2 A Cristologia Das Conferências Do Celam
2 A Cristologia Das Conferências Do Celam
2 A Cristologia Das Conferências Do Celam
A publicação dos Cadernos Teologia Pública, sob a debates que se desdobram na esfera pública da sociedade.
responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Os desafios da vida social, política, econômica e cultural
quer ser uma contribuição para a relevância pública da da sociedade, hoje, especialmente, a exclusão socioeco-
teologia na universidade e na sociedade. A teologia públi- nômica de imensas camadas da população, no diálogo
ca pretende articular a reflexão teológica em diálogo com com as diferentes concepções de mundo e as religiões,
as ciências, culturas e religiões de modo interdisciplinar e constituem o horizonte da teologia pública. Os Cadernos
transdisciplinar. Busca-se, assim, a participação ativa nos Teologia Pública se inscrevem nesta perspectiva.
A Cristologia das Conferências do Celam
Antes de entrar na temática da cristologia das [...] la visión que se tiene de la realidad y la lectura que
Conferências Gerais do Conselho Episcopal Latino-Ame- se hace de los signos de los tiempos dirige las preguntas
ricano, queremos fazer referência a algumas questões que se van a hacer a Jesús y a la Iglesia, pero, a su vez,
que, mesmo supondo serem de domínio público, con- las reflexiones cristológicas y eclesiológicas no están cer-
radas en si mismas, sino que se van a determinar el tipo
vém explicitar:
de pastoral y de misión que se quiere realizar como re-
a) As assembléias da Conferência Geral do Espis- suesta a los desafíos encontrados en la realidad (2007,
copado Latino-Americano e do Caribe não têm como um p. 418-419).
dos seus objetivos a elaboração de princípios teológicos
para serem aplicados à realidade latino-americana. A b) Todo texto pastoral tem que ser entendido “em
pretensão das assembléias não é primeiramente dogmá- contexto”. Nesta exposição, pressupomos os contextos
tica, mas, sobretudo, pastoral. No entanto, como não po- que foram explicitados pelos palestrantes que nos prece-
deria deixar de ser num documento eclesial de tal nature- deram neste ciclo de palestras e, quando for necessário,
za, é impossível dissociar o teológico do pastoral. Todo faremos breves referências a ele. No entanto, embora o
projeto pastoral supõe e exige uma elaboração teológica contexto seja indispensável para a compreensão do tex-
e vice-versa. Desse modo, como bem o assinala Cadavid to, seguindo a indicação de Murad (1993, p.12), nos ate-
Duque, remos aqui principalmente aos textos:
O tempo produz um distanciamento inevitável do texto tenção é analisar os textos das Assembléias do Celam a
em relação ao grupo que o produziu. A Conferência se partir da perspectiva cristológica latino-americana que se
insere numa conjuntura social, geopolítica e eclesial. Re-
preocupa com o Jesus histórico, ou seja, “com sua ativi-
flete a linguagem possível que a instituição eclesial su-
portou neste contexto e jogo de forças. Todos estes
dade para operar ativamente sobre sua realidade circun-
fatores (e outros) ajudam a explicar a situação atual do dante e transformá-la numa direção determinada e bus-
texto, mas não resolvem o problema hermenêutico. cada, na direção do Reino de Deus” (SOBRINO, 1985, p.
Para o cristão latino-americano interessa mais o que o 103). Uma cristologia que se preocupa em compreender
texto vai produzir na sua vida presente e futura (‘te- a prática de Jesus que em seu tempo desencadeou histó-
leo-logia’) do que o contexto que gerou ou engendrou ria e que chegou até nós como história desencadeadora
(‘arqueo-logia’). de práticas libertadoras e salvadoras.
c) Nosso objetivo nesta abordagem não é de fazer
uma “recepção” dos documentos produzidos pelas Assem-
bléias, mas uma análise teológica. Do ponto de vista pas- 1 Jesus Cristo no Magistério Eclesial Latino-ame-
toral, a recepção, enquanto atuação do sensus fidelium1 ricano
(cf. LG 12),é o mais importante. Contudo, para que a co-
munidade eclesial possa fazer essa acolhida com uma Nesta breve abordagem, tentaremos visualizar os
perspectiva mais ampla e profunda, é necessário uma grandes traços das reflexões cristológicas subjacentes aos
análise teológica crítica e é isso a que nos propomos aqui; documentos das Conferências Gerais do Episcopado La-
d) Assim como toda “recepção” se dá sempre den- tino-Americano realizadas em Medellín, Puebla, Santo
tro de uma tradição eclesial, toda análise teológica tam- Domingo e Aparecida.2 O objetivo é perceber as linhas
bém se faz a partir de uma tradição teológica. Nossa in- mestras e a evolução, tanto em termos de continuidade
1 Sensus fidelium: movimento pelo qual a comunidade eclesial como um todo desenvolve o que há de mais valioso no texto, seleciona suas idéias
mais inspiradoras e cultivas as sementes mais promissoras
2 A I Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Rio de Janeiro, 1954) teve como preocupações principais a escassez do clero e a afirma-
ção da Igreja na sociedade. Afora alusões en passant a alguns títulos cristológicos (Divino Mestre, Sacerdote, Cordeiro...), afirmações cristológicas
estão praticamente ausentes, o que não deixa de ser teologicamente interessante de ser observado.
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como de ruptura, presente nos discursos a respeito de Je- Com Gonzalez (1994, p. 210-211), podemos dizer
sus Cristo nestes documentos que refletem a vida da Igre- que, no tocante à questão cristológica,
ja da América Latina nas últimas quatro décadas. [...] a figura de Cristo aparece aqui e ali, internamente
assimilada na fé e na intenção dos pastores, porém não
1.1 Medellín explicitada como a estrutura mesma dos procedimen-
tos da assembléia. [...] iluminando ou reforçando este
Mais do que uma simples tentativa de aplicar as ou aquele elemento da fé, por exemplo, no que se refe-
orientações do Concílio Vaticano II na problemática lati- re ao que é o homem e seu destino (Med I,1.4; IV, 9);
no-americana, a Conferência de Medellín foi uma motivando uma ou outra opção, como a de evangelizar
“re-interpretação” (cf. TAVARES, 2008, p. 46-49) e uma aos pobres, porque Cristo se fez pobre (XI, 27; XIV,
“recepção criativa” (cf. TAVARES, 2008, p. 49-51) do 4.8.18); confessando sua presença na história, na litur-
Concílio na realidade do Continente.3 gia, na comunidade de fé e na religiosidade do povo
De intenção eminentemente pastoral, o Documen- (I,5; VI,5; IX,2; X,12).
to de Medellín em nenhum momento se detém numa re- Estas referências pontuais a respeito de Jesus Cris-
flexão cristológica explícita. As Conclusões de Medellín to têm a importância de revelar os esboços de uma cristo-
estão elaboradas em capítulos cada um com valor em si logia já presente em várias instâncias: no ambiente lati-
mesmo. A ordem dos documentos foi dada pelo peso da no-americano, nas práticas das comunidades eclesiais de
urgência da realidade latino-americana daquele momen- base, nas pastorais e movimentos populares, nas refle-
to. Se quiséssemos estabelecer uma estrutura do conjun- xões teológicas que começavam naquele momento a ver
to dos documentos, poderíamos dizer que essa é consti- a luz do dia e que iriam se transformar no que se acorda-
tuída pela missão da Igreja. É a preocupação com a ria mais tarde chamar de Teologia da Libertação.
presença da Igreja “nesta hora de urgência” que coorde- A grande característica dessa cristologia emergen-
na as diversas partes entre si. te e que está presente no texto de Medellín é a introdução
3 Para a contextualização da Conferência de Medellín e de sua relação com o Concílio Vaticano II, ver: SUESS, Paulo. Medellín e os sinais dos tem-
pos. REB, Petrópolis, fasc. 232, dezembro de 1998. p. 824-870. Sobre a relação entre os conteúdos do Vaticano II e de Medellín, ver também:
BEOZZO, Oscar. Medellín: inspiração e raízes. REB, Petrópolis, fasc. 232, dezembro de 1998. p. 823-850.
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da salvação na história. São muitos os textos em que po- imperfeições, somos homens de esperança. Cremos
demos perceber essa dinâmica: que o amor a Cristo e a nossos irmãos será não somen-
te a grande força libertadora da injustiça e da opressão,
O amor, ‘a lei fundamental da perfeição humana e, por- mas também e principalmente a inspiradora da justiça
tanto, da transformação do mundo’ (GS 32), não é so- social, entendida como concepção de vida e como im-
mente o mandamento supremo do Senhor, é também o pulso para o desenvolvimento integral de nossos povos
dinamismo que deve mover os cristãos a realizarem a (Justiça, 2).
justiça no mundo, tendo como fundamento a verdade e Como toda libertação já é uma antecipação da plena re-
como sinal a liberdade. Assim é que a Igreja quer servir denção de Cristo (...) todo ‘crescimento em humanida-
ao mundo, irradiando sobre ele uma luz e uma vida que de’ (PP) capacita-nos a ‘reproduzir a imagem do Filho,
cura e eleva a dignidade da pessoa humana (GS 41), para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos’ (Ef
consolida a unidade da sociedade (GS 42) e dá um sen- 1,4-13) (Educação, 2).
tido e um significado mais profundo a toda a atividade Ao apresentar sua mensagem renovadora, a catequese
dos homens. Certamente, para a Igreja, a plenitude e a deve manifestar a unidade do plano de Deus. Sem cair
perfeição da vocação humana se alcança com a inser- em confusões ou em identificações simplistas, deve-se
ção definitiva de cada homem na Páscoa ou triunfo de expressar sempre a unidade profunda entre o plano di-
Cristo, porém a esperança de tal realização definitiva, vino de salvação, realizado em Cristo, e as aspirações do
antes de adormecer, deve «avivar a preocupação de homem; entre a história da salvação e a história huma-
aperfeiçoar esta terra onde cresce o corpo da nova famí- na; entre a Igreja, povo de Deus, e as comunidades tem-
lia humana, o que pode, de certa maneira, antecipar a porais; entre a ação reveladora de Deus e a experiência
visão do novo século. Não confundimos progresso tem- do homem; entre os dons e carismas sobrenaturais e os
poral com Reino de Cristo; entretanto, o primeiro, ‘en- valores humanos. Excluindo assim toda dicotomia ou
quanto pode contribuir a ordenar melhor a sociedade dualismo no cristão, a catequese prepara o desenvolvi-
humana, interessa em grande medida o Reino de Deus’» mento progressivo do povo de Deus para a sua realiza-
(GS 39). A busca cristã da justiça é uma exigência do en- ção escatológica, que tem agora sua expressão na
sinamento bíblico. Todos os homens, somos apenas hu- liturgia (Catequese, 4).
mildes administradores dos bens. Na busca da salvação
devemos evitar o dualismo que separa as tarefas tempo- A novidade que Medellín introduz não é a de afir-
rais da santificação. Apesar de estarmos rodeados de mar Cristo como o Salvador. O que de novo o documen-
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to traz é a concretude do significado da Salvação como li- tir de um lugar social definido: a libertação dos pobres de
bertação. A Salvação que o Cristo nos trouxe não é algo sua situação de miséria. É a partir dali que se tenta com-
para além desta vida, mas começa com uma transforma- preender o mistério da salvação trazida por Nosso Se-
ção radical deste mundo e das situações de injustiça e de nhor Jesus Cristo.
