A Boa Morte e o Bem Morrer

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Sabrina Mara Sant’Anna

A BOA MORTE E O BEM MORRER:

CULTO, DOUTRINA, ICONOGRAFIA E IRMANDADES MINEIRAS

(1721 A 1822)

Belo Horizonte
2006
Livros Grátis
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Sabrina Mara Sant’Anna

A BOA MORTE E O BEM MORRER:

CULTO, DOUTRINA, ICONOGRAFIA E IRMANDADES MINEIRAS

(1721 A 1822)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de


Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais.

Área de concentração: História Social da Cultura


Orientadora: Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

2006
3

Universidade Federal de Minas Gerais


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História

Dissertação intitulada “A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades
mineiras (1721 a 1822)”, de autoria da mestranda Sabrina Mara Sant’Anna, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:

_________________________________________________________________
Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos – FAFICH/UFMG – Orientadora

_________________________________________________________________
Prof. Dr. Caio César Boschi – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

_________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis Costa Taborda – Instituto Santo Inácio de Loyola

_________________________________________________________________
Profa. Dr. Regina Horta Duarte
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História: FAFICH/UFMG

Belo Horizonte, 20 de setembro de 2006.

Av. Antônio Carlos, 6627 – Campus Universitário – 31270-901 – Belo Horizonte/MG/Brasil.


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À vida eterna de meus amados pais,


Irene Alves Sant’ Anna e
Dilermando José de Sant’ Anna
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AGRADECIMENTOS

A Deus, Senhor da minha vida,


toda glória, honra e louvor.

A realização e conclusão deste trabalho não foi uma tarefa solitária. Ao longo de seu

desenvolvimento, contei com a bênção de Deus, apoio e incentivo de familiares, orientações

valiosas da Dra. Adalgisa Arantes Campos, auxílio de amigos e colaboração de zeladores de

igrejas, funcionários de arquivos, bibliotecas e museus.

Graças à famosa hospitalidade mineira, durante o tempo de pesquisa, fui recebida em

diversos lares e pude poupar gastos com os serviços hoteleiros. Em Ouro Preto, no início do

levantamento arquivístico, fiquei alojada na República Art & Manha por intermédio das amigas

Sofia Antezana e Cristina Sousa. Na ocasião da transcrição dos documentos, minha estimada

orientadora cedeu-me sua aconchegante residência ouro-pretana por dois longos meses. Em

Mariana, contei com a generosidade do casal Júlia e Orlando Diniz Carvalho, que me abrigaram

com conforto e simpatia. Em São João Del-Rei, passei uma semana agradabilíssima na casa dos

anfitriões Adma e Erman Lima, que me foram apresentados pela querida Zélia Fattini.

Nas Instituições onde pesquisei, fui atendida com cordialidade e presteza. No Arquivo

Paroquial de Nossa Senhora da Conceição (Ouro Preto), recebi prestimosa assistência do Diácono

Permanente Agostinho Barroso de Oliveira (Diretor do Museu Aleijadinho), da secretária Maria

das Graças Reis Quirino e do seminarista Bráulio Sérgio Mendes. No Arquivo Paroquial de

Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto), a agilidade de Carlos Aparecido de Oliveira (Caju) foi

fundamental para o rápido andamento das consultas. Monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues,

diretor do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, e sua equipe – Luciana Viana


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Assunção, Fabiane Borges Maia Moreira e Adelma dos Santos – não pouparam esforços em

tornar acessíveis os diversos documentos que requisitei para análise. Na Biblioteca dos Bispos

Marianenses (Museu do Livro), a funcionária Maria da Glória Assunção Moreira auxiliou-me

com zelo e dedicação. No Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João Del-Rei, contei com a

colaboração do diretor Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva, do historiador Giovanni Alves

de Paula e do confrade Aluísio José Viegas. A este último muito devo pelas conversas

proveitosas que tivemos e por conceder-me acesso livre ao precioso acervo documental e à

imaginária particular da Confraria são-joanense de Nossa Senhora da Boa Morte. Ressalto

também a gentileza dos funcionários do Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto, do Museu da

Inconfidência, do Arquivo Público Mineiro, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e

Artístico de Minas Gerais, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da

Biblioteca Padre Vaz (Instituto Santo Inácio de Loyola).

Todo trabalho tem seus interlocutores. Com agradecimento especial distingo três pessoas.

A Dra. Adalgisa Arantes Campos pelas orientações, constante acompanhamento, empréstimo de

livros, leitura crítica de meus textos e amizade. O Dr. Francisco de Assis Costa Taborda por

compartilhar sua erudição teológica, pelas sugestões bibliográficas e importantes apontamentos a

respeito do desenvolvimento da mariologia, da doutrina escatológica e da história do

cristianismo. O amigo mestre Felipe Augusto Bernardi, pela delicadeza com que escutava minhas

lamentações nos momentos de dificuldades, longas tardes de estudo regadas a café forte e

relevantes discussões teóricas que travávamos.

Agradeço à Profa. emérita Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho, presidente do CECOR,

pelas sugestões e pertinentes observações que fez na ocasião de meu exame de qualificação. Aos

queridos Alex Bohrer, Cecília Luttembarck, Flávia Gervásio, Jader Barroso Neto, Júlio Caetano,

Júlio Martins, Naiane Loureiro, Pablo Mendonça, Renato Franco, Talma Pereira e Wanete Costa
7

pela parceria, interesse, material fotográfico e informações sobre a localização de algumas fontes.

À Maria Beatriz Jacob Leite pelos bons conselhos, amizade sincera e dedicada ajuda na tradução

de textos em francês. Aos seminaristas Bráulio Sérgio Mendes, Claudinei Lourenço de Souza,

João Paulo da Silva, Jorge Henrique Abreu Tanus, Joaquim Diogo de Melo e Eduardo Bordoni

Teixeira pelos empréstimos de livros, auxílio nas pesquisas, conversas agradáveis, almoços, chás

e cafezinhos que me ofereceram no Seminário de Mariana. À Edriana Aparecida Nolasco e

Herinaldo Oliveira Alves pela colaboração e eficiente trabalho de transcrição que realizaram.

Esta foi uma dissertação feita em família. Minha mãe procurou as referências bíblicas que

utilizei e me apoiou em todos os momentos. Meu irmão Ramon digitalizou e tratou as imagens.

Minhas manas Iolanda e Samantha, conferindo a inteligibilidade do texto, leram os capítulos

inúmeras vezes e acabaram decorando algumas partes. Meus pequenos sobrinhos Anna, Felipe,

Luiza e Isadora de tanto ouvirem falar sobre o “bem morrer” tornaram-se especialistas no

assunto. Meu namorado, Luiz Carlos Villela Milagres, foi responsável pelo levantamento das

fontes impressas que usei. Sem o seu companheirismo, cumplicidade e paciência nas horas de

angústia tenho dúvidas de que teria conseguido chegar ao fim deste trabalho. O incentivo e

carinho do meu pai, dos meus tios Fábio e Neusa e da minha avó Iolanda Djanira também foram

fundamentais. Aos meus familiares, incluindo o Luiz, ofereço o resultado de nossa bela parceria.

Para finalizar, registro minha eterna gratidão a todos que – de uma maneira ou de outra –

contribuíram para a elaboração desta dissertação de mestrado. Agradeço também ao CNPq pela

ajuda financeira que me proporcionou, facilitando o desenvolvimento da pesquisa.


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Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.

Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;

Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar;

Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar;

Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;

Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora;

Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;

Tempo de amar, e tempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo de paz.

Eclesiastes 3, 1-8
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ABREVIATURAS

ACC: Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto

AEAM: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana

AEDSJDR: Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João Del-Rei

AHU: Arquivo Histórico Ultramarino

APM: Arquivo Público Mineiro

APNSC; Arquivo Paroquial de Nossa Senhora da Conceição (Ouro Preto)

APNSP: Arquivo Paroquial de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto)

IBMI: Inventário de Bens Móveis e Integrados

IEPHA/MG: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais

IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – O Julgamento Final (Tímpano da Catedral de Notre Dame de Paris)...............................................11


Figura 2 – A morte da Virgem (Hugo van der Góes)..........................................................................................15
Figura 3 – O homem bom em seu leito de morte (“Ars Moriendi”)..............................................................16
Figura 4 – Segunda Anunciação (Duccio di Buoninsegna)................................................................................24
Figura 5 – Anunciação da Natividade do Redentor (Duccio di Buoninsegna).............................................25
Figura 6 – Segunda Anunciação (Jean Fouquet)................................................................................................26
Figura 7 – A Dormição da Virgem (Igreja da Dormição do Desyatinny Monastério)......................................28
Figura 8 – A Dormição da Virgem (Igreja da Martorana).................................................................................30
Figura 9 – A Dormição da Vigem (Igreja de Santa Maria Maggiore)...............................................................31
Figura 10 – Detalhe: Pedro, Paulo e João (Igreja de Santa Maria Maggiore).................................................31
Figura 11 – A morte da Virgem (Catedral de Estrasburgo)................................................................................32
Figura 12 – A morte da Virgem (Andrea Mantegna).........................................................................................33
Figura 13 – O Trânsito da Virgem (Veit Stoss).................................................................................................34
Figura 14 – A morte da Virgem (Hans Holbein, o Velho).................................................................................35
Figura 15 – Nicho do altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (Ouro Preto)....................36
Figura 16 – Coroamento do altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (Ouro Preto)........37
Figura 17 – Oratório de Esmolar (Ouro Preto)...................................................................................................38
Figura 18 – Altares de Nossa Senhora da Boa Morte (Ouro Preto e São João Del Rei).............................39
Figura 19 – Altar de Nossa Senhora da Boa Morte: detalhe (São João Del Rei).......................................39
Figura 20 – O funeral de Maria e seu primeiro milagre post-mortem (Duccio de Buoninsegna)..........42
Figura 21 – O funeral de Maria (Sabará).............................................................................................................43
Figura 22 – Assunção da Virgem (Lippo Memmi)............................................................................................46
Figura 23 – Assunção da Virgem (Donatello) ...............................................................................................47
Figura 24 – Assunção da Virgem (Filippino Lippi)...........................................................................................47
Figura 25 – Assunção da Virgem (Correggio)...................................................................................................48
Figura 26 – Assunção da Virgem (Guido Reni).................................................................................................49
Figura 27 – Assunção da Virgem (Nicolas Poussin)..........................................................................................50
Figura 28 – Assunção da Virgem (André Gonçalves).......................................................................................51
11

Figura 29 – Assunção da Virgem (Antônio Martins da Silveira).......................................................................53


