é necessária uma precondição fisiológica na estética. A
71

compreensão da predisposição fisiológica nos conduz à concepção de vontade, contudo,


vontade de maneira alguma deve ser entendida como uma faculdade, mas sim como uma
determinação da realidade. Aqui nos encontramos numa concepção de vida enquanto vontade
de potência e nada, além disso,33. O que determina a vida ou a vivência são os impulsos vitais
que necessariamente são anteriores à própria razão. Nesse sentido, o Grande Estilo é a arte da
vontade de potência que libera a vontade criadora do artista, como faz um arquiteto por
exemplo. Falar de atividade criadora é pensar numa criação a partir da própria vontade, não no
sentido de inspiração, mas na expressão da vontade de potência, como um arquiteto que
transforma em arte sua vontade, essa é a característica do artista do Grande Estilo. Não por
acaso, Nietzsche escreve:
O arquiteto não representa nem um estado dionisíaco, nem um apolíneo: aí é o grande
ato de vontade, a vontade que move montanhas, a embriaguez da grande vontade que
exige tornar-se arte. Os indivíduos mais poderosos sempre inspiraram os arquitetos: o
arquiteto sempre esteve sob a sugestão do poder. Na construção devem tornar-se
visíveis o orgulho, o triunfo sobre a gravidade, a vontade de potência; arquitetura é
uma espécie de eloquência do poder em formas, ora persuadindo, até mesmo
lisonjeando, ora simplesmente ordenando. O mais alto sentimento de poder e
segurança adquire expressão naquilo que tem grande estilo. (CI IX, §11).

Com a doutrina da vontade de potência, o sentido nietzschiano de criação torna-se mais


amplo, uma vez que a teoria das forças atua de forma ampla e sem distinção, pois o mundo é
vontade de potência e nada além disso. Essa atuação se expressa por meio de atrações e
repulsões que ligam os centros de forças entre si. Para Nietzsche, o importante é fornecer uma
explicação de caráter criativo como vontade incessante de criação, não apenas uma explicação
de tudo o que ocorre no interior do mundo.
O filósofo alemão entende o mundo como uma grandeza de forças e nesse sentido, pode-
se pensar ainda que tal grandeza total de força seja finita e determinada, já que a seu ver o tempo
é infinito, o que lhe fez pensar numa criação contínua. Essa doutrina justifica a ideia de que o
mundo não possui um fim, tudo é uma repetição na relação entre as forças. Pensar numa
interpretação mecânica do mundo seria um equívoco para Nietzsche como fica patente no
apontamento de 1887: “Mecânica reduz o mundo à superfície, para fazê-la compreensível. Ela
é propriamente só uma arte de esquematizar e abreviar, uma dominação da multiplicidade pela
arte da expressão – nenhum entender, mas um designar para fins de comunicação” (FP. Verão
de 1886 – outono de 1887, nº 5 [16], apud, MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 108). Por isso
Nietzsche tem de ir além da compreensão mecânica e pensar numa interpretação dinâmica do
mundo, o que equivale a dizer que a vontade de potência é o que regula o desenrolar de cada

33
Cf. NIETZSCHE. BM, § 36.
72

impulso, pois a vontade de potência atua numa relação interna. Nesse sentido, para o filósofo
alemão, o mundo visto de dentro seria a busca insaciável pelo exercício da potência, ou seja,
expressão de um impulso criativo.
A partir do pensamento nietzschiano, no que diz respeito à luta incessante de forças
como acúmulo e descarga de energia, deve haver uma mudança na compreensão da elevação e
superação humana. Assim, a vontade de potência é compreendida em sua incondicionalidade e
globalidade como movimento de acúmulo e descarga de energia que não conhece nenhuma
exceção. Deste modo, a vontade de potência tem espaço para hierarquia valorativa humana em
que um determinado tipo de homem consegue fazer parte desse pensamento de interpretação
antiteleológica, ou seja, o além-do-homem que quer intensificar e superar a si mesmo.
O tipo de homem superior se percebe no plano além do bem e do mal da vontade de
potência. Dessa forma, os impulsos humanos deveriam possuir a mesma incondicionalidade da
vontade de potência, pois esta perpassa o reino inteiro da vida. A partir dessa compreensão da
vida, a Nietzsche parece ser necessário libertar a ciência de sua estreiteza mecanicista e, também
a filosofia de suas pressuposições metafísicas e organicistas. Para o filósofo, estas
interpretações veem o mundo nas perspectivas teleológicas e teológicas. Contrapondo a essas
interpretações, o além-do-homem poderia incorporar o caráter do mundo, isto é, a luta entre as
forças, o afastamento da compreensão religiosa de um ser criador, cuja compreensão indica
uma finalidade ao mundo. Logo, esse tipo de homem passa a criar a partir da própria vontade e
sem finalidade metafísica, mas como superação de si mesmo. Não há objetivos a atingir; por
isso ela é insaciável, continua a exercer-se a vontade de potência. Enfim, não há finalidade; por
isso ela é desprovida de caráter teleológico.
Além disso, a vontade de potência não é entendida pelo filósofo alemão como princípio
metafísico, mas de caráter relacional e plural que se expressa no confronto com outras vontades
de potência. Por isso, o mundo entendido pelo filósofo é o mundo “aparente” e perspectivo,
percebido como a soma das ações, do jogo de todos os centros de forças. Tendo isso em vista,
é possível afirmar, segundo o filósofo, que a existência é apenas um jogo de forças. Nesse
sentido, não há dicotomia entre o mundo perspectivo e o “mundo verdadeiro”, pois numa visão
nietzschiana, o “mundo verdadeiro” é, propriamente, o nada. Levando em conta tal constatação,
pode-se inferir que a hipótese de um mundo criado no sentido religioso é falsa, pois, para o
filósofo, o mundo é um vir-a-ser constante partindo de seu caráter perspectivístico. A criação
do mundo seria entendida então de forma imanente a partir do confronto e resistência das forças.
Cada força visa, a partir disso, a ampliar seu poder e a assenhorear-se de outras forças
73

