Desmitos Da Educacao Especial

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(Des)mitos da

Educação Especial
UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
Reitora
Profa. Dra. Ana Beatriz de Oliveira
Vice-Reitora
Maria de Jesus Dutra dos Reis

EDESP - Editora de Educação e Acessibilidade da UFSCar


Diretor
Nassim Chamel Elias
Editores executivos
Adriana Garcia Gonçalves
Clarissa Bengtson
Douglas Pino
Rosimeire Maria Orlando
Conselho editorial
Adriana Garcia Gonçalves (UFSCar)
Carolina Severino Lopes da Costa (UFSCar)
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Otávio Santos Costa (UFMA)
Rosimeire Maria Orlando (UFSCar)
Valéria Peres Asnis (UFU)
Vanessa Cristina Paulino (UFSM)
Vanessa Regina de Oliveira Martins (UFSCar)
(Des)mitos da
Educação Especial

Rosimeire Maria Orlando


Clarissa Bengtson
(organizadoras)

São Carlos, 2022


© 2022, dos autores
Supervisão editorial
Douglas Pino
Ilustração da capa
Ricardo Ferraz
Preparação e revisão de texto
Paula Sayuri Yanagiwara
Projeto gráfico
Clarissa Bengtson
Bruno Prado Santos
Editoração eletrônica
Bruno Prado Santos

Orlando, Rosimeire Maria.


O71d (Des)mitos da Educação Especial / Rosimeire Maria Orlando,
Clarissa Bengtson. -- Documento eletrônico -- São Carlos : EDESP-
-UFSCar, 2022.
176 p.

ISBN: 978-65-89874-45-4

1. Educação especial. 2. Capacitismo. 3. Mitificação. I. Título.

CDD: 371.9 (20a)


CDU: 371.9

Ficha catalográfica elaborada na Biblioteca Comunitária da UFSCar


Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado - CRB/8 7325
PREFÁCIO

Desde que recebi o convite para escrever este prefácio, pelo menos duas
foram as sensações que me ocorreram. Além da honra e lisonja, emergiu
também o sentimento de responsabilidade em anunciar esta obra que, pelo
próprio título, já evidencia sua profunda relevância no atual cenário acadê-
mico brasileiro.
Em um contexto de cotidiana propagação de fake news sobre os mais
diversos assuntos, em que o negacionismo e o fanatismo ganham cada vez
mais proeminência em detrimento do conhecimento científico e sua valori-
zação como meio seguro para a formação dos sujeitos em nossa sociedade,
não poderia ser mais oportuna e conveniente a publicação de (Des)mitos
sobre a Educação Especial. Não bastassem as já famigeradas mitificações
que, ao longo dos anos, permearam essa área do conhecimento, gerando
as mais variadas (pré)concepções sobre as pessoas com deficiência, vivemos
atualmente um momento em que o retrocesso tem insistido em bater à por-
ta, inclusive à entrada principal.
O presente trabalho conta com cuidadosa organização e reúne textos
que trazem ao leitor robustos elementos capazes de desvelar como se en-
gendram as tentativas de refutar o conhecimento científico e as consequ-
ências desse movimento, tais como a invisibilização tanto dos estudiosos
e profissionais da área quanto daqueles que constituem o público-alvo da
Educação Especial. Nesse sentido, o primeiro capítulo do livro já traz uma
pergunta em seu título que nos estimula a reflexão. “O que tem de especial
a Educação Especial?” certamente pode traduzir o espírito desta obra.
Ao apresentar os elementos constituintes, os aspectos históricos, os
sujeitos e as finalidades da Educação Especial, o texto praticamente provo-
ca uma autoanálise e nos revela que, se de um lado a inconformidade com
o intransponível e o sentimento da necessidade de superação de limites
robustecem a formação dessa área do conhecimento, de outro viés, esta é
seguida paralelamente por um discurso que esconde a percepção da dife-
rença enquanto quadro patológico. Nas linhas seguintes outros elementos
evidenciam que esse cenário está presente até hoje, como os binômios
educação versus reabilitação, a escola comum versus a escola especial. O
texto indica a necessidade de que sejamos cuidadosos, porque, por vezes,
existe um certo processo de confusão entre esses aspectos, os quais oca-
sionalmente podem trazer a equivocada compreensão de que a Educação
Especial corresponde a um processo terapêutico e ligado à área da saúde, e
não à área da Educação.
É justamente sobre as consequências desse perigoso equívoco que nos
alerta o segundo capítulo, intitulado “Pensar a Educação Especial para além
da mitificação burguesa”. Nesse texto as autoras apresentam os eventuais
perigos que pode haver em políticas educacionais que não vislumbram a
produção do conhecimento como estímulo para a mudança e a evolução da
sociedade. Para isso, elas procederam à análise dessas políticas e eviden-
ciaram alguns mitos envolvendo o Estado neutro, o direito à educação e a
universalização da educação escolar.
O texto aponta para uma temerária consequência que pode decorrer
da não identificação desses mitos, que recai na ideia de individualização
da educação do sujeito. Isso pode estimular o raciocínio de que o melhor
caminho é a segregação, já apresentada no texto anterior. Aliás, enquanto
o primeiro título pode constituir o espírito do livro, o segundo seguramen-
te corresponde à corporificação e à interação da Educação Especial com
outras áreas do conhecimento e com eventuais interferências que ocorrem
em sua formação, sobretudo sob um discurso de universalizar para educar,
quando, na verdade, se pretende estimular o produtivismo capitalista.
Consolidando essa corporificação, “A pessoa com deficiência na Educa-
ção de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções” apresenta a pro-
posta de promover um entrelaçamento ao redor de âmbitos e sujeitos da
Educação sobre os quais recai fortemente a crença de não serem capazes de
aprender. Trata-se do contexto da pessoa com deficiência que frequenta a
Educação de Jovens e Adultos. Por conta disso, as pesquisadoras propõem
uma discussão sobre os aspectos que envolvem a baixa expectativa sobre
a aprendizagem daquelas pessoas, inclusive pelos profissionais incumbidos
de ensiná-las. Elas relatam que essa baixa expectativa acaba se constituindo
em obstáculo à formação desses sujeitos e à elaboração de novos caminhos
de aprender e de ensinar.
O texto só vem a corroborar a problemática tratada anteriormente,
pautada no mito da segregação, do desenvolvimento da pessoa com de-
ficiência enquanto processo individual e terapêutico, distante do contexto
efetivamente educacional. A pesquisa revela, pois, a necessidade de identi-
ficação dos elementos formadores desse mito e a urgência em superar essas
barreiras.
Quando se tem em vista o cenário da Educação Superior, o quarto capítu-
lo, denominado “Mitos sobre acessibilidade”, traz uma grande contribuição
para a superação dos mitos até então apontados. Os autores primeiramente
fazem uma breve explanação sobre o conceito e os elementos da acessibi-
lidade, inclusive na perspectiva normativa. Em seguida, tomam como ponto
de partida os elementos que constituem a tecnologia assistiva e o desenho
universal, além de aspectos relacionados à própria pessoa com deficiência.
Após, propõe-se uma conjugação acerca dessa construção teórica por
meio da exposição de cinco situações sobre as quais ainda existe certa de-
sinformação: a) a incapacidade do estudante com deficiência de acompa-
nhar os demais; b) a acessibilidade é destinada apenas a um grupo restrito
de estudantes; c) é preciso antes adaptar o ambiente para depois incluir
a pessoa com deficiência; d) a promoção da acessibilidade é um processo
dispendioso; e) essa promoção pode prejudicar os demais estudantes.
Posteriormente, o texto intitulado “(Des)Mitos sobre o ensino e a apren-
dizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão” propõe a refutação
da ideia equivocada de que a capacidade de aprender está intrinsecamente
ligada à deficiência. Os autores começam inclusive fazendo uma distinção
entre o que é cegueira e baixa visão daquilo que é a deficiência visual. En-
quanto as primeiras se relacionam com aspectos mais biológicos, a segunda
decorre de uma condição social. Vale dizer, a capacidade de uma pessoa
cega ou com baixa visão em aprender física decorre da inexistência de recur-
sos que garantam o seu acesso à informação, e não ao fato de não enxergar.
Podemos até mesmo vislumbrar que essa pesquisa só vem a consolidar
o caminho apontado pelo texto anterior, pois são elencadas algumas estra-
tégias que podem ser utilizadas para o aprendizado dos conceitos sobre
física. Esse cenário apresentado pelos pesquisadores ilustra com clareza a
evolução do próprio conceito de deficiência. Eles demonstram a importân-
cia em diferenciar aquilo que é lesão, impedimento, daquilo que é barreira
existente no ambiente e que compõe a deficiência. Trata-se, portanto, de
valioso estudo que corrobora a desmitificação acerca do processo de apren-
dizagem da pessoa com deficiência.
Em seguida, no sexto capítulo, de título “Talento musical: evidências
científicas e mitos”, as autoras trazem diversos apontamentos científicos que
desmancham a ideia de que o desenvolvimento musical é construído por
elementos que a ciência é incapaz de explicar. Os resultados indicam que o
talento está para além de questões biológicas, pois envolve também aspec-
tos sociais e culturais.
Essa reflexão pode gerar consequências até mesmo sobre o Atendi-
mento Educacional Especializado. À medida que o talento das pessoas for
atrelado à ideia de privilégio e de poder, mais forte é a impressão de garantir
mais oportunidades justamente àqueles que já as possuem, em detrimento
de outros, o que, contudo, não pode ser encarado como uma verdade, se-
gundo ensinam as autoras.
Mais a diante, no texto “Todo aluno com TEA é competente em matemá-
tica: mito ou verdade?”, que compõe o sétimo capítulo do livro, os autores
discutem o mito de que pessoas com TEA possuem melhor desempenho
matemático. Eles partem dos conhecimentos matemáticos como ponto de
análise, porque se trata de área do conhecimento presente no cotidiano de
praticamente todas as pessoas, o que pode influir inclusive em suas ativida-
des diárias. Para isso, utilizam pesquisas realizadas com alunos que tenham
TEA, as quais avaliaram a correlação entre o TEA e as dificuldades apresen-
tadas no aprendizado da matemática.
Um dos resultados obtidos reforça um aspecto bastante relevante e
abordado nos capítulos anteriores, isto é, a capacidade de aprender não
está diretamente relacionada ao conteúdo de determinada área do conhe-
cimento, mas sim às possibilidades de construir alternativas para a conclu-
são desse processo. Novamente, temos nesse texto uma contribuição para
superar o mito de que a incapacidade de aprender decorre da deficiência.
Outro exemplo disso é abordado no oitavo capítulo, de nome “Libras
como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com
dispraxia verbal”. Nele as autoras indicam que o desenvolvimento da fala
reflete diretamente o próprio desenvolvimento do pensamento verbal,
da interação com o externo e com o próprio interior. Consequentemente,
elas asseveram que a criança privada desse desenvolvimento e de meios
alternativos para estruturar a comunicação do seu pensamento pode ficar
bastante prejudicada.
Essa pesquisa, que tem por objetivo investigar o uso da Libras como
sistema de CAC em uma criança ouvinte com dispraxia verbal, faz emergir
ainda mais a constatação de que, por vezes, devemos pensar mais sobre
como percorrer determinado trajeto do que sobre como chegar ao destino
pretendido. Em outras palavras, pessoas com necessidades específicas dis-
tintas podem adquirir o mesmo conteúdo em termos de conhecimento por
meio de diferentes caminhos.
Por fim, no nono e último capítulo, “Derrubando mitos: potencialidades
para além da deficiência intelectual”, as autoras partem do contexto histó-
rico, do conceito de homem e da correlação entre ser humano e ser que é
capaz de raciocinar. Abordam inclusive a questão sobre a humanização da
pessoa com deficiência e os requisitos para que isso ocorra.
Nesse texto somos apresentados a uma série de outros fatores que esti-
mulam a consolidação dos mitos em torno da capacidade de aprendizagem
das pessoas com deficiência, especialmente com deficiência intelectual, tais
como a filosofia e a religião, as quais, sob determinada perspectiva, podem
ser utilizadas para gerar ainda mais exclusão. As pesquisadoras novamente
alertam que o formato do aprender e do ensinar deve ser objeto de maior
preocupação do que características individuais. Elas provocam uma reflexão
acerca inclusive do arcabouço normativo que possuímos hoje em dia. Se
nós, enquanto sociedade, não reconhecermos que existem outros meios e
outros veículos para a promoção e a garantia do direito à educação das pes-
soas com deficiência, de nada terá adiantado a produção de uma legislação
robusta repleta de tantos dispositivos.
Enfim, mais do que formalizar, precisamos materializar. No campo da
Educação Especial, devemos compreender a forma como ela foi sendo cons-
truída ao longo dos séculos para visualizar o cenário presente e vislumbrar
os próximos passos a serem percorridos. Logo, para que essa materialização
seja efetiva, devemos nos nortear pelo caminho da ciência. Devemos aban-
donar os mitos que são impostos no decorrer de nossas vidas e até mesmo
aqueles que vamos construindo nesse percurso.
E, como poderemos perceber pela leitura desta obra, boa parte desses
mitos está diretamente relacionada à baixa expectativa acerca da capaci-
dade de aprendizagem das pessoas com deficiência. Consequentemente,
baixo também será o estímulo para melhorar e aprimorar os processos de
ensinar esse grupo de pessoas, do qual este subscritor também faz parte.
Cada um dos textos a seguir apresentados corrobora essa impressão, pois
constituem uma verdadeira interseccionalidade, um anagrama de capítulos
que, conquanto seja modificado, nos mostrará que a ciência é o caminho
mais seguro para que nos afastemos dos mitos aqui abordados e de tantos
outros que tangenciam a área de atuação da Educação Especial.
Não acreditar na capacidade de aprender e, concomitantemente, de
ensinar é não acreditar na própria capacidade de evolução humana, é não
acreditar em si mesmo. Com certeza não se trata de tarefa fácil, mas, se nos
orientarmos pela bússola da ciência e tomarmos a esperança no conheci-
mento como norte, possivelmente estaremos na trilha da efetivação do que
nos preconiza a Educação Especial.
Espero de algum modo ter auxiliado o leitor sobre a valiosa contribuição
que a presente obra lhe proporcionará. Te desejo uma boa e rica leitura.

Jairo Maurano Machado


SUMÁRIO

1 O que tem de especial a Educação Especial? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


Mônica Carvalho Magalhães Kassar

2 Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa . . . . . . . . . . . . . . . 27


Kamille Vaz e Rosalba Maria Cardoso Garcia

3 A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e


desconstruções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Taísa Grasiela Gomes Liduenha Gonçalves, Fabiane Maria Silva e
Laura Portugal da Silva Nascimento

4 Mitos sobre acessibilidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59


Clarissa Bengtson e Douglas Pino

5 (Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou


com baixa visão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Marcela Ribeiro da Silva e Eder Pires de Camargo

6 Talento musical: evidências científicas e mitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97


Fabiana Oliveira Koga e Rosemeire de Araújo Rangni

7 Todo aluno com TEA é competente em matemática: mito ou verdade? . . . . 117


Alessandra Daniele Messali Picharillo, Sabrina David de Oliveira e
Nassim Chamel Elias

8 Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança


com dispraxia verbal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
Sabrina Amanda Cordeiro, Adriana Fernandes Barroso e
Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

9 Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual . . 151


Alessandra Daniele Messali Picharillo e Rosimeire Maria Orlando

Súmulas curriculares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167


1

O QUE TEM DE ESPECIAL A


EDUCAÇÃO ESPECIAL?
Mônica Carvalho Magalhães Kassar

No início dos anos 1990, diferentes caminhos profissionais e de pesquisa


levaram-nos a perguntar o que haveria de especial na Educação Especial;1
em outras palavras, o que caracterizaria a Educação Especial de modo que
fosse possível demarcá-la como uma área do conhecimento e de atuação
diferenciada da Educação geral.
Uma busca por textos produzidos há algum tempo pode nos fornecer
pistas sobre a constituição dessa área do conhecimento como a conhece-
mos hoje. Referimo-nos a registros de trabalhos educacionais como os do
padre espanhol Juan Pablo Bonet, na elaboração do que é considerado
o primeiro manual sobre a educação dos surdos (ROCHA, 2008; GODOY,
2011), ou do trabalho de Jacob Rodrigues Pereira, também com surdos, cujas
ações foram registradas em 1745 na Académic de La Rochelle, na França
(SALGUEIRO, 2010), o empenho do médico Jean Marc Gaspard Itard (1774-
1838) para ensinar um menino (conhecido em anais históricos como Victor –
o “selvagem de Aveyron”) localizado nos bosques franceses em 1798, dentre
outras experiências.2
Ao olhar o conjunto de material histórico que contém registros de atendi-
mento educacional a pessoas consideradas, à sua época, como “anormais”,
é possível identificar uma particularidade comum às diferentes experiências:
essas tentativas foram construídas a partir de uma “inconformidade” com

1 Essas análises podem ser encontradas em Kassar (1995).


2 É relevante ressaltar a diferença entre as primeiras tentativas educacionais, como as
citadas aqui, e as ações de “acolhimento”, que são anteriores e que não envolvem o
processo escolar.
14 | (Des)mitos da Educação Especial

situações “desprezadas” ou “naturalizadas” por outros educadores e pelos


costumes e conhecimentos nos diferentes momentos e sociedades.
Os registros de Itard podem ser tomados como uma exemplificação
dessa afirmação. Como confirma Folliot (2003), no prefácio dos relatórios e
memórias de Itard sobre Victor, essa criança, descoberta no final do século
XVIII, foi dada a Itard por especialistas da época que viam nele apenas um
“idiota banal”.3 Como bem lembrado por Folliot (2003), nesse período havia
uma descrença generalizada, no meio acadêmico e educacional, relativa às
possibilidades de desenvolvimento de crianças que apresentassem carac-
terísticas de quadros patológicos denominados de “idiotia”, “debilidade”
ou “retardo”. No entanto, na situação para a qual profissionais renomados,
como Philippe Pinel (1745-1826), não viam solução, Itard viu desafio e impulso
para tentar provar que era possível a educação.

Para Pinel, Victor era apenas um retardado mental, incapaz de progredir.


O objetivo de Itard era tirar o selvagem do estado em que se encontrava,
mostrar que o homem é essencialmente um ser “construído”. Apesar das
limitações, o progresso de Victor era evidente, mostrando que o déficit
de Victor não era permanente, mas resultado de estimulação ambiental
insuficiente (FOLLIOT, 2003, p. 6, tradução nossa).

A “inconformidade” diante do aparentemente intransponível (ou a bus-


ca constante de superação de limites) pode ser identificada como um lado
da constituição da Educação Especial como campo de conhecimento e de
atuação.
No entanto, há outro lado também, relativo à percepção da diferença
como patológica e, como tal, foco de atenção segmentada e muitas vezes
segregada, sob o discurso de atenção especializada.
Esse segundo aspecto torna-se mais evidente dentro do processo de di-
fusão da educação pública obrigatória (ou instrução – como era denominada
à época), em diferentes países. Com a universalização da educação escolar,
que ocorreu entre o final do século XIX e início do XX em grande parte dos
países europeus, alunos que não apresentavam rendimento escolar consi-
derado adequado passaram a ser foco de atenção das autoridades edu-
cacionais e do campo da saúde. Alfred Binet (1857-1911) e Theodore Simon

3 Tradução livre e adaptada para “découvert à la fin du XVIIIème, remis à Itard


par des spécialistes de l’époque qui ne voyaient en lui qu’un idiot banal” (FOL-
LIOT, 2003)
O que tem de especial a Educação Especial? | 15

(1872-1961) iniciaram seus trabalhos com o governo da França para “medir” a


inteligência das crianças matriculadas nas escolas públicas francesas (ROTA
JÚNIOR, 2016) e publicaram em 1905 uma escala que relacionava caracte-
rísticas da inteligência com a idade, buscando atribuir aos alunos testados
sua “idade mental” e, a partir dessa informação, selecionar candidatos para
classes especiais (MICHELET; WOODILL, 1993).
Artigos sobre os testes de inteligência e seu uso na Educação (que foram
bases para a Pedagogia Científica ou Moderna) foram publicados e dissemi-
nados no Brasil, por revistas especializadas para professores. Um exemplo é
a “Revista de Ensino”, que circulava entre os professores do estado de São
Paulo, nas primeiras décadas do século XX. Em um artigo traduzido para a
língua portuguesa nessa revista, o médico italiano Ugo Pizzoli (1863-1934)
orientava professores a como identificar, em sala de aula, alunos “anormais”,
pela aparência, observando a atitude geral, a fisionomia, o vestuário e a pos-
tura espontânea (PIZZOLI, 1914).
Desse segundo aspecto, podem-se extrair alguns problemas. Um deles
é que a identificação da patologia (diagnóstico) ocorre acompanhada de
uma expectativa de sua progressão (prognóstico), que geralmente rebaixa
as possibilidades de desenvolvimento das crianças e acaba por prejudicar o
trabalho do professor.
Na década de 1990, desenvolvemos uma pesquisa com professores de
classes especiais, em que pôde ser verificada a existência da baixa expec-
tativa em relação ao desenvolvimento dos alunos devido a um prognósti-
co ruim, decorrente do diagnóstico de deficiência. Relatos de professores
em exercício docente mostraram que o conformismo com o “quadro da
deficiência” levava ao rebaixamento das expectativas, as quais, em última
instância, dirigiam seu trabalho em sala de aula. Na sala de aula, como o
estabelecimento de conteúdos, programas e procedimentos dependiam da
imagem que o docente tinha de seus alunos, o que era oferecido estava
sempre abaixo das capacidades das crianças (KASSAR, 1995).
Alguns depoimentos retirados de Kassar (1995) evidenciam a baixa ex-
pectativa de professores em relação a seus alunos e a proposição de um
planejamento escolar pobre, devido a essa condição: “durante o ano inteiri-
nho é uma coisa só, você tem que voltar. Você nunca tem que ir sempre para
frente, frente, frente” ou “O conteúdo, o nosso planejamento é diferente, é
um pouco mais lento, mais fraco”.4

4 Depoimentos de professores de classes especiais retirados de Kassar (1995).


16 | (Des)mitos da Educação Especial

Anos mais tarde, em contato com salas de aulas comuns de escolas


regulares, foi verificado que as ideias encontradas da década de 1990 em
classes especiais e descritas acima voltaram a ser identificadas não apenas
em relação a alunos com deficiência matriculados nesses espaços, mas a
outros que, por alguma característica, se distanciavam da imagem de “aluno
ideal” pelo professor. A seguir, há um trecho retirado de um relatório de
observação de uma estagiária de Pedagogia5 sobre um episódio em sala de
aula, em que é possível perceber uma prática pedagógica que se sustenta
na baixa expectativa de desenvolvimento da turma de alunos:

acontece que muitos dos alunos ali mal conheciam as vogais direito,
e outros de fato não conheciam, e a professora nem se quer fez uma
apresentação das vogais para os alunos antes das atividades. O mesmo
aconteceu na semana passada. Como consequência, os alunos durante
a atividade “chutavam” qualquer letra e iam mostrar a ela. Gritando,
é claro, a professora só dizia que estava “errado”, mas não ajudava os
alunos (SILVA, 2013, n. p.).

Ainda, a fixação em uma baixa expectativa muitas vezes impede o pro-


fessor de perceber os progressos dos alunos (KASSAR, 1995). Vemos um
exemplo, na década de 1990, quando uma professora, ao ser perguntada
se sua aluna, que estava há anos frequentando uma classe especial, está se
desenvolvendo e se será aprovada no final do ano, diz:

Olha, ela foi aluna da Apae, há muito tempo. Ela é deficiente física. Pra
mim, o problema dela é deficiente físico [SIC], e ela tem problema na
fala, ela fala muito pouco, e ela baba muito... Aliás, ela parou de babar,
sabe? [...] Agora, o mental dela eu acho que é normal (KASSAR, 1995, p.
72, grifos da autora).

Exemplos de desconsideração com os progressos de alunos também


foram registrados mais tarde, por outros estudos, em salas de aulas comuns.
Abaixo, um exemplo relativo a um aluno com diagnóstico de deficiência
intelectual:

Quando perguntei se o G. passaria para a próxima série, ela nos res-


pondeu que ele continua na mesma, porque ela teme que o avanço
que fez nesse ano poderia se perder em outra série. Por mais que tenha

5 A utilização do material produzido por Silva (2012) e Silva (2013) foi consentida pelas
autoras para divulgação em trabalho científico.
O que tem de especial a Educação Especial? | 17

apresentado esse avanço, ainda não é o suficiente para ele ser promovi-
do (SILVA, 2012, n. p.).

Outro problema refere-se à crença de que, para receber uma atenção


adequada, o aluno deveria ser separado de outras crianças sem as mesmas
características. Essa é uma ideia que vem permanecendo na Pedagogia e
que tem diferentes raízes. Uma dessas raízes é a ideia de que salas de aula
compostas de alunos com o mesmo “nível” de desenvolvimento (considera-
das classes homogêneas) seriam o melhor ambiente para a relação ensino-
-aprendizagem. Abaixo, segue um trecho em que a educadora Helena Anti-
poff (1892-1974) defendia essa premissa na década de 1930:

A tentativa de agrupar crianças em classes homogêneas [...] nada mais faz


que obedecer a um princípio fecundo, encontrado na ordem do dia nos
estabelecimentos industriais. Esse princípio é o da organização racional
do trabalho, posto em evidência por W. Taylor, desde o fim do último
século. [...] O agrupamento dos alunos em classes homogêneas, segun-
do seu desenvolvimento mental, é, neste sentido, uma das combinações
de organização racional do trabalho pedagógico (ANTIPOFF apud DIAS,
1995, p. 43).

Esse pensamento, somado ao uso de testes de inteligência, citados ante-


riormente, sustentou a formação de classes especiais entre o final do século
XIX e início do século XX e a formação de escolas e instituições especializa-
das (e ainda sustenta a existência desses espaços em muitas localidades).
Grande parte da literatura produzida até a década de 1980 e a legislação
brasileira traziam a visão restrita em relação às possibilidades de educabi-
lidade de todas as pessoas. Como evidência dessa visão pode ser citada
a Portaria Interministerial nº 186/78, dos Ministérios da Educação e Cultura
(MEC) e da Previdência e Assistência Social (MPAS), que divide os alunos em
dois grupos: um que poderia ser encaminhado à escolarização e outro que
deveria ser encaminhado para programas de reabilitação e autocuidado,
pois não se acreditava que a educação seria possível a todas as crianças.
A decisão de encaminhamento ocorria a partir de um diagnóstico, que
deveria trazer um prognóstico de ação para orientar os professores. Dessa
forma, aos alunos diagnosticados com deficiência mais leve era indicada
a educação/escolaridade (programação educacional); para os considera-
dos mais comprometidos ou com deficiências mais severas era proposto
18 | (Des)mitos da Educação Especial

atendimento apenas com enfoque de reabilitação ou autocuidado (progra-


mação terapêutica), como descrito no excerto do documento de 1978:

o encaminhamento de excepcionais para atendimento especializado


deverá ser feito com base em diagnóstico, compreendendo a avaliação
das condições físicas, mentais, psicossociais e educacionais do excepcio-
nal, visando a estabelecer prognóstico e programação terapêutica e/ou
educacional (BRASIL, 1978, art. 5º, grifo nosso).

Cabe ressaltar aqui que educação e reabilitação não são a mesma coi-
sa. Processos de reabilitação são extremamente necessários para o desen-
volvimento de grande parte da população da Educação Especial, mas não
substituem o processo educacional. As atividades de reabilitação, com a
participação de fisioterapeutas, fonoaudiólogos, entre outros profissionais,
pertencem ao campo da saúde e não substituem os processos educacio-
nais. Portanto, iniciativas que dirigem apenas atividades de autocuidado e
reabilitação à parte da população cerceiam essa população de seu direito
educacional.
O entendimento de que a limitação está associada à deficiência é um
comportamento discriminatório e é denominado pela literatura especializa-
da de capacitismo (MARTIN, 2017), que é a denominação latina adaptada
do termo em inglês ableism (HARPUR, 2009). Infelizmente, essa visão ainda
está fortemente presente na sociedade e é descrita em diferentes pesquisas
realizadas com pais (SILVEIRA; NEVES, 2006), professores (SILVEIRA; NEVES,
2006, CAMARGO; CARVALHO, 2019) e gestores escolares (CAMARGO;
CARVALHO, 2019).
A visão direcionada apenas à deficiência leva a um entendimento par-
cial da Educação Especial. Esse entendimento também encontra suas
raízes na formação das especialidades do conhecimento científico. No
desenvolvimento das ciências, o conhecimento tornou-se mais complexo
e diversificado. Nesse movimento, as ciências passaram a ser subdivididas
em especialidades, muitas vezes desconsiderando uma visão mais geral que
contextualiza o “fenômeno estudado”.
O foco direcionado apenas ao “objeto de estudo” pode ser um proble-
ma em várias áreas do conhecimento (Educação, Saúde etc.), inclusive na
Educação Especial. Por exemplo: imaginemos um estudo que se propõe a
avaliar “possíveis causas de sucesso ou fracasso acadêmico” no processo
de inclusão escolar, a partir do desempenho de alunos com deficiência que
O que tem de especial a Educação Especial? | 19

frequentam uma sala de aula comum. Ao aplicar testes de conhecimento


acadêmico e considerar os registros de notas escolares, o estudo identifica
que eles obtêm pontuações entre 3,0 e 5,0 (três e cinco) em uma escala de
0 a 10 (zero a dez). Que análises poderiam ser feitas? Que conclusões são
possíveis com essas informações?
Agora, se no estudo em questão for considerado o desempenho de to-
dos os alunos da turma (não apenas daqueles com deficiência) e, ao fazê-lo,
se descobre que a maior parte da sala de aula consegue as pontuações en-
tre 3,0 e 5,0 (três e cinco), as análises e conclusões seriam as mesmas que as
desenvolvidas no estudo anterior? Minimamente, o segundo estudo favore-
ce a suspeita de que talvez o problema de desempenho escolar dos alunos
com deficiência, nessa sala de aula, não seja necessariamente uma questão
de Educação Especial (ao menos não apenas de Educação Especial), mas de
Educação geral.
A abordagem fragmentada muitas vezes impede a percepção de que
alguns “problemas” não são “característicos” de uma população específica,
mas estão presentes em outras populações e em diferentes situações. Isso
ocorre principalmente porque frequentemente não existe a compreensão
de que os fenômenos são geralmente decorrentes de inúmeros fatores, e
não fruto de uma relação causa-efeito apenas.
Além da questão abordada entre especialidade e a necessidade de
espaços diferenciados, como se expressa acima, a separação de crianças
historicamente também foi sustentada pela perspectiva eugenista,6 alinhada
ao movimento higienista, com implantação dos serviços de saúde escola-
res (MONARCHA, 2007). O higienismo teve grande adesão no Brasil, com
diferentes espaços de difusão, como a Liga Paulista de Higiene Mental (SER-
RA; SCHUCMAN, 2012) e a Liga de Higiene Mental de Pernambuco (PROF.
ULYSSES PERNAMBUCANO, 1944). Pela perspectiva higienista/eugenista, a
separação de crianças com deficiências era vista como uma forma de evitar
a “contaminação” do restante da sociedade.
A construção histórica da Educação Especial, com as características bre-
vemente citadas acima, favorece que esse campo do conhecimento seja per-
cebido como área qualitativamente diferente da Educação geral, de modo

6 A Eugenia foi formulada por Francis Galton (1822-1911) e pode ser entendida como o es-
tudo de influências que podem corrigir ou melhorar as qualidades de raça das gerações
futuras (VASCONCELOS, 2006).
20 | (Des)mitos da Educação Especial

que, à primeira vista, parecem existir dois tipos de educação: a Educação e


a Educação Especial (KASSAR, 1995).

Essa distinção parece tão óbvia que podemos percebê-la simplesmente


observando alguns aspectos como a existência de cursos específicos
para formação de professores, ou cursos em nível de pós-graduação
que tratam especificamente da questão Educação Especial. Os trabalhos
publicados, geralmente, fazem referência ou à Educação Especial ou
à Educação de modo geral (onde quase se ignora a existência, dentro
desta, da Educação Especial) (KASSAR, 1995, p. 15).

O que seria característico da Educação e o que seria característico da


Educação Especial?
Quando abordamos aqui Educação, referimo-nos ao processo que pos-
sibilita a “humanização” do ser humano, por meio da apropriação da cultura,
como construção histórica (PINO, 2005). Nas palavras de Saviani, a educação
fornece a cada pessoa, em sua singularidade, “a humanidade que é produ-
zida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”; é um processo
que diz respeito “à identificação dos elementos culturais que precisam ser
assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem
humanos” (SAVIANI, 2008, p. 13).
O processo de educação escolar, direito de toda pessoa, que no Brasil
está assegurado pela Constituição Federal desde parte da Educação Infantil
até a finalização do Ensino Médio, possui esse desafio. Como afirmam Pinto
e Alves (2010), assegurar em lei o ensino obrigatório durante período deter-
minado da infância e juventude “tem sido uma das estratégias adotadas por
diversos países para viabilizar o exercício do direito à educação a todos os
segmentos da sociedade” (PINTO; ALVES, 2010, p. 211). Esse é um aspecto
primordial do processo de escolarização, e a Educação Especial também
deve ser entendida sob essa perspectiva.
A disseminação de uma política de uma educação inclusiva tem favoreci-
do o aumento significativo de matrículas da população historicamente aten-
dida pela Educação Especial em salas de aulas comuns das escolas regulares
em todo o país. Nesse contexto, a Educação Especial é chamada a repensar
seu papel, especialmente se considerada sua constituição histórica, entrela-
çada aos movimentos eugenista e higienista.
O panorama atual apresenta à Educação Especial, como campo do co-
nhecimento e de atuação, o desafio de garantir a atenção à especificidade
O que tem de especial a Educação Especial? | 21

dessa população sem perder de vista a abrangência do olhar aos direitos


sociais de todo cidadão (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019).
Algumas experiências dentro e fora do Brasil abrem novas perspectivas
para a Educação Especial. Pesquisas atuais têm mostrado que todas as pes-
soas aprendem, independentemente da gravidade da deficiência (JORGEN-
SEN; MCSHEEHAN; SONNENMEIER, 2007; WESTLING; FOX, 2009 apud
DOWNING; MACFARLAND, 2010). Registros de diferentes pesquisadores
mostram também que o aprendizado pode ocorrer em qualquer idade, e
não apenas na infância (DOWNING; MACFARLAND, 2010).
No Brasil, Carneiro (2008) realizou uma pesquisa em que foram entrevis-
tadas três pessoas adultas com Síndrome de Down, que chegaram aos níveis
mais altos de escolaridade, sendo uma delas concluinte de curso universi-
tário. As análises da autora apontaram que o desenvolvimento acadêmico
dessas pessoas foi possível devido a vários fatores. Um deles foi o percurso
escolar em escolas comuns. Outro se refere ao fato de que, para que o desen-
volvimento dessas pessoas ocorresse, houve a necessidade de ruptura com
os prognósticos negativos sobre a deficiência, usuais nas décadas passadas.
Esse aspecto evidencia-se na fala de uma das pessoas com Síndrome de
Down: “Quando eu nasci, os médicos diziam: ‘Bah, não vai caminhar, vai de-
morar pra caminhar, ela não vai falar, vai demorar pra falar’” (CARNEIRO,
2008, p. 150-151). No caso dessas pessoas, as famílias recusaram-se a aceitar
o prognóstico negativo atribuído a cada um e acreditaram em seu desenvol-
vimento, independentemente da condição de deficiência.
Outros estudos têm mostrado que mesmo pessoas com deficiência seve-
ra se beneficiam da escolaridade. Pesquisas realizadas com essa população,
inclusive com alunos com deficiência múltipla, em salas de aula comuns/re-
gulares registram que estes têm avanços significativos quando comparados
com alunos com as mesmas condições de deficiência, mas que frequentam
apenas classes especiais ou escolas especiais. Algumas das pesquisas são
citadas por Downing e MacFarland (2010):
• Peetsma e colaboradores (2001 apud DOWNING; MACFARLAND,
2010), em um estudo comparativo de escolarização de grupos de alunos
com deficiência severa, sendo um grupo submetido à educação geral e
outro grupo à especial, nos Países Baixos, descobriram que, após um pe-
ríodo de dois a quatro anos, os alunos que estavam em classes comuns
de escolas regulares demonstraram mais progressos em linguagem e
matemática do que seus colegas que frequentaram escolas especiais.
22 | (Des)mitos da Educação Especial

• Nos Estados Unidos, Fisher e Meyer (2002 apud DOWNING; MA-


CFARLAND, 2010) também realizaram pesquisa comparativa, durante
um período de dois anos, e demonstraram benefícios em matricular os
alunos com deficiências graves e múltiplas em escolas inclusivas, no que
se refere a habilidades de comunicação, desenvolvimento geral e habi-
lidades sociais, em comparação a alunos em escolas segregadas. Esses
são exemplos de que novos caminhos podem ser construídos.
Essas experiências ressaltam a importância de se considerar a função
social da escola, especialmente quando nos referimos aos alunos da Educa-
ção Especial. Dainez e Smolka (2019, p. 14) defendem que a “função social
da escola não se resume à socialização/convivência; relaciona-se, sim, ao
trabalho de ensino e à apropriação do conhecimento valorizado, condição
de desenvolvimento cultural orientador da personalidade”. A perspectiva
assumida pelas autoras provoca diretamente o fazer pedagógico da Edu-
cação geral e da Educação Especial. Especificamente, à Educação Especial
cabe o compromisso de possibilitar o processo de escolarização, em todos
os sentidos que “ser aluno” envolve.
Ainda, em relação à Educação Especial no contexto escolar, o trabalho
realizado por Giroto, Sabella e Rodrigues de Lima (2019) possibilita perceber
a necessidade de superação de desafios, especialmente no que se refere à
relação entre os profissionais que atuam na instituição escolar. Dentre os de-
safios, podemos citar: nem sempre há articulação entre o trabalho realizado
em sala de aula comum e o realizado no contexto do Atendimento Educacio-
nal Especializado; muitas vezes, há confusão de atribuições dos profissionais
escolares; frequentemente, a responsabilidade do trabalho com o aluno da
Educação Especial é atribuída apenas ao professor de Educação Especial, e
não a toda a escola; entre outros.

Considerações finais
A história auxilia-nos a entender os desafios presentes. Se retomarmos a
característica da Educação Especial, apontada no início deste texto, de “in-
conformidade” com possíveis limitações ou com situações “desprezadas”
ou “naturalizadas” por outros educadores e pelos costumes e conhecimen-
tos nos diferentes momentos e sociedades, podemos buscar o propósito
dessa área do conhecimento e de atuação: tornar possível a Educação para
todas as pessoas, a despeito de possíveis limitações apresentadas por suas
condições.
O que tem de especial a Educação Especial? | 23

Hoje, a presença de alunos considerados “da Educação Especial” em


salas de aulas comuns das escolas regulares tem contribuído para expor al-
guns problemas da escola brasileira: baixa qualidade da infraestrutura dos
espaços, insuficiência e superficialidade na formação de nossos educadores,
baixo investimento público na Educação etc.
No início deste texto, apresentamos uma pergunta elaborada nos anos
1990: o que haveria de especial na Educação Especial? À época, demo-nos
conta de que existem avanços em trabalhos científicos em Educação Es-
pecial, mas existem também práticas pedagógicas que desconsideram as
possibilidades de desenvolvimento humano, sob a apresentação de “aten-
dimento especializado”.

Quando a Educação Especial é abordada a partir de sua especificidade,


desvinculada da Educação, acaba, muitas vezes, caracterizando-se por
uma descontextualização nas discussões teórico-metodológicas, em
relação aos trabalhos em Educação de modo geral (KASSAR, 1995, p. 26).

Quando essa descontextualização ocorre, o excesso de especificidade


favorece a ideia de que as questões “especiais” não pertencem ao campo
da Educação geral, favorecendo a invisibilidade dos alunos da Educação
Especial frente à escola. Essa abordagem também colabora para que esses
alunos sejam vistos como de responsabilidade exclusiva de especialistas
(professores especializados, professores do Atendimento Educacional Espe-
cializado, profissional de apoio etc.), afastando os demais profissionais da
escola de assumirem a docência desses alunos.
Para finalizar, gostaria de retomar a aparente desvinculação entre a Edu-
cação Especial e a Educação e sugerir que cabe hoje à Educação Especial,
como campo de conhecimento e de atuação, construir caminhos que pos-
sam ir além de sua especificidade, sem, no entanto, deixar de considerar sua
existência.

