Tese - Fabricio Santiago Almeida - 2022 - Completa
Tese - Fabricio Santiago Almeida - 2022 - Completa
Tese - Fabricio Santiago Almeida - 2022 - Completa
Rio de Janeiro
2022
Fabricio Santiago Almeida
Rio de Janeiro
2022
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CCS/A
CDU 1(430)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese
desde que citada a fonte.
___________________________ ____________________
Assinatura Data
Fabricio Santiago Almeida
__________________________________________
Profª. Dra. Rosa Maria Dias (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Tito Marques Palmeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Marques Cabral
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Miguel Angel Barrenechea
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________________
Prof. Dr. Geraldo Pereira Dias
Faculdade Católica da Paraíba
Rio de Janeiro
2022
DEDICATÓRIA
Agradeço à minha esposa Nathalia Claro que, com sua atenciosa leitura e correção
constantes, e com sua poesia, apolínea e dionisíaca, integrou todos os belos momentos dessa
pesquisa. Agradeço especialmente à minha mãe, Maria Lúcia, a quem devoto minha vida e
quem nunca poupou esforços para garantir aos filhos o direito aos estudos. Sem a sua preciosa
contribuição carinhosa e seu apoio eu não teria concluído o doutorado, uma das etapas mais
importantes de minha vida no sentido intelectual.
Aos meus irmãos, Charles Santiago e Rodrigo Santiago, por nossa amizade e
companheirismo. Aos meus filhos, Helena, Benjamin e Jad, pelo amor, compreensão e carinho
constantes. Ao amigo Leandro Costa, professor da Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR), pela leitura gentil e indicações bibliográficas.
À professora e amiga Rosa Maria Dias por sua dedicada e preciosa orientação, desde o
início até a conclusão desta tese.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (POSFIL/UERJ) por todas as infinitas contribuições intelectuais. Aos
secretários Daniel e Luiz Cláudio, pelas constantes informações e auxílios a mim fornecidos.
Aos professores, Miguel Angel Barrenechea, Tito Marques Palmeiro, Alexandre Cabral
e Geraldo Dias pela valorosa participação em minha banca avaliadora.
Aos colegas de trabalho na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), pela
generosidade nos incentivos da carreira e pela possibilidade de afastamento de minhas
atribuições como docente para o desenvolvimento de meus estudos.
“Embriagai-vos!
Deveis andar sempre embriagados. Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não
sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é
preciso que vos embriagueis sem descanso.
Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.
E si, alguma vez, nos degraus de um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna de
vosso quarto, despertardes com a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao
vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo que gene, a tudo o
que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são. E o vento, a vaga, a
estrela, o pássaro, o relógio vos responderão:
- É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-
vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!”
Charles Baudelaire
RESUMO
NT O Nascimento da Tragédia
A Aurora
GC A Gaia Ciência
GM Genealogia da Moral
CW O Caso Wagner
AC O Anticristo
EH Ecce Homo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 10
1 O CORPO RECUPERADO.................................................................................... 18
1.1 “A Psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais”:
Nietzsche e os primórdios de uma Fisiopsicologia....................................................24
1.2 “Não sou um médico de almas”: das Ciências Naturais à crítica do Idealismo
Alemão........................................................................................................................ 30
1.3 “Quem tem de ser um criador sempre destrói”: Nietzsche contra os
desprezadores do corpo.......................................................................................... 35
2 A VONTADE DE POTÊNCIA: A SUPERAÇÃO DA PSICOLOGIA
NEGATIVA............................................................................................................... 41
2.1 “Eu ensino aos homens uma nova vontade”: A elaboração do conceito de Vontade
de Potência................................................................................................. 41
2.2 “O Animal Avaliador”: A Noção de Credor e Avaliador na Psicologia do
Sacerdote.................................................................................................................... 50
2.3 “O Arauto da Boa-Nova”: A Vontade de Potência conforme seus
intérpretes................................................................................................................. 58
3 DA SUPERAÇÃO DA DÉCADENCE ESTÉTICA À ESTÉTICA
FISIOPSICOLÓGICA.............................................................................................. 62
3.1 “O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões”: a
embriaguez como condição sacralizadora da arte......................................................
64
3.2 “A embriaguez da Grande Vontade que exige tornar-se arte”: o Grande
Estilo e a Fisiopsicologia............................................................................................ 69
3.3 “Zaratustra, que pretendes, agora, entre os que dormem?”: da embriaguez à
plenitude...................................................................................................................... 75
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 85
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 88
10
INTRODUÇÃO
Ler Nietzsche não é, portanto, um assunto plácido - é preciso, sem retenções, confrontar
a dimensão aterrorizante de seu pensamento. Observando que a filosofia para Nietzsche, ao
contrário de Aristóteles, não começa com admiração, mas com horror1. O horror, em Nietzsche,
1
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche sugere retornar ao mundo da estética e abandonar a ética e a moral
dos idealistas. Após revisar os mitos de Prometeu e de Édipo, Nietzsche não se refere apenas ao próprio
Cristianismo, mas também a toda filosofia socrática e peripatética. Para o filosofo, o apolíneo vive de costas para
a realidade numa espécie de ilusão, um sonhador ingênuo que, ao acordar, fica obviamente horrorizado; aqui
encontramos a figura do horror como princípio da realidade. Conforme Nietzsche, a tendência que começa com
Sócrates e culmina com Eurípides expulsou o elemento dionisíaco da tragédia e reconstruiu a arte em uma
perspectiva moral. “Tão prodigioso é o poder da arte apolínea, que transfigura as coisas mais horríveis aos
nossos olhos, por aquela alegria que sentimos quando contemplamos a aparência, a visão, por aquela felicidade
redentora que nasce para nós da forma externa, de a aparência"(NT, 2008: 74). Sobre a relação de Nietzsche com
o horror, conferir: KORSTANJE, Maximiliano E. Contribuciones y limitaciones del existencialismo
nietzschiano al estudio del horror. Astrolabio. Revista internacional de filosofia, Barcelona, v. 8. nº 1, fev. 2009.
11
Assim começa sua batalha: a superação de um niilismo soberbo, para ele um estado de
consciência ascético, associado ao pensamento socrático-platônico e legitimado pelo
cristianismo, que deve ser confrontado e vencido. Vencido como? Pela embriaguez. A
embriaguez é para Nietzsche a vontade potencializada da criação de novos valores e tal criação
somente se concretiza através da arte, pois a natureza da arte é justamente o berço da
transvaloração e da superação de uma vontade de verdade. Em sua fase mais tardia, a que nos
interessa neste trabalho, Nietzsche denotará que a fisiopsicologia da embriaguez é a condição
primordial da dinâmica criativa, daquilo que ele chamou de “Psicologia do Artista “em
Crepúsculo dos Ídolos: “A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de
toda a máquina: senão não se chega à arte” (NIETZSCHE, CI, IX, §8).
Ao eixo da embriaguez e para onde mirar é decisivo, inicia-se a viagem pela filosofia de
Nietzsche nesta tese. É a filosofia como sublimidade e, portanto, algo que requer grande
coragem para ser cumprida. É bem verdade que Nietzsche não tolera otimistas como Sócrates,
mas exige figuras como Zaratustra, espíritos livres capazes de enfrentar a dimensão pessimista
da existência e que não se deixam vencer pela resignação, amando a vida em sua totalidade
horrível e questionável. Amar a vida para Nietzsche é, portanto, amar o corpo que produz a
arte: ora, como poderia a filosofia ter desprezado o corpo?
É difícil, todavia, ler Nietzsche apenas a partir da interioridade de sua doutrina filosófica,
subtraindo-a do tempo histórico a partir de uma temporalidade lógica. É fortuito buscar, ainda,
caminhos de compreensão na exterioridade das causas históricas, dos eventos científicos,
políticos, econômicos, ideológicos, de acordo com o sincronismo de suas evoluções ou
KAIN, Philip J. Truth, and the Horror of Existence. History of Philosophy Quarterly, London, Vol. 23, No. 1,
pp. 41-58, jan. 2006.
12
revoluções, que incidem sobre autor/obra. Para Friedrich Nietzsche, este controverso filósofo
cuja biografia e cujos contextos históricos europeus, parecem ser verticalmente relevantes a
constituição de sua obra e, sobremaneira, da diferenciação (e da aparente contradição) das fases
desta obra, devemos nos valer de uma combinação de métodos de exegese, um leque de
perspectivas para cada um dos filósofos que se sentam na mesa da consciência do senhor
Nietzsche: um Nietzsche filósofo, um Nietzsche filólogo, um Nietzsche artista, um Nietzsche
médico da cultura.
Não obstante, a questão “Como ler Nietzsche” tem sido alvo de extensos estudos na
contemporaneidade, e seus resultados têm nos apontando orientações interessantes. Uma
resposta foi elaborada por Scarlet Marton (2010; 2018) em Como ler Nietzsche? Sobre a
interpretação de Patrick Wotling e no artigo mais recente Ler Nietzsche como “nietzschiano”:
Questões de método. No primeiro trabalho, Marton (2010) analisa o trabalho do intérprete
Patrick Wotling, quem se indispôs contra uma leitura radicalmente subjetiva de Nietzsche e
quem denotou a necessidade de se estudar as razões próprias das obras nietzscheanas, da origem
de suas ambiguidades, da razão pela qual seria inadmissível analisá-lo como se analisa outros
sistemas. Wotling (1995) em Nietzsche et le problème de la civilisation buscou apreender a
especificidade do pensamento de Nietzsche evitando reduzir seus escritos a uma mera crítica
da moralidade, do cristianismo e/ou da metafísica. O autor opta por analisar o filósofo a partir
da “civilização”, indicando-a como o eixo central de todo o questionamento nietzschiano, desde
o pensamento estético a questão do eterno retorno, orientando-se, deste modo, a partir de uma
leitura estrutural do filósofo. Para Marton (2010), a leitura estrutural de Wotling é de
fundamental importância para a compreensão do texto filosófico. Todavia, denota a autora que
“(...) essa abordagem constitui apenas uma primeira etapa do trabalho exegético. É certo que se
13
trata de uma etapa necessária; também é certo que ela terá de ser completada pela abordagem
genética” (MARTON, 2010, p. 48).
No segundo artigo, Marton (2018) toma como ponto de partida a análise das próprias
passagens em que Nietzsche fornece a seus leitores as indicações de como desejaria ser lido2.
Cabe lembrar que Nietzsche se localiza em meio de uma reformulação epistemológica do final
do século XIX no âmbito da filosofia anglo-saxônica apregoada na expressão linguist turn - um
movimento de aproximação dos intelectuais aos estudos da linguagem3. Os textos de Nietzsche
emergem a reformulação do problema epistemológico da Filosofia Alemã em termos da relação
entre a linguagem, a realidade e o pensamento humano. O autor, não raramente, deixou claro
em seus escritos que sua filosofia só seria alcançada por seus leitores se estes últimos fossem
bons filólogos. Como ele expõe em Aurora: “(...) [a filologia] ensina a ler bem, ou seja,
lentamente, com profundidade, olhando para trás e para diante, com segundas intenções,
deixando as portas abertas, com dedos e olhos delicados... Meus pacientes amigos, este livro
deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendei a ler-me bem!” (NIETZSCHE, A, §5).
Marton (2018), todavia, observa que as indicações do filósofo são insuficientes, e bem
resume o problema ao concluir:
[...] No trato com os escritos nietzschianos, não há um único método a ser seguido.
Vários são os expedientes a que o estudioso terá de recorrer: a análise estrutural e a
abordagem genética dos textos, a visão de conjunto da obra, sua contextualização
tanto no quadro da história da filosofia quanto no da história cultural e factual
europeia, a pesquisa das fontes de que o filósofo se serviu e se apropriou, os estudos
2
Em Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, escreve Nietzsche em seu 2º Prefácio: “O leitor de
quem espero algo deve ter três qualidades: ele deve ser calmo e ler em pressa, não deve sempre privilegiar a si e
a sua cultura, não deve enfim esperar por encerrar um quadro de resultados. (...) Esse livro é destinado aos
leitores calmos, aos homens que não foram ainda arrastados pela pressa vertiginosa de nossa época precipitada e
que não experimentaram um prazer idolatra de se deixar esmagar por suas rodas – portanto, a bem poucos
homens!”. O mesmo ocorre no prefácio de Aurora, onde Nietzsche reafirma a necessidade de um leitor calmo:
“Antes de tudo, vamos dizê-lo lentamente... Este prefácio chega tarde, mais não muito tarde; que importam,
realmente, cinco ou seis anos? Um tal livro e um tal problema não têm pressa; e, além disso, somos amigos do
lento, eu bem como meu livro. Não foi em vão que fui filólogo, e talvez ainda o seja. Filólogo quer dizer
professor de leitura lenta: acaba-se por escrever também lentamente. Agora isso não só faz parte de meus
hábitos, mas até meu gosto se adaptou a isso — um gosto maldoso talvez? — Não escrever nada que não deixe
desesperada a espécie dos homens “apressados”. De fato, a filologia é essa arte venerável que exige de seus
admiradores antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, tomar tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento —
uma arte de ourivesaria e um domínio de ourives aplicado à palavra, uma arte que requer um trabalho sutil e
delicado e que nada realiza se não for aplicado com lentidão. Mas é precisamente por isso que hoje é mais
necessário que nunca, justamente por isso que encanta e seduz, muito mais numa época de “trabalho”: quero
dizer, de precipitação, de pressa indecente que se aquece e quer “acabar” tudo bem depressa, mesmo que se trate
de um livro, antigo ou novo. — Essa própria arte não acaba facilmente com o que quer que seja, ensina a ler
bem, isto é, lentamente, com profundidade, com prudência e precaução, com segundas intenções, portas abertas,
com dedos e olhos delicados... Amigos pacientes, este livro não deseja para ele senão leitores e filólogos
perfeitos: aprendam a me ler bem!”
3
Cf. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Traduzido por José Laurênio de
Melo. São Paulo: EDUSP, 1992.
14
de recepção de suas ideias, a investigação acerca das estratégias que elegeu, o exame
dos múltiplos estilos de que lançou mão [...]. (MARTON, 2018, p. 21).
Portanto, para bem lermos Nietzsche, buscamos nesta tese realizar a apreensão dos
múltiplos métodos de acesso ao pensamento nietzschiano, valendo-nos da verdade material seus
textos autorais, sem perder de vista, todavia, a exegese dos métodos, isto é, os movimentos
históricos que constituíram a estrutura de sua obra filosófica. No caso deste trabalho,
analisaremos as obras localizadas entre o segundo e o terceiro período do autor, sem, todavia,
considerá-las estanques, uma vez que o corpo de obras nietzschiano dialoga com o processo
histórico da produção do pensamento do autor.
A tese central deste trabalho é a de que a estética fisiopsicológica é, nos trabalhos tardios
de Nietzsche, um subproduto da doutrina da Vontade de Potência. Embora pareça-nos, por
vezes, que a discussão sobre esta doutrina está saturada no quadro intelectual dos intérpretes
nietzschianos5, um mergulho mais denso em suas obras faz emergir indagações consistentes
que necessitam de respostas, ou ainda, de tentativas de uma explicitação etiológica. O lugar do
Corpo na Doutrina da Vontade de Potência ainda não é um consenso: qual a natureza das
interações pulsionais? Haveria uma hierarquia entre os impulsos de um corpo biológico sobre
as pulsões psíquicas deste mesmo corpo? O conceito “fisiopsicologia” parece buscar um justo-
meio nesta labuta, e suas origens nos levam a um contexto interessante onde pesquisadores
4
Cf. ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie e sa pensée. 3 vols. Paris: Gallimard, 1931.
5
Os robustos trabalhos realizados a nível nacional sobre o expediente nietzscheano, sobremaneira que tratam da
fisiopsicologia, constituem referências ímpares para os pesquisadores interessados nos estudos sobre o filósofo
alemão. A tese de Scarlet Marton “Nietzsche - das forças cósmicas aos valores humanos”, defendida em 1979, é
ainda uma literatura fundamental nos estudos nietzscheanos. Arrojam-se competentemente aos trabalhos de
Marton, os estudos conduzidos pela professora Rosa Maria Dias, com ênfase na publicação “Nietzsche: vida
como obra de arte” de 2011. Chamamos atenção ainda para a recente tese de Saulo Krieger, de 2019, “O cerne
oculto do projeto nietzschiano: Logos vs. pathos no ato de filosofar”.
