Caetano (2017) - Concepção e Possibilidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MARCOS PAULO SOUZA CAETANO

CONCEPÇÃO & POSSIBILIDADE: REFLEXÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA DA


MODALIDADE

FORTALEZA
2017
MARCOS PAULO SOUZA CAETANO

CONCEPÇÃO & POSSIBILIDADE: REFLEXÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA DA


MODALIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de mestre em Filosofia.
Área de concentração: Filosofia da Linguagem
e do Conhecimento.

Orientador: Prof. Dr. Cícero Antônio


Cavalcante Barroso.

FORTALEZA
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
__________________________________________________________________________________________

C131c Caetano, Marcos Paulo Souza.


Concepção & Possibilidade : Reflexões sobre a epistemologia da modalidade / Marcos Paulo Souza
Caetano. – 2017.
170 f. : il.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de cultura e Arte, Programa de


Pós-Graduação em Filosofia, Fortaleza, 2017.
Orientação: Prof. Dr. Cícero Antônio Cavalcante Barroso.
1. Epistemologia da modalidade. 2. Concepção. 3. Possibilidade. 4. Fechamento cognitivo. 5. Qualia.
I. Título.
CDD 100
___________________________________________________________________________
MARCOS PAULO SOUZA CAETANO

CONCEPÇÃO & POSSIBILIDADE: REFLEXÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA DA


MODALIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de mestre em Filosofia.
Área de concentração: Filosofia da Linguagem
e do Conhecimento.

Aprovada em: 27/11/2017.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof. Dr. Cícero Antônio Cavalcante Barroso (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Prof. Dr. Konrad Christoph Utz
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Prof. Dr. Guido Imaguire
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Esse esforço é dedicado ao pensamento
filosófico. Aos meus mestres. À minha família
(humanos e não-humanos). Aos meus queridos e
amigos.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu amigo e orientador, Cícero, a quem tenho profunda admiração


filosófica e como pessoa.

Agradeço aos professores do departamento de filosofia da Universidade Federal


do Ceará, ou que fizeram parte dele, que tornaram possível a minha formação e me proveram
com contribuições relevantes: André Leclerc (Universidade de Brasília), Joelma Marques de
Carvalho, Luís Filipe Estevinha Lourenço Rodrigues, Marcos Antônio da Silva Filho
(Universidade Federal de Alagoas), Manfredo Araújo de Oliveira, Hugo Filgueiras de Araújo,
Maria Aparecida de Paiva Montenegro, José Carlos Silva de Almeida, Odílio Alves de Aguiar,
Kléber Carneiro Amora, Evanildo Costeski, Úrsula Anne Matthias, Eduardo Ferreira Chagas,
Átila Amaral Brilhante, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd, Custódio Luís Silva de
Almeida, Ivanhoé Albuquerque Leal, Orlando Luiz de Araújo (departamento de Letras), José
Gabriel Trindade Santos.

Também agradeço aos participantes do Grupo de Pesquisa Pensamento, Cognição


e Linguagem do departamento de Filosofia da UFC. Em especial, Tiago de Oliveira
Magalhães (Unicatólica) por considerações filosóficas importantes.

Da mesma forma agradeço aos participantes do Grupo LOGIA do departamento


de computação da UFC. Em especial, Carlos Eduardo Fisch de Brito, Victor Ximenes
Marques (UFABC), Tarcísio Haroldo Cavalcante Pequeno, Marcelino Cavalcante Pequeno,
Francicleber Martins Ferreira, por debates filosóficos relevantes.

Assim como agradeço aos inúmeros colegas de curso da UFC por inúmeras
conversas instigantes em diversos momentos, uma lista de nomes seria inglória aqui.

Agradeço também à CAPES por ter tornado possível o sonho de um jovem sem
muitas condições materiais se dedicar exclusivamente ao estudo de filosofia e poder
vislumbrar exercer a atividade que lhe dá sentido à vida.

Finalmente, o agradecimento mais importante à minha família, pessoas que


estiveram comigo e me deram força por todo esse período, assim como amigos próximos que
convivem comigo. Em especial, pessoas que estão intimamente comigo no cotidiano, as quais
compartilho a surpreendente e nada fácil passagem do tempo na experiência da vida.
Neidinha, minha avó, Paulo, meu tio, Marvin, meu fiel companheiro canino, Daiany,
companheira para todas as horas.
RESUMO

O problema central da presente dissertação é o seguinte: a concepção, enquanto atividade


cognitiva, nos dá conhecimento sobre a modalidade alética? A tese que defendo é a de que a
atividade conceptual não é suficiente para nos dar conhecimento sobre a modalidade alética, a
saber, conhecimento sobre a possibilidade, a impossibilidade e a necessidade. Esta discussão
se insere no escopo da epistemologia da modalidade, área em que se propõe um tratamento da
questão de como conhecemos, se temos como conhecer, o que é necessário, possível,
contingente, essencial e acidental para a variedade de entidades e tipos de entidades que
existem. Dentre as várias respostas dadas ao problema de como conhecemos se algo é
possível, temos a resposta de que é através da concepção que obtemos esse conhecimento.
Essa resposta motiva e sustenta inúmeros argumentos em diversos debates filosóficos, desde a
metafísica à filosofia política – são conhecidos como argumentos modais ou de
conceptibilidade, os argumentos que enunciam em suas premissas ou conclusões que coisas
são possíveis, impossíveis ou necessárias. Um exemplo emblemático e contemporâneo é o
famoso argumento dos zumbis, o qual David J. Chalmers defende em The Conscious Mind: in
search of a theory of conscious experience (1997). Tal argumento sugere a concepção de seres
humanos fisicamente idênticos a nós, mas sem consciência fenomênica (estados qualitativos
de experiência – qualia), e dessa concepção supõe tal possibilidade. Em seguida, dessa
possibilidade conclui a falsidade do fisicalismo (tese que sustenta que tudo o que existe é
físico). Nossa atividade cognitiva de concepção, exemplificada acima, nos dá conhecimento
sobre essas possibilidades? A concepção é suficiente para sustentar conclusões fortes como
essa? Durante a presente dissertação argumento em favor de uma resposta negativa para essas
duas questões. Para isso sustento que um critério de possibilidade que nos dê conhecimento
modal deve ser um critério de domínio coextensivo ao da modalidade alética. Dessa forma, se
a concepção fosse uma boa resposta, todos os elementos do domínio da concepção seriam
elementos do domínio da possibilidade e vice-versa. Sustento que uma análise do caráter
episódico da consciência, os qualia, nos mostra um contraexemplo para a coextensionalidade
da concepção para com a possibilidade – há algo possível que é inconcebível. Uma vez que
perdemos o par inconcebível-impossível, argumento que também perdemos o par concebível-
possível através da perda do princípio de identidade a nível ontológico – o que nos leva a um
surrealismo filosófico (o mundo não é conceituável a nível metafísico). Com efeito, se não
temos a coextensionalidade, segue-se que a concepção não é guia para o conhecimento da
possibilidade (da modalidade alética). Finalmente, confronto esse resultado à noção de
conceptibilidade ideal da forma sugerida por David J. Chalmers em Does conceivability
entails possibility? (2002), nisso argumento que esta noção não é suficiente para responder as
dificuldades postas pelo contraexemplo, com isso, não é suficiente para estabelecer a
concepção como critério de possibilidade nem guia para o conhecimento modal alético. Toda
essa empresa é feita em três momentos. No primeiro momento, analiso a noção de
possibilidade (capítulos 1 e 2). No segundo momento, analiso a noção de concepção enquanto
atividade cognitiva e a relaciono com a ideia de fechamento cognitivo (capítulos 3 e 4). No
terceiro e último momento, confronto os argumentos em favor da concepção como critério de
possibilidade, onde defendo a tese supracitada, além de refletir sobre consequências
filosóficas dos resultados obtidos (capítulos 5 e 6).

Palavras-chave: Epistemologia da modalidade. Concepção. Possibilidade. Fechamento


cognitivo. Qualia.
ABSTRACT

The central problem of this dissertation is: does conception, as a cognitive activity, give us
knowledge about the alletic modality? The thesis that I defend is that conceptual activity is
not enough to give us knowledge about the alletic modality, namely knowledge about
possibility, impossibility and necessity. This discussion is part of the scope of the
epistemology of the modality, an area in which we propose a treatment of the question of how
we know, if we have to know, what is necessary, possible, contingent, essential and accidental
for the variety of entities and types of entities that exists. Among the various answers given to
the problem of how we know if something is possible, we have the answer that it is through
conception that we obtain this knowledge. This response motivates and sustains numerous
arguments in various philosophical debates, from metaphysics to political philosophy - are
known as modal or conceptualizing arguments, arguments that state in their premises or
conclusions that things are possible, impossible, or necessary. An emblematic and
contemporary example is the famous argument of the zombies, which David J. Chalmers
defends in The Conscious Mind: in search of a theory of conscious experience (1997). Such
an argument suggests the conception of human beings physically identical to us, but without
phenomenal consciousness (qualitative states of experience - qualia), and this conception
supposes such possibility. Then, from this possibility concludes the falsity of physicalism
(thesis that holds that everything that exists is physical). Does our cognitive activity of
conception, exemplified above, give us knowledge about these possibilities? Is the conception
sufficient to sustain such strong conclusions? During this dissertation I argue in favor of a
negative answer to these two questions. For this reason, a criterion of possibility that gives us
modal knowledge must be a domain criterion coextensive with that of the alletic modality. In
this way, if conception were a good response, all elements of the conception domain would be
elements of the domain of possibility and vice versa. I maintain that an analysis of the
episodic character of consciousness, qualia, shows us a counterexample to the
coextensionality of conception to possibility - there is something possible that is
inconceivable. Once we lose the inconceivable-impossible pair, we argue that we also lose the
conceivable-possible pair through the loss of the principle of identity at the ontological level –
which leads us to philosophical surrealism (the world is not conceptual at the metaphysical
level). In fact, if we do not have coextensionality, it follows that conception is not a guide to
the knowledge of possibility (of the alletic modality). Finally, I confront this result with the
notion of ideal conceptualization of the form suggested by David J. Chalmers in Does
conceivability entails possibility? (2002), in this I argue that this notion is not sufficient to
answer the difficulties posed by the counterexample, therefore, it is not enough to establish
the conception as a criterion of possibility or guide to modal alletic knowledge. This whole
company is made in three moments. In the first moment, I analyze the notion of possibility
(chapters 1 and 2). In the second moment, I analyze the notion of conception as cognitive
activity and the relation with the idea of cognitive closure (chapters 3 and 4). In the third and
last moment, I confront the arguments in favor of conception as a criterion of possibility,
where I defend the aforementioned thesis, as well as reflect on the philosophical
consequences of the results obtained (Chapters 5 and 6).

Keywords: Epistemology of the modality. Conception. Possibility. Cognitive closure. Qualia.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 − Diagrama de restrições de possibilidades ........................................................ 30

Figura 2 − Diagrama 1 ...................................................................................................... 32

Figura 3 − Diagrama 2 ...................................................................................................... 33

Figura 4 − Diagrama CP1 ................................................................................................. 116

Figura 5 − Diagrama CP2 ................................................................................................. 116

Figura 6 − Diagrama CP3 ................................................................................................. 116


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14
2 A NATUREZA DA POSSIBILIDADE ............................................................ 16
2.1 O problema do critério de possibilidade ......................................................... 17
2.1.1 O problema e o Método ...................................................................................... 17
2.1.2 A possibilidade na relação mente-mundo .......................................................... 26
2.2 A Noção de Possibilidade e as Respostas ao Problema do Critério .............. 29
2.2.1 Tipos de Possibilidade: Lógica, Metafísica e Física ......................................... 29
2.2.2 Possibilidade relativa e possibilidade absoluta ................................................. 34
2.2.3 Respostas comuns ............................................................................................... 38
2.2.4 Visão uniforme e visão não-uniforme ............................................................... 39
2.2.5 Concepção como Resposta Padrão .................................................................... 41
2.3 Conclusão ........................................................................................................... 42
3 A NATUREZA DA CONCEPÇÃO .................................................................. 44
3.1 Entendendo a Concepção ................................................................................. 45
3.1.1 O sentido amplo de concepção ........................................................................... 46
3.1.1.1 Concepção e Imaginação .................................................................................... 47
3.1.1.2 Concepção e Percepção ...................................................................................... 50
3.1.1.3 Concepção e Intuição .......................................................................................... 51
3.1.1.4 Concepção e Dedução ......................................................................................... 52
3.1.1.5 Concepção e Teoria ............................................................................................. 53
3.1.1.6 Concepção e Similaridade .................................................................................. 55
3.1.1.7 Conclusão: a concepção não encerra a cognição .............................................. 56
3.1.2 O que é conceber? .............................................................................................. 58
3.1.2.1 O sentido estrito de concepção ........................................................................... 58
3.1.2.1.1 Cenários como Mundos Possíveis Epistêmicos .................................................. 59
3.1.2.1.2 Conceitos como constituintes de Cenários .......................................................... 61
3.1.2.2 A natureza de conceitos ....................................................................................... 62
3.1.2.2.1 Conceitos como representações mentais ............................................................. 63
3.1.2.2.2 Conceitos como objetos abstratos ....................................................................... 64
3.1.2.2.3 Visão combinada de conceitos ............................................................................ 66
3.1.2.2.4 Concepção e Conceitos ....................................................................................... 67
3.1.2.3 Critério de concepção ......................................................................................... 69
3.1.2.3.1 Analiticidade ....................................................................................................... 69
3.1.2.3.2 Contradição conceptual como critério de concepção .......................................... 72
3.2 Concepção e Cognição ...................................................................................... 75
3.2.1 A ideia de fechamento cognitivo ........................................................................ 77
3.2.1.1 O mistério mente-corpo ....................................................................................... 81
3.2.1.1.1 Mente e corpo: uma relação problemática .......................................................... 81
3.2.1.1.2 Duas vias de conhecimento ................................................................................. 85
3.2.1.1.3 Caminhos paralelos não se cruzam ..................................................................... 86
3.2.1.2 Otimismo cognitivo ............................................................................................. 90
3.2.1.2.1 O método natural ................................................................................................. 90
3.2.1.2.2 Otimismo neurocientífico .................................................................................... 92
3.2.1.2.3 Informação e duplo aspecto ................................................................................ 97
3.2.1.3 A informação nos limites cognitivos ................................................................... 101
3.2.1.3.1 Abertura cognitiva e a informação ...................................................................... 102
3.2.1.3.2 A informatividade da forma da informação ........................................................ 103
3.2.2 A concepção nos limites da cognição ................................................................ 105
3.2.2.1 Formação de conceitos ....................................................................................... 105
3.2.2.2 Limites informacionais como limites conceptuais .............................................. 108
3.3 Conclusão ........................................................................................................... 111
4 CONCEPTIBILIDADE COMO CRITÉRIO DE POSSIBILIDADE? ........ 114
4.1 Debate da conceptibilidade ............................................................................... 115
4.1.1 Concepção e possibilidade: relações entre domínios ........................................ 115
4.1.1.1 Concepção e possibilidade: noções independentes? ......................................... 117
4.1.1.1.1 Concebível e impossível ..................................................................................... 118
4.1.1.1.2 Possível e Inconcebível ....................................................................................... 119
4.1.1.2 A concepção não é critério de possibilidade? ................................................... 121
4.1.1.2.1 Exemplos prototípicos ......................................................................................... 121
4.1.1.2.2 O problema dos futuros contingentes: concebendo o impossível? .................... 126
4.1.1.2.3 Surrealismo filosófico: o impossível é concebível .............................................. 127
4.1.2 É a concepção guia para a possibilidade? ........................................................ 131
4.1.2.1 Tese conceptibilidade-possibilidade ................................................................... 132
4.1.2.1.1 As dimensões da conceptibilidade ...................................................................... 132
4.1.2.1.2 Tipos de conceptibilidade .................................................................................... 135
4.1.2.1.3 A conceptibilidade livre de contra-exemplos ...................................................... 137
4.1.2.2 O inconcebível implica o impossível? ................................................................ 140
4.2 Consequências filosóficas .................................................................................. 148
4.2.1 Considerações relevantes ................................................................................... 148
4.2.2 Aplicação: o argumento dos zumbis .................................................................. 156
4.3 Conclusão ........................................................................................................... 159
5 CONCLUSÃO GERAL .................................................................................... 161
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 163
14

1 INTRODUÇÃO

Na presente dissertação, temos o objetivo geral de dissertar sobre a concepção como


guia, ou critério, para a possibilidade, ou seja, queremos investigar se o concebível pode nos
dizer o que é ou não é possível. A questão se circunscreve, principalmente, na epistemologia
da modalidade, área que estuda o conhecimento sobre enunciados modais e tem por interesse
central a seguinte questão: como nós podemos conhecer o que é necessário, possível,
contingente, essencial e acidental para a variedade de entidades e tipos de entidades que
existem? (VAIDYA, 2015). Embora também possa se situar em metafísica contemporânea,
filosofia da lógica modal e filosofia da mente. Não temos a intenção de amputar qualquer
parte do problema para circunscrevê-lo apenas a alguma área filosófica específica. Quando
necessário, portanto, dialogaremos com o campo filosófico que for preciso.

Antecipadamente, esclareço que essa é uma discussão extremamente vasta e rica,


certamente o escopo que cabe neste tipo de trabalho não dará conta de tudo. Um
empreendimento deste tipo exigiria o que está além das limitações de uma dissertação. No
entanto, isso não impede uma reflexão filosófica cautelosa e ciente desta condição limitada.
Tendo isso em vista, há o objetivo de se sustentar uma posição filosófica de forma sólida com
a elaboração de argumentos, tendo nítida consciência de não objetivar uma última palavra –
algo extremamente difícil em filosofia e que me deixa uma inquietante sensação de desconfiar
das minhas próprias argumentações e ideias constantemente.

Dito isso, a tese filosófica a ser defendida no presente trabalho é a de que a concepção,
enquanto atividade cognitiva, não é suficiente e nem necessária para nos dar conhecimento
sobre a possibilidade e, consequentemente, sobre a impossibilidade e a necessidade.

A motivação central e a justificativa desta reflexão é a importância da utilização de


argumentos que supõem essas noções em praticamente todos os debates e áreas em filosofia –
e até mesmo outras discussões além da filosofia. Por isso, a argumentação que proponho e a
tese defendida pode ter alguma relevância nesses cenários.

A investigação do problema central se dará em três momentos e, em todos eles,


obteremos elementos que sustentarão a tese numa argumentação final.

Na primeira parte de nossa reflexão, temos a intenção de esclarecer o que se entende


por possibilidade e seus vários tipos de acordo com a tradição, investigando a natureza da
15

possibilidade. Dessa monta, esclarecer qual destes tipos é o que realmente interessa na nossa
reflexão. Além disso, vamos apresentar o problema do critério de possibilidade diante da
análise dos tipos de possibilidade e chegaremos à resposta padrão ao problema, a resposta da
concepção, a qual iremos analisar na segunda parte com maiores detalhes.

Na segunda parte, temos a intenção de esclarecer o que se entende por


concepção/conceptibilidade e suas várias formas de apresentação, investigando a natureza da
concepção. Vamos refletir sobre o que é conceber um cenário e sobre se estamos bem
autorizados em utilizar indiscriminadamente a concepção de cenários1. Também abordaremos
a relação e distinção entre a concepção e outras formas de se apreender alguma coisa através
de nossas atividades cognitivas.

Na terceira e última parte, depois de termos investigado a natureza da possibilidade e


da concepção/conceptibilidade, temos a intenção de ponderar a relação conceptibilidade-
possibilidade, pesando as razões que nos dizem que é a concepção um guia para a
possibilidade e as razões que nos dizem o contrário. Por fim, vamos avaliar qual seria a
melhor resposta para o nosso problema central: é a concepção guia para a possibilidade?

Dito introdutoriamente o problema, a hipótese a ser defendida e a justificativa,


convido o leitor a refletir comigo sobre os meandros desse problema filosófico.

1
Nesse sentido, essa reflexão é de grade relevância para o debate sobre experimentos de pensamento, uma vez
que eles estão na esteira do método da concepção. Há uma ampla e rica discussão sobre o tema, mas que não
cabe na natureza dissertativa deste trabalho. Muito embora a reflexão que descorriremos tenha implicações para
essa discussão. Para mais detalhes e um panorama abrangente sobre experimentos de pensamento, ver “Tought
Experiments” (2017) de James R. Brown e Yiftach Fehige.
16

2 A NATUREZA DA POSSIBILIDADE
17

2.1 O problema do critério de possibilidade

Este capítulo tem os seguintes objetivos: i) na seção 1, explicitar o problema do


critério de possibilidade e propor um método de análise da correção da resposta; ii) na seção
2, ilustrar a relação entre o problema do critério de possibilidade e a relação lacunar entre o
pensar e o mundo que é amplamente debatida na história da filosofia.

2.1.1 O Problema e o Método

Uma das sensações mais comuns que experimentamos em nossas vidas é a de que
poderíamos ter agido de forma diferente em alguma circunstância passada ou que podemos
fazer diferente no futuro. Situações como “eu poderia ter comido aquele bolo de chocolate”,
ou “eu poderia ter feito exercício físico durante minha juventude para que agora minha
velhice fosse mais saudável”, ou “eu poderia ter salvado a vida da pessoa que mais amei se
tivesse feito aquilo”. Essa sensação de que as coisas poderiam ter sido diferentes, essa
sensação de algo alternativo, temos não apenas sobre as nossas ações, mas também sobre o
mundo além de nós e de nossas ações. Quando dizemos “essa garrafa quebrará se cair dessa
altura da mesa” ou “é muito provável que chova amanhã” nós expressamos essa intuição de
alternativa para certo estado do mundo – uma possibilidade dentro de um conjunto de
possibilidades. É costumeiro que aceitemos com facilidade frases desse tipo e nos
convençamos dessas possibilidades. Todavia, quando consideramos outros enunciados, seja
sobre o passado, presente ou futuro, muita gente tem mais dificuldade em aceitar a sua
possibilidade ou não. Enunciados como “o homem pisou na lua em 1969”, ou “uma entidade
imaterial criou a matéria”, ou “o sol não nascerá amanhã”, ou “existe uma coisa em relação a
qual não podemos conceber nada maior”, ou “algo é diferente de si mesmo”, já suscitam certa
polêmica quando considerados como possibilidades. Em outras palavras, quando dizemos que
“é possível que o sol não nasça amanhã”, haverá mais debate sobre esse enunciado modal, se
isso é mesmo possível ou não, que sobre o enunciado “é possível que em algum lugar da
Terra chova amanhã”. Sendo assim, o que faz com que algumas dessas alternativas sejam
mais aceitas e outras não? O que faz com que algo seja possível? Essas são duas questões
distintas, a primeira pode ser entendida como uma questão psicológica e a segunda como
18

filosófica. Nosso foco é a questão filosófica, saber o que torna algo possível, embora a
questão psicológica, o porquê de um enunciado modal ser mais aceito que outro, seja um
motivador para chegar à filosófica.

O questionamento sobre o que torna algo possível pode parecer irrelevante em


inúmeras situações, ou mesmo sua resposta seja óbvia para muitos. Todavia, muita gente
costuma extrair conclusões sobre o estado atual do mundo através de afirmações de estados
alternativos do mundo, e algumas dessas afirmações podem não ser agradáveis a todos. Mas
se aceitamos a realidade da possibilidade sugerida, parece que temos de aceitar a conclusão
sobre outra afirmação da natureza de algo atual. Essa é talvez uma das práticas mais
difundidas entre os filósofos. Quando querem defender alguma afirmação sobre como as
coisas são, eles elucubram sobre como as coisas poderiam ou não poderiam ser. É o que
ocorre quando David J. Chalmers (1997), por exemplo, formula uma hipótese de um mundo
alternativo ao nosso em que as pessoas não possuam consciência, mas o mundo é fisicamente
igual ao nosso, para que, com essa alternativa, se possa concluir que, no nosso mundo, a
consciência em sua natureza última não é física. Ora, se é possível um mundo fisicamente
igual ao nosso onde as pessoas não tenham consciência, significa que tudo que é físico em
nosso mundo há nesse outro mundo. Mas se nesse mundo há tudo de físico que há no nosso,
mas não há consciência, e no nosso mundo há consciência, então a consciência não é algo
físico. Se nem tudo que existe no nosso mundo é físico, portanto, o fisicalismo, tese que diz
que tudo o que existe é físico, é falso. Dessa forma, podemos ver como de uma possibilidade
estranha, mas compreensível e aparentemente “distante da nossa realidade”, nós formulamos
um raciocínio que nos fez concluir algo sobre o nosso mundo. Aliás, uma conclusão nada
agradável para os defensores de determinado fisicalismo, dentre eles um grande número de
cientistas e naturalistas. Para este grupo significaria dizer que os pressupostos básicos de suas
investigações sobre o mundo estão equivocados, que eles estão deixando algo do mundo de
fora nas suas explicações. Isso, certamente, não é irrelevante.

Mas isso não está restrito apenas aos filósofos. Médicos, advogados, engenheiros, toda
sorte de pessoas faz isso de uma forma ou outra. Isso é decisivo na vida de cada um, afinal,
tais afirmações sobre o mundo se transformam nas crenças que moldam a nossa visão de
mundo e nossas ações. Quando um advogado de defesa num tribunal afirma que seu cliente
não poderia ter feito determinada ação criminosa porque ele não estava no local e momento
do crime, há nesse sentido, um critério para se dizer o que é ou não possível em determinadas
circunstâncias. Nesse caso, o advogado exclui certa alternativa sobre o passado na base do
19

alegado paradeiro do seu cliente. A partir disso nós tomamos decisões que afetarão seriamente
o futuro da nossa vida em sociedade. Se o réu for realmente um criminoso, podemos inocentar
um indivíduo que tende a cometer mais delitos. Se o réu for realmente inocente, podemos
condenar um indivíduo por um crime que ele não cometeu e assim tirar sua liberdade e sua
perspectiva de vida. Essas consequências podem ser desastrosas socialmente e, como
podemos ver, elas dependem da decisão sobre a possibilidade ou impossibilidade do fato. Em
outros termos, a decisão depende de um bom critério sobre o que é possível ou não, mesmo
que na maioria dos casos pensemos mais sobre o que é mais plausível dadas as evidências,
nós fazemos um raciocínio em que o critério de possibilidade se torna mais restritivo pelas
evidências. Dessa forma, o questionamento sobre o que faz com que algo seja possível versa
sobre as coisas mais corriqueiras e banais, passando por decisões importantes para as nossas
vidas, até questões mais abstratas sobre a natureza última das coisas e nosso conhecimento
sobre elas.

Alguns casos parecem mais facilmente julgáveis que outros em termos de senso
comum, outros são vistos com suspeitas ou descrença e isso é crucial para algumas decisões
teóricas e práticas que tomamos. Possibilidades como as de comer um bolo de chocolate, ou
ter se exercitado mais na juventude, ou se um indivíduo cometeu um crime ou não, são todas
relativamente fáceis de se julgar. Elas são corriqueiras e, aparentemente, onde estão
envolvidas, temos mais facilidade em julgar se os casos são possíveis ou não sem pensar
muito – mesmo os mais difíceis. Entretanto, há outras possibilidades que são mais
extravagantes e nos dão suspeitas. Muitas delas são as usadas pelos filósofos. Como a
afirmação da possibilidade da existência de um mundo fisicamente idêntico ao nosso embora
sem consciência, ou a afirmação de que é possível a existência da mente sem o corpo, entre
outras. Essas possibilidades nós não vemos acontecer com nossos olhos cotidianamente e,
talvez por isso, elas colocam dúvidas e descrença em alguns quando as avaliam, mesmo
quando parecemos usar os mesmos critérios para julgar as possibilidades mais fáceis. Em
outras palavras, a desconfiança sobre essas possibilidades mais extravagantes se deve ao fato
de elas estarem incluídas no que se chama de meras possibilidades2, mais especificamente,

2
Aqui não estou a usar o termo ‘mera possibilidade’ no sentido de Possibilia, algo possível num mundo possível
que não é o mundo atual e nem acessível ao mundo atual. Isso se comprometeria em assumir que o sistema de
lógica modal S5 não é o sistema correto para a metafísica da modalidade – não pretendemos pressupor isso – e,
consequentemente, que nem todo mundo possível é acessível ao mundo atual – o que deve ser aberto ao debate
se quisermos saber o que realmente é possível. Nesse sentido, não estamos a usar ou a nos comprometer
inicialmente com o conceito de relação de acessibilidade entre mundos possíveis que usualmente se aceita para
qualificar uma possibilidade como mera possibilidade. Para mais detalhes, ver MURCHO 2002, pp. 87-92.
20

num tipo especial de mera possibilidade, o que chamaremos aqui de possibilidade por
excelência.

Para esclarecer faremos duas contraposições. Por um lado, possibilidades atualizadas e


meras possibilidades, por outro, possibilidade ordinária e possibilidade extraordinária.

A primeira contraposição, entre possibilidade atualizada e mera possibilidade, tem a


ver com o que é atual no mundo ou não, ou seja, o que acontece atualmente e o que não. A
segunda contraposição, entre possibilidade ordinária e possibilidade extraordinária, tem a ver
com o que parece plausível ou não à luz dos nossos relatos empíricos e nossas teorias
paradigmáticas sobre o mundo.

Uma das nossas fontes de conhecimento sobre a possibilidade, e que os sistemas de


lógica modal utilizam como axioma, é um princípio intuitivo básico conhecido desde a
escolástica: ab esse ad posse (BARROSO & IMAGUIRE, 2006, pg. 292). Esse princípio diz
que do ser nós podemos inferir a possibilidade; se algo é o caso, então esse algo é possível,
isto é, aquilo que acontece é possível porque se não fosse possível não aconteceria. As
possibilidades atualizadas estão dentro desse raciocínio, elas se fundamentam nas coisas que
acontecem, que são o caso no momento. Mas o conjunto das coisas que acontecem parece,
intuitivamente, ser um conjunto menor que o conjunto das coisas que são possíveis. Ou seja,
aquilo que acontece no mundo nos dá apenas uma parte das coisas possíveis, não tudo, não é
suficiente para nos dar a possibilidade como um todo ou mesmo a impossibilidade. Pense nos
seguintes exemplos, você estar a ler este texto neste momento é uma possibilidade atualizada,
pois, isto é o caso e acontece, enquanto você lê. Todavia, você poderia estar dormindo,
mesmo que não esteja agora. Essa possibilidade não é dada pelo que acontece atualmente, não
é dada pelo princípio ab esse ad posse. Nesse caso não temos uma possibilidade atualizada, e
sim o que chamamos de mera possibilidade. Uma mera possibilidade, nesse sentido, pode ser
entendida como uma possibilidade não atualizada, que não está a acontecer, uma configuração
do mundo não instanciada.

Por outro lado, há outra intuição sobre possibilidades. É a segunda contraposição,


entre ordinária e extraordinária. Quando falamos de coisas ordinárias estamos a falar de coisas
corriqueiras, comuns, ao passo que quando falamos de coisas extraordinárias estamos a falar
de coisas raras ou incomuns. É justamente esta intuição que aplicamos a possibilidades. Há
possibilidades que são comuns e outras que são incomuns. Todavia, o critério de
diferenciação entre o que é comum e o que é incomum quanto a possibilidades é o relato
21

empírico e sua plausibilidade. Portanto, uma possibilidade é ordinária quando é algo


corriqueiro das nossas experiências, ou quando não, que seja plausível de acordo com os
relatos empíricos do passado. Da forma contrária, uma possibilidade é extraordinária quando
não temos relatos empíricos presentes ou passados do enunciado que ela se verifica, tornando-
a implausível – ou seja, seria extraordinário que fosse o caso.

Dadas essas distinções, podemos observar algumas relações entre elas. Uma
possibilidade pode ser: i) ordinária e atual; ii) ordinária e mera; iii) extraordinária e atual; iv)
extraordinária e mera.

Os tipos i) e ii) de possibilidades são comumente aceites e sua polêmica é menor. O


que é diferente para os tipos iii) e iv), estes são os tipos que em geral os filósofos utilizam em
seus argumentos e que mais geram suspeitas e desconfiança. No mais das vezes, as
possibilidades sugeridas mais polêmicas são as do tipo iv), a saber, meras possibilidades e
extraordinárias. Este tipo de possibilidade nós estamos aqui chamando de possibilidade por
excelência. Porque é uma possibilidade não atualizada, não é o caso, não acontece atualmente,
o que lhe faz ser uma mera possibilidade. Além disso, é uma possibilidade que não temos
relatos empíricos presentes (por ser uma mera possibilidade também) e mesmo não temos
relatos empíricos passados dessa possibilidade, tornando-a implausível de acordo com os
relatos empíricos das nossas teorias paradigmáticas presentes.

Dessa forma podemos ver que em grande parte, as suspeitas sobre a possibilidade de
alguns enunciados se dão em razão do que estamos acostumados a experienciar do mundo.
Quanto mais distante das nossas experiências e do acordo com nossas teorias paradigmáticas,
mais suspeitamos sobre a possibilidade de alguns enunciados. Esta, provavelmente, seria a
resposta à pergunta psicológica que fizemos, mas certamente não é a resposta à pergunta
filosófica. A semelhança com nossas experiências e o acordo com nossas teorias
paradigmáticas que um enunciado sugere não parece ser critério de possibilidade. Afinal,
inúmeras vezes nossas teorias paradigmáticas mudaram porque nós conseguimos
experimentar o mundo de uma forma totalmente diferente da que experimentávamos antes.
Inúmeras espécies de seres vivos como microorganismos, por exemplo, sequer estavam em
nossos relatos empíricos de séculos atrás, mas o avanço de nossos instrumentos nos mostrou
sua existência. Deveríamos aceitar que antes não era possível sua existência e hoje é possível?
Parece que não, intuitivamente parece que eles já eram possíveis antes, afinal já eram o caso,
apenas nós não conseguíamos experimentar de forma clara sua existência para compreendê-la.
Portanto, embora este seja um critério psicológico para nos dizer o que estamos mais
22

familiarizados ou não em aceitar, não é um critério para nos dizer realmente o que é ou não
possível.

Isso nos faz pensar que deveríamos ter de forma mais clara um critério de
possibilidade, uma vez que há consequências em aceitar ou não determinadas possibilidades
extraordinárias. Por exemplo, aceitar a possibilidade de um mundo fisicamente idêntico ao
nosso onde não há consciência nos leva a aceitar que nem tudo em nosso mundo é físico ou
material. Aceitar a possibilidade da existência da mente sem o corpo implica que mente e
corpo são coisas de naturezas distintas, mais especificamente, duas coisas e não uma só.
Aceitar a possibilidade da existência de algo que não podemos conceber nada maior pode
implicar a existência de determinada divindade, conforme tentou demonstrar Santo Anselmo.
Com isso, podemos ter consequências morais relacionadas, ou seja, de aceitar essa
possibilidade aceitamos uma divindade, de aceitar determinada divindade podemos facilmente
chegar a aceitar o código moral da religião que versa sobre essa divindade e, para além,
podemos fazer escolhas políticas que influenciem diretamente pessoas que não aceitam aquela
possibilidade inicial e não fariam essa mesma escolha política. Ou o contrário, afirmar a
impossibilidade de tais enunciados implica muitas vezes nas consequências opostas. A
impossibilidade é muitas vezes a estratégia argumentativa para invalidar ou desacreditar
determinado sistema organizacional de produção de uma sociedade. Muitos não seguem a
ideologia do comunismo por acreditar que não é um sistema possível de implementação, dada
a natureza do ser humano e seus conflitos. E muitos sistemas utópicos, sistemas que podem
entrar na categoria de possibilidade extraordinária, seguem no mesmo raciocínio. Isso nos
mostra que em qualquer que seja o campo de conhecimento, nós precisamos nos defrontar
com os enunciados de possibilidades extraordinárias devido suas consequências práticas em
nossas vidas relacionadas às consequências abstratas e teóricas.

Em geral, quando queremos saber se algo é possível ou não, nós costumamos tentar
conceber determinado cenário. Esse é o critério mais comum para a possibilidade. É o que
fazemos para as possibilidades ordinárias. Quando dizemos que poderíamos ter comido um
bolo de chocolate ontem, fazemo-lo simplesmente porque conseguimos conceber o cenário
em que ontem nós comemos o bolo. Isso se dá pelo conhecimento de que muitas vezes já
comemos bolo, conseguimos ter em nossa mente determinada situação. O que não parece
muito simples para algumas possibilidades extraordinárias. O que seria conceber a existência
da mente sem o corpo? Muitos dizem que não temos como conceber isso, e se não temos
como conceber tal cenário, isso não é possível. O mesmo para conceber a existência de uma
23

sociedade totalmente igualitária e justa mesmo com a natureza torpe de muitos indivíduos, ou
a concepção de uma linguagem privada, ou a concepção de uma máquina com consciência.
No entanto, muitas vezes parece que, apesar do fato de não conseguirmos conceber algo, há
ainda a possibilidade. Há séculos, não conseguíamos conceber um modo de ir da Terra para a
Lua, mas hoje já conseguimos. Sabemos dessa possibilidade. Mas pelo fato de antes não
termos conseguido conceber, isso significa que não existia a possibilidade? Mais uma vez,
esses casos mostram que precisamos ter clareza sobre não só o critério de possibilidade, mas
sobre a relação entre a concepção e a possibilidade para inúmeros questionamentos filosóficos
e da vida em geral.

Esse método a priori que parte da concepção para tirar conclusões sobre o que é
possível e o que é necessário tem uma longa tradição. Platão na antiguidade, por exemplo, em
A República, utiliza inúmeros cenários imaginativos para testar se determinadas
características seriam necessárias para o conceito de justiça e, assim, encontrar a natureza
última do que é justo, do que é a justiça (PLATÃO, 1993). Maquiavel, em O Príncipe, já no
período renascentista, tenta demonstrar que não é possível manter-se no poder e ser um
indivíduo eticamente virtuoso e, por isso, temos a cisão entre política e ética (MAQUIAVEL,
2007). Na contemporaneidade, Frank Jackson (JACKSON, 1982) chegou a pensar na
possibilidade de alguém que tem todo o conhecimento físico sobre cores, mas não tem todo o
conhecimento sobre cores. Isso significaria que nem todo o conhecimento sobre o mundo é
físico. Deveríamos, portanto, seguir essa longa tradição? Quando deveríamos seguir e quando
não deveríamos seguir? As fortes conclusões sobre a natureza do mundo são realmente
sustentadas pela concepção de cenários?

Esses tipos de argumentos, chamados de argumentos modais, são constituídos de


basicamente três passos (CHALMERS, 2002, p. 145-6): 1. Uma afirmação epistêmica (algo
sobre o que podemos saber ou conceber); 2. Uma afirmação modal (algo sobre o que é
possível ou necessário); 3. Por fim, uma afirmação metafísica (algo sobre a natureza das
coisas no mundo).

Por exemplo, vejamos os três passos no famoso argumento dos zumbis (CHALMERS,
1997).

Passo 1 (o que podemos saber ou conceber): Podemos conceber um mundo


fisicamente idêntico ao nosso, com indivíduos fisicamente idênticos a nós, mas sem nenhuma
24

consciência dos fenêmenos (como a característica subjetiva do cheiro, do sabor, do ver, etc).
Esse seria um mundo zumbi.

Passo 2 (o que é possível ou necessário): Um mundo zumbi é possível.

Passo 3 (algo sobre a natureza do nosso mundo): Há no nosso mundo algo que não é
físico (consciência fenomênica), portanto, o fisicalismo é falso – nem tudo no nosso mundo é
físico.

Visto isso, podemos perceber que estamos interessados principalmente na relação que
liga o primeiro passo ao segundo passo. Em geral, o que liga o domínio epistêmico e o
domínio modal é a conceptibilidade. O que podemos ver no exemplo acima. Daquilo que
concebemos, chegamos ao que é possível.

Embora haja essa longa tradição, muitos não a seguem. Beziau (2015), por exemplo,
argumenta que, por um lado, nós não conseguimos conceber a totalidade de uma árvore
particular, mas ela é o caso e por isso é possível. Por outro lado, nós conseguimos conceber
contradições ou objetos contrários, mas não são coisas possíveis no mundo. Se isso for o caso,
então a concepção e a possibilidade são noções independentes e, por isso, a concepção não
seria critério último de possibilidade – a concepção não seria um guia, pelo menos confiável,
para a possibilidade. Refletiremos especificamente sobre tais pontos mais adiante na seção 1,
Concepção e possibilidade: relações entre domínios, do capítulo 5, Debate da
conceptibilidade.

Destarte, podemos nos questionar e pensar sobre tal tradição e o problema do critério
de possibilidade: é a concepção guia para o que é possível? Conforme frisamos, esse será o
problema central de nossa reflexão. Para isso, precisamos esclarecer bem os dois principais
termos usados: 'possibilidade' e 'concepção' (ou 'conceptibilidade'). O que faremos no decorrer
da reflexão.

Para que possamos atingir tais objetivos e avaliar se a concepção é um critério correto
de possibilidade, sugiro uma metodologia de coextensão de domínios. Este método consiste
em utilizar a teoria dos conjuntos, tratar a concepção como um domínio, a possibilidade como
outro domínio e analisar se os domínios são coextensivos. Em outras palavras, refletir se
todos os elementos do domínio da concepção são elementos do domínio da possibilidade e
vice-versa.
25

As razões para se seguir a metodologia de coextensão de domínios para a investigação


se a concepção é critério de modalidade são as seguintes. Primeiro, se forem coextensivos,
então sempre que concebermos algo saberemos que é algo possível, sempre que não
concebermos algo saberemos que é impossível. Em segundo lugar, se houver pelo menos um
elemento não coextensivo, perdemos a garantia que os outros elementos são coextensivos3.

Uma dificuldade para a metodologia da coextensão de domínios é o fato de querermos


saber o que é realmente possível e, por conseguinte, o que queremos saber afinal de contas é
qual é o domínio das coisas possíveis; portanto, não teríamos como saber quais são os
elementos do domínio da possibilidade antes de sabermos quais são os elementos do domínio
da possibilidade, isso seria incorrer em petição de princípio. Com este propósito, sugiro que
nós sabemos pelo menos alguma coisa do domínio da possibilidade, alguns elementos desse
domínio para ser específico. Dessa forma, proponho que consideremos esses elementos os
quais nós sabemos que realmente pertencem ao domínio da possibilidade como os elementos
a serem comparados e analisados, a fim de saber se seguem uma coextensão com os
elementos do domínio da concepção. Com isso, caso forem coextensivos, saberemos que a
intensão do domínio da possibilidade utiliza a concepção como fundamento e assim
conheceremos o restante dos elementos além dos que já sabemos sobre o domínio da
possibilidade. Ora, mas quais seriam esses elementos do domínio da possibilidade? Sugiro
que consideremos os elementos dados pelo princípio ab esse ad posse, ou seja, das coisas que
são, nós sabemos que são possíveis. É um princípio simples, aparentemente evidente e sugiro
que não temos razões para suspeitarmos dele. Por exemplo, se você sabe que esse texto existe,
você sabe que esse texto é possível; então se esse texto é um elemento do domínio da
concepção, então ele é coextensivo ao domínio da possibilidade. Nesse sentido do princípio
ab esse ad posse, caso tenhamos pelo menos um elemento do domínio da possibilidade que
não seja um elemento do domínio da concepção, então temos que não são domínios
coextensivos e, consequentemente, a concepção não é um guia para o conhecimento da
possibilidade. Deste modo, o grosso de nossa reflexão será a respeito dos candidatos a
elementos deste tipo não-coextensivo.

Esclarecido o problema central e a metodologia que proponho ser adequada,


prossigamos em nossa reflexão.

3
Este ponto será desenvolvido no capítulo 5, Debate da conceptibilidade, seção 1.2.3, Surrealismo filosófico: o
impossível é concebível.
26

2.1.2 A possibilidade na relação mente-mundo

Como vimos na seção anterior, temos diversos motivos para pensar qual seria o
critério de possibilidade, isto é, o que nos diz o que é possível ou não, devido às mudanças
práticas de nossa vida de acordo com nossas atitudes proposicionais perante enunciados
modais.

O que frisaremos inicialmente aqui é a lacuna entre o nosso pensar e o mundo, lacuna
que podemos ver no nosso problema central quando o explicitamos. Vemos isso quando
pensamos sobre o que queremos dizer quando falamos que algo é ou não possível, sobre o
sentido do uso de 'possibilidade', e sobre a relação entre tal sentido e o critério comum que
utilizamos para aferir algum enunciado modal.

Qual o critério que diz o que é possível e o que é impossível? Em geral, parece
intuitivo responder que esse critério é aquilo que podemos conceber. Se concebemos, é
possível, se não concebemos, é impossível. Dessa forma, esse raciocínio é aceito sem muita
discussão quando observamos argumentos que sugerem possibilidades em diversos debates.
Assim temos os chamados argumentos de conceptibilidade. Aqui avaliaremos essa relação
entre possibilidade e concepção de modo mais geral, e na terceira parte da presente obra
faremos isso de forma mais específica e com mais ferramentas em mãos.

Também esclareço que concepção aqui está sendo entendida de uma forma mais ampla
e não tão específica ou precisa, como faremos na investigação da segunda parte. Aqui
entenderemos concepção sem uma distinção clara de imaginação, da mesma forma que o
senso comum. Conceber num sentido amplo de ver, fantasiar, imaginar, pensar, visualizar,
perceber, etc. Independentemente das distinções técnicas que poderemos perceber mais
adiante, toda essa noção ampla de conceber se encaixa na noção de atividade cognitiva. Sendo
assim, enfatizamos essa característica da concepção, ela é uma atividade do nosso aparato
cognitivo. Este sentido amplo pode ser visto no senso comum do termo conforme Gendler e
Hawthorne apresentam na primeira nota de sua introdução a Conceivability and Possibility:

O termo ‘conceber’ compartilha uma raiz com o termo ‘conceito’ – o primeiro é


rastreável do verbo latino concipere, o último ao seu particípio passado conceptus.
Mas enquanto o verbo concipere é usado frequentemente ao longo da antiguidade, o
emprego do termo conceptus na forma nominal não parece emergir até o terceiro ou
quarto século da Era Comum; em vez disso, o termo notion (aproximadamente
‘noção’) era empregado […] À luz disso, parece razoável seguir o uso moderno ao
permitir um sentido amplo para o termo ‘conceber’ que permite, como instâncias,
certos usos de […] ‘prever, visionar, supor, fantasiar, refletir, imaginar, retratar,
perceber, pensar, ver, visualizar’ – ou seja, um uso do termo que não é
27

comprometido com a relação entre conceber e conceituar. Imaginar e conceber no


sentido estrito são casos especiais de concepção nesse sentido amplo. (GENDLER;
HAWTHORNE; 2002, p. 1, tradução livre)4

Portanto, ainda nas palavras de Gendler e Hawthorne:

Nós temos, ao que parece, uma capacidade que nos permite representar cenários
para nós mesmos usando palavras ou conceitos ou imagens sensoriais, cenários que
pretendem envolver coisas atuais e não-atuais em configurações atuais ou não-
atuais. Existe uma maneira natural de usar o termo ‘conceber’ que se refere a essa
atividade em seu sentido mais amplo. (GENDLER; HAWTHORNE; 2002, p. 1,
tradução livre)5

Dessa forma, percebemos que quando estamos a falar de concepção, estamos a falar
sobre como representamos para nós mesmos o que nos aparece do mundo. Ou seja, como
configuramos o mundo em nossa mente. Quando falamos em conceber uma montanha laranja
ao lado da Torre Eiffel, estamos falando sobre a nossa capacidade mental, cognitiva, de
estruturar características da aparência do mundo para nós em configurações alternativas das
que se apresentam para nós atualmente. Não estamos falando do mundo, mas da nossa
apreensão e estruturação/reestruturação mental do mundo.