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2

Pensar a Educação Especial para além da


mitificação burguesa
Kamille Vaz
Rosalba Maria Cardoso Garcia

Introdução

A proposta de discutir a política educacional problematizando mitos que


interferem na compreensão acerca da Educação Especial contém uma ferti-
lidade ímpar no momento histórico e social que vivemos no Brasil. Estamos
nos referindo às manifestações de refutação do conhecimento científico, à
campanha antivacina durante a pandemia do Covid-19, às práticas de fake
news ampliadas desde a campanha eleitoral para a presidência da república
em 2018 e a todo tipo de demonstração de desconsideração da dinâmica da
realidade social em sua materialidade.7
É fundamental enfrentar e buscar superar o conhecimento imediato,
pragmático, ou o senso comum, que representa não apenas a não cientifi-
cidade, mas também a difusão de ideias de forma descolada de seus fun-
damentos objetivos, as quais, se afirmadas reiteradamente e à exaustão, se
tornam expressão de uma hegemonia discursiva (JAMESON, 1997).
Ademais, consideramos que todo exercício de compreensão da realida-
de não se relaciona apenas a conhecê-la, mas contém em si, intrinsecamente,
um ímpeto de transformá-la, perseguindo um sentido revolucionário. Nesse
caso, estamos contrapondo as múltiplas formas assumidas por uma “ciên-
cia burguesa”, pautada em grande medida em produzir um conhecimento
restritivo de base utilitarista. Como afirma Meksenas (2002, p. 47), “é útil, na

7 Sobre o negacionismo científico e as fake news, indicamos Fontes (2020) e Leher (2020).
28 | (Des)mitos da Educação Especial

sociedade cindida pelas classes sociais, tratar as crises econômicas como cri-
ses da circulação da moeda e não as relacionar às estruturas da distribuição
desigual da riqueza socialmente produzida”. A produção de conhecimento
que se volta a manter o status quo não só é insuficiente para produzir as
transformações necessárias para a maioria da humanidade, como também
pode se tornar contrária aos seus interesses. Portanto, é imprescindível que
se produza uma teoria revolucionária. Para Marx (2003, p. 5),

na produção social da sua vida os homens entram em determinadas rela-


ções, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção
que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das
suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produ-
ção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual
se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem
determinadas formas da consciência social. O modo de produção da
vida material é que condiciona o processo da vida social, política e es-
piritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas,
inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. 

Tais argumentos são apresentados aqui para justificar as escolhas teóri-


cas que fazemos pelo materialismo histórico e dialético e para sustentar que
a superação de mitos constituídos na sociabilidade burguesa depende de
lançarmos mão de uma teoria que possibilite compreender tal sociabilidade
em suas múltiplas determinações e perscrutar caminhos para transformá-la.
Seguimos, portanto, na linha do pensamento marxista que busca compreen-
der a realidade social para agir em consequência, já que “todo ato social [...]
surge de uma decisão da consciência humana entre alternativas acerca de
finalidades futuras” (MORAES, 2009, p. 599).
No presente exercício de reflexão, alguns pontos tomados como neces-
sários ao debate não são exclusivos do momento atual, uma vez que são
constitutivos da sociedade moderna e de suas formas de gerir a coisa pú-
blica. Entretanto, apresentam expressões particulares na atual conjuntura
brasileira, com repercussões muito específicas sobre os debates acadêmicos
acerca da política de Educação Especial no país. Destacaremos neste texto
alguns mitos que identificamos ao proceder análises das políticas de Educa-
ção Especial: o Estado neutro, o direito à Educação e a universalização da
educação escolar.
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 29

O mito do Estado neutro


No processo de constituição da sociedade burguesa, a conquista de he-
gemonia, pela classe que se articulou mediante expropriação e exploração
dos trabalhadores, caracterizou-se por um conjunto de princípios que orienta
um pensamento filosófico a lhe dar sustentação. Toda transformação social
necessita de uma teoria que respalde seus argumentos, que passam então a
ser compartilhados e reafirmados. O pensamento liberal ou liberalismo está
assentado sobre um conjunto de categorias que o constituem em sentido
clássico, proposto por autores que idealizaram o Estado moderno – liberda-
de (Locke, 1994; Hobbes, 2004), igualdade (Hobbes, 2004), concorrência (Ho-
bbes, 2004), propriedade privada (Locke, 1994), meritocracia (Locke, 1994)
– e que contribuíram de alguma forma para dar sustentação a uma compre-
ensão de Estado neutro, acima das classes. Por outro lado, já observando
a constituição do Estado burguês no desenvolvimento e consolidação da
sociedade capitalista, Hegel articula uma tradição de pensamento liberal ao
caráter universal do Estado e impõe um sentido anticlassista à compreensão
sobre o trabalho na sociedade capitalista (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011).
Para Montaño e Duriguetto (2011, p. 33), Hegel compreende que

caberia ao Estado garantir o bem público ao mesmo tempo que preserva


a sociedade civil e seus fundamentos dentre os quais a propriedade pri-
vada. O Estado é assim transformado no sujeito real que ordena, funda
e materializa a universalização dos interesses privatistas e particularistas
da sociedade civil.

Dessa forma, do pensamento de Hegel, podemos supor o entendimento


da sociedade civil como a esfera das relações econômicas e dos interesses
particulares, cabendo, portanto, ao Estado, a universalização.
A perspectiva marxista sobre o Estado torna possível questionar e com-
bater, além de contribuir para superar o mito do Estado neutro, apreenden-
do-o como Estado burguês ou capitalista, ou seja, reconhecendo-o como
Estado de classe. Desde o início, em contraposição a Hegel, Marx compre-
ende o Estado como produto da sociedade civil e que, portanto, emerge
das relações de produção. Marx coloca-se em desacordo com a premissa
do Estado como momento da universalização, uma vez que estaria articu-
lado aos interesses da estrutura de classe. Nessa compreensão, o Estado
burguês parece representar o interesse universal, quando de fato representa
aqueles relativos a uma classe. A primeira concepção de Estado burguês
30 | (Des)mitos da Educação Especial

que podemos destacar é a formulada pelo jovem Marx como “comitê para
administrar os negócios da burguesia” (MARX; ENGELS, 1998, p. 7). Tratar
dessa perspectiva em relação ao Estado exige um debate muito mais apro-
fundado e uma exposição das ideias de diversos autores representativos do
campo. Cientes de que a tarefa é muito mais desafiadora do que podemos
realizar nos limites deste trabalho, vamos destacar algumas posições emble-
máticas, ainda que de forma resumida.
Lenin (2007) dedica-se ao debate sobre o Estado analisando a fase im-
perialista do capitalismo. Destaca o Estado como produto das contradições
inconciliáveis de classes para chamar a atenção o fato de que o pensamento
burguês tratou de defender o Estado como órgão de conciliação de classe,
quando de fato se ocupa da opressão e dominação. Sob outro aspecto, Le-
nin destaca o Estado burguês como instrumento da exploração do trabalho
assalariado pelo capital. Trazemos aqui apenas esses pontos, indicativos da
retomada e atualização do pensamento de Marx e Engels realizadas pelo
autor e que favorecem a superação do mito do Estado neutro.
Gramsci (2000), apropriando-se da concepção marxista acerca do Esta-
do capitalista, articulou a questão da sociedade civil, as lutas de classe, as
vontades particulares sendo tratadas como vontade geral, a disputa pela
hegemonia, a dominação e a direção de classe, entre outros fenômenos
constitutivos da realidade social que analisou, formulando o entendimento
de Estado integral. Tal formulação tem por base a premissa de que a socia-
lização da política, a participação de grupos de interesse na arena política,
disputando a hegemonia, produziu uma ampliação do Estado, não sendo,
portanto, considerado apenas nos limites do aparelho público; o Estado
integral é definido como a articulação entre sociedade política e sociedade
civil. Dessa forma, na esfera do Estado circulam ações de coerção e de con-
senso, conforme as relações de dominação e direção assim o exigirem para
a manutenção da hegemonia de uma classe. Para Gramsci (2000, p. 331),
“Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a
classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter
o consenso ativo dos governados”. Essa afirmação põe em destaque o pa-
pel dos aparelhos privados de hegemonia e sua atuação nas mediações do
exercício da dominação de classe.
Em análise de período histórico mais recente, mas igualmente assumin-
do a perspectiva marxista de Estado, têm-se as contribuições de Mészáros
(2002). O autor recupera em Marx a crítica a Hegel e avança em uma análise
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 31

da “crise estrutural do capital”, discutindo sua “incontrolabilidade” e a rela-


ção Estados nacionais/capital transnacional.
Na introdução do livro A montanha que devemos conquistar, o autor
analisa:

Sob as condições do aprofundamento da crise estrutural do sistema do


capital, os problemas do Estado tornam-se, inevitavelmente, cada vez
maiores. Pois, na forma há muito estabelecida do processo de tomada de
decisão política global, o Estado deveria proporcionar a solução para os
vários problemas que obscurecem nosso horizonte, mas não consegue
fazê-lo. Pelo contrário, tentativas de medidas corretivas do Estado – des-
de intervenções militares perigosas para enfrentar colapsos financeiros
graves em uma escala monumental, incluindo as operações de resgate
do capitalismo privado realizado pela sempre crescente dívida pública
da ordem de trilhões de dólares – parecem agravar os problemas, apesar
das vãs garantias em contrário (MÉSZÁROS, 2015, p. 15).

O autor trata o Estado como um nexo fundamental do sistema do capital


e de sua autoexpansão, na qual observa a “função corretiva vital das for-
mações estatais historicamente constituídas do capital” (MÉSZÁROS, 2015,
p. 16). Entretanto, o Estado não pode resolver as contradições da relação
capital/trabalho, mas desenvolve uma ação corretiva dos antagonismos es-
truturais, não para solucioná-los, mas para mantê-los sob controle (PANIA-
GO, 2001), fazendo valer seu papel de estrutura vital para a sustentabilidade
material do sistema.
Sobre as políticas sociais e educacionais, a perspectiva marxista sobre o
Estado possibilita que as compreendamos não como concessões do Estado
ou benfeitorias para redução de desigualdades. Por outro lado, também não
constituem, de modo isolado, conquistas de grupos organizados e empo-
derados nas lutas políticas. A perspectiva dialética sobre o Estado possibi-
lita compreender que as políticas sociais e educacionais são o resultado de
disputas, das quais participam a sociedade política e a sociedade civil, me-
diante a presença ativa de aparelhos públicos e aparelhos privados de he-
gemonia, de modo que os grupos sociais constituídos e representativos da
sociedade atuam em relações de disputa, mas não em relação de igualdade.
As relações de hegemonia que os aparelhos privados exercem articulam jun-
to aos grupos subalternos um conjunto de consensos e de dominações que
possibilita a supremacia burguesa (CASTELO, 2013). Podemos compreender
também, nessa perspectiva, que as ações corretivas do Estado não buscam
32 | (Des)mitos da Educação Especial

ampliar direitos ou reduzir desigualdades. Ao contrário, buscam garantir a


manutenção e expansão do próprio sistema do capital.
Como parte dos processos de dominação na virada do século XX para o
XXI, observamos a desqualificação e o descarte de teorias sociais baseadas
nos estudos da teoria do valor-trabalho e das lutas de classes, o que tem
contribuído para a formulação de um novo consenso acerca da natureza
das questões sociais e de seu enfrentamento – via políticas sociais assisten-
cialistas, o empoderamento dos indivíduos e de grupos e a disseminação
de ideias relativas ao desenvolvimento sustentável e inclusão social, entre
outros elementos (CASTELO, 2013, p. 357). Medidas estas que não reconhe-
cemos como capazes de impulsionar as transformações sociais necessárias
e essenciais (MÉSZÁROS, 2002).
Para o desenvolvimento das lutas e das transformações sociais necessá-
rias, é preciso lançar mão de teorias apropriadas a esse fim, permeadas por
categorias explicativas da realidade social. Nessa direção afirmamos como
fundamental a concepção dialética de Estado e de políticas sociais e edu-
cacionais para a análise e transformação das políticas de Educação Especial
no Brasil.
O mito do Estado neutro permite-nos compreender e aprofundar nos-
sas análises sobre a política educacional e sua relação com a manutenção
da sociedade de classes. Para o aprofundamento do debate, consideramos
necessário apresentar alguns elementos sobre o mito do direito à educação.

O mito do direito à educação


A proclamação da educação como direito social formalizado na socieda-
de burguesa materializou-se na ordenação legal, conflitando, mais ou menos,
com a condição de dever real em sua efetivação em cada formação social.
Saviani (2013) apresenta importante recuperação e análise histórica no Brasil
a esse respeito, ressaltando que “a educação, para além de se constituir em
determinado tipo de direito, o direito social, configura-se como condição
necessária, ainda que não suficiente, para o exercício de todos os direitos,
sejam eles civis, políticos, sociais, econômicos ou de qualquer outra nature-
za” (SAVIANI, 2013, p. 745).
Um ponto fundamental do discurso social baseado em uma “ciência
burguesa” articulada a políticas neoliberais nos últimos anos é a “melhoria”
da educação, um indicativo do projeto de manutenção da ordem, uma vez
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 33

que não problematiza a transformação social. Ao contrário, segundo Alt-


mann (2002), articula-se a um conjunto de ajustes para produzir melhores
resultados numa lógica produtivista. Não é incomum que esse discurso seja
acompanhado pelo debate acerca do nível de democracia e de cidadania
presente nos processos políticos, o que seria mais ou menos alcançado na
forma de direitos reconhecidos mediante a ação do Estado burguês.
Tal entendimento está firmado na centralidade da política, em detri-
mento da compreensão de que o desenvolvimento da humanidade está
fundado na centralidade do trabalho, em sentido ontológico (TONET, 2010).
Identificamos nessa compreensão o argumento que coloca o protagonis-
mo das mudanças sociais no Estado stricto sensu. Nesse caso, o modelo
de desenvolvimento ganha maior importância do que as formas sociais de
organização. Não é difícil perceber que produzir conhecimento para esta-
belecer ajustes à organização social existente significa um rebaixamento
do horizonte de lutas da classe trabalhadora e o seu engajamento em lutas
sociais e políticas que visam perpetuar a condição de dominação.
A centralidade da política e dos processos de democratização, numa
apropriação liberal, teve efeitos contraditórios, como a participação amplia-
da na oferta da educação, a qual se materializou na educação nacional nas
duas últimas décadas no Brasil, mediante o aprofundamento dos processos
de privatização da educação, “parcerias” público-privadas, transferência do
fundo público para o empresariado que oferta educação numa concepção
de “serviço”, ainda que afirmada formalmente como direito social na Cons-
tituição Federal (FREITAS, 2016). A análise de Lamosa (2020) possibilita com-
preender como as campanhas pelo direito à educação na América Latina se
relacionam com uma agenda definida pelos movimentos empresariais.
Para discutir o mito do direito à educação na sociedade burguesa, re-
corremos a Mészáros (2008, p. 159), que, retomando as reflexões de Marx,
formula acerca do conflito direito formal/direito substantivo: “essa insistên-
cia sobre os ‘direitos do homem’ não é mais do que um postulado legalista-
-formal e, em última instância, vazio”.
A educação como direito social na sociabilidade burguesa já contém em
si, na sua raiz, a desigualdade de acesso, a individualização dos processos de
ensino-aprendizagem, a seleção e classificação dos sujeitos de acordo com
seus desempenhos. No caso brasileiro, fomos direcionados a uma educação
escolar massificada (BRUNO, 2011), mas sem as condições objetivas e subje-
tivas para desenvolver uma educação que promova o humano.
34 | (Des)mitos da Educação Especial

Nessa direção, Evangelista e Shiroma (2015, p. 316) questionam: “pos-


sibilitar aos alunos da escola pública a apropriação do conhecimento so-
cialmente produzido e sua formação como sujeito histórico, sua formação
humana” ou atender ao “pronto-atendimento às necessidades do mercado
de trabalho em constante mutação”?
Segundo Mészáros (2008, p. 165), tratar os direitos humanos na perspec-
tiva da classe trabalhadora pressupõe “superar as contradições da parcia-
lidade, liderando as energias reprimidas da realização humana a todos os
indivíduos”. Os registros formais sobre os direitos humanos na sociedade do
capital tendencialmente atendem mais às necessidades reprodutivas dessa
sociedade que às “necessidades substantivas” dos sujeitos humanos.
O direito burguês foi discutido por Marx (2012, p. 30):

O igual direito é ainda, de acordo com seu princípio, o direito burguês,


[...] Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele não
reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é ape-
nas trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a
desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais e, por
conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores.

Isso nos remete a pensar que tratar de direitos humanos não se refere
a formalidades, mas à luta por condições de existência e desenvolvimento
humano, e que essa luta não pode ser exclusivamente uma luta individual,
formal, jurídica, com base no direito positivo. Ela precisa ser uma luta social,
coletiva e organizada para disputar, a partir do desenvolvimento de uma
consciência de classe, um projeto para a educação escolar que leve em con-
ta as condições substantivas necessárias para o desenvolvimento humano
em padrões formativos elevados.
Estamos indicando, com base na apropriação que Mészáros (2008) faz
do pensamento de Marx, a contradição fundamental entre direitos humanos
e as condições dadas pelo desenvolvimento capitalista, geradoras de uma
ilusão acerca da implementação dos direitos.
Mészáros (2008, p. 161) ressalta os direitos humanos na defesa proposta
por Marx sobre

o desenvolvimento livre das individualidades, em uma sociedade de


indivíduos associados e não antagonicamente apostos [...] O objeto da
crítica de Marx não consiste nos direitos humanos enquanto tais, mas
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 35

no uso dos supostos “direitos do homem” como racionalizações pré-


-fabricadas das estruturas predominantes de desigualdade e dominação.

Mészáros (2008, p. 168) compreende os direitos humanos como “um as-


sunto de alta relevância para todos os socialistas” e explica, a partir de uma
crítica radical, que, na sociedade capitalista, eles representam uma força de
oposição aos processos de desumanização. Entretanto, somente em outro
modelo de relações sociais poderemos desenvolver uma sociabilidade que
reconheça de fato a premissa “de cada um segundo suas capacidades, a
cada um segundo suas necessidades” (MARX, 2012, p. 32).
Assim como nos mitos apresentados anteriormente, na análise sobre as
políticas educacionais, mais especificamente sobre as políticas de Educação
Especial, percebemos a defesa da inclusão na escola pautada na crença da
universalização da educação escolar. No próximo item traremos alguns indi-
cativos para esse debate.

O mito da universalização da educação escolar


Para iniciarmos o debate acerca da crença ou mito da escola pública e/ou
da universalização da educação escolar, consideramos importante retomar
alguns elementos do seu surgimento. O debate sobre a escola pública teve
início com os teóricos e políticos franceses Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), Denis Diderot (1713-1784) e Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat ou
Nicolas de Condorcet (1743-1794). No período da Revolução Francesa (1789-
1799), na base das ideias de escola estava a defesa da educação pública,
universal, laica, obrigatória e gratuita (ALVES, 2006). Ao mesmo tempo, Alves
(2006) demonstra que esses ideais eram postos à prova pelas dificuldades
de implementação na sociedade burguesa e acabavam por relativizar as
reivindicações. Como afirmava Condorcet, “As escolas secundárias são des-
tinadas às crianças cujas famílias podem dispensá-las por mais tempo do
trabalho e consagrar à sua educação maior número de anos ou mesmo qual-
quer avanço” (CONDORCET, 1929b, p. 95 apud ALVES, 2006, p. 56). Dessa
forma, a defesa de educação igualitária não se estendia a todos.
Naquela época a escola estava eminentemente sob o comando da igreja.
No entanto, Manacorda (2010) apresenta outros teóricos que compreendiam
a escola como responsabilidade do Estado. Era o caso de Louis René de La
Chalotais (1701-1785). Ainda que todas essas ideias resguardassem algumas
ressalvas a respeito do acesso à educação pela classe trabalhadora, a luta
36 | (Des)mitos da Educação Especial

aqui se mantinha contra o domínio da igreja. Com as mudanças na produção


mercantil, advindas da Revolução Industrial ao longo dos séculos XVIII e XIX,
a qual passou de essencialmente artesanal para majoritariamente industrial,
ocorreram também mudanças na formação do trabalhador para atender a
esse novo modelo do processo produtivo.
Importante pontuarmos algumas características do início da instituição
escolar para compreendermos ao longo da história como ela vai sendo
transformada em decorrência das exigências para a manutenção do Capital.
Ao olharmos para a escola no século XXI, percebemos que a hegemonia da
classe burguesa prevaleceu. Nesse modelo, a escola é adequada às exigên-
cias do mercado, no sentido de atender às mudanças do mundo do trabalho
e às necessidades de novos tipos de trabalhadores, incluindo todos os sujei-
tos nesse processo, por exemplo, as pessoas com deficiência. Durante a Re-
volução Industrial, pela necessidade de adaptação às máquinas, passou-se
a requerer trabalhadores com nível de instrução suficiente para operá-las e
ler manuais, no entanto, com as mudanças do mundo do trabalho as exigên-
cias sobre o trabalhador também mudaram. Hoje, pelo que observamos nos
documentos nacionais e internacionais,8 o que se pretende é um trabalhador
proativo, flexível, multifuncional, polivalente e empreendedor. Kuenzer (2011,
p. 76) destaca que

A forma de organizar o trabalho na fábrica contém um projeto pedagógi-


co, muitas vezes pouco explícito, mas sempre presente. Seu objetivo é a
constituição de um certo tipo de trabalhador, conveniente aos interesses
capitalistas; em outros termos, propõe-se a habituação do trabalhador
ao processo de trabalho concreto existente na fábrica, que, embora
apresente certa especificidade, nada mais é do que uma manifestação
particular do trabalho capitalista em geral. Nesse sentido, o projeto pe-
dagógico que ocorre no interior da fábrica articula-se com o processo
educativo em geral, que se desenvolve no conjunto das relações sociais
determinadas pelo capitalismo.

Shiroma (2011) aponta a perspectiva de um novo tipo de trabalhador,


especialmente a partir das reformas educacionais da década de 1990, o qual,

8 Podemos citar como exemplo a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), a
Resolução nº 2 (BRASIL, 2020), o resumo executivo do Banco Mundial (2011), intitulado
Aprendizagem para Todos: investir nos conhecimentos e competências das pessoas
para promover o Desenvolvilmento, e o documento Educação para a Cidadania Global,
da Unesco (2015).
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 37

de acordo com a demanda do sistema produtivo, evidencia a necessidade


de uma escola para esse fim.

Nesse contexto, a procura por profissionais de novo tipo, flexíveis, ca-


pazes de gerir imprevistos, inovadores, proativos e eficientes, trouxeram
novas exigências para os sistemas educativos. Evidencia-se o dilema para
o capital que depende de trabalhadores mais qualificados para ganhar
vantagens competitivas, mas que não questionem o status quo. Este
é, também, um dilema para o Estado capitalista que deverá formá-los
(SHIROMA, 2011, p. 4).

Os estudos sobre as políticas educacionais e suas correlações com as


Organizações Multilaterais (OM), como o Banco Mundial (BM), a Organiza-
ção das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE),
indicam o interesse do capital internacional e financeiro na educação em
escala mundial, em especial dos países de capitalismo dependente, como
o Brasil. Como está expresso no documento Aprendizagem para todos:
investir nos conhecimentos e competências das pessoas para promover o
desenvolvimento (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 3),

A nova estratégia centra-se na aprendizagem por uma simples razão:


o crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos
conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem, não no número
de anos que passaram sentados numa sala de aula. No nível pessoal,
embora um diploma possa abrir as portas para um emprego, são as
competências do trabalhador que determinam a sua produtividade e
capacidade para se adaptar a novas tecnologias e oportunidades.

A concepção de educação expressa no documento citado reforça a ideia


da educação como propulsora da ascensão social, mas, agora para o século
XXI, a preocupação para com a formação dos trabalhadores está centrada
no desenvolvimento de habilidades e competências para se manterem no
mercado de trabalho formal e informal. Tal compreensão revigora as análises
sobre as concepções pedagógicas que influenciaram e influenciam a escola
hoje, como o escolanovismo e o tecnicismo.
A constituição da escola pública na sociedade capitalista representa os
interesses do capital para a formação da classe trabalhadora, e, a depender
dos seus interesses de acumulação, a escola sofre adaptações. No início do
século XXI no Brasil, essa instituição vem sendo caracterizada pela sua virada
38 | (Des)mitos da Educação Especial

assistencial (EVANGELISTA; LEHER, 2012) ou, como Saviani (2013) afirma,


está sendo direcionada como uma agência de assistência social por meio
dos programas e projetos focais que visam à contenção social ou o alívio da
pobreza. Algebaile (2009, p. 25) define esse modelo de escola como uma
espécie de “posto de realização de ações sociais”, o qual se sobrepõe ao
acesso ao conhecimento sistematizado. A escola em prol do capital projeta
para a classe trabalhadora a formação para o trabalho simples, com o domí-
nio dos conteúdos básicos, mas exige, sobretudo, que saiba empreender na
vida, ser flexível, proativa e inovadora.
No caso da Educação Especial, o acesso à escola pública vem sendo
defendido por movimentos sociais e pesquisadores do campo específico.
Entretanto, não percebemos uma análise sobre qual escola pública é essa
que estamos requerendo. Qual concepção de escola pública e de formação
está em pauta na sociedade capitalista? Nesse horizonte de lutas e reinvin-
dicações, estamos lidando com o mito da escola neutra ou de uma suposta
universalização da educação escolar. Seria como se a defesa da escola pú-
blica estivesse acima da própria escola e do processo formativo nela e por
ela realizado.
Pensar a escola e como ela está sendo articulada para a manutenção
da ordem vigente, por exemplo, a partir da ideia de um espaço de alívio
da pobreza, da oferta de programas sociais condicionados a ela (ALGEBAI-
LE, 2009) ou da subordinação da escola aos ditames do mercado (FREITAS,
2014), possibilita refletir sobre qual projeto de formação humana está sendo
pautado e qual o objetivo da inclusão escolar em relação aos estudantes da
Educação Especial.
A política de Educação Especial na perspectiva inclusiva está inserida em
um projeto de sociedade que pretende transformar as escolas em uma parte
do sistema educacional inclusivo. Esse projeto de sociedade que utiliza a es-
cola como local privilegiado de formação para as mudanças em curso, com
vistas à adequação ao processo produtivo, transforma a democratização do
conhecimento cientificamente produzido em algo irrelevante.
Para Michels e Garcia (2014), a evidência dessa escola de cunho assisten-
cial está ancorada no discurso de “sistema educacional inclusivo”, proposto
pelas Organizações Multilaterias (OM), o qual tem o objetivo de “incluir os
excluídos” da escola. Segundo as autoras,

A leitura de tais proposições permite a linearidade de pensamento


ao relacionar como causa e efeito o binômio exclusão/inclusão e o
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 39

conservadorismo da proposta que deposita na educação o papel reden-


tor de solucionar as questões sociais. É possível notar que o debate em
torno da sociedade e da educação é desenvolvido mediante um silencia-
mento das relações sociais que presidem o tempo presente. Aquilo que,
de início, parece ser a redenção dos grupos excluídos historicamente do
acesso ao conhecimento, à instrução e à cultura humana, nas relações
sociais vigentes, acaba por concretizar-se em formação das massas para
o trabalho simples (MICHELS; GARCIA, 2014, p. 163).

A inclusão, discutida nesse âmbito, é caracterizada como acesso à escola,


a qual está ancorada no modelo de disposição aos códigos da modernidade
para a formação de força de trabalho para o trabalho simples. Tais indica-
ções não surgiram com a perspectiva inclusiva, mas ganharam força com a
ideia de alívio à pobreza. Zibas (1997), ao dissertar sobre as recomendações
da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), no final do
século XX já afirmava que a tendência de ampliar as matrículas no ensino bá-
sico estava ancorada, para além da conformação social, na formação para a
competitividade. Nesse sentido, a visão de educação está em conformidade
com a teoria tecnicista, a qual atribui à educação o desenvolvimento do país.
A política de universalização do ensino está, como já evidenciamos, rela-
cionada às necessidades de formação do trabalhador. Consideramos impor-
tante levantar essa questão, porque, discursivamente, esse processo está
nas bandeiras de luta da classe trabalhadora pelo direito à educação escolar,
como afirma Oliveira (2007). No entanto, essa política vem carregada de in-
tenções da burguesia para o projeto de escola para as massas. A ampliação
do atendimento não necessariamente significou acesso ao conhecimento
historicamente produzido, ao contrário, o acréscimo das matrículas veio em
concomitância com a ampliação de serviços prestados no espaço escolar em
detrimento do ensino propriamente dito.
Libâneo (2012), ao relatar as propostas do Banco Mundial (BM) para a
educação nos países em desenvolvimento, questiona a própria função da
escola.

Constata-se, assim, que, com apoio em premissas pedagógicas humanis-


tas por trás das quais estão critérios econômicos, formulou-se uma escola
de respeito às diferenças sociais e culturais, às diferenças psicológicas de
ritmo de aprendizagem, de flexibilização das práticas de avaliação esco-
lar – tudo em nome da educação inclusiva. Não é que tais aspectos não
devessem ser considerados; o problema está na distorção dos objetivos
da escola, ou seja, a função de socializar passa a ter apenas o sentido de
40 | (Des)mitos da Educação Especial

convivência, de compartilhamento cultural, de prática de valores sociais,


em detrimento do acesso à cultura e à ciência acumuladas pela huma-
nidade. Não por acaso, o termo igualdade (direitos iguais para todos) é
substituído por equidade (direitos subordinados à diferença) (LIBÂNEO,
2012, p. 23, grifos no original).

Ou seja, os processos de expansão das matrículas na escola pública,


hoje, em especial com as políticas de inclusão escolar, corroboram a es-
cola para a manutenção do capital. A escola financiada pelo Estado, nesse
contexto, repercute a falta de investimentos e uma suposta contradição em
ampliar o acesso e reduzir os custos, o que Freitas (2002) afirmou possibilitar
a “internalização da exclusão”. Esse aspecto também evidencia o incentivo à
abertura das relações público-privadas nas escolas, enfatizando sua concep-
ção mercadológica e empresarial. Tendo em vista a suposta ineficiência do
Estado, a justificativa da privatização corporifica-se. A educação e a escola
passam a ser um serviço a ser prestado e, nesse sentido, podem ser comer-
cializadas, por exemplo, na sua gestão, na compra de apostilas de sistemas
de ensino privados, na formação continuada de professores.
Interessa-nos compreender as múltiplas determinações que compõem
a escola hoje, tanto no que diz respeito às políticas educacionais – e suas
reais intenções com a universalização do ensino e o slogan Educação para
Todos – como sua virada assistencial no que diz respeito ao atendimento
aos alunos da classe trabalhadora, incluindo os alunos com deficiência, e
sua concepção gerencialista com a incorporação da lógica do setor privado.
Entretanto, a possibilidade de enfrentamento, de uma escola que atenda
aos interesses da classe trabalhadora é justificada pela compreensão de um
espaço dialético e composto de seres sociais e históricos.
Como pudemos observar desde a sua criação, a escola pública brasi-
leira continua sendo hegemonizada pelos interesses do capital no século
XXI, que, em meio às crises próprias de seu sociometabolismo (MÈSZÀROS,
2011), adéqua as instituições a seus interesses. A relação com a Educação Es-
pecial não é diferente, pelo contrário, como faz parte da Educação Básica é
pensada no conjunto de políticas para a consolidação do projeto educacio-
nal. Desse modo, é inevitável analisar as políticas para a Educação Especial
na perspectiva inclusiva, contextualizando-as no âmbito das políticas gerais
para a educação, do projeto de escola, dos objetivos de tais mudanças para
o sistema produtivo capitalista, bem como da disputa pela construção de
uma formação que se organize em outra direção.
Pensar a Educação Especial para além da mitificação burguesa | 41

A escola pública como espaço de socialização e aquisição de habilida-


des e competências vai ao encontro dos preceitos da escola para a manu-
tenção do Capital. Essa escola é diretamente relacionada com os interesses
da sociedade capitalista, mas se apresenta como neutra, como espaço para
receber as diferenças. Nesse emaranhando sobre a função da escola, o
mito sobre ela prevalece nas análises e reivindicações para a educação dos
estudantes da Educação Especial, ou seja, na defesa acrítica do ideário da
inclusão escolar se obscurece o projeto de escola pública e, nesse caso, se
distancia a defesa por uma educação de fato emancipadora.

Considerações acerca de uma análise das políticas de Educação


Especial
Ao apresentar três possíveis mitos que perpassam uma “ciência burgue-
sa” ou os consensos produzidos numa sociedade cujo pensamento hege-
mônico é constituído por princípios liberais em suas variadas faces, estamos
mirando criticar o desenvolvimento de análises da política de Educação
Especial no Brasil que se limitam a apresentar descrições fenomênicas ou
a significá-las como “melhorias”. As perspectivas analíticas de matriz liberal,
ou que não produzem enfrentamentos críticos acerca da realidade social,
podem esbarrar numa métrica qualitativa de avanços e recuos em relação à
formalidade da vida social.
Tais posicionamentos muitas vezes estão bem intencionados e agluti-
nando forças em torno do acesso dos estudantes da Educação Especial à
educação regular, ao reconhecimento dos direitos educacionais, ao respeito
à diversidade humana. Entretanto, podem estar fazendo concessões, nas
análises e nas lutas, às forças hegemônicas e à manutenção do status quo.
Desconsiderar o Estado como neutro e afirmá-lo como instituição bur-
guesa que trabalha pela manutenção da divisão de classes nessa sociedade
nos permite problematizar o fato de que o direito à educação está pautado
em aspectos formais e de que a escola pública está sendo hegemonizada
para formação de trabalhadores moldados ao mercado. Entretanto, como
evidenciamos ao longo do texto, as disputas por hegemonia são constituin-
tes desses espaços.
A concepção de Educação Especial no interior das escolas públicas não
deve desconsiderar todos esses elementos. De outra forma, corremos o
risco de pautar suas reivindicações no mito do Estado que proporcionará
42 | (Des)mitos da Educação Especial

o bem comum, no direito formal à educação e no acesso à escola, abrindo


mão da disputa por outro projeto formativo, outra sociabilidade.
Buscamos, portanto, com as reflexões aqui apresentadas, registrar uma
posição de crítica radical às políticas educacionais promovidas por blocos no
poder que articulam as demandas e lutas sociais populares ao pensamento
liberal e com isso contribuem para perpetuar a subalternidade.

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3

A PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA


EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
CONCEPÇÕES E DESCONSTRUÇÕES
Taísa Grasiela Gomes Liduenha Gonçalves9
Fabiane Maria Silva10
Laura Portugal da Silva Nascimento11

Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente,


nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em quem
aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico
do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir,
reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco
e à aventura de espírito (Paulo Freire, 1996, p. 28).

Começando a nossa conversa

No início de cada semestre da disciplina “Fundamentos da Educação


Inclusiva” do curso de Pedagogia, pergunta-se aos discentes sobre as
percepções acerca da pessoa com deficiência e o que esperam desse per-
curso formativo na disciplina. As respostas são múltiplas: alguns relatam as
vivências de pessoas com deficiência na família, outros indicam situações de
aproximação com essas pessoas nos estágios; há aqueles que dizem que
não sabem o que fazer quando forem pedagogos e receberem, em suas
turmas, alunos da Educação Especial. E como descontruir essas concepções
e ideias? Acredita-se que a unidade entre teoria e prática possibilitará a
transformação.

9 Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação


da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). [[email protected]]
10 Assistente Social, mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação,
Conhecimento e Inclusão Social da UFMG. [[email protected]]
11 Pedagoga e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Conhecimento
e Inclusão Social da UFMG. [[email protected]]
46 | (Des)mitos da Educação Especial

Outros pontos tensionados na disciplina, nos trabalhos ou nas palestras


condizem ao entrelaçamento dos temas Educação de Jovens e Adultos
(EJA),12 Educação do Campo13 e Educação Especial.14 Você, leitor(a), já pen-
sou sobre a realidade de uma pessoa adulta em situação de analfabetismo,
com uma lesão medular15 (deficiência física adquirida), que vive em um qui-
lombo e precisa de transporte adaptado para estudar na EJA na cidade?
Esse é um exemplo concreto dos nossos “Brasis”. Algumas pessoas pensam
ou até perguntam: Mas ainda existe quilombo? Para que uma pessoa adulta
nessas condições vai para a escola?
Outro espaço que pode ter pensamentos equivocados sobre o de-
senvolvimento humano é a EJA, uma modalidade de ensino em que está
ampliando o número de matrículas de alunos da Educação Especial (GON-
ÇALVES, 2012). Identificam-se afirmações pesadas de estudantes da EJA,
inclusive sem deficiência: “o estudo não é para mim”; “eu não aprendo”;
“não nasci para o estudo”. Como desconstruir esses discursos? Qual EJA es-
tamos desenvolvendo? Por que, nessa modalidade, as matrículas de alunos
da Educação Especial estão se ampliando?
Na escola, mesmo passados mais de 20 anos de políticas inclusivas,
ainda temos grandes desafios para o atendimento aos estudantes da Edu-
cação Especial e identificamos certa resistência da escola como um espaço
de direito. Para este capítulo, selecionamos depoimentos de um adulto de
nome fictício José que apresenta deficiência física por lesão medular e que
participou de uma pesquisa em andamento. No momento da entrevista (no-
vembro/dezembro de 2021), o participante havia concluído o Ensino Médio.
Ele contou suas perspectivas sobre a EJA, que serão usadas nesta conversa
para dialogar com mitos e conceitos que povoam o nosso imaginário, quan-
do pensamos em alunos jovens e adultos com deficiência.

12 Destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos
Fundamental e Médio na idade regular (BRASIL, 1996).
13 Destinada aos agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos,
assentados e acampados da Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros
(BRASIL, 2008b).
14 Destinada àqueles que apresentam alguma deficiência, transtornos globais de desen-
volvimento e altas habilidades ou superdotação (BRASIL, 2013).
15 Experiências e perspectivas de pessoas com deficiência física por lesão medular na
Educação de Jovens e Adultos. CAAE 42541121.4.0000.0022 (Associação das Pioneiras
Sociais – DF/Rede Sarah) e CAAE 42541121.4.3001.5149 (Universidade Federal de Minas
Gerais).
A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções | 47

José tem 27 anos, mora em um distrito na zona rural de um município


de Minas Gerais. A lesão medular aconteceu aos 17 anos (acidente motoci-
clístico) e trouxe como sequela a paraplegia traumática completa. É usuário
de cadeira de rodas. Parou de estudar aos 12 anos, no 6º ano do Ensino
Fundamental, e retomou em 2018, em regime semipresencial da EJA numa
escola privada em um município de São Paulo.
José representa a materialidade de quem vive no campo, com deficiên-
cia física e que foi aluno da EJA. Ele explica os fatores que influenciaram sua
saída da escola:

Por ser muito longe, eu saía de casa muito cedo e chegava tarde em
casa. Viajava 38 km para poder estudar. Vez e outra o ônibus dava defeito,
porque não era um ônibus novo igual são os ônibus de hoje. É... dava
defeito, a gente ficava horas e horas preso lá, esperando a manutenção
do ônibus. E com isso, com esses acontecimentos aí, juntando distância,
cansaço físico e mental, preocupação da família, preocupação minha
[...] isso foi gerando um desconforto. Eu fui é, meio que abandonei os
estudos. Eu estava na, acho que na 6ª série, algo assim é... Abandonei os
estudos, por esse motivo aí fiquei um tempo sem estudar.

A história de José junta-se a de tantos outros brasileiros que não tive-


ram a efetivação da trajetória escolar. Ferraro (2008) mostra-nos que há uma
dívida educacional histórica do Estado com o povo brasileiro e lança um
desafio para a sociedade, principalmente para os educadores: o de desper-
tar as pessoas humildes para a consciência e a luta pela concretização desse
direito.
A sociedade capitalista secundariza a escola, oferecendo instruções mí-
nimas à classe trabalhadora, fazendo com que avancem as forças produtivas
e as relações de produção baseadas na propriedade privada e na divisão de
classes (SAVIANI, 2003).
A escola pública é contraditória aos interesses da sociedade de classe
capitalista:

O trabalhador, não sendo proprietário de meios de produção, mas ape-


nas de sua força de trabalho não pode se apropriar do saber. Assim, a
escola pública, concebida como instituição de instrução popular destina-
da, portanto, a garantir a todos o acesso ao saber, entra em contradição
com a sociedade capitalista (SAVIANI, 2008, p. 257).
48 | (Des)mitos da Educação Especial

Nas contradições presentes no contexto escolar de um sistema capita-


lista, a epígrafe elucidada por Paulo Freire (1996) nos impulsiona a aprender,
construir, reconstruir e mudar a realidade desigual em nosso país. Também
recomenda a necessidade de rompermos com a “lição dada”.
Nas palavras de Ferreira (2013, p. 10, grifos nossos), “cada aluno merece
ser olhado como uma pessoa que é constituída por múltiplos elementos e
uma história própria; para quem o como fazer ou o que fazer para ensiná-lo
não depende de uma receita pedagógica anterior”.
Nesse movimento, o objetivo deste capítulo é discutir as concepções
e ideias referentes às pessoas com deficiência na Educação de Jovens e
Adultos.