15
O que nos é claro é a centralidade do corpo em sua terceira fase, e arguiremos neste
trabalho que o corpo deve ser entendido como um fenômeno múltiplo de forças irredutíveis que
subordinam a consciência: um corpo que filosofa, que é ele mesmo uma grande razão, e não
meramente um manequim de carne subordinado ao cérebro. Durante a terceira fase de seu
pensamento, Nietzsche se afasta de suas preleções iniciais realizadas em O Nascimento da
Tragédia as quais justificavam o mundo como fenômeno estético em contraposição à ciência
moderna. Destarte, o filósofo desbrava o caminho aberto por Baruch Spinoza, retomando o
conceito de corpo, desenvolvendo-o de maneira a ser correlacionado como o fio condutor dos
problemas morais e epistemológicos do homem. “O corpo é uma grande razão, uma
multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”
(NIETZSCHE, ZA, § 35).
No tocante aos animais, foi Descartes quem, com audácia admirável, primeiramente
ousou compreender o animal como máquina: toda a nossa fisiologia se empenha em
demonstrar essa tese. E coerentemente não situamos o homem à parte, como Descartes
ainda fez: o que hoje entendemos do homem vai exatamente até onde ele é entendido
como máquina. Antes se concedia ao homem o “livre arbítrio”, como dote vindo de
uma ordem mais elevada: hoje lhe tiramos até mesmo a vontade, no sentido de que
não se pode mais entender por isso uma faculdade. O velho termo “vontade” serve
apenas para designar uma resultante, uma espécie de reação individual que
necessariamente sucede a uma quantidade de estímulos, em parte contraditórios, em
parte harmoniosos; - a vontade não “atua” mais, não “move” mais... Outrora se via na
consciência do homem, no “espírito”, a prova de sua origem mais elevada, de sua
divindade (NIETZSCHE, AC, §14).
Em todo esse processo nosso intelecto não é, ao contrário, senão o instrumento cego
de outro instinto que é o rival daquela cuja violência nos atormenta, quer seja a
necessidade de repouso ou o medo da vergonha e de outras consequências lamentáveis
ou ainda o amor (NIETZSCHE, A, § 109).
17
1 O CORPO RECUPERADO
Até 1878, Nietzsche havia elevado Wagner a um tipo supra-histórico7 de arte, uma
experiência magnífica, ou como melhor foi descrito em sua Quarta Consideração
Extemporânea, “(...) o sentido da verdade e da realidade em meio a homens adormecidos,
confusos e atormentados (...)” (NIETZSCHE, WB, p. §07). De fato, Wagner ostentava a
centralidade das primeiras obras de Nietzsche, como O Nascimento da Tragédia, de 1872,
período de juventude em que o filósofo havia conhecido o refinado compositor, tornando-o uma
espécie de mentor cultural. Dessa relação que perdurou quase uma década, Nietzsche
caracterizou a música de Wagner em seus escritos como o mais alto nível da arte alemã,
entendendo-a como o renascimento do espírito dionisíaco na arte. O fascínio de Nietzsche se
deveu, em muito, ao compartilhamento de gostos que tinha com Wagner, logo que ambos eram
6
Conforme Judith Norman em “Nietzche and the early Romantism”, o filósofo alemão se relacionava
positivamente com o chamado Romantismo Inicial ou Círculo de Jena. Esse movimento, em voga entre 1797 e
1802, teve como principais figuras August e Friedrich Schlegel, Novalis, Tieck, Schleiermacher e Schelling, e os
escritos que publicaram na década de 1790, principalmente no jornal Ateneu. Os Românticos de Jena, enquanto
“grecófilos”, não tinham nada a ver com o romantismo rousseauniano, não realizavam um culto ao gênio e
tampouco valorizavam a emoção acima da razão. O que era central para esse movimento era o profundo
ceticismo sobre a viabilidade das atitudes tradicionais em relação à verdade, a teoria da arte intelectualmente
rigorosa que deu peso particular à ludicidade, a escrita fragmentada, a noção de ironia literária e o senso de que
os filósofos deveriam se tornar artistas e que a filosofia, em si, deveria ser um berço da arte. Cf. NORMAN,
Judith. Nietzsche and Early Romanticism. In: Journal of the History of Ideas 63.3 (2002) 501-519.
7
Nietzsche define o suprahistórico como aquilo que confere à existência o caráter de eterno e que significa
sempre o mesmo, ou seja, a metafísica Cf. NIETZSCHE, Friedrich: Escritos sobre Educação(Tradução de Noéli
Correia de Melo sobrinho); Rio de Janeiro- São Paulo: Editoras Loyola e Editora PUC-RIO, 2003.
19
profundos admiradores da arte clássica grega e da filosofia de Arthur Schopenhauer8, bem como
eram profundos críticos da decadência artística que, segundo os mesmos, dominava o mundo
moderno. O ápice dessa relação pode ser depreendido a partir da Quarta consideração
extemporânea, onde Nietzsche analisou a música de Wagner não como uma mera atração
cultural, mas como uma possibilidade política de renovação da cultura alemã, uma poderosa
força de resistência para a radical transformação das estruturas da sociedade moderna. Tanto
para Nietzsche quanto para Wagner, a arte era a própria expressão da vida e não uma mera
recreação desta (NIETZSCHE, WB, §9).
Mas o projeto filosófico sobre Wagner ruiu e esse ruir iniciou ainda durante os primeiros
festivais do Festspielhaus Bayreuth, em 1876 (SAFRANSKI, 2002)9. É simplório dizer que o
desencantamento de Nietzsche sobre Wagner se realizou somente com o cristianismo da peça
Parsifal que estreou apenas em 1882, naquela casa de ópera. Naturalmente, a estreia de Parsifal
afetou vertiginosamente o filósofo (levando-o a elaborar uma reação simbólica através do
personagem Zaratustra, anos mais tarde). Todavia, o incômodo de Nietzsche era anterior, e não
se resumia no cristianismo de Wagner, mas sobremaneira, como escreve em uma carta de 1878,
na “(...) vaporização metafísica de tudo o que é verdadeiro e simples, a luta contra a razão por
meio da razão, que quer ver em cada uma das coisas um prodígio e uma quimera”
(NIETZSCHE, Correspondecias III, 2012, trad. nossa)10. A atmosfera metafisica que cercava
Wagner, sobretudo durante a inauguração de Bayreuth, não foi despercebida por Nietzsche
quem redigiu inúmeras cartas criticando o aspecto mítico que as peças de Wagner assumiam no
palco. Enquanto Wagner aferrava-se ao encantamento dos mitos, Nietzsche percebeu que a
consciência mítica moderna era oca. Isto é, da morte dos deuses emergia somente o
acontecimento estético, que não deveria ser transformado em fato religioso.
Como observa Rudiger Safranski (2012), outras questões sensíveis como a extrema
vaidade de Wagner que não se deixava confrontar facilmente com as ponderações de Nietzsche,
bem como o apreço das elites pela composição de Wagner (elites essas que Nietzsche
8
Como escreve Anna Hartmann Cavalcanti na Introdução da Quarta Extemporânea: “Da mesma forma, a partir
de suas conversas com Nietzsche e da discussão de seus textos, Wagner pode ampliar e aprofundar sua
compreensão da filosofia de Schopenhauer, que desempenha um papel central no último período de sua
produção teórica e musical, assim como seu conhecimento da arte e da cultura antigas. Em Sobre a designação
“drama musical” (1872), Wagner reflete sobre a estética de Schopenhauer a partir das concepções elaboradas por
Nietzsche em O nascimento da tragédia, especialmente a de que a música engendra a imagem como expressão
alegórica de si própria”.
9
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche Biografía de su pensamento. Traducción del alemán por Raúl Gabás. Fabula.
2002.
10
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Correspôndencia III - Enero de 1875 a Diciembre de 1879. Tradução e
notas de Andrés Rubio. Organização Luis Enrique de Santiago Guervós. Editorial Trotta. Madrid. 2012.
20
11
“Aos leitores de meus escritos anteriores quero declarar explicitamente que eu renunciei aos pontos de vista
metafísicos em relação a arte, os quais essencialmente dominavam ali: são agradáveis, porém insustentáveis”
(NIETZSCHE, 8, 463)
12
Nina Power (2001) em On the Nature of Things: Nietzsche and Democritus, sugere que Nietzsche se
aproximou de Demócrito após a descoberta do livro História do materialismo de Friedrich Albert Lange em
1866. Nietzsche chegou de declarar esse livro como "a obra filosófica mais significativa que apareceu na última
década". Mais tarde, no mesmo ano, em uma carta a Muschacke, ele também comentou: "Kant, Schopenhauer, e
este livro de Lange - não preciso de mais do que isso”. Conforme Power, assim como podemos considerar O
nascimento da tragédia como inspirado e imbuído do pensamento de Schopenhauer, podemos ver
simultaneamente evidências claras do impacto de Lange examinando as notas de Nietzsche sobre Demócrito.
13
SOUZA, Maria Cristina dos Santos de. Demócrito: o racionalismo como representação artística do mundo,
segundo o filosofo Friedrich Nietzsche. Revista Filosofia, Fortaleza (CE), V. 4, n. 7, inverno, 2007.
21
reaparece nos escritos tardios de Nietzsche, embora de forma mais indireta, é uma arena
principal para sua abordagem futura sobre a Vontade de Potência.
Conforme Nina Power (2001), Demócrito é importante para Nietzsche, não apenas
porque ele evita as armadilhas do materialismo ingênuo ou dogmático (como a postulação de
um mecanismo cego ou de uma adesão estrita aos dados dos sentidos), mas porque, ao contrário,
ele parte da ideia de um universo cético, não teleológico e, em última análise, não sentimental,
que fornece recursos para as próprias ideias de Nietzsche sobre a "natureza das coisas". As
noções de Demócrito de força e matéria, como o movimento eterno dos átomos no vazio e a
invisibilidade perceptiva e da necessidade ontológica dessas unidades corpusculares, conduzem
Nietzsche por uma jornada complexa que o levará através da física das partículas pontuais do
físico jesuíta Roger Boscovich, assim como muitas outras conceituações científicas que o
conduzirão à formulação do conceito de 'Vontade de Potência'.14
Deste modo, a partir de 1878, Nietzsche se voltou à natureza. Sua busca por um princípio
antimetafísico o levou a se distanciar do trágico e se aproximar de um naturalismo normativo.
O filósofo avançou pelas ciências naturais, buscando nelas subsídios para a compreensão
adequada do homem desmistificado. Todavia, Nietzsche não se deixou desmedir pela frieza
científica: se era mérito da ciência esfriar as paixões, a filosofia não deveria ir muito longe
nisso, pois a sociedade não só estava ameaçada por paixões desmedidas, mas também pelo
biologismo dos positivistas. Deste modo, em Humano Demasiado Humano, Nietzsche projetou
um sistema bicameral como meio auxiliar contra o duplo perigo do vitalismo desenfreado e
esperou que uma cultura superior desse aos homens duas câmaras cerebrais, "(...) uma para
perceber a ciência e a outra para perceber a não-ciência" (NIETZSCHE, HH II, §209).
Nesse contexto, o filósofo passou a defender a vida que é consciente de que não pode
haver vida em uma única peça, mas que o mundo da vida consiste em vários mundos. Na
verdade, os dois mundos, o da ciência e o da não-ciência, eram, para ele, subdivididos em
diferentes disciplinas científicas e esferas culturais, como religião, política, arte e moral. Como
14
Embora exceda o propósito dos objetivos dessa tese, vale-nos recomendar a leitura do artigo “Nietzsche e
Boscovich: das ações físicas aos preconceitos sensoriais” de Adilson Felicio Feiler. Destacamos o seguinte
trecho do artigo: “Ao traduzir a atomística temporal de Boscovich para uma atomística sensorial, Nietzsche,
embora o faça de uma maneira não tão clara e definida, se apropria desta leitura da física como de um
instrumental fundamental para pensar questões que estão para além da ciência natural. Questões estas que
apontam, inclusive, para elementos epistemológicos relativos às noções de matéria e forma, causa e efeito, bem
como elementos morais e éticos relativos às noções de sujeito e objeto. Nietzsche se identifica com Boscovich
basicamente pelo afastamento da noção de matéria, que carrega toda a sorte de dicotomias, em função da noção
de força. E a noção de força, por sua vez, motiva uma leitura do vir-a-ser do mundo como vontade de potência”
(FEILER, 2019). Cf. FELICIO FEILER, Adilson. Nietzsche E Boscovich: Das Ações Físicas Aos Preconceitos
Sensoriais. Univ. philos., Bogotá , v. 36, n. 72, p. 279-303, June 2019.
22
argumenta José Nicolau Julião (2018), o propósito de uma cultura mais elevada permaneceu
nessa segunda fase de Nietzsche, porém o acesso a essa refundação não partiu mais de uma
percepção metafísica de cultura supra-histórica, mas se desenvolveria, para o filósofo, através
das ciências e da reavaliação da moral ocidental (JULIÃO, 2018). Com as ciências, disse
Nietzsche, “(...) os homens podem decidirem se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo
que antes se desenvolviam inconsciente e acidentalmente: hoje podem criar condições melhores
para a procriação dos indivíduos” (NIETZSCHE, HH I, §24).
Por volta de 1880, porém, a saúde de Nietzsche agravou, e os textos escritos nesse
período são atravessados pela dor física. Gradativamente, a temática da fisiologia se apropriou
de suas reflexões filosóficas. Como ele mesmo denotou em obras a partir de Além do Bem e do
Mal, a fisiologia passou a constituir um continuum junto à percepção e a consciência em sua
filosofia, e a atenção se tornou uma espécie de cone luminoso móvel que iluminava partes
alternadas da vida e as empurrava para a zona do visível e do pensável. Nesse ponto, Nietzsche
se voltou a arte não mais como um fazer metafísico, mas a trouxe para um campo
fisiopsicológico de compreensão. A arte, agora, era entendida como própria do estímulo do
corpo humano que busca incansavelmente fugir do tédio.
Nietzsche passou a entender o homem como um animal exclusivamente entediado,
dotado de consciência, com um horizonte de passado e futuro, que nunca está inteiramente
preenchido com o seu presente. Por isso mesmo, o homem percebe algo que nenhum animal
conhece: o tédio. Para escapar do tédio, o homem joga, inventa, busca criar (SAFRANSKI,
2002). O jogo é a arte do próprio estímulo dos afetos; como é, por exemplo, a música. Como
ele mesmo denota em Humano Demasiado Humano:
Para escapar ao tédio, ou o homem trabalha além da medida de suas necessidades
normais ou inventa o jogo, isto é, o trabalho que não deve satisfazer nenhuma outra
necessidade a não ser a de trabalho. Quem se fartou do jogo, e não tem novas
necessidades que lhe dêem motivo para trabalhar, é às vezes tomado pelo desejo de
uma terceira condição, que está para o jogo assim como o pairar para o dançar, e o
dançar para o caminhar, uma movimentação jubilosa e serena: é a visão da felicidade
que têm os artistas e filósofos. (NIETZSCHE, HH, §611).
sofrimento. Finalmente, com a crítica ao ideal ascético, Nietzsche deslocou a concepção sobre
o corpo, antes visto como uma mero recipiente da alma, demonstrando-o como precondição da
razão e da criação. E, a partir dessa ressignificação do corpo, Nietzsche reconfigurou o
entendimento sobre a arte, compreendida agora a partir do campo fisiológico dos impulsos que
reafirmam a vontade de vida.
15
WUNDT, Wilhelm. Principles of physiological psychology. London: Swan Sonnenschein & Co. Lim., 1904.
26
que conhecemos bem em muitos casos, pouco ou mal em outros” (RIBOT, 1879, p. 11, trad.
Frezzati Jr.)16.
Na Alemanha, uma década seguinte após a emergência da crise da psicologia
tradicional, o filósofo Friedrich Nietzsche publicou o seu “prelúdio a uma filosofia do futuro”,
a obra Além do Bem e do Mal, um trabalho exponencial na qual ele aprofundou o interesse sobre
a superação da metafísica para o desvelamento da verdade e argumentou em favor de uma
“fisiopsicologia” enquanto morfologia e teoria do desenvolvimento da filosofia da Vontade de
Potência”. Para Wilson Antônio Frezatti Jr. (2018), não se tratou de uma mera coincidência de
pensamentos, mas de uma expressão da influência da psicologia experimental francesa na
maturação do pensamento crítico de Nietzsche.
Desde o início, alertamos que não estamos considerando Nietzsche um cientista nem
um seguidor das ideias de Ribot. O que queremos fazer é mostrar que o filósofo
alemão compartilhava uma série de questões com a discussão francesa. Ele foi, para
nós, sem dúvida, inspirado por ela e por algumas noções que se faziam presentes, mas
isso não significa que Nietzsche simplesmente as utilizou como conceitos científicos.