morte que prevalecem no continente. A Redenção não é Esse modo de pensar pressupõe e, ao mesmo tem-
uma realidade metafísica ou trans-histórica, mas tem po expressa, no dizer de Moras (1998, p. 806), uma com-
uma concretude histórica: “É o mesmo Deus que, na ple- preensão do próprio ser de Deus que fundamenta toda a
nitude dos tempos, envia seu Filho para que feito carne, articulação teológica do Documento:
venha libertar todos os homens, de todas as escravidões O DM fundamenta os conteúdos da evangelização em
a que o pecado os sujeita: a fome, a miséria, a opressão e duas perspectivas bíblico-teológico-eclesiológicas: numa
a ignorância, numa palavra, a injustiça que tem sua ori- perspectiva vétero-testamentária, inspirada no princípio
gem no egoísmo humano (Jo 8,32-34)” (Justiça, 2). teológico do Deus Criador e Libertador, no centro do
A Cristologia de Medellín – e este é o primeiro qual figura o ser humano, criado à imagem e semelhan-
ponto que queremos dela destacar – é assim feita sob a ça, conclamado a portar-se face a Deus como filho, face
aos outros como irmãos – igual em direitos e deveres –,
chave de leitura que rege todo o Documento: a libertação
e face à criação interia como justo administrador; e
da situação de pobreza vivida no continente como reali- numa perspectiva neotestamentária, fundada no princí-
zação antecipada, na história, da salvação definitiva em pio teológico do Deus encarnado em Jesus Cristo, em
Jesus Cristo. Em outras palavras, é a partir da situação quem se realizou o plano Criador, Libertador e Salvador
concreta de pobreza e com a vontade de responder a essa de Deus. A este plano vétero e neotestamentário, pelo
situação, que se lê o mistério de Cristo: “Cristo nosso Sal- batismo, cada fiel é incorporado e conclamado a teste-
vador, não só amou aos pobres, mas ‘sendo rico se fez munhar a indissociabilidade e complementariedade
deste projeto Criador, Libertador e Salvador de Deus.
pobre’, viveu na pobreza, centralizando sua missão no
anúncio da libertação aos pobres e fundou a Igreja como O pano de fundo e, ao mesmo tempo, conse-
sinal dessa pobreza entre os homens” (Pobreza da Igreja, qüência pastoral dessa opção, é que o engajamento
7). A de Medellín é uma Cristologia que se constrói a par- dos cristãos na trans for ma ção da so ci e da de tem uma
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fun da men ta ção cris to ló gi ca ex plí ci ta. No dizer de Van de fazer com que a Igreja ‘aconteça’ no mundo, na tarefa
Nieuwenhove (1986, p. 30), essa declaração tem uma humana e na história (Movimentos de leigos, 2,6).
importância evidente: “ela des-privatisa o sentido da en- · na história:
carnação e da ação salvadora do Cristo e os coloca em Nós, cristãos, não podemos, com efeito, deixar de pres-
relação com a salvação histórica dos povos oprimidos”. sentir a presença de Deus, que quer salvar o homem in-
A segunda característica da cristologia de Medellín teiro, alma e corpo. No dia definitivo da salvação Deus
que queremos aqui assinalar transparece nos textos em ressuscitará também nossos corpos, por cuja redenção
que o Documento fala dos lugares onde podemos encon- geme agora em nós o Espírito com gemidos indescritíve-
trar a presença de Cristo. Para Meddelín, o encontro com is. Deus ressuscitou a Jesus e, por conseguinte, todos os
que crêem nele. Através de Cristo, ele está ativamente
Cristo que se dá:
presente em nossa história e antecipa seu gesto escato-
· na Liturgia: lógico não somente no desejo impaciente do homem
...a presença do mistério da salvação, enquanto a hu- para conseguir sua total redenção, mas também naque-
manidade peregrina até sua plena realização na parusia las conquistas que, como sinais indicadores, com voz
do Senhor, culmina na celebração da liturgia eclesial. A cada vez mais poderosa, do futuro, vai fazendo o ho-
liturgia é ação de Cristo, Cabeça e de seu Corpo, que é a mem através de uma atividade realizada no amor (Intro-
Igreja. Contém, portanto, a iniciativa salvadora que vem dução, 5).
do Pai, pelo Verbo e no Espírito Santo, e a resposta da · no pobre injustiçado:
humanidade nos que se ligam pela fé e pela caridade no
A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e
Cristo, recapitulador de todas as coisas (Liturgia, 2).
da paz social... Por isso mesmo, onde a paz social não
· nas comunidades de fé que dão testemunho: existe, onde há injustiças, desigualdades sociais, políti-
cas, econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do
O apostolado leigo terá maior transparência de sinal e Senhor; mais ainda, rejeita-se o próprio Senhor (Mt
maior densidade eclesial, quando apóia seu testemunho 25,31-46) (Paz, 3).
em equipes ou comunidades de fé, nas quais o Cristo
prometeu especialmente estar presente (Ml 18,20). Des- O pobre como lugar do encontro com Cristo ga-
te modo, os leigos cumprirão mais cabalmente sua missão nha em Medellín o status de primeiro princípio de discer-
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nimento cristológico, pois ele encontra seu fundamento 1.2 Puebla
na opção que o mesmo Cristo fez: “Cristo, nosso Salva-
dor, não só amou aos pobres, mas também, ‘sendo rico Entre a Conferência de Medellín e a de Puebla,
se fez pobre’, viveu na pobreza, centralizando sua missão muitas águas passaram por sob as pontes da Igreja e das
no anúncio da libertação aos pobres e fundou sua Igreja sociedades latino-americanas. Muita água e muito san-
como sinal dessa pobreza entre os homens” (Pobreza da gue... A década de 1970 foi, sem dúvida, um período de
Igreja, 4,6). muitas provações para a Igreja no Continente. Uma épo-
Nesta escolha de Cristo, de encarnar-se entre os ca de perseguição e martírio que exigiu dos cristãos um
pobres para ajudá-los a sair da situação de pobreza, en- aprofundamento de uma mística sustentadora do engaja-
contra-se a fundamentação evangélica ou, em outras pa- mento (cf. DUSSEL, 1979).
lavras, cristológica, para que a Igreja como um todo e, Década em que o engajamento da Igreja ao lado
dentro dela, cada cristão, em particular, faça a opção pe- dos pobres é questionado, não somente pelos poderosos
los pobres. da sociedade, mas também em instâncias intra-eclesiais.
Ao estabelecer o pobre como ponto de partida pri- Como não poderia deixar de ser, as lutas sociais têm suas
vilegiado para o encontro com Cristo, podemos também repercussões eclesiais, teológicas e pastorais. O Docu-
encontrar aquilo que se constituirá como o princípio me- mento de Puebla é pensado e elaborado neste contexto.
todológico de sua cristologia: “para conhecer a Cristo é E, como não poderia deixar de ser em um documento de
necessário conhecer ao homem” (Introdução, 1). Essas tal natureza, a Cristologia que nele transparece é resul-
palavras, tomadas do Discurso de Encerramento do Con- tante dos embates teológicas presentes nas Igrejas latino-
cílio Vaticano II de Paulo VI, constituem toda uma pro- americanas.
posta metodológica que a cristologia latino-americana Desse modo, se, por um lado, podemos dizer que
tem tentado nestes 40 anos levar adiante não sem encon- as Conclusões de Puebla “recolhem os frutos da expe-
trar mal-entendidos, resistências e até, como veremos a riência e da reflexão durante os quase 12 anos que decor-
seguir, com francas oposições. reram desde a reunião anterior” (GONZALEZ, 1994, p.
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211), também há de se constatar, por outro lado, que, as contribuições das Conferências Episcopais de 1978; o
“diferentemente de Medellín, Puebla traz um capítulo in- Doc. de Trabalho de 1978 –, há, de parte da equipe en-
titulado A verdade a respeito de Cristo, o Salvador que tão dirigente do Celam, uma preocupação constante: os
anunciamos (n. 170-219) motivado pelo interesse de de- “desvios cristológicos” e a necessidade de “reafirmar a
fender a ortodoxia diante dos perigos reais e imaginados doutrina sobre Jesus Cristo” (Cf. KLOPPENBURG, 1980,
das primeiras cristologias latino-americanas” (SOBRINO, p. 374-382; COMBLIN, 1999).4 “Desvios cristológicos”
1996, p. 38). que viriam supostamente de setores da Igreja vinculados
Com efeito, em todas as fases de preparação e ela- aos movimentos revolucionários da América Latina e ao
boração do Documento – as reuniões regionais de prepa- secularismo (o que para muitos é a mesma coisa).
ração para Puebla de 1977; o Doc. de Consulta de 1977;
4 J. B. Libânio (1978), ao analisar a Cristologia no Documento Preparatório a Puebla, diz que “Podemos então resumir a perspectiva assumida no do-
cumento preparatório em três características fundamentais: uma cristologia dogmática, como epifania de Deus e como pleroma da realidade. Ali-
nha-se mais numa dimensão paulina que sinótica” (p. 47). Para Libânio, “esse caminho cristológico escolhido pelo documento é absolutamente orto-
doxo. Corresponde em tudo ao ensinamento da Igreja. Em termos estritamente teológicos é correto. No máximo, poderíamos apontar um suave do-
cetismo (n. 403), ou pelo menos, uma preferência pela escola de Alexandria com seus olhos voltados para o ser divino de Cristo. O aspecto humano e
histórico, apesar de ser inúmeras vezes mencionado em termos descritivos, não recebe a devida valorização na interpretação teológica” (p. 48). As ra-
zões para tal abordagem cristológica, para o autor, além dos interesses pessoais dos autores (p. 49) está na intencionalidade do todo do documento:
“[...] a cristologia mantém uma coerência com o horizonte de compreensão do documento, que consiste precisamente em desligar a leitura de Cristo
do contexto conflitivo de nosso continente” (p. 50). Alberto Antoniazzi e a Equipe do Instituto Nacional de Pastoral da CNBB, ao analisarem o Docu-
mento de Trabalho de Puebla no tocante à Cristologia fazem a seguinte avaliação: “A Cristologia (como já no ‘Documento de Consulta’) está marcada
por uma valorização unilateral da morte e ressurreição de Jesus, enquanto a vida terrestre de Jesus não conta nada, nem mesmo como modelo ou
exemplo para o evangelizador. Desta forma tende a desaparecer a conexão entre a vida e a Páscoa de Jesus, como se a cruz não fosse conseqüência
coerente da sua vida. Não se trata só de uma interpretação parcial do mistério de Jesus, mas – por reflexo – de uma interpretação que, junto com a en-
carnação, esvazia também a existência cristã. Talvez por causa disto, em outros textos (n. 282/288 e 368/371), enquanto o mal aparece como real, a li-
bertação e a graça são apenas figuras, símbolos, a serem celebrados ritualmente” (p. 608) (ANTONIAZZI, 1978). Sobre o mesmo Documento, assim se
expressa José Comblin (1978): “A Cristologia do documento é de cunho clássico. Tem como alvo as idéias nascidas da Ilustração, e tende a sublinhar
o caráter ‘sobrenatural’ de Jesus: Jesus foi o ‘revelador’ de mistérios sobrenaturais, sua morte teve efeitos misteriosos e sobrenaturais de expiação pelo
pecado, e sua ressurreição foi o grande milagre que manifesta o caráter sobrenatural de seu ser. Tudo isto é indiscutível, e foi repetido incansavelmente
na apologética moderna, desde o século XVIII, mas não destruiu as ideologias combatidas” (p. 201).