As concepções e as ideias sobre o desenvolvimento da pessoa com


deficiência
Na perspectiva da Psicologia histórico-cultural de Vigotski, a deficiência
é compreendida além do orgânico, transcorrendo pelas dimensões sociais,
históricas e culturais. Nos estudos desenvolvidos por Vigotski e Luria (1996),
os autores afirmam que a cultura e o meio ambiente refazem uma pessoa,
não somente por lhe possibilitar o acesso ao conhecimento, mas por trans-
formar a organização de seus processos psicológicos, ao potencializar técni-
cas para empregar suas próprias capacidades.
José relata os pensamentos que teve sobre sua perspectiva de vida ao
adquirir a deficiência física: “O que que eu vou fazer da minha vida agora? Eu
vou ficar um cara na cadeira de rodas e dentro de casa, nunca mais eu vou
ter, vou ter vida”.
Para Vigotski (1997), a deficiência e todas as faculdades e qualidades a
ela associadas formam um constructo social versátil, atravessado por valores
ideológicos de acordo com o modo de organização social. Na estrutura da
sociedade capitalista, a deficiência pode ser concebida como expressão da
questão social, já que na maior parte das vezes ela é compreendida como
uma questão de desvantagem social (CUNHA, 2021).
Na perspectiva histórico-cultural, ao se constatar que as pessoas têm
formas singulares de aprender e, por conseguinte, que isso requer formas
singulares de ensinar, inauguram-se novas possibilidades para a criança,
o jovem e o adulto com deficiência. Além do mais, para que as funções
A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções | 49

intelectuais desses indivíduos sejam desenvolvidas, torna-se imprescindível


a interação social (PEREIRA, 2018).
No percurso histórico, o que se observa é que muitas pessoas foram pri-
vadas de qualquer interação, seja pelo isolamento em classes especiais ou
pelo discurso “inclusivo” em classes comuns. Desse modo, compreendemos
que as pessoas com deficiência precisam ser inseridas na cultura e participar,
de forma efetiva, do processo de construção histórica, a fim de assimilarem
novas formas sociais de atuação, internalizá-las e interagirem como sujeitos
históricos (PEREIRA, 2018).
Nesse sentido, José relata o desejo de querer estudar após adquirir a
deficiência: “Eu não posso colocar na minha cabeça que, porque eu estou
numa cadeira, que vou me entregar [...] deu um start para eu querer estudar,
querer ir atrás da minha liberdade”.
Tal perspectiva reconhece a importância da prática educativa para a
aprendizagem e para o desenvolvimento humano, ao se vencerem as bar-
reiras do determinismo biológico e proporcionar a intervenção educativa,
tendo-a como promotora do desenvolvimento dos alunos (SIERRA; FAC-
CI, 2011). Como diz José, “Eu quis estudar para poder estar adquirindo
conhecimento”.
O jovem e o adulto com deficiência vão ou estão na escola, porque eles
têm o direito garantido pela nossa Constituição.16 Talvez a função da escola
para a pessoa com deficiência seja um mito construído pela nossa história
de que o trabalho “educativo” deveria ser responsável pelo tratamento e
pela intervenção clínica, distanciados da dimensão escolar, do saber histori-
camente constituído.
Para Saviani (2003, p. 13), “o trabalho educativo é o ato de produzir, di-
reta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.” Na nos-
sa sociedade, a escola assumiu a educação escolar, que, de acordo com o
autor, deve propiciar os instrumentos que possibilitam o acesso ao saber
elaborado, ao conhecimento científico.

16 “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida


e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(BRASIL, 1988, n. p.).
50 | (Des)mitos da Educação Especial

Compreende-se que o homem está inserido no mundo em que as forças


produtivas determinam seu caminho, e para que se consiga superar essa
posição é preciso lutar contra a formação unilateral (MANACORDA, 1991).

Nesse quadro de uma humanidade dividida e por isso igualmente


unilateral, onde, todavia, uma parte está excluída de toda participação
nos prazeres e no consumo – dos bens materiais e intelectuais, eviden-
temente – e a outra tem o privilégio exclusivo em nome do dinheiro,
que transmuta a estupidez em inteligência e torna valoroso o covarde,
e a classe excluída que se deve ver como aquela que poderá libertar-
-se, e libertar consigo todas as demais, da alienação; na emancipação
do operário está implícita a emancipação humana geral (MANACORDA,
1991, p. 78).

A omnilateralidade, oposta à formação unilateral, engloba todas as di-


mensões humanas e é definida por Manacorda (1991, p. 81) como “a chegada
histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mes-
mo tempo, a uma totalidade de consumo e prazeres”, tendo a educação o
papel de levar o homem a essa totalidade, por meio do conhecimento.
Cury (2002, p. 246) considera a educação escolar como “uma dimensão
fundante da cidadania, e tal princípio é indispensável para políticas que vi-
sam à participação de todos nos espaços sociais e políticos e, mesmo, para
a reinserção no mundo profissional”. Para ele, decorre da compreensão do
papel desempenhado pela capacidade cognitiva para o desenvolvimento
humano, a racionalidade como manifestação do reconhecimento de si, de
sua atuação sobre o mundo objetivo e da relação com os outros. Ainda so-
bre a importância do processo de escolarização, José ressalta:

Vai mudar o pensamento da pessoa, vai abrir a mente dele para deter-
minadas coisas e vai ver que a realidade não é talvez do jeito que ele vê,
aquele conceito na cabeça dele. Então tem “ene” benefícios a questão,
ele tá buscando a escolaridade.

A função da escola, segundo a Pedagogia histórico-crítica, em unidade


com a Psicologia histórico-cultural, é o desenvolvimento do humano, para
construção das funções psíquicas superiores, ao possibilitar o avanço dos
conceitos empíricos para conceitos científicos (MARTINS, 2011). Portanto, o
jovem e o adulto têm o direito de frequentar a escola também para ter aces-
so ao conhecimento científico.
A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções | 51

Nesse aspecto, assim como Saviani (2003, p. 15), entendemos que “a


escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibi-
litam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos
rudimentos deste saber”. Vigotski defendeu com veemência que é o ensino
que promove o desenvolvimento, reforçando, igualmente, que a qualidade
do primeiro condiciona o segundo (MARTINS, 2013).
Portanto, defendemos que a aprendizagem da criança, do jovem e do
adulto com deficiência deve se dar em seu meio social, por meio da intera-
ção com seus pares, com o oferecimento de condições de desenvolvimento
e participação social dessas pessoas, a fim de passarem a ser reconhecidas
em sua singularidade, e não por sua limitação.

Qual EJA temos e queremos para os alunos da Educação Especial?


Na atual conjuntura, presenciamos o aumento significativo de alunos com
deficiência matriculados na rede regular de ensino, todavia, essa ampliação
não é acompanhada por um crescimento do desempenho acadêmico dos
estudantes (CARVALHO, 2007).
Germano (2021) destaca as dificuldades relativas às limitações na visão
dos profissionais da escola em relação ao atendimento de alunos da Edu-
cação Especial. Isso ocorre uma vez que, antes do contato (físico) diário,
as ideias preconcebidas e as perspectivas sobre esses alunos – que estão
vigorosamente associadas a limitações, incapacidades e não aprendizagem
– influenciam consideravelmente e negativamente a rotina escolar.
Apesar de as Políticas Nacionais de Educação Especial na Perspectiva de
Educação Inclusiva (BRASIL, 2008a) viabilizarem a participação e a escolari-
zação desses alunos na rede regular de ensino, observamos que a compre-
ensão de deficiência, que permeia o imaginário e as práticas pedagógicas,
ainda está relacionada a limitações e incapacidades, com interferência no
processo de escolarização. A decisão de “vamos esperar o aluno comple-
tar 15 anos para encaminhá-lo à EJA” ilustra o que muitos estudantes estão
vivenciando na escola. Como essa frase foi difundida na escola? Qual a con-
cepção de EJA?
Em meio a essa complexidade, Carvalho (2006a) salienta as circunstân-
cias precárias em que ocorre o atendimento para os alunos da Educação
Especial, dado que, tal como ocorre no Ensino Fundamental, muitos estu-
dantes permanecem por muitos anos na EJA, com repetências contínuas,
52 | (Des)mitos da Educação Especial

até que desistem da escolarização, prevalecendo, dessa maneira, a compre-


ensão de que eles, por serem público de serviços especializados, não têm
condições de aprendizagem.
Na análise de Gonçalves (2012), a EJA também pode ser compreendida
como um espaço em que a segregação está presente, levando-se em consi-
deração a presença de pessoas que foram excluídas da educação formal na
idade estipulada em lei e a construção de classes e instituições especiais de
Educação de Jovens e Adultos.
No retorno para a escolarização por meio da EJA semipresencial, José
critica seu formato condensado, pouco aprofundado.

foi um período curto. Eu vejo que eu aprendi o básico ali [...] se eu estives-
se fazendo presencial ou se tivesse um suporte melhor, um suporte mais
presente, assim, mais contato mesmo com o aluno, eu teria aprendido
mais coisas. Eu vejo que eu, particularmente, tenho uma certa dificuldade
em estar estudando on-line. Eu sou muito mais estudar presencial, estar
ali em contato com o instrutor, com o professor ali. Para tirar minhas dúvi-
das naquele momento, ali eu consigo absorver melhor, então no colégio,
lá também em São Paulo, eu vejo hoje que me prejudicou um pouco. Eu
poderia ter aprendido mais. Mas o que eu aprendi lá foi assim, o básico
ou foi o necessário.

Os pesquisadores da área que associam EJA e EE têm considerado a


necessidade de romper com o caráter supletivo (SANTOS, 2014; ARAÚJO,
2013) e com propostas de aligeiramento (SILVA, 2013).
Barroco (2011) discute como a lógica mercantil tem se apropriado da
educação e ditado o ritmo para a obtenção de índices de produtividade,
instituindo uma lógica de aligeiramento, esvaziada do conhecimento cien-
tífico e da formação humana. De acordo com a autora, esse processo “recai
de modo brutal sobre os alunos diferenciados pela deficiência. A saída que
se oferece, não só para estes alunos, é que a escola seja cada vez mais fraca
para os fracos” (BARROCO, 2011, p. 171-172).
Outro aspecto sobre a Educação Especial na EJA refere-se ao elevado
número de matrículas de alunos considerados com deficiência intelectual17
(GONÇALVES, 2012).

17 “Caracteriza-se por alterações significativas, tanto no desenvolvimento intelectual


como na conduta adaptativa, na forma expressa em habilidades práticas, sociais e con-
ceituais” (BRASIL, 2015, p. 90).
A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções | 53

Dias e Oliveira (2013) apresentam a forte influência do modelo médico


nas concepções sobre deficiência intelectual, na organização conceitual so-
bre o tema e na busca por encontrar um sistema de classificação adequado.
Conforme analisam, o diagnóstico da deficiência intelectual é vigorosamen-
te marcado pela associação entre tal modelo, que concebe a deficiência
como “adoecimento”, e o modelo psicométrico para avaliação intelectual
e classificações. Tal associação contribui para a representação da pessoa
com deficiência intelectual “como um adulto infantilizado, sem autonomia,
dependente, contido e sem capacidade de se responsabilizar por seus
próprios atos, o que constitui uma violação de seus direitos como pessoa”
(DIAS; OLIVEIRA, 2013, p. 178).
Nos estudos de Carvalho (2007), a autora demonstra que as pessoas
com deficiência intelectual são habitualmente representadas como “crianças
grandes”, incapazes de agir, deliberar, escolher ou liderar como qualquer
adulto que não apresente o mesmo diagnóstico. Na análise da autora, tal si-
tuação pode privar essas pessoas de oportunidades educacionais e sociais,
com efeitos imperecíveis sobre o processo de desenvolvimento.
Além disso, observa-se que uma parcela significativa de estudantes com
deficiência intelectual continua sua trajetória escolar em instituições e classes
especiais, excluídos do acesso ao sistema formal de ensino. Como exemplo
dessa realidade, destacamos a constituição da denominada EJA Especial,
realizada em espaços segregados, que vem se mantendo e se fortalecendo
no Brasil (GONÇALVES, 2020).
À luz desse contexto, pesquisadores da área evidenciam que a maior
parte das matrículas de estudantes com deficiência intelectual na EJA, ensino
Especial, está concentrada nas séries iniciais do Ensino Fundamental e em
instituições privadas assistenciais, com prevalência da filantropia (GONÇAL-
VES, 2012, 2020; SILVA, 2021). Ou seja, apesar do incremento de matrículas
de estudantes nas escolas regulares e classes comuns, as instituições com
atuação exclusiva na Educação Especial, que atendem hegemonicamente os
alunos matriculados em escolas especiais, continuam tendo suas atividades
financiadas pelo poder público.
Essas parcerias contribuem para a conservação da educação em uma
perspectiva segregada e dificultam a compreensão da educação da popu-
lação com deficiência como um direito constitucional, já que o tipo de ensi-
no prestado pelas instituições privadas se pauta em um modelo clínico, de
reabilitação, com ênfase em atividades sem cunho pedagógico (MELETTI,
54 | (Des)mitos da Educação Especial

2006), em que “o discente é preparado para atividades repetitivas, monóto-


nas, com o ensino formal sendo secundarizado ou, até mesmo, inexistente”
(GONÇALVES; BUENO; MELETTI, 2013, p. 410).
Na visão de Carvalho (2006b), a crença contumaz de que o estudante
com deficiência intelectual não aprende tem legitimado, nas escolas, inclu-
sive na EJA, a repetição de conteúdos curriculares sem direcionamento pe-
dagógico, da mesma maneira que a repetência desses estudantes, em uma
mesma série/ciclo, contribui para sua longa permanência na EJA.
Carvalho (2004) retrata aspectos da constituição dos jovens e adultos
com deficiência intelectual:

A infantilização de suas formas de ação, a desconsideração das suas ex-


periências de vida, a negação dos seus esforços de participação social,
a falta de reconhecimento das possibilidades de ação desses jovens e
adultos como algo contingenciado pelas suas condições de vida (CAR-
VALHO, 2004, p. 143).

Para Vigotski (1997), a dificuldade para trabalhar com o aluno que possui
deficiência intelectual deve-se ao fato de que o problema do déficit cog-
nitivo é, constantemente, compreendido como um fato em si, e não como
um processo. O sistema de ensino, na maior parte das vezes, apoia-se em
características negativas, baseia-se naquilo que falta à criança, ao jovem ou
adulto, naquilo que eles não são.
Nesse contexto, e conforme Dias e Oliveira (2013), ao defender a compre-
ensão da deficiência intelectual baseada na concepção de desenvolvimento
humano, mediada pelos processos históricos, sociais e culturais, Vigotski
rompe com as visões fatalistas apoiadas na predeterminação do fenômeno,
seja por causas sobrenaturais, orgânicas ou ambientais, e conduz a uma mu-
dança a partir da qual se passa a acreditar nas possibilidades e capacidades
preservadas, e não nas limitações e impossibilidades.
Além do mais, consoante Nuernberg (2008), Vigotski produziu uma
crítica vigorosa às formas de segregação social e educacional impostas às
pessoas com deficiência.

Para ele, a restrição do ensino à dimensão concreta dos conceitos é


uma estratégia equivocada de organização das práticas educacionais
da Educação Especial. Com base em uma noção estática e reificadora
da condição psíquica destas pessoas, a proposição de formas de ensino
centradas nos limites intelectuais e sensoriais resulta na restrição das suas
A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções | 55

oportunidades de desenvolvimento. Cria-se, assim, um círculo vicioso no


qual, ao não se acreditar na capacidade de aprender das pessoas com
deficiência, não lhe são ofertadas condições para superarem suas dificul-
dades. Em consequência, elas ficam condenadas aos limites intelectuais
inerentes à deficiência, tomados assim como fatos consumados e inde-
pendentes das condições educacionais de que dispõem (NUERNBERG,
2008, p. 309).

Ainda de acordo com Vigotski (1997), a Educação Especial deve levar em


conta que, associadas à deficiência, se encontram possibilidades compensa-
tórias que facultam a superação das limitações. Nesse sentido, a compensa-
ção ampara-se em um contexto que favoreça as oportunidades para que os
alunos com deficiência alcancem os mesmos fins no processo educacional
que seus pares considerados “normais” (NUERNBERG, 2008). No entanto,
para que os fins sejam alcançados, é necessário um sistema de ensino que
favoreça o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, além da
importância de se manter o foco educacional em atividades que estimulem
o estudante com deficiência a desenvolver a zona de desenvolvimento imi-
nente (aquilo de que ele ainda não se apropriou), desviando a atenção das
dificuldades relacionadas à deficiência primária (orgânica), conforme verifica-
do por Pereira (2018).
Nas palavras de Kassar (2012, p. 845), “na escola, a luta pela efetivação
de direitos esbarra na identificação das diferenças ainda como algo extraor-
dinário e não como – de fato – constitutivas de nossa população”. Isso não
significa a minimização de um tema tão complexo, mas uma mudança de
perspectiva, na forma de olhar e conceber o aluno da Educação Especial.

Algumas considerações
Os encaminhamentos dos alunos da Educação Especial para a EJA têm
aumentado. Desse modo, precisamos pautar e discutir o processo de esco-
larização na idade regular, os encaminhamentos e a composição da EJA para
esses estudantes.
A história de vida de José, camponês, com deficiência física e estudan-
te da EJA, representa grande parte da população brasileira que vivencia
ou vivenciou a situação de analfabetismo. A continuidade dos estudos por
meio da EJA “semipresencial” ilustra as condições da nossa educação, em
que buscamos a ruptura com o “básico”, com a “lição dada”, na luta por
56 | (Des)mitos da Educação Especial

uma modalidade que proporcione o conhecimento formal, possibilitando a


transformação social.
Salienta-se que a EJA não deve ser a manutenção da Educação Espe-
cial, também em espaços segregados, como classes e instituições espe-
ciais, e problematizamos o projeto de EJA para todos os alunos, com e sem
deficiência.
Além disso, as identificações e os diagnósticos respaldados na defici-
ência intelectual, como sinônimo de incapacidade e desresponsabilização
do processo pedagógico, precisam ser debatidos nas formações docentes
iniciais e continuadas. Precisamos modificar o contexto escolar e social so-
bre as ideias, concepções e justificativas do “não aprender” centradas na
deficiência.
Não esperemos mais nenhum aluno completar 15 para ser encaminhado
para a EJA do “desaparecimento”.

Agradecimento
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) – Chamada pública Universal 01/2016, Projeto nº 408454/2016-4.

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A pessoa com deficiência na Educação de Jovens e Adultos: concepções e desconstruções | 57

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Artes Médicas, 1996. p. 207-239.
4

MITOS SOBRE ACESSIBILIDADE


Clarissa Bengtson
Douglas Pino

A colaboração deste texto para a Educação Especial é refutar alguns mitos


criados a respeito da acessibilidade para Pessoas com Deficiência (PcD), es-
pecialmente aquela voltada para estudantes no Ensino Superior. Antes de
tratar especificamente da refutação dos mitos, precisamos entender o que
é a Acessibilidade e faremos isso por meio da legislação, nacional e interna-
cional, afinal “somos servos da lei para que possamos ser livres” (CÍCERO,
2021, posição 72).
Além disso, também abordaremos os conceitos de Desenho Universal
e Tecnologia Assistiva, fundamentais para a compreensão do processo de
garantir acessibilidade à PcD. Por fim, apresentaremos cinco mitos sobre
acessibilidade e as devidas refutações, baseadas num relato de experiência
com um estudante cego no Bacharelado em Sistemas de Informação (BSI),
oferecido na modalidade a distância pela UFSCar.

O que dizem as leis sobre a Acessibilidade


Em termos de inclusão de pessoas com deficiência, temos a Declaração
de Salamanca como marco. Erigida em 1994, na Conferência Mundial sobre
Educação Especial, a Declaração tinha como foco a “melhoria do acesso à
educação para a maioria daqueles cujas necessidades especiais ainda se
encontram desprovidas” (UNESCO, 1994, p. 1).
Na sequência, outra conquista importante foi a Convenção da ONU so-
bre Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006, cujo propósito é “o de
promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os
60 | (Des)mitos da Educação Especial

direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas


com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade” (CON-
VENÇÃO..., 2014, p. 21). E complementa:

A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver com autonomia e


participar plenamente de todos os aspectos da vida, os Estados Partes
deverão tomar as medidas apropriadas para assegurar-lhes o acesso,
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físi-
co, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e
tecnologias da informação e comunicação, bem como a outros serviços
e instalações abertos ou propiciados ao público, tanto na zona urbana
como na rural (CONVENÇÃO..., 2014, p. 33).

No Brasil, a Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece


normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pes-
soas com deficiência ou mobilidade reduzida, foi uma conquista fundamen-
tal na linha do que rege o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do di-
reito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Com o avanço da luta por políticas públicas e de inclusão, a Lei
10.098/2000 foi substancialmente alterada pela Lei nº 13.146, de 6 de julho
de 2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto
da Pessoa com Deficiência –, que é “destinada a assegurar e a promover, em
condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamen-
tais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”
(BRASIL, 2015, Art. 1º).
Em seu Art. 2º, considera pessoa com deficiência “aquela que tem impe-
dimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participa-
ção plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas”. Já em seu Art. 3º apresenta a definição de Acessibilidade:

possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e


autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações,
transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecno-
logias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de
uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na
rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Mitos sobre acessibilidade | 61

Em relação à Educação, a referida Lei traz, em seu Capítulo IV, dois pon-
tos fundamentais, a saber: 1) obrigatoriedade de haver um “sistema educa-
cional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado
ao longo de toda a vida” (BRASIL, 2015, Art. 28, inciso I); 2) “aprimoramento
dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, perma-
nência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de
recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão
plena” (BRASIL, 2015, Art. 28, inciso II).
Como não poderia ser diferente, esses termos legais estão assentados
no Art. 205 da nossa Constituição Cidadã, para a qual “A educação, direito
de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Importam, ainda, algumas palavras sobre de que forma o Estatuto da
Pessoa com Deficiência aborda a questão das barreiras, afinal, são justamen-
te barreiras que a acessibilidade busca derrubar. Em seu Art. 3º, inciso IV, o
Estatuto define barreira como:

qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou


impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o
exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e
de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à
circulação com segurança, entre outros […].

E essas barreiras são assim classificadas:

a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e


privados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de
transportes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave,
obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a
expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por inter-
médio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou
prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualda-
de de condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pes-
soa com deficiência às tecnologias (BRASIL, 2015, Art. 3º, inciso IV).
62 | (Des)mitos da Educação Especial

Para derrubar essas barreiras, o primeiro passo é uma legislação que


garanta direitos iguais a todas as pessoas, inclusive às pessoas com defici-
ência. Como demonstramos, o Brasil possui uma legislação substancial que
engloba boa parte das exigências para inclusão e permanência de estudan-
tes com deficiência nas universidades públicas e privadas. A partir do que
regem as leis, cada universidade deverá olhar para o seu contexto educacio-
nal e promover a acessibilidade que melhor ajude o estudante a trilhar seu
caminho formativo.
E como promover acessibilidade? Em poucas palavras, são necessários
profissionais qualificados e recursos financeiros para o desenvolvimento de
Tecnologia Assistiva baseada no conceito de Desenho Universal. E mais,
para além do desenvolvimento de tecnologias, a Acessibilidade deve tra-
balhar no campo das relações interpessoais, no preocupar-se com o outro e
saber que, como assinala a grande psicanalista Melanie Klein, “o processo
de deslocar amor é de suma importância para o desenvolvimento da per-
sonalidade e para as relações humanas e poderíamos dizer, inclusive, para
o desenvolvimento da cultura e da civilização” (KLEIN apud DUARTE, 2022,
p. 27).
Vejamos, primeiro, os pontos fundamentais que englobam a Tecnologia
Assistiva; em seguida, os princípios do Desenho Universal; daí, então, discu-
tiremos os mitos sobre acessibilidade.

Tecnologia Assistiva
Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Tecnologia Assistiva
mantém uma relação de sinonímia com “ajuda técnica” e é definida como

produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estra-


tégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade,
relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou
com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência,
qualidade de vida e inclusão social (BRASIL, 2015, Art. 3º, inciso III).

Já o desenvolvimento desses produtos, recursos, estratégias, práticas,


processos, métodos e serviços ocorre graças à interdisciplinaridade, que,
a depender dos desafios, pode englobar, entre outras, as seguintes áreas
de especialidade: Educação, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudio-
logia, Psicologia, Enfermagem, Medicina, Engenharia, Arquitetura e Design.
Mitos sobre acessibilidade | 63

Essas áreas, em colaboração mútua, produzem Tecnologia Assistiva que ma-


ximiza a autonomia da pessoa com deficiência, bem como sua mobilidade
social e qualidade de vida.
Como forma de ilustrar a contribuição dessas áreas, vejamos alguns
exemplos de Tecnologia Assistiva.
• Celta: sistema computacional composto de hardware (máquina) e
software (programa) que funciona como um periférico de computador.
Trata-se de um display braille com uma única célula e dois botões de
controle, conectado ao computador por meio de um cabo USB. Com o
software de interface aberto, o usuário escolhe um texto qualquer em
seu computador e o copia para a área de transferência do computador
(comandos de copiar, Ctrl+C, e colar, Ctrl+V). Então, o texto colado na
interface pode ser lido na forma de caracteres braille, com a ponta dos
dedos, no hardware. Essa leitura dá-se caractere por caractere, um de
cada vez. O usuário utiliza dois botões, para avançar ou retroceder, na
apresentação dos caracteres (SANTIAGO et al., 2022).
• Head Mouse:18 mouse virtual desenvolvido para pessoas com mo-
bilidade reduzida dos membros superiores. Trata-se de uma Tecnologia
Assistiva gratuita e que requer apenas uma webcam. Seu acionamento
dá-se pelo piscar de olhos.
• TapTapSee:19 aplicativo de câmera móvel projetado especificamente
para deficientes visuais, com a tecnologia CloudSight Image Recognition
API. Utiliza a câmera do celular e funções Voice Over para tirar uma foto
ou vídeo, por exemplo, de bula de remédio e identificá-la em voz alta.
• Guia de Rodas:20 aplicativo que mapeia estabelecimentos comer-
ciais e permite a pessoas com mobilidade reduzida e/ou que utilizam
cadeira de rodas compartilhar informações, tais como o tipo de rampa, a
largura das portas e passagens, entre outras.
• Hand Talk:21 aplicativo que realiza tradução digital e automática para
surdos usuários da Língua Brasileira de Sinais (Libras).

18 Informação disponível em: https://www.tecnologiasaccesibles.com/pt-br/content/hea-


dmouse. Acesso em: 12 abr. 2022.
19 Informações disponíveis em: https://taptapseeapp.com. Acesso em: 12 abr. 2022.
20 Informações disponíveis em: https://guiaderodas.com. Acesso em: 12 de abr. 2022.
21 Informações disponíveis em: https://www.handtalk.me/br/. Acesso em: 12 de abr. 2022.
64 | (Des)mitos da Educação Especial

• Sofia Fala: “é uma tecnologia assistiva (capaz de melhorar a qua-


lidade de vida de pessoas com dificuldades de fala) que capta sons e
imagens, produzidos durante a execução do exercício fonoaudiológico,
e depois os analisa, oferecendo dois tipos de respostas sobre a perfor-
mance do usuário: uma lúdico-educacional, com orientações para o pa-
ciente e/ou o responsável pelo treino; outra, com dados métricos e esta-
tísticos para o Fonoaudiólogo avaliar, acompanhar e orientar a evolução
clínica do usuário. Assim, o sistema deverá se adaptar às características
do usuário para melhor conduzi-lo no processo de evolução da fala, isto
é, o sistema terá comportamentos distintos com usuários diferentes de-
vido à singularidade, dificuldade e potencialidade de cada um, e seu uso
deverá ser indicado e acompanhado por um fonoaudiólogo clínico como
apoio ao processo de intervenção terapêutica”.22
A história do desenvolvimento desta última Tecnologia Assistiva dá-nos
a dimensão da essência da Acessibilidade, uma vez que Sofia, que dá o nome
à tecnologia, foi diagnosticada, ao nascer, com Síndrome de Down. Marinal-
va Dias Soares, sua mãe, e uma colega, ambas cientistas da computação,
decidiram propor um projeto para auxiliá-la no tratamento fonoaudiológico.
Segundo Marinalva,

a expectativa é que a Sofia e outras crianças possam aprimorar a co-


municação verbal, por meio do uso do sistema, e assim possam falar
com fluência e segurança para poderem integrar e interagir no contexto
familiar, educacional e social exercendo seus direitos e deveres como
qualquer cidadão brasileiro.23

A Tecnologia Assistiva, portanto, é ferramenta imprescindível para ga-


rantir aquilo que foi aprovado, a respeito da educação, na Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência e em seu Protocolo Facultativo, assi-
nados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, especificamente:

a. O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dig-


nidade e autoestima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos
humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana;
b. O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos

22 Informações disponíveis em: https://dcm.ffclrp.usp.br/sofiafala/. Acesso em: 13 de abr.


2022.
23 Informações disponíveis em: https://dcm.ffclrp.usp.br/sofiafala/. Acesso em: 13 de abr.
2022.
Mitos sobre acessibilidade | 65

e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habi-


lidades físicas e intelectuais;
c. A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade
livre (CONVENÇÃO..., 2014, p. 52).

Na sequência, tratamos dos princípios do Desenho Universal e de como


eles permearam o trabalho de acessibilidade para um estudante com de-
ficiência visual no curso de Bacharelado em Sistemas de Informação (BSI),
oferecido pela UFSCar na modalidade a distância.

Desenho Universal
O conceito de Desenho Universal (Universal Design) foi criado em 1997
por Ron Mace e outros arquitetos signatários da ideia de que os objetos
que projetamos e produzimos deviam ser utilizáveis por todas as pessoas.
Seguindo essa linha de pensamento, o Estatuto da Pessoa com Deficiência
define Desenho Universal como a “concepção de produtos, ambientes, pro-
gramas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade
de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia
assistiva” (BRASIL, 2015, Art. 3º, inciso II).
Partindo da ideia de “para todos”, Ron e seus signatários estabeleceram
os sete princípios do Desenho Universal, a serem empregados por qualquer
programa de acessibilidade que se deseja completo. Vejamos os princípios
e como eles foram aplicados em BSI.24

Princípio 1 – Uso igualitário. O desenho do espaço, do objeto e/ou do pro-


duto deve atender às pessoas com habilidades diversas. São diretrizes para
este princípio:
• Forneça os mesmos meios de uso para todos os usuários: idêntico,
sempre que possível; equivalente, quando não.
• Evite segregar ou estigmatizar quaisquer usuários.
• Disponibilize as provisões para privacidade e segurança de forma
igualitária a todos os usuários.
• Torne o design atraente para todos os usuários (MACE, 1997, n. p.,
tradução nossa).

24 Os autores deste capítulo faziam parte da Equipe de Acessibilidade responsável por


executar os trabalhos de acessibilidade no curso de BSI, de 2011 a 2016.
66 | (Des)mitos da Educação Especial

Sobre esse princípio, foram tomadas medidas para garantir a igualdade


em dois espaços, o virtual (Ambiente Virtual de Aprendizagem) e o físico
(Polo de Apoio presencial). Para o primeiro, podemos afirmar que o AVA
era idêntico para todos, não havendo qualquer formatação que indicasse
quais materiais ou ferramentas eram destinados a um público específico.
Da mesma forma, o Polo mantinha o atendimento indiferenciado a todos os
estudantes do curso, tanto em termos de estrutura quanto comunicacional.

Princípio 2 – Uso flexível (adaptável). O desenho do espaço, do objeto e/ou


do produto deve acomodar uma ampla gama de preferências e habilidades.
São diretrizes para este princípio:
• Dê possibilidades de variados métodos de uso.
• Acomode o acesso tanto com a mão direita quanto com a esquerda.
• Facilite a precisão do usuário.
• Proporcione adaptabilidade ao ritmo do usuário (MACE, 1997, n. p.,
tradução nossa).
Este princípio inspirou a criação de plugins no Moodle, por parte da
Equipe de Acessibilidade da UFSCar, para facilitar a navegabilidade nas sa-
las virtuais.

Princípio 3 – Uso simples e intuitivo. O uso do desenho deve ser fácil de


entender, independentemente da experiência do usuário, conhecimento,
habilidades de linguagem ou nível de concentração atual. São diretrizes para
este princípio:
• Elimine a complexidade desnecessária.
• Seja consistente com as expectativas e intuição do usuário.
• Acomode uma ampla gama de habilidades de alfabetização e
linguagem.
• Organize informações consistentes com sua importância.
• Forneça sugestões e comentários eficazes durante e após a conclu-
são da tarefa (MACE, 1997, n. p., tradução nossa).
Este princípio direcionou o design instrucional das salas virtuais, assim
como dos projetos editoriais dos materiais. O foco era eliminar barreiras que
pudessem atrapalhar os leitores de tela, proporcionando uma leitura mais
fluida.

Princípio 4 – Informação perceptível. O desenho deve comunicar infor-


mações necessárias ao usuário, independentemente das condições do
Mitos sobre acessibilidade | 67

ambiente ou das habilidades sensoriais do usuário. São diretrizes para este


princípio:
• Use modos diferentes (pictórico, verbal, tátil) para apresentação re-
dundante de informações essenciais.
• Forneça contraste adequado entre informações essenciais e seus
arredores.
• Maximize a “legibilidade” de informações essenciais.
• Facilite a instrução ou instruções.
• Forneça compatibilidade com uma variedade de técnicas ou dispo-
sitivos usados ​​por pessoas com limitações sensoriais (MACE, 1997, n. p.,
tradução nossa).
A Audiodescrição,25 por exemplo, encaixa-se neste princípio, ao alargar
as possibilidades de acesso de informações, via oralidade. Aliados à Audio-
descrição, buscando a redundância de recursos fundamentais para a apren-
dizagem, utilizamos os seguintes recursos táteis: Multiplano,26 impressão em
alto relevo e cola quente.

Princípio 5 – Tolerância para com o erro. O desenho deve minimizar os ris-


cos e as consequências adversas de ações acidentais ou não intencionais.
São diretrizes para este princípio:
• Organize elementos para minimizar perigos e erros: elementos mais
usados devem estar mais acessíveis; elementos mais perigosos devem
ser eliminados, isolados ou protegidos.
• Forneça avisos de perigos e erros.
• Forneça recursos sem falhas.
• Desencoraje a ação inconsciente em tarefas que exijam vigilância
(MACE, 1997, n. p., tradução nossa).

25 No trabalho de acessibilidade desenvolvido em BSI, foram produzidas aproximadamen-


te 4 mil audiodescrições.
26 “O Kit Multiplano refere-se a aparelho didático destinado a auxiliar o aprendizado da
matemática e estatística. É possível adotar uma perspectiva de educação regular e/
ou inclusiva, que possibilita o manuseio por todos os estudantes. É constituído por
um tabuleiro retangular operacional no qual são encaixados pinos, fixadores elásticos,
hastes de corpo circular para sólidos geométricos, hastes para cálculo em funções ou
trigonometria, base de operação, barras para gráficos de Estatística, disco circular que
apresenta em sua periferia uma sequência de orifícios circulares, onde podem ser com-
binadas duas ou mais peças pertinentes a uma determinada operação matemática que
se pretenda aprender e compreender por meio da visão e ou do tato”. Disponível em:
http://multiplano.com.br/como-funciona/. Acesso em: 5 mar. 2021.
68 | (Des)mitos da Educação Especial

Este princípio foi base para organizar o Polo de Apoio do estudante cego
em questões como a configuração correta do computador, a instalação de
leitores de tela, a disponibilização de fones de ouvido e demais recursos
previamente testados.

Princípio 6 – Baixo esforço físico. O desenho deve ser usado de forma


eficiente e confortável, com um mínimo de fadiga. São diretrizes para este
princípio:
• Permita que o usuário mantenha uma posição neutra.
• Use forças operacionais razoáveis.
• Minimize ações repetitivas.
• Minimize o esforço físico sustentado (MACE, 1997, n. p., tradução
nossa).
Este princípio é a própria base da Educação a Distância. Como a maior
parte do curso é construída por atividades assíncronas, o estudante tem a
liberdade de direcionar seus estudos da forma que lhe for mais cômoda.

Princípio 7 – Tamanho e espaços para aproximação e uso. Tamanho e espa-


ço adequados dos ambientes de estudo devem ser fornecidos para aborda-
gem, alcance, manipulação e uso das tecnologias assistivas, independente-
mente do tamanho do corpo, da postura ou da mobilidade do usuário. São
diretrizes para este princípio:
• Forneça uma linha de visão clara para elementos importantes para
qualquer usuário sentado ou em pé.
• Faça com que todos os componentes fiquem confortáveis para
​​ qual-
quer usuário sentado ou em pé.
• Acomode variações no tamanho da mão e do punho.
• Proporcione espaço adequado para o uso de dispositivos auxiliares
ou assistência pessoal (MACE, 1997, n. p., tradução nossa).
Este último princípio auxiliou na composição da sala de atendimento no
Polo, ao indicar como os elementos devem estar dispostos para qualquer
usuário.
Na apresentação desses princípios, em conjunto com o relato de ex-
periência sobre a acessibilidade direcionada a estudante cego, é possível
identificar a busca por equidade, isto é, ajusta-se para todos o direito ao
acesso e à permanência na universidade pública. Só esse fato já abala qual-
quer mito que pretenda ir de encontro às leis vigentes. Vejamos, então, cinco
Mitos sobre acessibilidade | 69

mitos e como eles são (facilmente) refutados pelo entendimento das leis,
pelo conhecimento especializado e pela experiência em BSI.

Os mitos sobre Acessibilidade

1. O estudante com deficiência não é capaz de acompanhar as


atividades acadêmicas como qualquer outro estudante
Não é da competência de ninguém prejulgar se uma pessoa ou grupo
de pessoas tem ou não condições de realizar isso ou aquilo. Em uma socie-
dade democrática não cabe esse tipo de generalidade. A única generalida-
de permitida nesse tipo de abordagem é aquela instituída em nossa Carta
Magna, Art. 5º – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade” –, e, em termos específicos à Educação, o que rege o Art.
206 – “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igual-
dade de condições para o acesso e permanência na escola”. Em resumo: é a
igualdade que deve ser generalizada, não o preconceito.
E nada mais exemplificativo do que a experiência com o estudante cego
em BSI. O cenário era o seguinte: um estudante cego em BSI oferecido na
modalidade a distância, que tinha um quadro multidisciplinar de professores
de diversos departamentos da UFSCar (Engenharia da Computação, Ciên-
cias da Computação, Matemática, Ciências da Informação etc.), cuja experi-
ência docente com estudantes cegos era quase zero.
A não ser por um professor da Matemática que havia ministrado a disci-
plina de Cálculo para um estudante cego, os demais não tinham nenhuma
experiência, a ponto de um deles questionar se era possível um estudante
cego se formar num curso como Sistemas de Informação oferecido na mo-
dalidade a distância.
O estudante cego não só se formou, como também se destacou em to-
das as fases de sua graduação e hoje ocupa um cargo de programador numa
grande multinacional de tecnologia.

2. A acessibilidade é direcionada a um pequeno grupo de estudantes


Em termos relativos, poucas pessoas com deficiência ingressam em uni-
versidades públicas e/ou privadas, devido não só ao mito de que o estudan-
te com deficiência não é capaz de acompanhar as atividades acadêmicas
70 | (Des)mitos da Educação Especial

como qualquer outro estudante, mas também à desigualdade social que


aparta boa parte das pessoas com deficiência do ensino de qualidade. Ao
fornecer as oportunidades devidas para todos, teremos um maior número
de pessoas com deficiência nas universidades, e a acessibilidade poderá,
assim, ser empregada de forma mais alargada e gradual.
De toda forma, não importa quantos são; basta uma pessoa precisar ser
assistida, seja em qual competência for, a universidade deverá proporcionar
as condições necessárias para o pleno acesso, como rege a Lei 13.146/2015,
Cap. IV, Art. 28, inciso XVI: “acessibilidade para todos os estudantes, traba-
lhadores da educação e demais integrantes da comunidade escolar às edifi-
cações, aos ambientes e às atividades concernentes a todas as modalidades,
etapas e níveis de ensino”.
No caso do estudante de BSI, num primeiro momento todas as atenções
foram voltadas para garantir acessibilidade na navegação pelo Ambiente
Virtual de Aprendizagem, no acesso aos Recursos Educacionais Abertos
e na Comunicação com os professores, tutores e demais profissionais que
integram a EaD.
Todavia, durante o processo desta promoção de acessibilidade, fomos
alargando nossa atuação para: a) formação de um grupo de pesquisa, que
gerou livros, artigos, teses e dissertações; b) instalação de um espaço de
acessibilidade na UFSCar para estudantes com deficiência, o qual estudantes
do Instituto Federal e da cidade de São Carlos também frequentavam para
utilizar impressora braille, leitores de tela, ter aulas gratuitas de matemática
e inglês, além de outras atividades; c) cursos de aperfeiçoamento.
Por essas razões, o direcionar não é apenas ao estudante com defici-
ência, mas a todos os envolvidos, que ganham porque estudam, porque
pesquisam, porque se dedicam a uma causa que vale a pena, no sentido
kleiniano.