Ele as modificou e as usou de acordo com suas necessidades filosóficas. (FREZZATI
JR, 2018, p. 09).
Não é nosso foco nos estendermos na provável relação entre Nietzsche e Ribot, tão bem
explorada na obra Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX de Frezzati Jr. Um recuo
breve se faz necessário, todavia, para iniciarmos nossas incursões sobre as concepções
antimetafísicas e fisiopsicológicas em Nietzsche. É mister denotar antes, a autonomia do
pensamento nietzschiano, que, não raramente, se confronta com os fisiologistas da época como
Herbert Spencer e August Comte (grandes influências em Theodore Ribot), sobre questões
como altruísmo e má causalidade: “Nossos socialistas são décadants, mas também o sr. Herbert
Spencer é um décadant – ele vê o triunfo do altruísmo como algo desejável” (NIETZSCHE,
CI, §37). E ainda: “Que odor de catolicismo anti-alemão existe na sociologia de Auguste Comte
com a sua lógica dos instintos, tão romanas” (NIETZSCHE, BM, §48).
Cabe explanar, como bem elucida David Hurrel (2020), que Nietzsche caracteriza
alguns indivíduos influentes - como Sócrates e Wagner - como “decadentes” porque promovem
valores inibidores da vida que potencialmente minam o florescimento da humanidade. Um
exemplo claro, mas menos proeminente, de tal decadente é Herbert Spencer para Nietzsche.
Embora as observações de Nietzsche sobre Spencer sejam muito menores do que aquelas sobre
Sócrates e Wagner, elas ainda têm uma importância considerável para a compreensão da
16
RIBOT, Theodore. La psychologie allemande contemporaine (école expérimentale) (fac símile da edição
original: Paris: Librairie Germer Baillière, 1879). Paris, FR: L’Harmattan, 1879.
27
Nietzsche nunca chegou de citar Ribot, nem negativamente, nem como elogio, e embora
os trabalhos de Ribot tenham sido um caminho provável no expediente tardio do filósofo, é
preciso ressalvar a observação de Edmilson Paschoal (2002, p. 253) que “(...) o material
coletado de Ribot em particular e da psicologia francesa do século XIX em geral, adentra na
obra de Nietzsche como parte de uma tese formulada por ele e jamais pensada por Ribot: a
doutrina da Wille zur Macht”. De fato, a Doutrina da Vontade de Potência é crucial na distinção
da fisiologia em Nietzsche daquela fisiologia explorada pelos teóricos franceses e ingleses. A
partir desta Doutrina, Nietzsche buscou superar a metafísica e combater a moral cristã com a
valorização da fisiologia, descrita pelo filósofo como uma “dinâmica da luta dos impulsos por
mais potência” e não somente vinculada a processos físico-químicos como ocorria entre os
franceses.
De todo modo, alguns pontos são relevantes e devem ser considerados como uma ponte
entre as inquietações do círculo intelectual francês com as inquietações da terceira fase de
Nietzsche em um amplo quadro intelectual. Como observa Paschoal (2020) que a intersecção
da filosofia e das ciências naturais, e sobremaneira, a relação da psicologia com a esfera da vida
e, por conseguinte, entre a psicologia e a fisiologia são presentes tanto nos estudos de Ribot
quanto nos de Nietzsche. Além disso, observa Paschoal (2020) que o papel atribuído à doença
deve ser considerado em ambos os intelectuais, papel este que não possui traços meramente
negativos, mas que emerge como um elemento importante “tanto em termos de conhecimento
do homem quanto de seus estados de saúde” (PASCHOAL, 2020).
28
Em razão disso, Patrick Wotling (1999) denota que a psicologia é um aspecto revelador
do pensamento nietzschiano. Para esse pesquisador, a elaboração de uma psicologia
inteiramente nova é formada do questionamento de Nietzsche da psicologia idealista que reinou
na tradição metafísica com sua condição substancialista de sujeito. Com sua crítica destrutiva,
Nietzsche abraçou o processo de reconstrução da filosofia a partir da reformulação da
psicologia, ou como ele mesmo chamou de uma “grande psicologia”, temática que emerge em
suas primeiras obras do terceiro período como Assim Falava Zaratustra e Além do Bem e do
Mal.
e seria um erro supor que qualquer um deles em particular é o que Nietzsche defendeu ou se
moveu em direção). Alguns tipos de “naturalismo” o próprio Nietzsche desdenhava ou, no
mínimo, criticava: por exemplo, o tipo "mecanicista" que ele chama de uma das formas “mais
estúpidas” de avaliar e construir a arte, como consta em A Gaia Ciência (GC, § 373). Além
disso, Nietzsche rejeita certos tipos de naturalistas em Além do Bem do Mal (BM, §21) que são
“condicionados pela causa e efeito” e produzem, segundo o filósofo, “as cretinices mecanicistas
em voga, que querem que toda causa impulsione e pressione até produzir um efeito”. Portanto,
devemos olhar essa aproximação de Nietzsche com as ciências naturais atentamente.
1.2 “Não sou um médico de almas”: das Ciências Naturais à crítica ao Idealismo
Alemão.
17
COLLARES, Regiane Lorenzetti. A digestão do idealismo alemão pelo pensamento de Nietzsche. Estudos
Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-64, jan./jun. 2012.
32
Ou ainda: “A nobreza alemã está quase ausente na história da cultura elevada: adivinha-
se a razão...cristianismo, álcool – os dois grandes meios de corrupção” (AC §60). Collares
(2012) refere-se a um “metabolismo do idealismo” presente em Ecce Homo, onde Nietzsche
denota a “digestão” do movimento idealista alemão que, em certo grau, constitui sua
formulação filosófica de uma fisiologia da arte. Não raro, o autor utiliza expressões como
intestino, alimentação, estômago em sua crítica ao idealismo; expressões que não são arguidas
ao acaso, mas que expõem na ordem daquilo que possa preservar a vitalidade orgânica que
funde corpo e pensamento. O filósofo alemão utiliza o conceito décadence para indicar uma
forma de “doença” que atinge principalmente a modernidade, sendo que esta seria, em rigor,
uma decadência cultural. A esse respeito, escreve: “A partir da ótica do doente ver conceitos e
valores mais saudáveis [...] esse foi meu exercício mais longo, a minha verdadeira experiência”
(EH, “por que sou tão sábio”, §1).
Para Nietzsche, portanto, o fio condutor do acesso aos fenômenos se dá pela expressão
da Vontade de Potência, sendo essa encerrada no jogo de impulsos do corpo, uma atividade
corporalizada que “julga ser a indigesta atmosfera idealista da cultura moderna” - não só
presente na filosofia, mas também na moral, na arte, na política, na religião e na ciência de seu
tempo. Em meados da década de 1880, a doutrina da Vontade de Potência se torna um problema
de fundamentos psicológicos e, sobremaneira, fisiológicos. Em Além do bem e do mal,
Nietzsche sugere que na Vontade de Potência “todas as funções orgânicas (autorregulação,
assimilação, nutrição, excreção e metabolismo) ainda estão sinteticamente ligadas”, de modo
que esta doutrina, à medida que se torna superficialmente manifesta em nossas unidades,
realmente descreve "[o] mundo visto de dentro" (NIETZSCHE, BM, §36). Podemos, em nossa
vida diária, não prestar muita atenção às células e ao citoplasma e, em vez disso, ler o mundo
através da “realidade” de nossos “desejos e paixões” como um modelo explicativo disponível
para nós.
Mas o que está sempre em jogo para Nietzsche, no entanto, é a "realidade de nossos
impulsos" que preenche a lacuna, por assim dizer, entre nosso mundo cotidiano e sua inserção
no corpo, em nossa fisiologia, em nossos afetos e na matéria (NIETZSCHE, BM, § 36) Em
outras palavras, os impulsos não são simplesmente expressões de nossa existência volitiva, mas
sempre possuem uma facticidade fisiológica e, portanto, biológica. Falar de uma “vontade” de
potência, por outro lado, como o próprio Nietzsche teve que admitir, sempre implicou uma
“falsa reificação”.
33
Portanto, qualquer estudo filosófico que tome como análise a estética e a filosofia da
arte no pensamento de Nietzsche se depara com a projeção de um pensamento fisiológico
basilar, uma filosofia ancorada no corpo (lieb), na corporação e na corporeidade (lieben) da
arte, contraposta à estetica idealista tradicional. Como declara o filósofo em seu último ano de
lucidez no ensaio Contra Wagner: "Estética é nada além de um tipo de fisiologia
aplicada"(NIETZSCHE, CW). A tarefa de entender a estética nietzschiana escuda-se nos
processos orgânicos do ente e nos demanda a minuciosa compreensão do corpo enquanto uma
organização pulsional hierarquizada que obedece a lógica da Vontade de Potência - uma reunião
de impulsos que configuram o maior fio condutor interpretativo do homem (BARRENECHEA,
2011).
cristã que, ao longo dos séculos, engessou e condenou os impulsos humanos. Como elucida
Frezzati Jr. (2018) ao dizer que “[…] o médico nietzschiano antagoniza-se àquele proposto pela
tradição filosófica: não é um médico de almas” (FREZZATI JR, 2018, p. 187).
No tocante aos animais, foi Descartes quem, com audácia admirável, primeiramente
ousou compreender o animal como máquina: toda a nossa fisiologia se empenha em
demonstrar essa tese. E coerentemente não situamos o homem à parte, como Descartes
ainda fez: o que hoje entendemos do homem vai exatamente até onde ele é entendido
como máquina. Antes se concedia ao homem o “livre arbítrio”, como dote vindo de
uma ordem mais elevada: hoje lhe tiramos até mesmo a vontade, no sentido de que
não se pode mais entender por isso uma faculdade. O velho termo “vontade” serve
apenas para designar uma resultante, uma espécie de reação individual que
necessariamente sucede a uma quantidade de estímulos, em parte contraditórios, em
parte harmoniosos; - a vontade não “atua” mais, não “move” mais... Outrora se via na
consciência do homem, no “espírito”, a prova de sua origem mais elevada, de sua
divindade (NIETZSCHE, AC, §14).
Para Nietzsche, o corpo é o espaço de interpretação, uma vez que a consciência confunde
a unificação-simplificação do signo consciente com a unificação do caos pelo corpo,
promovendo um curto-circuito no corpo como jogo de unidade-pluralização das pulsões. Neste
sentido, superestimar o consciente seria considerar o signo como uma coisa em si.
Considerando essa questão, Nietzsche recoloca a consciência diante da pluralidade invisível do
35
corpo à qual ela está submetida. Nos Fragmentos Póstumos, Nietzsche deixa evidente que a
consciência não é autônoma, mas está submetida ao corpo e sua fisiologia:
1.3 “Quem tem de ser um criador sempre destrói”: Nietzsche contra os desprezadores
do corpo.
seria preciso uma colisão de consciência para que o homem se coloque no palco da existência
como um legislador e comandante de seu próprio destino. O que equivale a dizer que os valores
tradicionais precisam ser destronados a partir de uma guerra de consciência para que surjam os
novos homens do porvir.
Salta aos olhos dos leitores atentos que esses homens do porvir são para Nietzsche uma
tipologia conforme a qual há diversas composições de forças entre os indivíduos, assim como
ocorre no interior de cada um conforme a dinâmica vital, ora forte ora fraco. Pois esses “novos”
homens não devem se abster dessa dinâmica natural do vir-a-ser, uma vez que os filósofos
legisladores seriam justamente aqueles que não se contrapõem a essa dinâmica, quer dizer, ao
vaivém da potência. Pois o filósofo legislador é aquele que conclui, por assim dizer, a terceira
fase da transvaloração dos valores, ou seja, cabe a eles a criação dos novos valores,
consequentemente, eles são um novo tipo cultural que não se caracteriza como forte ou fraco.
A esse respeito Nietzsche escreve:
Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem “assim deve
ser”, eles determinam o para onde? E para quê? do ser humano, e nisso têm a seu
dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os
subjugadores do passado – estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que é e foi
torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. Seu “conhecer” é criar, seu
criar é legislar, sua vontade de verdade é – Vontade de Potência. – Existem hoje tais
filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos?... (BM, §
211).
Esse conhecer, criar e legislar, seria para o filósofo alemão, uma vontade de verdade 18,
uma criação artificial ou uma ficção útil. A criação dos filósofos legisladores não tem a
pretensão de se tornar um ideal, mas um direcionamento do “para onde?” Ou do “para que?”
do homem. Por isso, há uma utilidade nessa vontade de verdade, ao contrário de ser apenas um
ideal, uma crença ou um preconceito moral. Essa criação seria uma autossuperação dos
trabalhadores filosóficos que passariam, então, a comandar seus próprios destinos, quer dizer,
18
Essa vontade de verdade é oposta àquela criticada por Nietzsche no fragmento 344 de A Gaia Ciência, onde
essa noção é entendida como um ideal. Após analisar a crítica feita por Nietzsche à vontade de verdade, bem
como ao impulso ao conhecimento, ao que nos parece, a tradição filosófica se deixa caracterizar pela falta de
cautela crítica, já que toma por verdade objetiva e transparente o que não passaria de um esquema humano de
simplificação e formulação dos acontecimentos. Os filósofos dogmáticos, por sua vez, ao serem guiados pela
vontade de não querer enganar, nem sequer a si mesmos, teriam veiculado um preconceito moral, supondo que
querer enganar seria uma imperfeição, uma carência e, por conseguinte, que a verdade teria mais valor que a
falsidade. Nesse sentido Nietzsche escreve: “Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo
o resto só tem um valor de segunda ordem. – Essa incondicionada vontade de verdade: o que é ela? É a vontade
de não se deixar enganar?” Cf. A Gaia Ciência, § 344. Essa vontade de verdade seria, no entender do filósofo,
uma crença ou um preconceito moral.
37
eles são opostos ao homem da modernidade que precisa de um ideal de felicidade, uma espécie
de autoengano para se perceber como homem.
19
O potencial autorregulador do agôn é uma consequência intrínseca da própria necessidade e virtude da
competição. O homem livre só poderia existir na sociedade grega se fosse possível contrapor-lhe a outros
homens. Essa disputa das capacidades competitivas de todos significaria a elevação do agôn, a alma dinâmica da
própria polis.
38
É importante notar que o filósofo alemão não defende a hegemonia de um sobre o outro,
mas enfatiza a diferença como pressuposto essencial para o modelo oposto ao da modernidade
com seu ideal de igualdade. O modelo pensado por Nietzsche se caracteriza como uma versão
ampliada do corpo humano, onde não existe soberania, mas alternância de poder. Não há, nesse
caso, subjugadores, apenas a luta entre os diferentes.
Nesse sentido, em contraste com os ideais platônicos e cristãos, que vêem este mundo
como uma mera sombra totalmente imperfeita do mundo real, o personagem Zaratustra, alter
ego de Nietzsche, ama este mundo e a vida. É emblemático que Zaratustra saia da caverna com
o conhecimento da verdade, não com o conhecimento de que a verdade é impossível de
alcançar. Nietzsche vê a raça humana como um estágio na evolução dos animais para o "Além-
do-homem", uma corda (uma ponte?) Entre os animais e o Além-do=homem.20 Nietzsche não
fornece uma definição científica desta criatura, em particular não sabemos se se refere a uma
nova espécie biológica, a uma máquina ou simplesmente ao equivalente da iluminação budista.
Frases como "O homem é algo que deve ser superado" não deixam bem claro se esse Além-do-
homem será obra de humanos capazes de transcender as limitações das gerações atuais ou obra
de evolução biológica. Frases como "Todos os seres até agora criaram algo além de si mesmos"
são provavelmente apenas uma deturpação da teoria da evolução de Darwin (que era uma coisa
totalmente nova na época de Nietzsche): obviamente, não é o verme que cria outra espécie, mas
a combinação de variações e seleção ao longo de milhões de anos.