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Aqui já há uma diferença fundamental da cristolo- Igreja, não pode ser conteúdo válido da evangelização”.
gia de Puebla em relação à de Medellín. Os destinatários Uma coisa são as “releituras do Evangelho, resultado de
do discurso a respeito de Jesus Cristo não são mais os po- especulações teóricas” e “as hipóteses, talvez brilhantes,
porém frágeis e inconsistentes que delas derivam” e ou-
bres que lutam por libertação e aqueles que, na Igreja, se
tra a “afirmação da fé da Igreja: Jesus Cristo, Verbo e Fi-
põem a seu lado, como foi o discurso de Medellín. O dis- lho de Deus, se faz homem para aproximar-se do
curso de Puebla tem como destinatários principais cris- homem e presenteá-lo, pela força de seu mistério, com a
tãos que, supostamente, estão equivocados na sua com- salvação, grande dom de Deus (João Paulo II, Discurso
preensão a respeito de Jesus Cristo. Inaugural I, 4. I, 5 AAS LXXXI, p. 190, 191).
Se Medellín teve um tom eminentemente proféti-
A tendência de falar do Cristo a partir da procla-
co, apresentando Jesus como aquele que se coloca ao
mação ortodóxica, a verdade sobre Jesus Cristo, foi re-
lado dos pobres nas suas lutas de libertação, agora Jesus
forçada, como vimos na citação precedente, pelo discur-
se torna um advertência contra aqueles que poderiam es-
so inaugural de João Paulo II e será a marca maior da
tar instrumentalizando a fé em Jesus Cristo em nome de
Cristologia de Puebla:
interesses ideológicos ou de leituras parcializadas, como
é explicitado nos números 178 e 179: Se percebe de imediato o quanto influenciou o discurso
inaugural de João Paulo II, que ofereceu as linhas teoló-
Não podemos desfigurar, parcializar ou ideologizar a
gicas mestras em torno a Jesus Cristo, a Igreja e o ho-
pessoa de Jesus Cristo, nem fazendo dele um político,
mem, que logo se tornaram em Puebla o eixo central da
um líder, um revolucionário ou um simples profeta, nem
reflexão teológica sobre os riquíssimos dados provenien-
reduzindo ao campo do meramente privado Aquele que
tes da análise fenomenológica da realidade latino-ameri-
é o Senhor da História.
cana, e ponto de partida para optar e decidir sobre as
Fazendo eco ao discurso do Santo Padre ao inaugurar ações pastorais básicas (GONZALES, 1994, p. 211).
nossa Conferência, afirmamos: “Qualquer silêncio, es-
quecimento, mutilação ou inadequada acenturação da Em relação a Medellín, há aqui outra mudança:
integridade do mistério de Cristo que se aparte da fé da muda o ponto de partida do discurso cristológico. Se,
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como dissemos anteriormente, para Medellín, o ponto de Em resposta a Comblin e em defesa da Cristologia
partida para a Cristologia, seguindo o Discurso de Encer- dogmática de Puebla, assim se posiciona Boaventura
ramento do Vaticano II, é a realidade humana, na medi- Kloppenburg (1980, p. 387):
da em que “para conhecer a Deus é necessário conhecer
Se disse que na declaração cristológica de Puebla os bis-
ao homem”, para o Documento de Puebla, seguindo o
pos nada mais fizeram que repetir o que já sabíamos.
Discurso Inaugural de João Paulo II e a Gaudium et Spes Ou seja: o que já sabíamos em nossa profissão de fé cris-
22, a verdade sobre Jesus Cristo é o ponto de partida tã e católica. E esta profissão deve-se repeti-la todos os
para se chegar ao homem (DP 319) (Cf. KARLIC, 1993). dias para vivê-la e fazê-la viver. Não seriam Pastores
A avaliação de José Comblin (1999, p. 215) sobre nem cumpririam seus deveres de Mestres autênticos da
os elementos cristológicos do Documento de Puebla, é fé se, em situações de dúvidas, ambigüidades, altera-
clara e suscinta: ções ou negações do conteúdo da fé em Jesus Cristo,
não tivessem dito o que agora tão firmemente declara-
Tratou-se aqui da Verdade sobre Jesus Cristo. Prevale- ram. [...] Com sua declaração cristológica Puebla cum-
ceu a advertência do Papa relativa à releitura e a figura priu um dever profético exigido pela situação.5
de Jesus revolucionário. O texto desta Comissão 2 apre-
senta uma lista de acontecimentos da vida de Jesus as- Na sua tentativa de explicitar a intencionalidade
sim como a lembrança dos dogmas tradicionais. Não há cristológica do Documento de Puebla, Boaventura
análise do sentido concreto da humanidade de Jesus
Kloppenburg (1980, p. 384-387) estabelece Seis nor-
como vida humana vivida no seu contexto. A morte de
Jesus permanece sem explicação humana. Não há refe- mais cristológicas presentes no documento que devem
rência à realidade latino-americana. Este é um texto (sic) ser seguidas na sua interpretação. Para maior clare-
sem originalidade. za transcrevêmo-las:
5 Não deixa ele, no entanto, de alfinetar outros bispos que, no seu modo de entender, não estariam colocando em prática as orientações de Puebla:
“Neste momento em que são tantas as vozes discordantes em livros, revistas, folhas mimeografadas (principalmente estas), cassetes, cursos, palestras e
até sermões, a omissão, o silêncio ou a negligência dos ‘sucessores dos Apóstolos no carisma da verdade (DV 8b) causa perplexidade e desorientação
nos cristãos que sinceramente desejam ser ‘fiéis’ ou, como se diziam tão expressivamente em latim, ‘cristifideles’” (KLOPPENBURG, 1980, p. 387).
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Primeira norma: ‘é nosso dever anunciar claramente, Sexta norma: Deve-se evitar as ‘releituras do Evange-
sem deixar lugar a dúvidas ou equívocos, o mistério da lho, resultado de especulações teóricas’ e ‘as hipóteses,
Encarnação: tanto a divindade de Jesus Cristo tal como brilhantes talvez, porém frágeis e inconsistentes que de-
a professa a fé da Igreja, como a realidade e a força de las derivam’ (n. 179).
sua dimensão humana e histórica’ (n. 175);
Uma leitura atenta do Documento nos mostra, no
Segunda norma: ‘Devemos apresentar a Jesus de Naza- entanto, que sim há pontos de continuidade com Medel-
ré partilhando a vida, as esperanças e as angústias de lín. Leonardo Boff (1979, p. 46) consegue ver esta conti-
seu povo e mostrar que Ele é o Cristo acreditado, pro-
nuidade estabelecendo dois níveis de presença teológica
clamado e celebrado pela Igreja’ (n. 176);
no documento.O primeiro, o explícito, está presente na-
Terceira norma: ‘Devemos apresentar a Jesus de Naza-
queles tópicos em que se fala diretamente de Jesus Cristo
ré ‘consciente de sua missão: anunciador e realizador do
Reino, fundador de sua Igreja que tem a Pedro por ci- como é o caso da II parte sobre A verdade sobre Jesus
mento visível’ (n. 177)6; Cristo Salvador. O segundo, o implícito, é encontrado
Quarta norma: devemos apresentar ‘a Jesus Cristo vivo, nos textos pastorais.
presente e atuando em sua Igreja e na história’ (n. Para o autor,
177)”7; A teologia subterrânea que informa e sustenta as opções
Quinta norma: ‘Não podemos desfigurar, parcializar ou pastorais é significativamente melhor e mais latino-ame-
ideologizar a pessoa de Jesus Cristo, seja convertendo-lo ricana que a explícita. Esta, a explícita, é contida, retrátil
em um político, um líder, um revolucionário ou um sim- e tuciorista. Dá a impressão que seus elaboradores que-
ples profeta, seja reduzindo ao campo do meramente pri- riam fazer frente a possíveis reducionismos minimalistas
vado aquele que é o Senhor da História’ (n. 178)8; presumidos na teologia elaborada no continente. Os si-
6 Sobre a consciência de Jesus de ser o realizador do Reino, ver n. 190-193; sobre a consciência e a vontade de Jesus de fundar a Igreja, ver n. 222.
7 Ver também o n. 196 de Puebla.
8 Ver também o n. 179, onde repete as palavras do Papa: “Qualquer silêncio, esquecimento, mutilação ou inadequada acentuação da integralidade
do mistério de Jesus Cristo que se afaste da fé da Igreja não pode ser conteúdo válido da evangelização”.
15
lêncios de si não implicam nenhuma negação (em Também trabalhando com a mesma preocupação
todo dito existe sempre o não-dito) a não ser quando de resgatar a continuidade entre Medellín e Puebla, Jon
intencionados. O texto, temendo que os silêncios signi- Sobrino (1996, p. 40) assinala que a parte do documento
ficassem negações, procura explicar o mais possível,
que mais reflete e dá continuidade ao pensamento de
orientando-se pelo seguro e certo das formulações con-
sagradas. Há uma visível preocupação pela ortodoxia, Medellín é a que apresenta o Cristo identificado com os
o que confere aos textos um caráter abstrato e sem ade- pobres, ou seja, o capítulo que fala da Opção preferencial
rência concreta em termos de suscitar ânimo, amor, pelos pobres. Nessa parte há dois elementos fundamen-
compromisso. Vigora uma espécie de mecanicismo da tais para uma cristologia:
sã doutrina: garantida esta, as práticas justas se-
guir-se-iam por si mesmas; evidentemente é ingênuo [a] a primeira é que os pobres são os destinatários privi-
conceber nestes termos a relação teoria-prática. legiados da missão de Jesus, e pelo mero fato de serem
pobres, seja qual for sua situação moral ou pessoal em
Da mesma opinião é Gustavo Gutierrez (1980, que se encontre, e que a evangelização dos pobres é si-
p. 48): nal e prova por excelência da missão de Jesus (n. 1142).
Puebla dedicou um documento à cristologia. A intenção Desta forma se reafirma a correlação essencial entre po-
foi boa, as afirmações gerais e básicas receberão, sem bres e missão de Jesus.[...]
dúvida, um amplo e tranqüilo consenso, sem maiores [b] A segunda conclusão é que os pobres são como que
questionamentos ou estímulos para a prática e a refle- um sacramento da presença de Cristo. Puebla não usa
xão. Seria, contudo, um erro limitar a este documento a essa linguagem, mas ela está implicada eficazmente e de
mensagem desta conferência sobre Cristo. Espalhados maneira dinâmica: os pobres possuem com relação à
por seus diferentes textos, encontram-se ricas e fecun- Igreja (e, acrescentamos, com relação a todos) um po-
das considerações referentes a problemas concretos – tencial evangelizador, enquanto a interpelam constante-
muitas vezes controvertidos – do povo latino-america- mente, chamando-a à conversão, e porque muitos deles
no, buscando nos gestos e nas palavras do Senhor uma realizam em sua vida os valores evangélicos de solidari-
inspiração fecunda, o que denota uma criatividade que edade, serviço, simplicidade e disponibilidade para aco-
merece atenção. lher o dom de Deus (n. 1147).