3. Primeiro a adaptação completa do ambiente educacional, depois a


inclusão da pessoa com deficiência
Trata-se de um mito no sentido de que não há como garantir a completa
adaptação do ambiente educacional sem antes conhecer a pessoa com defi-
ciência. Isso porque adaptar leva em conta idiossincrasias, ou seja, é preciso
conhecer a pessoa com deficiência e saber dela suas reais necessidades.
Vamos dar um exemplo: a coordenação de um determinado curso
de graduação é informada de que no quadro de estudantes há um com
Mitos sobre acessibilidade | 71

deficiência visual. No mesmo instante, sem uma conversa prévia com o es-
tudante, a coordenação entra em contato com o grupo de professores e os
órgãos competentes da instituição para providenciar que todo material do
curso, escrito à tinta, seja convertido para o sistema de escrita Braille.
Porém, constata-se, no início das aulas, que o estudante não domina o
sistema Braille e acessa os conteúdos via leitores de tela e sintetizadores de
voz. Portanto, foi despendido todo um trabalho de adaptação que não será
utilizado, ao mesmo tempo que o estudante está sem acesso ao conteúdo
integral, uma vez que leitores de tela leem em formatos específicos de arqui-
vo (não leem, por exemplo, se o PDF estiver no formato imagem).
Esse é o caso do nosso estudante cego de BSI. Ele ficou cego aos 14
anos e por isso não foi alfabetizado pelo sistema Braille. Nesse sentido, des-
pendemos todos os esforços nas tecnologias digitais e em outras Tecnolo-
gias Assistivas indicadas, inclusive pelo próprio estudante, como escrever as
letras gregas em alto relevo, utilizando cola quente.
Nesse sentido, o mais importante é, primeiro, garantir o direito de a pes-
soa com deficiência ingressar numa universidade. E, segundo, deter conhe-
cimento especializado e recursos administrativos e financeiros necessários
para desenvolver Tecnologia Assistiva ou aplicar a já existente, que seja ideal
para o pleno desenvolvimento das atividades acadêmicas.

4. Para garantir a acessibilidade a estudantes com deficiência, a


universidade irá despender muitos recursos financeiros
Educação não deve ser vista como “dinheiro gasto”, mas como um dos
melhores investimentos que a União, Estados e Municípios podem fazer para
melhorar as condições não só daqueles que se formam em boas universida-
des, mas de toda a sociedade, que terá melhores profissionais atendendo,
criando e pesquisando nos mais diversos setores. Nesse sentido, Acessibili-
dade é um investimento.
Ao receber o estudante cego, a UFSCar teve um grande desafio, uma vez
que não havia know-how a respeito da acessibilidade para cegos na Educa-
ção a Distância. Tudo então foi sendo construído para garantir a inclusão e
permanência do estudante, desde a adaptação dos recursos educacionais, o
desenvolvimento de Tecnologias Assistivas, até a formação dos profissionais
– professores, técnicos, tutores etc.
Todo o esforço para garantir a acessibilidade possibilitou ao estudante
cego trilhar os anos de graduação e, depois de formado, conquistar uma
72 | (Des)mitos da Educação Especial

vaga como programador numa multinacional, conforme dito anteriormente.


Além desse objetivo central – “igualdade de condições para acesso e per-
manência” (BRASIL, 1988, p. 123, Art. 206, inciso I) –, o investimento deixou
um legado de como garantir a acessibilidade na EaD para estudantes cegos,
conhecimento este que vem sendo compartilhado com demais universida-
des e institutos federais, que podem ter em seus quadros um estudante com
deficiência visual.

5. Promover acessibilidade ao estudante com deficiência pode


“atrapalhar” o rendimento do restante da turma
Pela experiência que tivemos, é exatamente o oposto. Com o apoio
adequado, a pessoa com deficiência irá trilhar seus anos de graduação sem
trazer prejuízo a ninguém. E o que significa apoio adequado? Para o Ensino
Superior ainda não há uma regulação tal qual há para a Educação Básica,
estabelecida pelo Decreto nº 6.571, de 17 de setembro de 2008, que “institui
as Diretrizes Operacionais da Educação Especial para o Atendimento Educa-
cional Especializado na educação básica”, cujas metas são:

identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibili-


dade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos,
considerando suas necessidades específicas. Esse atendimento comple-
menta e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e
independência na escola e fora dela. Consideram-se serviços e recursos
da educação especial aqueles que asseguram condições de acesso ao
currículo por meio da promoção da acessibilidade aos materiais didá-
ticos, aos espaços e equipamentos, aos sistemas de comunicação e
informação e ao conjunto das atividades escolares (BRASIL, 2008, p. 1).

De toda forma, as universidades buscam se organizar por meio de secre-


tarias, tal como a Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equi-
dade – Saade/UFSCar, que dá apoio aos departamentos no atendimento a
seus estudantes com deficiência.
E ainda sobre o pré-conceito de que o estudante com deficiência pode
atrapalhar ou mesmo atrasar a turma, vamos para o último exemplo. Uma
das Tecnologias Assistivas mais importantes para nosso estudante cego foi a
audiodescrição. Não à toa, produzimos aproximadamente 4 mil audiodescri-
ções, divididas em dois grupos em proporções iguais: audiodescrições para
vídeos e audiodescrições de imagens estáticas.
Mitos sobre acessibilidade | 73

Essas audiodescrições eram inseridas tanto nos vídeos como nos PDF
acessíveis, seguindo os princípios do Desenho Universal, ou seja, não havia
nenhum tipo de interferência na mídia, e o conteúdo acessível era acessado
pelo estudante cego com apenas um clique. O curioso foi descobrir que
os demais estudantes estavam “clicando” também nesse conhecimento,
valendo-se das audiodescrições para aprimorar seus estudos, uma vez que a
audiodescrição apresenta detalhes que muitas vezes passam despercebidos
numa explicação tradicional.

Palavras finais
Mitos como os aqui discutidos vão na contramão de uma sociedade
que busca igualdade de condições a todos, que busca ser plural, inclusiva
e, acima de tudo, que tenha no outro um reflexo do que queremos para nós
mesmos. Toda vez que reforçamos um mito, uma mentira, uma invenção,
estamos deixando para trás a oportunidade de sermos progressistas, de ca-
minharmos na estrada da ciência, do novo, do que nos faz melhor enquanto
indivíduos. E como não nos lembrar destas palavras nietzschianas:

O valor de praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa
não está propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma
gota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um
aumento de energia, de capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-
-se a alcançar um fim de modo pertinente (NIETZSCHE, 2000, p. 175,
grifos nossos).

É com rigor científico, pesquisa acadêmica e investigação reflexiva que


buscamos contribuir para reverter injustiças sociais, igualar as oportunidades,
romper com atitudes que sustentam os mitos, as mentiras, as invenções, as
fake news. Não há razão para não questionar, não há razão para não querer
o novo, afinal: “Quando consideramos as funções das universidades na vida
da humanidade, vemos que a pesquisa é, no mínimo, tão importante quanto
a educação. O conhecimento novo é a principal causa do progresso, e, sem
ele, o mundo logo se tornaria estacionário” (RUSSELL, 2014, p. 258).
E não podemos estacionar, temos de contar a verdade sobre todos esses
mitos criados sobre o alicerce do senso comum. Temos de dar um basta às
avalanches de mentiras que tentam sufocar a democracia. Temos de cantar,
como cantou o grande poeta Walt Whitman, que, numa invertida de sentido,
74 | (Des)mitos da Educação Especial

nos deixou Great Are the Myths: “Great are the myths… I too delight in them
[…] Great the risen and fallen nations, and their poets, women, sages, inven-
tors, rulers, warriors and priests. Great is liberty! Great is equality! I am their
follower”27 (WHITMAN, 2006, p. 205).

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Decreto nº 6.571, de 17 de setembro de 2008. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília,
DF, 18 set. 2008. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2008/decreto-6571-
-17-setembro-2008-580775-norma-pe.html. Acesso em: 22 jul. 2021.
BRASIL. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez.
2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm. Acesso em: 21 nov. 2020.
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso
em: 28 mar. 2022.
CÍCERO, M. T. Da república. São Paulo: Edipro, 2021. E-book.
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Facultativo à Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008:
Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009: Declaração Universal dos Direitos Humanos. Vitória:
Ministério Público do Trabalho, 2014. 124 p.
DUARTE, I. Por que eu gosto de Melanie Klein. Cult, n. 279, mar. 2022. Dossiê Melanie Klein.
MACE, R. The principles of Universal Design. 1997. Disponível em: https://projects.ncsu.edu/ncsu/
design/cud/about_ud/udprinciplestext.htm. Acesso em: 9 abr. 2022.
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2000.
UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração de
Salamanca: sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais.
Salamanca: Unesco, 1994. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.
pdf. Acesso em: 12 fev. 2018.
RUSSELL, B. Sobre a educação. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
SANTIAGO, G.; BENGTSON, C.; PINO, D.; PENDENZA, C.; SANTOS, J. CELTA: sistema de célula
tátil para leitura Braille. São Carlos: Edesp-UFSCar, 2022.
WHITMAN, W. Leaves of grass [Folhas de relva]. Edição bilíngue. Tradução de Rodrigo Garcia
Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2006.

27 Grandes são os mitos… também me delicio com eles. […] Grandes são as nações
emergentes ou decadentes, seus poetas, mulheres, sábios, inventores, governantes,
guerreiros e sacerdotes. Grande a liberdade! Grande a igualdade! Sou seu seguidor.
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes.
5

(DES)MITOS SOBRE O ENSINO E A


APRENDIZAGEM DE FÍSICA POR
PESSOAS CEGAS OU COM BAIXA
VISÃO
Marcela Ribeiro da Silva
Eder Pires de Camargo

Introdução

O ensino e a aprendizagem de Física por pessoas com deficiência visual


– cegas ou com baixa visão – têm sido temáticas de investigações na área de
Ensino de Física no Brasil, as quais têm enfoque, por exemplo: na formação
inicial de professores (AGUIAR, 2013); no desenvolvimento, implementação
e/ou avaliação de recursos didáticos e/ou metodologias acessíveis àquele
público (TATO, 2016); nos contextos comunicacionais que implicam viabi-
lidades e dificuldades a sua participação nas aulas de Física (CAMARGO;
NARDI; VERASZTO, 2008).
Os resultados desses estudos têm contribuído para a construção de um
discurso científico contra-hegemônico que afirma ser possível as pessoas
com deficiência visual aprenderem e ensinarem Física sob uma perspectiva
inclusiva (TATO, 2016; SILVA, 2020).
De encontro a tal discurso, estão, por exemplo, aqueles do centrismo
visual, capitalismo, individualismo e saber médico, que se encontram na con-
dição de dominantes, sobretudo a partir da Idade Moderna, e forjam mitos
sobre a deficiência visual e as pessoas cegas ou com baixa visão, naturalizan-
do e legitimando, perversamente e/ou por desconhecimento, a sua exclusão
dos mais variados contextos.
76 | (Des)mitos da Educação Especial

O desconhecimento a respeito de questões inerentes à deficiência visual


implica dificuldades para a inclusão social de pessoas cegas ou com baixa
visão (MONTEIRO, 2011). Quando se almejam o ensino e a aprendizagem de
Física por essas pessoas sob uma perspectiva inclusiva (CAMARGO, 2017),
torna-se importante desconstruir mitos sobre tal deficiência.
Neste capítulo, objetivam-se, portanto, apresentar, discutir e refutar al-
guns dos mitos sobre as pessoas cegas ou com baixa visão e as (im)possibili-
dades de sua participação em contextos de ensino e aprendizagem de Física.
Evidenciam-se aqueles mitos que (re)afirmam que: a deficiência visual é uma
limitação de ordem exclusivamente biológica e intrínseca da pessoa cega
ou com baixa visão; pessoas cegas ou com baixa visão não podem aprender
e/ou ensinar Física e são sempre passivas frente ao ambiente educacional.

Itinerários teórico e metodológico


Tem-se como esteio argumentativo o diálogo entre os resultados de uma
pesquisa de doutorado, realizada pela primeira autora deste capítulo (SILVA,
2020),28 os estudos da área de Ensino de Física/Ciências que abordam a Edu-
cação Especial e/ou inclusiva e as teorias de Vigotski29 e do modelo social da
deficiência (Piccolo, 2012). Tais teorias foram eleitas como referenciais deste
capítulo, porque representam pontos de inflexão substanciais na explicação
e interpretação da deficiência visual, respectivamente, em relação ao desen-
volvimento dos processos psicológicos tipicamente humanos e ao âmbito
sociológico.
A supracitada pesquisa de doutorado (SILVA, 2020) constituiu-se em um
estudo qualitativo retrospectivo do processo de inclusão de um estudante
cego na licenciatura em Física de uma universidade federal (daqui por diante
denominada Universidade), o qual cursou essa graduação entre os anos de
2009 e 2013. A pesquisa teve como finalidade identificar e compreender os
elementos que constituíram tal processo, em especial: os caminhos trilhados

28 O projeto referente a essa pesquisa foi submetido ao e aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP), sendo 74595617.5.0000.5398 o número de seu Certificado de Apre-
sentação para Apreciação Ética e 2.289.366 o número do parecer consubstanciado do
CEP.
29 O nome deste autor é grafado de várias maneiras em razão das distintas traduções de
sua obra. Neste capítulo, grafa-se seu nome como “Vigotski”. Ao se referir a citações
diretas ou indiretas de outros autores e nas referências bibliográficas, o referido nome
é grafado tal como consta na obra consultada.
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 77

pelo estudante cego e o ambiente educacional, delimitado aos seus cole-


gas, monitor, docentes e coordenadores do curso e do núcleo de acessibili-
dade, no que concerne às suas crenças, atitudes, aos recursos didáticos, às
metodologias e estratégias de ensino; as relações entre o ensino comum e
os apoios específicos ofertados àquele estudante; e as implicações para o
seu processo de inclusão no curso.
Foram realizadas entrevistas individuais com: um estudante com cegueira
adquirida egresso da licenciatura em Física; dois de seus colegas, sendo um
deles seu monitor durante o curso; cinco de seus docentes, sendo um deles
o coordenador do curso e outra a coordenadora do núcleo de acessibilida-
de da Universidade na época em que o estudante cego cursou a graduação.
Para manter o anonimato dos participantes, cada um é identificado por uma
letra seguida ou não de um número, conforme apresentado no Quadro 1, no
qual há também uma breve descrição do participante, considerando a sua
formação e o tipo de relação estabelecida com o estudante cego quando
ele cursara a graduação.

Quadro 1 Descrição dos participantes, considerando a sua formação e o tipo de re-


lação estabelecida com o estudante cego na época em que ele cursara a graduação.
L: estudante com cegueira adquirida em decorrência de retinose pigmentar. L
começou a perder a visão quando tinha 16 anos, época em que cursava o Ensino
Médio e o técnico de Eletricista de Manutenção. Ingressou na licenciatura em
Física aos 20 anos de idade, quando já estava cego, e seu resíduo visual não o
possibilitava a fazer a leitura de materiais escritos em tinta. É licenciado, mestre e
doutorando em Física.
DCN: bacharel, mestra e doutora em Física. Realizou pós-doutorado em Educação.
É professora na Universidade desde 2009. Foi coordenadora do núcleo de aces-
sibilidade na época em que L cursou a graduação. Foi orientadora de iniciação
científica e de TCC e professora de L nas disciplinas Produção de Material Didático
B e Laboratório de Física I.
DCF: licenciado em Física, mestre em Energia Nuclear na Agricultura e doutor em
Agronomia. Fez pós-doutorado em Métodos Instrumentais de Análise Utilizando
Laser. Atuou como professor durante 42 anos, sendo 5 anos na Educação Básica e
37 na Educação Superior. Aposentou-se em 2015. Foi professor de L na disciplina
Eletricidade Básica – Corrente Alternada e coordenador do curso de licenciatura
em Física na época em que L cursou a graduação.
D1: bacharel, mestra e doutora em Física. É professora do curso de licenciatura em
Física da Universidade há 20 anos. Foi professora de L nas disciplinas Cálculo II,
Física II, Mecânica Quântica e Física Computacional. Atuava como vice-coordena-
dora do curso de licenciatura em Física na época em que L cursou a graduação.
78 | (Des)mitos da Educação Especial

Quadro 1 Continuação...
D2: bacharel, licenciado, mestre e doutor em Física. É professor no curso de licen-
ciatura em Física da Universidade desde 2011. Foi professor de L nas disciplinas
Produção de Material Didático A, Temáticas Atuais de Ensino de Física e Aspectos
Didático-Pedagógicos da Física no Ensino Médio I.
D3: graduado em História, mestre e doutor em Educação. É professor na Uni-
versidade desde 1995. Foi professor de L na graduação na disciplina História da
Educação.
C: licenciado em Física. Atuou como professor substituto entre 2015 e 2017 no cur-
so de licenciatura em Física da Universidade. Na época da realização da entrevista,
estava atuando como professor de Educação Básica efetivo na rede estadual de
ensino e na rede privada e cursando o Mestrado Nacional Profissional em Ensino
de Física. Foi colega de L na graduação. Cursou, junto de L, as disciplinas Mecâni-
ca Teórica, Laboratório de Física, Física Matemática e Física Computacional.
M: licenciado em Física, mestre em Ensino de Física e doutorando em Educação.
Atuava, na época da entrevista, como professor na Universidade. Foi colega de
curso e monitor de L. Cursou, juntamente de L, as disciplinas: Laboratório de Física
I, Laboratório de Física II, Laboratório de Física III, Laboratório de Física IV, Física I,
Física II, Física III, Física IV, Cálculo I, Cálculo II, Cálculo III e Teoria Eletromagnética.
Foi monitor L na disciplina Equações Diferenciais Parciais.

Fonte: elaboração própria.

O processo de constituição dos dados da pesquisa teve início em outubro de


2016 e foi finalizado em outubro de 2018. Contudo, houve um contato pon-
tual com o estudante cego no primeiro semestre de 2020.
Com exceção da entrevista com o docente/coordenador do curso de
licenciatura em Física (DCF), todas as entrevistas foram semiestruturadas.
A entrevista com DCF foi do tipo não estruturada e teve como ponto de
partida, por iniciativa do entrevistado, o uso de recursos visuais oriundos de
seus arquivos pessoais30 e constituídos por: fotografias do estudante cego
em algumas das aulas e atividades acadêmicas extraclasses; vídeo de uma
reportagem sobre o seu processo educacional na Universidade, exibida no
ano de 2011 por uma emissora de televisão da região em que se localiza tal
instituição; documentos referentes aos processos seletivos e atividades dos
monitores bolsistas do estudante cego.
A análise das entrevistas foi orientada pela Análise Textual Discursiva, de
modo que o processo analítico, auto-organizado, se deu em uma sequên-
cia recursiva de três etapas: desconstrução e a unitarização do corpus dos
dados; categorização via estabelecimento de relações entre os elementos

30 DCF mostrou e disponibilizou, espontaneamente, tais arquivos à primeira autora deste


trabalho.
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 79

unitários, doravante denominados unidades de análise; expressão das com-


preensões sobre o fenômeno em estudo, a qual se deu por meio de um
metatexto (MORAES; GALIAZZI, 2016).
Da análise, emergiram três categorias amplas, a saber: a (não) superação
da deficiência visual como um processo constituído de incertezas, acertos,
equívocos e transformação bilateral do estudante cego e do ambiente edu-
cacional; elementos caracterizados pela/que resultaram na passividade do
ambiente educacional – caminhos em direção à manutenção da deficiência
visual do estudante cego; alguns dos caminhos trilhados e/ou construídos na
busca pela superação da deficiência visual do estudante cego no curso de
licenciatura em Física.
Ainda que o objetivo da pesquisa (SILVA, 2020) não tenha se focado nos
(des)mitos a respeito das pessoas cegas ou com baixa visão e nas (im)possi-
bilidades de sua participação em contextos educacionais de Física, foi pos-
sível identificar, dentre as unidades de análise, aquelas que expressam e as
que rompem com tais mitos. São algumas dessas unidades que constituíram
parte da argumentação apresentada neste capítulo.

(Des)mitos sobre a deficiência visual, as pessoas cegas ou com


baixa visão e a sua (não) participação em contextos de ensino e
aprendizagem de Física
Apresentam-se, nesta seção, alguns dos discursos e práticas que expres-
sam a (des)construção de dois mitos sobre a deficiência visual e as pessoas
cegas ou com baixa visão e as (im)possibilidades de sua participação em
contextos de ensino e aprendizagem de Física. A argumentação está orga-
nizada em duas partes: mito de que a deficiência visual é uma limitação de
ordem exclusivamente biológica e intrínseca da pessoa cega ou com baixa
visão; mito de que pessoas cegas ou com baixa visão não podem aprender
e/ou ensinar Física e são sempre passivas frente ao ambiente educacional.
80 | (Des)mitos da Educação Especial

Mito de que a deficiência visual é uma limitação de ordem exclusivamente


biológica e intrínseca da pessoa cega ou com baixa visão
Romper com o mito de que a deficiência visual é uma limitação intrínseca
das pessoas cegas ou com baixa visão requer compreender que há uma
distinção entre cegueira/baixa visão, que são características biológicas e
constituintes da diversidade humana, e deficiência visual, que é uma condi-
ção social.
De acordo com Martins (2006, p. 37, grifos do autor),

o reconhecimento, nomeação e interpretação das alterações e diferen-


ças nos corpos, é sempre um processo eminentemente social; mesmo
num limite – o nosso – em que essa elaboração social conduz a uma
incrustação do sentido no corpo capaz de o subtrair às relações sociais
que o geram.

A interpretação da deficiência visual e das (im)possibilidades de desen-


volvimento de pessoas cegas ou com baixa visão assume distintos contornos
conforme o espaço-tempo a que se referem. Vygotski (1997), por exemplo,
aponta a existência de três principais concepções sobre a cegueira e o de-
senvolvimento das pessoas cegas ao longo da história: a mística, a biológica
ingênua e a sociopsicológica ou científica.
A primeira daquelas concepções predominou durante a Antiguidade,
Idade Média e parte da História Moderna e tem como principal caracterís-
tica a atribuição de poderes supersensitivos da alma às pessoas cegas, os
quais, em sua conexão com a cegueira, pareciam ser enigmáticos, incompre-
ensíveis e milagrosos (VYGOTSKI, 1997).
Na Idade Moderna, emergiram discursos sobre a pessoa cega e a ceguei-
ra que vão de encontro ao místico, que negam as crenças sobre-humanas e
colocam em evidência a ciência e o acesso dessas pessoas à cultura e ao
conhecimento. Desenvolveu-se nessa época a ideia da compensação bioló-
gica da ausência da visão, ou seja, a crença de que o fato de uma pessoa não
enxergar teria como consequência direta o desenvolvimento aguçado do
tato, olfato, paladar e audição (VYGOTSKI, 1997). Associou-se a essa crença
a ideia sobre “a sabedoria da bondosa natureza que com uma mão tira e
com a outra devolve o que foi tirado e cuida de suas criaturas; [...] descobri-
ram nos cegos um novo sentido, especial, o sexto sentido, inalcançável para
os videntes” (VYGOTSKI, 1997, p. 101, tradução nossa).
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 81

As crenças mística e biológica ingênua constituem mitos e marcam, ho-


diernamente, os discursos sobre a deficiência visual. A título de exemplo,
citam-se as unidades de análise31 DCF.1, em que o docente DCF faz menção
a situações vivenciadas por L nas aulas da disciplina Eletricidade Básica –
Corrente Alternada e expressa a ideia de que a compreensão do estudante
cego a respeito dos conceitos e fenômenos físicos abordados em aula teria
como um dos motores a compensação biológica da ausência da visão, e
D3.1, em que o docente D3 se refere à compensação de ordem mística.

É. Depois, quando começava a aula, eu sempre assim “agora nós vamos


ver aquele negócio”. Ele sabia tudo. Eu acho que o senso, né, na falta de
um senso o outro se vira (risos). Impressionante! (DCF.1).

eu tenho uma vivência religiosa, então eu falo que Deus é muito gozado,
né, porque ele tira de cá, mas ele compensa de lá, né. Então isso eu
sempre achei fantástico no L, a independência dele, a alegria dele, isso
sempre me chamou a atenção (D3.1).

Tais concepções constituem barreiras à inclusão de pessoas com defici-


ência visual em quaisquer espaços simbólicos e físicos, pois situam tal defici-
ência como um aspecto descolado do âmbito social, isto é, intrínseco a tais
pessoas. Está implícito nas unidades de análise anteriores que os discursos
dos docentes do estudante cego se alocam fora da busca pela promoção da
inclusão de tal pessoa.
Sem deixar de reconhecer que a compensação biológica representou
um avanço na compreensão sobre as possibilidades de desenvolvimento
das pessoas com deficiência visual, pois, pela primeira vez, se constituí-
ram noções de tal tema baseadas em critérios científicos e na experiência,
Vygotski (1997) diz que o que ocorre, com efeito, é uma compensação so-
ciopsicológica complexa e indireta que não está relacionada à substituição
direta da ausência da visão. Instaura-se com essa noção a terceira fase sobre
as concepções acerca da deficiência visual, a qual Vigotski se refere e que
expressa a ideia de que tal deficiência diz respeito mais a uma condição
social que a uma limitação intrínseca das pessoas cegas ou com baixa visão.
O desenvolvimento de pessoas com e sem deficiência visual dá-se sob
as mesmas leis, as quais têm sua expressão concreta peculiar para cada caso

31 A cada unidade de análise foi atribuído um código composto da identificação do parti-


cipante (L, DCF, DCN, D1, D2, D3, M ou C) seguida de um número que a situa em relação
às demais unidades extraídas do discurso do participante e que são citadas neste texto.
82 | (Des)mitos da Educação Especial

(VYGOTSKI, 1997). Isso porque o desenvolvimento humano segue duas li-


nhas, que se entrecruzam, mas não se reduzem uma à outra: a cultural e a
orgânica (MARTINS; RABATINI, 2011). O enraizamento de uma criança viden-
te na cultura dá-se, comumente, por

uma ligação única com os processos de maturação orgânica. Ambos


os planos do desenvolvimento [...] coincidem e se fundem um com o
outro. Ambas as séries de modificações convergem, se interpenetram
mutuamente e constituem, em essência, a série única da formação so-
ciobiológica da personalidade (VYGOTSKI, 1997, p. 26, tradução nossa).

Na criança cega ou com baixa visão, ocorre o seu exílio da coletividade


(VYGOTSKI, 1997), pois nela o desenvolvimento cultural e o orgânico diver-
gem, ocasionando o desenvolvimento incompleto das funções psicológicas
superiores. A cegueira e a baixa visão implicam particularidades que dificul-
tam o desenvolvimento da comunicação coletiva, da colaboração e da inte-
ração das pessoas com tais características biológicas com o meio social, pois
“Todos os nossos instrumentos, toda a técnica, todos os signos e símbolos
são calculados para um tipo normal de pessoa” (VIGOTSKI, 2011, p. 867).
Sendo a deficiência visual uma condição social, o que pode ocorrer
em relação ao desenvolvimento das pessoas cegas ou com baixa visão é a
compensação social (VYGOTSKI, 1997), que é um enfrentamento social da
deficiência, o qual pode se constituir de diversos modos e sob a influência
de vários fatores, como os valores vigentes na sociedade em que elas se
inserem, o seu acesso à educação, ao esporte, ao lazer, ao trabalho etc. e as
interações sociais estabelecidas com seus pares. O processo compensatório
pode se dar em diversos níveis, entre ser exitoso, resultando na superação
da condição de deficiência, ou não. Um processo exitoso é o que culmina na
remoção de barreiras físicas, instrumentais, comunicacionais, programáticas,
metodológicas e atitudinais de todos os envolvidos.
Edifica também a compreensão da deficiência visual como uma condição
social a teoria proposta pelo modelo social da deficiência, cujo precursor
foi o grupo londrino “Disability Studies”, que germinou nos movimentos de
pessoas com deficiência iniciados na década de 1970 (Piccolo, 2012) e que
tem como premissa a distinção entre o que é uma lesão, como a cegueira, a
baixa visão e a ausência parcial ou total de um membro, e a deficiência, que
é compreendida
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 83

como desvantagem ou restrição de atividade causada por uma organi-


zação social contemporânea que não ou pouco leva em consideração as
pessoas que possuem uma lesão e, portanto, as exclui da participação
das atividades sociais (UNION OF THE PHYSICALLY IMPAIRED AGAINST
SEGREGATION, 1976, p. 20, tradução nossa).

A deficiência é explicada e construída por uma opressão em uma socie-


dade que não incorpora/considera, em suas variadas esferas, as diferenças
daqueles corpos com lesão (PICCOLO, 2012). Há uma desativação de espa-
ços sociais no que tange à inclusão de pessoas com deficiência visual e que
é forjada, entre outros aspectos, por discursos e práticas dominantes, como
aqueles relacionados ao individualismo, saber médico e capitalismo.
O saber médico, dominante desde o século XVIII, demarca o limite entre
os corpos saudáveis e os patológicos, os normais e os anormais. Elege um
padrão de normalidade corporal – um tipo de homem ideal, havendo re-
pressão aos corpos que dele se desviam (PICCOLO, 2012). Tal normalidade
deve ser compreendida

por referência a uma pluralidade de desqualificações dos corpos e dos


seus usos, elaborações culturais onde os discursos da biomedicina assu-
mem papel central. [...] a constituição dos imperativos de normalidade
terá que ser entendida por relação a um conjunto de topografias de
desvio, de que a deficiência é parte (MARTINS, 2006, p. 85).

Na sociedade capitalista não há um questionamento da norma pelo


saber dominante. A existência de corpos dela desviantes justifica per se a
desigualdade social que experimentam (PICCOLO, 2012).

Estabelece-se uma ordem natural, aquela que coincide com os grupos


dominantes, e se procura demarcar numericamente tudo o que se dis-
tingue desta ordem. O surdo é alguém normal subtraído da faculdade
de audição. Oposições o definem. O homossexual é, acima de tudo, um
não heterossexual. A mulher um não homem. O negro um não branco.
O cego um não vidente. O cadeirante um não caminhante. É a ausência
que passa a definir aqueles que destoam da suposta norma (PICCOLO,
2012, p. 38-39).

Predomina, a partir da Idade Moderna, o modelo individual da deficiên-


cia, que, fundamentado nos saberes da medicina, foca no déficit e na defi-
ciência como falha biológica, intrínseca à pessoa, e que delimita quem é ou
não capaz (PICCOLO, 2012).
84 | (Des)mitos da Educação Especial

Como consequência do desenvolvimento do capitalismo, há a tendên-


cia de rotulação dos corpos em utilizáveis ou não, favoráveis ou não aos
investimentos rentáveis e proveitosos ou não para o sistema de produção
(PICCOLO, 2012). Soma-se a isso a edificação de uma concepção individu-
alista do sujeito, que o descola do coletivo. Na Idade Moderna, as pessoas
passam a viver em famílias nucleares, centradas nas figuras do pai, mãe e
filhos, enquanto na Idade Média viviam rodeadas por grandes famílias, que
eram compostas de agrupamentos de várias gerações. As relações frater-
nas dão lugar à força individual de cada pessoa na definição de seu destino
(PICCOLO, 2012).
Embora pessoas cegas ou com baixa visão não possuam uma limitação
biológica em relação às possibilidades de desenvolvimento psíquico, sendo
a deficiência visual uma limitação extrínseca a elas e que pode ser rompida
desde que lhes sejam ofertadas condições adequadas de acesso e partici-
pação nas mais variadas situações, há a naturalização da exclusão de tais
pessoas, que é reforçada ou, até mesmo, forjada por discursos que focam no
déficit e silenciam as necessidades de adequação do ambiente.
Retomando o diálogo com os resultados do estudo sobre o processo
de inclusão do estudante cego na licenciatura em Física, a despeito de ter
havido elementos que expressavam a corresponsabilidade do ambiente
educacional e desse estudante na busca pela superação da deficiência vi-
sual, houve aqueles que caracterizam a passividade daquele ambiente. Tal
passividade é exemplificada nas unidades de análise a seguir, as quais se
referem aos relatos: do colega C do estudante cego sobre situações de ex-
clusão vivenciadas em algumas das disciplinas que cursaram juntos (C.1); da
docente D1 sobre o diálogo que estabelecera com o estudante cego sobre
a sua escolha profissional (D1.1).

Teve alguns professores que... que continuavam o jeito que estava e


argumentavam que continuavam pelo fato seguinte: que ele tem que se
adaptar a esse meio, porque, querendo ou não, o meio acadêmico ao
qual ele quer viver da Física não vai se adaptar a ele sempre [...] a Física
dura, infelizmente, vai ter momentos que não vai ter essa adaptação as-
sim imediata, então ele tem que, ele teve que sempre ter a iniciativa (C.1).

era a discussão que eu tinha com ele, né, você está estudando Física,
você vai ser um professor de Física... mas como é que você vai para a sala
de aula?... Porque você fez um curso de licenciatura... E, para você fazer
qualquer coisa, você tem um monte de dependências. Como que você
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 85

vai ser esse profissional lá? Você acha que você é... isso é uma coisa pos-
sível de ser feita? Porque para mim isso não é incluir, isso é ser, assim, não
adianta o cara “ah, eu vou estudar isso, vou fazer”, tá, mas, e depois, que
profissional você vai ser?... E aí a gente discutia muito sobre isso, que é
a perspectiva futura. De estudar, você pode estudar o que você quiser,
mas profissionalmente como é que você vai se virar?... E aí, assim, meio
que procurando fazer com que ele procurasse um caminho possível, né,
um caminho que ele seja autônomo, que ele vá fazer as coisas dele [...] a
inclusão para mim não é só aquela coisa de que você coloca o sujeito
naquele espaço e aí você cria um monte de situações artificiais, aí o cara
vai dar conta, mas e aí? E depois, quando você sai dali e vai para o mundo
real, o que vai acontecer? [...] eu sei que a inclusão tem, que você tem
que criar essa situação, mas eu sei também que você tem que forçar para
o cara buscar a autonomia dele, porque senão você não está incluindo
(D1.1).

Ambas as unidades de análise reforçam a existência de uma norma


fundamentada na cultura vidente e que rege o trabalho docente e cientí-
fico. Um professor de Física ou um cientista cego ou com baixa visão seria,
nessa perspectiva, improdutivo e sem autonomia por ser díspar do padrão
de autonomia e produtividade dos videntes. Esses discursos têm como
pressuposto a noção da deficiência como falha biológica, negligenciando a
responsabilidade social na promoção da inclusão dessas pessoas dentro e
fora dos contextos educacionais.
Além de romper com a noção biológica e incapacitante da deficiência
visual, situando-a no plano social, é necessário compreender que a autono-
mia não está relacionada à realização de quaisquer atividades pela pessoa
cega ou com baixa visão sem depender de adequações do meio (concepção
apresentada na unidade de análise D1.1).
Sassaki (1999) define autonomia como

a condição de domínio no ambiente físico e social, preservando ao máxi-


mo a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce. [...] Ter maior ou
menor autonomia significa que a pessoa com deficiência tem maior ou
menor controle nos vários ambientes físicos e sociais que ela necessite e/
ou queira frequentar para atingir seus objetivos [...] O grau de autonomia
resulta da relação entre o nível de prontidão físico-social do portador de
deficiência e a realidade de um determinado ambiente físico-social. [...]
Tanto a prontidão físico-social como o ambiente físico-social podem ser
modificados e desenvolvidos (SASSAKI, 1999, p. 36).
86 | (Des)mitos da Educação Especial

O grau de autonomia da pessoa cega ou com baixa visão não depen-


de exclusivamente de suas atitudes. O seu entorno social também deve se
adequar para que ela possa atuar autonomamente em suas atividades aca-
dêmicas e profissionais. É irrevogável romper com a noção de que a norma
de autonomia aceitável e desejável seja a da cultura vidente. A superação da
condição de deficiência visual é uma responsabilidade coletiva e não deve
se restringir ao contexto educacional.
Não seria ingênua a afirmação de que a ausência da referida autonomia
é uma condição imposta pela sociedade capitalista. Interessa ao discurso
dominante a reticência naturalizada sobre a possibilidade de atuação e par-
ticipação de pessoas cegas ou com baixa visão na área de (Ensino) de Física,
pois a estruturação de ambientes e práticas que viabilizem a essas pessoas o
acesso a uma rede de apoio complementar responsável, por exemplo, pela
disponibilização de recursos humanos e adequação de materiais necessá-
rios para o desenvolvimento de suas atividades, não é rentável.
Outro mecanismo de corte nas possibilidades de acesso a e participa-
ção das pessoas cegas ou com baixa visão no ensino e na aprendizagem
de Física é a desigualdade socioeconômica, pois, em uma sociedade de
classes, tais possibilidades não são equitativas. A título de exemplo, cita-
-se o fato de que nem todas as pessoas cegas pertencentes às camadas
populares podem ter acesso a computador com software ledor de tela e/ou
máquina de datilografia Braille, que são tecnologias assistivas com potencial
para proporcionar maior autonomia no desenvolvimento de suas atividades
de leitura e escrita.
Recorre-se às palavras de Vigotski para sintetizar o exposto: “a cegueira,
para a filha de um agricultor norte-americano, para o filho de um proprietário
de terras ucraniano, para uma duquesa alemã, um camponês russo, um pro-
letário sueco, são fatos psicologicamente muito distintos” (VYGOTSKI, 1997,
p. 81, tradução nossa).

Mito de que pessoas cegas ou com baixa visão não podem conhecer,
aprender e/ou ensinar conceitos e fenômenos físicos e são sempre
passivas frente ao ambiente educacional
Ao consagrar uma estreita e reducionista relação entre o sentido da vi-
são e o conhecimento científico, o centrismo visual constitui-se em um meca-
nismo que forja o mito de que pessoas cegas ou com baixa visão não podem
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 87

conhecer, aprender e/ou ensinar conceitos e fenômenos físicos e são sempre


passivas frente ao ambiente educacional.
O centrismo visual germinou na Grécia Antiga. Aristóteles, por exemplo,
ao definir e hierarquizar os cinco sentidos, qualificou a visão como o mais
primorosamente desenvolvido e relevante em relação às necessidades da
vida (WINZER, 1997 apud MARTINS, 2006).
Na Idade Moderna, houve uma potencialização das relações entre ver
e conhecer consolidada, principalmente, por meio da disseminação da pa-
lavra escrita como importante meio para comunicação e informação e da
supremacia, conferida pelo conhecimento científico, da visão em relação
aos demais sentidos. Houve o reconhecimento da visão como “o sentido da
ciência” (CLASSEN, 1993 apud MARTINS, 2006).
As tradições realistas das ciências empíricas concedem lugar privilegia-
do aos sentidos na apreensão do mundo, e a visão destaca-se na busca da
verdade. Ela protagoniza as metáforas para os processos mentais. Um exem-
plo é o pensamento cartesiano, que, embora privilegie a reflexão mental ao
negar os sentidos como forma direta de acesso ao real, toma a visão como
metáfora estruturante a respeito do acesso a um conhecimento objetivo da
realidade (MARTINS, 2006). Ainda segundo Martins (2006, p. 68-69), “a pró-
pria construção de representações mentais capazes de apreender o mundo
pelo método e raciocínio sustenta a ideia de um real visto pela mente para
além dos sentidos, estabelece, pois, um ‘olho da mente’”.
Não obstante estudos apontem que licenciandos (VERASZTO et al.,
2018a), estudantes e professores do Ensino Médio da área de Ciências da
Natureza (VERASZTO et al., 2018b) entendam que é possível que pessoas
cegas congênitas compreendam conceitos científicos e se tornem cientistas,
ainda há uma tendência de se estabelecer uma estreita relação entre ver e
conhecer (VERASZTO et al., 2018b). Bonfim, Mól e Pinheiro (2021) chamam a
atenção para a existência de uma concepção predominante nas áreas de Ci-
ências Exatas e Naturais que atribui a pessoas com deficiência visual menor
capacidade para realizar cursos em tais áreas.
No estudo sobre o processo de inclusão de L, delinearam-se elemen-
tos que rompem com a noção de incapacidade e passividade das pessoas
com deficiência visual em contextos de ensino e aprendizagem de Física. L
demonstrou, ao longo do curso, facilidade na aprendizagem de conceitos
físicos e na formalização matemática, aspectos que implicam dificuldades
88 | (Des)mitos da Educação Especial

para a maioria dos graduandos em Física (ATAÍDE; GRECA, 2013). A seguir,


apresenta-se o relato de D1 sobre isso:

a Física em si não era uma dificuldade, o que para os outros às vezes era,
né. Então ele dava conta de discutir com você coisas que iam além da
própria Física (D1.2).

Ao discorrer sobre a possibilidade de que uma pessoa cega, mesmo


sem observar diretamente um fenômeno ou objeto, consiga compreender
e elaborar conceitos concretos e adequados aos dos videntes, Vygotski
(1997) cita o caso do inglês cego congênito Nicholas Saunderson (1682-1739),
que foi professor de Astronomia, Óptica e Matemática na Universidade de
Cambridge e desenvolveu um método de leitura tátil em alto-relevo para a
Aritmética. Diderot (1979) também faz menção à Saunderson, afirmando que
ele escreveu

uma obra das mais perfeitas em seu gênero. São os Elementos de Álge-
bra onde só se percebe que ele era cego pela singularidade de certas
demonstrações, as quais um homem que vê talvez não encontrasse. [...]
Deu lições de óptica; pronunciou discursos sobre a natureza da luz e
das cores; explicou a teoria da visão; tratou dos efeitos das lentes, dos
fenômenos do arco-íris e de várias matérias relativas à vista e a seu órgão
(DIDEROT, 1979, p. 50-52).