20
Na terceira seção do Prólogo de Zaraustra, escreve Nietzsche sobre o Além-do-homem: “Quando Zaratustra
chegou à cidade mais próxima, na margem da floresta, ali encontrou muita gente reunida na praça; pois fora
anunciado que um equilibrista5 andaria na corda. E Zaratustra assim falou à gente: Eu vos ensino o Além-do-
homem .6 O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora,
criaram algo acima de si próprios: e vós quereis ser a vazante dessa grande maré, e antes retroceder ao animal do
que superar o homem? Que é o macaco para o homem? Uma risada, ou dolorosa vergonha. Exatamente isso deve
o homem ser para o Além-do-homem: uma risada, ou dolorosa vergonha. Fizestes o caminho do verme ao
homem, e muito, em vós, ainda é verme. Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que
qualquer macaco.7 O mais sábio entre vós é apenas discrepância e mistura de planta e fantasma. Mas digo eu que
vos deveis tornar fantasmas ou plantas? Vede, eu vos ensino o Além-do-homem! O Além-do-homem é o sentido
da terra. Que a vossa vontade diga: o além-do-homem seja o sentido da terra! Eu vos imploro, irmãos,
permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores,
saibam eles ou não. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra
está cansada: que partam, então! Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus morreu, e com isso
morreram também os ofensores. Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as
entranhas do inescrutável do que o sentido da terra! Uma vez a alma olhava com desprezo para o corpo: e esse
desdém era o que havia de maior: — ela o queria magro, horrível, faminto. Assim pensava ela escapar ao corpo e
à terra. Oh, essa alma mesma era ainda magra, horrível e faminta: e a crueldade era a volúpia dessa alma! Mas
também vós, irmãos, dizei-me: o que conta vosso corpo sobre vossa alma? Não é ela pobreza, imundície e
lamentável satisfação? Na verdade, um rio imundo é o homem. É preciso ser um oceano para acolher um rio
imundo sem se tornar impuro. Vede, eu vos ensino o Além-do-homem: ele é este oceano, nele pode afundar o
vosso grande desprezo” (NIETZSCHE, ZA, Prólogo, §3).
39
Depois de retornar à sua caverna na montanha por alguns anos, Zaratustra tem um sonho
que ele interpreta como uma mensagem de que seu ensino está sendo distorcido. Ele se junta a
seus seguidores e lhes fala sobre a "Vontade de Potência". Schopenhauer pensava que tudo o
que existe tem e é movido pela “vontade”, seja uma pedra ou um gênio científico. Essa é a
vontade de viver. Mas Nietzsche pensa que existe uma força mais poderosa em ação,
particularmente na natureza humana: a "Vontade de Potência". Zaratustra é dilacerado por
dúvidas sobre sua filosofia, pois percebe que está sendo muito racional como Apolo e não
suficientemente irracional como Dioniso. Tentando recuperar esse equilíbrio, ele encontra
consolo em cantar e dançar. Um sonho estragado perturba sua paz de espírito e ele encontra
alguém que o lembra de que a vida parece não ter sentido. Zaratustra duvida que seu "além-do-
homem" seja mais um projeto sem sentido e se ele mesmo seja um revolucionário ou
simplesmente mais um intelectual da velha tradição cultural. Uma série de encontros aprofunda
ainda mais seu estado de incerteza. Contudo, afirma Nietzsche na boca de Zaratustra: “Vede,
eu vos ensino o Além-do-homem! O Além-do-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade
diga: o Além-do-homem seja o sentido da terra” (NIETZSCHE, ZA, Prólogo, §3)21. Dizer que
o além-do-homem é o sentido da terra significa dizer que o homem superou a decadência
fisiológica de milênios e pode ir além do niilismo22.
Essa nova tipologia se contrapõe aos trabalhadores filosóficos ou aos homens científicos
que se encontra em toda a história da filosofia, pois, a natureza dionisíaca é o elemento
primordial para o ato da criação, já que os novos filósofos precisam de algum modo, da
autossuperação. Nesse sentido, Nietzsche busca a educação clássica como exemplo dessa
natureza dionisíaca com o intuito de demonstrar um Sim à vida. A esse respeito, escreve o
filósofo: “pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco, se
expressa o fato fundamental do instinto helênico – sua ‘vontade de vida’” (NIETZSCHE. CI X,
§4). Essa vontade de vida encontra-se justamente com os filósofos legisladores. Esse legislador
que é denominado também de além-do-homem valoriza o corpo em detrimento da consciência,
pois esse pensamento é notável na filosofia nietzschiana. Nesse sentido, os impulsos devem
tomar a palavra e não a consciência ou o pensamento como faz o homem moderno e toda a
tradição filosófica. Nesse caso, o corpo não é mais a parte fundamental para a interpretação do
mundo, e sim a consciência. Mas a filosofia nietzschiana desmistifica essa compreensão
21
A tradução utilizada para esta citação traduz o conceito Übermenssch para Além-do-homem , porém, a
tradução utilizada nesta tese é “além-do-homem...
22
O conceito niilismo será discutido no segundo capítulo dessa tese.
40
admitindo que o corpo seja a grande razão das relações complexas com a realidade; é o corpo
que interpreta o mundo, portanto, ele é superior à consciência. A esse respeito, lê-se:
O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade unânime, um estado de guerra e paz,
um rebanho e o seu pastor. Essa pequena razão a que dás o nome de teu espírito, ó
meu irmão, é apenas um instrumento do teu corpo, e um bem pequeno instrumento,
um brinquedo da tua grande razão. (NIETZSCHE. ZA, “dos desprezadores do
corpo”).
2.1 “Eu ensino aos homens uma nova vontade”: a elaboração do conceito de Vontade de
Potência.
Mas é com a elaboração do Crepúsculo dos Ídolos que Nietzsche redimensiona seu
projeto na elaboração do conceito de vontade de potência e o transforma em transvaloração de
42
todos os valores. Nesse sentido, a nossa discussão do conceito de vontade de potência sempre
estará relacionada aos conceitos de niilismo, psicologia do sacerdote, superação da décadence
e por fim, como uma fisiopsicologia. É consenso que a doutrina da vontade de potência se
tornou o conceito mais controverso entre os estudiosos de Nietzsche. O filósofo alemão inicia
sua empreitada de elaboração dessa doutrina na obra Assim Falou Zaratustra, mas é
desenvolvida em todo seu itinerário intelectual após essa obra. Contudo, a vontade de potência
passa a adquirir um sentido mais amplo sobretudo em Além do bem e do mal, quando
relacionado ao niilismo e à psicologia.
Nietzsche descreve três etapas em que ocorre o niilismo enquanto estado psicológico. O
fragmento em que se identifica tal abordagem é intitulado como “Queda dos valores
cosmológicos” e é dividido em duas seções. Busca-se analisar esse fragmento por partes:
O niilismo aqui ocorre quando o homem crê em uma totalidade, em uma unidade
sistematizada e organizada que sustenta todo o devir. Essa crença, em uma espécie de unidade
de um Ser, faz com que o homem crie para com ele um “profundo sentimento de conexão e
dependência”, que faz com que a confiança no valor de si mesmo só se sustente pela atuação
dessa divindade nele. Essa divindade pode ser descrita como uma superioridade infinita, na qual
foi depositada a crença na fundamentação de todos os valores. O problema, para Nietzsche, é
justamente o fato de o homem depender dessa universalidade altamente valorizada para poder
acreditar em seu próprio valor. Mais uma vez se tem o sentimento de fracasso perante a vida,
como diz Heidegger (2007b, p. 48): “se a crença em uma unidade que atua através do todo é
frustrada, então se percebe que não se tende para nada com todo agir e com todo atuar (‘devir’)”.
Tendo noção dessas duas compreensões: a) “de que com o vir-a-ser nada deve ser
alvejado” e b) “de que sob todo vir-a-ser não reina nenhuma grande unidade em que o indivíduo
pode submergir totalmente como em um elemento de supremo valor”23; o homem enxerga como
“escapatória” a criação de um além-mundo, suprimindo e condenando este do vir a ser como
ilusório e dando àquele o status de verdadeiro. No entanto, o homem descobre que esse “mundo
verdadeiro” foi criado “somente por necessidades psicológicas” e que, consequentemente, não
possui nenhum direito sobre ele. Segundo Nietzsche, surge assim, portanto, a última forma do
niilismo que é a “descrença num mundo metafísico”. Essa decepção força o homem a assumir
que só existe o mundo do vir a ser enquanto verdadeiro. O que se torna difícil para ele, uma vez
que não consegue suportar a transitoriedade deste mundo que agora tem a sua negação
impossibilitada.
23
Cf. NIETZSCHE. Obras incompletas, “Sobre o niilismo e o eterno retorno”, coleção Os Pensadores,
fragmento §12. 1884-88. p.431
44
O problema, segundo Nietzsche, ganha uma dimensão muito mais abrangente e perigosa
quando o cristianismo se apropria do mundo suprassensível de Platão e o configura como a
morada eterna de Deus. E o pior: esse lugar é prometido para os “bons” ao passo que o mundo
sensível nada mais é do que uma espécie de “vale das lamentações”, que deve ser encarado
apenas enquanto uma travessia dolorosa que tende para a bem-aventurança eterna e
transcendente. Eis o porquê que Nietzsche classifica, no “Prólogo” de Para além do bem e do
mal, o cristianismo como um “platonismo para o povo”. Se o homem não encontra os valores
“sentido”, “unidade”, “totalidade”, “meta” neste mundo do vir a ser, no mundo transcendente
eles existem. Mas o homem descobre que esse mundo é fictício e só foi criado por carecimentos
psicológicos. Quando esse mundo superior cai, torna-se necessário afirmar esse mundo do devir
como o único. Quais as consequências dessa terrível realidade? Heidegger (2007b, p. 50) diz
que:
Os estados psicológicos do niilismo acima explanados mostram que Nietzsche tenta dar
a orientação do movimento histórico-filosófico da metafísica tradicional que fundamentou toda
a história europeia. Os valores erigidos foram tragados pela realidade do devir:
Tendo em vista toda explanação acima, pode-se, inocentemente, cair no erro de acreditar
que todos esses estados psicológicos do niilismo se contradizem com a primeira noção
apresentada neste trabalho, acerca do que seja essencialmente o niilismo, ou seja, “o fato de os
valores supremos se desvalorizarem”. Todavia, afirma-se que para Nietzsche não existe apenas
uma forma de niilismo, mas sim diversas variantes, sendo aquela a sua principal e mais
45
devastadora. E aqui, mais uma vez recorre-se a Heidegger, que aborda esse suposto problema
de maneira riquíssima. Segundo o filósofo:
A criação de um mundo suprassensível, bem como a inserção de valores nele, como fez
Platão e os cristãos, é o que dá forma ao niilismo negativo. Para Nietzsche, essas são as duas
matrizes para essa espécie de niilismo que tem como característica principal a negação da vida
em nome de outra melhor; a negação desse mundo em prol de outro, onde os valores superiores
– Bem, Deus, Verdade – identificam-se ao Ser. Para o filósofo, a noção de Deus foi inventada
como antítese à vida justamente porque em Deus está a verdade, o Ser, o eterno e imutável, ao
passo que a vida é devir, é vir a ser e, por isso, é condenado a ser aparência, portanto, uma
mentira. O que faz com que o niilismo negativo aconteça é o que Nietzsche chama de “vontade
de verdade”, ou seja, uma necessidade psicológica do homem em crer que existe algo de
absoluto e, assim sendo, a verdade se identifica com o divino. Essa “vontade de verdade” foi a
base de toda filosofia até Nietzsche, segundo ele mesmo. O “Filósofo da suspeita” denuncia
esses niilistas negativos pela boca do seu Zaratustra:
todos os valores supremos que se fundamentavam nele, todas as certezas metafísicas e também
morais se tornam, por sua vez, decadentes. Esse acontecimento abre a possibilidade para mais
dois tipos de niilismo. Mas como Deus morreu? Como Nietzsche pôde fazer tal anúncio? Qual
o fundamento para tal constatação?
A primeira vez em que Nietzsche anuncia a Morte de Deus é no aforismo 125 de A Gaia
Ciência. Esse anúncio é feito pela boca de um louco que se encontra em praça pública em plena
luz do dia com uma lanterna acesa nas mãos procurando por Deus. Transcrever-se-á esse
aforismo em sua completude pelo fato dele mostrar de forma clara todo o processo niilista que
resulta desse fato anunciado, além de sua forma poética extremamente bela e forte:
O homem louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:
“Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que
não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está
perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está
se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e
riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os
com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos –
vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos
beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que
fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos
movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás,
para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e
‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na
pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não
temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses
apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos
consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo
até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse
sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos
sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós?
Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele?
Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato,
a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou
o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em
silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é
ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou
ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das
estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para
serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua
constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o
homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem
aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são
ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE. GC,
§125).
Mais do que querer dizer que Deus não existe, Nietzsche se preocupa em mostrar por
que veio a existir e depois de muito tempo desapareceu a crença na existência de Deus. Mas é
principalmente com a Morte de Deus que se constata de maneira latente o niilismo da
47
modernidade. Esse fato, que Nietzsche considera um fato histórico, é a evidência de que a fé
em Deus e, consequentemente, as práticas sobre Ele erigidas, foram minadas e não possuem
mais uma razão de ser. Ou seja, é a constatação de que Deus se encontra ausente nas práticas e
nos pensamentos da sociedade ocidental. Com efeito, Deus estando morto, todos os valores
supremos, inclusive o seu próprio valor do homem, são dessacralizados. Não há nada mais de
sagrado em que se apoiar. Mas quem, efetivamente, matou Deus?
Nietzsche responde, por meio do louco, que foram os seres humanos, “vocês e eu! Nós
todos somos seus assassinos!”. Todavia, temos aqui como principal culpado, o homem
moderno. Contudo, a partir da morte de Deus, o corpo não tem mais culpa. Sim, é sobre o
homem moderno que recai toda responsabilidade pela perda da confiança em Deus. No entanto,
Deus estando morto, o mundo suprassensível também se mostra sem força de atuação, não
restando, assim, mais nada em que o homem possa se apoiar e em que ele possa se direcionar.
Não há mais finalidade para a existência humana. Não há mais um final redentor,
extramundano.
Fica evidente ainda no prólogo que Zaratustra passou por uma transformação. Durante
uma década a personagem principal se isolou na solidão da caverna, onde se deu tal processo.
Assim nos relata seu autor: “Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão,
sem deles se cansar. No fim, contudo, seu coração mudou”. (Assim falou Zaratustra, prólogo,
1º seção). A transformação de Zaratustra nos vem à luz como um prelúdio ao grande anúncio
da morte de Deus. O primeiro interlocutor de Zaratustra percebe sua transformação e exclama:
Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-
se Zaratustra; mas está mudado [...] mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança,
Zaratustra, despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entrem os que dormem? Mal
sabia o interlocutor de Zaratustra que este tinha uma grande revelação a fazer: “será
possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?”.
(Assim falou Zaratustra, prólogo, 2º seção).
O anúncio de Zaratustra causaria uma completa reviravolta na cultura ocidental. Sua
retirada na solidão da caverna foi um apresto para o momento crucial na sua vida que só
aconteceria após o anúncio da morte de Deus: “a transvaloração dos valores”. Se os valores
vigentes estão fundamentados no mundo metafísico, era preciso então suprimir a sua
fundamentação, e a partir dessa tarefa corrosiva, criar os novos valores. Uma vez destruídos os
valores metafísicos, outros, humanos, demasiado humanos, surgiriam em algum momento e em
algum lugar. Pois a morte de Deus é que permitirá Nietzsche conceber o projeto mais importante
da sua vida.
A proposta de Zaratustra é dar a humanidade um duplo presente: um novo amor e um
novo desprezo, ou seja, o além-do-homem e denunciar o “último homem”. Este último é aquele
que assume o mundo transcendente e aceita a interpretação cristã do mundo como única e
verdadeira, além de representar o rebaixamento de valor do ser humano. O além-do-homem, ao
contrário, é aquele que aceita a morte de Deus e consequentemente a morte do homem enquanto
criatura frente ao criador. É esse que viabilizaria a criação de novos valores segundo Nietzsche.
Os valores vigentes, quem os criou foi o último homem. Esses valores desprezam a vida,
o corpo e a terra. Segundo o filósofo alemão, é preciso combatê-los para que surjam outros.
Com a criação dos valores metafísicos, a alma foi forjada para arruinar o corpo. Inventou-se
um “mundo verdadeiro”, fabulou a noção de Deus como “a máxima objeção contra a
existência”. 24
Essa é a denúncia que Nietzsche emprega como pressuposto para a criação de
novos valores, pois assim escreve: “O conceito de ‘Deus’ foi até agora a máxima objeção contra
a existência... Nós negamos Deus, negamos a responsabilidade em Deus: com isto somente
redimimos o mundo”. (NIETZSCHE. CI VI, §8). Tornando-se criatura e criador de si mesmo,
o além-do-homem prezaria os valores em harmonia com a terra, com a vida e com o corpo.
24
Cf. Ecce Homo, Por que sou um destino, § 7.