16
Tomando o documento no seu conjunto, apesar Aqui podemos perceber, na continuidade do pen-
da diversidade de perspectivas cristológicas nele presen- samento de Medellín, uma inflexão em Puebla. Em Me-
te, podemos, sem sombra de dúvida, afirmar que dellín, a opção pelos pobres se vinculava mais estreita-
mente à Pobreza da Igreja. Aqui, em Puebla, a opção
[...] Puebla retoma o problema da presença atual de pelos pobres se fundamenta, por um lado, nos rostos dos
Cristo na hu manidade e do acesso desta a ele, e em
pobres do continente (DP 31-39) e na identificação de
formula ções realmente vigorosas e rigorosas que, no
nosso enten der, não têm para lelo em outros docu- Jesus com os pobres. Assim comenta Gustavo Gutierrez
mentos eclesiais contemporâneos. Lembra o tradicio- (1980, p. 45) essa identificação:
nal: que Cristo está presente em sua Igreja, principal- Nesta perspectiva, o ponto central é a identificação de
mente na Sagrada Escritura, na proclamação da pala- Cristo com o pobre, como em Mateus 25,31-46, texto
vra, nos que se reúnem em seu nome e na pessoa de de grande importância em Puebla e nos discursos do
seus pastores. E conclui: Quis identificar-se, num ges- Papa no México. (...) Numa passagem de Puebla, por
to de ter nura especial, com os mais fracos e os mais nós citada, fala-se dos “traços sofredores de Cristo” e
pobres (196). Estas palavras não devem ser ana lisa- logo se apresenta uma lista das feições que eles assu-
das como linguagem técnica, consciente de todos os mem no rosto dos pobres do Subcontinente (n. 31-40).
seus detalhes, mais é importante notar que, conforme Esta identificação faz com que assumir a causa dos po-
se fala dos lugares onde se dá a presença de Cristo, o bres, segundo a mensagem inicial, signifique assumir
texto muda de linguagem. Do Cristo exaltado se diz “a causa do próprio Cristo: ‘Tudo o que fizestes a um
que vive no meio de nós, que está presente nos luga- desses meus irmãos mais pequenos a mim o fizestes’ (Mt
res eclesiais. Mas quando menciona sua presença nos 25-40). É por isso também que ‘as obras de serviço aos
pobres, a linguagem se torna mais vigorosa. Fala-se outros’ constituem ‘critério e medida pelos quais Jesus
de identificação de Cristo com eles e de ternura espe- Cristo há de julga até aqueles que não o tiverem conhe-
cial para com eles. Não se pode du vidar, portanto, de cido’” (n. 399).
que, ao falar da presença atual de Cristo na história,
Puebla privilegia sua presença nos pobres (SOBRINO, Puebla repete a idéia de que o serviço ao pobre e
1996, p. 39). o compromisso com ele são a “medida privilegiada” de
17
“nosso seguimento de Cristo” (n. 1145).9 E este serviço uma verdade vital e profunda e, ao mesmo tempo, pen-
exige “uma conversão e purificação constantes, em todos sada e afirmada (GUTIERREZ, 1980, p. 45-47).
os cristãos, para que seja conseguida uma identificação Com isso, retoma Puebla, mesmo que com outro
cada dia mais plena com Cristo pobre e com os pobres” ponto de apoio, a identificação que Medellín faz entre
(n. 1140). Neste enunciado e em outros semelhantes que Libertação e Salvação, elemento fundamental da Cris-
reaparecem constantemente em todo o Documento, tologia latino-americana e de toda autêntica teologia
Jesus é reconhecido como o Verbo feito carne, como cristã.
aquele que armou sua tenda no meio de nós, como se
afirma no Evangelho de João. No meio de seu povo; 1.3 Santo Domingo
povo pobre e explorado, mas que ainda crê e espera
nele. É preciso estar muito distanciado da vida deste O Documento de Santo Domingo apresenta-se a
para não perceber aqui, na afirmação da proximidade si mesmo como em continuidade com o caminhar da
de Cristo, manifestada pela expressão ‘Cristo pobre’,
Igreja na América Latina e sua opção:
uma confissão da presença de Deus na história concreta
da humanidade. Uma confissão de Jesus, Filho de Convocados pelo Papa João Paulo II e impulsionados
Deus, não da boca para fora, mas brotando todos os pelo Espírito de Deus, nosso Pai, os Bispos participantes
dias de seus sofrimentos, lutas e esperanças; não de da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Ameri-
uma ‘ortodoxia’ que se esgota em si mesma, mas de cano, reunido em Santo Domingo, em continuidade às
9 A mentalidade que quer ver em todo compromisso histórico um risco para a fé não deixou de deixar seus rastros no documento ao adjetivar ou ten-
tar desencarnar os encontros entre salvação e libertação, tanto na vida de Cristo como na da Igreja e da história: Jesus é libertador da opressão, mas
essa encontra sua raiz no pecado (185, 186, 330). Por isso, Jesus deve ser visto como “libertador integral” (189, 1183), salvador de homem todo e
de todos os homens (181, 351). Numa interpretação positiva, pode-se dizer que o texto de Puebla tenta juntar as “tensões cristológicas” presentes
na realidade eclesial e teológica da América Latina: divindade e humanidade (175); o Jesus histórico e o Jesus anunciado pela Igreja (176); o evan-
gelizador e o realizador do Reino (177); o Jesus revelador do mistério trinitário (188) e, ao mesmo tempo, inspirador de mudanças sociais (174); o
Jesus que não pode ser reduzido a um líder político, mas que também não pode ficar restrito ao campo da consciência individual ou ao meramente
privado (174,178).
18
precedentes do Rio de Janeiro, Medellín e Puebla, pro- O Documento começa com uma profissão de fé
clamamos nossa fé e nosso amor a Jesus Cristo. Ele é o (SD 4-15) que quer ser o fio condutor e o elemento cen-
mesmo “ontem, hoje e sempre” (cf. Hb 13,8) (DSD 1). tral e unificador da Nova Evangelização. Fio que se
A importância dada à figura de Cristo está na con- mantém até o final onde se toma esta intencionalidade
tinuidade da sensibilidade latino-americana de colocar (287-289, 308).10
Jesus como o centro de toda reflexão: Tomado como um todo, no entanto, pode-se perceber,
ainda mais claramente que em Puebla, que o texto con-
Santo Domingo, com seu cristocentrismo, não se afas- tém duas cristologias. A cristologia explícita da primeira
tou desta sensibilidade. O Cristo a que se refere não é parte do Documento – “Cristo, Evangelho do Pai” – e a
um conceito abstrato, mas uma pessoa viva cuja presen- teologia implícita, da parte II – “Jesus Cristo, evangelizar
ça se experimenta e, por isso se confessa e se anuncia. É vivente em sua Igreja” –, que expressa a experiência
uma presença questionadora, que convida à conversão pastoral latino-americana.
e que impulsiona a uma nova missão evangelizadora
que se traduz em compromisso com a humanidade Sob a chave dogmática de Hb 13,8 apresenta Je-
(CASTELLANOS, 1993, p. 334). sus Cristo como
10 Santiago Ramirez (1993, p. 36), assim, resume a linha cristológica que percorre todo o DSD: A pessoa de Jesus “constuye la clave promordial y ab-
soluta del DSD porque lo pide la fe y porque así fue expresado en la IV Conferencia al desear que el hilo conductor fuera el anuncio de Jesucristo re-
sucitado, única vida y esperanza de la humanidade que conduzca a una clara y gozosa profesion de fe. Y que al mirar la realidad, se considere des-
de Cristo los clamores de nuestros pueblos y los desafios actuales a la evangelización, a la promoción humana y a la cultura cristiana [...]. La perso-
na de Jesús es el centro del documento. Ante todo fruto del amor que la Iglesia profesa a Jesucristo (1) y de quien ha tenido una autentica experien-
cia durante el desarollo de la Conferencia, se trata de Jesucristo ayer, hoy y siempre (1;287). Es el hilo conductor, la clave de la vida de la Iglesia, de
la evangelización y del documento. Jesús humanado, misericordioso crucificado y de la fe, que nos muestra la carta a los Hebreos y que describe el
documento en el capítulo de la Promoción Humana. Jesús de Nazareth e Hijo de Dios, enviado por el Padre en misión, nacido de mujer, pobre, en-
carnado, cercano a las miserias y solidario con todos los necesitados, anunciado la Buena noticia a los pobres (4;178; cap. 2 de la II Parte). Jesús el
Señor resucitado que entrega su misión a la Iglesia para que ésta lleve a cabo la misión histórica que el Padre le encomendó (22-23;178). La perso-
na de Jesús presente en la Iglesia identificándo-se con cada uno de los suyos, realizando una conformación radical con Jesús (10;28) que la llena de
esperanza, la vivifica (287); Jesús en la totalidade de su persona y misión, Hijo de Diós, el mismo ayer, hoy y siempre”.
19
a) centro do desígneo de Deus e “Senhor dos cessária, à herança teológico-dogmática da Igreja, no en-
Tempos” (DSD 3; e “da história” (DSD 2); tanto, não assimilou suficientemente para dentro do tex-
b) Enviado pelo Pai, o Filho anuncia o Reino to, como era de se esperar, a experiência eclesial lati-
como boa-nova aos pobres (DSD 4); no-americana do pós-concílio e sua reflexão teológica
c) Esse Reino “se realiza mediante a fé na Palavra mais expressiva” (CALIMAN, 1993, p. 238-239).