A compreensão de que situações como as descritas anteriormente são


possíveis, isto é, a contestação do mito de que pessoas cegas ou com baixa
visão não podem conhecer, aprender e/ou ensinar conceitos e fenômenos
físicos, requer compreender que: as funções psicológicas superiores, como
elaboração de hipóteses, abstração, generalização, raciocínio matemático,
indutivo e dedutivo, de quaisquer pessoas, se desenvolvem majoritaria-
mente por meio das interações estabelecidas com o meio social, logo, as
pessoas com deficiência visual podem desenvolver tais funções, que são
essenciais aos processos científicos; o ver como condição sine qua non para
conhecer fenômenos e conceitos físicos profere uma noção limitante sobre
o conhecimento científico que, por tomar

a parte (visão) pelo todo (conhecimento), cria um sério entrave cultural,


quer para a percepção das pessoas cegas enquanto repositórios de sabe-
res, quer para a compreensão da riqueza que o mundo encerra, mesmo
para quem o conhece na ausência do sentido da visão (MARTINS, 2006,
p. 72).
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 89

De acordo com Vygotski (1997), se o homem fosse dotado de quatro


sentidos apenas, o seu pensamento continuaria preservado, não haveria
uma modificação substancial no seu conhecimento, pois a representação da
realidade não é construída diretamente a partir dos cinco sentidos. O que
ocorre é uma reelaboração racional da experiência. Disso decorre que pes-
soas cegas e videntes podem conhecer muito mais que conseguem imaginar
e perceber sensorialmente. Se fosse possível ao homem conhecer apenas
aquilo que pode ser percebido diretamente por meio dos cinco sentidos,
não haveria a possibilidade de

nenhuma ciência no verdadeiro sentido desta palavra, já que os nexos,


dependências e relações entre os fenômenos, que constituem o conteú-
do do saber científico, não são qualidades dos objetos que se percebem
em forma visual direta, senão que se descobrem nos objetos com ajuda
do pensamento (VYGOTSKI, 1997, p. 228, tradução nossa).

Quando uma pessoa que tem a percepção visual das cores lê ou pro-
nuncia a palavra “vermelho”, ela associa tal palavra à imagem mental repre-
sentativa do estímulo visual, ou seja, à ideia de vermelho. Tal ideia só possui
significado para essa pessoa, porque sua experiência com tal estímulo foi
construída, desde a infância, por um processo de significação. O conceito
é aprendido por meio das interações sociais (BIANCHI; RAMOS; BARBOSA-
-LIMA, 2016). Uma pessoa cega congênita, ainda que não possua o entendi-
mento da cor em razão de sua representação mental visual, por haver uma
relação inseparável entre tal significado e sua percepção visual, poderá se
apropriar de outros aspectos associados à cor, como aqueles de cunho his-
tórico e filosófico (CAMARGO, 2012).
Sem deixar de reconhecer que é impossível a cegos congênitos o acesso
a significados indissociáveis de representações visuais (CAMARGO, 2012),
afirma-se que a incapacidade de pessoas cegas ou com baixa visão para
aprender e ensinar Física decorre do fato de que o conhecimento científi-
co – uma construção social – é comunicado e representado nas interações
que elas estabelecem com seus pares por meio de sistemas de signos não
compartilháveis entre estudantes/professores com e sem deficiência visual,
ou seja, fundamentados majoritariamente em referenciais visuais.
A predominância do referencial visual nas representações utilizadas nos
contextos das Ciências da Natureza pode levar os professores a compreen-
derem que esse referencial é o único que possibilita a aprendizagem dos
conteúdos dessa área, “desconsiderando que essas representações são
90 | (Des)mitos da Educação Especial

produzidas para facilitar o aprendizado do aluno vidente e que, não neces-


sariamente, precisam ser adaptadas ao/à aluno/a cego/a” (BONFIM; MÓL;
PINHEIRO, 2021, p. 597).
Se por um lado há significados físicos indissociáveis de representação
visual, como opaco, transparente, translúcido e a ideia visual de imagem, por
outro há os significados: de relacionabilidade secundária, cuja compreensão
não tem relação prioritária com a visão (datas, aspectos históricos e filosó-
ficos etc.); vinculados às representações visual e tátil; sem relação sensorial,
que não podem ser observados e representados por percepções empíricas,
como campos gravitacional, elétrico e magnético etc. (CAMARGO, 2012).
Com exceção dos significados indissociáveis de representação visual, os
demais significados físicos podem ser comunicados a pessoas cegas congê-
nitas, desde que em sua comunicação sejam utilizadas linguagens acessíveis
aos demais sentidos. O comportamento de raios incidente e refletido em
um espelho plano, por exemplo, é comumente comunicado por representa-
ções visuais, mas o seu entendimento não depende exclusivamente dessas
representações, podendo ser descrito por meio de maquetes tátil-visuais
(CAMARGO, 2012).
Há conceitos científicos que são invisíveis ao olho humano e que são
representados por modelos explicativos visuais. O caráter dual da luz, fóton,
frequência e quantum são exemplos desses conceitos (BIANCHI; RAMOS;
BARBOSA-LIMA, 2016). Por outro lado, maquetes tridimensionais dos referi-
dos modelos dão acesso a alunos cegos ou com baixa visão e criam canais
de comunicação entre docentes e estudantes com deficiência visual (CA-
MARGO, 2012).
Para que pessoas cegas ou com baixa visão possam aprender e ensinar
Física sob uma perspectiva inclusiva, faz-se necessária uma atitude ativa do
ambiente educacional, de modo a possibilitar-lhes acesso ao currículo, per-
manência no curso/escola, interação com seus pares, continuação de seus
estudos em níveis mais avançados etc. As ações do ambiente educacional de-
vem ter como lastro o reconhecimento da(s) diferença(s) e da(s) identidade(s)
entre pessoas cegas/com baixa visão e videntes. Camargo e Nardi (2018)
apontam que pessoas cegas e videntes possuem, no que concerne às per-
cepções sensoriais, uma diferença (ver e não ver) e quatro identidades (ouvir,
tatear, cheirar e degustar), e o ensino de Física pode ocorrer por meio de
atividades comuns a todos os estudantes, respeitando suas especificidades.
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 91

No caso de L, ainda que tenham se delineado práticas e atitudes que


resultaram em sua exclusão de algumas situações educacionais, houve tam-
bém adequações do ambiente educacional, o que possibilitou que ele con-
cluísse o curso de graduação e continuasse seus estudos em nível de mes-
trado e doutorado em Física. Dentre tais adequações, tem-se a realização de
uma atividade experimental na disciplina Laboratório de Física I, ministrada
por DCN. O experimento abordou o conceito de centro de massa, no qual
foram colocadas penas em carrinhos e em uma placa de isopor para que L
percebesse seus movimentos em diferentes situações. A unidade de análise
a seguir apresenta o relato de DCN sobre a atividade, que foi realizada sob
uma perspectiva inclusiva, pois houve a participação de toda a turma.

a gente fez um trabalho de centro de massa e a gente juntou a turma ali


na frente do prédio. Tem uma canaleta, a gente tapou ela, encheu de
água, fez um negócio de isopor com um carrinho, umas peninhas. Ficou
bem legal. A turma toda participou, né, com aquele aluno que era meu
bolsista, e foi bem bacana (DCN.1).

A adequação dessa atividade foi realizada com o auxílio de um estu-


dante bolsista, o que evidencia e reforça a necessidade de que o docente
tenha o apoio, por exemplo, do núcleo de acessibilidade para a realização
de atividades inclusivas.
No contexto das Ciências da Natureza, as aulas práticas concentram
grandes embates no que se refere às adequações para os estudantes cegos
ou com baixa visão, pois eles ficam excluídos das práticas de laboratório
(BONFIM; MÓL; PINHEIRO, 2021). Situações semelhantes ocorreram com L,
pois embora ele participasse das atividades desenvolvidas em grupos de
estudantes, fazendo a análise, interpretação, discussão dos dados e ela-
boração de relatórios sobre cada atividade experimental proposta, não foi
incomum a ausência de adequações nos aparatos experimentais com a fina-
lidade de possibilitar a ele a observação dos fenômenos físicos e a realização
de medições.
É possível incluir pessoas cegas ou com baixa visão nas aulas práticas.
Podem ser feitas, por exemplo, adequações por meio do uso de termômetros
sonoros, de botões com identificação em Braille, trocas de sinais visuais por
sonoros etc. (BONFIM; MÓL; PINHEIRO, 2021). Outro aspecto importante é a
compreensão de que os “cientistas não trabalham sozinhos, abrindo possibi-
lidade para que determinadas etapas e certos tipos de atividades científicas
92 | (Des)mitos da Educação Especial

possam ser destinadas a pessoas com deficiência visual” (BONFIM; MÓL;


PINHEIRO, 2021, p. 598).
Há que se considerar também, na perspectiva da educação inclusiva,
as especificidades de estudantes cegos ou com baixa visão (CAMARGO;
NARDI, 2018). No caso de L, delinearam-se também ações para atender às
suas especificidades, como: a realização de adequações em alguns dos ins-
trumentos e estratégias de avaliação, que variaram conforme especificidade
da disciplina e se o instrumento utilizado envolvia o trabalho em grupo ou
individual; a monitoria de pares. Essas e outras ações do ambiente educa-
cional para promover a inclusão de L no curso são descritas e analisadas
em Silva (2020). Dado o escopo deste capítulo, limita-se a citar brevemente
algumas dessas ações.
As ações empenhadas pelo ambiente educacional possibilitaram que L
fosse ativo em seu processo de aprendizagem. Tal postura ativa é exempli-
ficada nas unidades de análise C.2, que se refere à participação de L nas
atividades de estudo em grupo com os colegas, e D2.1, que se refere a sua
participação em debates/atividades realizadas em sala de aula.

os colegas de turma do L sempre foram... sempre foram muito bons


para troca entre eles todos. Eu não vou colocar numa situação que era...
eles ajudavam muito o L, porque era uma situação realmente de troca,
porque o L colaborava MUITO durante as aulas, porque, como eles ti-
nham sempre tarefas de desenvolver materiais, eles precisavam expor
esses materiais, e durante a exposição e a explicação e a justificativa das
escolhas e como se dava a proposta de utilização os alunos se manifesta-
vam e faziam críticas e comentários e a construção de um material mais
pensado, mais elaborado, e o L sempre colaborou de forma bastante
significativa em relação a isso. Então realmente não era uma questão de
ajuda, era uma questão de reconhecimento das diferenças (D2.1).

essas listas a gente fazia sempre em conjunto, e, querendo ou não, o L


sempre foi um cara que nunca aceitou que a gente fizesse e entregasse
com o nome dele, sabe, ele sempre falava assim “não, eu quero fazer”
e aí ele fazia. E muitas vezes a gente preferia que ele fizesse também,
porque o cara era cabeção demais (risos) (C.2).

O exposto vai de encontro ao mito de que pessoas cegas ou com bai-


xa visão assumem posturas passivas no ambiente educacional. Sobre isso,
concorda-se com Camargo (2018, p. 43), o qual diz que “a ideia de que a
pessoa com deficiência visual é passiva, não podendo colaborar ativamente,
(Des)mitos sobre o ensino e a aprendizagem de física por pessoas cegas ou com baixa visão | 93

é falsa. Dadas as condições adequadas de acesso, ela assume sua posição


de pessoa comum, algo que de fato ela é”.

Considerações finais
Este capítulo abordou discursos e práticas que exprimem a (des)constru-
ção de dois mitos sobre as pessoas cegas ou com baixa visão e as (im)pos-
sibilidades de sua participação em contextos de ensino e aprendizagem de
Física. Centrou-se nos mitos de que: a deficiência visual é uma limitação de
ordem exclusivamente biológica e intrínseca da pessoa cega ou com baixa
visão; pessoas cegas ou com baixa visão não podem aprender e/ou ensinar
Física e são sempre passivas frente ao ambiente educacional.
De encontro ao primeiro mito supramencionado, afirma-se que a defi-
ciência visual é uma condição edificada por meio de uma complexa relação
entre pessoas com baixa visão ou cegas, o meio em que elas vivem e suas
necessidades. (Des)vantagens, limitações e incapacidades que se apresen-
tam a elas são situacionais e culturais, tendo como referência a hegemônica
cultura dos videntes, que delega à visão a supremacia em relação aos de-
mais sentidos, atribuindo ao não ver o rótulo da incapacidade, tragédia e
limitação.
A contestação do segundo mito baseia-se no fato de que a (in)capacida-
de de pessoas cegas ou com baixa visão para perceber, aprender, ensinar e
construir modelos explicativos de conceitos e fenômenos físicos é extrínseca
a elas, uma vez que o conhecimento científico é comunicado a elas por siste-
mas de signos pautados, sobretudo, em referenciais visuais.
É possível que pessoas cegas ou com baixa visão acessem e participem
de atividades de ensino e/ou aprendizagem de Física. Para isso, é necessário
o desenvolvimento de sistemas de signos e técnicas que atendam às suas
peculiaridades. Nessa busca pela superação da deficiência visual, a educa-
ção deve atuar como protagonista (VYGOTSKI, 1997), contudo, as práticas
inclusivas não devem se restringir ao contexto educacional, estendendo-se
para todas as esferas da sociedade.
São relevantes, quando se almeja a educação inclusiva do público-alvo
da Educação Especial, os atos normativos que prevejam investimento finan-
ceiro na criação e manutenção de uma rede de apoio a esse público por meio
da contratação de recursos humanos, produção de materiais acessíveis etc.
Igualmente relevantes são as ações de formação docente que promovam
94 | (Des)mitos da Educação Especial

discussões e reflexões sobre o reconhecimento e a necessidade de supera-


ção das práticas e discursos incapacitantes de tal público, a importância de
um trabalho colaborativo entre os envolvidos no seu processo de inclusão,
as possibilidades de múltiplas percepções sensoriais e representações dos
modelos explicativos de fenômenos/conceitos físicos e as concepções pre-
valentes dos docentes sobre a ciência e o trabalho científico. Este último
aspecto é de extrema relevância no contexto das Ciências da Natureza, pois
“uma ciência que se considera neutra e desconsidera a diversidade prova-
velmente excluirá o público-alvo da Educação Especial” (BONFIM; MÓL;
PINHEIRO, 2021, p. 600).

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6

TALENTO MUSICAL: EVIDÊNCIAS


CIENTÍFICAS E MITOS
Dra. Fabiana Oliveira Koga32
Profa. Dra. Rosemeire de Araújo Rangni33

O talento é como o atirador, que acerta um alvo que os demais não o po-
dem; o gênio é como o bom atirador, que acerta um alvo que os demais
nem conseguem ver (SCHOPENHAUER, 2015, p. 469).

Introdução

O talento musical, quando manifesto precocemente, costuma impres-


sionar, e, por sua vez, muitos mitos são criados e arquétipos34 mantidos na
tentativa de buscar explicações plausíveis e aceitáveis que justifiquem a exis-
tência do inusitado fenômeno.
Nesse sentido, é comum entre os sujeitos a explicação religiosa para
a manifestação do talento musical como sendo uma dádiva concedida por
Deus na forma de “dons”, no âmbito da construção do mito. Quem nunca
ouviu a expressão “dom de Deus”, e como não se lembrar da parábola dos

32 Graduada em Música (instrumento piano e educação musical), mestre e doutora em


Educação e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial,
bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp.
33 Mestre em Educação e Doutora em Educação Especial. Professora Associada 1, Depar-
tamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos.
34 Ideologias ou crenças e, até mesmo, pessoas que são “veneradas”. Deus, Maomé, Buda,
bem como as religiões são alguns exemplos da propagação e dos arquétipos em si. As
pessoas acreditam em fatos ou ideias sem qualquer comprovação científica. Esse tipo
de conhecimento serve de modelo a ser seguido e é compartilhado entre gerações.
Cada cultura conta com diferentes tipos de arquétipos transmitidos oralmente, por
meio de rituais, histórias, vivências práticas etc. Algumas pessoas acreditam tanto nos
arquétipos que eles se tornam reais e irrefutáveis (KIRNARSKAYA, 2009; JUNG, 2013).
98 | (Des)mitos da Educação Especial

talentos? Arquétipos como de Amadeus Mozart são o modelo representa-


tivo daquele que se destaca por ser prodígio e por sua genialidade musi-
cal inexplicável. Ao longo dos anos a humanidade vem compartilhando a
biografia de Amadeus Mozart como uma maneira de representar o que de
fato seria a personificação do talento musical em forma extrema: o artista
prodígio que se tornou genial. Nesse contexto, há outros compositores e in-
térpretes nessa condição de arquétipo na área da Música, entre eles: Johann
Sebastian Bach, Ludwing Van Beethoven, Richard Wagner, Antonio Carlos
Gomes, Heitor Villa Lobos, Hans-Jachin Koerllreutter, entre outros (GROUT;
PALISCA, 1994; MARIZ, 2005; DIA; LARA, 2012).
Os mitos, assim como os arquétipos, podem influenciar as ações práti-
cas, educativas, ideológicas, científicas, entre outras, uma vez que transitam
em meio às concepções de senso comum e até entre as esferas teórico-cien-
tíficas, às vezes provocando reflexões dialéticas sobre o que seria o talento
musical. Os arquétipos são mais profundos, de acordo com os estudos de
Jung (2013). Isso porque têm raízes no inconsciente coletivo, e a sociedade
os compartilha historicamente. Por sua vez, os mitos apenas parecem super-
ficiais, pois também estão fundamentados na experiência de senso comum
e muitas vezes persistem por gerações. Assim, não há evidências contun-
dentes e empíricas quando se pensa sobre o impacto dos mitos, sua força
ideológica e as diferenças e/ou semelhanças com os arquétipos quando
relacionados com o talento musical.
A partir disso, buscou-se entender o que há em torno do talento musical
no que diz respeito à construção científica e aos mitos existentes. Assim,
este capítulo objetiva apresentar e problematizar alguns mitos voltados para
o talento musical a partir de experimentos científicos.

Evidências científicas e mitos relacionados com o talento musical


Desde a era primitiva é possível observar as diferenças entre os sujeitos
em termos de aptidão eminente e resolução de problemas (MITHEN, 2002).
Evidentemente, o sentido que se tem atualmente de aptidão não é o mes-
mo que o daquele momento histórico, muito menos os problemas, porém,
certamente havia diferenças entre os sujeitos, porque a sobrevivência estava
em jogo (MITHEN, 2002; KIRNARSKAYA, 2009).
Segundo Rubinstein (1978) e Lehmann, Sloboda e Woody (2007), cada
período histórico e cultural atribui um sentido, valor e representação
Talento musical: evidências científicas e mitos | 99

diferentes para o talento, inclusive em Música. Esse fenômeno também sofre


o impacto da conjuntura política, ideológica e econômica, podendo acirrar
a desigualdade entre os sujeitos e reforçar as diferenças em uma sociedade
capitalista competitiva, por exemplo. Desse modo, vem à tona a crença nos
benefícios de se ter o talento associado ao usufruto de privilégios de uns em
detrimento de outros. Tal sensação relacionada à relação de poder é sentida
desde os povos primitivos, os quais dependiam de suas aptidões e instintos
para sobreviver (MITHEN, 2002; FOUCAULT, 1995; 2021; ROUSSEAU, 2021).
Em síntese, o talento musical tem múltiplas nuances, as quais possibilitam
observá-lo em diferentes esferas ou perspectivas, como filogenética, onto-
genética, sociogenética, psíquica, cognitiva, emocional, afetiva, psicomotora
etc., o que demonstra a sua complexidade e magnitude. Para além disso, o
talento musical compõe a constituição do sujeito e é observado na expres-
são comportamental e produtiva materializada na atividade vital humana,
do trabalho ou da produção artística. Isso porque a diferença entre sujeitos
talentosos em Música daqueles que não são pode ser observada no uso que
eles fazem dos recursos ou elementos musicais, no sentido que atribuem à
Música, bem como na libido que depositam nas ações produtivo-criativas
musicais (TEPLOV, 1966; RUBEINSTEIN, 1978 GARDNER, 1993; VIGOTSKI;
LÚRIA, 1996; WINNER, 1996; CSIKSZENTMIHALYI; WOLFE, 2000; ZIEGLER;
HELLER, 2000; VYGOTSKY, 2001; FREUD, 2011; GORDON, 2015; GAGNÉ;
MCPHERSON, 2016; HAROUTOUNIAN, 2019; KNYAZEVA, 2019; ABRAMO;
NATALE-ABRAMO, 2020; KIRNARSKAYA, 2020; SEMENOVA, 2020; DOBAI;
HOPKINS, 2021).
A discussão sobre a diferença entre os sujeitos, porque uns aprendem
mais cedo que outros, ou porque algumas pessoas têm maior dificuldade
para aprender enquanto outras podem apresentar notória precocidade
na internalização do conhecimento não é um assunto novo. As diferenças
ou características individuais são observadas desde os povos primitivos
(GARDNER, 1996; MITHEN, 2002; KIRNARSKAYA, 2009). A dialética entre os
aspectos envolvendo a genética (inato), no desenvolvimento humano, e a
contribuição do meio ambiente, até o momento da redação deste texto, é
uma síntese de pesquisadores da área do desenvolvimento e do talento e
área afins.
Ao nascer, o sujeito encontra a história, a ciência, a tecnologia, os
símbolos e signos, a linguagem, a sociedade etc. em andamento, ou seja,
pessoas nascem e morrem enquanto o mundo continua o seu fluxo de
100 | (Des)mitos da Educação Especial

desenvolvimento e produção do conhecimento (VYGOTSKY, 2001; LÚRIA,


2015). Por isso, “[o]s processos naturais e culturais não só advêm de fontes
diversas, como mudam de maneira diversa no curso do desenvolvimento”
(LÚRIA, 2015, p. 88).
A relação da mãe com o bebê, ainda no ventre, vai estimulando emoções,
sentimentos, sons, batidas etc. A genitora apresenta alguns significados,
frente aos estímulos culturais, para o feto, e este vai internalizando tais expe-
riências e até as expectativas estimuladas pela genitora. Ele torna-se sujeito
à cultura imposta pelo meio familiar e social, do qual, mesmo no ventre, já é
parte. Sobre o bebê são depositadas as perspectivas do que ele poderá ser
naquele meio social (VYGOTSKY, 2001; LACAN, 2005; FREUD, 2011).
Os primeiros responsáveis pela propagação e apresentação do mundo
para o sujeito (bebê), do conhecimento geral, bem como da cultura, são os
genitores e/ou responsáveis legais (GARDNER, 1996; GORDON, 2015). Essa
implementação e a internalização do conhecimento em Música pode co-
meçar desde a vida uterina (PAPOUSEK, 2003; MANNES, 2011; MARCINIAK;
HARCIAREK, 2021). Essa relação genitora e feto, associada ao desenvolvi-
mento, pode ocasionar uma ideia precipitada sobre evidências inatas da
aptidão e, consequentemente, do talento musical. Por isso, pesquisas expe-
rimentais robustas serão necessárias caso haja o interesse em compreender
as parcelas dos aspectos biológicos associadas aos culturais. Mais que isso, o
campo emocional, afetivo e a constituição do sujeito, por meio das relações
sociais, ainda necessitam de mais pesquisas (LACAN, 2005; FREUD, 2011).
Dessa forma, é fato que ninguém nasce pianista, cantor ou compositor,
porém, permanece a dúvida: qual é a parcela de contribuição entre a bio-
logia e a cultura humana? Há pessoas que cantam e compõem desde tenra
idade, enquanto outras se tornam artistas vindo de uma família que sequer
sabe tocar ou cantar e, às vezes, sequer tem o hábito de ouvir música. Então,
de onde vem o talento musical? Do que é composto? Quais são as variá-
veis? São indagações compartilhadas por Teplov (1966), Gardner (1993, 1997),
Haroutounian (2002), Kirnarskaya (2009), Vigotski e Lúria (1996), Freud (2011),
Gagné e Mcpherson (2016).
Diante de tal dialética entre o meio cultural e o universo biológico do
homem, instaurou-se o mito da dotação ou do dom. De um lado, é obser-
vável que as pessoas resolvem a questão por meio do senso comum, ao
afirmar ser uma ação divina; de outro, no meio científico, há as concepções
relacionadas à genética ou à biologia ou ao desenvolvimento sociocultural,
Talento musical: evidências científicas e mitos | 101

todas elas apoiadas por diferentes áreas. No entanto, é preciso destacar a


Neurociência, a qual vem explorando a área da Música em relação ao cére-
bro (LEVITIN, 2006; HYDE et al., 2009; LÚRIA, 2015; TEIXEIRA, 2018).
A dialética entre os aspectos inatos versus o desenvolvimento impacta
também as terminologias. Abramo e Natale-Abramo (2020) demonstram os
conflitos conceituais e o impacto deles em teorizações sobre o talento mu-
sical a ponto de se originarem diferentes termos e/ou conceitos na tentativa
de melhor designá-lo, se é que seja possível e necessário determinar um
único termo para esse fenômeno. Então, se a ciência tem dificuldades na
compreensão do talento musical, é possível imaginar o que ele provoca no
âmbito do senso comum, principalmente quando é disseminado por meios
de comunicação sem embasamento científico.
Nesse sentindo, Winner (1996) discutiu nove mitos sobre o talento em
seus estudos, dentre os quais está o do Quociente de Inteligência (QI); en-
tretanto, a autora não tratou exclusivamente da área da Música.
Alguns outros mitos relacionados ao talento musical, que afetam direta-
mente a compreensão do talento e a intervenção didática na área do ensi-
no musical, os quais foram pensados a partir das pesquisas de Kirnarskaya
(2009), Aquino et al. (2019), Burgoyne, Harris e Hambrick (2019), Criscuolo et
al. (2019), Beccacece et al. (2021), Dobai e Hopkins (2021), Fernández, Cabre-
ro e Garcia (2019), Ireland, Iyer e Penhune (2019), Knyazeva (2019), Veloso e
Araújo (2019), Hinojosa (2020), Vishnevskaya, Ivanova e Ponomareva (2020),
Leipold, Klein e Jäncke (2021), Marciniak e Harciarek (2021), Foucault (2021) e
Rousseau (2021), são: mito do dom, mito do treinamento exclusivo, mito do
estereótipo, mito da inteligência musical e o mito do talento sinônimo de
privilégio e/ou poder.
Os experimentos de Burgoyne, Harris e Hambrick (2019) identificaram
que não há diferenças significantes na predição para o estudo de piano em
sujeitos sem experiência musical (n = 171). O resultado indicou que a junção
de inteligência geral, aptidão musical e pensamento foi responsável por
22,4% da variação na aquisição das habilidades musicais, porém, a contribui-
ção da inteligência geral (β = 0,44, p < 0,001) em relação à aptidão musical
(β = 0,08, p = 0,39) e o pensamento (β = -0,06, p = 0,50) não foi considerada
significativa estatisticamente, ou seja, a inteligência geral não é determinan-
te para a manifestação da aptidão musical e do pensamento.
Beccacece et al. (2021) em seus achados discutiram a possibilidade de
haver uma associação biocultural por conta da universalidade da linguagem
102 | (Des)mitos da Educação Especial

musical. Para esses autores, a musicalidade apresenta características adap-


tativas com funções biológicas. Estudos de neuroimagem revelam a relação
da Música com as funções cerebrais, sendo uma questão de tempo até que
se tenha o gene da musicalidade fruto da aptidão musical (base genética)
associado à evolução da espécie impactada pelo ambiente sociocultural.
Adicionalmente, Mithen (2002) já havia identificado, em seus estudos de
Antropologia, a capacidade de adaptação do homem primitivo e as trans-
formações cognitivas e comportamentais em âmbitos coletivos e individuais.
O autor discute a modularidade da inteligência colaborando para a fluência
de ideias, pensamento e conhecimentos. Para o autor, o sistema de entrada
dos estímulos e do conhecimento em si é a percepção (porta de entrada)
processada no âmbito da cognição. Para ele, a mente organiza-se em níveis
impactados pela evolução humana e pelas demandas ambientais ligadas
à sobrevivência. Para Mithen (2002), a inteligência humana é produto da
evolução.
Knyazeva (2019), por outro lado, investigou a relação da musicalidade
com a inteligência geral e concluiu que as habilidades musicais se bene-
ficiam em alguma medida da inteligência geral. No entanto, afirma que a
relação é complexa, o que não possibilita evidências concretas que possam
demonstrar as diferenças e semelhanças ou qual seu nível de contribuição
para o talento musical, pois a inteligência é multidimensional e comparti-
lhada. Nesse sentido, é possível perceber relação direta com a Teoria das
Inteligências Múltiplas de Gardner (1993).
Ademais, Fernández, Cabrero e Garcia (2019) investigaram algo seme-
lhante ao que Knyazeva (2019) estudou e focaram mais a relação, de modo
comparativo, das inteligências múltiplas, especificamente a musical, com o
rendimento acadêmico. As evidências comprovaram que a inteligência mu-
sical colabora com o rendimento acadêmico.
Ao analisar os estudos até o momento apresentados, observa-se a di-
ficuldade de investigar os aspectos biológicos versus o meio ambiente, da
inteligência geral versus as múltiplas, como também o domínio acadêmico
(matemática inclusive) e a possível relação com a área musical. Apenas com
esses estudos é possível trazer à tona dois mitos, os quais são o dom e a
inteligência musical.
O mito do treinamento também gera dúvidas, principalmente quando
se comparam as evidências empíricas, que mostram elementos que com-
provam a importância do treino, versus aquelas que descontroem essa
Talento musical: evidências científicas e mitos | 103

constatação. Gordon (2000, 2015), anteriormente, e Ireland, Iyer e Penhune


(2019) discutiram o impacto do estudo precoce de Música. Nesses estudos,
os autores evidenciam que há dados experimentais que demonstram ha-
ver um momento na infância favorável para o desenvolvimento musical ou
estimulação.
Gordon (2000, 2015) discute que a aptidão musical é a medida do po-
tencial de uma criança para aprender música, enquanto o desempenho seria
o resultado da internalização musical, pois a aptidão musical é inata na sua
origem, mas é afetada pela qualidade do meio cultural, no qual vive a crian-
ça. A aptidão estabiliza por volta dos nove anos, o que significa que se a
criança for exposta ao estudo intensivo da Música precocemente poderá
aumentar seus índices de aptidão, e será a base para a musicalidade e o
talento ao longo de sua vida – quem estabiliza em níveis baixos corre o risco
de possuir baixos índices de musicalidade. Por essa razão, Gordon (2000,
2015) criou testes padronizados que pudessem colaborar com as estratégias
pedagógico-musicais, bem como criou a Teoria da Aprendizagem Musical,
destinada à musicalização de bebês até a vida adulta. Seus testes foram
ministrados, na fase de construção e validação em aproximadamente 1920
participantes americanos.
Ireland, Iyer e Penhune (2019) pesquisaram o impacto do treinamento
musical na infância devido à plasticidade e à atividade neural. O estudo
experimental avaliou 130 crianças musicistas. Os resultados indicaram que
começar precocemente favorece a percepção e a capacidade de discernir
sons e ritmos, sobretudo porque há um aprimoramento em habilidades
musicais específicas, enquanto as de ordem mais gerais são desenvolvidas
com o tempo de treinamento, no caso, habilidades musicais consideradas
complexas.
O mito envolvendo o treinamento é conhecido não somente na área
musical, mas também no universo artístico geral e no esporte. Trata-se da
ideia de que, quanto maior for o treinamento, melhor será o desempenho,
independentemente dos níveis de aptidão. Essa teoria tem como autor-re-
ferência Anders Ericsson, o qual conceitua a expertise e a prática deliberada
(ERICSSON; CHARNESS, 1994; MOXLEY; ERICSSON; TUFFIASH, 2017).
Na perspectiva de Anders Ericsson (ERICSSON; CHARNESS, 1994),
somente é possível se tornar um expert por meio do estudo deliberado,
a longo prazo, autorregulado e metacognitivamente eficiente. O expert é
o indivíduo capaz de exibir performance superior em determinada área do
104 | (Des)mitos da Educação Especial

saber humano; não somente do desempenho, mas também ele pode dar
contribuições inovadoras e originais mediante a criatividade (GALVÃO; RI-
BEIRO, 2014; RIBEIRO; GALVÃO, 2018).
A pesquisa de Leipold, Klein e Jäncke (2021), baseada na teoria de Erics-
son (2002), investigou a plasticidade cerebral de músicos profissionais e não
músicos (n = 153) e mostrou que a musicalidade se manifesta de modo inter-
-hemisférico, independentemente da experiência musical. No entanto, o
estudo constatou que o treino a longo prazo se associa a mudanças na rede
neural. Os pesquisadores encontraram sujeitos com o ouvido absoluto e, ao
analisarem o impacto dessa habilidade, observaram que ela afeta sutilmente
a rede neural, afirmando a necessidade de mais estudos nessa perspectiva.
Criscuolo et al. (2019) avaliaram músicos profissionais, amadores e não
músicos (n = 101). Os resultados da pesquisa foram significativos para a
variável anos de prática musical, principalmente quando essa prática se
inicia na infância, precocemente. Eles observaram melhora em áreas como
a percepção e cognição, inclusive no que se refere às funções executivas,
influência de variáveis, como a personalidade e condições socioeconômicas,
e diferenças nos níveis de inteligência, memória de trabalho e habilidades
de atenção em relação ao tempo de prática musical. O estudo concluiu que
os músicos (profissionais e amadores) obtiveram os melhores resultados se
comparados aos não músicos.
Aquino et al. (2019) avaliaram as diferenças entre músicos e não músicos
em uma tarefa de improvisão. Os resultados mostraram que os músicos apre-
sentam maior ativação cerebral (área motora, córtex cingulado, pré-frontal,
dorsolateral e ínsula). Nos músicos o tempo entre a resposta muscular (ação
de produzir o som) e o pensamento que organiza a improvisão é menor. Em
participantes não músicos houve um maior destaque para a ínsula (região do
cérebro que processa as emoções e intuições), e os resultados mostraram
maior ativação nos não músicos, porque os músicos profissionais, devido
à técnica e às habilidades musicais, têm a emoção sob controle. Já os não
músicos se deixam tomar por ela. Diante dessas evidências, pode-se concluir
que o conhecimento musical colabora para o uso consciente dos elementos
musicais. Se houver a sua ausência, o sujeito fará uso da intuição, ou seja,
tentativa e erro, por exemplo.
Os resultados das pesquisas apresentadas mostram a importância da
vivência musical, mas não podem comprovar se os fatores biológicos ou ge-
néticos afetam ou não diretamente o talento. No entanto, ao considerar a
Talento musical: evidências científicas e mitos | 105

história da Música e os resultados empíricos das pesquisas de Barrett et al.


