DISSERTAÇÃO Polyanny Lílian Do Amaral Braz PDF
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RECIFE
2015
POLYANNY LÍLIAN DO AMARAL BRAZ
RECIFE
2015
Catalogação na fonte
Bibliotecário Rodrigo Fernando Galvão de Siqueira, CRB-4 1689
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Profª Drª Mísia Líns Reesink (Orientadora)
Programa de Pós-Graduação em Antropologia - UFPE
___________________________________________________________________________
Profª Drª Judith Chambliss Hoffnagel (Examinadora Titular Interna)
Programa de Pós-Graduação em Antropologia - UFPE
___________________________________________________________________________
Profª Drª Mírian Cristina Marcílio Rabelo (Examinadora Titular Externa)
Universidade Federal da Bahia
Ao meu avô materno, Cícero,
por todo amor, coragem e fé
passados por gerações.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus por ter-me dado fôlego de vida suficiente para a
realização deste trabalho.
Ao meu esposo, companheiro e confidente Adson Braz, que por tantas vezes fez uso
de uma paciência infinita em momentos difíceis e que, na maioria das vezes, me acompanhou
em campo e cooperou para o desenvolvimento deste trabalho (inclusive os desenhos neste
trabalho são de autoria dele). Um “muito obrigado” não seria suficiente.
Aos meus pais e familiares que, mesmo sem entender exatamente o meu ofício,
sempre foram prestativos e encorajadores. Aos meus avós que me mostram todos os dias o
que significa força, fé e amor ao próximo, especialmente ao meu avô, para quem dedico esta
dissertação escrita em meio a preocupações por seu estado de saúde. Aos meus pais, Paulo e
Neide, e à minha irmã Paloma, por terem me apoiado e aconselhado em minhas escolhas de
vida. Aos meus primos e primas, tios e tias, em destaque meus tios Leonardo e Lenivaldo, por
serem meus exemplos de insistência, determinação e de profissionais acadêmicos. Valeu
mesmo, gente!
Aos meus amigos e amigas, velhos e novos, de longe e de perto. Às amigas, mais
chegadas que irmãs que fiz durante o curso de mestrado: Camila, Jamily e Jordânia, obrigada
pelos momentos de debates e conversas de cunho acadêmico bem produtivas, mas,
principalmente, obrigada por compartilharmos os momentos de desesperos e angústias.
Conseguimos meninas! Não poderia deixar de agradecer aos amig@s de longa data: Alana,
Arlindo, Bia, Flavinha e Sandrão, vocês estiveram comigo desde a graduação, obrigada por
permanecerem. Agradeço também a Israel, Jorge, Ana e Romária que mesmo não fazendo
parte do meu universo acadêmico emprestaram seus ouvidos para muitos desabafos
(especialmente no sufoco do ultimo dia). Obrigadíssimo a todos e todas.
À minha orientadora, profª Mísia, que foi a pessoa que me apresentou a Antropologia
e sempre contribuiu para minha formação, desde o primeiro período da graduação. Ela tem
grande participação na minha escolha pela Antropologia. Agradeço, principalmente, por ter
acreditado em mim mesmo quando, até eu mesma, estava desacreditada; por ter insistido e
persistido com meu (mas caberia “nosso”) trabalho. Queria ter palavras pra dizer algo especial
de verdade, mas não sou muito “machadiana”, você sabe, mas, de qualquer forma, finalizo
dizendo que você é uma orientadora incrível. Um simples “obrigada” não basta.
Às irmãs da Congregação Cristã no Brasil do bairro do Ibura, que foram pacientes e
prestativas, me recebendo de braços abertos e sendo solidárias a esta pesquisa. Obrigada!
Aos professores e professoras que na ministração de suas aulas instigaram reflexões
importantes. Especialmente ao professor Edwin que também contribuiu para este trabalho.
Agradeço a todos que formam o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE,
especialmente a Carla e Ademildinha. Muito Obrigada!
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por ter
financiado esta pesquisa.
A todos e todas que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração deste
trabalho meus sinceros agradecimentos.
This study analyses the construction and the performance of the religious body of female
members of a “common” of the Christian Congregation of Brazil church (Recife). This is the
first church of a pentecostal denomination to be introduced in Brazil (in 1910). To achieve
this aim, we concentrate on the ethnographic and analytical examination of the category of the
“body”, by means of concepts like “body techniques”, “habitus”, “pre-objective”, and
“embodiment”, while also reflecting upon the cosmology and practices of this particular
religion. With this analysis in mind, we conclude that the construction of the female body in
the Christian Congregation of Brazil is founded upon the dialectical relation between the
native categories of sainthood, feeling to belong to God, and communion.
LISTA DE DESENHOS
LISTA DE TABELAS
LISTA DE GRÁFICOS
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
REFERÊNCIAS.............................................................................................................................. 133
ANEXOS........................................................................................................................................... 140
1 INTRODUÇÃO
1
Além dos analisados neste trabalho, destacamos: Le Breton, 2009; Maués, 2003.
12
tempo da culminância e excesso de santidade, servindo como paradigma de santidade para o
tempo cotidiano.
2
Embora outros autores reflitam sobre a organização do pentecostalismo no Brasil (Brandão1980; Mendonça
1989; Freston 1993) opto pela classificação de Mariano (2005), por sua classificação de "pentecostalismo
clássico" atender melhor aos objetivos deste trabalho.
3
O autor ressalta que o termo “clássico” se restringe à ideia de antiguidade ou pioneirismo histórico dessas
denominações.
13
classes mais baixas, com baixo nível de escolaridade, discriminadas pelas igrejas históricas e
perseguidas pela igreja católica. Porém, com o decorrer do tempo, as igrejas do
pentecostalismo clássico se modificaram, abrigaram fiéis de todas as classes sociais e se
tornaram mais permissivas. Mesmo diante dessas modificações, a Congregação Cristã no
Brasil permanece fechada a novas mudanças e as alterações nos usos e costumes acontecem
de forma lenta e quase imperceptível. Já a Assembleia de Deus se mostrou aberta e disposta a
encarar as inovações promovidas pelo movimento pentecostal.
Quanto à segunda vertente, o deuteropentecostalismo surge na década de 1950 por
meio da Igreja do Evangelho Quadrangular (1951) com inovações das técnicas de
evangelismo. Com o sucesso dessas técnicas, foi provocada a fragmentação denominacional
e, assim, surgem outras igrejas pentecostais autônomas como a Brasil para Cristo (1955), a
Igreja Deus é Amor (1962) e a Casa da Benção (1964), que reforçam o movimento.
Vale ressaltar que, nas décadas de 1960 e 1970, houve um movimento pentecostal nas
igrejas tradicionais, implicando o surgimento de vários grupos nomeados “renovados”. A
ênfase teológica no batismo com o Espírito Santo e, especialmente, no dom de cura divina foi
um dos motivos principais para a aceleração e diversificação do pentecostalismo no Brasil. A
partir de então, há um desenvolvimento de novas igrejas pentecostais, como por exemplo, a
Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil, Convenção Batista Nacional, Igreja Metodista
Wesleyana, entre outras.
Comparativamente, as duas primeiras vertentes pentecostais diferem entre si muito
mais pela diferença na ênfase dos dons (a primeira enfatiza o dom de línguas e a segunda o
dom de cura) e por táticas evangelísticas, que por teologias diferentes (Mariano 2005).
No que diz respeito ao neopentecostalismo, ele começa na segunda metade da década
de 1970, cresce e se fortalece nas décadas de 1980 e 1990. Representado por igrejas fundadas
por brasileiros, como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), Internacional da Graça de
Deus (1980), entre outras, tem características diferentes das duas vertentes anteriores, tanto
pela formação recente quanto pelo caráter de inovação doutrinário. Dentre os ensinamentos
comuns em igrejas neopentecostais podemos destacar alguns principais: a batalha espiritual,
isto é, um confronto espiritual direto com os demônios em prol da libertação do indivíduo; a
Teologia da Prosperidade; uso da mídia para propagação da crença; e maior liberalidade nas
normas que regem o estilo de vida.
14
Tomando por base a classificação acima apresentada, localizamos, então, a
Congregação Cristã no Brasil no âmbito pentecostal como denominação pentecostal clássica,
cujas características originais já anotamos.
Durante muito tempo, o corpo foi pensado como um objeto de estudo exclusivo das
ciências médicas, que o tratou sob uma perspectiva biológica, isto é, do “corpo máquina”,
concentrando o foco de interesse na saúde e em suas consequências orgânicas. Somente em
meados do século XX começaram a surgir os primeiros trabalhos sobre essa temática,
partindo para uma perspectiva humanística e social, deixando de lado a visão médica,
instrumentalista do corpo.
É na década de 1960, com os movimentos contraculturais e artísticos, que o corpo
passa a ter maior visibilidade social no ocidente. Somando-se a isso, o movimento feminista,
em 1970, marca toda uma geração que reivindicava a posição social da mulher por meio da
luta por igualdade, direito e autonomia sobre o próprio corpo. Nesse cenário, revela-se uma
corporeidade que não mais se restringe à parte da biologia e ganham espaço os estudos e
pesquisas sobre sexualidade e gênero. Essas ideias revolucionárias foram expressas na
dimensão corporal, que se tornou uma espécie de zona turbulenta por meio da qual o
indivíduo passa a questionar novos valores sociais, uma vez que os antigos paradigmas já não
são mais suficientes.
No contexto religioso, os cristãos protestantes, em especial os pentecostais no Brasil,
apresentam diferentes correntes no que diz respeito ao uso do corpo como símbolo
representativo da fé que professam. A corrente do pentecostalismo da primeira década do
século XX, por exemplo, defende o uso restrito do corpo, apropriando-se de um conjunto de
regras sobre sua utilização; em contrapartida à corrente mais recente, denominada de
neopentecostalismo, apresenta-se com um caráter inovador quanto às questões da
corporeidade. A religião desempenha um papel importante na sociedade e, atualmente, no
Brasil, as instituições religiosas vêm passando por um processo de mudança bastante
significativo. De um lado, este país tem demonstrado um crescimento exacerbado dos
movimentos evangélicos, sobretudo dos pentecostais (Mariano 2004; Camurça 2006; Censo
2010). Por outro lado, as ideias “revolucionárias” apresentadas pelos neopentecostais
15
provocam mudanças históricas e de impacto social, além de um novo olhar em relação ao
movimento e especialmente sobre a perspectiva do corpo.
No corpo, como sendo a primeira representação do ser no mundo, repousam as
características físicas, sociais e culturais do indivíduo. Para os cristãos protestantes, em
especial para os pentecostais no Brasil, o corpo é como símbolo representativo da fé que
professam. Seja no modo de vestir, falar ou se comportar, os cristãos seguem uma ética de
conduta peculiar, já que valorizam a ideia de serem “templo e morada do Espírito Santo”.
Para que isso ocorra, é fundamental uma vida santificada, longe dos prazeres mundanos e do
pecado. A ideia de santidade e o corpo se convergem quando esta primeira é revelada através
da segunda, numa busca constante, por parte dos fiéis, por um estilo de vida santificado.
Porém, a percepção do corpo e sua relação com a identidade religiosa não é homogênea
dentro do Cristianismo, nem mesmo dentre os pentecostais.
Para dar conta da complexidade do campo etnográfico, lembrando ser ele
multifacetado, teremos que abordá-lo teoricamente a partir de dois níveis analíticos, que
implicam o uso de diferentes perspectivas teóricas: no primeiro nível, a partir da dinâmica
etnográfica, mais perto dos dados e próximos a uma perspectiva êmica, adotaremos as teorias
de Émile Durkheim e Mary Douglas, a fim de refletirmos e demonstrarmos que, na lógica
interna do grupo, a vida social se faz a partir de categorias opostas como bem/mal,
puro/impuro e ordem/caos; no segundo, aprofundando nosso olhar para um nível mais
“inconsciente”, procuramos ousar mais na análise e ir para além de uma interpretação
dualística dos dados etnográficos. Assim, nos apoiaremos nos seguintes autores: Marcel
Mauss (1935), para abordarmos as técnicas corporais no campo analisado; Pierre Bourdieu
(1983), para pensarmos a ideia de habitus e formação do “gosto religioso”; Merleau-Ponty
(1999), com a noção de pré-objetivo e percepção; e Thomas Csordas (1990), pois esse autor
faz uma abordagem sobre as proposições dos autores citados anteriormente e acrescenta à
discussão as ideias de performance e embodiment.
Se essas abordagens podem ser aparentemente contraditórias, elas são, contudo,
necessárias para a compreensão do fenômeno, já que o campo etnográfico é multidimensional,
exigindo esses dois níveis diferentes de análise que, por sua, vez exigem a adoção de
diferentes perspectivas teóricas, que podem ser entendidas mais como complementares do que
como contraditórias. Ressaltamos, contudo, que a compreensão real se dá a partir de uma
abordagem mais antidualista que em dualidades concretas.
16
Assim, sendo o corpo considerado como objeto central para pensar as relações entre o
indivíduo e a cultura, propomos, neste sentido, direcionar nossa discussão a partir da ideia de
que o corpo é instrumento de afirmação de uma crença religiosa. E por outro lado, esse corpo
mostra virtudes e defeitos do indivíduo que se compromete a uma vida de conduta cristã.
Nesse jogo onde o corpo exalta e abate o fiel, as ideias de pecado e a busca incessante pela
santidade e manutenção da pureza corporal afloram, dando margem ao surgimento de
categorias como a de “santidade”.
A santidade é conceito fundamental no cristianismo como um todo. Contudo, a ideia
de santidade passou por mudanças e, moldada historicamente, alargou-se. Inicialmente
pensado e debatido pela Igreja Católica, o “ser santo” e tudo que lhe implica passou a ser
tema de destaque. Nos primeiros três séculos depois de Cristo, ser santo era morrer em favor
da causa religiosa; em tempos de mártires pela perseguição de Constantino, professar sua fé
representava risco à própria vida e essa coragem era admirada como demonstração de
santidade. Nos séculos seguintes, passada a perseguição romana aos cristãos, o conceito de
santidade também foi reformulado e, além da morte, passou a ressaltar as qualidades pessoais,
de maneira que a reputação, história de vida e a capacidade de operar milagres através dos
pedidos dos devotos fazia o santo herói. Apenas em 1170, a Igreja Católica passa a organizar
burocraticamente a definição e o culto aos santos. A partir do século XVI, o movimento
chamado de Reforma Protestante contra, dentre outras coisas, o culto aos santos coopera para
uma redefinição de santo e santidade, que passa a espelhar-se na vida e na obediência aos
mandamentos de Cristo. Assim, a ascese protestante – isto é, o conjunto de práticas e
comportamentos morais prescritos aos fiéis, com vistas à realização de desígnios divinos e
leis sagradas – passar a governar o estilo de vida do fiel protestante. Nas palavras de Max
Weber:
4
A esses "padrões pentecostais clássicos de beleza" nos referimos às doutrinas que tocam diretamente questões
corporais como: restrição ao uso de maquiagem, adereços como brincos, pulseiras e colares, obrigatoriedade do
uso de determinado tipo de vestimenta, entre outros.
5
Le Breton, “Construção de Emoções”. Revista sociologia. Entrevista disponível em:
http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/23/artigo133356-1.asp. Acesso em: 15 ago. 2015.
18
experiências etnográficas, que reservamos este tópico para refletir o fazer etnográfico a partir
da etnografia realizada na Congregação Cristã no Brasil. Apresentaremos algumas
experiências vividas em campo durante a realização desta pesquisa, além de tratar sobre os
métodos e técnicas utilizados.
Desde Malinowski e sua definição de observação participante, o trabalho de campo
tem sido uma das principais ferramentas do fazer antropológico. Mas, como já nos alertou
esse autor, muitas vezes o campo nos coloca situações imprevisíveis, vividas apenas no
campo e em momentos inesperados: são os imponderáveis da vida real (cotidiana).
Assumindo o papel de pesquisador, o antropólogo mergulha na pesquisa de seu “objeto”.
Porém, esse “objeto” é um ator social, um indivíduo com capacidades racionais, com emoções
e características próprias. Esse “objeto” ultrapassa a definição restrita da palavra e atua como
“sujeito”. Dessa forma, embora o pesquisador possa prever algumas ações, o imponderável
malinowskiano está sempre presente e o antropólogo pesquisador se depara com sujeitos que
são capazes de influenciar e serem influenciados. O trabalho etnográfico desafia o
antropólogo pesquisador a enfrentar situações únicas, em que ética, personalidade, limites e
crenças são colocados em cheque.
O trabalho de campo começa na sua escolha; essa escolha é condicionada pela
trajetória do pesquisador, suas experiências pessoais, crenças e inquietações. Além do
conhecimento e do domínio teórico, o trabalho de campo engloba características e
especificidades do pesquisador que esboçarão os diferenciais das pesquisas desenvolvidas. E
como Miriam Grossi (1992: 8) afirma: cada trabalho de campo é uma “experiência marcada
pela biografia individual de cada pesquisador”. Dois exemplos ilustram o enunciado anterior:
Luïc Wacquant (2002) e William Foot-Whyte (2005) nos relatam suas experiências
etnográficas.
Wacquant (2002), em "Corpo e Alma", conta como o campo lhe surpreendeu.
Começou como uma janela para o gueto, seu primeiro e principal objeto de estudo, mas
tornou-se uma pesquisa concreta e cativante sobre as técnicas corporais dos boxeadores.
Branco e de classe média alta, o autor se inquietava com os problemas de desigualdade social,
o que o incentivou a pesquisar sobre o assunto. A fim de analisar o gueto num bairro negro de
Chicago, Wacquant se envolveu a ponto de cogitar abandonar o ofício de sociólogo
pesquisador e tornar-se apenas um boxeador. Tornando-se nativo e se deixando levar e
envolver pelas emoções do campo, Wacquant anuncia a dificuldade de transmitir emoções em
palavras e conceitos sociológicos.
19
Por outro lado, com formação em economia, Foot-Whyte recebe uma bolsa em
Harvard para realizar uma pesquisa de seu interesse. Escreve "Sociedade de Esquina" em que
a ideia de que as áreas pobres eram desorganizadas e caóticas foi desconstruída, perspectiva
esta, de uma classe média branca norte-americana à qual o autor pertencia. A "visão de fora" é
logo questionada quando o autor entra em campo e se depara com a "visão de dentro" de
quem vê em Cornerville "um sistema social altamente organizado e integrado" (Foot-Whyte
2005: 21).
Wacquant e Foot-Whyte mostram seus limites como etnógrafos e nos fazem refletir
sobre os nossos. Cada um dos autores ocupou um lugar no campo: boxeador, pesquisador,
economista, militante reformador. O que os dois pesquisadores trazem em seus escritos sobre
o trabalho de campo é que o antropólogo é um sujeito e que tem um corpo que influencia e é
influenciado pelos sujeitos pesquisados. A escolha do campo, os limites do antropólogo, as
dificuldades na escrita, os envolvimentos (físicos e emocionais), o descobrir-se a partir do
outro, o ser afetado e as técnicas no campo são momentos do trabalho de campo aos quais o
antropólogo pesquisador está exposto. Assim, consideramos que o trabalho de campo está
sempre acompanhado do estilo, das preferências e características do pesquisador. A biografia
do antropólogo, as afinidades teóricas, sua personalidade e até mesmo suas características
corporais interferem tanto na escolha quanto no decorrer do trabalho etnográfico.
Roberto Cardoso de Oliveira (1998), em “O trabalho do Antropólogo”, reflete, entre
outros temas, sobre o lugar central da relação sujeito cognoscente e objeto cognoscível na
constituição do conhecimento quando enfatiza o caráter constitutivo do olhar, do ouvir e do
escrever, na elaboração do conhecimento. O primeiro passo do pesquisador seria domesticar o
olhar, ou seja, ter um olhar sensível à realidade social, ter o olhar do nativo. Pois, uma vez que
decidimos partir para a investigação empírica, o sujeito-objeto sobre o qual o nosso olhar está
posto está antecipadamente modificado pelo modo que o visualizamos. Um olhar
etnocêntrico, preconceituoso e com interpretações culturais próprias deve ser desconstruído e
reformulado a partir de uma perspectiva relativista.
Após entrar em campo com o olhar despido de preconceitos, o segundo passo, de
acordo com Oliveira, seria o ouvir. Interessa para a antropologia compreender o modelo, a
estrutura nativa que é fornecida diretamente pelos próprios membros da comunidade
investigada. Dessa forma, ao ouvir o informante, o antropólogo pesquisador se permite
construir teorias a partir dos conceitos nativos.
20
A disposição de escutar o Outro, não é tarefa evidente. Exige um
aprendizado a ser conquistado a cada saída de campo, a cada visita para a
entrevista, a cada experiência de observação. Os constrangimentos
enfrentados pelo desconhecimento vão sendo superados pela definição cada
vez mais concreta da linha temática a ser colocada como objetivo da
comunicação. Diz-se então que a prática etnográfica permite interpretar o
mundo social aproximando-se o pesquisador do Outro “estranho”, tornando-
o “familiar” ou no procedimento inverso, estranhando o familiar, superando
o pesquisador suas representações ingênuas agora substituídas por questões
relacionais sobre o universo de pesquisa analisado (Da Matta, 1978 e Velho,
1978)” (Eckert, Rocha 2008: 6).
21
Tratava-se de compartilhamento e comunhão; de festa e reafirmação de fé e integridade
espiritual.
Mariza Peirano (1992) chama atenção para o fato de que a antropologia ganha um
caráter mais dramático do que nas outras ciências por causa do trabalho de campo, uma vez
que traz impacto ao contrastar as categorias nativas e as do antropólogo no encontro das
diferenças.
De tal modo que vestir a capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla
tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a)
transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico. E, em
ambos os casos, é necessária a presença dos dois termos (que representam
dois universos de significação) e, mais basicamente, uma vivência dos dois
domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los (DaMatta
1978: 4).
22
convidou a entrar e perguntou se eu gostaria de um véu. Segundo a doutrina da CCB as
mulheres devem estar sempre com o véu dentro do templo e nos momentos de culto mesmo
que não seja na igreja. Eu tinha minha própria religião que, embora parecida com a doutrina
da CCB, não adotava o véu como vestimenta feminina obrigatória. Pensei as consequências
prováveis de entrar sem o véu, ferindo um princípio da igreja (embora a igreja não exija o uso
para visitantes); pensei também que se eu usasse o véu, seria uma afronta às minhas próprias
crenças. Naquele momento olhei para dentro da igreja e vi umas cinquenta mulheres com as
cabeças cobertas por véus brancos e senti-me constrangida a aceitar a proposta. Antes de o
culto começar, fui apresentada a algumas outras mulheres, a maioria delas mostrou admiração
por eu ter optado usar o véu, levando em conta minha condição de visitante, e demonstravam
isso com frases exclamativas como “ela mesma que escolheu usar o véu? Que bom”, “você
fica muito mais bonita com o véu” ou ainda “já parece que é da igreja”.
O antropólogo pesquisador precisa usar de algumas estratégias para “abrir” o campo e
diminuir as dificuldades que alguns nativos constroem quando são questionados pelos seus
costumes. A ideia de ser criticado, mal interpretado ou falar algo errado, muitas vezes
dificulta o bem-estar entre antropólogo e nativo. O fato de ser mulher, casada, ter um estilo de
vida parecido e optar por usar o véu em respeito às doutrinas da igreja facilitaram meu contato
em campo e fortificaram o relacionamento com as fiéis que, por muitas vezes, me viram como
uma fiel em potencial.