Figura 30 – Assunção da Virgem (Matriz de Santa Luzia)................................................................................54
Figura 31 – A morte do justo (Serro)...................................................................................................................63
Figura 32 – A morte do pecador (Serro).............................................................................................................64
Figura 33 – A morte do justo (Ouro Preto)..........................................................................................................65
Figura 34 – A morte do pecador (Ouro Preto)....................................................................................................66
Figura 35 – A morte do justo (Sabará)................................................................................................................67
Figura 36 – Mapa............................................................................................................................75
Quadro 1 – Irmandades mineiras de Nossa Senhora da Boa Morte...............................................77
Quadro 2 – Taxas e Missas.............................................................................................................79
Quadro 3 – Celebração do Trânsito da Virgem..............................................................................86
12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................01

CAPÍTULO 1
A CRENÇA NA DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA: APÓCRIFOS, LITURGIA E
DOUTRINA...................................................................................................................................03
1.1 Os apócrifos..............................................................................................................................03
1.2 A liturgia e a doutrina católica.................................................................................................07

CAPÍTULO 2
A ICONOGRAFIA DO “TRÂNSITO” DE MARIA: DO ORIENTE CRISTÃO À CAPITANIA
DAS MINAS..................................................................................................................................20
2.1 A Legenda Áurea e as representações do “Trânsito” mariano.................................................20
2.1.1 A Segunda Anunciação...................................................................................................22
2.1.2 A navegação aérea dos discípulos...................................................................................27
2.1.3 A Dormição e a assunção da alma de Maria....................................................................29
2.1.4 O cortejo fúnebre e o primeiro milagre post-mortem de Maria.......................................40
2.1.5 A Assunção corporal de Maria........................................................................................44

CAPÍTULO 3
OS “FINS ÚLTIMOS” DO HOMEM E A CONCEPÇÃO DE BOA MORTE: LITERATURA
PIEDOSA, REPRESENTAÇÕES E COTIDIANO......................................................................56
3.1 A doutrina dos Novíssimos.....................................................................................................56
3.2 O Juízo Particular, o Juízo Universal e a arte do “bem morrer”.............................................57
3.3 A boa morte e a vivência do “bem morrer” nas Minas..........................................................69
13

CAPÍTULO 4
IRMANDADES MINEIRAS DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE: COMPROMISSOS E
SOCIABILIDADE CONFRARIAL NO TERRITÓRIO DAS MINAS (1721-1822)...................74
4.1 As Irmandades mineiras de Nossa Senhora da Boa Morte.......................................................74
4.2 A composição étnica, os deveres e os direitos dos confrades...................................................77
4.3 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção...............................................................83

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................88

REFERÊNCIAS............................................................................................................................89

ANEXOS
I. Relato apócrifo atribuído a São João Evangelista ......................................................................97
II. Novena de Nossa Senhora da Boa Morte ...............................................................................123
1

INTRODUÇÃO

“Murcha depressa a beleza vã, o corpo envelhece e todos passam


pela porta do fim inevitável. Existimos hoje, amanhã não
sabemos o que será de nós. Tudo é incerto afora o morrer.”
(Mário Martins)1

A morte é uma realidade, uma lei natural a qual todos os seres viventes estão sujeitos e

que não conseguem burlar. Ela é o limite entre a existência terrena e o desconhecido, entre o fim

das atividades corpóreas e um por vir incerto. Experiência incógnita que inquieta a humanidade

desde os tempos mais recuados.

O desaparecimento do indivíduo – aniquilação da matéria – suscitou o nascimento de

cerimônias fúnebres que, entre outras coisas, testemunham o desejo de perpetuação da memória e

do prolongamento da existência. Nas sociedades arcaicas, o homem, ao tomar consciência de sua

individualidade e da morte, praticou ritos em honra dos defuntos e acreditou na “realidade” da

vida além-túmulo. 2 Estudos etnológicos mostram “que em toda parte os mortos foram ou são

objetos de práticas que correspondem, todas elas, a crenças referentes a sua sobrevivência (na

forma de espectro corporal, sombra, fantasma etc.) ou a seu renascimento”. 3 A idéia da

extensão da vida após o falecimento é antiga e está presente em várias tradições religiosas.

Nesta dissertação abordamos a concepção imortalista cristã, cuja doutrina não ignora as

leis biológicas, mas, ao contrário, reconhece na finitude física o portal para a eternidade do ser.

No primeiro capítulo tratamos da crença e do culto católico ao “Trânsito” da mãe de Jesus

1
MARTINS, Mário. Introdução histórica à vidência do tempo e da morte. Braga: Livraria Cruz, 1969. v. 1. p. 25.
2
Sobre o processo de individualização humana e a consciência da morte cf. LANDSBERG, Paul-Louis. Essai sur
l’expérience de la mort. Paris: Éditions du Seuil, 1951. p. 25-30. Sobre os ritos fúnebres cf. BAYARD, Jean-Pierre.
Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996. 321 p. Título original: Les sens caché
des rites mortuaires: mourir est-il morrir?; MORIN, Edgar. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
354 p. Título original: L’homme et la mort.
3
MORIN, Edgar. O homem e a morte... op. cit., p. 25.
2

(assumptio animae e/ou assumptio corporis). Partindo dos estudos feitos por Simon Claude

Mimouni, demonstramos o surgimento e as diferenças entre as literaturas apócrifas

dormicionistas e assuncionistas, a circulação destas no oriente e no ocidente cristão, a celebração

litúrgica da Assunção e o desenvolvimento da mariologia. No segundo capítulo, seguindo os

estudos de Louis de Réau, examinamos detidamente o corpus iconográfico relativo ao fim da

existência terrena de Maria e a função litúrgico-pedagógica de cada um dos temas que o compõe.

Correlacionado o relato apócrifo atribuído a São João Evangelista – difundido no ocidente com

grande êxito a partir do século XIII – com imagens produzidas durante a Idade Média e a época

Moderna, exploramos os seguintes temas: a Segunda Anunciação, a Navegação aérea dos

discípulos, a Dormição, o Cortejo fúnebre e a Assunção da Virgem. No terceiro capítulo, tendo

como referência os trabalhos de Michael Schmaus, Alberto Tenenti e Adalgisa Arantes Campos,

abordamos a doutrina dos Novíssimos do Homem (escatologia), a concepção de boa morte

expressa na literatura piedosa dos séculos XVII e XVIII, o papel instrutivo-formador das

representações advindas da Ars Moriendi e a vivência do “bem morrer” na Capitania das Minas.

No quarto capítulo, seguindo a linha de estudos confrarias de Caio César Boschi, Marcos

Magalhães de Aguiar e Adalgisa Arantes Campos, mapeamos as Irmandades de Nossa Senhora

da Boa Morte erigidas em Minas Gerais entre 1721 e 1822 e analisamos a composição étnica dos

confrades, os direitos e os deveres dos filiados e a celebração da festa da padroeira.

No transcorrer da dissertação, enfatizamos que, para os cristãos, morrer não carrega em si

o peso da aniquilação, pois não se limita à corrupção corpórea. A morte é o meio que permite

transcender a realidade efêmera deste mundo e alcançar a plenitude do espírito, ou seja, a vida

eterna. Por esta razão, a boa morte e os ritos de “bem morrer” foram assuntos de grande

importância na cultura e no imaginário cristão de outrora.


3

1. A CRENÇA NA DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA: APÓCRIFOS, LITURGIA E


DOUTRINA

“Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em


mim, ainda que esteja morto, viverá; E todo aquele que vive, e crê
em mim, nunca morrerá. Crês tu isto?” (João 11, 25-26).

1.1 OS APÓCRIFOS

Nas Sagradas Escrituras não existe relato sobre a morte e a assunção da mãe de Jesus.

Estes temas marianos surgiram no oriente e foram difundidos, desde a patrística, pela tradição

oral, por fontes literárias apócrifas, pela liturgia e pela arte.

A palavra apócrifo 4 – do grego apókryphos e do latim apocryphus – significa secreto,

oculto. No século IV, após a definição do Cânon da Bíblia, o termo tornou-se pejorativo (tomou o

sentido de falso, suposto) e passou a designar os textos não incluídos no corpus bíblico por se

tratarem de obras sem o reconhecimento eclesial. Apesar de não ser considerada pela Igreja como

portadora da “Revelação” (= canônica), a literatura apócrifa possui peso relevante do ponto de

vista da história da cultura religiosa cristã, pois manifesta a alma popular dos primeiros tempos

“que crê nas verdades fundamentais da fé, mas que, para além dessas verdades, quer saciar-se

com gestos e situações em que o divino não esteja reduzido a fórmulas estáticas”. 5

4
Cf. JUNOD, Eric. APÓCRIFO. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas; Edições Loyola, 2004. p. 167-170. Título original: Dictionnaire critique de théologie.; PERETTO, Elio.
APÓCRIFO. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995. p.
125-140. Título original: Nuovo Dizionario di Mariologia.; APÓCRIFO. In: AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral.
Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 34.
5
PERETTO, Elio. APÓCRIFO. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op.
cit., p. 127.
4

No contexto de suas produções, as narrativas apócrifas desempenharam importante papel

devocional uma vez que, guardadas as contradições, propagaram questões doutrinárias

condizentes com as definições oficiais. No caso do fim da existência terrena de Maria e da

transladação de seu corpo aos céus, por exemplo, os textos transmitiram ensinamentos que

convergiam para o cerne das discussões teológicas da época – a maternidade divina e a

integridade virginal 6 – que, posteriormente, fundamentaram o dogma proclamado pelo Papa Pio

XII em 1950. 7

Os episódios da “morte” e assunção corporal da Virgem foram registrados em numerosas

redações, conhecidas sob o título de Dormição (Dormitio) e Trânsito (Transitus) 8 . Essas fontes

escritas são encontradas em diferentes tradições lingüísticas: siríaca, grega, copta, árabe, etíope,

latina, georgiana, armênia, eslava e irlandesa, sendo as mais antigas datadas da segunda metade

do século V. 9

Dentre os diversos códices existentes merecem destaque o relato intitulado Transitus B.

