DISSERTAÇÃO Polyanny Lílian Do Amaral Braz PDF

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

POLYANNY LÍLIAN DO AMARAL BRAZ

O CORPO SANTO: CONSTRUÇÃO E PERFORMANCE DO CORPO


RELIGIOSO DAS MULHERES DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO
BRASIL

Profª. Drª. Mísia Lins Reesink


Orientadora

RECIFE
2015
POLYANNY LÍLIAN DO AMARAL BRAZ

O corpo santo: construção e performance do corpo religioso das mulheres


da Congregação Cristã no Brasil

Dissertação orientada pela Profª. Drª.


Mísia Lins Reesink e apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de
Pernambuco como parte das exigências
para obtenção do título de Mestre.

RECIFE
2015
Catalogação na fonte
Bibliotecário Rodrigo Fernando Galvão de Siqueira, CRB-4 1689

B827c Braz, Polyanny Lílian do Amaral.


O corpo santo : construção e performance do corpo religioso das
mulheres da congregação cristã no Brasil / Polyanny Lílian do Amaral
Braz. – 2015.
143 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Profª. Drª. Mísia Lins Reesink.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Recife, 2015.
Inclui referências e anexos.

1. Antropologia. 2. Cristianismo e cultura. 3. Mulheres (teologia


cristã). 4 Santidade. I. Reesink, Mísia Lins (Orientadora). II. Título.

301 CDD (22.ed.) UFPE (BCFCH2016-24)


POLYANNY LÍLIAN DO AMARAL BRAZ

O CORPO SANTO: CONSTRUÇÃO E PERFORMANCE DO CORPO RELIGIOSO


DAS MULHERES DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Antropologia.
Aprovado em: 31/08/2015

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________
Profª Drª Mísia Líns Reesink (Orientadora)
Programa de Pós-Graduação em Antropologia - UFPE

___________________________________________________________________________
Profª Drª Judith Chambliss Hoffnagel (Examinadora Titular Interna)
Programa de Pós-Graduação em Antropologia - UFPE

___________________________________________________________________________
Profª Drª Mírian Cristina Marcílio Rabelo (Examinadora Titular Externa)
Universidade Federal da Bahia
Ao meu avô materno, Cícero,
por todo amor, coragem e fé
passados por gerações.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus por ter-me dado fôlego de vida suficiente para a
realização deste trabalho.
Ao meu esposo, companheiro e confidente Adson Braz, que por tantas vezes fez uso
de uma paciência infinita em momentos difíceis e que, na maioria das vezes, me acompanhou
em campo e cooperou para o desenvolvimento deste trabalho (inclusive os desenhos neste
trabalho são de autoria dele). Um “muito obrigado” não seria suficiente.
Aos meus pais e familiares que, mesmo sem entender exatamente o meu ofício,
sempre foram prestativos e encorajadores. Aos meus avós que me mostram todos os dias o
que significa força, fé e amor ao próximo, especialmente ao meu avô, para quem dedico esta
dissertação escrita em meio a preocupações por seu estado de saúde. Aos meus pais, Paulo e
Neide, e à minha irmã Paloma, por terem me apoiado e aconselhado em minhas escolhas de
vida. Aos meus primos e primas, tios e tias, em destaque meus tios Leonardo e Lenivaldo, por
serem meus exemplos de insistência, determinação e de profissionais acadêmicos. Valeu
mesmo, gente!
Aos meus amigos e amigas, velhos e novos, de longe e de perto. Às amigas, mais
chegadas que irmãs que fiz durante o curso de mestrado: Camila, Jamily e Jordânia, obrigada
pelos momentos de debates e conversas de cunho acadêmico bem produtivas, mas,
principalmente, obrigada por compartilharmos os momentos de desesperos e angústias.
Conseguimos meninas! Não poderia deixar de agradecer aos amig@s de longa data: Alana,
Arlindo, Bia, Flavinha e Sandrão, vocês estiveram comigo desde a graduação, obrigada por
permanecerem. Agradeço também a Israel, Jorge, Ana e Romária que mesmo não fazendo
parte do meu universo acadêmico emprestaram seus ouvidos para muitos desabafos
(especialmente no sufoco do ultimo dia). Obrigadíssimo a todos e todas.
À minha orientadora, profª Mísia, que foi a pessoa que me apresentou a Antropologia
e sempre contribuiu para minha formação, desde o primeiro período da graduação. Ela tem
grande participação na minha escolha pela Antropologia. Agradeço, principalmente, por ter
acreditado em mim mesmo quando, até eu mesma, estava desacreditada; por ter insistido e
persistido com meu (mas caberia “nosso”) trabalho. Queria ter palavras pra dizer algo especial
de verdade, mas não sou muito “machadiana”, você sabe, mas, de qualquer forma, finalizo
dizendo que você é uma orientadora incrível. Um simples “obrigada” não basta.
Às irmãs da Congregação Cristã no Brasil do bairro do Ibura, que foram pacientes e
prestativas, me recebendo de braços abertos e sendo solidárias a esta pesquisa. Obrigada!
Aos professores e professoras que na ministração de suas aulas instigaram reflexões
importantes. Especialmente ao professor Edwin que também contribuiu para este trabalho.
Agradeço a todos que formam o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE,
especialmente a Carla e Ademildinha. Muito Obrigada!
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por ter
financiado esta pesquisa.
A todos e todas que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração deste
trabalho meus sinceros agradecimentos.

Obrigada a todos e todas!


O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem.
Marcel Mauss
RESUMO

Este trabalho se propõe a analisar a construção e a performance do corpo religioso das


mulheres de uma comum da igreja Congregação Cristã no Brasil (Recife), primeira igreja de
caráter pentecostal a se instalar no Brasil, em 1910. Para isto, tomamos como categoria de
análise e etnográfica principal o “corpo”, por meio de conceitos, tais como “técnicas
corporais”, “habitus”, “pré-objetivo” e “embodiment”; ao mesmo tempo em que se reflete
sobre a cosmologia e práticas que constituem essa denominação pentecostal. A partir disso,
esta dissertação argumenta que a construção do corpo feminino na Congregação Cristã do
Brasil se instaura na relação dialética estabelecida com as categorias nativas santidade, sentir
de Deus e comunhão.

Palavras-chave: Congregação Cristã no Brasil. Corpo. Mulheres. Santidade.


ABSTRACT

This study analyses the construction and the performance of the religious body of female
members of a “common” of the Christian Congregation of Brazil church (Recife). This is the
first church of a pentecostal denomination to be introduced in Brazil (in 1910). To achieve
this aim, we concentrate on the ethnographic and analytical examination of the category of the
“body”, by means of concepts like “body techniques”, “habitus”, “pre-objective”, and
“embodiment”, while also reflecting upon the cosmology and practices of this particular
religion. With this analysis in mind, we conclude that the construction of the female body in
the Christian Congregation of Brazil is founded upon the dialectical relation between the
native categories of sainthood, feeling to belong to God, and communion.

Key-words: Christian Congregation of Brazil. Body. Women. Sainthood.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Louis Francescon e Rosina Balzano, sua esposa. .................................................... 27


Figura 2: Igreja da Rua Azuza – 1906 .................................................................................... 29
Figura 3: Primeiro prédio da CCB (PR) e Felício Antônio Mascaro, primeiro crente batizado
da CCB em 05/jun/1910 ..........................................................................................................31
Figura 4: CCB no Brás – SP (Década de 1960 / Dias atuais) ................................................. 32
Figura 5: Cartograma da população residente com religião evangélica de origem pentecostal
da Igreja Congregação Cristã no Brasil .................................................................................. 40
Figura 6: CCB – Ibura ............................................................................................................. 42
Figura 7: Culto na CCB – Brás, Década de 1950. .................................................................. 58
Figura 8: Culto na CCB – Brás, Anos 2000 ............................................................................ 59
Figura 9: Batismo na CCB ...................................................................................................... 65
Figura 10: Primeira Orquestra da Congregação Cristã no Brasil ............................................ 66
Figura 11: Caixa de Oferta CCB ............................................................................................. 68
Figura 12: Véu ........................................................................................................................ 94
Figura 13: Véu para crianças .................................................................................................. 95
Figura 14: Organista .............................................................................................................. 101

LISTA DE DESENHOS

Desenho 1: Planta interna – CCB Ibura .................................................................................. 45


Desenho 2: Assento de madeira .............................................................................................. 46

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: “As 10 maiores igrejas no Brasil” ........................................................................... 34


Tabela 2: CCB na Região Metropolitana do Recife ............................................................... 41

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: “Gráfico 1: Religiões no Brasil (1872-2010)” ....................................................... 33


Gráfico 2: Pentecostais: Censo 2000 x Censo 2010 ............................................................... 35
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12

2 CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL: HISTÓRICO, DOUTRINA E OUTROS


DADOS ............................................................................................................................................... 25
1.1 Francescon e o início da Congregação Cristã ..................................................................... 26
1.2 CCB em números ............................................................................................................... 32
1.3 CCB e suas doutrinas .......................................................................................................... 47
1.3.1 Definição e caráter politico-administrativo da CCB ....................................................... 47
1.3.2 Os artigos de fé e doutrina da Congregação Cristã no Brasil .......................................... 52
1.3.3 Rituais, glossário e outras particularidades ..................................................................... 56

3 TÉCNICAS CORPORAIS E A CONSTRUÇÃO DO CORPO RELIGIOSO ............... 71


2.1 Corpo: Teoria Antropológica e Pentecostalismo ................................................................ 72
2.2 O corpo na CCB ................................................................................................................. 87
2.2.1 Técnicas Corporais e Indumentárias................................................................................ 88
2.2.2 Participação das mulheres na igreja................................................................................. 97
2.3 Construção do corpo religioso .......................................................................................... 102

4 PERFORMANCE E SANTIDADE: EXPERIÊNCIAS CORPORAIS .......................... 103


3.1 Conceito de Santidade ...................................................................................................... 104
3.2 O “Sentir de Deus” .......................................................................................................... 111
3.3 Pureza e Perigo; Santidade e Pecado. ............................................................................... 114
3.4 Santa Ceia: Festa, ritual, performance e santidade ........................................................... 119

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 130

REFERÊNCIAS.............................................................................................................................. 133

ANEXOS........................................................................................................................................... 140
1 INTRODUÇÃO

A Congregação Cristã do Brasil (CCB) é a primeira igreja de caráter pentecostal a se


instalar no Brasil. Com 105 anos de existência no país e com milhares de membros
espalhados pelo território nacional, é a terceira maior igreja protestante em número de
adeptos. Curiosamente, a CCB é uma das denominações pentecostais menos conhecidas pela
literatura antropológica, com raros trabalhos e referências sobre a instituição e suas práticas e
crenças. Ainda menos se conhece qual é a posição da mulher nessa igreja e como o corpo
feminino é aí constituído e performado, e, embora a Antropologia reserve espaço considerável
para o estudo sobre religião e corpo1, o debate em que convergem esses campos ainda precisa
ser mais explorado, especialmente se tratando da Congregação Cristã no Brasil. Diante disso,
acreditamos ser necessário ao melhor conhecimento do campo pentecostal nos debruçarmos
etnograficamente sobre a CCB, refletindo sobre a instituição, especialmente sobre a mulher
CCB e a construção desse corpo feminino pentecostal. Esta pesquisa, portanto, pretende
contribuir teórica e empiricamente para o conhecimento antropológico sobre o tema,
oferecendo um alargamento etnográfico sobre a CCB, além de acrescentar às discussões sobre
corpo e religião.
Frente aos atributos que regem a cosmologia pentecostal da CCB, destacaremos que a
grande maioria deles, senão todos, são incorporados, direta ou indiretamente, na performance
corporal. Concentraremos nossas análises mais profundamente no corpo feminino, a fim de
pensá-lo nesse contexto. A Congregação Cristã no Brasil será, portanto, objeto de análise
etnográfica desta pesquisa, cujo objetivo geral é refletir sobre a performance e a construção do
corpo feminino na CCB, considerando, a partir da cosmologia da comunidade religiosa, a
ideia de santidade e a sua prática que, dialeticamente, formam esse corpo religioso feminino.
Argumentamos, então, a partir dos nossos dados, que a atuação dialética de certas categorias
chaves é fundamental na instauração desse fenômeno: corpo, que tomamos aqui como
categoria central – tanto etnográfica quanto analítica; santidade, para refletir sobre a ideia de
“separação” do mundo, que implica na necessidade de “ser diferente” e, isso, por meio das
técnicas corporais; e sentir de Deus, como categoria fundamental para pensar a demonstração
e legitimação da santidade. Além disso, apontamos que o ritual da Santa Ceia aparece como

1
Além dos analisados neste trabalho, destacamos: Le Breton, 2009; Maués, 2003.
12
tempo da culminância e excesso de santidade, servindo como paradigma de santidade para o
tempo cotidiano.

Olhar sobre o campo Pentecostal

O número de adeptos ao protestantismo tem evoluído e, dentre esses, vale ressaltar a


predominância pentecostal, que constitui praticamente dois terços dos evangélicos, segundo o
Censo de 2000. Especialmente a partir da segunda metade do século XX, o crescimento
pentecostal acelera e centenas de diferentes denominações pentecostais se formaram no país.
Diante da diversidade institucional e da pluralidade interna desse movimento, podemos
perceber grande variação doutrinária, ritual, litúrgica, organizacional, comportamental e até
mesmo estética. Além disso, as estratégias proselitistas, seus públicos-alvo, sua relação com
os poderes públicos, com a política partidária e com os meios de comunicação de massa
também são valorizadas e executadas de maneiras diferentes. Por isso, podemos afirmar que
se trata de um fenômeno religioso dinâmico e diversificado internamente.
Para o sociólogo Ricardo Mariano (2005), a expansão do pentecostalismo é um
processo de globalização do protestantismo popular que ameaça a dominação tradicional
católica. Esse movimento, vale ressaltar, desenvolve-se de maneira peculiar no Brasil. O
pentecostalismo chegou ao país entre 1910 e 1911, numa forte frente contra o catolicismo.
Embora com bases teológicas semelhantes, o movimento pentecostal no Brasil está longe de
ser homogêneo. Para melhor compreensão, Mariano2 (2005) segue o método de Martin e
divide o pentecostalismo brasileiro em três vertentes ou ondas: pentecostalismo clássico3,
deuteropentecostalismo e neopentecostalismo.
A primeira vertente tem seu início marcado com a fundação da Congregação Cristã no
Brasil (CCB), em 1910, e da Igreja Assembleia de Deus, em 1911. Embora com profundas
divergências eclesiásticas e doutrinárias, ambas caracterizavam-se pela forte crítica ao
catolicismo, pela ênfase na crença da volta repentina de Cristo e no batismo com Espírito
Santo (especialmente a glossolalia) e “pelo comportamento de radical sectarismo e ascetismo
de rejeição do mundo exterior” (Mariano 2005: 29), ou seja, visão proselitista radical e pela
rejeição aos valores do mundo. Essas igrejas eram formadas, em sua maioria, por pessoas das

2
Embora outros autores reflitam sobre a organização do pentecostalismo no Brasil (Brandão1980; Mendonça
1989; Freston 1993) opto pela classificação de Mariano (2005), por sua classificação de "pentecostalismo
clássico" atender melhor aos objetivos deste trabalho.
3
O autor ressalta que o termo “clássico” se restringe à ideia de antiguidade ou pioneirismo histórico dessas
denominações.
13
classes mais baixas, com baixo nível de escolaridade, discriminadas pelas igrejas históricas e
perseguidas pela igreja católica. Porém, com o decorrer do tempo, as igrejas do
pentecostalismo clássico se modificaram, abrigaram fiéis de todas as classes sociais e se
tornaram mais permissivas. Mesmo diante dessas modificações, a Congregação Cristã no
Brasil permanece fechada a novas mudanças e as alterações nos usos e costumes acontecem
de forma lenta e quase imperceptível. Já a Assembleia de Deus se mostrou aberta e disposta a
encarar as inovações promovidas pelo movimento pentecostal.
Quanto à segunda vertente, o deuteropentecostalismo surge na década de 1950 por
meio da Igreja do Evangelho Quadrangular (1951) com inovações das técnicas de
evangelismo. Com o sucesso dessas técnicas, foi provocada a fragmentação denominacional
e, assim, surgem outras igrejas pentecostais autônomas como a Brasil para Cristo (1955), a
Igreja Deus é Amor (1962) e a Casa da Benção (1964), que reforçam o movimento.
Vale ressaltar que, nas décadas de 1960 e 1970, houve um movimento pentecostal nas
igrejas tradicionais, implicando o surgimento de vários grupos nomeados “renovados”. A
ênfase teológica no batismo com o Espírito Santo e, especialmente, no dom de cura divina foi
um dos motivos principais para a aceleração e diversificação do pentecostalismo no Brasil. A
partir de então, há um desenvolvimento de novas igrejas pentecostais, como por exemplo, a
Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil, Convenção Batista Nacional, Igreja Metodista
Wesleyana, entre outras.
Comparativamente, as duas primeiras vertentes pentecostais diferem entre si muito
mais pela diferença na ênfase dos dons (a primeira enfatiza o dom de línguas e a segunda o
dom de cura) e por táticas evangelísticas, que por teologias diferentes (Mariano 2005).
No que diz respeito ao neopentecostalismo, ele começa na segunda metade da década
de 1970, cresce e se fortalece nas décadas de 1980 e 1990. Representado por igrejas fundadas
por brasileiros, como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), Internacional da Graça de
Deus (1980), entre outras, tem características diferentes das duas vertentes anteriores, tanto
pela formação recente quanto pelo caráter de inovação doutrinário. Dentre os ensinamentos
comuns em igrejas neopentecostais podemos destacar alguns principais: a batalha espiritual,
isto é, um confronto espiritual direto com os demônios em prol da libertação do indivíduo; a
Teologia da Prosperidade; uso da mídia para propagação da crença; e maior liberalidade nas
normas que regem o estilo de vida.

14
Tomando por base a classificação acima apresentada, localizamos, então, a
Congregação Cristã no Brasil no âmbito pentecostal como denominação pentecostal clássica,
cujas características originais já anotamos.

Estado da Arte: Corpo e Santidade

Durante muito tempo, o corpo foi pensado como um objeto de estudo exclusivo das
ciências médicas, que o tratou sob uma perspectiva biológica, isto é, do “corpo máquina”,
concentrando o foco de interesse na saúde e em suas consequências orgânicas. Somente em
meados do século XX começaram a surgir os primeiros trabalhos sobre essa temática,
partindo para uma perspectiva humanística e social, deixando de lado a visão médica,
instrumentalista do corpo.
É na década de 1960, com os movimentos contraculturais e artísticos, que o corpo
passa a ter maior visibilidade social no ocidente. Somando-se a isso, o movimento feminista,
em 1970, marca toda uma geração que reivindicava a posição social da mulher por meio da
luta por igualdade, direito e autonomia sobre o próprio corpo. Nesse cenário, revela-se uma
corporeidade que não mais se restringe à parte da biologia e ganham espaço os estudos e
pesquisas sobre sexualidade e gênero. Essas ideias revolucionárias foram expressas na
dimensão corporal, que se tornou uma espécie de zona turbulenta por meio da qual o
indivíduo passa a questionar novos valores sociais, uma vez que os antigos paradigmas já não
são mais suficientes.
No contexto religioso, os cristãos protestantes, em especial os pentecostais no Brasil,
apresentam diferentes correntes no que diz respeito ao uso do corpo como símbolo
representativo da fé que professam. A corrente do pentecostalismo da primeira década do
século XX, por exemplo, defende o uso restrito do corpo, apropriando-se de um conjunto de
regras sobre sua utilização; em contrapartida à corrente mais recente, denominada de
neopentecostalismo, apresenta-se com um caráter inovador quanto às questões da
corporeidade. A religião desempenha um papel importante na sociedade e, atualmente, no
Brasil, as instituições religiosas vêm passando por um processo de mudança bastante
significativo. De um lado, este país tem demonstrado um crescimento exacerbado dos
movimentos evangélicos, sobretudo dos pentecostais (Mariano 2004; Camurça 2006; Censo
2010). Por outro lado, as ideias “revolucionárias” apresentadas pelos neopentecostais

15
provocam mudanças históricas e de impacto social, além de um novo olhar em relação ao
movimento e especialmente sobre a perspectiva do corpo.
No corpo, como sendo a primeira representação do ser no mundo, repousam as
características físicas, sociais e culturais do indivíduo. Para os cristãos protestantes, em
especial para os pentecostais no Brasil, o corpo é como símbolo representativo da fé que
professam. Seja no modo de vestir, falar ou se comportar, os cristãos seguem uma ética de
conduta peculiar, já que valorizam a ideia de serem “templo e morada do Espírito Santo”.
Para que isso ocorra, é fundamental uma vida santificada, longe dos prazeres mundanos e do
pecado. A ideia de santidade e o corpo se convergem quando esta primeira é revelada através
da segunda, numa busca constante, por parte dos fiéis, por um estilo de vida santificado.
Porém, a percepção do corpo e sua relação com a identidade religiosa não é homogênea
dentro do Cristianismo, nem mesmo dentre os pentecostais.
Para dar conta da complexidade do campo etnográfico, lembrando ser ele
multifacetado, teremos que abordá-lo teoricamente a partir de dois níveis analíticos, que
implicam o uso de diferentes perspectivas teóricas: no primeiro nível, a partir da dinâmica
etnográfica, mais perto dos dados e próximos a uma perspectiva êmica, adotaremos as teorias
de Émile Durkheim e Mary Douglas, a fim de refletirmos e demonstrarmos que, na lógica
interna do grupo, a vida social se faz a partir de categorias opostas como bem/mal,
puro/impuro e ordem/caos; no segundo, aprofundando nosso olhar para um nível mais
“inconsciente”, procuramos ousar mais na análise e ir para além de uma interpretação
dualística dos dados etnográficos. Assim, nos apoiaremos nos seguintes autores: Marcel
Mauss (1935), para abordarmos as técnicas corporais no campo analisado; Pierre Bourdieu
(1983), para pensarmos a ideia de habitus e formação do “gosto religioso”; Merleau-Ponty
(1999), com a noção de pré-objetivo e percepção; e Thomas Csordas (1990), pois esse autor
faz uma abordagem sobre as proposições dos autores citados anteriormente e acrescenta à
discussão as ideias de performance e embodiment.
Se essas abordagens podem ser aparentemente contraditórias, elas são, contudo,
necessárias para a compreensão do fenômeno, já que o campo etnográfico é multidimensional,
exigindo esses dois níveis diferentes de análise que, por sua, vez exigem a adoção de
diferentes perspectivas teóricas, que podem ser entendidas mais como complementares do que
como contraditórias. Ressaltamos, contudo, que a compreensão real se dá a partir de uma
abordagem mais antidualista que em dualidades concretas.

16
Assim, sendo o corpo considerado como objeto central para pensar as relações entre o
indivíduo e a cultura, propomos, neste sentido, direcionar nossa discussão a partir da ideia de
que o corpo é instrumento de afirmação de uma crença religiosa. E por outro lado, esse corpo
mostra virtudes e defeitos do indivíduo que se compromete a uma vida de conduta cristã.
Nesse jogo onde o corpo exalta e abate o fiel, as ideias de pecado e a busca incessante pela
santidade e manutenção da pureza corporal afloram, dando margem ao surgimento de
categorias como a de “santidade”.
A santidade é conceito fundamental no cristianismo como um todo. Contudo, a ideia
de santidade passou por mudanças e, moldada historicamente, alargou-se. Inicialmente
pensado e debatido pela Igreja Católica, o “ser santo” e tudo que lhe implica passou a ser
tema de destaque. Nos primeiros três séculos depois de Cristo, ser santo era morrer em favor
da causa religiosa; em tempos de mártires pela perseguição de Constantino, professar sua fé
representava risco à própria vida e essa coragem era admirada como demonstração de
santidade. Nos séculos seguintes, passada a perseguição romana aos cristãos, o conceito de
santidade também foi reformulado e, além da morte, passou a ressaltar as qualidades pessoais,
de maneira que a reputação, história de vida e a capacidade de operar milagres através dos
pedidos dos devotos fazia o santo herói. Apenas em 1170, a Igreja Católica passa a organizar
burocraticamente a definição e o culto aos santos. A partir do século XVI, o movimento
chamado de Reforma Protestante contra, dentre outras coisas, o culto aos santos coopera para
uma redefinição de santo e santidade, que passa a espelhar-se na vida e na obediência aos
mandamentos de Cristo. Assim, a ascese protestante – isto é, o conjunto de práticas e
comportamentos morais prescritos aos fiéis, com vistas à realização de desígnios divinos e
leis sagradas – passar a governar o estilo de vida do fiel protestante. Nas palavras de Max
Weber:

A ascese puritana – como toda ascese ‘racional’ – trabalhava com o fim de


tornar o ser humano capaz de enunciar afirmativamente e fazer valer, em
face dos ‘afetos’, seus ‘motivos constantes’ (...) com o fim, portanto, de
educá-lo como uma ‘personalidade’ (...) poder levar uma vida sempre alerta,
consciente (...) era a meta; eliminar a espontaneidade do gozo impulsivo da
vida, a missão mais urgente; botar ordem na conduta de vida de seus
seguidores, o meio mais importante da ascese (Weber 2004:109, grifo do
autor).

Tal ascese compreende uma forma de conduta desenrolada no interior do mundo,


conformando a vida de modo racional, sóbrio e constante. O controle metódico da conduta
permite superar as paixões e a dependência do homem do mundo natural. Veremos como,
17
para a Congregação Cristã no Brasil, a santidade está ligada a essas atitudes, mostrando com o
corpo a não contaminação com o mundo pecaminoso. Essa ascese manifesta-se no corpo e
regra a conduta e estilo de vida do fiel.
Partindo dessa perspectiva, o estudo da igreja Congregação Cristã no Brasil
proporcionará uma análise relevante para o objetivo desta pesquisa, pois é representante de
um dos polos pentecostais considerados clássicos e proselitistas radicais, no qual as
apropriações corporais são intensas como a conservação dos padrões pentecostais clássicos de
beleza4, além da resistência e combate dos padrões de beleza vigentes na atualidade. Por outro
lado, perceber como a santidade, qualidade constantemente buscada pelos pentecostais, se
expressa, dentre outras coisas, nas técnicas corporais. Este trabalho, portanto, propõe analisar
a construção do corpo feminino e sua performance, que se expressa no estilo de vida das
mulheres membros dessa igreja. Isto sendo abordado a partir da ideia de que as categorias
nativas como santidade, sentir de Deus e comunhão agem dialeticamente na construção desse
corpo religioso.

Trabalho de Campo e Reflexões Etnográficas

A antropologia, durante a sua formação e afirmação como ciência, deparou-se com


diversos questionamentos sobre si e os próprios métodos utilizados, assumindo uma postura
que outras disciplinas, por vezes consideradas até mais científicas que a antropologia, não
assumiram. Muitas vezes considerada como a disciplina da magia, da emoção e da não
ciência, a antropologia se faz a partir das inquietações e curiosidades do antropólogo. “A
Antropologia é a disciplina dos indisciplinados [risos], daqueles que se recusam a limitar a
sua curiosidade. O antropólogo é aquele que sai, que quer conhecer tudo de maneira mais
ampla e dando a ele mesmo todos os meios para chegar a isso”, disse Le Breton numa
entrevista5. E é exatamente por assumir a emoção, as dificuldades do método e suas
limitações que a antropologia se faz como ciência.
Segundo Maria Laura V. de C. Cavalcanti (2003: 118), “o trabalho de campo constitui
um rito de passagem disciplinar, um ir e vir constante que associa experiência subjetiva à
reflexão teórica e se expressa no modo etnográfico de narrar”. É nesse ir e vir, entre teorias e

4
A esses "padrões pentecostais clássicos de beleza" nos referimos às doutrinas que tocam diretamente questões
corporais como: restrição ao uso de maquiagem, adereços como brincos, pulseiras e colares, obrigatoriedade do
uso de determinado tipo de vestimenta, entre outros.
5
Le Breton, “Construção de Emoções”. Revista sociologia. Entrevista disponível em:
http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/23/artigo133356-1.asp. Acesso em: 15 ago. 2015.
18
experiências etnográficas, que reservamos este tópico para refletir o fazer etnográfico a partir
da etnografia realizada na Congregação Cristã no Brasil. Apresentaremos algumas
experiências vividas em campo durante a realização desta pesquisa, além de tratar sobre os
métodos e técnicas utilizados.
Desde Malinowski e sua definição de observação participante, o trabalho de campo
tem sido uma das principais ferramentas do fazer antropológico. Mas, como já nos alertou
esse autor, muitas vezes o campo nos coloca situações imprevisíveis, vividas apenas no
campo e em momentos inesperados: são os imponderáveis da vida real (cotidiana).
Assumindo o papel de pesquisador, o antropólogo mergulha na pesquisa de seu “objeto”.
Porém, esse “objeto” é um ator social, um indivíduo com capacidades racionais, com emoções
e características próprias. Esse “objeto” ultrapassa a definição restrita da palavra e atua como
“sujeito”. Dessa forma, embora o pesquisador possa prever algumas ações, o imponderável
malinowskiano está sempre presente e o antropólogo pesquisador se depara com sujeitos que
são capazes de influenciar e serem influenciados. O trabalho etnográfico desafia o
antropólogo pesquisador a enfrentar situações únicas, em que ética, personalidade, limites e
crenças são colocados em cheque.
O trabalho de campo começa na sua escolha; essa escolha é condicionada pela
trajetória do pesquisador, suas experiências pessoais, crenças e inquietações. Além do
conhecimento e do domínio teórico, o trabalho de campo engloba características e
especificidades do pesquisador que esboçarão os diferenciais das pesquisas desenvolvidas. E
como Miriam Grossi (1992: 8) afirma: cada trabalho de campo é uma “experiência marcada
pela biografia individual de cada pesquisador”. Dois exemplos ilustram o enunciado anterior:
Luïc Wacquant (2002) e William Foot-Whyte (2005) nos relatam suas experiências
etnográficas.
Wacquant (2002), em "Corpo e Alma", conta como o campo lhe surpreendeu.
Começou como uma janela para o gueto, seu primeiro e principal objeto de estudo, mas
tornou-se uma pesquisa concreta e cativante sobre as técnicas corporais dos boxeadores.
Branco e de classe média alta, o autor se inquietava com os problemas de desigualdade social,
o que o incentivou a pesquisar sobre o assunto. A fim de analisar o gueto num bairro negro de
Chicago, Wacquant se envolveu a ponto de cogitar abandonar o ofício de sociólogo
pesquisador e tornar-se apenas um boxeador. Tornando-se nativo e se deixando levar e
envolver pelas emoções do campo, Wacquant anuncia a dificuldade de transmitir emoções em
palavras e conceitos sociológicos.

19
Por outro lado, com formação em economia, Foot-Whyte recebe uma bolsa em
Harvard para realizar uma pesquisa de seu interesse. Escreve "Sociedade de Esquina" em que
a ideia de que as áreas pobres eram desorganizadas e caóticas foi desconstruída, perspectiva
esta, de uma classe média branca norte-americana à qual o autor pertencia. A "visão de fora" é
logo questionada quando o autor entra em campo e se depara com a "visão de dentro" de
quem vê em Cornerville "um sistema social altamente organizado e integrado" (Foot-Whyte
2005: 21).
Wacquant e Foot-Whyte mostram seus limites como etnógrafos e nos fazem refletir
sobre os nossos. Cada um dos autores ocupou um lugar no campo: boxeador, pesquisador,
economista, militante reformador. O que os dois pesquisadores trazem em seus escritos sobre
o trabalho de campo é que o antropólogo é um sujeito e que tem um corpo que influencia e é
influenciado pelos sujeitos pesquisados. A escolha do campo, os limites do antropólogo, as
dificuldades na escrita, os envolvimentos (físicos e emocionais), o descobrir-se a partir do
outro, o ser afetado e as técnicas no campo são momentos do trabalho de campo aos quais o
antropólogo pesquisador está exposto. Assim, consideramos que o trabalho de campo está
sempre acompanhado do estilo, das preferências e características do pesquisador. A biografia
do antropólogo, as afinidades teóricas, sua personalidade e até mesmo suas características
corporais interferem tanto na escolha quanto no decorrer do trabalho etnográfico.
Roberto Cardoso de Oliveira (1998), em “O trabalho do Antropólogo”, reflete, entre
outros temas, sobre o lugar central da relação sujeito cognoscente e objeto cognoscível na
constituição do conhecimento quando enfatiza o caráter constitutivo do olhar, do ouvir e do
escrever, na elaboração do conhecimento. O primeiro passo do pesquisador seria domesticar o
olhar, ou seja, ter um olhar sensível à realidade social, ter o olhar do nativo. Pois, uma vez que
decidimos partir para a investigação empírica, o sujeito-objeto sobre o qual o nosso olhar está
posto está antecipadamente modificado pelo modo que o visualizamos. Um olhar
etnocêntrico, preconceituoso e com interpretações culturais próprias deve ser desconstruído e
reformulado a partir de uma perspectiva relativista.
Após entrar em campo com o olhar despido de preconceitos, o segundo passo, de
acordo com Oliveira, seria o ouvir. Interessa para a antropologia compreender o modelo, a
estrutura nativa que é fornecida diretamente pelos próprios membros da comunidade
investigada. Dessa forma, ao ouvir o informante, o antropólogo pesquisador se permite
construir teorias a partir dos conceitos nativos.

20
A disposição de escutar o Outro, não é tarefa evidente. Exige um
aprendizado a ser conquistado a cada saída de campo, a cada visita para a
entrevista, a cada experiência de observação. Os constrangimentos
enfrentados pelo desconhecimento vão sendo superados pela definição cada
vez mais concreta da linha temática a ser colocada como objetivo da
comunicação. Diz-se então que a prática etnográfica permite interpretar o
mundo social aproximando-se o pesquisador do Outro “estranho”, tornando-
o “familiar” ou no procedimento inverso, estranhando o familiar, superando
o pesquisador suas representações ingênuas agora substituídas por questões
relacionais sobre o universo de pesquisa analisado (Da Matta, 1978 e Velho,
1978)” (Eckert, Rocha 2008: 6).

Longe de serem independentes, numa investigação antropológica, olhar e ouvir são


complementares, constantemente ativados em campo e cumprem a função cognitiva
preliminar do trabalho de campo. Porém, é no escrever que o trabalho se completa.
Textualizar os fenômenos observados em campo não é tarefa fácil para o antropólogo. Trata-
se de um esforço maior e de um exercício mais complexo que não deve ser confundido com a
transcrição do bloco de notas ou diário de campo. O escrever, segundo Oliveira, não significa
que o autor terá todas as respostas ou conhecerá completamente o grupo estudado, mas que
poderá, atrelando à teoria, contribuir para o conhecimento teórico já produzido. Diante disso,
Oliveira aponta que a compreensão e interpretação dos sujeitos devem ser o principal método
adotado pelos antropólogos, uma vez que os nossos conceitos se constroem num espaço de
intersubjetividade. O autor reflete, entre outros temas, sobre o lugar central da relação sujeito
cognoscente e objeto cognoscível na constituição do conhecimento. Olhar, ouvir e escrever
são etapas gerais, mas que são manifestadas diferentemente segundo as particularidades do
pesquisador.
Gilberto Velho (1978) acrescenta sobre a reflexão do fazer etnográfico, quando
comenta sobre o distanciamento para além do físico. Um distanciamento em que “o fato de
dois indivíduos pertencerem à mesma sociedade não significa que estejam mais próximos do
que se fossem de sociedades diferentes, porém aproximados por preferência, gostos,
idiossincrasias” (Velho 1978: 3). Eu estava familiarizada com aquele contexto religioso
(embora não fosse pertencente, exatamente, àquela onda pentecostal), mas de forma
superficial. Era uma espécie de “exótico-familiar” e “familiar-exótico” misturados. Mas,
assim como Malinowski (1922) descobriu no campo que o Kula não era apenas uma atividade
meramente econômica – antes levavam em conta as trocas religiosas, matrimoniais,
simbólicas –, percebi que o culto de Santa Ceia na CCB não era apenas replicar a última ceia,
tomando vinho e comendo um pedaço de pão, mas que também envolve trocas simbólicas.

21
Tratava-se de compartilhamento e comunhão; de festa e reafirmação de fé e integridade
espiritual.
Mariza Peirano (1992) chama atenção para o fato de que a antropologia ganha um
caráter mais dramático do que nas outras ciências por causa do trabalho de campo, uma vez
que traz impacto ao contrastar as categorias nativas e as do antropólogo no encontro das
diferenças.

De tal modo que vestir a capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla
tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a)
transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico. E, em
ambos os casos, é necessária a presença dos dois termos (que representam
dois universos de significação) e, mais basicamente, uma vivência dos dois
domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los (DaMatta
1978: 4).

