Caetano (2017) - Concepção e Possibilidade
Caetano (2017) - Concepção e Possibilidade
Caetano (2017) - Concepção e Possibilidade
FORTALEZA
2017
MARCOS PAULO SOUZA CAETANO
FORTALEZA
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
__________________________________________________________________________________________
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Cícero Antônio Cavalcante Barroso (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Konrad Christoph Utz
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Guido Imaguire
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Esse esforço é dedicado ao pensamento
filosófico. Aos meus mestres. À minha família
(humanos e não-humanos). Aos meus queridos e
amigos.
AGRADECIMENTOS
Assim como agradeço aos inúmeros colegas de curso da UFC por inúmeras
conversas instigantes em diversos momentos, uma lista de nomes seria inglória aqui.
Agradeço também à CAPES por ter tornado possível o sonho de um jovem sem
muitas condições materiais se dedicar exclusivamente ao estudo de filosofia e poder
vislumbrar exercer a atividade que lhe dá sentido à vida.
The central problem of this dissertation is: does conception, as a cognitive activity, give us
knowledge about the alletic modality? The thesis that I defend is that conceptual activity is
not enough to give us knowledge about the alletic modality, namely knowledge about
possibility, impossibility and necessity. This discussion is part of the scope of the
epistemology of the modality, an area in which we propose a treatment of the question of how
we know, if we have to know, what is necessary, possible, contingent, essential and accidental
for the variety of entities and types of entities that exists. Among the various answers given to
the problem of how we know if something is possible, we have the answer that it is through
conception that we obtain this knowledge. This response motivates and sustains numerous
arguments in various philosophical debates, from metaphysics to political philosophy - are
known as modal or conceptualizing arguments, arguments that state in their premises or
conclusions that things are possible, impossible, or necessary. An emblematic and
contemporary example is the famous argument of the zombies, which David J. Chalmers
defends in The Conscious Mind: in search of a theory of conscious experience (1997). Such
an argument suggests the conception of human beings physically identical to us, but without
phenomenal consciousness (qualitative states of experience - qualia), and this conception
supposes such possibility. Then, from this possibility concludes the falsity of physicalism
(thesis that holds that everything that exists is physical). Does our cognitive activity of
conception, exemplified above, give us knowledge about these possibilities? Is the conception
sufficient to sustain such strong conclusions? During this dissertation I argue in favor of a
negative answer to these two questions. For this reason, a criterion of possibility that gives us
modal knowledge must be a domain criterion coextensive with that of the alletic modality. In
this way, if conception were a good response, all elements of the conception domain would be
elements of the domain of possibility and vice versa. I maintain that an analysis of the
episodic character of consciousness, qualia, shows us a counterexample to the
coextensionality of conception to possibility - there is something possible that is
inconceivable. Once we lose the inconceivable-impossible pair, we argue that we also lose the
conceivable-possible pair through the loss of the principle of identity at the ontological level –
which leads us to philosophical surrealism (the world is not conceptual at the metaphysical
level). In fact, if we do not have coextensionality, it follows that conception is not a guide to
the knowledge of possibility (of the alletic modality). Finally, I confront this result with the
notion of ideal conceptualization of the form suggested by David J. Chalmers in Does
conceivability entails possibility? (2002), in this I argue that this notion is not sufficient to
answer the difficulties posed by the counterexample, therefore, it is not enough to establish
the conception as a criterion of possibility or guide to modal alletic knowledge. This whole
company is made in three moments. In the first moment, I analyze the notion of possibility
(chapters 1 and 2). In the second moment, I analyze the notion of conception as cognitive
activity and the relation with the idea of cognitive closure (chapters 3 and 4). In the third and
last moment, I confront the arguments in favor of conception as a criterion of possibility,
where I defend the aforementioned thesis, as well as reflect on the philosophical
consequences of the results obtained (Chapters 5 and 6).
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14
2 A NATUREZA DA POSSIBILIDADE ............................................................ 16
2.1 O problema do critério de possibilidade ......................................................... 17
2.1.1 O problema e o Método ...................................................................................... 17
2.1.2 A possibilidade na relação mente-mundo .......................................................... 26
2.2 A Noção de Possibilidade e as Respostas ao Problema do Critério .............. 29
2.2.1 Tipos de Possibilidade: Lógica, Metafísica e Física ......................................... 29
2.2.2 Possibilidade relativa e possibilidade absoluta ................................................. 34
2.2.3 Respostas comuns ............................................................................................... 38
2.2.4 Visão uniforme e visão não-uniforme ............................................................... 39
2.2.5 Concepção como Resposta Padrão .................................................................... 41
2.3 Conclusão ........................................................................................................... 42
3 A NATUREZA DA CONCEPÇÃO .................................................................. 44
3.1 Entendendo a Concepção ................................................................................. 45
3.1.1 O sentido amplo de concepção ........................................................................... 46
3.1.1.1 Concepção e Imaginação .................................................................................... 47
3.1.1.2 Concepção e Percepção ...................................................................................... 50
3.1.1.3 Concepção e Intuição .......................................................................................... 51
3.1.1.4 Concepção e Dedução ......................................................................................... 52
3.1.1.5 Concepção e Teoria ............................................................................................. 53
3.1.1.6 Concepção e Similaridade .................................................................................. 55
3.1.1.7 Conclusão: a concepção não encerra a cognição .............................................. 56
3.1.2 O que é conceber? .............................................................................................. 58
3.1.2.1 O sentido estrito de concepção ........................................................................... 58
3.1.2.1.1 Cenários como Mundos Possíveis Epistêmicos .................................................. 59
3.1.2.1.2 Conceitos como constituintes de Cenários .......................................................... 61
3.1.2.2 A natureza de conceitos ....................................................................................... 62
3.1.2.2.1 Conceitos como representações mentais ............................................................. 63
3.1.2.2.2 Conceitos como objetos abstratos ....................................................................... 64
3.1.2.2.3 Visão combinada de conceitos ............................................................................ 66
3.1.2.2.4 Concepção e Conceitos ....................................................................................... 67
3.1.2.3 Critério de concepção ......................................................................................... 69
3.1.2.3.1 Analiticidade ....................................................................................................... 69
3.1.2.3.2 Contradição conceptual como critério de concepção .......................................... 72
3.2 Concepção e Cognição ...................................................................................... 75
3.2.1 A ideia de fechamento cognitivo ........................................................................ 77
3.2.1.1 O mistério mente-corpo ....................................................................................... 81
3.2.1.1.1 Mente e corpo: uma relação problemática .......................................................... 81
3.2.1.1.2 Duas vias de conhecimento ................................................................................. 85
3.2.1.1.3 Caminhos paralelos não se cruzam ..................................................................... 86
3.2.1.2 Otimismo cognitivo ............................................................................................. 90
3.2.1.2.1 O método natural ................................................................................................. 90
3.2.1.2.2 Otimismo neurocientífico .................................................................................... 92
3.2.1.2.3 Informação e duplo aspecto ................................................................................ 97
3.2.1.3 A informação nos limites cognitivos ................................................................... 101
3.2.1.3.1 Abertura cognitiva e a informação ...................................................................... 102
3.2.1.3.2 A informatividade da forma da informação ........................................................ 103
3.2.2 A concepção nos limites da cognição ................................................................ 105
3.2.2.1 Formação de conceitos ....................................................................................... 105
3.2.2.2 Limites informacionais como limites conceptuais .............................................. 108
3.3 Conclusão ........................................................................................................... 111
4 CONCEPTIBILIDADE COMO CRITÉRIO DE POSSIBILIDADE? ........ 114
4.1 Debate da conceptibilidade ............................................................................... 115
4.1.1 Concepção e possibilidade: relações entre domínios ........................................ 115
4.1.1.1 Concepção e possibilidade: noções independentes? ......................................... 117
4.1.1.1.1 Concebível e impossível ..................................................................................... 118
4.1.1.1.2 Possível e Inconcebível ....................................................................................... 119
4.1.1.2 A concepção não é critério de possibilidade? ................................................... 121
4.1.1.2.1 Exemplos prototípicos ......................................................................................... 121
4.1.1.2.2 O problema dos futuros contingentes: concebendo o impossível? .................... 126
4.1.1.2.3 Surrealismo filosófico: o impossível é concebível .............................................. 127
4.1.2 É a concepção guia para a possibilidade? ........................................................ 131
4.1.2.1 Tese conceptibilidade-possibilidade ................................................................... 132
4.1.2.1.1 As dimensões da conceptibilidade ...................................................................... 132
4.1.2.1.2 Tipos de conceptibilidade .................................................................................... 135
4.1.2.1.3 A conceptibilidade livre de contra-exemplos ...................................................... 137
4.1.2.2 O inconcebível implica o impossível? ................................................................ 140
4.2 Consequências filosóficas .................................................................................. 148
4.2.1 Considerações relevantes ................................................................................... 148
4.2.2 Aplicação: o argumento dos zumbis .................................................................. 156
4.3 Conclusão ........................................................................................................... 159
5 CONCLUSÃO GERAL .................................................................................... 161
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 163
14
1 INTRODUÇÃO
Dito isso, a tese filosófica a ser defendida no presente trabalho é a de que a concepção,
enquanto atividade cognitiva, não é suficiente e nem necessária para nos dar conhecimento
sobre a possibilidade e, consequentemente, sobre a impossibilidade e a necessidade.
possibilidade. Dessa monta, esclarecer qual destes tipos é o que realmente interessa na nossa
reflexão. Além disso, vamos apresentar o problema do critério de possibilidade diante da
análise dos tipos de possibilidade e chegaremos à resposta padrão ao problema, a resposta da
concepção, a qual iremos analisar na segunda parte com maiores detalhes.
1
Nesse sentido, essa reflexão é de grade relevância para o debate sobre experimentos de pensamento, uma vez
que eles estão na esteira do método da concepção. Há uma ampla e rica discussão sobre o tema, mas que não
cabe na natureza dissertativa deste trabalho. Muito embora a reflexão que descorriremos tenha implicações para
essa discussão. Para mais detalhes e um panorama abrangente sobre experimentos de pensamento, ver “Tought
Experiments” (2017) de James R. Brown e Yiftach Fehige.
16
2 A NATUREZA DA POSSIBILIDADE
17
Uma das sensações mais comuns que experimentamos em nossas vidas é a de que
poderíamos ter agido de forma diferente em alguma circunstância passada ou que podemos
fazer diferente no futuro. Situações como “eu poderia ter comido aquele bolo de chocolate”,
ou “eu poderia ter feito exercício físico durante minha juventude para que agora minha
velhice fosse mais saudável”, ou “eu poderia ter salvado a vida da pessoa que mais amei se
tivesse feito aquilo”. Essa sensação de que as coisas poderiam ter sido diferentes, essa
sensação de algo alternativo, temos não apenas sobre as nossas ações, mas também sobre o
mundo além de nós e de nossas ações. Quando dizemos “essa garrafa quebrará se cair dessa
altura da mesa” ou “é muito provável que chova amanhã” nós expressamos essa intuição de
alternativa para certo estado do mundo – uma possibilidade dentro de um conjunto de
possibilidades. É costumeiro que aceitemos com facilidade frases desse tipo e nos
convençamos dessas possibilidades. Todavia, quando consideramos outros enunciados, seja
sobre o passado, presente ou futuro, muita gente tem mais dificuldade em aceitar a sua
possibilidade ou não. Enunciados como “o homem pisou na lua em 1969”, ou “uma entidade
imaterial criou a matéria”, ou “o sol não nascerá amanhã”, ou “existe uma coisa em relação a
qual não podemos conceber nada maior”, ou “algo é diferente de si mesmo”, já suscitam certa
polêmica quando considerados como possibilidades. Em outras palavras, quando dizemos que
“é possível que o sol não nasça amanhã”, haverá mais debate sobre esse enunciado modal, se
isso é mesmo possível ou não, que sobre o enunciado “é possível que em algum lugar da
Terra chova amanhã”. Sendo assim, o que faz com que algumas dessas alternativas sejam
mais aceitas e outras não? O que faz com que algo seja possível? Essas são duas questões
distintas, a primeira pode ser entendida como uma questão psicológica e a segunda como
18
filosófica. Nosso foco é a questão filosófica, saber o que torna algo possível, embora a
questão psicológica, o porquê de um enunciado modal ser mais aceito que outro, seja um
motivador para chegar à filosófica.
Mas isso não está restrito apenas aos filósofos. Médicos, advogados, engenheiros, toda
sorte de pessoas faz isso de uma forma ou outra. Isso é decisivo na vida de cada um, afinal,
tais afirmações sobre o mundo se transformam nas crenças que moldam a nossa visão de
mundo e nossas ações. Quando um advogado de defesa num tribunal afirma que seu cliente
não poderia ter feito determinada ação criminosa porque ele não estava no local e momento
do crime, há nesse sentido, um critério para se dizer o que é ou não possível em determinadas
circunstâncias. Nesse caso, o advogado exclui certa alternativa sobre o passado na base do
19
alegado paradeiro do seu cliente. A partir disso nós tomamos decisões que afetarão seriamente
o futuro da nossa vida em sociedade. Se o réu for realmente um criminoso, podemos inocentar
um indivíduo que tende a cometer mais delitos. Se o réu for realmente inocente, podemos
condenar um indivíduo por um crime que ele não cometeu e assim tirar sua liberdade e sua
perspectiva de vida. Essas consequências podem ser desastrosas socialmente e, como
podemos ver, elas dependem da decisão sobre a possibilidade ou impossibilidade do fato. Em
outros termos, a decisão depende de um bom critério sobre o que é possível ou não, mesmo
que na maioria dos casos pensemos mais sobre o que é mais plausível dadas as evidências,
nós fazemos um raciocínio em que o critério de possibilidade se torna mais restritivo pelas
evidências. Dessa forma, o questionamento sobre o que faz com que algo seja possível versa
sobre as coisas mais corriqueiras e banais, passando por decisões importantes para as nossas
vidas, até questões mais abstratas sobre a natureza última das coisas e nosso conhecimento
sobre elas.
Alguns casos parecem mais facilmente julgáveis que outros em termos de senso
comum, outros são vistos com suspeitas ou descrença e isso é crucial para algumas decisões
teóricas e práticas que tomamos. Possibilidades como as de comer um bolo de chocolate, ou
ter se exercitado mais na juventude, ou se um indivíduo cometeu um crime ou não, são todas
relativamente fáceis de se julgar. Elas são corriqueiras e, aparentemente, onde estão
envolvidas, temos mais facilidade em julgar se os casos são possíveis ou não sem pensar
muito – mesmo os mais difíceis. Entretanto, há outras possibilidades que são mais
extravagantes e nos dão suspeitas. Muitas delas são as usadas pelos filósofos. Como a
afirmação da possibilidade da existência de um mundo fisicamente idêntico ao nosso embora
sem consciência, ou a afirmação de que é possível a existência da mente sem o corpo, entre
outras. Essas possibilidades nós não vemos acontecer com nossos olhos cotidianamente e,
talvez por isso, elas colocam dúvidas e descrença em alguns quando as avaliam, mesmo
quando parecemos usar os mesmos critérios para julgar as possibilidades mais fáceis. Em
outras palavras, a desconfiança sobre essas possibilidades mais extravagantes se deve ao fato
de elas estarem incluídas no que se chama de meras possibilidades2, mais especificamente,
2
Aqui não estou a usar o termo ‘mera possibilidade’ no sentido de Possibilia, algo possível num mundo possível
que não é o mundo atual e nem acessível ao mundo atual. Isso se comprometeria em assumir que o sistema de
lógica modal S5 não é o sistema correto para a metafísica da modalidade – não pretendemos pressupor isso – e,
consequentemente, que nem todo mundo possível é acessível ao mundo atual – o que deve ser aberto ao debate
se quisermos saber o que realmente é possível. Nesse sentido, não estamos a usar ou a nos comprometer
inicialmente com o conceito de relação de acessibilidade entre mundos possíveis que usualmente se aceita para
qualificar uma possibilidade como mera possibilidade. Para mais detalhes, ver MURCHO 2002, pp. 87-92.
20
num tipo especial de mera possibilidade, o que chamaremos aqui de possibilidade por
excelência.
Dadas essas distinções, podemos observar algumas relações entre elas. Uma
possibilidade pode ser: i) ordinária e atual; ii) ordinária e mera; iii) extraordinária e atual; iv)
extraordinária e mera.
Dessa forma podemos ver que em grande parte, as suspeitas sobre a possibilidade de
alguns enunciados se dão em razão do que estamos acostumados a experienciar do mundo.
Quanto mais distante das nossas experiências e do acordo com nossas teorias paradigmáticas,
mais suspeitamos sobre a possibilidade de alguns enunciados. Esta, provavelmente, seria a
resposta à pergunta psicológica que fizemos, mas certamente não é a resposta à pergunta
filosófica. A semelhança com nossas experiências e o acordo com nossas teorias
paradigmáticas que um enunciado sugere não parece ser critério de possibilidade. Afinal,
inúmeras vezes nossas teorias paradigmáticas mudaram porque nós conseguimos
experimentar o mundo de uma forma totalmente diferente da que experimentávamos antes.
Inúmeras espécies de seres vivos como microorganismos, por exemplo, sequer estavam em
nossos relatos empíricos de séculos atrás, mas o avanço de nossos instrumentos nos mostrou
sua existência. Deveríamos aceitar que antes não era possível sua existência e hoje é possível?
Parece que não, intuitivamente parece que eles já eram possíveis antes, afinal já eram o caso,
apenas nós não conseguíamos experimentar de forma clara sua existência para compreendê-la.
Portanto, embora este seja um critério psicológico para nos dizer o que estamos mais
22
familiarizados ou não em aceitar, não é um critério para nos dizer realmente o que é ou não
possível.
Isso nos faz pensar que deveríamos ter de forma mais clara um critério de
possibilidade, uma vez que há consequências em aceitar ou não determinadas possibilidades
extraordinárias. Por exemplo, aceitar a possibilidade de um mundo fisicamente idêntico ao
nosso onde não há consciência nos leva a aceitar que nem tudo em nosso mundo é físico ou
material. Aceitar a possibilidade da existência da mente sem o corpo implica que mente e
corpo são coisas de naturezas distintas, mais especificamente, duas coisas e não uma só.
Aceitar a possibilidade da existência de algo que não podemos conceber nada maior pode
implicar a existência de determinada divindade, conforme tentou demonstrar Santo Anselmo.
Com isso, podemos ter consequências morais relacionadas, ou seja, de aceitar essa
possibilidade aceitamos uma divindade, de aceitar determinada divindade podemos facilmente
chegar a aceitar o código moral da religião que versa sobre essa divindade e, para além,
podemos fazer escolhas políticas que influenciem diretamente pessoas que não aceitam aquela
possibilidade inicial e não fariam essa mesma escolha política. Ou o contrário, afirmar a
impossibilidade de tais enunciados implica muitas vezes nas consequências opostas. A
impossibilidade é muitas vezes a estratégia argumentativa para invalidar ou desacreditar
determinado sistema organizacional de produção de uma sociedade. Muitos não seguem a
ideologia do comunismo por acreditar que não é um sistema possível de implementação, dada
a natureza do ser humano e seus conflitos. E muitos sistemas utópicos, sistemas que podem
entrar na categoria de possibilidade extraordinária, seguem no mesmo raciocínio. Isso nos
mostra que em qualquer que seja o campo de conhecimento, nós precisamos nos defrontar
com os enunciados de possibilidades extraordinárias devido suas consequências práticas em
nossas vidas relacionadas às consequências abstratas e teóricas.
Em geral, quando queremos saber se algo é possível ou não, nós costumamos tentar
conceber determinado cenário. Esse é o critério mais comum para a possibilidade. É o que
fazemos para as possibilidades ordinárias. Quando dizemos que poderíamos ter comido um
bolo de chocolate ontem, fazemo-lo simplesmente porque conseguimos conceber o cenário
em que ontem nós comemos o bolo. Isso se dá pelo conhecimento de que muitas vezes já
comemos bolo, conseguimos ter em nossa mente determinada situação. O que não parece
muito simples para algumas possibilidades extraordinárias. O que seria conceber a existência
da mente sem o corpo? Muitos dizem que não temos como conceber isso, e se não temos
como conceber tal cenário, isso não é possível. O mesmo para conceber a existência de uma
23
sociedade totalmente igualitária e justa mesmo com a natureza torpe de muitos indivíduos, ou
a concepção de uma linguagem privada, ou a concepção de uma máquina com consciência.
No entanto, muitas vezes parece que, apesar do fato de não conseguirmos conceber algo, há
ainda a possibilidade. Há séculos, não conseguíamos conceber um modo de ir da Terra para a
Lua, mas hoje já conseguimos. Sabemos dessa possibilidade. Mas pelo fato de antes não
termos conseguido conceber, isso significa que não existia a possibilidade? Mais uma vez,
esses casos mostram que precisamos ter clareza sobre não só o critério de possibilidade, mas
sobre a relação entre a concepção e a possibilidade para inúmeros questionamentos filosóficos
e da vida em geral.
Esse método a priori que parte da concepção para tirar conclusões sobre o que é
possível e o que é necessário tem uma longa tradição. Platão na antiguidade, por exemplo, em
A República, utiliza inúmeros cenários imaginativos para testar se determinadas
características seriam necessárias para o conceito de justiça e, assim, encontrar a natureza
última do que é justo, do que é a justiça (PLATÃO, 1993). Maquiavel, em O Príncipe, já no
período renascentista, tenta demonstrar que não é possível manter-se no poder e ser um
indivíduo eticamente virtuoso e, por isso, temos a cisão entre política e ética (MAQUIAVEL,
2007). Na contemporaneidade, Frank Jackson (JACKSON, 1982) chegou a pensar na
possibilidade de alguém que tem todo o conhecimento físico sobre cores, mas não tem todo o
conhecimento sobre cores. Isso significaria que nem todo o conhecimento sobre o mundo é
físico. Deveríamos, portanto, seguir essa longa tradição? Quando deveríamos seguir e quando
não deveríamos seguir? As fortes conclusões sobre a natureza do mundo são realmente
sustentadas pela concepção de cenários?
Por exemplo, vejamos os três passos no famoso argumento dos zumbis (CHALMERS,
1997).
consciência dos fenêmenos (como a característica subjetiva do cheiro, do sabor, do ver, etc).
Esse seria um mundo zumbi.
Passo 3 (algo sobre a natureza do nosso mundo): Há no nosso mundo algo que não é
físico (consciência fenomênica), portanto, o fisicalismo é falso – nem tudo no nosso mundo é
físico.
Visto isso, podemos perceber que estamos interessados principalmente na relação que
liga o primeiro passo ao segundo passo. Em geral, o que liga o domínio epistêmico e o
domínio modal é a conceptibilidade. O que podemos ver no exemplo acima. Daquilo que
concebemos, chegamos ao que é possível.
Embora haja essa longa tradição, muitos não a seguem. Beziau (2015), por exemplo,
argumenta que, por um lado, nós não conseguimos conceber a totalidade de uma árvore
particular, mas ela é o caso e por isso é possível. Por outro lado, nós conseguimos conceber
contradições ou objetos contrários, mas não são coisas possíveis no mundo. Se isso for o caso,
então a concepção e a possibilidade são noções independentes e, por isso, a concepção não
seria critério último de possibilidade – a concepção não seria um guia, pelo menos confiável,
para a possibilidade. Refletiremos especificamente sobre tais pontos mais adiante na seção 1,
Concepção e possibilidade: relações entre domínios, do capítulo 5, Debate da
conceptibilidade.
Destarte, podemos nos questionar e pensar sobre tal tradição e o problema do critério
de possibilidade: é a concepção guia para o que é possível? Conforme frisamos, esse será o
problema central de nossa reflexão. Para isso, precisamos esclarecer bem os dois principais
termos usados: 'possibilidade' e 'concepção' (ou 'conceptibilidade'). O que faremos no decorrer
da reflexão.
Para que possamos atingir tais objetivos e avaliar se a concepção é um critério correto
de possibilidade, sugiro uma metodologia de coextensão de domínios. Este método consiste
em utilizar a teoria dos conjuntos, tratar a concepção como um domínio, a possibilidade como
outro domínio e analisar se os domínios são coextensivos. Em outras palavras, refletir se
todos os elementos do domínio da concepção são elementos do domínio da possibilidade e
vice-versa.
25
3
Este ponto será desenvolvido no capítulo 5, Debate da conceptibilidade, seção 1.2.3, Surrealismo filosófico: o
impossível é concebível.
26
Como vimos na seção anterior, temos diversos motivos para pensar qual seria o
critério de possibilidade, isto é, o que nos diz o que é possível ou não, devido às mudanças
práticas de nossa vida de acordo com nossas atitudes proposicionais perante enunciados
modais.
O que frisaremos inicialmente aqui é a lacuna entre o nosso pensar e o mundo, lacuna
que podemos ver no nosso problema central quando o explicitamos. Vemos isso quando
pensamos sobre o que queremos dizer quando falamos que algo é ou não possível, sobre o
sentido do uso de 'possibilidade', e sobre a relação entre tal sentido e o critério comum que
utilizamos para aferir algum enunciado modal.
Qual o critério que diz o que é possível e o que é impossível? Em geral, parece
intuitivo responder que esse critério é aquilo que podemos conceber. Se concebemos, é
possível, se não concebemos, é impossível. Dessa forma, esse raciocínio é aceito sem muita
discussão quando observamos argumentos que sugerem possibilidades em diversos debates.