49
Após o anúncio da morte de Deus com seu duplo sentido, Zaratustra acredita ter feito a
travessia do niilismo, - tarefa que só seria possível para o além-do-homem. No entanto,
Zaratustra encontra seu grande adversário, o adivinho. Essa figura funesta que representa o
niilismo e prega a esterilidade, ao contrário de Zaratustra. Enquanto este fala da abundância, do
excesso, do transbordamento e desce da montanha para trazer fogo aos homens ao mesmo
tempo em que quer ir à profundeza para sair fortalecido25, o adivinho prega o grande cansaço e
espera ser tragado pela profundeza com seu pensamento niilista.
É possível supor que Zaratustra outrora acreditasse em Deus e fora niilista, pois, no seu
percurso da descida da montanha, ele encontrou o ancião que lhe diz: “Não me é desconhecido,
este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado”.
(NIETZSCHE. ZA, prólogo, §2). A mudança da qual passou Zaratustra, pode ser entendida
como forma de demonstrar que é possível dar um novo sentido ao homem, ou seja, o sentido
do além-do-homem.
O projeto da transvaloração de todos os valores consiste em suprimir o solo a partir do
qual os valores até então foram engendrados. Nesse sentido, Nietzsche critica a metafísica, a
religião e a moral. Derrubar os ídolos, demolir os alicerces e acabar com os fundamentos dos
valores é o passo fundamental para realização do seu desígnio. Como diz o próprio filósofo:
“Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, faz parte de meu ofício”.
(NIETZSCHE. EH, prólogo §2).
Salta aos olhos à leitura do Assim falou Zaratustra aqueles a quem a personagem se
opõe, a saber, o cristianismo e o platonismo. A oposição ao cristianismo se caracteriza pelo fato
de Zaratustra enaltecer de forma exacerbada a terra e o agora; já ao platonismo, é a analogia
inversa, ou seja, é na caverna que Zaratustra se torna sábio e não fora dela. É por excesso de
sabedoria que o personagem desce da caverna para ter com os homens, não por constatar a
miséria deles. O que o move não é a dualidade entre a diversidade sensível e a verdade
inteligível, mas por compreender que tal dicotomia não existe. É abundância própria, o
transbordamento do mundo “aparente” que o impulsiona a trazer a boa nova a humanidade.
Ora, se o pressuposto da transvaloração é a inversão dos valores, então criar é
efetivamente o projeto nietzschiano. As novas tábuas de valores é tarefa dos filósofos
legisladores, porém, esses filósofos, segundo Nietzsche, ainda não tenham existido26. Mas
25
Cf. Assim falou Zaratustra I, “Da árvore da montanha”: “Quanto, mais (árvore) quer crescer para o alto e para
a claridade, tanto mais fortemente suas raízes tendem para a terra, para baixo, para a treva, para profundeza”.
26
Cf. NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal §211. Trad. Paulo César de Souza. 1992, p. 105-106. “Seu
‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é – Vontade de Potência. - Existem hoje tais
filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos?...”.
50
devem existir, já que a pedra fundamental foi lançada, - o anúncio da morte de Deus. O que o
filósofo alemão está propondo é a inovação dos filósofos como verdadeiros legisladores, não
apenas trabalhadores filosóficos, pois, onde estes se detêm os filósofos legisladores começam,
inovam e criam as novas tábuas de valores.
Não é com trabalhadores filosóficos que Nietzsche conta para assumir a tarefa da
transvaloração27. É necessário ser como os filósofos legisladores que inovam e dizem “assim
deve ser!” São eles que têm a missão filosófica de criar valores. Nietzsche assume essa missão,
pois considera o seu destino presentear um novo sentido à existência humana, e afirma: “Minha
fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para
diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos
ainda dissimulá-lo (...), mas amá-lo”. (NIETZSCHE. EH, “porque sou tão esperto”, §10.) Amar
o destino, não é resignar-se diante dele, é acima de tudo assumir a existência como ela é, mas
sem recortes ou restrições; é não procurar sentido em outro mundo; é aceitar de modo absoluto
e irrestrito tudo o que advém “sem desconto, exceção ou seleção”; é afirmar a vida no que ela
tem de mais alegre e exuberante, mas também terrível e assustador.
Essa afirmação, ao que tudo indica, Nietzsche se refere à expansão da vida, a vontade
criadora, como afirma o filósofo: “ É vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no
criar, está incluído o destruir” ( FP, maio-unho de 1888, KSA 13, 17[3], p. 521). O termo criar
para Nietzsche está intimamente ligado à ideia de vontade de potência e consequentemente à
fisiologia. Essa filosofia que enaltece a vida, que afirma o vir-a-ser e rejeita o transcendente só
pode ser entendida numa relação entre a psicologia e a fisiologia. Essa relação é denominada
pelo filósofo de fisiopsicologia, ou seja, é a afirmação da efetividade da vontade de potência.
27
Embora os trabalhadores filosóficos tenham a capacidade de dar início ao projeto da transvaloração, Nietzsche
não conta com eles já que estes não conseguem assumir tal empreitada por inteiro.
51
feitas até o seu presente. O azul representa as hipóteses inglesas com sua falta de documentação
e comprovação; A cor cinza, segundo o filósofo, é a cor do genealogista que busca na
verificação do passado da humanidade e o modo de construção da moralidade.
Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da
moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente
havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado
moral humano (NIETZSCHE, GM, prólogo § 7).
A partir da análise histórica, Nietzsche percebe que o valor bom está ligado às ações
altruístas, ou seja, as ações consideradas boas e desinteressadas que eram praticadas pelos bons,
mas elas são úteis a quem as pratica, o que faz delas não desinteressadas. Segundo Nietzsche,
as ações denominadas boas ou não-egoístas são, no fundo, egoístas por sua utilidade de tornar
bom quem a pratica. Por isso, a cor azul representa os ingleses que elaboram suas hipóteses a
partir de seus pontos de vista pessoais sem a devida comprovação histórica.
Neste ponto, consideramos instigante realizar a análise destes conceitos junto aos
filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que retomaram a discussão na obra Anti-Édipo (2011).
A esse respeito escrevem os filósofos: “Porque a Genealogia, na segunda dissertação, é sem
igual, a mais bem-sucedida tentativa de interpretar a economia primitiva em termos de dívida,
na relação credor-devedor” (DELEUZE; GUATARRI, 2011, p. 251). Importante denotar que
esta relação credor/devedor foi exposta primeiramente por Nietzsche na segunda dissertação da
Genealogia da Moral (2009).
Para Deleuze, a intenção principal de Nietzsche é introduzir na filosofia os conceitos de
sentido e valor. Para que surja uma filosofia moldada “a golpes de martelo”, a noção de valor
implicaria uma inversão crítica. A esse respeito escreve Deleuze em Nietzsche e a Filosofia
(2001):
Por um lado, os valores aparecem ou dão-se como princípios: uma avaliação supõe
valores a partir dos quais aprecia os fenômenos. Mas, por outro lado e mais
profundamente, são os valores que supõe avaliações, pontos de vista de apreciação,
donde deriva o seu próprio valor. O problema crítico é este: o valor dos valores, a
avaliação donde procede o seu valor, portanto o problema da sua criação (DELEUZE,
2001, p. 6).
o bem, o verdadeiro, o justo e o belo, de sorte que o erro e a ignorância da verdade são
considerados como a origem efetiva do mal.
humanidade, a eticidade dos costumes se revelava nas forças ativas, pois, para o filósofo, o
princípio primário da humanidade está ligado à vontade de potência ou as forças ativas. No
processo de evolução social, o homem perde seu princípio em prol da adaptação social. O
progresso é, para Nietzsche, uma ideia equivocada, pois a seu ver essa ideia é o contrário de
uma elevação das forças ativas do homem. Nesse sentido, as forças ativas aparecem no animal-
homem e nas formas elementares do direito como expressões miméticas da energia propulsora
da vontade de potência – força plástica e princípio artístico de organização, contrário ao
pequeno homem, ou, socius. A este o que interessa é a dívida e não a troca. “Codificar o desejo
– e o medo, a angústia dos fluxos descodificados – é próprio do socius” (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p 185).
Na eticidade primitiva, a hierarquia e a diferença eram características fundamentais
nesse tipo de organização. Porém, com a formação do Estado social o animal-homem foi
inserido nessa nova organização a qual o domesticou e anulou a vontade ativa. Portanto, a
eticidade primitiva se perdeu com a sublimação das pulsões mais rebeldes e selvagens do
animal-homem, o que Nietzsche chama de “antigos instintos da liberdade”. Eticidade para o
filósofo alemão são domínios antitéticos da liberdade, pois o homem livre é o homem não-ético,
já que ele não corresponde aos cânones da tradição.
O processo de vir a ser das mais refinadas formações da cultura superior que têm sua
origem na eticidade do costume e nos dispositivos rudimentares do direito primitivo é enfocado
por Nietzsche de um duplo ponto de vista: “macro-cósmico”, quando se trata da criação das
comunidades ou estados primitivos, constituídos com base na instituição forçada de diferenças
funcionais hierarquizadas e regramentos diversos de domínios de poder; do ponto de vista
“micro-cósmico” é quando se considera a introjeção ao nível da psiquê individual dos processos
de diferenciação e hierarquização de funções, por meio da qual se torna possível tanto o
desdobramento e especificação das funções quanto o concurso harmonioso de distintas
faculdades e disposições psíquicas.
Em Genealogia da Moral, Nietzsche retoma sua análise sobre os supremos valores da
cultura ocidental, porém, analisando seu surgimento, pois os valores foram engendrados em
algum momento e em algum lugar, portanto, para o filósofo alemão, não existem dados
definitivos, absolutos ou eternos. Nesse sentido, a justiça é analisada como um valor advindo
da moral. A ideia de justiça para Nietzsche está associada à ideia de moral, pois a justiça é a
garantia do bem comum, que por sua vez se baseia no princípio da moral da igualdade,
característica da sociedade oposta ao tipo de homem da pré-história da humanidade.
54
Fica patente após esse fragmento que dívida e culpa são iguais obrigação do Direito
Penal, como esclarece o pesquisador Oswaldo Giacoia: “A dívida, no sentido econômico-
jurídico do termo, aquele sentimento e aquela noção de estar em débito, de ter dívidas, que
nasce no circuito da troca, da compra e da venda, do débito e do crédito, permite o desafogo da
má-consciência” (GIACOIA, 2021, p. 38). Nesse sentido, direito e dever nascem juntos. Para
Nietzsche, essa reciprocidade entre direito e dever não é uma qualidade inata ao animal-homem,
mas o resultado de um processo de domesticação ou formação do homem. Pois, a esse respeito
o filósofo afirma: “Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre os homens de poder
aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de ‘entender-se’ mediante um compromisso
– e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si”. (NIETZSCHE,
GM II, §8). Esse compromisso entre si é o que se pode denominar de direitos e deveres que um
tem sobre o outro. Para alcançar esse estágio de relação entre direito e dever foi preciso
domesticar o animal-homem por meio da eticidade dos costumes, o que consiste na obediência
aos costumes ou à tradição, com isso, o homem se encontra no âmbito da moral.
O homem confiável é aquele que se submete aos preceitos ordenadores, nesse caso, os
costumes. Essa formação é denominada por Nietzsche como a memória da vontade, ou seja,
querer ter sido o que não foi. A insurreição a esses costumes seria imoral perante a tradição.
Contudo, o filósofo vê um outro tipo na formação do animal-homem, ou seja, o
desenvolvimento do espírito, cujo resultado é o surgimento da liberdade como autonomia da
vontade na forma do indivíduo soberano e capaz de prometer.
55
resultante dessa doação de obrigações, pois os ancestrais passam a ser vistos como espírito
protetores que velam pela segurança, bem estar e prosperidade de seus filhos. O que torna esse
ancestral como uma divindade doméstica, onde todo sacrifício é pouco para pagar essa dívida
impagável. Por isso, seguir as regras da coletividade é tão importante, já que foram os
antepassados que as criaram. Porém, essa obrigação tem sentido eminentemente jurídica, pois
o pagamento da dívida é uma contra-prestação de resgate e não uma piedade.
A obrigação é a apropriação da má consciência, ou seja, da consciência da culpa, que é
o processo da interiorização e espiritualização dos antigos instintos de liberdade. Impedida de
se exercer como assujeitamento do mundo exterior, a natureza conformadora e violenta de tais
cargas instintivas se voltam contra o próprio homem ao se interiorizar. Com essa interiorização,
as relações jurídicas se transfiguram em dever e culpa moral. Na figura do devedor, a culpa se
manifesta ao transgredir as regras da coletividade, ao exteriorizar seus instintos e se sentir
eternamente culpado por possuir tais instintos. A figura do credor não é mais o ancestral
comum, mas o ancestral primeiro, isso numa interpretação cristã, o Deus cujo princípio do
mundo se encontra Nele.
Desse modo, tendo o credor no além, o homem, em sua existência terrena, não é
devedor no sentido jurídico, mas culpado no sentido moral. Essa culpa se torna permanente e
impagável, pois a existência se origina no credor, ao mesmo tempo em que a dívida se origina
na existência do devedor e o próprio credor se sacrificou em prol do devedor. A esse respeito
Nietzsche escreve:
O próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si
mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio
homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é
de se dar crédito?), por amor a seu devedor!... ((NIETZSCHE, GM II, §21).
Com o advento do Deus cristão e principalmente com o seu sacrifício, a dívida atinge
proporções imensas, torna-se impagável, torna-se eterna: a responsabilidade-dívida transforma-
se em responsabilidade-culpa. À medida que Deus se oferece em sacrifício para pagar as
dívidas do homem, o resgate torna-se impossível, e a associação da dívida com a falta faz do
homem alguém responsável por essa falta e, portanto, culpado. Percebe-se dessa forma, que o
filósofo utiliza o termo culpa, e não dívida, pois culpa se relaciona com a qualidade negativa na
vontade de potência e com o sentido de dívida eterna para com o Deus cristão.
A eticidade dos costumes é entendida por Nietzsche como a obediência aos costumes
mediante as relações de forças. Os costumes são regras de conduta elaboradas pela autoridade
da tradição que, por sua vez, está fundamentada na noção de um ancestral primeiro, ou seja,
58
Porém, não basta apontar a tese de Heidegger de que a filosofia de Nietzsche é o fim
da metafísica, é preciso antes, examinar e ler com Heidegger as formulações nietzschianas. A
esse respeito, escreve o pesquisador e tradutor Marco Casanova, na obra Nietzsche II, de
Heidegger:
Por isso, todas as considerações acerca da interpretação heideggeriana do pensamento
de Nietzsche precisam ter em vista, por fim, essa peculiaridade hermenêutica
incessantemente velada no texto das preleções, mas constantemente vigente em seu
pano de fundo. Não para concordarmos simplesmente com a posição de Heidegger,
mas para ao menos sabermos de que é afinal que discordamos ou concordamos. No
momento em que temos clareza quanto a esse ponto, a tese heideggeriana acerca da
consumação da história da metafísica na obra de Nietzsche ganha contornos mais
nítidos (HEIDEGGER, 2007b, p VII).
Nesse sentido, a tese heideggeriana deve ser passada a limpo a fim de elucidar suas
posições. O entendimento sobre a acontecência do ser pela técnica em Heidegger também
deriva da leitura crítica de filósofos antigos e contemporâneos, dentre os quais os escritos de
Heidegger destacam Nietzsche e Junger. À Nietzsche, Heidegger dedicou a maior parte de sua
atenção na metade da década de 30, em sua análise da inversão do platonismo, isto é, do
esgotamento da metafísica. A inversão do platonismo de Nietzsche estrutura o pensamento
onto-historial de Heidegger no que concerne a observação de um ser para o devir no mundo
orientado pelo sentido da técnica.
A inversão não é certamente nenhuma virada mecânica, por meio da qual o mais
baixo, o sensível, assume o lugar do mais alto, o suprassensível, permanecendo os
dois inalterados juntamente com suas posições. A inversão é a transformação do mais
baixo, do sensível, na “vida” no sentido da Vontade de Potência, em cuja estrutura
essencial o suprassensível, enquanto asseguramento da consistência, é incorporado e
transformado (HEIDEGGER, 2007b, p. 68).