Mariae, do Pseudo-José de Arimatéia, e a versão latina Aprocrifum de assumptione Virgini do

texto grego atribuído a São João Evangelista 10 . Estas duas obras são importantes pelo grande

6
A Maternidade Divina foi afirmada explicitamente no concílio de Éfeso, realizado em 431. A Virgindade perpétua
de Maria foi aceita oficialmente pela Igreja no concílio de Latrão, sob o Papa Martinho I, em 649. Cf. AIELLO,
Ângelo Giovanni. DOGMAS. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p.
410-422.; SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria. In: ______. Teologia Dogmatica. Madrid: Ediciones Rialp S. A,
1963. v. 8. § 3 a 6. p. 82-230.
7
SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria. In: ______. Teologia Dogmática... op. cit., § 7. p. 230-255.
8
Para se referirem ao falecimento da Virgem, os bizantinos utilizavam a palavra grega Koimesis, que significa sono
da morte. A Igreja latina, por sua vez, empregou dois termos distintos: Dormitio (Dormição) e Transitus (Trânsito).
O primeiro era empregado para designar o momento da morte de Maria, considerado um simples sono, pois seu
corpo, de acordo com os relatos apócrifos, foi poupado da corrupção. O segundo, quando se tratava do conjunto –
morte e assunção ou simplesmente assunção. Cf. RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la
Biblia – Nuevo Testamento. Traduccíon Daniel Alcoba. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996. p. 627. Título
original: Iconographie de l’Art Chrétien.; MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie: histoire
des traditions anciennes. Paris: Beauchesne, 1995. v. 98. p. 7-13. (Collection Théologie Historique).
9
MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 57-59.
10
Para assegurar ao conteúdo mitológico a qualidade de verdadeiro, as redações apócrifas, no contexto de suas
produções, foram atribuídas a importantes autores cristãos, como: Dionísio Areopagita, José de Arimatéia, Tiago,
Matheus, Tomé, João Evangelista, seu discípulo Prócoro e outros destacados patriarcas. Cf. CASADO, Pilar
González (Ed.). La dormición de la Virgen: cinco relatos árabes. Madrid: Editorial Trotta S.A., 2002. p. 30.
5

sucesso que alcançaram no ocidente durante a Idade Média, especialmente a última, com a

difusão da Legenda Áurea no século XIII.

Os estudiosos do assunto, em geral, consideram que a carência de informações

neotestamentárias sobre o desenlace da existência terrena da Virgem 11 propiciou o nascimento de

lendas no imaginário 12 cristão, que foram difundidas, em princípio, através da tradição oral. Por

essa razão os textos dormicionistas e assuncionistas apresentam variações regionais de elementos

e personagens, além de manifestarem crenças diferentes.

Simon Claude Mimouni, após analisar sessenta e dois relatos apócrifos (séculos V a VIII),

correlacionando-os com fontes litúrgicas e topológicas, estabeleceu três “grupos doutrinais” 13

distintos. O primeiro, denominado pelo autor de “Dormição sem Ressurreição”, reúne redações

que afirmam a morte de Maria. De acordo com esta concepção, o corpo da Mãe de Jesus foi

poupado da corrupção – enterrado em um jazigo ou transportado para um lugar (preciso ou não) –

e sua alma transladada para os céus, onde aguarda o dia da Ressurreição dos Mortos. O segundo

conjunto, chamado “Dormição e Assunção”, é composto por narrativas escritas cujo conteúdo

testemunha a transição entre a doutrina da “Dormição” e da “Assunção”, revelando elementos

comuns aos dois tipos de crença. O terceiro e último grupo foi subdividido em duas categorias e

por isso recebeu o nome: “Assunção com ou sem Ressurreição”. A ele pertencem os textos que

declaram a mortalidade da Virgem (sepultamento, reunião do corpo com a alma e assunção) e os

11 A última referência bíblica sobre a vida de Maria encontra-se no Novo Testamento em Atos 1, 14. Nesta
passagem lê-se que depois da Ascensão do Cristo, sua mãe perseverara na oração, juntamente com os apóstolos e
com outras mulheres.
12
Utilizamos nesta dissertação o conceito desenvolvido por Patlagean: “o domínio do imaginário é constituído pelo
conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos
encadeamentos dedutivos que estas autorizam.” Cf. PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE
GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 291.
13
Mimouni utiliza o termo “doutrina” para classificar os textos analisados (“doutrina da dormição sem
ressurreição”, “doutrina da dormição e assunção” e “doutrina da assunção com ou sem ressurreição”), entretanto o
autor nos adverte que melhor seria usar a palavra “crença”, pois para o período abordado (séculos V a VIII) não
havia ensinamento oficial a respeito do fim da existência terrena de Maria. Cf. MIMOUNI, Simon Claude.
Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 16.
6

que consideram sua imortalidade (corpo e alma foram transferidos para o céu sem passar pela

tumba). 14

As doutrinas enfatizadas por Mimouni nas fontes literárias, classificadas de acordo com a

tipologia explicitada acima, correspondem a diferentes períodos históricos. A “Dormição sem

Ressurreição” é encontrada nos textos mais antigos (2ª metade do século V). A “Dormição e

Assunção” é considerada a etapa intermediária, pois une aspectos das duas crenças sem fundi-las

completamente (1ª metade do século VI), e a “Assunção com ou sem Ressurreição” é a

concepção mais recente, em relação às duas primeiras (2ª metade do século VI). Entretanto, é

preciso frisar que não se trata de uma evolução histórica das crenças dormicionistas e

assuncionistas, pois uma não suplantou, necessariamente, a outra. De fato, à medida que as

redações surgiram, os três grupos da tipologia coexistiram. 15

Resumidamente, podemos dizer que os relatos sobre a sorte final de Maria dividem-se

entre os que afirmam sua morte e os que atestam sua imortalidade. Todos os textos, independente

do grupo em que estão classificados, exprimem a idéia da incorruptibilidade do corpo da mãe de

Jesus, embora reservem a este corpo destinos diferentes. A tradição literária latina, de maneira

homogênea, privilegiou a versão apócrifa que considera o falecimento, a ressurreição e a

transladação da Virgem aos céus. Portanto, o tema da “Assunção com Ressurreição” e,

conseqüentemente, a crença nele, superou no ocidente os demais tipos “doutrinais”. O relato

propagado na Idade Média pela Legenda Áurea, sobre o qual nos deteremos mais adiante,

encaixa-se neste perfil narrativo.

14
MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 13-22.
15
Sobre as tradições literárias apócrifas dormicionistas e assuncionistas Cf. Ibidem, p. 37-73.
7

1.2 A LITURGIA E A DOUTRINA CATÓLICA

Ao observarmos o desenvolvimento do Magistério Eclesiástico nos primeiros 500 anos da

era presente, consideramos que a liturgia, respaldada na religiosidade popular, instituiu como

verdade a assunção corporal de Maria, antes mesmo da teologia formular os argumentos para

sustentá-la 16 . A convicção do povo cristão foi a mola propulsora para a Igreja incluir essa crença

em seu quadro doutrinal, mas isso não significou a legitimação das narrativas apócrifas.

No fim do século IV, o bispo palestino Epifânio de Salamina (315-403), exortando os

fiéis e refutando a tradição oral, afirmou que o modo como ocorreu o fim terreno da Virgem e o

destino que teve seu corpo eram mistérios divinos e não podiam ser descritos devido à ausência

de dados bíblicos sobre o assunto. 17 Entretanto constatamos que esta rígida opinião não

constituiu uma regra, pois a iconografia, a hinografia e a homilética (patrística e medieval)

absorveram e por vezes reproduziram a apocrifia das lendas dormicionistas e assuncionistas. A

aproximação e a coexistência da doutrina oficial e do imaginário popular podem ser explicadas,

neste caso, pela mariologia incipiente das primeiras centúrias, que de fato só existia em função da

cristologia descendente.

Importante para o desenvolvimento da mariologia foi o concílio de Éfeso, realizado em

431. 18 A pauta principal era a resolução do problema nestoriano, que negava a dupla natureza

16
AIELLO, Ângelo Giovanni. DOGMAS. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de
Mariologia... op. cit, p. 415.
17
O bispo Epifânio, natural de Eleuterópolis, na Judéia , é célebre na teologia mariana por questionar o modo como
ocorreu o fim da existência terrena da mãe de Jesus. Cf. SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria... op. cit., § 7. p.
242-243.; TONIOLO, Ermanno. PADRES DA IGREJA. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário
de Mariologia... op. cit, p. 1018.
18
Sobre o desenvolvimento histórico dos dogmas marianos (concílios) ver: FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone
do mistério: ensaio de mariologia simbólico-narrativa. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. p. 98-140.; AIELLO,
Ângelo Giovanni. DOGMAS. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p.
410-422.
8

concomitante do Cristo. 19 Embora a questão fosse essencialmente cristológica acabou se

concentrando no mistério da maternidade de Maria, que recebeu formalmente o título de

Theotókos (aquela que pariu alguém que é Deus, em latim deipara). 20 Teologicamente, a

expressão significa que a Virgem é a genitora do Verbo encarnado, e neste sentido, a palavra

Deus designa a pessoa do filho e não a do Pai-Criador.

Em 451, na Calcedônia, as reflexões conciliares supracitadas foram retomadas. A

definição da maternidade divina exaltou o papel da mãe do Redentor no plano da salvação,

impulsionando a teologia mariana. A vida da Virgem tornou-se relevante para a Igreja em toda a

sua extensão, do nascimento até a glorificação na eternidade.

Conforme mencionamos, em linhas anteriores, antes da devida fundamentação teológica

surgiu em Jerusalém a Festa da Assunção 21 . Esta comemoração litúrgica teve grande êxito no

oriente a partir da segunda metade do século V, sendo valorosa para isso a contribuição dos

homiletas: Severiano de Gábala († 408), Cirilo de Alexandria († 444), Esíquio de Jerusalém (†

450) e Crisipo de Jerusalém († 479). Na centúria seguinte, merecem destaque o palestino

Teotecno de Lívia, que procurou justificar os elementos apócrifos com argumentos bíblico-

teológicos, e Tiago de Sarug ou de Batnan († 521), que, em ambiente siríaco, compôs um poema

narrando o milagroso “Trânsito” da Bem-aventurada. Ao fim da era patrística, foram importantes

19
Nestório († 451), bispo de Constantionopla entre 428 e 431, defendia que em Cristo existiam duas naturezas
distintas e também duas pessoas. Para ele Maria não era mãe de Deus (o Incriado), mas genitora do homem Jesus
(instrumento da divindade na Terra). Portanto, a Virgem deveria ser chamada de Cristotókos (mãe de Cristo) e não
de Theotókos (mãe de Deus). Cf. TONIOLO, Ermanno. PADRES DA IGREJA. In: FIORES, Stefano de; MEO,
Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p. 1020-1022.; LANGEVIN, Gilles. NESTORIANISMO. In:
LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia... op. cit., p. 1245-1247. MIMOUNI, Simon Claude.
Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 659-664.
20
COTHENET, Édouard.; JOURJON, Maurice.; MEUNIER, Bernard. MARIA. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.).
Dicionário Crítico de Teologia... op. cit., p. 1095.
21
Sobre a origem da Festa da Assunção no Oriente e no Ocidente ver: MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et
Assomption de Marie… op. cit., p. 22-28.; SERRA, Aristide. et al. ASSUNÇÃO. In: FIORES, Stefano de; MEO,
Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p. 186-188.
9

os sermões dos padres: Modesto de Jerusalém († 634), André de Creta († 720), Germano de

Constantinopla († 733) e João Damasceno († 749) 22 .