(2020) e Tordjman, Costa e Schauder (2020, há evidências da importância do
contato com a Música de alguma forma.
Grout e Palisca (1994) trazem a história da família de Johann Sebastian
Bach, apresentando seis gerações de músicos considerados extraordinários
e compositores importantes. Outro exemplo semelhante é o do compositor
Igor Stravinsky, cujo pai era um ator talentoso de ópera (GARDNER, 1996). Há
outros compositores em condições semelhantes e, vale destacar, inseridos
em classe média alta.
Barrett et al. (2020) pesquisaram a pianista Gabriela Monteiro. Ela foi um
prodígio na infância, com habilidades para a improvisação e desempenho
notório na Música erudita e popular. Sua mãe apresentou-lhe a música pre-
cocemente e possibilitou-lhe que iniciasse seus estudos de piano aos quatro
anos. Os estudos de ressonância do cérebro de Grabriela mostraram que,
ao improvisar, ela mobiliza uma rede neural significativa e que há uma singu-
laridade na sua improvisação (identidade). Os autores inferem a participação
biológica nesse processo, mas alegam não ser possível afirmar com precisão
tal evidência; apenas garantem, pela ressonância, que o cérebro de Gabrie-
la se organiza de modo diferente ao de uma pessoa com desenvolvimento
típico.
Tordjman, Costa e Schauder (2020) realizaram um estudo de caso vertical
sobre a vida de Michael Jackson. Com tradição musical na família e tendo
criado um grupo com os irmãos, Michael destacava-se entre eles. Os autores
atribuem a precocidade extrema à dotação com base em elementos gené-
ticos ou biológicos que se converteram em talento. Destacam a fragilidade
socioafetiva acarretada pela condição, sobretudo porque a precocidade é
tão intensa que gera dissincronia entre o funcionamento cognitivo e o emo-
cional, e a pessoa pode demonstrar força emocional para algumas coisas
e para outras grandes fragilidades. Por sua vez, pode demonstrar notórias
habilidades na área de domínio, mas imaturidade para se desenvolver com
autonomia, entre outros aspectos.
Aptidão musical como potencial eminente associada à importância do
desenvolvimento do talento musical está considerada nas pesquisas de Te-
plov (1966) e Gagné e McPherson (2016). Para esses estudiosos, o talento
musical seria a combinação das aptidões com a possibilidade de prática de
atividades musicais sistematicamente desenvolvidas. Em geral, essa con-
ceituação vem sendo compartilhada por alguns pesquisadores da Música,
106 | (Des)mitos da Educação Especial

como Gordon (2000, 2015), Haroutounian (2002, 2019) e Kirnarskaya (2009,


2020), cujos estudos destacam a importância da atenção educacional, co-
laborando na orientação do sujeito talentoso. Sobre essa vertente, autores
como Vargas (2020), Vishnevskaya, Ivanova e Ponomareva (2020) e López-
-Íñiguez e Bennett (2021) discutem a importância da mediação no desenvol-
vimento artístico.
Com base nas evidências de todos esses pesquisadores mencionados,
a valorização da Música pela sociedade, a cultura do estudo musical e as
oportunidades de trabalho são alguns dos elementos necessários para o de-
senvolvimento de um artista. No entanto, há fatores internos que necessitam
ser cuidados, os quais afetam a constituição emocional e a personalidade
dos músicos. Não é de surpreender que Rússia, Estados Unidos, Alemanha,
França, Inglaterra, Japão, China, Coreia e vários outros países europeus te-
nham uma tradição na música erudita e popular. A tradição cultural musical
e a valorização da própria cultura são observadas nos grandes métodos de
Educação Musical, como se pode constatar em Mateiro e Ilari (2012) e, sobre-
tudo, em Suzuki (1994) e Quan e Jia (2021), autores que se originam desses
países mencionados.
O mito do estereótipo, ocasionalmente, é mencionado na área musical.
De acordo com a pesquisa de Dobai e Hopkins (2021), geralmente o mito do
estereótipo se aplica a grupos minoritários com destaque notório em algum
gênero musical ou performance. Nessa pesquisa, os autores entrevistaram
30 participantes de origem cigana com talento musical e observaram que
nesse quesito havia pontos positivos, conforme a fala deles, mas também
fatores negativos e rotulantes, como se a musicalidade apresentada por eles
fosse algo exótico e sobrenatural, que os incomodava.
Também, o mito do estereótipo pode ser sentido entre os povos asiáti-
cos, com relação à Música erudita, e entre negros em relação à técnica vocal
e à execução instrumental percussiva na Música popular, além da dança.
Pode-se perceber isso nos últimos concursos musicais internacionais, como
o XVIII Concurso Chopin, edição de 2021, que teve como campeões o pianis-
ta canadense Bruce Liu e Ingrid Uemura, ambos descendentes de asiáticos,
os quais venceram o concurso de piano Guiomar Novaes. Victor Alves, Ellen
Oléia, Mylena Jardim e Sidinho são alguns dos campeões do The Voice Bra-
sil e do programa Canta Comigo, todos utilizando a técnica do Blues e/ou
estilo Gospel americano. Ademais, no ranking da Billboard estiveram meses
consecutivos em primeiro lugar artistas como Beyonce e Rihanna.
Talento musical: evidências científicas e mitos | 107

A tradição do ensino da Música erudita nas escolas asiáticas e a exis-


tência dos conservatórios tradicionais podem explicar o êxito de artistas
oriundos do Japão e China, por exemplo (SUZUKI, 1994; QUAN; JIA, 2021).
Esses países revelaram o pianista Lang Lang, a violinista Sarah Chang e o
pianista com deficiência Nobuyuki Tsujii. Com uma pequena pesquisa no
YouTube é possível encontrar inúmeras crianças dos países asiáticos tocando
com excelência peças de Frederick Chopin, Amadeus Mozart, Franz Liszt.
Diante disso, na perspectiva de Dobai e Hopkins (2021), ao mesmo tempo
que há uma positividade nesse mito do estereótipo há elementos negativos,
cuja magnitude de impacto no campo emocional dos sujeitos talentosos e
das oportunidades educativas não é possível controlar. Acreditar que um
determinado povo seja melhor em um gênero musical que outro, devido às
condições inatas e culturais, pode limitar o surgimento de grandes artistas
em outros estilos musicais. A esse respeito, vale destacar as talentosas so-
pranos negras35 Pumeza Matshikiza, Mary Anderson e Leontyna Price e os
japoneses com excelência no samba36 na cidade de Tóquio.
Outro ponto importante que o mito do estereótipo pode atingir é o
campo emocional, devido às pressões sociais e expectativas que podem ser
suscitadas, e o socioeconômico.
A dissincronia e o âmbito emocional vem sendo discutidos por autores
como Terrassier (1981) e Dabrowski (2016), os quais apresentam a impor-
tância do acompanhamento educacional e emocional para esses sujeitos.
Para o primeiro autor, a precocidade no desenvolvimento pode ser intensa
a ponto de o desenvolvimento emocional e o cognitivo não se alinharem, e,
assim, o sujeito poderá ser excelente na internalização de conhecimentos,
mas apresentar grande fragilidade emocional. Já o segundo autor, ao elabo-
rar a Teoria da Desintegração Positiva, destaca que o sujeito evolui em sua
personalidade e cresce mediante suas experiências e, por isso, se desfaz e se
refaz, indo para diferentes estágios evolutivos. Devido a isso, ele acrescenta
que há quem não consiga passar por esse processo e avançar.
Guenther (2021), por sua vez, sinaliza a preocupação com as condições
socioeconômicas, as quais se tornam obstáculos para sujeitos talentosos, in-
clusive em Música. Essa é uma área que exige recursos, pois as mensalidades

35 Assista ao vídeo Divas Negras da Música Clássica (canal AD Júnior). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=xMR9xV_BOaM. Acesso em: 10 fev. 2022.
36 Assista ao vídeo Tóquio – batucada brasileira no Japão (canal Sem Fio). Disponível em:
https://youtu.be/qA9p6w_4SuA. Acesso em: 10 fev. 2022.
108 | (Des)mitos da Educação Especial

e o investimento em livros e instrumentos musicais são de alto custo, e estes,


infelizmente, não estão presentes em todas as escolas, como mostra o es-
tudo de Koga e Tolon (2019). Em síntese, observa-se a equivocada ideia de
que a designação do talento é dar mais a quem já tem tudo. Na realidade,
vislumbra-se mediar o acesso e as oportunidades principalmente para aque-
les sujeitos talentosos em situação de vulnerabilidade social. Há quem pense
que determinados gêneros musicais não podem ser estudados por pessoas
de determinada etnia ou classe social, e, por isso, tem-se a preocupação
com os estereótipos associados às oportunidades e ao campo emocional.
De Gallagher (2000) a Renzulli (2018), comprovam-se os esforços na im-
plementação de programas que possam atender o maior número possível de
sujeitos talentosos, a fim de colaborar com o seu desenvolvimento. Também
se evidenciam, cientificamente, iniciativas brasileiras voltadas a talentosos,
conforme apontam Koga e Chacon (2017) e Guenther (2012, 2021), além de
programas como o Núcleo de Atividades de Altas Habilidades e Superdota-
ção (NAAHS), Centro para Desenvolvimento do Potencial e Talento (Cedet),
Instituto Rogério Sternberg, Ingeniun, Instituto Ismart, entre outras iniciati-
vas das Secretarias de Educação e particulares.
Embora nos últimos anos tenham surgido programas, decretos e legis-
lações, bem como políticas voltadas para os talentos, alguns programas
encerraram suas atividades por questões de gestão ou de recursos. Diante
desse contexto, é possível concluir que os esforços são ínfimos para um país
com uma dimensão continental como o Brasil (RANGNI; ROSSI; KOGA, 2021).
A falta de recursos e programas suficientes, bem como a resistência à
designação do talento não são observadas somente no Brasil. A esse res-
peito, Renzulli (2018) vem sinalizando tal dificuldade também nos Estados
Unidos. Se uma associação for feita entre esse fato e as reflexões de Foucault
(1995), pode-se inferir que designar o talento passa pela lógica capitalista,
a qual necessita de uma justificativa pragmática e que possibilite o controle
para que seja aceita. A ideia de desigualdade também é reforçada, quando
se pensa o talento (ROSSEAU, 2021). Diante disso, parece óbvio por que é
difícil conceber a hipótese de atendimento educacional especializado para
aqueles que têm talento, em específico o musical, pois aos olhos de muitos
se trata de privilegiar oportunidades para os que têm muito em detrimento
de outros.
Pode-se inferir que essas reflexões anteriormente realizadas evidenciam
o mito do talento como sinônimo de privilégio e/ou poder, e, talvez, este seja
Talento musical: evidências científicas e mitos | 109

o mito que mais afeta a identificação e as ações educativas para as pessoas


talentosas nas escolas brasileiras. A palavra talento carrega o significado de
algo valoroso e, associada ao sistema político e econômico capitalista, cuja
base tem a competitividade, individualidade e a relação de poder em jogo,
promove um rechaço da ideia de atendimento educacional especial a essas
pessoas talentosas em Música, desvalorizadas no Brasil em termos de es-
tudo, como se pode constatar nas pesquisas de Amato (2006), Fonterrada
(2008) e Koga e Tolon (2019).
Diante de tudo isso, por que designar talentos musicais em âmbito es-
colar no Brasil?
Ao longo da história da Música, observa-se que sempre houve algum
sujeito que se destacasse e rompesse com os desafios sociais e econômicos
em prol de sua arte. Nos dias atuais, há uma legislação e políticas que re-
conhecem a existência de pessoas talentosas em diferentes áreas do saber
e, também, enfatizam a importância do ensino de Música nas escolas. No
entanto, ao pensar sobre as palavras de Duarte (2013), ao mesmo tempo
que a sociedade capitalista produz condições necessárias para o desenvol-
vimento livre dos sujeitos, dando a eles acesso e oportunidades, antepõe-
-lhes barreiras sociais, econômicas e culturais. Dessa forma, a Música não é
presenciada nas escolas em geral, e há um grande desafio na designação e
no atendimento educacional de sujeitos talentosos musicalmente.
Mariz (2005) afirma que no passado foram descobertos incontáveis artis-
tas na Música erudita e popular brasileira. Atualmente a mídia está fazendo
esse papel de identificação, no entanto, sem qualquer perspectiva educa-
cional; ao contrário, buscam observar os ganhos que terão às custas desse
talento, ou seja, trata-se de exploração.
A seguir, sintetizam-se os mitos apresentados, sem esquecer que muitos
deles foram discutidos por Winner (1996).

Quadro 1 Síntese dos mitos relacionados ao talento musical.


Mitos Evidências científicas
Teplov (1966), Kirnarskaya (2009), Gordon (2015), Gagné e
McPherson (2016) e outros atribuem à evolução humana, à
melhoria genética, que dependem do impacto educacional
Dom
(meio social e interações mediadas) para se desenvolver, a ma-
nifestação da aptidão musical e talento, ou seja, não há nada de
sobrenatural ou religioso nesse processo aos olhos da ciência.
110 | (Des)mitos da Educação Especial

Quadro 1 Continuação...

Aquino et al. (2019), Criscuolo et al. (2019), Leipold, Klein e


Jäncke (2021), entre outros citados, não têm dúvidas quanto ao
impacto do treinamento, mas em seus estudos não há evidências
Treinamento
irrefutáveis que afirmem que apenas o treinamento e o desen-
volvimento sistemático sejam capazes de revelar um sujeito
talentoso.
A errônea ideia de que a nacionalidade ou povo determina o
desempenho ou o sucesso é algo perigoso, uma vez que as
evidências de Dobai e Hopkins (2021) mostraram que pode haver
Estereótipo
impactos emocionais consideráveis, bem como ações prede-
terminadas interferindo na escolha do sujeito sobre sua vida e
carreira.
A ideia de que a inteligência geral ou a acadêmica impacta o
talento musical não é inteiramente comprovada, embora haja
algumas evidências que inferem correlações. Os estudos de
Gardner (1993), Mithen (2002), Fernández, Cabrero e Garcia
Inteligência (2019), Knyazeva (2019), Beccacece et al. (2021) e outros citados
mostraram essas evidências da multiplicidade da inteligência e
a inter-relação que pode estabelecer com o talento, mas sem
haver uma determinação de casualidade entre a inteligência e o
talento.
Devido à magnitude do fenômeno, infere-se a errônea ideia de
que quem tem talento tem tudo. Os estudos de Terrassier (1981),
Dabrowski (2016), Tordjman, Costa e Schauder (2020) e outros
Talento como
supracitados apresentam os desafios emocionais e educacionais
sinônimo de
que sujeitos talentosos podem enfrentar. Tais demandas podem
privilégio/
ser desacreditadas devido à grande desigualdade social e de
poder
oportunidades que há no Brasil. Essa evidência pode levar à
ideia de privilégio e poder, tema discutido em Foucault (1995) e
Rousseau (2021).

Fonte: elaboração própria.

Por tudo que foi discutido, torna-se imprescindível a realização de mais


pesquisas empíricas voltadas para o estudo experimental da aptidão mu-
sical e talento. Sabe-se pouco sobre a filogênese, ontogênese e sociogê-
nese envolvendo o talento, bem como quais as interações dos elementos
constitutivos do desenvolvimento musical. As pesquisas realizadas até o mo-
mento revelam evidências de ordem genética ou biológica, mas também de
influência do meio cultural e do desenvolvimento sistemático de habilidades
musicais, assim como apontam a universalidade e interdisciplinaridade da
Música. Entretanto, o grau dessas contribuições e o percentual de colabora-
ção ainda são desconhecidos.
Talento musical: evidências científicas e mitos | 111

Conclusão
Os mitos, por vezes, podem dominar as esferas profissionais e científicas
em decorrência da complexidade ao se discutirem conceitos, como é o caso
do talento musical. A falta de leitura e aprofundamento na área, a pouca tro-
ca entre os estudiosos e a falta de informações adequadas, infelizmente, têm
reflexos para a sociedade, bem como a escassez de pesquisas experimentais
robustas ou qualitativas que analisem profundamente o assunto, o que aca-
ba colaborando para a propagação dos mitos. Os problemas enfrentados
pelas pesquisas, em termos de recursos, sobretudo na área de humanas,
tornam-se um terreno fértil para a desinformação e explicações instantâneas
oriundas, às vezes, do senso comum. Não se pode deixar de mencionar que
professores e famílias, muitas vezes, contam com informações originadas do
senso comum.
Outro fator importante é a conjuntura política, econômica, social e cul-
tural brasileira, a qual pode estabelecer barreiras ou situações substanciais,
nas quais os mitos podem ser utilizados como uma fuga das obrigações que
viabilizam o desenvolvimento educacional dos sujeitos talentosos e com a
finalidade de exploração, distribuição de recursos e controle.
A valorização da Música como uma área científica e artística, e não apenas
como entretenimento, deve ser refletida por gestores e educadores, como
também por pesquisadores para desenvolvimento de estudos consistentes.
Independentemente das contribuições biológicas de ordem evolutiva na
esfera genética, é preciso estar ciente da importância da vivência cultural
musical e da oportunidade de estudá-la a longo prazo. O estudo da Música
ocorre no coletivo e individualmente e requer planejamento e recursos. Es-
colas de Educação Básica e as especializadas em Música (conservatórios pú-
blicos e privados, projetos sociais de Música e outras instituições) deveriam
estabelecer parcerias e desenvolver ações colaborativas. Isso porque as áre-
as acadêmicas desenvolvem o cognitivo. Como menciona o pianista Nelson
Freire, em reportagem37 da Rede Globo em homenagem ao seu falecimento,
o médico cuida do corpo, o professor te educa e o artista alimenta o espírito,
o que é imprescindível para o processo de humanização e constituição do
sujeito artista.

37 Assista à reportagem que homenageia Nelson Freire, exibida pela Rede Globo. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=50iRyFwdHVk&t=395s. Acesso em: 12 fev.
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112 | (Des)mitos da Educação Especial

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7

TODO ALUNO COM TEA É


COMPETENTE EM MATEMÁTICA:
MITO OU VERDADE?
Alessandra Daniele Messali Picharillo
Sabrina David de Oliveira
Nassim Chamel Elias

Introdução

Em 2017, a Organização Pan-Americana de Saúde divulgou uma es-


timativa média mundial sobre a incidência do Transtorno do Espectro do
Autismo (TEA). Os dados previam que 1 em cada 160 crianças seria autista,
entretanto, destacavam que estudos mais criteriosos locais poderiam apre-
sentar números significativamente maiores. Corroborando essa ressalva, o
estudo-piloto de Paula et al. (2011), realizado em uma cidade do estado de
São Paulo, Brasil, estimou a ocorrência de TEA em 0,3% dos diagnósticos
de crianças com idade entre 7 e 12 anos. Portanto, acredita-se que apenas
com a mensuração do Censo que ocorrerá em 2022 se poderá obter um
número mais próximo da realidade. Os dados estatísticos publicados em
março de 2020 pelo Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC) do
governo dos Estados Unidos mostram uma prevalência do TEA em 1 a cada
54 crianças de 8 anos de idade, em 11 estados norte-americanos. Com base
nesses dados, nota-se um aumento de 0,6% para 1,8% das crianças com TEA
em três anos.
Pensando na expressividade da ocorrência de TEA, entende-se como
relevante o conhecimento das características desse transtorno do neurode-
senvolvimento. De acordo com a definição proposta na quinta versão do
118 | (Des)mitos da Educação Especial

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) (AMERI-


CAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014), esses indivíduos apresentam alte-
rações em duas grandes áreas: déficits na comunicação e na interação social
e comportamentos restritos e repetitivos. Esses sintomas estão presentes
desde o início da infância e limitam ou prejudicam o funcionamento diário,
entretanto, o prejuízo funcional irá variar de acordo com características do
indivíduo e seu ambiente (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
O documento mencionado enfatiza ainda que o TEA pode ocorrer com
ou sem comprometimento intelectual, com ou sem comprometimento da
linguagem e associado ou não a outros comprometimentos, que podem ser
médicos, genéticos ou outros tipos de transtornos do neurodesenvolvimen-
to (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
Considerando uma variação muito grande das características dos indi-
víduos dentro do espectro, conforme indicado por Gomes (2007), muitas
crianças apresentam ganhos no repertório geral de habilidades básicas,
tornando-se hábeis a aprender comportamentos mais complexos, como
aqueles necessários aos conteúdos acadêmicos (GOMES, 2007). Ainda há
os casos de dupla excepcionalidade entre TEA e Altas Habilidades/Super-
dotação (AH/Sd), nos quais o indivíduo pode apresentar bom desempenho
acadêmico, por exemplo, e também as características do TEA.
De todo modo, o bom desempenho acadêmico pode variar na diversi-
dade de disciplinas e áreas, ou seja, alunos podem ser excelentes em dis-
ciplinas da área de humanas e não apresentar o mesmo desempenho em
outras disciplinas. A partir dessa premissa, será que existem disciplinas que
são mais complexas ou, ainda, mais importantes? Será que todas as discipli-
nas são vistas da mesma forma por alunos e docentes? Seguindo esse ponto,
qual seria a relevância da disciplina de matemática?
A matemática ou, melhor dizendo, os conhecimentos matemáticos estão
presentes no dia a dia das pessoas, seja nas compras, na localização espacial
ou na identificação das datas no calendário. Portanto, uma pessoa que seja
privada total ou parcialmente desses conhecimentos pode ter dificuldades
de autonomia bem como na resolução de problemas da vida diária (ROSEN-
BLUM; HERZBERG, 2011).
Entretanto, não é incomum pessoas apresentarem aversão ou dificulda-
des na aquisição do repertório matemático. Estudos demonstram que um
percentual entre 5% e 7% de toda a população mundial enfrenta barreiras no
aprendizado desses conteúdos (Brankaer; ghesquière; de smedt, 2013). Esse
Todo aluno com TEA é competente em matemática: mito ou verdade? | 119

percentual salta para 67,5% se forem considerados alunos na faixa etária de


10 anos, segundo os resultados apresentados na análise realizada por Cruz,
Bergamaschi e Reis (2012).
Em contrapartida, há uma visão dominante de que alunos com TEA apre-
sentam facilidade e se destacam em matemática, com alta tendência a se
especializarem no campo de exatas, como matemática, física e engenharia
(Baron-Cohen, 2002). Assim, começaram a surgir estudos investigativos so-
bre a relação entre matemática e TEA.
Estes et al. (2011) apontam uma discrepância no desempenho de crian-
ças com TEA de alto funcionamento, apresentando desempenho em ma-
temática significativamente menor do que seu resultado em Quociente de
Inteligência (QI) e desempenho em matemática superior ao previsto em uma
escala real de QI.
Oswald et al. (2016) avaliaram o desempenho matemático de alunos com
TEA para verificar se o desempenho acima da média ou déficit matemático
estaria relacionado a quais aspectos cognitivos (raciocínio perceptivo, habili-
dade verbal e memória) e características clínicas (ansiedade). Participaram 27
adolescentes com TEA de alto funcionamento. Os resultados indicaram que
22% dos alunos apresentaram dificuldade na aprendizagem de matemática,
enquanto 4% apresentaram desempenho acima da média.
Titeca et al. (2015) avaliaram as pontuações nos domínios da matemática
de 121 crianças com TEA do 1º ao 4º ano do Ensino Fundamental. Os resul-
tados mostraram que não houve correlações significativas entre matemática
e nível do TEA (os níveis são leve, moderado e severo).
Diante do exposto, como será que os alunos com TEA se comportam na
aprendizagem dessa disciplina? Será que eles apresentam mais, menos ou
as mesmas dificuldades dos alunos com desenvolvimento típico?
O objetivo deste estudo foi verificar se o mito de que alunos com TEA
são muito competentes no desempenho matemático se sustenta a partir da
produção científica na área.

Método
Inicialmente, foi realizada uma busca para verificar se havia pesquisas que
avaliam o desempenho do repertório de matemática. A partir dessa busca,
verificou-se que o termo utilizado nas pesquisas de avaliação de matemática
foi “math assessment”. Dessa forma, foi determinado que a expressão de
120 | (Des)mitos da Educação Especial

busca, utilizada em todas as bases de dados, seria: (“math assessment” AND


“autism”).
Foram selecionadas quatro bases referenciais com resumos, a saber:
MEDLINE/PubMed, ERIC, Web of Science e PsycINFO. A MEDLINE/PubMed
é uma plataforma de busca da National Library of Medicine (NLM) em que
estão reunidos registros da MEDLINE e da PubMed e trata-se de uma das
fontes mais abrangentes de informações relacionadas à área da saúde. O
mesmo pode ser dito sobre a Educational Resources Information Center
(ERIC) com relação à área da educação, sobre a Web of Science no tocante
à área multidisciplinar e sobre a PsycINFO (American Psychological Associa-
tion) referente à área da Psicologia. Uma pesquisa realizada em uma única
base de dados não oferece cobertura completa, por isso foram escolhidas
quatro bases, para ter o maior alcance possível. E, mesmo que a recupera-
ção de trabalhos seja realizada por pesquisador experiente, esta pode ser
imperfeita, e dessa forma o processo foi descrito com o máximo de detalhes
possível.
A busca foi atemporal, realizada no mês de janeiro de 2022. Foram utili-
zados o gerenciamento de referências Zotero e o editor de planilhas Micro-
soft Excel. Após ter preenchido a expressão de busca, o retorno de artigos
em cada base de dados foi de: (I) 174 na base de dados PubMed, e foram
utilizados os critérios “Free full text”, “Randomized controlled trial” e “Clini-
cal trial” e selecionados 3 artigos; (II) 83 na base de dados Web of Science,
sendo utilizado o critério “artigos” e selecionados 72 artigos; (III) 24 na base
de dados Eric, em que foi utilizado o critério “Journal Articles”, sendo sele-
cionados 11 artigos; (IV) 85 na base de dados PsycINFO, sendo utilizado o
critério “Journal” e selecionados 65 artigos.
No total, foram encontrados 151 artigos, dos quais 17 foram excluídos
por serem duplicados, de acordo com o gerenciamento de referências Zote-
ro. Em seguida, o título e o resumo dos trabalhos foram lidos a fim de sele-
cionar todos os trabalhos que utilizavam os termos Autism, Autistic Disorder,
Autism Spectrum Disorders, Autistic Spectrum Disorder, Autistic Spectrum
Disorders, uma vez que o presente trabalho busca pesquisas que avaliam o
desempenho do repertório de matemática em indivíduos com TEA. Após
essa leitura, foram excluídos outros 70 artigos. Dos 64 artigos restantes, mais
um artigo foi eliminado por não ser revisado por pares. Os 63 resumos foram
lidos para verificar se cumpriam o critério de serem estudos de avaliação de
repertório ou, ao menos, de terem a avaliação de repertório como etapa de
Todo aluno com TEA é competente em matemática: mito ou verdade? | 121

procedimento, restando 18. Um foi eliminado por não estar disponível. Os


17 restantes foram lidos na íntegra. Após a leitura na íntegra, quatro artigos
foram excluídos. Dois destes não estavam relacionados com desempenho
da matemática. Um era de revisão, e o outro referia-se a uma pesquisa reali-
zada somente com crianças típicas. No total, 13 artigos foram incluídos para
análise de resultados e discussão (esses artigos estão marcados com um
asterisco (*) na lista de referências).

Resultados e discussão
Após passar por todos os critérios de triagem, foram selecionados 13
artigos para discussão. Nesses artigos, embora tenha sido utilizado o ter-
mo “math assessment” no processo de busca, foi observado que os termos
sobre matemática utilizados, em ordem decrescente, foram: desempenho
em matemática (7), habilidades matemáticas (4), matemática (3), tarefas de
matemática (1), domínios da matemática (1), preferência matemática (1) e
autoconceito de matemática (1). O número entre parênteses representa o
número de artigos em que a palavra apareceu, e houve artigo em que apa-
receu mais de uma palavra. Essa distribuição está representada na Figura 1
com o recurso de nuvem de palavras.

Figura 1 Nuvem de palavras.

Fonte: elaboração própria.

O resultado desta análise confirma que os artigos que serão discutidos


tinham como objetivo principal, geral ou específico, avaliar o repertório
122 | (Des)mitos da Educação Especial

matemático de alunos com TEA e ainda compreender como se dava o pro-


cesso de aprendizagem dessa disciplina. Em parte dos estudos essa avalia-
ção foi realizada em comparação com o processo de aprendizagem de outros
grupos de crianças, com desenvolvimento típico e/ou outras especificidades.
A análise visa responder às questões desta pesquisa, com base na lei-
tura na íntegra dos 13 artigos, que foram publicados no período de 2007
a 2021. Embora a seleção de artigos não tenha incluído data de corte, não
retornaram documentos anteriores a 2007, bem como houve ausência de
publicações em outros anos, como pode ser observado na Figura 2.
De acordo com as informações encontradas a partir dos critérios esta-
belecidos neste estudo, é possível perceber que houve uma baixa produção
sobre avaliação de repertório matemático e autismo, pois temos 13 artigos
distribuídos no período de 15 anos e ainda com falhas na periodicidade,
uma vez que não há publicação em todos os anos. Com relação à origem
do estudo, nove foram publicados nos Estados Unidos, um na Bélgica, e um
no Reino Unido. Em dois artigos não foi possível a identificação do local de
publicação.

Figura 2 Publicações por ano.

Fonte: elaboração própria.

Além disso, dos 13 artigos que serão discutidos, quatro deles (Jimenez;
kemmery, 2013; Knight; kuntz; brown, 2018; Kuo, 2016; Legge; debar; alber-
-morgan, 2010) descrevem a realização da avaliação de repertório como
parte do procedimento para o desenvolvimento de ensino. Os resultados
dos estudos que desenvolveram procedimentos de ensino demonstraram
a necessidade e os benefícios da implementação de planejamento que
Todo aluno com TEA é competente em matemática: mito ou verdade? | 123

vise apresentar tarefas mais assertivas, com enunciados claros e objetivos.


Isso demonstra que nem todos os alunos com TEA aprendem matemática
facilmente, o que exige cuidado na avaliação do repertório do aluno e de
como ele aprende. O uso de tecnologias digitais também apareceu nesses
estudos como uma ferramenta eficiente.
Outros dois artigos (Assouline; foley nicpon; dockery, 2012; Foley-Nicpon;
assouline; stinson, 2012) descrevem resultados obtidos com avaliações com-
parativas entre alunos com dupla excepcionalidade (TEA e AH/Sd) e alunos
com desenvolvimento típico e/ou com AH/Sd. Os resultados indicam que,
mesmo entre os alunos com dupla excepcionalidade, o bom desempenho
em matemática não é uma constante, apresentando variações significativas.
Para Assouline, Foley Nicpon e Dockery (2012), uma possível justificativa se-
ria o déficit de memória de trabalho, de velocidade de processamento ou de
ambos, presentes em alguns alunos com TEA, que são funções exigidas na
aprendizagem matemática, sobretudo no início da aprendizagem.
A faixa etária dos participantes, sejam dos estudos de avaliação ou de
ensino, variou entre 5 e 18 anos, com prevalência da faixa que compreende
os anos iniciais de escolarização, ou seja, dos 13 artigos 8 apresentaram da-
dos de participantes a partir de 5 anos. Reconhece-se a relevância da inves-
tigação desde o início da apresentação do conteúdo matemático, a fim de
identificar como o aprendizado evolui. De acordo com os resultados obtidos
por Titeca et al. (2015), os alunos com TEA apresentam maiores dificuldades
na aprendizagem matemática nos anos iniciais em relação aos seus pares.
Entretanto, essa diferença diminui ao longo da trajetória escolar, justificando
o acompanhamento longitudinal.
Ainda considerando a relevância da observação da aprendizagem mate-
mática desde o início da trajetória escolar, Lorena, Castro-Caneguim e Car-
mo (2013) destacam a importância do ensino e da manutenção de conteúdos
que facilitem a aquisição do repertório matemático. Também Sunde e Pind
(2016) observaram a importância de o ensino da matemática iniciar na infân-
cia com conteúdo mais simples e ir se tornando mais complexo ao longo do
tempo, sem deixar de avaliar e assegurar que o aprendizado esteja ocorren-
do. Para esses autores, lacunas podem se aglutinar com novos conteúdos e
tornar o aprendizado cada vez mais difícil.
Com relação ao gênero, em todos os artigos houve maioria de participan-
tes do sexo masculino, que representaram cerca de 60% do total de todos
os participantes. Essa diferença inclui os participantes com desenvolvimento
124 | (Des)mitos da Educação Especial

típico. Esse dado levanta o questionamento a respeito da relação matemá-


tica e gênero: será que homens chamam mais atenção ou se destacam mais
em matemática?
Outras variáveis foram investigadas na busca de compreender o que
pode determinar o bom ou baixo desempenho na aprendizagem matemá-
tica. Crump et al. (2013) realizaram um estudo que visava investigar se con-
dições de saúde crônicas poderiam interferir no desempenho escolar. Os
autores consideraram o TEA como uma condição crônica, assim como dia-
betes, problemas cardíacos, asma e outras. Concluíram que os alunos não
tinham o número de faltas aumentado em virtude do TEA, como acontecia
com as demais situações. Entretanto, esses alunos apresentaram um desem-
penho inferior nos testes de repertório matemático e repertório linguístico
em comparação a seus pares.
Para McDougal, Riby e Hanley (2020), um forte indicativo para um baixo
desempenho pode estar relacionado às fragilidades no comportamento de
atenção dividida. No estudo comparativo realizado por eles com crianças
com desenvolvimento típico e crianças com TEA, na faixa etária de 9 a 11
anos, após as avaliações, as crianças com TEA demonstraram dificuldades
na orientação de sua atenção na busca por informações para a resolução das
atividades e, consequentemente, tiveram um desempenho inferior. Os auto-
res concluem que existe forte correlação entre desempenho matemático e
atenção dividida, sendo mais significativa que variações de QI.
Considerando se os índices de QI poderiam ser preditivos para um bom
ou baixo desempenho escolar, Bullen et al. (2020) examinaram durante um
período de 30 meses o desempenho em matemática de crianças em idade
escolar com TEA, sintomas de transtorno de déficit de atenção/hiperativida-
de (TDAH) ou desenvolvimento típico (TD) e as associações entre habilida-
des cognitivas e de leitura com o desempenho em matemática em crianças
com TEA. As avaliações demonstraram que, apesar de o QI ser um fator
importante para a maioria das crianças, não foi considerado como impe-
ditivo apenas para o grupo de crianças com TEA. Segundo os autores, a
memória de trabalho apareceu como algo a ser observado, semelhante ao
resultado encontrado por Assouline, Foley Nicpon e Dockery (2012). Sendo
assim, concluem que o repertório de leitura, a memória de trabalho e a ca-
pacidade visuoespacial podem ser vistos como repertórios facilitadores da
aprendizagem matemática.
Todo aluno com TEA é competente em matemática: mito ou verdade? | 125

Outro aspecto investigado nos estudos encontrados foi a questão do


autoconceito acadêmico, que é definido por McCauley et al. (2018) como
a percepção das próprias habilidades acadêmicas. Esses autores desen-
volveram um estudo com o objetivo de verificar se haveria relação entre o
autoconceito e o desempenho escolar. Participaram do estudo adolescen-
tes com idade média de 13 anos, com desenvolvimento típico ou com TEA.
Os resultados indicaram que o autoconceito foi positivamente relacionado
com os desempenhos de matemática e de leitura para ambos os grupos.
Entretanto, os resultados mostraram que indivíduos com TEA apresentam
autoconceito matemático mais preciso, porém, não com leitura. Isso pode
ser devido ao fato de a avaliação da competência ser medida por respostas
objetivas, ou seja, resposta correta ou errada. O mesmo feedback não é
possível em leitura. Isso explica um autoconceito matemático menos preciso
em resolução de problemas. Concluindo, o autoconceito acadêmico pode
refletir o desempenho de indivíduos com TEA.
Dentre os estudos selecionados, dois deles tiveram como parte do obje-
tivo investigar diretamente se alunos com TEA apresentam maiores facilida-
des na aprendizagem de conteúdo matemático (Oswald et al., 2016; Titeca et
al., 2015). Ambos tiveram como participantes alunos com desenvolvimento
típico ou com TEA, com idade a partir de seis anos. Os resultados foram
semelhantes, demonstrando que as crianças com TEA apresentam diferen-
tes desempenhos, variando entre facilidades e dificuldades, ao longo da
trajetória escolar. Para Titeca et al. (2015), repertórios de linguagem e leitu-
ra são fundamentais para um bom desempenho matemático, uma vez que
problemas com enunciados mais complexos foram os que causaram maior
dificuldade. Já para Oswald et al. (2016), existe a necessidade de atenção
sobre o papel da ansiedade na capacidade de alunos com TEA na aprendi-
zagem matemática.
Por fim, com relação aos instrumentos e protocolos utilizados para men-
surar o repertório matemático dos alunos, não foi encontrado um padrão,
provavelmente pelo fato de o repertório ser investigado por perspectivas
diversas, ou seja, avaliando a partir do QI, considerando memória de traba-
lho, autoconceito, atenção dividida, entre outros. Mesmo assim, diante da
variedade de pontos de partida, pode-se inferir que todos os estudos con-
vergem para resultados que demonstram não haver facilidade ou destaque
no desempenho por parte dos alunos com TEA em relação ao repertório
matemático, concordando com o estudo de Baron-Cohen (2002).
126 | (Des)mitos da Educação Especial

A partir da leitura de todo o material selecionado, compreende-se que


alunos com TEA precisam, assim como demais grupos de alunos, de ava-
liação de repertório de habilidades existentes, para que seja realizado um
planejamento de ensino eficiente e se promova o aprendizado do conteúdo
matemático.

Considerações finais
Este estudo buscou verificar se o mito de que alunos com TEA são muito
competentes no desempenho matemático se sustenta a partir da produ-
ção científica na área. A partir dos resultados publicados em estudos sobre
avaliação matemática com alunos com TEA, foi possível ter uma visão geral
a respeito do desempenho matemático, analisando se esses alunos tinham
mais, menos ou as mesmas facilidades que os alunos com desenvolvimento
típico.
De maneira geral, os autores dos artigos selecionados relataram que o
desempenho matemático de alunos com TEA pode estar abaixo, acima ou
na média do esperado, de maneira análoga aos alunos com desenvolvimen-
to típico ou com outras comorbidades. Entretanto, quando houve déficit na
aprendizagem, foram indicados caminhos a serem observados. Por exemplo,
o cuidado para não elaborar enunciados dúbios, redundantes, de maneira
que sejam mais facilmente compreendidos. Isso porque, em alguns casos,
o erro aparece pela dificuldade de interpretação do problema, e não pela
dificuldade com o conteúdo matemático propriamente dito. Isso condiz com
a proposta do DSM-5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014) de
que pessoas com TEA apresentam déficits em repertórios de linguagem.
Nesse sentido, embora não tenha sido abordada diretamente, a dificul-
dade de linguagem, que pode ser uma característica comum aos alunos com
TEA, pode ser a causadora da dificuldade de leitura e interpretação dos
problemas matemáticos. Com isso, sugere-se que a linguagem também seja
avaliada e que se realizem procedimentos que auxiliem seu desenvolvimento.
A atenção dividida, a memória de trabalho e a velocidade de processa-
mento foram aspectos destacados como possíveis barreiras ao aprendizado
matemático, necessitando estratégias que os avaliem e procedimentos que
os desenvolvam, a fim de não prejudicarem a trajetória dos alunos com TEA.
Novamente, essas condições são necessárias para alunos que não tenham
Todo aluno com TEA é competente em matemática: mito ou verdade? | 127

o diagnóstico de TEA para o bom funcionamento diário e para a aprendiza-


gem acadêmica.
Enfim, embora no senso comum possa haver a ideia de que todo aluno
com TEA, principalmente aqueles com nível leve e menos comprometimen-
tos, seja muito competente em matemática, os estudos demonstraram que
isso não é realidade e que é necessária atenção especial no planejamento
dos procedimentos de avaliação e de ensino para muitos desses alunos.

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8

LIBRAS COMO SISTEMA DE


COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA:
O CASO DE UMA CRIANÇA COM
DISPRAXIA VERBAL
Sabrina Amanda Cordeiro
Adriana Fernandes Barroso
Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

Introdução

Segundo Vygotsky (1989), o desenvolvimento da fala segue o curso das


operações mentais, ocorrendo em estágios, sendo o mais inicial ou primitivo
aquele que corresponde ao pensamento pré-verbal e à fala pré-intelectual,
seguido do estágio da psicologia ingênua, em que emerge o exercício da
inteligência prática e a criança vai interagir com seu próprio corpo e com
os objetos e pessoas à sua volta. Mais adiante, comparece o estágio das
operações com signos exteriores utilizados como auxiliares na solução de
problemas, caracterizado pela fala egocêntrica, e por último há o estágio
do crescimento interior, caracterizando-se pela interiorização das operações
externas, quando a criança passa a operar com relações intrínsecas e signos
internalizados.
Nesse sentido, ao estudar esses estágios, Vygotsky (1989) conclui que,
conforme o desenvolvimento das crianças ocorre, elas dirigem a sua fala
para comunicação específica com outros sujeitos, além de começarem a
dirigir a fala para si, desenvolvendo a internalização de palavras e a constitui-
ção da fala interior. Assim, o pensamento verbal norteia o comportamento
130 | (Des)mitos da Educação Especial

e a cognição, o desenvolvimento e funcionamento psicológico humano e a


construção do conhecimento. Sempre que a criança é privada da fala, seja
por não ouvir, seja por impossibilidade articulatória, seu desenvolvimento
pode ficar muito prejudicado, se ela não tiver uma via alternativa de comuni-
cação, uma língua na qual apoie a estruturação de seu pensamento.
A fala, em sua condição mais usual (emissão oral de sons), é considerada
uma função complexa, produto de programação do sistema nervoso cen-
tral, coordenada por processos fisiológicos que partem da organização de
conceitos, a formulação e expressão simbólica, para a programação do ato
motor até a própria produção motora da fala (GIANNECCHINI; FERNANDES;
MAXIMINO, 2016).
A produção correta dos sons da fala necessita de articulações, habilida-
des motoras, precisão e coordenação de movimentos estomatognáticos.38
Farias, Ávila e Vieira (2006), fazendo ampla revisão de literatura, indicam que
fatores genéticos, ambientais ou funcionais podem influenciar no desenvol-
vimento estomatognático, favorecendo características como a influência de
pontos articulatórios em relação à posição dos dentes, mobilidade da língua,
lábios, bochechas e mandíbula, além do espaço intraoral adequado para a
articulação fonêmica e ressonância. No início da infância, os movimentos
indiferenciados, assim como os movimentos de mandíbula, língua e lábios
passam por modificações e começam a ser refinados e diferenciados confor-
me o desenvolvimento. Tais processos são essenciais para desenvolver níveis
elevados de coordenação e precisão articulatória, garantindo, assim, uma
comunicação oral efetiva. Esses processos ocorrem nos primeiros anos de
vida até depois dos seis anos de idade e são fundamentais para a aquisição
de sons da fala. “O aumento da precisão dos movimentos, o desenvolvi-
mento das capacidades lexical e cognitiva e das capacidades receptiva e de
autorregulação resultam em um sistema de fala inteligível” (FARIAS; ÁVILA;
VIEIRA, 2006, p. 268).
A sequência dos movimentos necessários para a fala é chamada de
praxia verbal. De acordo com Giannecchini, Fernandes e Maximino (2016), a
palavra “praxia” refere-se à realização de uma ação, caracterizando-se como

38 O Aparelho Estomatognático é uma entidade fisiológica, funcional, perfeitamente


definida e integrada por um conjunto heterogêneo de órgãos e tecidos, cuja biologia
e fisiopatologia são absolutamente interdependentes, envolvidos nos atos funcionais
como fala, mastigação e deglutição dos alimentos e nos atos parafuncionais como aper-
tamento dentário e bruxismo (FERNANDES NETO, 2006).
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 131

um processo neurológico que organiza, planeja e executa ações motoras de


forma eficiente. A capacidade da praxia verbal, segundo Brabo e Schiefer
(2009, p. 544), se dá pela

sequencialização das sílabas nas palavras, sem hesitações, e depende


do amadurecimento da zona pré-motora da linguagem e suas conexões,
o que ocorre em torno dos 2 anos, quando a criança emite palavras e
constrói frases agramaticais.

No processo de desenvolvimento, a criança passa por etapas de refina-


mento do controle motor oral que influenciam a aquisição de sons da fala.
“Quando este refinamento não ocorre, a produção da fala torna-se compro-
metida, podendo surgir a suspeita de uma desordem práxica na infância”
(SOUZA; PAYÃO; COSTA, 2009, p. 76). Tal desordem práxica recebe diferen-
tes nomes: dispraxia verbal, apraxia verbal do desenvolvimento ou apraxia
da fala na infância, e neste estudo será utilizada a denominação dispraxia
verbal (FERNANDEZ; MÉRIDA, 2005).
A palavra dispraxia pode ser definida como uma disfunção motora neu-
rológica ou um distúrbio do desenvolvimento de coordenação, impedindo
o cérebro de exercer funções motoras de forma correta. Isso se dá devido à
falta de estimulação necessária ou a alguma deficiência que tenha impedido
o desenvolvimento da motricidade (GIANNECCHINI; FERNANDES; MAXI-
MINO 2016). Segundo Strand (2007), a prevalência da dispraxia verbal é de
1 ou 2 a cada 1.000 crianças, e a proporção entre meninas e meninos é de
1:9, respectivamente. Acredita-se que dentre a população pré-escolar há 5%
de crianças com dispraxia verbal, enquanto na população como um todo a
desordem representa 0,125%.
A dispraxia verbal é descrita como uma desordem de programação mo-
tora da fala. A criança apresenta duas características específicas em relação
aos seus erros referentes à fala: os erros diferenciam-se daqueles presentes
em crianças com atraso no desenvolvimento da fala e se aproximam dos
erros de adultos diagnosticados com apraxia adquirida (STRAND, 2007). As
principais características apresentadas por uma criança com dispraxia verbal
são: o uso excessivo de um som, podendo se referir a uma articulação favo-
rita; limitação dos sons da fala, consoantes e vogais; discurso ininteligível;
produção inconsistente de fala; quebra no sequenciamento de sons em pa-
lavras, particularmente à medida que o comprimento das palavras aumenta;
132 | (Des)mitos da Educação Especial

dificuldades no volume, densidade e qualidade da voz; e dificuldades prosó-


dicas que afetam taxa, ritmo, estresse, entonação.
Além dessas características, o sujeito com quadro de dispraxia verbal
pode apresentar problemas relacionados com o vozeamento e a prosódia,
com a coordenação de alguns pontos do trato vocal ou com o controle da
nasalidade. É comum ainda que a dispraxia verbal em crianças seja  con-
fundida com quadros de desvios fonológicos ou atrasos de linguagem, em
função da grande quantidade de características envolvidas (SOUZA; PAYÃO;
COSTA, 2009).
A dispraxia verbal em crianças

1. Pode estar associada à etiologia neurológica conhecida (doença in-


trauterina), infecções e trauma. 
2. Ocorre como sinal primário ou secundário em crianças com desordens
neurocomportamentais complexas – genético, metabólico. 
3. [Pode] Não estar associada a qualquer desordem neurológica conhe-
cida ou neurocomportamental complexa, mas associada a uma alteração
dos sons da fala de origem neurogênica idiopática  (SOUZA; PAYÃO;
COSTA, 2009, p. 76).