circundantes. Por isso, o caos é visto por Nietzsche como turbilhão que se precipita
destrutivamente sobre si mesmo, para em seguida criar. É esse caos que permite a luta
incessante das forças criadoras e destrutivas da vontade de potência, que no limite, seriam
moldadas pela arte do Grande Estilo.
No que diz respeito à arte como direcionamento dos impulsos, Nietzsche define a
vontade de potência como um movimento de totalização que visa dar conta de todos os aspectos
da vida e do mundo. É importante notar que qualquer que seja a caracterização da vontade de
potência, a saber, força de tensão, princípio do movimento, força impulsora, fato primordial,
seu aspecto é sempre o mesmo. Desse modo a vontade de potência é para Nietzsche uma nova
interpretação do mundo e de todo acontecer, ou seja, o vir-a-ser. Contudo, essa interpretação
pode ser vista como uma tentativa de furtar-se às consequências niilistas da moral, assim como
da concepção científico-mecanicista e da impossibilidade de atribuir sentido às ações humanas
no fluxo incessante do vir-a-ser. Com tudo isso, instala-se “o perigo dos perigos”: tudo é sem
sentido.
Essa interpretação nietzschiana, no entanto, tem em vista um contramovimento que
possibilite uma hierarquia e um aumento efetivo das forças. Dessa forma, a vontade de potência
é um sentido em si mesmo. Cada organismo é um mundo em torno de si mesmo, o que equivale
a dizer que cada ser orgânico pode criar a partir dos seus impulsos. Essa pressuposição de que
o princípio criador atua em todo ser orgânico e inorgânico desvela uma posição afirmativa.
Portanto, Nietzsche concebe que tudo o que se apresenta a cada ser como seu mundo exterior é
uma soma de estimativa de valor. Essas estimativas devem estar relacionadas com as condições
de conservação e que, como diz o filósofo: “a vontade de potência é o que conduz também o
mundo inorgânico, ou, pelo contrário, que não há nenhum mundo inorgânico” (FP: 1887, XI,
34 (234), apud, MÜLLER-LAUTER, 1997). A hipótese de que a vontade de potência atua no
mundo inorgânico é pensada por Nietzsche a partir da compreensão de que também na química
e na ordem cósmica haveria, a partir de cada centro de força, a vontade de tornar mais forte.
Pode-se afirmar ainda que a vontade de potência é elaborada por Nietzsche como
tentativa de superar o niilismo e de propor um tipo superior de homem. Temas como esse são
relacionados pelo filósofo alemão em dois momentos: 1; o niilismo é compreendido como ponto
de partida, como decadência de uma valoração inteira, como a constatação de que faltam as
forças interpretativas; 2; a vontade de potência permitiria compreender o processo de ruína dos
valores e se colocaria como um novo princípio de avaliação que afirma a vida, esse seria o
princípio positivo dessa doutrina.
74

O que Nietzsche propõe para substituir a ruína dos valores morais, ou, o que seria a
ruína de uma determinada interpretação é justamente outra interpretação nova e distinta. Pois
essa nova interpretação é radicalmente distinta das demais, sejam elas: morais, metafísicas,
científicas ou religiosas. A interpretação nietzschiana seria de caráter perspectivística da
existência. Nesse sentido, a certificação do caráter afirmativo e efetivo das forças criativas e
das vontades múltiplas de potência que interpretam, dependeria, portanto, da perspectiva
humana de assumir uma determinada hipótese de interpretação tanto do mundo orgânico quanto
do mundo inorgânico, já que o filósofo em questão admite um único mundo regido pela vontade
de potência.
As inéditas concepções, de Nietzsche no que diz respeito à vontade de potência
corroboram para uma nova forma de arte. Essa nova forma de pensar na arte é o que
possibilitaria a criação de novos valores. As condições para a criação desses valores dependem
de um novo tipo de homem, ou seja, o tipo dionisíaco ou os filósofos do futuro, aqueles a quem
Nietzsche espera que sejam capazes de criar. Por isso a arte possui mais valor do que a verdade,
pois o filósofo atribui a arte também o estatuto de ser um contramovimento ao niilismo e a
vontade de nada. A arte seria, então, o grande estimulante da vida, ou seja, uma nova forma de
interpretar o mundo, pois a vontade de potência como centro de forças atuantes entre si possui
um ponto de vista em que organiza o todo a partir de perspectivas entre essas forças. Ou como
afirma Nietzsche: “A vontade de potência interpreta: na formação de um órgão, trata-se de
interpretação; ela demarca, determina graus, diferenças de potência [...] Na verdade,
interpretação é um meio de assenhorear de algo” (KSA 12. 139, FP 2 [148]. Essa nova
interpretação seria a arte da criação, a esse respeito escreve Roberto Machado na obra, Nietzsche
e a verdade: “A arte expressa uma superabundância de forças: remete aos instintos
fundamentais, à vontade apreciativa de potência” (MACHADO, 2002. p, 10). Dessa forma
interpretação é para Nietzsche toda atividade plástica criadora de sentido a partir de
determinadas interpretações entre os afetos ou forças que emanam da vontade de potência.

Portanto, pensar na vontade de potência como força plástica criadora é levar a cabo a
ideia de que o mundo é somente vontade de potência, como fica evidenciado pelo filósofo
alemão no apontamento §36 de Para além de Bem e Mal, em que o perspectivismo no homem
a partir dos impulsos procura compreender e criar a partir de seus próprios afetos. É essa
vontade individual que se caracteriza como efetivar-se a si mesmo, com isso, criar novas
configurações da realidade em geral dependendo de cada perspectiva em relação com os
demais. A criação de uma obra de arte é necessariamente a criação do Grande Estilo, pois este
75

se efetiva no próprio efetivar-se da vontade, num jogo de forças de interpretação e criação. A


vontade criadora não pode ser entendida como fundamento metafísico, mas como uma
exteriorização dos impulsos vitais que Nietzsche chama de caráter fisiopsicológico.