No ocidente, a celebração da entrada de Maria na glória foi introduzida no calendário

litúrgico por influência de monges orientais que emigraram em massa, desde as primeiras

décadas do século VII, fugindo das invasões persas e árabes. Essa festa, realizada em Roma sob o

papado de Sérgio I (687-701) com solene procissão, foi assimilada pela França e depois pela

Inglaterra, espalhando-se rapidamente entre a comunidade cristã. A argumentação textual do

Pseudo-Agostinho, favorável à assunção, foi seguida pelos célebres escolásticos Alberto Magno

(† 1280) e Boaventura († 1274), que, citando o versículo bíblico registrado em Cantares (8, 5),

contribuíram para a universalização dessa crença. 23

As transformações políticas, econômicas, sociais e culturais ocorridas no ocidente durante

os séculos XII e XIII foram importantes para a consolidação da fé no “Trânsito” da Virgem. O

progresso das atividades agrícolas e o desenvolvimento do comércio e das vilas medievais

ocasionaram, segundo o historiador Georges Duby, uma crescente busca pela autonomia pessoal

e pela individualização do ser. 24

A Igreja, antes absoluta na comunicação entre Deus e os homens, aos poucos foi

absorvendo as necessidades da nova ordem, convidando os fiéis a se esforçarem “em plena

responsabilidade individual, em progredir passo a passo para a perfeição”. 25 A pedagogia da

22
A respeito da assunção de Maria na tradição patrística do século IV ao VIII. Ver: TONIOLO, Ermanno. PADRES
DA IGREJA. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p. 1030.; BOVER,
José M; ALDAMA, José de; SOLA, Francisco de P. La Asunción de Maria: estudio teológico histórico sobre
la asunción corporal de la Virgen a los cielos. Madrid: La Editorial Catolica, 1951. p. 97-144.
23
SESBOÜÉ, Bernard (Dir.). História dos Dogmas Tomo 3: Os sinais da salvação (séculos XII-XX). São Paulo:
Edições Loyola, 2005. p. 502-503. Título original: Histoire des dogmes Tome III: Les signes du salut.
24
“Tal movimento, a mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização progressiva da pessoa”.
DUBY, Georges. A solidão nos séculos XI-XIII. In: ______(Org.). História da vida privada: da Europa feudal à
Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.2. p. 506. Título original: Histoire de la vie privée, vol. 2: De
l’Europe féodale à la Renaissance.
25
Ibidem, p. 522.
10

“devoção privada” que incentivava a subjetivação dos princípios cristãos, cujos agentes foram os

clérigos, substituídos no século XIII pelos frades mendicantes, gerou profundas alterações nas

práticas religiosas. Os sacramentos da penitência (confissão) e da eucaristia (comunhão)

tornaram-se, por determinação do IV concílio de Latrão (1215), obrigação anual. Todos os

cristãos, após atingirem a idade da razão, deveriam confessar pessoalmente os seus pecados ao

pároco e comungarem ao menos na Páscoa. 26 Outro fato relevante foi a oficialização do

Purgatório em 1274 27 . Essa doutrina escatológica modificou a geografia do mundo pós-mortem e

as relações cotidianas dos vivos, uma vez que abriu para estes, outra possibilidade de salvação,

propiciando renovadas condutas para se alcançar o descanso eterno.

Com a concepção espacial trina do Além (anteriormente binária Céu-Inferno) vislumbrou-

se o surgimento da idéia do Juízo Particular. Essa visão eclesiástica, contida ou suposta nas
28
declarações do II concílio de Lião (1274) , responsabilizava cada alma por atos e iniqüidades

cometidos em vida, assegurando julgamento e sentença individual imediatamente após o

falecimento, fato que reforçou o recurso à intercessão dos santos e da Virgem glorificada pelos

moribundos que pressentiam a chegada da morte.

O historiador Phillipe Ariès, analisando as representações do Juízo Universal, verificou

que a imagem apocalíptica da ressurreição dos mortos e do Cristo voltando no final dos tempos,

na qual não havia expressão de avaliação ou de condenação (individual ou coletiva), própria à

escatologia cristã das primeiras centúrias, começou a ser substituída no século XII. A nova

iconografia, inspirada no evangelho de Matheus, enfatizava a separação dos justos e dos

pecadores. O Cristo assentado no trono de juiz foi colocado no centro da cena apresentando-se,

26
SESBOÜÉ, Bernard (Dir.). História dos Dogmas Tomo 3... op. cit., p. 116.
27
A doutrina do Purgatório foi oficializada no II concílio de Lião em 1274. Cf. LE GOFF, Jacques. O Nascimento do
Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1995. p. 330-332. Título original: La Naissance de Purgatoire.
28
BETTENCOURT, Estêvão. A vida que começa com a morte. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1955. p. 49. Sobre o
Juízo Particular e o Juízo Universal consulte o terceiro capítulo desta dissertação.
11

geralmente, rodeado por uma corte (apóstolos e/ou anjos). A partir do século XIII, duas ações

ganharam destaque: a avaliação das almas pelo arcanjo São Miguel e a mediação da Bem-

aventurada Maria e de São João Evangelista, que, ajoelhados e de mãos postas, ladeavam o “Sol

da Justiça” (Sol Justiciae). 29 (FIG. 1)

FIGURA 1 – Tímpano: O Julgamento Final


Portal central da Catedral de Notre Dame de Paris (França); século XIII.
Fonte: <http://sandstead.com/images/paris/notre_dame/Notre_Dame_de_Paris_1163-1345_Paris_LS_d100_08.jpg>
Acesso em: 15 fev. 2006.

Não por acaso, foi neste contexto, entre 1253 e 1270, que o dominicano Jacopo de

Varazze escreveu a Legenda Áurea 30 , coletânea hagiográfica que divulgou no ocidente, de

maneira decisiva, o texto assuncionista atribuído ao evangelista João e também várias homilias,

sobre este tema mariano, que teriam sido proferidas por São Cosme, apelidado Vestidor,

29
Cf. ARIÈS, Philippe. Images de l’homme devant la mort. Paris: Éditions du Seuil, 1983. p. 141-181; ARIÈS,
Philippe. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 47-49.
Título original: Essais sur l’histoire de la mort em Occident.
30
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São Paulo:
Companhia das Letras 2003. 1040 p. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição
fac-similada.
12

Germano, arcebispo de Constantinopla, Dionísio Areopagita, João Damasceno e Agostinho. 31

Com o objetivo de fornecer aos seus colegas de hábito material para a elaboração de sermões

compreensíveis a todos os fiéis e não apenas aos doutos, o autor italiano utilizou como

instrumento de persuasão o “exemplum”. Esse tipo de narrativa inspirava, através de breves

relatos, lições de cunho moral e religioso tornando mais eficiente a parenética e o trabalho

evangelizador (contra heresias) dos seguidores de Domingos de Guzmán (1170-1221). 32

Jacopo selecionou e adaptou fontes eruditas e populares, oscilando entre a teologia e a

mitologia, “entre a necessidade de construir um discurso firmemente ortodoxo e a pressão de

antigas heranças culturais às quais todos os cristãos, conscientemente ou não, estavam

presos”. 33 Neste sentido, a estrutura narrativa de sua obra privilegiava o efeito edificante em

detrimento do conteúdo e, por isso, o emprego de relatos apócrifos foi recorrente.

Da Legenda Áurea existe hoje 1100 manuscritos, dado que revela o sucesso e a

popularidade que esta obra conheceu durante a Idade Média, tendo circulado por vários

territórios. Ela foi traduzida no século de sua produção em vernáculo, em catalão e em alemão.

Na centúria seguinte, foi vertida em provençal, em francês (por volta de 1340), em holandês

(1358) e em tcheco (1360). Entre os anos 1470 e 1500, com a imprensa, alcançou o número de

156 edições superando as publicações da Bíblia Sagrada que, neste período, somaram 128. 34 Se

levarmos em consideração que esta obra era utilizada pelos sacerdotes na elaboração de seus

sermões, fica evidente a extensão de sua difusão. Por esta razão, a elegemos como um marco na

história do desenvolvimento e da longa duração da crença na Dormição e na Assunção de Maria,

31
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit., p. 657-681.
32
Sobre o assunto, cf. a apresentação feita por Hilário Franco Júnior In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea...
op. cit., p. 11-25. A respeito do uso de “exempla” nos sermões, veja também: DUBY, Georges. A solidão nos
séculos XI-XIII. In: ______(Org.). História da vida privada... op. cit., p. 524-525.
33
Apresentação feita por Hilário Franco Júnior In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit., p. 20.
34
Cf. a apresentação feita por Hilário Franco Júnior In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 21-22.
13

sobretudo no mundo ocidental, onde percebemos, concomitante ao seu uso e divulgação, a

proliferação de representações imagéticas referentes a esses dois temas marianos.

Em meados do século XIV, diversos lugares da Europa foram assolados pela chamada

“peste negra”. Constantinopla e Gênova foram atingidas em 1347, logo depois Portugal e

finalmente da Irlanda a Moscou. Esta epidemia estendeu-se pelos anos 1348-1351, eliminando

uma enorme parte da população, estimada entre 2/3 e 1/8 dependendo da região. Entre 1348 e

1720 a peste reapareceu inúmeras vezes abalando as bases do psiquismo individual e instaurando

o medo coletivo. 35

As bruscas rupturas sentidas no cotidiano – silêncio na cidade, solidão (abandono) na

doença, interrupção dos ritos públicos de alegria e de tristeza, dissolução da família causada por

falecimentos, substituição dos sepultamentos personalizados por inumações conjuntas em covas

comuns, entre outras – aliadas a uma crescente insegurança social, minaram, gradativamente, a

possibilidade de conceber projetos de futuro. De acordo com Jean Delumeau “a epidemia

obrigava a considerar cada minuto como um sursis e a não ter outro horizonte diante de si que

não o de uma morte próxima”. 36

Neste ambiente, desestruturado pela angústia do homem diante do fim derradeiro, o

exemplo da Dormição e da Assunção de Maria tornou-se imprescindível. Sua morte, considerada

como um simples sono, inspirava os fiéis a vencerem com serenidade e contrição a última etapa

da existência terrena. A elevação da alma e do corpo da Virgem aos céus, transmitia aos cristãos

a convicção da vida eterna, transformando o trânsito entre a “Jerusalém Peregrina” e a

“Jerusalém Celeste” em um desejável e incomparável gozo.