Assim temos os chamados argumentos de conceptibilidade. Aqui avaliaremos essa relação
entre possibilidade e concepção de modo mais geral, e na terceira parte da presente obra
faremos isso de forma mais específica e com mais ferramentas em mãos.
Também esclareço que concepção aqui está sendo entendida de uma forma mais ampla
e não tão específica ou precisa, como faremos na investigação da segunda parte. Aqui
entenderemos concepção sem uma distinção clara de imaginação, da mesma forma que o
senso comum. Conceber num sentido amplo de ver, fantasiar, imaginar, pensar, visualizar,
perceber, etc. Independentemente das distinções técnicas que poderemos perceber mais
adiante, toda essa noção ampla de conceber se encaixa na noção de atividade cognitiva. Sendo
assim, enfatizamos essa característica da concepção, ela é uma atividade do nosso aparato
cognitivo. Este sentido amplo pode ser visto no senso comum do termo conforme Gendler e
Hawthorne apresentam na primeira nota de sua introdução a Conceivability and Possibility:
Nós temos, ao que parece, uma capacidade que nos permite representar cenários
para nós mesmos usando palavras ou conceitos ou imagens sensoriais, cenários que
pretendem envolver coisas atuais e não-atuais em configurações atuais ou não-
atuais. Existe uma maneira natural de usar o termo ‘conceber’ que se refere a essa
atividade em seu sentido mais amplo. (GENDLER; HAWTHORNE; 2002, p. 1,
tradução livre)5
Dessa forma, percebemos que quando estamos a falar de concepção, estamos a falar
sobre como representamos para nós mesmos o que nos aparece do mundo. Ou seja, como
configuramos o mundo em nossa mente. Quando falamos em conceber uma montanha laranja
ao lado da Torre Eiffel, estamos falando sobre a nossa capacidade mental, cognitiva, de
estruturar características da aparência do mundo para nós em configurações alternativas das
que se apresentam para nós atualmente. Não estamos falando do mundo, mas da nossa
apreensão e estruturação/reestruturação mental do mundo.
Por outro lado, quando falamos de possibilidades e dizemos que algo é possível ou
não, nós não estamos falando sobre a nossa forma de apreender e reestruturar a aparência do
mundo para nós. Estamos querendo falar, de fato, sobre o mundo ele mesmo. Quando
pensamos sobre uma mudança climática na Terra que inviabilize a nossa forma de vida,
estamos querendo falar de uma possibilidade do mundo mesmo, não sobre como nós
apreendemos o mundo. Quando dizemos que algo é possível ou algo é impossível, estamos a
falar do mundo, não temos a intenção de falar sobre nossa apreensão do mundo. Não temos a
intenção de falar sobre nossas atividades cognitivas.
4
No original: The term ‘conceive’ shares a root with the term ‘concept’ – the former is traceable to the Latin
verb concipere, the latter to its past participle conceptus. But while the verb concipere is used frequently
throughout antiquity, employment of the nominal form term conceptus does not seem to emerge until the third or
fourth century CE; instead, the term notion (roughly ‘notion’) was employed. […] In this light, it seems
reasonable to follow modern usage in allowing a broad sense for the term ‘conceive’ that permits as instances
certain uses of [...] ‘envisage, envision, fancy, fantasize, image, imagine, picture, see, think, vision, visualize’ –
that is, a use of the term that is non-committal on the relation between conceiving and concept-deployment.
Imagining and conceiving in the narrow sense are special cases of conceiving in this broad sense.
5
No original: We have, it seems, a capacity that enables us to represent scenarios to ourselves using words or
concepts or sensory images, scenarios that purport to involve actual or non-actual things in actual or non-actual
configurations. There is a natural way of using the term ‘conceive’ that refers to this activity in its broadest
sense.
28
Dessa forma, a concepção está num patamar epistêmico, cognitivo, ao passo que a
possibilidade está num patamar ontológico, ou seja, refere-se ao mundo e sua natureza além
de nossa mente. Isso mostra que, permeando o problema do critério de possibilidade nós
temos essa relação (lacunar para muitos) entre a mente e o mundo além da mente. O que
sugere a seguinte questão: o mental, a concepção, pode nos guiar para uma modalidade do
mundo, daquilo que é em última natureza, além da mente? Em outras palavras, o problema do
critério de possibilidade também se relaciona intimamente com o problema da relação mente-
mundo. Mas aqui, tocamos num ponto do mundo que talvez seja mais rarefeito do que
concreto, o campo da possibilidade no mundo.
Essa lacuna entre mente e mundo pode ser um dos entraves para a concepção como
guia para a possibilidade e, certamente, é motivo de suspeita, assim como qualquer outro
critério mental. E todos os critérios que possamos ter, certamente serão critérios mentais, pois
o que fazemos é passar de um ponto epistêmico para um ponto modal. Resta saber se estamos
bem autorizados a isso ou isso pode nos enganar na busca do conhecimento sobre o mundo.
possível que p (BARROSO; IMAGUIRE, 2006, pg. 298). Dele nós podemos tirar o seguinte
condicional: ◊p→◊◊p. Isso nos indica que a possibilidade de p implica a possibilidade da
possibilidade de p. Ou seja, a possibilidade é aplicável inclusive a si mesma, o que em
sistemas modais é chamado de 'modalidade iterada' – quando uma modalidade é aplicada a
outra modalidade. Isso nos leva a pensar, portanto, na natureza da possibilidade como algo da
realidade do mundo. Queremos mostrar que, com isso, há pelo menos uma forma de
compreender a possibilidade como algo do mundo e não apenas como um construto teórico6.
Possibilidades lógicas
Possibilidades metafísicas
Possibilidades Físicas
termos, uma contradição lógica, então algo é logicamente possível. Sendo assim, a
consistência lógica de algo lhe garante sua possibilidade lógica. Dessa forma, possibilidades
metafísicas e possibilidades físicas estão contidas na possibilidade lógica porque ambas
exigem consistência lógica de algo para que caiba sob essas noções, mas exigem mais do que
isso.
A possibilidade física, por sua vez, é mais restritiva que as outras duas, pois exige não
só a consistência lógica e a consistência metafísica das outras duas como também o que
chamaremos de consistência física para se dizer que algo é fisicamente possível. Essa
consistência é a exigência que a coisa esteja em acordo e não contradiga as leis da física – que
por sua vez pretende espelhar as leis da natureza. Nesse sentido, uma coisa não é fisicamente
possível se ela não estiver de acordo com as leis da física, mesmo que ela esteja de acordo
com as leis da lógica e seja consistente ontologicamente, sendo, por sua vez, lógica e
metafisicamente possível. O exemplo é o que demos no parágrafo anterior. Por outro lado, se
algo não for metafisicamente possível, mas for logicamente possível, isso já implica que esse
32
algo não é fisicamente possível, pois a possibilidade física exige a consistência das outras
duas possibilidades.
Diagrama 1
Diagrama 2
Possibilidade
Metafísica
Contradições
Coisas logicamente
consistentes: possibilidade
lógica.
O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode
jamais implicar contradição, e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza,
como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o Sol não nascerá amanhã não é
uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de
que ele nascerá; e seria vão, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse
demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e jamais poderia ser
distintamente concebida pela mente. (HUME, 2004, p. 54, seção 4, par. 2)
Outra posição sobre metafísica da modalidade que excluiríamos do debate apenas por assumir
o diagrama acima seria o da sugestão de Descartes de que o mundo poderia ter diferentes leis
da lógica e da matemática, onde se seguiria que o conjunto das possibilidades metafísicas é
mais abrangente que o da possibilidade lógica – algo parecido com o Diagrama 2 acima. O
que percebemos no seguinte trecho:
7
Veja que a noção de consistência ontológica como critério da possibilidade metafísica pressupõe que
particulares tenham propriedades essenciais as quais não podem ser contraditas se quisermos saber o que é
possível ou não é possível metafisicamente.
34
[...] Ora, quem pode assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja
nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma
grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha o sentimento de todas essas
coisas... E, mesmo, [...] que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de
dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado [...] (DESCARTES, p.
87)
Quando nos perguntamos se é possível que o Sol não nasça amanhã e compreendemos
a possibilidade logicamente, não encontramos nenhuma contradição lógica no Sol não nascer
amanhã e, assim, a questão se torna trivial. Não faz sentido fazer essa pergunta. Para não cair
nessa trivialidade da pergunta e da resposta é que se sugere a possibilidade física. Supõe-se,
nesse sentido, que entendendo a possibilidade relativamente às leis da física, nós saberíamos,
de forma não trivial, se realmente é possível que o Sol não nasça amanhã. Todavia, se
assumimos que a possibilidade física pode nos ajudar a dizer se realmente é possível ou não
que o Sol não nasça amanhã, retirando sua trivialidade, então estamos pressupondo que a
natureza intrínseca do mundo se reduz às leis da física e ao que for dedutível delas, pois faz
com que as leis da física sejam necessárias por estipulação (CID, 2010; EDGINGTON, 2004).
Ora, se a possibilidade física nos diz realmente o que pode ou não pode nesse sentido, ela
retira toda a sorte de possibilidades diferentes das leis da física. Se não é possível que o
mundo seja diferente do que dizem as leis da física, então as leis da física não são
contingentes, mas necessárias, que fazem parte da natureza intrínseca do mundo. Mas “uma
teoria da modalidade não pode pressupor que as leis da física fazem parte dessa natureza
intrínseca” (CID, 2010, p. 88), ela tem que permitir o debate se as leis da física são realmente
parte dessa natureza intrínseca, uma vez que este seria um candidato a critério de
possibilidade.
36
Deste modo, se queremos saber o que realmente é possível ou não, o que realmente
faz com que algo seja possível ou não, e não apenas o que é possível relativamente a um
sistema de regras, sejam elas lógicas ou leis científicas, então o nosso interesse é quanto à
noção absoluta de possibilidade, e a noção de possibilidade metafísica absoluta é a noção que
nos diz o que realmente é possível ou não.
Alguém aqui pode pensar que essa noção de possibilidade absoluta é uma ficção ou
mito, ao passo que o que realmente podemos fazer é apenas lidar com possibilidades relativas
– se formos utilizar da forma que distinguimos aqui. Penso que haja razão em suspeitar disso,
talvez essa sugestão de possibilidade absoluta seja mesmo um mito ou ficção. De qualquer
modo, metodologicamente seria um mito ou ficção necessário para nossa investigação. É um
parâmetro significativo para regular o debate reflexivo e, além disso, mostra-se um parâmetro
necessário porque captura a intuição fundamental da noção de possibilidade. Essa noção dá
significado às posições que estão em debate. Por exemplo, quando um antiessencialista
defende que o que é possível é o que é logicamente possível, está a sugerir que o que é
absolutamente possível é o que é logicamente possível. Ou quando um essencialista endossa
que o que é possível é o que é metafisicamente possível em termos essencialistas, ele está a
sugerir que o que é absolutamente possível é o que é metafisicamente possível em termos
essencialistas. O que está em jogo é o que seria essa possibilidade absoluta ou pura. Não só
isso, ela também nos ajuda a perceber que é extremamente significativo, e com várias
implicações para diversos debates filosóficos, caso ela seja uma ficção ou mito e que só nos
resta trabalhar com a noção de possibilidade relativa: isso significa uma precariedade em
nossas capacidades epistêmica e uma dificuldade para se sustentar posições metafísicas fortes
em sentido absoluto – seria difícil que pudéssemos conhecer a verdade sobre a natureza
última das coisas. Voltaremos a pensar sobre isso no capítulo 6, Consequências filosóficas.
Por ora, temos claro o que falamos quando falamos de possibilidade, estamos a falar
de possibilidade metafísica num sentido absoluto: possibilidade absoluta. Sendo assim,
seguiremos para a apresentação dos candidatos aos critérios de possibilidade, em seguida dos
tipos de visão sobre o nosso conhecimento da modalidade e, por fim, deixaremos claro qual
candidato a critério de possibilidade abordaremos na presente dissertação. Isso será o
encerramento e o trânsito para a próxima parte de nossa reflexão. Seguem-se, portanto, os
critérios de possibilidade na próxima seção.
38
Por exemplo, dado o seguinte fato do mundo atual: um copo está numa mesa ao meio
dia e Maria percebe que o copo está na mesa ao meio dia. Temos, portanto, a seguinte questão
epistêmica: como Maria saberia que o copo poderia estar na cadeira, e não na mesa, naquele
mesmo meio dia? As respostas potenciais são as seguintes:
Percepção: mesmo o copo não estando na cadeira, Maria percebe que o copo poderia
estar na cadeira.
Intuição: mesmo o copo não estando na cadeira, Maria tem uma intuição básica não
sensória que o copo poderia estar na cadeira quando Maria se pergunta: poderia o copo estar
na cadeira?
Concepção: Maria pode conceber um cenário no qual o copo está na cadeira, e não na
mesa, naquele meio dia. A justificação de Maria é derivada da crença de que o copo poderia
estar na cadeira pela concepção de tal cenário.
Imaginação: Maria imaginou um processo pelo qual o copo se move da mesa para a
cadeira e não encontrou nenhuma contradição nisso. Portanto, Maria está justificada em
acreditar que o copo poderia estar na cadeira com base na sua imaginação do movimento.
Teoria: Partindo do conhecimento de Maria sobre o copo, bem como fatos relevantes
sobre a cadeira, Maria pode saber que o copo poderia estar na cadeira.
Não cabe no escopo da presente dissertação pormenorizar todas estas respostas, mas
apenas apresentá-las de modo mais geral para seguirmos no nosso intento. Sendo assim,
veremos duas formas de ver o acesso ao conhecimento modal tendo em vista essa variedade
de respostas.
Quando nos questionamos como sabemos que algo é possível e ponderamos sobre as
respostas comuns, podemos pensar que apenas uma das respostas é a correta ou que mais de
uma é correta. Disso temos duas visões sobre o conhecimento modal. Uma é a visão uniforme
e a outra é a visão não-uniforme (VAIDYA, 2015).
Por outro lado, a visão não-uniforme é a de que diferentes pessoas podem conhecer a
mesma verdade modal de diferentes formas ou então que há mais de uma via fundamental
para o conhecimento modal. Ou seja, uma pessoa pode saber que algo é possível por
imaginação e outra por dedução, por exemplo, e ambas estarem corretas em saber sobre tal
possibilidade, desde que a imaginação e a dedução sejam ambas vias corretas e fundamentais
de acesso ao conhecimento modal. Portanto, essa visão sugere que mais de uma, ou talvez
todas, entre às respostas comuns nos levem a conhecer alguma possibilidade, de forma que as
vias possam se complementar. Dessa forma, se alguém não conhece a possibilidade de algo
por imaginação, por exemplo, pode conhecer por teoria. Se o agente cognitivo puder conhecer
de pelo menos uma das formas fundamentais de conhecimento modal já é o suficiente para se
estar justificado, mesmo que não consiga por outras vias.
Não está no escopo de nossa reflexão sustentar uma visão ou outra, contudo, é
importante que as tenhamos em mente ao refletirmos sobre a concepção como via de
conhecimento modal. Ora, na investigação se a concepção é realmente um guia correto para o
conhecimento modal podemos chegar a, pelo menos, três respostas: 1) a concepção é um guia
40
Se concluirmos que 2) e a visão uniforme estiver correta, então não podemos concluir
que não temos como saber se algo é possível ou não, uma vez que há outras respostas e talvez
a concepção apenas não seja a fundamental. Ou se a visão não-uniforme estiver correta,
embora a concepção não seja um guia correto para todos os casos, isso não implica que ela
não seja fundamental, pois nesses outros casos que a concepção não alcança usaremos outras
vias fundamentais. Ora, uma vez que nessa situação há mais de uma via fundamental e uma
via fundamental não se compromete com todos os casos.
Por fim, se concluirmos que 3) e a visão uniforme estiver correta, não saber se a
concepção é um guia correto para o conhecimento modal não implica que ela não seja
derivável de outra forma e que nós possamos saber dessa outra forma mais fundamental. Ou
se a visão não-uniforme estiver correta, não implica que nós não temos como ter
conhecimento modal pois há outras formas fundamentais de obter conhecimento modal.
Em todo caso, vemos que investigar a concepção como resposta, pelo menos em
princípio, não esgota a investigação sobre o critério de possibilidade. Precisaríamos investigar
todas as outras respostas e ainda as razões para tomar uma visão uniforme ou uma visão não-
uniforme. A investigação que propomos sobre a concepção como via para a possibilidade é
um passo dentro de uma investigação mais ampla. Dito isto, quando avaliarmos as razões e as
conclusões que nos levam por um caminho ou outro na reflexão, teremos em vista esse
horizonte mais amplo para que não se siga uma conclusão além do que as razões realmente
podem sustentar. Que as conclusões se delimitem ao escopo que definimos inicialmente.
41
Como vimos, há várias respostas para a questão de como sabemos se algo é possível e
há duas visões gerais sobre tais respostas que inicialmente delimitam as conclusões de nossa
investigação. Dentre as respostas há uma amplamente utilizada em diversos argumentos
modais, mais especificamente, argumentos de conceptibilidade, e conhecida como sendo uma
resposta padrão. É a resposta da concepção como guia para o conhecimento modal. Essa é a
resposta que interessa a nossa investigação e que está em jogo no problema central que nos
debruçamos.
Uma vez que não podemos pressupor inicialmente a visão uniforme em detrimento da
visão não-uniforme, devemos tomar a noção de concepção em escrutínio. É o que faremos no
próximo momento de nossa investigação ao analisar os vários aspectos da concepção para
avaliarmos em seguida se é um guia correto para o conhecimento modal.
8
Com exceção talvez da intuição, a depender de como se entenda a natureza da intuição.
42
2.3 Conclusão
a questão sobre o que torna algo possível tenha sido esgotada a ponto de sustentar uma
resposta nesse sentido – embora tal investigação seja um bom esforço nesse caminho.
Finalmente, munidos destas conclusões estamos aptos a refletir de forma mais clara sobre o
segundo momento de nossa investigação.
44
3 A NATUREZA DA CONCEPÇÃO
45
Num sentido amplo, conceber é, como dissemos antes, uma atividade cognitiva tal
como fantasiar, imaginar, pensar, visualizar, perceber, etc. Quando alguém quer nos dizer o
que é um smurf e pede para que imaginemos uma pessoa azul minúscula, dizemos facilmente
que agora concebemos um smurf. Quando estamos a fantasiar sobre a Terra Média das obras
de Tolkien, facilmente dizemos que concebemos o mundo do desenrolar de Senhor dos Anéis.
Quando dizemos que não estamos conseguindo conceber a imagem de uma obra de arte
abstrata e então alguém nos mostra a obra, finalmente dizemos que concebemos a imagem –
embora isso não seja o suficiente para conceber a obra de arte mesma – e nisso está a ligação
da concepção com a percepção. Num caso como o da obra de arte abstrata, comumente
precisamos ter uma teoria que nos auxilie a conceber tal obra em sua totalidade, assim,
conceber parece também se ligar à necessidade de uma teoria. Ou mesmo quando não estamos
a compreender algo que alguém diz e respondemos que não estamos concebendo tal
expressão, logo esta pessoa nos apresenta analogias e outras coisas similares e,
frequentemente, dizemos então que conseguimos conceber naquelas novas circunstâncias – a
concepção aqui está ligada com a similaridade. Há outra situação, é a de que nós não
concebemos determinado resultado matemático, mas quando nos deparamos e
compreendemos as deduções que nos levam àquele resultado, então dizemos que concebemos
– por dedução. Por fim, até mesmo quanto à intuição. Muitas vezes não conseguimos
conceber o que outras pessoas costumam dizer que estão a conceber por alguma forma de
46
intuição, por exemplo a intuição mística – mesmo não conseguindo explicitar de forma bem
delimitada tal intuição – mas então de alguma forma, por alguma experiência subjetiva, temos
algo que chamamos de intuição e agora dizemos que concebemos o que estava a ser dito.
Aqui, conceber é também intuir. No sentido amplo, portanto, a concepção se mistura com a
própria ideia geral de cognição e atividade cognitiva, ou a atividade mais fundamental de
apreensão (o que quer que seja isso) da mente.
Na seção 1), avaliaremos o sentido amplo de concepção e razões para não utilizarmos
esse sentido frente à distinção entre a concepção e as outras respostas ao problema do critério
de possibilidade; na seção 2) avaliaremos o sentido estrito de concepção e veremos que é mais
adequado por ter uma maior precisão, contudo, precisamos de mais clareza devido ao que se
mostra como problema do critério do critério, o que será feito em duas subseções. Na
primeira subseção avaliaremos a relação entre a noção de concepção e a noção de conceito.
Na segunda subseção avaliaremos uma resposta ao problema do critério do critério.
Avaliando esses pontos, acreditamos que teremos uma noção clara de concepção para
que possamos, em seguida, relacioná-la a nossa cognição em geral. Com isso, teremos a
conclusão desse segundo momento de reflexão.
há casos que aparentemente temos concepção e não temos as outras respostas e vice-versa,
continuar com o sentido amplo de concepção seria um gerador de confusões. Começaremos
pelo caso emblemático da imaginação.
Se alguém nos pede para imaginar um quadrado, não temos muita dificuldade em fazê-
lo, mas se alguém nos pede para imaginar um quiliógono, então temos apenas algo difuso em
nossa mente. Parece até que está fora do alcance de nossa imaginação. Quando fechamos os
olhos e buscamos uma imagem mental, parece claro que falhamos no intento. Contudo,
quando esclarecemos que se trata de um polígono de mil lados, já se torna mais fácil a
compreensão. Nesses casos nós costumamos dizer que nós não imaginamos um quiliógono,
mas o concebemos. Esse é um exemplo paradigmático em que temos concepção e não temos
imaginação. Como se conclui que há distinção nos dois processos mentais na famosa
meditação:
posso imaginá-la aplicando a atenção de meu espírito a cada um de seus cinco lados
e conjuntamente à área ou ao espaço que encerram. Assim conheço claramente que
tenho necessidade de uma particular contenção de espírito para imaginar, da qual
não me sirvo para conceber; e essa particular contenção de espírito mostra com
evidência a diferença que há entre a imaginação e a intelecção ou concepção pura.
(DESCARTES, 2011, p. 110-1)
Se conceber fosse imaginar, e vice-versa, não deveríamos ter casos deste tipo em
nosso senso comum. Isso parece nos indicar que o sentido amplo pode ser apenas uma forma
confusa de se entender a concepção. Dessa forma, concepção e imaginação são noções
independentes embora relacionáveis, é o que defende Beziau (2015) em Possibility,
Imagination and Conception quando nos ilustra mais exemplos da independência das noções:
Também não é claro que seres humanos possam imaginar Aleph zero e o conjunto
vazio. Estes podem ser considerados objetos puramente conceituais como muitos
objetos matemáticos, incluindo números imaginários. Nós temos uma imagem de
um número imaginário? (BEZIAU, 2015, p. 10, tradução nossa) 9
Mas os exemplos não se limitam ao campo matemático com quiliógonos, Aleph zero,
conjunto vazio e números imaginários. Um exemplo, também ilustrado por Beziau (2015),
mas no campo da física é o caso dos quantons. Concebemos tal entidade conceitualmente
através de nossas teorias em física quântica. Tal entidade ora parece partícula, ora parece
onda, mas não é nem partícula e nem onda. Nesse sentido, não temos como imaginar tal
objeto. Nossos microscópios nos dão apenas uma aparência ora de partícula, ora de onda, mas
não a coisa que nem é partícula e nem onda (BEZIAU, 2015, p. 14).
9
No original: It is also not clear at all that human beings can imagine aleph zero and the empty set. These can be
considered as purely conceptual objects like many mathematical objects, including imaginary numbers. Do we
have an image of an imaginary number?
49
É neste sentido de distinção das centralidades que Beziau (2015, p. 8) propõe que
temos casos de imaginação sem concepção. Tal exemplo é o de uma viagem além do sistema
solar. Mas acreditamos que uma viagem interestelar ilustre de forma mais dramática. Nós
conseguimos imaginar tal viagem, inclusive fazemos cinema sobre isso – um exemplo é
Interestellar (2014) dos irmãos Christopher e Jonathan Nolan. No entanto, não temos
conceitos suficientes que nos mostrem como uma espaçonave faça tal viagem interestelar, de
acordo com nossas teorias físicas paradigmáticas ou quaisquer teorias alternativas. Portanto,
nós não conseguimos conceber uma viagem interestelar, embora consigamos imaginá-la.
Com essas distinções na centralidade das noções podemos observar outra diferença
relevante e crucial ao longo de nossa reflexão, a imaginação parece ter uma autoridade de
primeira pessoa que a concepção não tem, pois, a concepção se fundamenta em conceitos
(linguagem) e, por isso, pode-se pedir uma justificativa para dada concepção – uma
justificativa em terceira pessoa11. Conceitos são aparentemente compartilháveis e acessíveis.
10
No original: We understand imagination here in direct relation with images, in particular material images:
painting, a drawing, a photograph, a reflection in a mirror or in the water, a movie. A material image can be a
representation of concrete reality or of an abstract reality.
11
Isso não é o caso se considerarmos conceitos fenomênicos (o conceito subjetivo de azul, o azul-para-mim, em
contraste com o conceito objetivo de azul, o azul-falado), o que poderia nos gerar uma noção de linguagem
privada em algum sentido. Para maior aprofundamento na ideia de conceitos fenomênicos, ver NIDA-
RÜMELIN (1998).