Segundo Payão et al. (2012), os diagnósticos de dispraxia podem ser


feitos por dois marcadores que auxiliam na identificação dos quadros pre-
sentes em crianças e ajudam a diferenciar a dispraxia verbal de outros tipos
de distúrbios de comunicação:

O primeiro é o contraste entre a execução voluntária e involuntária da


fala. Quando se solicita que um paciente apráxico fale sequências au-
tomáticas, como contar numerais, ele articula sem esforço ou erros. No
entanto, quando o mesmo paciente está sob teste e é solicitado a emitir
palavras, não consegue produzi-las adequadamente. A segunda carac-
terística diagnóstica é a variabilidade de erros. Os erros que incidem
em uma mesma palavra apresentam grande variação de uma tentativa
para outra e, frequentemente, mostram aproximação com a palavra real
(PAYÃO et al., 2012, p. 26).

Com relação aos objetivos de tratamento das dispraxias verbais, a Ame-


rican Speech and Hearing Association (ASHA) destaca a facilitação das ha-
bilidades linguísticas e comunicação global, assim como a inteligibilidade
da fala, usando, quando necessário, formas suplementares e alternativas de
comunicação (ASHA, 2007).
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 133

Compreende-se que pessoas com necessidades complexas de comuni-


cação são

aquelas que, devido a uma ampla gama de causas físicas, sensoriais e


ambientais, apresentam restrições e limitações em suas habilidades co-
municativas que interferem diretamente na sua capacidade de participar
de forma independente na sociedade (RODRIGUES et al., 2016, p. 696).

Na literatura internacional a comunicação alternativa e complementar


(CAC) é designada como Augmentative and Alternative Communication
(AAC). No Brasil, Cesa e Mota (2017, p. 530) mencionam que

A própria diversidade de nôminas no Brasil (CSA, Comunicação Alter-


nativa, Comunicação Ampliada, Comunicação Alternativa e Ampliada,
Comunicação Aumentativa e Alternativa, Comunicação Alternativa e Fa-
cilitadora, dentre outras) para uma mesma área do conhecimento sinaliza
o processo de expansão, entretanto carente ainda de uma terminologia
brasileira unificada.

Manzini e Deliberato (2004) apontam para a discussão acerca da termi-


nologia “comunicação alternativa”, que pode sugerir a ideia de que a fala
será substituída. Alguns autores acreditam que uma nomenclatura mais ade-
quada se referiria a uma comunicação de suporte ou apoio à fala, tais como
“comunicação suplementar” ou “comunicação ampliada”. “Nesse sentido,
é sempre bom lembrar que, ao utilizarmos uma outra forma para comunica-
ção, não queremos substituir a fala, mas contribuir para que a comunicação
ocorra” (MANZINI; DELIBERATO, 2004, p. 3).
Desse modo, a CAC é descrita por Rodrigues et al. (2016, p. 696) como
uma “possibilidade de promover ou facilitar a comunicação de pessoas com
necessidades complexas de comunicação”. Chun e Moreira (1997, p. 149) de-
finem esse tipo de comunicação

Como todas as formas de comunicação que contemple, suplemente,


substitua ou apoie a fala. Dirige-se a cobrir as necessidades expressivas e
aumentar a interação comunicativa tanto dos indivíduos que apresentam
elevado nível de compreensão da linguagem oral, mas não possuem um
meio adequado de expressão, como aqueles outros cujas alterações
impeçam de adquirir fala como veículo de expressão e ao mesmo tempo
a interfiram na compreensão da linguagem, incluso requisitos cognitivos
e sociais.
134 | (Des)mitos da Educação Especial

Assim, o termo comunicação alternativa e complementar é utilizado na


área de Educação Especial para definir procedimentos e tecnologias utili-
zados por pessoas que apresentam alguma doença, deficiência ou outras
situações que estejam relacionadas com o impedimento da comunicação.
“Pensando, então, na interação entre professor e aluno com necessidades
especiais de comunicação, os sistemas alternativos de comunicação são um
meio eficaz para garantir a inclusão desses alunos” (MANZINI; DELIBERATO,
2004, p. 4).
Desse modo, pode-se entender a comunicação complementar como a
utilização de outro meio de comunicação para complementar as limitações
que o indivíduo apresenta em relação à fala, sem substituí-la, diferentemen-
te da comunicação alternativa, em que se utilizam outros meios, ao invés da
fala, para se comunicar (RODRIGUES et al., 2016). A CAC também pode ser
considerada um trabalho multimodal, utilizando, estimulando e trabalhando
todas as capacidades do indivíduo, como fala, vocalização, gestos, sinais e
auxiliadores de comunicação para que as necessidades básicas, vontades e
opiniões sejam expressas (CHUN; MOREIRA, 1997).
Os indivíduos que utilizam a CAC têm, geralmente, diagnósticos médi-
cos de paralisia cerebral, afasias, autismo, dispraxias, disartrias, entre outros
(DUARTE, 2005). Nesse sentido, é importante a participação de profissionais
como fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos
e professores, visando as avaliações e adaptações necessárias dos recursos
da comunicação alternativa e complementar (SILVA, 2013).
Romski e Sevcik (2005) mencionam que muitas vezes os mitos sobre o
uso da CAC limitam esse trabalho, prejudicando os serviços e suportes des-
sa área. Os mitos mais comuns são de que a CAC retarda ou interrompe o
desenvolvimento da linguagem, de que o uso da CAC deve ser o último re-
curso utilizado no trabalho de intervenção, de que já uma idade mínima para
a criança se beneficiar desse tipo de comunicação, em idades mais tardias. 
Já Deliberato et al. (2006) dizem que, no âmbito escolar, os recursos de
CAC colaboram com a inserção de alunos com deficiência e necessidades
complexas de comunicação em diferentes atividades pedagógicas, contri-
buindo com o processo de aquisição de linguagem e competência comuni-
cativa, assim como com o processo de ensino e aprendizagem, de forma que
não devem ser postergados. 
Porém, no ambiente escolar, podem acontecer outras formas de comu-
nicação, não apoiadas no álbum de comunicação – muito frequente na CAC,
nesse artefato é disposto o sistema de comunicação, podendo ser feito de
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 135

materiais simples (cadernos, álbuns, livros, fichários tipo pasta-arquivo) e


sendo possível expor letras, palavras, figuras, símbolos, números (ALENCAR,
2002) –, devido à inexperiência dos professores e colegas de classe. Isso
pode acarretar o desinteresse do aluno não verbal em interagir com seus
colegas e professores, isolando-se de atividades de experiências interativas,
dificultando sua socialização e trocas de conhecimento, podendo interferir
em seu aprendizado (MORESCHI, 2012).
É necessário que haja uma avaliação por parte do professor juntamente
a profissionais da saúde, à escola e à família, estabelecendo as potencialida-
des do aluno e identificando a sua comunicação. Nesse sentido, Deliberato
et al. (2006, p. 894) explicam que

O sistema de comunicação selecionado vai ser mais eficiente no momen-


to em que os profissionais estiverem atentos às diferentes possibilidades
expressivas já utilizadas pelos sujeitos sem oralidade: gestos, linguagem
de sinais, vocalizações, expressões faciais. Desta forma, poder-se-ia va-
lorizar o potencial já existente para ampliar e inserir outros recursos que
possibilitem maior participação do aluno com deficiência sem oralidade
nas diferentes situações.

Para delinear o sistema de comunicação utilizado pelo aluno, devem ser


considerados meios que favoreçam suas condições, como o sistema que
será utilizado, o que irá compor esse sistema (fotografias, figuras, desenhos,
sistemas gestuais) e as situações que envolvem o estudante, seus desejos,
características físicas e psicomotoras, assim como o contexto em que está
inserido (MANZINI; DELIBERATO, 2004). Além disso, é necessário considerar:

• Como o aluno se comunica, ou seja, ele vocaliza, utiliza gestos, olha-


res, expressões faciais etc.
• Com quem ele se comunica?
• O que ele comunica?
• E em quais situações?
• Quais são suas habilidades visuais e auditivas?
• Qual a sua atitude frente à comunicação?
• Quais são as habilidades motoras? (função global e fina, mobilidade,
postura etc.).
• Quais os recursos já utilizados para a comunicação?
• Quais são os parceiros de comunicação?
• Qual a rotina do aluno?
• Quais são os centros de interesse?
• Quais as tarefas a serem realizadas (DELIBERATO, 2007, p. 373).
136 | (Des)mitos da Educação Especial

Ademais, Deliberato (2007, p. 375) destaca a importância do cuidado no


momento de selecionar estratégias para o uso de CAC, visando promover
a utilização dos materiais em um ambiente o “mais natural possível”, com
a finalidade de proporcionar para o aluno maior funcionalidade do recurso
e determinar a atenção em relação ao tempo em que os usuários das CAC
demonstram estar atentos e também cansados nas atividades.
Para Manzini e Deliberato (2004), a CAC pode ser dividida em duas cate-
gorias. A primeira é a comunicação apoiada, referente às formas de comu-
nicação que “possuem expressão linguística na forma física e fora do corpo
do usuário” (MANZINI; DELIBERATO, 2004, p. 6), usando recursos adaptados
como sistemas computadorizados, pranchas de comunicação, entre outros.
Em alguns casos, usuários de comunicação apoiada vão necessitar da ajuda
de outras pessoas, seja para fazer o manuseio dos materiais confecciona-
dos, para selecionar e indicar estímulos ou apontar para figuras e ilustrações
necessárias que estabelecem a comunicação. Certos usuários conseguem
os estímulos por meio da língua ou olhar, necessitando da ajuda de outras
pessoas para virar páginas ou pegar pranchas de comunicação. Nessas situ-
ações, no âmbito escolar, quem auxilia os alunos muitas vezes é o professor.
A segunda categoria refere-se à comunicação não apoiada, sendo descrita
da seguinte maneira:

A comunicação não apoiada englobaria as expressões próprias daquela


pessoa, tais como os sinais manuais, expressões faciais, língua de sinais,
movimentos corporais, gestos, piscar de olhos para indicar “sim” ou
“não”. Esses são recursos da própria pessoa. As expressões são total-
mente produzidas pelos usuários, ou seja, ela é realizada por meio das
ações que o próprio aluno pode produzir, sem o auxílio de outra pessoa
ou de equipamentos (MANZINI; DELIBERATO, 2004, p. 6).

Sobre a comunicação não apoiada, destaca-se o uso da língua de sinais,


que, mesmo necessitando de habilidades motoras e tendo seu uso limitado,
se configura como uma possibilidade comunicativa importante para o aluno
com necessidades complexas de comunicação que tem possibilidades mo-
toras corporais íntegras, pois estabelece a comunicação face a face deste
com aqueles em seu contexto (MANZINI; DELIBERATO, 2004). É importante
considerar que, “por mais que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) seja usada
e reconhecida como língua na comunidade surda, seu uso para outras defici-
ências já comprovou seus benefícios” (SALES; ANTONIO, 2014, p. 7).
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 137

Para Glennen e DeCoste (1997), a língua de sinais pode ser considera-


da um componente do sistema de comunicação alternativa e complemen-
tar  multimodal,39 assim como pode apresentar um potencial expressivo,
oferecendo condições para uma comunicação funcional e eficaz. Se o sinal e
a fala forem apresentados simultaneamente, a assimilação pode contribuir e
facilitar a aquisição da fala, no caso de alunos que ouvem. Após determinar
que o uso da língua de sinais será a forma mais efetiva de CAC para o sujeito
com dificuldade de comunicação, é necessário compreender que o uso des-
se recurso não impedirá o desenvolvimento da linguagem oral. Além disso,
o uso da língua de sinais como componente de um sistema de CAC será
mais eficaz se a família, a equipe escolar, terapeutas e outros profissionais
envolvidos forem consistentes em seu uso (GLENNEN; DECOSTE, 1997).
Uma desvantagem consiste no fato de que, em certos ambientes (edu-
cacionais, de trabalho ou comunitários), o sujeito pode não encontrar outras
pessoas que saibam ou compreendam a língua de sinais. Esse problema
pode ser amenizado por meio da implementação de programas de capa-
citação para aqueles que convivem ou frequentam os mesmos lugares que
a pessoa que utiliza essa comunicação alternativa. Já como vantagens se
apresentam a portabilidade desse recurso, estando sempre disponível para
ser utilizado em diferentes ambientes, onde o usuário desejar, e, principal-
mente, o fato de a língua de sinais ser uma língua completa, apresentando
gramática própria e funcionamento linguístico pleno, diferentemente de um
sistema codificado de comunicação40 (GLENNEN; DECOSTE, 1997).
A ASHA (2010) destaca que a introdução da língua de sinais como siste-
ma de CAC é considerada uma comunicação não apoiada, sendo necessário
o envolvimento da equipe multidisciplinar que acompanha o indivíduo. Para
alguns sujeitos a língua de sinais pode se configurar como passo importan-
te para o desenvolvimento posterior da fala, não havendo indícios de que
a língua de sinais iniba o desenvolvimento da fala (MORALES, 2005; VON
TETZCHNER et al., 2005). E, ainda, afirma-se que, se a língua de sinais for se-
lecionada como um meio de comunicação alternativa, é importante que os
parceiros de comunicação do sujeito também conheçam a língua de sinais

39 Para Friche et al. (2015), a comunicação multimodal refere-se ao uso da comunicação


alternativa e complementar integrando todos os recursos de comunicação organizados
de forma personalizada.
40 Os sistemas de comunicação alternativa como o PCS e o BLISS são códigos, ou seja,
representações da língua, fazendo com que tenham maiores restrições naquilo que
podem comunicar quando comparados com uma língua.
138 | (Des)mitos da Educação Especial

para poder interagir por meio dos sinais, assim como ter o auxílio de uma
equipe envolvendo profissionais da saúde, educadores e a família, visando o
desenvolvimento e o uso dessa língua ao longo do tempo.
É importante considerar que cada forma de comunicação demanda tem-
po e recursos cognitivos. No caso da língua de sinais, é importante que o
usuário produza os gestos/movimentos (manuais e não manuais) de cada si-
nal (ASHA, 2007). Ou seja, o usuário precisa ter funções motoras preservadas
que permitam que ele se expresse na língua.
No Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (Libras), reconhecida pela Lei nº
10.436, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002), é definida em um parágrafo
único:

Entende-se como Língua Brasileira de Sinais a forma de comunicação e


expressão em que o sistema linguístico de natureza visualmotora, com
estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmis-
são de ideias e fatos oriundos de comunidades surdas do Brasil (BRASIL,
2002, n. p.).

A Libras tem sua origem e tradição ligada às comunidades surdas, assim


como outras línguas de sinais em diferentes países. Contudo, seu uso e seus
benefícios não precisam ficar restritos a esse público. O Decreto nº 5.626, de
22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei 10.436/2002, visa o acesso
e a permanência dos alunos surdos na escola, garantindo a inclusão da Li-
bras como disciplina curricular e a formação e certificação de professores,
instrutores, tradutores/intérpretes de Libras, assim como a organização da
educação bilíngue na Educação Básica e no Ensino Superior (BRASIL, 2005).
O Decreto 5.626/05 ainda orienta que a educação dos surdos deve ocor-
rer por meio da organização de escolas e classes de educação bilíngue na
Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, sob a respon-
sabilidade de professores bilíngues. São classes cuja língua de instrução é
a Libras, chamadas de “sala língua de instrução Libras”. Nelas, o ensino e a
construção conceitual se dão por meio da Libras. Indaga-se se uma criança
com severa dispraxia verbal pode se beneficiar dessa língua para sua comu-
nicação e aprendizagem. Nesse sentido, este estudo objetiva investigar o
uso da Libras como sistema de CAC em uma criança ouvinte com dispraxia
verbal, inserida em uma classe multisseriada, sala língua de instrução Libras,
participante de um Programa Educacional de Ensino Bilíngue para surdos.
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 139

Aspectos metodológicos
Esta pesquisa caracteriza-se metodologicamente como qualitativa, em
um desenho de estudo de caso, que se caracteriza como uma importante
estratégia para pesquisas em ciências humanas, permitindo aprofundamen-
to por parte do pesquisador no fato estudado, favorecendo e englobando
acontecimentos da vida real (YIN, 2005). Justifica-se ainda a pesquisa pela
escassez de estudos sobre o uso da Libras como sistema de comunicação
alternativa, proporcionando a divulgação do assunto.
O projeto de pesquisa foi aprovado por comitê de ética.41 Participaram
da pesquisa três pessoas: um aluno de oito anos com diagnóstico de dis-
praxia verbal, frequentando o terceiro ano do Ensino Fundamental, inserido
em uma classe multisseriada com oito alunos surdos usuários de Libras, sala
língua de instrução Libras destinada ao Programa Educacional de Ensino
Bilíngue, em uma escola municipal de um município de médio porte do in-
terior do estado de São Paulo, tida como unidade polo para a educação
inclusiva bilíngue de surdos; uma professora bilíngue regente da sala língua
de instrução Libras descrita; e uma coordenadora do referido Programa
Educacional de Ensino Bilíngue. A fim de garantir o anonimato dos partici-
pantes, o aluno será identificado como Rui, a coordenadora como Célia, e a
professora como Lia.
Os envolvidos foram convidados a participar de entrevista semiestrutu-
rada, descrita como uma entrevista que parte de questionamentos “apoia-
dos em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida,
oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão
surgindo à medida que se recebem as respostas do informante” (TRIVIÑOS,
1987, p. 146). Para cada participante foi elaborado um roteiro de entrevista
semiestruturada específico. A entrevista com a professora visou compreen-
der como foi o ingresso do aluno na sala língua de instrução Libras, como é
o uso da Libras e o seu desenvolvimento escolar. A entrevista com a coor-
denadora visou entender quem sugeriu e como foi o ingresso do aluno no
Programa Educacional de Ensino Bilíngue, assim como as principais facilida-
des e dificuldades no trabalho com o aluno. A entrevista com o aluno visou
compreender suas vivências e suas relações no ambiente escolar.

41 Comitê de ética em pesquisa com seres humanos da Universidade Federal de São Car-
los (UFSCar), conforme parecer nº CAAE: 58829016.2.0000.5504.
140 | (Des)mitos da Educação Especial

Após a realização das entrevistas, o material foi transcrito, e análises qua-


litativas foram elaboradas, com a organização em subcategorias temáticas,
sendo elas: i) o uso da Libras como sistema CAC; e ii) desenvolvimento esco-
lar considerando o uso da Libras como sistema de CAC.

Sobre o uso da Libras como sistema de comunicação alternativa e


complementar
O presente tópico tem como foco analisar a Libras sendo usada como
sistema de CAC para um aluno ouvinte com dispraxia verbal e a concepção
das pessoas envolvidas nesse trabalho.
Ao ser perguntada como o caso de Rui chegou ao seu conhecimento e
como foi sugerido o ingresso do aluno no projeto bilíngue, Célia diz que ini-
cialmente houve um contato por parte da coordenadora da escola onde Rui
estudava anteriormente explicando a situação do aluno e perguntando se a
Língua Brasileira de Sinais poderia ajudá-lo, considerando que ele tinha mui-
tas dificuldades de comunicação que prejudicavam seu rendimento escolar.
A família do aluno foi convidada para uma visita à escola. Foi então rea-
lizada uma entrevista para melhor compreender as dificuldades e possibili-
dades de Rui. Além disso, foram feitos encaminhamentos para avaliações no
campo da saúde, para maior clareza das necessidades dos alunos. Isso pode
ser identificado na fala a seguir:

encaminhamos ele para algumas avaliações médicas que ele ainda não
tinha feito, principalmente as mais neurológicas, que permitiram a gen-
te descobrir a síndrome que ele tinha, e a gente apostou com a família
nessa possibilidade, principalmente visando a oportunidade de ele con-
seguir se expressar pela Língua Brasileira de Sinais, porque a dificuldade
articulatória dele é muito acentuada (relato de Célia).

Além da sondagem educacional, da avaliação feita pela escola e do


encaminhamento médico, Célia mencionou que o aluno também foi enca-
minhado para um fonoaudiólogo, visando obter maior orientação sobre a
pertinência do uso da Língua Brasileira de Sinais para esse aluno. Deliberato
et al. (2006) enfatizam a importância da avaliação feita em conjunto, entre
a escola, profissionais da saúde e a família, visando estabelecer as poten-
cialidades do aluno, definindo o sistema de comunicação alternativa mais
efetivo.
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 141

Com relação à inserção do aluno na sala língua de instrução Libras, se ele


apresentou dificuldades, a professora Lia enfatiza:

Não. Eu lembro que foi até o contrário. Tenho o sentimento de que ele
se encontrou aqui na sala. Quando a gente se sentou com ele, explicou
a razão de ele estar vindo pra cá, aí a gente tentava perguntar da outra
escola, se ele conseguia acompanhar lá, se ele tinha amigos, e parecia
que ele era isolado na outra escola, pelos relatos que ele tentava passar.
Pra nós ele se encontrou aqui. Ele foi super bem acolhido (relato de Lia).

Ainda nesse sentido, a coordenadora Célia também afirma que, em sua


percepção, Rui se sente bem e acolhido na sala. Além disso, ela menciona
que a motivação para estar ali é poder aprender, se comunicar com os co-
legas, a oportunidade que ele encontrou em fazer amigos e principalmente
poder se expressar. Ao relatar que Rui vivia certo isolamento na escola ante-
rior, considera que na escola atual barreiras foram superadas, favorecendo
sua adaptação, fazendo, consequentemente, com que ele se sinta mais po-
tente em fazer amigos, aprender e se desenvolver.
Pode-se dizer que a motivação e participação do aluno no ambiente
escolar se dão devido à possibilidade de se expressar e à segurança que
a Língua Brasileira de Sinais lhe confere. Para Vygotsky (1989), a linguagem
não é apenas um sistema de expressão do conhecimento adquirido pela
criança. Pela relação fundamental entre pensamento e linguagem, que se
entrelaçam exatamente nas experiências de compreender e se expressar em
uma língua, a linguagem torna-se essencial para a formação do pensamento,
desenvolvendo as funções mentais superiores e favorecendo, consequente-
mente, o desenvolvimento como um todo (VYGOTSKY, 1989).
Com relação à percepção de Lia e Célia sobre o aluno, elas se questionam:

porque ele chegou com muita defasagem, com muita, muita e muita,
de não saber coisas básicas, o que é muito estranho por ele ser ouvinte,
coisa que estando na sala bilíngue ajudou muito ele. Então não é só a
questão da fala, né? Ele ouve, mas só a questão do ouvir não foi suficien-
te para ele aprender a escrever ou aprender outras coisas, até coisas mais
concretas, como usar uma tesoura ou a data de aniversário dele (relato
de Lia).

Por ser um caso raro, nós também estamos aprendendo com o Rui, o
quanto a Libras está sendo importante pra ele, a gente percebe que
ele é mais feliz, porque ele consegue se comunicar, consegue expressar
142 | (Des)mitos da Educação Especial

aquilo que ele pensa e o que ele sente, e na aprendizagem ele está
deslanchando, diferente do que acontecia na outra escola. Não entendo
muito, porque apesar de ele não conseguir se expressar ele ouvia o que a
professora falava ou ensinava, então por que ele não estava deslanchan-
do no processo de aprendizagem? Será que era próprio do quadro dele
neurológico? Então são perguntas que a gente vai tentando enxergar e
encontrar ao longo do processo (relato de Célia).

Os relatos da professora e da coordenadora mostram que, no início, elas


não sabiam bem como proceder com relação ao trabalho com Rui, mas viam
potencial no aluno e foram aprendendo – com ele e nas relações – quais
as melhores formas de favorecer o seu desenvolvimento. O fato de o aluno
ouvir e isso não ter colaborado para seu desenvolvimento intriga a ambas.
Considera-se que o fato de Rui ouvir poderia ter contribuído mais com o seu
desenvolvimento. Ainda com relação ao trabalho com Rui, a coordenadora
destaca:

Rui é um aluno que tem uma condição que a gente nunca trabalhou,
então pra gente dentro da surdez e da educação bilíngue é algo novo e
que estamos começando com ele a experimentar essa possibilidade, de
crianças que têm esse problema da dispraxia verbal serem beneficiadas
com a Língua Brasileira de Sinais mas até quando e como? A gente se
questiona se estamos indo no caminho certo com o Rui, se essa é a me-
lhor abordagem, se o fato de ele ter o recurso sonoro para alfabetização
poderia ajudar, se o ideal seria ele frequentar só essa sala ou um outro
espaço, tendo essa associação dos dois estímulos, da Língua Brasileira
de Sinais e também a oralidade. Então a gente está toda hora repensan-
do, pensando de novo se estamos acertando com o Rui, se tem como
agregar alguma coisa (relato de Célia).

Pode-se considerar, com relação ao relato da coordenadora, que a es-


cola está disposta a aprender com o aluno, visando desenvolver práticas e
vendo com Rui os resultados e possibilidades para o seu desenvolvimento.
É fundamental que a escola, com base em seu conjunto de conhecimentos
e práticas, possa pensar em formas de promover o desenvolvimento, ainda
que por caminhos menos comuns.
O uso da Língua Brasileira de Sinais como sistema de CAC ainda é um
assunto considerado novo e com poucos estudos sobre, sendo a maioria
deles encontrada em literatura estrangeira. Os estudos existentes garantem
que a língua de sinais pode ser um recurso de comunicação alternativa muito
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 143

eficaz, desde que definida e desenvolvida por uma equipe multiprofissio-


nal, atenta a à melhor escolha de comunicação para determinado indivíduo
(GLENNEN; DECOSTE, 1997).
Com relação ao questionamento da coordenadora sobre o aluno ouvir e
como isso pode ser considerado em seu ensino, Glennen e DeCoste (1997)
afirmam que, se apresentados juntamente, o sinal e a fala podem contribuir
para uma melhor assimilação, facilitando, assim, a aquisição de conhecimen-
tos e da fala. A ASHA (2010) explica que a língua de sinais, para algumas
pessoas, pode promover um passo importante para o desenvolvimento da
linguagem falada, não havendo nada que indique que a língua de sinais iniba
o desenvolvimento da fala. No caso da dispraxia verbal, ainda que Rui não
venha a falar, ele pode se apoiar na fala do outro para a construção de seus
conhecimentos.
O uso da Libras para Rui foi bastante importante, favorecendo seu desen-
volvimento no ambiente escolar de forma satisfatória. Manzini e Deliberato
(2004) pontuam a Língua Brasileira de Sinais como benéfica por favorecer,
ao aluno com necessidades complexas de comunicação, o estabelecimento
de diálogos face a face com seus pares. Ainda com relação aos benefícios,
uma vantagem importante é se tratar de uma língua usada por seus colegas
surdos (no âmbito da sala língua de instrução Libras), permitindo-lhe brincar,
jogar, perguntar, argumentar, desenvolvendo-se de maneira ampla, sem de-
pender de qualquer recurso artificial. É importante considerar que a língua
de sinais é uma língua, e não um sistema codificado de comunicação. Assim,
permite processos mentais sofisticados e medeia a elaboração conceitual
fundamental para o desenvolvimento.
Além disso, Rui conta com interlocutores ativos nessa língua. Seus co-
legas e professores podem se relacionar e se relacionam com ele fazendo
uso efetivo dessa língua. Desse modo, não se trata de uma ferramenta para
a aprendizagem, mas de uma língua para interações sociais. As crianças têm
a sua faixa etária, compartilham interesses, os professores podem dialogar
com ele, tanto conteúdos pedagógicos como outros, e isso coloca a Libras
em circulação como língua a partir da qual o sujeito pode se desenvolver e
constituir seu pensamento e processos de internalização. Diferentemente
de outros sujeitos que usam sistemas alternativos de comunicação e cujos
colegas de classe interagem com eles usando esses sistemas, mas entre si
usam a língua portuguesa, por exemplo – diminuindo muito as oportunida-
des de ver aquela forma de comunicação em uso –, no caso de Rui a língua é
144 | (Des)mitos da Educação Especial

utilizada para todas as interações em sala de aula, o que o coloca não como
uma exceção, mas como um usuário ativo de uma língua de prestígio no
espaço escolar.

Desenvolvimento escolar
O presente tópico busca analisar o desenvolvimento escolar de Rui des-
de o momento em que ingressou na sala língua de instrução Libras.
Lia inicia sua fala destacando que Rui chegou à escola com uma defasa-
gem muito grande em relação ao conhecimento dos conteúdos escolares,
acreditando ser um problema resultante da dificuldade em acompanhar as
aulas em sua escola anterior. Além disso, apresentava grande agitação para
se organizar, andar e raciocinar, o que o prejudicava nas atividades propostas
em sala. Com relação ao desenvolvimento do aluno, atualmente a professora
enfatiza:

O que a gente apresenta ele entende, ele absorve, ele usa socialmente.
Então posso dizer que está satisfatório e está crescente. Não é um aluno
que podemos dizer estar estagnado. No ritmo dele ele tem avançado,
não estagnou em nenhum momento. Na matemática ele é muito bom,
muito bom com raciocínio lógico, muito rápido para pensar… então não
tem dificuldades (relato de Lia).

A professora menciona também que Rui tem ótima memória, é uma


criança muito atenta, com facilidade para cálculo mental, além de compre-
ender e respeitar regras e interagir satisfatoriamente com os amigos e todos
os demais no ambiente escolar.
Com relação ao desenvolvimento de Rui, a coordenadora Célia também
diz que ele chegou com uma grande defasagem em relação aos conteúdos
escolares, sendo difícil algumas vezes recuperar aspectos do desenvolvi-
mento acadêmico. Ela percebe lacunas dos anos anteriores, mas destaca:

Ele é uma criança que aprende rápido, ele é muito inteligente, e eu acho
que ele não teve… aqui é um lugar que se sente bem, ele está aqui
porque ele gosta de estar, então essa motivação dele de estar aqui, de
se comunicar, de ter amigos, de conseguir se expressar e estar aprenden-
do… então é algo positivo (relato de Célia).
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 145

Por fim, Rui diz que se sente muito bem na escola e, ao ser perguntado
se se lembrava da antiga escola, ele diz:

Eu me lembro. Era muito ruim. Eu não tinha amigos. Não eram legais, eu
não entendia o que os professores falavam (relato de Rui).

Muitas vezes um aluno não verbal pode apresentar desinteresse em in-


teragir com seus colegas e professores, havendo isolamento por parte dele
quando ocorrem atividades interativas, o que dificulta sua socialização e tro-
cas de conhecimento e experiências e, consequentemente, interfere em seu
aprendizado (MORESCHI, 2012). Rui mencionou ainda que as brincadeiras
são fáceis de aprender e que sua matéria predileta é matemática.
Pelos relatos, tanto a professora quanto a coordenadora veem em Rui
potencial acadêmico, acreditando que as dificuldades que apresentou
quando chegou à escola não são resultantes de problemas de aprendiza-
gem do aluno – já que atualmente apresenta ótimo desempenho –, mas
sim problemas relacionados ao processo de ensino e aprendizagem e às
barreiras de comunicação. Esses problemas de ensino podem estar também
relacionados com o despreparo dos professores anteriores de Rui em lidar
com sua dificuldade comunicativa.
Pode-se considerar que, ao reconhecer as dificuldades linguísticas do
aluno, oferecer-lhe outra forma de comunicar-se e proporcionar-lhe um
ambiente mais favorável para o desenvolvimento, o desempenho de Rui
modificou-se, resultando em uma melhor organização do seu raciocínio,
permitindo sua comunicação com colegas e professores, favorecendo a tro-
ca de experiências e conhecimento, bem como a oportunidade de sanar
dúvidas, contribuindo para o seu desenvolvimento escolar.
Ao ser questionado se tinha amigos na escola, o aluno respondeu que
sim e mencionou os nomes de sete amigos. Deliberato et al. (2006) explicam
que os recursos de comunicação suplementar e alternativa, no âmbito esco-
lar, ajudam na inserção de alunos com deficiência e necessidades complexas
de comunicação na escola e em diferentes atividades pedagógicas, auxilian-
do no processo de aquisição de competência comunicativa, contribuindo,
assim, para o processo de ensino e aprendizagem.
146 | (Des)mitos da Educação Especial

Algumas considerações
O objetivo deste estudo foi investigar o uso da Libras como sistema de
comunicação alternativa em uma criança com dispraxia verbal. O estudo
mostrou que a motivação que o aluno apresentou em fazer amigos, apren-
der e se desenvolver se deu pela intermediação da Libras como língua de
uso no espaço escolar.
O fato de a professora e a coordenadora verem potencialidades no alu-
no, acreditando que suas dificuldades pregressas não eram resultantes de
problemas de aprendizagem, mas sim problemas relacionados ao processo
de aprendizagem e às barreiras de comunicação, também auxiliaram para
que ele pudesse se desenvolver. Nesse sentido, o estudo mostrou que é im-
portante reconhecer as dificuldades linguísticas de um aluno e lhe oferecer
outra forma de se comunicar, assim como proporcionar um ambiente mais
favorável ao seu desenvolvimento, visando permitir a sua comunicação e,
consequentemente, lhe proporcionar trocas de experiências e conhecimen-
to, contribuindo para o seu desenvolvimento.
Cabe destacar uma vantagem importante da língua de sinais como sis-
tema de comunicação alternativa. Por se tratar de uma língua de fato, apre-
sentando todos os elementos linguísticos necessários, diferentemente de
sistemas codificados de comunicação, ela pode conferir aos seus usuários in-
finitas possibilidades de dizer, de constituir-se e de pensar-se. Além disso, a
língua de sinais como sistema de comunicação alternativa permite que seus
usuários contem com interlocutores ativos. No âmbito escolar, na sala língua
de instrução Libras, colegas e professores relacionam-se entre si fazendo o
uso efetivo dessa língua, compartilhando interesses e conhecimento, colo-
cando a Libras em circulação como língua, a partir da qual o sujeito pode
se desenvolver e constituir seu pensamento e processos de internalização.
Assim, a língua de sinais flui em ambiente natural de comunicação, contri-
buindo para as interações sociais e aprendizagem.
Por fim, concluímos que o uso da Língua Brasileira de Sinais como sis-
tema de comunicação alternativa e suplementar ainda é um assunto pouco
estudado, cabendo mais pesquisas sobre o tema que visem mostrar que
essa língua pode ser um caminho promissor de desenvolvimento para sujei-
tos com limitações para a produção da língua oral.
Libras como sistema de comunicação alternativa: o caso de uma criança com dispraxia verbal | 147

Referências
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DERRUBANDO MITOS:
POTENCIALIDADES PARA ALÉM DA
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
Alessandra Daniele Messali Picharillo
Rosimeire Maria Orlando

É fundamental compreender que o ser humano e sua vida em sociedade,


apesar de esta ser dividida em diversos temas para estudo, acontecem si-
multaneamente, se entrelaçando em seus diversos aspectos culturais, so-
ciais, biológicos, religiosos, geográficos, filosóficos e tantos outros. É óbvio
que a constituição de uma comunidade sofre interferência, por exemplo, do
espaço físico em que ela ocorre, considerando que condições climáticas e
produtivas podem direcionar o tipo de cultura de alimentos, hábitos diários
e práticas interpessoais.
E o que isso representa na vida dos seres humanos e, em específico aqui,
das pessoas com deficiência? 
Um passeio pelo percurso histórico permite-nos algumas colocações
sobre modos de ver, conceber e tratar a pessoa com deficiência. 
Estudos discutem, a partir de achados arqueológicos, que na pré-história
a pessoa nascida com uma deficiência aparente era abandonada à própria
sorte. Justificava-se o fato pela necessidade da luta pela sobrevivência, uma
vez que o ser humano precisava lutar dia a dia para não ser morto por ani-
mais e para encontrar caça para se alimentar. Sendo assim, era intuitivo o
motivo que induzia a tribo/comunidade à escolha pelo abandono desta po-
pulação em específico, ou seja, a busca pela própria sobrevivência. Segundo
Bianchetti (2001), tal fato era compreendido como uma seleção natural, a lei
do mais forte que sempre sobrevivia.
152 | (Des)mitos da Educação Especial

Com o domínio do fogo e o desenvolvimento do conhecimento de cul-


tivo de alimentos, as tribos passaram de nômades a sedentárias. Uma vez
agrupados, os povos buscam explicações metafísicas para fenômenos que
não conseguiam explicar, surgindo, então, os ritos religiosos. Avançando
para a era da constituição das sociedades, surgem os registros do pensa-
mento filosófico, o questionamento do que é o homem e do porquê de estar
no mundo, dentre outras indagações.
E, nesse ponto, cabem algumas indagações: a ideia do humano dotado
de razão, que o torna capaz de decidir entre o certo e o errado, mesmo não
havendo mais a justificava da luta pela sobrevivência, permitiria que a pessoa
com deficiência fosse considerada humana? Uma pessoa com qualquer tipo
de deficiência que alterasse suas respostas cognitivas, sua fala, sua visão,
teria o mesmo poder de discernimento entre o certo e o errado? Poderia ser
considerada humana ou seria mais adequado igualá-la aos animais?
A partir do pensamento de Platão e Aristóteles, o homem é definido
como um ser racional, expressando o ponto de vista do Iluminismo grego.
Segundo essa definição, o homem dotado da razão poderia ser útil ou per-
nicioso, podendo praticar a justiça ou a injustiça. Essa definição de homem,
ser humano, permeia as futuras concepções trazidas por filósofos ao longo
da história, ora mais apegada à questão da razão, ora mais ampliada (AB-
BAGNANO, 2007).
Nesse tempo, ainda antes de Cristo, segundo a própria Bíblia e a teoria
criacionista, Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Mas, se Deus é
perfeito, um animal humano com “defeitos” poderia representar a imagem
de Deus? Vê-se então a multiplicação das superstições para “explicar” as
deficiências, que iam desde a relação da mulher com o demônio até a ex-
piação de um pecado grave da família. Entretanto, independentemente da
causa, as pessoas com deficiência deveriam morrer ou sofrer, a fim de expiar
e purificar a si e a família. 
Os ensinamentos deixados por Jesus Cristo, registrados em seu evange-
lho e disseminados por seus seguidores, levam a comunidade à reflexão de
que, sim, a pessoa com deficiência era humana, criatura de Deus e, portan-
to, tinha uma alma. Seus ensinamentos condenam a prática do assassinato,
entretanto, não desvinculam a deficiência de algum pecado cometido pela
pessoa ou pela família e ainda apresentam a ideia de busca por cura. Contu-
do, pode-se notar um primeiro movimento, por ser considerada possuidora
de alma, da humanização da pessoa com deficiência.
Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual | 153

Caminhando na história, filósofos continuam associando a concepção


do humano ao raciocínio, como Descartes expressa em sua conhecida frase
“penso, logo existo”. Ele também justifica que, quando se diz “eu”, se tem
ciência do que se está dizendo e de sua posição no mundo. O próprio termo
humanidade pressupõe que, ao agir com humanidade, a pessoa está sendo
coerente, pacífica, justa, dentre outras características relacionadas ao inte-
lecto (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001). Mas como a pessoa com deficiência
expressaria essa humanidade esperada? Como a pessoa com Deficiência
Intelectual, caso não recebesse apoio e educação, elaboraria pensamentos
tão complexos e abstratos?
Sendo assim, considerando a época descrita, percebe-se que uma pes-
soa que não tem ciência do certo e do errado, justo e injusto, não consegue
expressar seu pensamento ou, ainda, ao apresentar uma aparência conside-
rada deformada, está distante das concepções do que é ser humano. Santo
Agostinho, baseando-se no Direito Romano, define que cada ser humano é
uma pessoa, entretanto, essa definição implica que a pessoa é um sujeito
com direitos e deveres (CHAUÍ, 2000). Sendo assim, como a pessoa com
deficiência e suas limitações poderá cumprir seus deveres para ter seus direi-
tos? Ainda, segundo o humanismo contemporâneo, com destaque para as
correntes existencialistas e algumas vertentes marxistas, o ser humano é de-
finido como criador do seu próprio ser, capaz de gerar sua natureza (JAPIAS-
SÚ; MARCONDES, 2001). Seria possível estender essa definição à pessoa
com deficiência, mais especificamente à pessoa com deficiência intelectual?
Pessotti (2012) descreve, em seu livro “Deficiência mental: da superstição
à ciência”, as primeiras teorias científicas, com o surgimento de definições
biológicas do humano. Compreende-se que a razão humana é produzida
por órgãos, que existe uma condição biológica que pode ou não ter se de-
senvolvido a contento. O autor descreve diversos estudos e suas correntes
teóricas contraditórias, demonstrando que a superstição, agora emergida
dos dogmas científicos, continuava prestando um desserviço à pessoa com
deficiência. Seus relatos descrevem um ir e vir que, por momentos, conside-
rava o ser humano privado do desenvolvimento tido pela sociedade como
dentro dos padrões de normalidade como capaz de aprender e evoluir e, em
outros momentos, apenas como alguém com direito a uma sobrevivência de
qualidade duvidosa.
Pessotti (2012) resgata a história de Victor de Aveyron, o menino sel-
vagem que recebeu atendimento de Itard. Nesse relato, o autor pontua o
154 | (Des)mitos da Educação Especial

caráter determinista de Pinel ao afirmar que o garoto, considerado idiota, se


tratava de um caso sem solução, ou seja, seria impossível qualquer tentativa
de educá-lo ou de buscar qualquer tipo de desenvolvimento de compor-
tamentos humanizados. Pinel acrescenta que a Victor restaria apenas um
futuro sombrio, abrigado em um asilo, recebendo condições mínimas de
sobrevivência. Itard não se convence desse diagnóstico fatídico e inicia um
processo pedagógico e de desenvolvimento de suas capacidades, ou seja,
de comportamentos esperados para um ser humano. Seu empenho de-
monstrou resultado, e o garoto Victor desenvolve-se, talvez não no tempo e
em todos os aspectos esperados por Itard, mas desmonta o diagnóstico de
Pinel. A pergunta que fica: O que levou Pinel ao determinismo desse diag-
nóstico? O que considerou quando olhou para Victor? Seria a falta de com-
portamentos esperados de um humano? Seria a falta de comunicação? Seria
o comportamento arredio parecido ao de um animal irracional? Assim como
se vê na filosofia e na religião, agora a medicina buscava parâmetros do que
poderia ser considerado humano e, portanto, digno de desenvolvimento.
Não parece estranho que a filosofia e a religião estejam de pano de
fundo, fundamentando, mesmo que indiretamente, o comportamento de
exclusão? E hoje seria muito diferente? Não é raro ouvir relatos de famílias
que precisam lidar com diagnósticos médicos que condenam seus filhos à
estagnação, assim como não é incomum que, quando a deficiência é apa-
rente ou gera comportamentos considerados estranhos, a criança ou pes-
soa adulta sofra olhares de rejeição, comentários lamentáveis, entre outras
atitudes. Sendo assim, mesmo depois de tantos séculos, avanços médicos
e tecnológicos, por que a sociedade ainda não compreendeu a diversidade
da constituição do ser humano? 
Não obstante, por que ainda se expõem as diferenças sob uma ótica
pejorativa, não considerando o sofrimento psicológico? Acaso essas ques-
tões não refletem que a sociedade continua com dificuldade de enxergar a
plena constituição humana da pessoa com deficiência? Se a resposta para
esta última questão for positiva, por mais que se criem leis e estatutos afir-
mando os direitos humanos, sempre poderá ocorrer de alguns cidadãos
serem vistos como exceções ou, abusando de uma expressão, como “quase
humanos”, justificando, assim, o fato de escolas, teatros, cinemas, hospitais
e tantos outros serviços públicos não buscarem estar aptos para contemplar
as especificidades da pessoa com deficiência, bem como a naturalização do
Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual | 155

descrédito em relação ao desenvolvimento e à aprendizagem da pessoa


com deficiência intelectual.
Considerando todo esse relato, pretende-se investigar como a educa-
ção e os procedimentos de ensino têm sido pensados, em específico aqui
para as pessoas com deficiência intelectual, e ainda descrever experiências
bem-sucedidas que demonstrem a possibilidade de desenvolvimento inte-
lectual, social e de autonomia para essas pessoas. 