3.3 “Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem?”: da embriaguez à


plenitude.

Para falar da tarefa de superação dos valores e do além-do-homem em Nietzsche tomarei


como ponto de partida a obra Assim falou Zaratustra. Keith Ansell-pearson afirma que a
importância de Zaratustra é ser um livro que acentua e ironiza a necessidade que se sentia de
uma política de redenção em uma época de niilismo.34 Sobre esta obra o próprio autor escreve:
“Esta obra ocupa lugar à parte [...] Ali o homem é superado a cada momento, o conceito de
‘Além-do-homem ’ fez-se ali realidade suprema” (NIETZSCHE, EH, “Assim falou Zaratustra,
§ 6). Em Zaratustra encontram-se argumentos que indicam a destruição dos valores, a ideia do
amor pela terra e a glorificação da vida, pressupostos indispensáveis na transvaloração de todos
os valores. Fica evidente ainda no prólogo que Zaratustra passou por uma transformação.
Durante uma década a personagem principal se isolou na solidão da caverna, onde se deu tal
processo. Assim nos relata seu autor: “Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da
solidão, sem deles se cansar. No fim, contudo, seu coração mudou” (NIETZSCHE, ZA, prólogo
§1). A transformação de Zaratustra nos vem à luz como um prelúdio ao grande anúncio da
morte de Deus, já que esse fato é a boa nova de Zaratustra. O seu primeiro interlocutor – o velho
santo-, percebe sua transformação e exclama:

Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-
se Zaratustra; mas está mudado [...] mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança,
Zaratustra, despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem? Mal
sabia o interlocutor de Zaratustra que este tinha uma grande revelação a fazer: “será
possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?”.
(NIETZSCHE, ZA, prólogo §2).
Sua retirada na solidão da caverna foi um apresto para o momento crucial na sua vida
que só aconteceria após o anúncio da morte de Deus: “a transvaloração dos valores”. Se os
valores vigentes estão fundamentados no mundo metafísico, seria preciso então suprimir a sua
fundamentação, e a partir dessa tarefa corrosiva, criar novos valores. Uma vez destruídos os
valores metafísicos, outros, humanos, demasiadamente humanos, surgiriam em algum
momento e em algum lugar. Pois a morte de Deus é que permitiria a Nietzsche conceber o

34
Cf. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político. 1997, p. 116.
76

projeto mais importante da sua vida. O dualismo entre o mundo sensível e o metafísico foi uma
invenção da doutrina platônico-cristã. Foi o cristianismo quem vitalizou a dicotomia e criou um
sentido antinatural para a vida. O enaltecimento exacerbado do mundo suprassensível e a
consequente desvalorização do mundo sensível é a forma niilista de atribuir valores à “fantasia”.
É a morte de Deus, no entanto, que tornaria possível a Zaratustra fazer a travessia do niilismo.
Seria preciso, portanto, suprimir o pensamento dicotômico para se pensar na criação dos novos
valores.

Os valores vigentes desprezam a vida, o corpo e a terra. Segundo o filósofo alemão, é


preciso combatê-los para que surjam outros. Com a criação dos valores metafísicos, a alma foi
forjada para arruinar o corpo. Inventou-se um “mundo verdadeiro”, fabulou a noção de Deus
como “a máxima objeção contra a existência”.35 Essa é a denúncia que Nietzsche emprega como
pressuposto para a criação de novos valores, pois assim escreve: “O conceito de ‘Deus’ foi até
agora a máxima objeção contra a existência... Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade
em Deus: com isto somente redimimos o mundo” (NIETZSCHE, CI VI, §8). Tornando-se
criatura e criador de si mesmo, o novo homem prezaria os valores em harmonia com a terra,
com a vida e com o corpo, como fez Zaratustra.

É possível supor que Zaratustra outrora acreditasse em Deus e fora niilista, pois, no seu
percurso da descida da montanha, ele encontrou o ancião que lhe diz: “Não me é desconhecido,
este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado”
(NIETZSCHE, ZA, prólogo §2). A mudança pela qual passou Zaratustra pode ser entendida
como forma de demonstrar que é possível dar um novo sentido ao homem, ou seja, autônomo
e capaz de afirmar suas energias vitais.

O projeto da transvaloração de todos os valores consiste em suprimir o solo a partir do


qual os valores até então foram engendrados. Nesse sentido, Nietzsche critica a metafísica, a
religião e a moral. Derrubar os ídolos, demolir os alicerces e acabar com os fundamentos dos
valores é o passo fundamental para realização do seu desígnio. Como diz o próprio filósofo:
“Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim faz parte de meu ofício”
(NIETZSCHE, EH, prólogo, §2).

O projeto nietzschiano baseia-se em inverter os valores. Após o anúncio da morte de


Deus, Zaratustra exorta seus ouvintes a permanecerem fiéis à terra. Com isso, a dicotomia entre
corpo e alma também foi suprimida, desde então o corpo é a evidência da miséria da alma.

35
Cf. Ecce Homo, Por que sou um destino, § 7.
77

Agora é o corpo que dá sentido ao espírito; sentir e pensar são obra do corpo e não do sujeito,
afinal, para Nietzsche, a grande razão é o corpo36. Mas para isso, deve-se permanecer fiel à terra
como suplica Zaratustra: “Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis
nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles, que o saibam ou não”
(ZA, prólogo §3). Nietzsche, ao conclamar pela fidelidade à terra, está falando também do
desprezo do mundo “verdadeiro”. Essa inversão é o pressuposto da transvaloração de todos os
valores. Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, ‘o sem Deus’, conta naturalizar os
valores morais.