Por outro lado, quando falamos de possibilidades e dizemos que algo é possível ou
não, nós não estamos falando sobre a nossa forma de apreender e reestruturar a aparência do
mundo para nós. Estamos querendo falar, de fato, sobre o mundo ele mesmo. Quando
pensamos sobre uma mudança climática na Terra que inviabilize a nossa forma de vida,
estamos querendo falar de uma possibilidade do mundo mesmo, não sobre como nós
apreendemos o mundo. Quando dizemos que algo é possível ou algo é impossível, estamos a
falar do mundo, não temos a intenção de falar sobre nossa apreensão do mundo. Não temos a
intenção de falar sobre nossas atividades cognitivas.

4
No original: The term ‘conceive’ shares a root with the term ‘concept’ – the former is traceable to the Latin
verb concipere, the latter to its past participle conceptus. But while the verb concipere is used frequently
throughout antiquity, employment of the nominal form term conceptus does not seem to emerge until the third or
fourth century CE; instead, the term notion (roughly ‘notion’) was employed. […] In this light, it seems
reasonable to follow modern usage in allowing a broad sense for the term ‘conceive’ that permits as instances
certain uses of [...] ‘envisage, envision, fancy, fantasize, image, imagine, picture, see, think, vision, visualize’ –
that is, a use of the term that is non-committal on the relation between conceiving and concept-deployment.
Imagining and conceiving in the narrow sense are special cases of conceiving in this broad sense.
5
No original: We have, it seems, a capacity that enables us to represent scenarios to ourselves using words or
concepts or sensory images, scenarios that purport to involve actual or non-actual things in actual or non-actual
configurations. There is a natural way of using the term ‘conceive’ that refers to this activity in its broadest
sense.
28

Dessa forma, a concepção está num patamar epistêmico, cognitivo, ao passo que a
possibilidade está num patamar ontológico, ou seja, refere-se ao mundo e sua natureza além
de nossa mente. Isso mostra que, permeando o problema do critério de possibilidade nós
temos essa relação (lacunar para muitos) entre a mente e o mundo além da mente. O que
sugere a seguinte questão: o mental, a concepção, pode nos guiar para uma modalidade do
mundo, daquilo que é em última natureza, além da mente? Em outras palavras, o problema do
critério de possibilidade também se relaciona intimamente com o problema da relação mente-
mundo. Mas aqui, tocamos num ponto do mundo que talvez seja mais rarefeito do que
concreto, o campo da possibilidade no mundo.

Essa lacuna entre mente e mundo pode ser um dos entraves para a concepção como
guia para a possibilidade e, certamente, é motivo de suspeita, assim como qualquer outro
critério mental. E todos os critérios que possamos ter, certamente serão critérios mentais, pois
o que fazemos é passar de um ponto epistêmico para um ponto modal. Resta saber se estamos
bem autorizados a isso ou isso pode nos enganar na busca do conhecimento sobre o mundo.

Aqui temos a intenção de apenas explicitar a relação aparentemente lacunar entre a


mente e o mundo para que tenhamos em mente o que está em jogo no problema quando
formos avaliar as respostas ao questionamento. Voltaremos a refletir esse ponto com mais
esforço no capítulo IV, da segunda parte, onde avaliaremos a relação entre concepção e
cognição e refletiremos sobre a ideia de fechamento cognitivo.

Compreendido que há a distinção quando falamos sobre nossa compreensão do


mundo, algo mental, e quando falamos sobre a possibilidade e apontamos para o mundo em si
mesmo não circunscrito apenas à mente, então seguiremos para uma análise sobre a
possibilidade e suas tipificações.
29

2.2 A Noção de Possibilidade e as Respostas ao Problema do Critério

Os objetivos deste capítulo são: i) na seção 1, apresentar a tipificação padrão da


possibilidade; e ii) na seção 2, apresentar uma classificação alternativa de tipos de
possibilidade, fazer a relação com a tipificação padrão e explicitar a noção central de
possibilidade que está em jogo no problema; iii) na seção 3, apresentar as respostas comuns
ao questionamento de como sabemos que algo é possível; iv) na seção 4, esclarecer que há
duas formas de entender o nosso conhecimento sobre o que é possível; e v) na seção 5,
expressar um esboço da resposta que investigaremos na próxima parte de nossa reflexão.

2.2.1 Tipos de Possibilidade: Lógica, Metafísica e Física

Em sistemas de lógica modal, a possibilidade é compreendida como um operador


lógico aplicável a proposições. O operador é chamado de “diamante” e é representado pelo
seguinte símbolo “◊”. Tal operador, quando aplicado, pretende significar a expressão “é
possível que...”, de forma que quando temos “◊p”, queremos expressar que “é possível que
p”, onde p é uma proposição qualquer.

A possibilidade como operador lógico, contudo, é apenas um aspecto da possibilidade


(BEAZIAU, 2015, pg. 16). No entanto, esse aspecto é uma inspiração para percebermos uma
intuição similar, outro principal aspecto sobre a natureza da possibilidade, ela pode ser
aplicável a praticamente qualquer coisa do mundo. Ou seja, podemos aplicar possibilidade a
ações, eventos, ideias, teorias, seres, fatos. Por isso uma forma de “operador ontológico
universal”. Se o operador lógico pode ser aplicável a qualquer letra sentencial, e uma letra
sentencial se pressupõe ter/carregar algum conteúdo, e este conteúdo se mostra como um
enunciado que representa um estado de coisas do mundo, então, intuitivamente, temos a
noção de que a possibilidade tem a pretensão de se aplicar a um estado de coisas do mundo.

A característica da aplicabilidade a coisas no mundo poderia dar a impressão de que a


possibilidade não seria algo do mundo, mas algo das nossas teorias sobre o mundo. Contudo,
ela também é aplicável a si mesma, isto é, podemos falar da possibilidade de possibilidades,
como podemos ver nos sistemas modais S4 e S5. Há, por exemplo, o seguinte teorema de S4 e
S5: ◊p↔◊◊p. Tal teorema nos diz que é possível que p se, e somente se, é possível que é
30

possível que p (BARROSO; IMAGUIRE, 2006, pg. 298). Dele nós podemos tirar o seguinte
condicional: ◊p→◊◊p. Isso nos indica que a possibilidade de p implica a possibilidade da
possibilidade de p. Ou seja, a possibilidade é aplicável inclusive a si mesma, o que em
sistemas modais é chamado de 'modalidade iterada' – quando uma modalidade é aplicada a
outra modalidade. Isso nos leva a pensar, portanto, na natureza da possibilidade como algo da
realidade do mundo. Queremos mostrar que, com isso, há pelo menos uma forma de
compreender a possibilidade como algo do mundo e não apenas como um construto teórico6.

Em vista dessas características da possibilidade, tradicionalmente ela é dividida em


três tipos: i) possibilidade lógica; ii) possibilidade metafísica; iii) possibilidade física.

É entendido que a possibilidade física é a mais restritiva de todas e está contida na


possibilidade metafísica e na possibilidade lógica. Por sua vez, a possibilidade metafísica é
mais restritiva que a lógica, estando contida nesta, e menos restritiva que a física, contendo
esta última. Por fim, a possibilidade lógica é a menos restritiva, contendo as possibilidades
metafísicas e físicas e abrangendo mais que elas (VAIDYA, 2015; MURCHO, 2002). A
relação de restrição das possibilidades pode ser vista no seguinte diagrama, o qual
chamaremos de Diagrama de restrição de Possibilidades:

Possibilidades lógicas

Possibilidades metafísicas

Possibilidades Físicas

O diagrama de restrição das possibilidades é compreendido desta maneira devido às


seguintes restrições de cada possibilidade (VAIDYA, 2015; MURCHO 2002).

A possibilidade lógica é a mais abrangente das três. Algo é logicamente possível se


for consistente num sistema lógico. Em termos simples, se não houver uma contradição de
6
Uma vez que normalmente vemos a possibilidade não efetivada como um traço característico de mundos
possíveis, e mundos possíveis como não existentes realmente, pelo menos não de acordo com a concepção de
Kripke (1980). Mas é possível compreender a possibilidade de forma realista e não necessariamente aceitar que
apenas o mundo atual existe.
31

termos, uma contradição lógica, então algo é logicamente possível. Sendo assim, a
consistência lógica de algo lhe garante sua possibilidade lógica. Dessa forma, possibilidades
metafísicas e possibilidades físicas estão contidas na possibilidade lógica porque ambas
exigem consistência lógica de algo para que caiba sob essas noções, mas exigem mais do que
isso.

Já a possibilidade metafísica é mais restritiva que a possibilidade lógica e mais


abrangente que a possibilidade física. Ela é mais restritiva que a possibilidade lógica porque
não exige apenas a consistência lógica de algo para se dizer se algo é possível
metafisicamente, exige também a consistência da natureza da própria coisa. A própria coisa
tem que ser consistente com sua própria natureza, em sua própria estrutura ontológica, para
ser metafisicamente possível. Em outras palavras, algo não pode ser diferente de sua própria
essência. Contudo, ainda é mais abrangente que a possibilidade física porque não faz a
exigência de consistência física que a possibilidade física faz. Ou seja, algo pode manter sua
essência mesmo contradizendo as leis contingentes da física de nosso mundo. Por exemplo, a
possibilidade de uma nave espacial viajar acima da velocidade da luz. Não há contradição
lógica nisso, não deduzimos uma contradição de termos. Portanto, passa nos critérios de
possibilidade lógica. Todavia, contradiz as nossas leis mais aceitas da física onde nenhum
objeto pode se mover acima da velocidade da luz, sendo assim, não é uma possibilidade
física. Contudo, não é impossível que o mundo fosse de forma que objetos pudessem se
mover muito além da velocidade da luz. É contingente que haja uma lei física em nosso
mundo que limite a especificamente essa velocidade, ela poderia ser C+1 (onde C é a
velocidade da luz conforme nossa física atual). Isso é, pelo menos de acordo com uma análise
padrão, facilmente concebível.

A possibilidade física, por sua vez, é mais restritiva que as outras duas, pois exige não
só a consistência lógica e a consistência metafísica das outras duas como também o que
chamaremos de consistência física para se dizer que algo é fisicamente possível. Essa
consistência é a exigência que a coisa esteja em acordo e não contradiga as leis da física – que
por sua vez pretende espelhar as leis da natureza. Nesse sentido, uma coisa não é fisicamente
possível se ela não estiver de acordo com as leis da física, mesmo que ela esteja de acordo
com as leis da lógica e seja consistente ontologicamente, sendo, por sua vez, lógica e
metafisicamente possível. O exemplo é o que demos no parágrafo anterior. Por outro lado, se
algo não for metafisicamente possível, mas for logicamente possível, isso já implica que esse
32

algo não é fisicamente possível, pois a possibilidade física exige a consistência das outras
duas possibilidades.

Essa é a tipificação standard da possibilidade. É uma tipificação que à primeira vista


parece elegante e esclarecedora em suas definições, mas tem pressupostos de restrição
problemáticos. Por exemplo, quando dizemos que a possibilidade metafísica é mais restritiva
que a possibilidade lógica, nós estamos afirmando que não há nada metafisicamente possível
que não seja logicamente possível. Nesse sentido, as regras da lógica não estão sendo apenas
regras da lógica, mas também regras/leis ontológicas. Há um forte comprometimento
ontológico na lógica. Todavia, como lidaríamos com o pluralismo lógico e as visões
metafísicas sobre ele? A lógica paraconsistente, por exemplo, derroga o princípio da não-
contradição, dessa forma, uma sentença e sua negação podem ser ambas verdadeiras. Visões
ontológicas sobre a lógica paraconsistente, por exemplo, podem afirmar justamente a
existência real de contradições no mundo. Precisaríamos usar uma lógica diferente para cada
visão metafísica diferente e vice-versa na análise do que seria uma possibilidade lógica ou
possibilidade metafísica para aplicarmos a restrição? Uma visão ontológica que aceite
contradições no mundo real, teria, portanto, possibilidades mais abrangentes que uma visão
clássica da lógica e, por isso, a possibilidade metafísica seria mais abrangente e não mais
restritiva que a possibilidade lógica. Teríamos, portanto, um diagrama da forma do diagrama
1 ou do diagrama 2:

Diagrama 1

Possibilidade Lógica Possibilidade


Metafísica

Coisas logicamente Contradições


consistentes
33

Diagrama 2

Possibilidade
Metafísica

Contradições

Coisas logicamente
consistentes: possibilidade
lógica.

Mas se aceitamos o diagrama das restrições entre as possibilidades, nós já rejeitamos


de antemão determinadas visões metafísicas. Nesse sentido, já excluiríamos o
antiessencialismo ou a sugestão de modalidade de Descartes apenas ao expressar a noção de
possibilidade. Excluiríamos o antiessencialismo (posição em que os particulares não possuem
propriedades essenciais7) porque ele afirma que o que é possível é o que é logicamente
possível, tornando o conjunto da possibilidade lógica coextensivo ao da possibilidade
metafísica. Tal posição é expressa por David Hume e estabelece uma relação importante sobre
concepção e possibilidade a qual é de interesse ser investigada:

O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode
jamais implicar contradição, e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza,
como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o Sol não nascerá amanhã não é
uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de
que ele nascerá; e seria vão, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse
demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e jamais poderia ser
distintamente concebida pela mente. (HUME, 2004, p. 54, seção 4, par. 2)

Outra posição sobre metafísica da modalidade que excluiríamos do debate apenas por assumir
o diagrama acima seria o da sugestão de Descartes de que o mundo poderia ter diferentes leis
da lógica e da matemática, onde se seguiria que o conjunto das possibilidades metafísicas é
mais abrangente que o da possibilidade lógica – algo parecido com o Diagrama 2 acima. O
que percebemos no seguinte trecho:

7
Veja que a noção de consistência ontológica como critério da possibilidade metafísica pressupõe que
particulares tenham propriedades essenciais as quais não podem ser contraditas se quisermos saber o que é
possível ou não é possível metafisicamente.
34

[...] Ora, quem pode assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja
nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma
grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha o sentimento de todas essas
coisas... E, mesmo, [...] que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de
dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado [...] (DESCARTES, p.
87)

Portanto, se buscamos uma teoria da modalidade numa resposta ao problema do


critério de possibilidade, deveríamos já nos nossos pressupostos eliminar tais visões
metafísicas? Parece que não, deveríamos analisar a questão e ter os pressupostos que
propiciem pelo menos o debate.

Em vista disso, podemos ver a tipificação da possibilidade de uma forma alternativa e


que nos permita o debate. É o que faremos na seção seguinte.

2.2.2 Possibilidade relativa e possibilidade absoluta

Uma classificação alternativa e que não se comprometa com os pressupostos das


restrições e, possibilitando outros diagramas e não fazendo das regras lógicas necessariamente
regras ontológicas, é a classificação da possibilidade entre relativa e absoluta. Nesta
classificação não precisamos abrir mão das noções de possibilidade lógica, possibilidade
metafísica e possibilidade física, apenas não precisamos nos comprometer com as restrições
de relação entre elas.

Para esclarecermos as noções de possibilidade relativa e absoluta, precisamos apenas


observar algo que fazemos quando queremos saber se algo é possível ou não em determinadas
circunstâncias. Nós avaliamos as circunstâncias da situação/cenário e as colocamos como
restrições no campo de possibilidades. Ou seja, estamos a investigar qual possibilidade é o
caso dentro de um campo de possibilidades. Em seguida temos determinadas evidências e
circunstâncias que nos fazem eliminar um grupo de possibilidades. Dessa forma, a
possibilidade que buscamos está em relação às circunstâncias dadas. Por exemplo, um
inspetor de polícia que investiga um assassinato pode restringir as possibilidades em relação a
pessoas que teriam interesse naquele assassinato. Se ele descobrisse uma amostra de sangue
na arma do crime e numa análise laboratorial descobrisse que o sangue é de alguém do sexo
feminino e não é sangue da vítima, então ele já poderia restringir um pouco mais as
possibilidades dentre os suspeitos. Este tipo de raciocínio é um raciocínio de fazer com que a
35

possibilidade seja relativa a determinadas restrições. Nós restringimos um universo maior de


possibilidades a um universo menor de possibilidades. Essa é a intuição básica para a
compreensão de possibilidade relativa, diferentemente da possibilidade entendida de forma
absoluta, uma possibilidade sem mais qualificações. Contudo, quando nos perguntamos o que
realmente é possível, não nos perguntamos o que é relativamente possível, mas o que é
possível em absoluto. Esse sentido absoluto, portanto, é o que interessa para o nosso problema
central.

De acordo com essa compreensão, podemos ver a possibilidade física e a possibilidade


lógica como possibilidades relativas. “Ao falarmos de possibilidades lógicas e possibilidades
físicas, restringimos alguma parte do universo das possibilidades, ou melhor, tornamos a
possibilidade relativa: relativa às leis da lógica e relativa às leis da física, respectivamente”
(CID, 2010).

Se avaliarmos a noção e as consequências da possibilidade física, podemos perceber


ainda melhor a necessidade de compreendê-la apenas como possibilidade relativa e não
realmente como possibilidade, num sentido absoluto – ao menos inicialmente.

Quando nos perguntamos se é possível que o Sol não nasça amanhã e compreendemos
a possibilidade logicamente, não encontramos nenhuma contradição lógica no Sol não nascer
amanhã e, assim, a questão se torna trivial. Não faz sentido fazer essa pergunta. Para não cair
nessa trivialidade da pergunta e da resposta é que se sugere a possibilidade física. Supõe-se,
nesse sentido, que entendendo a possibilidade relativamente às leis da física, nós saberíamos,
de forma não trivial, se realmente é possível que o Sol não nasça amanhã. Todavia, se
assumimos que a possibilidade física pode nos ajudar a dizer se realmente é possível ou não
que o Sol não nasça amanhã, retirando sua trivialidade, então estamos pressupondo que a
natureza intrínseca do mundo se reduz às leis da física e ao que for dedutível delas, pois faz
com que as leis da física sejam necessárias por estipulação (CID, 2010; EDGINGTON, 2004).
Ora, se a possibilidade física nos diz realmente o que pode ou não pode nesse sentido, ela
retira toda a sorte de possibilidades diferentes das leis da física. Se não é possível que o
mundo seja diferente do que dizem as leis da física, então as leis da física não são
contingentes, mas necessárias, que fazem parte da natureza intrínseca do mundo. Mas “uma
teoria da modalidade não pode pressupor que as leis da física fazem parte dessa natureza
intrínseca” (CID, 2010, p. 88), ela tem que permitir o debate se as leis da física são realmente
parte dessa natureza intrínseca, uma vez que este seria um candidato a critério de
possibilidade.
36

Se a possibilidade física e a possibilidade lógica são relativas e não se adequam a ideia


de possibilidade absoluta, a possibilidade metafísica então seria a adequada? Isso é o que
sugere Cid quando diz (2010, pp. 88-89): “para sairmos, então, da relatividade das
possibilidades e falarmos de uma possibilidade absoluta, sem pressupor que a natureza
intrínseca do mundo é redutível às leis da física, temos que falar da possibilidade metafísica”.
Podemos compreender, assim, a possibilidade metafísica como possibilidade absoluta, a
possibilidade que nos diz realmente o que é possível ou não. Uma vez que ela não tem um
sentido epistêmico de modalidade conforme a modalidade relativa seja à física ou à lógica,
mas sim um sentido ontológico, uma modalidade de fato.

Entretanto, também a possibilidade metafísica é relativa se assumirmos possibilidade


metafísica da forma como é retratada no diagrama padrão da sessão anterior, em que algo é
possível metafisicamente se não entrar em contradição com a própria essência ontológica.
Esta noção de possibilidade metafísica se compromete com uma visão essencialista, em que
objetos possuem propriedades essenciais e isso é crucial para determinar sua possibilidade.
Isso estaria em acordo com algumas posições metafísicas e eliminaria outras posições
metafísicas antes mesmo de iniciar o debate – como o antiessencialismo. E essas posições
devem estar abertas ao debate pois cada uma reivindica um critério de possibilidade. Portanto,
a possibilidade metafísica é também uma possibilidade relativa e não é adequada à noção
absoluta que buscamos. A menos que a compreendamos de forma ampla e não no sentido
essencialista; como possibilidade metafísica pura, tenham as coisas que existem essência ou
não, aceitem contradições ou não.

Consequentemente, temos que uma distinção entre modalidade relativa e absoluta é a


seguinte: se P é relativamente possível/necessário, não se segue que P é realmente
possível/necessário; mas se, e só se, P é absolutamente possível/necessário, segue-se que P é
realmente possível/necessário.

Deste modo, se queremos saber o que realmente é possível ou não, o que realmente
faz com que algo seja possível ou não, e não apenas o que é possível relativamente a um
sistema de regras, sejam elas lógicas ou leis científicas, então o nosso interesse é quanto à
noção absoluta de possibilidade, e a noção de possibilidade metafísica absoluta é a noção que
nos diz o que realmente é possível ou não.

Dessa forma, buscar um critério de possibilidade é buscar saber o que é absolutamente


possível. Se o que é absolutamente possível coincide com o que é fisicamente possível, ou
37

logicamente possível ou metafisicamente possível no sentido essencialista é o que deve estar


em debate. Ou seja, isso não elimina, por fim, que o critério de possibilidade da possibilidade
metafísica absoluta possa ser o mesmo critério da possibilidade lógica ou física ou
essencialista, apenas não assume de imediato tal critério e nos põe um caminho claro a seguir
para a resposta do problema sobre o que faz realmente algo ser possível ou não.

Alguém aqui pode pensar que essa noção de possibilidade absoluta é uma ficção ou
mito, ao passo que o que realmente podemos fazer é apenas lidar com possibilidades relativas
– se formos utilizar da forma que distinguimos aqui. Penso que haja razão em suspeitar disso,
talvez essa sugestão de possibilidade absoluta seja mesmo um mito ou ficção. De qualquer
modo, metodologicamente seria um mito ou ficção necessário para nossa investigação. É um
parâmetro significativo para regular o debate reflexivo e, além disso, mostra-se um parâmetro
necessário porque captura a intuição fundamental da noção de possibilidade. Essa noção dá
significado às posições que estão em debate. Por exemplo, quando um antiessencialista
defende que o que é possível é o que é logicamente possível, está a sugerir que o que é
absolutamente possível é o que é logicamente possível. Ou quando um essencialista endossa
que o que é possível é o que é metafisicamente possível em termos essencialistas, ele está a
sugerir que o que é absolutamente possível é o que é metafisicamente possível em termos
essencialistas. O que está em jogo é o que seria essa possibilidade absoluta ou pura. Não só
isso, ela também nos ajuda a perceber que é extremamente significativo, e com várias
implicações para diversos debates filosóficos, caso ela seja uma ficção ou mito e que só nos
resta trabalhar com a noção de possibilidade relativa: isso significa uma precariedade em
nossas capacidades epistêmica e uma dificuldade para se sustentar posições metafísicas fortes
em sentido absoluto – seria difícil que pudéssemos conhecer a verdade sobre a natureza
última das coisas. Voltaremos a pensar sobre isso no capítulo 6, Consequências filosóficas.

Por ora, temos claro o que falamos quando falamos de possibilidade, estamos a falar
de possibilidade metafísica num sentido absoluto: possibilidade absoluta. Sendo assim,
seguiremos para a apresentação dos candidatos aos critérios de possibilidade, em seguida dos
tipos de visão sobre o nosso conhecimento da modalidade e, por fim, deixaremos claro qual
candidato a critério de possibilidade abordaremos na presente dissertação. Isso será o
encerramento e o trânsito para a próxima parte de nossa reflexão. Seguem-se, portanto, os
critérios de possibilidade na próxima seção.
38

2.2.3 Respostas comuns

A questão epistêmica de como nós sabemos sobre a verdade de um enunciado modal,


isto é, como sabemos que algo é de fato possível ou não, tem muitos candidatos à resposta.
Tais quais: percepção, intuição, concepção, imaginação, dedução, teoria e similaridade
(VAIDYA, 2015).

Por exemplo, dado o seguinte fato do mundo atual: um copo está numa mesa ao meio
dia e Maria percebe que o copo está na mesa ao meio dia. Temos, portanto, a seguinte questão
epistêmica: como Maria saberia que o copo poderia estar na cadeira, e não na mesa, naquele
mesmo meio dia? As respostas potenciais são as seguintes:

Percepção: mesmo o copo não estando na cadeira, Maria percebe que o copo poderia
estar na cadeira.

Intuição: mesmo o copo não estando na cadeira, Maria tem uma intuição básica não
sensória que o copo poderia estar na cadeira quando Maria se pergunta: poderia o copo estar
na cadeira?

Concepção: Maria pode conceber um cenário no qual o copo está na cadeira, e não na
mesa, naquele meio dia. A justificação de Maria é derivada da crença de que o copo poderia
estar na cadeira pela concepção de tal cenário.

Imaginação: Maria imaginou um processo pelo qual o copo se move da mesa para a
cadeira e não encontrou nenhuma contradição nisso. Portanto, Maria está justificada em
acreditar que o copo poderia estar na cadeira com base na sua imaginação do movimento.

Dedução: Maria pode deduzir do conhecimento fundamental sobre o copo e relevantes


detalhes sobre a nova localização, a cadeira, que o copo poderia estar na cadeira, desde que o
copo não seja fundamentalmente incompatível com estar na cadeira.

Teoria: Partindo do conhecimento de Maria sobre o copo, bem como fatos relevantes
sobre a cadeira, Maria pode saber que o copo poderia estar na cadeira.

Similaridade: partindo de observações prévias de objetos similares ao copo assim


como suas localizações e movimentos, Maria pode vir a saber que o copo poderia estar na
cadeira.
39

Não cabe no escopo da presente dissertação pormenorizar todas estas respostas, mas
apenas apresentá-las de modo mais geral para seguirmos no nosso intento. Sendo assim,
veremos duas formas de ver o acesso ao conhecimento modal tendo em vista essa variedade
de respostas.

2.2.4 Visão uniforme e visão não-uniforme

Quando nos questionamos como sabemos que algo é possível e ponderamos sobre as
respostas comuns, podemos pensar que apenas uma das respostas é a correta ou que mais de
uma é correta. Disso temos duas visões sobre o conhecimento modal. Uma é a visão uniforme
e a outra é a visão não-uniforme (VAIDYA, 2015).

A visão uniforme é a de que há apenas uma via fundamental para o conhecimento


modal. Em outras palavras, apenas um dos candidatos à resposta entre as respostas comuns é
o modo correto e que fundamenta o conhecimento modal, sustentando todas as outras formas.
Sendo assim, todas as outras respostas são redutíveis à essa via fundamental, e quando não o
são, não o são porque não dão conhecimento sobre a modalidade – não são justificativas
suficientes.

Por outro lado, a visão não-uniforme é a de que diferentes pessoas podem conhecer a
mesma verdade modal de diferentes formas ou então que há mais de uma via fundamental
para o conhecimento modal. Ou seja, uma pessoa pode saber que algo é possível por
imaginação e outra por dedução, por exemplo, e ambas estarem corretas em saber sobre tal
possibilidade, desde que a imaginação e a dedução sejam ambas vias corretas e fundamentais
de acesso ao conhecimento modal. Portanto, essa visão sugere que mais de uma, ou talvez
todas, entre às respostas comuns nos levem a conhecer alguma possibilidade, de forma que as
vias possam se complementar. Dessa forma, se alguém não conhece a possibilidade de algo
por imaginação, por exemplo, pode conhecer por teoria. Se o agente cognitivo puder conhecer
de pelo menos uma das formas fundamentais de conhecimento modal já é o suficiente para se
estar justificado, mesmo que não consiga por outras vias.

Não está no escopo de nossa reflexão sustentar uma visão ou outra, contudo, é
importante que as tenhamos em mente ao refletirmos sobre a concepção como via de
conhecimento modal. Ora, na investigação se a concepção é realmente um guia correto para o
conhecimento modal podemos chegar a, pelo menos, três respostas: 1) a concepção é um guia
40

correto para o conhecimento modal; 2) a concepção não é um guia correto para o


conhecimento modal; 3) não sabemos se a concepção é um guia correto para o conhecimento
modal. Vejamos a relevância de ambas visões nessas conclusões.

Se concluirmos 1) e a visão não-uniforme estiver correta, então não podemos concluir


que a concepção é a única via de conhecimento de possibilidades. Por outro lado, se a visão
uniforme estiver correta, então temos que concluir que, além da concepção, não há outros
meios de conhecer possibilidades, ou que, se há outras vias, que elas são redutíveis a uma
única via que é a fundamental.

Se concluirmos que 2) e a visão uniforme estiver correta, então não podemos concluir
que não temos como saber se algo é possível ou não, uma vez que há outras respostas e talvez
a concepção apenas não seja a fundamental. Ou se a visão não-uniforme estiver correta,
embora a concepção não seja um guia correto para todos os casos, isso não implica que ela
não seja fundamental, pois nesses outros casos que a concepção não alcança usaremos outras
vias fundamentais. Ora, uma vez que nessa situação há mais de uma via fundamental e uma
via fundamental não se compromete com todos os casos.

Por fim, se concluirmos que 3) e a visão uniforme estiver correta, não saber se a
concepção é um guia correto para o conhecimento modal não implica que ela não seja
derivável de outra forma e que nós possamos saber dessa outra forma mais fundamental. Ou
se a visão não-uniforme estiver correta, não implica que nós não temos como ter
conhecimento modal pois há outras formas fundamentais de obter conhecimento modal.

Em todo caso, vemos que investigar a concepção como resposta, pelo menos em
princípio, não esgota a investigação sobre o critério de possibilidade. Precisaríamos investigar
todas as outras respostas e ainda as razões para tomar uma visão uniforme ou uma visão não-
uniforme. A investigação que propomos sobre a concepção como via para a possibilidade é
um passo dentro de uma investigação mais ampla. Dito isto, quando avaliarmos as razões e as
conclusões que nos levam por um caminho ou outro na reflexão, teremos em vista esse
horizonte mais amplo para que não se siga uma conclusão além do que as razões realmente
podem sustentar. Que as conclusões se delimitem ao escopo que definimos inicialmente.
41

2.2.5 Concepção como Resposta Padrão

Como vimos, há várias respostas para a questão de como sabemos se algo é possível e
há duas visões gerais sobre tais respostas que inicialmente delimitam as conclusões de nossa
investigação. Dentre as respostas há uma amplamente utilizada em diversos argumentos
modais, mais especificamente, argumentos de conceptibilidade, e conhecida como sendo uma
resposta padrão. É a resposta da concepção como guia para o conhecimento modal. Essa é a
resposta que interessa a nossa investigação e que está em jogo no problema central que nos
debruçamos.

No início de nossa reflexão entendemos “concepção” num sentido amplo de ver,


fantasiar, imaginar, pensar, visualizar, perceber, num sentido amplo de atividade cognitiva.
Todavia, se observarmos as respostas comuns, vemos que algumas das respostas estão dentro
desse sentido amplo de “concepção” mesmo não sendo consideradas concepção de forma
estrita. Um destes exemplos é a imaginação, que é considerada uma resposta diferente da
resposta da concepção. Conceber um cenário não significa necessariamente fazer uma
representação imaginativa. Isso nos leva a ponderar que temos pelo menos duas formas de
entender “concepção” como resposta ao problema do critério de possibilidade. Uma é
entender a concepção num sentido amplo, outra é entender a concepção num sentido estrito.

Num sentido amplo, todas8 as respostas comuns estão incluídas no significado de


concepção. Dessa forma, avaliar a resposta padrão da concepção seria avaliar a resposta da
percepção, da intuição, da imaginação, da dedução, da teoria e da similaridade. Além disso,
esse sentido amplo parece levar em conta a visão uniforme do conhecimento modal, uma vez
que todas essas respostas seriam formas de conceber. Isso indicaria que a concepção é a via
fundamental de conhecimento modal.

Uma vez que não podemos pressupor inicialmente a visão uniforme em detrimento da
visão não-uniforme, devemos tomar a noção de concepção em escrutínio. É o que faremos no
próximo momento de nossa investigação ao analisar os vários aspectos da concepção para
avaliarmos em seguida se é um guia correto para o conhecimento modal.

8
Com exceção talvez da intuição, a depender de como se entenda a natureza da intuição.
42

2.3 Conclusão

No primeiro momento de nossa reflexão investigamos a noção de possibilidade, vimos


um método que nos guiaria em saber se a concepção é critério de possibilidade, a saber, a
metodologia da coextensão de domínios, apresentamos o que está no horizonte do problema
do critério de possibilidade e, por fim, elencamos as respostas comuns ao problema. Com
efeito, chegamos a algumas conclusões.

Investigar se a concepção nos leva ao conhecimento de uma possibilidade é uma


forma de estabelecer o conhecimento na relação mente-mundo, portanto, uma investigação da
concepção como guia ao conhecimento modal tem consequências relevantes na discussão da
relação mente-mundo e vice-versa – embora aqui nosso ponto de partida seja o da
epistemologia modal. Tendo isso em mãos, ao investigar a noção de possibilidade
encontramos pelo menos três formas de entendê-la e relações de restrição entre elas: 1)
possibilidade lógica; 2) possibilidade física; 3) possibilidade metafísica. Todavia, percebemos
que as relações de restrição entre elas já retiravam algumas posições do debate sobre a
metafísica da modalidade, por isso não eram restrições adequadas para o debate sobre o que é
possível – seriam necessárias razões independentes da classificação. Não só isso, mas há
outros dois aspectos da possibilidade, são eles o da possibilidade relativa e da possibilidade
absoluta. Nessa distinção, percebemos o que é adequado à nossa investigação é a noção de
possibilidade absoluta. Vimos que as possibilidades lógica, física e metafísica se encaixavam
na noção de possibilidade relativa, consequentemente, não eram noções adequadas para a
investigação inicial. A possibilidade metafísica, nesse sentido, é entendida por relativa porque
ela pressupõe o essencialismo, sendo então uma possibilidade metafísica essencialista. Mas se
entendida não em sentido necessariamente essencialista, podemos chegar a uma noção de
possibilidade metafísica em sentido absoluto que se adéqua à investigação sobre o que é
realmente possível. Por conseguinte, o centro de nossa investigação é saber se a concepção é
um guia para o conhecimento da possibilidade num sentido absoluto. Porém, a concepção não
é a única candidata à resposta correta ao problema do critério de possibilidade. Vimos que há
outras respostas e pelo menos duas formas gerais de ver tais respostas, uma visão uniforme e
uma visão não-uniforme. Concluímos então que mesmo obtendo uma resposta para a questão
se a concepção é um guia correto para o conhecimento da possibilidade, isso não significa que
43

a questão sobre o que torna algo possível tenha sido esgotada a ponto de sustentar uma
resposta nesse sentido – embora tal investigação seja um bom esforço nesse caminho.
Finalmente, munidos destas conclusões estamos aptos a refletir de forma mais clara sobre o
segundo momento de nossa investigação.
44

3 A NATUREZA DA CONCEPÇÃO
45

3.1 Entendendo a Concepção

(...) certos conhecimentos abandonam o campo de todas as experiências


possíveis e, por meio de conceitos aos quais não pode ser dado nenhum objeto
correspondente na experiência, aparentam estender o alcance de nossos juízos para
além de todos os limites da mesma. (KANT, B6, 2013, p. 48)

Como vimos, aparentemente há duas formas de se compreender ‘concepção’, um


sentido amplo e um sentido estrito.

Num sentido estrito de concepção está a resposta da concepção ao problema do


critério de possibilidade. A resposta que diz que algo é possível se for concebido num cenário.
Conceber, nesse sentido estrito, está relacionado a “pôr em um cenário” – o que quer que seja
isso.

Num sentido amplo, conceber é, como dissemos antes, uma atividade cognitiva tal
como fantasiar, imaginar, pensar, visualizar, perceber, etc. Quando alguém quer nos dizer o
que é um smurf e pede para que imaginemos uma pessoa azul minúscula, dizemos facilmente
que agora concebemos um smurf. Quando estamos a fantasiar sobre a Terra Média das obras
de Tolkien, facilmente dizemos que concebemos o mundo do desenrolar de Senhor dos Anéis.
Quando dizemos que não estamos conseguindo conceber a imagem de uma obra de arte
abstrata e então alguém nos mostra a obra, finalmente dizemos que concebemos a imagem –
embora isso não seja o suficiente para conceber a obra de arte mesma – e nisso está a ligação
da concepção com a percepção. Num caso como o da obra de arte abstrata, comumente
precisamos ter uma teoria que nos auxilie a conceber tal obra em sua totalidade, assim,
conceber parece também se ligar à necessidade de uma teoria. Ou mesmo quando não estamos
a compreender algo que alguém diz e respondemos que não estamos concebendo tal
expressão, logo esta pessoa nos apresenta analogias e outras coisas similares e,
frequentemente, dizemos então que conseguimos conceber naquelas novas circunstâncias – a
concepção aqui está ligada com a similaridade. Há outra situação, é a de que nós não
concebemos determinado resultado matemático, mas quando nos deparamos e
compreendemos as deduções que nos levam àquele resultado, então dizemos que concebemos
– por dedução. Por fim, até mesmo quanto à intuição. Muitas vezes não conseguimos
conceber o que outras pessoas costumam dizer que estão a conceber por alguma forma de
46

intuição, por exemplo a intuição mística – mesmo não conseguindo explicitar de forma bem
delimitada tal intuição – mas então de alguma forma, por alguma experiência subjetiva, temos
algo que chamamos de intuição e agora dizemos que concebemos o que estava a ser dito.
Aqui, conceber é também intuir. No sentido amplo, portanto, a concepção se mistura com a
própria ideia geral de cognição e atividade cognitiva, ou a atividade mais fundamental de
apreensão (o que quer que seja isso) da mente.

Para avaliar a concepção como resposta ao problema do critério de possibilidade nós


precisamos de uma noção clara de concepção para que não haja confusões. Logo, se
quisermos ter uma noção clara do que seja concepção e, assim, do que seja conceber, então
temos que avaliar atentamente esses dois sentidos de concepção para saber qual é mais
adequado. Esse, portanto, é o objetivo geral deste capítulo. Para isso, temos alguns pontos
específicos a analisar nas seções seguintes.

Na seção 1), avaliaremos o sentido amplo de concepção e razões para não utilizarmos
esse sentido frente à distinção entre a concepção e as outras respostas ao problema do critério
de possibilidade; na seção 2) avaliaremos o sentido estrito de concepção e veremos que é mais
adequado por ter uma maior precisão, contudo, precisamos de mais clareza devido ao que se
mostra como problema do critério do critério, o que será feito em duas subseções. Na
primeira subseção avaliaremos a relação entre a noção de concepção e a noção de conceito.
Na segunda subseção avaliaremos uma resposta ao problema do critério do critério.

Avaliando esses pontos, acreditamos que teremos uma noção clara de concepção para
que possamos, em seguida, relacioná-la a nossa cognição em geral. Com isso, teremos a
conclusão desse segundo momento de reflexão.

3.1.1 O sentido amplo de concepção

No sentido amplo, a concepção se confunde com todas as outras respostas ao problema


do critério de possibilidade. Se esta noção de concepção for uma boa noção para avaliarmos o
problema de se a concepção é guia para a possibilidade, então deveríamos avaliar todas as
outras respostas. Contudo, podemos nos questionar se a concepção é realmente tudo isso. Se
conceber for tudo isso, então todos os casos de concepção são casos de outras respostas e
vice-versa. Nas subseções seguintes, mostraremos que isso não acontece, ou seja, são noções
independentes embora relacionáveis, e esta é a razão para não seguir com esse sentido. Ora, se
47

há casos que aparentemente temos concepção e não temos as outras respostas e vice-versa,
continuar com o sentido amplo de concepção seria um gerador de confusões. Começaremos
pelo caso emblemático da imaginação.

3.1.1.1 Concepção e Imaginação

Defenderemos que conceber não é imaginar. Veremos isso com um exemplo


paradigmático da distinção que é o exemplo do quiliógono. Este exemplo ficou famoso
quando ilustrado por Descartes na sexta meditação de suas Meditações Metafísicas:

(...) assinalo primeiramente a diferença que existe entre a imaginação e a pura


intelecção ou concepção. Por exemplo, quando imagino um triângulo, não o concebo
somente como uma figura composta e compreendida por três linhas, mas, além
disso, considero essas três linhas como presentes pela força e pela aplicação interior
de meu espírito; e é a isso propriamente que chamo imaginar. Que, se quero pensar
num quiliógono, concebo na verdade que é uma figura composta de mil lados tão
facilmente quanto concebo que um triângulo é uma figura composta por três lados
somente; mas não posso imaginar os mil lados de um quiliógono, como faço com os
três de um triângulo, nem por assim dizer olhá-los como presentes com os olhos de
meu espírito. E embora, seguindo o costume que tenho de servir-me sempre de
minha imaginação, quando penso nas coisas corporais, aconteça que, concebendo
um quiliógono, eu me represente confusamente alguma figura, é muito evidente,
todavia, que essa figura não é um quiliógono, uma vez que não difere de forma
alguma daquela que me representaria se pensasse num miriógono, ou em qualquer
outra figura de muitos lados; e que ela não serve de modo algum para descobrir as
propriedades que fazem a diferença entre o quiliógono e os outros polígonos.
(DESCARTES, 2011, p. 110)

Se alguém nos pede para imaginar um quadrado, não temos muita dificuldade em fazê-
lo, mas se alguém nos pede para imaginar um quiliógono, então temos apenas algo difuso em
nossa mente. Parece até que está fora do alcance de nossa imaginação. Quando fechamos os
olhos e buscamos uma imagem mental, parece claro que falhamos no intento. Contudo,
quando esclarecemos que se trata de um polígono de mil lados, já se torna mais fácil a
compreensão. Nesses casos nós costumamos dizer que nós não imaginamos um quiliógono,
mas o concebemos. Esse é um exemplo paradigmático em que temos concepção e não temos
imaginação. Como se conclui que há distinção nos dois processos mentais na famosa
meditação:

Que, se se trata de considerar um pentágono, é bem verdadeiro que posso conceber


sua figura, tal como a de um quiliógono, sem auxílio da imaginação; mas também
48

posso imaginá-la aplicando a atenção de meu espírito a cada um de seus cinco lados
e conjuntamente à área ou ao espaço que encerram. Assim conheço claramente que
tenho necessidade de uma particular contenção de espírito para imaginar, da qual
não me sirvo para conceber; e essa particular contenção de espírito mostra com
evidência a diferença que há entre a imaginação e a intelecção ou concepção pura.
(DESCARTES, 2011, p. 110-1)

Se conceber fosse imaginar, e vice-versa, não deveríamos ter casos deste tipo em
nosso senso comum. Isso parece nos indicar que o sentido amplo pode ser apenas uma forma
confusa de se entender a concepção. Dessa forma, concepção e imaginação são noções
independentes embora relacionáveis, é o que defende Beziau (2015) em Possibility,
Imagination and Conception quando nos ilustra mais exemplos da independência das noções:

Também não é claro que seres humanos possam imaginar Aleph zero e o conjunto
vazio. Estes podem ser considerados objetos puramente conceituais como muitos
objetos matemáticos, incluindo números imaginários. Nós temos uma imagem de
um número imaginário? (BEZIAU, 2015, p. 10, tradução nossa) 9

Mas os exemplos não se limitam ao campo matemático com quiliógonos, Aleph zero,
conjunto vazio e números imaginários. Um exemplo, também ilustrado por Beziau (2015),
mas no campo da física é o caso dos quantons. Concebemos tal entidade conceitualmente
através de nossas teorias em física quântica. Tal entidade ora parece partícula, ora parece
onda, mas não é nem partícula e nem onda. Nesse sentido, não temos como imaginar tal
objeto. Nossos microscópios nos dão apenas uma aparência ora de partícula, ora de onda, mas
não a coisa que nem é partícula e nem onda (BEZIAU, 2015, p. 14).

Esses exemplos parecem suficientes para percebermos a independência entre a


concepção e a imaginação. Se formos atentos, veremos que isso se deve ao que é central para
cada noção. O que é central para a concepção é a noção de conceito, conceber está ligado a
“pôr em conceito”. Por outro lado, o que é central para a imaginação é a noção de imagem.
Imaginar está ligado a “pôr em imagem”. Como observamos já nas Meditações Metafísicas
em que “(...) imaginar não é outra coisa senão contemplar a figura ou a imagem de uma coisa
corporal.” (DESCARTES, 2011, p.47). Nesse mesmo sentido que Beziau (2015) expressa
essa centralidade na noção de imaginação:

Nós entenderemos imaginação aqui em relação direta com imagens, em particular


imagens materiais: pintura, um desenho, uma fotografia, um reflexo no espelho ou

9
No original: It is also not clear at all that human beings can imagine aleph zero and the empty set. These can be
considered as purely conceptual objects like many mathematical objects, including imaginary numbers. Do we
have an image of an imaginary number?
49

na água, um filme. Imagens materiais podem ser a representação de realidade


concreta ou de uma realidade abstrata. (p. 5, tradução nossa).10

É neste sentido de distinção das centralidades que Beziau (2015, p. 8) propõe que
temos casos de imaginação sem concepção. Tal exemplo é o de uma viagem além do sistema
solar. Mas acreditamos que uma viagem interestelar ilustre de forma mais dramática. Nós
conseguimos imaginar tal viagem, inclusive fazemos cinema sobre isso – um exemplo é
Interestellar (2014) dos irmãos Christopher e Jonathan Nolan. No entanto, não temos
conceitos suficientes que nos mostrem como uma espaçonave faça tal viagem interestelar, de
acordo com nossas teorias físicas paradigmáticas ou quaisquer teorias alternativas. Portanto,
nós não conseguimos conceber uma viagem interestelar, embora consigamos imaginá-la.