28
Para Ferreira Jr (2013), a leitura do além-do-homem, feita por Heidegger, colocando-o como consumação da
subjetividade cartesiana e seu ideal de dominação incondicional sobre a totalidade das coisas, negligência o fato
de que o além-homem, em Nietzsche, não é uma forma potenciada da subjetividade nascida com Descartes. Esta
crítica tem base nos comentários de Muller-Lauter, quem Müller-Lauter ressalta que a própria interpretação
heideggeriana da Vontade de Potência como princípio metafísico em Nietzsche seria equivocada, já que
Heidegger concebe uma unidade na Vontade de Potência a qual se manteria através da constante superação de si,
o que, por sua vez, exigiria que a totalidade do ente se manifestasse como eterno retorno do mesmo.
60
“arauto da Boa Nova” através da máxima da morte de Deus. Com Nietzsche, Heidegger (2007a)
assume que as sombras da morte de Deus ainda cobrem e hão de cobrir a terra por muito tempo,
ou seja, ao superar a metafísica sempre deparamos com seus resíduos. Essa ideia é corroborada
por Heidegger (2007a, p. 115), quando afirma: “(...) a arte como contramovimento em relação
ao niilismo e a arte como objeto de uma estética fisiológica”. É essa compreensão de arte que
se relaciona com a fisiologia que está imersa na interpretação da vontade de potência.
A condição fisiológica da qual o filósofo se refere é o estado dionisíaco, ou seja, a
sublimação dos impulsos vitais, a embriaguez necessária para a arte do “grande estilo” e da
vontade de potência. Quais são as características dos impulsos humanos, enquanto uma forma
da vontade de potência? Esse questionamento nos remeterá a uma discussão no sentido de
entender as relações dos conceitos de impulsos e teoria das forças.
Em relação aos comentários de Muller-Lauter, embora não raramente contradizem aos
de Heidegger, interessa sua percepção sobre o conceito nietzschiano de Vontade de Potência
que, conforme o próprio filósofo, foi fundamentalmente influenciada por Heidegger, como fica
patente no apontamento a seguir: “parece-me muito mais crescer, a partir do pensar de
Nietzsche, em medida ainda mais forte do que se tornou manifesto por meio das interpretações
até agora existentes” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 53). Nesse sentido, a interpretação desse
comentador denota que o cosmo é um conjunto plural de forças conflitantes o que o distancia
da compreensão heideggeriana da metafísica.
Discutir a vontade de potência leva a várias interpretações dos comentadores de
Nietzsche. Todavia, prefere-se, aqui, trabalhar com duas que até certo ponto são distintas: a de
Heidegger e a de Müller – Lauter. É relevante salientar que não se pretende estabelecer um
diálogo tenso entre esses dois autores, mas utilizar suas interpretações, principalmente naquilo
em que não há discordância em relação à vontade de potência e à fisiologia. Não interessa neste
trabalho a interpretação heideggeriana de que a filosofia nietzschiana consistia em levar a
metafísica até as últimas consequências, mas a compreensão do Grande Estilo como um efeito
da fisiologia. É essa compreensão de arte que se relaciona com a fisiologia que está imersa na
interpretação da vontade de potência. Nas palavras de Müller-Lauter (2009, p. 143), “a história
do niilismo não tem um começo. O niilismo é a expressão de décadence fisiológica”. Niilismo
é o movimento histórico reconhecido pela primeira vez por Nietzsche em que os valores
supremos como Deus, o Bem, a Verdade, desvalorizam-se e perecem, ou seja, entram em
decadência. O niilismo aqui não deve ser visto como um simples conceito abstrato, mas sim
61
como um fenômeno histórico-filosófico que embasa e orienta toda a história europeia. Ao termo
europeu, leia-se: ocidental.
Entender as noções de credor/devedor29 é imergir na psicologia do sacerdote, uma vez
que o sacerdote é sempre lembrado por Nietzsche em O Anticristo como o opositor das forças
vitais. Pois esta obra está eivada de denúncia da degeneração do homem enquanto uma tipologia
da décadence. Portanto, ao filósofo, cabe a expectativa de um novo olhar sobre o corpo, ou seja,
sua dinâmica da vontade. A isto, o filósofo contrapõe a psicologia negativa ligada ao sacerdote.
Assim escreve Nietzsche: “O sacerdote desvaloriza, dessacraliza a natureza: é a esse custo que
ele existe” (AC, §26). Seguindo a lógica do sacerdote da décadence, o filósofo alemão inclui
também a atividade artística enquanto décadence fisiológica.
Para Müller Lauter, o conceito de décadence sempre foi interessante a Nietzsche. Assim
afirma: “Desde cedo, Nietzsche refletiu sobre a questão da décadence, mas só em 1888, em seu
último ano de atividade, a palavra converteu-se num dos conceitos centrais do seu filosofar”
(MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 12). Neste sentido, o capítulo a seguir se destina a discussão
sobre a decadência.
29
A temática foi anteriormente discutida no segundo capítulo e nos auxilia a entender a chamada Psicologia do
Sacerdote.
62
Para fazer a crítica a arte moderna, Nietzsche escolhe Wagner, já que este, segundo o
filósofo alemão, seria o grande nome de artista da modernidade. Porém, Wagner tem a
característica da religião da compaixão, a esse respeito Nietzsche escreve: “Wagner tinha a
virtude dos décadents, a compaixão” (NIETZSCHE, CW, §7). Não só a compaixão, mas
também um verdadeiro cristão. Roger Hollinrake (1986), na sua obra Nietzsche, Wagner e a
filosofia do pessimismo, cita uma nota em que Nietzsche critica a obra Parsifal, de Wagner:
“Sou o mais desapontado de todos os wagnerianos: pois no momento em que era mais
respeitável do que nunca ser pagão, ele tornou-se cristão” (p. 184). A crítica de Nietzsche a
Wagner é quase sempre no sentido religioso, pois na arte do Grande Estilo não deve haver esse
sentido de inibição das forças, mas acima de tudo uma excitação da força. Ou como afirma
Deleuze: “A arte é o oposto de uma operação ‘desinteressada’, ela não cura, não acalma, não
sublima, não compensa, não ‘suspende’ o desejo, o instinto e a vontade. A arte, ao contrário, é
‘estimulante da vontade de potência’, ‘excitante do querer’” (DELEUZE, 2001, p.48). A arte
que estimula a vontade de potência que Nietzsche também chama também de estética
fisiológica tem uma relação intrínseca com a própria vontade que denominamos aqui de Grande
Estilo. E mais, “onde, sob qualquer forma, a vontade de potência declina, há também, toda vez,
uma regressão fisiológica, uma décadence” (AC, §17). Para Nietzsche, Wagner é o
representante dessa forma de arte. Tudo isso porque Nietzsche está influenciado pela arte grega
e chega inclusive à afirmação de que Wagner seria a renascença da arte grega na Alemanha.
Porém, essa afirmação perde sentido quando Nietzsche tem conhecimento do Parsifal de
Wagner.
à estupidez, Nietzsche escreve: “[...] Em épocas tais, a arte tem direito a pura tolice – como
uma espécie de férias para o espírito, o engenho, o ânimo. Wagner compreendeu isso. A pura
tolice restaura...” (CI, IX, §30). A partir das críticas enunciadas, podemos pensar numa
superação desse estado de décadence. Qual seria então a superação desse estado? Em que
medida Nietzsche pretende apontar para uma superação? A resposta a essas duas questões é,
possivelmente, a estética fisiológica, especificamente, a embriaguez.
3.1 “O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões”: a embriaguez
como condição sacralizadora da arte.
Nietzsche tomou o termo Rausch como um de seus principais conceitos, um fio que unia
todos os seus escritos, começando com a teoria da “Embriaguez Dionisíaca” versus a “Ordem
Apolínea” na obra O Nascimento da Tragédia (1872), e terminando em O Crepúsculo dos
Ídolos (1889), escrito em seu último ano de sanidade. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche
associou o Rausch ao caótico princípio dionisíaco, em oposição ao princípio formador apolíneo,
que envolve uma destruição do princípio de individuação, resultando na dissolução das
fronteiras entre os indivíduos e a fusão com a "misteriosa unidade primordial” no cerne da
natureza.
Já em Crepúsculo dos Ídolos, tanto o apolíneo quanto o dionisíaco foram concebidos
como condições da embriaguez, contudo, não mais como condição de dualidade. Nessa obra,
Nietzsche descreveu a embriaguez como um estado que produz o poder de visão na qual todo
o sistema emocional é afetado e intensificado. A essência da embriaguez, conforme o filosofo,
é a sensação de plenitude e de aumento de energia vital. A essa altura, Nietzsche havia
abandonado o ideal místico de atingir uma unidade para além da distinção sujeito-objeto. Mas
a ênfase ainda está em uma força que efetua de alguma forma o êxtase, embora este estado
agora seja conectado com a ultrapassagem dos limites que pertencem à ascensão da vida, ao
invés do desaparecimento das fronteiras que separam um indivíduo de outro. Nesse sentido, a
embriaguez em seus últimos escritos, é definida como a sensação de potência aumentada. A
ideia de que a embriaguez envolve, dentre outras coisas, uma transcendência da individualidade
ainda é presente nesta última concepção, novamente associada primordialmente com o
dionisíaco, que por sua vez é entendido como um desejo de unidade, um alcance além da
personalidade, do cotidiano, da sociedade, da realidade.
Nos Fragmentos Póstumos (escritos de 1884 à 1885), Nietzsche falou sobre Rausch
como o oposto do vazio descomunal que agride os homens, o oposto do sentimento desértico:
“O oposto desse sentimento é a embriaguez, na qual todo mundo por assim dizer se compacta
em nós e nós padecemos da felicidade da exuberância” (NIETZSCHE, FP, 25 (14)). O filosofo
continua abordando a invenção de meios de embriaguez em nossa era:
Nós todos conhecemos a embriaguez como música, como um entusiasmo cego, que
obnubila a si mesmo e como o louvor a alguns homens e eventos, nós conhecemos a
embriaguez do trágico, ou seja, a crueldade diante da visão do perecimento, sobretudo
quando é o nobre que perece: nós conhecemos as formas mais modestas de
embriaguez, o trabalho irreflexivo, o sacrificar-se como instrumento da ciência, um
fanatismo estúpido qualquer, um girar qualquer inevitável em mínimos círculos em
torno de si já possui forças embriagantes. (NIETZSCHE, FP, 25 (14)).
experiência individual, o romantismo tardio resumido por Nietzsche usava o indivíduo como
um símbolo de uma unidade cósmica (mas não o coletivo humano). Para eles, o Rausch varreu
todo pensamento sobre limites, até mesmo a ideia de que alguém poderia transgredir limites por
meio de uma decisão consciente - de acordo com Nietzsche, não havia nada de consciente,
nenhuma escolha consciente sobre a transgressão. Em vez disso, as próprias forças da existência
conduziam o corpo de volta às raízes animalescas, uma fonte pré-histórica, antes do nascimento
da civilização moderna, antes que as dores e prazeres humanos fossem classificados pela
primeira vez por Sócrates e Platão.
Tratar da embriaguez em Nietzsche, nos impele a entender o fragmento 8 da seção IX,
do Crepúsculo dosa ídolos, cujo título é: “sobre a psicologia do artista”. Nesta seção, o filósofo
insiste em relacionar a estética à condição fisiológica: a embriaguez. Esse conceito de
embriaguez se confunde com a expansão de força e plenitude. Heidegger, ao comentar esse
fragmento diz que: “Nietzsche acentua na embriaguez duas coisas: 1. O sentimento de elevação
da força. 2. O sentimento de plenitude” (HEIDEGGER, 2007a, p 92). Nesse sentido, pode-se
entender que Heidegger está indicando que essa elevação da força faz da estética fisiológica
algo essencialmente corporal e psicológico ao mesmo tempo.
Grosso modo, a embriaguez seria a efetivação da vontade de potência. Mas a
pesquisadora Rosa Dias (2011, p. 68) reelabora a definição de embriaguez com a leveza que
lhe é própria: “Uma tensão de forças que em nos cresce sem cessar produz um estado de
plenitude, de superabundância de vida, que explode em ações [...] até que reflitam nossa própria
plenitude e nosso próprio prazer de viver”. Essa transfiguração de forças em plenitude nos faz
entender que a criação depende da vontade de querer sempre a expansão da vida e da própria
vontade. A partir desse ciclo ininterrupto, a embriaguez eleva o sujeito para além de si mesmo
e nesse instante a criação artística em forma de sublimação da vontade se efetiva. De modo
algum, essa saída de si mesmo quer dizer algo volátil. A esse respeito Heidegger escreve: “Fica
especialmente claro que Nietzsche não designa com o termo ‘embriaguez’ um estado fugidio
que, como uma ‘embriaguez’, rapidamente embriaga e se volatiza” (HEIDEGGER, 2007a, p
93). Seria, então, esse estado estético uma transfiguração ou uma explosão da vontade
fisiologicamente falando em uma divinização dionisíaca da fisiopsicologia.
Nesta forma de pensar a arte, os impulsos passam a fazer parte da criação do artista. São
os impulsos que precisam ser expressos, é a exteriorização da vontade. Nesse momento de sua
filosofia, a concepção de vontade é a mesma dos impulsos vitais que são exteriorizados, a esse
respeito escreve o filósofo: “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior [...]
67
a arte do grande ritmo, o grande estilo dos períodos, para expressar um imenso fluir e refluir de
paixão sublime” (EH, “por que escrevo tão bons livros”, §4). Esse fluir de paixão é denominado
por Heidegger de estética fisiológica.30 Para Nietzsche, a arte do Grande Estilo é a arte que leva
em consideração os impulsos, não por acaso ela aparece nos textos do filósofo com relação à
teoria dos afetos, pois comunicar um estado interno é justamente à expressão dos impulsos ou
da vontade em forma de arte.
Não seria demais pensar numa comparação entre o mundo como vontade e
representação proposto por Schopenhauer e os impulsos apolíneos e dionisíacos pensados por
Nietzsche em O Nascimento da tragédia. Apolo, o deus da beleza, do brilho, da aparência e da
ilusão, compara-se ao mundo da representação, ou seja, da individuação e da razão suficiente;
Dioniso, o deus da fúria sexual e do fluxo de vida, figura que reúne em sua natureza dor e
prazer, manifesta o Uno Primordial, a vontade mesma para além da representação. O que
equivale a dizer que a semelhança com Schopenhauer deixa de existir, uma vez que a metafísica
de artista é superada por Nietzsche com a ideia de fisiologia da arte, isto é, o Grande Estilo.
Pois a arte do Grande Estilo tem um caráter fisiológico, ou seja, comunicar um estado, uma
tensão interna, o fluir e refluir de paixões. Para Nietzsche, o ponto de partida para a criação
como obra de arte seria a vontade de potência. É dessa forma que a arte permitiria ao homem
uma elevação em detrimento do estado de mediocridade do homem moderno, já que é a partir
da atividade artística que o homem se contrapõe a toda negação da vida.
Essa é a fórmula dos espíritos livres que se direcionam rumo à autossuperação, sendo
que é a partir dela que o filósofo percebe surgir à nova aristocracia do espírito; com esta, o
homem teria a capacidade de se reconhecer como individualidade, colocando-se à frente com
suas virtudes, ao contrário dos “homens máquina” da modernidade.31 É essa característica dos
espíritos livres que leva o homem a transfigurar força em beleza, rigor moral em consciência,
dever em honestidade intelectual, severidade em doçura e dar à própria vida a bela forma da
obra de arte. Nietzsche aponta Goethe como exemplo desse artista.32 Segundo o filósofo, este
soube conquistar o domínio de si sem renunciar à sua natureza, característica do artista do
30
Cf. Heidegger. Nietzsche, I. “O grande estilo”. 2007, p. 114.
31
Esse conceito é utilizado por Nietzsche para indicar os homens que fazem parte de uma esfera robotizada da
humanidade com a ideia de universalização e igualdade entre os homens.
32
Cf. NIETZSCHE, F. “A Grande Política” Fragmentos. In: clássicos de Filosofia: Fragmento Póstumo, 35, [9],
maio-junho de 1885, p 25-26. Cadernos de Tradução nº 3. Tradução de Oswaldo Giacoia Jr. IFCH / UNICAMP,
2005.
68
Grande Estilo, ou seja, a arte dionisíaca. Ou como diz Heidegger: “O que Nietzsche denomina
o Grande Estilo está o mais próximo possível do estilo clássico” (2007, p. 114).