A criação de novas tábuas de valores é tarefa dos filósofos legisladores, porém, esses
filósofos, segundo Nietzsche, ainda não tenham existido. Mas devem existir, já que a pedra
fundamental foi lançada, - o anúncio da morte de Deus. O que o filósofo alemão está propondo
é a inovação dos filósofos como verdadeiros legisladores, não apenas trabalhadores filosóficos,
pois, onde estes se detêm os filósofos legisladores começam, inovam e criam as novas tábuas
de valores. É importante mencionar que não é com trabalhadores filosóficos que Nietzsche
conta para assumir a tarefa da transvaloração37. Entretanto é necessário ser como os filósofos
legisladores que inovam e dizem “assim deve ser!” São eles que têm a missão filosófica de criar
valores, como fazem os artistas do Grande Estilo.

Com a desvalorização dos valores supremos a partir da morte de Deus, se instaura o


niilismo. É preciso desqualificar a ideia de que nada vale a pena, de que tudo é em vão. Segundo
Nietzsche, só existe uma maneira de alcançar tal intento: dar um novo sentido a existência
humana, só que agora inversos aos valores metafísicos, mas entendendo o homem enquanto
parte integrante deste mundo. A fabulação da dicotomia entre os dois mundos se dá pela
incapacidade do homem suportar a própria finitude, de tolerar a visão do sofrimento imposta
pela morte. Negar este mundo e forjar a existência de outro foi a maneira metafísica de
tranquilizar o homem ante o sofrimento. Esse mundo forjado se tornou a sede e a origem dos
valores, ao mesmo tempo em que desprezou a vida e a existência em si mesma. Na tentativa de
justificar a existência humana com o ideal ascético, negou-se o mundo e condenou a vida, a
isso Nietzsche denomina de negação dos impulsos.

Se o declínio do cristianismo e do dualismo metafísico acarreta um niilismo suicida de


que nada vale a pena, nada tem sentido, tudo é em vão, trata-se, portanto, de mostrar que a

36
Cf. Assim Falou Zaratustra, “Dos desprezadores do corpo”.
37
Embora os trabalhadores filosóficos tenham a capacidade de dar início ao projeto da transvaloração, Nietzsche
não conta com eles, já que estes não conseguem assumir tal empreitada por inteiro.
78

religião cristã, assim como a interpretação metafísica é só mais uma interpretação da existência
e do mundo. Nesse sentido, Nietzsche propõe uma retomada das rédeas do destino da
humanidade em que o homem seja fiel à terra e consequentemente à sua existência. Cristo,
enquanto marco do pensamento ocidental que substituiu o homem pagão pelo novo homem, é
também, por meio do ideal ascético, o marco da negação deste mundo em que vivemos. No
entanto, o Cristo que estamos nos referindo é o tipo redentor. Já que Nietzsche distingue o Jesus
de Nazaré como uma figura histórica, do Cristo dos fiéis, - o redentor. Esse tipo salvador da
humanidade perdeu sua verdadeira face histórica ao cair em mãos sacerdotais após a morte do
38
evangelho na cruz. O projeto nietzschiano é justamente inverter o sentido platônico-cristão
da existência humana. É com a substituição desse homem pelo artista autônomo que Nietzsche
quer se colocar como um novo marco na história do ser humano. Para tanto, seria preciso à
realização do seu projeto da transvaloração de todos os valores a partir do anúncio da morte de
Deus. A ideia de criação de novas tábuas de valores é uma preocupação do filósofo que fica
evidente nos seus textos do derradeiro período em conjunto com os conceitos supracitados.
Nesse sentido, o filósofo afirma:

Pois se a verdade entra em luta com a mentira de milênios, haveremos de ter abalos
tremendos, uma convulsão de terremotos, uma transposição de montanhas e vales,
conforme jamais sequer foi sonhada. O conceito política, então, estará completamente
envolvido em uma guerra de espírito, todas as imagens de poder da velha sociedade
explodirão no ar – todas elas descansam sobre a mentira: haverá guerras conforme
jamais as houve sobre a terra. Só a partir de mim é que há na terra grande política.
(EH, “porque sou um destino”, § 1).
A guerra é a colisão de consciência, pois na transvaloração dos valores será preciso
destruir os valores vigentes e isso causará grandes abalos. Contudo, no entender de Nietzsche,
não basta ponderar sobre os valores antigos, mas sobre a própria procedência desses valores,
pois o valor dos valores está diretamente ligado aos que os engendraram. Na seção “das mil
metas e uma só meta” de Assim falou Zaratustra, o autor nos esclarece que a criação de novos
valores depende da avaliação dos próprios valores. Sem essa avaliação seria impossível
determinar o valor dos valores e, consequentemente, o sentido e o alcance da transvaloração –
afinal, criar também é avaliar. Eis o que nos fala o filósofo: “somente pelo estimar há valor: e
sem o estimar a noz da existência seria oca” (ZA, “das mil metas e uma só meta”). É essa
avaliação que constitui a base para a criação dos novos valores e o sentido da existência.
Nietzsche, ao criticar a modernidade, se utiliza da noção de Grande Estilo. A arte
valorizada no pensamento nietzschiano não tem a pretensão de expressar a verdade sobre a