de Jesus”; se faz presente “na vida e nas palavras dele; Afonso Murad (1993, p. 21) é ainda mais morden-
exige tanto o “amor a Deus” quanto o “amor fraterno”, te na sua avaliação da Cristologia explícita do DSD e
ou seja, “a natureza do Reino é a comunhão de todos os aponta para uma outra limitação importante que é a au-
seres entre si e com Deus” (RMi 15, DSD 5); sência da prática de Jesus e o problema da cruz de Jesus
d) Para sua realização, “Jesus institui os doze”, Cristo e de sua interpretação:
tendo “Pedro como fundamento”, e “instituiu o sacra- A primeira parte do documento, intitulada ‘Cristo,
mento do seu amor, a Eucaristia” (DSD 6); Evangelho do Pai’, contém uma cristologia inepta e des-
e) “Ressuscitado... é Senhor, consubstancial ao concertante (DSD 3-15). Oblitera a mordência da assim
Pai”. “A ressurreição confere alcance universal à mensa- chamada ‘prática de Jesus’, do anúncio e inauguração
gem de Cristo, à sua ação e a toda sua missão” (RMi 16). do Reino. Proclama uma quase identificação entre o
Pelo Espírito, enviado em Pentecostes, “a Igreja foi en- Reino e a Igreja (DSD 6) e abusa de uma teologia da re-
viada a anunciar o Evangelho” (DSD 7). conciliação (DSD 6,8). A morte de Jesus é interpretada
somente em chave soteriológica clássica (DSD 3,7,27),
Essa apresentação que o DSD faz de Jesus Cristo
sem uma reinterpretação atual nem levando em conta
no seu início “traz uma intuição teológica fundamental e que Jesus morreu em conseqüência de sua vida. Sem
uma chave de leitura essencial da experiência cristã: a uma cristologia do crucificado histórico, a Igreja lati-
centralidade de Cristo no projeto salvífico de Deus. Esse no-americana perde um importante referencial para vi-
eixo fica bem sublinhado pelo lema ‘Jesus Cristo ontem, ver a fé no meio de conflitos. Santo Domingo se
hoje e sempre’ (Hb 13,8). Essa referência, legítima e ne- ressente de uma cristologia integral, que considere Je-
20
sus Cristo encarnado, histórico, crucificado, ressuscita- rio pascal, que engloba indissociavelmente vida, paixão,
do e glorificado.11 morte e ressurreição. O próprio encadeamento faz parte
da compreensão da fé cristã. Sem a afirmação clara e ex-
Aqui, de fato, está, na opinião de Cleto Caliman
plícita de um dos elos, a profissão de fé na ressurreição
(1993, p. 240) o grande limite cristológico de Santo Do- gloriosa corre o risco de nos distanciar da história, de sua
mingo: realidade conflitiva. Na verdade, a ressurreição só é com-
A Cruz não aparece na devida luz. Como está a profis- preensível como coroamento de uma vida entregue, soli-
são de fé não se apresenta suficientemente completa. dária com os homens e mulheres de todos os tempos,
Não espelha suficientemente a tradição que sempre va- especialmente dos negados e excluídos. Colocada a cruz
lorizou os mistérios da vida de Jesus, sua história pessoal na penumbra, também a história pessoal de Jesus de Na-
e a Cruz. No texto, o Jesus histórico mal aparece. A cruz zaré parece ficar fora do nosso olhar crente.12
libertadora de Jesus Cristo, sinal de contradição, expres-
são da fidelidade à sua missão até a morte, está ausente. No afã de ressaltar a importância do anúncio do
A nossa fé, no entanto, tem como núcleo básico o misté- Cristo Ressuscitado e Redentor de toda a humanidade, o
11 Similar é a opinião de Francisco Taborda (1993, p. 356), ao assinalar como grande lacuna do DSD a ausência do “Jesus histórico”: “A cristologia
de SD é uma cristologia da glória, abstrata e a-histórica. É gritante a “ausência do Jesus histórico no preâmbulo cristológico e o fundamentalismo
com que os mistérios da vida de Cristo são abordados no decorrer do documento. O tema da encarnação volta frequentemente como analogado
ao da inculturação, mas não aparece em seu aspecto quenótico, senão unicamente em sua dimensão de condescendência de Deus. Tampouco
aparece o conflito, enquanto repetidamente se apela à reconciliação. A impressão que se tem é que a vida de Jesus decorreu entre flores. Ele pare-
ce ser o ‘doce nazareno’ de certas representações piedosas de gosto duvidoso (kitsch). A cruz, resultado dos conflitos de Jesus com as autoridades, é
pouco mencionada e sempre mais num sentido metafísico. De forma nenhuma se percebe que a cruz foi um suplício a que se condenou um inocen-
te. Ela só surge à lua da glória, como se não tivesse sido um fato histórico horrendo. Dá-se preferência ao Cristo glorioso das epístolas do cativeiro
antes que a Jesus dos evangelhos. Tudo isso tem conseqüências pastorais imensas. Se a encarnação é só condescendência, a inculturação não será
um processo sério que atinja o cerne das pessoas e da comunidade. Se a vida de Jesus não foi conflitiva, a Igreja deve procurar conciliar seus pro-
pósitos com os projetos dos poderosos de turno. Se a cruz é gloriosa, perde-se o realismo do martírio”.
12 A avaliação de Clodovis Boff (1993, p. 31) sobre a cristologia explícita de Santo Domingo, é simplesmente arrasadora: “Mas o que põe o Docu-
mento no lugar da teologia? É a doutrina pura e simples. É só ver a primeira parte de cada item: é doutrina dogmática, enfarinhada de citações bí-
blicas. Por que então gastar tempo com teologia se o Papa já pensa pro todos? Mesmo a cristologia, que quis ser o núcleo teológico mais forte e de-
senvolvido, tende para o cristomonismo e é destituída de uma pneumatologia de amplo respiro”.
21
Documento de Santo Domingo corre o risco de impreci- nhor’ pela ressurreição, não de sua divindade, senão de
são teológica no momento em que ressalta tanto a divin- sua humanidade igual à nossa. (...) Por isso não falei de
dade de Cristo que acaba deixando na sombra a humani- erro, mas de uma séria imprecisão teológica, a qual
oculta o risco de absorver na sua divindade a humani-
dade de Jesus e ressalta tanto a sua missão soteriológica
dade de Cristo, com o conseqüente desenfoque daquilo
que acaba não falando suficientemente da escravidão da que é na sua plenitude histórica e transcendente o ser
qual Jesus veio nos libertar. Gonzalez (1994, p. 212-213) humano.13
fala, neste contexto, de duas limitações cristológicas do
No Documento, fica ofuscada a humanidade as-
DSD:
sumida e redimida por Cristo. Fala-se de um Cristo de-
Eis aqui a primeira das limitações: ‘Confessamos que sencarnado e, como conseqüência, o documento pode
Jesus, que verdadeiramente ressuscitou e subiu ao céu, falar de homens e mulheres desencarnados, fora da reali-
é Senhor, consubstancial ao Pai’. A confissão é global- dade histórica concreta vivida pelos povos do continente.
mente justa, porque se baseia na profissão de Nicéia; e, Que a concretude do pecado do qual Jesus veio nos li-
no entanto, fica incompleta na medida em que falta o
bertar permaneça também abstrata, é então inevitável:
segundo elemento fundamental definido em Calcedô-
nia(...): ‘Por nós os homens e por nossa salvação’: so- b) Em segundo lugar, convém notar outra ausência:
mente neste resto encarnacional se afirma o objetivo da também sempre falta fazer a explícita confissão da finali-
ressurreição de Cristo. Falta, para a suficiente plenitude dade para a qual converge todo o credo: ‘Creio na res-
cristológica, confessar ao Senhor consubstancial a nós, surreição da carne’. [...] O que foi revelado e
com Calcedônia (DS 301), em cuja qualidade o Senhor confessamos como destino definitivo do ser humano,
ressuscitou por nós. E precisamente ‘foi constituído Se- seja na confissão batismal seja na dogmática (me refiro
13 O texto completo é o seguinte: “Confessamos que Jesus, verdadeiramente ressuscitado e elevado ao céu, é Senhor, consubstanciai ao Pai, ‘nele re-
side toda a plenitude da divindade’ (Cl 2,9), sentado a sua direita, merece o tributo de nossa adoração. “A ressurreição confere um alcance univer-
sal à mensagem de Cristo, a sua ação e a toda a sua missão” (RMi 16). Cristo ressuscitou para nos comunicar a sua vida. De sua plenitude todos re-
cebemos a graça (cf. Jo 1,16). Jesus Cristo, que morreu para nos libertar do pecado e da morte, ressuscitou para, em Si, fazer-nos filhos de Deus. Se
não tivesse ressuscitado, vã seria nossa pregação e vazia seria nossa fé (lCor 15,14). Ele é nossa esperança (cf. 1Tm 1,l; 3,14-16), uma vez que pode
salvar os que se aproximam de Deus e vive para sempre, para interceder a nosso favor (cf. Hb 7,25).”(SD 7)
22
ao Credo Niceno-Constantinopolitano), não é só a con- título cristologico ‘Jesuscristo liberador’, que ya era co-
templação da Trindade, senão também o modo como mún en América Latina y el Caribe para llamar a Jesús, se
esta se realizará segundo a promessa de Cristo e a reve- vio oscurecido”. Ainda que, como veremos a seguir, a di-
lação do Novo Testamento: pela participação plena, de
mensão libertadora de Cristo apareça aqui e ali na cristo-
toda nossa pessoa humana, na ressurreição de Cristo.
logia implícita, somente duas alusões, e ainda de forma
Ambas as limitações são complementares: anunci- indireta, podem ser encontradas do caráter libertador da
am o Senhor Ressuscitado, porém esquecem da encarna- obra redentora de Jesus Cristo (cf. DSD 157, 279).
ção do Cristo e do ser humano concreto ao qual é desti- Um outro fator, mais explicitamente teológico,
nada a salvação trazida por Jesus Cristo. mas que não deixa de ter seu pano de fundo pastoral, é
O que levou a esse “desenfoque” cristológico que que o lugar de encontro com ele é outro. Enquanto em
algumas vezes chega a beirar a monofismo? Medellín e, em grande medida, na “cristologia implícita”
Um fator, sem dúvida importante, foi a disputa po- de Puebla, a Encarnação de Cristo nos pobres é a chave
lítica ocorrida na preparação e dentro da própria Confe- de leitura teológica da realidade a ser transformada em
rência (cf. CODINA, 1993; ANTONIAZZI, 1993) e a deci- benefício de todos, em Santo Domingo, o Cristo que apa-
são, tomada pelo grupo hegemônico, de sepultar a me- rece é sobretudo o Cristo Ressuscitado que deve ser
mória histórica, pastoral e teológica de Medellín.14 anunciado a todos. O ponto de partida para o conheci-
Para Cadavid Duque (2007, p. 428), “fruto de las mento de Jesus Cristo em Santo Domingo é o kerygma, o
inocultables tensiones suscitadas al interior de la Confe- anúncio do Cristo Ressuscitado e não mais o ser humano
rencia de Santo Domingo entre dos tipos de cristología, el na sua situação concreta e muito menos o pobre.
14 “A linha teológica dominante, expressa no Proêmio, História e Nova Evangelização, e também nas introduções, reflete um pensar teológico dife-
rente da teologia latino-americana dos últimos anos. Aparece uma teologia mais dedutiva, abstrata, desencarnada, pouco atenta à história. O mé-
todo ver, julgar e agir desapareceu completamente do documento. Inicia-se pela iluminação teológica, e logo se passa aos desafios e opções pasto-
rais. Isso tem conseqüências em todos os âmbitos: a cristologia está mais centrada nos textos paulinos do que nos sinóticos e inclusive corre o risco
de ser fundamentalista. Alguém comentava que teria sido mais coerente tê-la escrito em latim” (CODINA, 1993, p. 87).
23
O anúncio de Cristo Ressuscitado – e não a liberta- suscitado (querigma, cf. RMi 44), “raiz de toda a Evangeli-
ção dos pobres como o era em Medellín – é agora visto zação, fundamento de toda promoção humana e princípio
de toda autêntica cultura cristã” (DI 25) (DSD 33).15
como missão primeira da Igreja:
A Igreja, comunidade santa, convocada pela Palavra, A Cristologia é também contaminada pelo eclesio-
tem como uma de suas principais tarefas a de pregar o centrismo subjacente ao DSD:
Evangelho (cf. LG 25). Os Bispos das Igrejas particula-
Uma vez que os bispos proclamam que o primeiro
res que peregrinam na América Latina e no Caribe e to-
kerygma evangelizador e raiz de toda evangelização é
dos os participantes reunidos em Santo Domingo,
o anúncio de Cristo Ressuscitado e sua confissão como
queremos assumir com o renovado ardor que os tempos
O Senhor (SD 7), conforme a primeira pregação de Pe-
exigem, o chamado que o Papa, sucessor de Pedro, nos
dro (At 2,36), a proclamação do Reino se identifica com
tem feito para empreender uma Nova Evangelização,
a confissão da presença atuante de Cristo ressuscitado
muito conscientes de que evangelizar é necessariamente
em sua comunidade cristã e na história (SD 24). Assim o
anunciar com alegria o nome, a doutrina, a vida, as pro-
ensinam os bispos na IV Conferência, quando, no pará-
messas, o Reino e o mistério de Jesus de Nazaré, Filho
grafo que intitulam ‘1.4. Para anunciar o Reino a todos
de Deus (cf. EN 22). Querigma e catequese. A partir da
os povos’, paradoxalmente, parecem esquecer-se do
situação generalizada de muitos batizados na América
Reino, e, no seu lugar, afirmam: ‘Cristo nos revela o Pai
Latina, que não deram sua adesão pessoal a Jesus Cris-
e nos introduz no mistério da vida trinitária pelo Espírito.
to pela conversão primeira, se impõe, no ministério pro-
Tudo passa por Cristo que se faz caminho, verdade e vi-
fético da Igreja, de modo prioritário e fundamental, a
proclamação vigorosa do anúncio de Jesus morto e res- da’ (SD 121) (GONZÁLES, 1993, p. 121).