As palavras de Roberto DaMatta resumem o dever do antropólogo. O que puder viver


em campo é quando o pesquisador está contido num determinado contexto cultural que lhe é
familiar e precisa desconstruí-lo a fim de torná-lo exótico; e, indo ao campo, se depara com
um exótico que necessita se lhe tornar familiar. Ao término da sua pesquisa, esse mesmo
antropólogo, ao retornar à sua cultura primeira, a vê com outros olhos e toda sua origem já
não lhe é tão familiar.
Nascida e criada na doutrina protestante, pentecostal e conservadora, meu estilo de
vida, como o tipo de roupa, corte de cabelo e o fato de não usar maquiagem, me proporcionou
uma entrada diferente no campo, já que a Congregação Cristã no Brasil pertence a uma
corrente pentecostal clássica com doutrinas parecidas. Porém, parecida não significa mais
fácil.
Não saber o que fazer, como agir ou o que falar são situações recorrentes para o
pesquisador, mesmo que o ambiente lhe pareça familiar. Já na entrada da igreja, essas
situações me cercaram. A CCB tem em sua entrada duas escadas, uma para homens e outra
para mulheres. Aguardei um pouco até que algumas pessoas subissem as escadas para que eu
pudesse identificá-las e não cometer erro. Subindo as escadas, percebi três entradas na igreja,
duas laterais e uma central. As duas laterais, assim como as escadas, são separadas por
gênero, enquanto que a central é do tipo “mista”. Algumas mulheres informantes conhecidas
me viram e vieram até mim. Era uma festividade e a igreja já estava lotada cerca de vinte
minutos antes do horário do culto. Depois de uma conversa rápida, uma das mulheres me

22
convidou a entrar e perguntou se eu gostaria de um véu. Segundo a doutrina da CCB as
mulheres devem estar sempre com o véu dentro do templo e nos momentos de culto mesmo
que não seja na igreja. Eu tinha minha própria religião que, embora parecida com a doutrina
da CCB, não adotava o véu como vestimenta feminina obrigatória. Pensei as consequências
prováveis de entrar sem o véu, ferindo um princípio da igreja (embora a igreja não exija o uso
para visitantes); pensei também que se eu usasse o véu, seria uma afronta às minhas próprias
crenças. Naquele momento olhei para dentro da igreja e vi umas cinquenta mulheres com as
cabeças cobertas por véus brancos e senti-me constrangida a aceitar a proposta. Antes de o
culto começar, fui apresentada a algumas outras mulheres, a maioria delas mostrou admiração
por eu ter optado usar o véu, levando em conta minha condição de visitante, e demonstravam
isso com frases exclamativas como “ela mesma que escolheu usar o véu? Que bom”, “você
fica muito mais bonita com o véu” ou ainda “já parece que é da igreja”.
O antropólogo pesquisador precisa usar de algumas estratégias para “abrir” o campo e
diminuir as dificuldades que alguns nativos constroem quando são questionados pelos seus
costumes. A ideia de ser criticado, mal interpretado ou falar algo errado, muitas vezes
dificulta o bem-estar entre antropólogo e nativo. O fato de ser mulher, casada, ter um estilo de
vida parecido e optar por usar o véu em respeito às doutrinas da igreja facilitaram meu contato
em campo e fortificaram o relacionamento com as fiéis que, por muitas vezes, me viram como
uma fiel em potencial.
Minha relação com os sujeitos do campo foi interessante para minha reflexão, pois
embora compartilhasse da mesma crença, fui tradada de forma diferente por cada um deles
segundo o lugar que eu ocupava. A CCB enfatiza a diferente forma de relação entre homens e
mulheres. Sendo assim, fui tratada de duas formas principais: a) quando tratada por um
homem – e isso raramente, pois eles evitavam o contato – sempre se dirigiam de forma
bastante respeitosa, me chamavam sempre de “irmã” e não pelo nome e quando eu estava
acompanhada do meu noivo, na época, se dirigiam sempre a ele, acenando com a cabeça para
mim; b) já as mulheres, muito mais simpáticas e comunicativas, se mostravam muito
animadas com uma jovem visitante. Como já tinha algumas informantes conhecidas, logo
uma delas se prontificou para sentar ao meu lado e sempre que achava necessário, me
explicava o que se passava no ritual.
Etnografar não se resume a descrever rituais, é também refletir sobre si mesmo. O
antropólogo não é totalmente imparcial, ao contrário, suas características pessoais interferem,
modificam o desenvolvimento da pesquisa. Nesse ponto está o destaque, ou a diferenciação da

23
antropologia das outras ciências. Essa “disciplina indisciplinada” assume suas emoções, riscos
e dúvidas como parte do processo de construção do conhecimento científico e é no
intercambio entre teoria e prática que se faz a antropologia.
O processo de estranhamento é doloroso, o de familiarização é penoso e o processo de
retorno é ainda mais do que a união dos dois sentimentos anteriores. Ver os fiéis participando
do culto, reafirmando sua crença, seguindo um ritual, manifestando glossolalia, chorando e
fazendo daquele momento único, realmente me tocou. Um trecho de Carmen Susana
Tornquist (2007: 47-48) expressa bem o problema a que me refiro acima:

Assim como um viajante: por mais que almeje retornar à sua terra de partida,
não voltará ao mesmo lugar, tendo em vista a experiência de deslocamento
subjetivo da viagem – no caso, da viagem simbólica que, por dever de oficio,
devemos realizar (grifos meus).

Num âmbito metodológico propriamente dito, esta pesquisa constou de observações


participantes, realização de entrevistas (gravadas e não gravadas), acesso a materiais (textos,
vídeos, documentos históricos, relatórios) disponibilizados pela instituição e por fiéis em
páginas na internet. Minhas primeiras visitas a campo foram no fim do ano de 2013, época em
que pedi, oralmente, autorização para realizar a pesquisa. As visitas seguiram durante todo o
ano de 2014, variando aleatoriamente os dias de cultos e, com menos frequência, no início do
ano de 2015 (essas últimas visitas contribuíram principalmente para a finalização deste
trabalho). Visitei algumas casas, festas de aniversário e alguns almoços para os quais fui
convidada. As entrevistas foram feitas especialmente com mulheres, procurei variar idade,
tempo de frequência à igreja e cargo ocupado, formando um total de onze mulheres
entrevistadas formalmente.

Sobre os capítulos

Para melhor apresentar nossos dados e argumentos, esta dissertação está estruturada
em três capítulos.
No primeiro capítulo “Congregação Cristã no Brasil: histórico, doutrina e outros
dados”, fazemos um levantamento histórico, apresentando uma breve biografia do fundador
da CCB (Louis Francescon) e o surgimento da igreja no Brasil, bem como a organização, os
principais rituais, as doutrinas e normas que a constituem. Apresentamos também alguns
dados numéricos e descrevemos mais detalhadamente o campo estudado.

24
Em seguida, fazemos uma interseção entre corpo e a Congregação Cristã no Brasil. No
capítulo 2 “Técnicas corporais e a construção do corpo religioso”, após uma breve
introdução sobre a teoria antropológica do corpo, apresentamos o tema a partir da cosmologia
do grupo estudado, descrevendo as regras específicas que normatizam as técnicas corporais e
o estilo de vida, relacionando-as com a perspectiva antropológica. No fim do capítulo
trazemos uma discussão sobre a construção do corpo religioso feminino e pontuamos como o
corpo se torna, além de instrumento de representação da identificação religiosa, o lugar onde
se experiencia o sagrado.
O terceiro e último capítulo, intitulado “Performance e Santidade: experiências
corporais” está intimamente ligado ao capítulo anterior. Nele tomamos por base a análise do
conceito de santidade. Por meio dessa categoria e embasados na ascese protestante, as
estruturas simbólicas são elaboradas, formando o ethos da comunidade religiosa estudada. A
ideia de santidade e o corpo como o local onde se experiencia essa categoria norteia o capítulo
que analisa também outras categorias como o sentir de Deus, a comunhão (como um elemento
de ligação) e as práticas corporais. O fechamento do capítulo aborda a experiência de campo
no culto de Santa Ceia, festa litúrgica e anual na CCB, que tomamos aqui como evento
culminante da busca continua pela santidade.
Nas “Considerações Finais” recapitularemos os principais pontos de debate durante
este trabalho, além de apresentar as conclusões, ainda que parciais, sobre o tema abordado.

25
2 CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL: HISTÓRICO,
DOUTRINA E OUTROS DADOS

A Congregação Cristã no Brasil é a primeira comunidade religiosa cristã


sociologicamente classificada como pentecostal no Brasil. Está presente em território
brasileiro desde 1910, trazida pelo missionário ítalo-americano Luigi Francescon. Neste
capítulo, apresentaremos uma breve biografia da vida do missionário fundador da CCB e o
surgimento da igreja no Brasil, bem como a organização, as doutrinas e normas que a
constituem.

1.1 Francescon e o início da Congregação Cristã

Luigi Francesconi nasceu em 29 de março de 1866 em Cavasso Nuovo, na Província


de Pordenone, norte da Itália. Seu nome passou a ser grafado também como Louis Francescon
após sua naturalização como cidadão norte-americano. Filho de Pietro Francescon e Maria
Lovisa, Luigi Francescon é oriundo de uma família italiana pobre. Em consequência das
dificuldades da época, não chegou a concluir a escola elementar, sendo apenas minimamente
alfabetizado. Aos quinze anos de idade migrou para a Hungria, onde trabalhou elaborando
mosaicos, atividade artística bastante valorizada naquele período.
Em 3 de março de 1890, Luigi Francescon chegou na cidade de Chicago, estado de
Illinois – EUA, sendo recebido por seu irmão Osvaldo Francescon, que o havia visitado na
Hungria pouco tempo antes. No mesmo ano de 1890, Francescon se converteu por meio da
pregação do evangelista Michele Nardi. Nardi, na época considerado “adenominacional”,
tinha ligações com a Aliança Cristã & Missionária e, em 1892, fundou, juntamente com fiéis
valdenses6, a Primeira Igreja Presbiteriana Italiana. Nessa igreja, onde exerceu o ofício de
diácono, Louis Francescon conheceu Rosina Balzano, com quem casou em 1895 e teve seis
filhos. Em 1901, Francescon foi ordenado ancião da Primeira Igreja Presbiteriana Italiana.

6
Os valdenses são uma denominação cristã que teve sua origem entre os seguidores de Pedro Valdo na Idade
Média. Pedro Valdo era um comerciante de Lyon e iniciou seu movimento por volta de 1174. Decidiu
encomendar uma tradução da Bíblia para a linguagem popular e começou a pregá-la ao povo sem ser sacerdote.
26
Figura 1: Louis Francescon e Rosina Balzano, sua esposa. Fonte: Museu online da CCB

De acordo com seu relato7, no ano de 1894, quando estava em Cincinnati – Ohio,
Francescon recebeu uma revelação divina; enquanto lia a Bíblia, escutou uma voz que falava
sobre a necessidade da prática do batismo por imersão. O ritual do batismo nas águas não
fazia parte da doutrina da igreja à qual Francescon pertencia e, mesmo sob pedido, não foi
aceito. Convicto quanto ao batismo por imersão, Francescon e alguns aderentes romperam
filiação presbiteriano-valdense. Francescon submeteu-se ao batismo em 7 de setembro de
1903, por Giuseppe Beretta, desvinculando-se oficialmente da igreja Presbiteriana Italiana no
mesmo ano.
Nas palavras de Francescon:

No princípio do ano de 1894, encontrando-me em Cincinati, Ohio, em


serviço material, aconteceu que, estando numa noite de joelhos em meu
quarto lendo o Cap. 2 da carta aos Colossenses, ao chegar no verso 12 ouvi
uma voz que me repetiu por 2 vezes: "Tu não obedeceste a este meu
mandamento". Então respondi: "Senhor jamais alguém me falou neste
assunto". Em março de 1892, com o grupo evangelizado pelo irmão M.Nardi
e algumas famílias de fé "Valdese" foi criada nesta cidade a primeira Igreja
Presbiteriana Italiana, sendo o Sr.Filippo Grilli Pastor. Eu fui eleito um dos
três diáconos e após alguns anos, ancião.

7
Os relatos a punho de Louis Francescon estão disponíveis no museu online da CCB. Disponível em:
http://www.cristanobrasil.com/. Acesso em: 15 ago. 2015.
27
Em 1º de janeiro de 1895, casei-me com Rosina Balzano salva
também em nosso meio em princípio de 1892. Como membro da
administração da referida Igreja, falei do batismo determinado nas escrituras
e como o Senhor mesmo me ordenou obedecê-lo. Todos se manifestaram
contra mim, inclusive o Pastor, ao qual eu tinha comunicado por carta na
mesma noite que o Senhor me havia falado. No ano de 1898, o Senhor
salvou o irmão Giuseppe Beretta por meio dos Metodistas Livres,
Americanos, o qual após algum tempo uniu-se conosco, presbiterianos
Italianos. Falei-lhe também muitas vezes do citado batismo, mas no
momento não lhe era dado compreender. Em princípio de setembro de 1903
nos encontramos em Elgin, ILL., (no local onde eu com o irmão G. Marin
estávamos executando um trabalho), lhe falei novamente na presença deste,
da necessidade em obedecer ao mandamento de nosso Senhor.
Então, servindo-se Deus também de outros meios, convenceu-se e dois
dias após fez-se batizar mesmo em Elgin, por um irmão Americano
pertencente à Igreja dos irmãos (Church of the Brethren). Na ocasião lhe
disse: "Irmãos Beretta, agora que sois batizados, na próxima segunda-feira,
dia 7 que é o dia do trabalho, batizar-me-ás também. Como o Pastor se
encontrava na Itália, competia a mim como ancião presidir o serviço que se
realizava no Domingo, dia 6. Assim tive oportunidade em dizer ao povo o
que eu sentia em meu coração e lhes falei: Após 9 anos que o Senhor me
falou em obedecer ao seu mandamento, amanhã, com a ajuda de Deus, terei
a oportunidade em obedecê-lo e se algum de vós quiser assistir venham ao
(Lake-Front, de Chicago) em tal lugar, às tantas horas. Vieram cerca de 25,
dos quais 18 obedeceram juntamente comigo. Fomos imersos pelo irmão G.
Beretta. Pouco tempo depois, o pastor (F. Grilli) voltou da Itália e no
primeiro domingo que nos reunimos, disse-lhe eu que desejava dirigir
algumas palavras a irmandade antes de seu sermão, o que me foi concedido.
Primeiramente perguntei a todos se eu havia feito alguma coisa errada, que
testemunhassem; responderam, que nada havia contra mim. Então exortei-os
que, se quisessem também ser participantes das promessas de Deus, seria
necessário obedecê-lo conforme sua palavra. Em seguida apresentei minha
demissão de ancião, secretário e membro daquela igreja. Todos se
maravilharam e pediram que não os deixasse e eu lhes respondi que aquela
decisão não era por mim premeditada mas sim, ordenada por nosso Senhor
(Francescon, L. Carta, Acervo online CCB).

Com o desligamento de Francescon, uma pequena congregação independente foi


formada, intitulada Assemblea Christiana, que não possuía templo próprio e realizava suas
reuniões em residências.
Pouco tempo depois, a igreja do grupo de Berreta (aquele que batizou Francescon),
reunida na West Grand Avenue, aceitou a doutrina Pentecostal proposta por Francescon, que
tinha entrado em contato com a Missão Pentecostal liderada pelo pastor William Durham8.

8
William Howard Durham (1873–1912) foi um teólogo e evangelista pentecostal, defensor da doutrina da “Obra
consumada no Calvário”. Durham foi um dos primeiros missionários brancos a visitar a Apostolic Faith Gospel
Mission na Rua Azuza, pastoreada por Joseph Seymour, era uma igreja de grande maioria negra (na época as
igrejas eram divididas etnicamente), onde recebeu o batismo no Espírito Santo. Durham foi um mentor para
muitos líderes pentecostais que frequentaram suas reuniões na Missão da Avenida Norte e que depois levaram a
mensagem pentecostal a diversos países.
28
Em 1907, na cidade de Chicago, na West North Avenue, 943 (semelhante à Rua Azuza9 em
Los Angeles, Califórnia), a igreja liderada pelo pastor Durham anunciava a promessa do
Espírito Santo com evidência de se falar novas línguas. No ano seguinte, em janeiro de 1908,
Francescon realizou o batismo de cerca de 70 novos adeptos, alguns deles afirmaram ter
recebido curas milagrosas no ato do ritual. Dentre eles Lucía Menna e Giacomo Lombardi10,
parceiros de Francescon nas missões na América do Sul. Nessa Missão pastoreada por
Durham também experimentaram a charismata do Espírito Santo outros líderes do
pentecostalismo como Daniel Berg e Aimeé McPherson, respectivamente fundadores da
Assembleia de Deus no Brasil e da Igreja do Evangelho Quadrangular.

Figura 2: Igreja da Rua Azuza – 1906. Fonte: Museu online da CCB.

9
O reavivamento da Rua Azuza foi uma reunião de avivamento pentecostal que se deu em Los Angeles,
Califórnia, liderada por William Joseph Seymour, um pregador afro-americano. Teve início com uma reunião em
14 de abril de 1906 em um prédio que fora da Igreja Metodista Episcopal Afro-americana e continuou até
meados de 1915. O avivamento foi caracterizado por experiências de êxtase espiritual acompanhadas por falar
em línguas estranhas, cultos de adoração, e mistura inter-racial. Os participantes foram criticados pela mídia
secular e teólogos cristãos por considerarem o comportamento escandaloso e pouco ortodoxo, especialmente
para a época. Hoje, o avivamento é considerado pelos historiadores como o principal catalisador para a
propagação do pentecostalismo no século XX.
10
Giacomo Lombardi (1862 - 1934) foi missionário, iniciador do primeiro núcleo permanente de fé pentecostal
na Itália. Partiu em missão, juntamente com Francescon, para a América do Sul em 1909. Na província de
Buenos Aires iniciaram as Assembleias Cristãs. Em março de 1910 chegou ao Brasil junto com Francescon, mas
retornaria em breve novamente à Itália, onde o trabalho por ele iniciado prosperou, visitando Roma e La Spezia.
Depois da I Guerra Mundial concentra seu ministério na igreja pentecostal italiana de Chicago, onde viveu até
sua morte, em 1934.
29
Em janeiro de 1910, Francescon, Lombardi e Menna chegaram à Argentina e
fundaram a primeira denominação pentecostal do país: a Asamblea Cristiana11. Da Argentina
seguiram para São Paulo, desembarcando em 8 de março de 1910. Permaneceram em São
Paulo até 14 de abril, quando Lombardi e Menna retornaram para a Argentina e Francescon
segue em missão para Santo Antônio da Platina, no Paraná. Embora Francescon tenha
realizado o primeiro batismo na cidade, de maneira geral não foi bem sucedido. Acusado de
contrariar a fé tradicional da população, deixando apenas onze fiéis no Paraná, o missionário
italiano retorna a São Paulo. Chegando à cidade, cerca de 20 pessoas (entre elas
presbiterianos, batistas e metodistas) adotaram a nova doutrina divulgada por Francescon.
Sobre esse início no Brasil, Francescon relata em carta12:

Em março do ano seguinte o Senhor fez saber a mim e ao irmão G.


Lombardi que deixássemos os nossos trabalhos materiais, para nos
dedicarmos inteiramente à obra que ele nos havia preparado; ambos nos
encontrávamos em má situação financeira e cada um com 6 filhos menores;
entretanto não tememos, certos de que o Senhor protegeria nossas famílias.
(...) Essa revelação nos foi confirmada por meio do dom de interpretação de
linguagem e isto muito nos consolou, dispondo-nos inteiramente à vontade
do nosso Senhor. (...) Em 8 de março de 1910, por determinação do senhor,
partimos direto a São Paulo (Brasil). No segundo dia de nossa chegada,
divinamente guiados, encontramos no jardim da luz um italiano chamado
Vicenzo Pievani (ateu) morador em Sto. Antônio da Platina, Paraná, e lhe
falamos da graça de Deus.(...) Parti de São Paulo às 5:30 h, com uma terrível
dor lombar que me impediu tomar alimento durante todo aquele dia. Cheguei
a Salto Grande às 23h e nesse lugar o Senhor me disse ter preparado tudo
para mim, a fim de cumprir minha missão; e assim aconteceu, porém
faltavam cerca de 70 km a cavalo, atravessando matas virgens infestadas de
Jaguarás e outras feras existentes no lugar. Pela graça de Deus fiz esse resto
de viagem com um guia indígena, chegando em Sto. Antônio da Platina, em
20 de abril. Outra dificuldade que encontrei foi não conhecer uma palavra do
idioma português, e achar-me sem dinheiro e doente; Deus, porém, que tem
todos os corações em suas mãos, me fez ver a primeira maravilha: ao chegar
naquele local, encontrei na janela a esposa do italiano V. Pievanti tendo o

11
As Assembleias Cristãs na Argentina (em castelhano Asamblea Cristiana) são um grupo de igrejas
pentecostais oriundas do trabalho missionário de Louis Francescon e Giacomo Lombardi em 1909-1910.
Em 1915, Narciso Nartucci se tornou missionário em Buenos Aires e foi acompanhado por Francisco Anfuso,
dando continuidade ao trabalho de Francescon e seus companheiros. Anos depois, a Assembleia Cristã dividiu
em várias denominações: 1) a mais antiga, a Asamblea Cristiana Evangelica possui mais de cem templos em
todo o país. Sua igreja matriz está localizada no mesmo endereço em Villa Devoto, Buenos Aires, desde sua
fundação, conta com cerca de quinhentos membros. 2) A maior em termos quantitativos, a Asamblea Cristiana
"Dios es Amor" com sede em Santa Fé possui 900 igrejas presentes no território argentino, além de outras no
Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia. 3) Em 1965, a Asamblea Cristiana de Villa Lynch se afiliou com
a Congregação Cristã no Brasil com o nome de Congregación Cristiana en la Argentina e conta hoje com cerca
de 180 igrejas. 4) Um ramo menor, a Iglesia Cristiana Bíblica é afiliada ao Concílio Mundial de Igrejas.
12
Os relatos a punho de Louis Francescon estão disponíveis no museu online da CCB. Disponível em:
http://www.cristanobrasil.com/ e http://www.ccbhinos.com.br/ccb-curiosidades-congregacao-crista-no-
brasil/Como-Surgiu-a-Congregacao-Crista-no-Brasil-MTEy. Acesso em: 15 ago. 2015.
30
senhor lhe dito: “Eis o homem que Eu vos enviei”.(note-se que eu não era lá
esperado). Assim fui recebido em sua casa e poucos dias depois, o Senhor
comprazeu-se em abrir seus corações e de mais 9 pessoas. Foram batizadas
na água 11 pessoas e confirmadas com sinais do Altíssimo. Estas foram as
primícias da grande obra de Deus naquele país.

Figura 3: Primeiro prédio da CCB -


PR e Felício Antônio Mascaro,
primeiro crente batizado da CCB em
05 jun 1910. Fonte: Museu CCB.

Nomeando Felippe Pavan como primeiro ancião da Congregação Cristã no Brasil,


Francescon retornou aos Estados Unidos. Após essa data, o missionário retornou ao Brasil em
visita por dez vezes até 1948 e mantinha contato por cartas durante o período que não estava
no Brasil. Além de Francescon, outros pioneiros pentecostais ítalo-americanos também
atuaram como missionários no Brasil. Entre eles destacam-se Luis Terragnoli, Augustinho
Lencioni e Giuseppe Petrelli.
Nesses primeiros anos, os fiéis reuniram-se sem denominação oficial, sendo chamada
apenas de “adunanza” ou “radunanza”, palavras italianas para, respectivamente, “reunião” e
“congregação”. Por vezes, nos locais de culto havia um placa escrito “Reunidos em Nome do
Senhor Jesus”. Também conhecida como “igreja dos glória” (em alusão às práticas
pentecostais) ou “igreja dos italianos” (referindo-se à maioria étnica), somente em 1936 uma
convenção da comunidade brasileira foi realizada, adotando-se o nome de Congregação
Cristã do Brasil, que foi registrada em 30 de março de 1936. Em 1962, foi alterado
para Congregação Cristã no Brasil, substituiu-se a contração “do” pela contração “no”. A
igreja central foi estabelecida em São Paulo, no bairro do Brás, onde o Ministério reúne-se
anualmente em Assembleia Geral quando são estabelecidos convenções e ensinamentos.

31
Congregação Cristã no Brasil, Brás, SP (1960)
Congregação Cristã no Brasil, Brás, SP (1915)
Figura 4: CCB Brás. Fonte: Museu online da CCB.

Francescon deixou um importante legado para as igrejas pentecostais no Brasil e no


mundo. Antes de partir em missões internacionais como na Argentina, no Brasil e na Europa,
o missionário estabeleceu igrejas em Los Angeles, St. Louis e Filadélfia. De seu trabalho
evangelizador surgiram várias denominações, tais como a Igreja Cristã da América do Norte,
a Assembleia Cristã na Argentina, Assembleia de Deus na Itália e Congregações Cristãs
Pentecostais por todo o mundo. Francescon faleceu em 7 de setembro de 1964, na cidade de
Oak Park, Illinois, EUA.

1.2 CCB em números

De acordo com os dados do Censo 2010, podemos afirmar que o Brasil está vivendo
uma nova fase do Cristianismo Protestante. Hoje, os evangélicos formam 22% da população
do Brasil e somam mais de 42 milhões, sendo cerca de 60% desse total de
vertentes pentecostais. De acordo com os dados da pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia Estatística (IBGE), 6 de cada 10 evangélicos brasileiros se declara pentecostal.

32
Gráfico 1: Religiões no Brasil (1872-2010).
Fonte: http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao

A pesquisa também revela a Congregação Cristã como a 3ª maior13 denominação


evangélica no Brasil e a 2ª entre as de vertente pentecostal, com 2,3 milhões de membros,
atrás somente da Igreja Assembleia de Deus. No ano 2000, a Congregação Cristã ocupava a 6ª
posição no ranking mundial14 em número de fiéis do segmento cristão pentecostal.
A Congregação Cristã tem a maior parte dos seus templos em São Paulo e em cidades
do interior de outros estados. Entre as suas peculiaridades está a rejeição dos modernos
métodos de divulgação, restringindo a pregação da sua mensagem aos locais de culto. Possui
fortes elementos sectários, não se considerando uma igreja protestante e não mantendo
ligações com outros grupos. Está presente em todo o território nacional, em todas as regiões
brasileiras e, ainda que de forma discreta, em cerca de 60 países. Em abril de 2003, foi
oficializada a Convenção Internacional das Congregações Cristãs, estabelecendo princípios
comuns de gestão eclesiástica, sem haver organização nacional prevalecente uma sobre a
outra.

13
Fonte: IBGE Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas
_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf. Acesso em: 15 ago. 2015.
14
Segundo a publicação americana “Pentecostalism Encyclopedia”.
33
Na tabela a seguir, uma lista das dez maiores denominações evangélicas no Brasil e a
divisão do total de fiéis declarados por sexo, que nos ajudarão a refletir sobre a posição da
CCB no campo religioso brasileiro:
Tabela 1: “As 10 maiores igrejas no Brasil15”
IGREJA NÚMERO DE NÚMERO DE TOTAL
HOMENS MULHERES
Assembleia de Deus 5 586 520 6 727 891 12 314 410

Igreja Batista 1 605 823 2 118 029 3 723 853


Congregação Cristã no Brasil 1 060 218 1 229 416 2 289 634
Igreja Universal do Reino de Deus 756 203 1 117 040 1 873 243
Igreja do Evangelho Quadrangular 774 693 1 033 693 1 808 389
Igreja Evangélica Adventista 704 376 856 695 1 561 071
Igreja Evangélica Luterana 482 382 517 116 999 498
Igreja Evangélica Presbiteriana 405 424 515 785 921 209
Igreja Deus é Amor 365 250 480 133 845 383
Igreja Maranata 156 185 199 835 356 021

Em 1940, o movimento tinha 305 “casas de oração”, e dez anos mais tarde, tinha 815 e
de acordo com o Relatório 2014/2015 (um anuário e relação de endereços da Congregação
Cristã no Brasil) aparecem casas de orações na América, África, Ásia, Europa e Oceania16,
indicando grande crescimento da igreja em meados do século XX. No entanto, esse
crescimento já não é percebido nos últimos anos.
Se o ranking das cinco maiores igrejas pentecostais do país permaneceu inalterado
entre os Censos 2000 e 2010, por outro lado, apresentou interessantes diferenças em relação
ao número específico de fiéis. A Congregação, amplamente conhecida pelos seus templos de
cor cinza e janelas com arcos góticos, perdeu quase 200 mil fiéis, passando de 2,4 para 2,2
milhões de membros17. No entanto, continua sendo a segunda maior igreja pentecostal do
país. O gráfico abaixo, com base nos censos de 2000 e 2010, apresenta as variações no
número de fiéis das cinco maiores igrejas pentecostais no Brasil.
15
Com base nos dados do Censo 2010.
16
Ver anexo A: “Tabela de Templos da Congregação Cristã”
17
De acordo com o Censo 2000, 2 489 113 pessoas se declararam adeptos à Congregação Cristã no Brasil. Dez
anos depois o número é de 2 289 634. Fonte: IBGE, Censo 2000. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/religiao_Censo2000.pdf. Acesso em:
15 ago. 2015.
34
Gráfico 2: Pentecostais: Censo 2000 x Censo 201018
Fonte: IBGE

Curiosamente, a partir do gráfico acima, podemos adiantar algumas tendências da


movimentação pentecostal no Brasil. Se pensarmos em um “espectro pentecostal”, abordando
os extremos “conservador clássico” (no sentido da ascese) e “neopentecostal”, teríamos:

- Assembléia de Deus
- Evangelho
CCB IURD
Quadrangular
- Deus é amor

Poderíamos inferir, então, que os extremos (clássico e neopentecostal) perderam fiéis,


enquanto que as igrejas mais “centrais”19 continuaram em número crescente. No caso da
Congregação, as técnicas de evangelização, o distanciamento midiático e a invisibilidade
pública da CCB, como já apontam alguns autores20, seriam os culpados pelas perdas de fiéis.
Contudo, não vamos nos aprofundar nesta discussão, mas as apontamos a fim de elucidar
curiosidades e reflexões pertinentes para futuros trabalhos.

18
Gráfico disponível em: http://refletindofe.blogspot.com.br/2012/06/os-pentecostais-no-censo-2010.html.
Acesso em: 15 ago. 2015.
19
Abrimos um parêntese aqui para notificar que, embora a Igreja Assembleia de Deus seja classificada como
pentecostal clássica – assim como a CCB, esta igreja tem apresentado grandes dissenções ministeriais que
adotaram algumas práticas e ideologias neopentecostais, por isso, consideramos aqui, como sendo menos radical
do que a CCB.
20
MARIANO, R. (2008).
35
A seguir, apresentaremos as dissenções da Congregação Cristã no Brasil.

1) Igreja Renovadora Cristã (IRC)

Iniciada em 1953 pelo ex-cooperador Aldo Ferreti, familiares e alguns irmãos da


CCB, talvez seja a primeira dissidência na CCB. Por algumas discordâncias doutrinárias,
Ferreti cita no seu testemunho alguns motivos principais que o deixavam incomodado. Um
deles era o “mundanismo”.

Via o mundo entrando na Igreja, substituindo a modéstia pelo luxo, o


discreto pelo vaidoso, e o supérfluo uso de adornos pessoais – jóias
verdadeiras ou falsas, conforme a possibilidade financeira de cada um – pois
o que lhes interessam é ostentarem a vaidade, não só permitem, como
também usam e abusam do álcool-veneno – bebidas alcoólicas –, e por isso
já lhes tem sido feitas tantas críticas, não só pelos verdadeiros cristãos, como
também pelos não cristãos. 21

No dia 14 de maio de 1952, na reunião costumeira do ministério após o culto no Brás,


Aldo Ferreti resolveu expor aos anciãos todos os pontos que ele achava que a igreja estava
desviada e exigiu mudanças dos anciãos quanto aos temas. A partir de então, Ferreti decidiu
desligar-se da CCB Brás e iniciar um ministério próprio. Ferreti faleceu em 2005, aos 95
anos.

2) Igreja Cristã Remanescente

Foi fundada no ano de 1967, em Telêmaco Borba - PR, pelo ancião Nilson Santos, que
antes de ingressar na CCB, frequentava a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Mais tarde, a
Igreja Cristã Remanescente filiou-se à Igreja Maranata, uma igreja alemã de linhagem
adventista de doutrina pentecostal. Da mesma forma que a CCB, mantém assentos separados
para homens e mulheres, são adeptos da saudação com ósculo e uso do véu pelas mulheres.
Uma particularidade dessa denominação é a pratica do lava-pés. Atualmente a denominação
possui congregações nos seguintes estados: Paraná, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Sul,
Rondônia e São Paulo.

3) Congregação Cristã no Brasil Renovada

21
Depoimento disponível em: http://www.igrejarenovadoracrista.org.br/. Acesso em: 15 ago. 2015.
36
Fundada em Goiás, no ano de 1991, pelo ancião José Valério que, na época, era o
ancião da CCB mais velho naquele Estado. Foi o movimento que mais ameaçou a hegemonia
do Brás.
Sediado em Roraima, o movimento encabeçado pelo ancião Valério teve a adesão de
vários ministros da CCB nos estados de Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Goiás, Bahia, São
Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Em dois anos, a Congregação Cristã Renovada já contava
com 30 casas de orações. Porém, no ano de 1993, o grupo se dissolveu e se reintegrou a
Congregação Cristã no Brasil concedendo-lhe, inclusive, direitos de propriedade sobre o
patrimônio construído pela CCB-Renovada.

4) Congregação Cristã do Sétimo Dia22

Fundada em Santa Catarina, no ano de 1993, pelo ancião Luis Bento Machado que, na
época, era um dos anciães mais antigos naquele estado. O ancião Luis Bento se afastou da
CCB em 1993 quando fundou a Congregação Cristã do Sétimo dia. Uma característica
particular dessa dissidência da CCB é que, além de guardar o sábado, eles também celebram a
santa ceia com pão ázimo e suco de uva. Luis Bento Machado chamou o ancião mais antigo (e
amigo pessoal) Vitório Angare para um conversa particular a fim de tratar da questão do
sábado. Diante da notícia que um dos anciãos da CCB admitia a doutrina de guardar o sábado,
foi convocada uma Assembleia Geral Extraordinária, que foi realizada na sede da CCB em
Itajaí – SC. A reunião teve duração de 8 horas, os presentes na reunião manifestaram o desejo
de que Luis Bento continuasse a liderar a CCB em Santa Catarina, mas determinaram que o
mesmo deveria fazer uma retratação pública sobre a questão da guarda do sábado,
reconhecendo que era um equívoco da sua parte. Por coincidência, era dia de sábado, a
reunião se encerrou e em seguida deu-se inicio ao culto daquele dia. O ancião Luis Bento deu
início ao serviço de culto e fez o seguinte pronunciamento:

Faz 36 anos que eu palmilho neste caminho, e TUDO o que eu fiz aqui, foi
por amor à obra de Deus! Se algum dia, eu fiz alguma coisa errada, aqui
dentro da igreja, a algum irmão, que me perdoe! Porque fazem 2 anos que
Deus me revelou acerca do sábado, e a Congregação Cristã no Brasil
(apontava para saudosos representantes da CCB que se encontravam
sentados no primeiros banco), não reconhece este dia como mandamento da
Lei de Deus!!!, e por "este motivo" eu me afasto do ministério, oreis a Deus
por mim, que nas minhas orações eu orarei por todos vós... Deus Seja
Louvado!

22
Relatos descritos no site: http://congregacaocristadosetimodia.blogspot.com.br/. Acesso em: 15 ago. 2015.
37
Representantes do ministério central (Brás) procuraram Luis Bento Machado para que
assinasse sua carta de renúncia como ancião da CCB, mas Luis Bento não assinou tal carta
assim se justificando: “não estou renunciando, eu estou apenas me afastando do ministério,
este ministério que me fora confiado, como ‘ancião’ foi Deus quem me deu! E por isso, não
devo assinar a carta de renúncia para nenhuma sociedade religiosa, mas sim, levarei comigo
para a sepultura”.
Ao contrário de Aldo Ferretti, Luis Bento Machado não sofreu nenhum tipo de
perseguição, ou seja, nenhuma circular foi expedida, talvez para não chamar a atenção dos
membros.

5) Congregação Cristã Apostólica – Ministério da Restauração (CCA-MR)

Foi fundada em 11 de novembro de 2001, pelo ex-cooperador da Congregação Cristã


no Brasil, Antônio Silvério Pereira, acompanhado por familiares e alguns que saíram com ele
da CCB. Os membros da Igreja Renovação Cristã tomaram parte nessa empreitada, sob a
liderança de outro ex-fiel CCB, Fleury Rodrigues de Oliveira. As duas igrejas se uniram.
Dessa mesclagem surgiu a CCA, Congregação Cristã Apostólica. Mantendo alguns princípios
da CCB filiada ao Brás, modificando uns e abandonando outros, a CCA apresenta
características próprias:

Assim como na Congregação Cristã no Brasil - CCB, o ministério não


recebe salário; adota o sistema de ofertas e coletas voluntárias e as práticas
administrativas também são bem semelhantes às da CCB. Diversas
características na liturgia e nos costumes são herdadas da CCB, porque a
igreja nasceu de um sentimento de reforma no coração de ex-membros da
CCB. Há um respeito e comunhão com outros ministérios e irmãos que
pertencem a outras denominações. A CCA é igreja pentecostal, que acredita
na atualidade do batismo com o Espírito Santo, nos dons espirituais para
edificação e consolo da igreja. Não adota o rebatismo para cristãos de outras
denominações batizados por imersão em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo e que desejem aderir como membros da CCA MR. As irmãs
participam da orquestra tocando instrumentos como flauta, violino, teclado
ou órgão e outros. Pode louvar individualmente, acompanhado de playback,
violão, teclado ou a orquestra. Geralmente dois louvores individuais. Em
seguida, nas oportunidades, um irmão ou uma irmã se levanta para dar
testemunho das obras de Deus em sua vida ou pode ler um versículo, com ou
sem comentário breve. Em seguida a palavra, a qual é primeiro oferecida
para ser pregada pelo ancião, ou presbítero, ou irmão de ministério. Se
houver ministro de outra denominação poderá dar testemunho do púlpito.
Todas as oportunidades e testemunhos são para irmãos batizados,

38
conhecidos e de bom testemunho. Ao final, pode haver oração com
imposição de mãos. Encerra-se o culto com a benção apostólica.23

6) Igreja Congregação Cristã (ICC)24

A Igreja Congregação Cristã foi fundada em 2005, na cidade de Fortaleza, no Estado


do Ceará, pelos ex-cooperadores da CCB José Bezerra de Freitas, José Carlos Menezes e o
ex-ancião Emilson Bernardo da Silva. Atualmente, a dissidência Igreja Congregação Cristã
tem templos nos estados do Ceará, Rondônia e Paraná.