50
Da mesma forma que concepção não é imaginação, também não é percepção12. A linha
de raciocínio não difere. A noção central de percepção é “estar nos sentidos perceptuais”, em
contraste com “pôr em conceito” da concepção. Os exemplos são mais claros.
Já os casos em que temos percepção e não temos concepção são os casos de outros
animais ou mesmo de crianças de até certa idade. Não dizemos que um cachorro concebe a
Nona Sinfonia de Beethoven, mas estamos inclinados a dizer que ele percebe auditivamente14.
Temos claramente um caso de percepção sem concepção. Também estamos inclinados a dizer
que um bebê percebe as coisas, mas não dizemos que ele concebe, afinal ele ainda não dispõe
de conceitos. Novamente, percepção sem concepção. Estes são apenas alguns exemplos dos
muitos que existem se variarmos os sentidos perceptuais.
12
Nesse ponto, não uso Percepção como tendo necessariamente sempre uma interpretação, ou seja, que perceber
já carregue em si uma interpretação sobre o que se vê. Mas sim num sentido da Teoria de conteúdos mentais
não-conceituais, em que a ideia central é a de que alguns estados mentais representam o mundo para um portador
mesmo que ele não possua os conceitos necessários para especificar o conteúdo do estado. Sugiro esta visão
porque ela dá sentido a concepção ser uma resposta diferente da resposta da percepção de forma que possamos
ter uma distinção maior do que seja a concepção. De qualquer forma, se esta visão não for correta, mas sim a
visão em que toda percepção exige conceitos/interpretação (nesta visão usual em psicologia cognitiva, o uso de
perceber aqui pode se parecer com o uso de sentir ou uma “percepção primitiva”, caso ainda se queira uma
distinção mesmo nesta posição), então toda a reflexão e argumentação sobre a resposta da concepção que
faremos em diante também será suficiente para a resposta da percepção. Como não cabe na presente proposta
uma investigação ampla da percepção em geral, mas apenas alguns aspectos, então metodologicamente assumo
esta posição. Todavia, não é uma posição de todo arbitrária, há várias razões relevantes para tal visão. Para mais
informações, além de uma visão geral e panorâmica sobre a Teoria do conteúdo mental não-conceitual e as
razões dessa visão sobre a percepção, ver BERMÚDEZ e CAHEN, 2015.
13
Ver o símbolo que representa o conjunto vazio em nossas notações não é o mesmo que ver o conjunto vazio.
14
Pode-se considerar que outros animais possuam determinados conceitos, embora não possuam símbolos para
isso. Esse é o caso se assumirmos a ideia de conceitos fenomênicos, por exemplo, um cachorro teria o conceito
fenomênico do cheiro da rosa, embora não tenha símbolo para expressar esse conceito em forma de linguagem
natural. O que sugiro aqui é que só faz sentido utilizar a ideia de conceito fenomênico para espécies capazes de
conceitos em linguagem sistematizada (mesmo que em uma linguagem do pensamento), caso contrário não faz
sentido dizer que são conceitos fenomênicos, mas simplesmente experiências fenomênicas. Há também outras
formas de compreender que animais possuem alguns conceitos embora não tenham símbolos, por exemplo
quando um cachorro reconhece comandos, esses comandos seriam conceitos apreendidos por eles e com poder
causal em sua economia cognitiva. Por mais que assumamos esses conceitos instrutivos, isso não implica que
toda a percepção e a experiência do cachorro seria pautada por conceitos (o que seria o caso se utilizássemos
conceitos fenomênicos), mas apenas algumas relações com o ambiente, a saber, a de compreender e agir de
acordo com o comando.
51
Intuição, no sentido aqui discutido, é um tipo de percepção não sensória. Nesse sentido
metafórico de percepção, parece que a concepção também se encaixa como uma percepção
não sensória. Conceber então seria intuir? Não.
O que há de central para a concepção, a noção de conceito, não parece central para a
intuição. Aqui temos a distinção novamente. Podemos intuir sem conceber. Um exemplo é a
intuição como um tipo de palpite, pressentimento, quando refletimos sobre um problema que
não temos uma resposta, mas que dizemos que temos uma intuição de que a resposta seja A
ou B. Não temos conceitos suficientes ainda que nos mostrem como seja A ou B, mas
comumente dizemos que temos uma intuição. A intuição aqui pode estar alicerçada em vários
indícios de outra ordem que parecem indicar A ou B, o que algumas vezes repensamos se
chamamos de intuição, mas também há casos sem muito indício, quase como uma confiança
de que seja por aquele caminho ou aquilo. Dessa maneira, é muitas vezes a intuição que nos
ajuda a seguir um caminho de formular futuramente um conceito para que possamos ter uma
concepção, mas não dizemos que é a intuição mesma uma concepção.
Esses exemplos de intuição sem concepção não devem ser confundidos com os
exemplos de concepção implícita que, por exemplo, Christopher Peacocke sugere em
Concepções implícitas, compreensão e racionalidade (PEACOCKE, 2014). Concepções
implícitas exigem uma aplicabilidade do conceito por um agente cognitivo, embora não se
saiba explicitar tal conceito (PEACOCKE, 2014, pp. 33-44). Isso difere radicalmente da
intuição aqui. Por exemplo, dizemos que Leibniz e Newton tinham uma concepção da noção
de limite de uma série, tinham um conceito para eles mesmos, isso se mostrava quando
facilmente eles resolviam questões do tipo. Todavia, eles não explicitaram o conceito numa
equação matemática (PEACOCKE, 2014, pp. 39-40). Embora pareça algo muito similar, a
diferença é a aplicabilidade. Quando temos uma intuição de algo, nem sempre sabemos
aplicar, pois não temos um conceito para nós mesmos ainda.
52
Intuições místicas também podem ser dadas como exemplo. É um fato comum na
história o de pessoas relatarem intuições místicas pouco definidas, o que faz com que
frequentemente seja difícil falar sobre tal intuição mística de forma literal e direta. Isso faz
com que muito do que é falado num discurso místico seja metafórico ou alegórico.
Inicialmente não há conceito numa intuição deste tipo, mas há intuição.
Novamente, uma vez estabelecida a distinção entre o que é central para a concepção e
o que é central para a intuição através de tais exemplos, com isso estabelecemos a
independência das duas noções. Logo, o sentido amplo novamente incorre numa confusão.
Por conseguinte, quando avaliarmos a concepção como resposta ao problema do critério não
estamos a avaliar a intuição como resposta.
Essa distinção entre lógica explícita e lógica implícita é relevante para nos esclarecer
que mesmo indivíduos que não possuam conceitos podem raciocinar dedutivamente. Isso é o
caso de crianças de até certa idade ou mesmo de alguns outros animais. Se você tiver um
cachorro e gostar de passear com ele, você pode perceber facilmente a aplicação dele de
modus ponens. Pois, (P1) se você pega a coleira em determinada hora do dia, então vocês
passearão juntos. (P2) Você pegou a coleira em determinada hora do dia. Logo, (C) vocês
passearão juntos. Por conseguinte, certamente seu amigo canino expressará sua felicidade
quando você pegar a coleira na determinada hora do dia. Há um raciocínio dedutivo implícito,
mas isso não significa que seu amigo canino está usando conceitos ou que ele saiba como
explicitar tal raciocínio. Dessa forma, temos um caso de dedução sem concepção. Segue a
mesma demonstração para crianças de até certa idade.
53
Destarte, conceber não é deduzir. Pois, está estabelecida a distinção entre o que é
central para a noção de concepção e o que é central para a noção de dedução através de tais
exemplos. Mais uma vez o sentido amplo nos guiaria para uma confusão. Com efeito, quando
avaliarmos a concepção como resposta ao problema do critério não estamos a avaliar a
dedução como resposta.
Algo fundamental para uma teoria são seus conceitos. Isso parece nos levar a um
entendimento de que a centralidade da teoria como resposta ao problema do critério seria a
mesma que a centralidade da resposta da concepção. No entanto, essa é uma visão que
trivializaria a própria noção de teoria. Todo e qualquer jogo de linguagem, para usar os termos
de Wittgenstein, seria uma teoria. Todavia, não é qualquer coisa que usualmente chamamos
de uma teoria. Por quê? Porque teoria nesta acepção é uma noção de teoria formal. Há uma
determinada formalidade para que um conjunto de enunciados seja entendido como uma
teoria. E quando se procura responder que o critério para que algo seja possível é o critério de
se encaixar numa teoria, então estamos a usar essa visão sobre o que seja uma teoria. Pois é
uma teoria que procura explicar e gerar conhecimento – essa resposta se alicerça ao corpo de
conhecimento que um indivíduo possui. Dessa forma, nem toda narrativa é uma teoria formal.
Assim, uma teoria é um corpo de conhecimento15. Isso retira a trivialidade da noção de teoria.
15
Pode parecer vago inicialmente compreender teoria desta maneira, todavia as razões restantes do texto são
suficientes para fazer-se entender este uso. Contudo, uma coisa deve ser esclarecida aqui: este entendimento de
teoria leva em consideração que a psicologia popular (folk psychology) não é tomada como uma teoria nestes
termos. Se tomarmos que a psicologia popular é ela mesma uma teoria (há razões para isso), certamente não
teríamos nenhuma concepção que não fosse uma teorização (uma vez que não teríamos um parâmetro para saber
o que não seria uma teoria sem já estar imbuído em uma), consequentemente, as respostas da concepção e da
teoria seriam imbricadas. Se este caso for verdadeiro, então toda e qualquer argumentação que faremos em
diante sobre a resposta da concepção recairia sobre a resposta da teoria. Entretanto, como não cabe no escopo
desta reflexão uma ampla investigação sobre a noção de teoria, metodologicamente sugiro esta visão. Não haverá
deficiência alguma para a investigação da concepção em geral, apenas não assumo inicialmente que a
argumentação sobre a concepção implique uma argumentação sobre a teoria sem antes uma investigação ampla
acerca de tal resposta. Deste modo, a sugestão simples é que não precisamos de teorias formais elaboradas
estruturadamente para concebermos alguma coisa, há concepção simples sem uma teoria formal.
54
conceitos se relacionam. É isso que faz com que tenhamos casos em que temos concepção,
mas não temos teoria.
Primeiro, o que seria uma teoria formal nestes termos? Poderíamos entender a teoria
formal como um todo estruturado, como um programa de pesquisa:
Um programa de pesquisa [...] é uma estrutura que fornece orientação para pesquisa
futura de uma forma tanto negativa quanto positiva. A heurística negativa de um
programa envolve a estipulação de que as suposições básicas subjacentes ao
programa, seu núcleo irredutível, não devem ser rejeitadas ou modificadas. Ele está
protegido da falsificação por um cinturão de hipóteses auxiliares, condições iniciais
etc. A heurística positiva é composta de uma pauta geral que indica como pode ser
desenvolvido o programa de pesquisa. Um tal desenvolvimento envolverá
suplementar o núcleo irredutível com suposições adicionais numa tentativa de
explicar fenômenos previamente conhecidos e prever fenômenos novos. [...]
(CHALMERS, 1993, p. 112)
Nesse sentido, teríamos uma estrutura dos conceitos, um arranjo. Para uma teoria um
núcleo irredutível é o que define a teoria, uma hipótese fundamental e basilar a partir da qual
tudo se desenvolverá. Como exemplo:
O núcleo, assim, é algo que não pode ser negado (heurística negativa). Se o for, isso
significa que se saiu de um programa e se foi para outro, rejeita-se uma teoria e se assume
outra. Por outro lado, a heurística positiva indica, não o que não se deve, mas o que se deve
fazer:
Essa é a forma de teste da teoria quanto ao mundo. Mostrando quais as razões testáveis
frente a outras razões de diversas naturezas. De qualquer maneira, a diferença entre a resposta
da teoria e da concepção, é que aquela exige algo além desta.
série, mas eles não possuíam uma teoria sobre o limite de uma série. Isso se dá porque eles
conseguiam aplicar seus conceitos implícitos e resolver problemas de limites de séries, mas
eles não tinham uma explicitação desses conceitos de forma a construir uma teoria
matemática sobre o limite de uma série (PEACOCKE, 2014, pp. 39-40). Dessa forma, temos
um exemplo de concepção sem teoria. Contudo, não temos nenhum exemplo de teoria sem
concepção, uma vez que realmente teorias pressupõem conceitos. Isso parece nos indicar que
a teoria depende da concepção, mas a concepção não se reduz a teorizar.
Tendo visto que a comparação como atividade cognitiva é central para a noção de
similaridade como resposta, então podemos ver as distinções entre ela e o que é central para a
noção de concepção – conceitos.
O fato de que há seres que comparam embora não concebam é uma distinção simples
que mostra que é uma confusão entender que comparar é conceber. Tome novamente o
exemplo de um cachorro e seu dono, desta vez que seja um cachorro que gosta de brincar com
17
Por exemplo, se são suficientes para satisfazer as condições de verdade do estado ao qual se aplica o
modalizador de possibilidade – ou, a proposição modalizada.
56
bolas. Digamos que ele sempre teve uma única bola para brincar, mas que por algum motivo
ele perdeu. Agora seu dono trouxe outra bola, apenas um pouco diferente no tamanho. Será
que o cachorro não brincará com a nova bola apenas pelo fato de não ser a anterior? Será que
ele não reconhecerá essa outra bola como uma bola brincável? Ele acharia que é algum outro
objeto extremamente diferente da bola que ele era acostumado a brincar? Aparentemente
diríamos que não, isto é, entendemos que o cachorro consegue comparar os objetos, perceber
suas similaridades e agir no mundo conforme tais similaridades. Contudo, não diríamos que o
cachorro tem o conceito de bola, em outras palavras, não diríamos que ele concebe bola.
Segue o mesmo para crianças de até certa idade. Crianças não nascem com conceitos18, mas
isso não significa que elas não tenham a capacidade de comparar objetos e extrair as
similaridades – capacidade fundamental para se desenvolver a capacidade de conceituar e,
conseguintemente, concepção.
18
Esta é uma posição forte e contrasta com a noção de conceitos a priori. O que sugiro é simplesmente que todo
conceito portável por um sujeito depende fundamentalmente da originária experiência de existir. Deste modo,
nenhum conceito é anterior a primeira experiência. Desta forma, os conceitos a priori tradicionais (os quais o
indivíduo já nasce com ele devido a estrutura física que implica numa organização mental, do tipo de uma
linguagem do pensamento), em última análise não seriam a priori, posto que dependentes de uma forma de
existência (vida) expressa na experiência originária de existir da própria forma (vida). Esta ideia será refletida de
forma indireta (e mais técnica) quando refletirmos sobre o a ideia da informatividade da forma da informação
(capítulo 4, seção 1.3.2), da noção de sujeito no argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais (capítulo
5, seção 2.2), do caráter episódico da consciência (capítulo 5, seção 2.2; CAETANO, 2015) e a ideia de
inconceptibilidade da alteridade de subjetividades (capítulo 5, seção 2.2). Aqui, antes disso, faço apenas a
sugestão simples de que nós ensinamos conceitos e teorias às nossas crianças, elas aprendem tais coisas, elas
aprendem conceitos (não que reconheçam conceitos como alguma reminiscência de algo a qual elas já possuem
ou que já tenham algum conceito anterior a própria experiência originária).
57
A concepção não encerrar a cognição significa que a cognição é mais que concepção.
Isso era difícil de dizer se assumíssemos um sentido amplo, pois a concepção se confundiria
com a atividade cognitiva em geral – qualquer coisa que viesse à nossa mente de qualquer
forma seria como forma de concepção. Todavia, parece usual que entendamos que há mais na
atividade cognitiva que a concepção pode expressar – isso é o que vemos com os exemplos
analisados anteriormente. Portanto, a cognição não se confunde e nem se reduz à concepção,
embora a concepção seja uma forma de cognição – nem todas as formas de algo vir à mente
de um sujeito são na forma de concepção.
Sugiro que essa confusão se dá em geral por serem atividades, processos, que
trabalham muitas vezes em paralelo. Por exemplo, quando imaginamos o Garfield do
desenho, um indivíduo também aplica sua concepção e, assim, concebe o GARFIELD 19. Há
duas atividades cognitivas em jogo, imaginação e concepção, se for um indivíduo possuidor
de conceitos. O costume de aplicar as duas em paralelo nos dá a falsa impressão de que temos
um único processo cognitivo (ou que quando temos um, imediatamente temos o outro). Mas
os casos em que mostram um processo sem o outro nos esclarecem o processamento em
paralelo em casos de ambos.
19
Aqui assume-se a posição de que nomes próprios são também conceitos por serem informativos: carregam um
conteúdo informacional importante na economia cognitiva para a representação de um portador de tal conceito,
da mesma forma que outros conceitos que não sejam nomes próprios.
58
Entretanto, precisamos avaliar esse termo ‘concebível’. Dizer que algo é concebível é
aplicar a possibilidade na concepção. Em outras palavras, concebível é o que é possível de se
conceber – de estar na concepção. Todavia, se nós estamos usando o concebível para
esclarecer o que é possível, não esclarecemos nada do que é possível usando o próprio
possível. Por isso, proponho ser mais adequado focarmos na noção de concepção, não em
concebível – ou mesmo em conceptibilidade. Aqui sigo com Beziau (2015, p. 1)20 em usar
concepção ao invés de conceptibilidade e concebível devido estas já envolverem a noção de
possibilidade. Em conclusão, a solução desse problema de segunda ordem recai sobre o
esclarecimento da noção de concepção enquanto se explicita o que é conceber e, em seguida,
a análise da relação entre concepção e possibilidade.
O sentido estrito de concepção nos diz, como vimos, que conceber é “pôr em um
cenário” – o que quer que seja isso. Mas o que é “pôr em um cenário”? O que é um cenário? É
justamente isso que buscaremos esclarecer nesta subseção. Em princípio, defenderemos que
cenários são mundos possíveis epistêmicos. Além disso, defenderemos que conceitos são
constituintes de cenários. A relação constitutiva entre cenários e conceitos nos dará a captação
da centralidade da noção de concepção pelo sentido estrito de concepção. Isso nos dará
condições de avaliar dois desdobramentos na próxima subseção e termos clareza sobre o que
seja conceber.
20
Na nota 1.
59
Pense em uma descrição linguística de nosso mundo. Para cada estado do mundo uma
frase que verdadeiramente o descreva ou o expresse. O conjunto de todas as frases que
verdadeiramente descrevam o mundo em sua totalidade seria o que podemos chamar de livro
de mundo. Esse seria o livro do mundo atual. Se resolvêssemos modificar uma frase, por
exemplo, maças são naturalmente azuis, então nós teríamos um livro de mundo diferente.
Esse seria um mundo diferente, um mundo alternativo. Isso seria um mundo possível. As mais
diversas formas de escrever um livro de mundo nos dariam os mais diversos mundos
possíveis. O nosso mundo atual, portanto, é um desses mundos possíveis – uma vez que é
uma forma específica de livro de mundo escrito. Na tradição, essa é uma abordagem
combinatorial de mundos possíveis (MENZEL, 2016, seção 2.3).
É importante perceber que todos esses livros de mundo estão de acordo com a nossa
compreensão linguística e, nesse sentido, é limitado qualitativamente22 pelas nossas
capacidades linguísticas. Isso significa que todos esses livros de mundo que pensamos são
livros de mundo que expressamos de acordo com os limites combinatórios das nossas
experiências do mundo atual, do nosso conhecimento dele. Com isso, expressamos o que
queremos dizer com mundos possíveis epistêmicos. Portanto, mundos possíveis epistêmicos
são descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual.
21
Pode-se entender a expressão mundo atual como o conjunto universo das coisas que são o caso; ou, nas
palavras de Menzel (2016, parágrafo 1), situação maximamente inclusiva de situações como um todo.
Resumidamente, o mundo das coisas como são, em contraste como as coisas poderiam ser e não são (uma vez
que as coisas como são é uma forma de como as coisas poderiam ser).
22
Em contraste com quantitativamente, uma vez que nossa linguagem parece ilimitada nesse sentido.
60
Essa visão de mundos possíveis epistêmicos capta a noção de cenário que está em
jogo, pois é o que fazemos quando propomos reflexão sobre algum cenário – descrevemos
uma combinação determinada de experiências que temos do mundo atual. Quando digo que
para formular cenários em nossa concepção precisamos partir de nossas experiências do
mundo atual, falo no sentido de que não criamos novas experiências (em sentido qualitativo),
mas utilizamos as experiências que temos e recombinamos para a construção de versões
alternativas. Por exemplo, nunca vimos um porco com bico de corvo, mas já vimos porcos e
já vimos corvos, ou seja, temos a experiência de porcos e experiência de corvos, dessas
experiências do mundo atual criamos o cenário de um porco com bico de corvo. Não temos
cenários que não dependem de nossas experiências – não temos sequer como falar de algo
radicalmente alienígena a nossas experiências no sentido que não temos nenhuma
familiaridade. É nesse sentido que precisamos partir invariavelmente das nossas experiências
do mundo atual (peço que o leitor tente ter em mente um mundo possível que não utilize nada
parecido do mundo atual; esse é um exercício que mostra ao leitor o que estou dizendo).
Portanto, cenários são descrições de combinações determinadas de experiências que temos
do mundo atual. Em outras palavras, quando concebemos, no sentido estrito, montamos
modelos mentais conceituais, nós usamos conceitos para expressar proposições de
determinado livro de mundo.
Entretanto, friso que a experiência é crucial para essa nossa concepção, assim como é
a linguagem. Uma objeção seria: se a experiência é exigida nessa descrição combinatorial,
então um cego de nascença, por exemplo, não conceberia o enunciado “o céu é azul”. Em
resposta, mas um cego de nascença realmente não concebe “o céu é azul” da mesma forma
que uma pessoa que não é cega concebe “o céu é azul”. As concepções são distintas, pois as
experiências que estão em jogo são distintas. Para um cego de nascença, sua experiência
relacionada a “o céu é azul” é a de uma prática linguística social, ou seja, é a de ouvir dos
outros dizerem que o céu é azul. É a partir daí que ele chega a isso. Sua concepção é derivada,
pois se seres humanos não possuíssem visão, não faria sentido um vocabulário de cores para
afirmar “o céu é azul”. A capacidade conceptiva está diretamente ligada com as capacidades
cognitivas de experiência de uma espécie. Por isso, uma pessoa que não é cega quando
concebe “o céu é azul”, concebe de forma diferente de um cego de nascença. O mesmo se
segue para outros sentidos e experiências ausentes. A capacidade de formular conceitos é
dependente da capacidade de experienciar de um sistema cognitivo conceptivo. Quando temos
diferenças nessas capacidades entre indivíduos, uns concebem umas coisas que outros não
61
concebem e assim por diante. Como explicar para um cego de nascença, em linguagem, como
é a experiência da azulidão do céu? Voltaremos a essa intuição no capítulo IV – Concepção e
Cognição. Por ora temos esclarecida a noção de cenários como mundos possíveis epistêmicos:
descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual.
Conceitos são centrais para descrições, isto é, não há descrição sem conceitos.
Descrever é uma reiterada aplicação de conceitos. Portanto, conceitos são centrais para
cenários. Além disso, uma vez que descrever é uma reiterada aplicação de conceitos e que
descrições constituem cenários, temos que é a aplicação de conceitos que constitui cenários.
Logo, cenários são constituídos de conceitos. Conceitos são os elementos básicos de cenários.
62
Dessa forma, temos que o sentido estrito de concepção capta a centralidade da noção
de concepção, conceitos, e não nos leva para as confusões do sentido amplo. Concluímos
assim que o sentido estrito é o mais adequado para uma compreensão clara e não confusa de
concepção.
Durante a história, várias respostas foram dadas para a questão do que são conceitos.
Tais respostas têm várias relações com a reflexão sobre a natureza da concepção. De forma
geral, há dois arcabouços dominantes na filosofia contemporânea. Numa destas visões,
conceitos são representações mentais, ao passo que na outra são objetos abstratos
(MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 1). Embora haja relações para a reflexão sobre a
natureza da concepção, argumentaremos que para compreender a concepção não precisamos
tomar nem uma e nem outra posição sobre a ontologia de conceitos. O que significa que o
sentido estrito de concepção que tomamos até agora é compatível com as duas visões, além
disso, é compatível com uma visão combinada23 das duas. Vejamos, portanto, as três visões24
e em seguida a relação com a noção de concepção.
23
Pelas mesmas razões de Margolis e Laurence (2014a, p. 7-11) acreditamos que uma visão combinada é uma
visão perfeitamente coerente.
24
Conceitos também podem ser visto como habilidades, essa visão não será abordada nessa reflexão pois ela é
menos problemática para conciliar com a noção de atividade cognitiva em relação com a ontologia de conceitos
uma vez que a noção de habilidade é algo que tem uma relação não problemática com a noção de atividade – em
alguns sentidos as noções dão sentido uma a outra. Por exemplo, quando alguém demonstra uma habilidade, é
feito através de uma atividade, quando se expressa uma atividade pode-se expressar como uma forma de
habilidade, sem muitos problemas. Por isso tal visão não é abordada, além de não estar entre os dois principais
paradigmas de ontologia de conceitos. Para mais informações, MARGOLIS e LAURENCE, 2014b, seção 1.2.