Educação para alunos com deficiência intelectual no Brasil


Alunos com deficiência intelectual, no contexto normativo brasileiro,
pertencem ao grupo de alunos identificados como público-alvo da Edu-
cação Especial (PAEE) (BRASIL, 2013). Isso significa que eles têm o direito ao
atendimento educacional especializado (AEE) e ao planejamento de ensino feitos

de acordo com suas necessidades, sempre com o objetivo de garantir o seu melhor

desenvolvimento educacional e social.

O professor de Educação Especial, responsável pelo AEE ofertado em


salas de recursos multifuncionais (SRM), tem a função de avaliar o comporta-
mento do aluno com deficiência intelectual nos diversos espaços da escola,
conversar com a família e com possíveis outros profissionais que prestem
atendimento a esse aluno. Com base nas informações obtidas, entendemos,
sobretudo, quais são as potencialidades e barreiras educacionais que im-
pedem o aprendizado do aluno e coletamos informações para realizar um
planejamento que contemple atividades na SRM e auxilie o professor do
ensino regular na execução do plano de aula da sala comum (GOMES; FI-
GUEIREDO; POULIN, 2010).
Almeida (2012) destaca que mais de 80% das crianças com deficiência
intelectual apresentam um nível leve da deficiência, as quais, se receberem
o apoio adequado, podem atingir um bom desempenho. Entretanto, Almei-
da (2012) também pontua que o avanço do processo de inclusão promoveu
o acesso de alunos com deficiência intelectual que necessitam de maior
apoio. Dessa forma, a autora relata a relevância de estudos que contemplem
procedimentos de ensino com esse público. Portanto, pretende-se agora
discorrer sobre alguns estudos que trataram dessa temática.
Quando é realizada a pesquisa no Portal de Periódico Capes com as
combinações (alfabetização AND “deficiência intelectual”) e (“ensino de
matemática” AND “deficiência intelectual”), adotando apenas o critério de
156 | (Des)mitos da Educação Especial

artigos revisados por pares, o número de estudos que retornam é significa-


tivamente diferente. Enquanto para alfabetização retornam 37 estudos, para
ensino de matemática retornam apenas seis estudos, dos quais um não se
referia a alunos com deficiência intelectual.
É evidente a relevância da alfabetização na vida humana; no entanto, o
ensino de matemática não deveria ser tão importante quanto? Percebam
que não se trata de uma diferença pequena, mas cerca de um sétimo. Ou
seja, para cada sete estudos relacionados à alfabetização, há apenas um es-
tudo relacionado ao ensino de matemática.
Em defesa da importância da matemática na formação das pessoas, exis-
te o fato de seus conteúdos estarem presentes no contexto diário, seja nas
compras, na localização geográfica, na leitura de um calendário ou mesmo
na elaboração de receitas. Sendo assim, uma pessoa à qual não é oportuni-
zada a aprendizagem matemática provavelmente apresentará dificuldades
com sua autonomia e resolução de problemas diários (ROSENBLUM; HERZ-
BERG, 2011). E não seria a autonomia um dos objetivos a serem alcançados
pela educação?
Algumas pessoas podem nesse momento pensar que a matemática é
uma disciplina muito complexa até mesmo para os alunos com desenvol-
vimento típico, quanto mais para os alunos com deficiência intelectual. De
fato, Brankaer, Ghesquière e De Smedt (2013) relatam que entre 5% e 7% da
população mundial apresenta dificuldades nesses saberes. Ainda, Cruz, Ber-
gamaschi e Reis (2012) destacam que, no Brasil, cerca de 67,5% dos alunos na
faixa etária de 10 anos apresentam desempenho abaixo do esperado.
Pela lógica, quanto maior a dificuldade, maior a necessidade de pesqui-
sas em procedimentos de ensino para vencer essas barreiras, considerando
a relevância da disciplina de matemática. E, ainda, sabendo dos números
de avaliações realizadas com alunos com desenvolvimento típico, maior é a
necessidade de planejar estratégias eficientes para que o ensino seja aces-
sível e o direito à educação de qualidade seja garantido a todos os alunos,
mesmo os que possam apresentar maiores dificuldades.
Dos cinco estudos publicados e selecionados para esta discussão, um
deles abordou a questão da utilização de jogos para o ensino de matemática
para alunos com deficiência intelectual, realizando um mapeamento dos estu-
dos produzidos (CORDEIRO; ROCHA, 2020). Segundo os autores, há poucos
estudos explorando o uso de jogos, mas os poucos encontrados utilizaram
procedimentos não informatizados, jogos educativos computadorizados e
Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual | 157

analógicos, com resultados satisfatórios. Os autores ainda sugeriram um


aumento de articulação entre estudos, visando contribuir para o avanço da
inclusão.
Os outros quatro estudos investigaram o ensino a partir da perspectiva
do professor. No estudo de Rodovalho, Moreira e Mané (2018), o levanta-
mento das opiniões de professores de uma instituição de Ensino Superior
demonstra que estes se sentem inseguros, enfrentando dificuldades causa-
das por déficits na formação, por falta de apoio necessário oferecido pela
instituição e, especialmente, pela dificuldade de rompimento com padrões
de ensino arcaicos e enrijecidos, que dificultam o acesso do aluno ao conte-
údo de matemática.
O estudo de Modenutte, Monteiro e Susiki (2019) descreve o trabalho
de uma professora particular de matemática que assiste um aluno com de-
ficiência intelectual, e o objetivo do estudo foi investigar como a docente
produziu a interação entre professor, aluno e objeto de ensino, de modo que
a prática pedagógica fosse significativa e efetiva. Essa investigação pautou-
-se nos bons resultados obtidos no desenvolvimento do aluno. Os autores
consideram que o diferencial da atuação docente foi sua capacidade de
enxergar o aluno em suas dimensões completas, em outras palavras, como
ser pensante e capaz de aprender, com facilidades, potencialidades e prefe-
rências que poderiam ser utilizadas em favor da aprendizagem matemática.
Haas e Gechelin (2021) realizaram entrevistas com professores do AEE
e professores de matemática que trabalhavam com alunos com deficiência
intelectual dos anos finais do Ensino Fundamental. As autoras relataram que
a deficiência continua sendo vista como intrínseca ao indivíduo, prevalecen-
do uma redução e simplificação de conteúdo matemático para o ensino,
limitando-se ao básico e às atividades de vida diária. Além disso, o diálogo
entre professores do AEE e professores de matemática não é uma prática
regular, dificultando encontrar soluções para vencer as barreiras do planeja-
mento de ensino.
Por fim, Costa, Aniceto e Aguiar (2018) entrevistaram 32 professores de
matemática com o objetivo de investigar a concepção destes sobre o ensino
de matemática para alunos com deficiência intelectual. Os resultados indi-
caram a necessidade da melhora das informações dadas aos profissionais
sobre como trabalhar com esse público, seja por meio de formação inicial
ou continuada. A ausência desse conhecimento reflete no receio à inclu-
são do aluno com deficiência intelectual em ensino regular, bem como na
158 | (Des)mitos da Educação Especial

fragilidade do acesso e da preparação dos materiais pedagógicos para o


ensino de matemática.
De maneira geral, com base nos estudos brevemente descritos, entende-
-se que há uma fragilidade na formação docente que reflete na forma como
esse profissional pensa o ensino de matemática para o aluno com deficiência
intelectual. O bom resultado encontrado no estudo de Modenutte, Mon-
teiro e Susiki (2019) reforça a ideia da relação entre o bom desempenho do
aluno e a prática docente, ou seja, há barreiras a serem vencidas no ensino
de matemática, e uma das principais passa pela atitude docente.
Com relação aos estudos que se referiram à alfabetização, este capítulo
selecionou alguns para detalhamento e discussão. O critério aplicado foi a
publicação ser em português, considerando que se busca discutir o tema na
perspectiva da educação nacional. A busca resultou em 19 trabalhos, dos
quais, após leitura de títulos e resumos, visando identificar apenas os es-
tudos que versavam sobre alfabetização e deficiência intelectual, restaram
quatro estudos, que serão discutidos a seguir. 
Diferentemente dos estudos sobre matemática, cujo objetivo passava
pela formação e atuação docentes, dos quatro estudos de alfabetização
selecionados apenas um se referia à formação docente, e os demais investi-
garam o ensino propriamente dito. 
Iniciando pelo estudo de Boraschi (2017), que teve por objetivo refletir
sobre a ocorrência dos processos de alfabetização e letramento em crianças
com deficiência intelectual, entende-se que as investigações e análises se
desenrolaram com base no tema sobre o papel e a aprendizagem da leitura
e escrita para o desenvolvimento humano e social. Isso porque saber ler e
escrever são condições indispensáveis para o exercício da cidadania, segun-
do a autora. Os resultados relatados indicam que os alunos com deficiência
intelectual são capazes de aprender mediante adaptações coerentes plane-
jadas individualmente, considerando o aluno. A autora ainda destaca que
todos os alunos, com ou sem deficiência, têm o direito de estarem inseridos
em sociedade e que a aquisição da leitura e da escrita é uma ferramenta
essencial. Embora não tenha sido o foco da pesquisa, a autora menciona
que há benefícios para o aprendizado do aluno com deficiência intelectual
quando professores de AEE e do ensino regular mantêm uma prática de
diálogo e parcerias no planejamento.
Oliveira (2015) realizou um estudo de avaliação e investigação sobre
o desempenho na fase inicial de alfabetização de alunos com deficiência
Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual | 159

intelectual. Participaram do estudo 32 alunos com deficiência intelectual que


frequentavam o 2º ano do Ensino Fundamental do município de São Paulo.
A autora considera que a avaliação processual ainda se apresenta como um
grande desafio nas escolas brasileiras, particularmente quando se trata de
alunos com essa condição de deficiência. Entretanto, também pontua que as
dificuldades encontradas por esses alunos durante a aprendizagem podem
não ser exclusivas de alunos com deficiência. A autora conclui que o bom de-
sempenho passa pelas ações pedagógicas pensadas e planejadas mediante
as necessidades dos alunos.
Um pouco diferente do gênero artigo, o trabalho agora discutido se
refere a uma entrevista realizada por Amarílis Hernandes Santos, aluna da
graduação em Pedagogia da USP, com Angela M. Quadros Cioffi, professora
da rede que foi homenageada e recebeu o título de “Professor Emérito” em
2009 pelo trabalho desenvolvido na Secretaria de Educação de São Paulo,
com vistas a contribuir com o processo de inclusão. A entrevistadora faz di-
versas perguntas que passam por temas como didática, teoria pedagógica,
uso de cartilhas, possíveis dificuldades de professores e alunos, entre outros.
Em resumo, a entrevistada afirma que não há um método único, ou seja, uma
mesma forma ideal para ensinar todos os alunos com deficiência intelectual,
semelhantemente ao que se sabe sobre o ensino para alunos com desenvol-
vimento dentro do esperado para o que se denomina de normalidade. Com
relação ao uso de cartilhas, ela considera que o apoio visual das ilustrações
no momento da alfabetização é positivo. As cartilhas ainda podem auxiliar
na previsibilidade da apresentação de atividades, em sequência lógica, o
que, segundo ela, seria uma necessidade para alguns alunos (SANTOS; CIO-
FFI, 2011).
Por fim, o texto de Teixeira, Barreto e Nunes (2021) discute os estudos
realizados com alunos com deficiência intelectual e políticas educacionais
na perspectiva da educação inclusiva no Brasil. Concluem que a formação
docente é crucial para que as políticas de inclusão tenham êxito, uma vez
que o planejamento e sua efetuação passam pelo professor. Ser professor
de AEE, segundo o estudo, também exige uma formação que leve a uma
prática crítica, que seja capaz de realizar mudanças efetivas no cotidiano de
professores e alunos. Encerram destacando que, se a formação docente não
for revista para os contextos educacionais atuais, será muito difícil vencer as
barreiras para a construção de uma escola democrática e inclusiva.
160 | (Des)mitos da Educação Especial

Portanto, a partir dos estudos citados e descritos, o entrave na aprendi-


zagem do aluno com deficiência intelectual pode não estar nas limitações ou
especificidades apresentadas pelos alunos, mas sim no formato que esse en-
sino é apresentado. Professores que não acreditam na capacidade de seus
alunos e/ou não têm conhecimento para promover diferentes formas de en-
sino estão fadados a falhar no processo de ensino desse alunado. Em contra-
partida, segundo os estudos, quando o docente acredita na capacidade de
aprendizagem de seu aluno e busca alternativas de ensino – não podemos
deixar de indicar aqui as lacunas na formação de professores para trabalhar
não apenas com essa parcela da população –, os resultados apresentam me-
lhoras significativas no desempenho acadêmico. Aqui cabe questionarmos:
será que realmente o aluno com deficiência intelectual não seria capaz de se
tornar um adulto bem-sucedido se em sua trajetória houvesse uma rede de
apoio eficiente? A seguir, serão apresentados exemplos de pessoas com de-
ficiência intelectual que venceram o preconceito e atingiram altos objetivos.

A potencialidade reconhecida
Todas as pessoas, com deficiência ou sem deficiência, apresentam li-
mitações e potencialidades nas diversas áreas de conhecimento e atuação
social. Existem inúmeras pessoas que são ótimas jogadoras de futebol,
ótimas escritores, ótimas artistas plásticas. Da mesma forma, a pessoa com
deficiência intelectual tem potencialidades as quais podem não estar visíveis
por falta de crédito da sociedade ou da comunidade em que está inseri-
da. Como uma pessoa com deficiência intelectual que tem potencialidades
no esporte vai descobri-las e desenvolvê-las se não forem oportunizadas
condições? O mesmo ocorre para as demais áreas, inclusive a acadêmica.
Diante da falta de credibilidade, possivelmente há uma política pública fra-
gilizada em programas e recursos que promovam a participação efetiva e,
consequentemente, o desenvolvimento das potencialidades da pessoa com
deficiência intelectual.
Apesar de os casos ainda não serem muito divulgados, eventualmen-
te algumas pessoas com deficiência conseguem vencer as barreiras com o
apoio recebido ao longo da vida e se tornam destaques, agora, em notícias
de jornais e outras mídias. A seguir serão descritos alguns exemplos em di-
ferentes áreas.
Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual | 161

Alonzo Clemons, norte-americano de Boulder, Colorado, nascido em


1958, tornou-se um famoso escultor. A mãe conta que o rapaz sofreu uma
queda quando tinha pouco mais de três anos de idade. A queda ocasionou
uma lesão cerebral grave, e, segundo a notícia publicada em 1987, o desen-
volvimento mental do rapaz com 29 anos era equivalente ao de uma criança
de seis anos, com QI de 40 (GARCIA, 1987; ALLEN, 2017).
O caso de Clemons é conhecido pela ciência como Savant, uma condi-
ção de potencial excepcional acompanhada de uma deficiência. Apesar de
a lesão tê-lo impedido de ler, escrever ou dirigir, a habilidade de modelar
esculturas surgiu com destaque. Mesmo que ele visse uma imagem apenas
por um momento, era capaz de recriá-la em três dimensões rapidamente
(ALLEN, 2017). 
Clemons modelou animais em cera e argila por quase toda a vida, que foi
vivenciada principalmente em instituições. Entretanto, quando foram opor-
tunizadas visitas regulares ao zoológico e ao museu, seu talento realmente
aflorou. Um depoimento na reportagem faz a analogia de que ele foi solto
da gaiola, ou seja, quando permitiram que ele visitasse outros locais para
além da instituição onde morava, isso possibilitou que sua visão de mundo
expandisse e se refletisse em sua arte (GARCIA, 1987; ALLEN, 2017).
No esporte, temos Daniel Tavares Martins, natural de Marília, interior do
estado de São Paulo, que nasceu em 12 de março de 1996. Ele relata que
quando estava na segunda série não conseguia acompanhar o ritmo dos
colegas, mas contou com o apoio destes e foi passando pelos anos até con-
cluir o terceiro ano do Ensino Médio. Daniel iniciou no esporte praticando
futebol e em 2013 iniciou no atletismo paralímpico (DISLASCIO, 2017; REDE
DO ESPORTE, 2018).
Em 2015, conquistou o título mundial dos 400m rasos em Doha, no Catar.
O atleta participou das Paralímpiadas Rio 2016 e conquistou medalha de
ouro na modalidade 400m T20, quebrando o próprio recorde mundial (DIS-
LASCIO, 2017; REDE DO ESPORTE, 2018).
No cinema, o ator Ariel Goldenberg e sua esposa e também atriz, Rita
Pokk, ambos com síndrome de Down, estrelaram o filme “Colegas”. Ariel
deu uma entrevista à Folha de São Paulo em que contou um pouco de sua
vida. Relata que cresceu em um lar com pais separados, conviveu com três
irmãos, frequentou ensino regular e ensino especializado. Destaca que sua
mãe lhe deu muita segurança e que amor não é sinônimo de segurança,
sendo necessário ter apoio para se sentir seguro (CAPRIGGLIONE, 2013).
162 | (Des)mitos da Educação Especial

Antes de ser ator, Daniel trabalhou no marketing de uma empresa e con-


seguiu iniciar a captação de recurso para a produção de seu filme, contando
com o apoio de seu chefe. Questionado sobre qual conselho daria aos pais
de crianças com síndrome de Down, o ator recomenda que se tenha pa-
ciência, mas que se o filho cometer erros é preciso ser firme na correção.
Finaliza dizendo que é muito importante apoiar os filhos em seus projetos,
dando-lhes o direito de planejar uma vida como a de qualquer outra pessoa
(CAPRIGGLIONE, 2013).
Na educação, o primeiro exemplo é o da professora Débora Araújo Se-
abra de Moura, nascida em 15 de julho de 1981, com síndrome de Down.
Formada em Magistério em nível Médio em 2015, a professora viaja reali-
zando palestras, pelo Brasil e outros países, com o tema do combate ao
preconceito. Em 2013, lançou o livro “Débora conta Histórias” (G1 RN, 2019;
MARINI, 2014).
A mãe de Débora relata que foi muito difícil aceitar a condição da filha
logo ao nascimento, mas que, passado o impacto, aceitou a filha e decidiu
amá-la como ela era. Suas declarações fortes e postura de apoio foram es-
senciais para o desenvolvimento de Débora. Com relação à garantia dos
direitos sociais, os pais afirmam que a única forma de incluir e preservar a
saúde mental e social das pessoas com síndrome de Down é garantindo
que tenham acesso a todos os ambientes utilizados pela sociedade, espe-
cialmente escolas e universidades. Débora sempre estudou em escolas de
ensino regular (G1 RN, 2019; MARINI, 2014).
Em reportagem do R7 Educação (2019), com o título “Universitários com
Down mostram que diploma vai além da inclusão”, contam-se as histórias de
três jovens com síndrome de Down que chegaram à universidade e conse-
guiram concluir seus cursos com sucesso. 
Luísa, de 25 anos, formou-se em Relações Públicas em uma faculdade
de Belo Horizonte. Marina, de 29 anos, formou-se em Artes Visuais pela
Universidade Federal do Rio Grande. Guilherme, de 25 anos, formou-se em
Gastronomia em 2016 e está atuando no mercado de trabalho (R7 EDUCA-
ÇÃO, 2019).
O que os três jovens têm em comum além da Síndrome de Down? Uma
família que apoiou e teve condições financeiras de bancar atendimentos
de estimulação precoce. Além disso, de acordo com o professor e médico
geneticista Zan Mustacchi, quando se tem oportunidade se avança, se não
tiver oportunidade não há como conquistar um bom desenvolvimento, e ele
Derrubando mitos: potencialidades para além da deficiência intelectual | 163

acrescenta que isso é uma realidade para todas as pessoas (R7 EDUCAÇÃO,
2019).
Com base nos exemplos anteriores, há uma constante nos depoimentos
e histórias, que é a oportunidade para aprender e se desenvolver. Claro que
a oportunização passa não apenas pelo apoio da família e pela credibili-
dade de professores e demais profissionais que estarão presentes na vida
da pessoa com deficiência intelectual, mas também pelas condições sociais,
políticas, culturais e econômicas de uma sociedade, conforme apontamos
no início de nossas reflexões. 

Considerações finais
Este texto teve o objetivo de demonstrar que as pessoas com defici-
ência, inclusive as pessoas com deficiência intelectual, têm potencialidades
para além de suas limitações causadas pela deficiência.
A partir da leitura de como o ser humano era compreendido no campo
filosófico, de como a religião e sociedade viam tais pessoas e sua represen-
tação social ao longo da história, é possível compreender que o preconceito
causado pelo desconhecimento sempre foi um impeditivo para o desenvol-
vimento humano dessa pessoa. Foi com a chegada das descobertas cientí-
ficas que questionaram mitos e crendices que essas imagens começaram a
se desfazer.
Entretanto, nada na história humana é puramente linear. A história apre-
senta idas e vindas em todas as suas áreas, variando de acordo com o grupo
de pessoas que está ditando as normas ideais para a sociedade. Ou seja,
quando a igreja obteve o poder, as normas estavam a serviço da religião;
quando foram nobres e reis a ditarem regras, as normas variavam de acordo
com os valores por eles considerados ideias.
Atualmente, a pesquisa demonstra que essa variação permanece. Ob-
servam-se mudanças de leis e concessão de direitos aos grupos de acordo
com os interesses de quem comanda a nação. Em alguns momentos há mais
investimentos para a garantia dos direitos sociais, em outros há questiona-
mentos se esta é benéfica.
Portanto, os estudos realizados demonstrando o quanto a inclusão e
oferta de oportunidades podem potencializar o desenvolvimento da pessoa
com deficiência intelectual são de extrema relevância. Em suma, os estudos
demonstraram que os melhores resultados nos procedimentos de ensino
164 | (Des)mitos da Educação Especial

foram obtidos por professores que acreditaram na capacidade de seus alu-


nos, que desenvolveram estratégias e insistiram no ensino.
Os relatos das pessoas com deficiência intelectual que, apesar das bar-
reiras impostas socialmente – vinculadas ao contexto social, político, econô-
mico, cultural, desde tempos remotos –, alcançaram destaque, por exemplo,
no esporte, na arte e nas universidades podem nos indicar que o apoio fa-
miliar, citado em todos os casos, bem como atendimentos que promoviam
o desenvolvimento de suas potencialidades e que desafiaram concepções
pautadas na visão de incapacidade de aprendizagem desses sujeitos contri-
buíram para seu sucesso.
Finalizando, há que se destacar que a reflexão inicial sobre a concepção
humana e os diferentes contextos históricos nos indica que as formas de
ver, conceber e tratar a pessoa com deficiência ditam seu lugar. As pesqui-
sas e relatos concretos, aqui apresentados brevemente, indicam-nos que a
limitação do desenvolvimento das pessoas com deficiência intelectual está
pautada nas condições sociais, no preconceito, no pré-julgamento e que a
essas pessoas restam a caridade social, o cuidado intensivo da família e ne-
nhuma oportunidade de desenvolver suas potencialidades para atingir uma
autonomia mínima, validando, assim, o mito da incapacidade.

Referências
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www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/12080. Acesso em: 15 fev. 2022.
Súmulas Curriculares

Adriana Fernandes Barroso

· Doutoranda em Educação Especial pela Universidade


Federal de São Carlos (UFSCar). Mestra em Educação
Especial pela UFSCar. Graduada em Fonoaudiologia.
Tem experiência na área de Fonoaudiologia, com ênfa-
se em linguagem, atuando principalmente nos seguin-
tes temas: políticas e práticas de educação inclusiva,
formação de professores, surdez, abordagem bilingue.
É bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Esta-
do de São Paulo (Fapesp), com o projeto de pesquisa
"Avaliação da política de inclusão escolar em contexto
municipal baseada na abordagem do ciclo de políticas".
· [email protected] ·
· https://lattes.cnpq.br/4205125550873933 ·

Alessandra Daniele Messali Picharillo

· Licenciada em Educação Especial pela Universidade


Federal de São Carlos (UFSCar), mestra e doutoranda
em Educação Especial na UFSCar. Graduanda em licen-
ciatura em Ciências Exatas, com ênfase em Física, pelo
Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São
Paulo (IFSC/USP). Temas de interesse: acessibilidade
em educação, ensino de exatas para Público-Alvo da
Educação Especial, aprendizagem de alunos com Trans-
torno do Espectro do Autismo.
· [email protected] ·
· http://lattes.cnpq.br/6418472162902640 ·
Clarissa Bengtson

· Graduada em Letras com Habilitação em Português/


Espanhol e em Pedagogia. Mestra e doutora pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFSCar)
e pós-doutoranda no Departamento de Psicologia
(DPsi-UFSCar). Professora no curso de segunda licen-
ciatura em Educação Especial (CSEEspl/D-UFSCar) e
no curso de especialização em Educação e Tecnologias
(EduTec-UFSCar). Gestora EaD nos cursos de segunda
licenciatura em Educação Especial (CSEEspl/D-UFSCar)
e de aperfeiçoamento em Alfabetização para Estudan-
tes com Deficiência (AlfaDef-UFSCar/Semesp-MEC).
Pesquisadora no Projeto de Desenvolvimento Institu-
cional (ProDin-UFSCar), intitulado "Acessibilidade na
UFSCar: construção de Recursos Educacionais Abertos"
e membro do GTI-Acessibilidade-UFSCar. Faz parte do
Conselho Editorial da EDESP-UFSCar.
· [email protected] ·
· http://lattes.cnpq.br/7642935660070010 ·

Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

· Graduada em Fonoaudiologia pela Universidade


de São Paulo (USP – 1984), mestra (1992) e doutora
(1996) em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). É pesquisadora 1C Produtividade
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq). Professor Associado III da Uni-
versidade Federal de São Carlos (UFSCar) no curso de
licenciatura em Educação Especial e no Programa de
Pós-Graduação em Educação Especial (PPGEEs). De-
senvolve pesquisas na perspectiva histórico-cultural e
abordagem enunciativo-discursiva. Atua na assessoria a
redes municipais de educação, implantação e acompa-
nhamento de Programa de Educação Inclusiva Bilíngue
(Piracicaba, Campinas, São Paulo e São Carlos). Possui
pós-doutorado no Centro de Pesquisa Italiano (CNR/
Roma – 2003) e Universidade de Barcelona (2017). Ven-
cedora, em 1º lugar, do 56º Prêmio Jabuti, área de Edu-
cação, com o livro "Tenho um aluno surdo e agora?",
publicado pela EdUFSCar.
· [email protected] ·
· http://lattes.cnpq.br/9468232016416725 ·
Douglas Henrique Perez Pino

· Professor no curso de segunda licenciatura em Edu-


cação Especial da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Atua como editor de livros na Editora de
Educação e Acessibilidade da UFSCar (Edesp-UFSCar) e
participa do projeto Acessibilidade na UFSCar: constru-
ção de Recursos Educacionais Abertos (ProDin-UFSCar).
· [email protected] ·
· http://lattes.cnpq.br/5613308996045290 ·

Eder Pires de Camargo

· Livre docente em Ensino de Física pela Universidade


Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) de
Ilha Solteira. É doutor em Educação pela Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Concluiu pós-doutorado, mestrado em Edu-
cação para a Ciência e licenciatura em Física pela Unesp
de Bauru. É Professor Associado Doutor do Departa-
mento de Física e Química da Unesp de Ilha Solteira
e do Programa de Pós-Graduação em Educação para
a Ciência (PG/FC) da Unesp de Bauru. É credenciado
como orientador específico no programa Interunidades
em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo
(USP). Coordena o grupo de pesquisa Ensino de Ciên-
cias e Inclusão Escolar (Encine). Concentra suas investi-
gações na interface ensino e aprendizagem de ciências
para estudantes Público-Alvo da Educação Especial.
· [email protected]·
· http://lattes.cnpq.br/3417921730250572 ·
Fabiana Oliveira Koga

· Graduada em Instrumento Piano e em Educação Mu-


sical pela Universidade do Sagrado Coração (Unisagra-
do-Bauru). Pós-graduada em Psicopedagogia Clínica
pela Faculdade Paulista. É mestra e doutora em Edu-
cação pela Universidade Estadual Paulista – Faculdade
de Filosofia e Ciências, campus de Marília. É autora do
livro "Precocidade e Superdotação Musical" (pesquisa
realizada com o apoio do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – bolsa
de mestrado) e autora, com o apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),
do "Protocolo para Screening de Habilidades Musicais
– PSHM". É membro do Grupo de Pesquisa para o De-
senvolvimento do Potencial Humano (Grupoh-UFSCar),
Grupo de Pesquisa para o Desenvolvimento das Altas
Capacidades (Grupac-IFBA) e pós-doutoranda, na Uni-
versidade Federal de São Carlos, sob a coordenação da
Profa. Dra. Rosemeire de Araújo Rangni. É bolsista da
Fapesp.
· [email protected]
· https://lattes.cnpq.br/2374819863188673

Fabiane Maria Silva

· Doutoranda e mestra em Educação pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG), assistente social for-
mada pela PUC Minas, pós-graduada em Atendimento
Integral à Família, pela Universidade Veiga de Almeida,
e em Gestão de Políticas Públicas com foco em Gênero
e Raça, pela Universidade Federal de Viçosa. Possui
vínculo de servidora federal, atuando como assistente
social na UFMG. Seus principais temas de interesse
como pesquisadora são: políticas públicas, Educação
Especial, Educação de Jovens e Adultos (EJA), indica-
dores educacionais, envelhecimento e aposentadoria.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/6831206667238563
Kamille Vaz

· Graduada em Pedagogia, mestra e doutora em


Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). É professora efetiva da Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Prin-
cipais temas de interesse: trabalho e educação, política
educacional, política de Educação Especial, trabalho
docente e formação de professores.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/0888894991436388

Laura Portugal da Silva Nascimento

· Pedagoga e mestra em Educação, Conhecimento


e Inclusão Social pela Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua como
professora hospitalar em Hospital de Reabilitação.
Tem interesse na área de Educação, com ênfase em
ensino-aprendizagem aplicado à reabilitação, Educação
Especial, Educação de Jovens e Adultos, pedagogia
hospitalar.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/5444410706862652

Marcela Ribeiro da Silva

· Graduada em licenciatura plena em Física pela Uni-


versidade Federal de São Carlos (UFSCar – 2013). Mestra
(2016) e doutora (2020) em Educação para a Ciência, na
área de Ensino de Ciências e Matemática, pela Univer-
sidade Estadual Paulista (Unesp-Bauru). É membro do
Grupo de Pesquisa Ensino de Ciências e Inclusão Esco-
lar (Encine). Desenvolve pesquisa em Ensino de Física,
com ênfase na educação inclusiva do Público-Alvo da
Educação Especial. É professora de Educação Básica de
Física, vinculada à Secretaria de Estado de Educação de
Minas Gerais.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/6150822159853049
Mônica de Carvalho Magalhães Kassar

· Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual


de Campinas (Unicamp), com mestrado em Educação
pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) e doutorado em Educação pela Unicamp.
Realizou estágios de pós-doutorado na Universidad
de Alcalá, na Unicamp e na Universidade de Lisboa. É
professora titular na UFMS e pesquisadora sênior volun-
tária da mesma universidade, onde atua no Programa
de Pós-Graduação em Educação – Educação Social,
campus do Pantanal. Presidente da Associação Brasi-
leira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE),
gestão 2021-2023. Temas de interesse: história da Edu-
cação Especial, desigualdade e diversidade, política
educacional.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/1429290076961055

Nassim Chamel Elias

· Graduado e mestre em Ciência da Computação e


doutor em Educação Especial, todos pela Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar). Foi bolsista da Fun-
dação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes) de pós-doutorado em
Análise do Comportamento. Atualmente, é professor
do Departamento de Psicologia da UFSCar, nos cursos
de licenciatura em Educação Especial e graduação em
Psicologia e nos Programas de Pós-Graduação em Edu-
cação Especial (PPGEEs) e em Psicologia (PPGPsi). Seus
interesses atuais são análise experimental e aplicada do
comportamento, comportamento verbal, equivalência
de estímulos, nomeação, Educação Especial, Transtorno
do Espectro do Autismo, deficiência intelectual e auditi-
va e software educativo.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/1429290076961055
Rosalba Maria Cardoso Garcia

· Mestra e doutora em Educação pela Universidade


Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do De-
partamento de Estudos Especializados em Educação
da UFSC. Membro do Grupo de Estudos sobre Política
Educacional e Trabalho. Pesquisadora das políticas
públicas para a educação com ênfase na Educação
Especial.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/4609849867365524

Rosemeire de Araújo Rangni

· Graduada em Pedagogia (Universidade de Gua-


rulhos – 2002), em Direito (Faculdades Integradas de
Guarulhos – 1982), mestra em Educação (Universidade
Cidade de São Paulo – 2005) e doutora em Educação
Especial (Universidade Federal de São Carlos – 2012).
Atualmente é Professora Associada 1 da UFSCar. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em
Educação Especial, atuando principalmente nos temas
altas habilidades ou superdotação e atendimento
educacional especializado. É lider do Grupo de Pes-
quisa para o Desenvolvimento do Potencial Humano
(Grupoh-UFSCar). e vice-líder do Grupo de Pesquisa
para o Desenvolvimento das Altas Capacidades
(Grupac-IFBA).
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/6399149504309769
Rosimeire Maria Orlando

· Pedagoga pela Universidade Estadual Paulista


(Unesp-Ararquara), mestra em Metodologia do Ensino
pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e
doutora em Educação Escolar pela Unesp (Araraqua-
ra). Atualmente é docente do Curso de Licenciatura em
Educação Especial e do Programa de Pós-Graduação
em Educação Especial (UFSCar). Temas de interesse:
escolarização da pessoa com deficiência da Educação
Básica à Educação Superior, direitos sociais das pesso-
as com deficiência.
· [email protected]
· https://lattes.cnpq.br/4254571422608459

Sabrina Amanda Cordeiro

· Formada em licenciatura em Educação Especial pela


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em Edu-
cação Especial, atuando principalmente nos seguintes
temas: Educação Especial, comunicação alternativa,
acessibilidade, tecnologias, acessibilidade digital.
· [email protected]
· https://lattes.cnpq.br/4130049811266180
Sabrina David de Oliveira

· Doutoranda em Educação Especial pelo Progra-


ma de Pós-Graduação em Educação Especial da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com o
projeto de pesquisa intitulado "Relação entre aten-
ção compartilhada e operantes verbais em crianças
com autismo", sob orientação do Prof. Dr. Nassim
Chamel Elias e com auxílio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Pós-graduanda em Análise do Comportamento Apli-
cada ao Autismo, pelo Laboratório de Aprendizagem
Humana, Multimídia Interativa e Ensino Informatizado
da UFSCar (2019). Mestra em Educação Especial pelo
Programa de Pós-Graduação da UFSCar (2017), com
o projeto de pesquisa intitulado "Correlação entre
os resultados de avalições neuropsicológicas e o de-
sempenho em discriminação condicional com crianças
com Transtorno do Espectro do Autismo", sob orien-
tação do Prof. Dr. Nassim Chamel Elias e com auxílio
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes). Graduada em Psicologia pela
Universidade de Franca (2012), especializada em Neu-
ropsicologia pela Divisão de Psicologia HC/USP-SP
(2014) e Reabilitação Neuropsicológica pelo Centro de
Estudos de Neurologia "Prof. Antônio Branco Lefèvre"
– Instituto Central do Hospital das Clínicas – FMUSP-SP
(2016). Atua nas áreas: psicoterapia, avaliação e reabi-
litação neuropsicológica, análise do comportamento e
psicopedagogia.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/7788544598559668

Taísa Grasiela Gomes Liduenha Gonçalves

· Pedagoga pela Universidade Estadual de Londrina


(UEL), mestra em Educação pela UEL e doutora em
Educação Especial pela Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). Atualmente é professora adjunta da
Faculdade de Educação (FaE) do Departamento de
Ciências Aplicadas à Educação (Decae) e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Líder do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Educação Especial e Direi-
to Escolar (Gepeede). Temas de interesse: Educação
Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do
Campo e indicadores educacionais.
· [email protected]
· http://lattes.cnpq.br/5621711552244157
Jairo Maurano Machado (Prefaciador)

· Jairo Maurano Machado possui mestrado em


Educação Especial pelo PPGEEs/UFSCar (2022), com
enfoque em discussões sobre direitos das pessoas
com deficiências na Educação Superior; graduação em
Direito pela Universidade de Sorocaba – Uniso (2011);
especialização em Direito e Processo do Trabalho pelo
Instituto Verbo Jurídico (2020); Servidor Público do
Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região – TRT15
(2011).
· http://lattes.cnpq.br/6839756025507159

Ricardo Ferraz (Ilustração da capa)

· Ricardo Ferraz, 70 anos, residente em Cachoeiro de


Itapemirim-ES, teve poliomielite aos 5 anos de idade e
logo descobriu na arte do desenho seu passatempo.
Com dedicação e amor à arte, foi o cartunista pioneiro
ao abordar a realidade das pessoas com deficiência,
com o objetivo de sensibilizar a sociedade sobre as
barreiras físicas e atitudinais enfrentadas numa época
em que essas pessoas viviam na invisibilidade social
devido ao preconceito e à ausência de uma cultura
inclusiva. Sua arte foi porta-voz daqueles que foram
excluídos e que acreditam na força da arte do cartum
como instrumento de transformação. Seus desenhos
ilustram livros didáticos, acadêmicos, palestras entre
tantos outros, e conquistaram visibilidade nacional e
internacional, como na ONU, OIT e nas vinhetas ani-
madas da Rede Globo. Ricardo, que foi um quixote ao
enfrentar ferozmente os preconceitos, com o humor do
cartum desde 1981, hoje, com as conquistas do Movi-
mento das Pessoas com Deficiência e com as quebras
de paradigmas, diz: Fiz a minha parte, mas hoje, com
novo conceito de sociedade inclusiva, cada um deve
fazer a sua parte e acreditar no debate permanente e
nas ações de cidadania. Não falo mais de “deficiência”,
mas de cidadania plena! Só a educação de qualidade
produz cidadania!
· https://www.cadetudo.com.br/ricardoferraz/

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