15 “Em Medellín, os bispos tinham reconhecido que a Igreja existe para humildemente servir à extensão do Reino (Med XIV,8). E haviam insinuado
que o cristão busca o Reino de Deus quando se identifica por amor com Cristo (Med XII,2). A conferência de Santo Domingo de cheio se põe a pro-
clamar o cumprimento deste Reino no Senhorio de Cristo, como o havia ensinado João Paulo II na Encíclica Redemptoris Missio (Rmi16)(...). Uma
vez que os bispos proclamam que o primeiro anúncio evangelizador e raiz de toda evangelização é o anúncio de Cristo Ressuscitado e sua confissão
como o Senhor (SD 7), à semelhança da pregação de Pedro (AT 2,36), a proclamação do Reino se identifica com a confissão da presença atuante
do Cristo ressuscitado na sua comunidade cristã e na história (SD 24). Assim o ensinam os bispos na IV Conferência quando, no parágrafo que inti-
tulam 1.4 Para anunciar o Reino a todos os povos, paradoxalmente, parecem esquecer-se do Reino, e, em troca afirmam: ‘Cristo nos revela o Pai e
nos introduz no mistério da vida trinitária pelo Espírito. Tudo passa por Cristo, que se faz caminho, verdade e vida’(SD 121).”(C. I. GONZALES. El
mistério de Cristo, p. 216-217)
24
Para Francisco Catão (1993, p. 20-22), eclesio- gural do Papa) afirma com insistência: a urgência do ‘a-
centrismo e cristomonismo se articulam no DSD: “Enten- núncio’, que deve caracterizar a novas evangelização.
de-se, porém, que Santo Domingo tenha optado por uma Ora, a teologia do ‘anúncio’ está nos textos mais antigos
do Novo Testamento, produzidos por Paulo e pela pri-
profissão de fé cristológica, no intuito apenas velado de
meira geração de missionários; não está na teologia das
manifestar, na unicidade da pessoa do Verbo, um pólo cartas aos Colossenses e aos Efésios, muito mais eclesio-
fixo de identidade e de continuidade, em torno do qual cêntrica e menos voltada para o anúncio missionário.
são tomadas todas as iniciativas que o seu Corpo, a Igreja,
Essa mesma incongruência é ressaltada por Gon-
por delegação sua, vai efetivando, no decurso dos sécu-
zález (1994, p. 212):
los”. Para Catão, “o importante para Santo Domingo é
que a iniciativa pastoral dependa da Igreja institucional, a Numa comparação aproximativa e tão somente funcional,
quem Jesus constitui como encarregada de anunciar a comparo o documento de Puebla como mais próximo da
cristologia dos Evangelhos (sobretudo os sinóticos), e o de
Boa Nova até o fim dos séculos e tornar cristão o mundo”.
Santo Domingo como mais próximo à Cristologia dos Atos
Ao analisar os fundamentos bíblicos desta opção dos Apóstolos: o ponto de partida real das Conclusões é o
cristológica, Antoniazzi (1993, p. 93) vê neles uma certa kerygma de Jesus Ressuscitado, constituído ‘Senhor e
incongruência: Cristo’(At 2,36). A Igreja dos Apóstolos, depois de confes-
A cristologia desta primeira parte do DSD é influenciada sar o Senhorio de Cristo, o reconhece atuante como res-
pelas epístolas deuteropaulinas (Cl e Ef) e dá pouco es- suscitado na sua Igreja. Parece-me que isto é, basicamen-
paço a Jesus histórico. Não se articula com a cristologia te, o que Santo Domingo fez.
predominante na reflexão latino-americana recente, É na descrição do que seja a Nova Evangelização
mas com uma tradição dogmática que já teve seus tem-
que percebemos os pressupostos e, ao mesmo tempo, as
pos gloriosos. Ela corresponde, de fato, a uma fase do
Novo Testamento que – esquematicamente – pode ser
expressões pastorais dessa compreensão cristológica:
descrita como a passagem de Jesus, que pregava o Rei- Para João Paulo II, a Nova Evangelização é algo atuan-
no, para a Igreja, que prega o Cristo glorioso. A opção é te, dinâmico. É, antes de tudo, chamado à conversão
possível e legítima,mas não deixa de apresentar certa (cf. DI 1) e à esperança que se apóia nas promessas de
contradição com o que o DSD (e o próprio discurso inau- Deus e que tem como certeza inquebrantável a Ressur-
25
reição de Cristo, primeiro anúncio e raiz de toda a evan- nova vida segundo Deus e um novo tipo de convivência
gelização, fundamento de toda promoção humana, e relação social’ (DSD 190).
princípio de toda autêntica cultura cristã (cf. ibid., 25). É Nesse mesmo contexto, o DSD fala que “a ressur-
também um novo, âmbito vital, um novo Pentecostes
reição de Jesus situa de novo a humanidade ante a mis-
(cf ibidem, 30-31) em que o acolhimento do Espírito
Santo fará surgir um povo renovado, constituído de ho- são de libertar toda a criação que deve ser transformada
mens livres, conscientes de sua dignidade (cf. ibid., l9) e em novo céu e nova terra, onde a justiça tenha a sua mo-
capazes de forjar uma história verdadeiramente huma- rada” (DSD 173).
na. É o conjunto de meios, ações e atitudes aptos para Outra opção seria pôr em relevo a cristologia da
pôr o Evangelho em diálogo ativo com a modernidade e “Mensagem aos povos da América Latina”, material in-
o pós-moderno, seja para interpretá-los, seja para dei- trodutório ao corpo do documento, igualmente aprova-
xar-se interpelar por eles. Também é o esforço por incul-
do pela Assembléia. A mensagem faz um admirável refle-
turar o Evangelho na situação atual das culturas de
xão partindo de Lc 24,13,32 (Encontro com os discípulos
nosso Continente (DSD 24).
de Emaús).
É uma evangelização de muito anúncio, mas de Mas nada que nos faça esquecer que “estamos di-
pouco conteúdo... ante de uma cristologia deficiente e incompleta, que não
Há alguma coisa boa a resgatar na Cristologia de é este o setor com o qual o texto trará uma contribuição
Santo Domingo? significativa para a reflexão e a prática da Igreja lati-
Se queremos algo que lembre a tradição cristoló- no-americana”(MURAD, 1993, p. 22).
gica latino-americana, temos que buscá-la na cristologia
implícita que transparece nos textos pastorais nas diver- 1.4 Aparecida
sas alusões a Jesus contidas no Capitulo 2, sobre a pro-
moção humana (DSD 159, 165, 169, 173, 178, 186, Como todas as Assembléias anteriores, a de Apa-
190, 204). recida, tanto na preparação, na composição, no seu de-
Aí se desvela o valor teológico de Jesus de Nazaré, senrolar e no seu entorno, foi mais um momento em que
seu compromisso com os pobres e promoção de ‘uma afloraram as diferentes compreensões de sociedade, de
26
fé cristã e de Igreja – e da maneira como esta convive e povos, afim de que alcance vida plena. No empenho por
interage com aquelas – que convivem dentro do catolicis- fazer da Igreja uma comunidade mais missionária, o do-
mo latino-americano.16 cumento se volta para a ação pastoral em seus diversos
O tema central proposto para a Assembléia teve âmbitos. No capítulo intitulado “Reino de Deus e promo-
uma influência decisiva sobre a Teologia do Documento: ção da dignidade humana”, aparece a opção preferencial
“Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele pelos pobres e excluídos (cf. MELO, 2008, p. 33).
nossos povos tenham vida. ‘Eu sou o Caminho, a Verda- Cristologia, Eclesiologia e Missiologia são os três ei-
de e a Vida’ (Jo 14,6)”. Todo o Documento gira em torno xos teológicos marcantes do documento. Os três se exigem
de Jesus Cristo como fonte de vida para toda a humani- mutuamente e devem ser compreendidos em relação.17
dade e da experiência fundante do cristão missionário. Quanto à Cristologia, assim como em Puebla e
O Documento está organizado em três grandes Santo Domingo, podemos dizer que ela aparece de duas
partes. A primeira parte louva e agradece pelos dons de formas, uma explícita e outra implícita. A “Cristologia explí-
Deus, particularmente a fé e a participação na missão, ao cita”, desde o Documento de Preparação (cf. BRIGHENTI,
mesmo tempo em que lança um olhar teológico e pasto- 2006), aparece problemática, tanto no método como no
ral sobre a realidade. A segunda parte apresenta a vida conteúdo. O conteúdo apresenta um déficit cristológico
de Jesus Cristo nos discípulos missionários, vida que se assim descrito por Brighenti:
realiza na diversidade de dimensões da existência cristã. O Cristo do Documento é o Ressuscitado, Rei, Vivo, Ca-
Na terceira parte, o Documento trata da missão. Através minho, Verdade e Vida. O Salvador do povo excluído é
da missão, a vida de Jesus Cristo entra na vida de nossos o Jesus Sofredor, quando não o Jesus Morto da Sexta-
16 Para uma visão bastante detalhada da preparação e do desenvolvimento da Conferência de Aparecida, tanto no seu interior como no ambiente so-
cial e eclesial, ver: BRIGHENTI, Agenor. Documento de Aparecida. O contexto do texto. REB, Petrópolis, fasc. 268, outubro de 2007, p. 772-800.
Uma visão mais “militante”, desde a perspectiva das CEBs e Pastorais Populares pode ser encontrada em: SANTOS, Paulo César dos. A Conferên-
cia de Aparecida: chaves de leitura. REB, Petrópolis, fasc. 270, abril de 2008, p. 310-325.
17 Não temos possibilidade de tratar neste trabalho a eclesiologia e a missiologia do Documento, mas é este certamente um trabalho interessante e ne-
cessário.