7) Congregação Cristã – Ministério Jandira (CCMJ)

Essa vertente da CCB deligou-se do Brás em 2010 por questões internas de cunho
organizacional. O conflito entre anciãos da igreja local com os de outras localidades foram os
motivos principais. Mesmo desvinculada, a CCMJ segue os mesmo princípios doutrinários
pregados pela matriz. Uma nota de esclarecimento sobre os motivos da separação abre o site
da igreja:
Nossas reuniões ministeriais sempre foram presididas por nós Anciães de
Jandira, e sempre procuramos motivar os Cooperadores de adultos e
Cooperadores de jovens e menores a tratar a irmandade com amor e carinho
e ter um cuidado especial com as crianças e jovens.
A partir do final de 2008, Anciães de outra localidade, que foram
ordenados para atender em outro município, começaram a frequentar as
reuniões ministeriais de Jandira e, por serem mais antigos no ministério,
passaram a presidi-las. Nesse período, a qualidade do conteúdo das reuniões
caiu vertiginosamente, causando-nos descontentamento, culminando com
muitas reclamações, sendo necessário que tomássemos providências, visto
que esta nova presidência passou a impedir a continuidade do crescimento e
o bom andamento da OBRA de DEUS no nosso município.
Em maio de 2010, nós, Anciães do município de Jandira, não concordando
mais com as atitudes daqueles Anciães que não foram ordenados em Jandira,
optamos por usar das prerrogativas estatutárias que dão aos Anciães e às
Administrações autoridade de administrar, com a guia de DEUS, a obra de
DEUS em seus Municípios. Guiados pela Palavra de DEUS e com anuência
da Administração, tomamos algumas decisões que julgamos necessárias,
inclusive apresentamos em oração e ordenamos três Anciães para o nosso
município.
Alguns dias após as ordenações, parte do conselho de Anciães, junto com a
Administração que representa a Congregação juridicamente, e que deu
anuência a todas as decisões e às ordenações dos novos Obreiros,

23
Disponível em: http://www.ccamr.org.br/. Acesso em: 15 ago. 2015.
24
Não encontramos, em nossa pesquisa, dados suficientes sobre a ICC. Os dados apresentados foram
encontrados na página de uma rede social da CCB: https://www.facebook.com/ccbhistoriaecomentarios/
posts/1484638315141169. Acesso em: 10 ago. 2015.
39
consideraram nossas atitudes, precipitadas e declararam nosso afastamento
do ministério.25

Em um vídeo gravado pelo ancião Samuel Trevisan, de família tradicional na CCB e


atualmente ancião da CCMJ, afirma que outro motivo de terminar “28 anos atendendo ao
ministério do Brás” foi o “grande descontentamento em verificar que a CCB perdeu 200 mil
fiéis, ao invés de aumentar o número de almas, estão perdendo; o Senhor separou-nos para
fazer crescer esta obra” e que “nós não mudamos nada do que aprendemos, e se por ventura
algum irmão mudar alguma coisa, este irmão não fará parte conosco [...] estamos servindo na
mesma doutrina, na mesma liturgia, servindo ao Senhor com liberdade”. 26
Mesmo com dissidências e uma perda significativa de membros, a Congregação Cristã
no Brasil, matriz no Brás, ainda permanece como a segunda maior igreja pentecostal no
Brasil. Em âmbito regional, em Pernambuco, Estado com pouco mais de 9 milhões de
habitantes27, 35.259 pessoas se declaram pertencentes à CCB de acordo com a amostragem do
IBGE. Concentrados em grande parte no interior do Estado e na capital e Região
Metropolitana, o número de fiéis CCB deixa a igreja na terceira posição em quantidade de
fiéis entre igrejas pentecostais no Estado28.
O mapa a seguir mostra distribuição de fiéis no Estado:

Figura 5: Cartograma da população residente com religião evangélica de origem pentecostal da Igreja
Congregação Cristã no Brasil – Fonte: IBGE

25
Nota de esclarecimento publicada na página inicial do site da Congregação Cristã – Ministério Jandira
(CCMJ). Disponível em: http://ccmjandira.org.br/esclarecimentos.html
26
Disponível em: http://ccmjandira.org.br/pronuncia.html
27
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=pe
28
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=pe&tema=censodemog2010_relig
40
Na Região Metropolitana do Recife (RMR), a igreja conta com mais de setenta
templos. A RMR tem quase quatro milhões de habitantes29 e cerca de 1,5% se declaram
crentes da Congregação Cristã no Brasil. Elaboramos uma Tabela com o número de Igrejas
CCB e a quantidade de fiéis em Recife e RMR para melhor visualização dos dados.

Número de Número de fiéis


Cidade da RMR
Igrejas 30 Declarados 31
Abreu e Lima 03 230
Araçoiaba 01 44
Cabo de Santo Agostinho 05 642
Camaragibe 05 312
Igarassu 03 181
Ilha de Itamaracá - 04
Ipojuca 02 52
Itapissuma 01 27
Jaboatão dos Guararapes 14 1.419
Moreno 04 353
Olinda 07 357
Paulista 06 182
Recife 20 2.002
São Lourenço da Mata 01 116

Total 72 5.921
Tabela 2: CCB na Região Metropolitana do Recife – Elaborada a partir de dados fornecidos
pelo IBGE

A história da chegada da Congregação Cristã em Pernambuco e no Recife é


desconhecida por meus informantes, mas eles acreditam basicamente em duas versões: que
irmãos de outros estados se mudaram para a região trazendo consigo sua fé; e/ou que algumas
pessoas, com parentes de tal denominação, conheceram a fé e doutrina e resolveram juntar-se
e formarem uma igreja local. Contudo, com relação à origem do local para realização desta
pesquisa, que é a igreja Congregação Cristã no Brasil, localizada no bairro do Ibura, Recife –
PE, uma informante mais antiga declarou que por volta da década de 1970, alguns irmãos que
congregavam nas igrejas nos bairros de Dois Carneiros, Prazeres e Iputinga realizavam cultos
29
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php
? uf=26&dados=0. Acesso em: 15 ago. 2015.
30
Com base nos dados do site http://www.ccbhinos.com.br/relatorio onde constam os endereços de todas as
igrejas CCB.
31
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?
lang=&coduf=26&search=Pernambuco. Acesso em: 15 ago. 2015.
41
nas casas de outros irmãos que moravam no Ibura. Percebendo que já tinham um número de
pessoas suficiente para iniciar uma igreja no bairro, os irmãos e irmãs uniram-se e fizeram,
para igreja sede regional, um pedido oficial de permissão para construir uma igreja no bairro,
localizada no bairro da Iputinga, que por sua vez, enviou o pedido à sede no Brás-SP, que
autorizou a compra do terreno e a construção da igreja.

Figura 6: CCB – Ibura. Fonte: Acervo pessoal

A igreja, assim, foi fundada ainda na década de 1970 e tem hoje cerca de 8 crianças
(abaixo de 12 anos), 30 jovens (solteiros, maiores de 12 anos) e mais de 200 membros
adultos32, que são de maioria feminina e, majoritariamente, moradores do próprio bairro, em
grande parte composto por donas de casa, profissionais liberais e comerciantes enquadrados
como classe média baixa. É importante salientar que a “ideia de pertença” dos fiéis CCB está
fortemente ligada à instituição geral, muito mais do que à “comum”33 onde o fiel congrega.
Dessa forma, é recorrente o trânsito nas CCBs entre fiéis de outros bairros, ou seja, nos dias
que não há programação na igreja onde geralmente congrega, os fiéis frequentam outras
igrejas da CCB. Vale destacar também que, embora não sejam proibidos, os fiéis são

32
Não foi possível contabilizar ao certo o número de membros, pois a igreja não possui cadastros ou documento
oficial que informe a quantidade de membros. O número assinalado é baseado nas afirmações aproximadas dos
informantes.
33
Templo que o fiel habitualmente frequenta.
42
orientados a não frequentarem outras religiões e denominações, mesmo que sejam
protestantes. Isso se dá por dois motivos principais: 1) a CCB considera qualquer outra
vertente religiosa como “seita” e 2) na tentativa de impedir a “contaminação” da própria
igreja.
A igreja em questão está filiada à matriz nacional, localizada no bairro do Brás em São
Paulo. Possui dois anciãos, um cooperador, dois diáconos e 15 homens músicos oficiais.
Realizam cultos oficiais nos dias de terça e sábado, no horário de 19h30min às 21h, e aos
domingo das 18h30min às 20h. Nos domingos pela manhã às 09h30min é realizado o “Culto
Jovem”, que excepcionalmente durante algum tempo da pesquisa, passou a ser realizado às
14h30min devido a uma reforma na igreja. Com ressalva do “culto jovem”, os demais cultos
não são nomeados especificamente, todos são chamados de “culto oficial”. Nos outros dias da
semana os fiéis são incentivados a visitarem igrejas da Congregação Cristã em outros bairros
e realizarem as chamadas “salinhas”, que são “mini-cultos” nas casas de irmãos, geralmente
doentes, debilitados e incapacitados de irem à igreja.
Todas as igrejas da Congregação Cristã no Brasil têm a mesma cor e arquitetura base,
essa última podendo ser adaptada às condições locais. Na CCB-Ibura não me foi permitido
fotografar dentro da igreja, de maneira que para descrevê-la usarei de desenhos, narração e
imagens semelhantes disponíveis online.
A igreja está construída a cerca de três metros acima do nível da rua, o que lhe permite
duas escadas laterais, uma para homens e outra para mulheres, e ao meio um espaço gramado.
As escadas levam, cada uma, a uma porta lateral de entrada; cada qual para o respectivo sexo.
O templo também possui uma porta frontal, escondida atrás de uma parede com três janelas.
O mesmo estilo de janela preenche toda a fachada da igreja, num total de sete (ver Figura 6).
De acordo com as informantes, nenhum motivo específico para os números.
Na parte interior do templo existem três fileiras de bancos de madeira. À esquerda
sentam as mulheres, à direita os homens. No centro, a parte frontal é reservada aos músicos,
enquanto os últimos bancos, os quais eu chamei de “bancos de apoio”, são ocupados por
homens ou mulheres, dependendo do maior número, mas geralmente ocupado por mulheres.
À frente dos bancos há o que os fiéis chamam de púlpito. Tem estrutura de madeira e também
é dividido. Duas bancadas estão postas, cada uma de um lado e equipadas com microfone.
Essas bancadas servem para o momento de “testemunhança”, quando os fiéis se levantam de
seus lugares e vão à frente, ao microfone, contar algum fato tido como milagroso. Do lado
esquerdo vão as mulheres e do direito os homens. Ao centro da estrutura, numa parte mais

43
elevada, ao fundo, duas cadeiras que mais parecem tronos. Os anciães sentam nelas. Entre as
cadeiras, na parte mais à frente, há um suporte para pôr a Bíblia e um microfone.
Na parede que forma o plano de fundo do púlpito, está escrita, em letras grandes, a
frase “Em nome do Senhor Jesus”. Ao perguntar aos fiéis o significado da frase e o porquê de
estar ali, recebi como resposta maciça que foi ordenança de Deus. No entanto, no site oficial
da Congregação Cristã no Brasil, um depoimento no link intitulado “curiosidade sobre a
CCB”, explica a exigência da frase em todas as igrejas:

Quando a primeira Congregação do Brás foi construída na Rua Uruguaiana,


os servos de Deus aqui em São Paulo escreveram para o nosso saudoso
irmão Louis Francescon nos Estados Unidos dizendo: “Irmão, a Paz de
Deus, a nossa Congregação já está construída, mas só que a parede do
púlpito está vazia e lisa, o que o irmão acha, devemos juntar alguma
paisagem ou escrever uma passagem bíblica?” Então passou-se alguns dias e
chegou a carta do nosso irmão Louis Francescon, e aos nossos irmãos do
Brasil ele dizia: “Caros irmãos e irmãs dou-vos a Paz de Deus, eu não sei o
que colocar mas vou orar a Deus, os irmãos também orem e aquilo que o
Senhor revelar será feito.” Então os irmãos começaram a orar a Deus
pedindo que Ele revelasse a Sua santa vontade ao nosso irmão Louis
Francescon. Então nosso irmão Louis se reunindo com alguns irmãos e irmãs
para orarem a Deus aconteceu que naquele momento Deus tomou uma irmã
pelo Espírito Santo com evidência de novas línguas, mas ninguém
compreendia e Deus naquele momento se usou de uma irmã com o Dom de
interpretação de línguas, dizia: Há de ser escrito somente “Em Nome do
Senhor Jesus”.

Outra característica interessante na CCB é que os fiéis não oram (dentro da igreja) de
outra forma, senão de joelhos. Assim, os bancos são adaptados para melhor conforto do fiel.
Como não me foi permitido fotografar o interior do templo, segue abaixo o esboço de uma
“planta interna”, para que o leitor visualize melhor a organização espacial do templo, e um
desenho34 de como é o banco de madeira com apoio para os joelhos (indicado pela seta).

34
Gostaria ressaltar que os créditos pelos desenhos são de Adson Braz, meu esposo.
44
Desenho 1: Planta Interna – CCB Ibura

45
Legenda:
1 – Assentos:
1a: Assentos femininos
1b: Assentos masculinos
1c: Assentos de apoio
1d: Assentos reservados aos músicos
2 – Entradas:
2a: Entrada lateral para mulheres
2b: Entrada lateral para homens
2c: Entrada central (mista)
3 – Lugar onde fica a organista
4 – Caixas de madeira onde os fiéis depositam ofertas
5 – Espaço (“palco”) para a testemunhança
6 – Parte do púlpito de onde o ancião fala
7 – Pequenas escadas

Desenho 2: Assento de madeira

46
1.3 CCB e suas doutrinas

A fim de embasar a fé, a doutrina e a organização, a Congregação Cristã no Brasil


aprova em 04 de março de 1931 o primeiro Estatuto, reformado posteriormente nos anos de
193635, 1943, 1944, 1946, 1956, 1962, 1968, 1975 e, finalmente, a versão de 04 de abril de
1980, que vigorou até a versão de 28 de abril de 1995, sendo, até esta data, pela última vez
ratificado, e consolidado em 10 de abril de 200436. De acordo com o preâmbulo, esse Estatuto
tem importância “para governo das coisas materiais da Congregação. Na parte espiritual não
existe nenhum governo humano, pois só o Divino prevalece, como se depreenderá dos artigos
que se seguem.” Esse Estatuto normatiza sobre a fé e doutrina (capítulo II) e a organização
politico-administrativa e suas atribuições (demais capítulos), como por exemplo definição e
atribuições do Conselho Fiscal (capítulo VII).
A CCB não mantém cadastro de membros37, nem fornece carteira de identificação de
membro. Para essa denominação é considerado membro:

Art. 8º - Quem aceitar Jesus Cristo como seu Salvador, e Sua doutrina,
conforme consta no “caput” do art. 1º e dos arts. 20, 21 e 22, submetendo-se
ao santo batismo, ministrado segundo a fé e doutrina da CONGREGAÇÃO
CRISTÃ NO BRASIL, será admitido como seu membro e assumirá uma
responsabilidade pessoal para com Deus.

Com base nesse Estatuto e nos dados colhidos em campo, apresentaremos neste tópico
a organização eclesiástica e administrativa da CCB, principais tópicos da doutrina, os doze
artigos de fé que embasam essa crença e algumas especificidades do campo, como os rituais e
o peculiar vocabulário dessa denominação religiosa.

1.3.1 Definição e caráter politico-administrativo da CCB

Segundo caput do artigo primeiro do Estatuto da Congregação Cristã no Brasil:

A CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL é uma comunidade religiosa


fundamentada na doutrina apostólica (Atos 2:42 e 4:33), apolítica, sem fins

35
Também em 1936, ao findar a Assembleia Geral do ministério em São Paulo, foi eleita a Administração para
“gerir as coisas materiais da Congregação”, com a constituição de presidente, tesoureiro, secretário e vice-
secretário e um Conselho Fiscal.
36
As versões do Estatuto da Congregação Cristã no Brasil estão disponíveis em: http://www.ccbhinos.com.br/
estatutos-da-ccb/Estatutos. Acesso em: 15 ago. 2015.
37
Segundo o Art. 30 do Estatuto CCB.
47
lucrativos, constituída de número ilimitado de membros, sem distinção de
sexo, nacionalidade, raça, ou cor, tendo por finalidade propagar o Evangelho
de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor a Deus, tendo por cabeça só a Jesus
Cristo e por guia o Espírito Santo (São João, 16:13). Iniciada em Junho de
1910, com Estatuto regularmente aprovado em 05 de Março de 1931 e
reformado em 20 de Março de 1936, 23 de Abril de 1943, 20 de Novembro
de 1944, 04 de Dezembro de 1946, 08 de Fevereiro de 1956, 21 de Abril de
1962, 12 de Abril de 1968, 23 de Abril de 1975, 04 de Abril de 1980, 13 de
Abril de 1995 e 10 de Abril de 2004. 38

O trecho acima nomeia as principais características da CCB: comunidade religiosa, de


doutrina apostólica (liderada por um concílio39), apolítica (sem vínculo político-partidário40),
sem fins lucrativos e sem distinção de pessoas. No entanto, para além das definições formais,
que de fato estão inseridas nos discursos, os fiéis, quando perguntados sobre “o que é a CCB”,
a grande maioria indicou um lado mais espiritualista:

A igreja é um lugar de refúgio. É onde a gente fica concentrada só em


Deus, esquece de tudo lá fora (Simone, 43 anos).

Na igreja a gente pode cantar, chorar, orar... Em casa também a gente


pode, mas em casa geralmente alguém atrapalha e a gente faz uma
coisa, faz outra, quase não tem tempo. Na igreja a gente reserva um
tempo só pra isso (Lívia, 38 anos).

Dessa forma, notamos que os fiéis estão mais interessados na função espiritual da
igreja que na instituição per si. Contudo, a organização institucional interessa-nos a fim de
refletirmos sobre sua estrutura interna e funcionamento da igreja estudada. Vejamos então
alguns pontos a serem destacados.
Como apresentamos no início deste capítulo, a Congregação Cristã no Brasil tem
influência religiosa dos valdenses da Primeira Igreja Presbiteriana Italiana. Ressaltamos este
ponto, pois segundo o presbiterianismo – isto é, as igrejas cristãs protestantes que aderem à
tradição teológica reformada (calvinismo) – a forma de organização eclesiástica se caracteriza
pelo governo de uma assembleia de presbíteros, ou anciãos41. A organização eclesiástica da
Congregação Cristã no Brasil é uma forma adaptada do modelo presbiteriano. Um grupo de
igrejas locais é reunido em uma “região administrativa”, presidida por um conselho de

38
CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL, Estatuto, 2004.
39
Um concílio é uma reunião de autoridades eclesiásticas com o objetivo de discutir e deliberar sobre questões
pastorais, de doutrina, fé e costumes (moral). [FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.]
40
A CCB também proíbe que seus membros tenham vinculo partidário. Se algum membro se declarar candidato
político, este não será mais considerado parte da instituição.
41
Neste trabalho “anciãos”, “anciões” e “anciães” são formas equivalentes.
48
anciãos e um corpo administrativo. As regiões administrativas são agrupadas em “regionais”,
que por sua vez se concentram nas “assembleias estaduais”. As mudanças de caráter
doutrinário na Congregação Cristã no Brasil são discutidas pelo Conselho de Anciãos Mais
Antigos e apresentada em assembleia anual, na igreja sede no bairro do Brás – SP. À
Administração de São Paulo – Capital, compete coordenar e incluir em relatório anual o
movimento espiritual e material das demais casas de oração da mesma Fé em todo o País,
podendo também orientar as demais Administrações na aplicação das leis42.
A estrutura ministerial da Congregação Cristã no Brasil se constitui por anciães,
cooperadores do ofício ministerial e diáconos43. Destes, somente os anciães e diáconos são
ministros ordenados, enquanto que os colaboradores são apresentados conforme deliberação
do Conselho de Anciães44. A escolha do fiel para ordenação é por aclamação durante o
momento de oração desse conselho, de forma colegiada por consenso tido como iluminado
pelo Espírito Santo. Sua liderança desaprova o formalismo teológico, exortando que a palavra
de Deus “não é para ser discutida, porém obedecida”. Pois, além de a Bíblia conter “tudo o
que se precisa, individual e coletivamente”, o Espírito Santo fornece “a sabedoria”
necessária “para entender o que Deus tem já revelado em sua Santa Palavra”45. A escolha
das novas lideranças eclesiásticas (diáconos e, no topo hierárquico, anciãos) depende da
“revelação divina”. Segundo os depoimentos colhidos em campo, para ocupar um cargo
eclesiástico na CCB é preciso que o candidato e sua família46 tenham bom comportamento e
testemunho. Não podem ter tido mais que um casamento e para os cargos de ancião e diácono
é exigido que o candidato seja “selado”47 com o Espírito Santo; nos demais cargos não há esse
requisito. A comunidade, observando todos esses pontos, indica o nome do candidato para o
corpo ministerial da igreja local, que levará à reunião regional de anciães para orar. O
processo dura alguns meses, até que o Espírito Santo revele aos anciãos mais antigos para a
autorização ser concluída.
Embora conste no Estatuto CCB que não existe hierarquia48, respeita-se a antiguidade
entre os membros do Ministério; dentro da igreja local “ancião” é o cargo máximo e, dentre os

42
Segundo o Art. 6º do Estatuto CCB.
43
Segundo o Art. 23º do Estatuto CCB.
44
Segundo o Art. 24º do Estatuto CCB.
45
“Resumo da Convenção” e “Reuniões e Ensinamentos”, publicados pela administração da igreja, em maio de
1981.
46
Notamos aqui que o “comportamento exemplar”, a santidade, que discutiremos posteriormente, se estende à
família.
47
O termo “selado” se refere ao fiel que recebe o batismo pelo Espírito Santo. Veja o tópico “glossário” neste
mesmo capítulo.
48
Segundo o Art. 18º do Estatuto CCB.
49
anciães, o mais antigo é aquele que possui maior prestigio e privilégios e cuja deliberação é
mais apreciada pelos demais membros. O Conselho de Anciães é formado pelos anciães mais
antigos no ministério, que não são necessariamente os de maior idade. As mudanças de
caráter doutrinário na Congregação Cristã no Brasil são discutidas em assembleia anual e por
esse Conselho de Anciães. Nessas assembleias são considerados os Tópicos de Ensinamentos,
os quais, tomados em reuniões e por oração e aprovação divina49, tratam de assuntos
relacionados à doutrina, costumes e comportamento na atualidade. É importante destacar que
o corpo ministerial da CCB, bem como todos o fiéis envolvidos nos trabalhos da igreja,
prestam serviço voluntário.
Dito isso, categorizaremos a seguir os cargos existentes na CCB:

Do corpo ministerial:

Cargo Descrição
Responsável pelo atendimento da Obra (presidir os cultos), realização
de batismos, santas ceias, ordenação de novos obreiros (anciães e
diáconos), apresentação de Cooperadores do Ofício Ministerial,
Ancião encarregado de conferir ensinamentos à igreja, cuidar dos interesses
espirituais e do bem-estar da igreja, entre outras funções;50
Responsável pela Obra da Piedade51, isto é, pelo atendimento
assistencial e material à igreja. É auxiliado por irmãs obreiras chamadas
Diácono de Irmãs da Obra da Piedade. Assim como o ancião, atende a diversas
congregações de sua região;
Responsável pela cooperação nos ensinamentos e presidência de cultos
Cooperador do oficiais e de jovens em uma determinada localidade (desde que não haja
Ofício Ministerial um Cooperador de Jovens e menores responsável por essa localidade).

49
Uma vez que a CCB preza pela revelação divina para dirigir tudo que lhe é relacionado, esta revelação se dá
quando um ou mais fiéis “sentem” que o Espírito de Deus fala com eles. Este sentimento é caracterizado pelos
fiéis como algo “inexplicável”, mas que de alguma maneira lhe permite saber que é Deus falando.
50
Segundo os Arts. 25 e 26 do Estatuto CCB
51
Segundo os Art. 27 do Estatuto CCB
50
Além dos ministros previstos em estatuto acima citados, há outros cargos ou
funções:52

Cargo Descrição
Cooperador de Responsável por atender as Reuniões de Jovens e Menores de sua
Jovens e Menores congregação local.
São jovens, homens ou mulheres, solteiros, designados para preparar e
organizar os recitativos, passagens bíblicas por eles escolhidas, ou pela
Auxiliar de
pessoa que vai recitar individualmente, que são recitadas em grupo em
Jovens e Menores
determinado momento do culto. Cuidam, ainda, da ordem e da
organização durante a reunião de jovens e menores.
Encarregado de Músico oficializado, designado para coordenar o ensino musical aos
Orquestra interessados e organizar ensaios musicais da Orquestra da Congregação.
As Examinadoras são organistas mulheres, oficializadas, designadas para
Examinadora
avaliar outras organistas aprendizes no processo de oficialização.
Membro habilitado e depois de passar por testes musicais é oficializado
Músico
para tocar nos cultos e demais reuniões.
Compete tratar do ministério material, constituído por Presidente,
Tesoureiro, Secretário, Auxiliares da Administração, Conselho Fiscal e
Administração Conselho Fiscal Suplente. Os administradores são eleitos a cada três
anos e o Conselho Fiscal anualmente, durante a Assembleia Geral
Ordinária. É permitida a recondução ao cargo.

Além dos cargos, para tratar de questões administrativas, a Congregação Cristã


também dispõe de 1) uma Assembleia Geral da irmandade53: realizada anualmente nas sedes
administrativas, de acordo com o Estatuto, é o órgão que serve para confirmar os integrantes
dos cargos administrativos, indicados pelo ministério, e onde são apresentadas aos membros
as contas referente ao ano anterior, informando o quanto foi arrecadado e onde foi gasto o
dinheiro da irmandade. Nessa Assembleia Geral são apresentados e empossados os membros
da administração daquela região administrativa: Presidente, Secretário e Tesoureiro e os

52
Designações apresentadas pela CCB online pelo site: http://www.cristanobrasil.com/. Acesso em: 10 ago.
2015.
53
Segundo Arts. 28 e 29 do Estatuto CCB.
51
integrantes do Conselho Fiscal e vices, se houver necessidade. 2) Administradores54: com
mandato de três anos, possuem tarefas específicas dentro da região administrativa do
município, sendo responsáveis pela anotação, controle e gestão da arrecadação, das contas
bancárias e do patrimônio da Congregação Cristã, em comunhão com o ministério espiritual.
Conforme a necessidade, é possível a criação de departamentos específicos para cuidar de
engenharia, construções, compras de materiais, informática, etc. Os administradores da CCB
contam com um programa de computador para gestão e um portal chamado CCBINFO,
conectando as dezenas de administrações, facilitando a tarefa, permitindo maior controle
administrativo e prestando auxílio aos administradores. 3) um Conselho Fiscal55: composto de
três membros, indicados pelo ministério e localizados em cada administração regional, tem
por missão fiscalizar os atos administrativos, as documentações etc., dando o seu parecer se
tudo estiver em boa ordem. O Conselho Fiscal foi constituído para examinar criteriosamente
cada documento de despesas da Administração, bem como outros documentos referentes à
mesma área administrativa. Portanto, deve haver amplo acesso para o Conselho Fiscal a essa
documentação. O Conselho Fiscal, vistoriando mensalmente os documentos, ao chegar ao
término do ano a tarefa estará concluída, bastando unicamente emitir e assinar o parecer para
aprovação das contas do balanço.
No plano administrativo, a liderança é baseada na antiguidade56 e seus líderes são
praticamente anônimos. Essa ausência de personalismo resulta numa tendência mínima para
cismas e ambições políticas. A homogeneidade interna do grupo é fortalecida pelo constante
contato entre os crentes de diferentes cidades e por uma convenção anual realizada no Brás,
na Semana Santa. Com as suas características inusitadas, a Congregação Cristã no Brasil
exemplifica o dinamismo e a diversidade do movimento pentecostal.

1.3.2 Os artigos de fé e doutrina da Congregação Cristã no Brasil

Em 1927, na cidade de Niagara Falls, NY – EUA, houve uma convenção da Igreja


Cristã da América do Norte, juntamente com representantes de congregações italianas, na
qual o conselho de anciães definiu os doze pontos de fé e doutrina da Congregação Cristã.
Nos anos seguintes, esses artigos foram adotados pelas demais igrejas, passando a ser a base

54
Segundo Arts. 31 à 37 do Estatuto CCB
55
Segundo Art. 41 do Estatuto CCB
56
Quando tratamos de “antiguidade” nos referimos ao maior tempo de ordenação e não de idade
necessariamente.
52
para a crença e a conduta dos fiéis. Esses pontos são incorporados no Art. 22, no segundo
capítulo “Fé e Doutrina” do Estatuto da Congregação Cristã no Brasil.

Os 12 artigos de Fé e doutrina seguidos pela Congregação Cristã:


1. Nós cremos na inteira Bíblia Sagrada e aceitamo-la como contendo a
infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus é
a única e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode
acrescentar ou d'Ela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de
todo aquele que crê.
2. Nós cremos que há um só Deus vivente e verdadeiro, eterno e de infinito
poder, criador de todas as coisas, em cuja unidade estão: o Pai, o Filho e
o Espírito Santo.
3. Nós cremos que Jesus Cristo, o Filho de Deus, é a Palavra feita carne,
havendo assumido uma natureza humana no ventre de Maria virgem,
possuindo Ele, por conseguinte, duas naturezas, a divina e a humana; por
isso é chamado verdadeiro Deus e verdadeiro homem e é o único Salvador,
pois sofreu a morte pela culpa de todos os homens.
4. Nós cremos na existência pessoal do diabo e de seus anjos, maus espíritos,
que, junto a ele, serão punidos no fogo eterno.
5. Nós cremos que o novo nascimento e a regeneração só se recebem
pela fé em Jesus Cristo, que pelos nossos pecados foi entregue e ressuscitou
para nossa justificação. Os que estão em Cristo Jesus são novas criaturas.
Jesus Cristo, para nós, foi feito por Deus sabedoria, justiça, santificação e
redenção.
6. Nós cremos no batismo na água, com uma só imersão, em Nome de Jesus
Cristo e em Nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
7. Nós cremos no batismo do Espírito Santo, com evidência de novas
línguas, conforme o Espírito Santo concede que se fale.
8. Nós cremos na Santa Ceia. Jesus Cristo, na noite em que foi traído,
tomando o pão e havendo dado graças, partiu-o e deu-o aos discípulos,
dizendo: "Isso é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de
mim". Semelhantemente tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: "Este
cálice é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós".
9. Nós cremos na necessidade de nos abster das coisas sacrificadas
aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e da fornicação, conforme mostrou
o Espírito Santo na Assembleia de Jerusalém.
10. Nós cremos que Jesus Cristo tomou sobre si as nossas
enfermidades. "Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da
Igreja, e orem sobre ele, ungindo-o com azeite em nome do Senhor; e a
oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido
pecados, ser-lhe-ão perdoados".
11. Nós cremos que o mesmo Senhor (antes do milênio) descerá do céu com
alarido, com voz de arcanjo e com a trombeta de Deus; e os que morreram
em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois, nós, os que ficarmos vivos,
seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar nos ares e
assim estaremos sempre com o Senhor.
53
12. Nós cremos que haverá a ressurreição corporal dos mortos, justos e
injustos. Estes irão para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.
[grifos contidos no próprio artigo]

Vale ressaltar que o primeiro artigo foi modificado na elaboração do Estatuto Interno
CCB, versão de abril/2004. Por quase um século, o primeiro ponto foi escrito da seguinte
forma:
1. Nós cremos na inteira Bíblia Sagrada e aceitamo-la como infalível
Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus é a única
e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode acrescentar ou
d'Ela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de todo aquele
que crê.

A partir de 2004, o artigo passou a ser grafado:

1. Nós cremos na inteira Bíblia Sagrada e aceitamo-la como contendo a


infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus
é a única e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode
acrescentar ou d'Ela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de
todo aquele que crê.

O acréscimo da palavra “contendo”, para alguns fiéis – embora a maioria dos


entrevistados não perceba diferença, é de grande importância a fim de evitar interpretações
errôneas. “A Bíblia, por si só, é uma reunião de livros e fechada é apenas isso mesmo. Mas
quando abrimos, ela contem a Palavra de Deus”, nas palavras de um informante com o cargo
de colaborador.
Nesses 12 pontos podemos então verificar a base regimentar para a vida do fiel CCB.
Destacaremos alguns pontos para análise:
Em primeiro lugar, embora teologicamente a Bíblia não dê margem à numerologia ou
qualquer ciência que tenha os números como base, é possível reconhecer a simbologia que o
número possibilita. Por exemplo, o número 7 é percebido pelos cristãos como “o número da
perfeição ou inteireza”. O número 12 por sua vez reflete, na ótica cristã protestante, “a
manifestação própria e perfeita de Deus”57 Existem muitas referências bíblicas a esse número,
para citar algumas: o número dos discípulos de Jesus foram doze (Mc 3:14); o muro de
Jerusalém tinha doze portas (Ap 21:12); foram doze os filhos de Jacó, dos quais se originaram
as doze tribos de Israel (Gn 35:22). Enfim, são doze os artigos que embasam a doutrina da
CCB.

57
“Quadro: Significado dos números nas Escrituras” In: A Bíblia da Mulher: leitura, devocional, estudo. 2ª ed. p.
2074, Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
54
Esses artigos são importantes para colocar ordem na coisa, sabe? Se não
cada um faz o que quer, essas coisas... Acho que toda igreja tem que ter. Pra
que quem quiser congregar nelas, saiba como é o sistema (Priscila, 23 anos).

No artigo de número quatro, a CCB declara crença na existência pessoal do diabo e de


seus anjos. Essa é, provavelmente, uma das poucas vezes que vemos referência ao diabo. Os
pregadores dessa igreja são orientados a não tocar no assunto “diabo” no culto – e de fato, em
minhas visitas etnográficas à igreja pouquíssimas vezes ouvi alguma referência ao diabo. A
palavra “diabo” é, portanto, evitada, uma vez que são orientados a pregar:

somente o nome de Deus o qual deve ser pronunciado e exaltado, quando em


um testemunho contado na igreja é necessário referir-se ao diabo, usa-se o
termo “inimigo”. O uso dessa palavra [diabo] só é admitida se no momento
em que se estiver fazendo a leitura da Bíblia estiver escrito, então lê-se na
íntegra tal qual está58 (Lúcia, 35 anos).

No quinto artigo apresentado percebemos as primeiras referências à conduta e estilo de


vida. Palavras como “novas criaturas”, “justiça”, “santificação” e “redenção” indicam a
mudança necessária e a ascese para a vida cristã. Em diálogo com o artigo 11 e o último
artigo, o de número 12, que tratam sobre a descida de Cristo e a ressureição corporal dos
mortos, a noção de justiça e santidade se materializam: aqueles que forem justos (e santos)
terão a vida eterna no céu com Deus; mas aqueles que não praticarem os mandamentos de
Deus, não sendo justos e santos, terão como recompensa o tormento eterno. Para ter direito a
vida eterna no céu, o artigo 9º ilumina sobre a necessidade de se abster de coisas mundanas
que possivelmente os afastaram de Deus e prejudicarão a santidade almejada.59
Nos artigos de número 6, 7 e 8, o batismo nas águas, o batismo do Espírito Santo (com
glossolalia60) e a Santa Ceia são citados – dois rituais e uma manifestação típica pentecostal
que são de suma importância para a cosmologia da CCB. O batismo pelo Espírito Santo é
interpretado como manifestação desse Espírito no fiel “selado”, tem a referência do evento
bíblico relatado no segundo capítulo do livro de Atos dos Apóstolos. Esse acontecimento
permite ao fiel o poder de falar em outras línguas e de receber a revelação do Espírito Santo,
sendo possível a profecia. O batismo na água, por sua vez, é um ritual fundamental para o fiel
da CCB, pois indica a sua conversão e pertencimento à igreja; a partir desse evento o fiel
batizado nas águas é considerado membro, lhe é permitido participar da Santa Ceia e ocupar

58
Comentário de uma fiel
59
As noções de santidade para os fiéis da CCB serão melhores apresentadas e discutidas no terceiro e último
capítulo deste trabalho.
60
Fenômeno pentecostal que implica na capacidade de falar em outras línguas, mais precisamente a língua dos
anjos, segundo os fiéis.
55
quaisquer cargos, desde que atenda as exigências para tal61. Finalmente, a Santa Ceia62, como
o ritual máximo, acontece uma vez por ano. Ordenado biblicamente pelo próprio Jesus, esse
ritual reflete a comunhão e santidade para com Deus e a irmandade. Embora a Congregação
Cristã no Brasil não possua cadastro oficial de membros, esses rituais agem como
mecanismos controladores, apontando o que é (ou não) considerado parte da igreja.
Por fim, no tópico dez, que diz respeito às enfermidades, a CCB acredita que ungir um
doente com azeite e a oração poderá curá-lo. No entanto, chamamos a atenção que, embora se
acredite na igualdade entre os fiéis, o trecho do artigo destaca que se deve chamar o
“presbítero”, ou seja, uma autoridade eclesiástica reconhecida pela igreja, para que faça o
ritual de cura. Embora se acredite, teoricamente, que todos os fiéis tenham a mesma
capacidade de relacionamento com o divino e a mesma capacidade de realizar milagres, na
prática, percebemos que alguns fiéis são mais “santos” que outros.63

1.3.3 Rituais, glossário e outras particularidades

De maneira geral, a Congregação Cristã no Brasil apresenta caráter apolítico,


antidizimista e o distanciamento deliberado da mídia. Prega a total separação entre Estado e
religião. Não mantém ligação nem se manifesta de forma alguma em relação a causas ou
partidos políticos, candidatos a cargos públicos, ou qualquer outra instituição ou organização,
governamental ou não. Caso algum membro de seu corpo ministerial venha a assumir cargos
políticos, deverá renunciar ao seu cargo congregacional. A CCB não prega o dízimo
obrigatório, mas aceita ajuda financeira voluntária dos membros. Vejamos mais
detalhadamente algumas características da CCB:

O Ósculo Santo:

O ósculo santo (em latim: osculum pacis), chamado também de beijo da paz, foi uma
forma de saudação usada por Jesus Cristo e seus discípulos, pela ação de beijar a face
mutuamente, não somente em regiões onde esse era um costume habitual, mas também entre
os cristãos de Roma. Segundo o Tópico de Ensinamento da Convenção das Igrejas da
61
Falaremos mais detalhadamente sobre o batismo por imersão nas águas em um tópico mais adiante deste
capítulo.
62
Sobre o ritual da Santa Ceia ver o capítulo 4 deste trabalho.
63
Alguns antropólogos debruçaram seus estudos sobre este tema. Ver: Campos & Mauricio Junior (2013);
Amaral (2012); Mauricio Junior (2011); Coleman (2009).
56
Congregação Cristã no Brasil e exterior do ano de 1936, “o ósculo santo deve ser dado de
coração, na despedida do serviço ou em caso de viagem, todavia, sempre entre irmãos ou
entre irmãs, de per si.” Embora, originalmente utilizado no momento de despedida, percebi
em minhas idas a campo, que os fiéis utilizam essa ação como forma de saudação entre
irmãos e irmãs per si (sendo proibida a saudação com o sexo oposto), ou seja, esse ritual é
feito também no momento de chegada, não só no templo, como também em outros espaços
sociais.