Com essas distinções na centralidade das noções podemos observar outra diferença
relevante e crucial ao longo de nossa reflexão, a imaginação parece ter uma autoridade de
primeira pessoa que a concepção não tem, pois, a concepção se fundamenta em conceitos
(linguagem) e, por isso, pode-se pedir uma justificativa para dada concepção – uma
justificativa em terceira pessoa11. Conceitos são aparentemente compartilháveis e acessíveis.

Uma vez que estabelecemos a independência entre a imaginação e a concepção ao


observar através de exemplos a distinção das noções centrais em cada uma, respectivamente
imagem e conceito, então estabelecemos que conceber não é imaginar. Portanto, ao
avaliarmos a concepção como resposta ao critério de possibilidade não devemos nos
confundir avaliando a imaginação. Seríamos levados a essa confusão se seguíssemos o sentido
amplo de concepção conforme o senso comum.

10
No original: We understand imagination here in direct relation with images, in particular material images:
painting, a drawing, a photograph, a reflection in a mirror or in the water, a movie. A material image can be a
representation of concrete reality or of an abstract reality.
11
Isso não é o caso se considerarmos conceitos fenomênicos (o conceito subjetivo de azul, o azul-para-mim, em
contraste com o conceito objetivo de azul, o azul-falado), o que poderia nos gerar uma noção de linguagem
privada em algum sentido. Para maior aprofundamento na ideia de conceitos fenomênicos, ver NIDA-
RÜMELIN (1998).
50

3.1.1.2 Concepção e Percepção

Da mesma forma que concepção não é imaginação, também não é percepção12. A linha
de raciocínio não difere. A noção central de percepção é “estar nos sentidos perceptuais”, em
contraste com “pôr em conceito” da concepção. Os exemplos são mais claros.

Os mesmos exemplos de concepção sem imaginação servem para concepção sem


percepção. Nós concebemos o conjunto vazio, mas nós não vemos13 o conjunto vazio, nem
cheiramos, nem degustamos, nem ouvimos e muito menos tocamos. Facilmente temos casos
em que concebemos embora não percebamos.

Já os casos em que temos percepção e não temos concepção são os casos de outros
animais ou mesmo de crianças de até certa idade. Não dizemos que um cachorro concebe a
Nona Sinfonia de Beethoven, mas estamos inclinados a dizer que ele percebe auditivamente14.
Temos claramente um caso de percepção sem concepção. Também estamos inclinados a dizer
que um bebê percebe as coisas, mas não dizemos que ele concebe, afinal ele ainda não dispõe
de conceitos. Novamente, percepção sem concepção. Estes são apenas alguns exemplos dos
muitos que existem se variarmos os sentidos perceptuais.

12
Nesse ponto, não uso Percepção como tendo necessariamente sempre uma interpretação, ou seja, que perceber
já carregue em si uma interpretação sobre o que se vê. Mas sim num sentido da Teoria de conteúdos mentais
não-conceituais, em que a ideia central é a de que alguns estados mentais representam o mundo para um portador
mesmo que ele não possua os conceitos necessários para especificar o conteúdo do estado. Sugiro esta visão
porque ela dá sentido a concepção ser uma resposta diferente da resposta da percepção de forma que possamos
ter uma distinção maior do que seja a concepção. De qualquer forma, se esta visão não for correta, mas sim a
visão em que toda percepção exige conceitos/interpretação (nesta visão usual em psicologia cognitiva, o uso de
perceber aqui pode se parecer com o uso de sentir ou uma “percepção primitiva”, caso ainda se queira uma
distinção mesmo nesta posição), então toda a reflexão e argumentação sobre a resposta da concepção que
faremos em diante também será suficiente para a resposta da percepção. Como não cabe na presente proposta
uma investigação ampla da percepção em geral, mas apenas alguns aspectos, então metodologicamente assumo
esta posição. Todavia, não é uma posição de todo arbitrária, há várias razões relevantes para tal visão. Para mais
informações, além de uma visão geral e panorâmica sobre a Teoria do conteúdo mental não-conceitual e as
razões dessa visão sobre a percepção, ver BERMÚDEZ e CAHEN, 2015.
13
Ver o símbolo que representa o conjunto vazio em nossas notações não é o mesmo que ver o conjunto vazio.
14
Pode-se considerar que outros animais possuam determinados conceitos, embora não possuam símbolos para
isso. Esse é o caso se assumirmos a ideia de conceitos fenomênicos, por exemplo, um cachorro teria o conceito
fenomênico do cheiro da rosa, embora não tenha símbolo para expressar esse conceito em forma de linguagem
natural. O que sugiro aqui é que só faz sentido utilizar a ideia de conceito fenomênico para espécies capazes de
conceitos em linguagem sistematizada (mesmo que em uma linguagem do pensamento), caso contrário não faz
sentido dizer que são conceitos fenomênicos, mas simplesmente experiências fenomênicas. Há também outras
formas de compreender que animais possuem alguns conceitos embora não tenham símbolos, por exemplo
quando um cachorro reconhece comandos, esses comandos seriam conceitos apreendidos por eles e com poder
causal em sua economia cognitiva. Por mais que assumamos esses conceitos instrutivos, isso não implica que
toda a percepção e a experiência do cachorro seria pautada por conceitos (o que seria o caso se utilizássemos
conceitos fenomênicos), mas apenas algumas relações com o ambiente, a saber, a de compreender e agir de
acordo com o comando.
51

Dessa forma, estabelecida a independência entre a concepção e a percepção através de


tais exemplos, então está estabelecido que conceber não é perceber. Portanto, não façamos a
confusão que sugere o sentido amplo de concepção no senso comum, ou seja, quando
avaliarmos a concepção como resposta não confundamos com a percepção como resposta.

3.1.1.3 Concepção e Intuição

Intuição, no sentido aqui discutido, é um tipo de percepção não sensória. Nesse sentido
metafórico de percepção, parece que a concepção também se encaixa como uma percepção
não sensória. Conceber então seria intuir? Não.

O que há de central para a concepção, a noção de conceito, não parece central para a
intuição. Aqui temos a distinção novamente. Podemos intuir sem conceber. Um exemplo é a
intuição como um tipo de palpite, pressentimento, quando refletimos sobre um problema que
não temos uma resposta, mas que dizemos que temos uma intuição de que a resposta seja A
ou B. Não temos conceitos suficientes ainda que nos mostrem como seja A ou B, mas
comumente dizemos que temos uma intuição. A intuição aqui pode estar alicerçada em vários
indícios de outra ordem que parecem indicar A ou B, o que algumas vezes repensamos se
chamamos de intuição, mas também há casos sem muito indício, quase como uma confiança
de que seja por aquele caminho ou aquilo. Dessa maneira, é muitas vezes a intuição que nos
ajuda a seguir um caminho de formular futuramente um conceito para que possamos ter uma
concepção, mas não dizemos que é a intuição mesma uma concepção.

Esses exemplos de intuição sem concepção não devem ser confundidos com os
exemplos de concepção implícita que, por exemplo, Christopher Peacocke sugere em
Concepções implícitas, compreensão e racionalidade (PEACOCKE, 2014). Concepções
implícitas exigem uma aplicabilidade do conceito por um agente cognitivo, embora não se
saiba explicitar tal conceito (PEACOCKE, 2014, pp. 33-44). Isso difere radicalmente da
intuição aqui. Por exemplo, dizemos que Leibniz e Newton tinham uma concepção da noção
de limite de uma série, tinham um conceito para eles mesmos, isso se mostrava quando
facilmente eles resolviam questões do tipo. Todavia, eles não explicitaram o conceito numa
equação matemática (PEACOCKE, 2014, pp. 39-40). Embora pareça algo muito similar, a
diferença é a aplicabilidade. Quando temos uma intuição de algo, nem sempre sabemos
aplicar, pois não temos um conceito para nós mesmos ainda.
52

Intuições místicas também podem ser dadas como exemplo. É um fato comum na
história o de pessoas relatarem intuições místicas pouco definidas, o que faz com que
frequentemente seja difícil falar sobre tal intuição mística de forma literal e direta. Isso faz
com que muito do que é falado num discurso místico seja metafórico ou alegórico.
Inicialmente não há conceito numa intuição deste tipo, mas há intuição.

Novamente, uma vez estabelecida a distinção entre o que é central para a concepção e
o que é central para a intuição através de tais exemplos, com isso estabelecemos a
independência das duas noções. Logo, o sentido amplo novamente incorre numa confusão.
Por conseguinte, quando avaliarmos a concepção como resposta ao problema do critério não
estamos a avaliar a intuição como resposta.

3.1.1.4 Concepção e Dedução

A relação entre concepção e dedução é mais sutil que as anteriores. O que há de


central para a dedução é a noção de “inferência lógica”. Todavia, para termos um raciocínio
dedutivo não precisamos que um indivíduo seja um estudioso da lógica. Muitas pessoas leigas
em lógica aplicam perfeitamente o raciocínio lógico na resolução de problemas. Isso nos
mostra a diferença entre lógica explícita, quando um indivíduo consegue expressar a regra
lógica que lhe fez concluir algo, e a lógica implícita, quando um indivíduo não consegue
expressar tal regra embora saibe aplica-la (BLANCHÉ & DUBUCS, 2001, p. 15-18).

Essa distinção entre lógica explícita e lógica implícita é relevante para nos esclarecer
que mesmo indivíduos que não possuam conceitos podem raciocinar dedutivamente. Isso é o
caso de crianças de até certa idade ou mesmo de alguns outros animais. Se você tiver um
cachorro e gostar de passear com ele, você pode perceber facilmente a aplicação dele de
modus ponens. Pois, (P1) se você pega a coleira em determinada hora do dia, então vocês
passearão juntos. (P2) Você pegou a coleira em determinada hora do dia. Logo, (C) vocês
passearão juntos. Por conseguinte, certamente seu amigo canino expressará sua felicidade
quando você pegar a coleira na determinada hora do dia. Há um raciocínio dedutivo implícito,
mas isso não significa que seu amigo canino está usando conceitos ou que ele saiba como
explicitar tal raciocínio. Dessa forma, temos um caso de dedução sem concepção. Segue a
mesma demonstração para crianças de até certa idade.
53

Destarte, conceber não é deduzir. Pois, está estabelecida a distinção entre o que é
central para a noção de concepção e o que é central para a noção de dedução através de tais
exemplos. Mais uma vez o sentido amplo nos guiaria para uma confusão. Com efeito, quando
avaliarmos a concepção como resposta ao problema do critério não estamos a avaliar a
dedução como resposta.

3.1.1.5 Concepção e Teoria

Algo fundamental para uma teoria são seus conceitos. Isso parece nos levar a um
entendimento de que a centralidade da teoria como resposta ao problema do critério seria a
mesma que a centralidade da resposta da concepção. No entanto, essa é uma visão que
trivializaria a própria noção de teoria. Todo e qualquer jogo de linguagem, para usar os termos
de Wittgenstein, seria uma teoria. Todavia, não é qualquer coisa que usualmente chamamos
de uma teoria. Por quê? Porque teoria nesta acepção é uma noção de teoria formal. Há uma
determinada formalidade para que um conjunto de enunciados seja entendido como uma
teoria. E quando se procura responder que o critério para que algo seja possível é o critério de
se encaixar numa teoria, então estamos a usar essa visão sobre o que seja uma teoria. Pois é
uma teoria que procura explicar e gerar conhecimento – essa resposta se alicerça ao corpo de
conhecimento que um indivíduo possui. Dessa forma, nem toda narrativa é uma teoria formal.
Assim, uma teoria é um corpo de conhecimento15. Isso retira a trivialidade da noção de teoria.

Mesmo não entendendo a resposta da teoria como teoria formal e retirando a


trivialidade, ainda parece que conceitos são importantes para teorias. Claro! Mas a
centralidade da noção de teoria seria mais o tipo de arranjo dos conceitos, a forma que os

15
Pode parecer vago inicialmente compreender teoria desta maneira, todavia as razões restantes do texto são
suficientes para fazer-se entender este uso. Contudo, uma coisa deve ser esclarecida aqui: este entendimento de
teoria leva em consideração que a psicologia popular (folk psychology) não é tomada como uma teoria nestes
termos. Se tomarmos que a psicologia popular é ela mesma uma teoria (há razões para isso), certamente não
teríamos nenhuma concepção que não fosse uma teorização (uma vez que não teríamos um parâmetro para saber
o que não seria uma teoria sem já estar imbuído em uma), consequentemente, as respostas da concepção e da
teoria seriam imbricadas. Se este caso for verdadeiro, então toda e qualquer argumentação que faremos em
diante sobre a resposta da concepção recairia sobre a resposta da teoria. Entretanto, como não cabe no escopo
desta reflexão uma ampla investigação sobre a noção de teoria, metodologicamente sugiro esta visão. Não haverá
deficiência alguma para a investigação da concepção em geral, apenas não assumo inicialmente que a
argumentação sobre a concepção implique uma argumentação sobre a teoria sem antes uma investigação ampla
acerca de tal resposta. Deste modo, a sugestão simples é que não precisamos de teorias formais elaboradas
estruturadamente para concebermos alguma coisa, há concepção simples sem uma teoria formal.
54

conceitos se relacionam. É isso que faz com que tenhamos casos em que temos concepção,
mas não temos teoria.

Primeiro, o que seria uma teoria formal nestes termos? Poderíamos entender a teoria
formal como um todo estruturado, como um programa de pesquisa:

Um programa de pesquisa [...] é uma estrutura que fornece orientação para pesquisa
futura de uma forma tanto negativa quanto positiva. A heurística negativa de um
programa envolve a estipulação de que as suposições básicas subjacentes ao
programa, seu núcleo irredutível, não devem ser rejeitadas ou modificadas. Ele está
protegido da falsificação por um cinturão de hipóteses auxiliares, condições iniciais
etc. A heurística positiva é composta de uma pauta geral que indica como pode ser
desenvolvido o programa de pesquisa. Um tal desenvolvimento envolverá
suplementar o núcleo irredutível com suposições adicionais numa tentativa de
explicar fenômenos previamente conhecidos e prever fenômenos novos. [...]
(CHALMERS, 1993, p. 112)

Nesse sentido, teríamos uma estrutura dos conceitos, um arranjo. Para uma teoria um
núcleo irredutível é o que define a teoria, uma hipótese fundamental e basilar a partir da qual
tudo se desenvolverá. Como exemplo:

O núcleo irredutível do materialismo histórico de Marx seria a suposição de que a


mudança histórica deva ser explicada com base nas lutas de classes, a natureza das
classes e os detalhes das lutas sendo determinados, em última análise, pela base
econômica. (CHALMERS, 1993, p. 112)

O núcleo, assim, é algo que não pode ser negado (heurística negativa). Se o for, isso
significa que se saiu de um programa e se foi para outro, rejeita-se uma teoria e se assume
outra. Por outro lado, a heurística positiva indica, não o que não se deve, mas o que se deve
fazer:

A heurística positiva consiste em um conjunto de sugestões ou indícios parcialmente


articulados de como mudar, desenvolver, as ‘variáveis refutáveis’ de um programa
de pesquisa, como modificar, sofisticar, o cinturão protetor ‘refutável’.
(LAKATOS16 apud CHALMERS, 1993, p. 114)

Essa é a forma de teste da teoria quanto ao mundo. Mostrando quais as razões testáveis
frente a outras razões de diversas naturezas. De qualquer maneira, a diferença entre a resposta
da teoria e da concepção, é que aquela exige algo além desta.

Tomemos novamente o exemplo de Leibniz e Newton e a questão do limite de uma


série. Podemos dizer que eles tinham uma concepção implícita do que seja um limite de uma
16
Lakatos, “Falsification and the methodology of scientific research programmes”, em Criticism and the Growth
of Knowledge, ed. I. Lakatos e A. Musgrave (Cambridge: Cambridge University Press, 1974), pp. 91-196.
55

série, mas eles não possuíam uma teoria sobre o limite de uma série. Isso se dá porque eles
conseguiam aplicar seus conceitos implícitos e resolver problemas de limites de séries, mas
eles não tinham uma explicitação desses conceitos de forma a construir uma teoria
matemática sobre o limite de uma série (PEACOCKE, 2014, pp. 39-40). Dessa forma, temos
um exemplo de concepção sem teoria. Contudo, não temos nenhum exemplo de teoria sem
concepção, uma vez que realmente teorias pressupõem conceitos. Isso parece nos indicar que
a teoria depende da concepção, mas a concepção não se reduz a teorizar.

Em conclusão, temos a distinção da centralidade entre a noção de concepção e de


teoria, mesmo observando a dependência desta para com aquela, e isso estabelece que
conceber não se reduz a teorizar – embora sempre que se teorize se está concebendo. Avaliar
a resposta da teoria como critério de possibilidade é avaliar a resposta da concepção mais
alguma coisa, não avaliar a mesma coisa – o que confundiríamos se assumíssemos o sentido
amplo.

3.1.1.6 Concepção e Similaridade

Retomemos o exemplo que demos de Maria se questionando se o copo poderia estar


na cadeira e não na mesa naquele meio-dia. Temos que segundo a resposta da similaridade,
partindo de observações prévias de objetos similares ao copo assim como suas localizações e
movimentos, Maria pode vir a saber que o copo poderia estar na cadeira. Isso significa que
um indivíduo sabe que algo é possível se observa semelhanças entre a possibilidade em
questão e situações já observadas, além disso, que essas semelhanças são relevantes e
suficientes17 para tal possibilidade. Em outras palavras, o que é central para a resposta da
similaridade é a atividade cognitiva de comparação.

Tendo visto que a comparação como atividade cognitiva é central para a noção de
similaridade como resposta, então podemos ver as distinções entre ela e o que é central para a
noção de concepção – conceitos.

O fato de que há seres que comparam embora não concebam é uma distinção simples
que mostra que é uma confusão entender que comparar é conceber. Tome novamente o
exemplo de um cachorro e seu dono, desta vez que seja um cachorro que gosta de brincar com
17
Por exemplo, se são suficientes para satisfazer as condições de verdade do estado ao qual se aplica o
modalizador de possibilidade – ou, a proposição modalizada.
56

bolas. Digamos que ele sempre teve uma única bola para brincar, mas que por algum motivo
ele perdeu. Agora seu dono trouxe outra bola, apenas um pouco diferente no tamanho. Será
que o cachorro não brincará com a nova bola apenas pelo fato de não ser a anterior? Será que
ele não reconhecerá essa outra bola como uma bola brincável? Ele acharia que é algum outro
objeto extremamente diferente da bola que ele era acostumado a brincar? Aparentemente
diríamos que não, isto é, entendemos que o cachorro consegue comparar os objetos, perceber
suas similaridades e agir no mundo conforme tais similaridades. Contudo, não diríamos que o
cachorro tem o conceito de bola, em outras palavras, não diríamos que ele concebe bola.
Segue o mesmo para crianças de até certa idade. Crianças não nascem com conceitos18, mas
isso não significa que elas não tenham a capacidade de comparar objetos e extrair as
similaridades – capacidade fundamental para se desenvolver a capacidade de conceituar e,
conseguintemente, concepção.

Estabelecidos casos de similaridade sem concepção, estabelecemos a distinção das


noções. Logo, conceber não é extrair similaridades. Mais uma vez o sentido amplo de
concepção nos geraria confusões desnecessárias. Isso significa que avaliar a resposta da
concepção não implica em avaliar a resposta da similaridade – e não devemos seguir esse
caminho.

3.1.1.7 Conclusão: a concepção não encerra a cognição

Após percebermos as distinções das centralidades entre a noção de concepção e das


outras respostas, concluímos que o sentido amplo de concepção é um gerador de confusões.
Portanto, devemos avaliar o sentido estrito para captar melhor a noção. Entretanto, podemos
tirar outra conclusão: a concepção não encerra a cognição.

18
Esta é uma posição forte e contrasta com a noção de conceitos a priori. O que sugiro é simplesmente que todo
conceito portável por um sujeito depende fundamentalmente da originária experiência de existir. Deste modo,
nenhum conceito é anterior a primeira experiência. Desta forma, os conceitos a priori tradicionais (os quais o
indivíduo já nasce com ele devido a estrutura física que implica numa organização mental, do tipo de uma
linguagem do pensamento), em última análise não seriam a priori, posto que dependentes de uma forma de
existência (vida) expressa na experiência originária de existir da própria forma (vida). Esta ideia será refletida de
forma indireta (e mais técnica) quando refletirmos sobre o a ideia da informatividade da forma da informação
(capítulo 4, seção 1.3.2), da noção de sujeito no argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais (capítulo
5, seção 2.2), do caráter episódico da consciência (capítulo 5, seção 2.2; CAETANO, 2015) e a ideia de
inconceptibilidade da alteridade de subjetividades (capítulo 5, seção 2.2). Aqui, antes disso, faço apenas a
sugestão simples de que nós ensinamos conceitos e teorias às nossas crianças, elas aprendem tais coisas, elas
aprendem conceitos (não que reconheçam conceitos como alguma reminiscência de algo a qual elas já possuem
ou que já tenham algum conceito anterior a própria experiência originária).
57

A concepção não encerrar a cognição significa que a cognição é mais que concepção.
Isso era difícil de dizer se assumíssemos um sentido amplo, pois a concepção se confundiria
com a atividade cognitiva em geral – qualquer coisa que viesse à nossa mente de qualquer
forma seria como forma de concepção. Todavia, parece usual que entendamos que há mais na
atividade cognitiva que a concepção pode expressar – isso é o que vemos com os exemplos
analisados anteriormente. Portanto, a cognição não se confunde e nem se reduz à concepção,
embora a concepção seja uma forma de cognição – nem todas as formas de algo vir à mente
de um sujeito são na forma de concepção.

Sugiro que essa confusão se dá em geral por serem atividades, processos, que
trabalham muitas vezes em paralelo. Por exemplo, quando imaginamos o Garfield do
desenho, um indivíduo também aplica sua concepção e, assim, concebe o GARFIELD 19. Há
duas atividades cognitivas em jogo, imaginação e concepção, se for um indivíduo possuidor
de conceitos. O costume de aplicar as duas em paralelo nos dá a falsa impressão de que temos
um único processo cognitivo (ou que quando temos um, imediatamente temos o outro). Mas
os casos em que mostram um processo sem o outro nos esclarecem o processamento em
paralelo em casos de ambos.

Dessa maneira, avaliar a concepção como resposta ao problema do critério de


possibilidade não significa avaliar todos os critérios cognitivos em resposta. Por mais que
possamos concluir que o possível esteja para além do concebível, isso não significa que esteja
além do cognoscível – que seja incognoscível. Para algo do tipo, precisaríamos de mais que a
avaliação da própria concepção, e sim dos limites da própria cognição. Isso é o que
refletiremos no próximo Capítulo IV – Concepção e Cognição – onde avaliaremos as relações
entre a concepção e supostos limites da cognição. Antes, precisamos avaliar o sentido estrito
de concepção de forma a captar a centralidade da noção. É o que faremos a seguir na próxima
seção enquanto refletiremos sobre a questão de o que é conceber e concebível.

19
Aqui assume-se a posição de que nomes próprios são também conceitos por serem informativos: carregam um
conteúdo informacional importante na economia cognitiva para a representação de um portador de tal conceito,
da mesma forma que outros conceitos que não sejam nomes próprios.
58

3.1.2 O que é conceber?

Em geral, usa-se a concepção como resposta ao problema do critério do que é possível.


Ora, se é o concebível que nos diz o que é possível, então o que é concebível? Dessa forma
formulamos o que chamamos de problema do critério do critério.

Entretanto, precisamos avaliar esse termo ‘concebível’. Dizer que algo é concebível é
aplicar a possibilidade na concepção. Em outras palavras, concebível é o que é possível de se
conceber – de estar na concepção. Todavia, se nós estamos usando o concebível para
esclarecer o que é possível, não esclarecemos nada do que é possível usando o próprio
possível. Por isso, proponho ser mais adequado focarmos na noção de concepção, não em
concebível – ou mesmo em conceptibilidade. Aqui sigo com Beziau (2015, p. 1)20 em usar
concepção ao invés de conceptibilidade e concebível devido estas já envolverem a noção de
possibilidade. Em conclusão, a solução desse problema de segunda ordem recai sobre o
esclarecimento da noção de concepção enquanto se explicita o que é conceber e, em seguida,
a análise da relação entre concepção e possibilidade.

Antes de tudo, precisamos avaliar o sentido estrito de concepção para captarmos a


noção e situarmos o que é conceber algo.

3.1.2.1 O sentido estrito de concepção

O sentido estrito de concepção nos diz, como vimos, que conceber é “pôr em um
cenário” – o que quer que seja isso. Mas o que é “pôr em um cenário”? O que é um cenário? É
justamente isso que buscaremos esclarecer nesta subseção. Em princípio, defenderemos que
cenários são mundos possíveis epistêmicos. Além disso, defenderemos que conceitos são
constituintes de cenários. A relação constitutiva entre cenários e conceitos nos dará a captação
da centralidade da noção de concepção pelo sentido estrito de concepção. Isso nos dará
condições de avaliar dois desdobramentos na próxima subseção e termos clareza sobre o que
seja conceber.

A primeira ideia que desenvolveremos é a ideia de cenários como mundos possíveis


epistêmicos. Em seguida, que conceitos são constituintes de cenários.

20
Na nota 1.
59

3.1.2.1.1. Cenários como Mundos Possíveis Epistêmicos

A expressão “mundos possíveis” teve início com Leibniz (1646-1716) e atualmente é


usada em sentido formal na lógica modal (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p.
532). Mundos possíveis pretendem expressar as intuições que nós temos dos modos como as
coisas podem ser. Usada de forma semântica, a ideia não determina nenhuma tese sobre os
problemas modais, antes clarificam as teses em confronto (BRANQUINHO, MURCHO,
GOMES, 2006, p. 532). É essa visão sem implicação ontológica que queremos refletir.
Mundos possíveis como descrições alternativas do mundo atual21.

Pense em uma descrição linguística de nosso mundo. Para cada estado do mundo uma
frase que verdadeiramente o descreva ou o expresse. O conjunto de todas as frases que
verdadeiramente descrevam o mundo em sua totalidade seria o que podemos chamar de livro
de mundo. Esse seria o livro do mundo atual. Se resolvêssemos modificar uma frase, por
exemplo, maças são naturalmente azuis, então nós teríamos um livro de mundo diferente.
Esse seria um mundo diferente, um mundo alternativo. Isso seria um mundo possível. As mais
diversas formas de escrever um livro de mundo nos dariam os mais diversos mundos
possíveis. O nosso mundo atual, portanto, é um desses mundos possíveis – uma vez que é
uma forma específica de livro de mundo escrito. Na tradição, essa é uma abordagem
combinatorial de mundos possíveis (MENZEL, 2016, seção 2.3).

É importante perceber que todos esses livros de mundo estão de acordo com a nossa
compreensão linguística e, nesse sentido, é limitado qualitativamente22 pelas nossas
capacidades linguísticas. Isso significa que todos esses livros de mundo que pensamos são
livros de mundo que expressamos de acordo com os limites combinatórios das nossas
experiências do mundo atual, do nosso conhecimento dele. Com isso, expressamos o que
queremos dizer com mundos possíveis epistêmicos. Portanto, mundos possíveis epistêmicos
são descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual.

21
Pode-se entender a expressão mundo atual como o conjunto universo das coisas que são o caso; ou, nas
palavras de Menzel (2016, parágrafo 1), situação maximamente inclusiva de situações como um todo.
Resumidamente, o mundo das coisas como são, em contraste como as coisas poderiam ser e não são (uma vez
que as coisas como são é uma forma de como as coisas poderiam ser).
22
Em contraste com quantitativamente, uma vez que nossa linguagem parece ilimitada nesse sentido.
60

Essa visão de mundos possíveis epistêmicos capta a noção de cenário que está em
jogo, pois é o que fazemos quando propomos reflexão sobre algum cenário – descrevemos
uma combinação determinada de experiências que temos do mundo atual. Quando digo que
para formular cenários em nossa concepção precisamos partir de nossas experiências do
mundo atual, falo no sentido de que não criamos novas experiências (em sentido qualitativo),
mas utilizamos as experiências que temos e recombinamos para a construção de versões
alternativas. Por exemplo, nunca vimos um porco com bico de corvo, mas já vimos porcos e
já vimos corvos, ou seja, temos a experiência de porcos e experiência de corvos, dessas
experiências do mundo atual criamos o cenário de um porco com bico de corvo. Não temos
cenários que não dependem de nossas experiências – não temos sequer como falar de algo
radicalmente alienígena a nossas experiências no sentido que não temos nenhuma
familiaridade. É nesse sentido que precisamos partir invariavelmente das nossas experiências
do mundo atual (peço que o leitor tente ter em mente um mundo possível que não utilize nada
parecido do mundo atual; esse é um exercício que mostra ao leitor o que estou dizendo).
Portanto, cenários são descrições de combinações determinadas de experiências que temos
do mundo atual. Em outras palavras, quando concebemos, no sentido estrito, montamos
modelos mentais conceituais, nós usamos conceitos para expressar proposições de
determinado livro de mundo.

Entretanto, friso que a experiência é crucial para essa nossa concepção, assim como é
a linguagem. Uma objeção seria: se a experiência é exigida nessa descrição combinatorial,
então um cego de nascença, por exemplo, não conceberia o enunciado “o céu é azul”. Em
resposta, mas um cego de nascença realmente não concebe “o céu é azul” da mesma forma
que uma pessoa que não é cega concebe “o céu é azul”. As concepções são distintas, pois as
experiências que estão em jogo são distintas. Para um cego de nascença, sua experiência
relacionada a “o céu é azul” é a de uma prática linguística social, ou seja, é a de ouvir dos
outros dizerem que o céu é azul. É a partir daí que ele chega a isso. Sua concepção é derivada,
pois se seres humanos não possuíssem visão, não faria sentido um vocabulário de cores para
afirmar “o céu é azul”. A capacidade conceptiva está diretamente ligada com as capacidades
cognitivas de experiência de uma espécie. Por isso, uma pessoa que não é cega quando
concebe “o céu é azul”, concebe de forma diferente de um cego de nascença. O mesmo se
segue para outros sentidos e experiências ausentes. A capacidade de formular conceitos é
dependente da capacidade de experienciar de um sistema cognitivo conceptivo. Quando temos
diferenças nessas capacidades entre indivíduos, uns concebem umas coisas que outros não
61

concebem e assim por diante. Como explicar para um cego de nascença, em linguagem, como
é a experiência da azulidão do céu? Voltaremos a essa intuição no capítulo IV – Concepção e
Cognição. Por ora temos esclarecida a noção de cenários como mundos possíveis epistêmicos:
descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual.

Antes de prosseguir, devo esclarecer a seguinte questão: um cenário seria uma


descrição completa de um mundo? Parece intuitivo responder que não. Ora, alguém pode
apenas conceber um cenário bem delimitado onde Sócrates era um sapateiro e não um
filósofo. Certamente alguém com esse cenário em mente não pensa numa descrição completa
de mundo, consequentemente um cenário não seria uma descrição completa de um mundo.
Todavia, sugiro que isto não é o caso. Pois quando temos em mente cenários delimitados
assim, pensamos no ponto específico que é diferente do mundo atual, ao passo que
pressupomos que todo o resto permanece o mesmo. Ou seja, por mais que não façamos uma
descrição exaustiva de um mundo num cenário, isso é assim porque descrevemos apenas a
alternativa significativa (a diferença), uma vez que o resto permanece sem mudança (pois não
é o foco de interesse). Dessa forma, um cenário é uma descrição completa de mundo – de
acordo com a noção de mundo dada pelas experiências do mundo atual pelo sujeito
formulador do cenário.

À vista disso, reflitamos sobre a relação entre conceitos e cenários a seguir.

3.1.2.1.2. Conceitos como constituintes de Cenários

Ao compreendermos cenários como mundos possíveis epistêmicos, ou seja, cenários


como descrições de combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual,
então podemos perceber a centralidade da noção de conceitos para cenários. Isso acontece
devido a noção de descrição.

Conceitos são centrais para descrições, isto é, não há descrição sem conceitos.
Descrever é uma reiterada aplicação de conceitos. Portanto, conceitos são centrais para
cenários. Além disso, uma vez que descrever é uma reiterada aplicação de conceitos e que
descrições constituem cenários, temos que é a aplicação de conceitos que constitui cenários.
Logo, cenários são constituídos de conceitos. Conceitos são os elementos básicos de cenários.
62

Dessa forma, temos que o sentido estrito de concepção capta a centralidade da noção
de concepção, conceitos, e não nos leva para as confusões do sentido amplo. Concluímos
assim que o sentido estrito é o mais adequado para uma compreensão clara e não confusa de
concepção.

Finalmente, voltemo-nos para a questão inicial da seção. O que é conceber? Se


conceber é “pôr em um cenário”, então significa que conceber é pôr em uma descrição
combinatória determinada de experiências que temos do mundo atual. E descrever é aplicar
conceitos. Logo, conceber é aplicar conceitos, capturar algo aplicando conceitos. Portanto,
conceber é “pôr em conceitos”. Mas o que são conceitos? Precisamos nos comprometer com
alguma natureza de conceitos para termos clara a noção de concepção e entender sua
natureza? É o que veremos na próxima subseção.

3.1.2.2 A natureza de conceitos

Durante a história, várias respostas foram dadas para a questão do que são conceitos.
Tais respostas têm várias relações com a reflexão sobre a natureza da concepção. De forma
geral, há dois arcabouços dominantes na filosofia contemporânea. Numa destas visões,
conceitos são representações mentais, ao passo que na outra são objetos abstratos
(MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 1). Embora haja relações para a reflexão sobre a
natureza da concepção, argumentaremos que para compreender a concepção não precisamos
tomar nem uma e nem outra posição sobre a ontologia de conceitos. O que significa que o
sentido estrito de concepção que tomamos até agora é compatível com as duas visões, além
disso, é compatível com uma visão combinada23 das duas. Vejamos, portanto, as três visões24
e em seguida a relação com a noção de concepção.

23
Pelas mesmas razões de Margolis e Laurence (2014a, p. 7-11) acreditamos que uma visão combinada é uma
visão perfeitamente coerente.
24
Conceitos também podem ser visto como habilidades, essa visão não será abordada nessa reflexão pois ela é
menos problemática para conciliar com a noção de atividade cognitiva em relação com a ontologia de conceitos
uma vez que a noção de habilidade é algo que tem uma relação não problemática com a noção de atividade – em
alguns sentidos as noções dão sentido uma a outra. Por exemplo, quando alguém demonstra uma habilidade, é
feito através de uma atividade, quando se expressa uma atividade pode-se expressar como uma forma de
habilidade, sem muitos problemas. Por isso tal visão não é abordada, além de não estar entre os dois principais
paradigmas de ontologia de conceitos. Para mais informações, MARGOLIS e LAURENCE, 2014b, seção 1.2.
63

3.1.2.2.1 Conceitos como representações mentais

Uma expressão intuitiva de conceitos como representações mentais pode ser vista nas
palavras de Leclerc e Abath em Representando o Mundo: Ensaio sobre Conceitos (2014):

(…) um conceito, em primeira aproximação é a representação mental de algo (um


objeto ou classes de objetos, propriedade, relação, conjunto de eventos etc.),
concreto ou abstrato, que permite sua identificação e sua classificação, e que pode
ser um constituinte de um pensamento ou juízo tendo por tema esse objeto (ou
classes de objetos etc.). (p. vii)

Também em:

Temos conhecimento sobre o que está fora de nós graças às ideias que estão dentro
de nossas mentes. Conceber é a primeira e mais simples das operações da mente;
trata-se de uma simples “visão” que temos das coisas que se apresentam a nossas
mentes, quando representamos uma árvore, o sol, um quadrado, uma figura
geométrica de 1.000 lados etc., sem formar um juízo sobre as coisas (p. x-xi).

A visão de conceitos como representações mentais está no arcabouço da Teoria


Representacional da Mente (TRM). Nessa visão, o pensamento ocorre num sistema interno de
representações. Atitudes proposicionais ocorrentes são tipos de representações mentais
ocorrentes. Quando se tem, por exemplo, uma crença sobre algo, a crença é uma
representação que representa o algo em questão. O que define uma atitude proposicional
como um tipo de representação mental é o seu papel funcional dentro do sistema de
representações do agente cognitivo. Não só isso, para a compreensão de conceitos como
representação mental, a TRM relevante é a de que sugere uma linguagem do pensamento que
possibilita nossa linguagem natural (MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 2). Nessa
posição da TRM, expressada por Fodor (1975), uma vez que a sintaxe do sistema de
representação se assemelha com a sintaxe da linguagem e tal sistema interno de representação
possui uma semântica composicional, então se conclui uma linguagem do pensamento.

Dessa forma, atitudes proposicionais como crenças, desejos, etc., são entidades
psicológicas estruturadas em que seus constituintes são conceitos (representações mentais
como ‘casa’, ‘gato’, etc.). Portanto, nessa visão psicológica de conceitos, conceitos são
representações mentais e constituintes de atitudes proposicionais (MARGOLIS &
LAURENCE, 2014a, p. 3).

Para termos mais clareza, ilustraremos com um exemplo. Tome a atitude proposicional
seguinte: Paulo acredita que Fortaleza é um time tradicional de futebol no Nordeste do
64

Brasil25. Aqui temos a crença de Paulo como uma representação mental estruturada por outras
representações mentais. Por sua vez, essas representações que constituem a representação
mental estruturada (a crença de Paulo) são os conceitos, a saber, as representações (conceitos)
de Fortaleza, time, tradicional, futebol, Nordeste e Brasil. Estas representações mentais
(conceitos) são fundamentais para a constituição da crença de Paulo (representação
estruturada). Dessa forma, temos particulares mentais com propriedades semânticas, pois
fazem parte da linguagem do pensamento – a linguagem do sistema interno de representação.

Há várias motivações para a defesa de tal teoria e quais problemas ela pretende
explicar. Todavia, isso já foge ao nosso interesse, o qual é apenas a caracterização de
conceitos dentro desta visão. Portanto, não entraremos nos méritos do debate da TRM.

Esta visão psicológica de conceitos concorre, entretanto, com uma visão semântica de
conceitos. É o que veremos a seguir na visão de conceitos como objetos abstratos.

3.1.2.2.2 Conceitos como objetos abstratos

A segunda visão predominante sobre conceitos é a de que conceitos não são


representações mentais, isto é, não estão “na mente”, mas são objetos abstratos de algum tipo.
Tal tradição se remete a visão de Frege de conceito/objeto (BRANQUINHO, MURCHO,
GOMES, 2006, p. 158-161).

Sentenças de línguas diferentes parecem expressar a mesma coisa. Por exemplo, “the
sky is blue” e “o céu é azul” parecem expressar a mesma coisa. Que coisa é essa? Na tradição
fregeana essa coisa é chamada de proposição26. Assim, a proposição é o significado de uma
sentença declarativa. Além disso, proposições são objetos abstratos, pois existem
independentemente de nossas mentes, e são condutores de verdade (MARGOLIS &
LAURENCE, 2014a, p. 5).

Proposições existem independentemente de nossas mentes porque diferem de


sentenças. Enquanto sentenças dependem de nós para serem enunciadas, proposições não

25
A quesito de esclarecimento, a atitude proposicional estritamente falando é, nesse exemplo, a crença, o ato de
acreditar do sujeito, no caso Paulo, ao passo que a proposição é o conteúdo da crença, a saber, que Fortaleza é
um time tradicional de futebol no Nordeste do Brasil. Contudo, por motivo de simplicidade e sem nenhum
prejuízo para a reflexão, doravante será usado atitude proposicional para se referir ao conjunto completo: sujeito,
atitude e proposição; embora pressupondo essa forma estrita e clara de distinção.
26
“Pensamento” na terminologia de Frege, ver Sentido e Referência (2011, pp. 21-44).
65

dependem de nossas mentes para existirem. A relação entre proposições e nossas mentes é
uma relação de captação. Nossas mentes captam proposições.

Proposições são condutores de verdade porque é devido a verdade da proposição, p.


ex., o céu é azul que a crença de alguém que o céu é azul é verdadeira.

Embora proposições sejam indefiníveis, há um comprometimento devido seus poderes


explanatórios. Todavia, não é o nosso interesse explicitar tais poderes ou entrar no mérito da
teoria. Nosso interesse é compreender a visão de conceitos como objetos abstratos, e apenas
essa caracterização de proposições nessa tradição já é o suficiente.

Nesse arcabouço, conceitos surgem como constituintes de proposições, eles são os


elementos básicos estruturantes das proposições27. Por exemplo, o conceito “...é azul” é um
dos constituintes da proposição o céu é azul. Dessa forma, se proposições são objetos
abstratos, seus constituintes recebem o mesmo status ontológico e também são objetos
abstratos. Conforme o raciocínio de Margolis e Laurence (2014a):

Como uma sentença é composta de palavras e frases, uma proposição supostamente


é composta de elementos mais básicos. Além disso, esses elementos têm
supostamente a mesma reputação ontológica que suas proposições. Eles também são
objetos abstratos, onde diferentes ocorrências da mesma crença envolvem
numericamente os mesmos conceitos (p. 5).

Conceitos, portanto, são os sentidos das palavras – seguindo o uso contemporâneo –


em que compreender o significado de uma palavra é compreender seu sentido/conceito
(MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 7). Diferentemente do uso técnico inicial dado por
Frege em que conceitos são entendidos como objetos abstratos do tipo função. Por exemplo,
“...é azul” é uma função que quando toma “o céu” por argumento gera valor de verdade
verdadeiro. Assim, conceitos (servindo para a distinção referente/predicado) são funções que
tomam referentes (objetos, p.ex., ‘o céu’) e geram valor de verdade.

Portanto, na visão semântica de conceitos, conceitos são objetos abstratos do tipo


sentidos constituintes de proposições. Dada esta segunda caracterização de conceitos, que
vejamos a terceira via – a visão combinada.

27
Nesse sentido, uma tradição fregeana em que proposições são entidades estruturadas. Para mais detalhes A
study of concepts de Peacocke (1992).
66

3.1.2.2.3. Visão combinada de conceitos

As duas visões principais sobre a ontologia de conceitos parecem opostas e muitos


argumentos de uma posição parecem excluir a outra posição. Por conseguinte, para muitos
uma visão combinada seria incoerente. Não entraremos no mérito dos argumentos contra uma
posição deste tipo28 – que seria entrar no mérito dos argumentos contra as outras posições
isoladas. Pois pretendemos apenas dar uma caracterização geral do que seriam conceitos com
as características de representação mental e objetos abstratos numa visão combinada.

O insight que pode combinar as duas posições parte de um entendimento da distinção


tipo-ocorrência (type-token) em representações mentais e que há múltiplos modos de tipificar
uma ocorrência (MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 10-1).

A distinção tipo-ocorrência aplicada a representações mentais expressa a ideia de que


embora indivíduos possuam ocorrências de representações mentais distintas, isso não
significa que elas não possam ser do mesmo tipo. Vejamos um exemplo: Dana e Fox estão a
falar sobre o Cristo Redentor do Rio de Janeiro. Dana viajou para o Rio de Janeiro e conheceu
o Cristo Redentor presencialmente. Fox já viu algumas imagens na internet embora nunca
tenha ido ao Rio de Janeiro. Enquanto conversam, Dana tem uma ocorrência da representação
mental do Cristo Redentor ligada à sua experiência individual, ao passo que Fox tem uma
ocorrência da representação mental do Cristo Redentor ligada à sua experiência individual e
também por isso distinta da de Dana. Embora as duas ocorrências da representação mental do
Cristo Redentor sejam distintas (no mínimo numericamente), isso não impede que os dois
estejam falando de um mesmo tipo de representação mental, a saber, a representação mental
do Cristo Redentor. Esses casos exemplificam como várias ocorrências podem ter um mesmo
tipo.

Da mesma forma que um tipo pode ter várias ocorrências, uma ocorrência pode ser
tipificada de várias formas. Essa múltipla tipificação depende do conteúdo ligado à ocorrência
da representação mental (MARGOLIS & LAURENCE, 2014a, p. 10). Este é o insight que
pode combinar as duas visões. Tomemos outro caso como exemplo. Leonardo está a ver uma
imagem do Cristo Redentor. Imagine que Leonardo é um carioca, mas vive atualmente em

28
Os argumentos sobre a incoerência da visão combinadas são analisados e rejeitados por Eric Margolis e
Stephen Laurence em Ontologia de conceitos: objetos abstratos ou representações mentais? (2014a), embora
para estes a visão combinada não seja a preferível entre as três e sim a de conceitos como representações
mentais.
67

Fortaleza. A ocorrência da representação mental do Cristo Redentor ao ver a imagem, para


Leonardo, representa o Rio de Janeiro – e provavelmente a saudade de sua cidade natal. Esta é
uma situação em que a ocorrência da representação mental do Cristo Redentor representa o
Rio de Janeiro. Agora suponha que Leonardo atualmente vive em Tóquio a trabalho, com
muita saudade de sua família em Fortaleza. Nessa segunda situação, a ocorrência da
representação mental do Cristo Redentor ao ver a imagem, para Leonardo, representa o Brasil
– provavelmente ligada à sua saudade. Agora temos uma situação em que a ocorrência da
representação mental do Cristo Redentor representa o Brasil. Portanto, uma mesma ocorrência
de representação mental pode ser tipificada mais de uma forma dependendo do conteúdo que
ela está ligada. A este conteúdo se entende o sentido da representação mental. Aqui temos o
uso de sentido que é fundamental para a visão de conceitos como objetos abstratos.

Finalmente, uma visão combinada pode ser expressa da seguinte forma: “conceitos são
representações mentais tipificadas em termos dos sentidos que elas expressam” (MARGOLIS
& LAURENCE, 2014a, p. 11). Assim, conceitos estariam comprometidos com a ideia de
representação mental conforme a visão psicológica e também com os sentidos conforme a
visão semântica. Como expressam Margolis e Laurence (2014a):

[...] Seguindo a visão psicológica, de forma honesta admitiremos representações


mentais. Elas explicam a produtividade do pensamento e o fato de que os processos
mentais podem ser, ao mesmo tempo, físicos e racionais. Concomitantemente,
seguindo a visão semântica, o apelo aos sentidos provê uma explicação para o fato
de que duas expressões (incluindo duas expressões mentais) podem ter o mesmo
referente e ainda assim diferirem em significância cognitiva. A sugestão é que
representações mentais podem apresentar um referente em diferentes modos em
virtude de expressar sentidos diferentes. Sentidos continuam sendo entidades
intermediárias, estando entre expressões e referentes, só que agora as expressões em
questão ocorrem em um sistema interno de representação (p. 11).

Dada esta última visão sobre conceitos, agora observaremos a relação entre a natureza
de conceitos e a natureza da concepção.

3.1.2.2.4. Concepção e Conceitos

Após percebermos a centralidade de conceitos para a noção de concepção, parece que


a questão sobre a natureza de conceitos influencia diretamente a natureza da concepção. Ou
seja, parece que não poderiam ter naturezas distintas pois a natureza de um (conceitos) nos dá
a natureza do outro (concepção). Nesta seção argumentaremos que isto não se segue. Em
68

outras palavras, a concepção mantém sua natureza independentemente da natureza de


conceitos. Vejamos as razões.