27
Feira Santa. Não que se duvide do Ressuscitado ou que o pós-pascal, isto é, o encontro dos discípulos com Cristo
esteja vivo, mas se Jesus é solidário com sua dor, deve ressuscitado. A desproporção está em que o encontro dos
estar sofrendo também. Impossível que tudo seja glória discípulos com o Jesus histórico aparece apenas uma vez
para um Deus que tem seus filhos esmagados pela
(DA 21) enquanto que o encontro com o Ressuscitado
opressão e injustiça. O risco maior da cristologia não é
tem um lugar central e gira principalmente em torno à re-
um Jesus sem Cristo, mas um Cristo sem Jesus.
flexão sobre os títulos cristológicos: o Vivente (DA 356);
No Documento de Aparecida, a categoria funda- Senhor da Vida ( DA 43,389); Caminho, Verdade e Vida
mental da Cristologia é a do “encontro”. Esta categoria (DA 1,6,19,136,242,246,336) etc.
não faz parte da tradição cristológica do Magistério Lati- O encontro com Jesus é descrito como uma expe-
no-americano. Ela entrou no discurso cristológico lati- riência pessoal e comunitária, concreta, existencial, de
no-americano a partir da Exortação Pos-sinodal Ecclesia encontro afetivo e efetivo com Alguém, muito caracte-
in América de João Paulo II, que tinha como título O rística das igrejas pentecostais e, dentro da Igreja Católi-
encontro com Jesus Cristo vivo, caminho para a conver- ca, dos grupos e movimentos de corte carismático.
são, a comunhão e a solidariedade na América. No Docu- “Encontrei Jesus!” parece ser a “força motora” cristoló-
mento de Aparecida, a palavra encontro, com matiz cris- gica do Documento de Aparecida (cf. SANTOS, 2008, p.
tológica, aparece em torno de 60 vezes. Lida desde a 312; DA 11).
categoria de “encontro”, a Cristologia do documento tem Para Libânio (2007, p. 831), isso se deve à medio-
dois fundamentos que, no conjunto do texto, aparecem cridade dos membros da Assembléia18 e ao contexto cria-
de forma desproporcional: o pré-pascal, ou seja, o en- do pela notificação, feita apenas alguns meses antes, sobre
contro dos discípulos com Jesus em sua vida histórica; e a obra cristológica de Jon Sobrino que tem como caracte-
18 “Numa Assembléia sem especialistas em cristologia e sem exegetas de peso, como elaborar uma cristologia? O caminho viável foi assumir, de ma-
neira simples e direta, afirmações sobre Jesus, mais próximas do antigo modelo tradicional das Vidas de Cristo do que da cristologia, do testemu-
nho de fé sobre Jesus do que do conhecimento regrado pelos métodos histórico-críticos. Recorreu-se aos textos bíblicos na sua expressão imediata,
sem submetê-los a nenhum tratamento teológico crítico. E assim surgiu uma cristologia preferentemente vista de cima, da Transcendência e
pré-existência de Jesus. O Documento formulou a fé em Jesus, Filho eterno do Pai, que veio até nós para ensinar-nos o caminho, a verdade e a
vida” (LIBÂNIO, 2007, p. 831-832).
28
rística marcante a afirmação da humanidade de Jesus em a) uma cristologia sem Reino, de modo, “que a
sua contextualização histórica concreta e que tem, como própria mensagem de Jesus não está presente no Docu-
pano de fundo, as exigências que a realidade histórica mento”;
coloca para o cristão latino-americano, hoje. b) uma cristologia sem encarnação histórica: “O
Para Comblin (2007, p. 885), corroborando a afir- texto faz uma enumeração de fatos e ditos ressaltados pe-
mação de Libânio desde outro ângulo, o fator decisivo los evangelhos. Mas não mostra o sentido da vida de Je-
para as limitações do conteúdo cristológico foi político: o sus. Não o mostra no seu contexto histórico e, por isso,
desproporcional peso dos representantes dos Movimen- passa ao lado da realidade. O problema é a humanidade
tos Eclesiais e a sua dificuldade em aceitar a historicidade de Jesus. O texto não expressa realmente a humanidade
da fé cristã: da vida de Jesus nesta terra. Fala da humanidade como
O ponto fraco do Documento é a sua teologia, sobretu-
se fosseuma ‘natureza humana’, um conjunto de faculda-
do a cristologia e a eclesiologia. Era inevitável. Para me- des, ou então como se fosse uma aparição de Deus nesta
lhorar, seria preciso aceitar a historicidade de Jesus e da terra”.19
Igreja, aceitar os métodos das ciências históricas e das c) uma cristologia sem conflito: “Uma cristologia
ciências humanas. A importância dos movimentos não sem pecado, sem drama, sem conflito, sem síntese, o que
o permitia, porque a burguesia tem horror à história e às significa isso? Há uma só explicação. É uma expressão
ciências históricas. Constrói ideologias para justificar a burguesa da cristologia. A mentalidade burguesa tem hor-
situação atual.
ror ao conflito, ao drama, ao sofrimento, à cruz. Tende a
A falta de historicidade na cristologia explícita (mes- espiritualizar a religião toda, mantendo-a dessa forma lon-
mo em forma não sistemática) se expressa, conforme ge dos problemas do mundo atual. O seguimento de Je-
Comblin (2007, p. 875-885), nas seguintes deficiências: sus, proposto, é um seguimento adaptado à condição bur-
19 “Isso não tem nada a ver com o Concílio de Calcedônia. Trata-se de saber o que é ser homem. Para nós, ser homem (ou mulher) e estar num ponto
determinado da história humana, num contexto histórico que os condiciona e determina os limites como as possibilidades da sua vida. Ser homem
ou mulher é construir a sua vida, ter sonhos e realizar alguns projetos. Ser homem ou mulher é uma luta para viver,para ficar livre dos perigos e
aprender a saber usar os recursos que o mundo oferece para realizar os seus projetos” (COMBLIN, 2007, p. 877).
29
guesa. Não corresponde às aspirações populares mais vicção doutrinal prévia influenciou o conjunto do texto.
profundas. O povo simples prefere o cântico de Maria no Pela fé em Cristo, vivida na Igreja, temos toda a verda-
seu texto, as bem-aventuranças e o anúncio do Reino de de, toda a libertação, os valores fundamentais do ser hu-
mano. Imbuídos dela, transformaremos a nós, e
Deus pela vitória sobre os reinos que dominam a terra.”
oferecemos a fonte de transformação para as outras pes-
d) uma cristologia sem cruz: “O Documento não soas e para a realidade. Em abstrato, a afirmação é ab-
destaca muito a morte de Jesus e não lhe dá nenhum con- solutamente correta. Mas a questão se põe no nível, não
texto humano. Jesus oferece a sua vida ao Pai fora da histó- da realidade de Cristo, mas daquilo que pensamos ser a
ria, sem relação com a história humana, como ato de pie- fé em Cristo. E o pressuposto é de que sabemos com cla-
dade. A cruz não se destaca. Embora haja algumas alusões reza o que seja, e disso não duvidamos, e, portanto, o
aos mártires, estes também são vistos fora da história, como processo consiste em tirar daí as conseqüências práticas
e pastorais.
se quisessem simplesmente fazer um ato heróico”.
Uma Cristologia que esquece o Reino de Deus, a Esse pressuposto de que os cristãos “sabemos com
encarnação histórica de Jesus, os conflitos da missão e a clareza o que seja [a fé em Jesus Cristo], e disso não duvi-
cruz de Jesus, é ainda uma cristologia cristã? damos, e, portanto, o processo consiste em tirar daí as
A raiz desse déficit cristológico, já presente no Do- conseqüências práticas e pastorais” nos introduz na ques-
cumento de Preparação (cf. BRIGHENTI: 2006), e que tão do método subjacente ao Documento.
continua presente no Documento de Aparecida, além Já o Documento de Preparação (cf. BRIGHENTI,
das razões acima citadas, pode ser compreendido – mas 2006) apresentava uma deficiência na forma de pensar a
não por isso justificado – na sua relação com a eclesiolo- relação entre Jesus Cristo, enquanto resposta de fé, e a
gia e a missiologia presentes no Documento. Relação realidade para a qual essa resposta quer ser dada: há
descrita de modo sucinto, claro e suficiente por Libânio uma resposta prévia antes que a pergunta seja colocada.
(2007, p. 838): Em termos cristológicos, a Igreja já sabe tudo o que deve
Aparecida conservou as aberturas da tradição de Medellín, dizer sobre Jesus Cristo antes mesmo de saber a quem se
mas modificou a maneira de compreendê-las. Uma con-
30
dirige (cf. Brighenti, 2006, p. 327)20. O trabalho da de fundo, mas uma clara descontinuidade de forma ou
Assembléia, mesmo tendo acatado a sugestão de colocar de acentos” (p. 7).
o “ver” da realidade antes do “julgar-agir”, manteve o A “clara descontinuidade de forma ou de acentos”
pressuposto metodológico fundamental – não só na é exigida pelo novo contexto social posterior à dissolução
questão cristológica, mas em toda a estrutura do pensa- do socialismo real – “virada epocal”, no dizer do autor –
mento – de que há uma verdade previamente estabeleci- que já não coloca a questão da justiça como central, mas,
da e cognoscível e de que a ação é conseqüência de uma em seu lugar coloca a “questão cultural” (p. 7).
correta dedução de práticas a partir destes princípios des- A alternativa apresentada por Clodovis para o fu-
de sempre existentes em si mesmo. turo Documento de Aparecida é re-partir da experiência
Essa questão ficou explícita, no que concerne à de fé. Para isso apresenta duas razões. A primeira, de or-
Cristologia, quando a colocamos dentro do contexto dem estritamente teológica, pois Deus vem antes de tudo
mais amplo do debate em torno aos “fundamentos da te- (p. 16). A segunda é de ordem eclesiológica: o “pastora-
ologia da libertação” protagonizado por Clodovis Boff lismo” da Igreja latino-americana (p. 20).
(2007a; 2007b), Luiz Carlos Susin e Érico Hammes Ao receber o Documento de Aparecida, Clodovis
(2008), Francisco Aquino Junior (2008) e Leonardo Boff (2007b, p. 1012) festeja a coincidência entre a sua pro-
(2008), entre outros. posta e a expressa pela V Conferência e, para ilustrar a
O debate começa pelo texto de Clodovis Boff questão do método, toma a temática cristológica:
(2007a), que analisa o Documento de Preparação e faz a
É útil estabelecer aqui um breve confronto entre a meto-
ele sugestões. Já no título, em uma pergunta retórica, o
dologia da TdL e a de Aparecida. Podemos, de modo
autor apresenta sua proposta: “Re-partir da realidade ou extremamente conciso, apresentar este confronto assim:
da experiência de fé?”. Para o autor, “Aparecida não a TdL parte do pobre e encontra Cristo; Aparecida parte
pode ser a repetição, mesmo atualizada, de Medellín, Pue- de Cristo e encontra o pobre. Dizer que são metodologias
bla e Santo Domingo”. Deve haver “uma continuidade reciprocamente complementares é pouco. É preciso
20 A essa elaboração cristológica subjaz uma Eclesiologia da Igreja como detentora da verdade e uma Missiologia comopreendida como transmissão
de verdades.