O Culto:

O culto da Congregação Cristã no Brasil, chamado de “culto oficial” ou “culto de


louvor e adoração a Deus”, segue uma ordem preestabelecida, porém sem uma liturgia fixa.
Nos cultos, os pedidos de hinos, orações, testemunhos e a pregação da Palavra são feitos de
forma espontânea e tidos como guiados pelo Espírito Santo. A participação coletiva é
ressaltada em detrimento de manifestações individualizantes. O culto começa com o chamado
“hino do silêncio”, que consiste no toque instrumental de um hino pela organista; nesse
momento ninguém canta o hino, apenas dizem “glória a Deus”, exaltando-o. Ao término do
hino, o ancião ou cooperador que irá dirigir a reunião sobe ao púlpito e diz “Deus Seja
Louvado”, e todos respondem “amém” e se colocam em pé. O primeiro hino é cantado em
conjunto com toda a orquestra. A seguir, os fiéis sentam-se e cantam mais dois hinos. Os
cultos da Congregação Cristã no Brasil são acompanhados de hinos de um hinário intitulado
de "Hinos de Louvores e Súplicas a Deus"64. Após o período de louvor, todos se põem de
joelhos para o momento de oração (na CCB, o fiel só pode dirigir-se a Deus de joelhos65 e as
mulheres vestindo o véu), essa oração é feita pelo fiel que “o Espírito Santo de Deus fizer
sentir”. Em nossas visitas, percebemos que a grande maioria de orações é feita por homens,
além de não presenciarmos duas ou mais pessoas iniciarem a oração ao mesmo tempo.
Após a oração, mais um hino é louvado ao término da oração. Abre-se então para a
participação do fiel, o momento de testemunhos consiste no fiel ir até a frente da igreja
(próximo do ancião, mas não no púlpito) e contar algum acontecimento milagroso. Após a
participação dos fiéis, o ancião pergunta se algum dos irmãos “sente o Espírito Santo
impulsioná-lo para trazer a mensagem de Deus”, havendo então um fiel disposto, todos se

64
No dia 17 de março de 2013, começou em todo o Brasil a utilização do Hinário n°5 com trinta novos hinos.
65
Existe a flexibilidade da oração não ser realizada de joelhos caso o fiel seja impedido de fazê-la, como em
caso de doenças, ou em locais como hospitais e funerais.
57
colocam em pé novamente e fazem a leitura da Bíblia, segue-se a pregação; no caso de
nenhum fiel se prontificar, o próprio ancião é incumbido de fazer a pregação.
No culto da Congregação Cristã no Brasil, há duas manifestações discursivas
principais: a dos fiéis (nos testemunhos) e a do Ancião, Cooperador ou a quem for revelado
(na pregação). Ao fim da pregação, não é feito o convite para quem quiser levantar a mão e
ser adepto da religião, como é costume na maioria das igrejas pentecostais, na CCB a
conversão se dá pelo batismo por imersão nas águas, eliminando então a necessidade do
apelo.
De maneira geral, os cultos seguem a seguinte estrutura:

hino do silêncio leitura da bíblia pregação

três hinos período de


oração final
(hinário) testemunhança

momento de
quarto hino
oração

Figura 7: Culto na CCB –


Brás, Década de 1950.
Fonte: Museu CCB

58
Figura 8: Culto na CCB
– Brás, Anos 2000.
Fonte: Museu CCB

Batismo e Conversão:

O ritual batismal é fundamental não só para a CCB, como para a maioria das igrejas
pentecostais. Sendo ele por imersão (e não por aspersão como na Igreja Católica, por
exemplo) é realizado em pessoas acima de 12 anos ou em casos especiais em que a criança for
“selada66”. O batismo é um ritual de regeneração, de novo nascimento.

Na prática, a CCB prega que o novo nascimento é o batismo, que o ato de


aceitar Jesus se dá crendo na doutrina pregada na CCB, e aceitando seu
chamado no dia do Batismo (Renata, 29 anos).

Segundo a cosmologia do pentecostalismo clássico, ao ser submerso nas águas o


indivíduo morre para o mundo; ao ser retirado das águas, renasce para cristo como novo ser
regenerado. As palavras do ancião “Batizo em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo,
Amém” concretizam o ritual. Na CCB, o batismo não segue um cronograma com datas
específicas, segundo uma fiel: “tendo necessidade, o ancião revelado, convoca o batismo”.
Como a maioria dos cultos rituais da CCB, o batismo também é por revelação divina, bem
como as pessoas que vão ser batizadas. A explicação da fiel, Selma, resume a ideia do
batismo:

Como é o batismo? Ah! É a coisa mais linda do mundo [risos]. Você vê toda
irmandade reunida, cantando... Porque assim... você começa congregando. Aí
Deus fala com sua alma e você sente que Deus está ali. Ninguém contou ao
irmão lá na frente, mas o Espírito sabe. Ele fala com você. Eu fui a um
66
Isto é, batizada pelo Espírito Santo; evento marcado pela manifestação da glossolalia.
59
batismo, sem compromisso, no mês de outubro de 77. Quando estavam todos
cantando, eu senti de ir. A gente sente de ir. É assim que os irmãos sabem
que você entendeu e aceita a doutrina (Selma, 65 anos, grifo nosso).

Não há uma espécie de cadastro ou indicação prévia de quem ou quantas pessoas


desejam ser batizadas. No depoimento da fiel percebemos que o ritual é revelado
espiritualmente ao individuo, e este “sente de ir” até lá. Outro ponto levantado sobre o
batismo está no trecho grifado em negrito. “É assim que os irmãos sabem que você entendeu e
aceita a doutrina” revela a função prática do batismo: ele indica conversão final,
pertencimento à igreja. Para a CCB, uma pessoa só é considerada parte da irmandade após o
batismo nas águas. E isso também significa obediência e submissão às doutrinas e normas.
Afinal, o batismo é uma espécie de assinatura de contrato, em que se afirma a concordância
das normas da igreja e com o que é pregado por ela. Por isso a CCB não reconhece outro
batismo, mesmo que de uma denominação pentecostal. Dessa forma, se uma pessoa batizada
em uma igreja, Assembleia de Deus, por exemplo, quiser se tornar membro da CCB, será
necessário realizar o batismo novamente. Submeter-se a normas específicas, que as próprias
fiéis reconhecem como “rígidas”, preocupa principalmente os mais jovens indecisos, como
Ester, uma fiel com 13 anos de idade e que numa entrevista contou-me sobre seu “medo” de
se batizar:

Eu já cresci na graça67 [...] acho um pouco ruim ter que fazer tudo, tudo, que
a igreja manda. Eu uso roupa de alça e shorts, mas só em casa, e calça pra
escola... Mas eu não posto nada no face...[referindo-se à rede social
Facebook] É por isso que eu num quero muito me batizar... Aí não vai poder...
Nem em casa! As minhas amigas da igreja são batizadas, mas eu não sei...
estou esperando sentir de Deus.

Na Congregação Cristã no Brasil a conversão é sinalizada pelo batismo. Mesmo a


definição da palavra “conversão” se mostrou obscura para a grande maioria das entrevistadas.

Pra gente [para a CCB] não tem esse negócio de perguntar se a pessoas quer
aceitar Jesus, aí a pessoa levanta a mão e vai na frente dizendo que quer.
Converter por converter, precisamos nos converter todo dia. A pessoa vai
congregando, congregando, congregando... Aí conhece a doutrina, a Santa
palavra... Quando Deus faz sentir, a pessoa se batiza. Aí a gente ver mesmo
que a pessoa se converteu. Mas tem que continuar firme na fé. Também não

67
O termo “crescer na graça” se refere ao fato de que quando a criança nasceu, seus pais já eram fiéis CCB e a
conduziram à igreja desde sua infância.
60
adianta receber o santo batismo e depois cair na graça68, aí a pessoa não se
converteu de verdade (Selma, 65 anos).

Diante das intensas e diversas transformações do cenário religioso brasileiro,


estudiosos e pesquisadores debruçam-se cada vez mais sobre o tema da conversão. Contudo,
algumas áreas costumam ser, em termos de análise, mais privilegiadas que outras. Exemplo
disso é o detrimento de algumas categorias significativas e a insistência por parte dos
pesquisadores na manutenção do “paradigma da continuidade” como caminho explicativo
(Campos & Reesink 2014). E quando se trata do movimento pentecostal brasileiro, as
conclusões geralmente recaem sob a ótica do mercado e as noções de clientelismo. A
perspectiva hegemônica da Antropologia “tende a interpretar a dinâmica do campo religioso
brasileiro como porosidade e trânsito, diminuindo ou mesmo negando o valor analítico e
interpretativo do conceito de conversão” (Campos & Reesink 2014: 54). Segundo as autoras,
uma tríade de problemas coopera para essa perspectiva, dentre os quais destacamos a
insistência da antropologia numa abordagem antropológica de continuidade, que repousa na
ideia da nação brasileira como sincrética, porosa, que possibilita diferentes trânsitos
religiosos, negligenciando possíveis descontinuidades, desemborcando numa “matriz
interpretativa do fundo comum” (Campos & Reesink 2014: 58).
No campo da Antropologia do Cristianismo – que, especialmente no Brasil, ainda está
em desenvolvimento –, um dos principais temas tem sido o conceito de “conversão”. No
entanto, “o que se tem tornado hegemônico é a posição do esvaziamento do seu significado e,
portanto, da sua inaplicabilidade ou dispensabilidade como categoria analítica” (Campos &
Reesink 2014: 49). Além disso, muitas vezes nega-se ou não se reconhece a conversão ao
cristianismo de povos não ocidentais, o que implica no desconhecimento das práticas cristãs
(Mariz & Campos 2014). Nesse sentido, pretendemos ir à contramão hegemônica e contribuir
para a análise do conceito de conversão, assumindo a sua “polissemia etnográfica” (Campos
& Reesink 2014: 49), apresentando neste trabalho a categoria “conversão” na cosmologia da
Congregação Cristã no Brasil (CCB). Mesclando teoria e experiência etnográfica ao longo do
texto, introduziremos as principais ideias sobre o conceito de conversão na teoria
antropológica e localizaremos a CCB nesse contexto, apontando o ritual do batismo por
imersão em águas como concretizador e manifestador da conversão.

68
Cair na graça é um termo similar a “cometer pecados graves”, como adultério, roubo, morte, ou mesmo não
cumprir as normas da igreja.
61
As definições para o termo conversão são múltiplas. Para analisarmos o nosso
contexto etnográfico assumimos que existem diferentes modelos de conversão e que essa
categoria é processual. Apontaremos, então, dois pontos sobre o tema como embasamento, a
fim de refletirmos sobre a conversão na igreja pentecostal Congregação Cristã no Brasil: 1)
Joel Robbins (2007), com seus estudos sobre conversão entre os Urapmin da Papua Nova
Guiné, sob a ótica da conversão como “ruptura” da antiga vida, em prol de uma nova vida
modificada por Deus – conversão ocorrida em um determinado momento, num evento
específico; e 2) Mathew Engelke (2004), na igreja Masowe weChishanu do Zimbabué, numa
perspectiva analítica, considerando a conversão como um processo propriamente dito, uma
busca constante, que ultrapassa o momento de decisão em aderir à crença. Começaremos
apresentando-as.
Em critica ao trabalho dos Camaroff (1991), Robbins acusa o casal de ter negado a
importância do Cristianismo para os Tswana, reduzindo-o a mecanismos de entrada para o
capitalismo, negando, assim, a dimensão cultural do Cristianismo. Uma vez que isso
acontece, o Cristianismo é percebido de maneira contínua, sem possibilidade de mudanças,
invisibilizando categorias novas como o conceito de conversão. Tendo em vista que a noção
de tempo no Cristianismo permite rupturas em seu percurso (e é por ter uma noção de tempo
diferente que a Antropologia tem dificuldade em compreender o processo de conversão),
Robbins entende a conversão como uma ruptura, como mudança radical no estilo de vida
anterior. “But conversion itself, however long it takes to get there, is always an event, a
rupture in the time line of a person’s life that cleaves it into a before and after between which
there is a moment of disconnection” (Robbins 2007: 11). É nesse acontecimento, que marca o
antes e depois da vida do indivíduo convertido, que o autor entende esse momento
fundamental para a conversão. Essa ideia de conversão apresentada por Robbins pode ser
ilustrada pelo momento de conversão do apóstolo São Paulo69. A narrativa bíblica conta que
Paulo, anteriormente chamado Saulo, em caminho para uma perseguição dos cristãos, viu uma
forte luz no céu que o fez cair de sua montaria. Após um curto diálogo com quem o apóstolo
afirma ser Jesus, não só seu nome, mas sua vida foi mudada. Esse evento marca a conversão
de Paulo e, em igrejas pentecostais brasileiras, é muito comum no discurso do fiel ao contar o
momento de sua conversão; geralmente são acontecimentos extracotidianos que marcam a
mudança de vida, assim como na narrativa paulina.

69
O texto bíblico pode ser encontrado em Atos capítulo 9.
62
Tendo em vista a importância da narrativa da conversão, Engelke (2004) toma nota de
uma delas para apresentar sua ideia de conversão. Em seus estudos no Zimbabué, o autor
entende a conversão como um “processo”, já que

na igreja Masowe (ou apostólica) weChishanu do Zimbabué, o processo de


conversão tem a ver com a inquisição do que este grupo chama de mutemo,
uma palavra do idioma Shona que, segundo Engelke, pode ser traduzido
como ‘lei’, mas que os apostólicos (outro nome para o crentes weChishanu)
usam para se referirem ao conhecimento (Maurício Júnior 2014: 204).

Engelke, através da narrativa de conversão do seu informante Gaylord, constrói a sua


proposição de conversão como processo: Gaylord revela que ao ser convertido pôde ser livre
da tormenta dos espíritos ancestrais, indicando o primeiro ponto de busca pela conversão – a
busca pela resolução de um problema. Mas para que os problemas sejam realmente sanados e
não retornem é preciso frequentar a igreja assiduamente e então iniciar o segundo passo da
conversão – a aquisição de mutemo, ouvindo, memorizando e aprendendo as normas que
regem a nova vida do convertido. No entanto, não basta conhecer as normas e frequentar a
igreja, é preciso ser um Masowe de fato. O terceiro passo é receber o convite para tal, que se
concretiza com uma confissão pública de pecados e a manifestação disso no uso de roupas
brancas nos cultos. Contudo, mesmo com o rito de passagem completado, o processo de
conversão continua. Assim, para Engelke, a conversão contada por Gaylord foi “gradual and
piecemeal, reflected more in the articulation of mutemo than any 'clash' between realms of
thought” (Engelke 2004:105), a conversão é portanto, um processo incompleto, do vir-a-ser.
Ao apresentarmos esses autores propomos, então, pensar a conversão como um
processo que é iniciado numa experiência pensada e vivida como ruptura, mas que se
prolonga numa busca contínua na manutenção do “ser” cristão.

Neste sentido, ao se romper com algo, dialeticamente se (re)estabelece uma


aliança com outro mais. Assim, pode-se avançar que, em um certa
perspectiva nativa brasileira realiza-se uma ruptura, por exemplo, com o
‘demônio’ e se estabelece uma (nova) aliança com ‘Deus’ (Campos &
Reesink 2014: 64).

A antropóloga Clara Mafra, em seus estudos sobre a formação da pessoa cristã, aponta
que a identidade pentecostal propõe uma reforma cultural e social através de uma concepção
alternativa do “mal”, de forma que:

63
dualismos relativistas vagamente definidos entre o bem e o mal, que eram
forças presentes em algumas versões do catolicismo popular, do
catolicismo progressista e das religiões afro-brasileiras, foram
substituídos por dualismos claramente delimitados, provocando uma
atitude militante de pessoas de ambos os lados. O ressurgimento da figura
do diabo levou a produção de um amplo leque de práticas e rituais de
purificação, resultando na reorganização de um grande volume de crenças
e costumes sincréticos ou híbridos (Mafra 2014: 173).

Segundo a autora, os nativos pentecostais tendem a descrever sua conversão religiosa


como uma ruptura com o passado e como o “nascimento de uma nova pessoa”, o que implica
em novo comportamento e pela busca de “purificação” para algo como uma “redenção
moral”. Apontamos aqui que o ritual do batismo por imersão nas águas age como
manifestador e prova da conversão e mudança de vida, segundo a cosmologia da Congregação
Cristã no Brasil.
Retomando a história apresentada pelo informante de Engelke (2007), consideramos
similar ao processo de conversão na CCB. Primeiro o indivíduo busca a resolução de um
problema70, seja ele de cunho material ou espiritual; em seguida, frequenta a igreja, aprende
os costumes, regras e normas, começa a mudança de vida sem, no entanto, ser ainda
considerado um membro de fato; o ritual que concretiza a nova identidade cristã é o batismo
por imersão nas águas, com confissão pública, roupas brancas (ou azul clara, nesse caso) e o
sentimento de pertença, afinal conhecer as regras não é o mesmo que ser batizado. Além
disso, percebemos que, assim como os Urapmin da Papua Nova Guiné apresentados por
Robbins (2004), a Congregação Cristã percebe a conversão como um sistema significativo
capaz de orientar diversas áreas da vida, processo iniciado no evento do batismo, que
simboliza a ruptura com as coisas mundanas e um renascimento para as coisas divinas.
Dessa forma, concluímos que o batismo, segundo a ótica da igreja Congregação Cristã
no Brasil, é sinônimo de transformação e responsabilidade para com Deus e com a Igreja,
agindo como marcador da conversão, mas que necessita de manutenção e constante
manifestação – nos rituais, no estilo de vida, na obediência das regras, inclusive para validar a
conversão – que no sentido apresentado por Engelke (2007) é sempre um vir-a-ser. O batismo
e, consequentemente a conversão, podem ser explicados numa dialética entre ruptura e
processo, como entendido por Campos & Reesink (2014).

70
Neste ponto é importante notar que a categoria “problema” não se resume à noção neopentecostal de libertação
de maus espíritos, cura e prosperidade, geralmente interpretada por uma relação de clientelismo igreja-fiel. Neste
caso, consideramos também a busca do indivíduo pelo bem-estar espiritual, paz interior entre outros “problemas”
não materiais.
64
Figura 9: Batismo na CCB. Fonte: CCB Online

A Santa Ceia

A Santa Ceia é um ritual realizado uma vez ao ano na Congregação Cristã. Faz
referência à ultima ceia de Jesus Cristo antes de sua crucificação e é um mandamento deixado
a fim de fazer memória dessa ação. O batismo é o pré-requisito primordial para participação
desse ritual. Só é permitido tomar parte da Santa Ceia, isto é, comer do pão e beber do vinho
que simbolizam, respectivamente, o corpo e sangue de Cristo, aqueles que são membros
batizados na Congregação Cristã. No último capítulo deste trabalho, quando analisamos o
conceito de santidade, indicamos o ritual da Santa Ceia como um ápice dessa santidade.
Naquele momento, trataremos desse ritual com mais especificidade.

O Ministério da Música

A formação do ministério da música na Congregação Cristã no Brasil é relatada da


seguinte maneira71:

A Obra de Deus no Brasil foi iniciada em 1910, e até 1932 não havia
orquestras nas congregações; apenas algumas delas possuíam órgão. Em
maio desse mesmo ano, Deus fez saber a seu servo, o irmão Louis
Francescon, que convocasse uma reunião de anciães, diáconos e alguns

71
http://www.cristanobrasil.com/index.php/museu-ccb

65
jovens, a fim de orarem a Deus e apresentarem a necessidade de um
conjunto de instrumentos que auxiliasse a irmandade no canto dos hinos.
Desde então, muitos irmãos interessaram-se em estudar música, formando
assim as primeiras orquestras. Crescendo cada vez mais o seu número,
passou essa parte a integrar-se na Obra de Deus. Consideraram então os
Anciães a necessidade de haver um irmão Encarregado da parte musical,
tendo Deus apontado para esse encargo o irmão Ancião João Finotti, que
além de ter sido um dos primitivos chamados a esta graça, também era
músico.
Como crescesse a Obra de Deus e o irmão João Finotti não pudesse
atender a todos exames dos músicos, foram colocados como seu auxiliares
os irmãos Miguel Oliva e João Baptista Vano, por ocasião da última viagem
de nosso irmão Ancião Louis Francescon ao Brasil, em 1948. Anos após
foram colocados mais auxiliares, tanto para este Estado (São Paulo) como
para outros.

Figura 10: Primeira Orquestra da Congregação Cristã no Brasil. Fonte: Museu online da CCB

A Congregação Cristã no Brasil possui uma orquestra de música sacra muito


valorizada. Ela provê aos fiéis escolas musicais gratuitas em suas dependências. O músico na
CCB é membro habilitado a tocar nos cultos e demais serviços. O sistema de ensino musical
da Congregação é gratuito. Qualquer fiel que frequente a igreja pode ingressar nos Grupos de
Estudo Musical que visam a habilitar o aluno a praticar o instrumento “desejado”, havendo,
contudo, restrições para homens e mulheres72. Para ingressar na orquestra, no entanto, é
necessário ser batizado. O músico é vinculado a um tipo de um instrumento específico; se

72
Ver capítulo II, tópico 2.
66
desejar trocar deve consultar seu encarregado local, que leva o pedido à reunião ministerial da
localidade para aprovação. Na Congregação Cristã no Brasil é vedado às mulheres tocarem
outros instrumentos além do órgão. Assim, a “organista” é o membro feminino habilitado a
tocar o órgão nos cultos e nos demais serviços.
A CCB possui em sua orquestra os seguintes instrumentos habilitados73: cordas:
violino, viola, violoncelo; flauta transversal; palhetas: oboé, fagote, clarinete, clarone;
acordeon; saxofones: soprano curvo, soprano, alto, tenor, barítono, baixo e contrabaixo;
trompete pocket, cornet, trompa, trombonito, trombone, saxhorn, bombardino, bombardão,
flugelhorn e órgão.
A orquestra toca apenas músicas contidas no hinário da Congregação Cristã no Brasil
que é intitulado de “Hinos de Louvores e Súplicas a Deus”. Possui muitas melodias de autores
norte-americanos e italianos, com algumas poesias traduzidas e semitraduzidas do inglês e do
italiano. São 450 hinos e, dentre eles, músicas especiais para Batismos, Santas Ceias, Funerais
e para as “Reuniões de Jovens e Menores”. O livro original chamava-se Inni e Salmi
Spirituali, publicado no começo do século XX, pela Assemblea Cristiana Italiana de Chicago,
Illinois, USA. Os hinários com notação musical seguem o modelo europeu, contendo as
claves de Sol e de Fá, e estão escritos para instrumentos em Dó, Mi bemol e Si bemol.
A Congregação Cristã não produz gravações de seus hinos, nem mesmo as autoriza.

O Dízimo

Segundo os seus Estatutos, a Congregação Cristã no Brasil não possui registro de


membros, considerando que estes devem responder somente a Deus; não prega o dízimo e
mantém-se pelo espírito voluntário dos seus membros, que contribuem com coletas anônimas
e voluntárias e exercem seus ministérios sem a expectativa de receber dinheiro ou bens
materiais. O que exerce qualquer cargo espiritual ou de administração se mantém através de
seu trabalho ou meios próprios, uma vez que é vedada qualquer espécie de remuneração ou
retribuição pelo exercício dessas atividades ou pela ministração de serviços espirituais ou
sacramentos. Para construções de templos, utilizam-se, na maioria dos casos, de voluntariado
mobilizado em esquema de mutirão. Para outros serviços burocráticos das igrejas como
portaria, limpeza, som, etc também são escolhidos dentre os membros, voluntários que não
possuem expectativa de receber salário.

73
Informações retiradas do site: http://ccbnomundo.webnode.com.br/orquestra/
67
Na igreja frequentada para a pesquisa de campo neste trabalho existe uma espécie de
caixa para ser colocada a oferta, onde estão separadas as funções de cada oferta. Da esquerda
para direita: construção, piedade, viagem, manutenção, especial. Existem duas dessas caixas
fixadas atrás do banco mais próximo das entradas laterais.

Figura 11: Caixa de Oferta CCB. Acervo pessoal

Mídia

A Congregação Cristã no Brasil não utiliza meios de comunicação


como rádio, televisão, imprensa escrita, ou qualquer outro tipo de propagação da sua doutrina
e evita que seus cultos sejam gravados e reproduzidos, porém, mantém um endereço
eletrônico oficial74 e uma rede social oficial75. Contudo, em nossa pesquisa, encontramos
diversos sites, blogs e páginas em redes sociais que fazem referência à igreja.
Na maioria dos blogs pesquisados é colocado no início da página um aviso afirmando
que o site não tem relação com a CCB, mas que é feito por um dos seus fiéis e que não reflete
a opinião da instituição. Alguns exemplos encontrados:

74
http://www.cristanobrasil.com/
75
https://www.facebook.com/congregacaocristanobrasil
68
Este site é feito por um membro da Congregação Cristã. Não tem vínculo
algum com a igreja, que não se envolve com quaisquer meios de divulgação
pública. O único site oficial da instituição é www.congregacaocrista.org.br. Os
dados históricos aqui apresentados foram comprovados através de literatura
publicada nos Estados Unidos, entrevistas com norte-americanos de
descendência italiana e outras fontes mais (do site
http://www.historiacongregacaocrista.com.br/).

Este site não possui nenhum vínculo com a igreja CONGREGAÇÃO CRISTÃ
NO BRASIL, não falando por ela ou por seus ministros, mas procurando
sempre respeitá-la (do blog http://comumccb.blogspot.com.br/p/o-site.html).

Encontramos também uma rádio online http://www.fm.cristanobrasil.com/ 24 horas,


aberta a participação dos fiéis. Além disso, vídeos caseiros, blogs independentes, páginas na
internet e outros meios de comunicação são encontrados. Assim, a proibição da CCB com
relação aos conteúdos midiáticos não impede a existência destes na rede.
Quando questionados sobre a reclusão (oficial) da CCB na mídia, os fiéis afirmam que
a doutrina da Igreja é clara quando manda afastar-se das coisas mundanas. Televisão e
internet são meios de contaminação para o crente CCB.

Glossário

Entre os fiéis da Igreja Congregação Cristã no Brasil, é comum o uso de algumas


palavras e expressões, que não são facilmente compreendidas por quem não pertence a esse
meio. Trata-se de um vocabulário em uso há muitos anos e que serve como identificador dos
fiéis CCB. A Congregação Cristã no Brasil possui uma diversidade de termos próprios. Tendo
em vista a grande quantidade de termos nativos neste trabalho, elaboramos uma lista de
palavras e expressões recorrentes no vocabulário CCB.

APDD: Se refere à abreviação de "A paz de Deus", é usado em comunicação via internet.

Cair/Sair Da Graça: Cometer pecados e perder a liberdade de membro da Igreja ou


abandonar a CCB.

Chamar Na Graça: Batizar na Congregação Cristã, aceitando que sua doutrina é a correta.

Comum: A igreja local que a pessoa habitualmente frequenta, normalmente mais próxima da
sua casa. Geralmente se pronuncia apenas a palavra comum, no lugar de comum congregação.

69
Congregar: significa ir à Igreja, participar do culto.

Criatura: Todas as pessoas que não são da CCB e também não são testemunhados.
Atualmente existe um ensinamento para o termo não ser usado.

Descer às Águas: Ser batizado nas águas

Despedir: Os jovens, quando vão se casar, costumam levantar-se e “despedirem-se” da


mocidade, notificando que é o ultimo culto ou reunião que participam como solteiros.

Deus Seja Louvado: Seguido de um “amém” coletivo, a expressão Deus seja louvado é dita
sempre que um fiel iniciar uma fala diante da irmandade no momento de culto.

Ensinamento: São tópicos de doutrinas que o Conselho de Anciães distribui ao ministério


anualmente, mas que os membros só têm acesso ouvindo o ministério pregar nas igrejas.

Ficar sem Liberdade: Não poder mais chamar hinos, orar e testemunhar na igreja, se for
ministro, não poderá executar nenhum serviço religioso, por quebra da doutrina.

Firme/Forte na Fé: quando o fiel é/está entusiasmado com a sua fé. Esse fiel frequenta a
igreja assiduamente, obedece às normas e doutrinas, é selado com o dom de línguas, etc.

Graça: Favor imerecido de Deus.

Irmandade: Refere-se ao conjunto dos membros da Congregação, o mesmo que fraternidade.


Tem raízes na fraternidade das comunidades italianas espalhadas pelo mundo no início do
século 20.

Levar/Trazer Saudação: Quando o membro vai em visita a outra comunidade, alguns


costumam levantar-se e dizer que desejam levar saudação para aquela comunidade, ao que o
povo responde com amém, querendo dizer, sim. Da mesma forma poderá trazer saudações de
outras igrejas.

Nascer na Graça: Muitos filhos de fiéis que, ao nascerem, seus pais já eram crentes na
congregação, costumam usar o termo para indicar que desde a infância frequentam a CCB.

Obra de Deus: Refere-se à Congregação Cristã como um todo.

Paz de Deus: Expressão de saudação. Usada para cumprimentar outro fiel.

Receber a Promessa: Receber o dom de novas línguas


70
Recolher: Se diz quando alguém morre, estando firme da fé, que Deus recolheu aquela alma
para Seu Reino. É o mesmo que dormir no Senhor.

Revestido: Se diz de irmãos pregadores cheios de virtudes, fervorosos, que sempre recebem
revelações do Espírito Santo (que se cumprem) e falam em outras línguas.

Seitário: Qualquer evangélico que não pertence à CCB. Muitos ainda a utilizam,
internamente, ao se referirem aos crentes de outras igrejas, uma vez que a CCB entende que
somente sua doutrina é biblicamente correta e que as demais são seitas.

Selado com a Promessa: Ou simplesmente “selado”, se refere à manifestação do dom de


novas línguas; glossolalia.

Servo de Deus: São todos os crentes que obedecem a Deus, mas geralmente aplicado aos
irmãos do ministério.

Testemunhado: Se diz da pessoa que ouviu o evangelho segundo a pregação da Congregação


Cristã, que geralmente já frequenta a Congregação, mas não se batizou ainda.

Testemunhança: Momento no culto o qual o membro pode contar alguma bênção recebida de
Deus. O ato de se levantar para contar chama-se testemunhar.

Tendo em vista todas essas características da CCB, fizemos neste capítulo um


levantamento histórico do surgimento da Congregação Cristã no Brasil e suas raízes
pentecostais. Também apresentamos suas doutrinas e normas, organização e particularidade,
bem como sua atual situação baseada no Censo 2010 e nas vertentes que se desvincularam à
matriz do Brás. A partir do panorama-CCB apresentado, no segundo capítulo trataremos sobre
a ideia de corpo, fazendo um levantamento da teoria antropológica sobre o tema, e
buscaremos captar o estilo de vida e as técnicas corporais das mulheres da Congregação
Cristã no Brasil. No próximo capítulo, indicaremos que os usos do corpo e de suas técnicas
contribuem para a formação e reafirmação da identidade religiosa.

71
3 TÉCNICAS CORPORAIS E A CONSTRUÇÃO DO CORPO
RELIGIOSO

Conhecidas a história, a delimitação do campo estudado e seus costumes e rituais, este


capítulo abordará uma reflexão mais aprofundada sobre a corporeidade, tanto no
pentecostalismo como um todo, quanto na cosmologia das mulheres da Congregação Cristã
no Brasil. Para isso, faremos uma breve revisão sobre o corpo na teoria Antropológica,
expondo as principais perspectivas que conduziram nossa abordagem teórica. Em seguida,
apresentaremos as características gerais do estilo de vida feminino para tal denominação,
concluindo com algumas proposições sobre o corpo e a incorporação do religioso. É
importante ressaltar que este segundo capítulo e o terceiro estão intimamente ligados,
seguindo a mesma linha de pensamento: o corpo como lugar de objetificação do religioso. No
entanto, foram separados numa estratégia didática, a fim de facilitar a compreensão do leitor.

2.1 Corpo: Teoria Antropológica e Pentecostalismo

A teoria antropológica, desde Marcel Mauss, propôs demonstrar a diversidade cultural


da humanidade, notando diferentes maneiras de percepção, utilização e relação com o corpo.
As técnicas e marcas corporais atuam como formas de distinção do sujeito na coletividade,
utilizando o corpo como objeto de interação e adaptação ao meio social 76, de maneira que o
contexto sociocultural “modela” o corpo em suas diversas maneiras de andar, falar, vestir, etc
(Mauss 1974).
Desde então, a antropologia cultural tem proporcionado um intenso debate acerca da
produção de significados simbólicos sobre o corpo. Vale de Almeida (2004: 2) aponta que
“um autêntico boom sobre o tema do corpo e da incorporação tem surgido nas ciências sociais
nas duas últimas décadas”. No entanto, segundo o autor, a questão do corpo gera, para os
antropólogos, muitos outros desafios que se englobam em dois grandes blocos: de um lado, os

76
O corpo, sendo ele principal elo entre o sujeito e o mundo, é socialmente construído e nele se materializa a
relação sujeito/sociedade, tornando-se palco de conflitos simbólicos. A cultura não é apenas um agrupamento de
complexos padrões concretos de comportamentos (costumes, tradições, hábitos), mas um conjunto de
mecanismos de controle (regras, nomas, instituições) do comportamento. Para Geertz (1978), o homem é
precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle para ordenar o seu
comportamento. Os padrões culturais agem como sistemas organizados de símbolos, e a cultura, vista como
totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição
essencial para ela, a principal base de sua especificidade. Contudo, o corpo não se limita a refletir a sociedade,
antes se constitui como um body subject, em que a subjetividade está localizada no corpo (Jackson 1989).

72
problemas metodológicos, propondo uma reflexão sobre o “logocentrismo, a escrita, a
visualidade ou a performance como instrumentos expositivos questionáveis ou potenciáveis a
partir do corpo”; por outro lado, os que se apoiam em outros campos, investigando o corpo
aos moldes do simbolismo, da fenomenologia, da hermenêutica, entre outros, tendo sempre
“um pano de fundo a investigação antropológica, que tantas vezes nos ensina que é preferível
o diálogo entre teorias à luz da diversidade de objetos de análise e experiências de terreno, do
que um manual monolítico para a leitura do mundo” (Vale de Almeida 2004: 3).
Vale de Almeida, ainda em seu trabalho sobre “O corpo na teoria antropológica”
(2004), propõe, a partir da teoria de Lock (1993), sete tópicos que servem como mapeamento
das áreas mais focadas pela antropologia contemporânea em torno do estudo sobre o corpo:

1) conceito de incorporação, redefinição feita por Bourdieu a partir de Mauss e


destacando o trabalho de Jackson (1981, 1989) sobre a teoria da incorporação baseada
no mimetismo;
2) a construção do Self e do Outro, incluindo uma antropologia da emoção, sendo
emblemática a ideia de M. Rosaldo (1984) e uma etnografia dos sentidos, como nos
trabalhos de Desjarlais (1992);
3) o tema dos corpos dóceis e resistentes, baseados na noção de biopoder apresentada
por Foucault e com referência a obra dos Camaroff (1982, 1985) que discute como o
controle político-ritual é imposto através de uma focagem na significação corporal da
memória social;
4) a doença como performance cultural, como exemplo do trabalho de Ong (1988)
sobre possessão em operárias na Malásia, apresentando que “doenças de nervos”
mostram como são estas performances culturais;
5) a mimesis, a alteridade e a agência, em que Self e Outro estejam ambos implicados
no processo de justaposição de “dissimilares”, explorando a faculdade mimética ou a
compulsão de se tornar no outro. Os trabalhos de Taussing (1993), que apela a uma
ciência das mediações, representam este quinto bloco;
6) o sexto tópico aborda a epistemologia e política do corpo, com muito trabalhos
sobre os discursos biomédicos e epidemiológicos e seus sistemas classificatórios;
7) a normatização e reconstrução de corpos, com ênfase em Rabinow (1992) e M.
Strathern (1992), o primeiro com um projeto que levará a uma “biossocialidade” e a
segunda debruçada nos estudos sobre novas tecnologias reprodutivas.