Compreendemos a concepção como “pôr em cenários”. Por sua vez, compreendemos


cenários como descrições de combinações determinadas de experimentações que temos do
mundo atual. Temos, por outro lado, que algo necessário para descrições são reiteradas
aplicações de conceitos. Logo, temos que cenários são combinações determinadas de
conceitos de experiências que temos do mundo atual. Portanto, conceber é combinar
determinadamente conceitos de experiências que temos do mundo atual. Nesse sentido, a
concepção é a atividade cognitiva de combinar determinadamente conceitos em experiências
que temos do mundo atual.

O que é importante para a distinção das naturezas de concepção e conceito e porque a


natureza deste não implica na mesma natureza daquela é o fato da concepção ser uma
atividade cognitiva. Embora a concepção “manipule” conceitos, não é ela mesma um
conceito. Aqui não digo que a concepção não tenha um conceito (o que buscamos aqui foi
justamente um conceito de concepção!), apenas que a atividade cognitiva não é um objeto do
tipo conceito, mas um objeto de outra ordem. Vejamos uma analogia com a imaginação. A
imaginação “manipula” representações mentais imagéticas, mas não é ela mesma uma
representação mental imagética, ela é a capacidade de manipular tais representações mentais
imagéticas. Segue o mesmo para a concepção.

Estabelecemos que embora a concepção manipule conceitos, não é ela mesma um


objeto do tipo conceito e sim a capacidade de manipular tais conceitos. Isso nos mostra que
independentemente da natureza de conceitos, a natureza da concepção se mantém. Sejam
conceitos representações mentais, objetos abstratos ou uma visão combinada entre
representações mentais e objetos abstratos, a concepção permanece sendo a capacidade de
manipular tais objetos conceituais. A concepção permanece como atividade cognitiva que se
relaciona com objetos do tipo conceito, seja manipulando representações mentais, seja
manipulando objetos abstratos, seja manipulando uma versão híbrida desse objeto. Manipular
e se relacionar com tais objetos não a torna tal objeto.

Sendo assim, por mais que conceitos sejam centrais para compreendermos o que é
conceber, não precisamos, em princípio, nos comprometer com qualquer uma das três
ontologias de conceitos.
69

Uma vez que o interesse de nossa investigação era a natureza da concepção e o que
seja conceber, precisamos, ainda, de um critério de concepção. Em outras palavras,
precisamos compreender um critério que diga o que é e o que não é uma combinação
determinada de conceitos de experiências que temos do mundo atual. Com efeito, embora não
precisemos nos comprometer com a ontologia de conceitos, precisamos compreender a
aplicabilidade de conceitos. Esse é o passo que daremos na próxima subseção.

3.1.2.3 Critério de concepção

Inicialmente, é importante diferenciar um conceito de sua expressão simbólica


(palavra). Podemos ver essa distinção quando percebemos que palavras de línguas diferentes
expressam o mesmo conceito. Por exemplo, a palavra “azul” do português e a palavra “blue”
do inglês, embora sejam distintas, expressam o mesmo conceito (costuma-se dizer que
expressam a mesma ideia). É o mesmo raciocínio que utilizamos para distinguir sentenças de
proposições. Logo, o conceito está para a proposição assim como a palavra está para a
sentença. Em conclusão, o conceito é diferente do símbolo usado para representá-lo.

Uma vez que o conceito é diferente do símbolo convencionado a ele, portanto,


combinar símbolos não significa combinar conceitos. O que é, então, combinar conceitos?
Essa questão é o que pretendemos discutir e responder nesta subseção. Para isso, 1)
observaremos a noção de analiticidade e 2) dela tiraremos o insight do critério de concepção.
Com esses passos, por fim, esclareceremos o que seja conceber. Resumidamente, conceber
seria combinar conceitos; e combinar conceitos é unir conceitos que não se excluem de forma
a expressar um conceito mais complexo – estruturado. Se ao unir um conceito com outro, um
exclui o outro, não temos uma combinação de conceitos que nos dê um novo conceito
estruturado. Vejamos em detalhes a seguir. Desta maneira, comecemos com o primeiro passo
observando a noção de analiticidade.

3.1.2.3.1. Analiticidade

A noção de analiticidade está ligada à famosa distinção analítico/sintético e se refere à


marca característica de todo enunciado cuja verdade é determinada com base apenas no
70

significado dos termos que o compõem. Por isso, “a analiticidade é uma modalidade
semântica” (MURCHO, 2002, p. 19).

A analiticidade é uma noção semântica que não deve ser confundida com uma noção
epistemológica ou metafísica. Em outras palavras, a distinção analítico/sintético não deve ser
confundida com a distinção a priori/a posteriori ou mesmo com a distinção
necessário/contingente. Enquanto a distinção analítico/sintético é uma distinção semântica
sobre os tipos de frases, a distinção a priori/a posteriori é uma distinção sobre tipos de modos
de conhecer (noção epistemológica) e a distinção necessário/contingente é uma distinção
sobre os modos da verdade (noção metafísica) (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006,
p. 37). Grosso modo, a priori é o modo de conhecer algo sem depender da experiência e a
posteriori é o modo de conhecer algo através da experiência. Grosso modo, necessário é
aquilo que não pode deixar de ser verdadeiro e contingente aquilo que não é nem
necessariamente verdadeiro e nem necessariamente falso.

A noção de analiticidade surge de forma sistemática com Kant (1724-1804), embora


sua discussão tenha sido prefigurada em Leibniz (1646-1716) e Hume (1711-1776)
(BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 39). A ideia geral de Kant sobre a distinção
analítico/sintético era que, em seus termos, um juízo seria analítico quando o conceito do
predicado já estivesse contido no conceito do sujeito ao qual é aplicado o predicado, por outro
lado, um juízo seria sintético quando o conceito do predicado não estivesse contido no
conceito do sujeito ao qual é aplicado o predicado. Podemos observar isso numa emblemática
passagem da Crítica da Razão Pura:

Em todos os juízos nos quais é pensada a relação entre um sujeito e um predicado


(se levo em conta apenas os afirmativos, já que a aplicação será depois mais fácil
nos negativos), essa relação é possível de dois modos. Ou o predicado “B” pertence
ao sujeito “A” como algo que já está contido (de modo oculto) neste conceito “A”;
ou “B” se localiza inteiramente fora do conceito “A”, mesmo estando em conexão
com ele. No primeiro caso eu denomino o juízo analítico, no segundo sintético.
(KANT, B10, 2013, p. 51, itálico no original)

A distinção analítico/sintético de Kant pressupõe que algumas as frases são do tipo


sujeito-predicado, ou seja, do tipo A é B (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p.
37), e, consequentemente, as noções de analítico e sintético são aplicados a este tipo de
relação. Um exemplo de um juízo analítico é a famosa frase todo solteiro é um não-casado. O
núcleo do predicado, não-casado, já está contido no conceito de solteiro. Diferentemente da
frase o carro é vermelho. O predicado é vermelho não está contido no conceito de carro. O
71

conceito de carro não nos dá, sem auxílio de algo além do seu significado, a informação de
que é vermelho. Portanto, o carro é vermelho, nos termos de Kant, é um juízo sintético.

A visão kantiana da distinção analítico/sintético foi refinada ao longo da história da


filosofia, o que fez com que contemporaneamente chegássemos a três visões de analiticidade:
1) analiticidade metafísica, 2) analiticidade de Frege e 3) analiticidade epistemológica.
Conforme nos apresenta Branquinho, Murcho e Gomes (2006) na Enciclopédia de Termos
Lógico-Filosóficos:

Analiticidade Metafísica: Uma frase é uma verdade analítica se, e somente se, a sua
verdade depender unicamente do seu significado.
Analiticidade de Frege: Uma frase é uma verdade analítica se, e somente se, for uma
verdade lógica ou puder ser transformada em uma verdade lógica pela substituição
de sinônimos por sinônimos.
Analiticidade Epistemológica: Uma frase é uma verdade analítica se, e somente se, a
mera apreensão do seu significado for suficiente para nos justificar a toma-la como
verdadeira. (p. 37-8, itálico no original)

Dentre as três posições sobre a analiticidade, a analiticidade epistemológica é a menos


problemática29 e mais popular atualmente, além de ser “suficientemente robusta para
acomodar a nossa intuição do que são frases analíticas” (BRANQUINHO, MURCHO,
GOMES, 2006, p. 39). Não obstante, nosso interesse não é tomar uma das posições sobre a
analiticidade, mas observar uma ideia central às três e que é a intuição basilar da analiticidade
em geral. Tal intuição é a de que conceitos se relacionam uns com os outros em relações de
continência e exclusão. É essa intuição que faz com que conceitos possam, de alguma forma,
conduzir a verdade de uns para outros (ou nos justificar em aceitar a existência de tal
condução).

Essa intuição sobre relação de continência e exclusão de conceitos será refletida na


próxima seção e esclareceremos como dessa intuição formulamos um critério para o
conceber: o critério da contradição conceptual.

29
Mais detalhes em Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, 2006, p. 38.
72

3.1.2.3.2 Contradição conceptual como critério de concepção30

Conceitos parecem se relacionar de diferentes maneiras. As relações são as seguintes:


Alguns conceitos contêm outros (estão incluídos em outros). Há conceitos que possuem
intersecção na sua significação com outros. Já outros conceitos parecem estar completamente
fora do campo de significação de outros. E finalmente, também há conceitos que se excluem
mutuamente.

Durante o desenrolar do debate sobre a analiticidade, a intuição de que conceitos


contêm (ou estão incluídos em) outros sempre esteve presente. Diversos exemplos são dados
para ilustrá-la. Um dos mais famosos é o do solteiro e do não-casado, como já falamos.
Aparentemente, incluído no conceito SOLTEIRO está o conceito de NÃO-CASADO, uma
ideia parece nos dar a outra. Tanto por isso nos usos linguísticos costumam substituir uma a
outra. O que faz essa ser uma intuição muito cara, nesse sentido, para a noção de sinonímia.

Conceitos também se relacionam parcialmente. Isso significa que carregam em si


alguma significância que outros conceitos também carregam, embora não estejam incluídos
uns nos outros como na relação que vimos no parágrafo anterior. Tomemos como exemplo os
conceitos VERDE e VERMELHO. Eles são conceitos distintos e não estão incluídos um no
outro. Todavia, ambos carregam o conceito COR (tanto verde quanto vermelho são cores).
Eles partilham algo em comum31, embora não tudo. Por isso eles são distintos, embora
parcialmente relacionados (há uma intersecção entre os campos de significação, por assim
dizer).

Por outro lado, parece haver conceitos que não possuem intersecção alguma32. Dito de
outra forma, como diria Kant na caracterização de juízos sintéticos, “’B’ se localiza
inteiramente fora do conceito ‘A’” (KANT, B10, 2013, p. 51). O exemplo que vimos para
juízos sintéticos, isto é, o carro é vermelho, está nessa situação. O conceito VERMELHO está

30
A sugestão da ideia de que algum tipo de contradição conceptual seria o critério de concepção foi feita pelo
Prof. Dr. Cícero A. C. Barroso numa de nossas conversas filosóficas de orientação. A sugestão foi seguida e
desenvolvida nessa reflexão.
31
Alguém pode dizer que todas as coisas partilham uma coisa em comum, por exemplo, são coisas e,
consequentemente, todos os conceitos partilham algo uns com os outros. Em geral, na metafísica buscamos essas
noções mais gerais onde podemos alicerçar as outras noções. Contudo, isso é uma forma de trivializar a
semelhança e dessemelhança entre coisas. E apesar disso, costumeiramente fazemos essas relações associativas
entre noções, conceitos, sentidos, etc., de forma substancial sem sermos impedidos por tal trivialidade.
Queremos dizer que, para além do mais geral em todas as noções, temos que algumas carregam algo além que
outras também carregam.
32
Veja nota 31.
73

inteiramente fora do conceito CARRO, os campos de significação não possuem interseção33.


Embora esses conceitos não possuam intersecção em seus campos de significação, eles se
relacionam sem se excluir mutuamente. Vejamos esse outro tipo de relação entre conceitos.

Há conceitos que parecem se excluir mutuamente. Essa intuição parece ser um dos
sustentáculos da noção de contradição. Um conceito em que seu campo de significação
carrega a exclusão do núcleo de outro conceito. O conceito SOLTEIRO, como vimos, carrega
o conceito NÃO-CASADO. Isso significa que o conceito SOLTEIRO carrega em seu campo
de significação a exclusão do núcleo do conceito CASADO. Por sua vez, o conceito
CASADO carrega o conceito NÃO-SOLTEIRO e, consequentemente, carrega em seu campo
de significação a exclusão do núcleo do conceito SOLTEIRO. Portanto, percebemos que há
conceitos que se excluem mutuamente.

Essa última relação, a relação de exclusão mútua entre campos de significação, é a


relação em que poremos nossa atenção.

Como vimos anteriormente, combinar símbolos não é o mesmo que combinar


conceitos. Dessa forma, embora possamos combinar os símbolos “solteiro” e “casado” numa
frase como “convidamos para a festa de amanhã um solteiro-casado”, isso não significa que
combinamos o conceito SOLTEIRO com o conceito CASADO de forma a unir seus núcleos
de significação em um só. Quando alguém diz algo do tipo pode estar a falar de 1) um casado
que vive como solteiro (sem fidelidade), ou mesmo estar a falar de 2) um solteiro que vive
como um casado (num relacionamento estável como um casamento, mas sem a oficialização).
Todavia, em nenhum desses casos nós temos o conceito SOLTEIRO-CASADO, em 1) temos
realmente o conceito CASADO e em 2) temos realmente o conceito SOLTEIRO. Para além
dessas duas possibilidades, temos uma contradição conceptual.

Uma contradição conceptual é o caso da tentativa falha de combinar dois conceitos, os


quais possuem uma relação de exclusão mútua em seus campos de significação, com o intuito
de formar um conceito estruturado. Uma ilustração é o exemplo no parágrafo anterior.

Dito isso, a contradição conceptual nos mostra como falhamos quando tentamos unir
determinados conceitos no intuito de formar outros conceitos estruturados. Por conseguinte,
se nessa tentativa falha de combinação de conceitos nós não conseguimos “pôr em um
conceito” o que acaba sendo mera combinação de símbolos (por exemplo, solteiro-casado),

33
Além das triviais, nota 31.
74

então nós temos uma situação em que falhamos na combinação. Portanto, nós não
concebemos. Assim sendo, temos um critério de concepção.

A contradição conceptual como critério de concepção é da forma que se segue:


conceber é pôr em conceito sem incorrer em contradição conceptual, incorrer em contradição
conceptual é falhar em conceber (não conceber).

Finalmente, ao estabelecer a contradição conceptual como critério de concepção,


conseguimos responder à questão de nossa seção sobre o que seja conceber. Com efeito,
também percebemos o que é falhar em conceber (não conceber). Isso nos leva a refletir sobre
os limites da concepção como atividade cognitiva. Esse é o último ponto de reflexão sobre a
concepção, algo crucial para a avaliarmos como resposta ao problema do critério de
possibilidade. Uma vez que muitos acreditam que nós temos um fechamento cognitivo, se
isso afeta a cognição em geral, certamente afeta a concepção como atividade cognitiva.
Como, portanto, o fechamento cognitivo afeta a concepção conforme avaliamos até então?
Esse é o questionamento que trataremos no próximo capítulo. Antes, percebamos uma
distinção notável entre contradição conceptual e contradição estrita.

Tomemos a distinção entre os dois tipos de contradição a partir da seguinte pergunta: a


contradição conceptual se reduz à contradição lógica? A resposta é não. A contradição
conceptual não está ligada apenas ao campo semântico do conceito, mas a relação que se tenta
fazer entre campos semânticos. Embora verde e vermelho se relacionem parcialmente, há pelo
menos uma forma em que se excluem mutuamente, a saber, quando se diz que algo é
completamente verde e depois se diz que também é vermelho. O conceito de verde carrega o
conceito de não-vermelho, embora verde não seja não-vermelho, de modo que a exclusão
entre verde e vermelho não é uma contradição estrita. Ainda assim o conceito de verde
carrega em si o conceito de não-vermelho e nos leva a uma contradição conceptual. E mesmo
assim ainda há uma relação parcial entre os dois conceitos, a saber, são cores. Da mesma
forma que há uma relação parcial entre solteiro e casado, são estados civis. Portanto, a
contradição conceptual, diferentemente da contradição estrita, não se dá apenas pelo conteúdo
do conceito, mas por qual aspecto do conteúdo se dá a relação. Dessa forma, toda contradição
lógica é uma contradição conceptual, mas nem toda contradição conceptual é uma contradição
lógica. Logo, uma contradição conceptual não se reduz a uma contradição lógica.

Compreendidos os devidos pontos, sigamos para a reflexão sobre a concepção e a


cognição.
75

3.2 Concepção e Cognição

Durante nossa exposição até aqui usamos expressões como “atividade cognitiva”,
“processos cognitivos”, “fechamento cognitivo” e mesmo “cognição” de forma banal para se
referir a diversos aspectos relacionados à mente. Mas de onde vem essa terminologia e como
devemos entender de forma mais precisa seus significados? Para uma reflexão mais clara
sobre a ideia central a ser discutida nesse capítulo, a saber, fechamento cognitivo,
precisaremos esclarecer tal terminologia e seu contexto.

A palavra cognição é usada em geral para se referir ao processo de aquisição de


conhecimento. Atividades cognitivas, nesse sentido, seriam atividades de aquisição e
processamento de conhecimento. Esses processos, por sua vez, seriam processos cognitivos.
Essas atividades e processos se dão, por exemplo, pela percepção, pela atenção,
comparação/associação de similaridades, memória, raciocínio, imaginação, linguagem,
pensamento, etc. Este foi o uso geral que fizemos do termo até aqui. Quando relacionamos a
concepção (também um desses processos cognitivos) com as outras respostas ao problema do
critério de possibilidade, relacionamo-la a outros processos cognitivos. Dessa forma, podemos
compreender a cognição como uma forma global desses processos e atividades. Nesse
sentido, por exemplo, que defendemos anteriormente que a concepção não encerra a cognição.
De outra forma, o processo conceptual é apenas um entre os processos cognitivos, não o
processo globalizante chamado cognição.

Essa noção de cognição embora pareça mais efervescente em nossa época, ela, como
quase tudo no pensamento filosófico ocidental, remete aos primórdios da filosofia na
antiguidade grega. Isso se dá quando Sócrates diverge dos naturalistas jônicos e observa que o
sujeito é um elemento importante do mundo. Este elemento parece ficar fora das archés
(princípios) postuladas pelos naturalistas em suas explicações. Essa percepção é corroborada
em Encontro com as ciências cognitivas:

O estudo do conhecimento humano tem sido feito, há dois milênios, pelos filósofos,
desde que Sócrates mostrou a necessidade de se enfocar o sujeito do conhecimento.
Ao longo da história da filosofia, procurou-se entender as categorias e operações
envolvidas na produção do conhecimento, por meio de teorias filosóficas, apoiadas
na observação espontânea do comportamento humano, na introspecção
fenomenológica e no raciocínio filosófico. (QUILICI GONZALES, et al, 1997, p.
vii, negrito no original)
76

O amplo uso dessa terminologia na contemporaneidade se estabelece com o advento


das ciências cognitivas, e finalmente de uma ciência cognitiva. Tal ciência tem por intuito, no
mínimo, testar a eficiência de modelos teóricos sobre a mente num ambiente. Em outras
palavras:

Desenvolver simulações de atividades mentais humanas é a tarefa primordial da


ciência cognitiva. Neste sentido ela é, basicamente, uma ciência do artificial, ou seja,
do comportamento das simulações entendidas como grandes experimentos mentais.
(TEIXEIRA, 2004, p. 13)

A ambição geral é a de ter uma ciência do funcionamento da mente. Ainda mais, uma
ciência que explique a mente em geral. E embora haja disputas de paradigmas no campo, há
solidamente “uma proposta metodológica unificadora: a ideia de que simular é explicar. (...)
Simulações são modelos psicológicos, cujo desempenho pode efetivamente ser testado.”
(TEIXEIRA, 2004, p. 17). Isso vem desde a cibernética, precursora da ciência cognitiva,
onde, embora não oficialmente com o nome que chamamos hoje, surge tal programa
científico. Vemos conforme defende Dupuy (1996) em Nas origens das ciências cognitivas:

De 1946 a 1953, dez conferências – as nove primeiras, realizadas no hotel Beekman,


575 Park Avenue, em New York, e a última, no hotel Nassau de Princeton, New
Jersey – reuniram em intervalos regulares algumas das maiores inteligências deste
século. Organizadas pela fundação filantrópica Josiah Macy Jr., elas entraram na
história com o nome de Conferências Macy. Os membros desse clube fechado –
matemáticos, lógicos, engenheiros, fisiologistas e neurofisiologistas, psicólogos,
antropólogos, economistas – tinham como ambição edificar uma ciência geral do
funcionamento da mente. (DUPUY, p. 9)

Três anos depois que ela consolidou sua nova forma, como conhecemos hoje,
mostrando com vigor essa visão da simulação como explicação:

(...) nos Estados Unidos, o desenvolvimento da modelagem de computadores levou à


criação do campo da ciência cognitiva. Pode-se dizer que o campo teve início em
um seminário em setembro de 1956 no MIT. (...) No seminário, George Miller
apresentou The Magic Number Seven, Noam Chomsky apresentou Three Models of
Language e Allen Newell e Herbert Simon apresentaram The Logic Theory
Machine. Esses três documentos influentes mostraram como modelos de
computadores podiam ser usados para tratar a psicologia da memória, a linguagem e
o pensamento lógico, respectivamente. Agora é comum entre psicólogos a visão de
que (…) [a teoria cognitiva] (…) deve descrever um mecanismo detalhado de
processamento de informações por meio do qual alguma função cognitiva poderia
ser implementada. (RUSSELL & NORVIG, 2004, p. 19, negrito e itálico no
original)

Como podemos ver, as noções de processos, atividades e funções cognitivas são


centrais. Nesse panorama que temos as noções dos processos e atividades cognitivas que
77

queremos saber se nos guiam para o conhecimento da modalidade em questão. Dessa


efervescência temos uma ideia importante para avaliarmos a concepção no contexto da
cognição. Esta é a ideia de fechamento cognitivo, pensamento de que há certas explicações e
teorias que nossos processos cognitivos não podem nos dar a conhecer.

Neste capítulo, portanto, 1) esclareceremos essa noção de fechamento cognitivo, 2)


observaremos visões sobre a abertura cognitiva e, finalmente, 3) ponderaremos sobre a
relação entre concepção e os limites da cognição.

3.2.1 A ideia de fechamento cognitivo

A ideia de fechamento cognitivo é rigorosamente definida por Colin McGinn em Can


We Solve the Mind-Body Problem? (2002, p. 395) da seguinte maneira:

[...] Um tipo de mente M é fechada cognitivamente à propriedade P (ou à teoria T)


se e somente se os procedimentos formadores de conceitos disponíveis a M não
podem ser alargados de modo a alcançar P (ou a compreender T). (MCGINN, 2002,
p.395)34

Com essa definição, McGinn (2002, p. 395) pretende expressar a seguinte intuição:

[...] Há diferentes tipos de mentes que formam conceitos, equipadas com poderes e
limitações em graus variáveis, preconceitos e pontos cegos, de modo que as
propriedades (ou teorias) podem ser acessíveis a algumas mentes mas não a outras.

Para corroborar a hipótese sobre o fechamento cognitivo, McGinn propõe que uma
teoria que resolvesse o problema mente-corpo é inacessível cognitivamente ao ser humano.
Portanto, um exemplo de um caso em que a mente humana é fechada cognitivamente para
algo – essa é a tese central de seu artigo (MCGINN, 2002, p. 394-405). Esse posicionamento
de McGinn é um desenvolvimento de ideias já abordadas por Thomas Nagel, em What Is It
Like to Be a Bat? (2002), e por Joseph Levine, em Materialism and Qualia: The Explanatory
Gap (2002). As três reflexões esboçam um tipo de lacuna explanatória, uma dificuldade
epistemológica, que desemboca na noção de fechamento cognitivo sugerida por McGinn,
como nos apresenta Cordeiro em seu trabalho monográfico Três versões do problema mente-
corpo: o hiato explicativo (2016, p. 12):

34
Tradução de Lucas de Oliveira Cordeiro (UFC), doravante o mesmo para a mesma referência.
78

[...] Nagel, Levine e McGinn. Cada um deles propõe, fazendo uso de argumentos ora
similares, ora distintos, que as diversas respostas dadas à questão mais relevante da
filosofia da mente não conseguem explicar clara e satisfatoriamente como a
consciência se relaciona com o corpo. A lacuna explanatória é justamente essa
carência de explicações convincentes que resolveriam o problema. É importante
dizer que a noção de um hiato explicativo só é explícita no texto (LEVINE, 2002) no
qual ela aparece no subtítulo. No entanto, [...] essa ideia já se esboça no texto de
Nagel, que antecede o ensaio de Levine, e é retomada, por assim dizer, por McGinn,
que desenvolve uma espécie de diagnóstico desse problema que, sob determinado
prisma, pode ser considerado um tanto pessimista. (CORDEIRO, 2016, p. 12)

Desenvolveremos esse raciocínio mais adiante, antes, contudo, delinearemos melhor a


noção de fechamento cognitivo observando sua origem. Tanto Nagel como Levine e McGinn
bebem, implícita ou explicitamente, de uma mesma elaboração de fechamento cognitivo feita
por Noam Chomsky em Reflexões sobre a linguagem (CORDEIRO, 2016, p. 13). Tal
elaboração pode ser analisada da seguinte forma:

Ao tecer considerações sobre sua investigação teórica acerca da linguagem e da


cognição humanas em seu livro Reflexões sobre a linguagem, o linguista e filósofo
norte-americano Noam Chomsky abre, em dois momentos, uma espécie de parêntese
para discutir uma especulação a propósito da nossa cognição. A hipótese aventada
pelo linguista é a de que pode haver certas áreas do conhecimento que estão fora do
alcance de nossas capacidades cognitivas. Partindo dos pressupostos de que nossas
estruturas cognitivas têm especificidades e limitações e que os domínios cognitivos
que desejamos conhecer também são particulares, podemos abordar problemas
referentes a alguns desses domínios de formas aproximativas sem que, no entanto,
obtenhamos sucesso em solucioná-los. (CORDEIRO, 2016, p. 16, negrito no
original)

Corroborando a análise de Cordeiro (2016), sobre a fonte da ideia de fechamento


cognitivo, as próprias palavras de Chomsky (1980, p. 25):

Vendo os humanos como organismos biológicos no mundo natural, trata-se apenas


de um acaso feliz se suas capacidades cognitivas combinam bem com a verdade
científica em alguma área. Não deveria causar surpresa, então, que sejam tão poucas
as ciências e que tanta investigação humana não chegue a alcançar nenhuma
profundidade intelectual. A investigação da capacidade cognitiva humana poderia
nos dar algum esclarecimento sobre a classe das ciências humanas atingíveis,
possivelmente um pequeno subconjunto das ciências potenciais referentes a assuntos
sobre os quais esperamos (em vão) obter algum vislumbre e entendimento.

Desse diagnóstico, observa-se a hipótese do fechamento cognitivo se formar:

Parece faltar-nos até os conceitos relevantes; de fato, não se propôs nenhum


princípio intelectualmente satisfatório que tenha força explicativa, embora as
questões sejam muito antigas. Não se exclui a hipótese de que as capacidades
humanas de construção científica simplesmente não se estendem a este domínio, [...]
de modo que para os seres humanos tais questões estarão sempre envoltas em
mistério. (CHOMSKY, 1980, p. 25)
79

É importante perceber que quando se fala em mistério nesses termos, se está a falar
apenas de que a resposta a um problema simplesmente não é acessível à determinada mente,
de tal maneira que o problema não possa ser resolvido. Nesse sentido, o problema deixa de ser
um problema e passa a ser considerado um mistério – sem teor místico inicialmente
(CORDEIRO, 2016, p. 17).

Uma hipótese explicativa para um fechamento cognitivo seria a de que um processo de


especialização evolutivo por parte de um organismo pode lhe tornar precário em atuar num
campo da realidade que não seja sua especialidade. Nas palavras de Chomsky (1980, p.125):

A mente humana é um sistema biologicamente dado, com determinadas


potencialidades e limites. [...] O fato deste sistema biológico específico dispor de
“hipóteses admissíveis” dá conta de sua capacidade de construir teorias elaboradas e
complexas. Porém, as propriedades da mente que tornam possível a construção de
hipóteses admissíveis podem perfeitamente ser as mesmas que excluem outras
teorias bem-sucedidas, por serem ininteligíveis a seres humanos. Algumas teorias
podem simplesmente não pertencer ao conjunto das hipóteses admissíveis
determinadas por aquelas propriedades mentais específicas que nos predispõem “a
imaginar teorias corretas de um tipo determinado”, embora possam ser acessíveis a
inteligências organizadas de forma diferente. Ou ainda: ordenadas as hipóteses
admissíveis pelo seu grau de acessibilidade, tais teorias poderiam estar situadas em
ponto tão remoto desta escala que seriam impossíveis de se construírem sob
condições empíricas dadas, muito embora pudessem ser facilmente acessíveis a
mentes diversamente estruturadas.

Isso é o que claramente observamos ocorrer em outros tipos de mente como a de


outros organismos animais. Por exemplo, as capacidades cognitivas de um cachorro não lhe
permitem compreender as Leis de Mendel. Sendo assim, os cachorros são cognitivamente
fechados à genética. Por outro lado, a intuição seria a mesma para nós, podemos dizer por
analogia que “ao tentarmos compreender certas questões da, digamos, filosofia da mente,
sejamos como galinhas tentando entender o teorema de Pitágoras” (CORDEIRO, 2016, p. 17).
O significado da hipótese do fechamento cognitivo, no campo da filosofia da mente, é sugerir
que seja “[...] inerente à mente humana a incapacidade de desenvolver uma compreensão
científica dos seus próprios processos de funcionamento em certos domínios.” (CHOMSKY,
1980, p.125-126). Essa visão também é endossada por Searle (2016, p.39), mostrando que
talvez não sejamos o auge da perfeição cognitiva, ou como se diz numa famosa expressão
brasileira, que talvez “não sejamos a última coca-cola do deserto”:

[...] é fácil imaginar um ser que, ao longo da mesma progressão evolutiva, seja mais
desenvolvido do que nós, que esteja para nós aproximadamente como estamos para
os cães. Da mesma forma como achamos que os cães não podem compreender
mecânica quântica, assim este produto evolutivo imaginário concluiria que, embora
os seres humanos possam entender mecânica quântica, há muita coisa que o cérebro
humano não pode compreender.
80

Há uma objeção comumente entendida como a priori feita contra tal hipótese do
fechamento cognitivo, é a de que se se pode formular o problema, é porque há instrumentação
teórica para expressar a resposta. Todavia, para rejeitarmos de forma a priori a hipótese do
fechamento cognitivo, deveríamos mostrar que ela é contraditória. Isto não é o caso, como
propõe Chomsky (1980, p. 126):

Não há nada de contraditório na crença de que a investigação das capacidades


intelectuais inerentes a um organismo biológico específico – seres humanos – possa
levar C, mesmo se C for ele próprio um ser humano, à demonstração científica de
que algumas ciências possíveis de serem construídas escapam à compreensão
humana [...]. Esta não é uma conclusão que imponho aqui: estou simplesmente
chamando a atenção para o fato de esta conclusão não ser a priori rejeitável.

Um esclarecimento último que precisa ser feito sobre a ideia de fechamento cognitivo
é uma distinção de visões sobre o caráter limitado do ser humano. Certamente o fechamento
cognitivo se mostra como uma limitação de um organismo, mas queremos dizer que não é
uma limitação de computabilidade, digamos assim, ou de tempo devido à mortalidade. O
fechamento cognitivo não expressa uma limitação de desempenho ou uma limitação temporal,
o fechamento cognitivo expressa uma limitação de natureza. Enquanto um organismo
mantiver determinada natureza cognitiva, nada pode lhe abrir cognitivamente a algo para que
ele é fechado. Enquanto este organismo mantiver a mesma natureza cognitiva, mesmo que ele
tenha um tempo infinito na tentativa da resolução de um problema, ou que tenha suas
capacidades computacionais ao máximo desenvolvidas, ele não conseguirá ter acesso a algo
que lhe é cognitivamente fechado. De outra forma:

[...] há fatos que não poderiam jamais ser representados ou compreendidos por seres
humanos, ainda que a nossa espécie durasse para sempre – simplesmente porque
nossa estrutura não nos permite trabalhar com conceitos do tipo necessário para
fazê-lo. (NAGEL, 2002, p. 221)

Por conseguinte, apenas uma mudança de natureza cognitiva, dessa forma uma mudança
qualitativa e não quantitativa, poderia abrir um organismo a algo para que ele é fechado
cognitivamente – nem assim, aliás, pois ele já não será ele ao se abrir cognitivamente, será
outro.

Finalmente, podemos perceber que a noção do fechamento cognitivo é coerente. Em


todo caso, parece se sustentar no exemplo do fechamento cognitivo da teoria que resolvesse o
problema mente-corpo. No entanto, nas próximas subseções defenderemos que, mesmo que
81

sejamos abertos cognitivamente à solução do problema mente-corpo, isso não implica que
sejamos abertos cognitivamente em geral. Com este intuito, na subseção 1) veremos como o
problema mente-corpo pode ser caracterizado de forma cognitivamente fechada a nós; na
subseção 2) observaremos uma visão otimista sobre o problema e esboçaremos uma visão de
abertura sobre tal problema; na subseção 3) avaliaremos brevemente a noção de abertura
cognitiva no seu pressuposto da informação, esboçaremos um problema para ela e disso
veremos a persistência da ideia do fechamento. Munidos de tais reflexões, seguiremos para a
próxima seção e avaliaremos como a noção de concepção é afetada pela ideia de fechamento
cognitivo.

3.2.1.1 O mistério mente-corpo

Por hipótese, o nosso fechamento cognitivo para uma teoria que explique a
problemática relação mente-corpo se dá porque cada meio epistêmico de investigação de cada
um dos termos da relação, a saber, introspecção e percepção, não pode, por si só, explicar o
outro termo. Além disso, não há algo em comum que una os dois meios epistêmicos num
nexo explicativo e estes são os únicos meios epistêmicos que temos para investigar mente e
cérebro. Essa é a tese defendida por McGinn em Can We Solve the Mind-Body Problem?,
para entendermos o problema mente-corpo não como problema, mas como mistério.

Para compreendermos tal visão de neomisterianismo, como diria Owen Flanagan,


devemos compreender 1) como a relação mente-corpo é problemática, 2) quais os dois meios
epistêmicos que temos para investigar cada termo, 3) porque cada meio de conhecer um dos
termos falha em conhecer o outro termo. Iniciemos com o primeiro ponto.

3.2.1.1.1 Mente e corpo: uma relação problemática

A relação mente-corpo é problemática devido à consciência, uma especificidade da


mente. Parafraseando Nagel (2002), a relação mente-corpo sem a consciência não parece tão
relevante, mas com a consciência parece um problema insolúvel. A questão, no entanto, não é
82

uma dificuldade em categorizar tipos de consciência, mas a relação de tais consciências35 com
um mundo físico. Em outras palavras:

Para filósofos como Thomas Nagel [...] e Colin McGinn, o problema mais
importante não é o de se classificar formas de consciência ou de se investigar os
seus traços mais característicos. O grande problema metafísico é o de tornar
compreensível como, em um mundo totalmente físico, se faz possível a existência de
algo irredutivelmente subjetivo e fenomenal como a consciência. Esse é para muitos
um inescrutável mistério. (COSTA, 2005, p. 14)

De um lado temos a nossa visão científica de mundo, uma visão objetiva e de terceira
pessoa, onde temos experimentos replicáveis e justificativas acessíveis ao público e capazes
de correção numa comunidade. De todo o discurso público e objetivo constituímos a nossa
visão científica de mundo – uma descrição do mundo (livro de mundo). Do outro lado temos
nossa visão subjetiva do mundo, algo que parece intransferível, um ponto de vista de primeira
pessoa que versa sobre nossos desejos, intenções, percepções, experiências, consciência,
crenças, nossas sensações em geral e etc. Da combinação das duas visões temos uma grande
surpresa: o que é conhecido por “princípio surpresa” (CHALMERS, 1997). O princípio diz
que se partimos de um ponto de vista de terceira pessoa, então não temos razões suficientes
para postular a existência do fenômeno da experiência consciente; contudo nós evidenciamos
o fenômeno, temos36 em primeira pessoa a experiência consciente. Dessa forma, para o ponto
de vista de terceira pessoa esse é um fenômeno que surge de forma surpreendente. Por
conseguinte, os fatos físicos, descritos e previstos pela nossa atual visão científica de mundo,
não nos levam ao surgimento ou existência da experiência consciente. Em outras palavras,
embora explique as reações químico-físicas e biológicas envolvidas, a ciência não nos dá o
gosto do beijo da pessoa amada.

Dessa surpresa temos o problema: como conciliamos teoricamente o objetivo e o


subjetivo? Teorias materialistas insistem em algum tipo de redução do mental (subjetivo) ao
físico (objetivo) – isso quando não eliminam o mental. Alguns filósofos, como Kripke (1980),
argumentam pela impossibilidade de redução por serem (o mental e o físico) coisas distintas.

O argumento37 de Kripke (1980) para demonstrar que um estado mental não é um


estado físico do cérebro38 e, dessa forma, que são coisas distintas, delineia-se da seguinte

35
Especificamente, seus estados qualitativos ou qualia. Nos termos de Cordeiro, a “aparência da experiência”
(CORDEIRO, 2016, p. 19).
36
Em contramão às perspicazes argumentações eliministas de DENNETT (1988); embora já tenha contra-
argumentado tais posições em outro momento, para mais detalhes ver CAETANO (2015).
37
O argumento de Kripke contra o materialismo é um dos vários argumentos por conceptibilidade que citamos
em nossas reflexões iniciais e os quais estão sendo postos em suspensão de juízo devido à natureza de nossa
83

maneira. Primeiro compreendamos que quando nos referimos a algo com um termo e depois
com outro termo, estamos nos referindo a mesma coisa com dois termos distintos. Se estes
dois termos distintos se referem à mesma coisa, isso significa que eles não poderiam se referir
a coisas distintas. Afinal, se eles se referissem a coisas distintas, não se refeririam à mesma
coisa como o fazem, mas a duas coisas. Portanto, se temos uma relação de identidade entre
dois termos (se os dois termos se referem a mesma coisa), então temos uma relação necessária
e não contingente, ou seja, não teríamos como conceber os termos se referindo a coisas
diferentes mantendo eles a mesma referência inicial da identidade39.

Ora, quando uma redução materialista diz que estados mentais são reduzidos a estados
cerebrais em forma identitária, está dizendo que os dois termos se referem a uma coisa só.
Sendo assim, se os dois termos se referem a uma coisa só, então não temos como conceber a
referência de um termo sem a referência do outro termo, afinal são as mesmas. Contudo, isto
não é o que acontece para estados mentais e estados cerebrais porque nós podemos conceber
um estado mental sem o correspondente estado cerebral que supostamente se referia à mesma
coisa. Para usar o exemplo de Kripke (1980), suponha que o materialista diz que dor é
estímulo das fibras-C, dessa forma, nós podemos conceber alguém que sinta dor sem que
tenha estímulo das fibras-C e vice-versa. Se podemos conceber a distinção, isso significa que
é uma relação contingente. Ora, mas se é uma relação contingente, então não é uma relação
necessária. Se não é uma relação necessária, logo não é uma relação de identidade. Se não é
uma relação de identidade, então dor e estímulo das fibras-C não são a mesma coisa. Se não é
a mesma coisa, então um estado mental é uma coisa e um estado cerebral é outra. Se são duas
coisas distintas, então não é como o materialismo dizia. Em conclusão, o materialismo é falso.

Kripke chega a uma conclusão metafísica sobre a falsidade do materialismo,


diferentemente de Levine (2002) que pretende mostrar que uma conclusão metafísica não se
sustenta com as razões apresentadas, embora possamos sustentar uma conclusão
epistemológica problemática ao materialismo. Essa conclusão epistemológica problemática

investigação. Contudo, para o bem da compreensão do tema, concedamos o raciocínio – do mesmo modo que
fizemos com a possibilidade sugerida por Chomsky no fechamento cognitivo.
38
Kripke, em seu famoso argumento contra o materialismo, não argumenta diretamente contra o funcionalismo,
corrente que entende que a mente é compreendida pelo que faz e entende estados mentais como estados
funcionais, mas contra um materialismo de identidade entre estados mentais e estados cerebrais
(BRANQUINHO, 2002). Todavia, mutatis mutandis, seu argumento pode ser organizado para ser um argumento
contra a identidade entre um estado funcional da mente e um estado funcional do cérebro. Isso é o que demonstra
Levine em Materialism and qualia: the explanatory gap (2002).
39
Essa é a intuição sustentáculo da ideia de designador rígido de Kripke (1980), a ideia de que um termo é um
designador rígido quando ele se refere à mesma coisa em todos os mundos possíveis em que essa coisa existe.
84

sugerida por Levine é a de que embora o materialismo possa ser verdadeiro, há uma lacuna na
sua explicação sobre a mente. Como se segue:

[...] Levine [...] queixou-se de uma “lacuna explanatória”: a de que nenhuma teoria
funcionalista pode explicar por que determinada sensação é sentida pelo sujeito da
maneira que é. A questão “Por que tais e tais eventos funcionais constituem ou
produzem uma sensação como essa?” parece estar sempre aberta. (LYCAN, 2013, p.
196)

Conclusão parecida se expressa nas palavras de Nagel (2002) ao concordar que a visão
materialista (objetiva) não expressa o subjetivo em seu corpo teórico: “[...] o caráter subjetivo
da experiência [...] não é capturado por nenhuma das conhecidas análises reducionistas
recentemente desenvolvidas, pois todas elas são logicamente compatíveis com sua ausência.”
(p. 219)

Levine sustenta que uma das premissas de Kripke é tratada como óbvia enquanto não
o é. Além disso, que ela é plausivelmente falsa. Dessa forma, o argumento nos permite chegar
apenas a uma conclusão epistemológica e não metafísica. Essa é a premissa que nos diz que a
concepção da distinção pode nos mostrar uma distinção metafísica, em outras palavras, que
conceber como coisas separadas implica que sejam coisas separadas e não uma coisa apenas.
Dessa forma, a ideia de conceptibilidade é determinante para a distinção das modalidades de
necessidade (é inconcebível que não seja da forma que se concebe, daí necessário) e
contingência (é concebível uma alternativa a forma que se concebe, daí contingente). Vemos a
centralidade dessa ideia quando Cordeiro (2016) nos apresenta o raciocínio de Kripke no
seguinte trecho:

[...] A sensação de dor, que é interna, é essencial para a nossa concepção de dor e
poucos consideram plausível separar dor e sensação de dor. Para o teórico da
identidade filiado ao materialismo (ou à vertente funcionalista), a sensação deveria
ser igual a um (tipo de) fenômeno físico, mas agora voltamos ao nosso problema:
“[...] a identidade entre dor e estimulação de fibras-C, se verdadeira, deve ser
necessária.” (ibidem, p. 331); todavia, se admitimos que é possível conceber, ao
menos logicamente, a sensação de dor ocorrendo sem a estimulação de fibras-C e
vice versa, a identidade é falsa, pois é concebivelmente contingente. (p. 15, itálico
nosso)

Dessa forma, a relação entre inconceptibilidade e impossibilidade deve ser justificada.


Isso nos é esclarecido da seguinte maneira:

[...] Levine, recorrendo às necessidades nos âmbitos epistemológico e metafísico,


diz que ele [o argumento de Kripke] não é persuasivo porque depende de uma
premissa não justificada, a de que situações impossíveis são inconcebíveis. Como
nós podemos conceber dor sem estimulação das fibras-C e vice-versa, então supõe-
se que é possível uma situação em que temos uma coisa sem a outra. O filósofo
levanta a hipótese de que isso pode não ser o caso, que podemos ser capazes de
conceber situações que de fato não podem ocorrer. Assim, pode ser que haja uma
conexão necessária entre ser dor e ser estimulação das fibras-C. Apesar disso, não
85

temos como explicar a nossa impressão de que podemos conceber a quebra dessa
conexão. 'Lacuna explicativa' é o nome que se dá à falta dessa explicação.
(CORDEIRO, 2016, p. 29-30)

Aqui podemos ver a distinção, como bem faz Levine, dos campos da epistemologia e
da metafísica. Possibilidade, como vimos, é uma noção metafísica. Concepção é uma noção
epistemológica, cognitiva. Assim, a premissa de concepção de dor sem estímulo das fibras-C
nos indica uma conclusão no campo da concepção, isto é, o campo epistemológico. Em outras
palavras, mostrar a concepção de algo não é o mesmo que mostrar a possibilidade de algo.
Essa é uma intuição cara para a nossa reflexão central, voltaremos a ela na terceira parte de
nossa investigação, quando discutiremos a conceptibilidade como um guia para a
possibilidade.

Agora que tomamos nota da lacuna explicativa e, por conseguinte, do problema


epistemológico levantado por Levine, estamos a apenas um passo de compreender o problema
mente-corpo como mistério mente-corpo. Esse passo é a sugestão de McGinn de que a teoria
que explicasse a relação problemática entre o subjetivo e o objetivo e, consequentemente,
preenchesse essa lacuna explicativa, seja uma teoria cognitivamente fechada a nós. Para isso,
avaliemos os pontos 2) e 3) como dissemos, respectivamente a saber, quais os dois meios
epistêmicos que temos para investigar cada termo do problema e por que cada meio de
conhecer um dos termos falha em conhecer o outro termo.

3.2.1.1.2 Duas vias de conhecimento

Dentro desse diálogo filosófico, há duas vias gerais de conhecimento sobre a relação
mente-corpo: a introspecção e a percepção.