Minha relação com os sujeitos do campo foi interessante para minha reflexão, pois
embora compartilhasse da mesma crença, fui tradada de forma diferente por cada um deles
segundo o lugar que eu ocupava. A CCB enfatiza a diferente forma de relação entre homens e
mulheres. Sendo assim, fui tratada de duas formas principais: a) quando tratada por um
homem – e isso raramente, pois eles evitavam o contato – sempre se dirigiam de forma
bastante respeitosa, me chamavam sempre de “irmã” e não pelo nome e quando eu estava
acompanhada do meu noivo, na época, se dirigiam sempre a ele, acenando com a cabeça para
mim; b) já as mulheres, muito mais simpáticas e comunicativas, se mostravam muito
animadas com uma jovem visitante. Como já tinha algumas informantes conhecidas, logo
uma delas se prontificou para sentar ao meu lado e sempre que achava necessário, me
explicava o que se passava no ritual.
Etnografar não se resume a descrever rituais, é também refletir sobre si mesmo. O
antropólogo não é totalmente imparcial, ao contrário, suas características pessoais interferem,
modificam o desenvolvimento da pesquisa. Nesse ponto está o destaque, ou a diferenciação da
23
antropologia das outras ciências. Essa “disciplina indisciplinada” assume suas emoções, riscos
e dúvidas como parte do processo de construção do conhecimento científico e é no
intercambio entre teoria e prática que se faz a antropologia.
O processo de estranhamento é doloroso, o de familiarização é penoso e o processo de
retorno é ainda mais do que a união dos dois sentimentos anteriores. Ver os fiéis participando
do culto, reafirmando sua crença, seguindo um ritual, manifestando glossolalia, chorando e
fazendo daquele momento único, realmente me tocou. Um trecho de Carmen Susana
Tornquist (2007: 47-48) expressa bem o problema a que me refiro acima:
Assim como um viajante: por mais que almeje retornar à sua terra de partida,
não voltará ao mesmo lugar, tendo em vista a experiência de deslocamento
subjetivo da viagem – no caso, da viagem simbólica que, por dever de oficio,
devemos realizar (grifos meus).
Sobre os capítulos
Para melhor apresentar nossos dados e argumentos, esta dissertação está estruturada
em três capítulos.
No primeiro capítulo “Congregação Cristã no Brasil: histórico, doutrina e outros
dados”, fazemos um levantamento histórico, apresentando uma breve biografia do fundador
da CCB (Louis Francescon) e o surgimento da igreja no Brasil, bem como a organização, os
principais rituais, as doutrinas e normas que a constituem. Apresentamos também alguns
dados numéricos e descrevemos mais detalhadamente o campo estudado.
24
Em seguida, fazemos uma interseção entre corpo e a Congregação Cristã no Brasil. No
capítulo 2 “Técnicas corporais e a construção do corpo religioso”, após uma breve
introdução sobre a teoria antropológica do corpo, apresentamos o tema a partir da cosmologia
do grupo estudado, descrevendo as regras específicas que normatizam as técnicas corporais e
o estilo de vida, relacionando-as com a perspectiva antropológica. No fim do capítulo
trazemos uma discussão sobre a construção do corpo religioso feminino e pontuamos como o
corpo se torna, além de instrumento de representação da identificação religiosa, o lugar onde
se experiencia o sagrado.
O terceiro e último capítulo, intitulado “Performance e Santidade: experiências
corporais” está intimamente ligado ao capítulo anterior. Nele tomamos por base a análise do
conceito de santidade. Por meio dessa categoria e embasados na ascese protestante, as
estruturas simbólicas são elaboradas, formando o ethos da comunidade religiosa estudada. A
ideia de santidade e o corpo como o local onde se experiencia essa categoria norteia o capítulo
que analisa também outras categorias como o sentir de Deus, a comunhão (como um elemento
de ligação) e as práticas corporais. O fechamento do capítulo aborda a experiência de campo
no culto de Santa Ceia, festa litúrgica e anual na CCB, que tomamos aqui como evento
culminante da busca continua pela santidade.
Nas “Considerações Finais” recapitularemos os principais pontos de debate durante
este trabalho, além de apresentar as conclusões, ainda que parciais, sobre o tema abordado.
25
2 CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL: HISTÓRICO,
DOUTRINA E OUTROS DADOS
6
Os valdenses são uma denominação cristã que teve sua origem entre os seguidores de Pedro Valdo na Idade
Média. Pedro Valdo era um comerciante de Lyon e iniciou seu movimento por volta de 1174. Decidiu
encomendar uma tradução da Bíblia para a linguagem popular e começou a pregá-la ao povo sem ser sacerdote.
26
Figura 1: Louis Francescon e Rosina Balzano, sua esposa. Fonte: Museu online da CCB
De acordo com seu relato7, no ano de 1894, quando estava em Cincinnati – Ohio,
Francescon recebeu uma revelação divina; enquanto lia a Bíblia, escutou uma voz que falava
sobre a necessidade da prática do batismo por imersão. O ritual do batismo nas águas não
fazia parte da doutrina da igreja à qual Francescon pertencia e, mesmo sob pedido, não foi
aceito. Convicto quanto ao batismo por imersão, Francescon e alguns aderentes romperam
filiação presbiteriano-valdense. Francescon submeteu-se ao batismo em 7 de setembro de
1903, por Giuseppe Beretta, desvinculando-se oficialmente da igreja Presbiteriana Italiana no
mesmo ano.
Nas palavras de Francescon:
7
Os relatos a punho de Louis Francescon estão disponíveis no museu online da CCB. Disponível em:
http://www.cristanobrasil.com/. Acesso em: 15 ago. 2015.
27
Em 1º de janeiro de 1895, casei-me com Rosina Balzano salva
também em nosso meio em princípio de 1892. Como membro da
administração da referida Igreja, falei do batismo determinado nas escrituras
e como o Senhor mesmo me ordenou obedecê-lo. Todos se manifestaram
contra mim, inclusive o Pastor, ao qual eu tinha comunicado por carta na
mesma noite que o Senhor me havia falado. No ano de 1898, o Senhor
salvou o irmão Giuseppe Beretta por meio dos Metodistas Livres,
Americanos, o qual após algum tempo uniu-se conosco, presbiterianos
Italianos. Falei-lhe também muitas vezes do citado batismo, mas no
momento não lhe era dado compreender. Em princípio de setembro de 1903
nos encontramos em Elgin, ILL., (no local onde eu com o irmão G. Marin
estávamos executando um trabalho), lhe falei novamente na presença deste,
da necessidade em obedecer ao mandamento de nosso Senhor.
Então, servindo-se Deus também de outros meios, convenceu-se e dois
dias após fez-se batizar mesmo em Elgin, por um irmão Americano
pertencente à Igreja dos irmãos (Church of the Brethren). Na ocasião lhe
disse: "Irmãos Beretta, agora que sois batizados, na próxima segunda-feira,
dia 7 que é o dia do trabalho, batizar-me-ás também. Como o Pastor se
encontrava na Itália, competia a mim como ancião presidir o serviço que se
realizava no Domingo, dia 6. Assim tive oportunidade em dizer ao povo o
que eu sentia em meu coração e lhes falei: Após 9 anos que o Senhor me
falou em obedecer ao seu mandamento, amanhã, com a ajuda de Deus, terei
a oportunidade em obedecê-lo e se algum de vós quiser assistir venham ao
(Lake-Front, de Chicago) em tal lugar, às tantas horas. Vieram cerca de 25,
dos quais 18 obedeceram juntamente comigo. Fomos imersos pelo irmão G.
Beretta. Pouco tempo depois, o pastor (F. Grilli) voltou da Itália e no
primeiro domingo que nos reunimos, disse-lhe eu que desejava dirigir
algumas palavras a irmandade antes de seu sermão, o que me foi concedido.
Primeiramente perguntei a todos se eu havia feito alguma coisa errada, que
testemunhassem; responderam, que nada havia contra mim. Então exortei-os
que, se quisessem também ser participantes das promessas de Deus, seria
necessário obedecê-lo conforme sua palavra. Em seguida apresentei minha
demissão de ancião, secretário e membro daquela igreja. Todos se
maravilharam e pediram que não os deixasse e eu lhes respondi que aquela
decisão não era por mim premeditada mas sim, ordenada por nosso Senhor
(Francescon, L. Carta, Acervo online CCB).
8
William Howard Durham (1873–1912) foi um teólogo e evangelista pentecostal, defensor da doutrina da “Obra
consumada no Calvário”. Durham foi um dos primeiros missionários brancos a visitar a Apostolic Faith Gospel
Mission na Rua Azuza, pastoreada por Joseph Seymour, era uma igreja de grande maioria negra (na época as
igrejas eram divididas etnicamente), onde recebeu o batismo no Espírito Santo. Durham foi um mentor para
muitos líderes pentecostais que frequentaram suas reuniões na Missão da Avenida Norte e que depois levaram a
mensagem pentecostal a diversos países.
28
Em 1907, na cidade de Chicago, na West North Avenue, 943 (semelhante à Rua Azuza9 em
Los Angeles, Califórnia), a igreja liderada pelo pastor Durham anunciava a promessa do
Espírito Santo com evidência de se falar novas línguas. No ano seguinte, em janeiro de 1908,
Francescon realizou o batismo de cerca de 70 novos adeptos, alguns deles afirmaram ter
recebido curas milagrosas no ato do ritual. Dentre eles Lucía Menna e Giacomo Lombardi10,
parceiros de Francescon nas missões na América do Sul. Nessa Missão pastoreada por
Durham também experimentaram a charismata do Espírito Santo outros líderes do
pentecostalismo como Daniel Berg e Aimeé McPherson, respectivamente fundadores da
Assembleia de Deus no Brasil e da Igreja do Evangelho Quadrangular.
9
O reavivamento da Rua Azuza foi uma reunião de avivamento pentecostal que se deu em Los Angeles,
Califórnia, liderada por William Joseph Seymour, um pregador afro-americano. Teve início com uma reunião em
14 de abril de 1906 em um prédio que fora da Igreja Metodista Episcopal Afro-americana e continuou até
meados de 1915. O avivamento foi caracterizado por experiências de êxtase espiritual acompanhadas por falar
em línguas estranhas, cultos de adoração, e mistura inter-racial. Os participantes foram criticados pela mídia
secular e teólogos cristãos por considerarem o comportamento escandaloso e pouco ortodoxo, especialmente
para a época. Hoje, o avivamento é considerado pelos historiadores como o principal catalisador para a
propagação do pentecostalismo no século XX.
10
Giacomo Lombardi (1862 - 1934) foi missionário, iniciador do primeiro núcleo permanente de fé pentecostal
na Itália. Partiu em missão, juntamente com Francescon, para a América do Sul em 1909. Na província de
Buenos Aires iniciaram as Assembleias Cristãs. Em março de 1910 chegou ao Brasil junto com Francescon, mas
retornaria em breve novamente à Itália, onde o trabalho por ele iniciado prosperou, visitando Roma e La Spezia.
Depois da I Guerra Mundial concentra seu ministério na igreja pentecostal italiana de Chicago, onde viveu até
sua morte, em 1934.
29
Em janeiro de 1910, Francescon, Lombardi e Menna chegaram à Argentina e
fundaram a primeira denominação pentecostal do país: a Asamblea Cristiana11. Da Argentina
seguiram para São Paulo, desembarcando em 8 de março de 1910. Permaneceram em São
Paulo até 14 de abril, quando Lombardi e Menna retornaram para a Argentina e Francescon
segue em missão para Santo Antônio da Platina, no Paraná. Embora Francescon tenha
realizado o primeiro batismo na cidade, de maneira geral não foi bem sucedido. Acusado de
contrariar a fé tradicional da população, deixando apenas onze fiéis no Paraná, o missionário
italiano retorna a São Paulo. Chegando à cidade, cerca de 20 pessoas (entre elas
presbiterianos, batistas e metodistas) adotaram a nova doutrina divulgada por Francescon.
Sobre esse início no Brasil, Francescon relata em carta12:
11
As Assembleias Cristãs na Argentina (em castelhano Asamblea Cristiana) são um grupo de igrejas
pentecostais oriundas do trabalho missionário de Louis Francescon e Giacomo Lombardi em 1909-1910.
Em 1915, Narciso Nartucci se tornou missionário em Buenos Aires e foi acompanhado por Francisco Anfuso,
dando continuidade ao trabalho de Francescon e seus companheiros. Anos depois, a Assembleia Cristã dividiu
em várias denominações: 1) a mais antiga, a Asamblea Cristiana Evangelica possui mais de cem templos em
todo o país. Sua igreja matriz está localizada no mesmo endereço em Villa Devoto, Buenos Aires, desde sua
fundação, conta com cerca de quinhentos membros. 2) A maior em termos quantitativos, a Asamblea Cristiana
"Dios es Amor" com sede em Santa Fé possui 900 igrejas presentes no território argentino, além de outras no
Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia. 3) Em 1965, a Asamblea Cristiana de Villa Lynch se afiliou com
a Congregação Cristã no Brasil com o nome de Congregación Cristiana en la Argentina e conta hoje com cerca
de 180 igrejas. 4) Um ramo menor, a Iglesia Cristiana Bíblica é afiliada ao Concílio Mundial de Igrejas.
12
Os relatos a punho de Louis Francescon estão disponíveis no museu online da CCB. Disponível em:
http://www.cristanobrasil.com/ e http://www.ccbhinos.com.br/ccb-curiosidades-congregacao-crista-no-
brasil/Como-Surgiu-a-Congregacao-Crista-no-Brasil-MTEy. Acesso em: 15 ago. 2015.
30
senhor lhe dito: “Eis o homem que Eu vos enviei”.(note-se que eu não era lá
esperado). Assim fui recebido em sua casa e poucos dias depois, o Senhor
comprazeu-se em abrir seus corações e de mais 9 pessoas. Foram batizadas
na água 11 pessoas e confirmadas com sinais do Altíssimo. Estas foram as
primícias da grande obra de Deus naquele país.
31
Congregação Cristã no Brasil, Brás, SP (1960)
Congregação Cristã no Brasil, Brás, SP (1915)
Figura 4: CCB Brás. Fonte: Museu online da CCB.
De acordo com os dados do Censo 2010, podemos afirmar que o Brasil está vivendo
uma nova fase do Cristianismo Protestante. Hoje, os evangélicos formam 22% da população
do Brasil e somam mais de 42 milhões, sendo cerca de 60% desse total de
vertentes pentecostais. De acordo com os dados da pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia Estatística (IBGE), 6 de cada 10 evangélicos brasileiros se declara pentecostal.
32
Gráfico 1: Religiões no Brasil (1872-2010).
Fonte: http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao
13
Fonte: IBGE Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas
_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf. Acesso em: 15 ago. 2015.
14
Segundo a publicação americana “Pentecostalism Encyclopedia”.
33
Na tabela a seguir, uma lista das dez maiores denominações evangélicas no Brasil e a
divisão do total de fiéis declarados por sexo, que nos ajudarão a refletir sobre a posição da
CCB no campo religioso brasileiro:
Tabela 1: “As 10 maiores igrejas no Brasil15”
IGREJA NÚMERO DE NÚMERO DE TOTAL
HOMENS MULHERES
Assembleia de Deus 5 586 520 6 727 891 12 314 410
Em 1940, o movimento tinha 305 “casas de oração”, e dez anos mais tarde, tinha 815 e
de acordo com o Relatório 2014/2015 (um anuário e relação de endereços da Congregação
Cristã no Brasil) aparecem casas de orações na América, África, Ásia, Europa e Oceania16,
indicando grande crescimento da igreja em meados do século XX. No entanto, esse
crescimento já não é percebido nos últimos anos.
Se o ranking das cinco maiores igrejas pentecostais do país permaneceu inalterado
entre os Censos 2000 e 2010, por outro lado, apresentou interessantes diferenças em relação
ao número específico de fiéis. A Congregação, amplamente conhecida pelos seus templos de
cor cinza e janelas com arcos góticos, perdeu quase 200 mil fiéis, passando de 2,4 para 2,2
milhões de membros17. No entanto, continua sendo a segunda maior igreja pentecostal do
país. O gráfico abaixo, com base nos censos de 2000 e 2010, apresenta as variações no
número de fiéis das cinco maiores igrejas pentecostais no Brasil.
15
Com base nos dados do Censo 2010.
16
Ver anexo A: “Tabela de Templos da Congregação Cristã”
17
De acordo com o Censo 2000, 2 489 113 pessoas se declararam adeptos à Congregação Cristã no Brasil. Dez
anos depois o número é de 2 289 634. Fonte: IBGE, Censo 2000. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/religiao_Censo2000.pdf. Acesso em:
15 ago. 2015.
34
Gráfico 2: Pentecostais: Censo 2000 x Censo 201018
Fonte: IBGE
- Assembléia de Deus
- Evangelho
CCB IURD
Quadrangular
- Deus é amor
18
Gráfico disponível em: http://refletindofe.blogspot.com.br/2012/06/os-pentecostais-no-censo-2010.html.
Acesso em: 15 ago. 2015.
19
Abrimos um parêntese aqui para notificar que, embora a Igreja Assembleia de Deus seja classificada como
pentecostal clássica – assim como a CCB, esta igreja tem apresentado grandes dissenções ministeriais que
adotaram algumas práticas e ideologias neopentecostais, por isso, consideramos aqui, como sendo menos radical
do que a CCB.
20
MARIANO, R. (2008).
35
A seguir, apresentaremos as dissenções da Congregação Cristã no Brasil.
Foi fundada no ano de 1967, em Telêmaco Borba - PR, pelo ancião Nilson Santos, que
antes de ingressar na CCB, frequentava a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Mais tarde, a
Igreja Cristã Remanescente filiou-se à Igreja Maranata, uma igreja alemã de linhagem
adventista de doutrina pentecostal. Da mesma forma que a CCB, mantém assentos separados
para homens e mulheres, são adeptos da saudação com ósculo e uso do véu pelas mulheres.
Uma particularidade dessa denominação é a pratica do lava-pés. Atualmente a denominação
possui congregações nos seguintes estados: Paraná, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Sul,
Rondônia e São Paulo.
21
Depoimento disponível em: http://www.igrejarenovadoracrista.org.br/. Acesso em: 15 ago. 2015.
36
Fundada em Goiás, no ano de 1991, pelo ancião José Valério que, na época, era o
ancião da CCB mais velho naquele Estado. Foi o movimento que mais ameaçou a hegemonia
do Brás.
Sediado em Roraima, o movimento encabeçado pelo ancião Valério teve a adesão de
vários ministros da CCB nos estados de Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Goiás, Bahia, São
Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Em dois anos, a Congregação Cristã Renovada já contava
com 30 casas de orações. Porém, no ano de 1993, o grupo se dissolveu e se reintegrou a
Congregação Cristã no Brasil concedendo-lhe, inclusive, direitos de propriedade sobre o
patrimônio construído pela CCB-Renovada.
Fundada em Santa Catarina, no ano de 1993, pelo ancião Luis Bento Machado que, na
época, era um dos anciães mais antigos naquele estado. O ancião Luis Bento se afastou da
CCB em 1993 quando fundou a Congregação Cristã do Sétimo dia. Uma característica
particular dessa dissidência da CCB é que, além de guardar o sábado, eles também celebram a
santa ceia com pão ázimo e suco de uva. Luis Bento Machado chamou o ancião mais antigo (e
amigo pessoal) Vitório Angare para um conversa particular a fim de tratar da questão do
sábado. Diante da notícia que um dos anciãos da CCB admitia a doutrina de guardar o sábado,
foi convocada uma Assembleia Geral Extraordinária, que foi realizada na sede da CCB em
Itajaí – SC. A reunião teve duração de 8 horas, os presentes na reunião manifestaram o desejo
de que Luis Bento continuasse a liderar a CCB em Santa Catarina, mas determinaram que o
mesmo deveria fazer uma retratação pública sobre a questão da guarda do sábado,
reconhecendo que era um equívoco da sua parte. Por coincidência, era dia de sábado, a
reunião se encerrou e em seguida deu-se inicio ao culto daquele dia. O ancião Luis Bento deu
início ao serviço de culto e fez o seguinte pronunciamento:
Faz 36 anos que eu palmilho neste caminho, e TUDO o que eu fiz aqui, foi
por amor à obra de Deus! Se algum dia, eu fiz alguma coisa errada, aqui
dentro da igreja, a algum irmão, que me perdoe! Porque fazem 2 anos que
Deus me revelou acerca do sábado, e a Congregação Cristã no Brasil
(apontava para saudosos representantes da CCB que se encontravam
sentados no primeiros banco), não reconhece este dia como mandamento da
Lei de Deus!!!, e por "este motivo" eu me afasto do ministério, oreis a Deus
por mim, que nas minhas orações eu orarei por todos vós... Deus Seja
Louvado!
22
Relatos descritos no site: http://congregacaocristadosetimodia.blogspot.com.br/. Acesso em: 15 ago. 2015.
37
Representantes do ministério central (Brás) procuraram Luis Bento Machado para que
assinasse sua carta de renúncia como ancião da CCB, mas Luis Bento não assinou tal carta
assim se justificando: “não estou renunciando, eu estou apenas me afastando do ministério,
este ministério que me fora confiado, como ‘ancião’ foi Deus quem me deu! E por isso, não
devo assinar a carta de renúncia para nenhuma sociedade religiosa, mas sim, levarei comigo
para a sepultura”.
Ao contrário de Aldo Ferretti, Luis Bento Machado não sofreu nenhum tipo de
perseguição, ou seja, nenhuma circular foi expedida, talvez para não chamar a atenção dos
membros.
38
conhecidos e de bom testemunho. Ao final, pode haver oração com
imposição de mãos. Encerra-se o culto com a benção apostólica.23
Essa vertente da CCB deligou-se do Brás em 2010 por questões internas de cunho
organizacional. O conflito entre anciãos da igreja local com os de outras localidades foram os
motivos principais. Mesmo desvinculada, a CCMJ segue os mesmo princípios doutrinários
pregados pela matriz. Uma nota de esclarecimento sobre os motivos da separação abre o site
da igreja:
Nossas reuniões ministeriais sempre foram presididas por nós Anciães de
Jandira, e sempre procuramos motivar os Cooperadores de adultos e
Cooperadores de jovens e menores a tratar a irmandade com amor e carinho
e ter um cuidado especial com as crianças e jovens.
A partir do final de 2008, Anciães de outra localidade, que foram
ordenados para atender em outro município, começaram a frequentar as
reuniões ministeriais de Jandira e, por serem mais antigos no ministério,
passaram a presidi-las. Nesse período, a qualidade do conteúdo das reuniões
caiu vertiginosamente, causando-nos descontentamento, culminando com
muitas reclamações, sendo necessário que tomássemos providências, visto
que esta nova presidência passou a impedir a continuidade do crescimento e
o bom andamento da OBRA de DEUS no nosso município.
Em maio de 2010, nós, Anciães do município de Jandira, não concordando
mais com as atitudes daqueles Anciães que não foram ordenados em Jandira,
optamos por usar das prerrogativas estatutárias que dão aos Anciães e às
Administrações autoridade de administrar, com a guia de DEUS, a obra de
DEUS em seus Municípios. Guiados pela Palavra de DEUS e com anuência
da Administração, tomamos algumas decisões que julgamos necessárias,
inclusive apresentamos em oração e ordenamos três Anciães para o nosso
município.