73
Outros autores, como Featherstone e Turner (1995), Shilling (1993), Synnott (1993) e
Giddens (1991) podem ser agregados aos diversos temas abordados pela antropologia do
corpo. Neste trabalho, optaremos por Mauss (1935), Bourdieu (1983), Merleau-Ponty (1999)
e Csordas (1990) para uma abordagem clássica, mais geral, sobre a ideia de corpo, dando
ênfase à dimensão corporificada da cultura e das práticas sociais. Em seguida, pensaremos o
corpo para pentecostais no Brasil baseando-nos nos trabalhos de Rivera (2006) e Rabelo &
Mota (2006).
Marcel Mauss (1872-1950) contribuiu fortemente para a produção do conhecimento
científico, debruçando-se sobre diversos campos, dentre eles o corpo. A atualidade da teoria
maussiana é facilmente constatada ao refletirmos sobre o simbolismo corporal nos rituais
religiosos, analisando as técnicas do corpo.

Dizia Mauss, ‘é preciso fazer como eles [os historiadores]: observar o que é
dado. Ora, o dado é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio dessa
ou daquela ilha, e não a prece, ou o direito em si’ (1974, p. 181). Interessa
observar o que é dado e o que é dado é o que fazem romano, o ateniense e o
francês, quando fazem suas rezas, suas leis etc. São os homens concretos
(como o “francês médio” ou o “melanésio dessa ou daquela ilha”) com suas
ações e representações em torno do corpo, da religião, da culinária, das
expressões obrigatórias dos sentimentos, o “objeto” da antropologia do
concreto de Mauss. Sendo o que mais lhe importa é o ato de rezar e não a
reza sem vida, o ato de dizer e não o dito sem sentido (Rocha 2008: 134 –
grifo nosso).

Mauss abre as portas para pensarmos o campo religioso a partir de uma teoria da ação:
o que importa é o ato, o fazer, o rito, a eficácia simbólica. Essa eficácia só é presente na
religião pelo fato desta última carregar consigo vestígios da magia. Contudo, a magia é, para
Mauss, ação simbólica e linguagem, pois através da magia a sociedade comunica-se (Mauss &
Hubert 1974). A partir de então, Mauss dedica-se ao estudo da categoria “magia”, e em seu
“Esboço de uma teoria geral da magia” (1974b) apresenta uma larga definição da magia como
sendo uma construção social, uma vez que o poder mágico de muitos seres ou personagens
não pertence a eles, pertence, em princípio, às instituições que representam, ou seja, não é
mágico quem quer, mas quem possui qualidades já reconhecidas pelo grupo social; o exemplo
de profissões como médicos e artesãos, e de lugares como cemitérios e encruzilhadas
contribuem para a criação de uma imagem da magia e tal fenômeno social, que é a magia, é
composto por três elementos: o “agente” da magia, o “rito” (ação) e a “representação das
coisas”. Não é nossa intenção aprofundar na discussão sobre o conceito de magia, mas nos
cabe introduzi-la, a fim de sinalizar a trajetória do pensamento maussiano sobre o corpo, pois
74
partindo da ideia de que a magia é entendida como um sistema de representações e práticas
simbólicas, o dizer é um modo de fazer e o fazer pode ser visto como um outro modo de
dizer; assim, Mauss se dedicou à análise dos ritos verbais (como a prece) e das técnicas
corporais.
De acordo com Marcel Mauss (1974a) não se deve reduzir o conceito de técnica
considerando-o apenas quando houve instrumento. É preciso voltar aos dados platônicos
sobre técnica na tentativa de ampliar essa noção. Mauss (1974: 217) afirma:

Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere
do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz.
Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. É nisso que o
homem se distingue sobretudo dos animais: pela transmissão de suas
técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.

Insistindo na ideia de tradição e eficácia – a primeira fazendo referência à transmissão


e aprendizado pela educação; a segunda pelo seu efeito prático – Mauss anuncia diretamente
“devemos lidar com técnicas corporais. O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do
homem”. Sendo o corpo o primeiro e mais natural objeto e meio técnico do ser humano, faz-
se importante perceber, diz Mauss, que “antes das técnicas como instrumentos, há o conjunto
de técnicas corporais” e francamente, continua o autor: “Olhemos, nesse momento, para nós
mesmos. Tudo em nós é comandado.” (Mauss 1974a: 217). A bem da verdade, segundo
Mauss, antes de qualquer coisa, o corpo é técnica, cuja eficácia é garantida pela tradição. No
entanto, longe de ser meramente um processo de reprodução, a performance de uma técnica
corporal permite nova interpretação a cada nova representação. “Eis a razão principal de
eficácia simbólica dos ritos”. O corpo expressa os padrões culturais e sociais, de sorte que os
valores estéticos, a maneira de falar, a forma de expressar emoções entre outras atitudes são
resultado de um processo de inscrição histórico-cultural da sociedade sobre o corpo do
indivíduo, a sociedade fabrica, de acordo com épocas e lugares, estereótipos e modelos de
comportamento que se inscrevem no corpo. Assim, as noções de técnicas corporais, para
Mauss, tem correspondência com a percepção dos indivíduos e seus corpos concretos
emergentes na realidade social de sua época (Rocha 2008: 139-140).
Mauss foi um dos primeiros a chamar a atenção sobre a sociedade como mecanismo
modelador dos corpos, com a ideia de construção social dos corpos. Ao apresentar sua noção
de técnica corporal, Mauss (1974a) aborda o corpo como objeto de preocupação da Etnologia
e amplia sua contribuição ao passo que considera o homem como um “ser total”, isto é, na
constituição humana, os aspectos biológicos, psicológicos e sociais se fazem presentes. Com
75
isso, Mauss consegue promover uma ruptura com a visão de um determinismo biológico, mas
também com vertentes sociológicas que pretendiam, durante o século XIX, tratar o homem
apenas sob o prisma social. Por essa razão, concordando-se com Mauss, compreender a
dimensão humana é partir do pressuposto de que o homem constitui um “fato social total”,
sendo não só biológico, mas social, cultural, psicológico e por que não religioso.
Em resumo da teoria apresentada por Marcel Mauss, faremos nossas as palavras de
Vale de Almeida (2004: 4):

Mauss argumentou que o corpo é ao mesmo tempo a ferramenta


original com o que os humanos moldam o seu mundo e a substância
original a partir da qual o mundo humano é moldado. O famoso ensaio
sobre as técnicas do corpo abordava os modos como o corpo é a
matéria-prima que a cultura molda e inscreve de modo a criar
diferenças sociais. Isto é, o corpo nunca pode ser encontrado num
qualquer suposto ‘estado natural’.

Mauss adiantou ainda que o corpo ao mesmo tempo em que era “objeto” de técnica,
era também “meio” técnico. Além disso, indicou o lado subjetivo da técnica, apresentando os
usos corporais como culturalmente padronizados. Segundo Mauss, essas técnicas do corpo
são estruturadas, montadas, agrupadas na consciência de cada indivíduo e formam um sistema
simbólico de ação e interpretação. Assim, são classificadas dentro de um sistema de ordem
social, sendo permitidas ou proibidas, condicionando, portanto, o estilo de vida de cada um.
Nesse ponto, Mauss nos ajudará a refletir sobre o estilo de vida das mulheres da Congregação
Cristã no Brasil, as quais, com suas técnicas corporais montadas em suas consciências,
evidenciam, por meio de um sistema simbólico – representado no corpo – sua identificação
religiosa. Ao tratarmos de “corpo”, o consideramos não só biologicamente, pensando a
técnica corporal como estritamente motora, mas destacamos que “objetos externos” ao serem
adaptados, tornam-se também parte da construção do corpo social e do corpo religioso, a
exemplo da vestimenta específica e dos adornos (sejam ele permitidos ou não) que
contribuem para a identificação do corpo religioso da mulher. Segundo Marcel Mauss, a soma
total de usos culturalmente padronizados do corpo numa sociedade, ou seja, uma coleção de
prática, pode ser entendida como um habitus.
Ampliando a proposta maussiana, Pierre Bourdieu (1930-2002) apresenta o conceito
de habitus como “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as
experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de

76
apreciações e de ações” (Bourdieu 1983b: 65) que, segundo Vale de Almeida, “este princípio
não é mais do que o corpo socialmente informado” (Vale de Almeida 2004: 12).
O conceito de habitus foi utilizado desde a tradição escolástica, com o filósofo grego
Aristóteles, numa tradução da ideia de hexis, designando características do corpo e da alma
adquiridas num processo de aprendizagem. Séculos depois, Durkheim retoma o conceito em
seus trabalhos sobre educação para indicar o estado geral dos indivíduos que orienta suas
ações de forma durável (Setton 2002).
Segundo Bourdieu, o mundo social é objeto de três modos de conhecimento:

[...] a relação de familiaridade com o meio familiar [que segundo o autor é a


primeira experiência do mundo social], apreensão do mundo social como
mundo natural e evidente, sobre o qual, por definição, não se pensa, e que
exclui a questão de suas próprias condições de possibilidade. O
conhecimento que podemos chamar de objetivista: constrói relações
objetivas (isto é, econômicas e linguísticas), que estruturam as práticas e as
representações práticas ao preço de uma ruptura com esse conhecimento
primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos que
conferem ao mundo social seu caráter de evidência e natural [...] Enfim, o
conhecimento que podemos chamar de praxiológico: tem como objeto não
somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento
objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas
e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a
reproduzi-las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e
exteriorização da interioridade (Bourdieu 1983b: 46-47)”

O conceito de habitus surge, então, como “um conceito capaz de conciliar a oposição
aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Capaz de expressar o diálogo, a
troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades”
(Setton 2002: 63). Assim sendo, Bourdieu evoca a ideia de habitus, definindo-o como sistema
de disposições duráveis, princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e a
estruturação de práticas e representações, uma subjetividade socializada. Bourdieu mostra
como as diversas posições ocupadas no espaço social estão relacionadas com os diferentes
estilos de vida resultados do mesmo operador simbólico, o habitus. Este consiste em uma
matriz que cria comportamentos, visões de mundo e sistemas de classificação da realidade
que se incorpora aos indivíduos (ao mesmo tempo em que se desenvolve neles), seja no nível
das práticas, seja no nível da postura corporal (hexis) desses mesmos indivíduos. Desse modo,
o habitus é apreendido, gerado na sociedade e incorporado nos indivíduos. Esse poder de
retenção é um poder basicamente corporal, ainda que não se conheçam os mecanismos dessa
capacidade de memorização física. O conceito de campo complementa o de habitus, pois,
para Bourdieu, o campo consiste no espaço em que ocorrem as relações entre os indivíduos,
77
grupos e estruturas sociais, espaço esse sempre dinâmico e de disputas. E é nesse lugar de
disputas que ocorrem as atividades condicionadas pelo habitus. Por fim, a concepção de
habitus apresentada pelo autor acrescenta certa dimensão inconsciente, definindo o corpo
como socialmente informado, é o “princípio gerador e unificador de todas as práticas”.
Contudo, não nega a possibilidade da reflexão e certa consciência das práticas, desde que o
contexto histórico lhes permita:

Os ajustamentos que são incessantemente impostos pelas necessidades de


adaptação às situações novas e imprevistas podem determinar
transformações duráveis do habitus, mas dentro de certos limites: entre
outras razões porque o habitus define a percepção da situação que o
determina (Bourdieu 1983b: 106).

Pierre Bourdieu amplia e torna mais específica sua proposição ao pensar o uso social
do corpo como objetivação do gosto de classe. Os hábitos corporais, segundo o autor,
corresponderiam ao conjunto de condutas próprias de comportamentos ligados a uma posição
de classe, sendo os hábitos sociais e gostos culturais inscritos num comportamento próprio
que funcionaria como uma forma de distinção social, uma vez que “o estilo pessoal, isto é,
essa marca particular que carregam todos os produtos de um mesmo habitus, práticas ou
obras, não é senão um desvio, ele próprio regulado e às vezes mesmo codificado, em relação
ao estilo próprio a uma época ou a uma classe” (Bourdieu1983b: 80-81).
Da mesma maneira, podemos propor que uma “distinção de religião” ou “gosto
religioso” é efetivada pelo habitus específico das mulheres CCB, como discutiremos mais
adiante. Os lugares frequentados, o que se come e bebe, o que se aprecia e o que se nega são
características produzidas nesse corpo religioso a partir da crença do grupo em que se está
inserido e manifestada como afirmação e identificação de pertencimento ao grupo. Ao olhar
uma mulher da Congregação Cristã no Brasil, mesmo que a denominação não seja
primeiramente associada77, sua identificação com a vertente religiosa (pentecostal clássica)
será certamente conhecida. Haveria, então, uma multiplicidade de processos, de origens
diferentes que se reproduzem e se distinguem, fazendo da construção da imagem do corpo,
hoje, não apenas uma forma de controle social que se manifesta diretamente, mas algo que
atua na produção de subjetividades, produzindo gostos e distinções como aqueles percebidos
no estilo de vida das mulheres da Congregação Cristã.

77
Pois outras denominações evangélicas têm os mesmos costumes quanto à vestimenta feminina.
78
Seguindo a mesma linha de pensamento bourdieusiano, Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961), em uma perspectiva fenomenológica, diverge de uma visão dicotômica e
mecanicista com raízes nas proposições de Descartes (corpo-alma; corpo-mente).

A tradição cartesiana habituou-nos a desprender-nos do objeto: a atitude


reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do corpo e a da alma,
definindo o corpo como uma soma de partes sem interior, e a alma como um
ser inteiramente presente a si mesmo, sem distância. [...] O objeto é objeto
do começo ao fim, e a consciência é consciência do começo ao fim. [...] A
experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um modo de
existência ambíguo [...] Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em
que tenho um saber adquirido, e reciprocamente, meu corpo é como um
sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a
experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o
objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do
corpo em realidade (Merleau-Ponty 1999: 269)

Para ele, antes de ser um objeto, o corpo é nosso modo próprio de ser-no-mundo, de
maneira que o indivíduo está corporalmente inserido no mundo, ou seja, suas relações com as
outras pessoas e com os objetos são mediadas primordialmente pelo corpo. O corpo é um
agente e é a base da subjetividade humana. Sobre essa subjetividade, Merleau-Ponty a define
como um fenômeno social e intersubjetivo, que assenta um habitus social comum, disponível
publicamente, assumindo uma forma incorporada e cultural. Merleau-Ponty vai além da ideia
de corpo como mero objeto. “Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não
tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo” (Merleau-Ponty 1999: 269). Ao
afirmar isso, Merleau-Ponty assume que os agentes sujeitos humanos são corpos e os corpos
são seres sensible-sentient, comunicativos, práticos e inteligentes (Vale de Almeida 2004: 13).
Na célebre obra “Fenomenologia da Percepção”, publicada pela primeira vez em 1945,
Merleau-Ponty vai até à raiz da subjetividade com sua concepção do corpo-sujeito, corpo esse
que estabelece com o mundo uma relação pré-objetiva, pré-consciente, de caráter dialético, de
modo algum causal ou constituinte: fazer do corpo o sujeito da percepção não significa ceder
ao impulso do empiricismo, mas antes tomar partido contra o racionalismo cúmplice do
empirismo no sentido de se ligarem ao pensamento causal. “Rejeitamos o formalismo da
consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção”. E “a percepção não é uma ciência do
mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o
qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles” (Merleau-Ponty 1999: 6).
Na fenomenologia de Merleau-Ponty (1999), a percepção está relacionada à atitude
corpórea e a experiência do corpo configura um conhecimento sensível sobre o mundo.

79
Segundo Merleau-Ponty, a percepção começa no corpo e termina nos objetos de forma que
não se tem objeto anterior à percepção. A percepção ocorre no mundo, já que “não existem
objetos, nós simplesmente estamos no mundo” (Merleau-Ponty 1999: 6). O autor ainda afirma
que

a fenomenologia é uma ciência descritiva dos princípios existenciais, não de


produtos culturais já construídos. Se nossa percepção ‘termina nos objetos’,
o objetivo de uma antropologia fenomenológica da percepção é capturar
aquele momento de transcendência no qual a percepção começa e, em meio à
arbitrariedade e à indeterminação, constitui e é constituída pela cultura.
(Merleau-Ponty 1999: 107).

A experiência perceptiva é uma experiência corporal. De acordo com Merleau-Ponty,


o movimento e o sentir são os elementos chaves da percepção, desse modo:

a percepção baseia-se no comportamento, em ver, ouvir, tocar, por exemplo,


enquanto formas de conduta baseadas em hábitos culturais adquiridos.
Assim, o relato de Merleau-Ponty não é um relato da nossa experiência ‘da’
incorporação. A incorporação não é experienciada, é a base mesma da
experiência. Experienciamos através da nossa incorporação sensível e
sensorial. O nosso corpo é o nosso modo de ser(estar)-no-mundo (Vale de
Almeida 2004: 13).

Segundo Merleau-Ponty (1999: 209-210):

Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de
arte. Em um quadro ou em uma peça musical, a idéia só pode comunicar-se
pelo desdobramento das cores e dos sons. [...] Um romance, um poema, um
quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se
pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um
contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar
temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de
arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de
termos co-variantes.

“O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a
um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles.”
(Merleau-Ponty 1999: 122). A experiência pré-objetiva, isto é, do ser no mundo, implica que a
existência corporificada se encontra exterior (ou anterior) à cultura. O pré-objetivo, segundo
Merleau-Ponty, corresponderia à experiência de perceber, que começa no corpo e termina nos
objetos, de forma que os objetos seriam um “produto secundário” do pensamento reflexivo.
Esse autor nos ajudará a compreender como o corpo da mulher na Congregação Cristã no
Brasil, adornado com suas técnicas e indumentárias, reflete uma característica perceptiva e
pré-objetiva de religião à qual pertencem. Ao explicar a percepção, Merleau-Ponty reconhece

80
o corpo como lugar de um conhecimento originário do mundo e de si próprio, um saber
sensível que antecede o conhecimento reflexivo, mas que, ao mesmo tempo, o possibilita.
Mauss, Bourdieu e Merleau-Ponty serviram de inspiração para o antropólogo
contemporâneo Thomas Csordas e sua proposta do conceito de embodiment78. Esse autor nos
servirá como meio de reflexão sobre o estilo de vida das mulheres da CCB, gerenciando as
ideias dos autores anteriormente abordados. Csordas embasará nossa proposição do corpo
como sujeito da cultura, incorporando também objetos da cultura que indicaram o corpo
religioso na própria experiência corpórea.

para Merleau-Ponty, a principal dualidade, no domínio da percepção, é entre


sujeito e objeto, e para Bourdieu, no domínio da prática, é entre estrutura e
prática. Ambos invocam a incorporação como o princípio metodológico para
abolir estas dualidades. Csordas afirma que os antropólogos têm considerado
a percepção como uma função da cognição, e raras vezes a têm colocado em
relação com o self e as emoções. [...] Têm focado a investigação em tarefas
experimentais abstratas, em vez de ligarem o estudo da percepção ao da
prática social (Vale de Almeida 2004: 14)

Em seu artigo “Embodiment as a Paradigm for Anthropology” de 199079, Csordas


parte do postulado que o corpo não é um objeto para ser estudado em relação à cultura80, antes
deve ser considerado como sujeito desta. O autor argumenta que um paradigma da
incorporação pode ser elaborado para o estudo da cultura e do self 81, e esse paradigma levaria
à dissolução das dualidades mente/corpo e sujeito/objeto. Tomando por ponto de partida o
trabalho de Hallowell (1955) no qual o self é pensado como construção cultural, Csordas
designa por “percepção” e “prática” as duas principais considerações do autor. A percepção
como sendo uma consciência de si, apontando Hallowell como precursor da crítica às noções
de sujeito e objeto na teoria antropológica; já sobre a teoria da prática, Csordas aponta que
Hallowell observou um “behavioral environment” que, mais do que localizar o sujeito na

78
O conceito de “embodiment” – com diversas traduções para o português como “incorporação, corporificação”
– apresenta um novo paradigma da corporeidade, no qual o corpo é pensado como “sujeito da cultura”, como a
“base existencial da cultura”.
79
Este e outros 9 artigos, baseados na larga experiencia de Csordas em pesquisas acerca de rituais de cura entre
católicos carismáticos norte-americanos e indios navajos, foram traduzidos para a língua portuguesa e agrupados
na obra Corpo/significado/cura. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2008.
80
“the body is not an object to be studied in relation to culture, but is to be considered as the subject of culture,
or in other words as the existential ground of culture” (Csordas 1990: 5)
81
“a paradigm of embodiment can be elaborated for the study of culture and the self” (Csordas 1990: 5)
81
cultura, o conceito abarca as restrições sociais e os significados sociais nos processos
perceptivos82.
Para endossar o argumento sobre a necessidade de uma teoria da percepção, Csordas
reconhece mais um autor para o qual “percepção e prática” aparecem como fundamentais para
a construção cultural do sujeito. O autor apresenta a proposição maussiana de que todos os
seres humanos têm um senso de individualidade espiritual e corporal e que determinadas
condições sociais estavam associados a diferenças qualitativas entre a personagem totêmica, a
persona clássica e a pessoa cristã83. E, embora Mauss84 tenha reproduzido as dualidades
cartesianas em la notion de la personne, seria interessante retomá-los, já que tanto Hallowell
quanto Mauss não puderam avançar mais do que sua época permitiu.
Assim sendo, Csordas aponta para um paradigma da corporalidade, a partir de
estudos realizados com movimentos cristãos religiosos nos Estados Unidos85. Propõe a
falência das dualidades entre corpo e mente, sujeito e objeto, retomando os conceitos de pré-
objetivo (Merleau-Ponty) e o de habitus (Bourdieu). O primeiro elabora o embodiment a partir
de uma problemática de percepção, enquanto o segundo sob um discurso da prática (Csordas
1990: 7).

Both attempt not to mediate but to collapse these dualities, and embodiment
is the methodological principle invoked by both. The collapsing of dualities
in embodiment requires that the body as a methodological figure must itself
be nondualistic, that is, not distinct from or in interaction with an opposed
principle of mind. Thus, for Merleau-Ponty the body is a "setting in relation
to the world," and consciousness is the body projecting itself into the world;
for Bourdieu the socially informed body is the "principle generating and
unifying all practices" and consciousness is a form ofstrategic calculation
fused with a system of objective potentialities. I shall briefly elaborate these
views as summarized in Merleau-Ponty's concept of the preobjectiue and
Bourdieu's concept of the habitus (Csordas 1990: 8)

A visão pré-objetiva de ser no mundo – apresentada por Merleau-Ponty, na qual o


corpo é um “contexto em relação ao mundo”, e a consciência é o corpo se projetando no
mundo –,influencia Csordas a assumir não um pré-cultural, mas um pré-objetivo, em que este

82
“The concept thus did more than place the individual in culture, linking behavior to the objective world, but
also linked perceptual processes with social constraints and cultural meanings” (Csordas 1990: 6)
83
“that all humans have a sense of spiritual and corporal individuality. At the same time, he argued that
particular social conditions were associated with qualitative differences among the totemistic personage, the
classical persona, and the Christian person” (Csordas 1990: 7)
84
MAUSS, Marcel. [1938] 1950. Une Categorie de L’Esprit Humain: La Notion de la Personne, Celle du “Moi”.
Sociologie et Anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France.
85
Estudos relacionados com linguagem ritual e cura. Ver: Csordas, T. 1994a, 1994b e 1997.
82
conceito permite refletir sobre o “processo de objetificação”, pois a constituição do objeto
cultural está diretamente ligada a intencionalidade, e é na experiência que se dá sustentação à
objetividade. É na dimensão pré-objetiva que o corpo ganha status de veículo da existência, o
acesso ao ser através da percepção; o ser no mundo é ter um corpo em contato com o mundo.
E esse corpo socialmente informado é o “princípio gerador e unificador de todas as práticas”
como apresentado por Bourdieu. Para Csordas, é preciso elevar o corpo à condição de sujeito
da cultura, base existencial em que a própria cultura se realiza. O corpo é sempre o sujeito da
nossa percepção e essa percepção ocorre no corpo, no mundo.
Com base em seus estudos sobre cura e possessão com os grupos carismáticos,
Csordas parte do pressuposto de que o objeto da cura não é a eliminação de uma coisa
(doença, problema, sintoma), mas a transformação de uma pessoa, “sujeito que é ser
corpóreo”. O autor defende o paradigma da corporeidade, a partir de um “colapso da
dualidade entre corpo e mente, sujeito e objeto”. O argumento é o de que ao desfazer a
distinção entre mente e corpo, sujeito e objeto, os processos orgânicos endógenos, um tanto
misteriosos que são retoricamente controlados na cura ritual, tornam-se compreensíveis como
processos do self baseados na corporeidade. A própria linguagem torna-se compreensível
como processo do self quando é entendida não como representação, mas como desempenho
de um modo de estar-no-mundo.
Para Csordas (1990), finalmente, na construção do que chama “paradigma da
corporeidade”, a análise da prática (habitus) e da percepção (o pré-objetivo) permite romper
com as distinções convencionais entre sujeito e objeto e, ao fazê-lo, inaugura um novo campo
de possibilidades, em que a experiência corporal é o ponto de partida, e em que os objetos
culturais (incluindo os sujeitos) são constituídos ou objetificados no fluxo e na
indeterminação em curso da vida cultural, que inclui também a vida religiosa, para a qual nos
voltaremos agora.
Historicamente, o protestantismo mostrou regras de controle sobre o corpo num
puritanismo ao qual Max Weber (2004) chamou a atenção ao constituir sua teoria sobre o
ascetismo intramundano, afirmando que “eliminar a espontaneidade do gozo impulsivo da
vida, a missão mais urgente, botar ordem na conduta de vida de seus seguidores, o meio mais
importante de ascese”. Paulo Rivera (2006) faz um levantamento de como essa percepção do
corpo puritano transcorreu o protestantismo, chegando ao movimento pentecostal. Segundo o
autor, desde o século XVI, o controle e o domínio do eu foram reconhecidos como
necessários para o governo familiar e político.

83
Manuais para comportamento adequado, tanto religioso quanto civil,
espalhando as máquinas de impressão do século dezesseis, compuseram
grandes estoques sobre a submissão e a obediência do corpo, e sobre o
cultivo das boas-maneiras, da decência e do decoro (2006: 19).

Não só a igreja, mas médicos, juristas e educadores, cada qual em seu espaço social,
constituíram parte de um grupo europeu interessados na produção de pessoas “civilizadas”.
Percebemos, então, que “o protestantismo não construiu uma percepção do corpo de maneira
autônoma ou isolada do resto da sociedade” (Rivera 2006: 21).
A primeira onda de missionários pentecostais no Brasil trouxe consigo essa raiz
histórica de conservação do corpo. O corpo adquire lugar privilegiado no meio religioso
pentecostal, pois é com esse corpo que se manifestam as crenças e valores. Seja num
momento de êxtase ou na simples maneira de se vestir, o corpo comunica a pertença religiosa.

O pentecostalismo clássico, no Brasil representado pela “Congregação


Cristã” e pelas “Assembleias de Deus”, permaneceu por muitas décadas com
um rigoroso controle do corpo e da sexualidade. No culto não se permitia a
aproximação dos corpos. O louvor e a glossolalia sempre foram bastante
expressivos, mas o controle rígido dos corpos permaneceu até muito
recentemente. Isso indica mudanças recentes, decorrentes simultaneamente
de fatores internos, como novidades litúrgicas, e de fatores externos ao
pentecostalismo, como novas “técnicas corporais” difundidas pelos meios de
comunicação, especialmente a televisão [...] Por exemplo, “Congregação
Cristã” e “Pentecostal Deus é Amor”, contrárias à televisão, mantém
“técnica corporal” ainda fechada, com corpos bastante cobertos e
menos espaço para a expressão corporal (Rivera 2006: 33-34).

O autor também aponta que, graças ao efeito da mídia, as mudanças na percepção


social do corpo nas igrejas pentecostais estão sendo evidenciadas em diversos estudos. Uma
vez que a mídia gera uma superexibição do corpo, especialmente das mulheres, é notada essa
influência sob a perspectiva pentecostal e já se percebe a entrada desse marketing vinculado
ao corpo na propaganda pentecostal.
Miriam Rabelo e Sueli Mota (2006) em seus estudos sobre a construção do corpo
feminino no pentecostalismo, investigam a Igreja Pentecostal Deus é Amor, que, como
apontado por Rivera, possuem proximidades doutrinárias com a Congregação Critã quanto às
técnicas corporais. A partir de suas observações, as autoras afirmam que:

84
a construção do corpo no pentecostalismo se dá através de um conjunto de
práticas disciplinadoras que promovem posturas, regulam gestos e
movimentos, instituem e punem comportamentos; e, ao fazê-lo, conduzem à
formação e à expressão de uma certa subjetividade (Rabelo & Mota 2006:
221).

O pentecostalismo tanto exerce disciplina sobre o corpo, regulando os


comportamentos dentro e fora da igreja, quanto abre espaço para uma vivência corporal que
libera as mulheres de constrangimentos cotidianos (Rabelo & Mota 2006: 220). Considerando
que a articulação da agência em um determinado campo social está diretamente vinculada às
técnicas de controle e de moldagem do corpo características desse campo, Rabelo e Mota,
tomando por partida a teoria foucaultiana86 de poder e apoiadas nas considerações de
Mahmood87, concluem que: 1) a subordinação do corpo imposta pela vigilância das
representantes da instituição (obreiras) no decorrer do culto, não são apenas instâncias de
sujeição, mas também situações formativas, em que se gestam certas modalidades de agência
– no recebimento do Espírito Santo, por exemplo, que proporciona aparente descontrole e
certa liberdade temporária do corpo, implica, na verdade, no desenvolvimento de certa
sensibilidade ou de modos específicos de engajamento com outros e no espaço e, portanto, um
aprendizado que envolve mecanismos de controle e de subordinação; e 2) a docilidade e
sujeição do corpo é também um modo de “cuidar de si” e não simplesmente uma maneira
forçada de subordinação. Esse “cuidar de si” desemborca no desenvolvimento de um conjunto
de exercícios ou de técnicas pelos quais certas formas de subjetividade são incitadas e
desenvolvidas. Assim, as mulheres pentecostais empreendem um trabalho cotidiano sobre si,
sobre os outros e sobre seu entorno (Rabelo & Mota 2006: 223-224).
Outro fator importante é que, na cosmologia pentecostal, o corpo é “templo e morada
do Espírito Santo” e para ser santo, esse espírito não pode habitar em um corpo não adequado.
Daí os cuidados com o corpo interligam o físico e o espiritual. A ideia de ser “instrumento” de
Deus, de ser “usada” por Deus, implica hábitos específicos que demonstrem santidade,
alargando-se para a vida cotidiana. Orar, jejuar e levar consigo a “unção” e as experiências
vividas nos cultos (no espaço físico do templo religioso) para o dia-a-dia demonstram a busca
constante por um testemunho de vida cristã.

86
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul e DREYFUS, Richard. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
87
MAHMOOD, Saba. Politics of Piety. Princeton: Princeton University Press, 2005.
85
No caso específico do pentecostalismo, poderíamos dizer que a disciplina
imposta na igreja sobre as fiéis e que elas se esforçam por assumir –
regulando os corpos e estabelecendo os contornos possíveis para a
compreensão de passado, presente e futuro – cria também um certo campo
de sensibilidade e de ação, em que certas medidas podem ser rotineiramente
acionadas na lida cotidiana (Rabelo & Mota 2006: 240).

A Congregação Cristã no Brasil pode ser considerada uma das mais rígidas com
relação ao uso do corpo: não é permitido beber, fumar, frequentar lugares “inapropriados”,
usar vestimentas “vulgares”; nada que seja mundano. Mas isso não significa não cuidar do
corpo, pois “não se trata, entretanto, de relegar o corpo a um segundo plano, até porque a
aparência precisa refletir o estado de pureza interior” (Rabelo & Mota 2006: 224) Existe um
cuidado com o corpo, uma preocupação na maneira de vestir-se – combinando tons e
modelitos, de arrumar os cabelos de maneira a estarem bonitos e confortáveis sob o véu, em
sentar-se de maneira apropriada. Utilizar o corpo em prol da vida religiosa não é
“aprisionamento” ou “controle” da instituição sobre o fiel, na ótica das entrevistadas, é, ao
contrário, libertação dos desejos mundanos.

Deus quer que a gente seja Santo, como Ele. O Espirito Santo é Santo, três
vezes Santo, e não aceita as coisas do mundo. Temos que ser diferentes. Paulo
disse para ser santo em toda a maneira de viver. E se é em toda maneira de
viver, é no falar, no vestir, até no andar. Eu como crente não vou andar me
rebolando por aí, vou? É assim que Deus quer, e eu aceito isso, porque sei
que Ele quer o melhor pra mim (Simone, 43 anos).

Mesmo quando eu era criatura não gostava dessas roupas... sabe? Assim,
curta... transparente... você sabe. Eu agora que conheci a graça, que não
gosto mesmo. Minha filha só gosta de saia no joelho, eu já gosto de longa. O
importante é estar coberta. Essas meninas, mesmo dentro da igreja, tão tudo
vaidosa. Deus não se agrada disso não. Tem que ser liberta dessas coisas
(Selma, 65 anos).

Sublinhamos, contudo, que o corpo feminino na Congregação Cristã não é


homogêneo, existem antes recortes geracionais, de classes, de trajetórias de vida pessoais. São
corpos individuais, mas que ao adotarem uma crença religiosa, formam um perfil de um corpo
geral88, o qual analisaremos agora.

88
Já que o corpo não é apenas uma entidade física que possuímos, antes, é um sistema-ação, um modo de práxis
e sua imersão prática nas interações cotidianas (Giddens 1994).
86
2.2 O corpo na CCB

No contexto brasileiro, Mirian Goldenberg (2006) aponta que já na década de 1980


Gilberto Freyre buscou pensar o corpo da mulher brasileira e suas transformações. Pensando
no corpo representativo da mulher brasileira como “baixa, pele morena, cabelos negros,
longos e crespos, cintura fina, ancas exuberantes, peitos pequenos” Freyre dizia, com certo
tom de crítica, que esse modelo de corpo e beleza brasileiros estava sofrendo um “impacto
norte-europeizante ou albinizante”, transformando o perfil femino: alta, alva, loira, cabelos
lisos (“arianamente lisos”, como dizia Freyre), com um corpo menos arredondado.
(Goldenberg 2006: 115-116). Freyre mostrou, portanto, que as modas surgem visando a uma
preocupação central da mulher brasileira: permanecer jovens; e segundo Goldenberg, nestas
últimas décadas essa preocupação cresceu enormemente, com novos modelos de mulher a
serem imitados: cada vez mais jovens, belas e magras. “O corpo e a aparência juvenil é, no
Brasil, um verdadeiro capital” (Goldenberg 2006: 118).
A moda também coopera para a valorização desse corpo feminino. As roupas são
usadas mais para destacarem as curvas e formas do corpo que para cobri-las.

Pode-se pensar, neste sentido, que, além do corpo ser muito mais importante
do que a roupa, ele é a verdadeira roupa: é o corpo que deve ser exibido,
moldado, manipulado, trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido,
construído, produzido, imitado. É o corpo que entra e sai da moda. A roupa,
neste caso, é apenas um acessório para a valorização e exposição deste corpo
da moda (Goldenberg 2006: 118).

No entanto, quando pensamos em corpo e religião juntos, algumas polêmicas e


divergências são levantadas. No caso pentecostal clássico, a negação das coisas mundanas (e
isso inclui a moda e a exibição do corpo) oferece resistência às modificações da sociedade em
seu olhar para o corpo, implicando na tentativa de manutenção dos costumes tradicionais,
utilizando-os, inclusive, como meio e reafirmação da identidade religiosa. O comportamento
– maneiras de vestir, agir, falar – é um fato público, construído e partilhado socialmente; a
religião, por sua vez, governa de algum modo a organização dos comportamentos e das
atitudes, já que a partir do momento de conversão, o fiel incorpora novas formas simbólicas
(Costa 2008). Diante disso, identificaremos os costumes e as indumentárias usadas pelas
mulheres da Congregação Cristã no Brasil, observando-as, sob a perspectiva de Merleau-
Ponty, como extensão do corpo, bem como sua participação na igreja.