A introspecção é a via que nos permite “observar a mente”. É o processo em que nós
voltamos nossa atenção para os nossos próprios estados mentais em primeira pessoa. Muitas
vezes expressa a ideia de “acesso privilegiado”, isto é, o portador-observador do estado
mental tem um acesso que outros observadores não têm. De modo simples, há um sentido em
que você observa/sente sua dor que nenhuma outra pessoa observa/sente essa dor – por mais
empática que seja. Uma exposição clássica de introspecção é dada na famosa obra Os
Problemas da Filosofia:

A próxima extensão a ser considerada é o conhecimento por introspecção. Não


temos apenas consciência de coisas, mas temos muitas vezes consciência de
86

estarmos conscientes delas. Quando vejo o sol, tenho muitas vezes consciência de
que vejo o sol; assim ‘meu ato de ver o sol’ é um objeto do qual tenho conhecimento
direto. Quando eu desejo alimento, posso ter consciência de meu desejo de alimento;
assim, ‘meu desejo de alimento’ é um objeto do qual tenho conhecimento direto. De
maneira similar, podemos ter consciência de nosso sentimento de prazer e de dor, e,
em geral, dos eventos que ocorrem em nossas mentes. Este tipo de conhecimento
direto, que pode ser denominado de autoconsciência, é a fonte do nosso
conhecimento dos objetos mentais. [...] (RUSSELL, 2005, pp. 54-55)

O método da introspecção, portanto, é este método de inspeção da mente em primeira


pessoa. Por outro lado, temos o método da percepção, uma via de terceira pessoa.

Usar o termo 'percepção' aqui pode gerar ambiguidade, uma vez que a introspecção
pode ser entendida como uma percepção interior. Por conta disto, deixamos claro o caráter de
terceira pessoa da via percepção que estamos falando aqui, justamente em contraposição à
introspecção.

A via da percepção, portanto, é a via que outra pessoa tem de observar a dor que você
sente. Outra pessoa não observa sua dor como você observa – que é sentindo. Outra pessoa
saberia de sua dor observando seu comportamento corporal, suas feições de dor, ou seu
comportamento verbal, seu grito de dor ou seu aviso que está a doer. Há também a alternativa
de observar se há algum ferimento em seu corpo, ou usar instrumentos médicos que permitam
visualizar o interior de seu corpo e ver alterações ao padrão comum.

Diferentemente da introspecção, em que você possui um “acesso privilegiado”, não há


acesso privilegiado na via da percepção, qualquer pessoa observaria os mesmos dados e teria
acesso de igual maneira – todos conheceriam da mesma maneira. Mas qual seria o problema
com essas duas vias para compreendermos uma solução ao problema mente-corpo? Vejamos
a seguir.

3.2.1.1.3 Caminhos paralelos não se cruzam

Uma vez que temos esclarecidas as duas vias para o conhecimento da relação mente-
corpo, temos como ver em que sentido, por natureza, elas não se estendem para os dois termos
da relação. Além disso, se não há nenhuma intersecção entre as duas vias e temos apenas estas
duas vias, então somos fechados cognitivamente à solução do problema mente-corpo e, assim,
temos um mistério ao invés de um real problema.
87

O ponto central para as duas vias não se cruzarem é o seguinte. Do ponto de vista de
terceira pessoa não compreendemos os aspectos captados pelo ponto de vista de primeira
pessoa para uma compreensão total do mental, e vice-versa. Além disso, não há nada que
ligue os dois aspectos de observação (para seguir a metáfora, não há um cruzamento) de modo
a formularmos uma teoria da mente. De cada um dos pontos de vista tomados como partida
para análise, o outro é surpreendente.

Visualizemos isso de acordo com uma ilustração sugerida por Thomas Nagel em Uma
breve introdução à filosofia. Nagel sugere pensarmos em um cientista que quer descobrir
como é o sabor do chocolate no interior da fenomenologia da mente de outra pessoa. Ele fez
inúmeras observações sobre o corpo dessa pessoa, inclusive abre seu cérebro, mas encontra
grande dificuldade em observar o fenômeno que ele gostaria de observar para estudar (o sabor
de chocolate para outra pessoa). Parece que temos uma distinção de interioridade, como se
segue:

[...] sua experiência de saborear o chocolate está de tal forma trancada dentro da sua
mente, que não pode ser observada por ninguém – mesmo que [...] abra seu crânio e
examine dentro do seu cérebro. Suas experiências estão no interior da sua mente
com um tipo de interioridade que é diferente do modo como seu cérebro está no
interior da sua cabeça. Uma outra pessoa pode abrir sua cabeça e observar o que há
dentro dela, mas não pode abrir sua mente e examiná-la – não dessa forma pelo
menos. (NAGEL, 2011, p. 29-30)

Dessa forma, o cientista acumula inúmeros fracassos em suas observações. Mas


sigamos com a ilustração de Nagel e pensemos que o cientista está disposto de modo mais
radical a conseguir tal sucesso. Ele parece que continuaria fracassando:

[...] Imagine um cientista muito louco que, para tentar observar sua experiência de
saborear o chocolate, lambesse seu cérebro enquanto você estivesse comendo uma
barra de chocolate. Em primeiro lugar, seu cérebro provavelmente não teria para ele
o gosto de chocolate. Mas, mesmo que tivesse, ele não teria conseguido entrar na
sua mente e observar a sua experiência de provar chocolate. A única coisa que ele
teria descoberto, de modo bastante bizarro, é que, quando você sente o gosto do
chocolate, seu cérebro se altera e passa a ter gosto de chocolate para as outras
pessoas. Ele teria a experiência dele do chocolate, e você, a sua. (NAGEL, 2011, p.
30)

Essa ilustração nos mostra como não conseguimos chegar ao ponto de vista de
primeira pessoa, partindo do ponto de vista de terceira pessoa. Mas se observarmos
atentamente, também tiramos que não observamos o sabor do chocolate para nós da mesma
forma que o cientista. Utilizando nossa introspecção, não conseguimos chegar nas
observações fracassadas do cientista maluco. Precisamos utilizar um ponto de vista objetivo,
de terceira pessoa (tais como as observações do cientista) para chegarmos na observação de
nosso interior físico, e não da introspecção (a qual nos daria outros resultados de observação).
88

Disso temos a análise de McGinn que de cada um dos pontos de observação nós vemos os
termos de cada relação, mas não vemos o vínculo, algo comum e que ligue os dois. Para
termos acesso ao vínclo (o nexo psicofísico) precisaríamos apreender o caráter subjetivo da
consciência. Como termos essa apreensão? Para MacGinn, de acordo com os caminhos
epistemológicos que possuímos (introspecção e investigação do cérebro), não temos como
fazer isso. Cordeiro (2016) expõe claramente esse raciocínio:

A introspecção, que é a porta de entrada aos nossos estados mentais, não demonstra
esses estados conscientes como dependentes de estados cerebrais de uma maneira
inteligível. Sendo assim, não conseguimos, via introspecção, chegar a P [...] Agora
McGinn passa para o outro lado do problema. Dado que a introspecção não nos
auxilia, vejamos se e de que modo a observação do cérebro e de seus estados e
processos físicos podem nos ajudar: [...] Perceber o cérebro é diferente de perceber a
consciência. [...] Nenhuma inferência a partir do que observamos nos cérebros nos
conduzirá à consciência ou ao nexo psicofísico. Se os dados obtidos através da
investigação científica do cérebro não trazem nenhum elemento de estados
conscientes, então as propriedades teóricas que explicam esses dados também não
incluirão a consciência. Portanto, como dissemos, nenhuma operação intelectual nos
guiará do domínio físico para o domínio da mente. (p. 33-4)

Uma vez que essas vias são as vias produtoras de nossas teorias, essa situação parece
nos sugerir que não temos como produzir uma teoria da mente que explique essa relação
problemática. Esse vazio na explicação, talvez intransponível, se dá por essa dualidade
epistêmica:

Essa dualidade epistêmica, isto é, o fato de que não podemos observar o cérebro
através de introspecção nem chegar à mente pela observação do cérebro parece ser o
que nos impede de chegar ao elo que une mente e cérebro [...]. Parece haver um
hiato epistêmico resultante das distinções entre essas faculdades cognitivas
(introspecção e percepção) e é esse hiato que nos impossibilita de entender o nexo
psicofísico. (CORDEIRO, 2016, 34-5)

Essa é a mesma dificuldade que se agrava mais quando Nagel (2002) sugere que
pensemos como é ser um morcego para um morcego (e não para nós). Nós podemos até
chegar a um entendimento sobre os correlatos objetivos para as nossas experiências
subjetivas, mas parece que estamos ainda mais fechados para subjetividades diferentes da
nossa. Parece que nossa natureza nos impede de compreender certos fatos da realidade:

Vinculando essa ideia de fechamento cognitivo ao exemplo do morcego e às


dificuldades impostas pela subjetividade, Nagel especula que talvez haja fatos que
estão além dos nossos esquemas ou sistemas de representação conceitual: “Refletir
sobre como é ser um morcego parece nos conduzir [...] à conclusão de que há fatos
que não consistem na verdade de proposições expressáveis em linguagem humana.”
(2002, p.221). O que o filósofo parece querer dizer com isso é que os limites de
nossa natureza talvez nos impeçam para sempre de desenvolver conceitos e uma
teoria que nos auxiliariam a conceber outras formas de subjetividade. (CORDEIRO,
2016, p. 22)
89

Se somos fechados cognitivamente para uma teoria que solucione o problema mente-
corpo, não seríamos fechados cognitivamente para certos fatos da realidade sobre os quais não
conseguimos nem mesmo formular um problema? Alguns poderiam dizer que não, mas se
compreendermos a ideia de nossos limites cognitivos, não podemos concluir a inexistência de
algo partindo apenas de nossa incapacidade de apreender tal algo (mesmo que não
consigamos nem conceituar ou ter uma noção do que seja). Mesmo que nunca no passado
alguém com nossas estruturas cognitivas tenha pensado sobre e nunca no futuro alguém assim
possa pensar sobre (caso de fechamento cognitivo), isso não implica a inexistência. Dessa
forma:

[...] fechamento cognitivo em relação à P não implica que P não existe. Que P seja
(como podemos dizer) numênico para M não demonstra que P não ocorra em
alguma teoria científica naturalista – evidencia apenas que T não é cognitivamente
acessível a M. (MCGINN, 2002, p.395)

Disso também podemos observar outra distinção dentro da ideia de fechamento


cognitivo: não é porque algo é cognitivamente fechado para determinado tipo de cognição,
que é para todos os tipos, embora fique aberta a possibilidade de algo que seja fechado
cognitivamente a todo tipo de mente. Em conclusão:

Um problema é absolutamente fechado em termos cognitivos se nenhuma mente


possível pudesse resolvê-lo; um problema é relativamente fechado se alguns tipos de
mentes pudessem em princípio resolvê-lo ao passo que mentes de outros tipos não
poderiam resolvê-lo. (MCGINN, 2002, p.397)

Por essa reflexão McGinn propõe que dissolvamos o problema mente-corpo, ao invés
de resolvê-lo, uma vez que o caracterizamos como mistério:

Abertura cognitiva total não nos é garantida e nem deveria ser esperada. Contudo,
aquilo que é numênico para nós talvez não seja miraculoso em si. Portanto, nós
deveríamos ficar atentos à possibilidade de que um problema que nos parece
profundamente complexo e absolutamente desconcertante pode advir de uma área de
fechamento cognitivo nos nossos modos de representar o mundo. O que desejo
argumentar agora é que é esse o caso quando achamos misteriosa a conexão entre a
consciência e o cérebro. Somos impedidos de chegar a uma teoria explicativa do
nexo psicofísico. E isso nos inclina à ilusão de um mistério objetivo. A avaliação
disso deverá remover o problema filosófico: na realidade, a consciência não surge do
cérebro do modo mágico como o Gênio sai da lâmpada. (MCGINN, 2002, p.396)

Outra intuição que percebemos dessa reflexão é uma visão de nossos limites
cognitivos, pessimista para alguns, em comparação com uma de abertura cognitiva a qual nós
podemos conhecer toda a natureza sem limitações (uma visão otimista, podemos dizer). Além
disso, ainda pode ser coerente uma visão que divirja de McGinn assumindo que somos
abertos para a solução do problema mente-corpo embora ainda tenhamos limites
cognitivamente e sejamos fechados cognitivamente a coisas as quais nem supomos. Esta ideia
90

de abertura cognitiva total também é cara para nossa reflexão, pois se formos totalmente
abertos cognitivamente então somos abertos para o conhecimento de um critério de
possibilidade. Faremos um esboço e refletiremos sobre essa ideia de abertura cognitiva nas
próximas duas subseções. En passant observaremos visões otimistas sobre o fechamento
cognitivo pontual da solução ao problema mente-corpo e notaremos a coerência de ainda
manter a ideia de fechamento cognitivo em geral. Por fim, analisaremos o pressuposto da
informação para uma visão de abertura cognitiva total.

3.2.1.2 Otimismo cognitivo

Nessa subseção abordaremos três perspectivas sobre o otimismo cognitivo frente ao


pessimismo neomisteriano de McGinn. Nas duas primeiras perspectivas, temos Owen
Flanagan com o método natural e Patricia Churchland com o materialismo eliminativo, por
fim temos a visão do duplo aspecto da informação com David J. Chalmers. Argumentaremos
que a visão de Flanagan e de Churchland não são suficientes para retirar o teor mistérico da
relação mente-corpo da forma como McGinn nos mostrou. As duas visões não nos ajudam a
vislumbrar o vínculo psicofísico para o qual, segundo McGinn, somos fechados
cognitivamente. Por outro lado, argumentaremos que o vínculo pode ser entendido como
cognitivamente aberto para nós de acordo com os insights de Chalmers. Nessa visão,
encontramos uma propriedade tanto numa via epistêmica quanto na outra que pode servir de
base teórica para o vínculo. Isso não implica que defenderemos a teoria da mente proposta por
Chalmers, mas que a existência de uma teoria desse tipo já é o suficiente para retirar a
impossibilidade de teorizar algo em comum dentro da dualidade epistêmica. Todavia,
argumentaremos que mesmo se formos abertos cognitivamente a esse caso pontual, não
implica que não sejamos fechados cognitivamente a outros casos pontuais.

3.2.1.2.1 O método natural

O método natural visa abrir caminho para uma teoria unificada da mente e foi
delineado por Owen Flanagan em Consciousness Reconsidered (1992). O método busca
unificar e tomar seriamente o que se diz sobre a mente na fenomenologia, na psicologia, na
91

psicologia cognitiva e na neurociência, de forma a utilizar as melhores razões de cada visão.


O objetivo é formar uma visão coerente e coesa entre todos esses pontos de vista sem que
nenhum elimine o outro e nenhum seja a última palavra (FLANAGAN, 1997, p. 100-1).

Flanagan defende que o método natural é uma alternativa para seguirmos na busca de
uma teoria unificada da mente. Nesse sentido, ele nos convida a uma visão otimista do tipo
“copo meio-cheio” e não uma visão “copo meio-vazio” como a pessimista de McGinn (copo
totalmente vazio, poderíamos dizer). Entretanto, esse método natural nos auxiliaria a
compreender o vínculo que McGinn aponta? Se o método pretende dar uma teoria unificada
da mente e que assim possamos explicar a mente, supõe-se que sim.

Um exemplo de aplicação do método é o caso dos sonhos, onde um ceticismo


fenomenológico pode ser posto. O nosso senso comum costuma tratar sonhos como
experiências, mas nem todos seguem o senso comum. Algumas visões céticas, como a de
Daniel Dennett (1978), sugerem que sonhos sejam confabulações do sujeito e não
experiências reais. Nesse sentido, Flanagan utiliza o método natural para demonstrar que
temos evidências para tratarmos sonhos como experiências conscientes reais e não retirarmos
a fenomenologia de primeira pessoa.

De acordo com o método, temos de assumir a fenomenologia, a psicologia e a


neurociência como fontes de dados. A fenomenologia nos diz que sonhos são experiências
conscientes. A psicologia, pelo menos na sua vertente psicanalítica, embora os entenda como
experiências conscientes, ainda é compatível com a visão cética das confabulações. Contudo,
a neurociência nos dá dados que nos sugerem que sonhos sejam experiências conscientes.
Dessa forma, nós teríamos como decidir a questão, ponderando o que há de mais coerente na
união das três, em favor da visão de que sonhos são experiências conscientes reais
(FLANAGAN, 1997, pp.102-3).

O dado central da neurociência seriam os resultados das pesquisas de Crick e Koch


(1990) por um lado, de Llinás e Ribary (1993) e de Llinás e Paré (1991) de outro. Crick e
Koch reconhecem um correlato neural para as ocorrências de experiências conscientes, a
sincronia de oscilações de 40-Hz nos neurônios. Na outra via, Llinás, Ribary e Paré
reconhecem que durante o sono tipo REM40 a mesma sincronia é observada. Dessa forma, se a
sincronia proposta por Crick e Koch forem reais marcas de consciência, então teríamos que
sonhos seriam experiências conscientes reais e não confabulações. Em todo caso, a evidência

40
Rapid Eye Moviment.
92

da neurociência parece ser a favor de sonhos como experiências conscientes e seguir na


contramão de uma visão eliminista da fenomenologia de primeira pessoa (FLANAGAN,
1997).

Como podemos ver, o método natural proposto por Flanagan é relevante numa
argumentação contra a não eliminação de uma fenomenologia de primeira pessoa. No entanto,
mesmo assumindo tal metodologia e vendo uma de suas aplicações, não fica claro como
poderíamos compreender o vínculo problemático que aponta McGinn. Isso ocorre porque o
método natural de Flanagan, por mais que tenha o objetivo de levar seriamente as três
perspectivas e buscar uma visão coerente entre as três, tal método ainda não consegue superar
o problema da dualidade epistêmica. Não só, embora busque uma visão coerente entre as
perspectivas de primeira pessoa e de terceira pessoa, não aborda o vínculo problemático, isto
é, não conseguimos elencar algo em comum nas duas vias epistêmicas – embora as façamos
coordenadas e coerentes.

Concluímos que tal otimismo cognitivo do método natural serve para iluminar
algumas questões sobre o mental, mas não é suficiente para o problema do vínculo. Ainda
parece persistir a ideia de que somos fechados cognitivamente para tal vínculo, embora
consigamos manter uma visão coerente entre as duas vias epistêmicas.

Tentemos então por outro caminho, pensemos na proposta de otimismo cognitivo


sugerida por Patricia Churchland na perspectiva eliminista.

3.2.1.2.2 Otimismo neurocientífico

De uma perspectiva diferente de Flanagan, Patricia Churchland (1994) sugere que


deveríamos revisar nossas crenças sobre a fenomenologia e a psicologia de acordo com os
avanços da neurociência. Uma neurociência futura deixaria obsoletas as perspectivas
fenomenológicas e psicológicas. Espera-se que essa postura supere as dificuldades
apresentadas por McGinn e nos imprima um otimismo cognitivo na resolução da problemática
relação mente-corpo, nos termos de Churchland, um otimismo moderado.

Essa posição se distingue da de Flanagan à medida que a neurociência teria a última


palavra sobre o problema da consciência. Ela ditaria a verdade ou a falsidade do materialismo
eliminativo – teoria sugerida como hipótese científica por Churchland (1994, p. 23).
93

O materialismo eliminativo é a visão de que um amplo conhecimento do cérebro nos


dará um amplo conhecimento sobre a consciência e assim poderemos entender que a
consciência é apenas determinada atividade cerebral. Ao dizermos apenas, dizemos que a
consciência será reduzida à atividade cerebral. Isso significa dizer que o método de pesquisa
da neurociência nos levaria a conhecer a propriedade que explicaria o vínculo misterioso que
aponta McGinn.

Dessa forma, podemos compreender que a sugestão de Churchland (1994) é que o


método neurocientífico é o método que nos levaria a compreender o nexo psicofísico. Com
efeito, se o materialismo eliminativo sugerindo que uma neurociência avançada nos mostra
que a consciência é apenas determinado padrão de atividade cerebral, então o materialismo
eliminativo expressado numa neurociência avançada seria a teoria T que referiria a
propriedade P que, por sua vez, explicaria completamente a dependência entre estados
conscientes e estados cerebrais. Nesse caso, a descrição fenomenológica e psicológica da
experiência consciente seria revisada por uma descrição neurobiológica – não há uma
sugestão de que não tenhamos a fenomenologia que temos, mas de que a aparência de nossa
fenomenologia não passa de atividade cerebral. Conforme Churchland (1994):

No caso em questão, eu estou predizendo que o poder explicativo, a coerência e a


economia favorecerão a hipótese de que a consciência é apenas algum padrão de
atividade de neurônios. Pode ser que eu esteja errada. Se eu o estiver, não será
porque uma intuição baseada na introspecção é imutável, mas sim porque a ciência
nos leva numa direção diferente. Se eu estiver certa, e certos padrões de atividade
cerebral forem a realidade por trás da experiência, este fato em si não muda minha
experiência, de forma que eu (meu cérebro) passe repentinamente a ver meu cérebro
como um scanner de ressonância magnética ou um neurocirurgião poderia vê-lo. Eu
continuarei a ter experiências da forma habitual, embora meu cérebro precise ter
várias experiências e se submeter a muita aprendizagem, de forma que eu possa
entender a realidade neuronal delas. (p. 31)41

Como podemos ver, mesmo que o materialismo eliminativo se mostre verdadeiro, a


nossa fenomenologia não mudará. Ele mostrará apenas que os juízos feitos com base na nossa
fenomenologia sobre a realidade última da própria fenomenologia consciente estão
equivocados. Aqui temos uma questão de juízo sobre que metafísica estaria correta, a dualista
ou a materialista. Os juízos que dizem que da nossa fenomenologia podemos concluir uma
substância além da substância material (cerebral) são juízos falsos. A realidade da
fenomenologia seria a atividade cerebral. Dessa forma, podemos fazer a distinção
aparência/realidade a despeito da posição de Searle. Vejamos:

41
Tradução de Saulo de Freitas Araujo, o mesmo doravante para citações da mesma referência.
94

[...] Os seres humanos são produtos da evolução; os sistemas nervosos


desenvolveram-se dentro do contexto de competição pela sobrevivência – na luta
para obter comida, fugir do perigo, lutar e reproduzir. O modelo que o cérebro tem
do mundo exterior se aperfeiçoa através da avaliação das várias distinções entre
realidade e aparência – em resumo, através da razão crítica comum e da ciência. Na
natureza das coisas, é bem provável que o modelo que o cérebro tem de seu mundo
interno também permita descobertas relativas à aparência e à realidade. O cérebro
não se desenvolveu para conhecer a natureza do sol como um físico a conhece e nem
para conhecer a si próprio como conhece o neurofisiologista. Porém, nas devidas
circunstâncias, ele poderá de algum modo conhecê-las. (CHURCHLAND, 1994, p.
31)

Nesse mesmo percurso, a sugestão de Churchland é que fiquemos sempre abertos a


revisar nossos juízos:

[...] meu raciocínio reflete simplesmente o seguinte fato: num sentido muito
importante, nós não entendemos exatamente o que o cérebro realmente faz nesses
níveis mais elevados. Assim, é mais adequado considerar mesmo nossas mais
preciosas intuições sobre a função mente/cérebro como hipóteses revisáveis, ao
invés de encará-las como certezas transcendentais absolutas ou certezas
introspectivamente dadas. O reconhecimento da possibilidade de uma tal revisão faz
uma enorme diferença na maneira pela qual nós conduzimos experimentos
psicológicos e neurobiológicos, e em como nós interpretamos os resultados.
(CHURCHLAND, 1994, p. 26)

Estamos em acordo com Churchland de que devemos estar aptos a revisar sempre
nossas posições dadas boas razões. Precisamos, contudo, ver se as razões do materialismo
eliminativo são suficientes para suas propostas e juízos. Nesse caso em específico, se é
suficiente para sairmos do fechamento cognitivo apontado por McGinn.

Comecemos pela ideia de que a fenomenologia é a aparência, para o cérebro, da sua


realidade interna. A sugestão é que podemos distinguir aparência e realidade para estados
conscientes, diferentemente de Searle que defende que para a consciência a aparência é a
própria realidade. Nesse sentido, a aparência do estado consciente seria seu aspecto
fenomênico enquanto a realidade seria um determinado padrão de atividade neuronal.
Acreditamos que temos um equívoco nessa reflexão, pois pensar assim não nos dá a realidade
da aparência do estado consciente. Em outras palavras, ficaria uma questão em aberta: qual é
a realidade dessa aparência? Explicitaremos isso em um exemplo.

Quando falamos sobre cores dizemos, por exemplo, que vermelho é uma frequência de
onda de 400-484 THz. Quando falamos isso do vermelho, estamos a falar da objetividade, da
realidade do vermelho, algo para além de nossa mente. Nesse caso, a realidade do vermelho
seria a frequência de onda de 400-484 THz, ao passo que a aparência do vermelho seria o
aspecto fenomênico vermelhante de nossa experiência consciente daquela frequência de onda
de 400-484 THz. Dessa forma, a realidade do vermelho seria a frequência de onda de 400-484
THz e sensação de vermelho seria a aparência do vermelho. Até aqui parece claro o que seja
95

realidade e o que seja aparência e o caminho seguido por Patricia parece um bom caminho.
Contudo, isso é só a aparência de um bom caminho, não a realidade de um bom caminho.
Vejamos. Se pensarmos então nessa aparência de vermelho, essa sensação de vermelho, esse
vermelhante aspecto fenomênico de nossa experiência consciente, quando dizemos que a
realidade de um estado consciente é um padrão de atividade neuronal, estamos a dizer que a
realidade dessa aparência de vermelho é um padrão de atividade neuronal Y. Ora, mas a
realidade dessa aparência de vermelho não era a frequência de onda de 400-484 THz? Qual é
a realidade da aparência de vermelho afinal, a frequência de onda de 400-484 THz ou o
padrão de atividade neuronal Y? Se é a atividade neuronal Y, então qual é a verdadeira
aparência da frequência de onda de 400-484 THz? Se é a frequência de onda de 400-484 THz,
então qual é a verdadeira aparência da atividade neuronal Y? Temos dois fenômenos na
realidade reivindicando a mesma aparência, e a mesma aparência reivindicando duas
realidades distintas. A saída reducionista de que a aparência da realidade do cérebro são
nossas experiências conscientes se confunde com a aparência da realidade além do cérebro,
assim não temos como inferir de que realidade é essa aparência. Essa confusão pode nos
mostrar que, na verdade, nenhum dos dois fenômenos na realidade são a realidade da
aparência de vermelho. Nos termos de Searle, a própria aparência de vermelho é a sua
realidade.

Sugerimos aqui que essa versão proposta por Churchland de materialismo eliminativo
nos coloca numa aporia: a minha experiência consciente é a aparência do que ocorre no meu
cérebro ou do que ocorre no mundo? Mesmo que seja uma versão proposta de acordo com o
espírito científico, a ciência sempre foi desvendando a realidade das aparências, mas se todas
as aparências forem da realidade do cérebro, não temos como seguir o realismo científico que
sustenta a posição do materialista eliminativo (nos tornamos realmente cérebros numa cuba!).
O materialismo eliminativo parece inconsistente com a própria visão que ele reivindica sobre
a realidade ser o que é desvendado pela ciência (realismo científico).

De outra maneira, entender a consciência como um padrão de atividade neuronal Y


numa tentativa de eliminar o problema não resolve o problema suposto por McGinn. O
problema pode ser reformulado da seguinte maneira, então qual a relação entre a aparência da
consciência e a consciência? Ressignificar o termo não retira o problema filosófico – não
temos um problema de linguagem aqui, mas um problema no mínimo epistemológico.

Recordemos das reflexões feitas por Descartes nas suas Meditações. Quando ele tenta
duvidar da própria experiência, ele fracassa. Isso não significa que ele esteja certo sobre o
96

juízo que se faz do mundo de acordo com sua experiência. Essa é justamente sua defesa, a de
que o erro provém do que ele denomina de faculdade do juízo, não das experiências. As
experiências são fatos. Não tem como duvidar que se tem uma experiência, uma vez que se
tem uma experiência no próprio ato de duvidar. Podemos estar errados no juízo de que a
experiência consciente seja de uma substância distinta da substância material/física, um juízo
ontológico, mas não temos como estar errados de que temos experiências conscientes e elas
diferem das atividades cerebrais. Não é porque uma maçã é diferente de um tijolo que os dois
não são feitos de átomos, por exemplo. Hidrogênio e Hélio são diferentes e ainda assim são
átomos!

O que quero dizer é que mesmo que percebamos que haja uma realidade cerebral para
a consciência (e há!), a aparência da consciência ainda é diferente da “realidade da
consciência”. Nossa experiência consciente ainda é diferente da atividade cerebral, por mais
que tenham a mesma substância. Essa diferença, por assim dizer, nem é suficiente para o
dualismo e nem é suficiente para negar o materialismo/fisicalismo, as razões para se sustentar
cada posição metafísica são outras. Qualquer que seja a posição metafísica em questão, a
teoria deverá nos fazer compreender essa diferença. Portanto, o que precisamos para sair da
encruzilhada da hipótese do fechamento cognitivo sugerida por McGinn é uma teoria que
explique essa diferença e dê uma imagem coerente da mente e do resto que sabemos do
mundo – ou pelo menos que mostre algo em que, mesmo na diferença, ligue a aparência
fenomenológica à sua realidade física basal.

Por fim, por mais que encontremos algo no cérebro que quando observamos se
apresentar, então nós também apresentamos aparência da consciência, isso nos leva apenas a
conjunções constantes nos termos de Hume. Isso se dá porque a proposta do materialismo
eliminativo ainda segue apenas uma das vias epistemológicas que McGinn demonstrou (via
de terceira pessoa) e não nos propõe nada em comum nas duas formas de observação
(introspecção e percepção) além de conjunção constante entre ambas. O vínculo explicativo
parece ainda escapar da proposta do materialismo eliminativo.

Com isso não queremos dizer que o impulso do estudo neurocientífico que sugere o
materialismo eliminativo esteja errado. Pelo contrário, embora demos a sugestão que não seja
suficiente para a explicação do vínculo, o estudo do cérebro é necessário e devemos continuar
nessa busca pela sua compreensão.
97

Todavia, parece que o otimismo do método natural e o otimismo moderado do


materialismo eliminativo se mostram apenas isso, um estado de espírito. Não se mostram
como métodos capazes de preencher a lacuna explicativa porque não conseguem expressar
algo em comum entre a introspecção e a percepção de forma a combiná-las e explicar a
diferença que precisamos explicar. Contudo, há outra posição que expressa uma intuição que
mostra pelo menos uma coisa em comum nas duas vias epistêmicas e pode uni-las, é a noção
de informação. É o que sugere David Chalmers com a teoria do duplo aspecto da informação.
Vejamos a seguir.

3.2.1.2.3. Informação e o duplo aspecto

Em The conscious mind: in search of a theory of conscious experience (1997), David


Chalmers sugere que a informação tem um duplo aspecto, um aspecto físico (objetivo) e um
aspecto fenomenológico (subjetivo). Isso nos mostraria que ela é a ponte que pode ligar o
subjetivo e o objetivo. Não há a intenção aqui de explicar todo o posicionamento de Chalmers
sobre a consciência e a problemática, nem mesmo defender sua teoria da forma que ele
propõe. Há a intenção apenas de observar um insight proposto nas suas reflexões, o insight de
que há informação tanto no nível subjetivo quanto no nível objetivo.

Precisávamos ter pelo menos algo em comum entre as duas vias epistêmicas para que
pudéssemos ligar uma a outra sem termos uma conjunção constante apenas, uma propriedade
que estivesse nas duas vias. A noção de informação é, portanto, uma candidata a isso.

Mas o que é informação afinal? Essa é uma questão extensa por si só e lhe caberia
uma reflexão do mesmo porte que fazemos sobre o nosso problema central de se a concepção
é um guia de possibilidade. Por conta disso, essa análise não será feita de forma extensa aqui.
Uma visão geral e uma intuição já é o suficiente para o ponto em questão. Isso significa que
não precisamos refletir sobre a ontologia da informação. A intuição em questão é a de
Bateson (1972) de que a informação é uma diferença que faz a diferença. Essa intuição se
mostra fundamental para a noção de espaço informacional. Conforme se segue:

[...] Um espaço informacional é um espaço abstrato consistindo de um número de


estados, os quais eu chamo de estados informacionais, e uma estrutura básica de
relações de diferença entre esses estados. O espaço informacional não-trivial mais
simples é o espaço constituído de dois estados, com uma diferença primitive entre
eles. Nós Podemos pensar nesses estados como dois “bits”, 0 e 1. O fato desses dois
estados serem diferentes um do outro exaure suas naturezas. Ou seja, esse espaço
98

informacional é completamente caracterizado por sua estrutura de diferença.


(CHALMERS, 1997, p. 262, tradução livre42)43

Dessa forma podemos ver claramente a intuição de informação como diferença que faz
a diferença, pois disso temos essa noção de estrutura de diferenças como basilar para o
espaço informacional, consequentemente, uma condição de possibilidade da informação. A
noção de espaço informacional se mostra, portanto, fundamental para uma compreensão da
informação tanto no espaço físico (objetivo) quanto no “espaço” fenomenológico (subjetivo).

Uma vez que estados e espaços informacionais são abstratos, nem estão no campo do
físico nem do fenomênico, sugere Chalmers (1997, p. 264) que de determinado modo estados
e espaços informacionais podem se realizar no mundo físico e no mundo fenomênico.

É no sentido intuitivo de informação, por exemplo, que Chalmers (1997) expõe que a
informação se realiza fisicamente:

O caminho natural de fazer a conexão entre sistemas físicos e estados


informacionais é ver a informação realizada fisicamente nos termos de um slogan
creditado a Bateson (1972): informação é uma diferença que faz uma diferença. (p.
264)44

Essa noção de informação como algo que faz uma diferença remete à noção de
Shannon e Weaver (1949) na formulação de uma teoria matemática da comunicação. Algo
(informação) é emitido de um sistema (emissor) e causa uma diferença noutro sistema
(receptor). Uma teoria matemática para calcular informação pôde ser feito a partir dessa
intuição de uma restrição de estados possíveis de um sistema; essa intuição de restrição é o
mesmo que Barroso (2015a) chama de intuição estatística:

[...] Shannon não oferece nenhuma definição de informação. O que Shannon


indiscutivelmente tem é uma intuição sobre informação. E essa intuição ele herdou
de engenheiros como Harry Nyquist e Ralph Hartley, e de físicos como Ludwig
Boltzman e Leó Szilárd. Embora esses teóricos tivessem diferentes interesses ao
pensar sobre informação, eles tinham em comum a intuição de que um processo
informacional é um processo no qual uma estrutura de dados seleciona um estado
dentro de um conjunto de estados possíveis de um sistema. Na falta de um nome
melhor, vou chamar essa intuição de 'intuição estatística'. [...] (p. 1)

42
Segue o mesmo para as citações da mesma referência.
43
No original: An information space is an abstract space consisting of a number of states, which I will call
information states, and a basic structure of difference relations between those states. The simplest non-trivial
information space is the space consisting of two states, with a primitive difference between them. We can think
of these states as the two “bits”, 0 and 1. The fact that these two states are different from each other exhausts
their nature. That is, this information space is fully characterized by its difference structure.
44
No original: The natural way to make the connection between physical systems and information states is to see
physically realized information in terms of a slogan due to Bateson (1972): information is a difference that
makes a difference.
99

Dessa forma, compreendemos sem dificuldades a realização da informação no físico,


pois a todo instante estados de sistemas estão se restringindo dessa maneira. Mas a realização
não se dá apenas nesse espaço (objetivo), também no fenomenológico (subjetivo):

A realização física é a maneira mais comum de pensar sobre a informação embutida


no mundo, mas não é a única maneira que a informação pode ser encontrada.
Também Podemos encontrar a informação realizada em nossa fenomenologia.
Estados de experiência caem diretamente no espaço informacional de numa maneira
natural. Há caminhos naturais de similaridade e diferença entre estados
fenomênicos, e esses caminhos produzem a estrutura de diferenças de um espaço
informacional. Portanto, Podemos ver estados fenomênicos como realizando estados
informacionais nesses espaços. (CHALMERS, 1997, p. 266)45

Isso significa dizer que também há estrutura de diferenças e estados sendo restringidos
em nossa fenomenologia, da mesma forma que na estrutura física do mundo. Isso se mostra
crucial para a compreensão de uma via que ligue os dois pontos:

Esse tratamento da informação traz à tona um vínculo crucial entre o físico e o


fenomênico: sempre que encontramos um espaço informacional realizado
fenomenicamente, então encontramos o mesmo espaço informacional realizado
fisicamente. E quando uma experiência realiza um estado informacional, o mesmo
estado informacional é realizado no substrato físico da experiência. (CHALMERS,
1997, p. 267)46

Essa visão não seria uma explicação completa, mas essa vida dupla da informação
seria o suporte para uma busca de leis psicofísicas conforme Chalmers (1997, p. 268), a
informação parece um bom candidato para o vínculo que buscávamos. A dupla realização da
informação nos domínios físico e fenomênico pode sugerir um princípio que faça sentido a
leis psicofísicas.

Em outras palavras, a informação se realiza duplamente. Daí Chalmers (1997) sugere


um princípio do duplo aspecto da informação:

Podemos por essa sugestão como princípio básico em que a informação (no mundo
atual) tem dois aspectos, um aspect físico e outro fenomênico. Sempre que há um
estado fenomênico, ele realiza um estado informacional, um estado informacional
que é também realizado no sistema cognitivo do cérebro. Reciprocamente, para pelo
menos alguns espaços informacionais fisicamente realizados, sempre um estado

45
No original: Physical realization is the most common way to think about information embedded in the world,
but it is not the only way information can be found. We can also find information realized in our
phenomenology. States of experience fall directly into information spaces in a natural way. There are natural
patterns of similarity and difference between fenomenal states, and these patterns yield the difference structure
of an information space. Thus we can see phenomenal states as realizing information states within those spaces.
46
No original: This treatment of information brings out a crucial link between the physical and the phenomenal:
whenever we find an information space realized phenomenally, we find the same information space realized
physically. And when an experience realizes an information state, the same information state is realized in the
experience’s physical substrate.
100

informacional nesse espaço é fisicamente realizado, também é realizado


fenomenicamente. (CHALMERS, 1997, p. 268)47

Como frisamos inicialmente, temos a intenção apenas de atentar para uma


“propriedade comum” da visão de primeira pessoa e da visão de terceira pessoa, essa estrutura
de diferenças, a noção de informação sugerida. Nem mesmo um aprofundamento da questão
da definição de informação, etc. A intuição de propriedade comum já é o suficiente para o
nosso ponto.

Sendo assim, tanto a fenomenologia de primeira pessoa expressa uma estrutura de


diferenças como o estudo objetivo do cérebro também expressa uma estrutura de diferenças.
De tal modo, temos pelo menos algo em comum exibido nas duas vias epistêmicas e que pode
uni-las para uma visão unificada e solucionadora. Não estamos mais na situação expressa por
McGinn que tínhamos duas vias, apenas, onde nenhuma via chegava até a outra, agora
teríamos, digamos, um cruzamento entre as paralelas. Essa é a intuição chave que temos com
o duplo aspecto da informação sugerido por Chalmers. Se temos pelo menos algo que
encontramos nas duas vias, então temos uma ponte entre o subjetivo e o objetivo. Se temos
uma ponte entre o subjetivo e o objetivo, então não estamos fadados a não vislumbrar uma
teoria T que expresse a propriedade P. Já vislumbramos pelo menos uma candidata. Em
conclusão, não estamos fadados ao fechamento cognitivo sobre a relação mente-corpo.
Mesmo que seja difícil, temos um problema e não um mistério.

Se podemos rechaçar o fechamento cognitivo para a relação mente-corpo, então isso


significa que somos abertos cognitivamente? Um ponto não se segue do outro. Sermos abertos
cognitivamente para a solução do problema mente-corpo não diz nada sobre sermos abertos a
outros problemas, diz apenas que somos abertos a este problema. Contudo, muitos acreditam
que é justamente essa ideia de informação que nos leva a um otimismo quanto a abertura
cognitiva. Vejamos isso na próxima subseção, e como, mesmo com a ideia de informação,
parece que ainda somos fechados para certos tipos de informação.

47
No original: We might put this by suggesting as a basic principle that information (in the actual world) has two
aspects, a physical and a phenomenal aspect. Wherever there is a phenomenal state, it realizes an information
state, an information state that is also realized in the cognitive system of the brain. Conversely, for at least some
physically realized information spaces, whenever an information state in that space is realized physically, it is
also realized phenomenally.
101

3.2.1.3 A informação nos limites cognitivos

Nesta subseção veremos dois pontos principais: a) a informação como pressuposto


para uma visão de abertura cognitiva total e b) o fechamento cognitivo para certas
informações. Com isso, esboçaremos um argumento para um fechamento cognitivo
informacional.

O argumento proposto é o seguinte. Formas de captação informação são informativas.


Para sistemas cognitivos, há uma forma de informação que gera informação, mas essa
informação não é transmissível na comunicação entre dois sistemas cognitivos – ela é
codificada por um sistema cognitivo emissor, mas não é transmissível. Se essa informação é
perdida na transmissão de um sistema cognitivo a outro, então há uma (quantidade de)
informação que sistemas cognitivos não capturam, a saber, a informação não transmissível
que é codificável apenas por outro sistema cognitivo. Se há uma quantidade de informação
que sistemas cognitivos não capturam, isso significa que eles são fechados cognitivamente a
essa informação. Portanto, sistemas cognitivos não são totalmente abertos a todo tipo de
informação. Logo, o fechamento cognitivo se mantém.

Essa informação que não é transmitida é a informação dos qualia. Essa é a intuição do
argumento do morcego de Nagel (2002) ou o argumento de Fred elaborado por Frank Jackson
(1982), mas que se o traduzimos num vocabulário informacional expressamos de forma mais
nítida a coisa do mundo que não se é acessada – e eliminamos qualquer impressão de que há
um compartilhamento de qualia a nível do reino dos animais, por exemplo. Além disso, se
utilizarmos uma visão informacional, também indicamos com mais nitidez que os qualia
fazem diferença (informativa) e, assim, que são coisas no mundo – a despeito de uma visão
que não lhes toma como fazendo diferença ou que lhes elimine.

Com este argumento queremos dizer que por mais que sejamos abertos cognitivamente
para uma teoria completa e unificadora da mente, que consigamos compreender o fenômeno
mental, isso não implica que sejamos abertos a todo tipo de informação. Vejamos em detalhes
nos dois pontos principais a seguir.
102

3.2.1.3.1 Abertura cognitiva e a informação

A ideia de que nós poderíamos conhecer toda a natureza é antiga. Nos termos de
Gadamer (2007), a filosofia basicamente se iniciou disso, um irrefreável desejo pela verdade,
pelo saber. Os filósofos buscavam o princípio (arché) que lhes faria compreender todas as
coisas. Foi só com o tempo e o desenvolvimento de inúmeros posicionamentos céticos que
esse otimismo foi diminuindo48. Ainda assim, vez e outra, esse afã surgiu na história49. Mas já
na modernidade esse ímpeto diminuiu com Hume (2009) e Kant (2013) mostrando limites em
nossa cognição. Entretanto, um levante contra a ideia de algo numênico a nós se deu por
várias frentes nos últimos tempos. Uma delas é a abertura cognitiva via noção de informação.
Aqui pretendemos dar apenas um esboço e certamente não fará justiça a esta posição50.

Uma ilustração é a seguinte fala de Wierner nos primórdios da Cibernética:

A característica mais importante de um organismo vivo é a sua abertura ao mundo


exterior. Isso significa que ele é dotado de órgãos de acoplamento que lhe permitem
recolher mensagens do mundo exterior, as quais decidem a sua conduta futura. É
instrutivo considerar isso à luz de termodinâmica e da mecânica estatística.
(WIERNER apud DUPUY, 1996, p. 151)

Nessa fala podemos ver a expressão que Barroso (2015a) chamou de intuição
estatística, dada a referência à mecânica estatística. O que nos leva a ver, como citamos em
Chalmers, uma realização da informação no mundo físico. A informação está em tudo e o
sujeito é um sistema imerso nessa informação, sendo perpassado por ela, sendo formado por
ela:

[...] pelo menos no que diz respeito a Wierner e aos que o seguem, eles fizeram da
informação uma grandeza física, tirando-a do domínio das transmissões de sinais
entre humanos. Se todo organismo é cercado de informações, isso acontece porque
há organização em toda parte ao seu redor, e essa organização, em razão até de sua
diferenciação, contém informação. A informação está na natureza, e a sua existência
é, portanto, independente da atividade desses doadores de sentido que são os
intérpretes humanos. É com base em concepções deste tipo que, na filosofia
cognitiva contemporânea, o filósofo americano Fred Dretske, engenheiro de
formação, propôs uma teoria naturalista e fisicalista da “intencionalidade”, que, de
todas as doutrinas hoje existentes, certamente é a que leva mais adiante o projeto de
Quine de uma “epistemologia naturalizada” [...] (DUPUY, 1996, p. 157)

48
Embora já Platão na antiguidade, ao entender filosofia como busca pelo saber e distingui-la da verdade,
mostrava a precariedade de nosso conhecimento – as aporias socráticas são exemplos disso. A verdade, nesse
sentido, estava reservada aos deuses. (CRUZ, 2016, p. 42)
49
Tito Lucrécio Caro, no helenismo filosófico romano, é um exemplo disso numa visão naturalista que pudesse
explicar toda a natureza, desmitificando a natureza e retirando o sobrenaturalismo usado pelos políticos de sua
época com objetivo de manipular o povo. Ver Da Natureza (1985).
50
Para um aprofundamento, sugerimos as seguintes leituras: Knowledge and Flow of Information (1981) e
Explaining Behavior – Reasons in a World of Causes (1988) de Fred Dretske.
103

Nessa esteira, teremos também o surgimento da visão it from bit, na qual a informação
é o elemento básico da física, e não matéria ou energia (SEIFE, 2007). Informação aqui
distinta da matéria, embora realizável nela. Uma vanguarda que se expressa na afirmação de
Norbert Wiener de que “Informação é informação, não matéria nem energia. Nenhum
materialismo que não admite isso pode sobreviver nos dias atuais” (WIENER, 1965 apud
GARDNER, 2003: 36).

Tendo essa visão até aqui, uma característica importante da informação é sua
realização em qualquer espaço da realidade. Sem muita dificuldade, sua realização em
qualquer sistema do espaço da realidade. Mas todo sistema é aberto a qualquer tipo de
informação? Sabemos, pelo menos até agora, que sistemas cognitivos como gatos não são
abertos para algumas informações que nós somos, por exemplo, as informações necessárias
para a compreensão da mecânica quântica. E nosso sistema cognitivo, é aberto a todo tipo de
informação? Podemos saber isso do nosso ponto de vista? Para responder isso, precisamos
antes entender a informatividade da forma de uma informação.