63
Uma expressão intuitiva de conceitos como representações mentais pode ser vista nas
palavras de Leclerc e Abath em Representando o Mundo: Ensaio sobre Conceitos (2014):
Também em:
Temos conhecimento sobre o que está fora de nós graças às ideias que estão dentro
de nossas mentes. Conceber é a primeira e mais simples das operações da mente;
trata-se de uma simples “visão” que temos das coisas que se apresentam a nossas
mentes, quando representamos uma árvore, o sol, um quadrado, uma figura
geométrica de 1.000 lados etc., sem formar um juízo sobre as coisas (p. x-xi).
Dessa forma, atitudes proposicionais como crenças, desejos, etc., são entidades
psicológicas estruturadas em que seus constituintes são conceitos (representações mentais
como ‘casa’, ‘gato’, etc.). Portanto, nessa visão psicológica de conceitos, conceitos são
representações mentais e constituintes de atitudes proposicionais (MARGOLIS &
LAURENCE, 2014a, p. 3).
Para termos mais clareza, ilustraremos com um exemplo. Tome a atitude proposicional
seguinte: Paulo acredita que Fortaleza é um time tradicional de futebol no Nordeste do
64
Brasil25. Aqui temos a crença de Paulo como uma representação mental estruturada por outras
representações mentais. Por sua vez, essas representações que constituem a representação
mental estruturada (a crença de Paulo) são os conceitos, a saber, as representações (conceitos)
de Fortaleza, time, tradicional, futebol, Nordeste e Brasil. Estas representações mentais
(conceitos) são fundamentais para a constituição da crença de Paulo (representação
estruturada). Dessa forma, temos particulares mentais com propriedades semânticas, pois
fazem parte da linguagem do pensamento – a linguagem do sistema interno de representação.
Há várias motivações para a defesa de tal teoria e quais problemas ela pretende
explicar. Todavia, isso já foge ao nosso interesse, o qual é apenas a caracterização de
conceitos dentro desta visão. Portanto, não entraremos nos méritos do debate da TRM.
Esta visão psicológica de conceitos concorre, entretanto, com uma visão semântica de
conceitos. É o que veremos a seguir na visão de conceitos como objetos abstratos.
Sentenças de línguas diferentes parecem expressar a mesma coisa. Por exemplo, “the
sky is blue” e “o céu é azul” parecem expressar a mesma coisa. Que coisa é essa? Na tradição
fregeana essa coisa é chamada de proposição26. Assim, a proposição é o significado de uma
sentença declarativa. Além disso, proposições são objetos abstratos, pois existem
independentemente de nossas mentes, e são condutores de verdade (MARGOLIS &
LAURENCE, 2014a, p. 5).
25
A quesito de esclarecimento, a atitude proposicional estritamente falando é, nesse exemplo, a crença, o ato de
acreditar do sujeito, no caso Paulo, ao passo que a proposição é o conteúdo da crença, a saber, que Fortaleza é
um time tradicional de futebol no Nordeste do Brasil. Contudo, por motivo de simplicidade e sem nenhum
prejuízo para a reflexão, doravante será usado atitude proposicional para se referir ao conjunto completo: sujeito,
atitude e proposição; embora pressupondo essa forma estrita e clara de distinção.
26
“Pensamento” na terminologia de Frege, ver Sentido e Referência (2011, pp. 21-44).
65
dependem de nossas mentes para existirem. A relação entre proposições e nossas mentes é
uma relação de captação. Nossas mentes captam proposições.
27
Nesse sentido, uma tradição fregeana em que proposições são entidades estruturadas. Para mais detalhes A
study of concepts de Peacocke (1992).
66
Da mesma forma que um tipo pode ter várias ocorrências, uma ocorrência pode ser
tipificada de várias formas. Essa múltipla tipificação depende do conteúdo ligado à ocorrência
da representação mental (MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 10). Este é o insight que
pode combinar as duas visões. Tomemos outro caso como exemplo. Leonardo está a ver uma
imagem do Cristo Redentor. Imagine que Leonardo é um carioca, mas vive atualmente em
28
Os argumentos sobre a incoerência da visão combinadas são analisados e rejeitados por Eric Margolis e
Stephen Laurence em Ontologia de conceitos: objetos abstratos ou representações mentais? (2014a), embora
para estes a visão combinada não seja a preferível entre as três e sim a de conceitos como representações
mentais.
67
Finalmente, uma visão combinada pode ser expressa da seguinte forma: “conceitos são
representações mentais tipificadas em termos dos sentidos que elas expressam” (MARGOLIS
& LAURENCE, 2014a, p. 11). Assim, conceitos estariam comprometidos com a ideia de
representação mental conforme a visão psicológica e também com os sentidos conforme a
visão semântica. Como expressam Margolis e Laurence (2014a):
Dada esta última visão sobre conceitos, agora observaremos a relação entre a natureza
de conceitos e a natureza da concepção.
Sendo assim, por mais que conceitos sejam centrais para compreendermos o que é
conceber, não precisamos, em princípio, nos comprometer com qualquer uma das três
ontologias de conceitos.
69
Uma vez que o interesse de nossa investigação era a natureza da concepção e o que
seja conceber, precisamos, ainda, de um critério de concepção. Em outras palavras,
precisamos compreender um critério que diga o que é e o que não é uma combinação
determinada de conceitos de experiências que temos do mundo atual. Com efeito, embora não
precisemos nos comprometer com a ontologia de conceitos, precisamos compreender a
aplicabilidade de conceitos. Esse é o passo que daremos na próxima subseção.
3.1.2.3.1. Analiticidade
significado dos termos que o compõem. Por isso, “a analiticidade é uma modalidade
semântica” (MURCHO, 2002, p. 19).
A analiticidade é uma noção semântica que não deve ser confundida com uma noção
epistemológica ou metafísica. Em outras palavras, a distinção analítico/sintético não deve ser
confundida com a distinção a priori/a posteriori ou mesmo com a distinção
necessário/contingente. Enquanto a distinção analítico/sintético é uma distinção semântica
sobre os tipos de frases, a distinção a priori/a posteriori é uma distinção sobre tipos de modos
de conhecer (noção epistemológica) e a distinção necessário/contingente é uma distinção
sobre os modos da verdade (noção metafísica) (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006,
p. 37). Grosso modo, a priori é o modo de conhecer algo sem depender da experiência e a
posteriori é o modo de conhecer algo através da experiência. Grosso modo, necessário é
aquilo que não pode deixar de ser verdadeiro e contingente aquilo que não é nem
necessariamente verdadeiro e nem necessariamente falso.
conceito de carro não nos dá, sem auxílio de algo além do seu significado, a informação de
que é vermelho. Portanto, o carro é vermelho, nos termos de Kant, é um juízo sintético.
Analiticidade Metafísica: Uma frase é uma verdade analítica se, e somente se, a sua
verdade depender unicamente do seu significado.
Analiticidade de Frege: Uma frase é uma verdade analítica se, e somente se, for uma
verdade lógica ou puder ser transformada em uma verdade lógica pela substituição
de sinônimos por sinônimos.
Analiticidade Epistemológica: Uma frase é uma verdade analítica se, e somente se, a
mera apreensão do seu significado for suficiente para nos justificar a toma-la como
verdadeira. (p. 37-8, itálico no original)
29
Mais detalhes em Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, 2006, p. 38.
72
Por outro lado, parece haver conceitos que não possuem intersecção alguma32. Dito de
outra forma, como diria Kant na caracterização de juízos sintéticos, “’B’ se localiza
inteiramente fora do conceito ‘A’” (KANT, B10, 2013, p. 51). O exemplo que vimos para
juízos sintéticos, isto é, o carro é vermelho, está nessa situação. O conceito VERMELHO está
30
A sugestão da ideia de que algum tipo de contradição conceptual seria o critério de concepção foi feita pelo
Prof. Dr. Cícero A. C. Barroso numa de nossas conversas filosóficas de orientação. A sugestão foi seguida e
desenvolvida nessa reflexão.
31
Alguém pode dizer que todas as coisas partilham uma coisa em comum, por exemplo, são coisas e,
consequentemente, todos os conceitos partilham algo uns com os outros. Em geral, na metafísica buscamos essas
noções mais gerais onde podemos alicerçar as outras noções. Contudo, isso é uma forma de trivializar a
semelhança e dessemelhança entre coisas. E apesar disso, costumeiramente fazemos essas relações associativas
entre noções, conceitos, sentidos, etc., de forma substancial sem sermos impedidos por tal trivialidade.
Queremos dizer que, para além do mais geral em todas as noções, temos que algumas carregam algo além que
outras também carregam.
32
Veja nota 31.
73
Há conceitos que parecem se excluir mutuamente. Essa intuição parece ser um dos
sustentáculos da noção de contradição. Um conceito em que seu campo de significação
carrega a exclusão do núcleo de outro conceito. O conceito SOLTEIRO, como vimos, carrega
o conceito NÃO-CASADO. Isso significa que o conceito SOLTEIRO carrega em seu campo
de significação a exclusão do núcleo do conceito CASADO. Por sua vez, o conceito
CASADO carrega o conceito NÃO-SOLTEIRO e, consequentemente, carrega em seu campo
de significação a exclusão do núcleo do conceito SOLTEIRO. Portanto, percebemos que há
conceitos que se excluem mutuamente.
Dito isso, a contradição conceptual nos mostra como falhamos quando tentamos unir
determinados conceitos no intuito de formar outros conceitos estruturados. Por conseguinte,
se nessa tentativa falha de combinação de conceitos nós não conseguimos “pôr em um
conceito” o que acaba sendo mera combinação de símbolos (por exemplo, solteiro-casado),
33
Além das triviais, nota 31.
74
então nós temos uma situação em que falhamos na combinação. Portanto, nós não
concebemos. Assim sendo, temos um critério de concepção.
Durante nossa exposição até aqui usamos expressões como “atividade cognitiva”,
“processos cognitivos”, “fechamento cognitivo” e mesmo “cognição” de forma banal para se
referir a diversos aspectos relacionados à mente. Mas de onde vem essa terminologia e como
devemos entender de forma mais precisa seus significados? Para uma reflexão mais clara
sobre a ideia central a ser discutida nesse capítulo, a saber, fechamento cognitivo,
precisaremos esclarecer tal terminologia e seu contexto.
Essa noção de cognição embora pareça mais efervescente em nossa época, ela, como
quase tudo no pensamento filosófico ocidental, remete aos primórdios da filosofia na
antiguidade grega. Isso se dá quando Sócrates diverge dos naturalistas jônicos e observa que o
sujeito é um elemento importante do mundo. Este elemento parece ficar fora das archés
(princípios) postuladas pelos naturalistas em suas explicações. Essa percepção é corroborada
em Encontro com as ciências cognitivas:
O estudo do conhecimento humano tem sido feito, há dois milênios, pelos filósofos,
desde que Sócrates mostrou a necessidade de se enfocar o sujeito do conhecimento.
Ao longo da história da filosofia, procurou-se entender as categorias e operações
envolvidas na produção do conhecimento, por meio de teorias filosóficas, apoiadas
na observação espontânea do comportamento humano, na introspecção
fenomenológica e no raciocínio filosófico. (QUILICI GONZALES, et al, 1997, p.
vii, negrito no original)
76
A ambição geral é a de ter uma ciência do funcionamento da mente. Ainda mais, uma
ciência que explique a mente em geral. E embora haja disputas de paradigmas no campo, há
solidamente “uma proposta metodológica unificadora: a ideia de que simular é explicar. (...)
Simulações são modelos psicológicos, cujo desempenho pode efetivamente ser testado.”
(TEIXEIRA, 2004, p. 17). Isso vem desde a cibernética, precursora da ciência cognitiva,
onde, embora não oficialmente com o nome que chamamos hoje, surge tal programa
científico. Vemos conforme defende Dupuy (1996) em Nas origens das ciências cognitivas:
Três anos depois que ela consolidou sua nova forma, como conhecemos hoje,
mostrando com vigor essa visão da simulação como explicação:
Com essa definição, McGinn (2002, p. 395) pretende expressar a seguinte intuição:
[...] Há diferentes tipos de mentes que formam conceitos, equipadas com poderes e
limitações em graus variáveis, preconceitos e pontos cegos, de modo que as
propriedades (ou teorias) podem ser acessíveis a algumas mentes mas não a outras.
Para corroborar a hipótese sobre o fechamento cognitivo, McGinn propõe que uma
teoria que resolvesse o problema mente-corpo é inacessível cognitivamente ao ser humano.
Portanto, um exemplo de um caso em que a mente humana é fechada cognitivamente para
algo – essa é a tese central de seu artigo (MCGINN, 2002, p. 394-405). Esse posicionamento
de McGinn é um desenvolvimento de ideias já abordadas por Thomas Nagel, em What Is It
Like to Be a Bat? (2002), e por Joseph Levine, em Materialism and Qualia: The Explanatory
Gap (2002). As três reflexões esboçam um tipo de lacuna explanatória, uma dificuldade
epistemológica, que desemboca na noção de fechamento cognitivo sugerida por McGinn,
como nos apresenta Cordeiro em seu trabalho monográfico Três versões do problema mente-
corpo: o hiato explicativo (2016, p. 12):
34
Tradução de Lucas de Oliveira Cordeiro (UFC), doravante o mesmo para a mesma referência.
78
[...] Nagel, Levine e McGinn. Cada um deles propõe, fazendo uso de argumentos ora
similares, ora distintos, que as diversas respostas dadas à questão mais relevante da
filosofia da mente não conseguem explicar clara e satisfatoriamente como a
consciência se relaciona com o corpo. A lacuna explanatória é justamente essa
carência de explicações convincentes que resolveriam o problema. É importante
dizer que a noção de um hiato explicativo só é explícita no texto (LEVINE, 2002) no
qual ela aparece no subtítulo. No entanto, [...] essa ideia já se esboça no texto de
Nagel, que antecede o ensaio de Levine, e é retomada, por assim dizer, por McGinn,
que desenvolve uma espécie de diagnóstico desse problema que, sob determinado
prisma, pode ser considerado um tanto pessimista. (CORDEIRO, 2016, p. 12)
É importante perceber que quando se fala em mistério nesses termos, se está a falar
apenas de que a resposta a um problema simplesmente não é acessível à determinada mente,
de tal maneira que o problema não possa ser resolvido. Nesse sentido, o problema deixa de ser
um problema e passa a ser considerado um mistério – sem teor místico inicialmente
(CORDEIRO, 2016, p. 17).
[...] é fácil imaginar um ser que, ao longo da mesma progressão evolutiva, seja mais
desenvolvido do que nós, que esteja para nós aproximadamente como estamos para
os cães. Da mesma forma como achamos que os cães não podem compreender
mecânica quântica, assim este produto evolutivo imaginário concluiria que, embora
os seres humanos possam entender mecânica quântica, há muita coisa que o cérebro
humano não pode compreender.
80
Há uma objeção comumente entendida como a priori feita contra tal hipótese do
fechamento cognitivo, é a de que se se pode formular o problema, é porque há instrumentação
teórica para expressar a resposta. Todavia, para rejeitarmos de forma a priori a hipótese do
fechamento cognitivo, deveríamos mostrar que ela é contraditória. Isto não é o caso, como
propõe Chomsky (1980, p. 126):
Um esclarecimento último que precisa ser feito sobre a ideia de fechamento cognitivo
é uma distinção de visões sobre o caráter limitado do ser humano. Certamente o fechamento
cognitivo se mostra como uma limitação de um organismo, mas queremos dizer que não é
uma limitação de computabilidade, digamos assim, ou de tempo devido à mortalidade. O
fechamento cognitivo não expressa uma limitação de desempenho ou uma limitação temporal,
o fechamento cognitivo expressa uma limitação de natureza. Enquanto um organismo
mantiver determinada natureza cognitiva, nada pode lhe abrir cognitivamente a algo para que
ele é fechado. Enquanto este organismo mantiver a mesma natureza cognitiva, mesmo que ele
tenha um tempo infinito na tentativa da resolução de um problema, ou que tenha suas
capacidades computacionais ao máximo desenvolvidas, ele não conseguirá ter acesso a algo
que lhe é cognitivamente fechado. De outra forma:
[...] há fatos que não poderiam jamais ser representados ou compreendidos por seres
humanos, ainda que a nossa espécie durasse para sempre – simplesmente porque
nossa estrutura não nos permite trabalhar com conceitos do tipo necessário para
fazê-lo. (NAGEL, 2002, p. 221)
Por conseguinte, apenas uma mudança de natureza cognitiva, dessa forma uma mudança
qualitativa e não quantitativa, poderia abrir um organismo a algo para que ele é fechado
cognitivamente – nem assim, aliás, pois ele já não será ele ao se abrir cognitivamente, será
outro.
sejamos abertos cognitivamente à solução do problema mente-corpo, isso não implica que
sejamos abertos cognitivamente em geral. Com este intuito, na subseção 1) veremos como o
problema mente-corpo pode ser caracterizado de forma cognitivamente fechada a nós; na
subseção 2) observaremos uma visão otimista sobre o problema e esboçaremos uma visão de
abertura sobre tal problema; na subseção 3) avaliaremos brevemente a noção de abertura
cognitiva no seu pressuposto da informação, esboçaremos um problema para ela e disso
veremos a persistência da ideia do fechamento. Munidos de tais reflexões, seguiremos para a
próxima seção e avaliaremos como a noção de concepção é afetada pela ideia de fechamento
cognitivo.
Por hipótese, o nosso fechamento cognitivo para uma teoria que explique a
problemática relação mente-corpo se dá porque cada meio epistêmico de investigação de cada
um dos termos da relação, a saber, introspecção e percepção, não pode, por si só, explicar o
outro termo. Além disso, não há algo em comum que una os dois meios epistêmicos num
nexo explicativo e estes são os únicos meios epistêmicos que temos para investigar mente e
cérebro. Essa é a tese defendida por McGinn em Can We Solve the Mind-Body Problem?,
para entendermos o problema mente-corpo não como problema, mas como mistério.
uma dificuldade em categorizar tipos de consciência, mas a relação de tais consciências35 com
um mundo físico. Em outras palavras:
Para filósofos como Thomas Nagel [...] e Colin McGinn, o problema mais
importante não é o de se classificar formas de consciência ou de se investigar os
seus traços mais característicos. O grande problema metafísico é o de tornar
compreensível como, em um mundo totalmente físico, se faz possível a existência de
algo irredutivelmente subjetivo e fenomenal como a consciência. Esse é para muitos
um inescrutável mistério. (COSTA, 2005, p. 14)
De um lado temos a nossa visão científica de mundo, uma visão objetiva e de terceira
pessoa, onde temos experimentos replicáveis e justificativas acessíveis ao público e capazes
de correção numa comunidade. De todo o discurso público e objetivo constituímos a nossa
visão científica de mundo – uma descrição do mundo (livro de mundo). Do outro lado temos
nossa visão subjetiva do mundo, algo que parece intransferível, um ponto de vista de primeira
pessoa que versa sobre nossos desejos, intenções, percepções, experiências, consciência,
crenças, nossas sensações em geral e etc. Da combinação das duas visões temos uma grande
surpresa: o que é conhecido por “princípio surpresa” (CHALMERS, 1997). O princípio diz
que se partimos de um ponto de vista de terceira pessoa, então não temos razões suficientes
para postular a existência do fenômeno da experiência consciente; contudo nós evidenciamos
o fenômeno, temos36 em primeira pessoa a experiência consciente. Dessa forma, para o ponto
de vista de terceira pessoa esse é um fenômeno que surge de forma surpreendente. Por
conseguinte, os fatos físicos, descritos e previstos pela nossa atual visão científica de mundo,
não nos levam ao surgimento ou existência da experiência consciente. Em outras palavras,
embora explique as reações químico-físicas e biológicas envolvidas, a ciência não nos dá o
gosto do beijo da pessoa amada.
35
Especificamente, seus estados qualitativos ou qualia. Nos termos de Cordeiro, a “aparência da experiência”
(CORDEIRO, 2016, p. 19).
36
Em contramão às perspicazes argumentações eliministas de DENNETT (1988); embora já tenha contra-
argumentado tais posições em outro momento, para mais detalhes ver CAETANO (2015).
37
O argumento de Kripke contra o materialismo é um dos vários argumentos por conceptibilidade que citamos
em nossas reflexões iniciais e os quais estão sendo postos em suspensão de juízo devido à natureza de nossa
83
maneira. Primeiro compreendamos que quando nos referimos a algo com um termo e depois
com outro termo, estamos nos referindo a mesma coisa com dois termos distintos. Se estes
dois termos distintos se referem à mesma coisa, isso significa que eles não poderiam se referir
a coisas distintas. Afinal, se eles se referissem a coisas distintas, não se refeririam à mesma
coisa como o fazem, mas a duas coisas. Portanto, se temos uma relação de identidade entre
dois termos (se os dois termos se referem a mesma coisa), então temos uma relação necessária
e não contingente, ou seja, não teríamos como conceber os termos se referindo a coisas
diferentes mantendo eles a mesma referência inicial da identidade39.
Ora, quando uma redução materialista diz que estados mentais são reduzidos a estados
cerebrais em forma identitária, está dizendo que os dois termos se referem a uma coisa só.
Sendo assim, se os dois termos se referem a uma coisa só, então não temos como conceber a
referência de um termo sem a referência do outro termo, afinal são as mesmas. Contudo, isto
não é o que acontece para estados mentais e estados cerebrais porque nós podemos conceber
um estado mental sem o correspondente estado cerebral que supostamente se referia à mesma
coisa. Para usar o exemplo de Kripke (1980), suponha que o materialista diz que dor é
estímulo das fibras-C, dessa forma, nós podemos conceber alguém que sinta dor sem que
tenha estímulo das fibras-C e vice-versa. Se podemos conceber a distinção, isso significa que
é uma relação contingente. Ora, mas se é uma relação contingente, então não é uma relação
necessária. Se não é uma relação necessária, logo não é uma relação de identidade. Se não é
uma relação de identidade, então dor e estímulo das fibras-C não são a mesma coisa. Se não é
a mesma coisa, então um estado mental é uma coisa e um estado cerebral é outra. Se são duas
coisas distintas, então não é como o materialismo dizia. Em conclusão, o materialismo é falso.
investigação. Contudo, para o bem da compreensão do tema, concedamos o raciocínio – do mesmo modo que
fizemos com a possibilidade sugerida por Chomsky no fechamento cognitivo.
38
Kripke, em seu famoso argumento contra o materialismo, não argumenta diretamente contra o funcionalismo,
corrente que entende que a mente é compreendida pelo que faz e entende estados mentais como estados
funcionais, mas contra um materialismo de identidade entre estados mentais e estados cerebrais
(BRANQUINHO, 2002). Todavia, mutatis mutandis, seu argumento pode ser organizado para ser um argumento
contra a identidade entre um estado funcional da mente e um estado funcional do cérebro. Isso é o que demonstra
Levine em Materialism and qualia: the explanatory gap (2002).
39
Essa é a intuição sustentáculo da ideia de designador rígido de Kripke (1980), a ideia de que um termo é um
designador rígido quando ele se refere à mesma coisa em todos os mundos possíveis em que essa coisa existe.
84
sugerida por Levine é a de que embora o materialismo possa ser verdadeiro, há uma lacuna na
sua explicação sobre a mente. Como se segue:
[...] Levine [...] queixou-se de uma “lacuna explanatória”: a de que nenhuma teoria
funcionalista pode explicar por que determinada sensação é sentida pelo sujeito da
maneira que é. A questão “Por que tais e tais eventos funcionais constituem ou
produzem uma sensação como essa?” parece estar sempre aberta. (LYCAN, 2013, p.
196)
Conclusão parecida se expressa nas palavras de Nagel (2002) ao concordar que a visão
materialista (objetiva) não expressa o subjetivo em seu corpo teórico: “[...] o caráter subjetivo
da experiência [...] não é capturado por nenhuma das conhecidas análises reducionistas
recentemente desenvolvidas, pois todas elas são logicamente compatíveis com sua ausência.”
(p. 219)
Levine sustenta que uma das premissas de Kripke é tratada como óbvia enquanto não
o é. Além disso, que ela é plausivelmente falsa. Dessa forma, o argumento nos permite chegar
apenas a uma conclusão epistemológica e não metafísica. Essa é a premissa que nos diz que a
concepção da distinção pode nos mostrar uma distinção metafísica, em outras palavras, que
conceber como coisas separadas implica que sejam coisas separadas e não uma coisa apenas.
Dessa forma, a ideia de conceptibilidade é determinante para a distinção das modalidades de
necessidade (é inconcebível que não seja da forma que se concebe, daí necessário) e
contingência (é concebível uma alternativa a forma que se concebe, daí contingente). Vemos a
centralidade dessa ideia quando Cordeiro (2016) nos apresenta o raciocínio de Kripke no
seguinte trecho:
[...] A sensação de dor, que é interna, é essencial para a nossa concepção de dor e
poucos consideram plausível separar dor e sensação de dor. Para o teórico da
identidade filiado ao materialismo (ou à vertente funcionalista), a sensação deveria
ser igual a um (tipo de) fenômeno físico, mas agora voltamos ao nosso problema:
“[...] a identidade entre dor e estimulação de fibras-C, se verdadeira, deve ser
necessária.” (ibidem, p. 331); todavia, se admitimos que é possível conceber, ao
menos logicamente, a sensação de dor ocorrendo sem a estimulação de fibras-C e
vice versa, a identidade é falsa, pois é concebivelmente contingente. (p. 15, itálico
nosso)
temos como explicar a nossa impressão de que podemos conceber a quebra dessa
conexão. 'Lacuna explicativa' é o nome que se dá à falta dessa explicação.