É com a arte que o homem se torna capaz de expressar seus impulsos, sendo que estes,
ao tomarem a palavra, terminam por destronar o estatuto privilegiado da consciência. Como
afirma Nietzsche: “ao nosso impulso mais forte o tirano em nós, submete não apenas nossa
razão, mas também nossa consciência” (BM, §158). É sem a consciência moral impressa pelos
valores da modernidade que os impulsos agem no homem, afinal, o homem para Nietzsche, não
é simplesmente um individuum, mas uma multiplicidade de impulsos que lutam
incessantemente em busca de domínio, cada um desejando impor sua própria perspectiva de
criação a partir dos impulsos. Pois estes segundo Müller-Lauter: “Assume a cada vez o domínio
no interior do conjunto de uma multiplicidade” (MÜLLER-LAUTER, p. 51).
O filósofo alemão busca a arte do Grande Estilo como expressão dos impulsos. Estes se
perderam na modernidade, cedendo terreno aos interesses pressupostos pelo utilitarismo e pelo
nivelamento do homem, mas Goethe, segundo o filósofo, soube guardar o sentido desse espírito
livre. A arte, da qual Goethe é o representante, não é o transe ou o êxtase, mas ocorre quando o
belo obtém vitória sobre o monstruoso, é o delírio da embriaguez. Esse delírio artístico precisa
ser direcionado, porém, esse direcionamento deve ser de acordo com a própria vontade do
artista. Como afirma Nietzsche:
Pensar na criação a partir das forças vitais é compreender que os impulsos ao tomarem
a palavra sublimam-se e se transformam em arte da criação, que, é anterior à razão, ou como
afirma Bornheim ao citar Hamann: “Só o conhecimento de nós mesmos, essa descida aos
infernos, nos abre o caminho da divinização” (BORNHEIM,1985, p. 82). Esse homem que
desce aos infernos, ou seja, caos da natureza e de si mesmo é o artista do Grande Estilo, ele cria
a partir da força criativa em vez da ordem e medida. Tal artista está acima das leis da ciência,
essa criação faz parte das paixões vitais. Portanto, as ações do homem devem ser conduzidas a
partir da força dos impulsos, por isso, insiste o filósofo, “não cometamos covardia em relação
a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! – É indecente o remorso”
(NIETZSCHE, CI I, §10). Esses atos são a expressão dos impulsos vitais do homem que não
devem ser negados ou suprimidos como fazem os moralistas. Essa expressão dos impulsos é o
que Nietzsche denomina de vontade potência.
3.2 “A embriaguez da Grande Vontade que exige tornar-se arte”: o Grande Estilo e a
fisiopsicologia.
Refletir sobre o Grande Estilo numa relação com a vontade de potência é pensar a vida
como obra de arte. Nesse sentido, Rosa Dias (2011) em seu livro Nietzsche, vida como obra de
arte, afirma que “(…) a vida, como vontade de potência, como eterno superar-se, é, antes de
tudo, atividade criadora e como tal é alguma coisa que quer expandir sua força, crescer, gerar
mais vida.” (DIAS, 2011, p. 34). É dessa forma que a arte possibilitaria ao homem uma
elevação em detrimento do estado de mediocridade do homem moderno, já que é através da
atividade artística que o homem se contrapõe a toda negação da vida. Com a negação da vida a
partir da tradição socrático-platônico-cristã, só resta proclamar a potência criadora como
alternativa de uma vida exuberante. A atividade criadora para Nietzsche não tem nenhuma
relação com a concepção metafísico-religiosa, pois a morte de Deus possibilita ao filósofo
retirar das palavras o tom sagrado, com isso, a criação adquire uma significação eminentemente
humana. A esse respeito Dias escreve: “criar é uma atividade constante e ininterrupta. É estar
sempre efetivando novas possibilidades de vida” (DIAS, 2011, p. 65). Essa criação é uma
atividade a partir da qual se produz constantemente vida, e vida para Nietzsche é vontade de
potência e nada além disso.
A vida como vontade de potência é compreendida por Nietzsche como vontade de vir-
a-ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no criar, está incluído o destruir. A potência para
70
A arte do Grande Estilo não pode ser comparada a arte do jovem Nietzsche, pois esta
tem uma influência da filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia schopenhaueriana
sobre a nietzschiana está expressa principalmente nos primeiros escritos. Dessa forma, o Grande
Estilo nada tem a ver com tal filosofia, pois a arte do Grande Estilo está mais ligada à fisiologia
do que a metafísica de artista - como é o caso da filosofia da arte de Schopenhauer. Nietzsche,
ao se contrapor à metafísica de artista, fala da arte como condição fisiológica. A condição
fisiológica da qual o filósofo se refere é o estado dionisíaco, ou seja, a sublimação dos impulsos
vitais, a embriaguez necessária para a arte do Grande Estilo e da vontade de potência. Ou como
afirma Heidegger: “Partindo da embriaguez como estado estético fundamental, passamos para
a beleza; a partir dela retornamos aos estados de criação e de recepção [...], pois vida é elevação
da vida, e a vida ascendente é a embriaguez” (2007a, p. 111).
Martin Heidegger, no primeiro volume do livro em que estão reunidas as suas preleções
sobre Nietzsche ministradas na Universidade de Freiburg em Brisgau entre os anos de 1936 e
1939, ao falar da estética nietzschiana em sua obra Nietzsche I, justifica a vontade de potência
como ponto fundamental do Grande Estilo. Assim escreve o filósofo:
Onde o grande estilo está presente, a arte é real na pureza de sua plenitude essencial.
Só se deve avaliar a arte segundo o que ela é em sua realidade essencial; somente
segundo essa sua realidade ela deve ser concebida como uma figura do ente, ou seja,
como uma figura da vontade de potência. (2007ª, p. 117).
33
Cf. NIETZSCHE. BM, § 36.
72
impulso, pois a vontade de potência atua numa relação interna. Nesse sentido, para o filósofo
alemão, o mundo visto de dentro seria a busca insaciável pelo exercício da potência, ou seja,
expressão de um impulso criativo.
A partir do pensamento nietzschiano, no que diz respeito à luta incessante de forças
como acúmulo e descarga de energia, deve haver uma mudança na compreensão da elevação e
superação humana. Assim, a vontade de potência é compreendida em sua incondicionalidade e
globalidade como movimento de acúmulo e descarga de energia que não conhece nenhuma
exceção. Deste modo, a vontade de potência tem espaço para hierarquia valorativa humana em
que um determinado tipo de homem consegue fazer parte desse pensamento de interpretação
antiteleológica, ou seja, o além-do-homem que quer intensificar e superar a si mesmo.
O tipo de homem superior se percebe no plano além do bem e do mal da vontade de
potência. Dessa forma, os impulsos humanos deveriam possuir a mesma incondicionalidade da
vontade de potência, pois esta perpassa o reino inteiro da vida. A partir dessa compreensão da
vida, a Nietzsche parece ser necessário libertar a ciência de sua estreiteza mecanicista e, também
a filosofia de suas pressuposições metafísicas e organicistas. Para o filósofo, estas
interpretações veem o mundo nas perspectivas teleológicas e teológicas. Contrapondo a essas
interpretações, o além-do-homem poderia incorporar o caráter do mundo, isto é, a luta entre as
forças, o afastamento da compreensão religiosa de um ser criador, cuja compreensão indica
uma finalidade ao mundo. Logo, esse tipo de homem passa a criar a partir da própria vontade e
sem finalidade metafísica, mas como superação de si mesmo. Não há objetivos a atingir; por
isso ela é insaciável, continua a exercer-se a vontade de potência. Enfim, não há finalidade; por
isso ela é desprovida de caráter teleológico.
Além disso, a vontade de potência não é entendida pelo filósofo alemão como princípio
metafísico, mas de caráter relacional e plural que se expressa no confronto com outras vontades
de potência. Por isso, o mundo entendido pelo filósofo é o mundo “aparente” e perspectivo,
percebido como a soma das ações, do jogo de todos os centros de forças. Tendo isso em vista,
é possível afirmar, segundo o filósofo, que a existência é apenas um jogo de forças. Nesse
sentido, não há dicotomia entre o mundo perspectivo e o “mundo verdadeiro”, pois numa visão
nietzschiana, o “mundo verdadeiro” é, propriamente, o nada. Levando em conta tal constatação,
pode-se inferir que a hipótese de um mundo criado no sentido religioso é falsa, pois, para o
filósofo, o mundo é um vir-a-ser constante partindo de seu caráter perspectivístico. A criação
do mundo seria entendida então de forma imanente a partir do confronto e resistência das forças.
Cada força visa, a partir disso, a ampliar seu poder e a assenhorear-se de outras forças
73
circundantes. Por isso, o caos é visto por Nietzsche como turbilhão que se precipita
destrutivamente sobre si mesmo, para em seguida criar. É esse caos que permite a luta
incessante das forças criadoras e destrutivas da vontade de potência, que no limite, seriam
moldadas pela arte do Grande Estilo.
No que diz respeito à arte como direcionamento dos impulsos, Nietzsche define a
vontade de potência como um movimento de totalização que visa dar conta de todos os aspectos
da vida e do mundo. É importante notar que qualquer que seja a caracterização da vontade de
potência, a saber, força de tensão, princípio do movimento, força impulsora, fato primordial,
seu aspecto é sempre o mesmo. Desse modo a vontade de potência é para Nietzsche uma nova
interpretação do mundo e de todo acontecer, ou seja, o vir-a-ser. Contudo, essa interpretação
pode ser vista como uma tentativa de furtar-se às consequências niilistas da moral, assim como
da concepção científico-mecanicista e da impossibilidade de atribuir sentido às ações humanas
no fluxo incessante do vir-a-ser. Com tudo isso, instala-se “o perigo dos perigos”: tudo é sem
sentido.
Essa interpretação nietzschiana, no entanto, tem em vista um contramovimento que
possibilite uma hierarquia e um aumento efetivo das forças. Dessa forma, a vontade de potência
é um sentido em si mesmo. Cada organismo é um mundo em torno de si mesmo, o que equivale
a dizer que cada ser orgânico pode criar a partir dos seus impulsos. Essa pressuposição de que
o princípio criador atua em todo ser orgânico e inorgânico desvela uma posição afirmativa.
Portanto, Nietzsche concebe que tudo o que se apresenta a cada ser como seu mundo exterior é
uma soma de estimativa de valor. Essas estimativas devem estar relacionadas com as condições
de conservação e que, como diz o filósofo: “a vontade de potência é o que conduz também o
mundo inorgânico, ou, pelo contrário, que não há nenhum mundo inorgânico” (FP: 1887, XI,
34 (234), apud, MÜLLER-LAUTER, 1997). A hipótese de que a vontade de potência atua no
mundo inorgânico é pensada por Nietzsche a partir da compreensão de que também na química
e na ordem cósmica haveria, a partir de cada centro de força, a vontade de tornar mais forte.
Pode-se afirmar ainda que a vontade de potência é elaborada por Nietzsche como
tentativa de superar o niilismo e de propor um tipo superior de homem. Temas como esse são
relacionados pelo filósofo alemão em dois momentos: 1; o niilismo é compreendido como ponto
de partida, como decadência de uma valoração inteira, como a constatação de que faltam as
forças interpretativas; 2; a vontade de potência permitiria compreender o processo de ruína dos
valores e se colocaria como um novo princípio de avaliação que afirma a vida, esse seria o
princípio positivo dessa doutrina.
74
O que Nietzsche propõe para substituir a ruína dos valores morais, ou, o que seria a
ruína de uma determinada interpretação é justamente outra interpretação nova e distinta. Pois
essa nova interpretação é radicalmente distinta das demais, sejam elas: morais, metafísicas,
científicas ou religiosas. A interpretação nietzschiana seria de caráter perspectivística da
existência. Nesse sentido, a certificação do caráter afirmativo e efetivo das forças criativas e
das vontades múltiplas de potência que interpretam, dependeria, portanto, da perspectiva
humana de assumir uma determinada hipótese de interpretação tanto do mundo orgânico quanto
do mundo inorgânico, já que o filósofo em questão admite um único mundo regido pela vontade
de potência.
As inéditas concepções, de Nietzsche no que diz respeito à vontade de potência
corroboram para uma nova forma de arte. Essa nova forma de pensar na arte é o que
possibilitaria a criação de novos valores. As condições para a criação desses valores dependem
de um novo tipo de homem, ou seja, o tipo dionisíaco ou os filósofos do futuro, aqueles a quem
Nietzsche espera que sejam capazes de criar. Por isso a arte possui mais valor do que a verdade,
pois o filósofo atribui a arte também o estatuto de ser um contramovimento ao niilismo e a
vontade de nada. A arte seria, então, o grande estimulante da vida, ou seja, uma nova forma de
interpretar o mundo, pois a vontade de potência como centro de forças atuantes entre si possui
um ponto de vista em que organiza o todo a partir de perspectivas entre essas forças. Ou como
afirma Nietzsche: “A vontade de potência interpreta: na formação de um órgão, trata-se de
interpretação; ela demarca, determina graus, diferenças de potência [...] Na verdade,
interpretação é um meio de assenhorear de algo” (KSA 12. 139, FP 2 [148]. Essa nova
interpretação seria a arte da criação, a esse respeito escreve Roberto Machado na obra, Nietzsche
e a verdade: “A arte expressa uma superabundância de forças: remete aos instintos
fundamentais, à vontade apreciativa de potência” (MACHADO, 2002. p, 10). Dessa forma
interpretação é para Nietzsche toda atividade plástica criadora de sentido a partir de
determinadas interpretações entre os afetos ou forças que emanam da vontade de potência.
Portanto, pensar na vontade de potência como força plástica criadora é levar a cabo a
ideia de que o mundo é somente vontade de potência, como fica evidenciado pelo filósofo
alemão no apontamento §36 de Para além de Bem e Mal, em que o perspectivismo no homem
a partir dos impulsos procura compreender e criar a partir de seus próprios afetos. É essa
vontade individual que se caracteriza como efetivar-se a si mesmo, com isso, criar novas
configurações da realidade em geral dependendo de cada perspectiva em relação com os
demais. A criação de uma obra de arte é necessariamente a criação do Grande Estilo, pois este
75
Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-
se Zaratustra; mas está mudado [...] mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança,
Zaratustra, despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem? Mal
sabia o interlocutor de Zaratustra que este tinha uma grande revelação a fazer: “será
possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?”.
(NIETZSCHE, ZA, prólogo §2).
Sua retirada na solidão da caverna foi um apresto para o momento crucial na sua vida
que só aconteceria após o anúncio da morte de Deus: “a transvaloração dos valores”. Se os
valores vigentes estão fundamentados no mundo metafísico, seria preciso então suprimir a sua
fundamentação, e a partir dessa tarefa corrosiva, criar novos valores. Uma vez destruídos os
valores metafísicos, outros, humanos, demasiadamente humanos, surgiriam em algum
momento e em algum lugar. Pois a morte de Deus é que permitiria a Nietzsche conceber o
34
Cf. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político. 1997, p. 116.
76
projeto mais importante da sua vida. O dualismo entre o mundo sensível e o metafísico foi uma
invenção da doutrina platônico-cristã. Foi o cristianismo quem vitalizou a dicotomia e criou um
sentido antinatural para a vida. O enaltecimento exacerbado do mundo suprassensível e a
consequente desvalorização do mundo sensível é a forma niilista de atribuir valores à “fantasia”.
É a morte de Deus, no entanto, que tornaria possível a Zaratustra fazer a travessia do niilismo.
Seria preciso, portanto, suprimir o pensamento dicotômico para se pensar na criação dos novos
valores.
É possível supor que Zaratustra outrora acreditasse em Deus e fora niilista, pois, no seu
percurso da descida da montanha, ele encontrou o ancião que lhe diz: “Não me é desconhecido,
este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado”
(NIETZSCHE, ZA, prólogo §2). A mudança pela qual passou Zaratustra pode ser entendida
como forma de demonstrar que é possível dar um novo sentido ao homem, ou seja, autônomo
e capaz de afirmar suas energias vitais.
35
Cf. Ecce Homo, Por que sou um destino, § 7.
77
Agora é o corpo que dá sentido ao espírito; sentir e pensar são obra do corpo e não do sujeito,
afinal, para Nietzsche, a grande razão é o corpo36. Mas para isso, deve-se permanecer fiel à terra
como suplica Zaratustra: “Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis
nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles, que o saibam ou não”
(ZA, prólogo §3). Nietzsche, ao conclamar pela fidelidade à terra, está falando também do
desprezo do mundo “verdadeiro”. Essa inversão é o pressuposto da transvaloração de todos os
valores. Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, ‘o sem Deus’, conta naturalizar os
valores morais.