3.2.1.3.2 A informatividade da forma da informação

A ideia de que a forma da informação gera uma informação a mais nos mostra que
algumas informações não são acessíveis a certos sistemas. Esses sistemas são fechados para
essa informação. Essa é uma ideia de Barroso e que já expressei em outra discussão quando
defendia o caráter episódico51 da consciência fenomênica como característica essencial dos
qualia. Podemos entender essa informatividade da forma da informação em sistemas
cognitivos da seguinte maneira:

[...] quando o indivíduo é instanciado pela experiência consciente, ele tem um tipo
de informação em que parte dessa informação não é transformável no tipo de
informação verbal. Se o relato verbal é um veículo de informação, então é um
veículo de informação que não transporta o tipo de informação recebida pelo
indivíduo na experiência consciente. [...] De qualquer modo, a informação externa
do mundo que o indivíduo recebe de seus detectores perceptivos se apresenta não
apenas nas diferenças físicas de seu corpo, mas exibe uma forma para sua captação.
Essa forma da experiência consciente, essa forma fenomênica, que nos diz que o
verde que experimentamos não é a frequência de onda X detectada pelo nosso
aparato cognitivo, mas a sensação de verde exibida em nossa experiência

51
Na época usei termos como instanciação ou atualização ocorrente por falta de um termo que capturasse bem a
ideia, mas hoje concluo que a expressão “caráter episódico” captura melhor a ideia, a saber, de que a consciência
fenomênica é indexada no tempo (episódio) e essa é uma característica essencial dos qualia (CAETANO, 2015,
pp. 54-56).
104

consciente. [...] A informação na forma verbal não transmite a forma da informação


na forma fenomênica. Essa forma da representação (estrutura representacional) é
uma informação a mais além do conteúdo que é representado. Isso tem um efeito
epistêmico no receptor [...] (CAETANO, 2015, p. 50)

Esse efeito epistêmico, nessa ideia de que a forma da informação sendo uma
informação a mais sobre a experiência que o indivíduo experimenta, fica claro nas palavras
de Barroso (2015) sobre a condição representacional:

[...] De modo geral, parece impossível que venhamos a saber algo sobre x através de
uma representação de x, se não dispusermos de nenhuma informação sobre a
estrutura representacional da representação de x. Isso significa que uma alegada
representação só pode entregar seu conteúdo informacional se pudermos apreender
alguma propriedade intrínseca da sua estrutura representacional. Vou chamar essa
condição em itálico de ‘condição representacional’. (p. 251-2, grifo do autor)

Barroso nos ilustra o exemplo de alguém que observa ‘Quarto de Arles’ de Van Gogh,
este indivíduo obtém informação sobre o objeto representado, o quarto, que seria um
conteúdo, mas também obtém informação sobre a estrutura representacional, nesse caso a
estrutura da pintura, como as cores vibrantes etc. (BARROSO, 2015, p. 251).
Resumidamente, “[...] não é possível obter informação sobre o conteúdo, se não tivermos
informação também sobre a estrutura representacional” (BARROSO, 2015, p. 251).

Assim sendo, temos que essa informação a mais não é acessada por outros sistemas,
como se segue em esclarecimento. Aquela informação realizada na estrutura representacional
daquele sistema cognitivo está delimitada a ele, outro sistema cognitivo não a obtém. Com
efeito, o fechamento cognitivo se mantém. Sistemas cognitivos são também sistemas
cognitivamente fechados. Embora isso não impeça que possamos compreender a mente numa
teoria completa e unificada. Por sua vez, compreender tal teoria não implica que temos acesso
a todo tipo de informação no mundo. E quando concluo que isso não é um problema para uma
teoria da consciência, fá-lo porque não está nos propósitos de uma teoria da consciência52
que, ao compreender a consciência, um sistema cognitivo tenha acesso a todas as informações
ocorrentes (em realização) de outro sistema cognitivo.

Com isso concluímos o argumento do fechamento cognitivo informacional que


frisamos inicialmente. Premissa 1: Formas de captação de informação são informativas.
Premissa 2: Sistemas cognitivos não transmitem suas estruturas representacionais que lhes
dão informação sobre a forma da informação que recebem. Conclusão 1: Logo, sistemas

52
Falei sobre esses propósitos em Caetano (2015), também expressados por Chalmers (1997).
105

cognitivos são fechados a pelo menos alguma quantidade de informação 53. Conclusão 2 (da
Conclusão 1): Sistemas cognitivos são sistemas cognitivamente fechados.

Agora que temos delimitada essa reflexão sobre limites cognitivos, importa-nos
avaliar o lugar da concepção diante de um fechamento cognitivo informacional. É o que
faremos na próxima seção.

3.2.2 A concepção nos limites da cognição

Dado o fechamento cognitivo informacional, quais suas consequências para a


capacidade cognitiva de conceber? Essa é a questão sobre a qual nos debruçaremos nesta
seção. Para isso precisaremos observar o processo de formação de conceitos. Com isso,
poderemos compreender o lugar da concepção nos limites da cognição.

3.2.2.1 Formação de conceitos

Na subseção 2.2 do capítulo 3, nós discutimos que não seria necessário um


posicionamento sobre a ontologia de conceitos para compreender a concepção, o conceber.
Aqui faremos algo no mesmo sentido. Podemos compreender o processo de formação de
conceitos sem uma posição sobre a ontologia de conceitos. Isso se dá porque a formação de
conceitos é um processo cognitivo, algo que podemos compreender à luz das nossas teorias da
cognição, qualquer que seja a natureza dos conceitos. O que importa é observar o que um
sistema cognitivo capaz de conceber, nos termos que vimos anteriormente, faz ou precisa para
formar ou apreender conceitos. Essa é uma pergunta sobre a condição de possibilidade da
formação de conceitos, como consequência, sobre a condição de possibilidade da concepção.

53
Aqui pode surgir o questionamento se os qualia podem ser considerados informação, posto que a informação
tem uma característica replicável, objetiva, e isso retiraria a subjetividade da noção de qualia. Penso que há duas
formas de ver essa situação. A primeira é na esteira da noção it from bit (a informação é a substância básica do
mundo), os qualia seriam informação porque tudo no universo é informação, isso não retiraria a subjetividade
dos qualia porque a subjetividade é a ideia de pertencer apenas o sujeito, portanto seria uma informação que se
realizaria situadamente apenas em um sistema cognitivo – seria informação e não perderia a subjetividade da
noção. A segunda forma de ver é a de entender que qualia não são informação, mas informativos, eles geram
informação para o sistema cognitivo portador de tal modo que esta informação não seja transmissível e, desse
modo, permaneça a característica subjetiva. Qualquer que seja a visão assumida, ela mantém os propósitos do
fluxo argumentativo que estou propondo. Por isso, não se faz necessária a discussão sobre a verdade da posição
it from bit.
106

Há algumas formas de uma pessoa obter um conceito. Ela pode ir ao dicionário com
objetivo de entender determinado conceito. Essa pessoa pode estipular uma nova palavra e
com ela se referir a outros conceitos já existentes, formando um conceito novo (uma
combinação) – uma parte do processo de criação de neologismos jaz aqui. Essa pessoa
também pode querer descrever um objeto e utiliza outros conceitos para isso (quando se diz
que ‘água é H2O’ por exemplo). Mas essa pessoa pode nem querer estipular, nem descrever e
nem saber o uso corrente (dicionário), ela pode querer explicar alguma coisa. Nos casos de
explicação de um conceito, diferentemente das outras formas, a pessoa não busca capturar
todos os aspectos do conteúdo mas algo razoável para um contexto de uso. Cada forma de
conceituar que exemplificamos corresponde a um tipo de definição, respectivamente,
definição de dicionário, definição estipulativa, definição descritiva e definição explicativa
(HEMPEL, 1974, pp. 109-10; GUPTA, 2015, seção 1).

As formas de formar um conceito para um indivíduo via definições não são apenas as
que enunciamos no parágrafo anterior. Todas as enunciadas têm uma característica importante
que gostaríamos de frisar, a saber, elas são formação de conceitos na base de outros conceitos.
Com efeito, se para formar um conceito nós utilizamos outros conceitos, parece que criamos
aí um ciclo vicioso em que para um indivíduo formar um conceito ele já precisa ter outros
conceitos formados. Ora, mas nós não nascemos com conceitos formados em nosso sistema
cognitivo54. Então como saímos desse ciclo vicioso? Em termos de definição, a solução dada
são as chamadas definições ostensivas. Esse é o nosso ponto de interesse.

Definições ostensivas são aquelas que dependem de um determinado contexto e


experiências dos envolvidos. Considere quando uma criança está aprendendo as cores, se quer
aprender o que seja vermelho, invariavelmente apontamos para objetos vermelhos e dizemos
“vermelho” na mesma intenção de dizer que isto55 é vermelho. O mesmo ocorre quando
buscamos aprender outras línguas. Alguém pode aprender o signficado de 'red' quando outra
pessoa aponta para algo vermelho e diz “red”. A formação do conceito para o indivíduo
dependeu da circunstância (alguém apontando para um objeto) e da experiência que o
indivíduo tem do objeto (no caso específico a experiência da sensação visual de vermelho).

54
Pelo menos não a maioria, o que quero dizer é que nós aprendemos muitos conceitos durante a vida, não
nascemos com todos os conceitos. Em geral, as defesas de conceitos inatos são conceitos muito gerais e
estruturantes, como conceitos lógicos, mas eles sozinhos não são suficientes para nos dar definições. Quero dizer
que, por mais que nasçamos com alguns conceitos inatos (conforme algumas visões filosóficas), não nascemos
com um vocabulário suficiente para formular definições – precisamos de mais que estes conceitos inatos.
55
Pronomes demonstrativos mostram essa função da linguagem (uma função cognitiva).
107

O que a observação da existência de definições ostensivas nos diz? Ela parece sugerir
que as nossas experiências subjetivas são fundamentais para a formação de conceitos – se não
todos, os basilares. Não queremos dizer com isso que a natureza do conceito é essa natureza
da experiência, o que poderia nos guiar para uma visão representacional de conceitos
necessariamente. Dizemos que a experiência é uma peça chave para a formação de conceitos,
ainda assim a experiência é uma coisa e o conceito é outra. Isso quer dizer que sem
experiência não há concepção56.

Aqui pode-se questionar, ou até mesmo objetar, com o seguinte: então zumbis
fenomênicos não concebem nada? A resposta que sugiro a essa questão é a seguinte: a
preocupação dessa reflexão é capturar como nós concebemos, não como zumbis fenomênicos
concebem (se concebem!). E se isso nos leva a dizer que, conforme essa análise da
concepção, zumbis fenomênicos não concebem – e é justamente o que se indica – isso não é
um problema para a análise proposta para a concepção, isso é um problema para os zumbis
fenomênicos e para quem quiser usar essa ideia de zumbis fenomênicos argumentativamente.
Se formos pautar nossa análise da concepção, dizer o que é concepção, preocupando-nos com
ajustar a concepção para que zumbis fenomênicos concebam, então sugiro que estaríamos
fazendo algo muito errado. Além disso, talvez essa análise da concepção seja suficiente para
nos mostrar que nós não concebemos um mundo zumbi fisicamente idêntico ao nosso, pois
um mundo em que os zumbis fenomênicos não concebem nada, certamente não é um mundo
fisicamente idêntico ao nosso (imagine se zumbis poderiam, por exemplo, agir no mundo
como nós agimos sem a capacidade conceptiva). De qualquer maneira, voltaremos ao
argumento dos zumbis no Capítulo VI – Consequências Filosóficas. Por fim, resumidamente,
isso não é um problema para essa análise e nem uma objeção, é um problema para zumbis e
seus argumentos. Prossigamos.

Uma vez que a experiência é fundamental para a formação de conceitos e para o


desenvolvimento da concepção e a experiência é uma forma de receber informação, então a
informatividade da forma da informação é crucial para a formação de conceitos para um
sistema cognitivo. O que, no quadro conceitual de um sistema cognitivo, significa dizer que
há um papel para a informatividade da forma da informação na sua economia cognitiva.

56
Ao menos no caso humano. Isso pode ser usado como argumento para dizer que uma inteligência artificial não
conceberia, mas também pode ser usado para dizer que uma inteligência artificial tem experiências reais, se
assumimos que ela apresenta concepção.
108

Tendo em vista tais observações, estamos munidos para ver o lugar da concepção nos
limites da cognição. É o que faremos na próxima subseção.

3.2.2.2 Limites informacionais como limites conceptuais

A informatividade da forma de uma informação na forma de experiência desempenha


um papel necessário na economia cognitiva da formação de conceitos basilares no quadro
conceitual de um sistema cognitivo. Essa foi a conclusão que chegamos na subseção anterior.
Se relacionarmos com a conclusão que tivemos na subseção 1.3, a saber, de que somos
fechados cognitivamente quanto à informatividade de determinadas formas de informação,
então podemos concluir que há conceitos para os quais somos fechados cognitivamente.
Conceitos estes formados com base na informatividade de tais formas de informação. (A
rigor, o que você precisa mostrar é que a nossa capacidade de conceber é limitada, não é?
Como disse antes, acho que você não precisaria falar sobre tantos assuntos diferentes para
estabelecer isso. Mesmo que tudo isso seja para trazer a discussão para o tema da combinação
de conceitos, acho que você ainda está se complicando sem necessidade. Você já mostrou que
há conceitos que se excluem, então eu já sei que não dá para combinar tais conceitos. Agora,
essa é uma restrição sobre os conceitos, mas será que é também uma restrição sobre a
realidade que eu tento apreender com tais conceitos? Se a concepção é um guia confiável para
a possibilidade, sim, senão, a resposta é não)

A visão de que há conceitos que mentes humanas não podem acessar não é tão
polêmica, é inclusive utilizada como argumento no debate sobre a ontologia de conceitos
(exatamente!). Por exemplo quando Peacocke (2005) defende que conceitos deveriam ser
compreendidos como condição de posse57 e não como tipo de representação mental:

Se nós aceitamos que a posse de um conceito deve ser realizada por algum estado
subpessoal envolvendo uma representação mental, por que não dizer simplesmente
que o conceito é a representação mental? [...] Representações mentais que são
conceitos poderiam mesmo ser tipificadas pela condição de posse correspondente do
modo que eu defendo. Isto me parece uma noção inteiramente legítima de um tipo
de representação mental; mas ela não é exatamente a noção de um conceito. Pode,
por exemplo, ser verdadeiro que haja conceitos que os seres humanos nunca possam
adquirir, por causa de suas limitações intelectuais ou porque o sol se expandirá para
erradicar a vida humana antes que os humanos alcancem um estágio em que eles
possam adquirir esses conceitos. “Há conceitos que nunca serão adquiridos” não
pode significar ou implicar “Há representações mentais que não são representações

57
Mais detalhes sobre essa argumentação em Margolis e Laurence (2014a).
109

mentais na mente de alguém”. Se conceitos são individuados por suas condições de


posse, por outro lado não há problema com a existência de conceitos que nunca
serão adquiridos. Eles são simplesmente conceitos cujas condições de posse nunca
serão satisfeitas por quaisquer pensadores. (PEACOCKE apud ABATH, LECLERC,
2014, pp. 9-10)

Isso é também o que está em jogo quando Nagel (2002) nos convida a refletir como é
ser um morcego. Se pensarmos na hipótese da existência de formas de vida alienígena com
agência parecida com a dos animais terrestres e distintos sistemas cognitivos receptores, isso
nos leva a pensar sobre a gama de informatividade de formas de captar informação que não
temos acesso em nossa cognição humana. Essa informatividade, combinada com uma
capacidade de linguagem, daria base para o surgimento de conceitos para os quais somos
fechados cognitivamente. Conceitos dependem não só de linguagem, mas de formas de vida.
Quando colocamos essa questão cognitiva em termos de informação, temos uma visão mais
clara sobre as posições e argumentações (não sei se concordo).

Uma vez que há conceitos para os quais somos fechados cognitivamente, isso sugere
que não temos acesso irrestrito, via concepção, a todos os aspectos ou dimensões da realidade.
Não temos como afirmar que nosso sistema cognitivo captura todos os aspectos ou dimensões
da realidade, tais aspectos ou dimensões exigiriam uma informatividade a qual somos
fechados e, por isso, não temos como formar os conceitos chaves para compreender tal
aspecto ou dimensão.

Que insights podemos tirar disso para a nossa questão central sobre a concepção como
critério de possibilidade? Vejamos. Uma vez que a realidade está no domínio da ontologia, da
metafísica, e inclui a possibilidade, então isso sugeriria que não podemos asseverar que nossa
concepção abarca todo o domínio da possibilidade. Em outros termos, nem tudo que é
inconcebível é impossível, o que vai a favor de Levine (2002) quando ele argumenta contra
Kripke como vimos na subseção 1.1 deste capítulo. Assim como Patricia Churchland (1997)
também reivindica em favor do que o estudo da neurociência pode nos ensinar sobre a
consciência. Consequentemente, há possibilidades que nós não concebemos – pelo menos
possibilidades de combinações de experiências. Isso nos leva a concluir que o domínio da
possibilidade, no campo da metafísica, não coincide com o domínio da concepção, no campo
epistemológico, eles não são coextensivos.

Esse último insight parece ser crucial para nossa reflexão central. Então, a concepção
não é critério de possibilidade? Para uma resposta a essa questão, aprofundaremos essa
reflexão sobre a distinção dos domínios entre possibilidade e concepção. Além disso, veremos
110

argumentações para tangenciamentos seguros entre os domínios e ponderaremos se esses


tangenciamentos são suficientes para argumentos de conceptibilidade. Agora que estamos
munidos das reflexões dos dois primeiros momentos de nossa investigação, seguiremos para a
terceira e última parte em que veremos se a concepção é uma boa resposta como critério de
possibilidade.
111

3.3 Conclusão

Nesse segundo momento de nossa investigação, perquirimos a natureza da concepção


e seu lugar dentro dos limites da cognição. O objetivo foi expor o domínio da concepção para
nos deixar aptos ao terceiro momento, o qual veremos as relações entre os domínios da
possibilidade e da concepção. Durante esse percurso, obtivemos algumas conclusões
importantes para nossa reflexão.

Inicialmente, buscamos avaliar os dois sentidos de concepção, a saber, o sentido


amplo e o sentido estrito. Dadas as diversas distinções entre conceber e as outras atividades
cognitivas em questão, tais como a imaginação, a percepção, a intuição, a dedução, a
teorização e a abstração de similaridades, concluímos que o sentido amplo não era adequado.
Como corolário, temos que o domínio da cognição é um domínio mais abrangente que o
domínio da concepção, ou seja, nos termos que usamos, a concepção não encerra a cognição.
Sendo assim, nossa avaliação da concepção como guia para possibilidade não avalia de forma
total se outros processos cognitivos nos levam à compreensão da possibilidade. Com a
conclusão de que o sentido amplo de concepção não é adequado para capturar a natureza da
atividade cognitiva de conceber, então somos levados a entender que o sentido estrito pudesse
captar essa natureza de forma mais precisa. Ao avaliar o sentido estrito de concepção que diz
que conceber é ‘pôr em um cenário’, concluímos que esse sentido capta a centralidade da
noção de concepção, a saber, ‘pôr em conceitos’. Isto porque conceitos são constituintes de
cenários. Ora, uma vez que conceber é ‘pôr em cenário’, e cenários são descrições de
combinações determinadas de experiências que temos do mundo atual, somado a isso que
descrições são reiteradas aplicações de conceitos, conclui-se que o sentido estrito captura a
centralidade da noção de concepção com precisão. Resumidamente, conceber é combinar
determinadamente conceitos de experiências que temos do mundo atual. Tendo em vista a
centralidade de conceitos para a noção de conceber, questionamos se a natureza de conceitos
implicaria uma determinação na natureza da concepção. Concluímos que a natureza da
concepção é independente da natureza de conceitos, uma vez que a concepção é uma
atividade cognitiva que captura e aplica conceitos, qualquer que seja a natureza do conceito,
não é ela mesma um conceito (concepção é uma coisa, o conceito de concepção é outra).
Dessa forma, para termos um critério que nos diga o que é e o que não é uma combinação
112

determinada de conceitos de experiências que temos do mundo atual, não precisamos da


natureza de conceitos, mas da aplicabilidade deles. Ao observar a aplicabilidade de conceitos,
compreendemos que há contradições conceptuais – tentativas falhas em combinar conceitos
no intuito de formar outros conceitos. Com efeito, a contradição conceptual se mostra como
critério de concepção (diz o que se concebe e o que não se concebe). Essas foram, por fim, as
conclusões que tiramos do capítulo 3, Entendendo a concepção.

Em posse das conclusões que elencamos no parágrafo anterior, o passo seguinte foi
avaliar o lugar da concepção dentro da cognição em geral. Conseguintemente, chegamos a
outras conclusões importantes. A conclusão central é a de que há um fechamento cognitivo
informacional, ou seja, nem todo tipo de informação é captável por um sistema cognitivo.
Para isso, vimos a noção de fechamento cognitivo surgir do debate sobre o problema mente-
corpo na filosofia da mente contemporânea. Vimos que os otimismos cognitivos assumidos
por uma neurofilosofia do materialismo eliminativo e pelo método natural não eram
suficientes para eliminar o fechamento cognitivo em questão. Contudo, uma visão sobre a
informação poderia nos abrir cognitivamente para uma teoria completa da mente. Embora
pudéssemos ser abertos a uma teoria completa da mente, isso não implicava que teríamos
acesso a todos os tipos de informação, essa foi nossa conclusão ao perceber a informatividade
da forma da informação. Com isso, vimos que a informatividade da forma da informação
recebida por um sistema cognitivo A não é acessível a um sistema cognitivo B, o que nos leva
ao fechamento cognitivo informacional. À vista disso, seguimos para a compreensão do lugar
da concepção dentro dos limites cognitivos. Nesse sentido, ao avaliar o processo de
formação/obtenção de conceitos, concluímos que as experiências são fundamentais para a
atividade de concepção de um sistema cognitivo, com isso a informatividade da forma da
informação é fundamental para a economia cognitiva de tal atividade conceptual. Uma vez
que já havíamos concluído que há informatividade de formas de informação as quais somos
fechados cognitivamente, há também conceitos virtuais que são formados com base nelas e
que, por conseguinte, somos fechados cognitivamente. Em conclusão, via concepção, não
temos acesso irrestrito a todos os aspectos ou dimensões da realidade. Uma vez que a
possibilidade está no domínio da realidade e nossa concepção não nos dá acesso irrestrito ao
domínio da realidade, então não podemos asseverar que o que é inconcebível é impossível – o
fato de algo ser inconcebível fala sobre nossas capacidades cognitivas conceptuais, não da
realidade além capacidade cognitiva conceptual. Além disso, também concluímos que há
possibilidade que não concebemos, possibilidades que se aplicam à concepção de cenários
113

(cenários baseados em uma informatividade inacessível a nós). Por fim, a conclusão crucial
que chegamos é a de que os domínios da possibilidade e da conceptibilidade não são
coextensivos.

A conclusão final sobre a não coextensão entre os domínios do possível e do


concebível nos leva à sugestão de que a concepção não seja uma boa resposta para o problema
do critério de possibilidade, afinal, se não há coextensão, conceber algo não implica saber da
possibilidade de algo. Se isso é o caso ou não, portanto, é o ponto central do último momento
de nossa reflexão. É o que veremos a seguir.
114

4 CONCEPTIBILIDADE COMO CRITÉRIO DE POSSIBILIDADE?


115

4.1 Debate da conceptibilidade

É a concepção critério para a possibilidade? Essa foi a questão norteadora de nossa


reflexão. Agora, munidos de toda a análise que fizemos nos dois momentos anteriores,
respondê-la é o objetivo deste capítulo.

No final do capítulo anterior tivemos a conclusão de que os domínios do concebível e


do possível não são coextensivos, isso sugeriu um problema para a resposta da concepção ao
problema do critério de possibilidade. Portanto, para alcançarmos o objetivo geral do presente
capítulo, teremos de avaliar especificamente as relações de domínio entre as duas noções
analisadas nas duas partes anteriores de nossa dissertação. Além disso, lidaremos com alguns
outros pontos em específico. Veremos os insights que podemos tirar sobre a relação entre
concepção e possibilidade ao refletir brevemente sobre o famoso problema dos futuros
contingentes. Com isso, observaremos os tangenciamentos entre os domínios e veremos a
visão de que a concepção é um bom guia para a possibilidade. Munidos das conclusões
retiradas da reflexão até o momento e das que obtivermos nessas etapas específicas,
avaliaremos quais conclusões podemos tirar das razões dessa visão. Com isso, teremos como
dar uma resposta mais sólida sobre se a concepção é ou não critério para possibilidade.

Comecemos, portanto, na avaliação da relação entre os domínios de cada noção.

4.1.1 Concepção e possibilidade: relações entre domínios

O objetivo desta seção é avaliar as diversas relações entre os domínios da concepção e


da possibilidade. Veremos as visões sobre tais relações e ponderaremos qual a mais bem
sustentada de acordo com as conclusões até o momento.

Utilizemos a teoria dos conjuntos para analisar as relações entre os dois domínios. Se a
concepção for um critério epistemológico necessário e suficiente para a possibilidade, ou seja,
que a concepção e apenas a concepção implique a possibilidade, então isso significa que todo
elemento do domínio da concepção é um elemento do domínio da possibilidade e todo
elemento do domínio da possibilidade é um elemento do domínio da concepção. Isso nos
daria o seguinte diagrama de relação concepção-possibilidade (Diagrama CP):
116

Diagrama CP1:

Domínio concepção Domínio


possibilidade

Conforme CP1, temos a coextensão entre os domínios, mas distintas intensões dos
domínios. Todavia, a nossa reflexão até agora sugere que os dois domínios não são
coextensivos e, por conseguinte, sugerem outro diagrama para a relação. Ora, se a relação
problemática está na relação inconcebível-impossível, de que o inconcebível não implica o
impossível, então parece que temos um diagrama como o seguinte:

Diagrama CP2:

Domínio possibilidade

Domínio
concepção

Contudo, há uma outra visão relevante sobre a relação entre domínios, a de que são
domínios relacionados sem que haja uma relação de continência. Essa é a visão de Beziau
(2015, p. 2) quando sugere que possibilidade e concepção são noções relacionadas, mas
independentes. Tal sugestão nos indicaria um diagrama como o que se segue:

Diagrama CP3:

Domínio concepção Domínio possibilidade


117

Em CP2, qualquer elemento do domínio da concepção seria um elemento do domínio


da possibilidade, isso não ocorre em CP3. Essa é a significação da independência, de que o
domínio da concepção não está contido no domínio da possibilidade. Isso parece sugerir mais
do que havíamos concluído de que o inconcebível não implica o impossível, CP3 conclui
também que o concebível não implica o possível. Dessa forma, para sustentar CP3,
precisamos não só mostrar que há elementos que estão fora do domínio da concepção e que
estão no domínio da possibilidade, mas também elementos que estão no domínio da
concepção e que estão fora do domínio da possibilidade. É o que propõe Beziau (2015), há
coisas concebíveis que não são possíveis.

Dado nosso objetivo, portanto, precisaremos avaliar essa sugestão de CP358, afinal ela
parece demonstrar mais dificuldade ainda para a resposta da concepção como critério de
possibilidade. Faremos isso em duas etapas, primeiro avaliaremos as razões de Beziau para
CP3, em seguida avaliaremos se a não implicação do impossível pelo inconcebível é
suficiente para nos levar de CP2 a CP3, ou seja, se é suficiente para a não continência.

4.1.1.1 Concepção e possibilidade: noções independentes?

Em Possibility, Imagination and Conception (2015), Beziau sustenta uma teoria de


que as três noções (possibilidade, imaginação e concepção) são independentes embora
relacionadas. É de nosso interesse aqui ver apenas uma dessas independências, a saber, a
independência entre a concepção e a possibilidade.

Com objetivo de demonstrar a independência das noções, Beziau utiliza exemplos


prototípicos de casos em que temos uma noção e não temos a outra. Isso significa que temos
exemplos de 1) elementos concebíveis e possíveis (a intersecção entre as noções, o elemento
relacionado), 2) temos elementos concebíveis e impossíveis e, por fim, 3) temos elementos
possíveis e inconcebíveis. Estabelecidos esses três casos, estabelece-se a independência das
noções, embora permaneçam relacionadas. Será apresentado os casos de 2) e 3) e suas razões
nesta subseção, contudo, na próxima subseção sustentarei que tais exemplos não são

58
As relações de domínio não se resumem a CP1, CP2 e CP3. Alguém pode sugerir CP4, em que não há
nenhuma intersecção entre os domínios, são totalmente independentes. Ora, a concepção de CP4 é ela própria
um exemplo de que há uma intersecção, afinal, é a relação entre a concepção de CP4 e a possibilidade de
concepção de CP4, assim, temos pelo menos um elemento concebível e possível. Em vista disso, não elencamos
CP4 entre as relações relevantes.
118

suficientes para o que se propõe, ou seja, não são exemplos prototípicos do que se quer. Isso
ocorre, sugiro mais a frente, porque não são boas razões as que sustentam tais exemplos.
Entretanto, reflitamos sobre eles e suas razões inicialmente.

Uma vez que o caso 1) é bastante simples, não nos demoraremos nele. Pense na
concepção de um conceito qualquer, ela já lhe dá pelo menos uma possibilidade no mundo, a
saber, a possibilidade de conceber esse conceito qualquer. Isso se dá pelo princípio ab esse ad
posse: se algo é o caso, então algo é possível. Dessa forma, se concebo um conceito, então o
conceito é uma coisa possível enquanto conceito. Não estou dizendo que se concebo um
conceito, então a coisa expressada pelo conceito é possível ou mesmo que exista de outra
forma que não enquanto objeto concebido. Pois se assim o fosse, só o fato de conceber
PÉGASUS já implicaria a existência de pégasus além de pégasus enquanto objeto concebido.
Não é isso. Mas a simples razão que há pelo menos uma intersecção entre os domínios de
concepção e possibilidade, pois conceitos, quando concebidos, são possíveis enquanto
concebidos. Por exemplo, quando você concebe o conceito CARRO, você concebe a
possibilidade de conceber o conceito CARRO. CARRO é algo concebível (conceber CARRO
nos mostra isso) e CARRO é possível (conceber CARRO nos mostra isso). De outra forma,
para utilizar o exemplo de Beziau, pense numa omelete. Uma omelete é algo concebível (uma
receita de omelete nos mostra isso) e uma omelete é algo possível (fazer uma omelete nos
mostra isso). Deste modo, nossas atenções se voltaram para os casos 2) e 3). Vejamos, assim,
os exemplos prototípicos e as razões de vê-los como exemplos de tais casos.

4.1.1.1.1 Concebível e impossível

O exemplo prototípico de algo concebível e impossível, conforme Beziau (2015, p.


12) é a contradição. Nós podemos definir a contradição, seja pelo quadrado das oposições da
lógica aristotélica, seja pela lógica proposicional moderna. Nesta última via, por exemplo,
uma contradição é uma proposição na forma p^¬p, ou seja, uma proposição que afirma e nega
a mesma coisa (p), resultando, assim, em uma proposição que não pode ser verdadeira, já que
suas partes não podem ser verdadeiras conjuntamente. Assim, dizer que a contradição é
119

concebível e impossível é dizer que temos como colocá-la em conceito, mas ela não ocorre na
totalidade da existência59. Conceber a contradição é conceber o impossível.

Continuando o raciocínio, Beziau (2015, pp. 11-12) nos sugere outros exemplos do
tipo. Uma linha reta curvada, um objeto contraditório, é algo concebível e impossível (além
disso, inimaginável). Objetos contrários também seguem essa esteira. Um quadrado-redondo,
por exemplo, é um objeto contrário e, por isso, concebível e impossível.

Tais objetos são ditos concebíveis porque são definíveis, e são impossíveis porque a
proposição (ou sentença) que os expressa não pode ser verdadeira (porque os dois predicados
formadores do predicado composto não podem ser verdadeiros conjuntamente). Essa é a
intuição que perpassa tal raciocínio e que nos diz exemplos de coisas concebíveis e
impossíveis.

Agora vejamos o outro lado da moeda, exemplos prototípicos de elementos possíveis e


inconcebíveis.

4.1.1.1.2 Possível e inconcebível

Durante o momento em que investigamos a natureza da concepção, no capítulo IV,


tivemos um exemplo de algo possível e inconcebível, a saber, conceitos para os quais nós
somos fechados cognitivamente. São inconcebíveis porque não temos como acessar os
elementos necessários formadores de tais conceitos (a informatividade basilar do conceito), e
não se mostram impossíveis porque sabemos que existem subjetividades distintas da nossa
(um morcego, por exemplo) e nada indica que não possa haver, em toda vastidão do universo,
uma subjetividade distinta da exibida na terra e, com isso, uma informatividade inacessível a
nós, mas formadora de tais conceitos. Não temos como exemplificar tais conceitos, mas
parece que temos como inferir sua existência modal. Beziau, contudo, utiliza outros
exemplos, vejamos.

Algo possível (até imaginável), mas não concebível, num exemplo simples, é uma
árvore particular (BEZIAU, 2015, pp.16-17). Ela é possível, porque ela acontece. É até
imaginável, porque sua imagem nos aparece, mas não é concebível, porque não temos uma
59
Utilizo a expressão totalidade da existência no sentido de o conjunto de tudo que é o caso e tudo que é
possível de ser o caso. Não utilizo o termo realidade, que seria cabível, porque é um termo filosoficamente
carregado e gostaria de não comprometer a ideia com essa carga.
120

teoria que a explique em sua totalidade. Não temos uma teoria que a explique em sua
totalidade particular porque a biologia nos dá uma concepção parcial da essência da árvore
através de uma tipificação/classificação, características gerais. Isso significa dizer que o
conceito ÁRVORE não é o suficiente para conceber uma árvore que esteja na sua frente. Se
for ela uma laranjeira, o conceito LARANJEIRA, ainda não lhe dará a totalidade daquela
árvore em particular. Se você utilizar todo o conhecimento botânico atual e formar um
conceito estruturado gigantesco para conceber o que você puder conceber sobre tal árvore,
ainda assim você não coloca em um conceito sua totalidade única. Mesmo que você formule
um conceito indexical do tipo ESTA ÁRVORE EM MINHA FRENTE, este conceito não
captura a totalidade da árvore em particular, pois este conceito será formado pelas
experiências que você tem dessa árvore em particular, e suas experiências da árvore em
particular lhe dão aspectos dela, não a sua totalidade arbórea. Esta é uma visão bem
impressionista do caso, mas não é a mais. Vejamos outro exemplo em que nem mesmo
imaginar, como imaginamos a árvore em nossa frente, nós conseguimos.

O exemplo prototípico de algo possível, mas não imaginável e nem concebível, é a


própria realidade (BEZIAU, 2015, pp. 19-21). A realidade é possível porque acontece, mas
nós não temos como formar uma imagem de sua totalidade (temos imagens do universo
sideral, mas isso não nos mostra o microcosmo, e assim por diante, não temos uma imagem
da realidade) e nem temos uma teoria que a expresse. Ou seja, a realidade é mais incrível e
absurda que a nossa imaginação e a nossa concepção podem abarcar. Temos, ainda, outros
dois exemplos impressionistas: a vida e a morte. Ambas são possíveis, pois acontecem. Não
temos uma imagem para a vida em sua totalidade, nem para a morte, embora tenhamos
simbolismos. Além disso, não temos uma teoria que expresse a vida, no sentido biológico, em
sua totalidade, respondendo-nos o que é isso, a vida, ou mesmo a morte. São ambos eventos
misteriosos60. Isso significa dizer que quando utilizamos conceitos como REALIDADE,
VIDA e MORTE, não conseguimos esgotar aquilo a que queremos nos referir. Isso não
impossibilita nossa comunicação, mas nos mostra que o conceito, por exemplo, REALIDADE
captura aspectos da realidade e não a totalidade da realidade. Mesmo que se formule um
conceito do tipo TOTALIDADE DA REALIDADE, ainda assim é vago, não esgotável sobre
o que queremos falar. Em conclusão, a realidade escapa nossa concepção e nossa imaginação.

60
Misterioso aqui é usado no sentido comum, não é no sentido de Chomsky ou McGinn, em que temos um
problema que não pode ser resolvido por nossa cognição.
121

Estabelecidos os exemplos prototípicos de 1), 2) e 3), isso também estabelece o


diagrama CP3. A concepção e a possibilidade se relacionam, há intersecção, mas são
independentes, nenhuma está contida na outra. Dados os exemplos prototípicos de Beziau, as
conclusões são sustentadas pelos exemplos? Se não sustentam, o que podemos concluir desses
pontos? Isso indica que a concepção não é critério de possibilidade? É o que veremos na
próxima subseção.

4.1.1.2 A concepção não é critério de possibilidade?

A conclusão que se segue, conforme Beziau, é que se estes exemplos são exemplos de
1) elementos concebíveis e impossíveis, e 2) possíveis e inconcebíveis, então as noções de
concepção e possibilidade são independentes, nenhuma está contida na outra, e formam um
diagrama do tipo CP3 (dado que há coisas concebíveis e possíveis). O que avaliaremos agora
é se os exemplos dados por Beziau são realmente exemplos de 1) e 2). Em seguida,
retornaremos à conclusão que nos fez chegar ao diagrama CP2 e veremos se ela é suficiente
para nos levar ao diagrama CP3. Com isso, concluir se somos levados ao diagrama CP3 ou se
só podemos estabelecer CP2. Por fim, veremos se isso nos indica que a resposta da concepção
é ou não critério de possibilidade.

4.1.1.2.1 Exemplos prototípicos

Comecemos a avaliação dos exemplos prototípicos na mesma ordem, inicialmente,


aqueles que dizem que algo é concebível e impossível. Esses exemplos são a contradição,
objetos contraditórios e objetos contrários. Comecemos pela contradição.

A contradição se mostra um exemplo desses porque nós podemos defini-la e, além


disso, ela não ocorre na totalidade da existência, ou seja, não há uma forma em que ela se
exibe no mundo. Vejamos a questão da concepção. Realmente ela parece concebível, ora,
temos sua definição e ela é significativa, temos uma aplicação de conceitos numa combinação
determinada de experiências que temos do mundo atual e que nos diz o que seja uma
contradição. Ora, uma contradição é a conjunção da afirmação e da negação de algo, de forma
que a afirmação e a negação se excluem quanto à verdade e quanto à falsidade, não são
122

verdadeiras conjuntamente e nem são falsas conjuntamente. Não temos nenhuma contradição
conceptual, como vimos anteriormente, nesse caso. Os conceitos não se excluem de forma a
se anular, eles se combinam justamente para explicar a ideia de exclusão61. Há
informatividade em cada um dos conceitos (AFIRMAR, NEGAR, EXCLUSÃO MÚTUA DO
VALOR DE VERDADE, CONJUNÇÃO) e a relação que eles fazem nos informa sobre a
ideia de exclusão que é a contradição. Contradição é simplesmente dizer e desdizer, e você
provavelmente entende o que seja isso62. É o mesmo que se passa na ideia de contradição
conceptual, não há contradição conceptual no conceito CONTRADIÇÃO CONCEPTUAL.
Em outros termos, contradições63 são conceitos informativos.

Por outro lado, há a afirmação de que uma contradição é impossível. Penso que um
contra-exemplo é o melhor para mostrar que algo não é impossível. Considere: Alice é
solteira, mas não é solteira. O que eu disse agora foi uma contradição. Nesse caso uma
explícita. Contradições ocorrem a toda hora nos discursos. Nós podemos identifica-lás e dizer:
ei, isso é uma contradição! Não há nenhum impedimento ontológico que não deixe que um
indivíduo incorra numa contradição. Nada no mundo impede que um indivíduo enuncie uma
contradição. Ora, se contradições ocorrem no mundo, são enunciadas no mundo, logo, são
possíveis. Todavia alguém pode objetar que quando se diz que contradições não ocorrem na
realidade, quer-se dizer que não ocorre o que elas declaram, por exemplo, de Alice ser e não
ser solteira. Mas esse o que elas declaram é a proposição “expressa” pela contradição dita por
alguém; entretanto, esse o que elas declaram são os objetos os quais as contradições se
referem, rigorosamente falando. Se tomamos contradições pelos objetos os quais elas se
referem, haveria distinção entre contradições e objetos contraditórios? Parece que não. Sendo
assim, tomar as contradições pelos objetos os quais elas se referem nos levaria a confundir
contradições e objetos contraditórios – aparentemente, há um impedimento ontológico para
objetos contraditórios, mas não para contradições. E, assim, uma contradição não é um
exemplo prototípico de um caso de algo concebível e impossível, mas um exemplo de algo
concebível e possível.

Penso que o fato de se pensar que contradições são impossíveis, que não ocorrem no
mundo, é o fato de confundir contradições com objetos contraditórios. Uma coisa é a

61
Aqui não devemos confundir a definição de contradição com um exemplo de contradição, o que se diz é que
não há nenhuma contradição na definição de contradição.
62
Não estou a dizer que você entende o que foi dito e destito (conteúdo da contradição), mas que você entende o
que é dizer e desdizer.
63
Contradição lógica e contradição conceptual.
123

contradição, outra é o objeto contraditório. Você entende (há conceito) o que seja dizer e
desdizer, mas você não entende (não há) o que foi dito. O que foi dito é o objeto contraditório,
o dizer e desdizer é a contradição. É justamente por isso que nós conseguimos conceber a
contradição, mas não conseguimos conceber uma contradição (um objeto contraditório).
Dessa forma, quando dizemos que vemos várias contradições no mundo, é porque inúmeras
vezes vemos ditos e desditos. Isso não significa que encontramos objetos contraditórios no
mundo64. Isso ficará mais claro ao analisarmos os outros dois exemplos prototípicos, objetos
contraditórios e objetos contrários.

Enquanto contradições não são exemplos prototípicos de algo concebível e impossível


porque há um problema em entendê-las como impossíveis, já com objetos contraditórios e
objetos contrários o problema é em entendê-los como concebíveis. Não é porque concebemos
o que seja uma contradição (reconhecemos uma contradição), que nós concebemos um objeto
contraditório ou contrário (reconhecemos um objeto contraditório ou contrário). Pensemos no
exemplo dado no parágrafo anterior: Alice é solteira, mas não é solteira. Concebemos que
isso seja uma contradição, sem problema algum, porque concebemos a contradição e
reconhecemos suas ocorrências. Mas isso não significa conceber o objeto da contradição, a
saber, o que seja uma SOLTEIRA/NÃO-SOLTEIRA, não conseguimos reconhecer nada
como sendo uma SOLTEIRA/NÃO-SOLTEIRA65. Isso se dá pelo critério de contradição
conceptual, como vimos anteriormente. Os campos semânticos estão em relação de exclusão
mútua e não formam, em combinação, um conceito estruturado. Em termos informativos,
quando alguém lhe diz que Alice é solteira, mas não é solteira, você entendeu que a pessoa
incorreu em contradição, mas você não foi informado de nada mais além disso. O mesmo se
segue para objetos contrários. Concebemos o que seja uma contrariedade, mas isso não
significa conceber objetos contrários. Não há um conceito de CÍRCULO-QUADRADO, para
usar o exemplo de Beziau (2015, p. 13), os conceitos de CÍRCULO e QUADRADO falham
na tentativa de formar um novo conceito ao se combinar, pois seus campos semânticos se
excluem mutuamente (combinamos símbolos e não conceitos). Dessa maneira, não
concebemos um objeto contrário. Todavia, concebemos que é uma contrariedade, afinal é uma
ocorrência de uma contrariedade. Em termos de informação, quando alguém lhe diz que x é
um círculo-quadrado, pode não ser informativo sobre x, mas você se informa de que o dito é
uma contrariedade. Em conclusão, objetos contraditórios e objetos contrários não são

64
A não ser que consideremos um discurso (contraditório) como um objeto (contraditório).
65
O mesmo se segue para uma linha reta curvada.
124

exemplos prototípicos de algo concebível e impossível, uma vez que são inconcebíveis.
Quanto a impossibilidade deles, retornaremos a isso no capítulo VI – Consequências
filosóficas, no ponto sobre uma metafísica de objetos contraditórios e objetos contrários.

Especificamente, para o caso de objetos contraditórios e objetos contrários, eles não


são vistos como concebíveis apenas pela confusão entre eles e, respectivamente, contradição e
contrariedade. Há uma segunda confusão, a de achar que porque algo é definível então é
concebível. Vimos anteriormente que conceitos são explicitáveis por suas definições (ver
capítulo IV, seção 2.1 – Formação de conceitos). Isso, contudo, não implica que apenas o fato
de termos uma definição isso nos dá um conceito. Ora, no definiens66 da definição podemos
ter uma contradição conceptual. Neste caso, teríamos uma combinação de símbolos apenas,
não uma combinação de conceitos que formam um novo conceito (como vimos no capítulo
III, seção 2.3.2 – Contradição conceptual como critério de concepção). É justamente isso que
ocorre nas definições de objetos contraditórios e objetos contrários, nós temos definições com
contradições conceptuais. Por isso, definimos embora não concebamos (nem toda definição é
uma boa definição a ponto de expressar um conceito!). E, pela confusão de achar que definir é
conceber, por se pensar que conseguimos definir objetos contraditórios e objetos contrários,
incorremos no equívoco de que nós conseguimos concebê-los.

Uma vez esclarecida e retirada a confusão entre contradição e objeto contraditório, por
um lado, e contrariedade e objeto contrário por outro, além disso, retirada a confusão entre
definir e conceber através da distinção, concluímos que os exemplos dados não são exemplos
prototípicos de elementos concebíveis e impossíveis – uns por serem possíveis (contradições e
contrariedades) e os outros por serem inconcebíveis (objetos contraditórios e objetos
contrários). Dessa maneira, não conseguimos estabelecer a relação concebível-impossível por
essa via. Vejamos agora os exemplos prototípicos da relação possível-inconcebível.

Para a relação possível-inconcebível temos os exemplos impressionistas que falamos


anteriormente, são eles: árvore particular, realidade, vida e morte. Vejamos como eles se
relacionam com as conclusões que tivemos dos nossos dois primeiros momentos de
investigação.

Árvore particular, realidade, vida e morte, não são exemplos prototípicos de coisas
possíveis e inconcebíveis. Como perceber dessa maneira? Compreendendo que não termos

66
Definiens e definiendum são partes (relatas) de uma relação, a relação de definição, onde definiens é a
expressão a definir algo e definiendum a expressão a ser definida.
125

uma teoria (científica67) para embasar um conceito não implica que não concebamos algo68.
Isso seria pressupor que para avaliarmos a resposta da concepção, deveríamos avaliar a
resposta da teoria (ver capítulo III, seção 1.2, Concepção e Teoria). O fato da biologia ou da
física não nos darem um conceito bem definido de uma árvore particular, da realidade, de vida
e de morte, não implica que nós não concebamos tais coisas. Nós temos experiências dessas
coisas69 no mundo atual, temos conceitos sobre essas experiências, combinamos
determinadamente esses conceitos, muito embora não tenhamos uma teoria científica
biológica que nos dê conceitos a seu tipo. Mesmo sem teorias do tipo, nós operamos com tais
conceitos no mundo. As nossas experiências do fenômeno da morte no mundo, por exemplo,
através de observar outros organismos morrendo, nos dão informações suficientes para pelo
menos uma definição explicativa utilizável contextualmente. Não havendo contradição
conceptual nessa definição explicativa, então temos a concepção do conceito MORTE. O
mesmo serve para o conceito de REALIDADE, VIDA e o da TOTALIDADE DA ÁRVORE
PARTICULAR. Estes exemplos podem ser problemáticos para a resposta da teoria, não da
concepção. Nesse sentido, seriam exemplos prototípicos de coisas possíveis embora não
teorizáveis (ou pelo menos não teorizadas até o momento).