38
Cf. O Anticristo, § 39.
79

existência, mas expressar a própria existência de modo efetivo. Com isso, tem-se em vista uma
crítica à arte metafísica pensada no primeiro momento a partir da influência de Wagner.
Nietzsche transita da valorização da metafísica da arte para uma arte dos impulsos vitais que
ele denomina de arte fisiológica. A partir dessa compreensão de arte o filósofo ultrapassa as
oposições entre vontade e representação, essência a aparência, verdade e mentira. Uma análise
mais aprofundada das considerações políticas mostra o quanto Nietzsche é um pensador
preocupado com uma determinada forma de valorização do que é humano e do modo de
organização da vida social e política. Ademais, a ácida crítica nietzschiana não deixa de poder
representar um desafio aos fundamentos da política moderna.
De modo algum é honesto utilizar os escritos de Nietzsche como alguma forma de
fundamentação do nacional-socialismo da Alemanha. Nesse sentido, Rosa Dias comenta as
críticas de Nietzsche sobre os alemães: “Quando ele imagina uma espécie de homens
absolutamente contrários aos seus instintos, é sempre um alemão que se apresenta a seu espírito.
O imperialismo bismarckiano o revolta” (DIAS, 2011, p. 26). A autora ainda cita uma carta de
29 de março de 1887, em que Nietzsche responde a Theodor Fritsch, que lhe enviara alguns
números de um jornal antissemita:
Devolvo, pela presente, os três números do jornal Correspondência que o senhor me
enviou, agradecendo pela confiança com que me permitiu dar uma olhada na bagunça
de princípios que se encontra na base desse estranho movimento. Peço, no entanto,
não mais remeter, de agora em diante, tal gênero de publicação: temo acabar,
finalmente, perdendo a paciência [...] Essas constantes falsificações absurdas e
acomodações de conceitos vagos, como “germânico”, “semita”, “ariano”, “cristão”,
“alemão” – tudo isso poderia, no final das contas, acabar me irritando seriamente e
tirando-me da irônica complacência com que, até agora, tenho considerado as
virtuosas veleidades e o farisaísmo dos alemães atuais. E, finalmente, o que o senhor
acha que sinto quando vejo o nome de Zaratustra na boca de antissemitas?
(NIETZSCHE, Carta a Theodor Fritsch de 1887, apud DIAS, 2011, p. 27).

Dessa forma, acreditamos que o filósofo alemão critica a modernidade sem tomar partido
de movimentos em que a vida enquanto arte seja negada, como é o caso dos movimentos citados
na carta, ou seja, antissemitismo, arianismo, cristianismo e germanismo. A forma como a
política é compreendida e conduzida na modernidade é um assunto sempre presente nas obras
de Nietzsche, por ser, a seus olhos, uma das principais razões da incapacidade moderna para a
edificação de cultura. Em vista disso, seus posicionamentos acerca da política não podem ser
considerados isoladamente, como assunto à parte, desvinculado de outras preocupações
maiores que marcam seu pensamento, como é o caso da estética – é necessário, acima de tudo,
compreender o lugar que a política ocupa na preocupação de Nietzsche com a cultura. Somente
considerando-se a relevância atribuída por ele à política, enquanto instrumento para a cultura
pode-se compreender sua crítica à política moderna – um obstáculo, em sua avaliação, para o
80

cultivo de ímpetos grandiosos entre os homens. Deve-se reconhecer no envolvimento com a


política a satisfação de uma vontade de ordenamento, de geração de forma, de beleza, que seduz
os homens para o ordenamento social.
Por isso, os termos criar e legislar se tornam importantes na filosofia de Nietzsche. O
criar cabe aos artistas, o legislar aos políticos. A esse respeito escreve o filósofo: “Seu conhecer
é criar, seu criar é legislar” (NIETZSCHE, BM, §211). Pensar a arte em Nietzsche é pensar na
criação e não na recepção, pois criar no entendimento do filósofo alemão é expor sua vontade
de potência, sua força, seu entusiasmo, ou como afirma Heidegger:
A arte é, para Nietzsche, o modo essencial como os entes são criados para serem entes.
Como o que está em questão aqui é esse elemento criador, legislador e fundador de
configurações próprio à arte, a determinação essencial da arte só pode alcançar sua
finalidade quando for perguntado o que é a cada vez criador na arte. (2007a, p.120).

Criar novas configurações é pensar em novos valores ligados à arte do Grande Estilo.
As novas configurações são pensadas por Nietzsche como superação da décadance. A
superação seria alcançada mediante a transvaloração de todos os valores, tema que se tornou
caro para o filósofo. Tanto é assim que seu último projeto só foi levado a cabo no derradeiro
ano de produção intelectual, de forma mais precisa com a conclusão de sua obra principal neste
tema denominada de O Anticristo. Ali o filósofo escreve:
Não subestimamos isto: nós mesmos, espíritos livres, já somos uma ‘tresvaloração de
todos os valores39’, uma encarnada declaração de guerra e vitória em relação a todos
os velhos conceitos de ‘verdadeiro’ e ‘não verdadeiro’. As percepções mais valiosas
são alcançadas por último (AC, §13).

Essa reviravolta de valores pressuposta por Nietzsche tem um vínculo com as noções de
Grande Estilo e Grande Política, pois tanto a primeira como a última pressupõem um devir, e
criação e legislação são também destruição do moderno para o novo. Essa seria a guerra
anunciada por Nietzsche na última seção de Ecce Homo, Por que sou um destino § 1. O filósofo
escreve: “haverá guerras como ainda não houve sobre a terra. Somente a partir de mim haverá
grande política na terra”. Nota-se que a guerra que o filósofo se refere não é de povo contra
povo, mas de concepções. Esse processo que se percebe na crítica nietzschiana de autorreflexão
se dá de maneira conflituosa, já que em toda criação há também destruição que não se esgota
nunca. “A doutrina da vontade criadora privilegia justamente a atividade criadora. É uma nova
maneira de pensar que se aplica ao devir, opõe-se à metafísica, que busca o estável e a
permanência” (Rosa Dias, p. 65). Com essa concepção conflituosa da realidade, Nietzsche
critica também a metafísica e toda forma de pensamento que vigora na modernidade.