Alguns dias após as ordenações, parte do conselho de Anciães, junto com a
Administração que representa a Congregação juridicamente, e que deu
anuência a todas as decisões e às ordenações dos novos Obreiros,
23
Disponível em: http://www.ccamr.org.br/. Acesso em: 15 ago. 2015.
24
Não encontramos, em nossa pesquisa, dados suficientes sobre a ICC. Os dados apresentados foram
encontrados na página de uma rede social da CCB: https://www.facebook.com/ccbhistoriaecomentarios/
posts/1484638315141169. Acesso em: 10 ago. 2015.
39
consideraram nossas atitudes, precipitadas e declararam nosso afastamento
do ministério.25
Figura 5: Cartograma da população residente com religião evangélica de origem pentecostal da Igreja
Congregação Cristã no Brasil – Fonte: IBGE
25
Nota de esclarecimento publicada na página inicial do site da Congregação Cristã – Ministério Jandira
(CCMJ). Disponível em: http://ccmjandira.org.br/esclarecimentos.html
26
Disponível em: http://ccmjandira.org.br/pronuncia.html
27
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=pe
28
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=pe&tema=censodemog2010_relig
40
Na Região Metropolitana do Recife (RMR), a igreja conta com mais de setenta
templos. A RMR tem quase quatro milhões de habitantes29 e cerca de 1,5% se declaram
crentes da Congregação Cristã no Brasil. Elaboramos uma Tabela com o número de Igrejas
CCB e a quantidade de fiéis em Recife e RMR para melhor visualização dos dados.
Total 72 5.921
Tabela 2: CCB na Região Metropolitana do Recife – Elaborada a partir de dados fornecidos
pelo IBGE
A igreja, assim, foi fundada ainda na década de 1970 e tem hoje cerca de 8 crianças
(abaixo de 12 anos), 30 jovens (solteiros, maiores de 12 anos) e mais de 200 membros
adultos32, que são de maioria feminina e, majoritariamente, moradores do próprio bairro, em
grande parte composto por donas de casa, profissionais liberais e comerciantes enquadrados
como classe média baixa. É importante salientar que a “ideia de pertença” dos fiéis CCB está
fortemente ligada à instituição geral, muito mais do que à “comum”33 onde o fiel congrega.
Dessa forma, é recorrente o trânsito nas CCBs entre fiéis de outros bairros, ou seja, nos dias
que não há programação na igreja onde geralmente congrega, os fiéis frequentam outras
igrejas da CCB. Vale destacar também que, embora não sejam proibidos, os fiéis são
32
Não foi possível contabilizar ao certo o número de membros, pois a igreja não possui cadastros ou documento
oficial que informe a quantidade de membros. O número assinalado é baseado nas afirmações aproximadas dos
informantes.
33
Templo que o fiel habitualmente frequenta.
42
orientados a não frequentarem outras religiões e denominações, mesmo que sejam
protestantes. Isso se dá por dois motivos principais: 1) a CCB considera qualquer outra
vertente religiosa como “seita” e 2) na tentativa de impedir a “contaminação” da própria
igreja.
A igreja em questão está filiada à matriz nacional, localizada no bairro do Brás em São
Paulo. Possui dois anciãos, um cooperador, dois diáconos e 15 homens músicos oficiais.
Realizam cultos oficiais nos dias de terça e sábado, no horário de 19h30min às 21h, e aos
domingo das 18h30min às 20h. Nos domingos pela manhã às 09h30min é realizado o “Culto
Jovem”, que excepcionalmente durante algum tempo da pesquisa, passou a ser realizado às
14h30min devido a uma reforma na igreja. Com ressalva do “culto jovem”, os demais cultos
não são nomeados especificamente, todos são chamados de “culto oficial”. Nos outros dias da
semana os fiéis são incentivados a visitarem igrejas da Congregação Cristã em outros bairros
e realizarem as chamadas “salinhas”, que são “mini-cultos” nas casas de irmãos, geralmente
doentes, debilitados e incapacitados de irem à igreja.
Todas as igrejas da Congregação Cristã no Brasil têm a mesma cor e arquitetura base,
essa última podendo ser adaptada às condições locais. Na CCB-Ibura não me foi permitido
fotografar dentro da igreja, de maneira que para descrevê-la usarei de desenhos, narração e
imagens semelhantes disponíveis online.
A igreja está construída a cerca de três metros acima do nível da rua, o que lhe permite
duas escadas laterais, uma para homens e outra para mulheres, e ao meio um espaço gramado.
As escadas levam, cada uma, a uma porta lateral de entrada; cada qual para o respectivo sexo.
O templo também possui uma porta frontal, escondida atrás de uma parede com três janelas.
O mesmo estilo de janela preenche toda a fachada da igreja, num total de sete (ver Figura 6).
De acordo com as informantes, nenhum motivo específico para os números.
Na parte interior do templo existem três fileiras de bancos de madeira. À esquerda
sentam as mulheres, à direita os homens. No centro, a parte frontal é reservada aos músicos,
enquanto os últimos bancos, os quais eu chamei de “bancos de apoio”, são ocupados por
homens ou mulheres, dependendo do maior número, mas geralmente ocupado por mulheres.
À frente dos bancos há o que os fiéis chamam de púlpito. Tem estrutura de madeira e também
é dividido. Duas bancadas estão postas, cada uma de um lado e equipadas com microfone.
Essas bancadas servem para o momento de “testemunhança”, quando os fiéis se levantam de
seus lugares e vão à frente, ao microfone, contar algum fato tido como milagroso. Do lado
esquerdo vão as mulheres e do direito os homens. Ao centro da estrutura, numa parte mais
43
elevada, ao fundo, duas cadeiras que mais parecem tronos. Os anciães sentam nelas. Entre as
cadeiras, na parte mais à frente, há um suporte para pôr a Bíblia e um microfone.
Na parede que forma o plano de fundo do púlpito, está escrita, em letras grandes, a
frase “Em nome do Senhor Jesus”. Ao perguntar aos fiéis o significado da frase e o porquê de
estar ali, recebi como resposta maciça que foi ordenança de Deus. No entanto, no site oficial
da Congregação Cristã no Brasil, um depoimento no link intitulado “curiosidade sobre a
CCB”, explica a exigência da frase em todas as igrejas:
Outra característica interessante na CCB é que os fiéis não oram (dentro da igreja) de
outra forma, senão de joelhos. Assim, os bancos são adaptados para melhor conforto do fiel.
Como não me foi permitido fotografar o interior do templo, segue abaixo o esboço de uma
“planta interna”, para que o leitor visualize melhor a organização espacial do templo, e um
desenho34 de como é o banco de madeira com apoio para os joelhos (indicado pela seta).
34
Gostaria ressaltar que os créditos pelos desenhos são de Adson Braz, meu esposo.
44
Desenho 1: Planta Interna – CCB Ibura
45
Legenda:
1 – Assentos:
1a: Assentos femininos
1b: Assentos masculinos
1c: Assentos de apoio
1d: Assentos reservados aos músicos
2 – Entradas:
2a: Entrada lateral para mulheres
2b: Entrada lateral para homens
2c: Entrada central (mista)
3 – Lugar onde fica a organista
4 – Caixas de madeira onde os fiéis depositam ofertas
5 – Espaço (“palco”) para a testemunhança
6 – Parte do púlpito de onde o ancião fala
7 – Pequenas escadas
46
1.3 CCB e suas doutrinas
Art. 8º - Quem aceitar Jesus Cristo como seu Salvador, e Sua doutrina,
conforme consta no “caput” do art. 1º e dos arts. 20, 21 e 22, submetendo-se
ao santo batismo, ministrado segundo a fé e doutrina da CONGREGAÇÃO
CRISTÃ NO BRASIL, será admitido como seu membro e assumirá uma
responsabilidade pessoal para com Deus.
Com base nesse Estatuto e nos dados colhidos em campo, apresentaremos neste tópico
a organização eclesiástica e administrativa da CCB, principais tópicos da doutrina, os doze
artigos de fé que embasam essa crença e algumas especificidades do campo, como os rituais e
o peculiar vocabulário dessa denominação religiosa.
35
Também em 1936, ao findar a Assembleia Geral do ministério em São Paulo, foi eleita a Administração para
“gerir as coisas materiais da Congregação”, com a constituição de presidente, tesoureiro, secretário e vice-
secretário e um Conselho Fiscal.
36
As versões do Estatuto da Congregação Cristã no Brasil estão disponíveis em: http://www.ccbhinos.com.br/
estatutos-da-ccb/Estatutos. Acesso em: 15 ago. 2015.
37
Segundo o Art. 30 do Estatuto CCB.
47
lucrativos, constituída de número ilimitado de membros, sem distinção de
sexo, nacionalidade, raça, ou cor, tendo por finalidade propagar o Evangelho
de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor a Deus, tendo por cabeça só a Jesus
Cristo e por guia o Espírito Santo (São João, 16:13). Iniciada em Junho de
1910, com Estatuto regularmente aprovado em 05 de Março de 1931 e
reformado em 20 de Março de 1936, 23 de Abril de 1943, 20 de Novembro
de 1944, 04 de Dezembro de 1946, 08 de Fevereiro de 1956, 21 de Abril de
1962, 12 de Abril de 1968, 23 de Abril de 1975, 04 de Abril de 1980, 13 de
Abril de 1995 e 10 de Abril de 2004. 38
Dessa forma, notamos que os fiéis estão mais interessados na função espiritual da
igreja que na instituição per si. Contudo, a organização institucional interessa-nos a fim de
refletirmos sobre sua estrutura interna e funcionamento da igreja estudada. Vejamos então
alguns pontos a serem destacados.
Como apresentamos no início deste capítulo, a Congregação Cristã no Brasil tem
influência religiosa dos valdenses da Primeira Igreja Presbiteriana Italiana. Ressaltamos este
ponto, pois segundo o presbiterianismo – isto é, as igrejas cristãs protestantes que aderem à
tradição teológica reformada (calvinismo) – a forma de organização eclesiástica se caracteriza
pelo governo de uma assembleia de presbíteros, ou anciãos41. A organização eclesiástica da
Congregação Cristã no Brasil é uma forma adaptada do modelo presbiteriano. Um grupo de
igrejas locais é reunido em uma “região administrativa”, presidida por um conselho de
38
CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL, Estatuto, 2004.
39
Um concílio é uma reunião de autoridades eclesiásticas com o objetivo de discutir e deliberar sobre questões
pastorais, de doutrina, fé e costumes (moral). [FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.]
40
A CCB também proíbe que seus membros tenham vinculo partidário. Se algum membro se declarar candidato
político, este não será mais considerado parte da instituição.
41
Neste trabalho “anciãos”, “anciões” e “anciães” são formas equivalentes.
48
anciãos e um corpo administrativo. As regiões administrativas são agrupadas em “regionais”,
que por sua vez se concentram nas “assembleias estaduais”. As mudanças de caráter
doutrinário na Congregação Cristã no Brasil são discutidas pelo Conselho de Anciãos Mais
Antigos e apresentada em assembleia anual, na igreja sede no bairro do Brás – SP. À
Administração de São Paulo – Capital, compete coordenar e incluir em relatório anual o
movimento espiritual e material das demais casas de oração da mesma Fé em todo o País,
podendo também orientar as demais Administrações na aplicação das leis42.
A estrutura ministerial da Congregação Cristã no Brasil se constitui por anciães,
cooperadores do ofício ministerial e diáconos43. Destes, somente os anciães e diáconos são
ministros ordenados, enquanto que os colaboradores são apresentados conforme deliberação
do Conselho de Anciães44. A escolha do fiel para ordenação é por aclamação durante o
momento de oração desse conselho, de forma colegiada por consenso tido como iluminado
pelo Espírito Santo. Sua liderança desaprova o formalismo teológico, exortando que a palavra
de Deus “não é para ser discutida, porém obedecida”. Pois, além de a Bíblia conter “tudo o
que se precisa, individual e coletivamente”, o Espírito Santo fornece “a sabedoria”
necessária “para entender o que Deus tem já revelado em sua Santa Palavra”45. A escolha
das novas lideranças eclesiásticas (diáconos e, no topo hierárquico, anciãos) depende da
“revelação divina”. Segundo os depoimentos colhidos em campo, para ocupar um cargo
eclesiástico na CCB é preciso que o candidato e sua família46 tenham bom comportamento e
testemunho. Não podem ter tido mais que um casamento e para os cargos de ancião e diácono
é exigido que o candidato seja “selado”47 com o Espírito Santo; nos demais cargos não há esse
requisito. A comunidade, observando todos esses pontos, indica o nome do candidato para o
corpo ministerial da igreja local, que levará à reunião regional de anciães para orar. O
processo dura alguns meses, até que o Espírito Santo revele aos anciãos mais antigos para a
autorização ser concluída.
Embora conste no Estatuto CCB que não existe hierarquia48, respeita-se a antiguidade
entre os membros do Ministério; dentro da igreja local “ancião” é o cargo máximo e, dentre os
42
Segundo o Art. 6º do Estatuto CCB.
43
Segundo o Art. 23º do Estatuto CCB.
44
Segundo o Art. 24º do Estatuto CCB.
45
“Resumo da Convenção” e “Reuniões e Ensinamentos”, publicados pela administração da igreja, em maio de
1981.
46
Notamos aqui que o “comportamento exemplar”, a santidade, que discutiremos posteriormente, se estende à
família.
47
O termo “selado” se refere ao fiel que recebe o batismo pelo Espírito Santo. Veja o tópico “glossário” neste
mesmo capítulo.
48
Segundo o Art. 18º do Estatuto CCB.
49
anciães, o mais antigo é aquele que possui maior prestigio e privilégios e cuja deliberação é
mais apreciada pelos demais membros. O Conselho de Anciães é formado pelos anciães mais
antigos no ministério, que não são necessariamente os de maior idade. As mudanças de
caráter doutrinário na Congregação Cristã no Brasil são discutidas em assembleia anual e por
esse Conselho de Anciães. Nessas assembleias são considerados os Tópicos de Ensinamentos,
os quais, tomados em reuniões e por oração e aprovação divina49, tratam de assuntos
relacionados à doutrina, costumes e comportamento na atualidade. É importante destacar que
o corpo ministerial da CCB, bem como todos o fiéis envolvidos nos trabalhos da igreja,
prestam serviço voluntário.
Dito isso, categorizaremos a seguir os cargos existentes na CCB:
Do corpo ministerial:
Cargo Descrição
Responsável pelo atendimento da Obra (presidir os cultos), realização
de batismos, santas ceias, ordenação de novos obreiros (anciães e
diáconos), apresentação de Cooperadores do Ofício Ministerial,
Ancião encarregado de conferir ensinamentos à igreja, cuidar dos interesses
espirituais e do bem-estar da igreja, entre outras funções;50
Responsável pela Obra da Piedade51, isto é, pelo atendimento
assistencial e material à igreja. É auxiliado por irmãs obreiras chamadas
Diácono de Irmãs da Obra da Piedade. Assim como o ancião, atende a diversas
congregações de sua região;
Responsável pela cooperação nos ensinamentos e presidência de cultos
Cooperador do oficiais e de jovens em uma determinada localidade (desde que não haja
Ofício Ministerial um Cooperador de Jovens e menores responsável por essa localidade).
49
Uma vez que a CCB preza pela revelação divina para dirigir tudo que lhe é relacionado, esta revelação se dá
quando um ou mais fiéis “sentem” que o Espírito de Deus fala com eles. Este sentimento é caracterizado pelos
fiéis como algo “inexplicável”, mas que de alguma maneira lhe permite saber que é Deus falando.
50
Segundo os Arts. 25 e 26 do Estatuto CCB
51
Segundo os Art. 27 do Estatuto CCB
50
Além dos ministros previstos em estatuto acima citados, há outros cargos ou
funções:52
Cargo Descrição
Cooperador de Responsável por atender as Reuniões de Jovens e Menores de sua
Jovens e Menores congregação local.
São jovens, homens ou mulheres, solteiros, designados para preparar e
organizar os recitativos, passagens bíblicas por eles escolhidas, ou pela
Auxiliar de
pessoa que vai recitar individualmente, que são recitadas em grupo em
Jovens e Menores
determinado momento do culto. Cuidam, ainda, da ordem e da
organização durante a reunião de jovens e menores.
Encarregado de Músico oficializado, designado para coordenar o ensino musical aos
Orquestra interessados e organizar ensaios musicais da Orquestra da Congregação.
As Examinadoras são organistas mulheres, oficializadas, designadas para
Examinadora
avaliar outras organistas aprendizes no processo de oficialização.
Membro habilitado e depois de passar por testes musicais é oficializado
Músico
para tocar nos cultos e demais reuniões.
Compete tratar do ministério material, constituído por Presidente,
Tesoureiro, Secretário, Auxiliares da Administração, Conselho Fiscal e
Administração Conselho Fiscal Suplente. Os administradores são eleitos a cada três
anos e o Conselho Fiscal anualmente, durante a Assembleia Geral
Ordinária. É permitida a recondução ao cargo.
52
Designações apresentadas pela CCB online pelo site: http://www.cristanobrasil.com/. Acesso em: 10 ago.
2015.
53
Segundo Arts. 28 e 29 do Estatuto CCB.
51
integrantes do Conselho Fiscal e vices, se houver necessidade. 2) Administradores54: com
mandato de três anos, possuem tarefas específicas dentro da região administrativa do
município, sendo responsáveis pela anotação, controle e gestão da arrecadação, das contas
bancárias e do patrimônio da Congregação Cristã, em comunhão com o ministério espiritual.
Conforme a necessidade, é possível a criação de departamentos específicos para cuidar de
engenharia, construções, compras de materiais, informática, etc. Os administradores da CCB
contam com um programa de computador para gestão e um portal chamado CCBINFO,
conectando as dezenas de administrações, facilitando a tarefa, permitindo maior controle
administrativo e prestando auxílio aos administradores. 3) um Conselho Fiscal55: composto de
três membros, indicados pelo ministério e localizados em cada administração regional, tem
por missão fiscalizar os atos administrativos, as documentações etc., dando o seu parecer se
tudo estiver em boa ordem. O Conselho Fiscal foi constituído para examinar criteriosamente
cada documento de despesas da Administração, bem como outros documentos referentes à
mesma área administrativa. Portanto, deve haver amplo acesso para o Conselho Fiscal a essa
documentação. O Conselho Fiscal, vistoriando mensalmente os documentos, ao chegar ao
término do ano a tarefa estará concluída, bastando unicamente emitir e assinar o parecer para
aprovação das contas do balanço.
No plano administrativo, a liderança é baseada na antiguidade56 e seus líderes são
praticamente anônimos. Essa ausência de personalismo resulta numa tendência mínima para
cismas e ambições políticas. A homogeneidade interna do grupo é fortalecida pelo constante
contato entre os crentes de diferentes cidades e por uma convenção anual realizada no Brás,
na Semana Santa. Com as suas características inusitadas, a Congregação Cristã no Brasil
exemplifica o dinamismo e a diversidade do movimento pentecostal.
54
Segundo Arts. 31 à 37 do Estatuto CCB
55
Segundo Art. 41 do Estatuto CCB
56
Quando tratamos de “antiguidade” nos referimos ao maior tempo de ordenação e não de idade
necessariamente.
52
para a crença e a conduta dos fiéis. Esses pontos são incorporados no Art. 22, no segundo
capítulo “Fé e Doutrina” do Estatuto da Congregação Cristã no Brasil.
Vale ressaltar que o primeiro artigo foi modificado na elaboração do Estatuto Interno
CCB, versão de abril/2004. Por quase um século, o primeiro ponto foi escrito da seguinte
forma:
1. Nós cremos na inteira Bíblia Sagrada e aceitamo-la como infalível
Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus é a única
e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode acrescentar ou
d'Ela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de todo aquele
que crê.
57
“Quadro: Significado dos números nas Escrituras” In: A Bíblia da Mulher: leitura, devocional, estudo. 2ª ed. p.
2074, Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
54
Esses artigos são importantes para colocar ordem na coisa, sabe? Se não
cada um faz o que quer, essas coisas... Acho que toda igreja tem que ter. Pra
que quem quiser congregar nelas, saiba como é o sistema (Priscila, 23 anos).
58
Comentário de uma fiel
59
As noções de santidade para os fiéis da CCB serão melhores apresentadas e discutidas no terceiro e último
capítulo deste trabalho.
60
Fenômeno pentecostal que implica na capacidade de falar em outras línguas, mais precisamente a língua dos
anjos, segundo os fiéis.
55
quaisquer cargos, desde que atenda as exigências para tal61. Finalmente, a Santa Ceia62, como
o ritual máximo, acontece uma vez por ano. Ordenado biblicamente pelo próprio Jesus, esse
ritual reflete a comunhão e santidade para com Deus e a irmandade. Embora a Congregação
Cristã no Brasil não possua cadastro oficial de membros, esses rituais agem como
mecanismos controladores, apontando o que é (ou não) considerado parte da igreja.
Por fim, no tópico dez, que diz respeito às enfermidades, a CCB acredita que ungir um
doente com azeite e a oração poderá curá-lo. No entanto, chamamos a atenção que, embora se
acredite na igualdade entre os fiéis, o trecho do artigo destaca que se deve chamar o
“presbítero”, ou seja, uma autoridade eclesiástica reconhecida pela igreja, para que faça o
ritual de cura. Embora se acredite, teoricamente, que todos os fiéis tenham a mesma
capacidade de relacionamento com o divino e a mesma capacidade de realizar milagres, na
prática, percebemos que alguns fiéis são mais “santos” que outros.63
O Ósculo Santo:
O ósculo santo (em latim: osculum pacis), chamado também de beijo da paz, foi uma
forma de saudação usada por Jesus Cristo e seus discípulos, pela ação de beijar a face
mutuamente, não somente em regiões onde esse era um costume habitual, mas também entre
os cristãos de Roma. Segundo o Tópico de Ensinamento da Convenção das Igrejas da
61
Falaremos mais detalhadamente sobre o batismo por imersão nas águas em um tópico mais adiante deste
capítulo.
62
Sobre o ritual da Santa Ceia ver o capítulo 4 deste trabalho.
63
Alguns antropólogos debruçaram seus estudos sobre este tema. Ver: Campos & Mauricio Junior (2013);
Amaral (2012); Mauricio Junior (2011); Coleman (2009).
56
Congregação Cristã no Brasil e exterior do ano de 1936, “o ósculo santo deve ser dado de
coração, na despedida do serviço ou em caso de viagem, todavia, sempre entre irmãos ou
entre irmãs, de per si.” Embora, originalmente utilizado no momento de despedida, percebi
em minhas idas a campo, que os fiéis utilizam essa ação como forma de saudação entre
irmãos e irmãs per si (sendo proibida a saudação com o sexo oposto), ou seja, esse ritual é
feito também no momento de chegada, não só no templo, como também em outros espaços
sociais.
O Culto:
64
No dia 17 de março de 2013, começou em todo o Brasil a utilização do Hinário n°5 com trinta novos hinos.
65
Existe a flexibilidade da oração não ser realizada de joelhos caso o fiel seja impedido de fazê-la, como em
caso de doenças, ou em locais como hospitais e funerais.