Esses exemplos podem até mostrar que estão além da nossa imaginação ou teorização,
mas não da concepção. Em conclusão, não estabelecemos com esses exemplos algo possível e
inconcebível. Só conseguimos estabelecer algo do tipo através da conclusão que tivemos no
capítulo IV com o fechamento cognitivo informacional.

Portanto, se não estabelecemos esses exemplos prototípicos, não estabelecemos por


essa via o Diagrama CP3. O que nos indica, entrementes, que o que podemos sustentar é o
Diagrama CP2.

Há outra via de mostrar a independência das noções. É uma via de reflexão que
podemos tirar do famoso problema dos futuros contingentes. Do embate sobre os futuros
contingentes podemos ver algo concebível e impossível. Se estabelecermos isso,
estabelecemos a independência.

67
Conforme as teorias consideradas por Beziau (2015).
68
Aqui é importante frisar a distinção entre a resposta da concepção e a resposta da teoria para o problema do
critério de possibilidade. Embora a resposta da teoria pressuponha a da concepção, o contrário não ocorre.
Podemos conceber, mesmo sem ter uma teoria (formal) em que aquele conceito é expressado.
69
Embora as experiências sejam sempre parciais. No exemplo da realidade, sempre experimentamos de acordo
com uma localização no espaço e no tempo, dessas experiências inferimos a conjunção de todas elas e,
continuando, inferimos a REALIDADE.
126

4.1.1.2.2 O problema dos futuros contingentes: concebendo o impossível?

Uma das formas de se conceber o impossível está relacionada ao que é conhecido na


história da filosofia como o problema dos futuros contingentes desde De Interpretatione de
Aristóteles (MORAES & ALVES, 2009). O problema pode ser expressado da seguinte
maneira: “(...) se são ditas duas alternativas a respeito do futuro – se algo ocorrerá ou não –,
necessariamente se dará uma das duas alternativas?” (MORAES & ALVES, 2009, p. 244).
Uma das respostas, a determinista, leva-nos a uma compreensão de como é conceber algo
impossível. Explico em diante.

O que se afirma ou nega hoje sobre o futuro é verdadeiro ou é falso. Se é verdadeiro,


já é necessariamente verdadeiro. Se é falso, já é necessariamente falso. É o que se entende por
determinismo (fatalismo). De qualquer maneira, se concebemos o que foi afirmado ou negado
hoje sobre o futuro, então concebemos tanto se for verdadeiro como se for falso. Se
concebemos o caso de ser verdadeiro, então concebemos algo necessariamente verdadeiro
(concebemos uma necessidade). Se concebemos o caso de ser falso, então concebemos algo
necessariamente falso. Ora, algo necessariamente falso é algo impossível. Se concebemos
algo necessariamente falso, então concebemos algo impossível. Logo, concebemos algo
impossível. Algo afirmado ou negado hoje sobre o futuro, e que seja falso, é um exemplo de
algo concebível e impossível. Dessa forma, se estabelecemos algo concebível e impossível,
concebemos a independência dos domínios, afinal já havíamos estabelecido algo possível e
inconcebível. Segue-se, portanto, que estabelecemos o diagrama CP3.

Essa concepção do impossível via problema dos futuros contingentes depende da


verdade sobre o determinismo. Portanto, é amplamente controversa. As nossas mais bem
estabelecidas teorias físicas atuais sugerem uma visão cada vez mais indeterminista da
realidade. Isso sugeriria uma implausibilidade ao determinismo. Além disso, o determinismo
já pressupõe uma visão sobre a possibilidade quando diz que será necessariamente verdadeiro
ou falso, diz que não pode ser de outra forma. Por quê? O que nos diz o que pode e não pode
nesse caso? Parece que é o fato de não concebermos outra alternativa a forma X, isso nos diz
que é impossível outra forma e, consequentemente, nos diz que seja necessariamente a forma
X. Ora, mas já vimos que do inconcebível não podemos implicar o impossível. Portanto, não
temos como conceber o impossível via determinismo. Por fim, não estabelecemos CP3.
Vejamos, contudo, se a relação estabelecida da não implicação do impossível pelo
inconcebível é suficiente para CP3, ou se realmente só estabelecemos CP2. Aqui teremos uma
127

seara tão ou mais fluída e mais serpenteante que o rio de Heráclito, tenhamos atenção para
algo surreal a seguir.

4.1.1.2.3 Surrealismo filosófico: o impossível é concebível

Se assumimos que o inconcebível não implica o impossível, daí há alguma conclusão


sobre as outras relações entre os domínios da concepção e da possibilidade? O que
afirmaríamos sobre a modalidade tomando a concepção como critério e a negação do par
inconcebível-impossível? É o que veremos agora.

Inicialmente, pensemos em como nós concluímos que algo é necessário. A semântica


dos mundos possíveis é a forma técnica com mais adeptos atualmente para a compreensão da
modalidade, além disso, ela capta as intuições básicas que estão em jogo no nosso
questionamento (a concepção nos ditando a possibilidade). Vejamos o caso da necessidade
nesses termos:

[...] pode-se dizer que p é uma verdade necessária se, e somente se, p é verdadeira
em todos os mundos possíveis. Os mundos possíveis são modos como as coisas
podem ser. (BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 536)

Lembremo-nos do que refletimos na seção 2.1.1 (Cenários como Mundos Possíveis


Epistêmicos) do capítulo III (Entendendo a concepção). A distinção aqui de mundos
possíveis, usados para definir a necessidade, para mundos possíveis epistêmicos, que usamos
para definir cenários, é a de que estes estão no campo epistemológico e aqueles no campo
metafísico. Todavia, como chegamos a esses campos metafísicos para exemplificar um
mundo possível? Isso se faz partindo dos mundos possíveis epistêmicos de que falamos.
Portanto, se algo é um mundo possível epistêmico, então é um mundo possível (metafísico).
Ora, o que temos aqui? Temos que do concebível seguimos ao possível. Vejamos agora outro
ponto.

Lembremo-nos de que para “pôr em um cenário” (consequentemente, pôr em um


mundo possível epistêmico) nós utilizamos uma aplicação reiterada de conceitos, logo, os
livros de mundo desses cenários (mundos possíveis epistêmicos) seguem o critério de
contradição conceptual para concebermos um cenário (mundo possível epistêmico). Dessa
forma, teríamos o que poderíamos chamar de um mundo concebível.
128

Em vista disso, quando usamos a semântica dos mundos possíveis para definir a
necessidade, o que estamos a fazer é dizer, traduzindo em pressupostos a definição anterior, o
seguinte: pode-se dizer que p é uma verdade necessária se, e somente se, p é verdadeira em
todos os mundos concebíveis. Mundos concebíveis são modos como as coisas podem ser.

Isso é o que se quer dizer ao final de contas, não apenas que mundos concebíveis são
modos como podemos conceber as coisas, mas modos como as coisas realmente podem ser.
Isso está pressuposto nessa definição70.

A ideia de mundo concebível é a ideia formadora de um mundo possível na semântica


dos mundos possíveis71. Agora vejamos algumas conclusões quanto à relação disso com a
negação do par inconcebível-impossível.

Há mundos possíveis (metafísicos) que são mundos inconcebíveis. Essa é uma


conclusão simples a que já havíamos chegado. Ora, se concluímos que há coisas possíveis que
são inconcebíveis, segue-se que há mundos possíveis (metafísicos) que são mundos
inconcebíveis. Segue-se além disso uma conclusão mais extrema, vejamos.

A necessidade não é concebível. Uma vez que a necessidade é definida por uma
verdade em todos os mundos possíveis, mas chegamos a mundos possíveis através de mundos
concebíveis, e existem mundos possíveis que são mundos inconcebíveis, portanto, não temos
acesso a todos os mundos possíveis e, consequentemente, não temos acesso à necessidade.
Logo, a necessidade é inconcebível72. Veja que não adianta usar a tese da designação rígida
de Kripke (1980) para sustentar que se quisermos manter rígida uma designação então temos
algumas necessidades sem precisar listar extensionalmente todos os mundos possíveis. Esta

70
Essa é uma razão pela qual a noção de mundo possível na semântica dos mundos possíveis não nos ajuda em
saber o critério para se saber o que realmente é possível em sentido absoluto. Uma vez que compreendemos
mundos possíveis como estados de coisas maximamente determinados e consistentes, já pressupomos a
concepção nesse método e também já assumimos noções de possibilidade relativa (ideia de consistência).
71
É dessa ideia, também, que se chega a um essencialismo. Há uma contradição conceptual em dizer que
Sócrates poderia ter sido um cartão de crédito, mas não há uma contradição lógica estrita em dizer que Sócrates
poderia ter sido um cartão de crédito. Isso porque a ideia de designador rígido de Kripke está em acordo com o
que apresentamos sobre exclusão mútua de conceitos, o conceito SÓCRATES se exclui mutuamente com o
conceito CARTÃO DE CRÉDITO quando se tenta estabelecer uma relação de identidade – assim, nós não
concebemos Sócrates como cartão de crédito (apenas combinamos símbolos). Ou seja, se quisermos manter o
conceito SÓCRATES e modaliza-lo, aplicar em sua identidade o conceito CARTÃO DE CRÉDITO nos faz não
falar de SÓCRATES. Em termos de designação rígida, se quisermos falar do Sócrates atual, temos de levar em
conta suas propriedades essenciais para modaliza-lo, caso contrário podemos falar de outro objeto designado,
não do Sócrates que o designador rígido designa.
72
Há um fechamento cognitivo aqui: somos fechados cognitivamente para a necessidade no mundo para além de
uma categoria cognitiva. Isso significa que não temos como não conceber de forma necessária alguma coisa, ou
seja, somos fechados cognitivamente para negar a necessidade em nossa concepção, mas por outro lado somos
fechados cognitivamente para a necessidade no mundo além da concepção. Resumidamente, a necessidade
extramental é inconcebível.
129

tese pressupõe que por ser inconcebível falar sobre determinadas possibilidades de um objeto
designado rigidamente, então é impossível aquele objeto, enquanto ele mesmo, não ter
determinadas possibilidades. Este procedimento lógico de capturar a necessidade também
pressupõe a ideia de que tiramos o impossível do inconcebível. Tome o exemplo de Sócrates:
é impossível Sócrates não ser um ser humano porque é inconcebível Sócrates não ser um ser
humano; consequentemente, é necessário que Sócrates seja um ser humano com base na
afirmação de que do inconcebível implicamos o impossível. Não há um procedimento lógico
para se estabelecer a necessidade que não pressuponha que do inconcebível se implica o
impossível ou que em sua formulação de raciocínio e justificação não pressuponha isso; isso
se dá porque a forma intuitivamente que conhecemos o impossível é através do inconcebível a
nós, e só chegamos à necessidade através da noção de impossibilidade. Sendo assim, para
argumentar contra a consequência de que a necessidade é inconcebível, deve-se argumentar
sem pressupor, em algum nível de análise, que o impossível é dado pelo inconcebível. Pois se
isso é pressuposto, nós perdemos essa argumentação da mesma forma que perdemos a
necessidade. O que estou apontando é que quando perdemos o critério de impossibilidade,
quando não sabemos dizer o que é impossível, o que dá o limite, então nós perdemos nossos
conceitos mais basilares. Vejamos o que mais perdemos.

Uma outra conclusão é a seguinte: a semântica dos mundos possíveis não é suficiente
para uma necessidade metafísica, apenas para uma necessidade epistêmica situada. O que
significa isso? Significa que se há uma distinção entre mundos concebíveis e mundos
possíveis, dada através da negação do par inconcebível-impossível, então uma avaliação da
necessidade em termos de mundos concebíveis nos leva apenas a uma conclusão sobre as
nossas capacidades cognitivas, não a uma conclusão sobre a modalidade do mundo. Esta
conclusão sobre nossas capacidades cognitivas é essa necessidade epistêmica situada, isto é,
concluímos apenas que é necessário que concebamos algo sempre de determinada forma, mas
isso não implica em nada sobre o algo do mundo (apenas o algo-para-nós). A necessidade é
epistêmica porque não fala do mundo (mas do conceber) e é situada porque fala apenas da
nossa capacidade cognitiva de concepção.

Se não temos como dizer do mundo que alguma coisa é necessária, quais
consequências temos? Temos a consequência de não termos como dizer que uma relação de
identidade é uma relação necessária. Tome um exemplo, quando dizemos que 1 é igual a 1.
Algo extremamente simples, um objeto é o que é. O que fazemos para testar essa identidade?
Perguntamos, 1 poderia não ser 1? Um objeto poderia não ser o que é? Em resposta temos,
130

não temos como conceber que 1 não seja 1, logo, necessariamente 1 é igual a 1. O que quer
dizer que é impossível que 1 seja diferente de 1. Ora, o fato de ser inconcebível não implica o
fato de ser impossível, de outra maneira, o fato de ser inconcebível não implica a necessidade,
assim, o fato de ser inconcebível não nos diz que uma identidade é necessária.

Ao perdermos a necessidade da identidade, o que isso nos diz sobre a própria


identidade? Se algo pode não ser idêntico, e não conseguimos conceber essa não-identidade,
isso significa que algo pode parecer idêntico (ser uma coisa), sem que seja idêntico (ser uma
coisa). Em outros termos, nós concebemos sua identidade porque nos é inconcebível sua não-
identidade, mesmo que estejamos diante de uma não-identidade. Consequentemente, há uma
inferência (parece estar em aberto) que nenhuma das identidades que concebemos sejam reais
identidades. Além, que não haja qualquer identidade. Algo mais impressionante, que
identidades sejam impossíveis, embora as concebamos a todo instante. Mas o que significaria
isso realmente? Significaria que a todo instante concebemos o impossível, a identidade não
seria algo do mundo além de nossas mentes, mas uma categoria cognitiva. Identidades, para
além de nossas categorias cognitivas, seriam impossíveis, embora a todo instante consigamos
concebê-las não só em nossas categorias cognitivas, mas como se fossem no mundo.
Concebemos o mundo além de nós conforme a categoria cognitiva da identidade, mas para
além de nós esse seria um mundo impossível. O que isso indica? Indica, diferentemente do
impressionismo de Beziau, uma conclusão surrealista: mundos impossíveis são concebíveis.
Em outros termos, o impossível é concebível.

Dessa forma estabelecemos algum tipo de surrealismo filosófico ao estabelecermos a


negação do par inconcebível-impossível. Pois, ao estabelecermos essa negação,
estabelecemos contraintuitivamente que o impossível é concebível (de forma surreal, a
maioria das coisas concebíveis são impossíveis). Com efeito, percebemos que a negação do
par inconcebível-impossível nos implica o diagrama CP3. A única intersecção entre o
domínio do possível e o domínio do concebível seria, justamente, a possibilidade de conceber
– como já explicamos anteriormente. As coisas concebíveis, enquanto objetos da concepção,
são coisas possíveis na concepção.

Provavelmente o leitor esteja achando tudo isso absurdo! Mas o que concluir disso? A
conclusão que temos é que se a concepção for o critério de possibilidade, só nos resta assumir
o surrealismo filosófico. Se não queremos ser surrealistas, então temos de assumir que a
concepção não é critério de possibilidade. Isso é o que sugiro momentaneamente, que, em
verdade, a concepção não é a resposta correta para o problema do critério de possibilidade.
131

Isso implica que não temos como saber qual seja o critério de possibilidade e, assim,
tenhamos de assumir tal surrealismo? Não. Ora, vimos inicialmente que não temos condições
suficientes de sustentar tal coisa, afinal há várias outras respostas além da concepção e duas
visões gerais sobre tais respostas. Para sustentar que só temos o surrealismo filosófico,
teríamos de avaliar e concluir negativamente para todas as outras respostas ao problema do
critério de possibilidade.

Não obstante, a despeito de minha sugestão, há outra a qual diz que a concepção é um
bom guia para a possibilidade. Com intuito de termos uma resposta sólida além da negativa
que demos momentaneamente, vejamos na seção seguinte a visão de sustentar a concepção
como um bom guia e confrontemos as suas razões com o que refletimos até agora.

4.1.2 É a concepção guia para a possibilidade?

Há vários filósofos que sustentam a posição de que a concepção é um bom guia para a
possibilidade, contudo, tomaremos essa posição da forma como David J. Chalmers a sustenta
em Does conceivability entail possibility? (2002). O objetivo geral dessa seção é apresentar
essa argumentação e confrontá-la com as reflexões que tivemos até agora.

Com argumentações diferentes da nossa até o momento, diversos outros filósofos


sustentaram que a concepção não leva à modalidade. Vários contra-exemplos foram dados,
tais como a concepção da falsidade de um teorema matemático necessariamente verdadeiro
(algo impossível sendo concebível); também identidades empíricas, o que significa dizer que
seria concebível, mas impossível, que Hesperus não seja Phosphorus ou que água não seja
H2O. Chalmers, contudo, argumenta que há pelo menos uma tese conceptibilidade-
possibilidade livre desses contra-exemplos de forma plausível e defensável (CHALMERS,
2002, p. 146). Avaliaremos essa argumentação em dois passos: na primeira subseção
apresentaremos a argumentação da tese conceptibilidade-possibilidade, na segunda subseção,
confrontaremos com a reflexão tida até agora. Como se segue.
132

4.1.2.1 Tese conceptibilidade-possibilidade

Para estabelecer uma tese da relação conceptibilidade-possibilidade livre de contra-


exemplos, Chalmers (2002) isola três dimensões entre noções de conceptibilidade, de forma a
distinguir oito tipos de conceptibilidade. Com essa distinção, sugere que um desses oito tipos
é livre de contra-exemplos.

As três dimensões são as seguintes: i) conceptibilidade prima facie em contraste à


conceptibilidade ideal; ii) conceptibilidade positiva em contraste à conceptibilidade negativa;
iii) conceptibilidade primária em contraste à conceptibilidade secundária. Delas, temos os oito
tipos de conceptibilidade a seguir: 1) Prima facie positiva primária; 2) Prima facie positiva
secundária; 3) Prima facie negativa primária; 4) Prima facie negativa secundária; 5) Ideal
positiva primária; 6) Ideal positiva secundária; 7) Ideal negativa primária; 8) Ideal negativa
secundária.

Comecemos com um esclarecimento sobre as três dimensões mencionadas. Em


seguida, uma avaliação sobre os tipos problemáticos de conceptibilidade para, com isso,
vermos o tipo livre de contra-exemplos.

4.1.2.1.1 As dimensões da conceptibilidade

As dimensões da conceptibilidade são compreendidas da seguinte maneira. Quanto à


primeira dimensão:

Conceptibilidade Prima Facie: x é concebível de forma prima facie quando, dada uma
noção substantiva de conceptibilidade, em primeira impressão, x passa no teste da noção
substantiva de conceptibilidade.

Conceptibilidade Ideal: x é idealmente concebível para um indivíduo quando, dada


uma noção substantiva de conceptibilidade, é prima facie concebível para este indivíduo com
uma justificativa que não é anulável (undefeatable) por uma razão melhor.

Numa segunda dimensão, são consideradas as noções substantivas de


conceptibilidade:
133

Conceptibilidade Negativa: x é negativamente concebível quando não é excluído a


priori, ou seja, quando não há uma (aparente) contradição em x.

Conceptibilidade Positiva: x é positivamente concebível quando x é coerentemente e


modalmente imaginável. De forma que x é coerentemente imaginável quando se imagina os
detalhes que mostram x, não apenas evidências de x (por exemplo, para imaginar alguém
como assassino de um homicídio, imagine-se a situação em que esse alguém está cometendo o
crime, não apenas a situação em que vemos muitas evidências de que esse alguém cometeu o
crime). É modalmente imaginável no sentido de não ser apenas uma imaginação perceptual,
mas também de apresentar configurações de mundos perceptualmente indistinguíveis, mas
com relações estruturantes distintas (em um mundo existe uma entidade ou propriedade
imperceptível e em outro não).

Por fim, temos uma terceira dimensão sobre a conceptibilidade:

Conceptibilidade Primária: x é primariamente concebível (ou epistemicamente


concebível) quando, dada uma noção substantiva de conceptibilidade, x é concebível partindo
apenas do que conhecemos a priori.

Conceptibilidade Secundária: x é secundariamente concebível (ou subjuntivamente


concebível) quando, dada uma noção substantiva de conceptibilidade, x é concebível partindo
não só do que se conhece a priori, mas também do que se conhece a posteriori.

Dadas as três dimensões, ao combiná-las, temos os oito tipos de conceptibilidade.


Antes de passarmos para a avaliação dos tipos, algumas noções usadas na exposição das
dimensões precisam ser esclarecidas. São elas, as noções de anuladores e anulação, e a noção
de imaginação modal.

A ideia de anuladores (defeaters) não é explicitada por Chalmers (2002) nesse


contexto (ou mesmo de anulação), é um termo utilizado na epistemologia contemporânea e é
tomado como pressuposto para a argumentação. Conforme Plantinga (2011, capítulo 6) nos
expõe, anuladores são crenças que, quando assumidas como verdadeiras por um sujeito,
tornam outras crenças falsas. Uma anulação, portanto, ocorre quando um sujeito assume uma
nova crença e anula uma anterior. Tome o seguinte exemplo, Douglas sabe que seu vizinho é
um torcedor fanático de um time de futebol, nesse caso o Ferroviário, e que ele tem o costume
de usar a camisa do Ferroviário durante o dia seguinte ao time ganhar uma partida. Douglas
avista seu vizinho na rua e o vê usar a camisa do Ferroviário, mas Douglas não sabe o
134

resultado do jogo da noite anterior entre Ferroviário e Ceará. Não obstante, pelo que conhece
de seu vizinho, Douglas passa a acreditar que o Ferroviário ganhou do Ceará no jogo da noite
anterior. Isso significa que Douglas formulou a seguinte crença p: o Ferroviário venceu o
Ceará no jogo de ontem. Contudo, ao chegar do trabalho a noite, Douglas vê o telejornal que
transmite os gols, os melhores momentos e o resultado do jogo anterior, com o seguinte
resultado: o Ceará venceu o Ferroviário por um placar de 1 a 0 no jogo de ontem. Nesse
momento, Douglas formula a crença ¬p, não é o caso que o Ferroviário venceu o Ceará no
jogo de ontem. Isso significa que a nova crença, ¬p, anulou a crença anterior, p, em outros
termos, a nova crença assumida como verdadeira tornou falsa a crença anterior. Isso é um
caso de anulação e ¬p foi um anulador para p. Há vários tipos de anuladores e de anulação,
mas a ideia central é essa e, além disso, essa é a ideia que precisamos para compreender o que
Chalmers diz quando fala de uma justificativa não anulável por uma melhor razão. Nesse
sentido, significa dizer que não há uma melhor razão que nos dê um anulador para a
concepção que tivemos de algo (conceptibilidade ideal). O que seja uma melhor razão,
contudo, é algo que, conforme Chalmers, deve ficar em aberto – não é necessário para a
compreensão da conceptibilidade ideal.

A imaginação modal, contudo, já é introduzida por Chalmers (2002, pp. 151-3) para a
compreensão distinta da conceptibilidade. Entende-se por imaginação modal uma imaginação
de uma configuração do mundo diferente da atual, tanto na sua visão perceptual como em sua
ontologia. É nesse sentido que se imagina um mundo de zumbis fenomênicos, um mundo
perceptualmente idêntico ao nosso, mas em que os indivíduos não possuam qualidade em suas
experiências subjetivas. Nós não temos uma imaginação perceptual disso: qual seria a
diferença de imaginar um mundo igual ao atual? Nenhuma. Por isso se diz que é uma
imaginação modal. Essa imaginação modal vai além da imaginação perceptual. Aqui temos
uma intuição parecida com os mundos possíveis epistêmicos que formulamos na seção 2.1.1
(cenários como mundos possíveis epistêmicos) do capítulo III. A diferença, contudo, é que
Chalmers inicia com a noção de imaginação e para falar de algo além da imaginação
permanece com a noção de imaginação, de forma que a concepção desses cenários seja um
ato da imaginação e, assim, a imaginação seria apenas uma parte da atividade cognitiva de
concepção. Ele o faz porque sustenta que uma imaginação modal é um ato mental distinto de
conceber (entertaining) uma proposição que descreva o que se está a imaginar modalmente73,

73
Conforme vimos na seção 1.1 (concepção e imaginação) e na seção 1.7 (conclusão: a concepção não encerra
a cognição) do capítulo III, não deveríamos confundir imaginação com concepção. Voltaremos a esse ponto na
próxima subseção.
135

pois isso não trivializa a concepção de qualquer proposição apenas pela formulação da
proposição. Falaremos mais sobre isso na próxima subseção, isso é o suficiente para expressar
os tipos de conceptibilidade a seguir.

Compreendidas essas duas noções, seguiremos para a exposição dos oito tipos de
conceptibilidade.

4.1.2.1.2 Tipos de conceptibilidade

São oito os tipos de conceptibilidade conforme essas três dimensões. Como se


seguem:

1. Conceptibilidade negativa prima facie primária: x é concebível quando, em


primeira impressão, não é excluído a priori, ou seja, quando não há uma (aparente)
contradição em x, partindo apenas de nosso conhecimento a priori. De forma curta, x é
concebível se, em primeira impressão, x não é excluído a priori. Exemplo de concepção: água
não é H20 (não há contradição estrita). Exemplo de não-concepção: água não é água.

2. Conceptibilidade negativa ideal primária: x é concebível quando, em primeira


impressão, não é excluído a priori, ou seja, quando não há uma (aparente) contradição em x, e
a justificativa para x não é anulável por uma razão melhor partindo apenas de nosso
conhecimento a priori. Exemplo de concepção: água não é H2O (considerando apenas o
conhecimento a priori, não há contradição nessa concepção). Exemplo de não-concepção:
água não é água.

3. Conceptibilidade negativa prima facie secundária: x é concebível quando, em


primeira impressão, não é excluído a priori, ou seja, não há uma (aparente) contradição em x,
isso partindo não só de nosso conhecimento a priori como também de nosso conhecimento a
posteriori. Exemplo de concepção: A Alemanhã venceu a segunda guerra mundial (isso não
contradiz nenhum conhecimento a posteriori sobre relações identitárias do mundo). Exemplo
de não-concepção: água não é H2O (uma vez que é verdadeiro, a posteriori, que água é H2O,
mantendo esse fato, não conseguimos conceber que água não seja H2O).

4. Conceptibilidade negativa ideal secundária: x é concebível quando, em primeira


impressão, não é excluído a priori, ou seja, não há uma (aparente) contradição em x, e a
justificativa para x não é anulável partindo não só de nosso conhecimento a priori como
136

também de nosso conhecimento a posteriori. Exemplo de concepção: A Alemanha venceu a


segunda guerra mundial (isso não contradiz nenhum conhecimento a posteriori sobre relações
identitárias no mundo e não temos razão melhor para pensar o contrário). Exemplo de não-
concepção: água não é H2O (uma vez que seja verdadeiro, a posteriori, que água é H2O,
mantendo esse fato, não conseguimos conceber que água não seja H2O e não temos nenhuma
razão melhor para pensar o contrário).

5. Conceptibilidade positiva prima facie primária: x é concebível quando, em primeira


impressão e partindo apenas de nosso conhecimento a priori, x é coerentemente e
modalmente imaginável. Exemplo de concepção: uma pessoa viajando numa espaçonave
numa velocidade acima da velocidade da luz (nada em nosso conhecimento a priori contradiz
isso). Exemplo de não-concepção: a falsidade do último teorema de Fermat (conceber
matemáticos fazendo tal anúncio num congresso não é o mesmo que conceber a falsidade do
teorema, mas apenas isso, conceber matemáticos fazendo um anúncio).

6. Conceptibilidade positiva ideal primária: x é concebível quando, em primeira


impressão e partindo apenas de nosso conhecimento a priori, x é coerentemente e
modalmente imaginável e, além, a justificativa para x não é anulável por uma razão melhor.
Exemplo de concepção: uma pessoa viajando numa espaçonave numa velocidade acima da
velocidade da luz (nada em nosso conhecimento a priori contradiz isso e não temos nenhuma
razão melhor para pensar o contrário). Exemplo de não-concepção: a falsidade do último
teorema de Fermat (conceber matemáticos fazendo tal anúncio num congresso não é o mesmo
que conceber a falsidade do teorema, mas apenas isso, conceber matemáticos fazendo um
anúncio; e não temos nenhuma razão melhor para pensar o contrário).

7. Conceptibilidade positiva prima facie secundária: x é concebível quando, em


primeira impressão e partindo de nosso conhecimento a priori e também a posteriori, x é
coerentemente e modalmente imaginável. Exemplo de concepção: uma viagem interestelar
numa espaçonave através de um buraco de minhoca (nada em nosso conhecimento a priori e
a posteriori contradiz isso). Exemplo de não-concepção: Hesperus não é Phosphorus (há uma
contradição quando se diz que Vênus não é Vênus).

8. Conceptibilidade positiva ideal secundária: x é concebível quando, em primeira


impressão e partindo de nosso conhecimento a priori e também a posteriori, x é
coerentemente e modalmente imaginável e, além, a justificativa de x não é anulável por uma
razão melhor. Exemplo de concepção: um mundo de zumbis fenomênicos (nenhum dos
137

nossos conhecimentos a priori ou a posteriori contradiz isso, nem temos razões melhores para
pensar o contrário). Exemplo de não-concepção: uma viagem interestelar numa espaçonave
através de um buraco de minhoca (conhecimentos a posteriori em engenharia indicam que
não temos um projeto do que seria uma espaçonave capaz de tal viagem).

Dadas essas oito formas de conceptibilidade, sem uma relação trivial com a
possibilidade, vejamos, portanto, o tipo que seja o guia para a possibilidade e livre de contra-
exemplos.

4.1.2.1.3 A conceptibilidade livre de contra-exemplos

O tipo de conceptibilidade que seja livre de contra-exemplos, conforme Chalmers


(2002, pp. 171-3), é a conceptibilidade positiva ideal primária. A tese conceptibilidade-
possibilidade é, portanto, a afirmação de que a conceptibilidade positiva ideal primária nos
dá acesso ao conhecimento da possibilidade74. As razões para cada dimensão dessa
conceptibilidade para este tipo são as que seguem.

(i) A dimensão ideal é um melhor guia que a dimensão prima facie. Há uma razão
simples para isso, a de que as coisas que concebemos prima facie em geral podem esconder
contradições as quais não percebemos, assim, uma concepção ideal é a melhor forma de
termos acesso à possibilidade. Ora, dessa forma teríamos justificativa não anulável por uma
melhor razão. Tome o exemplo de alguém que não sabe que Ricardo Reis é Fernando Pessoa.
Esta pessoa lê poemas de Ricardo Reis e também poemas de Fernando Pessoa, essa pessoa
gosta dos poemas a ponto de tê-los como preferidos, mas quando perguntada qual seu poeta
preferido, essa pessoa responde que seus poetas preferidos são Ricardo Reis e Fernando
Pessoa. Essa pessoa concebe prima facie que Fernando Pessoa não é Ricardo Reis. Com o
tempo, essa pessoa descobre que Ricardo Reis é, na verdade, um heterônimo usado por
Fernando Pessoa. Assim, essa pessoa passa a ter um anulador para sua crença antiga de que
Fernando Pessoa não é Ricardo Reis. Nós diríamos, com isso, que esta pessoa concebia a
possibilidade de Fernando Pessoa não ser Fernando Pessoa? Não. Fernando Pessoa não ser

74
Possibilidade no sentido que frisamos na primeira parte de nossa investigação, uma possibilidade metafísica
num sentido absoluto. Chalmers (2002, p. 171) afirma que essa conceptibilidade nos guia para uma possibilidade
primária. É feita, dessa forma, uma distinção entre possibilidade primária e secundária. Não assumiremos essa
distinção aqui, pois o que é dito como possibilidade secundária é o que vimos como possibilidade física em
sentido contrafactual. Portanto, pelas razões que refletimos nos capítulos I e II, a possibilidade que buscamos não
se distingue em primária e secundária.
138

Fernando Pessoa permanece intuitivamente impossível porque é uma contradição (e uma


contradição não pode ser verdadeira). Essa pessoa inicialmente concebia prima facie que
Fernando Pessoa não era Fernando Pessoa, mas idealmente não se concebe isso. Em
conclusão, a conceptibilidade prima facie não é um bom guia para a possibilidade, contudo, a
concepção ideal é um bom guia para a possibilidade.

(ii) A dimensão positiva é melhor guia que a dimensão negativa. O motivo da


dimensão positiva ser um melhor guia é porque ela esclarece uma possibilidade enquanto a
negativa nem sempre. Tome como exemplo uma conjectura matemática em que ela ou sua
negação é verdadeira, mas não temos uma prova (como a conjectura de Goldebach). Uma vez
que se a conjectura for verdadeira, os métodos a priori nos mostram que sua falsidade é
necessariamente falsa (o conhecimento a priori mostra que sua verdade é uma contradição).
Contudo, atualmente não temos como retirar (mostrar a falsidade) a priori nem a conjectura e
nem a falsidade da conjectura, se não temos como fazer isso e a dimensão negativa diz que
concebemos se não tivermos uma contradição, então isso significaria que a dimensão negativa
da conceptibilidade nos levaria a conceber uma impossibilidade75 (não seria um bom guia) –
afinal a possibilidade nesse caso não parece realmente aberta76. Por outro lado, a dimensão
positiva não nos leva a esses equívocos, uma vez que ela exige uma imaginação modal e
coerente de forma a ter em mente todos os detalhes cruciais para x para que x seja concebível
nesse sentido. Assim, conceber a verdade ou a falsidade da conjectura exigiria conceber a
demonstração. Portanto, a dimensão positiva da concepção sempre nos leva ao conhecimento
de uma possibilidade.

(iii) A dimensão primária é melhor guia que a dimensão secundária. Alguns poderiam
argumentar que esse não é o caso, que a dimensão secundária é um melhor guia porque ela
não nos leva ao equívoco de conceber que água não seja H2O, ao passo que a dimensão
primária nos leva a conceber que água não seja H2O. Uma vez que água seja H2O é
verdadeiro, e relações de identidade são necessárias, que água seja H2O é necessário e, dessa
forma, conceber que água não seja H2O nos leva a conceber uma impossibilidade, não uma

75
Veja que isso ocorre num caso de concepção prima facie negativa, um caso de concepção ideal negativa não
ocorre. Pois, nesse caso temos razões melhores para não assumir essa concepção, justamente a razão da
indeterminação do valor de verdade.
76
Chalmers sugere que a dimensão negativa é um bom guia para situações determinadas, não indeterminadas
como esse exemplo. Proponho que esta sugestão pressupõe o que se quer provar – uma petição de princípio.
Uma vez que é um método para nos levar ao conhecimento de uma possibilidade, mas pressupõe que já
tenhamos conhecimento da possibilidade (conhecimento da determinação) para que possamos conhecer a
possibilidade (ser um bom guia de conhecimento). É uma solução evidentemente ad hoc. Por isso, a dimensão
negativa é falha e não é suficientemente boa como a dimensão positiva.
139

possibilidade. Portanto, a dimensão secundária é um melhor guia e não a dimensão primária.


Há um problema nesse raciocínio, e ele pode ser compreendido quando percebemos que a
dimensão secundária, por levar em consideração nossos conhecimentos a posteriori, é uma
dimensão contrafactual. Isso significa que essa concepção nos leva a raciocínios do tipo: dado
o nosso mundo atual, o que seria possível? O mundo atual é o fixo, e a possibilidade aí é vista
como contrafactos de acordo com o mundo fixo atual. Dessa forma, água não poderia não ser
H2O, pois é uma identidade verdadeira em nosso mundo atual fixo. Considere, então, o
seguinte. Nós sabemos que se algo é o caso, então esse algo é possível (em momento algum
tivemos razões para anular isso). Nós sabemos também que é o caso que água é H2O, logo, é
possível que água seja H2O. Reconsidere agora que nosso mundo não seja o atual, mas o
mundo atual seja o mundo XYZ, nesse mundo, o que fenomenologicamente entendemos
como água (o que preenche os oceanos, mares, rios e lagos, por exemplo) nesse mundo sua
fórmula química é XYZ. Com isso, no mundo XYZ é verdadeiro que água seja XYZ, se nós
temos uma identidade verdadeira, então sabemos que ela é uma verdade necessária. Sendo
assim, não é possível que água não seja XYZ. Consequentemente, tomando o mundo XYZ
como mundo atual, alguém desse mundo chegaria à conclusão de que o mundo em que eu e
você existimos e que você está a ler esse texto agora é um mundo impossível! Alguém pode
sugerir que essa seja uma conclusão incorreta, que a pessoa deveria apenas concluir que no
nosso mundo, que é um mundo possível, não existe água. Todavia, se perguntado se é
possível que haja água em nosso mundo, essa pessoa responderá que é impossível, dado o
livro de mundo de nosso mundo, pois é impossível que água seja H2O. Dessa forma, se o
livro de mundo de nosso mundo contiver a afirmação de que água existe, este será um mundo
impossível partindo desse mundo XYZ. Mas nós sabemos que água existe em nosso mundo,
porque acreditamos ser verdadeira a identidade entre água e H2O, e, dessa forma, ora,
sabemos que somos possíveis, portanto, isso deve estar errado. O que isso nos mostra? Que
uma concepção contrafactual não nos leva à possibilidade. É um método que se seguirmos,
chagamos a conclusão de que coisas realmente possíveis (pelo princípio ab esse ad posse)
sejam impossíveis. Não é um critério coextensivo com o domínio da possibilidade. Afinal,
sabemos que é possível que água seja H2O, mas por método de concepção contrafactual
alguém pode concluir a impossibilidade disso. O método de concepção contrafactual nos faz
confundir possibilidades com impossibilidades. Isso não ocorre com a dimensão primária,
justamente porque ela não se compromete com o conhecimento a posteriori e,
consequentemente, com uma concepção contrafactual. Levando em consideração tudo o que
conhecemos de forma a priori, nada indica que não é possível que água seja XYZ, e isso está
140

de acordo com aquilo que conhecemos que preenche os oceanos e mares (em assim por
diante) ser XYZ77. Essa dimensão primária está de acordo, por exemplo, com a possibilidade
de que nada exista, afinal não é a priori que algo exista78. Isso está de acordo com as
operações que podemos fazer mentalmente através da atividade cognitiva da concepção, por
exemplo, conceber água sem ser H2O. Aliás, isso pode nos informar ainda mais sobre a
natureza da possibilidade se estiver correto. Por outro lado, afirmar que essa dimensão é
problemática apelando para as razões dos usos de linguagem e sua análise conforme Kripke
(designadores rígidos), assumindo assim um essencialismo, não é suficiente porque a
linguagem não é um dado a priori. Tratar a metafísica da modalidade pelo funcionamento de
nossa linguagem é assumir que a metafísica se resume a nossa linguagem (isso não é nada
óbvio79!). Devemos lembrar, conforme frisamos na primeira parte de nossa investigação, a
modalidade é algo do mundo além de nós também, não apenas algo nosso, ao menos é essa
nossa intenção ao falar de modalidade – não temos como assumir a concepção contrafactual
como guia para a possibilidade sem trivializar a relação concepção-possibilidade (pressupô-
la!). Em conclusão, a dimensão primária da conceptibilidade é um melhor guia à
possibilidade.

Essas são as razões que mostram que a conceptibilidade positiva ideal primária é um
bom guia para a possibilidade. Além disso, um guia sem contra-exemplos, conforme
analisamos os maiores adversários para a conceptibilidade, tais como determinados
enunciados matemáticos e identidades empíricas. Segundo esse raciocínio, parece que a
concepção nos dá a possibilidade, diferentemente do que havíamos concluído até agora. Será
então que essa visão de concepção é suficiente para se contrapor e superar as conclusões
anteriores que nos indicavam o contrário? É o que veremos na próxima subseção.

4.1.2.2 O inconcebível implica o impossível?

Alguns casos de inconceptibilidade são tratados por Chalmers (2002, pp. 186-9) e
rechaçados como exemplos de inconceptibilidade de coisas possíveis, dentre eles a razão que
nos levou à informatividade da forma da informação no âmbito fenomênico e que nos fez

77
O método de concepção contrafactual talvez seja um método útil se quisermos falar de possibilidade relativa
(tais como a física e a metafísica essencialista), mas possibilidade metafísica num sentido absoluto o qual vimos
na primeira parte de nossa investigação, não.
78
Isso está de acordo com a intuição de um conjunto vazio como para a concepção de um mundo.
79
E é provável que seja falso (dadas as nossas limitações cognitivas).
141

sustentar algo possível e inconcebível. Dessa forma, se a argumentação para rechaçar este
caso estiver correta, isso rechaçaria todas as conclusões negativas que tivemos até agora. A
defesa para que os casos dessas possibilidades não sejam inconcebíveis se sustenta na noção
de conceptibilidade ideal. Vejamos como podemos formular uma argumentação que elimine a
negação do par inconcebível-impossível.

Como vimos das conclusões da segunda parte de nossa investigação, a informatividade


da forma da informação é algo do mundo, daí é possível. Contudo, não temos acesso a muitas
informações deste tipo (não são acessíveis a nós), as quais são elementos necessários para a
formação de determinado conceito, consequentemente, não temos como conceber os
conceitos constituídos por esses formadores de conceito (não são concebíveis a nós).
Resumidamente, essas coisas são inconcebíveis a nós, embora sejam coisas possíveis.

O argumento proposto por Chalmers defende que tais coisas não são inconcebíveis.
Não são inconcebíveis porque a dimensão ideal da conceptibilidade torna tais coisas
concebíveis. Como? Porque sugere que não temos como concebê-las apenas prima facie, pois
temos as nossas limitações cognitivas. Entretanto, um agente cognoscente ideal não teria as
mesmas limitações cognitivas que nós e, portanto, conceberia. Portanto, em última instância
estas coisas possíveis são concebíveis, não inconcebíveis. Nas palavras de Chalmers (2002):

Há provavelmente muitas inconceptibilidades prima facie: uma rica fonte é


fornecida por declarações sobre propriedades fenomênicas bastante distintas das
nossas. Por exemplo, a afirmação de que existem criaturas com espaços de cores
fenomênicas de 12-dimensões não pode ser descartada a priori, mas pode estar além
de nossa capacidade conceber uma situação que verifique essa afirmação. Tal
concepção pode exigir conceitos fenomênicos (e, em última análise, experiências
fenomênicas para fundamentar esses conceitos) que simplesmente nos faltam. Se
assim o for, tal reivindicação é prima facie negativamente concebível, mas não é
prima facie positivamente concebível. Obviamente isso não é um caso de
inconceptibilidade ideal, no entanto. Já vimos que a inconceptibilidade aqui decorre
da falta de nosso repertório de conceitos fenomênicos, e essa limitação é
contingente. Se idealizamos para além dessa ausência conceitual, então a situação
em questão tornar-se-á, plausivelmente, concebível afinal de contas.
Presumivelmente há criaturas possíveis com os conceitos relevantes, e tais criaturas
não teriam dificuldade em conceber as situações em questão. (p. 186)80

80
No original: There are quite likely many prima facie inconceivabilities: a rich source is provided by statements
about phenomenal properties quite distinct from our own. For example, the claim that there are creatures with
12-dimensional phenomenal color spaces cannot be ruled out a priori, but it may be beyond our capacity to
conceive of a situation verifying this claim. Such a conception might require phenomenal concepts (and
ultimately phenomenal experiences to ground those concepts) that we simply lack. If so, such a claim is prima
facie negatively conceivable, but not prima facie positively conceivable. This is not obviously a case of ideal
inconceivability, however. We have already seen that the inconceivability here stems from a lack in our
repertoire of phenomenal concepts, and this limitation is contingent. If we idealize away from this conceptual
lack, then the situation in question will plausibly turn out to be conceivable after all. Presumably there are
possible creatures with the relevant concepts, and such creatures would have no difficulty in conceiving of the
situations in question.
142

Curiosamente, esse é o único parágrafo em que esse ponto é visto e argumentado em


Does conceivability entails possibility?. Nessa breve sugestão teríamos por resolvida a
questão. Seria tão simples assim? Isso seria o suficiente para reestabelecermos o par
inconcebível-impossível? Sugiro que não. Mesmo que Chalmers esteja correto em analisar
diversos outros aspectos das relações entre concepção e possibilidade para fazer a ponte entre
as duas noções, se este ponto não estiver correto, a ponte não é construída. Proponho que essa
base da ponte não é sólida, e isso é o suficiente para ruir a relação entre concepção e
possibilidade, por diversas razões. Considere comigo.

A primeira razão é pressupor que seja possível um agente cognitivo sem nossas
limitações e que seja capaz de conceber o que nós não concebemos. O problema aqui é que se
nós estamos querendo saber o que seja possível e avaliando se a concepção nos leva a
possibilidade, utilizar da concepção de um agente cognitivo como uma possibilidade, para
sustentar que a concepção é um guia para possibilidade, não é um argumento e sim uma
petição de princípio. Todavia, concedamos essa ideia de outro agente cognitivo que concebe e
vejamos onde chegamos.

Para a segunda razão invoco o morcego de Nagel. Sabemos que existe algo como ser
um morcego. Dessa forma, há informatividade da forma da informação captada pelo sistema
cognitivo do morcego. Agora nos perguntamos, esse morcego concebe? Esse morcego é um
exemplo de fenomenologia sem concepção. Respondermos que o morcego seria capaz de
conceber e por isso sua fenomenologia é concebível segue no mesmo raciocínio de confundir
outras atividades cognitivas com a atividade cognitiva da concepção. Vimos as razões para
não incorrer nessa confusão no capítulo III, em especial na seção 1 (sentido amplo de
concepção). Todavia, o sentido amplo se mostra como pressuposto na argumentação de
Chalmers, muito por isso se utiliza a imaginação como critério de conceptibilidade nas
dimensões positiva da conceptibilidade. Além disso, se postula a noção de “imaginação
modal” para falar de algo “além da imaginação”, mas no caso além da imaginação perceptual
– algo que simplesmente não é imaginação. Essa confusão é a mesma que nos faz reduzir a
criatividade à imaginação, quando a criatividade é um domínio maior que a imaginação81.
Uma não distinção das atividades cognitivas nos faz falar de uma atividade quando queremos
falar de outra. Isso significa que falta ao morcego, por exemplo, a capacidade cognitiva de
conceituar. Não lhe falta fenomenologia, percepção ou outras atividades, porém, falta-lhe a
capacidade linguística fundamental para a formação de conceitos, para a concepção. Isso nada

81
As criatividades matemática e musical, por exemplo, vão além da imaginação – ver Beziau (2015).
143

impede, contudo, que a imaginação seja um guia para a concepção, ou mesmo uma visão não-
uniforme como vimos na seção 2 do capítulo II. Contudo, isso não faz do morcego um agente
cognitivo que concebe. Consequentemente, como é ser um morcego permanece algo possível
e inconcebível82. De toda forma, concedamos também esse ponto. Assumamos a possibilidade
(mesmo sem saber um critério de possibilidade) de um morcego muito estranho que conceba,
concedamos que este morcego tenha algum tipo de conceito fenomênico83. Pode fazer sentido
conceitos fenomênicos para seres capazes de concepção, como nós, mas para seres sem essa
capacidade, talvez devêssemos realmente distinguir as capacidades cognitivas. Mesmo assim,
assumamos e vejamos onde podemos chegar.