35
Sobre a epidemia da peste Cf. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800 uma cidade sitiada.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 107-150. Título original: La peur en Occident (XIVe-XVIIIe siècles): une
cité assiégée.; DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000: na pista de nosso medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa
Oficial do Estado, 1999. p. 77-95. Título original: An 1000 an 2000. Sur les traces de nos peurs. BOCCACCIO,
Giovanni. Decamerão. Tradução de Torrieri Guimarães. 2. ed. São Paulo: Ed. Abril, 1971. 582p.
36
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente... op. cit., p. 125.
14

No quatrocentos, a circulação de gravuras advindas da “Ars Moriendi”, literatura religiosa

cuja exortação é dirigida para a aceitação tranqüila da finitude da vida, reforçou a doutrina do

Juízo Particular e o recurso à intercessão dos santos, corroborando com a idéia de que apenas os

justos tinham uma boa morte como a da mãe de Jesus. 37 De acordo com os clérigos do declínio

da Idade Média e época Moderna, aqueles que viviam dentro da orientação ética do cristianismo

não temiam a hora da passagem deste mundo para o do Além, pois tinham confiança na salvação.

Na FIG. 2, Maria deitada em sua cama, rodeada pelos apóstolos, vislumbra um espetáculo

espiritual: o Cristo, acompanhado de anjos, abre os braços para recebê-la no céu (assumptio

animae). A expressão do rosto e a posição do corpo da Bem-aventurada sugerem sua entrega

resignada e seu total desapego às coisas terrenas. Ao fundo da cena, dois homens acendem uma

vela, conforme o costume, para ser colocada entre as mãos da mulher agonizante. A FIG. 3, por

sua vez, apresenta-nos um moribundo devoto em seu leito mortuário; seguindo o mesmo padrão

comportamental da Virgem, ele segura um círio aceso entregue pelo monge que o ladeia. Sua

alma (pequena figura humana em posição de oração) é recebida por um anjo debruçado sobre a

cabeceira. Ao fundo, vemos Jesus crucificado cercado por santos intercessores e no primeiro

plano, os demônios derrotados proferindo as seguintes palavras (inscrições que saem de suas

bocas): “Estou furioso”, “Estamos perdidos”, “Estou assombrado”, “Isto não é consolo”,

“Perdemos esta alma”. 38

37
Sobre a “Ars Moriendi” Cf. TENENTI, Alberto. Ars Moriendi: quelques notes sur le problème de la mort à la fin
du XVe siècle. In: Annales ESC, oct/dec, 1951. p. 433-46; ROMANO, Ruggiero; TENENTI, Alberto. Los
fundamentos del mundo moderno: edad media tardia, reforma, renascimiento. Madrid: Ediciones Castilla S.A, 1971.
p. 71-103. TENENTI, Alberto. Il senso della morte e l’amore della vita nel Rinascimento: Francia e Italia. Torino:
Einaudi Editore, 1989. p. 62-120.; CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro: o culto
a São Miguel e Almas. 1994. 432 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. p. 33-37.
38
A tradução das inscrições que saem das bocas dos demônios encontra-se em: GOMBRICH, E. H. A História da
Arte. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1999. p. 282. Título original: The Story of Art.
15

FIGURA 2 – A morte da Virgem.


Hugo van der Góes, 1480.
Fonte: GOMBRICH, 1999, p. 278.
16

FIGURA 3 – O bom homem em seu leito de morte.


Ilustração de “A arte de bem morrer”, publicado em Ulm, 1470.
Fonte: GOMBRICH, 1999, p. 283.
17

No século XVI, as Reformas Protestantes e suas críticas ao culto mariano deram novo

impulso à antiga crença assuncionista. Martinho Lutero (1483-1546), Huldrych Zuínglio (1484-

1531) e João Calvino (1509-1564) contestaram a transladação do corpo de Maria ao Paraíso, por

não encontrarem fundamento bíblico que a sustentasse. Para eles apenas a Ascensão do Cristo é

“Verdade Revelada” e só nela o povo deveria depositar confiança. A pronta reação dos teólogos

católicos transformou em doutrina o que antes era apenas pia convicção. 39

Em 1648, seguindo as orientações doutrinárias de Trento, que reiteravam e incentivavam

o culto à Santa Mãe de Deus 40 , fundou-se, na Igreja do Gesú, em Roma, a Confraria da Boa

Morte. Esta associação religiosa, que tinha como prática regular a devoção a Jesus, suas chagas, à

Eucaristia e às aflições da Virgem 41 , foi difundida com grande êxito em Portugal e seus

domínios, a partir do setecentos. 42

Na Capitania das Minas o culto à Dormição e Assunção de Maria foi oficialmente

instituído no primeiro quartel do século XVIII, quando irmandades leigas vocacionadas à Nossa

Senhora da Boa Morte começaram a ser erigidas. A primeira delas estabeleceu-se em 1721, na

freguesia de Antônio Dias de Vila Rica (Ouro Preto) 43 , a segunda no ano de 1730, na freguesia
44
de Nossa Senhora de Nazareth da Cachoeira (Cachoeira do Campo) e a terceira por volta de

1734 na freguesia de Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rei. 45

39
Cf. SERRA, Aristide. et al. ASSUNÇÃO. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de
Mariologia... op. cit., p. 175.
40
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia: manual de los símbolos, definiciones y declaraciones de La
Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Editorial Herder, 1963. n° 986. Título original: Enchiridion
Symbolorum.
41
LAVIN, Irving. "Bernini's Death" In: The art bulletin, LIV, 2. 1972. p. 158-86.
42
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Morte, a mortificação e o heroísmo: o homem 'comum' e o 'santo'. Revista do
IFAC/UFOP, Ouro Preto, v. 1, 20 dez. 1996. p. 8.
43
APM, CC – 2004, microfilme 127 (2/7), E5. Livro de assento de irmãos (1721-1765). Infelizmente não
encontramos nos arquivos pesquisados os Estatutos, os Livros de Posse, Receita e Despesas desta irmandade.
44
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Livro de Compromisso (1731),
Livro de Assento de Irmãos (1730-1840), Livro de Receita e Despesas (1730-1746), Livro de Posse (1736-1807).
45
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Livro de Compromisso (1786). Na
folha 2 dos Estatutos de 1786 se lê que esta irmandade havia sido ereta há mais de cinqüenta anos.
18

Com o claro objetivo de ensinar Teologia Moral 46 e formar padres capazes de ajudar a

população a “bem morrer”, 47 o bispo Dom Frei Manoel da Cruz, em 20 de dezembro de 1750,

inaugurou o Seminário da Boa Morte, em Mariana, estimulando a devoção à Virgem jacente e

assunta. Quatro anos depois, iniciou-se uma gradativa proliferação de confrarias com esta

invocação, tendo o Arraial da Borda do Campo 48 (atual município de Barbacena), encabeçado a

lista. Em plena atividade, estiveram elas nas seguintes regiões: Arraial de Guarapiranga

(Piranga), Arraial de Aiuruoca (Aiuruoca), Vila de Baependi (Baependi), Vila da Campanha da

Princesa (Campanha) e Arraial de Catas Altas do Mato Dentro (Catas Altas), constituindo ao

todo, no período entre 1721 a 1822, nove centros irradiadores deste culto, devidamente

amparados em suporte material (imagens), licença régia e eclesiástica. 49

No contexto das Minas, as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte desempenharam

relevante papel sócio-pio-cultural porque funcionaram como agentes da caridade cristã, prestando

assistência material e espiritual a seus confrades, contribuíram para o desenvolvimento do culto

santoral, incentivado pelo Concílio de Trento (1545-63) e reiterado pelas Constituições Primeiras

do Arcebispado da Bahia (1707), e atuaram como patrocinadoras das artes, encomendando obras

46
AEAM, Relatório Decenal do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento, redigida
por Dom Frei Manoel da Cruz. Mariana, 1 de julho de 1757. Língua original: Latim. Tradução de Monsenhor Flávio
Cordeiro.
47
APM, Códice 19, CMM, 11-05-1753, Lisboa, p. 108, fotogramas 232-234. Ordem de sua Majestade, expedida
pelo Conselho Ultramarino, para informar à Câmara de Mariana sobre a construção do Seminário da Boa Morte.
48
Esta associação leiga foi formada em 28 de setembro de 1754, contando a princípio com a inscrição de doze
filiados. Regida nos primeiros tempos por um compromisso provisório, ela foi formalmente instituída em 1782 -
quando o novo estatuto, ratificado por Provisão Régia de 18 de janeiro de 1788, foi organizado. Cf. IPHAN, IBMI,
Minas Gerais, Barbacena, Pasta da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Morte.; LIMA, Newton Siqueira de
Araújo. A Irmandade e a Igreja da Boa Morte. Barbacena: Cidade de Barbacena Gráfica e Editora, 2004. p. 17-18.
49
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, Compromissos: Guarapiranga (1779), Aiuruoca (1896),
Campanha da Princesa (1840), Catas Altas do Mato Dentro (1822). Quanto à Irmandade de Baependi não
encontramos nenhuma documentação nos arquivos pesquisados e por isso utilizamos as referências do historiador
Caio César Boschi. Cf. BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em
Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 222. Esclarecemos que também utilizamos as datas registradas na
obra de Boschi para as Irmandades de Aiuruoca (1814) e Campanha da Princesa (1820), porque só tivemos acesso às
reformas de Compromisso destas instituições. Cf. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder... op. cit. p. 221-222.
19

e utilizando os serviços de entalhadores, policromadores, santeiros e músicos. 50 Além das

atividades supracitadas, comuns a todas as confrarias e Ordens Terceiras com oragos diversos, as

associações leigas vocacionadas à Dormição da Virgem exerceram importante função litúrgico-

pedagógica, pois propagaram a doutrina da Comunhão dos Santos, ajudando os moribundos e

seus familiares a aceitarem com resignação a realidade da existência humana: porquanto és pó, e

em pó te tornarás”. 51 Por meio de literatura piedosa, festas, procissões e veneração das imagens,

elas transmitiram ao povo católico a certeza da vida eterna, ou seja, a recompensa divina de uma

boa morte para os justos.