57
colocam em pé novamente e fazem a leitura da Bíblia, segue-se a pregação; no caso de
nenhum fiel se prontificar, o próprio ancião é incumbido de fazer a pregação.
No culto da Congregação Cristã no Brasil, há duas manifestações discursivas
principais: a dos fiéis (nos testemunhos) e a do Ancião, Cooperador ou a quem for revelado
(na pregação). Ao fim da pregação, não é feito o convite para quem quiser levantar a mão e
ser adepto da religião, como é costume na maioria das igrejas pentecostais, na CCB a
conversão se dá pelo batismo por imersão nas águas, eliminando então a necessidade do
apelo.
De maneira geral, os cultos seguem a seguinte estrutura:
momento de
quarto hino
oração
58
Figura 8: Culto na CCB
– Brás, Anos 2000.
Fonte: Museu CCB
Batismo e Conversão:
O ritual batismal é fundamental não só para a CCB, como para a maioria das igrejas
pentecostais. Sendo ele por imersão (e não por aspersão como na Igreja Católica, por
exemplo) é realizado em pessoas acima de 12 anos ou em casos especiais em que a criança for
“selada66”. O batismo é um ritual de regeneração, de novo nascimento.
Como é o batismo? Ah! É a coisa mais linda do mundo [risos]. Você vê toda
irmandade reunida, cantando... Porque assim... você começa congregando. Aí
Deus fala com sua alma e você sente que Deus está ali. Ninguém contou ao
irmão lá na frente, mas o Espírito sabe. Ele fala com você. Eu fui a um
66
Isto é, batizada pelo Espírito Santo; evento marcado pela manifestação da glossolalia.
59
batismo, sem compromisso, no mês de outubro de 77. Quando estavam todos
cantando, eu senti de ir. A gente sente de ir. É assim que os irmãos sabem
que você entendeu e aceita a doutrina (Selma, 65 anos, grifo nosso).
Eu já cresci na graça67 [...] acho um pouco ruim ter que fazer tudo, tudo, que
a igreja manda. Eu uso roupa de alça e shorts, mas só em casa, e calça pra
escola... Mas eu não posto nada no face...[referindo-se à rede social
Facebook] É por isso que eu num quero muito me batizar... Aí não vai poder...
Nem em casa! As minhas amigas da igreja são batizadas, mas eu não sei...
estou esperando sentir de Deus.
Pra gente [para a CCB] não tem esse negócio de perguntar se a pessoas quer
aceitar Jesus, aí a pessoa levanta a mão e vai na frente dizendo que quer.
Converter por converter, precisamos nos converter todo dia. A pessoa vai
congregando, congregando, congregando... Aí conhece a doutrina, a Santa
palavra... Quando Deus faz sentir, a pessoa se batiza. Aí a gente ver mesmo
que a pessoa se converteu. Mas tem que continuar firme na fé. Também não
67
O termo “crescer na graça” se refere ao fato de que quando a criança nasceu, seus pais já eram fiéis CCB e a
conduziram à igreja desde sua infância.
60
adianta receber o santo batismo e depois cair na graça68, aí a pessoa não se
converteu de verdade (Selma, 65 anos).
68
Cair na graça é um termo similar a “cometer pecados graves”, como adultério, roubo, morte, ou mesmo não
cumprir as normas da igreja.
61
As definições para o termo conversão são múltiplas. Para analisarmos o nosso
contexto etnográfico assumimos que existem diferentes modelos de conversão e que essa
categoria é processual. Apontaremos, então, dois pontos sobre o tema como embasamento, a
fim de refletirmos sobre a conversão na igreja pentecostal Congregação Cristã no Brasil: 1)
Joel Robbins (2007), com seus estudos sobre conversão entre os Urapmin da Papua Nova
Guiné, sob a ótica da conversão como “ruptura” da antiga vida, em prol de uma nova vida
modificada por Deus – conversão ocorrida em um determinado momento, num evento
específico; e 2) Mathew Engelke (2004), na igreja Masowe weChishanu do Zimbabué, numa
perspectiva analítica, considerando a conversão como um processo propriamente dito, uma
busca constante, que ultrapassa o momento de decisão em aderir à crença. Começaremos
apresentando-as.
Em critica ao trabalho dos Camaroff (1991), Robbins acusa o casal de ter negado a
importância do Cristianismo para os Tswana, reduzindo-o a mecanismos de entrada para o
capitalismo, negando, assim, a dimensão cultural do Cristianismo. Uma vez que isso
acontece, o Cristianismo é percebido de maneira contínua, sem possibilidade de mudanças,
invisibilizando categorias novas como o conceito de conversão. Tendo em vista que a noção
de tempo no Cristianismo permite rupturas em seu percurso (e é por ter uma noção de tempo
diferente que a Antropologia tem dificuldade em compreender o processo de conversão),
Robbins entende a conversão como uma ruptura, como mudança radical no estilo de vida
anterior. “But conversion itself, however long it takes to get there, is always an event, a
rupture in the time line of a person’s life that cleaves it into a before and after between which
there is a moment of disconnection” (Robbins 2007: 11). É nesse acontecimento, que marca o
antes e depois da vida do indivíduo convertido, que o autor entende esse momento
fundamental para a conversão. Essa ideia de conversão apresentada por Robbins pode ser
ilustrada pelo momento de conversão do apóstolo São Paulo69. A narrativa bíblica conta que
Paulo, anteriormente chamado Saulo, em caminho para uma perseguição dos cristãos, viu uma
forte luz no céu que o fez cair de sua montaria. Após um curto diálogo com quem o apóstolo
afirma ser Jesus, não só seu nome, mas sua vida foi mudada. Esse evento marca a conversão
de Paulo e, em igrejas pentecostais brasileiras, é muito comum no discurso do fiel ao contar o
momento de sua conversão; geralmente são acontecimentos extracotidianos que marcam a
mudança de vida, assim como na narrativa paulina.
69
O texto bíblico pode ser encontrado em Atos capítulo 9.
62
Tendo em vista a importância da narrativa da conversão, Engelke (2004) toma nota de
uma delas para apresentar sua ideia de conversão. Em seus estudos no Zimbabué, o autor
entende a conversão como um “processo”, já que
A antropóloga Clara Mafra, em seus estudos sobre a formação da pessoa cristã, aponta
que a identidade pentecostal propõe uma reforma cultural e social através de uma concepção
alternativa do “mal”, de forma que:
63
dualismos relativistas vagamente definidos entre o bem e o mal, que eram
forças presentes em algumas versões do catolicismo popular, do
catolicismo progressista e das religiões afro-brasileiras, foram
substituídos por dualismos claramente delimitados, provocando uma
atitude militante de pessoas de ambos os lados. O ressurgimento da figura
do diabo levou a produção de um amplo leque de práticas e rituais de
purificação, resultando na reorganização de um grande volume de crenças
e costumes sincréticos ou híbridos (Mafra 2014: 173).
70
Neste ponto é importante notar que a categoria “problema” não se resume à noção neopentecostal de libertação
de maus espíritos, cura e prosperidade, geralmente interpretada por uma relação de clientelismo igreja-fiel. Neste
caso, consideramos também a busca do indivíduo pelo bem-estar espiritual, paz interior entre outros “problemas”
não materiais.
64
Figura 9: Batismo na CCB. Fonte: CCB Online
A Santa Ceia
A Santa Ceia é um ritual realizado uma vez ao ano na Congregação Cristã. Faz
referência à ultima ceia de Jesus Cristo antes de sua crucificação e é um mandamento deixado
a fim de fazer memória dessa ação. O batismo é o pré-requisito primordial para participação
desse ritual. Só é permitido tomar parte da Santa Ceia, isto é, comer do pão e beber do vinho
que simbolizam, respectivamente, o corpo e sangue de Cristo, aqueles que são membros
batizados na Congregação Cristã. No último capítulo deste trabalho, quando analisamos o
conceito de santidade, indicamos o ritual da Santa Ceia como um ápice dessa santidade.
Naquele momento, trataremos desse ritual com mais especificidade.
O Ministério da Música
A Obra de Deus no Brasil foi iniciada em 1910, e até 1932 não havia
orquestras nas congregações; apenas algumas delas possuíam órgão. Em
maio desse mesmo ano, Deus fez saber a seu servo, o irmão Louis
Francescon, que convocasse uma reunião de anciães, diáconos e alguns
71
http://www.cristanobrasil.com/index.php/museu-ccb
65
jovens, a fim de orarem a Deus e apresentarem a necessidade de um
conjunto de instrumentos que auxiliasse a irmandade no canto dos hinos.
Desde então, muitos irmãos interessaram-se em estudar música, formando
assim as primeiras orquestras. Crescendo cada vez mais o seu número,
passou essa parte a integrar-se na Obra de Deus. Consideraram então os
Anciães a necessidade de haver um irmão Encarregado da parte musical,
tendo Deus apontado para esse encargo o irmão Ancião João Finotti, que
além de ter sido um dos primitivos chamados a esta graça, também era
músico.
Como crescesse a Obra de Deus e o irmão João Finotti não pudesse
atender a todos exames dos músicos, foram colocados como seu auxiliares
os irmãos Miguel Oliva e João Baptista Vano, por ocasião da última viagem
de nosso irmão Ancião Louis Francescon ao Brasil, em 1948. Anos após
foram colocados mais auxiliares, tanto para este Estado (São Paulo) como
para outros.
Figura 10: Primeira Orquestra da Congregação Cristã no Brasil. Fonte: Museu online da CCB
72
Ver capítulo II, tópico 2.
66
desejar trocar deve consultar seu encarregado local, que leva o pedido à reunião ministerial da
localidade para aprovação. Na Congregação Cristã no Brasil é vedado às mulheres tocarem
outros instrumentos além do órgão. Assim, a “organista” é o membro feminino habilitado a
tocar o órgão nos cultos e nos demais serviços.
A CCB possui em sua orquestra os seguintes instrumentos habilitados73: cordas:
violino, viola, violoncelo; flauta transversal; palhetas: oboé, fagote, clarinete, clarone;
acordeon; saxofones: soprano curvo, soprano, alto, tenor, barítono, baixo e contrabaixo;
trompete pocket, cornet, trompa, trombonito, trombone, saxhorn, bombardino, bombardão,
flugelhorn e órgão.
A orquestra toca apenas músicas contidas no hinário da Congregação Cristã no Brasil
que é intitulado de “Hinos de Louvores e Súplicas a Deus”. Possui muitas melodias de autores
norte-americanos e italianos, com algumas poesias traduzidas e semitraduzidas do inglês e do
italiano. São 450 hinos e, dentre eles, músicas especiais para Batismos, Santas Ceias, Funerais
e para as “Reuniões de Jovens e Menores”. O livro original chamava-se Inni e Salmi
Spirituali, publicado no começo do século XX, pela Assemblea Cristiana Italiana de Chicago,
Illinois, USA. Os hinários com notação musical seguem o modelo europeu, contendo as
claves de Sol e de Fá, e estão escritos para instrumentos em Dó, Mi bemol e Si bemol.
A Congregação Cristã não produz gravações de seus hinos, nem mesmo as autoriza.
O Dízimo
73
Informações retiradas do site: http://ccbnomundo.webnode.com.br/orquestra/
67
Na igreja frequentada para a pesquisa de campo neste trabalho existe uma espécie de
caixa para ser colocada a oferta, onde estão separadas as funções de cada oferta. Da esquerda
para direita: construção, piedade, viagem, manutenção, especial. Existem duas dessas caixas
fixadas atrás do banco mais próximo das entradas laterais.
Mídia
74
http://www.cristanobrasil.com/
75
https://www.facebook.com/congregacaocristanobrasil
68
Este site é feito por um membro da Congregação Cristã. Não tem vínculo
algum com a igreja, que não se envolve com quaisquer meios de divulgação
pública. O único site oficial da instituição é www.congregacaocrista.org.br. Os
dados históricos aqui apresentados foram comprovados através de literatura
publicada nos Estados Unidos, entrevistas com norte-americanos de
descendência italiana e outras fontes mais (do site
http://www.historiacongregacaocrista.com.br/).
Este site não possui nenhum vínculo com a igreja CONGREGAÇÃO CRISTÃ
NO BRASIL, não falando por ela ou por seus ministros, mas procurando
sempre respeitá-la (do blog http://comumccb.blogspot.com.br/p/o-site.html).
Glossário
APDD: Se refere à abreviação de "A paz de Deus", é usado em comunicação via internet.
Chamar Na Graça: Batizar na Congregação Cristã, aceitando que sua doutrina é a correta.
Comum: A igreja local que a pessoa habitualmente frequenta, normalmente mais próxima da
sua casa. Geralmente se pronuncia apenas a palavra comum, no lugar de comum congregação.
69
Congregar: significa ir à Igreja, participar do culto.
Criatura: Todas as pessoas que não são da CCB e também não são testemunhados.
Atualmente existe um ensinamento para o termo não ser usado.
Deus Seja Louvado: Seguido de um “amém” coletivo, a expressão Deus seja louvado é dita
sempre que um fiel iniciar uma fala diante da irmandade no momento de culto.
Ficar sem Liberdade: Não poder mais chamar hinos, orar e testemunhar na igreja, se for
ministro, não poderá executar nenhum serviço religioso, por quebra da doutrina.
Firme/Forte na Fé: quando o fiel é/está entusiasmado com a sua fé. Esse fiel frequenta a
igreja assiduamente, obedece às normas e doutrinas, é selado com o dom de línguas, etc.
Nascer na Graça: Muitos filhos de fiéis que, ao nascerem, seus pais já eram crentes na
congregação, costumam usar o termo para indicar que desde a infância frequentam a CCB.
Revestido: Se diz de irmãos pregadores cheios de virtudes, fervorosos, que sempre recebem
revelações do Espírito Santo (que se cumprem) e falam em outras línguas.
Seitário: Qualquer evangélico que não pertence à CCB. Muitos ainda a utilizam,
internamente, ao se referirem aos crentes de outras igrejas, uma vez que a CCB entende que
somente sua doutrina é biblicamente correta e que as demais são seitas.
Servo de Deus: São todos os crentes que obedecem a Deus, mas geralmente aplicado aos
irmãos do ministério.
Testemunhança: Momento no culto o qual o membro pode contar alguma bênção recebida de
Deus. O ato de se levantar para contar chama-se testemunhar.
71
3 TÉCNICAS CORPORAIS E A CONSTRUÇÃO DO CORPO
RELIGIOSO
76
O corpo, sendo ele principal elo entre o sujeito e o mundo, é socialmente construído e nele se materializa a
relação sujeito/sociedade, tornando-se palco de conflitos simbólicos. A cultura não é apenas um agrupamento de
complexos padrões concretos de comportamentos (costumes, tradições, hábitos), mas um conjunto de
mecanismos de controle (regras, nomas, instituições) do comportamento. Para Geertz (1978), o homem é
precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle para ordenar o seu
comportamento. Os padrões culturais agem como sistemas organizados de símbolos, e a cultura, vista como
totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição
essencial para ela, a principal base de sua especificidade. Contudo, o corpo não se limita a refletir a sociedade,
antes se constitui como um body subject, em que a subjetividade está localizada no corpo (Jackson 1989).
72
problemas metodológicos, propondo uma reflexão sobre o “logocentrismo, a escrita, a
visualidade ou a performance como instrumentos expositivos questionáveis ou potenciáveis a
partir do corpo”; por outro lado, os que se apoiam em outros campos, investigando o corpo
aos moldes do simbolismo, da fenomenologia, da hermenêutica, entre outros, tendo sempre
“um pano de fundo a investigação antropológica, que tantas vezes nos ensina que é preferível
o diálogo entre teorias à luz da diversidade de objetos de análise e experiências de terreno, do
que um manual monolítico para a leitura do mundo” (Vale de Almeida 2004: 3).
Vale de Almeida, ainda em seu trabalho sobre “O corpo na teoria antropológica”
(2004), propõe, a partir da teoria de Lock (1993), sete tópicos que servem como mapeamento
das áreas mais focadas pela antropologia contemporânea em torno do estudo sobre o corpo:
73
Outros autores, como Featherstone e Turner (1995), Shilling (1993), Synnott (1993) e
Giddens (1991) podem ser agregados aos diversos temas abordados pela antropologia do
corpo. Neste trabalho, optaremos por Mauss (1935), Bourdieu (1983), Merleau-Ponty (1999)
e Csordas (1990) para uma abordagem clássica, mais geral, sobre a ideia de corpo, dando
ênfase à dimensão corporificada da cultura e das práticas sociais. Em seguida, pensaremos o
corpo para pentecostais no Brasil baseando-nos nos trabalhos de Rivera (2006) e Rabelo &
Mota (2006).
Marcel Mauss (1872-1950) contribuiu fortemente para a produção do conhecimento
científico, debruçando-se sobre diversos campos, dentre eles o corpo. A atualidade da teoria
maussiana é facilmente constatada ao refletirmos sobre o simbolismo corporal nos rituais
religiosos, analisando as técnicas do corpo.
Dizia Mauss, ‘é preciso fazer como eles [os historiadores]: observar o que é
dado. Ora, o dado é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio dessa
ou daquela ilha, e não a prece, ou o direito em si’ (1974, p. 181). Interessa
observar o que é dado e o que é dado é o que fazem romano, o ateniense e o
francês, quando fazem suas rezas, suas leis etc. São os homens concretos
(como o “francês médio” ou o “melanésio dessa ou daquela ilha”) com suas
ações e representações em torno do corpo, da religião, da culinária, das
expressões obrigatórias dos sentimentos, o “objeto” da antropologia do
concreto de Mauss. Sendo o que mais lhe importa é o ato de rezar e não a
reza sem vida, o ato de dizer e não o dito sem sentido (Rocha 2008: 134 –
grifo nosso).
Mauss abre as portas para pensarmos o campo religioso a partir de uma teoria da ação:
o que importa é o ato, o fazer, o rito, a eficácia simbólica. Essa eficácia só é presente na
religião pelo fato desta última carregar consigo vestígios da magia. Contudo, a magia é, para
Mauss, ação simbólica e linguagem, pois através da magia a sociedade comunica-se (Mauss &
Hubert 1974). A partir de então, Mauss dedica-se ao estudo da categoria “magia”, e em seu
“Esboço de uma teoria geral da magia” (1974b) apresenta uma larga definição da magia como
sendo uma construção social, uma vez que o poder mágico de muitos seres ou personagens
não pertence a eles, pertence, em princípio, às instituições que representam, ou seja, não é
mágico quem quer, mas quem possui qualidades já reconhecidas pelo grupo social; o exemplo
de profissões como médicos e artesãos, e de lugares como cemitérios e encruzilhadas
contribuem para a criação de uma imagem da magia e tal fenômeno social, que é a magia, é
composto por três elementos: o “agente” da magia, o “rito” (ação) e a “representação das
coisas”. Não é nossa intenção aprofundar na discussão sobre o conceito de magia, mas nos
cabe introduzi-la, a fim de sinalizar a trajetória do pensamento maussiano sobre o corpo, pois
74
partindo da ideia de que a magia é entendida como um sistema de representações e práticas
simbólicas, o dizer é um modo de fazer e o fazer pode ser visto como um outro modo de
dizer; assim, Mauss se dedicou à análise dos ritos verbais (como a prece) e das técnicas
corporais.
De acordo com Marcel Mauss (1974a) não se deve reduzir o conceito de técnica
considerando-o apenas quando houve instrumento. É preciso voltar aos dados platônicos
sobre técnica na tentativa de ampliar essa noção. Mauss (1974: 217) afirma:
Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere
do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz.
Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. É nisso que o
homem se distingue sobretudo dos animais: pela transmissão de suas
técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.
Mauss adiantou ainda que o corpo ao mesmo tempo em que era “objeto” de técnica,
era também “meio” técnico. Além disso, indicou o lado subjetivo da técnica, apresentando os
usos corporais como culturalmente padronizados. Segundo Mauss, essas técnicas do corpo
são estruturadas, montadas, agrupadas na consciência de cada indivíduo e formam um sistema
simbólico de ação e interpretação. Assim, são classificadas dentro de um sistema de ordem
social, sendo permitidas ou proibidas, condicionando, portanto, o estilo de vida de cada um.
Nesse ponto, Mauss nos ajudará a refletir sobre o estilo de vida das mulheres da Congregação
Cristã no Brasil, as quais, com suas técnicas corporais montadas em suas consciências,
evidenciam, por meio de um sistema simbólico – representado no corpo – sua identificação
religiosa. Ao tratarmos de “corpo”, o consideramos não só biologicamente, pensando a
técnica corporal como estritamente motora, mas destacamos que “objetos externos” ao serem
adaptados, tornam-se também parte da construção do corpo social e do corpo religioso, a
exemplo da vestimenta específica e dos adornos (sejam ele permitidos ou não) que
contribuem para a identificação do corpo religioso da mulher. Segundo Marcel Mauss, a soma
total de usos culturalmente padronizados do corpo numa sociedade, ou seja, uma coleção de
prática, pode ser entendida como um habitus.
Ampliando a proposta maussiana, Pierre Bourdieu (1930-2002) apresenta o conceito
de habitus como “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as
experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de
76
apreciações e de ações” (Bourdieu 1983b: 65) que, segundo Vale de Almeida, “este princípio
não é mais do que o corpo socialmente informado” (Vale de Almeida 2004: 12).
O conceito de habitus foi utilizado desde a tradição escolástica, com o filósofo grego
Aristóteles, numa tradução da ideia de hexis, designando características do corpo e da alma
adquiridas num processo de aprendizagem. Séculos depois, Durkheim retoma o conceito em
seus trabalhos sobre educação para indicar o estado geral dos indivíduos que orienta suas
ações de forma durável (Setton 2002).
Segundo Bourdieu, o mundo social é objeto de três modos de conhecimento:
O conceito de habitus surge, então, como “um conceito capaz de conciliar a oposição
aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Capaz de expressar o diálogo, a
troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades”
(Setton 2002: 63). Assim sendo, Bourdieu evoca a ideia de habitus, definindo-o como sistema
de disposições duráveis, princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e a
estruturação de práticas e representações, uma subjetividade socializada. Bourdieu mostra
como as diversas posições ocupadas no espaço social estão relacionadas com os diferentes
estilos de vida resultados do mesmo operador simbólico, o habitus. Este consiste em uma
matriz que cria comportamentos, visões de mundo e sistemas de classificação da realidade
que se incorpora aos indivíduos (ao mesmo tempo em que se desenvolve neles), seja no nível
das práticas, seja no nível da postura corporal (hexis) desses mesmos indivíduos. Desse modo,
o habitus é apreendido, gerado na sociedade e incorporado nos indivíduos. Esse poder de
retenção é um poder basicamente corporal, ainda que não se conheçam os mecanismos dessa
capacidade de memorização física. O conceito de campo complementa o de habitus, pois,
para Bourdieu, o campo consiste no espaço em que ocorrem as relações entre os indivíduos,
77
grupos e estruturas sociais, espaço esse sempre dinâmico e de disputas. E é nesse lugar de
disputas que ocorrem as atividades condicionadas pelo habitus. Por fim, a concepção de
habitus apresentada pelo autor acrescenta certa dimensão inconsciente, definindo o corpo
como socialmente informado, é o “princípio gerador e unificador de todas as práticas”.