39
Umwertuung aller Werte é tradicionalmente traduzido por transvaloração de todos os valores, porém, nesta
edição de O anticristo, Paulo César de Souza utiliza tresvaloração de todos os valores.
81

Com essa constatação de que a modernidade dá lugar à degeneração, Nietzsche, ainda


no prólogo de sua obra que consuma, segundo ele mesmo, a transvaloração de todos os valores,
escreve: “É preciso estar habituado a viver nos montes – a ver abaixo de si a deplorável
tagarelice atual da política e do egoísmo das nações”. (AC, Prólogo). Percebe-se dessa maneira
que o filósofo alemão critica a política de sua época e pensa em uma tipologia de homem que
seja superior ao pensamento da política moderna. Não só a política, mas toda a modernidade.
Porém, Habermas em seu livro: O discurso filosófico da modernidade, afirma que a filosofia
de Nietzsche apresenta problemas em termos de coerência interna que poderiam inviabilizar a
posição do filósofo frente à modernidade. Para Habermas, Nietzsche não pode criticar a
modernidade com os mesmos pressupostos contidos nela, ou como afirma o filósofo de
Frankfurt:
Nietzsche deve seu conceito de modernidade, desenvolvido em termos de uma teoria
do poder, uma crítica da razão desmascaradora que se coloca a si mesma fora do
horizonte da razão. Essa crítica dispõe de uma certa sugestividade porque apela, pelo
menos implicitamente, a critérios tomados das experiências básicas da modernidade
estética. (HABERMAS. 2002, p. 139).40

A crítica nietzschiana à modernidade vai desde as artes, a metafísica tradicional,


passando pela política e as ciências, porém, a abordagem que está sendo feita aqui se restringe
à arte. Nesse sentido, a acusação de Habermas se torna infundada, uma vez que Nietzsche cria
conceitos para fundamentar sua crítica, a saber, Grande Estilo. Nestas noções estão inseridas
outras concepções como vontade de potência e novas configurações de lutas, não no sentido de
aniquilamento do adversário, mas na autossuperação de si mesmo. Outra crítica de Habermas é
em relação ao sujeito, porém, em Nietzsche não há sujeito, o que há são configurações de
sujeitos, ou seja, o homem como multiplicidade de vontades de potências. É certo que Nietzsche
não é o único a fazer uma crítica à modernidade, contudo, sua neutralidade com a história da
filosofia o coloca numa posição de privilégio ao colocar o homem numa relação íntima com o
mundo. A esse respeito a pesquisadora Vânia Dutra de Azeredo escreve:
Não requeremos para Nietzsche uma positividade conceitual no sentido de ele ter uma
posição privilegiada que permitiria descrever a realidade. Mas, ao contrário, o que
propomos como eixo central de sua filosofia é, por um lado, a rejeição de uma posição
de neutralidade que captaria o mundo como um dado prévio e, por outro, a afirmação
de uma relação impositiva do homem com o mundo. Esse é o sentido de o valor do
mundo estar em nossa interpretação, de as interpretações humanas serem avaliações
perspectivas por meio das quais manifestamos um crescimento de potência. Se o
filósofo recusa a noção de verdade como predicado das concepções de mundo é
porque o entende enquanto produto da imposição perspectiva. Isso faz do mundo um
fluxo, uma falsidade em constante deslocamento. Dizer algo acerca do mundo e dos
existentes é propor uma falsidade que pode se mover, se alterar. Daí a própria filosofia
de Nietzsche, à medida que propõe uma leitura do mundo, não poder se furtar a essa

40
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes: 2002.
82

classificação sem comprometer o conjunto da sua exposição. (AZEREDO, 2010,


p.156).

A interpretação que Nietzsche faz do mundo é apenas uma perspectiva que leva em
consideração a relação do mundo com o próprio mundo. A arte de interpretar é também a arte
de expressar sua vontade de potência, ou pelo menos de aumentar sua potência. Em Nietzsche
não é possível pensar numa natureza humana diferenciando o homem dos outros organismos,
ambos são constituídos por forças agindo e resistindo umas com as outras.

Contrário à elevação da potência é o conhecimento prático, os avanços tecnológicos, as


mudanças sociais e políticas que são insignificantes perante a criação da verdadeira cultura –
tarefa dos grandes espíritos -. É indispensável empenhar-se no aprimoramento individual no
árduo trabalho de lapidar o próprio espírito. Só é possível esse trabalho de grandeza intelectual
com a disciplina e a liberdade interior para defender-se contra a influência opressora do estado
moderno uniformizada. Essas relações de poder são políticas e não podem prescindir da questão
estética que leva em consideração a teoria das forças. Com isso, teremos uma nova formação
de homem, não de humanidade, pois Nietzsche ver o homem sempre na sua individualidade
como multiplicidade. O que poderia ser chamado de além-do-homem.

Dessa forma, a ideia de além-do-homem não é uma evolução da humanidade, muito


menos da ascensão de uma classe social. O além-do-homem é um contra movimento ao ideal
de homem genérico. Nietzsche não está preocupado com a humanidade, mas com o homem do
futuro. Esse homem não pode ser compreendido como essência normativa do humano e sim de
uma raça futura. Essa raça, da qual pensa Nietzsche, será uma raça franca, tanto no bem quanto
no mal. O além-do-homem não é um fim, mas um meio para se chegar à raça do futuro.