50
Cf. MARQUES, Edmilson Barreto. A obra de Valentim Correa Pais como referencial para identificação de uma
“Escola” na região de São João Del Rei e sul de Minas. Imagem Brasileira, Belo Horizonte, n. 2, p. 55-60, agos.
2003.; CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro... op. cit.; AGUIAR, Marcos
Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil Colonial. 1999. 402 f. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1999.; IRMANDADE E ORDEM TERCEIRA. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Ângela Vianna.
Dicionário Histórico das Minas Gerais: período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 180-184.;
BONICENHA, Walace. Devoção e caridade: As Irmandades Religiosas na Cidade de Vitória. Vitória:
Multiplicidade, 2004. 182 p.; OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A Imaginária Religiosa em Minas Gerais.
Barroco, Belo Horizonte, v. 19, p. 163-179, maio 2005.
51
“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó, e
em pó te tornarás”. (Gênesis 3, 19).
20

2. A ICONOGRAFIA DO “TRÂNSITO” DE MARIA: DO ORIENTE CRISTÃO À


CAPITANIA DAS MINAS

“Disse então Maria: A minha alma engrandece ao Senhor. E o


meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”.
(Lucas 1, 46-47)

2.1 A LEGENDA ÁUREA E AS REPRESENTAÇÕES DO “TRÂNSITO” MARIANO

Apesar de ser numerosa a literatura apócrifa sobre o destino final da Mãe de Jesus,

optamos por utilizar nesta dissertação a versão vulgarizada no ocidente, através da Legenda

Áurea, do texto grego atribuído a São João Evangelista (ANEXO I). Esta escolha deve-se ao fato

deste relato ter servido de inspiração para a elaboração das representações bizantinas da

Koimesis 52 , à qual a iconografia dormicionista do ocidente é devedora.

De acordo com o teólogo Michael Schmaus, o modo como ocorreu a assunção corporal de

Maria trata-se de um mistério, pois a definição deste dogma mariano, expressa através da

Encíclica Munificentissimus Deus, proclamada em 1950 pelo Papa Pio XII, nada esclarece a

respeito do processo do falecimento e transladação do corpo da Bem-aventurada aos céus. O

autor mencionado explica que as narrativas apócrifas nunca foram legitimadas pelo Magistério

Eclesiástico, embora tenham sido largamente utilizadas pelos artistas na composição das cenas

referentes ao “Trânsito” da Virgem. Portanto, mesmo não correspondendo à santa doutrina, a

iconografia dormicionista e assuncionista foi incorporada ao culto cristão-católico porque

contribuía para tornar palpável aos fiéis o mistério da fé. 53

52
Termo grego que designa a dormição de Maria. Cf. nota nº 8.
53
SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria. In: ______. Teologia Dogmatica. Madrid: Ediciones Rialp S. A, 1963. v.
8. § 7. p. 250-51.
21

Desde o cristianismo das primeiras centúrias a imagem foi usada como estratégica

pedagógica para a evangelização de povos de diferentes tradições lingüísticas e religiosas. As

representações imagéticas possuem uma linguagem tangível que levam o homem à

transcendência. O símbolo tem a capacidade de unir o visível ao invisível, o empírico ao ideal,

criando unidade entre a realidade concreta e a abstrata através de um objeto palpável.

São Boaventura, por volta de 1260, justificando a veneração de ícones religiosos e

evocando as definições do II Concílio de Nicéia, realizado em 787, escreveu:

As imagens não foram introduzidas na Igreja sem causa razoável. Elas derivam de três
causas: a incultura dos simples, a frouxidão dos afetos e a impermanência da memória.
Elas foram inventadas em razão da incultura dos simples, que não podendo ler o texto
escrito utilizam as esculturas e pinturas como se fossem livros para se instruir nos
mistérios de nossa fé. Da mesma forma, elas foram introduzidas em função da frouxidão
dos afetos para que aqueles cuja devoção não é estimulada pelos gestos do Cristo
recebidos por intermédio dos ouvidos sejam provocados pela contemplação dos olhos do
corpo em sua presença nas esculturas e pinturas, já que na realidade o que se vê estimula
mais os afetos do que o que se ouve... Finalmente por causa da impermanência da
memória, já que o que se ouve é mais facilmente esquecido do que o que se vê... Assim,
por um dom divino, as imagens foram executadas nas Igrejas para que vendo-as nos
lembremos das graças que recebemos e das obras virtuosas dos santos. 54 (sic)

No século XVI, o Concílio de Trento, durante a vigésima quinta sessão realizada em 3 e 4

de dezembro de 1563, reiterou as resoluções de Nicéia (787), esclarecendo a função das imagens.

Posicionando-se contra as críticas iconoclastas, os Bispos de Roma estabeleceram:

Igualmente, que deben tenerse y conservarse, señaladamente en los templos, las


imágenes de Cristo, de la Virgen Madre de Dios y de los otros Santos y tributárseles el
debido honor y veneración, no porque se crea hay en ellas alguna divinidad o virtud, por
la que haya de dárseles culto, o que haya de pedírseles algo a ellas, o que haya de
ponerse la confianza en las imágenes, como antiguamente hacían los gentiles, que
colocaban su esperanza en los ídolos [cf. Ps. 134, 15 ss]; sino porque el honor que se les
tributa, se refiere a los originales que ellas representan; de manera que por medio de las
imágenes que besamos y ante las cuales descubrimos nuestra cabeza y nos prosternamos,
adoramos a Cristo y veneramos a los Santos, cuya semejanza ostentan aquéllas. Cosa
que fue sancionada por los decretos de los Concilios, y particularmente por los del
segundo Concilio Niceno, contra los opugnadores de las imágenes. 55 (sic)

54
Apud OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Capítulo I. In: AGUILAR, Nelson (Org.). Mostra do
Redescobrimento: arte barroca. Fundação Bienal de SP. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
p. 38. Veja o texto do II Concílio de Nicéia em DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia: manual de los
símbolos, definiciones y declaraciones de la Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Editorial Herder,
1963. n° 302 e segs. Título original: Enchiridion Symbolorum.
55
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia... op. cit., n° 986.
22

A utilização de representações simbólicas, portanto, “demonstra, por parte da Igreja, a

preocupação manifesta de humanização do culto cristão, no sentido de tornar próximas as

formas de mediação cultual, ou a apreensão mais imediata, sensível e material dos significados

atribuídos às imagens.” 56 É neste sentido que nosso estudo analisa a iconografia do “Trânsito”

da Virgem, privilegiando a função litúrgico-pedagógica em detrimento da técnica e estilo artístico

empregado.

A redação apócrifa em análise possui cinco episódios principais, tendo cada um deles

suscitado representações específicas. Cotejando as informações literárias com as fontes

imagéticas pesquisadas examinaremos os seguintes temas: “a Segunda Anunciação”, “a

navegação aérea dos discípulos”, “a Dormição”, “o cortejo fúnebre” e a “Assunção corporal da

mãe de Jesus”.

2.1.1 A SEGUNDA ANUNCIAÇÃO

A narrativa popularizada no século XIII pelo dominicano Jacopo de Varazze conta que a

Virgem, na antevéspera de sua morte, recebeu a visita de um mensageiro divino que a saudou

dizendo: “Bendita Maria, receba a bênção daquele que deu a salvação a Jacó. Aqui está um

ramo de palmeira que trouxe do Paraíso para você, minha senhora, e que deve ser levado diante

56
RIBEIRO, José Manuel. Significado e função das imagens. In: Câmara Municipal de Paredes de Coura.
Arciprestado de Paredes de Coura. Universidade Portucalense Infante D. Henrique (Org.). Imaginária Religiosa
Barroca: Paredes de Coura 2002/2003. Paredes de Coura: Câmara Municipal de Paredes de Coura. 2002. p. 15. Cf
também. MÂLE, Émile. L’art religieux du XVIIe siècle: Italie, France, Espagne, Flandres. Paris: Armand Colin
Éditeur, 1984. 479 p.; WEISBACH, Werner. El Barroco: Arte de la Contrarreforma. Madrid. Espasa-Calpe S.A.,
1948. 337 p.
23

de seu caixão, pois em três dias sairá do corpo, já que o filho espera sua reverenda mãe”. 57

Ouvindo atentamente estas palavras, disse a Bem-aventurada:

Se encontrei graça diante de seus olhos, peço que se digne a revelar seu nome. Mas o
que peço ainda mais insistentemente é que meus filhos e irmãos, os apóstolos, estejam
reunidos junto de mim para que possa vê-los com os olhos do corpo antes de morrer, e
que possa ser sepultada por eles depois que tiver entregue meu espírito ao Senhor na
presença deles. Há outra coisa que desejo avidamente: que ao sair do corpo, minha alma
não veja nenhum mau espírito e que nenhuma das potências de Satanás apareça nesse
momento.57

Então respondeu o anjo:

Por que, senhora, deseja saber meu nome, que é admirável e grande? Quanto aos
apóstolos, virão todos e estarão reunidos junto de você, farão magníficos funerais
quando de seu passamento, que acontecerá na presença deles. Aquele que outrora, em
um piscar de olhos, levou pelo cabelo o profeta da Judéia até a Babilônia, certamente
poderá em um instante trazer os apóstolos para perto de você. Por que você teme ver o
espírito maligno, a quem destruiu inteiramente a cabeça e despojou de todo poder? Seja
feita contudo a sua vontade; você não o verá.57

Neste momento, após cumprir sua tarefa reveladora, o ser celestial retornou aos Céus.

A passagem descrita acima, conhecida como Segunda Anunciação ou Anunciação ante

mortem, suscitou poucas produções iconográficas. De acordo com Louis Réau a arte cristã

oriental e ocidental não privilegiou este tema por considerar sua composição muito próxima da

cena do anúncio da Natividade do Redentor. 58 As imagens não deveriam causar confusão, mas

facilitar a evangelização e a doutrinação dos fiéis.

Na FIG. 4, em conformidade com os relatos apócrifos, o artista italiano Duccio di

Buoninsegna (1255-1319) representou Maria como uma mulher idosa. 59 Sentada sobre uma arca,

ela escuta atentamente as palavras do anjo que lhe entrega a “palma mortis”, símbolo de vitória,

57
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São Paulo:
Companhia das Letras 2003. p. 658. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição
fac-similada.
58
Cf. inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos XII a XVI. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo Testamento. Traducción Daniel Alcoba. Barcelona: Ediciones del
Serbal, 1996. p. 624. Título original: Iconographie de l’Art Chrétien.
59
Segundo a Legenda Áurea a mãe do Cristo era sexagenária quando faleceu. Para Epifânio (315-403), bispo de
Constantia, em Chipre, a Virgem deixou este mundo aos 72 anos, porém alguns autores bizantinos atestam que sua
passagem para a eternidade se deu aos 80 anos. Cf. VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 657.; RÉAU,
Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 627.
24

regeneração e imortalidade. 60 Na FIG. 5, vemos a Virgem de pé, recebendo a notícia de sua

maternidade divina. Em ambas as cenas há presença de um livro aberto, sugerindo a meditação e

a interiorização das Sagradas Letras, a Bem-aventurada está vestida de azul, portando véu sobre a

cabeça e o ser celestial está à sua frente. Se à primeira vista podemos achar que os temas tratados

são idênticos, os detalhes revelam a diferença. Na anunciação da concepção do Cristo, a mulher

tem aparência jovial e o mensageiro celeste segura um bastão ao invés do ramo de palmeira. 61

FIGURA 4 – Segunda Anunciação.