31
também e principalmente ver as respectivas diferenças e Sem querer retomar aqui toda a problemática do
a hierarquia que se impõe entre as duas (Grifo nosso). método em teologia tão bem trabalhada pelos autores
As diferenças e a hierarquia entre os dois métodos acima referidos, destacamos apenas a questão cristológi-
são assim por ele explicitados, sempre a partir da temáti- ca que nos parece central: o do modo de encontro com
ca cristológica: Jesus Cristo. Do ponto de vista formal, “é verdade que,
na tradição reafirmada por Clodovis, o intellectus fidei
[...] a metodologia de Aparecida é uma metodologia ori- voltado para o Evento da Revelação do Mistério é o ato
ginária e principal, enquanto a outra só pode ser deriva-
de acolhimento e compreensão da Revelação, e, portan-
da e subalterna. Por isso também a primeira é mais
ampla. Pois, se Bento XVI foi teologicamente certeiro to, princípio epistemológico do edifício teológico” (SUSIN
quando, abrindo a V Celam, declarou: ‘a opção pelos e HAMMES, 2008, p. 282). O problema é o de acesso ao
pobres está implícita na fé cristológica’, então fica claro conhecimento de Deus em Jesus Cristo. Nos parece, com
que o princípio-Cristo inclui sempre o pobre, se que o Susin e Hammes (p. 286), que, antes de nos perguntar-
princípio pobre inclua necessariamente Cristo. Por ou- mos pela essência de Deus, é preciso perguntarmos-nos
tras palavras: para ser cristão é preciso absolutamente se pelo lugar onde ele se revela.
comprometer com o pobre; agora, para se comprome-
Ao descrever os “lugares de encontro com Cris-
ter com o pobre, não é, em absoluto, necessário ser
to”, o Documento de Aparecida é generoso. Cristo pode
sempre cristão (Grifo nosso).
ser encontrado na Sagrada Escritura (247-249), na
E arremata: liturgia, especialmente no Sacramento da Reconciliação
(250-254), na oração pessoal e comunitária (255), na co-
Além disso, a metodologia de Aparecia é mais lógica: de
munidade viva na fé e no amor fraterno (256), nos po-
Cristo vai-se necessariamente ao pobre, não, porém,
necessariamente do pobre a Cristo. Por tudo isso, a me- bres, afligidos e enfermos (257), na piedade popular
todologia de Aparecida pode incluir a da TdL e pode (258-265), em Maria (266-272), na vida dos apóstolos e
fundá-la, enquanto que a recíproca não é verdadeira” santos (273-275) e nos movimentos e novas comunida-
(Grifo nosso). des (312).
32
Em princípio, não há nada problemático na rela- se acercar de nós. Ele estabeleceu esta densidade
ção, pois, quando se consegue romper uma compreen- sacramental dos pobres e nenhuma teologia e pureza
são unipolar e excludente, “pode-se partir de Cristo para metodológica pode pretender anulá-la.
chegar ao pobre, mas pode-se partir do pobre para che- Para Susin e Hammes (2008, p. 285), os dois pon-
gar a Cristo e, assim, à compreensão realmente cristã de tos de partida se exigem mutuamente:
Deus” (SUSIN; HAMMES, 286). Ou seja, a partir de qual-
Se não se chega a um ponto é porque não se compreen-
quer realidade,em princípio, pode-se chegar a Cristo e a deu bem também o outro, e isso vale para ambos: uma
Deus, pois todas as realidades são teologais. No entanto, má compreensão de Cristo não leva necessariamente
na opinião de nossos autores, os dois caminhos não são para o pobre – e temos exemplos constrangedores – en-
equivalentes: “Há riscos: não nos parece ser verdadeira a quanto uma compreensão real do pobre na perspectiva
afirmação de Clodovis de que de Cristo sempre se chega prática significa o encontro com Cristo, mesmo se teori-
ao pobre, mas do pobre nem sempre se chega a Cristo”. camente ainda não seja conhecido.
Leonardo Boff (2008, p. 706) toma, com o ênfase Como dizíamos anteriormente, opção teológica e
que lhe é próprio, a mesma postura: opção pastoral se exigem e se complementam mutua-
Quem encontra o pobre, encontra infalivelmente a Cris- mente. A “opção pelos pobres”, que, como o próprio tex-
to, na forma ainda crucificada, pedindo para ser baixa- to diz, constitui “rasgo que marca a fisionomia da Igreja
da da cruz e ser ressuscitada. É falsa, por causa da fé na latino-americana e caribenha” (DA 391) e que “caracteri-
encarnação, a segunda parte da seguinte afirmação: ‘o za de maneira decisiva a vida cristã, o estilo eclesial e a
princípio-Cristo inclui sempre o pobre, sem que o princí- programação pastoral” (DA 394), no Documento de
pio-pobre inclua necessariamente Cristo’ (REB 1012). Di- Aparecida, é apresentada como conseqüência da opção
zer que o pobre não inclui necessariamente o Cristo é
cristológica: “Nossa fé proclama que ‘Jesus Cristo é o ros-
desdizer o que o Juiz supremo diz. Desde que o Filho se
fez homem e homem pobre, o lugar do pobre é lugar de to humano de Deus e o rosto divino do homem’. Por isso,
Cristo e vice-versa. Desde que Deus por Jesus se fez po- ‘a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé
bre, o pobre foi estabelecido em ‘princípio operativo da cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para
libertação’. Devemos respeitar esta forma como Ele quis nos enriquecer com sua pobreza’. Esta opção nasce de
33
nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez No conjunto dos textos, podemos contatar que, à
nosso irmão (cf. Hb 2,11-12). Ela, no entanto, não é ex- exceção de Medellín, todos eles contêm duas cristologias:
clusiva, nem excludente” (392). uma explícita e outra implícita. E que as duas apresentam
Tão periférica é a posição dos pobres no Documen- matizes bastante diferenciados.
to de Aparecia que, o agir em favor dos pobres, chega a A Cristologia explícita de Puebla, Santo Domingo
ser interpretada como missão ad extra (cf. RASCHIETTI, e Aparecida pode ser caracterizada como uma Cristolo-
2007, p. 946), ou seja, os pobres são vistos como não gia dogmática, preocupada com a verdade a respeito de
participantes da Igreja e colocados no mesmo nível dos Jesus Cristo. Seus destinatários são, preferencialmente,
gentios! Dá o que pensar... ou o que chorar. aqueles que, dentro da Igreja, têm uma compreensão dis-
A cristologia implícita na opção pelos pobres, no en- torcida ou desviada da pessoa de Jesus Cristo. É uma
tanto, talvez seja o único lugar em que possamos entrever Cristologia com vocação anti-herética. E, como todos
vestígios da mais autêntica cristologia latino-americana. aqueles que se preocupam demais com os erros dos ou-
tros, parece às vezes cair no mesmo erro, mesmo que em
sentido contrário... O ponto de partida desta Cristologia é
Conclusão a divindade de Jesus Cristo e, por isso, privilegia, na sua
dinâmica, a Encarnação. Seus método é dedutivo: parte
Os diversos discursos sobre Jesus Cristo que pode- do Cristo para chegar à realidade humana. Encaixa-se,
mos encontrar nos Documentos das Assembléias do Ce- assim, dentro da tradição alexandrina. Reino, conflitos e
lam de Medellín a Aparecida são diversificados e até mes- cruz ficam obnubilados nesta cristologia. Cristo ressusci-
mo polêmicos entre si. Isso não é de estranhar pois tado é o grande tema desta cristologia. Mas há dificulda-
refletem o “jogo de força” interno à Igreja Católica no de em articular o Cristo pós-pascal com o Jesus histórico
continente, que, por sua vez, não podem ser desvincula- e, conseqüentemente, ligar salvação e libertação.
dos do tenso processo social vivido pelas sociedades do A Cristologia implícita em Medellín e também nos
continente. A Igreja é uma realidade histórica; a teologia documentos subseqüentes é estreitamente ligada à práti-
se faz na história e as cristologias também... ca pastoral das comunidades cristãs do continente. Seus
34
destinatários são os pobres e aqueles que se colocam a seu Bibliografia
lado nas lutas por libertação. É uma Cristologia preocupa-
da com a ortopráxis. Seu ponto de partida são os pobres ANTONIAZZI, Alberto e INP. “Documento de Trabalho” da III Confe-
e, neles, a presença de Jesus Cristo, hoje. É uma Cristolo- rência Geral do Episcopado Latino-Americano. REB, Petrópolis, vol.
38, fasc. 152, p. 606-624, dezembro de 1978
gia indutiva, que parte do humano para chegar ao divi-
no. Nesse sentido, é uma Cristologia que se identifica com ANTONIAZZI, Alberto. Interrogações em forma de resposta. Observa-
ções sobre a Conferência e as Conclusões de Santo Domingo. Perspec-
a tradição antioquena. A cruz de Jesus e a cruz dos pobres tiva Teológica, Belo Horizonte, Ano XXV, n. 65, p. 90-98, Janeiro/abril
são os grandes temas desta Cristologia. O Jesus histórico – 1993
enquanto fez história e nos convida a fazer história hoje – é BEOZZO, Oscar. Medellín: inspiração e raízes. REB, Petrópolis, fasc.
a preocupação principal. Libertação histórica e salvação 232, p. 823-850, dezembro de 1998.
em Jesus Cristo são insistentemente vinculadas. BOFF, Clodovis. Re-partir da realidade ou da experiência de fé? Pro-
Diante desta constatação, duas posições podem postas para a Celam de Aparecida. REB, Petrópolis, fasc. 265, p. 5-35,
janeiro 2007.BOFF, Clodovis. Teologia da Libertação e volta ao funda-
ser tomadas. Uma, a de lamentar que o melhor da tradi- mento. REB, Petrópolis, fasc. 268, p. 1001-1022, outubro de 2007.
ção teológica e, concretamente cristológica, latino-ameri-
BOFF, Clodovis. Um “Ajuste Pastoral. Análise global do Documento do
cana, não tenha sido tomada em conta explicitamente IV Celam. Em: SANTO DOMINGO. Ensaios Teológico-pastorais. Pe-
nos últimos Documentos do Magistério eclesial latino- trópolis: Vozes/SOTER/Ameríndia, 1993. p. 9-54.
americano. A outra postura possível é constatar que essa BOFF, Leonardo. Pelos pobres contra a estreiteza do método. REB, Pe-
realidade é fruto das tensões internas à Igreja e que, se trópolis, fasc. 271, p. 701-710, julho de 2008.
quisermos que a Cristologia dos próximos Documentos BRIGHENTI, Agenor. Documento de Aparecida. O contexto do texto.
do Magistério latino-americano tenham mais em conta a REB, Petrópolis, fasc. 268, p. 772-800, outubro de 2007.
teologia aqui produzida, há que se trabalhar para que BRIGHENTI, Agenor. O Documento de Preparação da V Conferência.
Apresentação e comentário analítico. REB, Petrópolis. fasc. 262, p.
mude a conjuntura eclesial do Continente. E isso é um 312-336, abril de 2006.
desafio não só para teólogos e cristólogos, mas para to- CADAVID DUQUE, Alvaro. La Cristologia del Documento de Apareci-
dos e todas que se preocupam com o futuro do cristianis- da. Un camino desde Medellín a Aparecida. MEDELLÍN, Medellín, Vol.
mo nestas terras. XXXIII, n. 131, p. 417-445, 2007.
35
CALIMAN, Cleto. Conclusões de Santo Domingo. Roteiro de Estudo. KARLIC, Estanislao Esteban. Jesuscristo ayer, hoy y siempre. Jesuscris-
Convergência, Rio de Janeiro, Ano XXVIII, n. 262, p. 224-249, to ayer, hoy y siempre en América Latina. Medellín, Medellín, vol. 19, n.
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Luiz Vanildo Zugno possui graduação em Filosofia, pela Universidade Católica de Pelotas,
graduação em Teologia, pela Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, e mes-
trado em Teologia, pela Université Catholique de Lyon (1998). Atualmente, é professor assis-
tente do Centro Universitário La Salle, professor da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade
Franciscana e coordenador do curso de Teologia desta mesma escola. Tem experiência na área
de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas:
Cristologia, Trindade e Eclesiologia. Além disso, é membro, desde 2007, da Equipe de Assesso-
ria Teológica da Presidência da Confederação Latino-americana de Religiosos e Religiosas
(CLAR), e atua na formação de lideranças eclesiais no meio popular.