87
2.2.1 Técnicas Corporais e Indumentárias

Se a sociedade atua como mecanismo modelador dos corpos, como apontou Mauss
(1974a), a religião atua como molde para esses corpos. É no corpo, com todas suas técnicas,
que a ligação com o sagrado, que a identificação religiosa, é legitimada. A mulher convertida
à Congregação Cristã incorpora, por meio de técnicas de corporificação (dentre elas a
vestimenta), a cosmologia do grupo religioso como orientação de sua conduta e estilo de vida.
São as técnicas corporais que organizam a identidade religiosa, marcada pelos valores
adotados pelo grupo. Diante disto, podemos indicar que, assim como Bourdieu (1983b)
pensou o uso social do corpo como objetivação do gosto de classe, os hábitos corporais das
mulheres da CCB correspondem ao conjunto de condutas próprias de comportamento, ligados
a uma posição religiosa. A distinção e o gosto de classe/religião se constroem e se expressam
através do corpo.
Essas técnicas corporais apresentadas pelas mulheres CCB puderam ser observadas
nos momentos de culto, sendo evidenciadas nos momentos de oração e “preenchimento do
Espírito Santo”.
Antes mesmo do início do culto, a igreja já se encontra cheia. Chegar antes da hora
marcada para o culto pareceu-me requisito demonstrador de respeito em que o todo coage o
indivíduo a adequar-se, já que atrasos não são bem quistos. Os fiéis, de maneira geral, atuam
homogeneamente no início do culto. Silenciosamente entram homens e mulheres, cada qual
por sua porta – as mulheres, antes da porta, colocam logo seus véus – saúdam os irmãos de fé
com o ósculo santo, ajoelham-se e oram ainda em silêncio. Até o momento do “hino do
silêncio”, alguns conversam baixinho, outros dizem “glória a Deus” e outros ainda parecem
estar num momento de concentração: olhos fechados, testas franzidas e, ao que parece, estar
falando com Deus ou consigo mesmo em pensamento. Fora da igreja, algumas pessoas, de
maioria jovem. Ao passo que a organista toca, todos entram e/ou se acomodam. Os corpos
tortos, os braços que antes estavam sobre o encosto do banco e as pernas cruzadas ou
encostadas no banco à frente aprumam-se quase que instantaneamente, as mães arrumam as
crianças dando-lhes as últimas recomendações para ficarem quietas. Alguns olhos se fecham,
enquanto bocas são abertas com os ecos de “glória a Deus”, “tu és santo”, “louvamos o teu
nome”, “bendito seja Deus nas alturas”. O ancião finalmente marca o início do culto ao subir
no púlpito, de paletó e gravata, dizendo “Deus seja louvado”; todos respondem
conjuntamente: “Deus seja louvado”. O ancião segue: “louvemos o hino de número tal”.
Todos pegam seus hinários e abrem, procurando a música correspondente. Alguns corpos
88
endireitam suas colunas – imagino que para o diafragma atuar com mais liberdade e a voz sair
melhor. Os hinos começam a ser entoados em uma só voz. Algumas irmãs têm os olhos com
lágrimas.
Após o momento de louvor, o ancião indica o período de oração. Ele diz que qualquer
irmão ou irmã que “sentir de Deus” pode e deve conduzir a oração. Todos se colocam de
joelhos. Os bancos tem em sua base uma espécie de prolongamento, uma madeira paralela e
suspensa, onde todos colocam os joelhos. De frente para o púlpito onde está o ancião, de
joelhos dobrados, os corpos se acomodam à nova posição: os véus são arrumados; as mãos
são colocadas juntas, com dedos cruzados, outras são colocadas na testa, cobrindo os olhos,
ou simplesmente se apoiam no banco à frente; as mães, que antes deram as recomendações de
comportamento, olham atentas e aprumam suas filhas para orar ou dão papel e lápis para as de
menos idade se distraírem; todos os olhos são fechados. Quando finalmente alguém começa a
oração, a reverência quase militar parece ser quebrada; não para uma desordem, mas para um
momento de maior liberdade dos corpos. As vozes se elevam com frases que falam de Deus.
Choro e riso parecem se misturar entre os soluços altos de algumas fiéis que parecem até
prever esse momento, pois algumas levam lenços e toalhinhas de rosto para conterem o suor e
as lágrimas. Observamos que a respiração é alterada – fica ofegante –, alguns pés balançam
como que inquietos e há manifestação de glossolalia. Parece-me que os corpos conduzem, aos
poucos, numa sequência de ações até culminar na glossolalia. Após a fala em outras línguas,
que segundo a cosmologia interna é a língua falada pelos anjos, os corpos parecem fazer o
movimento inverso, se acalmando aos poucos. O choro vai cessando, os soluços diminuem, os
pés se acalmam, a voz não é mais tremula e a respiração volta ao padrão normal.
Mesmo com todas as manifestações de desordem do corpo, notamos que ainda assim,
esse corpo era controlado. Havia choro, mas não eram acompanhados de gritos e excessiva
emotividade. Em entrevistas posteriores, as mulheres estudadas afirmaram ser assim mesmo a
“presença de Deus” / “o sentir de Deus”, mas com toda ordem e decência, sem tumulto como
em outras igrejas. Embora não citasse nome de outras denominações pentecostais,
provavelmente se referiam às igrejas neopentecostais, conhecidas pelos seus cultos de
libertação e exorcismos.
O conjunto de experiências corpóreas evidencia e legitima o contato com o sagrado,
bem como autentica sua santidade e pertença ao grupo. São também as técnicas corporais que
os distinguem de outras denominações pentecostais. Ser tocado pelo Espírito Santo e sentir a
presença de Deus não é apenas emoção momentânea ou uma sensação que termina após o

89
culto, não é simplesmente uma conduta ligada ao momento ritual e deve ser sempre
experienciada com essas técnicas corporais; antes é levada à vida cotidiana, adaptando-se ao
momento específico, em um processo que implica reflexão e tomada de decisões racionais
que moldam o estilo de vida da fiel.
Se o corpo pode ser comparado a uma obra de arte como Merleau-Ponty (1999)
afirmou, podemos apontar que as técnicas corporais possibilitam a comunicação, assim como
os tons das cores num quadro. Consideramos que o corpo não é apenas biológico, ele está
carregado de símbolos e significados culturais e, consequentemente, religiosos. Os objetos
que compõem o corpo sujeito cultural passam também a fazer parte desse corpo e tornam-se
um só sujeito. A percepção baseia-se no comportamento, de maneira que adornos corporais
comunicam a crença religiosa e atuam como sujeitos, quebrando o paradigma sujeito versus
objeto, como foi proposto por Merleau-Ponty.
Nesse sentido, refletiremos também como a vestimenta se constitui numa fonte
carregada de significados e identidades para as mulheres da Congregação Cristã e que
expressa características individuais de quem as veste, mas que também evidencia aspectos do
grupo ao qual se pertence. A figura feminina e sua vestimenta, frequentemente, estão
atreladas a conceitos de beleza, moral, e elegância, em que a indumentária é parte importante
de sua identificação. A lógica de valorização dos atributos sensuais do corpo, que é pregado
pelo mercado da moda, é o oposto do que a moral cristã recomenda. As instituições religiosas
são, portanto, os principais agentes de questionamento e interferência no que se refere ao
comportamento e ao trajar feminino, tentando construir, a seu modo, a imagem de mulher
ideal, enfatizando a distinção entre os sexos e defendendo a legalidade dessa censura feminina
fundamentada nos textos bíblicos. Assim sendo, a relação da mulher com as formas de vestir
traz uma forte significância em sua convivência social. A relação mulher / vestimenta é algo
que está para além do ato de trajar. Está carregado de significados, presentes na construção de
sua identificação, sendo ainda um veículo de comunicação no qual suas individualidades são
manifestadas. A indumentária feminina atua como pré-objeto, num sentido merleau-pontyano,
além de contribuir para manutenção do habitus que indica seu “gosto de religião”,
desencadeando aquilo que Csordas chama de embodiment.
Na Congregação Cristã, as mulheres obedecem a um padrão de vestimenta: saias e
vestidos minimamente à altura dos joelhos (podem ser longos), blusas com mangas, roupas
sem transparências e que não demarquem o corpo. Não há restrições para calçados. Além
disso, não é permitido o uso de maquiagens, esmaltes de unhas, joias como colares, pulseiras

90
e brincos. Também não é permitido cortar os cabelos. Portar-se desse modo, atesta sua
devoção e obediência a Deus e longe de ser “opressão”, é na verdade uma transformação na
perspectiva de vida.

Quando eu era criatura, eu era muito vaidosa. Não tinha quem me fizesse
usar uma saia. Só gostava de calça e bermuda. Mas também nunca gostei de
shortinho, essas roupas curtas ou decotadas... Depois que recebemos a graça,
Deus faz a gente enxergar tudo diferente. É o Espírito Santo que transforma a
gente. Eu comecei a congregar por curiosidade, aí fui gostando. Comecei a
pensar que as irmãs eram realmente chamadas por Deus. Hoje eu não tenho
vontade nenhuma de usar calça ou me vestir como antes, já faz 25 anos que
desci ao santo batismo. Temos que fazer a diferença (Simone, 43 anos).

As roupas e todos os ornamentos (ou a falta deles) produzem nas mulheres CCB
comportamentos capazes de indicar sua pertença religiosa. A vestimenta está, portanto,
carregada de significados que manifestam o grupo social no qual o indivíduo está inserido, no
nosso contexto, essa vestimenta indica uma mulher do pentecostalismo clássico. As fiéis da
Congregação Cristã reafirmam a necessidade de ser diferentes, e isto se dá, dentre outras
maneiras, pela vestimenta que utilizam.
Conhecida como “a igreja do véu”, o véu se constitui uma peça muito importante que
compõe a indumentária feminina. Usado somente nos momentos de culto, dentro da igreja ou
fora dela, o véu para a Congregação Cristã é artefato imprescindível.

O véu é mandamento de Deus. Tá na Bíblia (Selma, 65 anos).

O véu é o cabelo da mulher, só que na rua. Por isso que não pode cortar.
Deus não quer. Dentro da igreja tem que usar um de pano mesmo, e tem que
ser branco [...] Representa pureza (Simone, 43 anos).

O véu é muito bonito, mostra respeito com Deus. Não pode chegar pra orar
de qualquer jeito. Pra orar tem que colocar o véu e se ajoelhar. Só orar em pé
nos funerais ou se a pessoas tiver algum problema de saúde que impeça. O
véu é muito importante (Lívia, 38 anos).

O véu é obrigatório apenas para fiéis CCB, para pessoas visitantes o uso não é
imposto, mas é sempre oferecido. Quando veem uma visitante, uma mulher da igreja faz uma
abordagem prévia, oferecendo o véu, o hinário e indicando o lugar em que se deve sentar. Na
igreja existem alguns véus para pessoas visitantes e as mulheres da igreja geralmente levam
um ou dois véus extras para o caso de uma necessidade.
Embora as mulheres entrevistadas não me indicassem o tipo de véu usado por elas –
esse véu não teria nome específico – indicavam sempre o mesmo versículo bíblico para
91
justificar o seu uso: Primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, capítulo 11 e os versículos
abaixo, especialmente o de número 6:

4. Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua
própria cabeça.
5. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra
a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada.
6. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se
para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu.
7. O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de
Deus, mas a mulher é a glória do homem.
8. Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem.
9. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a
mulher por causa do homem.
10. Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa
dos anjos. (Bíblia Sagrada, I Coríntios 11:4-10)

Já que o véu para as mulheres da CCB não possui nome específico, julgamos
necessário aprofundar a temática sinalizando outros tipos de véus mencionados na Bíblia
Sagrada. Numa Bíblia direcionada para o público feminino, apresentou-se o quadro abaixo,
nos fazendo identificar o véu usado pelas mulheres da Congregação Cristã no Brasil como
sendo de tipo “mantilha”, que se aproxima do modelo de um xale colocado sobre a cabeça,
cobrindo da raiz dos cabelos à altura dos ombros, aproximadamente. Esse véu era usado nos
tempos bíblicos para indicar respeito e pureza da mulher, já que o desuso dessa peça e cabelos
soltos caracterizava a mulher adúltera ou prostituta. Esse véu é, então, sinal de respeito e
compromisso da mulher com o marido, além de ser também identificador da fé cristã, uma
vez que a cidade de Corinto, para quem foram escritas essas recomendações, se encontrava
sob influência de outras culturas, com religiões consideradas pagãs. Manifestando as raízes no
judaísmo, o véu para as mulheres da Congregação Cristã é peça indispensável na afirmação da
religiosidade. Sendo sempre de cor branca, o véu é sinônimo de reverência com Deus.

92
Quadro: Véus para mulheres89

Tipo de Referencia
Descrição
Cobertura Bíblica
Touca Provavelmente um ornamento para a cabeça ou uma Isaias 3:18,20
(hebr. shabis) faixa frontal de ouro ou prata.
Ornamento usado por mulheres ricas, provavelmente Isaias 3:20;
ao redor da cabeça.
Turbante O termo também é usado para descrever a guirlanda da Ezequiel
(hebr. pe’er) noiva ou o turbante usado por homens, assim como as 24:17,23;
tiaras usadas pelos religiosos. 44:18
Isaias 61:10
I Coríntios se refere a uma espécie de véu ou mantilha
– talvez até mesmo um xale. Usar cabelos longos e Números 5:18
soltos confirma a culpa da mulher considerada
Mantilha adúltera.
(gr. peribolaios) Parece haver uma dupla importância em se cobrir a I Coríntios
cabeça: isso mostra a clara distinção entre os sexos e 11:2-16
afirma publicamente o compromisso da mulher com a
liderança de seu marido. Esse hábito deve ter sido
especialmente importante para os coríntios por causa
das influencias pagãs e [consideradas] imorais à sua
volta.
Véu Usado como sinal de noivado e só deveria ser retirado Gêneses 24:65
(hebr. tsaciph) na ocasião do casamento.
Véu Véu de tecido mais leve, provavelmente usado no Isaias 3:23
(hebr. redid) verão.
Véu Véu sobre o rosto (lit. “agarrar”) era provavelmente Cantares de
(hebr. tsamah) decorativo, talvez uma longa trama de enfeites para Salomão 4:1,3
mulheres de alta posição social. Isaias 47:2
Véu Esse véu (provavelmente um capuz) é associado com Ezequiel
(hebr. mispachoth) as atividades de falsas profetisas 13:18,21

89
“Quadro: Véus para mulheres” In: A Bíblia da Mulher: leitura, devocional, estudo. 2ª ed. p. 1838, Barueri, SP:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. Quadro adaptado.
93
Figura 12: Véu. Acervo pessoal.

94
Figura 13: Véu para crianças. Acervo pessoal.

Devido à falta de literatura sobre pentecostais e de discussões que relacionem o véu, se


mostra necessário fazermos uma correlação com algumas autoras que trazem a temática sob
uma perspectiva islâmica. Assim, neste momento discutiremos o véu como objeto religioso,
comparando o campo etnográfico estudado com os trabalhos apresentados por Mernissi
(1987) e Mahmood (2006).
Fatema Mernissi apresenta o véu como algo diacriticamente contextualizado e
vinculado ao reconhecimento da identidade cultural e feminina de determinado grupo social.
Podemos apontar que o uso do hijab marca a distinção de uma mulher em relação às outras
que não o usam, agindo como marcador de sua identificação religiosa. A autora afirma que o
véu (hijab) no islamismo apresenta três dimensões: a primeira é visual, a fim de ocultar algo
da visão, no caso ocultar o corpo feminino reservado apenas ao marido; no caso das mulheres
da CCB o véu “oculta” os cabelos soltos, sinônimo de impureza nos princípios bíblicos. A
segunda dimensão é espacial, para separar, marcar a diferença, definir a entrada, o acesso;
tanto no islamismo quanto na cosmologia da Congregação Cristã, evidenciar a separação entre
homens e mulheres é de grande importância, sendo o véu o marcador dessa separação. A
terceira dimensão refere-se à ética, à moral, diz respeito ao campo do proibido, e a autora
completa sua análise dizendo que o véu determina uma fronteira de proteção. Podemos pensar

95
o véu como fronteira simbólica que separa o que deve e o que não deve ser visto (Mernissi
1987). Para a cultura islâmica, continua a autora, mostrar o rosto, o corpo, para um homem
que não seja o marido é desrespeito, desonra e vergonhoso. Considerando que na perspectiva
cristã o “marido”, o “noivo”, é representado metaforicamente como sendo Jesus Cristo, o
divino, podemos também considerar a ótica islã inversamente no contexto da Congregação
Cristã. Enquanto que no islamismo só é permitido à mulher despir-se do véu para seu marido,
na CCB dirigir-se a Deus (o noivo), num momento de oração e culto, com a cabeça
descoberta, seria desrespeito, desonra e vergonhoso. Dessa maneira, o contato com o sagrado
pressupõe preparação especial, não podendo ser feito de qualquer maneira. A socióloga
marroquina apresenta que:

Lejos de ser mágica la visita a la tumba del santo, uma relación


continuada com uma criatura sobrenatural, puede constituit um intento
muy real de las mujeres de redefinir el lugar que les corresponde em el
mundo material. El intercambio com el santo puede, de hecho,
constituir um esfuerzo para experimentar la realidade más plenamente
(Mernissi 1987: 63).

Saba Mahmood (2006), em seus estudos sobre o revivalismo islâmico no Egito,


pensando teoria feminista, agência e sujeito, chama a atenção para o fato de que a associação
entre o véu e a liberdade das mulheres é igualmente manifestada nos argumentos que
sancionam ou defendem o véu sob o pretexto de que este é um produto da “escolha livre” das
mulheres e uma evidência de sua “libertação” da hegemonia dos códigos culturais ocidentais.
Da mesma maneira que para as mulheres da CCB o uso do véu é livre e por vontade própria,
como reconhecimento de que é a vontade de Deus. As mulheres apontaram uma explicação
racional, que ofusca a obrigatoriedade do véu e evidencia a sua escolha de usá-lo. No entanto,
analiticamente, podemos indicar que essa “liberdade” é limitada e governada pelos códigos de
conduta da igreja, que obriga o uso do véu. A “escolha” consiste entre concordar com os
pressupostos da igreja e aceitá-los como corretos, sendo integrada ao grupo, ou não fazer
parte do grupo religioso.
O uso do véu constitui, portanto, uma forma das mulheres externarem sua
religiosidade, como pertencentes a um determinado grupo. Assim como a vestimenta, o véu
age como a materialização do objeto símbolo da religiosidade, corroborando para a
construção do corpo, sujeito da cultura religiosa.

96
2.2.2 Participação das mulheres na igreja

A predominância do quantitativo feminino está presente em muitos dos trabalhos


sobre religião, especialmente sobre o pentecostalismo clássico.90 Desde as primeiras décadas
dessa vertente no Brasil, o lugar da mulher foi delimitado, como lembra a antropóloga
francesa Marion Aubrée, em seus estudos sobre pentecostalismo na década de 1980:

[...] existia no nível espacial, uma separação nítida entre os homens que se
instalavam à direita da nave e as mulheres que ficavam na parte esquerda
(Novaes 1979:90) ou, quando o desequilíbrio feminino/masculino era mais
importante, as mulheres sentavam na frente e os homens atrás (Aubrée
1985:91-92). A submissão da mulher ao seu parceiro convertido e/ou ao pastor
era reconfirmada incessantemente nas pregações (ex.: “Quero que saibais ser
Cristo o cabeça de todo homem e o homem o cabeça da mulher …” Primeira
Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 11, versículo 3) (Aubrée 2014: 170).

Embora as mulheres não possam ocupar cargos de liderança na igreja, elas são
bastante ativas. Os cargos femininos são restringidos a atividades de professora de crianças
e/ou outras mulheres, direção de cultos de orações, campanha evangelizadora e zeladoria da
igreja. Isto reforça o padrão “homem dominante / mulher submissa” que caracteriza as
relações tradicionais entre os sexos (Hoffnagel 1980).
Ainda que os trabalhos mencionados refiram-se ao pentecostalismo de algumas
décadas atrás, mesmo sendo maioria, o corpo feminino é, ainda hoje, muitas vezes censurado
e a sua participação é limitada na Congregação Cristã no Brasil. O corpo biológico atua como
demarcador das atividades exercidas.

Olhe, as mulheres não podem conduzir o culto... não tem ‘anciã’, ou


‘cooperadora’... Isso os irmãos quem faz. Mas uma irmã pode ser
‘auxiliar de jovens’ e ajudar a cuidar das crianças, tem liberdade de
testemunhar, de pedir hinos, de orar, de ser organista. Não é lindo?
Mas ter cargo mesmo não, Deus deixou isso pros homens fazer... A
gente já é muito ocupada, não é mesmo minha filha? [risos] (Selma, 65
anos).

O depoimento de minha informante norteará alguns pontos a serem discutidos: a) a


proibição de ocupar cargos elevados, ficando reservado a elas “papéis estritamente
femininos”; b) a permissão de tocar apenas um único instrumento, o órgão, em detrimento dos
outros, e c) a constante naturalização dos fatos.
90
AUBRÉE, Marion (1985, 2000a); HOFFNAGEL, Judith (1978, 1980) e NOVAES, Regina (1985).
97
“Olhe, as mulheres não podem conduzir o culto... não tem ‘anciã’, ou
‘cooperadora’... Isso os irmãos quem faz. Mas uma irmã pode ser
‘auxiliar de jovens’ e ajudar a cuidar das crianças...”
“...Deus deixou isso pros homens fazer... A gente já é muito
ocupada...”

A separação do trabalho baseado no sexo está presente desde as mais antigas


sociedades. No pentecostalismo essa separação é evidenciada desde o momento de conversão.
Patrícia Birman (1996) em seu artigo “Mediação Feminina e identidades pentecostais” aponta
que os motivos que levam à conversão estão também baseados em questões de gênero: os
homens geralmente se convertem em momentos de desemprego, dificuldades financeiras e
vícios, atividades tidas como masculinas; enquanto as mulheres geralmente relatam suas
conversões baseadas nas dificuldades familiares, do campo emocional, assumindo um papel
de ajudadora espiritual, atividades estas, vistas como femininas.

Em função, portanto, de uma clássica divisão de trabalho entre os sexos,


caberia, pois, às mulheres as lides religiosas e o trabalho doméstico bem como
o cuidado das relações familiares. [...] De um lado uma expressiva maioria
feminina e, de outro, uma dominância de assuntos tradicionalmente de
responsabilidade de mulheres faz da religião um campo marcado em termos de
gênero (Birman 1996: 207-208).

Esses cuidados femininos serão, desse modo, vistos como algo que lhes seria uma
atribuição específica que é compreendida em função do seu estatuto de gênero na divisão de
trabalho no interior da família e esse papel de gênero pode ser mais ou menos condizente com
certos ethos religiosos. Às mulheres ficariam então reservadas as atividades voltadas para a
família. No caso da Congregação Cristã, cuidar das crianças é umas das atividades possíveis.
As atividades de liderança, ministração da Palavra e condução dos cultos são estritamente
masculinas. Ao se considerar “muito ocupada” a fiel se referia às tarefas domésticas
designadas às mulheres.

...tem liberdade de testemunhar, de pedir hinos, de orar, de ser


organista. Não é lindo?!...

A “testemunhança” é parte importante do culto na CCB. Único momento permitido


para todo e qualquer fiel se expressar. Trata-se do momento em que o fiel tem oportunidade
de ir à frente da igreja e contar algum episódio de sua vida cotidiana, no qual atribui-se a Deus
alguma participação. Geralmente são histórias de cura, libertação e providência financeira. A
ação de pedir hinos e conduzir a oração se refere ao convite que o ancião que conduz o culto
98
faz a qualquer fiel que “sentir de Deus” dizer o número do hino a ser louvado ou fazer a
oração em voz alta. Em todas essas atividades é permitida a participação de homens e
mulheres, embora, em minha estadia em campo, tenha notado que a participação é
majoritariamente masculina.
Mesmo diante da proibição de ocupar cargos elevados na igreja, as mulheres possuem
atividades específicas. Entre elas, uma função exclusiva para as mulheres da Congregação
Cristã é o cargo de “organista”. A organista é aquela que toca o órgão durante o culto. Toda e
qualquer mulher, independente de idade ou tempo de conversão, querendo, pode sinalizar seu
desejo de aprender o instrumento. A organista faz parte do ministério de música da igreja e
aprende a tocar gratuitamente, com aulas ministradas por outra organista mais antiga; para
que toque em cultos oficiais é preciso que seja batizada na igreja, no entanto, para aprender
essa exigência não é feita. Lívia, 38 anos, uma de minhas informantes, é organista e quando
questionada sobre a exclusividade feminina para o instrumento explicou:

Eu comecei a aprender já tem mais de sete anos. Até onde eu sei, aqui na
igreja só as irmãs podem tocar órgão. Não sei te dizer exatamente porque, é o
ensinamento. Mas em outras igrejas as irmãs também tocam outros
instrumentos, às vezes não tem irmão suficiente pra formar, às vezes o marido
toca e ensina a esposa a tocar... Mas proibido mesmo não é não... não tem
nada de ser pecado ou essas coisas... tem outras igrejas que as irmãs toca...
você já viu na internet? Tem lá pra você ver... A gente tá esperando ser
liberado pra tocar outros instrumentos... Quando a central liberar a gente
aprende e toca... É porque não tem professora. Aqui na igreja não tem
não.[...] Mas os irmãos que sabem tocar, ensinam as esposas em casa... tem
mulher que sabe tocar até violino, tudo...

Embora a fiel não reconheça a proibição, em 1961 ela foi feita na reunião anual dos
anciães. De acordo com o relatório disponível no site oficial da CCB, as mulheres são clara e
diretamente excluídas da participação nas orquestras tocando outro instrumento que não o
órgão.

O Senhor tem esclarecido aos irmãos anciães de as excluírem dos conjuntos


musicais, a não ser no órgão, ficando assim impedida toda e qualquer
oportunidade para o inimigo causar dano à Obra de Deus. O Órgão
eletrônico é de liberdade de execução somente de mulheres.

Já que os estudos sobre músicos e, especialmente, organistas, na CCB é escasso, mais


uma vez, lançaremos mão de uma literatura de apoio, neste caso a literatura etnológica. Nesse
campo, o chamado “complexo das flautas sagradas” analisa o emprego de aerofones como
objetos de competência exclusivamente masculina em cerimônias musicais interditas às
99
mulheres. Na simbologia desses ritos, a questão das relações de gênero aparece como um
tema central. Tais ritos masculinos foram observados em várias regiões do mundo,
especialmente na Nova Guiné e nas terras baixas da América do Sul.
Na nova Guiné, esses instrumentos representam espíritos femininos, sendo
considerados “esposas” do zunidor, e por isso a interdição feminina (Herdt, 1981, 1982;
Gourlay, 1975). Nas terras baixas da América do Sul, onde a segregação sexual do espaço e
das atividades é destacada, a área de atuação das mulheres se restringe às esferas mais ligadas
à domesticidade, enquanto o papel masculino é valorizado pelas atividades de caça e da
guerra, e pela realização de rituais secretos masculinos de importância central, nos quais são
tocados instrumentos sagrados que as mulheres não podem sequer ver. O “complexo das
flautas sagradas” está associado a uma menstruação simbólica masculina e ao culto dos
ancestrais. O quadro geral desses rituais abrange principalmente o noroeste amazônico e o
alto Xingu (Lasmar 1999, 2005; Maccallum 1994, 1999; Menezes Bastos 1989). Acácio
Piedade explica a relação simbólica de gênero, analisando a música Jurupari, com base em
sua etnografia realizada entre os Ye’pâ-masa, grupo de fala tukano do noroeste amazônico:
As relações sexuais e a menstruação – aspectos essencialmente femininos - se
opõem simbolicamente às flautas yaku’i e sua música – aspectos
exclusivamente masculinos. A menstruação feminina aparece como poderoso
sinal biótico da capacidade criativa da mulher, que os homens invejam e
reproduzem simbolicamente no ato de menstruação masculina que é a música
das flautas yaku’i. Segundo os mitos, as flautas foram roubadas dos homens
pelas mulheres, que então passaram a tocá-las e a fazer tudo que os homens
faziam, como pescar, enquanto eles passaram aos afazeres femininos, como
preparar comida e colher mandioca (Piedade 1999: 94-95).

No caso da Congregação Cristã, a proibição dos instrumentos para as mulheres seria


primordialmente para evitar “contato” entre mulheres e homens, impossibilitando a “atuação
maligna”91 no meio da igreja, em outras palavras, o pecado do adultério. Contudo, podemos
analisar que se trata, na verdade, de uma “proibição masculina”: “a gente tá esperando ser
liberado pra tocar outros instrumentos”, a organista deixa clara a existência, mesmo que
imprevisível, da permissão para que as mulheres toquem outros instrumento. Dessa forma,
seria provavelmente permitido às mulheres tocarem outros instrumentos, mas o órgão seria
interditado aos homens e estritamente um símbolo feminino. Correlacionando a CCB e o mito

91
Essa “atuação maligna” se refere à ação do diabo nas mentes dos fiéis fazendo-os sentir atração sexual e,
consequentemente, os fazendo pecar. Esta é também uma das explicações subtendidas para a regra de assentos
separados.
100
entre os Ye’pâ-masa, vemos uma atuação inversa: o instrumento sagrado, que em lugar da
flauta é o órgão, pertence às mulheres.
A organista é um cargo de prestígio na participação feminina na igreja. É uma das
primeiras a chegar e tem um lugar específico para ocupar. A roupa tem de estar impecável,
para não “servir de escândalo” como disse minha entrevistada. “Não pode aparecer nada”, se
referiu ela, indicando que a roupa deve cobrir todo o corpo. Não podem aparecer as costas,
nem muito das pernas. Todas as regras de vestimenta feminina são intensificadas para a
organista que serve de modelo para as outras mulheres. Sentada em frente ao órgão, numa
postura ereta que lembra as mulheres com espartilhos apertados de alguns séculos passados,
seus dedos seguem a risca a pauta musical que seus olhos percorrem, a organista controla seu
corpo e sua mente. Não as vi chorar ou falar, muitas sequer cantam acompanhando a música
que tocam, numa concentração profunda. Seguem assim, nesse controle de técnicas corporais,
até que o período de louvores termine e ela se despeça do instrumento caminhando para os
bancos e se misturando com as outras mulheres. Concluímos que a organista é também
expressão máxima da ascese e racionalidade na mulher.

Figura 14: Organista. Acervo


pessoal.

101
2.3 Construção do corpo religioso

Quando Mauss escreve, ainda que inacabada, “A prece”, ele afirma que existe na
execução de ritos sagrados uma técnica corporal, já que o corpo se faz portador de outros
significados, portanto de outras técnicas corporais. Mas também destaca que os ritos
religiosos não se separam de outros comportamentos sociais cotidianos, nos quais as técnicas
corporais são ritualmente fundamentais (Rocha 2008). Apresentamos até então o corpo como
aquele que sai do simplesmente biológico e ocupa lugar de sujeito na cultura. Um corpo que
comunica, que manifesta que somos, nas palavras de Merleau-Ponty (1999: 8): “É preciso que
eu seja meu exterior, e que o corpo do outro seja ele mesmo.”
De acordo com Miguel Vale de Almeida (2004: 4)

a questão do corpo constitui um desafio no sentido de nos engajarmos no


momento histórico em que vivemos, momento esse que apela a uma ‘politica
da vida’, como diria Anthony Giddens (1992), em que o corpo é um terreno
privilegiado das disputas em torno quer de novas identidades, quer da
preservação de identidades históricas, da assunção de híbridos culturais ou
das recontextualizações locais de tendências globais (grifo nosso).

Se cada coletividade constrói uma forma corporalmente legítima de agir e também, é


claro, censura todo o uso diferente dessa norma cultural, o corpo como um todo – na maneira
de vestir, de falar, nos lugares frequentados – atuam para a construção do corpo feminino da
fiel da Congregação Cristã no Brasil. “Mas é fundamental frisar, como o faz Mauss, que se
trata de desenvolvimento de ‘uma arte de utilizar o corpo’ em cujo processo a educação se
confunde com a imitação” (Rivera 2006: 14). Assim sendo, a religião serve de mecanismo de
controle social do corpo que é construído e herdado a partir de suas particularidades
históricas, constituindo-se um modelo legítimo. Como para ser aprendida a técnica precisa ser
tradicional e eficaz, a sua transmissão passa a ser incorporada, aceita sem questionamentos.
A identificação religiosa está atrelada ao corpo, e, em alguns casos, a (re)construção
do próprio corpo é um dos mecanismos de objetificação do religioso, da autoestima e do
estabelecimento da relação com o mundo. As representações do corpo operam de acordo com
as representações disponíveis na sociedade, de acordo com as visões de mundo das diferentes
comunidades humanas. “A corporeidade constitui-se num dos mais importantes ‘idioma
simbólico’ capaz de nos permitir apreender processo de construção de identidades religiosas”
(Rocha 2008: 142).

102
Algumas implicações e desdobramentos teórico-metodológicos surgem ao refletirmos
corpo e religião. Rabelo (2011: 19) aponta a “relação de imbricação mútua entre corpo e
lugar” como sendo uma delas. Segundo a autora, devemos privilegiar a relação entre corpo e
lugar, já que “a configuração dos lugares que habitamos demanda certos modos de
engajamento corporal, reforçando e naturalizando padrões de ação e interação”. Esse “lugar”
ocupado pelo corpo (que é também um corpo religioso) estende-se para além do templo onde
os cultos são prestados à vida cotidiana.
A disciplina para a manutenção de um corpo santo ocorre, na Congregação Cristã, nas
mais variadas instâncias e ganha características peculiares ao se tratar do corpo feminino. As
disposições corporais envolvem “a prática habitual e repetida de um conjunto de gestos e
posturas” (Rabelo 2011: 21), estas práticas proporcionam o recebimento do Espírito Santo,
evidenciado principalmente pela glossolalia, revelações divinas e profecias.

Polyanny: Como você descreveria esse momento? (de receber o Espirito


Santo)
Entrevistada: Quando você está em paz com Deus, não tem como
descrever... Você escuta os louvores e começa a chorar. Quando
percebe, já está falando a língua dos anjos e Deus vai te renovando.
[...] É maravilhoso, uma sensação que não dá pra explicar. Você
simplesmente sente Deus.
P: E o que é preciso para sentir Deus?
E: Ahhh... [risos] tem que estar em obediência. Tem que ser santo.

Neste capítulo, o corpo foi analisado como categoria central para entendermos como a
crença religiosa é incorporada na vida cotidiana do fiel. Vimos que o corpo é o lugar onde se
inscrevem as emoções e é operador das práticas sociais. Através das experiências corporais é
que se justificam as atitudes e a quebra com o mundano. Assim, percebemos que construção
do corpo religioso se dá, portanto, por meio desse conjunto de práticas que regulam os corpos.
Orar com frequência, cantar hinos religiosos, o modo de vestir-se e de portar-se dentro e fora
da Igreja apontam fielmente para a busca de um modelo ideal pregado pela instituição, a
busca pela “santidade”. No capítulo seguinte, exploraremos essa categoria.

103
4 PERFORMANCE E SANTIDADE: EXPERIÊNCIAS
CORPORAIS

Durante esta dissertação apresentamos a Congregação Cristã no Brasil relatando seu


histórico, seus costumes e crenças, suas especificidades. Mostramos, mais precisamente no
capítulo anterior, que as técnicas corporais e o estilo de vida são importantes, especialmente
para as fiéis, que veem o corpo como meio demonstrador da sua santidade religiosa,
representada pela ascese de uma vida separada e de negação mundana. A santidade, o sentir
de Deus, a comunhão (como um elemento de ligação) e o ritual da Santa Ceia surgem, então,
como elementos importantes para pensar a construção do corpo feminino na CCB, uma vez
que é no corpo que essa categoria é experienciada.
Neste capítulo, abordaremos o conceito histórico de santidade protestante que emergiu
nos tempos da Reforma e, interligando-o à cosmologia da Congregação Cristã, analisaremos a
ideia de santidade manifesta na experiência corpórea. Veremos que a expressão “sentir de
Deus” pode ser entendida como categoria êmica fundamental para demonstrar e legitimar a
comunhão com Deus e, consequentemente, a santidade que, por sua vez, é uma busca
constante de pureza e negação das coisas mundanas que instauram o caos, desestabilizando a
ordem interna. Por fim, discutiremos que a Santa Ceia, sendo um ritual festivo e performático,
se apresenta como ritual catalisador da santidade por meio do qual os fiéis “provam” com
mais veemência o seu estado de pureza, vivendo o ápice da santidade protestante no momento
do ritual.
Vale ressaltar que este capítulo está ligado, teórica e etnograficamente, ao capítulo
anterior. Destacamos, contudo, que, em nível teórico, entendemos a realidade social sob uma
perspectiva antidualista, assim como apresentado por Bourdieu, Merleau-Ponty e Csordas,
abordados no capítulo anterior. No entanto, na dinâmica etnográfica, num primeiro nível de
análise, é possível perceber uma dualidade nas categorias nativas e, por isso, lançaremos mão
de uma teoria mais dualista, abordando autores como Durkheim e Douglas.

3.1 Conceito de Santidade

A santidade é conceito fundamental no cristianismo como um todo. Essa ideia,


contudo, passou por significativas transformações históricas. Morrer pela fé professada,
atitudes heroicas, capacidade de operar milagres e uma vida exemplar foram algumas das
104
condições de santidade ao longo dos séculos. Para clarear nossa reflexão, tomaremos por base
os estudos de Matos (2014) e Urbano (2004), de modo a proporcionar mais larga
compreensão histórica sobre o tema.
Silvana Matos (2014), em sua tese sobre a santidade católica, demonstra a trajetória
histórica do conceito de santidade. Segundo a autora, embora diversas religiões tenham crença
em pessoas santas, somente a Igreja Católica Apostólica Romana possui um corpo
institucionalizado, burocrático e racionalizado para debater o tema, sendo um tema
inicialmente pensado e debatido por essa instituição. Definiremos aqui dois momentos (sob
influência católica) que se sobressaem na trajetória do conceito de santidade:
1) “Ser mártir”: Nos primeiros três séculos depois de Cristo, para a Igreja Católica, ser
santo era morrer em favor da causa religiosa; em tempos de mártires, professar sua fé
representava risco à própria vida e essa coragem era admirada como demonstração de
santidade. Nesse período observamos certa reverência ao passado e o prestígio aos
mártires primitivos contribuem para a formulação épica do conceito de santidade.
2) “Ser herói”: No século IV, o santo era reconhecido por sua reputação entre o povo,
pelas histórias e lendas que faziam de sua vida exemplo de virtude heroica e pela fama
de operar milagres. Sobre o heroísmo dos santos, Urbano esclarece:

O ascendente moral sobre o humanismo renascentista e uma generalizada


aspiração à perfeição nos vários domínios da acção humana e do saber
contribuem neste período para uma interpretação heróica da existência. Nesta
interpretação, deparamo-nos com uma concepção de heroísmo indelevelmente
marcado por uma dimensão ética de matriz cristã, mesmo na abordagem do
heroísmo de figuras do mundo pagão¹. Por este motivo, a figura do herói
coincide muitas vezes com o ‘herói cristão’, e algumas vezes com o ‘herói
santo’. Sobretudo no séc. XVII, que alguém já designou como o século da
obsessão do heroísmo², os conceitos de heroísmo e santidade cruzam-se.
Assim, heroísmo significará muitas vezes santidade e santidade significará
sempre heroísmo³ (Urbano 2004: 272-273)92.