Temos outras duas razões que, por mais que concedamos as duas anteriores, suspeito
que essas últimas sejam anuladoras para a resposta da conceptibilidade ideal.

A terceira razão é a simples razão de que quando perguntamos se a concepção é um


guia para a possibilidade, perguntamos se a nossa concepção nos leva a ter conhecimento
sobre a modalidade. Não estamos querendo saber se um agente cognitivo sem as mesmas
limitações nossas concebe alguma coisa e se a concepção dele lhe leva à possibilidade. Não
estamos querendo saber se a concepção de galinhas faz com que elas tenham conhecimento
sobre a modalidade. O que queremos saber, afinal de contas, é se a nossa atividade cognitiva
de concepção é suficiente para nos dar conhecimento sobre o que estamos chamando de
modalidade e, assim, refletir e concluir coisas sobre o mundo ao nosso redor. Se um
alienígena com uma capacidade cognitiva superior à nossa concebe de forma perfeita a
modalidade, o que isso diz sobre a nossa capacidade cognitiva de concepção para o nosso
conhecimento sobre a modalidade? Em que medida isso sugere que a capacidade cognitiva de
concepção dele seja como a nossa para que nós, a partir da confiabilidade da concepção dele,
possamos confiar na nossa concepção para conhecer a modalidade? Não quero saber se o que
é inconcebível para ele leva ele à conclusão de que algo é impossível. Queremos saber se algo
que é inconcebível para nós implica que esse algo é impossível. Porque é com a nossa
82
Quando sustento que somos fechados para o conceito de consciência de um morcego, estou a dizer que somos
fechados para o conceito de como é a consciência de um morcego. Afinal, conseguimos compreender o que seja
um morcego que tenha consciência; por outro lado, não compreendemos como seja essa consciência. De forma
clara (em contramão a muitos), sugiro que há conceitos virtuais os quais somos fechados cognitivamente porque
somos fechados cognitivamente a sua fundamentação (a experiência fenomênica que lhe fundamenta).
Poeticamente, se um morcego falasse como é ser um morcego, não compreenderíamos. Essa inconceptibilidade
para o morcego é o caso em virtude de uma inconceptibilidade mais fundamental, a inconceptibilidade da
alteridade da subjetividade a qual sugiro na ideia de caráter episódico da consciência e do argumento da
incomensurabilidade dos sujeitos ideiais. Esta é uma inconceptibilidade a qual sequer temos conceitos,
diferentemente da inconceptibilidade a qual se segue da falha de construir conceitos estruturados (como a falha
em conceber um SOLTEIRO-CASADO).
83
Ver NIDA-RÜMELIN, 1998.
144

conceptibilidade que nós fazemos juízos e conclusões drásticas sobre a metafísica, a


ontologia, a ética, a política, a ciência, etc. Não tomamos conclusões metafísicas com base na
modalidade com o que outro agente cognitivo concebe, mas com o que nós concebemos ou
não concebemos. O método de concepção que nós utilizamos, de acordo com nossas
limitações cognitivas de concepção, nos diz o que é possível, o que é impossível e o que é
necessário? Esse é o ponto! Não é um problema para Deus saber se a concepção dele lhe diz o
que é possível ou não; é um problema para nós justamente porque não somos Deus! Para ele
não há problema, para nós sim; então, qual é a resolução do problema para nós? A
conceptibilidade ideal simplesmente não resolve o nosso problema, ela resolve o de Deus84.
Além disso tudo, ainda temos uma intuição mais forte que sustenta a negação do par
inconcebível-impossível. Essa última razão se expressa no que chamo de argumento da
incomensurabilidade dos sujeitos ideais, como se segue.

Considere que do nosso ponto de vista enquanto agentes cognitivos, há


informatividade da forma da informação para outros agentes cognitivos as quais não são
acessíveis a nós, por isso, elas são inconcebíveis para nosso ponto de vista. Contudo, há outro
agente cognitivo para o qual essa informatividade é acessível e, por isso concebível. Porém,
esse agente cognitivo é um sistema limitado (por ser um tipo de indivíduo ou sistema de
cognição), embora do ponto de vista dele essa informatividade é acessível, a informatividade
do nosso ponto de vista não é acessível a ele, e, portanto, é inconcebível para ele. Entretanto,
há um terceiro agente cognitivo superior ao nosso e a esse segundo e acessa uma quantidade
de informatividade da forma da informação ainda maior que a nossa e do segundo, mas por
ser um sistema cognitivo num ponto de vista, novamente não acessa a informatividade da
forma da informação dos outros pontos de vista. E assim por diante. Para cada sistema
cognitivo, por ser um sistema limitado em si mesmo (ser um tipo de indivíduo), é
inconcebível a ele a informatividade da forma da informação de um outro sistema cognitivo
(de um outro ponto de vista). Para cada sujeito ideal que concebe, há algo possível e
inconcebível. Os sujeitos ideais são incomensuráveis pela própria natureza de um ponto de
vista e, por isso, nenhuma atividade conceptiva de um sujeito ideal concebe a informatividade
da forma da informação de outro sujeito ideal. Portanto, de qualquer ponto de vista que se

84
Pode-se argumentar que talvez conceptibilidade ideal não seja sinônimo de conceptibilidade ilimitada, e sim
entendida como conceptibilidade humana ideal, a capacidade de concepção mais desenvolvida que um homem
pode ter. Devo lembrar, contudo, que Chalmers utiliza essa noção de conceptibilidade ideal para responder o
problema dos qualia como contra-exemplo, coisas possíveis e inconcebíveis. Ele afirma que um sujeito ideal de
concepção poderia conceber tais qualia os quais nós não. Isso significa que essa noção está para além da
conceptibilidade humana ideal apenas, está também para além do humano.
145

parta, sempre há algo possível e inconcebível. Para que o inconcebível coincidisse com o
impossível, deveríamos partir de um ponto de vista de lugar nenhum.

Isso está mais arraigado e se torna mais evidente através de uma ideia que defendi de
forma mais prolongada em outro foro de discussão (CAETANO, 2015), por isso falarei
brevemente aqui. É a ideia do caráter episódico da consciência85 como característica
fundamental para o conceito de qualia.

Para evidenciar a intuição do caráter episódico da consciência, peço que o leitor se


lembre do perfume de alguém marcante em sua vida. Agora, peço que vá e cheire o perfume.
Ou que se lembre do beijo da pessoa amada, e depois que beije a pessoa amada. Em qualquer
um desses casos e em casos análogos, há uma diferença entre a lembrança de um estado
qualitativo de experiência e a ocorrência (experiência) desse estado qualitativo. Quero
enfatizar com isso que lembrar de estados qualitativos não é ter esses estados qualitativos
ocorrentemente. Não quero dizer com isso que não há estado qualitativo na lembrança, mas
que há outros estados qualitativos na lembrança. Estados qualitativos não estão no passado,
são características apenas da ocorrência da experiência. Isso significa que não temos como
comparar qualia passados (uma contradição em termos) com qualia atuais (uma redundância),
porque uma lembrança nunca tem os mesmos, mas outros estados qualitativos. Isso se dá
porque o caráter qualitativo da experiência é um caráter indexicado no instante de tempo
presente – por isso um episódio. Não há, com isso, comparação intrapessoal entre episódios
conscientes em tempos distintos (o que há é comparação entre episódio de experiência e
episódio de lembrança/juízo que é outra experiência). É a episódica a característica
fundamental dos qualia porque é ela que sustenta sua intrinsicalidade, sua privacidade, sua
inefabilidade e sua apreensão direta (CAETANO, 2015). Esse é o caráter episódico da
consciência86.

Que intuição podemos tirar desse caráter episódico? A intuição de que ele é um caráter
informativo para o sistema cognitivo que o exibe – uma informatividade da forma da
informação. Essa informatividade, portanto, se exibe de forma episódica. Essa informação
está, a todo instante, tornando-se inacessível a sistemas cognitivos e, consequentemente,
inconcebíveis. Deste modo, podemos ajustar o argumento nos seguintes passos.

85
No outro debate, refiro-me por atualização ocorrente ou instanciação (CAETANO, 2015, pp. 48-63).
86
Para mais detalhes, ver nota anterior.
146

Argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais:

i) P1: Se um episódio consciente de um sistema cognitivo é um episódio do


próprio sistema, então um episódio consciente de um sistema cognitivo não é
um episódio de outro sistema cognitivo.
ii) P2: Se um episódio consciente de um sistema cognitivo não é um episódio de
outro sistema cognitivo, então sempre há algum episódio cognitivo além da
concepção de sistemas cognitivos.
iii) P3: Um sistema cognitivo ideal é ainda um sistema cognitivo.
iv) P4: Um episódio consciente de um sistema cognitivo é um episódio do próprio
sistema.
v) Conclusão 1 (de P4 e P1): Um episódio consciente de um sistema cognitivo
não é um episódio de outro sistema cognitivo.
vi) Conclusão 2 (de P2 e C1): Sempre há episódios cognitivos além da concepção
de sistemas cognitivos.
vii) Conclusão 3 (de P3 e C2): Sempre há episódios cognitivos além da concepção
de um sistema cognitivo ideal.
Conforme o argumento se coloca, podemos esclarecer algumas coisas. Se quando se
fala que para um sujeito ideal (com uma conceptibilidade ideal) que, nesse ponto de vista, não
há nada possível que seja inconcebível, isso significa dizer que este sujeito ideal não é um
sistema cognitivo. Pois se ele for um sistema cognitivo ideal, não chegaríamos a essa
conclusão. Por outro lado, se ele não é um sistema cognitivo, o que seria um sujeito ideal?
Além disso, se não há nada possível que seja inconcebível para um sujeito ideal, mas esse
sujeito ideal não é um sistema cognitivo, isso nos diz realmente alguma coisa sobre a
capacidade cognitiva de concepção para sistemas cognitivos? Suspeito que a resposta para a
segunda questão é que não nos diz nada, e a resposta para a primeira questão é que um sujeito
ideal simplemente não é um sujeito. A resposta da primeira questão, por fim, parece nos
sugerir mais indícios para a resposta da segunda questão.

Finalmente, mesmo que aplicássemos a própria noção de conceptibilidade ideal para a


conceptibilidade ideal, ela não seria uma concepção pelo próprio método, pois as razões dadas
seriam anuladoras da conceptibilidade ideal. Portanto, se a conceptibilidade ideal estiver
correta, então ela é impossível, afinal é inconcebível.

Em conclusão, um sistema ideal não nos ajuda em nada a resolver a questão de se de


algo inconcebível a nós, implicamos que esse algo seja impossível. Se não conseguimos isso,
147

a negação do par inconcebível-impossível se mantém. Mantendo-se essa negação, mantemos a


não coextensão dos domínios e, com efeito, o diagrama CP3 é o sustentável. Com isso
respondemos o problema central de nossa investigação: a concepção não é a resposta para o
critério de possibilidade. Em forma direta, a concepção não é guia para a possibilidade.

Uma objeção que surge é a de que essa argumentação não é suficiente porque a tese
conceptibilidade-possibilidade proposta por Chalmers utiliza-se apenas de conhecimentos a
priori (dimensão primária), por conta disso ela afirma que uma parte muito pequena da
concepção é guia para a possibilidade. Devo lembrar que os conhecimentos a priori se pautam
nas leis lógicas, em um sistema lógico, que por sua vez se sustentam na ideia de consistência.
Isso também está em jogo na argumentação, pois nossos conhecimentos a priori, quando
utilizados para critério de possibilidade, pressupõem que do inconcebível chegamos ao
impossível, isso é justamente o que está em jogo e o que nós perdemos com a presente
argumentação (perdemos muito mais aliás) – como vimos na seção 1.2.3, Surrealismo
filosófico: o impossível é concebível, no presente capítulo. A lógica da linguagem,
fundamentada por conceitos, não é suficiente para sustentar teses sobre a metafísica da
modalidade, conseguintemente, teses metafísicas em última análise de natureza
independentemente do sujeito da lógica dessa linguagem. O nosso conhecimento a priori
passa a não ser confiável por não ter uma fundamentação suficiente para utilizarmos como
critério da modalidade, não é justificável dada a argumentação que proponho. Deveria ser
explicado como a alteridade da subjetividade não é um contra-exemplo para a tese da
conceptibilidade-possibilidade sem incorrer em petição de princípio e, assim, demonstrar
como o domínio da concepção é um critério coextensivo ao domínio da possibilidade
abrangendo a alteridade da subjetividade – isto é, demonstrar como conceber, capturar em
conceitos, como é, para uma subjetividade, outra subjetividade alternativa.

Com tais conclusões em mãos, no nosso próximo e último capítulo, veremos algumas
consequências das conclusões desse debate e uma aplicação dos resultados em um argumento
de conceptibilidade, como se segue.
148

4.2 Consequências filosóficas

Se tudo o que foi dito até aqui fizer sentido e estiver correto, então não estabelecemos
a coextensionalidade entre os domínios da concepção e da possibilidade e sim a
independência relacionada (diagrama CP3). Logo, a conceptibilidade não é critério de
possibilidade. Quais são as consequências filosóficas dessa resposta? O objetivo desse
capítulo é refletir sobre tais consequências. Faremos isso em dois momentos. Num primeiro
consideraremos algumas consequências relevantes e insights dentro do debate mais amplo do
problema do critério de possibilidade; num segundo momento, veremos uma aplicação dos
resultados que tivemos ao avaliar um argumento de conceptibilidade (o argumento dos
zumbis).

Antes da avaliação do argumento dos zumbis, comecemos pelas considerações


relevantes.

4.2.1 Considerações relevantes.

Seguem-se algumas considerações importantes num debate mais amplo sobre o


problema do critério de possibilidade, e para outras considerações filosóficas em geral.

(i) Um critério de domínio coextensional: a maior razão para percebermos que a


concepção não nos guia para o conhecimento da modalidade é o fato de a concepção e a
possibilidade terem domínios não-coextensionais. Isso nos indica que para encontrarmos uma
boa resposta para o problema do critério de possibilidade, devemos encontrar uma resposta
que tenha um domínio coextensional ao da possibilidade.

A busca de um domínio coextensional parece problemática em primeiro momento,


afinal para sabermos que temos domínios coextensionais, devemos primeiro saber quais os
elementos do domínio da possibilidade. Ora, não sabemos inicialmente o critério de
possibilidade, com isso não sabemos os elementos do domínio, logo, não temos como saber se
há algum domínio coextensional.

Há um problema no raciocínio do parágrafo anterior, pois temos razões para saber pelo
menos um elemento do domínio da possibilidade. Este elemento é o elemento expresso pelo
149

princípio ab esse ad posse, como frisamos na introdução. Esse é justamente o elemento que
não nos deixou concluir um diagrama CP4, e sim o CP3. Pois, mesmo num surrealismo
filosófico, há pelo menos um grupo de elementos que são concebíveis e possíveis, os próprios
elementos enquanto entidades conceptuais são entidades possíveis. É a mesma razão
cartesiana: por mais que empreendamos um ceticismo hiperbólico, ainda sabemos alguma
coisa do mundo, que duvidamos enquanto duvidamos. Se admitimos as possibilidades do
senso comum que são guiadas por esse princípio, então temos um parâmetro de como avaliar
se outro domínio é coextensional a esse ou não. Se um domínio não é coextensional a
possibilidades advindas do princípio ab esse ad posse, então certamente não é critério de
possibilidade. Como por exemplo é o caso da concepção, uma vez que não é coextensional a
elementos que são o caso, e por isso são possíveis.

(ii) Visões sobre uniformidade e a cognoscibilidade como critério: o resultado de a


concepção não ser critério de possibilidade nos diz algo sobre a visão uniforme do critério de
possibilidade, ao passo que nos sugere algo numa visão não-uniforme.

Como vimos anteriormente (seção 2, capítulo II), a visão uniforme é a que sustenta
que apenas uma das respostas ao problema do critério de possibilidade é a correta, e as outras
que nos dão conhecimento modal são deriváveis dessa e, as que não são deriváveis não dão
conhecimento modal. Com isso, a concepção não ser a resposta para o problema nos diz algo
sobre a visão uniforme: se a visão uniforme estiver correta, então a via fundamental para o
conhecimento modal é outra que não a concepção. O que isso nos diz sobre a concepção? Se
houver outra via fundamental, então a concepção não é derivável dela, afinal ela não nos dá,
por si mesma, conhecimento modal.

Já para a visão não-uniforme (seção 2, capítulo II), a concepção não sendo critério de
possibilidade nos sugere alguma coisa. Uma vez que a visão não-uniforme assume que uma
pessoa adquire conhecimento modal de mais de uma forma, em que talvez todas as formas
nos levem ao conhecimento modal ou se complementem, então, de alguma forma, a
concepção pode ser corrigida para uma boa concepção de possibilidade e uma má concepção
de possibilidade – a dependender de qual a outra via fundamental nos dá conhecimento
modal. Isso pode nos sugerir que a cognoscibilidade é o critério de possibilidade87. Com isso,
as diversas atividades cognitivas em resposta ao problema corrigiriam umas as outras
(teríamos uma Possibilidade Metafísica como Possibilidade Cognitiva). Não estou confiante

87
Essa foi uma sugestão do Prof. Dr. Cícero A. C. Barroso em nossas conversas filosóficas de orientação.
150

que essa visão nos dê conhecimento modal numa metafísica tradicional (dizer algo sobre a
natureza última do mundo), afinal, em algum momento ela terá de lidar com o problema do
fechamento cognitivo para a informatividade da forma da informação (isso indica que o
domínio do cognoscível não é coextensivo ao domínio da possibilidade). Talvez a resposta da
dedução seja um método para a possibilidade, afinal nós deduzimos (mesmo sem conceber) a
existência (com isso a possibilidade) da informatividade da forma da informação, embora não
sua característica “essencial”, o como da forma. De qualquer modo, isso é apenas uma
sugestão (a qual estou incerto), deve-se à dedução uma longa reflexão sobre sua natureza da
mesma forma que fizemos quanto a concepção – o que pode invalidar esse insight. De todo
modo, penso que uma ideia diferente de possibilidade cognitiva seja útil caso a
cognoscibilidade não seja critério, desenvolverei isso mais adiante na consideração sobre o
surrealismo filosófico.

(iii) Um problema para a tese da necessidade da tese da expressabilidade do mundo:


Alguns pensadores sugerem que quando falamos do mundo, falamos do mundo como ele
realmente é, com isso temos uma forma de realismo epistêmico (PUNTEL, 2008;
OLIVEIRA, 2014, pp. 183-251). Uma das razões é porque o mundo é expressável em
linguagem, com efeito, em conceitos, além, é de modo necessário. Se isso é o caso, então
também vale para o conhecimento da modalidade do mundo. Contudo, como vimos, nossa
concepção não é suficiente para isso e é bem provável que nossa cognição também não. Por
conseguinte, temos um problema para esse tipo de realismo, ou seja, há um problema em
dizer que quando falamos do mundo, então falamos do mundo como ele realmente é.

Se o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais estiver correto, então para


qualquer sistema cognitivo do mundo, o mundo não lhe é concebível, consequentemente, não
lhe é expressável em sua linguagem. Novamente, se o mundo é expressável para Deus (sendo
Deus uma hipótese controversa), isso não diz nada sobre se é expressável para nós88. Isso
implica que não podemos falar nada do mundo? Não, podemos falar de uma parte do mundo,
o mundo-para-nós. Falar do mundo-para-nós não implica falar do mundo-em-si-mesmo. Nos
termos de Kant, resta-nos fazer ciência dos fenômenos, e isso não implica fazer ciência do
nômeno, contudo, é o suficiente para nós.

(iv) A metafísica no surrealismo filosófico: um dos resultados que tivemos é que, se o


conhecimento modal depender da concepção como critério de possibilidade, o surrealismo

88
Mesmo que se apele para a noção de senso divinitatis (sermos criados a sua semelhança), ainda temos
limitações que Deus não tem – apenas a onisciência faria o mundo ser expressável para um sistema cognitivo.
151

filosófico é onde chegamos. Contudo, se a modalidade for cognoscível, se a cognoscibilidade


for critério de possibilidade, então não somos levados ao surrealismo filosófico. Conquanto, a
razão que nos leva a rechaçar a concepção como resposta ao problema do critério de
possibilidade, também nos leva a uma forte suspeita a respeito de todas as outras respostas.
Deste modo, uma grande suspeita sobre a cognoscibilidade como critério de possibilidade.
Consequentemente, a opção do surrealismo filosófico é uma que devemos ponderar,
principalmente sobre o que seja uma metafísica de acordo com o surrealismo filosófico.

A conclusão prima facie de muitos é que simplesmente a metafísica se mostra algo


impossível. Penso que isso não é o caso. Afinal, é o próprio surrealismo filosófico uma
posição metafísica na medida em que afirma que o mundo, sem identidade em si, é colapsado
por nossa categoria cognitiva de identidade. Uma metafísica no surrealismo filosófico seria
uma metafísica que lidasse com algo como uma sobreposição de estados (ilimitada talvez)
colapsada de diferentes formas por diferentes tipos de agentes cognitivos. Em todo caso, uma
metafísica aqui dependeria de como compreenderíamos a modalidade. É justamente nesse
ponto que imagino que uma ideia de possibilidade cognitiva (modalidade cognitiva) faça
sentido de forma alternativa – operacionalizada aos fenômenos. Uma vez que teríamos de
fazer uma ontologia fenomenológica de um lado, e uma metafísica surrealista de outro. Isso é
apenas um esboço, nada muito propositivo, apenas para sabermos que podemos vislumbrar
algo. E nada impede que isso não seja uma metafísica-para-nós89, de qualquer forma, se
assim for, dado o surrealismo filosófico, é o melhor que poderíamos fazer (e o suficiente).

(v) Argumentos modais via concepção: uma vez que a concepção não é critério de
possibilidade, e se ainda não temos outro critério sólido, então todos os argumentos modais
via concepção perdem sua força e se tornam inconclusivos? Se não temos uma posição
surrealista solidamente estabelecida, penso que a resposta a essa questão seja não.

Os argumentos modais via concepção que respeitem o princípio ab esse ad posse


ainda mantém sua força e suas conclusões. Se ainda não estabelecemos, de toda maneira, que
somos fechados cognitivamente ao conhecimento modal, os argumentos que seguem o
princípio ainda são bons argumentos. Afinal de contas, é o princípio ab esse ad posse que nos
dá os elementos do domínio da possibilidade para que tenhamos parâmetros de busca por uma
coextensionalidade para um critério. No máximo eles possam sofrer suspeitas, assim como as
outras respostas ao problema do critério de possibilidade sofram. Na contramão dessa

89
E se dizer isso não for redundante.
152

percepção, estão os argumentos modais via concepção que não sugerem possibilidades
sustentadas por esse princípio. Esses certamente perdem sua força e suas conclusões.
Veremos um exemplo na próxima seção.

Em todo caso, argumentos modais só não nos dariam mais nenhum resultado
metafísico tradicional se conclusivamente formos cognitivamente fechados ao conhecimento
modal.

(vi) Abertura cognitiva como condição necessária para a resposta da concepção: é


determinado fechamento cognitivo que elimina a concepção como resposta ao problema do
critério de possibilidade. Portanto, para alguém que tenha a intenção de argumentar que a
concepção é o critério de possibilidade, então deverá antes demonstrar a nossa abertura
cognitiva total enquanto sistemas cognitivos. Em outras palavras, a abertura cognitiva total é
condição necessária para a concepção como via para o conhecimento da modalidade.

Vejamos resumidamente: se assumimos o fechamento cognitivo, segue-se que o


inconcebível não implica o impossível. Se assumimos que o inconcebível não implica o
impossível, segue-se que o concebível não implica o possível. Se o inconcebível não implica
o impossível e o concebível não implica o possível, conclui-se que a concepção não implica a
possibilidade. Dessa forma, alguém que defenda que a concepção é critério de possibilidade
deve, antes, demonstrar que somos abertos cognitivamente. Como corolário, argumentos de
conceptibilidade, os quais possuem uma premissa implícita de que conceber algo é conhecer
uma possibilidade, não podem estabelecer conclusões metafísicas, apenas epistemológicas.
Novamente, para estabelecer conclusões metafísicas de argumentos do tipo, é preciso
demonstrar a coextensão dos domínios da concepção e da possibilidade, assim, demonstrar a
nossa abertura cognitiva de uma forma que os limites do mundo sejam os limites da mente.

Dizer que a abertura cognitiva é condição necessária para a resposta da concepção não
significa dizer que se formos abertos cognitivamente então a resposta da concepção é a
resposta correta. Ora, para tanto a abertura cognitiva deveria ser condição suficiente para a
resposta da concepção. E isso não é óbvio. Mesmo que se demonstre que somos abertos
cognitivamente, ainda precisaríamos de uma justificativa a mais para estabelecermos a
concepção como resposta ao problema do critério de possibilidade.

(vii) Semântica dos mundos concebíveis: a semântica dos mundos possíveis tem de
forma basilar a intuição de que a concepção implica possibilidade. É assim que mundos
possíveis são construídos. Mesmo que se justifique que um mundo possível é expresso por um
153

livro de mundo como vimos anteriormente, e o critério final para sua possibilidade seja uma
contradição, de toda forma a descrição desse mundo é uma aplicação de conceitos. Isso se
segue da forma como vimos na seção 2.1.1 (cenários como mundos possíveis epistêmicos).
Em conclusão, a semântica dos mundos possíveis é, antes, apenas semântica dos mundos
concebíveis.

Todos os resultados de sua aplicação não nos dão resultados metafísicos, mas
epistemológicos apenas. Isso se dá porque a semântica dos mundos possíveis não versa sobre
a modalidade metafísica e é um equívoco utiliza-la como critério para a modalidade
metafísica, afinal, ela fala sobre o domínio da concepção, não sobre o domínio da metafísica.
Definir o possível e o necessário em termos de mundos possíveis é definir o possível e o
necessário em termos de concepção. Com efeito, o possível e o necessário definidos pela
semântica dos mundos possíveis são modalidades epistêmicas apenas. Argumentos que
utilizem mundos possíveis só nos fornecem justificadamente conclusões epistêmicas, não
metafísicas.

(viii) Paradoxo da Pessoalidade de Deus: se o argumento da incomensurabilidade dos


sujeitos ideais estiver correto, então temos um problema para a ideia de um Deus Ilimitado
como Pessoa que é sustentada pela metafísica de algumas religiões (por exemplo,
cristianismo). Desde que na ideia de Pessoa esteja incluída a ideia de sujeito, claro. Vejamos.

Se Deus é Pessoa, então Deus é sujeito (um ponto de vista). Se Deus é sujeito, então
Deus é limitado (via argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideais). Ora, mas Deus
não pode ser limitado, caso contrário não seria Deus. Se Deus é ilimitado (uma vez que é
onisciente), então Deus não é um ponto de vista. Se Deus não é um ponto de vista, então Deus
não é um sujeito. Ora, mas se Deus não é um sujeito, então Deus não é uma Pessoa! Em
conclusão, se é verdadeiro que Deus é ilimitado (onisciente), é falso que Deus é uma Pessoa;
se é verdadeiro que Deus é uma Pessoa, é falso que Deus é ilimitado (onisciente). Deus
ilimitado e pessoal é um paradoxo!

Há duas formas de ver isso. É um paradoxo se assumirmos Deus como Pessoa e


Ilimitado (onisciente). Por outro lado, podemos ver a situação como o dilema da pessoalidade
de Deus. Ou assume-se que a divindade é pessoal, mas se derroga que a divindade seja
ilimitada (a exemplo dos politeísmos pagãos). Ou assume-se que Deus é ilimitado, mas se
derroga a pessoalidade Dele. De qualquer modo, isso só é um problema para algumas
154

metafísicas religiosas, como vimos, o paganismo não tem problema algum com isso (o que
pode ser uma razão para sua verdade, ao invés de posições cristãs).

De todo modo, alguém pode eliminar o paradoxo assumindo que ser pessoa não
implica ser sujeito. É um caminho, embora não seja óbvio. A ideia de um Deus pessoal é a
ideia de que Deus tem uma personalidade. Isso significa ter vontades, emoções, intenções,
etc., isso significa ter algo que seja como sentir essas coisas. Todas essas características
exigem um como senti-las e, portanto, há o que seja um ponto de vista de senti-las. Esse
ponto de vista é, nada além, que um sujeito. Dizer que ser pessoa não implica ser sujeito
significa dizer que algo tem vontades, emoções, intenções, mas que não haja algo que seja
como sentir essas coisas ou como ser esse algo (é afirmar que Deus é um zumbi
fenomênico?!). Penso que esse seja um caminho problemático, e suspeito que seja infrutífero.
Dessa forma, imagino que alguém que queira manter a pessoalidade para um Deus ilimitado,
deveria mostrar que o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideias é incorreto. Pois,
se o argumento estiver correto, é um anulador de refutação (e racionalidade)90 para a ideia de
um Deus pessoal.

De qualquer forma, há muito o que ser considerado nessa questão. Contudo, essa é
uma consequência filosófica importante e mostra um problema para uma longa tradição
metafísica cristã.

(ix) A metafísica de objetos contraditórios e objetos contrários: se a modalidade for


incognoscível e formos levados ao surrealismo filosófico, então estamos diante da
possibilidade (e existência) de objetos contraditórios e contrários. Essa é certamente a
consideração mais inquietante. Poderíamos fazer metafísica e manter a racionalidade?
Suspeito que nesse caso precisemos nos guiar por racionalidades alternativas as da lógica
clássica se quisermos fazer o mínimo. Nesse sentido, talvez tenhamos uma metafísica mais
próxima dos resultados cada vez mais profundos que a física propõe numa teoria quântica.
Com isso, precisaríamos de uma lógica não-reflexiva não apenas para partículas quânticas,
mas para a fundamentação de uma metafísica. Se fosse uma aposta de loteria, apostaria que
uma metafísica da modalidade, dado o surrealismo filosófico, se sustentaria numa lógica não-
reflexiva.

De qualquer modo, uma metafísica não-reflexiva para o surrealismo filosófico seria


um problema para a nossa própria linguagem na formulação de uma teoria filosófica. Como

90
Ver em PLANTINGA (2011), Capítulo 6 – Anuladores.
155

podemos ver na própria dificuldade em dar sentido e sustentar uma semântica de uma lógica
não-reflexiva:

A principal dificuldade para desenvolver uma lógica não-reflexiva emerge do fato de


que a identidade é um componente fundamental da linguagem que falamos. A lógica
clássica, a lógica intuicionista e a lógica paraconsistente, como praticamente
qualquer lógica, têm uma semântica intuitiva que pode ser dada em uma linguagem
comum. Isso ajuda a conectar essas lógicas à linguagem que utilizamos. No entanto,
dado que em lógicas não-reflexivas o princípio de identidade em geral não se
sustenta, essas lógicas destroem recursos expressivos naturais da linguagem comum.
Por exemplo, se somos incapazes de falar sobre a identidade de certas coisas,
também não podemos distingui-las de outras coisas. Então torna-se incerto [...]
como podemos dar sentido a quantificação: como podemos quantificar essas em vez
de aquelas coisas. Mesmo ao dizer o que acabamos de dizer, pressupomos a
identidade dos objetos sobre os quais estávamos falando. Mas isso é precisamente o
que não pode ser feito em uma lógica não-reflexiva. Como resultado [...] parecemos
incapazes de oferecer uma semântica razoável para lógicas não-reflexivas de um tipo
informal e intuitivo. (DA COSTA, BUENO, 2012, p.1)

Tal lógica tem por principal motivação as bases da física quântica em que, de acordo
com determinada interpretação, não faz sentido atribuir identidade a determinados objetos.
Todavia, uma semântica de uma lógia não-reflexiva precisaria de um ponto em comum, mas
“O fato da identidade de certos objetos ser questionada em uma lógica não-reflexiva mina
qualquer terreno comum” (DA COSTA, BUENO, 2012, p. 2). Todavia, há um considerado
avanço em lógicas desse tipo para tratar de determinados objetos não-identitários relacionados
a objetos identitários. Por isso, mesmo sendo bastante desafiadoras, as lógicas não-reflexivas
restringem certos aspectos, não todos:

As lógicas não-reflexivas são ao mesmo tempo desafiadoras e significativas. Eles


desafiam hipóteses centrais sobre identidade na teorização lógica e na linguagem
comum, restringindo certas formulações do princípio de identidade. [...] E também
levantam questões filosóficas complexas sobre a possibilidade de quantificar objetos
sem pressupor sua identidade. (DA COSTA, BUENO, 2012, p. 7)

No entanto, uma questão que surge é: como tratar o caso em que todos os objetos na
realidade sejam não-identitários? Suspeito que o caminho seja na relação com uma ontologia
fenomenológica a qual utilizamos a identidade como categoria cognitiva colapsadora.
Intuições como as utilizadas em física quântica. Consequentemente, suspeito que uma
metafísica do surrealismo filosófico bem formulada seria uma metafísica que fundamentaria a
mecânica quântica (e talvez mais!). Em todo caso, essas são suspeitas e especulações que
penso serem promissoras para uma investigação filosófica mais aprofundada noutro foro. Por
ora, terminamos com as considerações e passamos para uma aplicação dos nossos resultados
na seção seguinte.
156

4.2.2 Aplicação: o argumento dos zumbis

Começamos a nossa investigação sobre a possibilidade com uma motivação: essas


concepções estranhas que alguns filósofos usam em seus argumentos nos dizem realmente
alguma coisa sobre a natureza do mundo? Daí indagamos se a concepção de algo seria
conhecer a possibilidade de algo e, com isso, saber alguma coisa sobre a natureza de alguma
coisa. Após toda a nossa reflexão e as conclusões que chegamos, voltemo-nos para esses
argumentos que nos motivaram. Aqui escolhemos avaliar um especificamente, o famoso
argumento dos zumbis.

Em The Conscious Mind (1997), Chalmers sugere o que chamaríamos de uma


possibilidade extraordinária através de uma concepção e, daí, conclui que um enunciado sobre
a natureza metafísica de nosso mundo é falso. Essa possibilidade era a possibilidade de um
mundo onde as pessoas não tivessem uma fenomenologia na consciência, em outras palavras,
que não tivessem uma consciência fenomênica. Esses seriam os zumbis fenomênicos. Esse
mundo seria um mundo em que teríamos nossos gêmeos zumbis. O mundo seria de todo
modo igual ao nosso, todos os detalhes físicos seriam os mesmos, porém, sem o fato positivo
da consciência fenomênica. Disso, concluiríamos que o materialismo, tese que diz que tudo
no mundo é físico, seria falso. O argumento estrito é o que se segue em quatro passos:

“(...) 1) Em nosso mundo, há experiências conscientes.


2) Há um mundo logicamente possível e fisicamente idêntico ao nosso, no qual os
fatos positivos sobre a consciência em nosso mundo não ocorrem.
3) Há fatos sobre a consciência que são fatos adicionais sobre o nosso mundo, fatos
além e acima dos fatos físicos.
4) Portanto o materialismo é falso. (...)” (CHALMERS, 1997, p. 109, tradução de
Cícero A. C. Barroso91)

Dado o argumento, então que apliquemos os resultados de nossa reflexão numa


avaliação da correção do argumento.

O primeiro ponto é o de que o argumento original se trata de uma possibilidade lógica.


Inicialmente vimos que para falarmos de possibilidade metafísica no sentido absoluto não
seria especificamente uma possibilidade lógica, posto que esta é uma possibilidade relativa.
De qualquer modo, o que se está a sugerir aqui é uma possibilidade que não tem nenhuma
contradição em si. Isto é, o mundo zumbi é descrito de forma que no livro do mundo zumbi
não há nenhuma contradição. Concedamos, então, que isto seja uma concepção como vimos
91
Tradução para um dos encontros do grupo de pesquisa “Pensamento, Cognição e Linguagem” da UFC.
157

na seção 2.3.2 (contradição conceptual como critério de concepção) do capítulo III. Isso
significa conceder que no livro do mundo zumbi não há nenhuma contradição estrita do tipo
p^¬p, mas também não há nenhuma contradição conceptual do tipo SOLTEIRO-CASADO.
Essa estranha sugestão dos zumbis passa no critério de concepção e assim é um conceber um
mundo zumbi. Concedemos a garantia de que um mundo zumbi é um mundo concebível, pelo
menos.

O problema do argumento é que há uma premissa implícita, a premissa que diz que um
mundo concebível é um mundo possível e que, por isso, um mundo zumbi é um mundo
possível. Ora, nós já vimos com nossa reflexão que essa é uma relação problemática. E, até o
momento, sem uma afirmação da incognoscibilidade da modalidade, temos que apenas um
caso de concepção nos leva a possibilidade, é o caso da concepção de coisas do mundo atual.
Isso se deve pelo princípio ab esse ad posse. Nesses casos, teríamos uma possibilidade e, com
isso, sustentaríamos a conclusão. O que ocorre é que para o caso do argumento dos zumbis, a
possibilidade sugerida do mundo zumbi não é uma possibilidade via princípio ab esse ad
posse. É uma possibilidade via concepção pura. Dessa forma, segue-se que não temos uma
possibilidade de um mundo zumbi, afinal, a concepção não implica possibilidade. Com isso,
um mundo zumbi como mundo concebível só sustenta conclusões sobre a nossa capacidade
cognitiva de concepção, isto é, só sustenta teses epistemológicas (conforme a intuição de
McGinn mencionada anteriormente).

Conseguintemente, o argumento dos zumbis não estabelece a falsidade do


materialismo. O argumento só pode sustentar que não temos uma superveniência lógica entre
as nossas teorias físicas e a consciência fenomênica. E isso é apenas uma questão
epistemológica, não se pode sustentar nada além disso através de um mundo concebível. Só
estamos autorizados a tirar conclusões do tipo, dada tal concepção: sabemos que uma
característica de nossa capacidade de concepção de acordo com o que conhecemos
fisicamente é X.

Finalmente, o argumento dos zumbis não concluir o que pretende, isso fala alguma
coisa sobre a verdade do materialismo? Não! Não queremos dizer que por sugerimos que o
argumento dos zumbis não é conclusivo, isso signifique estabelecer o materialismo. O
materialismo, se verdadeiro, deve ser estabelecido por próprias razões, não pela falha de
argumentos opostos. Afinal, não é o fato do argumento dos zumbis não conseguir estabelecer
o dualismo que o dualismo não é verdadeiro, são necessárias outras razões também para esse
caso.
158

Com isso, findamos a nossa investigação e vimos como podemos aplicar os resultados
numa argumentação filosófica enquanto não estabelecemos nem a incognoscibilidade modal
ou nem um critério coextensivo de possibilidade. Dessa forma, se de alguma maneira formos
fechados cognitivamente a responder essa questão se a modalidade é incognoscível, então
sabemos como proceder diante de argumentos modais.
159

4.3 Conclusão

Nesse terceiro e último momento de nossa reflexão, munidos das conclusões dos
primeiros dois momentos, colocamos em cena o debate sobre se a concepção é guia para a
possibilidade. Isso foi feito ao contrapor os argumentos em favor da concepção como guia
para o conhecimento da possibilidade frente ao contra-exemplo da informatividade da forma
da informação, o qual nos sugere que a concepção não seja um bom guia. Em seguida,
tivemos considerações filosóficas sobre as consequências desse debate, tendo como exemplo
a aplicação em um argumento modal, nomeadamente, o argumento dos zumbis. À vista disso,
obtivemos algumas conclusões como se segue.

Primeiramente, concluímos que apenas o exemplo da informatividade da forma da


informação é suficiente para estabelecer a independência relacionada entre os domínios da
concepção e da possibilidade. Além, se isto for o caso e não tivermos outro método de
estabelecer o conhecimento modal além da concepção, então o que nos resta é uma visão
expressa pelo surrealismo filosófico: o mundo em sua natureza última não coincide com as
nossas categorizações de mundo.

Em seguida, vimos que a tese conceptibilidade-possibilidade, a qual sustentaria a visão


de que a concepção é um bom guia para a possibilidade, não é suficiente para superar o
contra-exemplo da informatividade da forma da informação. A razão maior para essa tese é a
dimensão ideal da conceptibilidade, e as razões que nos mostram que essa tese não é
suficiente são as seguintes: 1) incorre em petição de princípio ao pensar agentes livres de
nossos limites concebendo o que precisa ser concebido, pressupõe que a concepção leva à
possibilidade; 2) não estabelece em conceitos como é ser um morcego e, por isso, não
estabelece como concebível algo que é possível, mas se permanece inconcebível; 3) supõe
que uma concepção distinta da nossa, sem nossos limites, resolve a dificuldade, mas a tese
continua não respondendo o problema de se nós conhecemos a modalidade alética, o que está
em jogo é o nosso conhecimento, a nossa capacidade cognitiva de concepção, não o
conhecimento ou a concepção do alienígena ou de Deus; 4) o argumento da
incomensurabilidade dos sujeitos ideais nos mostra que a própria natureza de um sujeito
limita o próprio sujeito a ter algo do mundo que lhe escapa, a saber, a informatividade da
160

forma da informação de uma subjetividade distinta, de outro ponto de vista, em conclusão, a


ideia de sujeitos ideiais não nos retira de limites conceptuais em sentido objetivo.

Após tais conclusões, tivemos algumas considerações, são elas: 1) apenas uma
resposta com domínio coextensional ao domínio da possibilidade nos leva ao conhecimento
da modalidade; 2) a presente argumentação não é suficiente para sustentar a
incognosciblidade da modalidade sem observar outras respostas, embora nos sugira esse
caminho; 3) se o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideiais estiver correto, então
o mundo não é expresso em linguagem qualquer que seja ela; 4) o surrealismo filosófico não
impede uma metafísica, uma proposta é distinguir uma ontologia fenomenológica e uma
metafísica surrealista que por sua vez trate de sobreposição de estados e não-identidades; 5)
argumentos modais que não se sustentam pelo princípio ab esse ad posse e sim por
concepção, perdem sua força e não justificam teses metafísicas; 6) a semântica dos mundos
possíveis não é suficiente para sustentar posições metafísicas ou versar sobre metafísica,
apenas versar sobre epistemologia tornando-se uma semântica dos mundos concebíveis; 7) se
o argumento da incomensurabilidade dos sujeitos ideias estiver correto, o Deus conforme a
metafísica cristã deve enfrentar o paradoxo-dilema da pessoalidade, em que é inconsistente
ser pessoa e ser onisciente; 8) uma proposta de programa de pesquisa numa metafísica
surrealista é trabalhar tendo como base a reflexão sobre lógicas não-reflexivas, de modo a
lidar com objetos contrários e objetos contraditórios, ou seja, objetos não-identitários.

Finalmente, uma aplicação das conclusões finais é feita sobre o argumento modal dos
zumbis. Em conclusão, não garantimos a possibilidade de um mundo zumbi através da
concepção de um mundo zumbi, se é que concebemos, e, consequentemente, a tese da
falsidade do materialismo não é sustentada ou justificada pelas premissas. Uma vez que é
falso que a concepção seja um guia para a possibilidade, então o argumento dos zumbis é um
argumento incorreto.
161

5 CONCLUSÃO GERAL

O problema central de nossa reflexão foi o seguinte: a concepção nos leva ao


conhecimento do que é possível e, consequentemente, impossível e necessário? A conclusão
geral da presente reflexão é a de que a concepção, enquanto atividade cognitiva, não nos leva
ao conhecimento do que seja possível e, consequentemente, impossível e necessário. Essa
conclusão se estabelece em três momentos: no primeiro uma análise sobre a noção de
possibilidade, no segundo uma analise da noção de concepção e no último o enfrentamento
entre razões a favor e contra a concepção como guia para o conhecimento da possibilidade.

No primeiro momento de investigação, concluímos que a noção de possibilidade


adequada à busca de uma resposta ao problema proposto é a noção de possibilidade metafísica
absoluta ou possibilidade metafísica pura. Também foi proposto que a metodologia da
coextensão de domínios é adequada para saber se a concepção é guia para o conhecimento da
possibilidade. Dessa forma, o domínio da possibilidade é dado pelo princípio ab esse ad
posse.

No segundo momento de investigação, dessa vez acerca da noção de concepção,


obtivemos as seguintes conclusões. O sentido estrito de concepção é adequado ao invés do
sentido amplo. Com isso, o sentido estrito nos leva a proposta de que conceber é combinar
determinadamente conceitos de experiências que temos do mundo atual. Sendo assim, a
contradição conceptual se mostra como critério de concepção. Tendo isso em vista, ao
avaliarmos a concepção relacionada a cognição, a conclusão sugerda é a de que há um
fechamento cognitivo informacional que diz que nem todo tipo de informação é captável por
um sistema cognitivo. Esse fechamento cognitivo informacional se dá pela informatividade da
forma da informação, isso é observado ao perceber o caráter subjetivo da experiência de um
sistema cognitivo. Esta conclusão, por sua vez, apresenta um exemplo de algo possível e
inconcebível, tornando os domínios da concepção e da possibilidade como domínios não
coextensivos.

No terceiro momento de investigação, confrontamos a razão para compreender os


domínios como não coextensivos com as razões para entender a concepção como bom guia
para o conhecimento da possibilidade. Uma das conclusões foi que se perdemos o par
inconcebível-impossível, então perdemos o par concebível-possível através do
estabelecimento de um tipo de surrealismo filosófico, onde a natureza última do mundo não
162

coincide com as nossas categorias cognitivas. Por último, a conclusão de que a tese
conceptibilidade-possibilidade que sugere a noção de concepção ideal não é suficiente para
superar a dificuldade imposta pela informatividade da forma da informação via análise do
caráter episódico da consciência. É injustificado que a concepção seja guia para a
possibilidade e, não só, dada argumentação proposta, temos razões para pensar o
diametralmente oposto. Consequentemente, argumentos modais que não se baseiam no
princípio ab esse ad posse e sim na concepção, como o argumento dos zumbis, são
argumentos injustificados que não sustentam teses metafísicas.

Finalmente, dadas as argumentações das três etapas, proponho uma conclusão geral: a
concepção não é guia para o conhecimento da possibilidade, e consequentemente, da
impossibilidade e da necessidade a nível metafísico.
163

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