Painel da Maestà, Museu Opera del Duomo, Siena (Itália), 1308-1311
Fonte: <http: //www.abcgallery.com/D/duccio/duccio25.html>. Acesso em: 09 jul. 2005.

60
Cf. PALMA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p. 680. Título original: Dictionnaire des
Symboles.
61
Na cena da Anunciação do Nascimento do Redentor o arcanjo Gabriel pode ser representado segurando lírios, um
cetro ou um bastão de mensageiro e também sem nada portar nas mãos.
25

FIGURA 5 – Anunciação da Natividade do Redentor


Painel da Maestà, Galeria Nacional de Londres (Inglaterra), 1308-1311.
Fonte: <http: //www.abcgallery .com/D/duccio/duccio34.html>. Acesso em: 09 jul. 2005.

A iluminura realizada pelo francês Jean Fouquet no século XV, para o Livro de Horas de

Étienne Chevalier, apresenta as mesmas características iconográficas descritas anteriormente

(Veja a FIG. 6). Maria está vestida de azul, sobre sua cabeça há um véu e ela está ajoelhada e de

mãos postas frente à Bíblia. O atributo do anjo (a “palma mortis”) e a idade avançada da Virgem,

elementos essenciais na composição do tema da Segunda Anunciação, podem passar

despercebidos aos olhos dos observadores menos cautelosos e daqueles que desconhecem o
26

conteúdo dos relatos dormicionistas ou assuncionistas, gerando dúvidas e enganos entre os não

convertidos (a quem a Igreja quer alcançar), entre os neófitos e até mesmo fiéis devotos. 62

FIGURA 6 – Segunda Anunciação.


Miniatura do Livro de Horas de Étienne Chevalier, 1453-1460.
Fonte: <http: //www.abcgallery.com/F/fouquet7.html>. Acesso em: 09 jul. 2005.

62
Nas localidades pesquisadas – Ouro Preto, Cachoeira do Campo, Barbacena, Mariana, São João Del Rei, Piranga,
Aiuruoca, Baependi, Campanha da Princesa, Catas Altas do Mato Dentro e Sabará – não encontramos fonte
imagética referente ao tema da Segunda Anunciação.
27

2.1.2 A NAVEGAÇÃO AÉREA DOS DISCÍPULOS

Após o episódio da Anunciação ante mortem, a Legenda Áurea registra a chegada

milagrosa dos discípulos aos aposentos da mãe do Messias. O evangelista João, que na ocasião

estava pregando em Éfeso, foi o primeiro a ser transladado por uma nuvem branca. Feliz em vê-

lo, disse Maria:

João, meu filho, lembre-se das palavras do seu mestre que me confiou a você como a um
filho e você a mim como a uma mãe. Eis-me chamada pelo Senhor para pagar o tributo à
condição humana, separando-me de meu corpo, e peço que cuide dele, pois soube que os
judeus se reuniram e disseram: “Esperemos, irmãos, o momento em que aquela que
carregou Jesus sofrerá a morte, para imediatamente raptarmos seu corpo e o jogarmos ao
fogo”. Quando meu corpo estiver sendo conduzido à sepultura, você mandará levar esta
63
palma diante de meu esquife.

E João respondeu: “Ó, quisesse Deus que todos os apóstolos, meus irmãos, estivessem aqui, a fim

de poderem celebrar convenientemente suas exéquias e prestar as homenagens de que você é

digna”. 64 Neste instante, todos os discípulos foram arrebatados por nuvens dos lugares onde

estavam pregando e levados até a porta do quarto da Virgem. Estupefatos e confusos, eles

perguntaram: “Por que o Senhor nos reúne aqui?”64 E João, revelando-os o que estava

acontecendo, advertiu: “Prestem atenção, irmãos, para que ninguém chore quando ela estiver

morta, a fim de que vendo isso o povo não fique inquieto e diga: ‘Vejam como temem a morte

aqueles homens que pregam aos outros a ressurreição.’”.64

As representações imagéticas referentes ao trecho supracitado, cujo motivo foi

denominado por Louis Rèau de “Navegação Aérea dos Apóstolos”, foram mais freqüentes na arte

bizantina. Na Capadócia, Turquia, há afrescos que remontam à décima centúria, entretanto a

63
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 658.
64
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 659.
28

maioria dos exemplares são tardios, pois datam dos séculos XIV e XVI. 65 Por ser esta cena

prenúncio da Dormição, ela sempre aparece associada ao momento da morte da Virgem.

A iconografia da transladação dos discípulos comportou variações. Podemos encontrar os

amados de Cristo viajando em nuvens coletivas, como no convento de Xenophon no monte Athos

(século XVI), onde duas nebulosas levam seis passageiros cada uma, ou em nuvens individuais,

como nos mostra a FIG. 7.

FIGURA 7 – A Dormição da Virgem


Igreja da Dormição do Desyatinny Monastério, próximo a Novgorod (Rússia); século XII.
Fonte: <http: //www.abcgallery.com/I/icons12.html> Acesso em: 09 jul. 2005.

65
Cf. Inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos X a XVI. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 625.
29

2.1.3 A DORMIÇÃO E A ASSUNÇÃO DA ALMA DE MARIA

De acordo com a Legenda Áurea, após a milagrosa reunião dos discípulos, “por volta da

terceira hora da noite” Jesus desceu ao encontro de sua mãe, acompanhado dos anjos, dos

patriarcas, dos mártires, do exército dos confessores e dos coros das virgens. Disse o Cristo:

“Venha, minha eleita, e eu a colocarei em meu trono porque desejo sua beleza”. 66 Ela

respondeu: “Meu coração está preparado, Senhor, meu coração está preparado”. 67 Os seres

celestiais que seguiam Jesus proferiram as seguintes palavras: “Aqui está quem conservou seu

leito sem mácula e que por isso receberá a recompensa que cabe às almas santas”. 68 Ela disse:

“Todas as gerações me chamarão bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso, cujo nome é santo,

fez em mim grandes coisas”. 69 E o chantre entoou: “Venha do Líbano, minha esposa, venha do

Líbano e você será coroada”. 70 E ela por fim respondeu: “Aqui estou, pois está escrito no Livro

da Lei que eu faria sua vontade, Deus, porque meu espírito exulta de alegria em Deus, meu

Salvador”. 71 Dito isso, a alma de Maria voou em direção aos braços do filho ressuscitado

(assumptio animae). O Senhor dirigindo-se aos apóstolos, ordenou: “Levem o corpo da Virgem

Mãe para o vale de Josafá e coloquem-no em um sepulcro novo que encontrarão ali, e esperem-

me por três dias até eu voltar”. 72

66
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit., p. 659.
67
Ibidem, p. 659-60.
68
Ibidem, p. 660.
69
Ibidem, 660. O relato apócrifo faz, nesta passagem, referência a dois versículos bíblicos: Lucas 1, 48-49. Na
ocasião em que Maria proferiu as palavras contidas nesta frase, ela não estava morrendo, mas visitando Isabel (mãe
de João Batista).
70
Ibidem, p. 660. Esta frase foi inspirada em uma passagem do Velho Testamento. No Livro chamado Cantares de
Salomão ou Cântico dos Cânticos (4, 8) se lê: “Vem comigo do Líbano, minha esposa, vem comigo do Líbano. Olha
desde o cume de Amaná, desde o cume de Senir e de Hermom, desde as moradas dos leões, desde os montes dos
leopardos”.
71
Ibidem, p. 660. Esta frase foi pronunciada por Maria no momento em que visitava Isabel, antes do nascimento de
Jesus. (Lucas 1, 46-47).
72
Ibidem, p. 660.
30

O culto à morte da Genitora do Verbo foi muito popular entre os cristãos do medievo, mas

foi a arte bizantina que deu forma à Koimesis. Na tradição iconográfica oriental, Maria é

representada jacente, tendo ao seu lado os apóstolos e uma multidão de adoradores. O Cristo,

posicionado em pé ao lado do cadáver, segura a alma da Bem-aventurada (criança vestida ou

enfaixada como múmia). 73 Três discípulos se destacam na cena: Pedro, que à cabeceira da cama

mortuária segura um incensário, Paulo, que beija os pés da Santa, e João, que respeitosamente

recosta uma de suas orelhas sobre o peito (ou sobre o leito) da Virgem. (Veja FIG. 7, 8, 9 e 10).

FIGURA 8 – A Dormição da Virgem (Koimesis).


Mosaico da Igreja da Martorana, Palermo, século XII.
Fonte: <http: //www.classicalmosaics.com/images/palmart11.jpg> Acesso: 09 jul. 2005.

73
Apesar do esquema supracitado ser o mais freqüente, podemos encontrar variações. Em algumas fontes imagéticas
Jesus não se encontra no plano terrestre, mas paira no ar levando nas mãos uma pequena nuvem sobre a qual está
ajoelhada a alma de sua mãe (pequena figura humana, despida de roupas e ornamentos). Cf. RÉAU, Louis de.
Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 628.
31

FIGURA 9 – A Dormição da Virgem (Koimesis).


Mosaico da Igreja de Santa Maria Maggiore, Roma (Itália), século XIII.
Fonte: BOVINI, 1996, p. 31.

FIGURA 10 – Detalhe: Pedro, Paulo e João.


Mosaico da Igreja de Santa Maria Maggiore, Roma (Itália), século XIII.
Fonte: BOVINI, 1996, p. 31.

O esquema iconográfico bizantino (supracitado), caracterizado pela organicidade e pela

rígida composição cruciforme, cuja linha horizontal é definida pelo corpo de Maria e a vertical

pelo Cristo, sofreu adaptações e modificações na arte ocidental. O tradicional modelo, aos

poucos, cedeu lugar a novas formas e movimentos, permitindo diferentes representações do tema.

No pórtico do transepto sul da catedral gótica de Estrasburgo, o arranjo escultórico, ainda

em conformidade com a simetria oriental, apresenta alterações quanto aos elementos figurativos.
32

O artista, nesta obra, não faz referência à corte celestial que acompanha Jesus. O turíbulo

carregado por Pedro foi suprimido, o apóstolo Paulo reclina-se e acaricia os pés da Virgem

enquanto João, sustentando o rosto com a mão direita, fita o cadáver. No primeiro plano, uma

mulher, sentada no chão à beira da cama, confere à cena a dramaticidade do luto. Trata-se,

provavelmente, de uma das três virgens citadas na Legenda Áurea, que cuidaram da toilette

fúnebre da Santa. 74 (FIG. 11)

FIGURA 11 – A morte da Virgem


Pórtico do transepto sul da catedral gótica de Estrasburgo, século XIII.
Fonte: GOMBRICH, 1999, p. 193.