A criação de novas tábuas de valores é tarefa dos filósofos legisladores, porém, esses
filósofos, segundo Nietzsche, ainda não tenham existido. Mas devem existir, já que a pedra
fundamental foi lançada, - o anúncio da morte de Deus. O que o filósofo alemão está propondo
é a inovação dos filósofos como verdadeiros legisladores, não apenas trabalhadores filosóficos,
pois, onde estes se detêm os filósofos legisladores começam, inovam e criam as novas tábuas
de valores. É importante mencionar que não é com trabalhadores filosóficos que Nietzsche
conta para assumir a tarefa da transvaloração37. Entretanto é necessário ser como os filósofos
legisladores que inovam e dizem “assim deve ser!” São eles que têm a missão filosófica de criar
valores, como fazem os artistas do Grande Estilo.
36
Cf. Assim Falou Zaratustra, “Dos desprezadores do corpo”.
37
Embora os trabalhadores filosóficos tenham a capacidade de dar início ao projeto da transvaloração, Nietzsche
não conta com eles, já que estes não conseguem assumir tal empreitada por inteiro.
78
religião cristã, assim como a interpretação metafísica é só mais uma interpretação da existência
e do mundo. Nesse sentido, Nietzsche propõe uma retomada das rédeas do destino da
humanidade em que o homem seja fiel à terra e consequentemente à sua existência. Cristo,
enquanto marco do pensamento ocidental que substituiu o homem pagão pelo novo homem, é
também, por meio do ideal ascético, o marco da negação deste mundo em que vivemos. No
entanto, o Cristo que estamos nos referindo é o tipo redentor. Já que Nietzsche distingue o Jesus
de Nazaré como uma figura histórica, do Cristo dos fiéis, - o redentor. Esse tipo salvador da
humanidade perdeu sua verdadeira face histórica ao cair em mãos sacerdotais após a morte do
38
evangelho na cruz. O projeto nietzschiano é justamente inverter o sentido platônico-cristão
da existência humana. É com a substituição desse homem pelo artista autônomo que Nietzsche
quer se colocar como um novo marco na história do ser humano. Para tanto, seria preciso à
realização do seu projeto da transvaloração de todos os valores a partir do anúncio da morte de
Deus. A ideia de criação de novas tábuas de valores é uma preocupação do filósofo que fica
evidente nos seus textos do derradeiro período em conjunto com os conceitos supracitados.
Nesse sentido, o filósofo afirma:
Pois se a verdade entra em luta com a mentira de milênios, haveremos de ter abalos
tremendos, uma convulsão de terremotos, uma transposição de montanhas e vales,
conforme jamais sequer foi sonhada. O conceito política, então, estará completamente
envolvido em uma guerra de espírito, todas as imagens de poder da velha sociedade
explodirão no ar – todas elas descansam sobre a mentira: haverá guerras conforme
jamais as houve sobre a terra. Só a partir de mim é que há na terra grande política.
(EH, “porque sou um destino”, § 1).
A guerra é a colisão de consciência, pois na transvaloração dos valores será preciso
destruir os valores vigentes e isso causará grandes abalos. Contudo, no entender de Nietzsche,
não basta ponderar sobre os valores antigos, mas sobre a própria procedência desses valores,
pois o valor dos valores está diretamente ligado aos que os engendraram. Na seção “das mil
metas e uma só meta” de Assim falou Zaratustra, o autor nos esclarece que a criação de novos
valores depende da avaliação dos próprios valores. Sem essa avaliação seria impossível
determinar o valor dos valores e, consequentemente, o sentido e o alcance da transvaloração –
afinal, criar também é avaliar. Eis o que nos fala o filósofo: “somente pelo estimar há valor: e
sem o estimar a noz da existência seria oca” (ZA, “das mil metas e uma só meta”). É essa
avaliação que constitui a base para a criação dos novos valores e o sentido da existência.
Nietzsche, ao criticar a modernidade, se utiliza da noção de Grande Estilo. A arte
valorizada no pensamento nietzschiano não tem a pretensão de expressar a verdade sobre a
38
Cf. O Anticristo, § 39.
79
existência, mas expressar a própria existência de modo efetivo. Com isso, tem-se em vista uma
crítica à arte metafísica pensada no primeiro momento a partir da influência de Wagner.
Nietzsche transita da valorização da metafísica da arte para uma arte dos impulsos vitais que
ele denomina de arte fisiológica. A partir dessa compreensão de arte o filósofo ultrapassa as
oposições entre vontade e representação, essência a aparência, verdade e mentira. Uma análise
mais aprofundada das considerações políticas mostra o quanto Nietzsche é um pensador
preocupado com uma determinada forma de valorização do que é humano e do modo de
organização da vida social e política. Ademais, a ácida crítica nietzschiana não deixa de poder
representar um desafio aos fundamentos da política moderna.
De modo algum é honesto utilizar os escritos de Nietzsche como alguma forma de
fundamentação do nacional-socialismo da Alemanha. Nesse sentido, Rosa Dias comenta as
críticas de Nietzsche sobre os alemães: “Quando ele imagina uma espécie de homens
absolutamente contrários aos seus instintos, é sempre um alemão que se apresenta a seu espírito.
O imperialismo bismarckiano o revolta” (DIAS, 2011, p. 26). A autora ainda cita uma carta de
29 de março de 1887, em que Nietzsche responde a Theodor Fritsch, que lhe enviara alguns
números de um jornal antissemita:
Devolvo, pela presente, os três números do jornal Correspondência que o senhor me
enviou, agradecendo pela confiança com que me permitiu dar uma olhada na bagunça
de princípios que se encontra na base desse estranho movimento. Peço, no entanto,
não mais remeter, de agora em diante, tal gênero de publicação: temo acabar,
finalmente, perdendo a paciência [...] Essas constantes falsificações absurdas e
acomodações de conceitos vagos, como “germânico”, “semita”, “ariano”, “cristão”,
“alemão” – tudo isso poderia, no final das contas, acabar me irritando seriamente e
tirando-me da irônica complacência com que, até agora, tenho considerado as
virtuosas veleidades e o farisaísmo dos alemães atuais. E, finalmente, o que o senhor
acha que sinto quando vejo o nome de Zaratustra na boca de antissemitas?
(NIETZSCHE, Carta a Theodor Fritsch de 1887, apud DIAS, 2011, p. 27).
Dessa forma, acreditamos que o filósofo alemão critica a modernidade sem tomar partido
de movimentos em que a vida enquanto arte seja negada, como é o caso dos movimentos citados
na carta, ou seja, antissemitismo, arianismo, cristianismo e germanismo. A forma como a
política é compreendida e conduzida na modernidade é um assunto sempre presente nas obras
de Nietzsche, por ser, a seus olhos, uma das principais razões da incapacidade moderna para a
edificação de cultura. Em vista disso, seus posicionamentos acerca da política não podem ser
considerados isoladamente, como assunto à parte, desvinculado de outras preocupações
maiores que marcam seu pensamento, como é o caso da estética – é necessário, acima de tudo,
compreender o lugar que a política ocupa na preocupação de Nietzsche com a cultura. Somente
considerando-se a relevância atribuída por ele à política, enquanto instrumento para a cultura
pode-se compreender sua crítica à política moderna – um obstáculo, em sua avaliação, para o
80
Criar novas configurações é pensar em novos valores ligados à arte do Grande Estilo.
As novas configurações são pensadas por Nietzsche como superação da décadance. A
superação seria alcançada mediante a transvaloração de todos os valores, tema que se tornou
caro para o filósofo. Tanto é assim que seu último projeto só foi levado a cabo no derradeiro
ano de produção intelectual, de forma mais precisa com a conclusão de sua obra principal neste
tema denominada de O Anticristo. Ali o filósofo escreve:
Não subestimamos isto: nós mesmos, espíritos livres, já somos uma ‘tresvaloração de
todos os valores39’, uma encarnada declaração de guerra e vitória em relação a todos
os velhos conceitos de ‘verdadeiro’ e ‘não verdadeiro’. As percepções mais valiosas
são alcançadas por último (AC, §13).
Essa reviravolta de valores pressuposta por Nietzsche tem um vínculo com as noções de
Grande Estilo e Grande Política, pois tanto a primeira como a última pressupõem um devir, e
criação e legislação são também destruição do moderno para o novo. Essa seria a guerra
anunciada por Nietzsche na última seção de Ecce Homo, Por que sou um destino § 1. O filósofo
escreve: “haverá guerras como ainda não houve sobre a terra. Somente a partir de mim haverá
grande política na terra”. Nota-se que a guerra que o filósofo se refere não é de povo contra
povo, mas de concepções. Esse processo que se percebe na crítica nietzschiana de autorreflexão
se dá de maneira conflituosa, já que em toda criação há também destruição que não se esgota
nunca. “A doutrina da vontade criadora privilegia justamente a atividade criadora. É uma nova
maneira de pensar que se aplica ao devir, opõe-se à metafísica, que busca o estável e a
permanência” (Rosa Dias, p. 65). Com essa concepção conflituosa da realidade, Nietzsche
critica também a metafísica e toda forma de pensamento que vigora na modernidade.
39
Umwertuung aller Werte é tradicionalmente traduzido por transvaloração de todos os valores, porém, nesta
edição de O anticristo, Paulo César de Souza utiliza tresvaloração de todos os valores.
81
40
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes: 2002.
82
A interpretação que Nietzsche faz do mundo é apenas uma perspectiva que leva em
consideração a relação do mundo com o próprio mundo. A arte de interpretar é também a arte
de expressar sua vontade de potência, ou pelo menos de aumentar sua potência. Em Nietzsche
não é possível pensar numa natureza humana diferenciando o homem dos outros organismos,
ambos são constituídos por forças agindo e resistindo umas com as outras.
41
Cf. AC, §7.
84
uma crítica às artes modernas, para posteriormente fazer indicações para um tipo antitético que
é menos moderno possível, um tipo nobre, que diz Sim.42 Esse dizer Sim, seria para Nietzsche
a criação que tem como fundamental a plenitude inicial. O abandonar-se que o filósofo
denomina de embriaguez é o caminho para a plenitude, para o acréscimo de força e aumento de
potência.
De que modo se entende a embriaguez e a plenitude em Nietzsche? Para essa resposta é
preciso observar a questão da estética fisiológica ligada à vontade de potência que se denomina
de estética fisiopsicológica. Imersa nessa compreensão fisiopsicológica, entende-se a
embriaguez como forma de elevação da vida e essa expansão nos leva a entender o conceito de
plenitude. Podemos destacar as últimas obras de Nietzsche como sinal de sua plenitude
filosófica, pois no último ano de atividade intelectual os seus escritos não são somente
filosóficos, mas são verdadeiras obras de arte: o seu filosofar com o martelo exposto em
Crepúsculo dos ídolos, a transvaloração dos valores em O Anticristo e como tornar-se o que se
é em Ecce homo. A embriaguez da vontade de potência se fez gênio e carne no filósofo, pois
assim escreve Nietzsche:
Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não só a videira doura, caiu-me na vida
um raio de sol: olhei para traz, olhei para a frente, jamais vi tantas e tão boas coisas
de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano, era-
me lícito sepultá-lo – o que nele era vida está salvo, é imortal [...] como não deveria
ser grato à minha vida inteira? (NIETZSCHE, EH, logo após o prólogo).
42
Cf. EH, “Para além de bem e mal”, §2.
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o rompimento com Richard Wagner, por volta de 1878, o filósofo Friedrich
Nietzsche se voltou ao debate científico do século XIX, iniciando sua segunda fase filosófica,
conhecida como fase de um “positivismo cético”. Nietzsche identificou a ciência com o
otimismo e enfatizou o início de um processo de cura pessoal. Conforme o filósofo, ele
recuperou a saúde com o auxílio da ciência - sua doença foi atribuída ao pessimismo de
Schopenhauer e ao romantismo decadente de Wagner. O filósofo, que também é considerado
um poeta, nunca negou a importância da ciência, e a partir da publicação de Humano
Demasiado Humano, Nietzsche buscou referências em diferentes áreas cientificas, desde a
biologia à psicologia de sua época. Naturalmente, sua visão científica era diferente do senso
comum, e Nietzsche pensou sobre a ciência de outro ponto de vista - usando seu próprio
perspectivismo.
No primeiro capítulo dessa tese, buscamos abordar a aproximação de Nietzsche com a
psicologia experimental que emergiu no final do século XIX através de nomes como o de
Theodore Ribot, quem rompeu com o caráter metafísico da psicologia tradicional e voltou a
análise psicológica aos estudos fisiológicos. Notoriamente, os desdobramentos da nova
psicologia francesa, bem como os avanços nas pesquisas biológicas, auxiliaram Nietzsche a
maturar sua filosofia, trazendo seus conceitos filosóficos para um horizonte das ciências
naturais, sobremaneira no que tange a relação do corpo com o pensamento. Consequentemente,
a influência dessa aproximação com as ciências permitiu que o filósofo rompesse com a
metafísica de artística e reelaborasse uma nova ideia sobre a estética, uma estética
fisiopsicológica.
Após 1886, em seu terceiro e último período, Nietzsche buscou na junção entre a
fisiologia e a psicologia a relação derradeira entre a Vontade de Potência e a filosofia da arte,
bem como a retomada do corpo como assunto primordial do filosofar. Até aqui vimos a noção
de vida enquanto Vontade de Potência, e de corpo como instância incontornável de expansão
de vida. Por corpo, Nietzsche designou a configuração de forças que concorrem de maneira a
determinar o modo como algo se torna. Assim considerado, diferentemente do mundo
idealizado forjado pela tradição filosófica, que delegou ao erro a transitoriedade da vida pelo
fato desta jamais corresponder à necessidade determinada pela “pequena razão”, na arte
fisiopsicológica tem-se este mundo sem um “além”, mas que traduz a vida como uma tensão de
forças. O resultado dessa tensão é a embriaguez. O artista embriagado é, então, como a criança
86
que teve a inocente e despretensiosa coragem de dizer sim a vida. Na primeira seção de Assim
Falou Zaratustra, obra que inaugura o terceiro período de Nietzsche, a criança é a representação
do artista que diz sim a vida.
O sentido de criação artística em Nietzsche se torna um tema transversal em seu
filosofar. Desde a primeira seção do Assim falou Zaratustra até seus últimos escritos em 1888,
o tema fica em evidência. A embriaguez como condição fisiopsicológica nos permite pensar na
criação, mas só com a plenitude semelhante à inocência da criança é efetivado o dizer Sim que
compreendemos como criação artística. Para esse dizer Sim, é necessário o entendimento da
noção de transvaloração de todos os valores, pois sem destruição, não há processo criador. A
esse movimento de destruição e criação que está posto na primeira seção de Assim Falou
Zaratustra, denomina-se transvaloração de todos os valores, o devir caótico e sublime ao
mesmo tempo. Nesse sentido, Rosa Dias (2011, p. 72) escreve: “A afirmação do devir é
condição para que haja constante criação. Dizer que tudo está em devir é dizer que tudo está
sujeito às leis da destruição e que algo permanece apesar da destruição. Permanece o instante
ato criador”. O instante que envolve a embriaguez e a plenitude ao mesmo tempo é o próprio
ato de criar.
Porém, a tarefa da transvaloração não seria tão fácil, pois a moral cristã desenvolveu, ao
longo da história, uma fórmula que inibe a criação dos novos valores. Ao falar dos supremos
juízos de valor, o filósofo alemão está pensando na moral que vigora na modernidade. Assim,
Nietzsche empreende uma crítica a toda forma de vida que luta contra os impulsos vitais, pois
segundo ele, os impulsos devem sobrepor à moral do ressentimento. A transvaloração está
associada também à lógica dos valores cultivados tradicionalmente, além disso, não consiste
apenas numa mera inversão de valores, mas também na superação para posterior criação de
novos para que. Esse dizer Sim está ligado ao conceito de grande estilo
Por meio da arte do Grande Estilo, discussão posta no terceiro e último capítulo, os
impulsos são sublimados a ponto do homem se perceber o oposto de um décadent. Após essa
percepção, a autonomia tomaria lugar no agir de animal de rebanho, o que lhe permitiria pensar
numa criação de valores que atuam a partir dos estados impulsivos nesse novo “tipo de homem”.
Esse tipo cultural de homem é o oposto do que vigora na modernidade, ele é senhor sobre si
mesmo, portanto, um “legislador”. Dessa forma, a cada crescimento do homem em grandeza e
elevação ele cresce também em profundidade e fecundidade, o que se denomina Vontade de
Potência. Ficou claro ainda que o filósofo alemão lança mão de pressupostos antimetafísicos
para falar de uma determinada interpretação da arte, que ele denomina de estética fisiológica.
Portanto, a Vontade de Potência pode ser entendida também a partir do conceito de
fisiopsicologia.
88
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