Contudo, não nega a possibilidade da reflexão e certa consciência das práticas, desde que o
contexto histórico lhes permita:
Pierre Bourdieu amplia e torna mais específica sua proposição ao pensar o uso social
do corpo como objetivação do gosto de classe. Os hábitos corporais, segundo o autor,
corresponderiam ao conjunto de condutas próprias de comportamentos ligados a uma posição
de classe, sendo os hábitos sociais e gostos culturais inscritos num comportamento próprio
que funcionaria como uma forma de distinção social, uma vez que “o estilo pessoal, isto é,
essa marca particular que carregam todos os produtos de um mesmo habitus, práticas ou
obras, não é senão um desvio, ele próprio regulado e às vezes mesmo codificado, em relação
ao estilo próprio a uma época ou a uma classe” (Bourdieu1983b: 80-81).
Da mesma maneira, podemos propor que uma “distinção de religião” ou “gosto
religioso” é efetivada pelo habitus específico das mulheres CCB, como discutiremos mais
adiante. Os lugares frequentados, o que se come e bebe, o que se aprecia e o que se nega são
características produzidas nesse corpo religioso a partir da crença do grupo em que se está
inserido e manifestada como afirmação e identificação de pertencimento ao grupo. Ao olhar
uma mulher da Congregação Cristã no Brasil, mesmo que a denominação não seja
primeiramente associada77, sua identificação com a vertente religiosa (pentecostal clássica)
será certamente conhecida. Haveria, então, uma multiplicidade de processos, de origens
diferentes que se reproduzem e se distinguem, fazendo da construção da imagem do corpo,
hoje, não apenas uma forma de controle social que se manifesta diretamente, mas algo que
atua na produção de subjetividades, produzindo gostos e distinções como aqueles percebidos
no estilo de vida das mulheres da Congregação Cristã.
77
Pois outras denominações evangélicas têm os mesmos costumes quanto à vestimenta feminina.
78
Seguindo a mesma linha de pensamento bourdieusiano, Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961), em uma perspectiva fenomenológica, diverge de uma visão dicotômica e
mecanicista com raízes nas proposições de Descartes (corpo-alma; corpo-mente).
Para ele, antes de ser um objeto, o corpo é nosso modo próprio de ser-no-mundo, de
maneira que o indivíduo está corporalmente inserido no mundo, ou seja, suas relações com as
outras pessoas e com os objetos são mediadas primordialmente pelo corpo. O corpo é um
agente e é a base da subjetividade humana. Sobre essa subjetividade, Merleau-Ponty a define
como um fenômeno social e intersubjetivo, que assenta um habitus social comum, disponível
publicamente, assumindo uma forma incorporada e cultural. Merleau-Ponty vai além da ideia
de corpo como mero objeto. “Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não
tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo” (Merleau-Ponty 1999: 269). Ao
afirmar isso, Merleau-Ponty assume que os agentes sujeitos humanos são corpos e os corpos
são seres sensible-sentient, comunicativos, práticos e inteligentes (Vale de Almeida 2004: 13).
Na célebre obra “Fenomenologia da Percepção”, publicada pela primeira vez em 1945,
Merleau-Ponty vai até à raiz da subjetividade com sua concepção do corpo-sujeito, corpo esse
que estabelece com o mundo uma relação pré-objetiva, pré-consciente, de caráter dialético, de
modo algum causal ou constituinte: fazer do corpo o sujeito da percepção não significa ceder
ao impulso do empiricismo, mas antes tomar partido contra o racionalismo cúmplice do
empirismo no sentido de se ligarem ao pensamento causal. “Rejeitamos o formalismo da
consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção”. E “a percepção não é uma ciência do
mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o
qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles” (Merleau-Ponty 1999: 6).
Na fenomenologia de Merleau-Ponty (1999), a percepção está relacionada à atitude
corpórea e a experiência do corpo configura um conhecimento sensível sobre o mundo.
79
Segundo Merleau-Ponty, a percepção começa no corpo e termina nos objetos de forma que
não se tem objeto anterior à percepção. A percepção ocorre no mundo, já que “não existem
objetos, nós simplesmente estamos no mundo” (Merleau-Ponty 1999: 6). O autor ainda afirma
que
Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de
arte. Em um quadro ou em uma peça musical, a idéia só pode comunicar-se
pelo desdobramento das cores e dos sons. [...] Um romance, um poema, um
quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se
pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um
contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar
temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de
arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de
termos co-variantes.
“O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a
um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles.”
(Merleau-Ponty 1999: 122). A experiência pré-objetiva, isto é, do ser no mundo, implica que a
existência corporificada se encontra exterior (ou anterior) à cultura. O pré-objetivo, segundo
Merleau-Ponty, corresponderia à experiência de perceber, que começa no corpo e termina nos
objetos, de forma que os objetos seriam um “produto secundário” do pensamento reflexivo.
Esse autor nos ajudará a compreender como o corpo da mulher na Congregação Cristã no
Brasil, adornado com suas técnicas e indumentárias, reflete uma característica perceptiva e
pré-objetiva de religião à qual pertencem. Ao explicar a percepção, Merleau-Ponty reconhece
80
o corpo como lugar de um conhecimento originário do mundo e de si próprio, um saber
sensível que antecede o conhecimento reflexivo, mas que, ao mesmo tempo, o possibilita.
Mauss, Bourdieu e Merleau-Ponty serviram de inspiração para o antropólogo
contemporâneo Thomas Csordas e sua proposta do conceito de embodiment78. Esse autor nos
servirá como meio de reflexão sobre o estilo de vida das mulheres da CCB, gerenciando as
ideias dos autores anteriormente abordados. Csordas embasará nossa proposição do corpo
como sujeito da cultura, incorporando também objetos da cultura que indicaram o corpo
religioso na própria experiência corpórea.
78
O conceito de “embodiment” – com diversas traduções para o português como “incorporação, corporificação”
– apresenta um novo paradigma da corporeidade, no qual o corpo é pensado como “sujeito da cultura”, como a
“base existencial da cultura”.
79
Este e outros 9 artigos, baseados na larga experiencia de Csordas em pesquisas acerca de rituais de cura entre
católicos carismáticos norte-americanos e indios navajos, foram traduzidos para a língua portuguesa e agrupados
na obra Corpo/significado/cura. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2008.
80
“the body is not an object to be studied in relation to culture, but is to be considered as the subject of culture,
or in other words as the existential ground of culture” (Csordas 1990: 5)
81
“a paradigm of embodiment can be elaborated for the study of culture and the self” (Csordas 1990: 5)
81
cultura, o conceito abarca as restrições sociais e os significados sociais nos processos
perceptivos82.
Para endossar o argumento sobre a necessidade de uma teoria da percepção, Csordas
reconhece mais um autor para o qual “percepção e prática” aparecem como fundamentais para
a construção cultural do sujeito. O autor apresenta a proposição maussiana de que todos os
seres humanos têm um senso de individualidade espiritual e corporal e que determinadas
condições sociais estavam associados a diferenças qualitativas entre a personagem totêmica, a
persona clássica e a pessoa cristã83. E, embora Mauss84 tenha reproduzido as dualidades
cartesianas em la notion de la personne, seria interessante retomá-los, já que tanto Hallowell
quanto Mauss não puderam avançar mais do que sua época permitiu.
Assim sendo, Csordas aponta para um paradigma da corporalidade, a partir de
estudos realizados com movimentos cristãos religiosos nos Estados Unidos85. Propõe a
falência das dualidades entre corpo e mente, sujeito e objeto, retomando os conceitos de pré-
objetivo (Merleau-Ponty) e o de habitus (Bourdieu). O primeiro elabora o embodiment a partir
de uma problemática de percepção, enquanto o segundo sob um discurso da prática (Csordas
1990: 7).
Both attempt not to mediate but to collapse these dualities, and embodiment
is the methodological principle invoked by both. The collapsing of dualities
in embodiment requires that the body as a methodological figure must itself
be nondualistic, that is, not distinct from or in interaction with an opposed
principle of mind. Thus, for Merleau-Ponty the body is a "setting in relation
to the world," and consciousness is the body projecting itself into the world;
for Bourdieu the socially informed body is the "principle generating and
unifying all practices" and consciousness is a form ofstrategic calculation
fused with a system of objective potentialities. I shall briefly elaborate these
views as summarized in Merleau-Ponty's concept of the preobjectiue and
Bourdieu's concept of the habitus (Csordas 1990: 8)
82
“The concept thus did more than place the individual in culture, linking behavior to the objective world, but
also linked perceptual processes with social constraints and cultural meanings” (Csordas 1990: 6)
83
“that all humans have a sense of spiritual and corporal individuality. At the same time, he argued that
particular social conditions were associated with qualitative differences among the totemistic personage, the
classical persona, and the Christian person” (Csordas 1990: 7)
84
MAUSS, Marcel. [1938] 1950. Une Categorie de L’Esprit Humain: La Notion de la Personne, Celle du “Moi”.
Sociologie et Anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France.
85
Estudos relacionados com linguagem ritual e cura. Ver: Csordas, T. 1994a, 1994b e 1997.
82
conceito permite refletir sobre o “processo de objetificação”, pois a constituição do objeto
cultural está diretamente ligada a intencionalidade, e é na experiência que se dá sustentação à
objetividade. É na dimensão pré-objetiva que o corpo ganha status de veículo da existência, o
acesso ao ser através da percepção; o ser no mundo é ter um corpo em contato com o mundo.
E esse corpo socialmente informado é o “princípio gerador e unificador de todas as práticas”
como apresentado por Bourdieu. Para Csordas, é preciso elevar o corpo à condição de sujeito
da cultura, base existencial em que a própria cultura se realiza. O corpo é sempre o sujeito da
nossa percepção e essa percepção ocorre no corpo, no mundo.
Com base em seus estudos sobre cura e possessão com os grupos carismáticos,
Csordas parte do pressuposto de que o objeto da cura não é a eliminação de uma coisa
(doença, problema, sintoma), mas a transformação de uma pessoa, “sujeito que é ser
corpóreo”. O autor defende o paradigma da corporeidade, a partir de um “colapso da
dualidade entre corpo e mente, sujeito e objeto”. O argumento é o de que ao desfazer a
distinção entre mente e corpo, sujeito e objeto, os processos orgânicos endógenos, um tanto
misteriosos que são retoricamente controlados na cura ritual, tornam-se compreensíveis como
processos do self baseados na corporeidade. A própria linguagem torna-se compreensível
como processo do self quando é entendida não como representação, mas como desempenho
de um modo de estar-no-mundo.
Para Csordas (1990), finalmente, na construção do que chama “paradigma da
corporeidade”, a análise da prática (habitus) e da percepção (o pré-objetivo) permite romper
com as distinções convencionais entre sujeito e objeto e, ao fazê-lo, inaugura um novo campo
de possibilidades, em que a experiência corporal é o ponto de partida, e em que os objetos
culturais (incluindo os sujeitos) são constituídos ou objetificados no fluxo e na
indeterminação em curso da vida cultural, que inclui também a vida religiosa, para a qual nos
voltaremos agora.
Historicamente, o protestantismo mostrou regras de controle sobre o corpo num
puritanismo ao qual Max Weber (2004) chamou a atenção ao constituir sua teoria sobre o
ascetismo intramundano, afirmando que “eliminar a espontaneidade do gozo impulsivo da
vida, a missão mais urgente, botar ordem na conduta de vida de seus seguidores, o meio mais
importante de ascese”. Paulo Rivera (2006) faz um levantamento de como essa percepção do
corpo puritano transcorreu o protestantismo, chegando ao movimento pentecostal. Segundo o
autor, desde o século XVI, o controle e o domínio do eu foram reconhecidos como
necessários para o governo familiar e político.
83
Manuais para comportamento adequado, tanto religioso quanto civil,
espalhando as máquinas de impressão do século dezesseis, compuseram
grandes estoques sobre a submissão e a obediência do corpo, e sobre o
cultivo das boas-maneiras, da decência e do decoro (2006: 19).
Não só a igreja, mas médicos, juristas e educadores, cada qual em seu espaço social,
constituíram parte de um grupo europeu interessados na produção de pessoas “civilizadas”.
Percebemos, então, que “o protestantismo não construiu uma percepção do corpo de maneira
autônoma ou isolada do resto da sociedade” (Rivera 2006: 21).
A primeira onda de missionários pentecostais no Brasil trouxe consigo essa raiz
histórica de conservação do corpo. O corpo adquire lugar privilegiado no meio religioso
pentecostal, pois é com esse corpo que se manifestam as crenças e valores. Seja num
momento de êxtase ou na simples maneira de se vestir, o corpo comunica a pertença religiosa.
84
a construção do corpo no pentecostalismo se dá através de um conjunto de
práticas disciplinadoras que promovem posturas, regulam gestos e
movimentos, instituem e punem comportamentos; e, ao fazê-lo, conduzem à
formação e à expressão de uma certa subjetividade (Rabelo & Mota 2006:
221).
86
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul e DREYFUS, Richard. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
87
MAHMOOD, Saba. Politics of Piety. Princeton: Princeton University Press, 2005.
85
No caso específico do pentecostalismo, poderíamos dizer que a disciplina
imposta na igreja sobre as fiéis e que elas se esforçam por assumir –
regulando os corpos e estabelecendo os contornos possíveis para a
compreensão de passado, presente e futuro – cria também um certo campo
de sensibilidade e de ação, em que certas medidas podem ser rotineiramente
acionadas na lida cotidiana (Rabelo & Mota 2006: 240).
A Congregação Cristã no Brasil pode ser considerada uma das mais rígidas com
relação ao uso do corpo: não é permitido beber, fumar, frequentar lugares “inapropriados”,
usar vestimentas “vulgares”; nada que seja mundano. Mas isso não significa não cuidar do
corpo, pois “não se trata, entretanto, de relegar o corpo a um segundo plano, até porque a
aparência precisa refletir o estado de pureza interior” (Rabelo & Mota 2006: 224) Existe um
cuidado com o corpo, uma preocupação na maneira de vestir-se – combinando tons e
modelitos, de arrumar os cabelos de maneira a estarem bonitos e confortáveis sob o véu, em
sentar-se de maneira apropriada. Utilizar o corpo em prol da vida religiosa não é
“aprisionamento” ou “controle” da instituição sobre o fiel, na ótica das entrevistadas, é, ao
contrário, libertação dos desejos mundanos.
Deus quer que a gente seja Santo, como Ele. O Espirito Santo é Santo, três
vezes Santo, e não aceita as coisas do mundo. Temos que ser diferentes. Paulo
disse para ser santo em toda a maneira de viver. E se é em toda maneira de
viver, é no falar, no vestir, até no andar. Eu como crente não vou andar me
rebolando por aí, vou? É assim que Deus quer, e eu aceito isso, porque sei
que Ele quer o melhor pra mim (Simone, 43 anos).
Mesmo quando eu era criatura não gostava dessas roupas... sabe? Assim,
curta... transparente... você sabe. Eu agora que conheci a graça, que não
gosto mesmo. Minha filha só gosta de saia no joelho, eu já gosto de longa. O
importante é estar coberta. Essas meninas, mesmo dentro da igreja, tão tudo
vaidosa. Deus não se agrada disso não. Tem que ser liberta dessas coisas
(Selma, 65 anos).
88
Já que o corpo não é apenas uma entidade física que possuímos, antes, é um sistema-ação, um modo de práxis
e sua imersão prática nas interações cotidianas (Giddens 1994).
86
2.2 O corpo na CCB
Pode-se pensar, neste sentido, que, além do corpo ser muito mais importante
do que a roupa, ele é a verdadeira roupa: é o corpo que deve ser exibido,
moldado, manipulado, trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido,
construído, produzido, imitado. É o corpo que entra e sai da moda. A roupa,
neste caso, é apenas um acessório para a valorização e exposição deste corpo
da moda (Goldenberg 2006: 118).
87
2.2.1 Técnicas Corporais e Indumentárias
Se a sociedade atua como mecanismo modelador dos corpos, como apontou Mauss
(1974a), a religião atua como molde para esses corpos. É no corpo, com todas suas técnicas,
que a ligação com o sagrado, que a identificação religiosa, é legitimada. A mulher convertida
à Congregação Cristã incorpora, por meio de técnicas de corporificação (dentre elas a
vestimenta), a cosmologia do grupo religioso como orientação de sua conduta e estilo de vida.
São as técnicas corporais que organizam a identidade religiosa, marcada pelos valores
adotados pelo grupo. Diante disto, podemos indicar que, assim como Bourdieu (1983b)
pensou o uso social do corpo como objetivação do gosto de classe, os hábitos corporais das
mulheres da CCB correspondem ao conjunto de condutas próprias de comportamento, ligados
a uma posição religiosa. A distinção e o gosto de classe/religião se constroem e se expressam
através do corpo.
Essas técnicas corporais apresentadas pelas mulheres CCB puderam ser observadas
nos momentos de culto, sendo evidenciadas nos momentos de oração e “preenchimento do
Espírito Santo”.
Antes mesmo do início do culto, a igreja já se encontra cheia. Chegar antes da hora
marcada para o culto pareceu-me requisito demonstrador de respeito em que o todo coage o
indivíduo a adequar-se, já que atrasos não são bem quistos. Os fiéis, de maneira geral, atuam
homogeneamente no início do culto. Silenciosamente entram homens e mulheres, cada qual
por sua porta – as mulheres, antes da porta, colocam logo seus véus – saúdam os irmãos de fé
com o ósculo santo, ajoelham-se e oram ainda em silêncio. Até o momento do “hino do
silêncio”, alguns conversam baixinho, outros dizem “glória a Deus” e outros ainda parecem
estar num momento de concentração: olhos fechados, testas franzidas e, ao que parece, estar
falando com Deus ou consigo mesmo em pensamento. Fora da igreja, algumas pessoas, de
maioria jovem. Ao passo que a organista toca, todos entram e/ou se acomodam. Os corpos
tortos, os braços que antes estavam sobre o encosto do banco e as pernas cruzadas ou
encostadas no banco à frente aprumam-se quase que instantaneamente, as mães arrumam as
crianças dando-lhes as últimas recomendações para ficarem quietas. Alguns olhos se fecham,
enquanto bocas são abertas com os ecos de “glória a Deus”, “tu és santo”, “louvamos o teu
nome”, “bendito seja Deus nas alturas”. O ancião finalmente marca o início do culto ao subir
no púlpito, de paletó e gravata, dizendo “Deus seja louvado”; todos respondem
conjuntamente: “Deus seja louvado”. O ancião segue: “louvemos o hino de número tal”.
Todos pegam seus hinários e abrem, procurando a música correspondente. Alguns corpos
88
endireitam suas colunas – imagino que para o diafragma atuar com mais liberdade e a voz sair
melhor. Os hinos começam a ser entoados em uma só voz. Algumas irmãs têm os olhos com
lágrimas.
Após o momento de louvor, o ancião indica o período de oração. Ele diz que qualquer
irmão ou irmã que “sentir de Deus” pode e deve conduzir a oração. Todos se colocam de
joelhos. Os bancos tem em sua base uma espécie de prolongamento, uma madeira paralela e
suspensa, onde todos colocam os joelhos. De frente para o púlpito onde está o ancião, de
joelhos dobrados, os corpos se acomodam à nova posição: os véus são arrumados; as mãos
são colocadas juntas, com dedos cruzados, outras são colocadas na testa, cobrindo os olhos,
ou simplesmente se apoiam no banco à frente; as mães, que antes deram as recomendações de
comportamento, olham atentas e aprumam suas filhas para orar ou dão papel e lápis para as de
menos idade se distraírem; todos os olhos são fechados. Quando finalmente alguém começa a
oração, a reverência quase militar parece ser quebrada; não para uma desordem, mas para um
momento de maior liberdade dos corpos. As vozes se elevam com frases que falam de Deus.
Choro e riso parecem se misturar entre os soluços altos de algumas fiéis que parecem até
prever esse momento, pois algumas levam lenços e toalhinhas de rosto para conterem o suor e
as lágrimas. Observamos que a respiração é alterada – fica ofegante –, alguns pés balançam
como que inquietos e há manifestação de glossolalia. Parece-me que os corpos conduzem, aos
poucos, numa sequência de ações até culminar na glossolalia. Após a fala em outras línguas,
que segundo a cosmologia interna é a língua falada pelos anjos, os corpos parecem fazer o
movimento inverso, se acalmando aos poucos. O choro vai cessando, os soluços diminuem, os
pés se acalmam, a voz não é mais tremula e a respiração volta ao padrão normal.
Mesmo com todas as manifestações de desordem do corpo, notamos que ainda assim,
esse corpo era controlado. Havia choro, mas não eram acompanhados de gritos e excessiva
emotividade. Em entrevistas posteriores, as mulheres estudadas afirmaram ser assim mesmo a
“presença de Deus” / “o sentir de Deus”, mas com toda ordem e decência, sem tumulto como
em outras igrejas. Embora não citasse nome de outras denominações pentecostais,
provavelmente se referiam às igrejas neopentecostais, conhecidas pelos seus cultos de
libertação e exorcismos.
O conjunto de experiências corpóreas evidencia e legitima o contato com o sagrado,
bem como autentica sua santidade e pertença ao grupo. São também as técnicas corporais que
os distinguem de outras denominações pentecostais. Ser tocado pelo Espírito Santo e sentir a
presença de Deus não é apenas emoção momentânea ou uma sensação que termina após o
89
culto, não é simplesmente uma conduta ligada ao momento ritual e deve ser sempre
experienciada com essas técnicas corporais; antes é levada à vida cotidiana, adaptando-se ao
momento específico, em um processo que implica reflexão e tomada de decisões racionais
que moldam o estilo de vida da fiel.
Se o corpo pode ser comparado a uma obra de arte como Merleau-Ponty (1999)
afirmou, podemos apontar que as técnicas corporais possibilitam a comunicação, assim como
os tons das cores num quadro. Consideramos que o corpo não é apenas biológico, ele está
carregado de símbolos e significados culturais e, consequentemente, religiosos. Os objetos
que compõem o corpo sujeito cultural passam também a fazer parte desse corpo e tornam-se
um só sujeito. A percepção baseia-se no comportamento, de maneira que adornos corporais
comunicam a crença religiosa e atuam como sujeitos, quebrando o paradigma sujeito versus
objeto, como foi proposto por Merleau-Ponty.
Nesse sentido, refletiremos também como a vestimenta se constitui numa fonte
carregada de significados e identidades para as mulheres da Congregação Cristã e que
expressa características individuais de quem as veste, mas que também evidencia aspectos do
grupo ao qual se pertence. A figura feminina e sua vestimenta, frequentemente, estão
atreladas a conceitos de beleza, moral, e elegância, em que a indumentária é parte importante
de sua identificação. A lógica de valorização dos atributos sensuais do corpo, que é pregado
pelo mercado da moda, é o oposto do que a moral cristã recomenda. As instituições religiosas
são, portanto, os principais agentes de questionamento e interferência no que se refere ao
comportamento e ao trajar feminino, tentando construir, a seu modo, a imagem de mulher
ideal, enfatizando a distinção entre os sexos e defendendo a legalidade dessa censura feminina
fundamentada nos textos bíblicos. Assim sendo, a relação da mulher com as formas de vestir
traz uma forte significância em sua convivência social. A relação mulher / vestimenta é algo
que está para além do ato de trajar. Está carregado de significados, presentes na construção de
sua identificação, sendo ainda um veículo de comunicação no qual suas individualidades são
manifestadas. A indumentária feminina atua como pré-objeto, num sentido merleau-pontyano,
além de contribuir para manutenção do habitus que indica seu “gosto de religião”,
desencadeando aquilo que Csordas chama de embodiment.