(CORDEIRO, 2016, p. 29-30)
Aqui podemos ver a distinção, como bem faz Levine, dos campos da epistemologia e
da metafísica. Possibilidade, como vimos, é uma noção metafísica. Concepção é uma noção
epistemológica, cognitiva. Assim, a premissa de concepção de dor sem estímulo das fibras-C
nos indica uma conclusão no campo da concepção, isto é, o campo epistemológico. Em outras
palavras, mostrar a concepção de algo não é o mesmo que mostrar a possibilidade de algo.
Essa é uma intuição cara para a nossa reflexão central, voltaremos a ela na terceira parte de
nossa investigação, quando discutiremos a conceptibilidade como um guia para a
possibilidade.
Dentro desse diálogo filosófico, há duas vias gerais de conhecimento sobre a relação
mente-corpo: a introspecção e a percepção.
A introspecção é a via que nos permite “observar a mente”. É o processo em que nós
voltamos nossa atenção para os nossos próprios estados mentais em primeira pessoa. Muitas
vezes expressa a ideia de “acesso privilegiado”, isto é, o portador-observador do estado
mental tem um acesso que outros observadores não têm. De modo simples, há um sentido em
que você observa/sente sua dor que nenhuma outra pessoa observa/sente essa dor – por mais
empática que seja. Uma exposição clássica de introspecção é dada na famosa obra Os
Problemas da Filosofia:
estarmos conscientes delas. Quando vejo o sol, tenho muitas vezes consciência de
que vejo o sol; assim ‘meu ato de ver o sol’ é um objeto do qual tenho conhecimento
direto. Quando eu desejo alimento, posso ter consciência de meu desejo de alimento;
assim, ‘meu desejo de alimento’ é um objeto do qual tenho conhecimento direto. De
maneira similar, podemos ter consciência de nosso sentimento de prazer e de dor, e,
em geral, dos eventos que ocorrem em nossas mentes. Este tipo de conhecimento
direto, que pode ser denominado de autoconsciência, é a fonte do nosso
conhecimento dos objetos mentais. [...] (RUSSELL, 2005, pp. 54-55)
Usar o termo 'percepção' aqui pode gerar ambiguidade, uma vez que a introspecção
pode ser entendida como uma percepção interior. Por conta disto, deixamos claro o caráter de
terceira pessoa da via percepção que estamos falando aqui, justamente em contraposição à
introspecção.
A via da percepção, portanto, é a via que outra pessoa tem de observar a dor que você
sente. Outra pessoa não observa sua dor como você observa – que é sentindo. Outra pessoa
saberia de sua dor observando seu comportamento corporal, suas feições de dor, ou seu
comportamento verbal, seu grito de dor ou seu aviso que está a doer. Há também a alternativa
de observar se há algum ferimento em seu corpo, ou usar instrumentos médicos que permitam
visualizar o interior de seu corpo e ver alterações ao padrão comum.
Uma vez que temos esclarecidas as duas vias para o conhecimento da relação mente-
corpo, temos como ver em que sentido, por natureza, elas não se estendem para os dois termos
da relação. Além disso, se não há nenhuma intersecção entre as duas vias e temos apenas estas
duas vias, então somos fechados cognitivamente à solução do problema mente-corpo e, assim,
temos um mistério ao invés de um real problema.
87
O ponto central para as duas vias não se cruzarem é o seguinte. Do ponto de vista de
terceira pessoa não compreendemos os aspectos captados pelo ponto de vista de primeira
pessoa para uma compreensão total do mental, e vice-versa. Além disso, não há nada que
ligue os dois aspectos de observação (para seguir a metáfora, não há um cruzamento) de modo
a formularmos uma teoria da mente. De cada um dos pontos de vista tomados como partida
para análise, o outro é surpreendente.
Visualizemos isso de acordo com uma ilustração sugerida por Thomas Nagel em Uma
breve introdução à filosofia. Nagel sugere pensarmos em um cientista que quer descobrir
como é o sabor do chocolate no interior da fenomenologia da mente de outra pessoa. Ele fez
inúmeras observações sobre o corpo dessa pessoa, inclusive abre seu cérebro, mas encontra
grande dificuldade em observar o fenômeno que ele gostaria de observar para estudar (o sabor
de chocolate para outra pessoa). Parece que temos uma distinção de interioridade, como se
segue:
[...] sua experiência de saborear o chocolate está de tal forma trancada dentro da sua
mente, que não pode ser observada por ninguém – mesmo que [...] abra seu crânio e
examine dentro do seu cérebro. Suas experiências estão no interior da sua mente
com um tipo de interioridade que é diferente do modo como seu cérebro está no
interior da sua cabeça. Uma outra pessoa pode abrir sua cabeça e observar o que há
dentro dela, mas não pode abrir sua mente e examiná-la – não dessa forma pelo
menos. (NAGEL, 2011, p. 29-30)
[...] Imagine um cientista muito louco que, para tentar observar sua experiência de
saborear o chocolate, lambesse seu cérebro enquanto você estivesse comendo uma
barra de chocolate. Em primeiro lugar, seu cérebro provavelmente não teria para ele
o gosto de chocolate. Mas, mesmo que tivesse, ele não teria conseguido entrar na
sua mente e observar a sua experiência de provar chocolate. A única coisa que ele
teria descoberto, de modo bastante bizarro, é que, quando você sente o gosto do
chocolate, seu cérebro se altera e passa a ter gosto de chocolate para as outras
pessoas. Ele teria a experiência dele do chocolate, e você, a sua. (NAGEL, 2011, p.
30)
Essa ilustração nos mostra como não conseguimos chegar ao ponto de vista de
primeira pessoa, partindo do ponto de vista de terceira pessoa. Mas se observarmos
atentamente, também tiramos que não observamos o sabor do chocolate para nós da mesma
forma que o cientista. Utilizando nossa introspecção, não conseguimos chegar nas
observações fracassadas do cientista maluco. Precisamos utilizar um ponto de vista objetivo,
de terceira pessoa (tais como as observações do cientista) para chegarmos na observação de
nosso interior físico, e não da introspecção (a qual nos daria outros resultados de observação).
88
Disso temos a análise de McGinn que de cada um dos pontos de observação nós vemos os
termos de cada relação, mas não vemos o vínculo, algo comum e que ligue os dois. Para
termos acesso ao vínclo (o nexo psicofísico) precisaríamos apreender o caráter subjetivo da
consciência. Como termos essa apreensão? Para MacGinn, de acordo com os caminhos
epistemológicos que possuímos (introspecção e investigação do cérebro), não temos como
fazer isso. Cordeiro (2016) expõe claramente esse raciocínio:
A introspecção, que é a porta de entrada aos nossos estados mentais, não demonstra
esses estados conscientes como dependentes de estados cerebrais de uma maneira
inteligível. Sendo assim, não conseguimos, via introspecção, chegar a P [...] Agora
McGinn passa para o outro lado do problema. Dado que a introspecção não nos
auxilia, vejamos se e de que modo a observação do cérebro e de seus estados e
processos físicos podem nos ajudar: [...] Perceber o cérebro é diferente de perceber a
consciência. [...] Nenhuma inferência a partir do que observamos nos cérebros nos
conduzirá à consciência ou ao nexo psicofísico. Se os dados obtidos através da
investigação científica do cérebro não trazem nenhum elemento de estados
conscientes, então as propriedades teóricas que explicam esses dados também não
incluirão a consciência. Portanto, como dissemos, nenhuma operação intelectual nos
guiará do domínio físico para o domínio da mente. (p. 33-4)
Uma vez que essas vias são as vias produtoras de nossas teorias, essa situação parece
nos sugerir que não temos como produzir uma teoria da mente que explique essa relação
problemática. Esse vazio na explicação, talvez intransponível, se dá por essa dualidade
epistêmica:
Essa dualidade epistêmica, isto é, o fato de que não podemos observar o cérebro
através de introspecção nem chegar à mente pela observação do cérebro parece ser o
que nos impede de chegar ao elo que une mente e cérebro [...]. Parece haver um
hiato epistêmico resultante das distinções entre essas faculdades cognitivas
(introspecção e percepção) e é esse hiato que nos impossibilita de entender o nexo
psicofísico. (CORDEIRO, 2016, 34-5)
Essa é a mesma dificuldade que se agrava mais quando Nagel (2002) sugere que
pensemos como é ser um morcego para um morcego (e não para nós). Nós podemos até
chegar a um entendimento sobre os correlatos objetivos para as nossas experiências
subjetivas, mas parece que estamos ainda mais fechados para subjetividades diferentes da
nossa. Parece que nossa natureza nos impede de compreender certos fatos da realidade:
Se somos fechados cognitivamente para uma teoria que solucione o problema mente-
corpo, não seríamos fechados cognitivamente para certos fatos da realidade sobre os quais não
conseguimos nem mesmo formular um problema? Alguns poderiam dizer que não, mas se
compreendermos a ideia de nossos limites cognitivos, não podemos concluir a inexistência de
algo partindo apenas de nossa incapacidade de apreender tal algo (mesmo que não
consigamos nem conceituar ou ter uma noção do que seja). Mesmo que nunca no passado
alguém com nossas estruturas cognitivas tenha pensado sobre e nunca no futuro alguém assim
possa pensar sobre (caso de fechamento cognitivo), isso não implica a inexistência. Dessa
forma:
[...] fechamento cognitivo em relação à P não implica que P não existe. Que P seja
(como podemos dizer) numênico para M não demonstra que P não ocorra em
alguma teoria científica naturalista – evidencia apenas que T não é cognitivamente
acessível a M. (MCGINN, 2002, p.395)
Por essa reflexão McGinn propõe que dissolvamos o problema mente-corpo, ao invés
de resolvê-lo, uma vez que o caracterizamos como mistério:
Abertura cognitiva total não nos é garantida e nem deveria ser esperada. Contudo,
aquilo que é numênico para nós talvez não seja miraculoso em si. Portanto, nós
deveríamos ficar atentos à possibilidade de que um problema que nos parece
profundamente complexo e absolutamente desconcertante pode advir de uma área de
fechamento cognitivo nos nossos modos de representar o mundo. O que desejo
argumentar agora é que é esse o caso quando achamos misteriosa a conexão entre a
consciência e o cérebro. Somos impedidos de chegar a uma teoria explicativa do
nexo psicofísico. E isso nos inclina à ilusão de um mistério objetivo. A avaliação
disso deverá remover o problema filosófico: na realidade, a consciência não surge do
cérebro do modo mágico como o Gênio sai da lâmpada. (MCGINN, 2002, p.396)
Outra intuição que percebemos dessa reflexão é uma visão de nossos limites
cognitivos, pessimista para alguns, em comparação com uma de abertura cognitiva a qual nós
podemos conhecer toda a natureza sem limitações (uma visão otimista, podemos dizer). Além
disso, ainda pode ser coerente uma visão que divirja de McGinn assumindo que somos
abertos para a solução do problema mente-corpo embora ainda tenhamos limites
cognitivamente e sejamos fechados cognitivamente a coisas as quais nem supomos. Esta ideia
90
de abertura cognitiva total também é cara para nossa reflexão, pois se formos totalmente
abertos cognitivamente então somos abertos para o conhecimento de um critério de
possibilidade. Faremos um esboço e refletiremos sobre essa ideia de abertura cognitiva nas
próximas duas subseções. En passant observaremos visões otimistas sobre o fechamento
cognitivo pontual da solução ao problema mente-corpo e notaremos a coerência de ainda
manter a ideia de fechamento cognitivo em geral. Por fim, analisaremos o pressuposto da
informação para uma visão de abertura cognitiva total.
O método natural visa abrir caminho para uma teoria unificada da mente e foi
delineado por Owen Flanagan em Consciousness Reconsidered (1992). O método busca
unificar e tomar seriamente o que se diz sobre a mente na fenomenologia, na psicologia, na
91
Flanagan defende que o método natural é uma alternativa para seguirmos na busca de
uma teoria unificada da mente. Nesse sentido, ele nos convida a uma visão otimista do tipo
“copo meio-cheio” e não uma visão “copo meio-vazio” como a pessimista de McGinn (copo
totalmente vazio, poderíamos dizer). Entretanto, esse método natural nos auxiliaria a
compreender o vínculo que McGinn aponta? Se o método pretende dar uma teoria unificada
da mente e que assim possamos explicar a mente, supõe-se que sim.
40
Rapid Eye Moviment.
92
Como podemos ver, o método natural proposto por Flanagan é relevante numa
argumentação contra a não eliminação de uma fenomenologia de primeira pessoa. No entanto,
mesmo assumindo tal metodologia e vendo uma de suas aplicações, não fica claro como
poderíamos compreender o vínculo problemático que aponta McGinn. Isso ocorre porque o
método natural de Flanagan, por mais que tenha o objetivo de levar seriamente as três
perspectivas e buscar uma visão coerente entre as três, tal método ainda não consegue superar
o problema da dualidade epistêmica. Não só, embora busque uma visão coerente entre as
perspectivas de primeira pessoa e de terceira pessoa, não aborda o vínculo problemático, isto
é, não conseguimos elencar algo em comum nas duas vias epistêmicas – embora as façamos
coordenadas e coerentes.
Concluímos que tal otimismo cognitivo do método natural serve para iluminar
algumas questões sobre o mental, mas não é suficiente para o problema do vínculo. Ainda
parece persistir a ideia de que somos fechados cognitivamente para tal vínculo, embora
consigamos manter uma visão coerente entre as duas vias epistêmicas.
41
Tradução de Saulo de Freitas Araujo, o mesmo doravante para citações da mesma referência.
94
[...] meu raciocínio reflete simplesmente o seguinte fato: num sentido muito
importante, nós não entendemos exatamente o que o cérebro realmente faz nesses
níveis mais elevados. Assim, é mais adequado considerar mesmo nossas mais
preciosas intuições sobre a função mente/cérebro como hipóteses revisáveis, ao
invés de encará-las como certezas transcendentais absolutas ou certezas
introspectivamente dadas. O reconhecimento da possibilidade de uma tal revisão faz
uma enorme diferença na maneira pela qual nós conduzimos experimentos
psicológicos e neurobiológicos, e em como nós interpretamos os resultados.
(CHURCHLAND, 1994, p. 26)
Estamos em acordo com Churchland de que devemos estar aptos a revisar sempre
nossas posições dadas boas razões. Precisamos, contudo, ver se as razões do materialismo
eliminativo são suficientes para suas propostas e juízos. Nesse caso em específico, se é
suficiente para sairmos do fechamento cognitivo apontado por McGinn.
Quando falamos sobre cores dizemos, por exemplo, que vermelho é uma frequência de
onda de 400-484 THz. Quando falamos isso do vermelho, estamos a falar da objetividade, da
realidade do vermelho, algo para além de nossa mente. Nesse caso, a realidade do vermelho
seria a frequência de onda de 400-484 THz, ao passo que a aparência do vermelho seria o
aspecto fenomênico vermelhante de nossa experiência consciente daquela frequência de onda
de 400-484 THz. Dessa forma, a realidade do vermelho seria a frequência de onda de 400-484
THz e sensação de vermelho seria a aparência do vermelho. Até aqui parece claro o que seja
95
realidade e o que seja aparência e o caminho seguido por Patricia parece um bom caminho.
Contudo, isso é só a aparência de um bom caminho, não a realidade de um bom caminho.
Vejamos. Se pensarmos então nessa aparência de vermelho, essa sensação de vermelho, esse
vermelhante aspecto fenomênico de nossa experiência consciente, quando dizemos que a
realidade de um estado consciente é um padrão de atividade neuronal, estamos a dizer que a
realidade dessa aparência de vermelho é um padrão de atividade neuronal Y. Ora, mas a
realidade dessa aparência de vermelho não era a frequência de onda de 400-484 THz? Qual é
a realidade da aparência de vermelho afinal, a frequência de onda de 400-484 THz ou o
padrão de atividade neuronal Y? Se é a atividade neuronal Y, então qual é a verdadeira
aparência da frequência de onda de 400-484 THz? Se é a frequência de onda de 400-484 THz,
então qual é a verdadeira aparência da atividade neuronal Y? Temos dois fenômenos na
realidade reivindicando a mesma aparência, e a mesma aparência reivindicando duas
realidades distintas. A saída reducionista de que a aparência da realidade do cérebro são
nossas experiências conscientes se confunde com a aparência da realidade além do cérebro,
assim não temos como inferir de que realidade é essa aparência. Essa confusão pode nos
mostrar que, na verdade, nenhum dos dois fenômenos na realidade são a realidade da
aparência de vermelho. Nos termos de Searle, a própria aparência de vermelho é a sua
realidade.
Sugerimos aqui que essa versão proposta por Churchland de materialismo eliminativo
nos coloca numa aporia: a minha experiência consciente é a aparência do que ocorre no meu
cérebro ou do que ocorre no mundo? Mesmo que seja uma versão proposta de acordo com o
espírito científico, a ciência sempre foi desvendando a realidade das aparências, mas se todas
as aparências forem da realidade do cérebro, não temos como seguir o realismo científico que
sustenta a posição do materialista eliminativo (nos tornamos realmente cérebros numa cuba!).
O materialismo eliminativo parece inconsistente com a própria visão que ele reivindica sobre
a realidade ser o que é desvendado pela ciência (realismo científico).
Recordemos das reflexões feitas por Descartes nas suas Meditações. Quando ele tenta
duvidar da própria experiência, ele fracassa. Isso não significa que ele esteja certo sobre o
96
juízo que se faz do mundo de acordo com sua experiência. Essa é justamente sua defesa, a de
que o erro provém do que ele denomina de faculdade do juízo, não das experiências. As
experiências são fatos. Não tem como duvidar que se tem uma experiência, uma vez que se
tem uma experiência no próprio ato de duvidar. Podemos estar errados no juízo de que a
experiência consciente seja de uma substância distinta da substância material/física, um juízo
ontológico, mas não temos como estar errados de que temos experiências conscientes e elas
diferem das atividades cerebrais. Não é porque uma maçã é diferente de um tijolo que os dois
não são feitos de átomos, por exemplo. Hidrogênio e Hélio são diferentes e ainda assim são
átomos!
O que quero dizer é que mesmo que percebamos que haja uma realidade cerebral para
a consciência (e há!), a aparência da consciência ainda é diferente da “realidade da
consciência”. Nossa experiência consciente ainda é diferente da atividade cerebral, por mais
que tenham a mesma substância. Essa diferença, por assim dizer, nem é suficiente para o
dualismo e nem é suficiente para negar o materialismo/fisicalismo, as razões para se sustentar
cada posição metafísica são outras. Qualquer que seja a posição metafísica em questão, a
teoria deverá nos fazer compreender essa diferença. Portanto, o que precisamos para sair da
encruzilhada da hipótese do fechamento cognitivo sugerida por McGinn é uma teoria que
explique essa diferença e dê uma imagem coerente da mente e do resto que sabemos do
mundo – ou pelo menos que mostre algo em que, mesmo na diferença, ligue a aparência
fenomenológica à sua realidade física basal.
Por fim, por mais que encontremos algo no cérebro que quando observamos se
apresentar, então nós também apresentamos aparência da consciência, isso nos leva apenas a
conjunções constantes nos termos de Hume. Isso se dá porque a proposta do materialismo
eliminativo ainda segue apenas uma das vias epistemológicas que McGinn demonstrou (via
de terceira pessoa) e não nos propõe nada em comum nas duas formas de observação
(introspecção e percepção) além de conjunção constante entre ambas. O vínculo explicativo
parece ainda escapar da proposta do materialismo eliminativo.
Com isso não queremos dizer que o impulso do estudo neurocientífico que sugere o
materialismo eliminativo esteja errado. Pelo contrário, embora demos a sugestão que não seja
suficiente para a explicação do vínculo, o estudo do cérebro é necessário e devemos continuar
nessa busca pela sua compreensão.
97
Precisávamos ter pelo menos algo em comum entre as duas vias epistêmicas para que
pudéssemos ligar uma a outra sem termos uma conjunção constante apenas, uma propriedade
que estivesse nas duas vias. A noção de informação é, portanto, uma candidata a isso.
Mas o que é informação afinal? Essa é uma questão extensa por si só e lhe caberia
uma reflexão do mesmo porte que fazemos sobre o nosso problema central de se a concepção
é um guia de possibilidade. Por conta disso, essa análise não será feita de forma extensa aqui.
Uma visão geral e uma intuição já é o suficiente para o ponto em questão. Isso significa que
não precisamos refletir sobre a ontologia da informação. A intuição em questão é a de
Bateson (1972) de que a informação é uma diferença que faz a diferença. Essa intuição se
mostra fundamental para a noção de espaço informacional. Conforme se segue:
Dessa forma podemos ver claramente a intuição de informação como diferença que faz
a diferença, pois disso temos essa noção de estrutura de diferenças como basilar para o
espaço informacional, consequentemente, uma condição de possibilidade da informação. A
noção de espaço informacional se mostra, portanto, fundamental para uma compreensão da
informação tanto no espaço físico (objetivo) quanto no “espaço” fenomenológico (subjetivo).
Uma vez que estados e espaços informacionais são abstratos, nem estão no campo do
físico nem do fenomênico, sugere Chalmers (1997, p. 264) que de determinado modo estados
e espaços informacionais podem se realizar no mundo físico e no mundo fenomênico.
É no sentido intuitivo de informação, por exemplo, que Chalmers (1997) expõe que a
informação se realiza fisicamente:
Essa noção de informação como algo que faz uma diferença remete à noção de
Shannon e Weaver (1949) na formulação de uma teoria matemática da comunicação. Algo
(informação) é emitido de um sistema (emissor) e causa uma diferença noutro sistema
(receptor). Uma teoria matemática para calcular informação pôde ser feito a partir dessa
intuição de uma restrição de estados possíveis de um sistema; essa intuição de restrição é o
mesmo que Barroso (2015a) chama de intuição estatística:
42
Segue o mesmo para as citações da mesma referência.
43
No original: An information space is an abstract space consisting of a number of states, which I will call
information states, and a basic structure of difference relations between those states. The simplest non-trivial
information space is the space consisting of two states, with a primitive difference between them. We can think
of these states as the two “bits”, 0 and 1. The fact that these two states are different from each other exhausts
their nature. That is, this information space is fully characterized by its difference structure.
44
No original: The natural way to make the connection between physical systems and information states is to see
physically realized information in terms of a slogan due to Bateson (1972): information is a difference that
makes a difference.
99
Isso significa dizer que também há estrutura de diferenças e estados sendo restringidos
em nossa fenomenologia, da mesma forma que na estrutura física do mundo. Isso se mostra
crucial para a compreensão de uma via que ligue os dois pontos:
Essa visão não seria uma explicação completa, mas essa vida dupla da informação
seria o suporte para uma busca de leis psicofísicas conforme Chalmers (1997, p. 268), a
informação parece um bom candidato para o vínculo que buscávamos. A dupla realização da
informação nos domínios físico e fenomênico pode sugerir um princípio que faça sentido a
leis psicofísicas.
Podemos por essa sugestão como princípio básico em que a informação (no mundo
atual) tem dois aspectos, um aspect físico e outro fenomênico. Sempre que há um
estado fenomênico, ele realiza um estado informacional, um estado informacional
que é também realizado no sistema cognitivo do cérebro. Reciprocamente, para pelo
menos alguns espaços informacionais fisicamente realizados, sempre um estado
45
No original: Physical realization is the most common way to think about information embedded in the world,
but it is not the only way information can be found. We can also find information realized in our
phenomenology. States of experience fall directly into information spaces in a natural way. There are natural
patterns of similarity and difference between fenomenal states, and these patterns yield the difference structure
of an information space. Thus we can see phenomenal states as realizing information states within those spaces.
46
No original: This treatment of information brings out a crucial link between the physical and the phenomenal:
whenever we find an information space realized phenomenally, we find the same information space realized
physically. And when an experience realizes an information state, the same information state is realized in the
experience’s physical substrate.
100
47
No original: We might put this by suggesting as a basic principle that information (in the actual world) has two
aspects, a physical and a phenomenal aspect. Wherever there is a phenomenal state, it realizes an information
state, an information state that is also realized in the cognitive system of the brain. Conversely, for at least some
physically realized information spaces, whenever an information state in that space is realized physically, it is
also realized phenomenally.
101
Essa informação que não é transmitida é a informação dos qualia. Essa é a intuição do
argumento do morcego de Nagel (2002) ou o argumento de Fred elaborado por Frank Jackson
(1982), mas que se o traduzimos num vocabulário informacional expressamos de forma mais
nítida a coisa do mundo que não se é acessada – e eliminamos qualquer impressão de que há
um compartilhamento de qualia a nível do reino dos animais, por exemplo. Além disso, se
utilizarmos uma visão informacional, também indicamos com mais nitidez que os qualia
fazem diferença (informativa) e, assim, que são coisas no mundo – a despeito de uma visão
que não lhes toma como fazendo diferença ou que lhes elimine.
Com este argumento queremos dizer que por mais que sejamos abertos cognitivamente
para uma teoria completa e unificadora da mente, que consigamos compreender o fenômeno
mental, isso não implica que sejamos abertos a todo tipo de informação. Vejamos em detalhes
nos dois pontos principais a seguir.