O além-do-homem deve ser desejado como uma forma de suprir a fraqueza da


humanidade, mas sem a utopia dos socialistas e dos cristãos que esperam pelo messiânico. O
tipo ideal proposto por Nietzsche não tem objetivo teleológico, pois o alvo não é a humanidade,
mas o próprio homem. Jamais houve humanidade no sentido de acumulação de forças, o que
há são figuras adquiridas como maturação da história e de evolução do processo histórico. O
além-do-homem para Nietzsche é capaz de perceber o alvo da existência que foi escamoteado
dos homens – o caráter trágico-. Esse tipo ideal de homem pode desmascarar os doutores do
alvo da existência que a transformaram interessante por algum tempo aos seus olhos lhes
passando necessidade de confiança na vida.
O processo escatológico baseado no antagonismo maniqueísta pensado pelos socialistas
tem a intenção de prevenir para sempre as crises e tensões da humanidade. Esse processo
83

teleológico, ao contrário do que pensam os socialistas, agravará ainda mais a decadência da


humanidade em rebanho, ao invés de libertá-la do julgo do modelo tradicional de
apascentamento do homem. A esse respeito escreve Nietzsche: “Desde Platão todos os teólogos
e filósofos seguem a mesma trilha – isto é, em questões morais o instinto, ou a fé, como dizem
os cristãos, ou o rebanho, como digo eu, triunfou até agora” (NIETZSCHE, BM, §191). A
história se propaga em apologias de libertação da humanidade, mas uma libertação que se
sucede com outro aprisionamento, isto é, a doutrina cristã segundo Nietzsche. A teleologia
cristã fundamenta a modernidade e não permite que as classes percebam o quanto são animais
de rebanho. Onde a ideia cristã se propaga, sempre vai haver dispersão da ideia de homem do
futuro que busca sempre por mais potência, já que esta enfraquece com a ideia cristã. Nesse
sentido, Nietzsche atribui ao cristianismo a característica de religião da compaixão, pois esta
característica se opõe aos afetos tônicos que elevam a energia do sentimento de vida.41
O que Nietzsche faz é enfatizar a concepção de caos. Aquele caos que está na origem
da mitologia grega, a intuição fundamental expressa por Hesíodo e por Sófocles, segundo a qual
a existência humana não tem sentido algum. É um sentido que deve ser construído numa nova
postura. Mas o fato é que, a partir do sem sentido radical, do caos, da presença do caos, é que
se entenderia toda a origem da tragédia, toda a cultura grega, a passagem do dionisíaco ao
apolíneo e toda história e interpretação que, como consequência, Nietzsche faz da presença do
sonho grego. Isso quer dizer que a interpretação da Grécia na Alemanha sofre uma
transformação muito profunda. Mas essa compreensão Wagner não compartilha, pois o músico
provavelmente considera a origem da cultura ocidental a partir da cultura cristã, e como se sabe,
Nietzsche critica justamente essa cultura cristianizada. Por isso a crítica à modernidade
elaborada por Nietzsche não pode deixar de fora, pelo menos no que diz respeito à arte, a figura
de Wagner, pois é ele quem representa segundo Nietzsche esse período. Pois a esse respeito
escreve o filósofo alemão: “Através de Wagner, a modernidade fala sua linguagem mais íntima:
não esconde seu bem nem seu mal, desaprendeu todo pudor [...] Wagner resume a
modernidade” (NIETZSCHE, CW, Prólogo).
Contudo e apesar disso, Nietzsche não apenas critica as ideias modernas de seu tempo,
mas acima de tudo o período da elevação da razão. Esse período, segundo o próprio filósofo
inicia-se com o platonismo, ganha força com o cristianismo e posteriormente com o
racionalismo cartesiano até chegar aos filósofos de seu tempo. Criticar a razão é uma crítica a
toda modernidade filosófica. Portanto, a crítica à modernidade é principalmente para Nietzsche

41
Cf. AC, §7.
84

uma crítica às artes modernas, para posteriormente fazer indicações para um tipo antitético que
é menos moderno possível, um tipo nobre, que diz Sim.42 Esse dizer Sim, seria para Nietzsche
a criação que tem como fundamental a plenitude inicial. O abandonar-se que o filósofo
denomina de embriaguez é o caminho para a plenitude, para o acréscimo de força e aumento de
potência.
De que modo se entende a embriaguez e a plenitude em Nietzsche? Para essa resposta é
preciso observar a questão da estética fisiológica ligada à vontade de potência que se denomina
de estética fisiopsicológica. Imersa nessa compreensão fisiopsicológica, entende-se a
embriaguez como forma de elevação da vida e essa expansão nos leva a entender o conceito de
plenitude. Podemos destacar as últimas obras de Nietzsche como sinal de sua plenitude
filosófica, pois no último ano de atividade intelectual os seus escritos não são somente
filosóficos, mas são verdadeiras obras de arte: o seu filosofar com o martelo exposto em
Crepúsculo dos ídolos, a transvaloração dos valores em O Anticristo e como tornar-se o que se
é em Ecce homo. A embriaguez da vontade de potência se fez gênio e carne no filósofo, pois
assim escreve Nietzsche:
Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não só a videira doura, caiu-me na vida
um raio de sol: olhei para traz, olhei para a frente, jamais vi tantas e tão boas coisas
de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano, era-
me lícito sepultá-lo – o que nele era vida está salvo, é imortal [...] como não deveria
ser grato à minha vida inteira? (NIETZSCHE, EH, logo após o prólogo).