Essa interseção entre o herói e o santo estava profundamente presente na realidade


europeia da época. O tradicional prestígio dado aos mártires e a situação histórica que
proporcionava aos fiéis possibilidade real de morrer em prol de sua fé, favoreceram esse

92
Notas da autora: ¹ Por exemplo, as filosofias antigas são muitas vezes interpretadas em termos heroicos. A
figura idealizada de Sócrates ou sábio estóico informam profundamente a concepção de herói. A interpretação da
figura de Eneias é também exemplo da ‘cristianização’ do heroísmo greco-romano. ² Cfr. François-Xavier
CUCHE, «De la canonisation…», 203. ³ Um santo é sempre um herói, não só na dimensão moral das suas
virtudes mas também na sua acção. Mesmo no ideal de santidade mística de aniquilamento individual diante de
Deus, o santo define-se por esse carácter excepcional de superação de um limite ‘negativo’.
105
cruzamento e uma interpretação heroica da santidade. “A Europa assistia ao martírio entre
cristãos e ao nascimento de novos heróis” (Urbano 2004: 273).
Nos séculos seguintes, passada a perseguição romana aos cristãos, o conceito de
santidade também foi reformulado e, além da morte, passou a ressaltar as qualidades pessoais,
de maneira que a reputação, história de vida e a capacidade de operar milagres através dos
pedidos dos devotos fazia o santo herói (Matos 2014: 26). Apenas em 1170, a Igreja Católica
passar a organizar burocraticamente a definição e o culto aos santos. A partir do século XVI,
o movimento chamado de Reforma Protestante que, dentre outras coisas, era contra o culto
aos santos, coopera para uma redefinição de santo e santidade, que passa a espelhar-se na vida
e na obediência aos mandamentos de Cristo.

No dealbar da Europa moderna, no momento da sua divisão religiosa, em que


se multiplicam as discussões teológicas, doutrinais e disciplinares, no
momento da sua abertura à mundialização, no confronto de culturas tão
diversas, a figura do santo com o seu exemplum, o seu perfil modelar moral e
doutrinal, no heroísmo da sua ascese espiritual, ou do seu martírio; no
heroísmo do seu vigor missionário, ou da sua acção reformadora, constitui,
para além do estandarte da ortodoxia, a face visível da confiança do homem
nas suas forças ancoradas num horizonte transcendente (Urbano 2004: 276).

Um terceiro momento, agora sob a ótica protestante aparece: “Ser Imitador de Cristo”.
A moralidade e a ética, baseadas na imitação da vida de Cristo, passam a ser condições e o
foco para a concepção de santidade. Um conjunto de fatores primordiais e uma nova
percepção sobre quem são os santos e o que é santidade são apresentados pelo movimento
protestante pós-reforma.
O termo “protestante” ou “protestantismo” faz referência às igrejas oriundas na
Reforma Protestante. Esse movimento reformista cristão culminou no início do século XVI
com a publicação das 95 teses escritas por Martinho Lutero, principal líder do movimento.
Em suas teses, Lutero protesta contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica
Apostólica Romana, dentre os mais destacados, o culto aos santos e a venda de indulgências.
O regresso à Bíblia, a leitura direta dos textos na procura da sua pureza original, caracterizou,
sem dúvida, a reforma protestante convicta da sua missão refundadora. Mas certamente a
Reforma Protestante não se resume apenas ao combate à doutrina católica, as consequências
desse movimento desencadearam numa nova doutrina cristã e num novo estilo de vida cristão.
Atentando a esse fato, as ideias apresentadas por Lutero trouxeram novos conteúdos, dentre
eles os de “santo” e “santidade”. Para melhor apresentarmos o conceito de santidade para o

106
protestantismo e as divergências com o ponto de vista católico, tomaremos por base o trabalho
de Krumenacker (2010).
Yves Krumenacker (2010), em “Sainteté catolique et sainteté protestante (XVIe-
XVIIe siècles)” traz um breve histórico sobre o conceito de santidade e as divergências entre
católicos e protestantes, comentando o conceito a partir de Lutero, Calvino e da Igreja
Católica. O autor conta que em uma carta a Jean Lang, em 1522, Lutero afirma que o culto
aos santos não era mais necessário. Lutero deixa evidente nessa carta que o que lhe
preocupava no culto aos santos católicos era que estes os fizessem esquecer dos “santos
vivos” e ressalta que as personagens católicas tiveram a mesma fé que os cristãos, uma vez
que o que realmente vale é a fé dada por Cristo e seus ensinamentos. Um santo pode ajudar a
alcançar a fé, mas não pode ele mesmo salvar. Dessa forma:

Les saints, selon Luther qui se réfère à saint Paul, ce sont les chrétiens, qui
sont saints par la Parole et la grâce de Dieu. Les véritables saints sont donc
des vivants dont il faut s’occuper, qu’il faut servir, qui sont choisis par Dieu,
et non des morts ou des gens qui veulent se sanctifier eux-mêmes par leurs
oeuvres. (...) L’Écriture n’enseigne pas qu’il faut invoquer les saints (...), on
ne peut que méditer la mémoire des saints pour imiter leur exemple
(Krumenacker 2010:.2-3).

Para Krumenacker, a santidade em Lutero é de certa forma “banalizada” já que


qualquer crente que colocar em Deus a sua fé e acreditar em Cristo pode ser “santo”. “Tous
les élus de Dieu peuvent donc être considerés comme saints, sans hiérarchie entre eux, car
leur sainteté ne dépend que de Dieu” (Krumenacker 2010: 4). Em resumo: se não há “santos”
no sentido católico e não há nenhum outro mediador entre Deus e os seres humanos além de
Cristo, todos os crentes podem ser santos por Cristo. Teoricamente, não há orações de
intercessão, nenhum culto dos santos, relíquias, não há nenhuma capela erguida no local de
milagres. Os santos são modelos, exemplos de vida e nada mais. A santidade reaparece sobre
um plano ético e passa a ser entendida como um caminho, uma busca incessante pela
perfeição. A santidade protestante se concretiza nas figuras éticas exemplares, nos crentes que
imitam a vida de Cristo. “A insistência na necessidade de uma vida santa, os ‘santos vivos’, o
direcionamento para a ética, portanto, é uma característica do discurso protestante sobre a
santidade.” (Krumenacker 2010: 14)93
Consideramos, então, o conceito de santidade apresentado por Le Goff:

93
“L’insistance sur la nécessité d’une vie sainte, sur les “saints vivants”, le glissement vers l’éthique, par
conséquent, est une des caractéristiques du discours protestant sur la sainteté.”
107
A santidade pode ser entendida como uma construção que repousa em bases
históricas e que obedece a determinados modelos específicos, que vão, desde
exercícios espirituais, como a prática das virtudes, da oração e formas de
ascese, bem como, em modelos gerais como o Cristo ou ainda modelos
específicos exemplificados nas formas de vida religiosa praticadas e
codificadas (Le Goff 2006 apud Matos 2014: 25).

A ascese, que implica principalmente em boa conduta e no cumprimento dos preceitos


éticos morais cristãos, é exigência para a santidade, logo a ideia de “exemplo” merece
destaque. Eduardo Dullo (2011) faz referência às categorias “exemplaridade” e “testemunho”
como sendo necessárias para a confirmação do “ser cristão”. Em outras palavras, é por meio
de atitudes que o fiel prova o pertencimento à igreja. “Tanto o testemunho quanto a
exemplaridade estão articulando a transformação ocorrida na vida do sujeito. O convertido, ou
renascido em Cristo, quando apresenta seu testemunho, dá provas de sua transformação.”
(Dullo 2010: 111). Assim, podemos inferir que esse “exemplo” deve ser mantido durante toda
a vida cristã e serve também como prova de santidade. Para o fiel ser bem sucedido é preciso
ser exemplo, e esse exemplo é, primordialmente, percebido na imitação de Cristo e no
cumprimento das normas da Igreja. Qualquer desvio pode ser apontado como falta de
santidade e, consequentemente, falta de comunhão com Deus. Essa comunhão só é possível
quando o fiel obedece à risca as regras de Deus e da igreja, pois como me relatou uma fiel
“Deus não fala com desobediente. Deus é santo, três vezes santo e nós também devemos ser”
(Selma, 65 anos). No entanto, também notamos que o discurso é, muitas vezes, diferente da
prática, e que o fiel usa de mecanismos para justificar o erro ao ser surpreendido no ato de
desobediência. A mesma fiel, Selma, durante toda entrevista se sentiu desconfortável e na
obrigação de se explicar diversas vezes pelo fato de eu ter chegado em sua casa para
entrevistá-la e ela estar assistindo televisão, tendo em vista que possuir uma TV é proibido na
Congregação Cristã.

A gente tem que buscar sempre ser santo, obedecer... Eu assisto assim a
televisão porque estou sozinha, fica um silêncio na casa, aí eu ligo pra fazer
zoada... (risos) Mas isso não interfere em nada não [se referindo à sua
santidade], Deus sabe do meu coração

O depoimento da fiel reforça tanto as categorias apresentadas por Dullo (2011) de


exemplaridade e testemunho, quanto nos mostra a necessidade de demonstração cotidiana de
uma vida separada, que busca sempre alcançar o modelo máximo de santidade: Jesus Cristo.
Neste sentido, para além do discutido por Dullo, nossos dados apontam para a categoria de
“manutenção” da santidade, que se dá na permanência cotidiana de um estilo de vida santo,

108
que obedece às normas de Deus e da igreja. A fiel se referiu ao fato diversas vezes durante a
entrevista, destacando sempre seu posicionamento permanente de comunhão com Deus.
Partindo desse princípio, nossos dados reforçam que a santidade protestante está
baseada na ética moral e no estilo de vida. A antropóloga Clara Mafra, em seus estudos sobre
a formação da pessoa cristã, aponta que o pentecostalismo propõe uma reforma cultural e
social por meio de uma concepção alternativa do “mal”, de forma que:

dualismos relativistas vagamente definidos entre o bem e o mal, que eram


forças presentes em algumas versões do catolicismo popular, do catolicismo
progressista e das religiões afro-brasileiras, foram substituídos por dualismos
claramente delimitados, provocando uma atitude militante de pessoas de
ambos os lados. O ressurgimento da figura do diabo levou a produção de um
amplo leque de práticas e rituais de purificação, resultando na reorganização
de um grande volume de crenças e costumes sincréticos ou híbridos (Mafra
2014: 173).

Segundo a autora, os nativos pentecostais tendem a descrever sua conversão religiosa


como uma ruptura com o passado e como o “nascimento de uma nova pessoa”, o que implica
em novo comportamento e pela busca de “purificação” para algo como uma “redenção
moral”. O pentecostalismo, afirma a antropóloga, “tende a formar indivíduos mais
autoconscientes e disciplinados” (Mafra 2014: 174). Diante disto, Mafra apresenta uma
“ideologia semiótica de santidade”:

Esta ideologia está claramente enraizada na tradição cristã, onde se encontra,


por exemplo, a palavra hebraica Kadosh, que se refere simultaneamente à
ideia de um ser sagrado e separado. Esse duplo significado aparece no
catolicismo na noção de ‘santos’, pessoas excepcionais, que devem ser
veneradas e imitadas e que agem como intermediários em um panteão
cosmológico altamente hierarquizado” (Mafra 2014: 175)94

Enquanto no catolicismo os santos são pessoas excepcionais, no pentecostalismo, por


sua vez, a noção de santo é alargada a todos os fiéis, como anteriormente analisamos. Mas
como, de fato, essa santidade é mostrada? Um conjunto de fatores é necessário: além de
vestir-se, falar e viver de acordo com as normas de Deus e ser separado e diferente do mundo,
é preciso ainda externalizar certa “intimidade com Deus”. É nesse sentido que o “habitus de
santidade”, a matriz que cria esses comportamentos, incorpora no indivíduo tanto no nível da

94
Kadosh significa santo, em hebraico. É também a expressão utilizada para designar o nome de Deus dos
judeus. Kadosh significa também algo sagrado, ou um indivíduo que foi consagrado perante outras pessoas.
Existem muitas variações de Kadosh, Kadesh significa sagrado, em hebraico, Kidush significa santificação,
ou consagração, já Yom kadosh significa dia Santo, Kadish é uma oração litúrgica de origem aramaica que
louva a Deus e roga pela vinda do reino messiânico. Esta oração é característica dos filhos no funeral dos
pais e durante o ano de luto (Significados Online - http://www.significados.com.br/kadosh/).
109
prática, quanto na hexis, isto é, na postura corporal. Assim o “gosto de religião” estabelece no
mundo uma relação pré-objetiva, no sentido de Merleau-Ponty, tornando o corpo (bem como
suas indumentárias) o sujeito da percepção.
Diante disso podemos inferir que a santidade não só é experiencializada no corpo,
como também precisa ser provada a partir do corpo. A prova da intimidade com Deus está
presente no imaginário cristão desde os tempos de Jesus Cristo na terra: as suas maneiras de
viver, falar, agir e especialmente os milagres realizados agiram como demonstração física da
veracidade de uma aproximação maior com o divino, gerando a crença de quem o via.
Posteriormente, os seus discípulos fizeram uso das mesmas ações, legitimando-os como
herdeiros de Cristo. Desde então, fé e prova se tornaram categorias indissociáveis na
cosmologia Cristã, como ressalta Reesink em seus estudos sobre catolicismo: “fé e prova são
duas faces de uma mesma moeda, isto é, no contexto desse imaginário, são dois fatores que
dependem um do outro, que se contraem mutuamente, em que um fundamenta o outro”
(Reesink 2005: 272). Nesse sentido, podemos acrescentar que assim como “fé e prova” se faz
um par fundamental para o catolicismo, o par “santidade e prova” constitui-se, para a
Congregação Cristã, como componente essencial na construção do corpo santo. Enquanto no
catolicismo a “prova” é dada por ações milagrosas, extra-codianas e por pessoas
extraordinárias; no pentecostalismo a santidade é provada pelo testemunho dado na vida
cotidiana, na exemplaridade e na experiência dos fiéis comuns que buscam sempre a
santificação, reforçando seu compromisso com o sagrado. Dessa forma, é na experiência
corpórea – como salientou Csordas – que se manifesta a santidade.
Esse conjunto de práticas forma a ascese cristã: amar ao próximo, ser justo, honesto e
humilde. Essas ações atreladas à oração, jejuns e idas constantes à igreja desemborcarão no
que as fiéis chamam de “comunhão com Deus”.

Ah minha filha, é difícil de explicar... Ter intimidade com Deus é quando a


gente sabe que Ele está falando com a gente. Deus só fala se a gente tiver
bem, com Ele e com o próximo. A gente recebe o Santo Espírito, é bom... é
maravilhoso (Selma, 65 anos)

Essa ascese rege o estilo de vida do fiel em todos os âmbitos, inclusive em momentos
informais. Em minha estadia em campo fui convidada para participar do aniversário de treze
anos de uma jovem da CCB. Era um almoço em sua casa e algumas outras pessoas da igreja
também estavam presentes, além de seus familiares não convertidos. Após o almoço, a
maioria das mulheres (e adolescentes do sexo feminino) se reuniu na sala da casa. O que era

110
inicialmente uma conversa sobre a festa e o quão rápido as crianças crescem hoje em dia,
passou a ser um culto. Tudo começou quando uma das mulheres da casa, que é também
organista da igreja, mostrou, orgulhosa, o “grande presente que Deus lhe tinha concedido”:
um órgão novo, “zerado” nas palavras da fiel. O único instrumento permitido e prestigiado
pelas mulheres da CCB foi destaque e o pontapé inicial para todas iniciarem um período de
louvor ao som da “benção” da irmã. Entre um cântico e outro, as irmãs contavam experiências
que tinham vivido. Dois depoimentos me chamaram atenção especial. Uma mulher, logo no
inicio do hino tocado, exclamou: “Eu senti de louvarmos este mesmo hino irmã, Deus Seja
Louvado!” e continuou “muitas vezes isso acontece comigo, Deus me diz os hinos que serão
louvados; às vezes eu estou congregando e penso ‘queria que o irmão cantasse tal hino’ e de
repente o irmão canta; veja se não é Deus falando!”.

3.2 O “Sentir de Deus”

Ao longo do texto, por várias vezes falamos da expressão “sentir de Deus”. Neste
momento pensamos ser importante aprofundar a discussão, ressaltando a importância desse
conceito fundamental para refletir a categoria santidade e que, numa perspectiva cosmológica,
se funda na busca, prática e prova de santidade, bem como em algumas diferenças de gênero
na incorporação do “sentir de Deus” a partir de nossos dados etnográficos. Essa expressão
geralmente se refere a quando Deus fala ao coração do fiel e para que tal fato aconteça é
necessário estar em “comunhão com Deus”, ou seja, estar fazendo o que Deus quer que o fiel
faça, e isto é prova de santidade. O contato com o sagrado e a santidade são, então,
materializados no corpo no momento em que o fiel tem a certeza de que Deus está falando ao
seu coração.
Analisamos, então, que, em primeiro lugar, a categoria “sentir de Deus” age como
prova de santidade, afinal só é possível sentir Deus à medida que se tem intimidade com Ele e
isto, por sua vez, só é possível quando se obedece às práticas de conduta que formam a ascese
cristã (que discutimos no tópico anterior), ou seja, só é possível sentir Deus quando se atinge
o nível de santidade. O testemunho de eventos que mostram a santidade individual a partir de
uma intervenção divina específica é imprescindível para a manutenção da mesma. Orar por
alguém doente e esse alguém receber a cura, ter revelações divinas e/ou profetizar e ver
cumprir, por exemplo, são provas materiais e cotidianas de santidade. Podemos considerar
também que, quanto mais provas de santidade forem apresentadas, mais prestigioso é o lugar

111
ocupado pelo(a) fiel. Alguns homens e mulheres são referidos como “verdadeiros
homens/mulheres de Deus”, ou que “quando oram Deus responde”. Assim, a quem Deus mais
“usa” como instrumento, mais santo é. Segundo a cosmologia da CCB, Deus pode “usar” uma
pessoa de diferentes formas; dentre elas podemos destacar: em glossolalia e profecias, na
revelação na Palavra95 e enquanto canta ou toca um instrumento96.
Admitimos que o “Sentir de Deus” se expressa nos corpos e é, de modo geral, a
capacidade de ter uma espécie de intuição, um sentimento que, independentemente de
raciocínio ou de análise, é dado por Deus ao fiel, fazendo-o saber fatos específicos de algo
ainda desconhecido. Esse fenômeno pode ser experienciado de diversas formas e, mais
especificamente, em nossos dados notamos uma distinção na forma como este “sentir de
Deus” é operado em corpos femininos e masculinos.
Quando o sentir significa manifestação de glossolalia, profecias e choros em lugar
público como a Igreja, essa categoria é caracteristicamente feminina. Em nossas observações
constatamos que a grande maioria das mulheres apresenta choro e manifesta glossolalia
durante os cultos, em momentos de louvor e oração, e, inclusive, vai à igreja “preparada” com
lenços e toalhinhas para esses momentos (se é que podemos inferir, previsíveis). Em contra
partida, os homens raramente manifestam emoções aparentes, eles geralmente mantêm a
postura, apenas dizem “glória Deus” e outras expressões afins, em um tom de voz quase que
invariante.
Por outro lado, quando observamos que a revelação através da Palavra Sagrada é
considerada também um “sentir de Deus” (e essa é uma das mais prestigiosas formas de
demonstração da santidade), transferimos a categoria para o campo masculino, já que essa
revelação através da Palavra é, para a CCB, o momento em que Deus se revela no momento
da pregação, dizendo ao palestrante algumas coisas pessoais sobre um ou mais indivíduos
presentes na igreja. Por exemplo: “Deus me revela agora que tem uma irmã que necessita
urgentemente pedir perdão a alguém da sua família...”97. No entanto, o direito de ministrar a
pregação é reservado aos homens, logo, esse tipo de revelação, dentro do templo, é
restritamente masculino. Assim, é permitido aos homens manifestarem sua santidade
publicamente, diante de todos no templo.

95
A “revelação na Palavra” se dá quando o fiel está lendo e explicando um trecho bíblico a outro(s) fiel(is) e
durante este ato, Deus fala algo específico ao fiel que discursa, fazendo-o entender melhor o significado do texto
e/ou revelando uma aplicação prática do texto na vida do fiel ouvinte. A revelação na Palavra pode, ou não,
acompanhar a glossolalia.
96
Neste caso, se percebe que o fiel está sendo usado por Deus quando o(s) ouvinte(s) é(são) sensibilizado(s) pela
música. Geralmente choram e/ou manifestam glossolalia.
97
Palavras do ancião que ministrava em um dos cultos que presenciei.
112
Assim sendo, percebemos que, dentro da igreja, mulheres e homens ocupam lugares
opostos na incorporação do sentir de Deus: aos homens são reservados ao controle emocional
(embora se emocionem, essa emoção é controlada); a posição prestigiosa de santidade – só os
homens têm o direito de subir ao púlpito (um lugar santo) e ministrar a Palavra de Deus para
toda congregação (uma atividade santa); a formalidade – somente o sexo masculino pode
ocupar cargos importantes e falar em nome da igreja. Enquanto que as mulheres ocupam os
espaços da emoção – elas que choram sem constrangimento, abraçam umas às outras; sua
santidade é demonstrada nos campos da informalidade e do não público98.

Homem Mulher

Revelação na Palavra Glossolalia e Choro

Razão Emoção

Formal Informal

Público Não-público

Entretanto, fora da igreja, como em momentos de lazer e nas “salinhas”, percebemos


que essa divisão não aparece tão claramente como dentro da igreja, de maneira que essas
características se misturam entre homens e mulheres. Por exemplo: tive oportunidade de
receber em minha casa a chamada “salinha”. Nesse culto doméstico, conduzido por um
colaborador da igreja, estavam presentes esse colaborador, sua esposa, sua filha e outra fiel da
igreja. No “momento ritual”, sem o palco e quantidade de pessoas da igreja, o homem
manifestou choro, glossolalia e profecias (característica majoritariamente feminina) e as
mulheres complementavam, mesmo que timidamente, o discurso bíblico (característica
majoritariamente masculina). Dessa forma, destacamos que o corpo segue técnicas e regras
específicas conforme o ambiente em que está, de modo que algumas características
tipicamente masculinas ou femininas podem se tornar fluidas.
Para concluirmos, um outro exemplo: na mesma reunião de aniversário mencionada
anteriormente, em meio aos louvores, houve choros, glorificações e manifestação de
glossolalia. Ao final, e só terminou quando já era hora de “cantar parabéns” para a garota,

98
Entendemos que na discussão sobre a posição ocupada por homens e mulheres existe toda uma literatura
específica, no entanto nossa proposta é apenas notifica-los e por isso não é do nosso interesse abordá-los
profundamente estes conceitos aqui. Contudo, o leitor pode ver: Aboim, (2007), Beauvoir (1974), Bourdieu
(1998), Jaggar (1983), Landes (1998), Mill (1988), Pateman (1983), Rosaldo (1974).
113
dona Selma, avó da aniversariante e dona da casa, me chamou num canto e com os olhos
ainda cheios de lagrimas me disse: “tá vendo minha filha, em que aniversário que você já foi
isso acontece? Deus se faz presente no meio dos deles, no mundo99 ninguém vê isso, não é
minha filha?” A fala dessa fiel salienta a separação e o reconhecimento de ser diferente,
confirmando o ethos cristão e a santidade, mesmo que fora da igreja e em uma situação
comum da vida cotidiana, como uma festa de aniversário. Mafra aponta que a conquista de
legitimidade social da pessoa pentecostal se realiza por meio de “um tipo de comportamento
coletivo exemplar, destinado a obter o reconhecimento do ‘povo pentecostal como um povo
santo’” (Mafra 2014: 180) e é no sentir de Deus que comunhão e santidade são demonstradas
e legitimadas, em lugares públicos ou privados, a seu modo.

3.3 Pureza e Perigo; Santidade e Pecado.

Após definirmos o conceito de santidade, vamos neste tópico apresentar como esta
categoria está inserida na prática religiosa das fiéis CCB. Para tal, vamos fazer uma breve
discussão teórica nos valendo da produção antropológica que trata sobre o tema. Pensando na
categoria “santidade” e afins, começaremos localizando-a na cosmologia da igreja citada,
fundamentados na teoria durkheimiana. Em seguida, baseando-nos nas ideias de Mary
Douglas (1966), mostraremos como algumas categorias opostas atuam para a manutenção da
ordem (no sentido cosmológico, isto é: em oposição ao caos – mundo do pecado, da
impureza), fazendo menção às noções de “puro” e “impuro”. Chamaremos atenção para o fato
de que essas categorias opostas se materializam no corpo, nos rituais e nos costumes dos fiéis
da Congregação Cristã no Brasil. Uma vez que etnograficamente a distinção entre pecado e
santidade se faz fundamental e estruturante para a CCB, neste sentido, para refletir sobre isto,
cabe aqui utilizar os autores mencionados como instrumentos para pensar essas categorias
opostas.
Em contato com as obras de Robertson Smith e outros autores de sua escola – que já
consideravam a religião como um fenômeno social e cujas funções eram manter a unidade do
grupo e garantir as ideias fundamentais – Durkheim aponta que, muito mais que a crença em
uma divindade, o que define a existência da religião é a divisão cognitiva do mundo em
“sagrado” e “profano”. De acordo com o autor francês, a religião seria a organização das
crenças e ritos relativos ao sagrado. Assim, em 1912, Durkheim afirma:

99
O “mundo” neste sentido se refere às todas as pessoas que não partilham da fé cristã.
114
uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a
coisas sagradas, quer dizer, separadas, interditas, crenças e práticas que
unem numa mesma comunidade moral chamada igreja, todos os que a elas
aderem (Durkheim 1936: 32)

A religião articula crenças (representações) e rituais (modos de ação determinados)


que têm o efeito de criar entre indivíduos afinidades sentimentais que constituem a base de
classificações e representações coletivas. Dessa forma, as cerimônias religiosas cumprem um
papel importante ao colocarem a coletividade em movimento para sua celebração: elas
aproximam os indivíduos, multiplicam os contatos entre eles, os tornam mais íntimos e por
isso mesmo, o conteúdo das consciências muda. E sendo ela um “sistema de crenças e
práticas” é, então, vista como um fenômeno coletivo em que ele procura mostrar de forma
concludente que não pode haver crenças morais coletivas que não sejam dotadas de um
caráter sagrado. Sua existência se baseia numa distinção essencial entre fenômenos sagrados e
profanos. A dualidade do sagrado e do profano para Durkheim é o que faz a religião ter um
caráter de realidade intelectual, e os rituais fazem ter uma força moral; são as entidades
divinas, na cosmologia do grupo, que fazem o seguidor viver sabendo dos limites entre o
certo e o errado.
Embora não seja do nosso interesse utilizar profundamente a teoria do social
apresentada por Durkheim, esse autor se faz importante no sentido em que percebemos o
deslocamento do fenômeno religioso para um lugar de destaque na vida social, bem como
para entender a origem da moral e das categorias do pensamento, uma vez que Durkheim
elabora sua teoria geral a partir de um campo específico. Assim, tomando nota de que a
análise durkheimiana se fundamenta, de fato, a partir da tradição judaico-cristã, nos é
interessante abordar seus estudos para pensar essa matriz religiosa.
Ao levarmos em consideração que a religião influencia fortemente a vida social,
podemos afirmar que a religião influencia também o estilo de vida do fiel. Como mostramos
nos capítulos anteriores, a Congregação Cristã no Brasil possui normas e costumes peculiares
que regem a vida dos seus seguidores. Essas regras são desenvolvidas para obtenção da
ordem, ou seja, para o desvio das causas de perturbação; já que ao cumprir as regras o fiel é
bem aceito na comunidade e adquire o status de santo. Contudo, ao desobedecer, o indivíduo
sofre repressão. Percebemos que algumas ações e rituais presentes na Congregação Cristã no
Brasil refletem essas categorias como parte de sua cosmologia e cooperam para a manutenção
da ordem na igreja de maneira que a estrutura organizacional se instaura através da estrutura
115
simbólica da crença religiosa e, assim sendo, evidenciam-se essas polaridades. Para nos ajudar
a entender melhor este ponto, teremos por base as ideias apresentadas por Mary Douglas
(1966) que chama a atenção para a classificação dicotômica de puro e impuro.
A antropóloga Mary Douglas, ao escrever “Pureza e Perigo” (1966) teve por objetivo
demonstrar que os rituais de pureza e de impureza, longe de serem aberrações, são atos
essencialmente religiosos e por meio deles são elaboradas e exibidas as estruturas simbólicas.
Conhecida por sua crítica incisiva às explicações utilitaristas, referentes aos fenômenos
econômicos, políticos ou morais de uma sociedade, Douglas atenta à importância simbólica dos
valores morais partilhados (Douglas 1966: 7). A autora baseia-se na herança deixada por
Durkheim, apresentada em “As formas elementares da vida religiosa”, ao desenvolver a ideia
de que a religião se manifesta para a manutenção da ordem social, ela não é senão uma parte
da ordem social geral. Durkheim afirmou que “o sagrado e o profano foram pensados pelo
espírito humano como gêneros distintos, como dois mundos que não têm nada em comum” e
similarmente a pureza e a impureza (Durkheim 1996: 51). Assim, da mesma maneira que a
dicotomia sagrado/profano, as ideias de puro/impuro cooperam também para a manutenção da
ordem social.
Nessa obra, a autora realiza uma larga explicação para crenças em higiene e poluição
ritual. Assim, Douglas analisa os rituais em algumas culturas, ponderando os conceitos de
pureza e sujeira e os pensando como parte de um “todo maior”, de uma unicidade funcional a
que se interagem de maneira harmoniosa e consistente. A ideia da pureza e do perigo é
utilizada como analogia para expressar uma visão geral de ordem social. Na obra em questão,
a autora aborda as dicotomias pureza/impureza, limpeza/sujeira, contágio/purificação,
ordem/desordem que são as constantes de uma temática que abrange desde alimentação e
higiene até religião e tabus sexuais. Inclui também as abominações do Velho Testamento e
religião de povos da Polinésia e da África Central, o conceito de pureza entre povos hindus e
costumes de índios norte-americanos, além de observações do cotidiano e interpretações de
preceitos cristãos.
A posição que a mulher ocupa na igreja, seja política ou mesmo física, e as restrições
corporais específicas ao gênero feminino são alguns elementos dicotômicos observados na
Congregação Cristã no Brasil.
Com a divisão dos assentos na igreja, como homens do lado direito e as mulheres
ocupando o lado esquerdo da igreja, podemos refletir sobre a interpretação direito/esquerdo e
a separação entre homens e mulheres. A relação direito/esquerdo há muito tempo está

116
presente na classificação estrutural da nossa sociedade. O lado direito, como sendo o lado
“correto”, o destro ganha destaque e renome. Por outro lado, o esquerdo, o sinistro, é tido
como o “errado”, “desajeitado”. Na Idade Média os canhotos, especialmente as mulheres,
eram considerados feiticeiros, bruxos apenas pelo fato de terem mais habilidade no lado
esquerdo. No cristianismo, passagens bíblicas fundamentam e reforçam esse pensamento. Um
exemplo está no livro bíblico do Evangelho segundo São Marcos, quando Jesus disse que “O
Filho do Homem está assentado a direita de Deus”100 como demonstração de poder,
autoridade e superioridade. O lado direito sendo impreterivelmente sagrado e o esquerdo
inevitavelmente profano reflete a polaridade hierárquica que domina a vida religiosa e se
impõe aos corpos (Hertz 1980). Quando perguntadas sobre o significado de sentarem
separados, as respostas se limitavam as frases: “é a doutrina”, “é o ensinamento” ou “pra ficar
mais organizado”. Contudo, de maneira analítica podemos afirmar que o fato se refere à
posição submissa ocupada pela mulher, historicamente construída e refletida no contexto
religioso, a partir da posição hierárquica ocupada pelo masculino.
Sobre as restrições corporais, que nos já são familiares, as normas são diversas.
Resumidamente: todas do sexo feminino, desde crianças a idosas, devem usar um estilo de
roupa que, de forma geral, implica em saia e blusas compostas. Não é permitido o uso de
shorts, bermudas, calças compridas, camisetas regatas ou que mostrem a barriga. É proibido
também todo e qualquer tipo de modificação corporal como o uso de maquiagem, joias
(exceto de formatura e aliança de casamento), piercings, tatuagens (permanentes ou
removíveis), corte e pintura do cabelo, uso de trajes de banho, como biquínis e maiôs. Nessas
regras podemos destacar duas polaridades: homem/mulher – pela permissão ou proibição
baseada no gênero, e a que nomeamos de “mulher santa” / “mulher do mundo” – a primeira
demonstrando pelo corpo sua pertença cristã e obediência às normas de Deus e da igreja,
enquanto que a segunda refere-se à impureza da vida não cristã.
O par santidade/pecado aparece fundamentando a vida religiosa.

Pecado é tudo aquilo que não agrada a Deus. Por exemplo, Deus mandou
amar o próximo, se você não ama, tá pecando. Deus mandou obedecer aos
mandamentos, às normas da igreja... Se você não obedece é pecado. E a
vaidade é pecado também, minha filha. As jovens da sua idade hoje só
querem andar quase peladas! Deus não gosta disto. O povo de Deus é
diferente. Como as pessoas vão saber que somos diferentes se andamos do
jeito que o “mundo” anda? Somos luz e sal da terra, devemos mostrar isso
(Selma, 65 anos).

100
Bíblia Sagrada, livro do Evangelho segundo São Marcos capítulo 14 versículo 62.
117
Dessa forma, as categorias direito/esquerdo e masculino/feminino (e a mulher
pura/impura) são elementos opostos que estruturam o pensamento religioso e nessa relação
entre esses elementos a experiência religiosa e as normas ganham sentido. Para Mary Douglas
(1966: 9):
A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a
ordem e a desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a
morte. Onde quer que as idéias de impureza estejam fortemente estruturadas,
a sua análise revela que põem em jogo estes profundos temas. É por isto que
o conhecimento das regras relativas à pureza é uma boa maneira de entrar no
estudo comparado das religiões. As antíteses de S. Paulo – sangue e água,
natureza e graça, liberdade e necessidade –, bem como a idéia de Deus do
Velho Testamento, podem ser esclarecidas pela interpretação que os
Polinésios ou os Centro-africanos dão para temas semelhantes.

Cada instituição religiosa desenvolve doutrinas específicas, e estas, por sua vez,
expressam suas crenças, a sua verdade. Essas doutrinas baseiam-se em manter a pureza,
especialmente, se entram em contato com diferentes culturas ou religiões ou quando
tendências contestadoras surgem no interior da religião. O Cristianismo pode ser considerado,
nessa perspectiva, herdeiro de uma tradição de pureza que já era fundamental no Antigo
Testamento.
Douglas ressalta que todas as sociedades, ocidentais ou não, possuem critérios para
evitar as “impurezas” e a existência destes conceitos cumpre a função de coerção social, ao
mesmo tempo em que expressa uma visão da ordem social. De acordo com Douglas nos
sentimos constrangidos e confusos ao ver sociedades que parecem não fazer separação entre
impuro e sagrado, pois não há nada nas nossas regras que sugira contato ou relação entre esses
segmentos. “Para nós os objectos e os lugares sagrados devem ser protegidos das impurezas.
O sagrado e o impuro são pólos opostos” (Douglas 1966: 9). Mas, de qualquer modo, esses
polos servem como agentes na estrutura da sociedade e atuam como pontos de manutenção da
ordem social – e também a ordem do corpo: se a sociedade está em perigo, do mesmo modo,
também ameaça o corpo.

The social body constrains the way the physical body is perceived. The
physical experience of the body, always modified by the social categories
through which it is known, sustains a particular view of society. There is a
continual exchange of meanings between the two kinds of bodily experience
so that each reinforces the categories of the other. As a result of this
interaction the body itself is a highly restricted medium of expression.
(Douglas 1973: 93 apud Vale de Almeida 2004: 4)

118
Com base nesse princípio, Mary Douglas discute os modos simbólicos e rituais nos
quais se classifica o mundo. O corpo humano é constituído por fronteiras tanto para fora
quanto para dentro. Isto é, as aberturas do corpo; também a sociedade tem uma forma, com
fronteiras externas, margens e estrutura interna. “Sujo” e “poluído” são coisas de fora, que
transcendem as fronteiras e as classificações aceitas socialmente no corpo e no mundo.
Baseada em análises dos usos metafóricos e metonímicos dos símbolos naturais na
reprodução da ordem social, em perspectivas estruturais, como a de Douglas, há o
reconhecimento de que os sistemas classificatórios também são usados para legitimar
hierarquias, diferenças e exclusões – de que pessoa e corpo não são prisioneiros de uma
determinação social absoluta (Vale de Almeida 2004).
Assim, manter a estabilidade significa controlar a desordem, a contaminação e a
poluição. O controle corporal é, em Douglas, o equivalente ao controle social. As noções
contemporâneas de impureza e limpeza não são o efeito do interesse sobre os
microrganismos, mas de interesses simbólicos. Para Douglas (1966: 6):

Tal como a conhecemos, a impureza é essencialmente desordem. A


impureza absoluta só existe aos olhos do observador. [...] As ideias que
temos da doença também não dão conta da variedade das nossas reacções de
purificação ou de evitamento da impureza. A impureza é uma ofensa contra
a ordem.