102
A ideia de que nós poderíamos conhecer toda a natureza é antiga. Nos termos de
Gadamer (2007), a filosofia basicamente se iniciou disso, um irrefreável desejo pela verdade,
pelo saber. Os filósofos buscavam o princípio (arché) que lhes faria compreender todas as
coisas. Foi só com o tempo e o desenvolvimento de inúmeros posicionamentos céticos que
esse otimismo foi diminuindo48. Ainda assim, vez e outra, esse afã surgiu na história49. Mas já
na modernidade esse ímpeto diminuiu com Hume (2009) e Kant (2013) mostrando limites em
nossa cognição. Entretanto, um levante contra a ideia de algo numênico a nós se deu por
várias frentes nos últimos tempos. Uma delas é a abertura cognitiva via noção de informação.
Aqui pretendemos dar apenas um esboço e certamente não fará justiça a esta posição50.
Nessa fala podemos ver a expressão que Barroso (2015a) chamou de intuição
estatística, dada a referência à mecânica estatística. O que nos leva a ver, como citamos em
Chalmers, uma realização da informação no mundo físico. A informação está em tudo e o
sujeito é um sistema imerso nessa informação, sendo perpassado por ela, sendo formado por
ela:
[...] pelo menos no que diz respeito a Wierner e aos que o seguem, eles fizeram da
informação uma grandeza física, tirando-a do domínio das transmissões de sinais
entre humanos. Se todo organismo é cercado de informações, isso acontece porque
há organização em toda parte ao seu redor, e essa organização, em razão até de sua
diferenciação, contém informação. A informação está na natureza, e a sua existência
é, portanto, independente da atividade desses doadores de sentido que são os
intérpretes humanos. É com base em concepções deste tipo que, na filosofia
cognitiva contemporânea, o filósofo americano Fred Dretske, engenheiro de
formação, propôs uma teoria naturalista e fisicalista da “intencionalidade”, que, de
todas as doutrinas hoje existentes, certamente é a que leva mais adiante o projeto de
Quine de uma “epistemologia naturalizada” [...] (DUPUY, 1996, p. 157)
48
Embora já Platão na antiguidade, ao entender filosofia como busca pelo saber e distingui-la da verdade,
mostrava a precariedade de nosso conhecimento – as aporias socráticas são exemplos disso. A verdade, nesse
sentido, estava reservada aos deuses. (CRUZ, 2016, p. 42)
49
Tito Lucrécio Caro, no helenismo filosófico romano, é um exemplo disso numa visão naturalista que pudesse
explicar toda a natureza, desmitificando a natureza e retirando o sobrenaturalismo usado pelos políticos de sua
época com objetivo de manipular o povo. Ver Da Natureza (1985).
50
Para um aprofundamento, sugerimos as seguintes leituras: Knowledge and Flow of Information (1981) e
Explaining Behavior – Reasons in a World of Causes (1988) de Fred Dretske.
103
Nessa esteira, teremos também o surgimento da visão it from bit, na qual a informação
é o elemento básico da física, e não matéria ou energia (SEIFE, 2007). Informação aqui
distinta da matéria, embora realizável nela. Uma vanguarda que se expressa na afirmação de
Norbert Wiener de que “Informação é informação, não matéria nem energia. Nenhum
materialismo que não admite isso pode sobreviver nos dias atuais” (WIENER, 1965 apud
GARDNER, 2003: 36).
Tendo essa visão até aqui, uma característica importante da informação é sua
realização em qualquer espaço da realidade. Sem muita dificuldade, sua realização em
qualquer sistema do espaço da realidade. Mas todo sistema é aberto a qualquer tipo de
informação? Sabemos, pelo menos até agora, que sistemas cognitivos como gatos não são
abertos para algumas informações que nós somos, por exemplo, as informações necessárias
para a compreensão da mecânica quântica. E nosso sistema cognitivo, é aberto a todo tipo de
informação? Podemos saber isso do nosso ponto de vista? Para responder isso, precisamos
antes entender a informatividade da forma de uma informação.
A ideia de que a forma da informação gera uma informação a mais nos mostra que
algumas informações não são acessíveis a certos sistemas. Esses sistemas são fechados para
essa informação. Essa é uma ideia de Barroso e que já expressei em outra discussão quando
defendia o caráter episódico51 da consciência fenomênica como característica essencial dos
qualia. Podemos entender essa informatividade da forma da informação em sistemas
cognitivos da seguinte maneira:
[...] quando o indivíduo é instanciado pela experiência consciente, ele tem um tipo
de informação em que parte dessa informação não é transformável no tipo de
informação verbal. Se o relato verbal é um veículo de informação, então é um
veículo de informação que não transporta o tipo de informação recebida pelo
indivíduo na experiência consciente. [...] De qualquer modo, a informação externa
do mundo que o indivíduo recebe de seus detectores perceptivos se apresenta não
apenas nas diferenças físicas de seu corpo, mas exibe uma forma para sua captação.
Essa forma da experiência consciente, essa forma fenomênica, que nos diz que o
verde que experimentamos não é a frequência de onda X detectada pelo nosso
aparato cognitivo, mas a sensação de verde exibida em nossa experiência
51
Na época usei termos como instanciação ou atualização ocorrente por falta de um termo que capturasse bem a
ideia, mas hoje concluo que a expressão “caráter episódico” captura melhor a ideia, a saber, de que a consciência
fenomênica é indexada no tempo (episódio) e essa é uma característica essencial dos qualia (CAETANO, 2015,
pp. 54-56).
104
Esse efeito epistêmico, nessa ideia de que a forma da informação sendo uma
informação a mais sobre a experiência que o indivíduo experimenta, fica claro nas palavras
de Barroso (2015) sobre a condição representacional:
[...] De modo geral, parece impossível que venhamos a saber algo sobre x através de
uma representação de x, se não dispusermos de nenhuma informação sobre a
estrutura representacional da representação de x. Isso significa que uma alegada
representação só pode entregar seu conteúdo informacional se pudermos apreender
alguma propriedade intrínseca da sua estrutura representacional. Vou chamar essa
condição em itálico de ‘condição representacional’. (p. 251-2, grifo do autor)
Barroso nos ilustra o exemplo de alguém que observa ‘Quarto de Arles’ de Van Gogh,
este indivíduo obtém informação sobre o objeto representado, o quarto, que seria um
conteúdo, mas também obtém informação sobre a estrutura representacional, nesse caso a
estrutura da pintura, como as cores vibrantes etc. (BARROSO, 2015, p. 251).
Resumidamente, “[...] não é possível obter informação sobre o conteúdo, se não tivermos
informação também sobre a estrutura representacional” (BARROSO, 2015, p. 251).
Assim sendo, temos que essa informação a mais não é acessada por outros sistemas,
como se segue em esclarecimento. Aquela informação realizada na estrutura representacional
daquele sistema cognitivo está delimitada a ele, outro sistema cognitivo não a obtém. Com
efeito, o fechamento cognitivo se mantém. Sistemas cognitivos são também sistemas
cognitivamente fechados. Embora isso não impeça que possamos compreender a mente numa
teoria completa e unificada. Por sua vez, compreender tal teoria não implica que temos acesso
a todo tipo de informação no mundo. E quando concluo que isso não é um problema para uma
teoria da consciência, fá-lo porque não está nos propósitos de uma teoria da consciência52
que, ao compreender a consciência, um sistema cognitivo tenha acesso a todas as informações
ocorrentes (em realização) de outro sistema cognitivo.
52
Falei sobre esses propósitos em Caetano (2015), também expressados por Chalmers (1997).
105
cognitivos são fechados a pelo menos alguma quantidade de informação 53. Conclusão 2 (da
Conclusão 1): Sistemas cognitivos são sistemas cognitivamente fechados.
Agora que temos delimitada essa reflexão sobre limites cognitivos, importa-nos
avaliar o lugar da concepção diante de um fechamento cognitivo informacional. É o que
faremos na próxima seção.
53
Aqui pode surgir o questionamento se os qualia podem ser considerados informação, posto que a informação
tem uma característica replicável, objetiva, e isso retiraria a subjetividade da noção de qualia. Penso que há duas
formas de ver essa situação. A primeira é na esteira da noção it from bit (a informação é a substância básica do
mundo), os qualia seriam informação porque tudo no universo é informação, isso não retiraria a subjetividade
dos qualia porque a subjetividade é a ideia de pertencer apenas o sujeito, portanto seria uma informação que se
realizaria situadamente apenas em um sistema cognitivo – seria informação e não perderia a subjetividade da
noção. A segunda forma de ver é a de entender que qualia não são informação, mas informativos, eles geram
informação para o sistema cognitivo portador de tal modo que esta informação não seja transmissível e, desse
modo, permaneça a característica subjetiva. Qualquer que seja a visão assumida, ela mantém os propósitos do
fluxo argumentativo que estou propondo. Por isso, não se faz necessária a discussão sobre a verdade da posição
it from bit.
106
Há algumas formas de uma pessoa obter um conceito. Ela pode ir ao dicionário com
objetivo de entender determinado conceito. Essa pessoa pode estipular uma nova palavra e
com ela se referir a outros conceitos já existentes, formando um conceito novo (uma
combinação) – uma parte do processo de criação de neologismos jaz aqui. Essa pessoa
também pode querer descrever um objeto e utiliza outros conceitos para isso (quando se diz
que ‘água é H2O’ por exemplo). Mas essa pessoa pode nem querer estipular, nem descrever e
nem saber o uso corrente (dicionário), ela pode querer explicar alguma coisa. Nos casos de
explicação de um conceito, diferentemente das outras formas, a pessoa não busca capturar
todos os aspectos do conteúdo mas algo razoável para um contexto de uso. Cada forma de
conceituar que exemplificamos corresponde a um tipo de definição, respectivamente,
definição de dicionário, definição estipulativa, definição descritiva e definição explicativa
(HEMPEL, 1974, pp. 109-10; GUPTA, 2015, seção 1).
As formas de formar um conceito para um indivíduo via definições não são apenas as
que enunciamos no parágrafo anterior. Todas as enunciadas têm uma característica importante
que gostaríamos de frisar, a saber, elas são formação de conceitos na base de outros conceitos.
Com efeito, se para formar um conceito nós utilizamos outros conceitos, parece que criamos
aí um ciclo vicioso em que para um indivíduo formar um conceito ele já precisa ter outros
conceitos formados. Ora, mas nós não nascemos com conceitos formados em nosso sistema
cognitivo54. Então como saímos desse ciclo vicioso? Em termos de definição, a solução dada
são as chamadas definições ostensivas. Esse é o nosso ponto de interesse.
54
Pelo menos não a maioria, o que quero dizer é que nós aprendemos muitos conceitos durante a vida, não
nascemos com todos os conceitos. Em geral, as defesas de conceitos inatos são conceitos muito gerais e
estruturantes, como conceitos lógicos, mas eles sozinhos não são suficientes para nos dar definições. Quero dizer
que, por mais que nasçamos com alguns conceitos inatos (conforme algumas visões filosóficas), não nascemos
com um vocabulário suficiente para formular definições – precisamos de mais que estes conceitos inatos.
55
Pronomes demonstrativos mostram essa função da linguagem (uma função cognitiva).
107
O que a observação da existência de definições ostensivas nos diz? Ela parece sugerir
que as nossas experiências subjetivas são fundamentais para a formação de conceitos – se não
todos, os basilares. Não queremos dizer com isso que a natureza do conceito é essa natureza
da experiência, o que poderia nos guiar para uma visão representacional de conceitos
necessariamente. Dizemos que a experiência é uma peça chave para a formação de conceitos,
ainda assim a experiência é uma coisa e o conceito é outra. Isso quer dizer que sem
experiência não há concepção56.
Aqui pode-se questionar, ou até mesmo objetar, com o seguinte: então zumbis
fenomênicos não concebem nada? A resposta que sugiro a essa questão é a seguinte: a
preocupação dessa reflexão é capturar como nós concebemos, não como zumbis fenomênicos
concebem (se concebem!). E se isso nos leva a dizer que, conforme essa análise da
concepção, zumbis fenomênicos não concebem – e é justamente o que se indica – isso não é
um problema para a análise proposta para a concepção, isso é um problema para os zumbis
fenomênicos e para quem quiser usar essa ideia de zumbis fenomênicos argumentativamente.
Se formos pautar nossa análise da concepção, dizer o que é concepção, preocupando-nos com
ajustar a concepção para que zumbis fenomênicos concebam, então sugiro que estaríamos
fazendo algo muito errado. Além disso, talvez essa análise da concepção seja suficiente para
nos mostrar que nós não concebemos um mundo zumbi fisicamente idêntico ao nosso, pois
um mundo em que os zumbis fenomênicos não concebem nada, certamente não é um mundo
fisicamente idêntico ao nosso (imagine se zumbis poderiam, por exemplo, agir no mundo
como nós agimos sem a capacidade conceptiva). De qualquer maneira, voltaremos ao
argumento dos zumbis no Capítulo VI – Consequências Filosóficas. Por fim, resumidamente,
isso não é um problema para essa análise e nem uma objeção, é um problema para zumbis e
seus argumentos. Prossigamos.
56
Ao menos no caso humano. Isso pode ser usado como argumento para dizer que uma inteligência artificial não
conceberia, mas também pode ser usado para dizer que uma inteligência artificial tem experiências reais, se
assumimos que ela apresenta concepção.
108
Tendo em vista tais observações, estamos munidos para ver o lugar da concepção nos
limites da cognição. É o que faremos na próxima subseção.
A visão de que há conceitos que mentes humanas não podem acessar não é tão
polêmica, é inclusive utilizada como argumento no debate sobre a ontologia de conceitos
(exatamente!). Por exemplo quando Peacocke (2005) defende que conceitos deveriam ser
compreendidos como condição de posse57 e não como tipo de representação mental:
Se nós aceitamos que a posse de um conceito deve ser realizada por algum estado
subpessoal envolvendo uma representação mental, por que não dizer simplesmente
que o conceito é a representação mental? [...] Representações mentais que são
conceitos poderiam mesmo ser tipificadas pela condição de posse correspondente do
modo que eu defendo. Isto me parece uma noção inteiramente legítima de um tipo
de representação mental; mas ela não é exatamente a noção de um conceito. Pode,
por exemplo, ser verdadeiro que haja conceitos que os seres humanos nunca possam
adquirir, por causa de suas limitações intelectuais ou porque o sol se expandirá para
erradicar a vida humana antes que os humanos alcancem um estágio em que eles
possam adquirir esses conceitos. “Há conceitos que nunca serão adquiridos” não
pode significar ou implicar “Há representações mentais que não são representações
57
Mais detalhes sobre essa argumentação em Margolis e Laurence (2014a).
109
Isso é também o que está em jogo quando Nagel (2002) nos convida a refletir como é
ser um morcego. Se pensarmos na hipótese da existência de formas de vida alienígena com
agência parecida com a dos animais terrestres e distintos sistemas cognitivos receptores, isso
nos leva a pensar sobre a gama de informatividade de formas de captar informação que não
temos acesso em nossa cognição humana. Essa informatividade, combinada com uma
capacidade de linguagem, daria base para o surgimento de conceitos para os quais somos
fechados cognitivamente. Conceitos dependem não só de linguagem, mas de formas de vida.
Quando colocamos essa questão cognitiva em termos de informação, temos uma visão mais
clara sobre as posições e argumentações (não sei se concordo).
Uma vez que há conceitos para os quais somos fechados cognitivamente, isso sugere
que não temos acesso irrestrito, via concepção, a todos os aspectos ou dimensões da realidade.
Não temos como afirmar que nosso sistema cognitivo captura todos os aspectos ou dimensões
da realidade, tais aspectos ou dimensões exigiriam uma informatividade a qual somos
fechados e, por isso, não temos como formar os conceitos chaves para compreender tal
aspecto ou dimensão.
Que insights podemos tirar disso para a nossa questão central sobre a concepção como
critério de possibilidade? Vejamos. Uma vez que a realidade está no domínio da ontologia, da
metafísica, e inclui a possibilidade, então isso sugeriria que não podemos asseverar que nossa
concepção abarca todo o domínio da possibilidade. Em outros termos, nem tudo que é
inconcebível é impossível, o que vai a favor de Levine (2002) quando ele argumenta contra
Kripke como vimos na subseção 1.1 deste capítulo. Assim como Patricia Churchland (1997)
também reivindica em favor do que o estudo da neurociência pode nos ensinar sobre a
consciência. Consequentemente, há possibilidades que nós não concebemos – pelo menos
possibilidades de combinações de experiências. Isso nos leva a concluir que o domínio da
possibilidade, no campo da metafísica, não coincide com o domínio da concepção, no campo
epistemológico, eles não são coextensivos.
Esse último insight parece ser crucial para nossa reflexão central. Então, a concepção
não é critério de possibilidade? Para uma resposta a essa questão, aprofundaremos essa
reflexão sobre a distinção dos domínios entre possibilidade e concepção. Além disso, veremos
110
3.3 Conclusão
Em posse das conclusões que elencamos no parágrafo anterior, o passo seguinte foi
avaliar o lugar da concepção dentro da cognição em geral. Conseguintemente, chegamos a
outras conclusões importantes. A conclusão central é a de que há um fechamento cognitivo
informacional, ou seja, nem todo tipo de informação é captável por um sistema cognitivo.
Para isso, vimos a noção de fechamento cognitivo surgir do debate sobre o problema mente-
corpo na filosofia da mente contemporânea. Vimos que os otimismos cognitivos assumidos
por uma neurofilosofia do materialismo eliminativo e pelo método natural não eram
suficientes para eliminar o fechamento cognitivo em questão. Contudo, uma visão sobre a
informação poderia nos abrir cognitivamente para uma teoria completa da mente. Embora
pudéssemos ser abertos a uma teoria completa da mente, isso não implicava que teríamos
acesso a todos os tipos de informação, essa foi nossa conclusão ao perceber a informatividade
da forma da informação. Com isso, vimos que a informatividade da forma da informação
recebida por um sistema cognitivo A não é acessível a um sistema cognitivo B, o que nos leva
ao fechamento cognitivo informacional. À vista disso, seguimos para a compreensão do lugar
da concepção dentro dos limites cognitivos. Nesse sentido, ao avaliar o processo de
formação/obtenção de conceitos, concluímos que as experiências são fundamentais para a
atividade de concepção de um sistema cognitivo, com isso a informatividade da forma da
informação é fundamental para a economia cognitiva de tal atividade conceptual. Uma vez
que já havíamos concluído que há informatividade de formas de informação as quais somos
fechados cognitivamente, há também conceitos virtuais que são formados com base nelas e
que, por conseguinte, somos fechados cognitivamente. Em conclusão, via concepção, não
temos acesso irrestrito a todos os aspectos ou dimensões da realidade. Uma vez que a
possibilidade está no domínio da realidade e nossa concepção não nos dá acesso irrestrito ao
domínio da realidade, então não podemos asseverar que o que é inconcebível é impossível – o
fato de algo ser inconcebível fala sobre nossas capacidades cognitivas conceptuais, não da
realidade além capacidade cognitiva conceptual. Além disso, também concluímos que há
possibilidade que não concebemos, possibilidades que se aplicam à concepção de cenários
113
(cenários baseados em uma informatividade inacessível a nós). Por fim, a conclusão crucial
que chegamos é a de que os domínios da possibilidade e da conceptibilidade não são
coextensivos.
Utilizemos a teoria dos conjuntos para analisar as relações entre os dois domínios. Se a
concepção for um critério epistemológico necessário e suficiente para a possibilidade, ou seja,
que a concepção e apenas a concepção implique a possibilidade, então isso significa que todo
elemento do domínio da concepção é um elemento do domínio da possibilidade e todo
elemento do domínio da possibilidade é um elemento do domínio da concepção. Isso nos
daria o seguinte diagrama de relação concepção-possibilidade (Diagrama CP):
116
Diagrama CP1:
Conforme CP1, temos a coextensão entre os domínios, mas distintas intensões dos
domínios. Todavia, a nossa reflexão até agora sugere que os dois domínios não são
coextensivos e, por conseguinte, sugerem outro diagrama para a relação. Ora, se a relação
problemática está na relação inconcebível-impossível, de que o inconcebível não implica o
impossível, então parece que temos um diagrama como o seguinte:
Diagrama CP2:
Domínio possibilidade
Domínio
concepção
Contudo, há uma outra visão relevante sobre a relação entre domínios, a de que são
domínios relacionados sem que haja uma relação de continência. Essa é a visão de Beziau
(2015, p. 2) quando sugere que possibilidade e concepção são noções relacionadas, mas
independentes. Tal sugestão nos indicaria um diagrama como o que se segue:
Diagrama CP3:
Dado nosso objetivo, portanto, precisaremos avaliar essa sugestão de CP358, afinal ela
parece demonstrar mais dificuldade ainda para a resposta da concepção como critério de
possibilidade. Faremos isso em duas etapas, primeiro avaliaremos as razões de Beziau para
CP3, em seguida avaliaremos se a não implicação do impossível pelo inconcebível é
suficiente para nos levar de CP2 a CP3, ou seja, se é suficiente para a não continência.
58
As relações de domínio não se resumem a CP1, CP2 e CP3. Alguém pode sugerir CP4, em que não há
nenhuma intersecção entre os domínios, são totalmente independentes. Ora, a concepção de CP4 é ela própria
um exemplo de que há uma intersecção, afinal, é a relação entre a concepção de CP4 e a possibilidade de
concepção de CP4, assim, temos pelo menos um elemento concebível e possível. Em vista disso, não elencamos
CP4 entre as relações relevantes.
118
suficientes para o que se propõe, ou seja, não são exemplos prototípicos do que se quer. Isso
ocorre, sugiro mais a frente, porque não são boas razões as que sustentam tais exemplos.
Entretanto, reflitamos sobre eles e suas razões inicialmente.
Uma vez que o caso 1) é bastante simples, não nos demoraremos nele. Pense na
concepção de um conceito qualquer, ela já lhe dá pelo menos uma possibilidade no mundo, a
saber, a possibilidade de conceber esse conceito qualquer. Isso se dá pelo princípio ab esse ad
posse: se algo é o caso, então algo é possível. Dessa forma, se concebo um conceito, então o
conceito é uma coisa possível enquanto conceito. Não estou dizendo que se concebo um
conceito, então a coisa expressada pelo conceito é possível ou mesmo que exista de outra
forma que não enquanto objeto concebido. Pois se assim o fosse, só o fato de conceber
PÉGASUS já implicaria a existência de pégasus além de pégasus enquanto objeto concebido.
Não é isso. Mas a simples razão que há pelo menos uma intersecção entre os domínios de
concepção e possibilidade, pois conceitos, quando concebidos, são possíveis enquanto
concebidos. Por exemplo, quando você concebe o conceito CARRO, você concebe a
possibilidade de conceber o conceito CARRO. CARRO é algo concebível (conceber CARRO
nos mostra isso) e CARRO é possível (conceber CARRO nos mostra isso). De outra forma,
para utilizar o exemplo de Beziau, pense numa omelete. Uma omelete é algo concebível (uma
receita de omelete nos mostra isso) e uma omelete é algo possível (fazer uma omelete nos
mostra isso). Deste modo, nossas atenções se voltaram para os casos 2) e 3). Vejamos, assim,
os exemplos prototípicos e as razões de vê-los como exemplos de tais casos.
concebível e impossível é dizer que temos como colocá-la em conceito, mas ela não ocorre na
totalidade da existência59. Conceber a contradição é conceber o impossível.
Continuando o raciocínio, Beziau (2015, pp. 11-12) nos sugere outros exemplos do
tipo. Uma linha reta curvada, um objeto contraditório, é algo concebível e impossível (além
disso, inimaginável). Objetos contrários também seguem essa esteira. Um quadrado-redondo,
por exemplo, é um objeto contrário e, por isso, concebível e impossível.
Tais objetos são ditos concebíveis porque são definíveis, e são impossíveis porque a
proposição (ou sentença) que os expressa não pode ser verdadeira (porque os dois predicados
formadores do predicado composto não podem ser verdadeiros conjuntamente). Essa é a
intuição que perpassa tal raciocínio e que nos diz exemplos de coisas concebíveis e
impossíveis.
Algo possível (até imaginável), mas não concebível, num exemplo simples, é uma
árvore particular (BEZIAU, 2015, pp.16-17). Ela é possível, porque ela acontece. É até
imaginável, porque sua imagem nos aparece, mas não é concebível, porque não temos uma
59
Utilizo a expressão totalidade da existência no sentido de o conjunto de tudo que é o caso e tudo que é
possível de ser o caso. Não utilizo o termo realidade, que seria cabível, porque é um termo filosoficamente
carregado e gostaria de não comprometer a ideia com essa carga.
120
teoria que a explique em sua totalidade. Não temos uma teoria que a explique em sua
totalidade particular porque a biologia nos dá uma concepção parcial da essência da árvore
através de uma tipificação/classificação, características gerais. Isso significa dizer que o
conceito ÁRVORE não é o suficiente para conceber uma árvore que esteja na sua frente. Se
for ela uma laranjeira, o conceito LARANJEIRA, ainda não lhe dará a totalidade daquela
árvore em particular. Se você utilizar todo o conhecimento botânico atual e formar um
conceito estruturado gigantesco para conceber o que você puder conceber sobre tal árvore,
ainda assim você não coloca em um conceito sua totalidade única. Mesmo que você formule
um conceito indexical do tipo ESTA ÁRVORE EM MINHA FRENTE, este conceito não
captura a totalidade da árvore em particular, pois este conceito será formado pelas
experiências que você tem dessa árvore em particular, e suas experiências da árvore em
particular lhe dão aspectos dela, não a sua totalidade arbórea. Esta é uma visão bem
impressionista do caso, mas não é a mais. Vejamos outro exemplo em que nem mesmo
imaginar, como imaginamos a árvore em nossa frente, nós conseguimos.