Na Congregação Cristã, as mulheres obedecem a um padrão de vestimenta: saias e
vestidos minimamente à altura dos joelhos (podem ser longos), blusas com mangas, roupas
sem transparências e que não demarquem o corpo. Não há restrições para calçados. Além
disso, não é permitido o uso de maquiagens, esmaltes de unhas, joias como colares, pulseiras
90
e brincos. Também não é permitido cortar os cabelos. Portar-se desse modo, atesta sua
devoção e obediência a Deus e longe de ser “opressão”, é na verdade uma transformação na
perspectiva de vida.
Quando eu era criatura, eu era muito vaidosa. Não tinha quem me fizesse
usar uma saia. Só gostava de calça e bermuda. Mas também nunca gostei de
shortinho, essas roupas curtas ou decotadas... Depois que recebemos a graça,
Deus faz a gente enxergar tudo diferente. É o Espírito Santo que transforma a
gente. Eu comecei a congregar por curiosidade, aí fui gostando. Comecei a
pensar que as irmãs eram realmente chamadas por Deus. Hoje eu não tenho
vontade nenhuma de usar calça ou me vestir como antes, já faz 25 anos que
desci ao santo batismo. Temos que fazer a diferença (Simone, 43 anos).
As roupas e todos os ornamentos (ou a falta deles) produzem nas mulheres CCB
comportamentos capazes de indicar sua pertença religiosa. A vestimenta está, portanto,
carregada de significados que manifestam o grupo social no qual o indivíduo está inserido, no
nosso contexto, essa vestimenta indica uma mulher do pentecostalismo clássico. As fiéis da
Congregação Cristã reafirmam a necessidade de ser diferentes, e isto se dá, dentre outras
maneiras, pela vestimenta que utilizam.
Conhecida como “a igreja do véu”, o véu se constitui uma peça muito importante que
compõe a indumentária feminina. Usado somente nos momentos de culto, dentro da igreja ou
fora dela, o véu para a Congregação Cristã é artefato imprescindível.
O véu é o cabelo da mulher, só que na rua. Por isso que não pode cortar.
Deus não quer. Dentro da igreja tem que usar um de pano mesmo, e tem que
ser branco [...] Representa pureza (Simone, 43 anos).
O véu é muito bonito, mostra respeito com Deus. Não pode chegar pra orar
de qualquer jeito. Pra orar tem que colocar o véu e se ajoelhar. Só orar em pé
nos funerais ou se a pessoas tiver algum problema de saúde que impeça. O
véu é muito importante (Lívia, 38 anos).
O véu é obrigatório apenas para fiéis CCB, para pessoas visitantes o uso não é
imposto, mas é sempre oferecido. Quando veem uma visitante, uma mulher da igreja faz uma
abordagem prévia, oferecendo o véu, o hinário e indicando o lugar em que se deve sentar. Na
igreja existem alguns véus para pessoas visitantes e as mulheres da igreja geralmente levam
um ou dois véus extras para o caso de uma necessidade.
Embora as mulheres entrevistadas não me indicassem o tipo de véu usado por elas –
esse véu não teria nome específico – indicavam sempre o mesmo versículo bíblico para
91
justificar o seu uso: Primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, capítulo 11 e os versículos
abaixo, especialmente o de número 6:
4. Todo o homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua
própria cabeça.
5. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra
a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada.
6. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se
para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu.
7. O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de
Deus, mas a mulher é a glória do homem.
8. Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem.
9. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a
mulher por causa do homem.
10. Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa
dos anjos. (Bíblia Sagrada, I Coríntios 11:4-10)
Já que o véu para as mulheres da CCB não possui nome específico, julgamos
necessário aprofundar a temática sinalizando outros tipos de véus mencionados na Bíblia
Sagrada. Numa Bíblia direcionada para o público feminino, apresentou-se o quadro abaixo,
nos fazendo identificar o véu usado pelas mulheres da Congregação Cristã no Brasil como
sendo de tipo “mantilha”, que se aproxima do modelo de um xale colocado sobre a cabeça,
cobrindo da raiz dos cabelos à altura dos ombros, aproximadamente. Esse véu era usado nos
tempos bíblicos para indicar respeito e pureza da mulher, já que o desuso dessa peça e cabelos
soltos caracterizava a mulher adúltera ou prostituta. Esse véu é, então, sinal de respeito e
compromisso da mulher com o marido, além de ser também identificador da fé cristã, uma
vez que a cidade de Corinto, para quem foram escritas essas recomendações, se encontrava
sob influência de outras culturas, com religiões consideradas pagãs. Manifestando as raízes no
judaísmo, o véu para as mulheres da Congregação Cristã é peça indispensável na afirmação da
religiosidade. Sendo sempre de cor branca, o véu é sinônimo de reverência com Deus.
92
Quadro: Véus para mulheres89
Tipo de Referencia
Descrição
Cobertura Bíblica
Touca Provavelmente um ornamento para a cabeça ou uma Isaias 3:18,20
(hebr. shabis) faixa frontal de ouro ou prata.
Ornamento usado por mulheres ricas, provavelmente Isaias 3:20;
ao redor da cabeça.
Turbante O termo também é usado para descrever a guirlanda da Ezequiel
(hebr. pe’er) noiva ou o turbante usado por homens, assim como as 24:17,23;
tiaras usadas pelos religiosos. 44:18
Isaias 61:10
I Coríntios se refere a uma espécie de véu ou mantilha
– talvez até mesmo um xale. Usar cabelos longos e Números 5:18
soltos confirma a culpa da mulher considerada
Mantilha adúltera.
(gr. peribolaios) Parece haver uma dupla importância em se cobrir a I Coríntios
cabeça: isso mostra a clara distinção entre os sexos e 11:2-16
afirma publicamente o compromisso da mulher com a
liderança de seu marido. Esse hábito deve ter sido
especialmente importante para os coríntios por causa
das influencias pagãs e [consideradas] imorais à sua
volta.
Véu Usado como sinal de noivado e só deveria ser retirado Gêneses 24:65
(hebr. tsaciph) na ocasião do casamento.
Véu Véu de tecido mais leve, provavelmente usado no Isaias 3:23
(hebr. redid) verão.
Véu Véu sobre o rosto (lit. “agarrar”) era provavelmente Cantares de
(hebr. tsamah) decorativo, talvez uma longa trama de enfeites para Salomão 4:1,3
mulheres de alta posição social. Isaias 47:2
Véu Esse véu (provavelmente um capuz) é associado com Ezequiel
(hebr. mispachoth) as atividades de falsas profetisas 13:18,21
89
“Quadro: Véus para mulheres” In: A Bíblia da Mulher: leitura, devocional, estudo. 2ª ed. p. 1838, Barueri, SP:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. Quadro adaptado.
93
Figura 12: Véu. Acervo pessoal.
94
Figura 13: Véu para crianças. Acervo pessoal.
95
o véu como fronteira simbólica que separa o que deve e o que não deve ser visto (Mernissi
1987). Para a cultura islâmica, continua a autora, mostrar o rosto, o corpo, para um homem
que não seja o marido é desrespeito, desonra e vergonhoso. Considerando que na perspectiva
cristã o “marido”, o “noivo”, é representado metaforicamente como sendo Jesus Cristo, o
divino, podemos também considerar a ótica islã inversamente no contexto da Congregação
Cristã. Enquanto que no islamismo só é permitido à mulher despir-se do véu para seu marido,
na CCB dirigir-se a Deus (o noivo), num momento de oração e culto, com a cabeça
descoberta, seria desrespeito, desonra e vergonhoso. Dessa maneira, o contato com o sagrado
pressupõe preparação especial, não podendo ser feito de qualquer maneira. A socióloga
marroquina apresenta que:
96
2.2.2 Participação das mulheres na igreja
[...] existia no nível espacial, uma separação nítida entre os homens que se
instalavam à direita da nave e as mulheres que ficavam na parte esquerda
(Novaes 1979:90) ou, quando o desequilíbrio feminino/masculino era mais
importante, as mulheres sentavam na frente e os homens atrás (Aubrée
1985:91-92). A submissão da mulher ao seu parceiro convertido e/ou ao pastor
era reconfirmada incessantemente nas pregações (ex.: “Quero que saibais ser
Cristo o cabeça de todo homem e o homem o cabeça da mulher …” Primeira
Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 11, versículo 3) (Aubrée 2014: 170).
Embora as mulheres não possam ocupar cargos de liderança na igreja, elas são
bastante ativas. Os cargos femininos são restringidos a atividades de professora de crianças
e/ou outras mulheres, direção de cultos de orações, campanha evangelizadora e zeladoria da
igreja. Isto reforça o padrão “homem dominante / mulher submissa” que caracteriza as
relações tradicionais entre os sexos (Hoffnagel 1980).
Ainda que os trabalhos mencionados refiram-se ao pentecostalismo de algumas
décadas atrás, mesmo sendo maioria, o corpo feminino é, ainda hoje, muitas vezes censurado
e a sua participação é limitada na Congregação Cristã no Brasil. O corpo biológico atua como
demarcador das atividades exercidas.
Esses cuidados femininos serão, desse modo, vistos como algo que lhes seria uma
atribuição específica que é compreendida em função do seu estatuto de gênero na divisão de
trabalho no interior da família e esse papel de gênero pode ser mais ou menos condizente com
certos ethos religiosos. Às mulheres ficariam então reservadas as atividades voltadas para a
família. No caso da Congregação Cristã, cuidar das crianças é umas das atividades possíveis.
As atividades de liderança, ministração da Palavra e condução dos cultos são estritamente
masculinas. Ao se considerar “muito ocupada” a fiel se referia às tarefas domésticas
designadas às mulheres.
Eu comecei a aprender já tem mais de sete anos. Até onde eu sei, aqui na
igreja só as irmãs podem tocar órgão. Não sei te dizer exatamente porque, é o
ensinamento. Mas em outras igrejas as irmãs também tocam outros
instrumentos, às vezes não tem irmão suficiente pra formar, às vezes o marido
toca e ensina a esposa a tocar... Mas proibido mesmo não é não... não tem
nada de ser pecado ou essas coisas... tem outras igrejas que as irmãs toca...
você já viu na internet? Tem lá pra você ver... A gente tá esperando ser
liberado pra tocar outros instrumentos... Quando a central liberar a gente
aprende e toca... É porque não tem professora. Aqui na igreja não tem
não.[...] Mas os irmãos que sabem tocar, ensinam as esposas em casa... tem
mulher que sabe tocar até violino, tudo...
Embora a fiel não reconheça a proibição, em 1961 ela foi feita na reunião anual dos
anciães. De acordo com o relatório disponível no site oficial da CCB, as mulheres são clara e
diretamente excluídas da participação nas orquestras tocando outro instrumento que não o
órgão.
91
Essa “atuação maligna” se refere à ação do diabo nas mentes dos fiéis fazendo-os sentir atração sexual e,
consequentemente, os fazendo pecar. Esta é também uma das explicações subtendidas para a regra de assentos
separados.
100
entre os Ye’pâ-masa, vemos uma atuação inversa: o instrumento sagrado, que em lugar da
flauta é o órgão, pertence às mulheres.
A organista é um cargo de prestígio na participação feminina na igreja. É uma das
primeiras a chegar e tem um lugar específico para ocupar. A roupa tem de estar impecável,
para não “servir de escândalo” como disse minha entrevistada. “Não pode aparecer nada”, se
referiu ela, indicando que a roupa deve cobrir todo o corpo. Não podem aparecer as costas,
nem muito das pernas. Todas as regras de vestimenta feminina são intensificadas para a
organista que serve de modelo para as outras mulheres. Sentada em frente ao órgão, numa
postura ereta que lembra as mulheres com espartilhos apertados de alguns séculos passados,
seus dedos seguem a risca a pauta musical que seus olhos percorrem, a organista controla seu
corpo e sua mente. Não as vi chorar ou falar, muitas sequer cantam acompanhando a música
que tocam, numa concentração profunda. Seguem assim, nesse controle de técnicas corporais,
até que o período de louvores termine e ela se despeça do instrumento caminhando para os
bancos e se misturando com as outras mulheres. Concluímos que a organista é também
expressão máxima da ascese e racionalidade na mulher.
101
2.3 Construção do corpo religioso
Quando Mauss escreve, ainda que inacabada, “A prece”, ele afirma que existe na
execução de ritos sagrados uma técnica corporal, já que o corpo se faz portador de outros
significados, portanto de outras técnicas corporais. Mas também destaca que os ritos
religiosos não se separam de outros comportamentos sociais cotidianos, nos quais as técnicas
corporais são ritualmente fundamentais (Rocha 2008). Apresentamos até então o corpo como
aquele que sai do simplesmente biológico e ocupa lugar de sujeito na cultura. Um corpo que
comunica, que manifesta que somos, nas palavras de Merleau-Ponty (1999: 8): “É preciso que
eu seja meu exterior, e que o corpo do outro seja ele mesmo.”
De acordo com Miguel Vale de Almeida (2004: 4)
102
Algumas implicações e desdobramentos teórico-metodológicos surgem ao refletirmos
corpo e religião. Rabelo (2011: 19) aponta a “relação de imbricação mútua entre corpo e
lugar” como sendo uma delas. Segundo a autora, devemos privilegiar a relação entre corpo e
lugar, já que “a configuração dos lugares que habitamos demanda certos modos de
engajamento corporal, reforçando e naturalizando padrões de ação e interação”. Esse “lugar”
ocupado pelo corpo (que é também um corpo religioso) estende-se para além do templo onde
os cultos são prestados à vida cotidiana.
A disciplina para a manutenção de um corpo santo ocorre, na Congregação Cristã, nas
mais variadas instâncias e ganha características peculiares ao se tratar do corpo feminino. As
disposições corporais envolvem “a prática habitual e repetida de um conjunto de gestos e
posturas” (Rabelo 2011: 21), estas práticas proporcionam o recebimento do Espírito Santo,
evidenciado principalmente pela glossolalia, revelações divinas e profecias.
Neste capítulo, o corpo foi analisado como categoria central para entendermos como a
crença religiosa é incorporada na vida cotidiana do fiel. Vimos que o corpo é o lugar onde se
inscrevem as emoções e é operador das práticas sociais. Através das experiências corporais é
que se justificam as atitudes e a quebra com o mundano. Assim, percebemos que construção
do corpo religioso se dá, portanto, por meio desse conjunto de práticas que regulam os corpos.
Orar com frequência, cantar hinos religiosos, o modo de vestir-se e de portar-se dentro e fora
da Igreja apontam fielmente para a busca de um modelo ideal pregado pela instituição, a
busca pela “santidade”. No capítulo seguinte, exploraremos essa categoria.
103
4 PERFORMANCE E SANTIDADE: EXPERIÊNCIAS
CORPORAIS
92
Notas da autora: ¹ Por exemplo, as filosofias antigas são muitas vezes interpretadas em termos heroicos. A
figura idealizada de Sócrates ou sábio estóico informam profundamente a concepção de herói. A interpretação da
figura de Eneias é também exemplo da ‘cristianização’ do heroísmo greco-romano. ² Cfr. François-Xavier
CUCHE, «De la canonisation…», 203. ³ Um santo é sempre um herói, não só na dimensão moral das suas
virtudes mas também na sua acção. Mesmo no ideal de santidade mística de aniquilamento individual diante de
Deus, o santo define-se por esse carácter excepcional de superação de um limite ‘negativo’.
105
cruzamento e uma interpretação heroica da santidade. “A Europa assistia ao martírio entre
cristãos e ao nascimento de novos heróis” (Urbano 2004: 273).
Nos séculos seguintes, passada a perseguição romana aos cristãos, o conceito de
santidade também foi reformulado e, além da morte, passou a ressaltar as qualidades pessoais,
de maneira que a reputação, história de vida e a capacidade de operar milagres através dos
pedidos dos devotos fazia o santo herói (Matos 2014: 26). Apenas em 1170, a Igreja Católica
passar a organizar burocraticamente a definição e o culto aos santos. A partir do século XVI,
o movimento chamado de Reforma Protestante que, dentre outras coisas, era contra o culto
aos santos, coopera para uma redefinição de santo e santidade, que passa a espelhar-se na vida
e na obediência aos mandamentos de Cristo.
Um terceiro momento, agora sob a ótica protestante aparece: “Ser Imitador de Cristo”.
A moralidade e a ética, baseadas na imitação da vida de Cristo, passam a ser condições e o
foco para a concepção de santidade. Um conjunto de fatores primordiais e uma nova
percepção sobre quem são os santos e o que é santidade são apresentados pelo movimento
protestante pós-reforma.
O termo “protestante” ou “protestantismo” faz referência às igrejas oriundas na
Reforma Protestante. Esse movimento reformista cristão culminou no início do século XVI
com a publicação das 95 teses escritas por Martinho Lutero, principal líder do movimento.
Em suas teses, Lutero protesta contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica
Apostólica Romana, dentre os mais destacados, o culto aos santos e a venda de indulgências.
O regresso à Bíblia, a leitura direta dos textos na procura da sua pureza original, caracterizou,
sem dúvida, a reforma protestante convicta da sua missão refundadora. Mas certamente a
Reforma Protestante não se resume apenas ao combate à doutrina católica, as consequências
desse movimento desencadearam numa nova doutrina cristã e num novo estilo de vida cristão.
Atentando a esse fato, as ideias apresentadas por Lutero trouxeram novos conteúdos, dentre
eles os de “santo” e “santidade”. Para melhor apresentarmos o conceito de santidade para o
106
protestantismo e as divergências com o ponto de vista católico, tomaremos por base o trabalho
de Krumenacker (2010).
Yves Krumenacker (2010), em “Sainteté catolique et sainteté protestante (XVIe-
XVIIe siècles)” traz um breve histórico sobre o conceito de santidade e as divergências entre
católicos e protestantes, comentando o conceito a partir de Lutero, Calvino e da Igreja
Católica. O autor conta que em uma carta a Jean Lang, em 1522, Lutero afirma que o culto
aos santos não era mais necessário. Lutero deixa evidente nessa carta que o que lhe
preocupava no culto aos santos católicos era que estes os fizessem esquecer dos “santos
vivos” e ressalta que as personagens católicas tiveram a mesma fé que os cristãos, uma vez
que o que realmente vale é a fé dada por Cristo e seus ensinamentos. Um santo pode ajudar a
alcançar a fé, mas não pode ele mesmo salvar. Dessa forma:
Les saints, selon Luther qui se réfère à saint Paul, ce sont les chrétiens, qui
sont saints par la Parole et la grâce de Dieu. Les véritables saints sont donc
des vivants dont il faut s’occuper, qu’il faut servir, qui sont choisis par Dieu,
et non des morts ou des gens qui veulent se sanctifier eux-mêmes par leurs
oeuvres. (...) L’Écriture n’enseigne pas qu’il faut invoquer les saints (...), on
ne peut que méditer la mémoire des saints pour imiter leur exemple
(Krumenacker 2010:.2-3).
93
“L’insistance sur la nécessité d’une vie sainte, sur les “saints vivants”, le glissement vers l’éthique, par
conséquent, est une des caractéristiques du discours protestant sur la sainteté.”
107
A santidade pode ser entendida como uma construção que repousa em bases
históricas e que obedece a determinados modelos específicos, que vão, desde
exercícios espirituais, como a prática das virtudes, da oração e formas de
ascese, bem como, em modelos gerais como o Cristo ou ainda modelos
específicos exemplificados nas formas de vida religiosa praticadas e
codificadas (Le Goff 2006 apud Matos 2014: 25).
A gente tem que buscar sempre ser santo, obedecer... Eu assisto assim a
televisão porque estou sozinha, fica um silêncio na casa, aí eu ligo pra fazer
zoada... (risos) Mas isso não interfere em nada não [se referindo à sua
santidade], Deus sabe do meu coração
108
que obedece às normas de Deus e da igreja. A fiel se referiu ao fato diversas vezes durante a
entrevista, destacando sempre seu posicionamento permanente de comunhão com Deus.
Partindo desse princípio, nossos dados reforçam que a santidade protestante está
baseada na ética moral e no estilo de vida. A antropóloga Clara Mafra, em seus estudos sobre
a formação da pessoa cristã, aponta que o pentecostalismo propõe uma reforma cultural e
social por meio de uma concepção alternativa do “mal”, de forma que:
94
Kadosh significa santo, em hebraico. É também a expressão utilizada para designar o nome de Deus dos
judeus. Kadosh significa também algo sagrado, ou um indivíduo que foi consagrado perante outras pessoas.
Existem muitas variações de Kadosh, Kadesh significa sagrado, em hebraico, Kidush significa santificação,
ou consagração, já Yom kadosh significa dia Santo, Kadish é uma oração litúrgica de origem aramaica que
louva a Deus e roga pela vinda do reino messiânico. Esta oração é característica dos filhos no funeral dos
pais e durante o ano de luto (Significados Online - http://www.significados.com.br/kadosh/).
109
prática, quanto na hexis, isto é, na postura corporal. Assim o “gosto de religião” estabelece no
mundo uma relação pré-objetiva, no sentido de Merleau-Ponty, tornando o corpo (bem como
suas indumentárias) o sujeito da percepção.
Diante disso podemos inferir que a santidade não só é experiencializada no corpo,
como também precisa ser provada a partir do corpo. A prova da intimidade com Deus está
presente no imaginário cristão desde os tempos de Jesus Cristo na terra: as suas maneiras de
viver, falar, agir e especialmente os milagres realizados agiram como demonstração física da
veracidade de uma aproximação maior com o divino, gerando a crença de quem o via.
Posteriormente, os seus discípulos fizeram uso das mesmas ações, legitimando-os como
herdeiros de Cristo. Desde então, fé e prova se tornaram categorias indissociáveis na
cosmologia Cristã, como ressalta Reesink em seus estudos sobre catolicismo: “fé e prova são
duas faces de uma mesma moeda, isto é, no contexto desse imaginário, são dois fatores que
dependem um do outro, que se contraem mutuamente, em que um fundamenta o outro”
(Reesink 2005: 272). Nesse sentido, podemos acrescentar que assim como “fé e prova” se faz
um par fundamental para o catolicismo, o par “santidade e prova” constitui-se, para a
Congregação Cristã, como componente essencial na construção do corpo santo. Enquanto no
catolicismo a “prova” é dada por ações milagrosas, extra-codianas e por pessoas
extraordinárias; no pentecostalismo a santidade é provada pelo testemunho dado na vida
cotidiana, na exemplaridade e na experiência dos fiéis comuns que buscam sempre a
santificação, reforçando seu compromisso com o sagrado. Dessa forma, é na experiência
corpórea – como salientou Csordas – que se manifesta a santidade.
Esse conjunto de práticas forma a ascese cristã: amar ao próximo, ser justo, honesto e
humilde. Essas ações atreladas à oração, jejuns e idas constantes à igreja desemborcarão no
que as fiéis chamam de “comunhão com Deus”.