E o Cristianismo pode ser considerado, nesta perspectiva, herdeiro de uma tradição de


pureza, fundamental desde os tempos do Antigo Testamento, inclusive analisados pela própria
antropóloga. Neste sentido, analisaremos agora um ritual religioso que representa o ápice ou
um excesso do estado de pureza/santidade e que serve como paradigma para a vida do fiel: a
Santa Ceia.

3.4 Santa Ceia: Festa, ritual, performance e santidade

O culto de Santa Ceia é realizado uma vez por ano, segundo a doutrina da CCB, como
já foi anotado. Esse ritual simboliza a realização da última Ceia na última páscoa realizada
por Jesus Cristo pouco tempo antes de sua crucificação. Nessa celebração, Cristo ordenou que
os seus discípulos e todos quanto acreditassem nele lembrassem de sua morte e ressurreição,
refazendo a santa ceia como manifestação de sua fé e comunhão com Cristo e os irmãos.

119
A narrativa bíblica da Santa Ceia é descrita nos quatro evangelhos canônicos 101 e a
primeira epístola aos Coríntios102, escrita pelo apóstolo Paulo, inclui uma referência ao
evento, enfatizando sua base teológica sem fazer um relato detalhado da última ceia. Segundo
os evangelhos, Jesus reuniu os seus discípulos na época da páscoa para uma refeição.
Enquanto comiam, Jesus havendo dado graças a Deus, pegou o pão, abençoou-o e partiu-o
dividindo entre os discípulos e disse para que comessem daquele pão, pois era o seu corpo.
Semelhantemente, distribuiu o cálice e disse para beberem dele todos, pois era o seu sangue
que era derramado para remissão dos pecados da humanidade, representação do novo
testamento e da nova aliança. E continuou dizendo para que fizessem isso em memória do seu
nome, pois todas as vezes que comessem do pão e bebessem do vinho anunciariam a morte do
Cristo até que voltasse.103
A Santa Ceia foi ordenada por Jesus Cristo para que acontecesse por toda a
posteridade como uma lembrança viva de Sua morte e sacrifício na cruz pelos pecados da
humanidade. Por isso, até hoje a ceia é realizada em memória da morte de Cristo, lembrando a
obra de amor de Jesus por nós. Além disso, a Ceia é um momento festivo e de afirmação de
comunhão da igreja e fortalecimento espiritual dos membros.

Na Santa Ceia lembramos o que Jesus fez por nós, morreu na cruz, e a
promessa que Ele deixou, de voltar (Edna, 48 anos).

Embora a Bíblia não apresente explicitamente a periodicidade com que a Santa Ceia
deve ser realizada, na CCB esse culto é realizado apenas uma vez por ano. Nas palavras de
uma das informantes:

Tem muitas igrejas que fazem a ceia uma vez no mês, na igreja católica eles
tomam hóstias todo domingo... Mas na Congregação a gente só participa da
ceia uma vez por ano, afinal quantas vezes Jesus morreu? Só uma. Aí a
gente lembra da sua morte uma vez por ano! (Edna, 48 anos)

Neste trabalho, nossa perspectiva é abordar a Santa Ceia como festa, ritual e
performance.
Para esclarecer melhor o que de fato consideramos “ritual”, retornemos ao que foi
proposto por Durkheim, assinalados no tópico anterior: o pensamento religioso inclui dois
elementos – as crenças e os ritos. Sobre este último o autor afirma que “as representações
101
Mateus 26:17-30; Marcos 14:12-26; Lucas 22:7-39 e João 13:1-17:26
102
I Coríntios 11:23
103
Mateus 26:17-30; Marcos 14:12-26; Lucas 22:7-39; I Coríntios 11:23
120
religiosas são representações coletivas que expressam realidades coletivas; os ritos são
maneiras de agir que só nascem dentro de grupos reunidos e que estão destinadas a suscitar,
manter ou fazer renascer certos estados mentais desses grupos” (Durkheim 1966). O autor
distingue a) ritos negativos ou tabus – ritos que visam a limitar o contato entre o sagrado e o
profano. Preparam o iniciado para entrar no domínio do sagrado. Essa passagem é marcada
por abstinência sexual ou alimentar, esforços físicos e uso de vestimentas ou adereços
específicos; b) ritos positivos – ligados às festas. Associam comunhão através de ingestão de
elementos sagrados e gestos de oferendas. São periódicos (quaresma e ramadã); e c) ritos
expiatórios (purificação de crimes e faltas cometidas; penitência, castigo) – ritos de luto,
marcados por silêncio e gemidos, por injúrias corporais como o ato de sujar-se, bater-se, ferir-
se.
O antropólogo Aldo Terrin, por sua vez, marca que o rito envolve diversas variáveis:
teologia, fenomenologia, histórico religioso, antropologia, sociologia, etnologia e muitas
outras. O fato de o rito ser interpretado segundo cada uma dessas dimensões faz com que sua
definição possa abraçar o conceito mesmo de cultura. Etimologicamente, rito vem do
latim ritus, que indica ordem estabelecida.

O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá sentido do que é


importante e do que é secundário. O rito nos permite viver num mundo
organizado e não-caótico, permite-nos sentir em casa, num mundo que, do
contrário, apresentar-se-ia a nós como hostil, violento, impossível (Terrin
2004: 19).

Esse autor também observa que, em uma sociedade moderna cada vez mais
dessacralizada, deve-se admitir que os ritos seculares e profanos assumem uma densidade
cada vez maior. No termo “ritualização” já está incluído um processo de metaforização dos
ritos e que, portanto, ao reconhecer os ritos profanos como substitutivos dos ritos religiosos
está incluída na semantização do próprio termo ritualização, entendido como processo
estendido a vários fenômenos análogos aos considerados religiosos (Terrin 2004: 22).
Na Congregação Cristã no Brasil, o culto de Santa Ceia pode ser considerado um ritual
que classifica e estabelece ordem, como definiu Terrin, e um rito positivo em termos
durkheimianos. É também um rito simbólico, já que o rito é uma ação que se realiza com
objetos e gestos. Como afirmou-nos o antropólogo C. Geertz, o símbolo “é usado para
qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma
concepção – a concepção é o significado do símbolo” (Geertz 1978: 105). No rito se fundem o

121
mundo imaginado e o mundo vivido. O rito tem a função de recriar periodicamente um ser
moral do qual a sociedade depende, tal como ele depende da sociedade. Assim sendo,
vejamos o procedimento desse ritual. Descreveremos os dados recolhidos na celebração da
Santa Ceia realizada no dia 08 de dezembro de 2013, realizada na Congregação Cristã do
Brasil no Recife-PE. De acordo com alguns informantes, os procedimentos do culto são
sempre os mesmos.
A ornamentação da igreja não era diferente dos dias comuns, mas os fiéis se vestiam
de maneira muito elegante e havia maior número de pessoas nesse culto que em outros
frequentados no decorrer desta pesquisa; a maioria eram adultos e idosos, mas havia um
número considerável de pessoas jovens e poucas crianças. O culto de Santa Ceia é iniciado
como qualquer outro culto da CCB104. Primeiro é tocado o “hino do silêncio” que é uma
música instrumental tocada antes do ancião subir ao púlpito e começar a cerimônia. Em
seguida, o ancião diz “Deus seja louvado”, todos dizem amém e o ancião indica o número do
hino do hinário da CCB que será cantado. Todos se levantam para cantar o primeiro hino,
enquanto os demais são entoados sentados. Todos os hinos se referem à Santa Ceia. Depois de
cantar três hinos, todos se ajoelham e oram. Em seguida, o ancião lê um trecho da Bíblia
referente à Santa Ceia e comenta-o rapidamente, destacando a necessidade do ritual e de estar
em comunhão com Deus e os irmãos. Logo depois informa as regras105 para participar do
ritual, seguida de uma oração.
Nas palavras de uma informante:

Primeiro catamos alguns hinos adequados para santa ceia e são muito
solenes. Depois os irmãos do ministério explicam os motivos de tomar a
santa ceia e quem deve e quem não deve tomá-la. Depois é feita orações
para abençoar um só pão que após a oração passa a representar o corpo de
Jesus Cristo e o vinho que após a oração representará o sangue de Jesus.
Depois com um só cálice todos tomam o vinho e com um só pão todos
comem. (Lívia, 38 anos)

O pão e o vinho são colocados numa mesa coberta por uma toalha branca.
Inicialmente, está sobre a mesa um pão; somente durante o cântico do último hino antes da
oração é que um irmão, cooperador, parte o pão em pequenos pedaços. Após a oração, por

104
Descrição do culto na CCB estão apresentadas de maneira mais detalhadas no primeiro capítulo deste
trabalho.
105
As regras citadas pelo ancião foram: Para o público geral: a) ser batizado na CCB e b) estar em comunhão
com Deus e os irmãos. Para os fiéis participantes: a) que todos tentassem se acomodar dentro do templo, b)
levantar ordenadamente até a frente do púlpito onde é realizado o ponto máximo do ritual (comer o pão e beber o
vinho), c) ir primeiro as mulheres, depois os homens e por ultimo o ancião e d) ter cuidado com as crianças –
para que não atrapalhassem.
122
meio da qual são abençoados o pão e vinho, o ancião anuncia o número de um hino do hinário
da CCB referente à Santa Ceia, enquanto um grupo de irmãs se dirige para o púlpito e se
ajoelha frente à mesa. Um dos dois colaboradores pega uma bandeja com os pedaços de pão e
distribui para cada mulher. Em seguida as mulheres bebem um pouco do vinho dado pelo
colaborador numa taça. A orquestra toca mais uma estrofe e as pessoas voltam aos seus
lugares, dando espaço para mais um grupo. O mesmo processo se repete com todas as
pessoas, primeiro as mulheres e depois os homens. Por fim, os dois colaboradores e o ancião
comem do pão e bebem do vinho. No momento de comer e beber, os fiéis – tanto os que estão
recebendo o pão e o vinho quanto os que estão sentados cantando – choram, falam línguas
estranhas, exaltam a Deus falando frases como “Tu és maravilhoso”, “glória a Deus nas
alturas” e “aleluia”. Ao término, o ancião agradece a Deus pelo culto e anuncia a quantidade
de fiéis que participaram do ritual – 179 pessoas. O ritual é encerrado com um hino final e
com as palavras do ancião “Deus seja louvado”, acarretando um “amém” coletivo.
O ritual da Santa Ceia é realizado de igual modo em todas as CCBs. Diante disso,
faremos aqui alguns breves comentários e comparações do ritual referido entre a Congregação
Cristã no Recife-PE e a Congregação Cristã sede no bairro do Brás, São Paulo-SP, tendo por
base a dissertação de mestrado da socióloga Ivani Camargo. A autora inicia a descrição da
parte devocional do rito e anunciando as regras básicas para participação do culto:

Na Congregação Cristã do Brasil, a celebração da Ceia é o principal ritual.


Inicia-se o culto com os hinos; segue a leitura bíblica, a oração e a
distribuição do pão e do vinho. Só pode participar da ceia quem é batizado
na denominação e segue a ‘doutrina’, ou seja, os usos e costumes da
denominação (Camargo 2000: 91).

Continua com a descrição do rito propriamente dito:

Na frente, em uma mesa, está colocado o pão e o vinho. As pessoas


aproximam-se em grupos, ajoelham-se, recebem o pão que é cortado e
distribuído junto com o vinho. Oram por alguns minutos. Alguém diz Glória!
Glória! Ou começa a falar em línguas estranhas e o ancião pede que o irmão
se controle. Após alguns minutos em oração, a banda toca a estrofe de um
hino, as pessoas se levantam e voltam a seus lugares. Outro grupo chega,
ajoelha-se e tudo se repete com muita contenção. Os ajudantes organizam os
grupos que chegam como cordeirinhos a serem conduzidos. O mesmo
movimento se repete por horas, pois a ceia é celebrada apenas uma vez por
ano. Nesse dia demorou duas horas e meia para que toda ‘irmandade’
recebesse o pão e o vinho.
Na Congregação Cristã do Brasil, o ritual é triste e monótono. Os fiéis
andam pelo templo com vestimentas bonitas e aparentemente caras,
enquanto o ancião adverte que Deus quer santidade e modéstia. Insiste em
dizer que a igreja não é passarela da moda. [...] Nesta denominação o corpo
123
é contido, não age, não expressa. A contenção demonstra santidade, ordem e
decência nos rituais (Camargo 2000: 92 – grifo nosso).

A base do ritual é a mesma em ambas as igrejas. Por ser um ritual anual, todos os
membros da igreja procuram estar presentes, vestir roupas novas e “estar em santidade”. Esse
termo foi usado por uma das minhas informantes quando dizia que não só para a ceia, mas em
todo tempo, deviam estar em santidade, e para ela isto era sinônimo de não estar intrigado
com alguém, estar obedecendo às normas de Deus – sendo justo, amando ao próximo, não
mentindo, entre outros – e orando bastante. Um ponto interessante observado por Camargo
(2000) foi a insistência do ancião em reforçar a ideia de que a “vaidade” é sinônimo de
pecado, impureza que não pode estar presente na igreja. A vaidade, principalmente percebida
pelas roupas, enfatiza o controle das técnicas corporais como demonstradores de santidade,
uma vez que essa qualidade é representada pela humildade e desprendimento das coisas
mundanas. Neste sentido, discordamos da autora quando afirma que “o corpo não age, não
expressa”. Ao contrário, o corpo age e expressa a busca incessante pela santidade e a
“decência ritual” é demonstradora de comunhão com Deus e obedecer às normas não é
sinônimo de repressão para as mulheres, mas de liberdade, de escolher ser como Deus quer
que sejam:
Para ir para o céu, temos que ser como Deus quer que a gente seja. E eu
quero ser assim. Não me importo de me vestir assim, de falar assim e fazer
tudo isso [se referindo às regras impostas pela igreja], Jesus já me libertou
dos desejos mundanos (Priscila, 23 anos).

Por fim, embora a socióloga tenha percebido o ritual como “triste e monótono”, choro,
glossolalia e expressões de adoração a Deus são, a meu ver, características de um ritual
movimentado, barulhento e alegre. Além disso, na cosmologia do fiel é um ritual festivo, de
alegria, em que cada momento é único e o ápice da manifestação de santidade.

Todos os cultos a gente sente a presença do Santo Espírito de Deus, mas a


Santa Ceia é especial. É um momento único. Eu não sei se vou estar no
próximo culto, e mesmo que esteja, será diferente. É uma alegria na alma
que não dá pra explicar (Simone, 43 anos).

A reunião da Santa Ceia representa a comunhão dos fiéis para com Deus; nela os
membros da igreja recebem pequenos pedaços de pão e um pequeno copo com, de acordo
com a entrevistada, suco de uva. O pão estaria simbolizando o corpo de Jesus Cristo quando
foi crucificado e o suco de uva, que os fiéis chamam de “cálice”, representa o vinho (já que a

124
igreja proíbe bebidas alcoólicas) que simboliza o sangue que foi derramado por Cristo no
momento de sua morte. Segundo a cosmologia cristã protestante, só participa desse ritual o
fiel que tiver plena certeza que está cumprindo todas as regras de Deus e da igreja, isto
significa estar em “comunhão com Deus”. Esse ritual culmina com a manifestação prática de
santidade e afirmação de que o corpo106 está “puro”. Neste momento é importante recuperar a
categoria de embodiment, discutida por Csordas, demonstrando, neste sentido, que a santidade
ultrapassa as categorias opostas de puro e impuro e não se reduz à dualidade, sendo, então,
numa perspectiva dialética apontada pelo autor, a materialização da santidade e da ideologia
da igreja no corpo.
Victor Turner (1988) em "The anthropology of performance" – editado pelo diretor
Richard Schechner que mais tarde elaboraria ele mesmo um modelo de análise de
performances culturais inspirado nas ideias de Victor Turner – apresenta o ritual como uma
arte do fazer, um fenômeno social que envolve agente, atos e representação. Para esse autor, a
repetição é característica fundamental para o ritual mágico ser operado. Turner traz os
conceitos de performance e experiência, discutindo inicialmente suas divergências entre seu
ponto de vista e o de autores como o próprio Schechner que enfatizam a relevância dos sinais
não verbais na comunicação. Nesse ponto, Turner reafirma sua teoria de communitas como
princípio ontológico, que embora não se realize, dela provêm os processos e deles as
possibilidades de ordenações (Cavalcanti 2013: 424-425). O autor continua apresentando que
"performances, particularmente performances dramáticas, são manifestações por excelência
do processo social humano", tornando o drama "a unidade empírica do processo social de
onde derivaram e continuam a derivar os vários gêneros da performance cultural" (Turner
1988: 92).
Baseado em Dilthey, Turner prossegue afirmando a performance como “um processo
ritual no qual uma experiência se consuma e o sentido pode ser apreendido sempre de modo
relativo, malgrado todas as tentativas de cristalização do sentido vivido” (Turner 1987: 98
apud Cavalcanti 2013: 425). Com base nisto, consideramos a Santa Ceia da CCB como um
ritual, e uma ritual performático. De acordo com Turner, a performance é 1) uma narrativa, 2)
uma experiência onde os indivíduos participantes têm consciência do processo e 3) em que a
presença de uma audiência se faz necessária para a realização do evento dramático da
experiência.

106
E o “corpo”, nesse sentido, ultrapassa a definição biológica estrito senso, e dá lugar a interpretação num
sentido holístico, uma vez que mente e coração também são representações deste estado de pureza.
125
Ampliando a discussão, Singer (1972) apresenta o termo “Performance Cultural” – em
seus estudos realizados na região de Madras, no sul da Índia, num capítulo intitulado "When a
great tradition modernizes: an anthropological approach to Indian civilization" – como
sendo a representação da cultura pela prática ou experiência performática. O autor observou
uma centralidade e recorrência de certas ações da vida dos indianos. A essas práticas o autor
chamou de "performance cultural", uma vez que, segundo ele, os indianos têm suas culturas
encapsuladas em performances, mesmo que discretas.
Singer enumera algumas condições para que um ato seja considerado performance: a)
é preciso ter um tempo limitado para a exibição performática; b) uma programação
organizada de atividades; c) um conjunto de artistas; d) o público; e) um lugar específico; e f)
uma ocasião apropriada para a performance. Nesse sentido, a Santa Ceia na CCB pode ser
considerada uma performance cultural. O ritual tem começo, meio e fim com tempo
determinado para cada situação; uma série de ações é vivida em sequência obrigatória; artistas
e público se confundem dependendo do momento do culto e a igreja é o local mais
apropriado. Todas essas características são apresentadas no ritual que, por sua vez, pode ser
considerado festivo.
Festa é antes de tudo uma quebra da rotina do quotidiano e, nesse sentido, a Santa Ceia
na CCB é um ritual celebrado anualmente que provoca modificações na rotina dos membros
da igreja. A Santa Ceia é o ritual em que todo o esforço cotidiano de santificação se manifesta
e culmina no ponto máximo da santidade e, na cosmologia da CCB, muitas coisas acontecem
– especialmente no dia da Santa Ceia – para que a comunhão com Deus e com o próximo seja
perdida.

É uma vez só no ano, a gente tem muito tempo pra se preparar. Se tiver com
raiva de alguém, ir lá pedir perdão... essas coisas... Ceia é que nem festa,
tem irmã que compra até roupa nova pra ir na Ceia... E minha filha, no dia
da Ceia tudo acontece: carro quebra, vem gente pra te aperrear, tudo pra
fazer a gente sair da graça [risos]. Mas Deus é bom e não deixa nada de
ruim acontecer e no final a gente tá lá agradecendo a Ele (Selma, 65 anos)

126
De acordo com Roberto Motta107 (2012), em "Sacrifício e festa no Xangô de
Pernambuco" a festa frequentemente implica numa reafirmação da estrutura, da função, do
prático e do útil; reafirmando assim a tradição do culto.
Sobre festa, o antropólogo Roberto Motta afirma que festa é alegria coletiva e resulta
da posse de algum objetivo fundamental. A festa consiste numa experiência primariamente
emocional, mas também um momento de reconhecimento, que supera a utilidade econômica
e/ou psicológica. A Santa Ceia na CCB é uma festa, no sentido de que é realizada anualmente
e foge do cotidiano, exigindo uma preparação especial para esse dia, como vimos
anteriormente na fala da fiel. É festa porque naquele momento a identidade religiosa é
reafirmada e a comunhão com Deus e com os irmãos e os princípios de santidade são
manifestos. Muitos participantes planejam e reorganizam suas atividades pessoais adaptando-
as ao dia e hora do ritual.108
Quanto ao sacrifício, Motta afirma que implica numa espécie de identificação dos
sacrificantes com o deus e com a comunidade. “A identidade jorra do sangue do sacrifício e
da emoção que o acompanha” (Motta 2012: 174). Ao comer do pão que representa o corpo de
Cristo e beber do vinho que é referente ao sangue, os participantes da Santa Ceia relembram o
sacrifício primordial da fé cristã: a crucificação. Embora o sacrifício seja ressignificado na
cosmologia do fiel CCB, esta ideia de sacrifício nos é interessante à medida que nos permite
pensar a Santa Ceia como um ritual festivo sacrificial tanto em memória do ato de Cristo na
cruz, quanto na externalização do sacrifício feito pelos fiéis, ao passo que se abstêm de uma
vida mundana em prol da vida cristã, santificada.
Quando o autor relaciona sacrifício e festa no xangô de Pernambuco, podemos fazer
uma correlação com o ritual da Santa Ceia na CCB. O sentido de festa é o mesmo: um
momento de alegria e reconhecimento, reafirmação da identidade religiosa e de experiência
emocional. Quanto ao sacrifício, embora no xangô pernambucano seja um sacrifício prático
realizado no momento ritual, na CCB o sacrifício do ritual é simbólico. Esse sacrifício
simbolizado na Santa Ceia atua como ponte de ligação entre a divindade e os praticantes, uma
vez que, no ritual, todos são parte do corpo de Cristo. E por este ser um corpo considerado
santo, todos ali presentes precisam explicitar sua santidade individual, o que nos permite
pensar a Santa Ceia como ritual de manifestação da pureza.

107
Influenciado por Waldemar Valente (1955) e baseando-se teoricamente em autores como Marvin Harris e
Robertson-Smith, o antropólogo pernambucano corrobora para o alargamento teórico sobre as religiões afro-
brasileiras e os conceitos de festa e sacrifício.
108
Algumas informantes comentaram que a maioria das pessoas investe em vestimentas e calçados novos,
especialmente para a ocasião.
127
Além de festa e performance, o culto de Santa Ceia é também um ritual baseado na
ideia de pureza. Como anunciamos anteriormente, Mary Douglas (1966) apresenta os rituais
de pureza e impureza e as atitudes e ações de busca pela santidade como meios de representar
essas dualidades, presentes na cosmologia da Congregação Cristã no Brasil. Douglas afirma
que pensar pureza implica assimilar a poluição como experiência correlata e, em seguida,
observar que nessa correlação entre pureza e poluição há o perigo à continuidade das
estruturas de um sistema social. Os rituais de pureza e de impureza dão certa unidade à nossa
experiência, de forma que a sujeira é desordem e o pensar sobre as coisas impuras deve passar
por uma reflexão sobre a ordem e a forma e a não forma.
Para a Congregação Cristã no Brasil, o culto de Santa Ceia pode ser entendido como
um rito que permite a externalização da pureza. Nesse culto é expressa a comunhão com Deus
e com os irmãos e aqueles que não participam são considerados “impuros”. Em uma
entrevista informal, uma das irmãs participantes, comentou: “Nós nos preparamos o ano
inteiro... Temos que estar sempre em paz e não podemos sair da graça, se não, como
poderemos participar da ceia? Não pode! Tem que vir!”. Esse fato aponta para a preocupação
na manutenção da ordem e pureza como condição primordial para a participação do ritual,
uma vez que a Santa Ceia, segundo a doutrina cristã, não deve ser tomada de qualquer forma.
Os participantes são orientados a examinar o coração e a consciência antes de participar, uma
vez que o ritual é manifestação de santidade e comunhão com Cristo e os demais irmãos. E é
nesse exame que os participantes avaliam seu comportamento, confessando os pecados e
afirmando sua santidade. Baseados nas passagens bíblicas: “Examine-se, pois, o homem a si
mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o
corpo, come e bebe juízo para si.”109 e “Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do
Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor.”110 o ritual da Santa Ceia
torna-se também um ritual que mostra o excesso de santidade e a manutenção da pureza, à
medida em que representa um contínuo entre o esforço cotidiano de busca pela santidade e da
manifestação máxima, a consumação desse sacrifício no momento ritual.
Neste capítulo primeiramente discutimos o conceito de santidade sob uma abordagem
histórica do Cristianismo, ressaltando esta categoria na cosmologia da Congregação Cristã no
Brasil. Assinalamos a necessidade de exemplaridade e testemunho, chamando a atenção para
a obrigatoriedade de manutenção desta santidade materializadas em ações corpóreas. Essas
atitudes são incorporadas a partir de um conjunto de regras que indicam o “puro” e o
109
1Co 11. 28-29
110
1Co 11. 27
128
“impuro”. Discutimos que a ideia de santidade é manifesta na experiência corpórea, por isso
analisamos o sentir de Deus como categoria fundamental para demonstrar e legitimar a
comunhão com Deus. Por fim, destacamos o ritual da Santa Ceia como ponto culminante da
santidade incorporada no estilo de vida das mulheres CCB.

129
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito mais do que um estudo sobre o corpo feminino inserido numa igreja pentecostal
clássica, buscamos, durante as páginas que compõem esta dissertação, analisar como esse
corpo é construído e performado. Partimos do pressuposto de que a corporeidade é uma
construção simbólica e cultural, isto é, que no corpo estão incorporados habitus e gostos que
formam os indivíduos e revelam suas crenças; e, a partir dos dados etnográficos colhidos no
trabalho de campo realizado em uma comum da Congregação Cristã no Brasil no Recife,
argumentamos que é no corpo que a experiência e a performance da religiosidade – que sua
cosmologia – é materializada por meio da atuação dialética entre as categorias nativas de
santidade, sentir de Deus e comunhão.
Assim, após uma descrição intensa, com o levantamento histórico, um panorama
numérico da igreja no Brasil e apresentação geral da doutrina e costumes da Congregação
Cristã no Brasil, apontamos que desde sua inauguração em 1910, o estilo doutrinário das
Congregações filiadas à sede no Braz-SP foram pouco alterados, permanecendo o caráter
tradicionalista e sectarista. Com normas específicas sobre organização eclesiástica,
procedimentos litúrgicos e comportamento, mostramos as características que fazem da CCB
uma das igrejas pentecostais clássicas que ainda permanece sob uma rígida norma e controle
do corpo. Essa ascese solidifica a crença religiosa e estende-se para além do momento
litúrgico no tempo, agindo diretamente na vida cotidiana do fiel. É neste momento que o
corpo toma lugar central.
Vimos, em seguida, que todo grupo social, inclusive a igreja, possui, produz e
reproduz uma forma aceita do corpo e de seus usos, produzindo também uma representação
social do corpo. Essa representação social, que é ao mesmo tempo construída e herdada, passa
logo a se constituir em modelo legítimo do corpo. Sendo assim, a teoria antropológica nos
ajudou a refletir sobre como as técnicas corporais evidenciam, por meio de um sistema
simbólico representado no corpo, não só uma identificação religiosa, mas sobretudo a
experiência com divino. Discutimos que uma “distinção de religião” ou “gosto religioso” é
produzido pelo habitus religioso das mulheres da CCB, pois, segundo elas, o corpo é uma
espécie de “casa” ou “templo” de Deus e por isso exige cuidados especiais. Dessa forma, o
corpo deixa de ser apenas físico e passa também a performar a fé professada por elas, e é por
essa crença que a dedicação para o cumprimento das regras é válida para as mulheres. Assim,

130
notamos que o corpo da mulher na Congregação Cristã no Brasil, adornado com suas
indumentárias, reflete uma característica perceptiva e pré-objetiva da religião à qual
pertencem e, assim, esse embodiment faz a marcação de diferença entre “mulher santa” e as
“outras mulheres”. A construção do corpo religioso se dá, portanto, por meio desse conjunto
de práticas que regulam os corpos.
A partir disso, detalhamos as técnicas corporais, bem como as indumentárias, que
contribuem para a formação desse corpo religioso feminino. Ressaltamos, dentre outros
pontos, que: a) os corpos, no momento de culto e “preenchimento” do Espirito Santo, parecem
obter maior liberdade (eles choram, balançam e falam alto) e é esse conjunto de experiências
corpóreas – essa incorporação – que evidencia e legitima o contato com o sagrado; b) as
vestimentas, fazendo atenção ao véu, constituem numa fonte carregada de significados, já que
o padrão corporal obedecido pelas mulheres da CCB manifesta, dentre outras coisas, a
pertença ao grupo religioso e sua constante busca pela santidade, na negação dos padrões
mundanos; e c) na participação das mulheres na igreja que, embora seja restrita, ganha
destaque, na cosmologia nativa, o cargo de “organista” que, por ser uma atividade unicamente
feminina, reflete como sendo a expressão máxima da ascese e racionalidade na mulher –
tendo que ser sempre referência de santidade.
Dessa forma, a santidade ocupa lugar de destaque como categoria essencial para se
entender a lógica da igreja e pensarmos a construção do corpo religioso feminino na
Congregação Cristã no Brasil. Notamos que a prática constante do ethos cristão e da ascese
protestante são resultados da busca pela santidade e que a manutenção da pureza se sobressai
quando a igreja em questão percebe a necessidade de manter a ascese que fundamenta sua
crença; isto, por sua vez, gera mecanismos de “proteção” contra elementos considerados
estranhos ou impuros que possam abalar a ordem e instaurar o caos. Este quadro nos leva,
obrigatoriamente, à performance corporal em busca da santidade (e de demonstrá-la), além de
nos permitir pensar sobre as técnicas corporais uma das vias para analisar a religião, do
mesmo modo que a religião é uma via para entender essas práticas corporais. Para serem
“santas”, as fiéis precisam atender corretamente às normas e doutrinas estabelecidas pela
igreja, pois é no corpo que a categoria santidade é experienciada e performada. A santidade,
além de ser externalizada no exemplo e no testemunho de vida, necessita também de
manutenção, e esta se dá na permanência cotidiana de um estilo de vida santo, que obedece às
normas de Deus e da igreja.

131
Estando a santidade protestante baseada na ética moral e em um determinado estilo de
vida, inferimos que a categoria sentir de Deus age, ao mesmo tempo, como categoria
fundamental e prova de santidade. Demonstramos que o sentir de Deus – a intimidade que o
fiel tem com o divino –, embora seja uma categoria geral, opera diferentemente nos corpos
masculinos ou femininos, sendo os primeiros ligados ao racional, à palavra, ao formalismo e
ao público; enquanto os corpos femininos estão atrelados ao emocional, ao informal e ao
privado. Entendemos, por fim, que é no sentir de Deus que comunhão e santidade são
demonstradas e legitimadas.
Diante da dinâmica etnográfica, pensamos a santidade a partir das categorias opostas
presentes na cosmologia do grupo estudado e chamamos atenção para o fato de que essas
categorias opostas se materializam no corpo, nos rituais e nos costumes dos fiéis da
Congregação Cristã no Brasil. Analisamos que, embora os dados etnográficos tenham
apontado, em primeiro nível, para uma abordagem teórica mais dualista, entendemos a
realidade social numa perspectiva antidualista, que não se reduz a categorias opostas tão bem
definidas. A ideia de “puro” versus “impuro” está presente de maneira acentuada no ritual da
Santa Ceia, que representa o ápice do estado de pureza/santidade e que serve como paradigma
para a vida do fiel. Esse ritual festivo e performático externaliza a comunhão com Deus e com
os outros fiéis e atua como prova máxima de santidade.
Por fim, ao longo do texto, e seguindo a lógica etnográfica, procuramos demonstrar o
argumento de que a construção do corpo religioso das mulheres da CCB se fundamenta na
relação dialética entre as categorias corpo, santidade e sentir de Deus. Em termos analíticos,
ousamos dizer que essa dialética pode ser aplicada como modelo interpretativo para pensar a
lógica da CCB. Assim, em vista dos dados e reflexões apresentados, acreditamos ter
contribuído na produção do conhecimento antropológico sobre o campo religioso em questão,
etnografando práticas, costumes e ritos de um grupo religioso, alargando as reflexões sobre a
Congregação Cristã no Brasil, ainda tão reduzidas, bem como sobre o contexto pentecostal
brasileiro.

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139
ANEXOS

Anexo I: CCB no mundo

Número de
Continente
País Nomenclatura da Casa de Oração no País Casas de
Oração

África África do Sul Christian Congregation in South Africa 1

África Angola Congregação Cristã em Angola 27

África Cabo Verde Congregação Cristã em Cabo Verde 1

África Costa do Marfim Congregation Chrétienne en Côte d'Ivoire 1

África Ghana Christian Congregation in Ghana 3

África Guiné-Bissau Congregação Cristã em Guiné - Bissau 3

África Malawi Christian Congregation in Malawi 38

África Moçambique Congregação Cristã em Moçambique 445

África Nigéria Christian Congregation in Nigeria 2

República
Congregation Chrétienne en République
África Democrática do 79
Démocratique du Congo
Congo

República do Congregation Chrétienne en République du


África 10
Congo Congo

São Tomé e
África Congregação Cristã em São Tomé e Príncipe 10
Príncipe

África Tanzânia Christian Congregation in Tanzania 16

África Uganda Christian Congregation in Uganda 23

África Zimbabwe Christian Congregation in Zimbabwe 1

América Central Costa Rica Congregación Cristiana en Costa Rica 3

América Central El Salvador Congregación Cristiana en El Salvador 1

América Central Guatemala Congregación Cristiana en Guatemala 2

América Central Haiti Congregation Chrétienne en Haiti 2

América Central Honduras Congregación Cristiana en Honduras 5

América Central Nicarágua Congregación Cristiana en Nicaragua 3

140
América Central Panamá Congregación Cristiana en Panama 2

República Congregación Cristiana en la Republica


América Central 3
Dominicana Dominicana

América do Norte Canadá Christian Congregation in Canada 8

América do Norte Estados Unidos Christian Congregation in the United States 58

América do Norte México Congregación Cristiana en Mexico 8

América do Sul Argentina Congregación Cristiana en la Argentina 92

América do Sul Bolívia Congregación Cristiana en Bolivia 63

América do Sul Brasil Congregação Cristã no Brasil 19.155

América do Sul Chile Congregación Cristiana en Chile 49

América do Sul Colômbia Congregación Cristiana en Colombia 5

América do Sul Equador Congregación Cristiana en el Ecuador 9

República
América do Sul Cooperativa da Christian Congregation in Guyana 3
Guiana

América do Sul Guiana Francesa Congregation Chrétienne en Guyane Française 1

América do Sul Paraguai Congregación Cristiana en el Paraguay 245

América do Sul Peru Congregación Cristiana en el Peru 33

América do Sul Suriname Christelijke Gemeente in Suriname 4

América do Sul Uruguai Congregación Cristiana en el Uruguay 25

América do Sul Venezuela Congregación Cristiana en Venezuela 49

Ásia Índia भभभभ भभभ भभभभ भभभभभभ 17

Ásia Israel ‫ا سرائ يل ف ي ال م س يحي ال تجمع‬ 2

Ásia Japão 日本 クリスチャン コングリゲーション 25

Ásia Líbano ‫لا نَْبُل ف ي ال م س يحي ال تجمع‬ 1

Ásia Síria ‫سوري ُ ف ي ال م س يحي ال تجمع‬ 7

Ásia Sri Lanka Christian Congregation in Sri Lanka 2

Europa Alemanha Christliche Kongregation in Deutschland 5

Europa Austria Christliche Kongregation in Österreich 3

Europa Bélgica Congregation Chrétienne en Belgique 3

Europa Dinamarca Kristne Menighed i Danmark 1


141
Europa Espanha Congregación Cristiana en España 65

Europa França Congregation Chrétienne en France 12

Europa Grécia ƩχριστιανικΗƩσύναξη στην Ελλάδα 2

Europa Holanda Christelijke Gemeente in Nederland 5

Europa Reino Unido Christian Congregation in the United Kingdom 12

Europa Irlanda Christian Congregation in Ireland 5

Europa Irlanda do Norte Christian Congregation in Northern Ireland 1

Europa Itália Congregazionne Cristiana in Italia 34

Europa Luxemburgo Congregation Chrétienne en Luxembourg 1

Europa Noruega Kristne Menighet i Norge 1

Europa Portugal Congregação Cristã em Portugal 150

Europa Suécia Kristna Församlingen i Sverige 1

Europa Suíça Congregation Chrétienne en Suisse 7

Oceania Austrália Congregation of Christians in Australia 4

Oceania Nova Zelândia Christian Congregation in New Zealand 3

142

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