60
Misterioso aqui é usado no sentido comum, não é no sentido de Chomsky ou McGinn, em que temos um
problema que não pode ser resolvido por nossa cognição.
121
A conclusão que se segue, conforme Beziau, é que se estes exemplos são exemplos de
1) elementos concebíveis e impossíveis, e 2) possíveis e inconcebíveis, então as noções de
concepção e possibilidade são independentes, nenhuma está contida na outra, e formam um
diagrama do tipo CP3 (dado que há coisas concebíveis e possíveis). O que avaliaremos agora
é se os exemplos dados por Beziau são realmente exemplos de 1) e 2). Em seguida,
retornaremos à conclusão que nos fez chegar ao diagrama CP2 e veremos se ela é suficiente
para nos levar ao diagrama CP3. Com isso, concluir se somos levados ao diagrama CP3 ou se
só podemos estabelecer CP2. Por fim, veremos se isso nos indica que a resposta da concepção
é ou não critério de possibilidade.
verdadeiras conjuntamente e nem são falsas conjuntamente. Não temos nenhuma contradição
conceptual, como vimos anteriormente, nesse caso. Os conceitos não se excluem de forma a
se anular, eles se combinam justamente para explicar a ideia de exclusão61. Há
informatividade em cada um dos conceitos (AFIRMAR, NEGAR, EXCLUSÃO MÚTUA DO
VALOR DE VERDADE, CONJUNÇÃO) e a relação que eles fazem nos informa sobre a
ideia de exclusão que é a contradição. Contradição é simplesmente dizer e desdizer, e você
provavelmente entende o que seja isso62. É o mesmo que se passa na ideia de contradição
conceptual, não há contradição conceptual no conceito CONTRADIÇÃO CONCEPTUAL.
Em outros termos, contradições63 são conceitos informativos.
Por outro lado, há a afirmação de que uma contradição é impossível. Penso que um
contra-exemplo é o melhor para mostrar que algo não é impossível. Considere: Alice é
solteira, mas não é solteira. O que eu disse agora foi uma contradição. Nesse caso uma
explícita. Contradições ocorrem a toda hora nos discursos. Nós podemos identifica-lás e dizer:
ei, isso é uma contradição! Não há nenhum impedimento ontológico que não deixe que um
indivíduo incorra numa contradição. Nada no mundo impede que um indivíduo enuncie uma
contradição. Ora, se contradições ocorrem no mundo, são enunciadas no mundo, logo, são
possíveis. Todavia alguém pode objetar que quando se diz que contradições não ocorrem na
realidade, quer-se dizer que não ocorre o que elas declaram, por exemplo, de Alice ser e não
ser solteira. Mas esse o que elas declaram é a proposição “expressa” pela contradição dita por
alguém; entretanto, esse o que elas declaram são os objetos os quais as contradições se
referem, rigorosamente falando. Se tomamos contradições pelos objetos os quais elas se
referem, haveria distinção entre contradições e objetos contraditórios? Parece que não. Sendo
assim, tomar as contradições pelos objetos os quais elas se referem nos levaria a confundir
contradições e objetos contraditórios – aparentemente, há um impedimento ontológico para
objetos contraditórios, mas não para contradições. E, assim, uma contradição não é um
exemplo prototípico de um caso de algo concebível e impossível, mas um exemplo de algo
concebível e possível.
Penso que o fato de se pensar que contradições são impossíveis, que não ocorrem no
mundo, é o fato de confundir contradições com objetos contraditórios. Uma coisa é a
61
Aqui não devemos confundir a definição de contradição com um exemplo de contradição, o que se diz é que
não há nenhuma contradição na definição de contradição.
62
Não estou a dizer que você entende o que foi dito e destito (conteúdo da contradição), mas que você entende o
que é dizer e desdizer.
63
Contradição lógica e contradição conceptual.
123
contradição, outra é o objeto contraditório. Você entende (há conceito) o que seja dizer e
desdizer, mas você não entende (não há) o que foi dito. O que foi dito é o objeto contraditório,
o dizer e desdizer é a contradição. É justamente por isso que nós conseguimos conceber a
contradição, mas não conseguimos conceber uma contradição (um objeto contraditório).
Dessa forma, quando dizemos que vemos várias contradições no mundo, é porque inúmeras
vezes vemos ditos e desditos. Isso não significa que encontramos objetos contraditórios no
mundo64. Isso ficará mais claro ao analisarmos os outros dois exemplos prototípicos, objetos
contraditórios e objetos contrários.
64
A não ser que consideremos um discurso (contraditório) como um objeto (contraditório).
65
O mesmo se segue para uma linha reta curvada.
124
exemplos prototípicos de algo concebível e impossível, uma vez que são inconcebíveis.
Quanto a impossibilidade deles, retornaremos a isso no capítulo VI – Consequências
filosóficas, no ponto sobre uma metafísica de objetos contraditórios e objetos contrários.
Uma vez esclarecida e retirada a confusão entre contradição e objeto contraditório, por
um lado, e contrariedade e objeto contrário por outro, além disso, retirada a confusão entre
definir e conceber através da distinção, concluímos que os exemplos dados não são exemplos
prototípicos de elementos concebíveis e impossíveis – uns por serem possíveis (contradições e
contrariedades) e os outros por serem inconcebíveis (objetos contraditórios e objetos
contrários). Dessa maneira, não conseguimos estabelecer a relação concebível-impossível por
essa via. Vejamos agora os exemplos prototípicos da relação possível-inconcebível.
Árvore particular, realidade, vida e morte, não são exemplos prototípicos de coisas
possíveis e inconcebíveis. Como perceber dessa maneira? Compreendendo que não termos
66
Definiens e definiendum são partes (relatas) de uma relação, a relação de definição, onde definiens é a
expressão a definir algo e definiendum a expressão a ser definida.
125
uma teoria (científica67) para embasar um conceito não implica que não concebamos algo68.
Isso seria pressupor que para avaliarmos a resposta da concepção, deveríamos avaliar a
resposta da teoria (ver capítulo III, seção 1.2, Concepção e Teoria). O fato da biologia ou da
física não nos darem um conceito bem definido de uma árvore particular, da realidade, de vida
e de morte, não implica que nós não concebamos tais coisas. Nós temos experiências dessas
coisas69 no mundo atual, temos conceitos sobre essas experiências, combinamos
determinadamente esses conceitos, muito embora não tenhamos uma teoria científica
biológica que nos dê conceitos a seu tipo. Mesmo sem teorias do tipo, nós operamos com tais
conceitos no mundo. As nossas experiências do fenômeno da morte no mundo, por exemplo,
através de observar outros organismos morrendo, nos dão informações suficientes para pelo
menos uma definição explicativa utilizável contextualmente. Não havendo contradição
conceptual nessa definição explicativa, então temos a concepção do conceito MORTE. O
mesmo serve para o conceito de REALIDADE, VIDA e o da TOTALIDADE DA ÁRVORE
PARTICULAR. Estes exemplos podem ser problemáticos para a resposta da teoria, não da
concepção. Nesse sentido, seriam exemplos prototípicos de coisas possíveis embora não
teorizáveis (ou pelo menos não teorizadas até o momento).
Esses exemplos podem até mostrar que estão além da nossa imaginação ou teorização,
mas não da concepção. Em conclusão, não estabelecemos com esses exemplos algo possível e
inconcebível. Só conseguimos estabelecer algo do tipo através da conclusão que tivemos no
capítulo IV com o fechamento cognitivo informacional.
Há outra via de mostrar a independência das noções. É uma via de reflexão que
podemos tirar do famoso problema dos futuros contingentes. Do embate sobre os futuros
contingentes podemos ver algo concebível e impossível. Se estabelecermos isso,
estabelecemos a independência.
67
Conforme as teorias consideradas por Beziau (2015).
68
Aqui é importante frisar a distinção entre a resposta da concepção e a resposta da teoria para o problema do
critério de possibilidade. Embora a resposta da teoria pressuponha a da concepção, o contrário não ocorre.
Podemos conceber, mesmo sem ter uma teoria (formal) em que aquele conceito é expressado.
69
Embora as experiências sejam sempre parciais. No exemplo da realidade, sempre experimentamos de acordo
com uma localização no espaço e no tempo, dessas experiências inferimos a conjunção de todas elas e,
continuando, inferimos a REALIDADE.
126
seara tão ou mais fluída e mais serpenteante que o rio de Heráclito, tenhamos atenção para
algo surreal a seguir.
[...] pode-se dizer que p é uma verdade necessária se, e somente se, p é verdadeira
em todos os mundos possíveis. Os mundos possíveis são modos como as coisas
podem ser. (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 536)
Em vista disso, quando usamos a semântica dos mundos possíveis para definir a
necessidade, o que estamos a fazer é dizer, traduzindo em pressupostos a definição anterior, o
seguinte: pode-se dizer que p é uma verdade necessária se, e somente se, p é verdadeira em
todos os mundos concebíveis. Mundos concebíveis são modos como as coisas podem ser.
Isso é o que se quer dizer ao final de contas, não apenas que mundos concebíveis são
modos como podemos conceber as coisas, mas modos como as coisas realmente podem ser.
Isso está pressuposto nessa definição70.
A necessidade não é concebível. Uma vez que a necessidade é definida por uma
verdade em todos os mundos possíveis, mas chegamos a mundos possíveis através de mundos
concebíveis, e existem mundos possíveis que são mundos inconcebíveis, portanto, não temos
acesso a todos os mundos possíveis e, consequentemente, não temos acesso à necessidade.
Logo, a necessidade é inconcebível72. Veja que não adianta usar a tese da designação rígida
de Kripke (1980) para sustentar que se quisermos manter rígida uma designação então temos
algumas necessidades sem precisar listar extensionalmente todos os mundos possíveis. Esta
70
Essa é uma razão pela qual a noção de mundo possível na semântica dos mundos possíveis não nos ajuda em
saber o critério para se saber o que realmente é possível em sentido absoluto. Uma vez que compreendemos
mundos possíveis como estados de coisas maximamente determinados e consistentes, já pressupomos a
concepção nesse método e também já assumimos noções de possibilidade relativa (ideia de consistência).
71
É dessa ideia, também, que se chega a um essencialismo. Há uma contradição conceptual em dizer que
Sócrates poderia ter sido um cartão de crédito, mas não há uma contradição lógica estrita em dizer que Sócrates
poderia ter sido um cartão de crédito. Isso porque a ideia de designador rígido de Kripke está em acordo com o
que apresentamos sobre exclusão mútua de conceitos, o conceito SÓCRATES se exclui mutuamente com o
conceito CARTÃO DE CRÉDITO quando se tenta estabelecer uma relação de identidade – assim, nós não
concebemos Sócrates como cartão de crédito (apenas combinamos símbolos). Ou seja, se quisermos manter o
conceito SÓCRATES e modaliza-lo, aplicar em sua identidade o conceito CARTÃO DE CRÉDITO nos faz não
falar de SÓCRATES. Em termos de designação rígida, se quisermos falar do Sócrates atual, temos de levar em
conta suas propriedades essenciais para modaliza-lo, caso contrário podemos falar de outro objeto designado,
não do Sócrates que o designador rígido designa.
72
Há um fechamento cognitivo aqui: somos fechados cognitivamente para a necessidade no mundo para além de
uma categoria cognitiva. Isso significa que não temos como não conceber de forma necessária alguma coisa, ou
seja, somos fechados cognitivamente para negar a necessidade em nossa concepção, mas por outro lado somos
fechados cognitivamente para a necessidade no mundo além da concepção. Resumidamente, a necessidade
extramental é inconcebível.
129
tese pressupõe que por ser inconcebível falar sobre determinadas possibilidades de um objeto
designado rigidamente, então é impossível aquele objeto, enquanto ele mesmo, não ter
determinadas possibilidades. Este procedimento lógico de capturar a necessidade também
pressupõe a ideia de que tiramos o impossível do inconcebível. Tome o exemplo de Sócrates:
é impossível Sócrates não ser um ser humano porque é inconcebível Sócrates não ser um ser
humano; consequentemente, é necessário que Sócrates seja um ser humano com base na
afirmação de que do inconcebível implicamos o impossível. Não há um procedimento lógico
para se estabelecer a necessidade que não pressuponha que do inconcebível se implica o
impossível ou que em sua formulação de raciocínio e justificação não pressuponha isso; isso
se dá porque a forma intuitivamente que conhecemos o impossível é através do inconcebível a
nós, e só chegamos à necessidade através da noção de impossibilidade. Sendo assim, para
argumentar contra a consequência de que a necessidade é inconcebível, deve-se argumentar
sem pressupor, em algum nível de análise, que o impossível é dado pelo inconcebível. Pois se
isso é pressuposto, nós perdemos essa argumentação da mesma forma que perdemos a
necessidade. O que estou apontando é que quando perdemos o critério de impossibilidade,
quando não sabemos dizer o que é impossível, o que dá o limite, então nós perdemos nossos
conceitos mais basilares. Vejamos o que mais perdemos.
Uma outra conclusão é a seguinte: a semântica dos mundos possíveis não é suficiente
para uma necessidade metafísica, apenas para uma necessidade epistêmica situada. O que
significa isso? Significa que se há uma distinção entre mundos concebíveis e mundos
possíveis, dada através da negação do par inconcebível-impossível, então uma avaliação da
necessidade em termos de mundos concebíveis nos leva apenas a uma conclusão sobre as
nossas capacidades cognitivas, não a uma conclusão sobre a modalidade do mundo. Esta
conclusão sobre nossas capacidades cognitivas é essa necessidade epistêmica situada, isto é,
concluímos apenas que é necessário que concebamos algo sempre de determinada forma, mas
isso não implica em nada sobre o algo do mundo (apenas o algo-para-nós). A necessidade é
epistêmica porque não fala do mundo (mas do conceber) e é situada porque fala apenas da
nossa capacidade cognitiva de concepção.
Se não temos como dizer do mundo que alguma coisa é necessária, quais
consequências temos? Temos a consequência de não termos como dizer que uma relação de
identidade é uma relação necessária. Tome um exemplo, quando dizemos que 1 é igual a 1.
Algo extremamente simples, um objeto é o que é. O que fazemos para testar essa identidade?
Perguntamos, 1 poderia não ser 1? Um objeto poderia não ser o que é? Em resposta temos,
130
não temos como conceber que 1 não seja 1, logo, necessariamente 1 é igual a 1. O que quer
dizer que é impossível que 1 seja diferente de 1. Ora, o fato de ser inconcebível não implica o
fato de ser impossível, de outra maneira, o fato de ser inconcebível não implica a necessidade,
assim, o fato de ser inconcebível não nos diz que uma identidade é necessária.
Provavelmente o leitor esteja achando tudo isso absurdo! Mas o que concluir disso? A
conclusão que temos é que se a concepção for o critério de possibilidade, só nos resta assumir
o surrealismo filosófico. Se não queremos ser surrealistas, então temos de assumir que a
concepção não é critério de possibilidade. Isso é o que sugiro momentaneamente, que, em
verdade, a concepção não é a resposta correta para o problema do critério de possibilidade.
131
Isso implica que não temos como saber qual seja o critério de possibilidade e, assim,
tenhamos de assumir tal surrealismo? Não. Ora, vimos inicialmente que não temos condições
suficientes de sustentar tal coisa, afinal há várias outras respostas além da concepção e duas
visões gerais sobre tais respostas. Para sustentar que só temos o surrealismo filosófico,
teríamos de avaliar e concluir negativamente para todas as outras respostas ao problema do
critério de possibilidade.
Não obstante, a despeito de minha sugestão, há outra a qual diz que a concepção é um
bom guia para a possibilidade. Com intuito de termos uma resposta sólida além da negativa
que demos momentaneamente, vejamos na seção seguinte a visão de sustentar a concepção
como um bom guia e confrontemos as suas razões com o que refletimos até agora.
Há vários filósofos que sustentam a posição de que a concepção é um bom guia para a
possibilidade, contudo, tomaremos essa posição da forma como David J. Chalmers a sustenta
em Does conceivability entail possibility? (2002). O objetivo geral dessa seção é apresentar
essa argumentação e confrontá-la com as reflexões que tivemos até agora.
Conceptibilidade Prima Facie: x é concebível de forma prima facie quando, dada uma
noção substantiva de conceptibilidade, em primeira impressão, x passa no teste da noção
substantiva de conceptibilidade.
resultado do jogo da noite anterior entre Ferroviário e Ceará. Não obstante, pelo que conhece
de seu vizinho, Douglas passa a acreditar que o Ferroviário ganhou do Ceará no jogo da noite
anterior. Isso significa que Douglas formulou a seguinte crença p: o Ferroviário venceu o
Ceará no jogo de ontem. Contudo, ao chegar do trabalho a noite, Douglas vê o telejornal que
transmite os gols, os melhores momentos e o resultado do jogo anterior, com o seguinte
resultado: o Ceará venceu o Ferroviário por um placar de 1 a 0 no jogo de ontem. Nesse
momento, Douglas formula a crença ¬p, não é o caso que o Ferroviário venceu o Ceará no
jogo de ontem. Isso significa que a nova crença, ¬p, anulou a crença anterior, p, em outros
termos, a nova crença assumida como verdadeira tornou falsa a crença anterior. Isso é um
caso de anulação e ¬p foi um anulador para p. Há vários tipos de anuladores e de anulação,
mas a ideia central é essa e, além disso, essa é a ideia que precisamos para compreender o que
Chalmers diz quando fala de uma justificativa não anulável por uma melhor razão. Nesse
sentido, significa dizer que não há uma melhor razão que nos dê um anulador para a
concepção que tivemos de algo (conceptibilidade ideal). O que seja uma melhor razão,
contudo, é algo que, conforme Chalmers, deve ficar em aberto – não é necessário para a
compreensão da conceptibilidade ideal.
A imaginação modal, contudo, já é introduzida por Chalmers (2002, pp. 151-3) para a
compreensão distinta da conceptibilidade. Entende-se por imaginação modal uma imaginação
de uma configuração do mundo diferente da atual, tanto na sua visão perceptual como em sua
ontologia. É nesse sentido que se imagina um mundo de zumbis fenomênicos, um mundo
perceptualmente idêntico ao nosso, mas em que os indivíduos não possuam qualidade em suas
experiências subjetivas. Nós não temos uma imaginação perceptual disso: qual seria a
diferença de imaginar um mundo igual ao atual? Nenhuma. Por isso se diz que é uma
imaginação modal. Essa imaginação modal vai além da imaginação perceptual. Aqui temos
uma intuição parecida com os mundos possíveis epistêmicos que formulamos na seção 2.1.1
(cenários como mundos possíveis epistêmicos) do capítulo III. A diferença, contudo, é que
Chalmers inicia com a noção de imaginação e para falar de algo além da imaginação
permanece com a noção de imaginação, de forma que a concepção desses cenários seja um
ato da imaginação e, assim, a imaginação seria apenas uma parte da atividade cognitiva de
concepção. Ele o faz porque sustenta que uma imaginação modal é um ato mental distinto de
conceber (entertaining) uma proposição que descreva o que se está a imaginar modalmente73,
73
Conforme vimos na seção 1.1 (concepção e imaginação) e na seção 1.7 (conclusão: a concepção não encerra
a cognição) do capítulo III, não deveríamos confundir imaginação com concepção. Voltaremos a esse ponto na
próxima subseção.
135
pois isso não trivializa a concepção de qualquer proposição apenas pela formulação da
proposição. Falaremos mais sobre isso na próxima subseção, isso é o suficiente para expressar
os tipos de conceptibilidade a seguir.
Compreendidas essas duas noções, seguiremos para a exposição dos oito tipos de
conceptibilidade.
nossos conhecimentos a priori ou a posteriori contradiz isso, nem temos razões melhores para
pensar o contrário). Exemplo de não-concepção: uma viagem interestelar numa espaçonave
através de um buraco de minhoca (conhecimentos a posteriori em engenharia indicam que
não temos um projeto do que seria uma espaçonave capaz de tal viagem).
Dadas essas oito formas de conceptibilidade, sem uma relação trivial com a
possibilidade, vejamos, portanto, o tipo que seja o guia para a possibilidade e livre de contra-
exemplos.
(i) A dimensão ideal é um melhor guia que a dimensão prima facie. Há uma razão
simples para isso, a de que as coisas que concebemos prima facie em geral podem esconder
contradições as quais não percebemos, assim, uma concepção ideal é a melhor forma de
termos acesso à possibilidade. Ora, dessa forma teríamos justificativa não anulável por uma
melhor razão. Tome o exemplo de alguém que não sabe que Ricardo Reis é Fernando Pessoa.
Esta pessoa lê poemas de Ricardo Reis e também poemas de Fernando Pessoa, essa pessoa
gosta dos poemas a ponto de tê-los como preferidos, mas quando perguntada qual seu poeta
preferido, essa pessoa responde que seus poetas preferidos são Ricardo Reis e Fernando
Pessoa. Essa pessoa concebe prima facie que Fernando Pessoa não é Ricardo Reis. Com o
tempo, essa pessoa descobre que Ricardo Reis é, na verdade, um heterônimo usado por
Fernando Pessoa. Assim, essa pessoa passa a ter um anulador para sua crença antiga de que
Fernando Pessoa não é Ricardo Reis. Nós diríamos, com isso, que esta pessoa concebia a
possibilidade de Fernando Pessoa não ser Fernando Pessoa? Não. Fernando Pessoa não ser
74
Possibilidade no sentido que frisamos na primeira parte de nossa investigação, uma possibilidade metafísica
num sentido absoluto. Chalmers (2002, p. 171) afirma que essa conceptibilidade nos guia para uma possibilidade
primária. É feita, dessa forma, uma distinção entre possibilidade primária e secundária. Não assumiremos essa
distinção aqui, pois o que é dito como possibilidade secundária é o que vimos como possibilidade física em
sentido contrafactual. Portanto, pelas razões que refletimos nos capítulos I e II, a possibilidade que buscamos não
se distingue em primária e secundária.
138
(iii) A dimensão primária é melhor guia que a dimensão secundária. Alguns poderiam
argumentar que esse não é o caso, que a dimensão secundária é um melhor guia porque ela
não nos leva ao equívoco de conceber que água não seja H2O, ao passo que a dimensão
primária nos leva a conceber que água não seja H2O. Uma vez que água seja H2O é
verdadeiro, e relações de identidade são necessárias, que água seja H2O é necessário e, dessa
forma, conceber que água não seja H2O nos leva a conceber uma impossibilidade, não uma
75
Veja que isso ocorre num caso de concepção prima facie negativa, um caso de concepção ideal negativa não
ocorre. Pois, nesse caso temos razões melhores para não assumir essa concepção, justamente a razão da
indeterminação do valor de verdade.
76
Chalmers sugere que a dimensão negativa é um bom guia para situações determinadas, não indeterminadas
como esse exemplo. Proponho que esta sugestão pressupõe o que se quer provar – uma petição de princípio.
Uma vez que é um método para nos levar ao conhecimento de uma possibilidade, mas pressupõe que já
tenhamos conhecimento da possibilidade (conhecimento da determinação) para que possamos conhecer a
possibilidade (ser um bom guia de conhecimento). É uma solução evidentemente ad hoc. Por isso, a dimensão
negativa é falha e não é suficientemente boa como a dimensão positiva.
139
de acordo com aquilo que conhecemos que preenche os oceanos e mares (em assim por
diante) ser XYZ77. Essa dimensão primária está de acordo, por exemplo, com a possibilidade
de que nada exista, afinal não é a priori que algo exista78. Isso está de acordo com as
operações que podemos fazer mentalmente através da atividade cognitiva da concepção, por
exemplo, conceber água sem ser H2O. Aliás, isso pode nos informar ainda mais sobre a
natureza da possibilidade se estiver correto. Por outro lado, afirmar que essa dimensão é
problemática apelando para as razões dos usos de linguagem e sua análise conforme Kripke
(designadores rígidos), assumindo assim um essencialismo, não é suficiente porque a
linguagem não é um dado a priori. Tratar a metafísica da modalidade pelo funcionamento de
nossa linguagem é assumir que a metafísica se resume a nossa linguagem (isso não é nada
óbvio79!). Devemos lembrar, conforme frisamos na primeira parte de nossa investigação, a
modalidade é algo do mundo além de nós também, não apenas algo nosso, ao menos é essa
nossa intenção ao falar de modalidade – não temos como assumir a concepção contrafactual
como guia para a possibilidade sem trivializar a relação concepção-possibilidade (pressupô-
la!). Em conclusão, a dimensão primária da conceptibilidade é um melhor guia à
possibilidade.
Essas são as razões que mostram que a conceptibilidade positiva ideal primária é um
bom guia para a possibilidade. Além disso, um guia sem contra-exemplos, conforme
analisamos os maiores adversários para a conceptibilidade, tais como determinados
enunciados matemáticos e identidades empíricas. Segundo esse raciocínio, parece que a
concepção nos dá a possibilidade, diferentemente do que havíamos concluído até agora. Será
então que essa visão de concepção é suficiente para se contrapor e superar as conclusões
anteriores que nos indicavam o contrário? É o que veremos na próxima subseção.