Essa ascese rege o estilo de vida do fiel em todos os âmbitos, inclusive em momentos
informais. Em minha estadia em campo fui convidada para participar do aniversário de treze
anos de uma jovem da CCB. Era um almoço em sua casa e algumas outras pessoas da igreja
também estavam presentes, além de seus familiares não convertidos. Após o almoço, a
maioria das mulheres (e adolescentes do sexo feminino) se reuniu na sala da casa. O que era
110
inicialmente uma conversa sobre a festa e o quão rápido as crianças crescem hoje em dia,
passou a ser um culto. Tudo começou quando uma das mulheres da casa, que é também
organista da igreja, mostrou, orgulhosa, o “grande presente que Deus lhe tinha concedido”:
um órgão novo, “zerado” nas palavras da fiel. O único instrumento permitido e prestigiado
pelas mulheres da CCB foi destaque e o pontapé inicial para todas iniciarem um período de
louvor ao som da “benção” da irmã. Entre um cântico e outro, as irmãs contavam experiências
que tinham vivido. Dois depoimentos me chamaram atenção especial. Uma mulher, logo no
inicio do hino tocado, exclamou: “Eu senti de louvarmos este mesmo hino irmã, Deus Seja
Louvado!” e continuou “muitas vezes isso acontece comigo, Deus me diz os hinos que serão
louvados; às vezes eu estou congregando e penso ‘queria que o irmão cantasse tal hino’ e de
repente o irmão canta; veja se não é Deus falando!”.
Ao longo do texto, por várias vezes falamos da expressão “sentir de Deus”. Neste
momento pensamos ser importante aprofundar a discussão, ressaltando a importância desse
conceito fundamental para refletir a categoria santidade e que, numa perspectiva cosmológica,
se funda na busca, prática e prova de santidade, bem como em algumas diferenças de gênero
na incorporação do “sentir de Deus” a partir de nossos dados etnográficos. Essa expressão
geralmente se refere a quando Deus fala ao coração do fiel e para que tal fato aconteça é
necessário estar em “comunhão com Deus”, ou seja, estar fazendo o que Deus quer que o fiel
faça, e isto é prova de santidade. O contato com o sagrado e a santidade são, então,
materializados no corpo no momento em que o fiel tem a certeza de que Deus está falando ao
seu coração.
Analisamos, então, que, em primeiro lugar, a categoria “sentir de Deus” age como
prova de santidade, afinal só é possível sentir Deus à medida que se tem intimidade com Ele e
isto, por sua vez, só é possível quando se obedece às práticas de conduta que formam a ascese
cristã (que discutimos no tópico anterior), ou seja, só é possível sentir Deus quando se atinge
o nível de santidade. O testemunho de eventos que mostram a santidade individual a partir de
uma intervenção divina específica é imprescindível para a manutenção da mesma. Orar por
alguém doente e esse alguém receber a cura, ter revelações divinas e/ou profetizar e ver
cumprir, por exemplo, são provas materiais e cotidianas de santidade. Podemos considerar
também que, quanto mais provas de santidade forem apresentadas, mais prestigioso é o lugar
111
ocupado pelo(a) fiel. Alguns homens e mulheres são referidos como “verdadeiros
homens/mulheres de Deus”, ou que “quando oram Deus responde”. Assim, a quem Deus mais
“usa” como instrumento, mais santo é. Segundo a cosmologia da CCB, Deus pode “usar” uma
pessoa de diferentes formas; dentre elas podemos destacar: em glossolalia e profecias, na
revelação na Palavra95 e enquanto canta ou toca um instrumento96.
Admitimos que o “Sentir de Deus” se expressa nos corpos e é, de modo geral, a
capacidade de ter uma espécie de intuição, um sentimento que, independentemente de
raciocínio ou de análise, é dado por Deus ao fiel, fazendo-o saber fatos específicos de algo
ainda desconhecido. Esse fenômeno pode ser experienciado de diversas formas e, mais
especificamente, em nossos dados notamos uma distinção na forma como este “sentir de
Deus” é operado em corpos femininos e masculinos.
Quando o sentir significa manifestação de glossolalia, profecias e choros em lugar
público como a Igreja, essa categoria é caracteristicamente feminina. Em nossas observações
constatamos que a grande maioria das mulheres apresenta choro e manifesta glossolalia
durante os cultos, em momentos de louvor e oração, e, inclusive, vai à igreja “preparada” com
lenços e toalhinhas para esses momentos (se é que podemos inferir, previsíveis). Em contra
partida, os homens raramente manifestam emoções aparentes, eles geralmente mantêm a
postura, apenas dizem “glória Deus” e outras expressões afins, em um tom de voz quase que
invariante.
Por outro lado, quando observamos que a revelação através da Palavra Sagrada é
considerada também um “sentir de Deus” (e essa é uma das mais prestigiosas formas de
demonstração da santidade), transferimos a categoria para o campo masculino, já que essa
revelação através da Palavra é, para a CCB, o momento em que Deus se revela no momento
da pregação, dizendo ao palestrante algumas coisas pessoais sobre um ou mais indivíduos
presentes na igreja. Por exemplo: “Deus me revela agora que tem uma irmã que necessita
urgentemente pedir perdão a alguém da sua família...”97. No entanto, o direito de ministrar a
pregação é reservado aos homens, logo, esse tipo de revelação, dentro do templo, é
restritamente masculino. Assim, é permitido aos homens manifestarem sua santidade
publicamente, diante de todos no templo.
95
A “revelação na Palavra” se dá quando o fiel está lendo e explicando um trecho bíblico a outro(s) fiel(is) e
durante este ato, Deus fala algo específico ao fiel que discursa, fazendo-o entender melhor o significado do texto
e/ou revelando uma aplicação prática do texto na vida do fiel ouvinte. A revelação na Palavra pode, ou não,
acompanhar a glossolalia.
96
Neste caso, se percebe que o fiel está sendo usado por Deus quando o(s) ouvinte(s) é(são) sensibilizado(s) pela
música. Geralmente choram e/ou manifestam glossolalia.
97
Palavras do ancião que ministrava em um dos cultos que presenciei.
112
Assim sendo, percebemos que, dentro da igreja, mulheres e homens ocupam lugares
opostos na incorporação do sentir de Deus: aos homens são reservados ao controle emocional
(embora se emocionem, essa emoção é controlada); a posição prestigiosa de santidade – só os
homens têm o direito de subir ao púlpito (um lugar santo) e ministrar a Palavra de Deus para
toda congregação (uma atividade santa); a formalidade – somente o sexo masculino pode
ocupar cargos importantes e falar em nome da igreja. Enquanto que as mulheres ocupam os
espaços da emoção – elas que choram sem constrangimento, abraçam umas às outras; sua
santidade é demonstrada nos campos da informalidade e do não público98.
Homem Mulher
Razão Emoção
Formal Informal
Público Não-público
98
Entendemos que na discussão sobre a posição ocupada por homens e mulheres existe toda uma literatura
específica, no entanto nossa proposta é apenas notifica-los e por isso não é do nosso interesse abordá-los
profundamente estes conceitos aqui. Contudo, o leitor pode ver: Aboim, (2007), Beauvoir (1974), Bourdieu
(1998), Jaggar (1983), Landes (1998), Mill (1988), Pateman (1983), Rosaldo (1974).
113
dona Selma, avó da aniversariante e dona da casa, me chamou num canto e com os olhos
ainda cheios de lagrimas me disse: “tá vendo minha filha, em que aniversário que você já foi
isso acontece? Deus se faz presente no meio dos deles, no mundo99 ninguém vê isso, não é
minha filha?” A fala dessa fiel salienta a separação e o reconhecimento de ser diferente,
confirmando o ethos cristão e a santidade, mesmo que fora da igreja e em uma situação
comum da vida cotidiana, como uma festa de aniversário. Mafra aponta que a conquista de
legitimidade social da pessoa pentecostal se realiza por meio de “um tipo de comportamento
coletivo exemplar, destinado a obter o reconhecimento do ‘povo pentecostal como um povo
santo’” (Mafra 2014: 180) e é no sentir de Deus que comunhão e santidade são demonstradas
e legitimadas, em lugares públicos ou privados, a seu modo.
Após definirmos o conceito de santidade, vamos neste tópico apresentar como esta
categoria está inserida na prática religiosa das fiéis CCB. Para tal, vamos fazer uma breve
discussão teórica nos valendo da produção antropológica que trata sobre o tema. Pensando na
categoria “santidade” e afins, começaremos localizando-a na cosmologia da igreja citada,
fundamentados na teoria durkheimiana. Em seguida, baseando-nos nas ideias de Mary
Douglas (1966), mostraremos como algumas categorias opostas atuam para a manutenção da
ordem (no sentido cosmológico, isto é: em oposição ao caos – mundo do pecado, da
impureza), fazendo menção às noções de “puro” e “impuro”. Chamaremos atenção para o fato
de que essas categorias opostas se materializam no corpo, nos rituais e nos costumes dos fiéis
da Congregação Cristã no Brasil. Uma vez que etnograficamente a distinção entre pecado e
santidade se faz fundamental e estruturante para a CCB, neste sentido, para refletir sobre isto,
cabe aqui utilizar os autores mencionados como instrumentos para pensar essas categorias
opostas.
Em contato com as obras de Robertson Smith e outros autores de sua escola – que já
consideravam a religião como um fenômeno social e cujas funções eram manter a unidade do
grupo e garantir as ideias fundamentais – Durkheim aponta que, muito mais que a crença em
uma divindade, o que define a existência da religião é a divisão cognitiva do mundo em
“sagrado” e “profano”. De acordo com o autor francês, a religião seria a organização das
crenças e ritos relativos ao sagrado. Assim, em 1912, Durkheim afirma:
99
O “mundo” neste sentido se refere às todas as pessoas que não partilham da fé cristã.
114
uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a
coisas sagradas, quer dizer, separadas, interditas, crenças e práticas que
unem numa mesma comunidade moral chamada igreja, todos os que a elas
aderem (Durkheim 1936: 32)
116
presente na classificação estrutural da nossa sociedade. O lado direito, como sendo o lado
“correto”, o destro ganha destaque e renome. Por outro lado, o esquerdo, o sinistro, é tido
como o “errado”, “desajeitado”. Na Idade Média os canhotos, especialmente as mulheres,
eram considerados feiticeiros, bruxos apenas pelo fato de terem mais habilidade no lado
esquerdo. No cristianismo, passagens bíblicas fundamentam e reforçam esse pensamento. Um
exemplo está no livro bíblico do Evangelho segundo São Marcos, quando Jesus disse que “O
Filho do Homem está assentado a direita de Deus”100 como demonstração de poder,
autoridade e superioridade. O lado direito sendo impreterivelmente sagrado e o esquerdo
inevitavelmente profano reflete a polaridade hierárquica que domina a vida religiosa e se
impõe aos corpos (Hertz 1980). Quando perguntadas sobre o significado de sentarem
separados, as respostas se limitavam as frases: “é a doutrina”, “é o ensinamento” ou “pra ficar
mais organizado”. Contudo, de maneira analítica podemos afirmar que o fato se refere à
posição submissa ocupada pela mulher, historicamente construída e refletida no contexto
religioso, a partir da posição hierárquica ocupada pelo masculino.
Sobre as restrições corporais, que nos já são familiares, as normas são diversas.
Resumidamente: todas do sexo feminino, desde crianças a idosas, devem usar um estilo de
roupa que, de forma geral, implica em saia e blusas compostas. Não é permitido o uso de
shorts, bermudas, calças compridas, camisetas regatas ou que mostrem a barriga. É proibido
também todo e qualquer tipo de modificação corporal como o uso de maquiagem, joias
(exceto de formatura e aliança de casamento), piercings, tatuagens (permanentes ou
removíveis), corte e pintura do cabelo, uso de trajes de banho, como biquínis e maiôs. Nessas
regras podemos destacar duas polaridades: homem/mulher – pela permissão ou proibição
baseada no gênero, e a que nomeamos de “mulher santa” / “mulher do mundo” – a primeira
demonstrando pelo corpo sua pertença cristã e obediência às normas de Deus e da igreja,
enquanto que a segunda refere-se à impureza da vida não cristã.
O par santidade/pecado aparece fundamentando a vida religiosa.
Pecado é tudo aquilo que não agrada a Deus. Por exemplo, Deus mandou
amar o próximo, se você não ama, tá pecando. Deus mandou obedecer aos
mandamentos, às normas da igreja... Se você não obedece é pecado. E a
vaidade é pecado também, minha filha. As jovens da sua idade hoje só
querem andar quase peladas! Deus não gosta disto. O povo de Deus é
diferente. Como as pessoas vão saber que somos diferentes se andamos do
jeito que o “mundo” anda? Somos luz e sal da terra, devemos mostrar isso
(Selma, 65 anos).
100
Bíblia Sagrada, livro do Evangelho segundo São Marcos capítulo 14 versículo 62.
117
Dessa forma, as categorias direito/esquerdo e masculino/feminino (e a mulher
pura/impura) são elementos opostos que estruturam o pensamento religioso e nessa relação
entre esses elementos a experiência religiosa e as normas ganham sentido. Para Mary Douglas
(1966: 9):
A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a
ordem e a desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a
morte. Onde quer que as idéias de impureza estejam fortemente estruturadas,
a sua análise revela que põem em jogo estes profundos temas. É por isto que
o conhecimento das regras relativas à pureza é uma boa maneira de entrar no
estudo comparado das religiões. As antíteses de S. Paulo – sangue e água,
natureza e graça, liberdade e necessidade –, bem como a idéia de Deus do
Velho Testamento, podem ser esclarecidas pela interpretação que os
Polinésios ou os Centro-africanos dão para temas semelhantes.
Cada instituição religiosa desenvolve doutrinas específicas, e estas, por sua vez,
expressam suas crenças, a sua verdade. Essas doutrinas baseiam-se em manter a pureza,
especialmente, se entram em contato com diferentes culturas ou religiões ou quando
tendências contestadoras surgem no interior da religião. O Cristianismo pode ser considerado,
nessa perspectiva, herdeiro de uma tradição de pureza que já era fundamental no Antigo
Testamento.
Douglas ressalta que todas as sociedades, ocidentais ou não, possuem critérios para
evitar as “impurezas” e a existência destes conceitos cumpre a função de coerção social, ao
mesmo tempo em que expressa uma visão da ordem social. De acordo com Douglas nos
sentimos constrangidos e confusos ao ver sociedades que parecem não fazer separação entre
impuro e sagrado, pois não há nada nas nossas regras que sugira contato ou relação entre esses
segmentos. “Para nós os objectos e os lugares sagrados devem ser protegidos das impurezas.
O sagrado e o impuro são pólos opostos” (Douglas 1966: 9). Mas, de qualquer modo, esses
polos servem como agentes na estrutura da sociedade e atuam como pontos de manutenção da
ordem social – e também a ordem do corpo: se a sociedade está em perigo, do mesmo modo,
também ameaça o corpo.
The social body constrains the way the physical body is perceived. The
physical experience of the body, always modified by the social categories
through which it is known, sustains a particular view of society. There is a
continual exchange of meanings between the two kinds of bodily experience
so that each reinforces the categories of the other. As a result of this
interaction the body itself is a highly restricted medium of expression.
(Douglas 1973: 93 apud Vale de Almeida 2004: 4)
118
Com base nesse princípio, Mary Douglas discute os modos simbólicos e rituais nos
quais se classifica o mundo. O corpo humano é constituído por fronteiras tanto para fora
quanto para dentro. Isto é, as aberturas do corpo; também a sociedade tem uma forma, com
fronteiras externas, margens e estrutura interna. “Sujo” e “poluído” são coisas de fora, que
transcendem as fronteiras e as classificações aceitas socialmente no corpo e no mundo.
Baseada em análises dos usos metafóricos e metonímicos dos símbolos naturais na
reprodução da ordem social, em perspectivas estruturais, como a de Douglas, há o
reconhecimento de que os sistemas classificatórios também são usados para legitimar
hierarquias, diferenças e exclusões – de que pessoa e corpo não são prisioneiros de uma
determinação social absoluta (Vale de Almeida 2004).
Assim, manter a estabilidade significa controlar a desordem, a contaminação e a
poluição. O controle corporal é, em Douglas, o equivalente ao controle social. As noções
contemporâneas de impureza e limpeza não são o efeito do interesse sobre os
microrganismos, mas de interesses simbólicos. Para Douglas (1966: 6):
O culto de Santa Ceia é realizado uma vez por ano, segundo a doutrina da CCB, como
já foi anotado. Esse ritual simboliza a realização da última Ceia na última páscoa realizada
por Jesus Cristo pouco tempo antes de sua crucificação. Nessa celebração, Cristo ordenou que
os seus discípulos e todos quanto acreditassem nele lembrassem de sua morte e ressurreição,
refazendo a santa ceia como manifestação de sua fé e comunhão com Cristo e os irmãos.
119
A narrativa bíblica da Santa Ceia é descrita nos quatro evangelhos canônicos 101 e a
primeira epístola aos Coríntios102, escrita pelo apóstolo Paulo, inclui uma referência ao
evento, enfatizando sua base teológica sem fazer um relato detalhado da última ceia. Segundo
os evangelhos, Jesus reuniu os seus discípulos na época da páscoa para uma refeição.
Enquanto comiam, Jesus havendo dado graças a Deus, pegou o pão, abençoou-o e partiu-o
dividindo entre os discípulos e disse para que comessem daquele pão, pois era o seu corpo.
Semelhantemente, distribuiu o cálice e disse para beberem dele todos, pois era o seu sangue
que era derramado para remissão dos pecados da humanidade, representação do novo
testamento e da nova aliança. E continuou dizendo para que fizessem isso em memória do seu
nome, pois todas as vezes que comessem do pão e bebessem do vinho anunciariam a morte do
Cristo até que voltasse.103
A Santa Ceia foi ordenada por Jesus Cristo para que acontecesse por toda a
posteridade como uma lembrança viva de Sua morte e sacrifício na cruz pelos pecados da
humanidade. Por isso, até hoje a ceia é realizada em memória da morte de Cristo, lembrando a
obra de amor de Jesus por nós. Além disso, a Ceia é um momento festivo e de afirmação de
comunhão da igreja e fortalecimento espiritual dos membros.
Na Santa Ceia lembramos o que Jesus fez por nós, morreu na cruz, e a
promessa que Ele deixou, de voltar (Edna, 48 anos).
Embora a Bíblia não apresente explicitamente a periodicidade com que a Santa Ceia
deve ser realizada, na CCB esse culto é realizado apenas uma vez por ano. Nas palavras de
uma das informantes:
Tem muitas igrejas que fazem a ceia uma vez no mês, na igreja católica eles
tomam hóstias todo domingo... Mas na Congregação a gente só participa da
ceia uma vez por ano, afinal quantas vezes Jesus morreu? Só uma. Aí a
gente lembra da sua morte uma vez por ano! (Edna, 48 anos)
Neste trabalho, nossa perspectiva é abordar a Santa Ceia como festa, ritual e
performance.
Para esclarecer melhor o que de fato consideramos “ritual”, retornemos ao que foi
proposto por Durkheim, assinalados no tópico anterior: o pensamento religioso inclui dois
elementos – as crenças e os ritos. Sobre este último o autor afirma que “as representações
101
Mateus 26:17-30; Marcos 14:12-26; Lucas 22:7-39 e João 13:1-17:26
102
I Coríntios 11:23
103
Mateus 26:17-30; Marcos 14:12-26; Lucas 22:7-39; I Coríntios 11:23
120
religiosas são representações coletivas que expressam realidades coletivas; os ritos são
maneiras de agir que só nascem dentro de grupos reunidos e que estão destinadas a suscitar,
manter ou fazer renascer certos estados mentais desses grupos” (Durkheim 1966). O autor
distingue a) ritos negativos ou tabus – ritos que visam a limitar o contato entre o sagrado e o
profano. Preparam o iniciado para entrar no domínio do sagrado. Essa passagem é marcada
por abstinência sexual ou alimentar, esforços físicos e uso de vestimentas ou adereços
específicos; b) ritos positivos – ligados às festas. Associam comunhão através de ingestão de
elementos sagrados e gestos de oferendas. São periódicos (quaresma e ramadã); e c) ritos
expiatórios (purificação de crimes e faltas cometidas; penitência, castigo) – ritos de luto,
marcados por silêncio e gemidos, por injúrias corporais como o ato de sujar-se, bater-se, ferir-
se.
O antropólogo Aldo Terrin, por sua vez, marca que o rito envolve diversas variáveis:
teologia, fenomenologia, histórico religioso, antropologia, sociologia, etnologia e muitas
outras. O fato de o rito ser interpretado segundo cada uma dessas dimensões faz com que sua
definição possa abraçar o conceito mesmo de cultura. Etimologicamente, rito vem do
latim ritus, que indica ordem estabelecida.
Esse autor também observa que, em uma sociedade moderna cada vez mais
dessacralizada, deve-se admitir que os ritos seculares e profanos assumem uma densidade
cada vez maior. No termo “ritualização” já está incluído um processo de metaforização dos
ritos e que, portanto, ao reconhecer os ritos profanos como substitutivos dos ritos religiosos
está incluída na semantização do próprio termo ritualização, entendido como processo
estendido a vários fenômenos análogos aos considerados religiosos (Terrin 2004: 22).
Na Congregação Cristã no Brasil, o culto de Santa Ceia pode ser considerado um ritual
que classifica e estabelece ordem, como definiu Terrin, e um rito positivo em termos
durkheimianos. É também um rito simbólico, já que o rito é uma ação que se realiza com
objetos e gestos. Como afirmou-nos o antropólogo C. Geertz, o símbolo “é usado para
qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma
concepção – a concepção é o significado do símbolo” (Geertz 1978: 105). No rito se fundem o
121
mundo imaginado e o mundo vivido. O rito tem a função de recriar periodicamente um ser
moral do qual a sociedade depende, tal como ele depende da sociedade. Assim sendo,
vejamos o procedimento desse ritual. Descreveremos os dados recolhidos na celebração da
Santa Ceia realizada no dia 08 de dezembro de 2013, realizada na Congregação Cristã do
Brasil no Recife-PE. De acordo com alguns informantes, os procedimentos do culto são
sempre os mesmos.
A ornamentação da igreja não era diferente dos dias comuns, mas os fiéis se vestiam
de maneira muito elegante e havia maior número de pessoas nesse culto que em outros
frequentados no decorrer desta pesquisa; a maioria eram adultos e idosos, mas havia um
número considerável de pessoas jovens e poucas crianças. O culto de Santa Ceia é iniciado
como qualquer outro culto da CCB104. Primeiro é tocado o “hino do silêncio” que é uma
música instrumental tocada antes do ancião subir ao púlpito e começar a cerimônia. Em
seguida, o ancião diz “Deus seja louvado”, todos dizem amém e o ancião indica o número do
hino do hinário da CCB que será cantado. Todos se levantam para cantar o primeiro hino,
enquanto os demais são entoados sentados. Todos os hinos se referem à Santa Ceia. Depois de
cantar três hinos, todos se ajoelham e oram. Em seguida, o ancião lê um trecho da Bíblia
referente à Santa Ceia e comenta-o rapidamente, destacando a necessidade do ritual e de estar
em comunhão com Deus e os irmãos. Logo depois informa as regras105 para participar do
ritual, seguida de uma oração.