42
Cf. EH, “Para além de bem e mal”, §2.
85

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o rompimento com Richard Wagner, por volta de 1878, o filósofo Friedrich
Nietzsche se voltou ao debate científico do século XIX, iniciando sua segunda fase filosófica,
conhecida como fase de um “positivismo cético”. Nietzsche identificou a ciência com o
otimismo e enfatizou o início de um processo de cura pessoal. Conforme o filósofo, ele
recuperou a saúde com o auxílio da ciência - sua doença foi atribuída ao pessimismo de
Schopenhauer e ao romantismo decadente de Wagner. O filósofo, que também é considerado
um poeta, nunca negou a importância da ciência, e a partir da publicação de Humano
Demasiado Humano, Nietzsche buscou referências em diferentes áreas cientificas, desde a
biologia à psicologia de sua época. Naturalmente, sua visão científica era diferente do senso
comum, e Nietzsche pensou sobre a ciência de outro ponto de vista - usando seu próprio
perspectivismo.
No primeiro capítulo dessa tese, buscamos abordar a aproximação de Nietzsche com a
psicologia experimental que emergiu no final do século XIX através de nomes como o de
Theodore Ribot, quem rompeu com o caráter metafísico da psicologia tradicional e voltou a
análise psicológica aos estudos fisiológicos. Notoriamente, os desdobramentos da nova
psicologia francesa, bem como os avanços nas pesquisas biológicas, auxiliaram Nietzsche a
maturar sua filosofia, trazendo seus conceitos filosóficos para um horizonte das ciências
naturais, sobremaneira no que tange a relação do corpo com o pensamento. Consequentemente,
a influência dessa aproximação com as ciências permitiu que o filósofo rompesse com a
metafísica de artística e reelaborasse uma nova ideia sobre a estética, uma estética
fisiopsicológica.
Após 1886, em seu terceiro e último período, Nietzsche buscou na junção entre a
fisiologia e a psicologia a relação derradeira entre a Vontade de Potência e a filosofia da arte,
bem como a retomada do corpo como assunto primordial do filosofar. Até aqui vimos a noção
de vida enquanto Vontade de Potência, e de corpo como instância incontornável de expansão
de vida. Por corpo, Nietzsche designou a configuração de forças que concorrem de maneira a
determinar o modo como algo se torna. Assim considerado, diferentemente do mundo
idealizado forjado pela tradição filosófica, que delegou ao erro a transitoriedade da vida pelo
fato desta jamais corresponder à necessidade determinada pela “pequena razão”, na arte
fisiopsicológica tem-se este mundo sem um “além”, mas que traduz a vida como uma tensão de
forças. O resultado dessa tensão é a embriaguez. O artista embriagado é, então, como a criança
86

que teve a inocente e despretensiosa coragem de dizer sim a vida. Na primeira seção de Assim
Falou Zaratustra, obra que inaugura o terceiro período de Nietzsche, a criança é a representação
do artista que diz sim a vida.
O sentido de criação artística em Nietzsche se torna um tema transversal em seu
filosofar. Desde a primeira seção do Assim falou Zaratustra até seus últimos escritos em 1888,
o tema fica em evidência. A embriaguez como condição fisiopsicológica nos permite pensar na
criação, mas só com a plenitude semelhante à inocência da criança é efetivado o dizer Sim que
compreendemos como criação artística. Para esse dizer Sim, é necessário o entendimento da
noção de transvaloração de todos os valores, pois sem destruição, não há processo criador. A
esse movimento de destruição e criação que está posto na primeira seção de Assim Falou
Zaratustra, denomina-se transvaloração de todos os valores, o devir caótico e sublime ao
mesmo tempo. Nesse sentido, Rosa Dias (2011, p. 72) escreve: “A afirmação do devir é
condição para que haja constante criação. Dizer que tudo está em devir é dizer que tudo está
sujeito às leis da destruição e que algo permanece apesar da destruição. Permanece o instante
ato criador”. O instante que envolve a embriaguez e a plenitude ao mesmo tempo é o próprio
ato de criar.

No refinamento do conceito de Vontade de Potência, buscamos no segundo capítulo


referências em dois autores antagônicos: Martin Heidegger e Wolfgang Müller-Lauter. Longe
de assumirmos uma posição frente ao entendimento do conceito de Vontade de Potência,
exploramos as perspectivas de ambos que, em nosso entendimento, substanciam a discussão
sobre a estética fisiológica em Nietzsche. Nesse mesmo sentido, buscamos no expediente de
Gilles Deleuze e Félix Guatarri um aprofundamento na ideia de Credor-Devedor a fim de
alcançarmos a compreensão de superação da psicologia negativa em Nietzsche que fundamenta
o projeto de transvaloração de todos os valores. Nessa tentativa de compreender o sentido da
estética fisiológica em Nietzsche e ao mesmo tempo pôr à prova a hipótese de que tal conceito
pressupõe uma expressão da Vontade de Potência, ficou patente que a ideia de atividade
artística pressupõe, para o filósofo alemão, um redirecionamento inovador dos estados internos
de tensão de nossos impulsos. É possível afirmar, então, que esses estados impulsivos poderiam
conduzir o homem a novas possibilidades de sublimação das energias vitais. Para tanto, o
conceito de transvaloração de todos os valores se faz necessário, pois só com a criação de novos
paradigmas de valoração se torna possível uma nova psicologia que contrapõe a psicologia do
sacerdote, ou seja, a fisiopsicologia.
87

Porém, a tarefa da transvaloração não seria tão fácil, pois a moral cristã desenvolveu, ao
longo da história, uma fórmula que inibe a criação dos novos valores. Ao falar dos supremos
juízos de valor, o filósofo alemão está pensando na moral que vigora na modernidade. Assim,
Nietzsche empreende uma crítica a toda forma de vida que luta contra os impulsos vitais, pois
segundo ele, os impulsos devem sobrepor à moral do ressentimento. A transvaloração está
associada também à lógica dos valores cultivados tradicionalmente, além disso, não consiste
apenas numa mera inversão de valores, mas também na superação para posterior criação de
novos para que. Esse dizer Sim está ligado ao conceito de grande estilo

Por meio da arte do Grande Estilo, discussão posta no terceiro e último capítulo, os
impulsos são sublimados a ponto do homem se perceber o oposto de um décadent. Após essa
percepção, a autonomia tomaria lugar no agir de animal de rebanho, o que lhe permitiria pensar
numa criação de valores que atuam a partir dos estados impulsivos nesse novo “tipo de homem”.
Esse tipo cultural de homem é o oposto do que vigora na modernidade, ele é senhor sobre si
mesmo, portanto, um “legislador”. Dessa forma, a cada crescimento do homem em grandeza e
elevação ele cresce também em profundidade e fecundidade, o que se denomina Vontade de
Potência. Ficou claro ainda que o filósofo alemão lança mão de pressupostos antimetafísicos
para falar de uma determinada interpretação da arte, que ele denomina de estética fisiológica.
Portanto, a Vontade de Potência pode ser entendida também a partir do conceito de
fisiopsicologia.
88

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