Alguns casos de inconceptibilidade são tratados por Chalmers (2002, pp. 186-9) e
rechaçados como exemplos de inconceptibilidade de coisas possíveis, dentre eles a razão que
nos levou à informatividade da forma da informação no âmbito fenomênico e que nos fez
77
O método de concepção contrafactual talvez seja um método útil se quisermos falar de possibilidade relativa
(tais como a física e a metafísica essencialista), mas possibilidade metafísica num sentido absoluto o qual vimos
na primeira parte de nossa investigação, não.
78
Isso está de acordo com a intuição de um conjunto vazio como para a concepção de um mundo.
79
E é provável que seja falso (dadas as nossas limitações cognitivas).
141
sustentar algo possível e inconcebível. Dessa forma, se a argumentação para rechaçar este
caso estiver correta, isso rechaçaria todas as conclusões negativas que tivemos até agora. A
defesa para que os casos dessas possibilidades não sejam inconcebíveis se sustenta na noção
de conceptibilidade ideal. Vejamos como podemos formular uma argumentação que elimine a
negação do par inconcebível-impossível.
O argumento proposto por Chalmers defende que tais coisas não são inconcebíveis.
Não são inconcebíveis porque a dimensão ideal da conceptibilidade torna tais coisas
concebíveis. Como? Porque sugere que não temos como concebê-las apenas prima facie, pois
temos as nossas limitações cognitivas. Entretanto, um agente cognoscente ideal não teria as
mesmas limitações cognitivas que nós e, portanto, conceberia. Portanto, em última instância
estas coisas possíveis são concebíveis, não inconcebíveis. Nas palavras de Chalmers (2002):
80
No original: There are quite likely many prima facie inconceivabilities: a rich source is provided by statements
about phenomenal properties quite distinct from our own. For example, the claim that there are creatures with
12-dimensional phenomenal color spaces cannot be ruled out a priori, but it may be beyond our capacity to
conceive of a situation verifying this claim. Such a conception might require phenomenal concepts (and
ultimately phenomenal experiences to ground those concepts) that we simply lack. If so, such a claim is prima
facie negatively conceivable, but not prima facie positively conceivable. This is not obviously a case of ideal
inconceivability, however. We have already seen that the inconceivability here stems from a lack in our
repertoire of phenomenal concepts, and this limitation is contingent. If we idealize away from this conceptual
lack, then the situation in question will plausibly turn out to be conceivable after all. Presumably there are
possible creatures with the relevant concepts, and such creatures would have no difficulty in conceiving of the
situations in question.
142
A primeira razão é pressupor que seja possível um agente cognitivo sem nossas
limitações e que seja capaz de conceber o que nós não concebemos. O problema aqui é que se
nós estamos querendo saber o que seja possível e avaliando se a concepção nos leva a
possibilidade, utilizar da concepção de um agente cognitivo como uma possibilidade, para
sustentar que a concepção é um guia para possibilidade, não é um argumento e sim uma
petição de princípio. Todavia, concedamos essa ideia de outro agente cognitivo que concebe e
vejamos onde chegamos.
Para a segunda razão invoco o morcego de Nagel. Sabemos que existe algo como ser
um morcego. Dessa forma, há informatividade da forma da informação captada pelo sistema
cognitivo do morcego. Agora nos perguntamos, esse morcego concebe? Esse morcego é um
exemplo de fenomenologia sem concepção. Respondermos que o morcego seria capaz de
conceber e por isso sua fenomenologia é concebível segue no mesmo raciocínio de confundir
outras atividades cognitivas com a atividade cognitiva da concepção. Vimos as razões para
não incorrer nessa confusão no capítulo III, em especial na seção 1 (sentido amplo de
concepção). Todavia, o sentido amplo se mostra como pressuposto na argumentação de
Chalmers, muito por isso se utiliza a imaginação como critério de conceptibilidade nas
dimensões positiva da conceptibilidade. Além disso, se postula a noção de “imaginação
modal” para falar de algo “além da imaginação”, mas no caso além da imaginação perceptual
– algo que simplesmente não é imaginação. Essa confusão é a mesma que nos faz reduzir a
criatividade à imaginação, quando a criatividade é um domínio maior que a imaginação81.
Uma não distinção das atividades cognitivas nos faz falar de uma atividade quando queremos
falar de outra. Isso significa que falta ao morcego, por exemplo, a capacidade cognitiva de
conceituar. Não lhe falta fenomenologia, percepção ou outras atividades, porém, falta-lhe a
capacidade linguística fundamental para a formação de conceitos, para a concepção. Isso nada
81
As criatividades matemática e musical, por exemplo, vão além da imaginação – ver Beziau (2015).
143
impede, contudo, que a imaginação seja um guia para a concepção, ou mesmo uma visão não-
uniforme como vimos na seção 2 do capítulo II. Contudo, isso não faz do morcego um agente
cognitivo que concebe. Consequentemente, como é ser um morcego permanece algo possível
e inconcebível82. De toda forma, concedamos também esse ponto. Assumamos a possibilidade
(mesmo sem saber um critério de possibilidade) de um morcego muito estranho que conceba,
concedamos que este morcego tenha algum tipo de conceito fenomênico83. Pode fazer sentido
conceitos fenomênicos para seres capazes de concepção, como nós, mas para seres sem essa
capacidade, talvez devêssemos realmente distinguir as capacidades cognitivas. Mesmo assim,
assumamos e vejamos onde podemos chegar.
Temos outras duas razões que, por mais que concedamos as duas anteriores, suspeito
que essas últimas sejam anuladoras para a resposta da conceptibilidade ideal.
84
Pode-se argumentar que talvez conceptibilidade ideal não seja sinônimo de conceptibilidade ilimitada, e sim
entendida como conceptibilidade humana ideal, a capacidade de concepção mais desenvolvida que um homem
pode ter. Devo lembrar, contudo, que Chalmers utiliza essa noção de conceptibilidade ideal para responder o
problema dos qualia como contra-exemplo, coisas possíveis e inconcebíveis. Ele afirma que um sujeito ideal de
concepção poderia conceber tais qualia os quais nós não. Isso significa que essa noção está para além da
conceptibilidade humana ideal apenas, está também para além do humano.
145
parta, sempre há algo possível e inconcebível. Para que o inconcebível coincidisse com o
impossível, deveríamos partir de um ponto de vista de lugar nenhum.
Isso está mais arraigado e se torna mais evidente através de uma ideia que defendi de
forma mais prolongada em outro foro de discussão (CAETANO, 2015), por isso falarei
brevemente aqui. É a ideia do caráter episódico da consciência85 como característica
fundamental para o conceito de qualia.
Que intuição podemos tirar desse caráter episódico? A intuição de que ele é um caráter
informativo para o sistema cognitivo que o exibe – uma informatividade da forma da
informação. Essa informatividade, portanto, se exibe de forma episódica. Essa informação
está, a todo instante, tornando-se inacessível a sistemas cognitivos e, consequentemente,
inconcebíveis. Deste modo, podemos ajustar o argumento nos seguintes passos.
85
No outro debate, refiro-me por atualização ocorrente ou instanciação (CAETANO, 2015, pp. 48-63).
86
Para mais detalhes, ver nota anterior.
146
Uma objeção que surge é a de que essa argumentação não é suficiente porque a tese
conceptibilidade-possibilidade proposta por Chalmers utiliza-se apenas de conhecimentos a
priori (dimensão primária), por conta disso ela afirma que uma parte muito pequena da
concepção é guia para a possibilidade. Devo lembrar que os conhecimentos a priori se pautam
nas leis lógicas, em um sistema lógico, que por sua vez se sustentam na ideia de consistência.
Isso também está em jogo na argumentação, pois nossos conhecimentos a priori, quando
utilizados para critério de possibilidade, pressupõem que do inconcebível chegamos ao
impossível, isso é justamente o que está em jogo e o que nós perdemos com a presente
argumentação (perdemos muito mais aliás) – como vimos na seção 1.2.3, Surrealismo
filosófico: o impossível é concebível, no presente capítulo. A lógica da linguagem,
fundamentada por conceitos, não é suficiente para sustentar teses sobre a metafísica da
modalidade, conseguintemente, teses metafísicas em última análise de natureza
independentemente do sujeito da lógica dessa linguagem. O nosso conhecimento a priori
passa a não ser confiável por não ter uma fundamentação suficiente para utilizarmos como
critério da modalidade, não é justificável dada a argumentação que proponho. Deveria ser
explicado como a alteridade da subjetividade não é um contra-exemplo para a tese da
conceptibilidade-possibilidade sem incorrer em petição de princípio e, assim, demonstrar
como o domínio da concepção é um critério coextensivo ao domínio da possibilidade
abrangendo a alteridade da subjetividade – isto é, demonstrar como conceber, capturar em
conceitos, como é, para uma subjetividade, outra subjetividade alternativa.
Com tais conclusões em mãos, no nosso próximo e último capítulo, veremos algumas
consequências das conclusões desse debate e uma aplicação dos resultados em um argumento
de conceptibilidade, como se segue.
148
Se tudo o que foi dito até aqui fizer sentido e estiver correto, então não estabelecemos
a coextensionalidade entre os domínios da concepção e da possibilidade e sim a
independência relacionada (diagrama CP3). Logo, a conceptibilidade não é critério de
possibilidade. Quais são as consequências filosóficas dessa resposta? O objetivo desse
capítulo é refletir sobre tais consequências. Faremos isso em dois momentos. Num primeiro
consideraremos algumas consequências relevantes e insights dentro do debate mais amplo do
problema do critério de possibilidade; num segundo momento, veremos uma aplicação dos
resultados que tivemos ao avaliar um argumento de conceptibilidade (o argumento dos
zumbis).
Há um problema no raciocínio do parágrafo anterior, pois temos razões para saber pelo
menos um elemento do domínio da possibilidade. Este elemento é o elemento expresso pelo
149
princípio ab esse ad posse, como frisamos na introdução. Esse é justamente o elemento que
não nos deixou concluir um diagrama CP4, e sim o CP3. Pois, mesmo num surrealismo
filosófico, há pelo menos um grupo de elementos que são concebíveis e possíveis, os próprios
elementos enquanto entidades conceptuais são entidades possíveis. É a mesma razão
cartesiana: por mais que empreendamos um ceticismo hiperbólico, ainda sabemos alguma
coisa do mundo, que duvidamos enquanto duvidamos. Se admitimos as possibilidades do
senso comum que são guiadas por esse princípio, então temos um parâmetro de como avaliar
se outro domínio é coextensional a esse ou não. Se um domínio não é coextensional a
possibilidades advindas do princípio ab esse ad posse, então certamente não é critério de
possibilidade. Como por exemplo é o caso da concepção, uma vez que não é coextensional a
elementos que são o caso, e por isso são possíveis.
Como vimos anteriormente (seção 2, capítulo II), a visão uniforme é a que sustenta
que apenas uma das respostas ao problema do critério de possibilidade é a correta, e as outras
que nos dão conhecimento modal são deriváveis dessa e, as que não são deriváveis não dão
conhecimento modal. Com isso, a concepção não ser a resposta para o problema nos diz algo
sobre a visão uniforme: se a visão uniforme estiver correta, então a via fundamental para o
conhecimento modal é outra que não a concepção. O que isso nos diz sobre a concepção? Se
houver outra via fundamental, então a concepção não é derivável dela, afinal ela não nos dá,
por si mesma, conhecimento modal.
Já para a visão não-uniforme (seção 2, capítulo II), a concepção não sendo critério de
possibilidade nos sugere alguma coisa. Uma vez que a visão não-uniforme assume que uma
pessoa adquire conhecimento modal de mais de uma forma, em que talvez todas as formas
nos levem ao conhecimento modal ou se complementem, então, de alguma forma, a
concepção pode ser corrigida para uma boa concepção de possibilidade e uma má concepção
de possibilidade – a dependender de qual a outra via fundamental nos dá conhecimento
modal. Isso pode nos sugerir que a cognoscibilidade é o critério de possibilidade87. Com isso,
as diversas atividades cognitivas em resposta ao problema corrigiriam umas as outras
(teríamos uma Possibilidade Metafísica como Possibilidade Cognitiva). Não estou confiante
87
Essa foi uma sugestão do Prof. Dr. Cícero A. C. Barroso em nossas conversas filosóficas de orientação.
150
que essa visão nos dê conhecimento modal numa metafísica tradicional (dizer algo sobre a
natureza última do mundo), afinal, em algum momento ela terá de lidar com o problema do
fechamento cognitivo para a informatividade da forma da informação (isso indica que o
domínio do cognoscível não é coextensivo ao domínio da possibilidade). Talvez a resposta da
dedução seja um método para a possibilidade, afinal nós deduzimos (mesmo sem conceber) a
existência (com isso a possibilidade) da informatividade da forma da informação, embora não
sua característica “essencial”, o como da forma. De qualquer modo, isso é apenas uma
sugestão (a qual estou incerto), deve-se à dedução uma longa reflexão sobre sua natureza da
mesma forma que fizemos quanto a concepção – o que pode invalidar esse insight. De todo
modo, penso que uma ideia diferente de possibilidade cognitiva seja útil caso a
cognoscibilidade não seja critério, desenvolverei isso mais adiante na consideração sobre o
surrealismo filosófico.
88
Mesmo que se apele para a noção de senso divinitatis (sermos criados a sua semelhança), ainda temos
limitações que Deus não tem – apenas a onisciência faria o mundo ser expressável para um sistema cognitivo.
151
(v) Argumentos modais via concepção: uma vez que a concepção não é critério de
possibilidade, e se ainda não temos outro critério sólido, então todos os argumentos modais
via concepção perdem sua força e se tornam inconclusivos? Se não temos uma posição
surrealista solidamente estabelecida, penso que a resposta a essa questão seja não.
89
E se dizer isso não for redundante.
152
percepção, estão os argumentos modais via concepção que não sugerem possibilidades
sustentadas por esse princípio. Esses certamente perdem sua força e suas conclusões.
Veremos um exemplo na próxima seção.
Em todo caso, argumentos modais só não nos dariam mais nenhum resultado
metafísico tradicional se conclusivamente formos cognitivamente fechados ao conhecimento
modal.
Dizer que a abertura cognitiva é condição necessária para a resposta da concepção não
significa dizer que se formos abertos cognitivamente então a resposta da concepção é a
resposta correta. Ora, para tanto a abertura cognitiva deveria ser condição suficiente para a
resposta da concepção. E isso não é óbvio. Mesmo que se demonstre que somos abertos
cognitivamente, ainda precisaríamos de uma justificativa a mais para estabelecermos a
concepção como resposta ao problema do critério de possibilidade.
(vii) Semântica dos mundos concebíveis: a semântica dos mundos possíveis tem de
forma basilar a intuição de que a concepção implica possibilidade. É assim que mundos
possíveis são construídos. Mesmo que se justifique que um mundo possível é expresso por um
153
livro de mundo como vimos anteriormente, e o critério final para sua possibilidade seja uma
contradição, de toda forma a descrição desse mundo é uma aplicação de conceitos. Isso se
segue da forma como vimos na seção 2.1.1 (cenários como mundos possíveis epistêmicos).
Em conclusão, a semântica dos mundos possíveis é, antes, apenas semântica dos mundos
concebíveis.
Todos os resultados de sua aplicação não nos dão resultados metafísicos, mas
epistemológicos apenas. Isso se dá porque a semântica dos mundos possíveis não versa sobre
a modalidade metafísica e é um equívoco utiliza-la como critério para a modalidade
metafísica, afinal, ela fala sobre o domínio da concepção, não sobre o domínio da metafísica.
Definir o possível e o necessário em termos de mundos possíveis é definir o possível e o
necessário em termos de concepção. Com efeito, o possível e o necessário definidos pela
semântica dos mundos possíveis são modalidades epistêmicas apenas. Argumentos que
utilizem mundos possíveis só nos fornecem justificadamente conclusões epistêmicas, não
metafísicas.
Se Deus é Pessoa, então Deus é sujeito (um ponto de vista). Se Deus é sujeito, então
Deus é limitado (via argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais). Ora, mas Deus
não pode ser limitado, caso contrário não seria Deus. Se Deus é ilimitado (uma vez que é
onisciente), então Deus não é um ponto de vista. Se Deus não é um ponto de vista, então Deus
não é um sujeito. Ora, mas se Deus não é um sujeito, então Deus não é uma Pessoa! Em
conclusão, se é verdadeiro que Deus é ilimitado (onisciente), é falso que Deus é uma Pessoa;
se é verdadeiro que Deus é uma Pessoa, é falso que Deus é ilimitado (onisciente). Deus
ilimitado e pessoal é um paradoxo!
metafísicas religiosas, como vimos, o paganismo não tem problema algum com isso (o que
pode ser uma razão para sua verdade, ao invés de posições cristãs).
De todo modo, alguém pode eliminar o paradoxo assumindo que ser pessoa não
implica ser sujeito. É um caminho, embora não seja óbvio. A ideia de um Deus pessoal é a
ideia de que Deus tem uma personalidade. Isso significa ter vontades, emoções, intenções,
etc., isso significa ter algo que seja como sentir essas coisas. Todas essas características
exigem um como senti-las e, portanto, há o que seja um ponto de vista de senti-las. Esse
ponto de vista é, nada além, que um sujeito. Dizer que ser pessoa não implica ser sujeito
significa dizer que algo tem vontades, emoções, intenções, mas que não haja algo que seja
como sentir essas coisas ou como ser esse algo (é afirmar que Deus é um zumbi
fenomênico?!). Penso que esse seja um caminho problemático, e suspeito que seja infrutífero.
Dessa forma, imagino que alguém que queira manter a pessoalidade para um Deus ilimitado,
deveria mostrar que o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideias é incorreto. Pois,
se o argumento estiver correto, é um anulador de refutação (e racionalidade)90 para a ideia de
um Deus pessoal.
De qualquer forma, há muito o que ser considerado nessa questão. Contudo, essa é
uma consequência filosófica importante e mostra um problema para uma longa tradição
metafísica cristã.
90
Ver em PLANTINGA (2011), Capítulo 6 – Anuladores.
155
podemos ver na própria dificuldade em dar sentido e sustentar uma semântica de uma lógica
não-reflexiva:
Tal lógica tem por principal motivação as bases da física quântica em que, de acordo
com determinada interpretação, não faz sentido atribuir identidade a determinados objetos.
Todavia, uma semântica de uma lógia não-reflexiva precisaria de um ponto em comum, mas
“O fato da identidade de certos objetos ser questionada em uma lógica não-reflexiva mina
qualquer terreno comum” (DA COSTA, BUENO, 2012, p. 2). Todavia, há um considerado
avanço em lógicas desse tipo para tratar de determinados objetos não-identitários relacionados
a objetos identitários. Por isso, mesmo sendo bastante desafiadoras, as lógicas não-reflexivas
restringem certos aspectos, não todos:
No entanto, uma questão que surge é: como tratar o caso em que todos os objetos na
realidade sejam não-identitários? Suspeito que o caminho seja na relação com uma ontologia
fenomenológica a qual utilizamos a identidade como categoria cognitiva colapsadora.
Intuições como as utilizadas em física quântica. Consequentemente, suspeito que uma
metafísica do surrealismo filosófico bem formulada seria uma metafísica que fundamentaria a
mecânica quântica (e talvez mais!). Em todo caso, essas são suspeitas e especulações que
penso serem promissoras para uma investigação filosófica mais aprofundada noutro foro. Por
ora, terminamos com as considerações e passamos para uma aplicação dos nossos resultados
na seção seguinte.
156
na seção 2.3.2 (contradição conceptual como critério de concepção) do capítulo III. Isso
significa conceder que no livro do mundo zumbi não há nenhuma contradição estrita do tipo
p^¬p, mas também não há nenhuma contradição conceptual do tipo SOLTEIRO-CASADO.
Essa estranha sugestão dos zumbis passa no critério de concepção e assim é um conceber um
mundo zumbi. Concedemos a garantia de que um mundo zumbi é um mundo concebível, pelo
menos.
O problema do argumento é que há uma premissa implícita, a premissa que diz que um
mundo concebível é um mundo possível e que, por isso, um mundo zumbi é um mundo
possível. Ora, nós já vimos com nossa reflexão que essa é uma relação problemática. E, até o
momento, sem uma afirmação da incognoscibilidade da modalidade, temos que apenas um
caso de concepção nos leva a possibilidade, é o caso da concepção de coisas do mundo atual.
Isso se deve pelo princípio ab esse ad posse. Nesses casos, teríamos uma possibilidade e, com
isso, sustentaríamos a conclusão. O que ocorre é que para o caso do argumento dos zumbis, a
possibilidade sugerida do mundo zumbi não é uma possibilidade via princípio ab esse ad
posse. É uma possibilidade via concepção pura. Dessa forma, segue-se que não temos uma
possibilidade de um mundo zumbi, afinal, a concepção não implica possibilidade. Com isso,
um mundo zumbi como mundo concebível só sustenta conclusões sobre a nossa capacidade
cognitiva de concepção, isto é, só sustenta teses epistemológicas (conforme a intuição de
McGinn mencionada anteriormente).
Finalmente, o argumento dos zumbis não concluir o que pretende, isso fala alguma
coisa sobre a verdade do materialismo? Não! Não queremos dizer que por sugerimos que o
argumento dos zumbis não é conclusivo, isso signifique estabelecer o materialismo. O
materialismo, se verdadeiro, deve ser estabelecido por próprias razões, não pela falha de
argumentos opostos. Afinal, não é o fato do argumento dos zumbis não conseguir estabelecer
o dualismo que o dualismo não é verdadeiro, são necessárias outras razões também para esse
caso.
158
Com isso, findamos a nossa investigação e vimos como podemos aplicar os resultados
numa argumentação filosófica enquanto não estabelecemos nem a incognoscibilidade modal
ou nem um critério coextensivo de possibilidade. Dessa forma, se de alguma maneira formos
fechados cognitivamente a responder essa questão se a modalidade é incognoscível, então
sabemos como proceder diante de argumentos modais.
159
4.3 Conclusão
Nesse terceiro e último momento de nossa reflexão, munidos das conclusões dos
primeiros dois momentos, colocamos em cena o debate sobre se a concepção é guia para a
possibilidade. Isso foi feito ao contrapor os argumentos em favor da concepção como guia
para o conhecimento da possibilidade frente ao contra-exemplo da informatividade da forma
da informação, o qual nos sugere que a concepção não seja um bom guia. Em seguida,
tivemos considerações filosóficas sobre as consequências desse debate, tendo como exemplo
a aplicação em um argumento modal, nomeadamente, o argumento dos zumbis. À vista disso,
obtivemos algumas conclusões como se segue.
Após tais conclusões, tivemos algumas considerações, são elas: 1) apenas uma
resposta com domínio coextensional ao domínio da possibilidade nos leva ao conhecimento
da modalidade; 2) a presente argumentação não é suficiente para sustentar a
incognosciblidade da modalidade sem observar outras respostas, embora nos sugira esse
caminho; 3) se o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideiais estiver correto, então
o mundo não é expresso em linguagem qualquer que seja ela; 4) o surrealismo filosófico não
impede uma metafísica, uma proposta é distinguir uma ontologia fenomenológica e uma
metafísica surrealista que por sua vez trate de sobreposição de estados e não-identidades; 5)
argumentos modais que não se sustentam pelo princípio ab esse ad posse e sim por
concepção, perdem sua força e não justificam teses metafísicas; 6) a semântica dos mundos
possíveis não é suficiente para sustentar posições metafísicas ou versar sobre metafísica,
apenas versar sobre epistemologia tornando-se uma semântica dos mundos concebíveis; 7) se
o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideias estiver correto, o Deus conforme a
metafísica cristã deve enfrentar o paradoxo-dilema da pessoalidade, em que é inconsistente
ser pessoa e ser onisciente; 8) uma proposta de programa de pesquisa numa metafísica
surrealista é trabalhar tendo como base a reflexão sobre lógicas não-reflexivas, de modo a
lidar com objetos contrários e objetos contraditórios, ou seja, objetos não-identitários.
Finalmente, uma aplicação das conclusões finais é feita sobre o argumento modal dos
zumbis. Em conclusão, não garantimos a possibilidade de um mundo zumbi através da
concepção de um mundo zumbi, se é que concebemos, e, consequentemente, a tese da
falsidade do materialismo não é sustentada ou justificada pelas premissas. Uma vez que é
falso que a concepção seja um guia para a possibilidade, então o argumento dos zumbis é um
argumento incorreto.
161
5 CONCLUSÃO GERAL
coincide com as nossas categorias cognitivas. Por último, a conclusão de que a tese
conceptibilidade-possibilidade que sugere a noção de concepção ideal não é suficiente para
superar a dificuldade imposta pela informatividade da forma da informação via análise do
caráter episódico da consciência. É injustificado que a concepção seja guia para a
possibilidade e, não só, dada argumentação proposta, temos razões para pensar o
diametralmente oposto. Consequentemente, argumentos modais que não se baseiam no
princípio ab esse ad posse e sim na concepção, como o argumento dos zumbis, são
argumentos injustificados que não sustentam teses metafísicas.
Finalmente, dadas as argumentações das três etapas, proponho uma conclusão geral: a
concepção não é guia para o conhecimento da possibilidade, e consequentemente, da
impossibilidade e da necessidade a nível metafísico.
163
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