Nas palavras de uma informante:
Primeiro catamos alguns hinos adequados para santa ceia e são muito
solenes. Depois os irmãos do ministério explicam os motivos de tomar a
santa ceia e quem deve e quem não deve tomá-la. Depois é feita orações
para abençoar um só pão que após a oração passa a representar o corpo de
Jesus Cristo e o vinho que após a oração representará o sangue de Jesus.
Depois com um só cálice todos tomam o vinho e com um só pão todos
comem. (Lívia, 38 anos)
O pão e o vinho são colocados numa mesa coberta por uma toalha branca.
Inicialmente, está sobre a mesa um pão; somente durante o cântico do último hino antes da
oração é que um irmão, cooperador, parte o pão em pequenos pedaços. Após a oração, por
104
Descrição do culto na CCB estão apresentadas de maneira mais detalhadas no primeiro capítulo deste
trabalho.
105
As regras citadas pelo ancião foram: Para o público geral: a) ser batizado na CCB e b) estar em comunhão
com Deus e os irmãos. Para os fiéis participantes: a) que todos tentassem se acomodar dentro do templo, b)
levantar ordenadamente até a frente do púlpito onde é realizado o ponto máximo do ritual (comer o pão e beber o
vinho), c) ir primeiro as mulheres, depois os homens e por ultimo o ancião e d) ter cuidado com as crianças –
para que não atrapalhassem.
122
meio da qual são abençoados o pão e vinho, o ancião anuncia o número de um hino do hinário
da CCB referente à Santa Ceia, enquanto um grupo de irmãs se dirige para o púlpito e se
ajoelha frente à mesa. Um dos dois colaboradores pega uma bandeja com os pedaços de pão e
distribui para cada mulher. Em seguida as mulheres bebem um pouco do vinho dado pelo
colaborador numa taça. A orquestra toca mais uma estrofe e as pessoas voltam aos seus
lugares, dando espaço para mais um grupo. O mesmo processo se repete com todas as
pessoas, primeiro as mulheres e depois os homens. Por fim, os dois colaboradores e o ancião
comem do pão e bebem do vinho. No momento de comer e beber, os fiéis – tanto os que estão
recebendo o pão e o vinho quanto os que estão sentados cantando – choram, falam línguas
estranhas, exaltam a Deus falando frases como “Tu és maravilhoso”, “glória a Deus nas
alturas” e “aleluia”. Ao término, o ancião agradece a Deus pelo culto e anuncia a quantidade
de fiéis que participaram do ritual – 179 pessoas. O ritual é encerrado com um hino final e
com as palavras do ancião “Deus seja louvado”, acarretando um “amém” coletivo.
O ritual da Santa Ceia é realizado de igual modo em todas as CCBs. Diante disso,
faremos aqui alguns breves comentários e comparações do ritual referido entre a Congregação
Cristã no Recife-PE e a Congregação Cristã sede no bairro do Brás, São Paulo-SP, tendo por
base a dissertação de mestrado da socióloga Ivani Camargo. A autora inicia a descrição da
parte devocional do rito e anunciando as regras básicas para participação do culto:
A base do ritual é a mesma em ambas as igrejas. Por ser um ritual anual, todos os
membros da igreja procuram estar presentes, vestir roupas novas e “estar em santidade”. Esse
termo foi usado por uma das minhas informantes quando dizia que não só para a ceia, mas em
todo tempo, deviam estar em santidade, e para ela isto era sinônimo de não estar intrigado
com alguém, estar obedecendo às normas de Deus – sendo justo, amando ao próximo, não
mentindo, entre outros – e orando bastante. Um ponto interessante observado por Camargo
(2000) foi a insistência do ancião em reforçar a ideia de que a “vaidade” é sinônimo de
pecado, impureza que não pode estar presente na igreja. A vaidade, principalmente percebida
pelas roupas, enfatiza o controle das técnicas corporais como demonstradores de santidade,
uma vez que essa qualidade é representada pela humildade e desprendimento das coisas
mundanas. Neste sentido, discordamos da autora quando afirma que “o corpo não age, não
expressa”. Ao contrário, o corpo age e expressa a busca incessante pela santidade e a
“decência ritual” é demonstradora de comunhão com Deus e obedecer às normas não é
sinônimo de repressão para as mulheres, mas de liberdade, de escolher ser como Deus quer
que sejam:
Para ir para o céu, temos que ser como Deus quer que a gente seja. E eu
quero ser assim. Não me importo de me vestir assim, de falar assim e fazer
tudo isso [se referindo às regras impostas pela igreja], Jesus já me libertou
dos desejos mundanos (Priscila, 23 anos).
Por fim, embora a socióloga tenha percebido o ritual como “triste e monótono”, choro,
glossolalia e expressões de adoração a Deus são, a meu ver, características de um ritual
movimentado, barulhento e alegre. Além disso, na cosmologia do fiel é um ritual festivo, de
alegria, em que cada momento é único e o ápice da manifestação de santidade.
A reunião da Santa Ceia representa a comunhão dos fiéis para com Deus; nela os
membros da igreja recebem pequenos pedaços de pão e um pequeno copo com, de acordo
com a entrevistada, suco de uva. O pão estaria simbolizando o corpo de Jesus Cristo quando
foi crucificado e o suco de uva, que os fiéis chamam de “cálice”, representa o vinho (já que a
124
igreja proíbe bebidas alcoólicas) que simboliza o sangue que foi derramado por Cristo no
momento de sua morte. Segundo a cosmologia cristã protestante, só participa desse ritual o
fiel que tiver plena certeza que está cumprindo todas as regras de Deus e da igreja, isto
significa estar em “comunhão com Deus”. Esse ritual culmina com a manifestação prática de
santidade e afirmação de que o corpo106 está “puro”. Neste momento é importante recuperar a
categoria de embodiment, discutida por Csordas, demonstrando, neste sentido, que a santidade
ultrapassa as categorias opostas de puro e impuro e não se reduz à dualidade, sendo, então,
numa perspectiva dialética apontada pelo autor, a materialização da santidade e da ideologia
da igreja no corpo.
Victor Turner (1988) em "The anthropology of performance" – editado pelo diretor
Richard Schechner que mais tarde elaboraria ele mesmo um modelo de análise de
performances culturais inspirado nas ideias de Victor Turner – apresenta o ritual como uma
arte do fazer, um fenômeno social que envolve agente, atos e representação. Para esse autor, a
repetição é característica fundamental para o ritual mágico ser operado. Turner traz os
conceitos de performance e experiência, discutindo inicialmente suas divergências entre seu
ponto de vista e o de autores como o próprio Schechner que enfatizam a relevância dos sinais
não verbais na comunicação. Nesse ponto, Turner reafirma sua teoria de communitas como
princípio ontológico, que embora não se realize, dela provêm os processos e deles as
possibilidades de ordenações (Cavalcanti 2013: 424-425). O autor continua apresentando que
"performances, particularmente performances dramáticas, são manifestações por excelência
do processo social humano", tornando o drama "a unidade empírica do processo social de
onde derivaram e continuam a derivar os vários gêneros da performance cultural" (Turner
1988: 92).
Baseado em Dilthey, Turner prossegue afirmando a performance como “um processo
ritual no qual uma experiência se consuma e o sentido pode ser apreendido sempre de modo
relativo, malgrado todas as tentativas de cristalização do sentido vivido” (Turner 1987: 98
apud Cavalcanti 2013: 425). Com base nisto, consideramos a Santa Ceia da CCB como um
ritual, e uma ritual performático. De acordo com Turner, a performance é 1) uma narrativa, 2)
uma experiência onde os indivíduos participantes têm consciência do processo e 3) em que a
presença de uma audiência se faz necessária para a realização do evento dramático da
experiência.
106
E o “corpo”, nesse sentido, ultrapassa a definição biológica estrito senso, e dá lugar a interpretação num
sentido holístico, uma vez que mente e coração também são representações deste estado de pureza.
125
Ampliando a discussão, Singer (1972) apresenta o termo “Performance Cultural” – em
seus estudos realizados na região de Madras, no sul da Índia, num capítulo intitulado "When a
great tradition modernizes: an anthropological approach to Indian civilization" – como
sendo a representação da cultura pela prática ou experiência performática. O autor observou
uma centralidade e recorrência de certas ações da vida dos indianos. A essas práticas o autor
chamou de "performance cultural", uma vez que, segundo ele, os indianos têm suas culturas
encapsuladas em performances, mesmo que discretas.
Singer enumera algumas condições para que um ato seja considerado performance: a)
é preciso ter um tempo limitado para a exibição performática; b) uma programação
organizada de atividades; c) um conjunto de artistas; d) o público; e) um lugar específico; e f)
uma ocasião apropriada para a performance. Nesse sentido, a Santa Ceia na CCB pode ser
considerada uma performance cultural. O ritual tem começo, meio e fim com tempo
determinado para cada situação; uma série de ações é vivida em sequência obrigatória; artistas
e público se confundem dependendo do momento do culto e a igreja é o local mais
apropriado. Todas essas características são apresentadas no ritual que, por sua vez, pode ser
considerado festivo.
Festa é antes de tudo uma quebra da rotina do quotidiano e, nesse sentido, a Santa Ceia
na CCB é um ritual celebrado anualmente que provoca modificações na rotina dos membros
da igreja. A Santa Ceia é o ritual em que todo o esforço cotidiano de santificação se manifesta
e culmina no ponto máximo da santidade e, na cosmologia da CCB, muitas coisas acontecem
– especialmente no dia da Santa Ceia – para que a comunhão com Deus e com o próximo seja
perdida.
É uma vez só no ano, a gente tem muito tempo pra se preparar. Se tiver com
raiva de alguém, ir lá pedir perdão... essas coisas... Ceia é que nem festa,
tem irmã que compra até roupa nova pra ir na Ceia... E minha filha, no dia
da Ceia tudo acontece: carro quebra, vem gente pra te aperrear, tudo pra
fazer a gente sair da graça [risos]. Mas Deus é bom e não deixa nada de
ruim acontecer e no final a gente tá lá agradecendo a Ele (Selma, 65 anos)
126
De acordo com Roberto Motta107 (2012), em "Sacrifício e festa no Xangô de
Pernambuco" a festa frequentemente implica numa reafirmação da estrutura, da função, do
prático e do útil; reafirmando assim a tradição do culto.
Sobre festa, o antropólogo Roberto Motta afirma que festa é alegria coletiva e resulta
da posse de algum objetivo fundamental. A festa consiste numa experiência primariamente
emocional, mas também um momento de reconhecimento, que supera a utilidade econômica
e/ou psicológica. A Santa Ceia na CCB é uma festa, no sentido de que é realizada anualmente
e foge do cotidiano, exigindo uma preparação especial para esse dia, como vimos
anteriormente na fala da fiel. É festa porque naquele momento a identidade religiosa é
reafirmada e a comunhão com Deus e com os irmãos e os princípios de santidade são
manifestos. Muitos participantes planejam e reorganizam suas atividades pessoais adaptando-
as ao dia e hora do ritual.108
Quanto ao sacrifício, Motta afirma que implica numa espécie de identificação dos
sacrificantes com o deus e com a comunidade. “A identidade jorra do sangue do sacrifício e
da emoção que o acompanha” (Motta 2012: 174). Ao comer do pão que representa o corpo de
Cristo e beber do vinho que é referente ao sangue, os participantes da Santa Ceia relembram o
sacrifício primordial da fé cristã: a crucificação. Embora o sacrifício seja ressignificado na
cosmologia do fiel CCB, esta ideia de sacrifício nos é interessante à medida que nos permite
pensar a Santa Ceia como um ritual festivo sacrificial tanto em memória do ato de Cristo na
cruz, quanto na externalização do sacrifício feito pelos fiéis, ao passo que se abstêm de uma
vida mundana em prol da vida cristã, santificada.
Quando o autor relaciona sacrifício e festa no xangô de Pernambuco, podemos fazer
uma correlação com o ritual da Santa Ceia na CCB. O sentido de festa é o mesmo: um
momento de alegria e reconhecimento, reafirmação da identidade religiosa e de experiência
emocional. Quanto ao sacrifício, embora no xangô pernambucano seja um sacrifício prático
realizado no momento ritual, na CCB o sacrifício do ritual é simbólico. Esse sacrifício
simbolizado na Santa Ceia atua como ponte de ligação entre a divindade e os praticantes, uma
vez que, no ritual, todos são parte do corpo de Cristo. E por este ser um corpo considerado
santo, todos ali presentes precisam explicitar sua santidade individual, o que nos permite
pensar a Santa Ceia como ritual de manifestação da pureza.
107
Influenciado por Waldemar Valente (1955) e baseando-se teoricamente em autores como Marvin Harris e
Robertson-Smith, o antropólogo pernambucano corrobora para o alargamento teórico sobre as religiões afro-
brasileiras e os conceitos de festa e sacrifício.
108
Algumas informantes comentaram que a maioria das pessoas investe em vestimentas e calçados novos,
especialmente para a ocasião.
127
Além de festa e performance, o culto de Santa Ceia é também um ritual baseado na
ideia de pureza. Como anunciamos anteriormente, Mary Douglas (1966) apresenta os rituais
de pureza e impureza e as atitudes e ações de busca pela santidade como meios de representar
essas dualidades, presentes na cosmologia da Congregação Cristã no Brasil. Douglas afirma
que pensar pureza implica assimilar a poluição como experiência correlata e, em seguida,
observar que nessa correlação entre pureza e poluição há o perigo à continuidade das
estruturas de um sistema social. Os rituais de pureza e de impureza dão certa unidade à nossa
experiência, de forma que a sujeira é desordem e o pensar sobre as coisas impuras deve passar
por uma reflexão sobre a ordem e a forma e a não forma.
Para a Congregação Cristã no Brasil, o culto de Santa Ceia pode ser entendido como
um rito que permite a externalização da pureza. Nesse culto é expressa a comunhão com Deus
e com os irmãos e aqueles que não participam são considerados “impuros”. Em uma
entrevista informal, uma das irmãs participantes, comentou: “Nós nos preparamos o ano
inteiro... Temos que estar sempre em paz e não podemos sair da graça, se não, como
poderemos participar da ceia? Não pode! Tem que vir!”. Esse fato aponta para a preocupação
na manutenção da ordem e pureza como condição primordial para a participação do ritual,
uma vez que a Santa Ceia, segundo a doutrina cristã, não deve ser tomada de qualquer forma.
Os participantes são orientados a examinar o coração e a consciência antes de participar, uma
vez que o ritual é manifestação de santidade e comunhão com Cristo e os demais irmãos. E é
nesse exame que os participantes avaliam seu comportamento, confessando os pecados e
afirmando sua santidade. Baseados nas passagens bíblicas: “Examine-se, pois, o homem a si
mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o
corpo, come e bebe juízo para si.”109 e “Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do
Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor.”110 o ritual da Santa Ceia
torna-se também um ritual que mostra o excesso de santidade e a manutenção da pureza, à
medida em que representa um contínuo entre o esforço cotidiano de busca pela santidade e da
manifestação máxima, a consumação desse sacrifício no momento ritual.
Neste capítulo primeiramente discutimos o conceito de santidade sob uma abordagem
histórica do Cristianismo, ressaltando esta categoria na cosmologia da Congregação Cristã no
Brasil. Assinalamos a necessidade de exemplaridade e testemunho, chamando a atenção para
a obrigatoriedade de manutenção desta santidade materializadas em ações corpóreas. Essas
atitudes são incorporadas a partir de um conjunto de regras que indicam o “puro” e o
109
1Co 11. 28-29
110
1Co 11. 27
128
“impuro”. Discutimos que a ideia de santidade é manifesta na experiência corpórea, por isso
analisamos o sentir de Deus como categoria fundamental para demonstrar e legitimar a
comunhão com Deus. Por fim, destacamos o ritual da Santa Ceia como ponto culminante da
santidade incorporada no estilo de vida das mulheres CCB.
129
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito mais do que um estudo sobre o corpo feminino inserido numa igreja pentecostal
clássica, buscamos, durante as páginas que compõem esta dissertação, analisar como esse
corpo é construído e performado. Partimos do pressuposto de que a corporeidade é uma
construção simbólica e cultural, isto é, que no corpo estão incorporados habitus e gostos que
formam os indivíduos e revelam suas crenças; e, a partir dos dados etnográficos colhidos no
trabalho de campo realizado em uma comum da Congregação Cristã no Brasil no Recife,
argumentamos que é no corpo que a experiência e a performance da religiosidade – que sua
cosmologia – é materializada por meio da atuação dialética entre as categorias nativas de
santidade, sentir de Deus e comunhão.
Assim, após uma descrição intensa, com o levantamento histórico, um panorama
numérico da igreja no Brasil e apresentação geral da doutrina e costumes da Congregação
Cristã no Brasil, apontamos que desde sua inauguração em 1910, o estilo doutrinário das
Congregações filiadas à sede no Braz-SP foram pouco alterados, permanecendo o caráter
tradicionalista e sectarista. Com normas específicas sobre organização eclesiástica,
procedimentos litúrgicos e comportamento, mostramos as características que fazem da CCB
uma das igrejas pentecostais clássicas que ainda permanece sob uma rígida norma e controle
do corpo. Essa ascese solidifica a crença religiosa e estende-se para além do momento
litúrgico no tempo, agindo diretamente na vida cotidiana do fiel. É neste momento que o
corpo toma lugar central.
Vimos, em seguida, que todo grupo social, inclusive a igreja, possui, produz e
reproduz uma forma aceita do corpo e de seus usos, produzindo também uma representação
social do corpo. Essa representação social, que é ao mesmo tempo construída e herdada, passa
logo a se constituir em modelo legítimo do corpo. Sendo assim, a teoria antropológica nos
ajudou a refletir sobre como as técnicas corporais evidenciam, por meio de um sistema
simbólico representado no corpo, não só uma identificação religiosa, mas sobretudo a
experiência com divino. Discutimos que uma “distinção de religião” ou “gosto religioso” é
produzido pelo habitus religioso das mulheres da CCB, pois, segundo elas, o corpo é uma
espécie de “casa” ou “templo” de Deus e por isso exige cuidados especiais. Dessa forma, o
corpo deixa de ser apenas físico e passa também a performar a fé professada por elas, e é por
essa crença que a dedicação para o cumprimento das regras é válida para as mulheres. Assim,
130
notamos que o corpo da mulher na Congregação Cristã no Brasil, adornado com suas
indumentárias, reflete uma característica perceptiva e pré-objetiva da religião à qual
pertencem e, assim, esse embodiment faz a marcação de diferença entre “mulher santa” e as
“outras mulheres”. A construção do corpo religioso se dá, portanto, por meio desse conjunto
de práticas que regulam os corpos.
A partir disso, detalhamos as técnicas corporais, bem como as indumentárias, que
contribuem para a formação desse corpo religioso feminino. Ressaltamos, dentre outros
pontos, que: a) os corpos, no momento de culto e “preenchimento” do Espirito Santo, parecem
obter maior liberdade (eles choram, balançam e falam alto) e é esse conjunto de experiências
corpóreas – essa incorporação – que evidencia e legitima o contato com o sagrado; b) as
vestimentas, fazendo atenção ao véu, constituem numa fonte carregada de significados, já que
o padrão corporal obedecido pelas mulheres da CCB manifesta, dentre outras coisas, a
pertença ao grupo religioso e sua constante busca pela santidade, na negação dos padrões
mundanos; e c) na participação das mulheres na igreja que, embora seja restrita, ganha
destaque, na cosmologia nativa, o cargo de “organista” que, por ser uma atividade unicamente
feminina, reflete como sendo a expressão máxima da ascese e racionalidade na mulher –
tendo que ser sempre referência de santidade.
Dessa forma, a santidade ocupa lugar de destaque como categoria essencial para se
entender a lógica da igreja e pensarmos a construção do corpo religioso feminino na
Congregação Cristã no Brasil. Notamos que a prática constante do ethos cristão e da ascese
protestante são resultados da busca pela santidade e que a manutenção da pureza se sobressai
quando a igreja em questão percebe a necessidade de manter a ascese que fundamenta sua
crença; isto, por sua vez, gera mecanismos de “proteção” contra elementos considerados
estranhos ou impuros que possam abalar a ordem e instaurar o caos. Este quadro nos leva,
obrigatoriamente, à performance corporal em busca da santidade (e de demonstrá-la), além de
nos permitir pensar sobre as técnicas corporais uma das vias para analisar a religião, do
mesmo modo que a religião é uma via para entender essas práticas corporais. Para serem
“santas”, as fiéis precisam atender corretamente às normas e doutrinas estabelecidas pela
igreja, pois é no corpo que a categoria santidade é experienciada e performada. A santidade,
além de ser externalizada no exemplo e no testemunho de vida, necessita também de
manutenção, e esta se dá na permanência cotidiana de um estilo de vida santo, que obedece às
normas de Deus e da igreja.
131
Estando a santidade protestante baseada na ética moral e em um determinado estilo de
vida, inferimos que a categoria sentir de Deus age, ao mesmo tempo, como categoria
fundamental e prova de santidade. Demonstramos que o sentir de Deus – a intimidade que o
fiel tem com o divino –, embora seja uma categoria geral, opera diferentemente nos corpos
masculinos ou femininos, sendo os primeiros ligados ao racional, à palavra, ao formalismo e
ao público; enquanto os corpos femininos estão atrelados ao emocional, ao informal e ao
privado. Entendemos, por fim, que é no sentir de Deus que comunhão e santidade são
demonstradas e legitimadas.
Diante da dinâmica etnográfica, pensamos a santidade a partir das categorias opostas
presentes na cosmologia do grupo estudado e chamamos atenção para o fato de que essas
categorias opostas se materializam no corpo, nos rituais e nos costumes dos fiéis da
Congregação Cristã no Brasil. Analisamos que, embora os dados etnográficos tenham
apontado, em primeiro nível, para uma abordagem teórica mais dualista, entendemos a
realidade social numa perspectiva antidualista, que não se reduz a categorias opostas tão bem
definidas. A ideia de “puro” versus “impuro” está presente de maneira acentuada no ritual da
Santa Ceia, que representa o ápice do estado de pureza/santidade e que serve como paradigma
para a vida do fiel. Esse ritual festivo e performático externaliza a comunhão com Deus e com
os outros fiéis e atua como prova máxima de santidade.
Por fim, ao longo do texto, e seguindo a lógica etnográfica, procuramos demonstrar o
argumento de que a construção do corpo religioso das mulheres da CCB se fundamenta na
relação dialética entre as categorias corpo, santidade e sentir de Deus. Em termos analíticos,
ousamos dizer que essa dialética pode ser aplicada como modelo interpretativo para pensar a
lógica da CCB. Assim, em vista dos dados e reflexões apresentados, acreditamos ter
contribuído na produção do conhecimento antropológico sobre o campo religioso em questão,
etnografando práticas, costumes e ritos de um grupo religioso, alargando as reflexões sobre a
Congregação Cristã no Brasil, ainda tão reduzidas, bem como sobre o contexto pentecostal
brasileiro.
132
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139
ANEXOS
Número de
Continente
País Nomenclatura da Casa de Oração no País Casas de
Oração
República
Congregation Chrétienne en République
África Democrática do 79
Démocratique du Congo
Congo
São Tomé e
África Congregação Cristã em São Tomé e Príncipe 10
Príncipe
140
América Central Panamá Congregación Cristiana en Panama 2
República
América do Sul Cooperativa da Christian Congregation in Guyana 3
Guiana
142