74
Para o historiador da arte E. H. Gombrich a mulher representada no pórtico da catedral de Estrasburgo é a Maria
Madalena, mas segundo os estudos de Louis Réau trata-se de uma das duas viúvas, citadas em fontes apócrifas
diferentes do relato difundido pela Legenda Áurea, que receberam de herança da amiga Maria (mãe de Jesus) dois
vestidos. Cf. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.,
1999. p. 192. Título original: The Story of Art.; RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la
Biblia – Nuevo... op. cit., p. 631. Para elucidar a questão – quem é a mulher sentada ao lado do leito da Virgem? – é
preciso um estudo aprofundado, que permita assegurar, com certeza, qual das versões apócrifas dormicionistas foi
utilizada (ou era conhecida) pelo artista.
33

Outra variação do tema pode ser vista na FIG. 12 (Veja também a FIG. 2). O italiano

Andrea Mantegna (1431-1506), como vários artistas do quatrocentos, contrariando a tradição

bizantina que sempre representou Maria morta – a alma fora do corpo, nos braços do Cristo –,

pintou a cena da Dormição (1462) retratando o momento que antecede o “Trânsito”. A Virgem

agonizante está em seu quarto, deitada sobre uma cama e rodeada pelos discípulos. Os papéis

litúrgicos se repartem de forma diversa 75 : João, em conformidade com o relato apócrifo, segura a

“palma mortis”, André balança o incensário, Pedro, Príncipe dos apóstolos, vestido com capa, lê

um livro de preces, enquanto ao seu lado um irmão sustenta a caldeirinha de água benta.

FIGURA 12 – A morte da Virgem


Andrea Mantegna, Museu del Prado, Madri (Espanha), 1462.
Fonte: <http: //www.abcgallery.com/M/mantegna/mantegna20.html> Acesso em: 20 jul. 2005.

75
Sobre a mudança das ações dos discípulos no tema do passamento da Virgem Cf. RÉAU, Louis de. Iconografía
del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 630-31.
34

Inspirado na conjectura dos místicos do fim da Idade Média, que acreditavam que Maria

tinha dado à luz ajoelhada, a arte alemã criou uma nova versão para a iconografia

dormicionista. 76 O retábulo da Igreja de Nossa Senhora, na cidade polonesa de Cracóvia,

realizado por Veit Stoss entre 1477 e 1489, mostra-nos a Virgem cercada pelos doze apóstolos.

Entretanto, nesta obra, ela não foi representada jacente, mas ajoelhada em oração. No centro, sua

alma é recebida pelo Cristo (assumptio animae) e no topo, sua coroação é efetivada pela

Santíssima Trindade. (FIG. 13)

FIGURA 13 – O Trânsito da Virgem


Altar da Igreja de Nossa Senhora, Cracóvia (Polônia), século XV.
Fonte: GOMBRICH, 1999, p. 280.

76
Sobre as representações alemãs da morte da Virgem de joelhos, artistas e obras Cf. RÉAU, Louis de. Iconografía
del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 629-30.
35

O retábulo de autoria do alemão Hans Holbein, o Velho (1460-1524), executado entre

1501 e 1502, para a Igreja dos Dominicanos em Frankfurt, apresenta-nos outra versão

iconográfica sobre o destino final de Maria. Baseado na opinião de teólogos que asseguravam que

a Virgem deixou este mundo sem sofrimento e que a morte a surpreendeu sentada, o artista

alemão compôs, sem desprender-se da tradição antecedente, uma cena até então inusitada. 77 A

Bem-aventurada, em um trono, com as mãos suavemente cruzadas sobre o peito (simbolizando a

contrição e o amor a Deus), tem ao seu lado o apóstolo João, que lhe entregando um círio aceso

sustenta com a mão direita um ramo de palmeira. No primeiro plano, Pedro, ajoelhado próximo

ao turíbulo e à caldeira com hissope, faz leitura de preces. Ao fundo, vemos os demais discípulos

agrupados em torno da Santa manifestando diferentes reações corporais-psíquicas. (FIG. 14)

FIGURA 14 – A morte da Virgem.


Retábulo da Igreja dos Dominicanos em Frankfurt am Main (Alemanha), 1501-1502.
Fonte: <http: //www.abcgallery.com/H/holbein/fholbein1.html> Acesso em: 20 jul. 2005

77
RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 630.
36

Embora as representações imagéticas da Dormição da Mãe de Jesus tenham variado –

recostada sobre leito retratado em posição oblíqua (FIG. 2), ajoelhada (FIG.13), sentada (FIG.

14), morta (FIG. 11) ou agonizante (FIG.12) – elas não invalidaram o antigo modelo bizantino

(FIG. 7, 8 e 9), ao contrário. A arte ocidental reformulou o tema da Koimesis, mas conservou

algumas características marcantes desta tradição – a cama mortuária, a presença dos apóstolos, o

uso do incensário e até mesmo o “Trânsito” da alma de Maria.

No altar de Nossa Senhora da Boa Morte, da Matriz mineira vocacionada a Nossa

Senhora da Conceição, na freguesia de Antônio Dias, em Ouro Preto, vemos a Virgem jacente

(imagem de roca) em um nicho que lhe serve de lugar de repouso. Ao fundo (talha em relevo),

dez discípulos, portando livro de orações e caldeira de água benta com hissope, assistem ao fim

da vida terrena da Mulher “Cheia de Graça”. (FIG.15)

FIGURA 15 – Nicho do altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.


Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Freguesia de Antônio Dias, Ouro Preto (Brasil), século XVIII.
Foto: Adalgisa Arantes Campos.
37

O coroamento do retábulo barroco supracitado reserva-nos um detalhe importante: a alma

da Bem-aventurada (busto feminino) sobe aos céus em uma pequena nuvem. (FIG. 16 e 18)

Portanto, nesta obra, Maria está morta (como na arte oriental) e não moribunda. A Trindade

Divina espera-a na eternidade, segurando uma coroa, símbolo cristão que indica a transcendência,

a salvação, a glorificação e a vitória dos justos sobre a morte. 78

FIGURA 16 – Detalhe do coroamento do altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.


Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Freguesia de Antônio Dias, Ouro Preto (Brasil), século XVIII.
Foto: Rodrigo Gomes.

Na região de Minas Gerais, os altares de Nossa Senhora da Boa Morte erigidos entre 1721

e 1822, não apresentam outra versão iconográfica além da que situa a Dormição no plano

horizontal. Geralmente os retábulos congregam duas etapas do “Trânsito” da Virgem: a parte

inferior é destinada ao corpo da Santa, que fica exposto em um esquife, enquanto a superior

78
COROA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos... op. cit., p. 289-92.
38

abriga imagem de Nossa Senhora da Assunção.79 Este formato, comum nos séculos XVIII e XIX,

alcançou inclusive os oratórios (FIG. 17), permitindo uma eficiente doutrinação dos fiéis – doutos

ou iletrados – e evangelização dos incrédulos, à medida que oferecia uma espécie de resumo

teológico da promessa do cristianismo: os salvos terão vida eterna com Cristo. Vida no sentido

do gozo da imortalidade, o que não é o caso dos condenados ao inferno. (FIG. 18 e 19)

FIGURA 17 – Oratório de Esmolar


Madeira talhada, policromada, dourada e ferro batido, século XVIII.
Fonte: O Museu da Inconfidência, 1995, p. 102-103.

79
Exceto o altar de Nossa Senhora da Boa Morte da Matriz de Antônio Dias, que agrega três etapas: na parte inferior
a morte da Virgem, na parte superior a assunção corporal (Imagem de Nossa Senhora da Assunção) e no coroamento
do altar a transladação da alma de Maria para os céus.
39

FIGURA 18 – Altares de Nossa Senhora da Boa Morte


À esquerda: Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, Ouro Preto.
À direita: Matriz de Nossa Senhora do Pilar, São João Del Rei.
Fotos: Adalgisa Arantes Campos e José Sandim.

FIGURA 19 – Altar da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. (detalhe)


Matriz de Nossa Senhora do Pilar, São João Del Rei (Brasil), século XVIII.
Foto: José Sandim
40

2.1.4 O CORTEJO FÚNEBRE E O PRIMEIRO MILAGRE PÓST-MORTEM DE MARIA

Depois que alma da Bem-aventurada subiu aos céus, Jacopo de Varazze registra que três

virgens prepararam o corpo da Santa para o sepultamento. Terminada a toilette fúnebre, Pedro,

erguendo o ataúde junto com Paulo, começou a cantar: “Israel saiu do Egito, aleluia!”. 80 Os

outros apóstolos continuaram o canto, enquanto João, à frente do cortejo, levava a “palma

mortis”.

Envolvida por uma névoa, remetida dos céus, a comitiva mortuária ficou oculta aos olhos

humanos. Entretanto a música que cantavam chamou a atenção do povo, que se dirigiu para fora

da cidade, a fim de saber o que estava acontecendo. De repente, alguém gritou: “São os

discípulos de Jesus que carregam Maria morta, em volta de quem cantam essa melodia que

escutamos”.80 Imediatamente a multidão incrédula empunhou armas dizendo uns aos outros:

“Vamos, matemos todos os discípulos e entreguemos ao fogo o corpo que carregou aquele

sedutor”.80 Furioso, o príncipe dos sacerdotes judeus estendeu os braços em direção ao corpo da

Virgem para jogá-lo ao chão, mas suas mãos instantaneamente secaram, ficando grudadas ao

féretro. Os demais revoltosos foram acometidos por uma cegueira, provocada pelos anjos que a

tudo assistiam.

O príncipe dos sacerdotes, sentindo muita dor, gritou: “São Pedro, não me abandone na

tribulação em que me encontro, reze por mim ao Senhor, eu imploro, lembre-se de que certa vez

eu o socorri quando você foi acusado por uma escrava”.80 Pedro respondeu: “Estamos ocupados

nos funerais de Nossa Senhora e não podemos curá-lo. Se você acreditar em Nosso Senhor Jesus

Cristo e naquela que o gerou e o carregou, espero que você possa recuperar imediatamente a

80
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 661.
41

saúde”. 81 Então, disse o judeu: “Creio que o Senhor Jesus é realmente o Filho de Deus e que

essa é sua santíssima mãe”. 82 Dito isso, suas mãos desprenderam-se do esquife, mas a dor não

cessou. Pedro falou: “Beije o caixão e diga ‘Creio em Deus Jesus Cristo, que ela carregou no

útero, permanecendo Virgem depois do parto’”.82 Após repetir estas palavras, o príncipe dos

sacerdotes ficou curado. Pedro, enfim ordenou: “Pegue esta palma das mãos de nosso irmão

João e passe-a sobre esse povo cego, e então aquele que quiser crer recuperará a visão, quem

não quiser nunca mais poderá ver”.82

A iconografia do cortejo fúnebre de Maria foi comum no ocidente cristão entre os séculos
83
XIII e XVI e apresentou poucas variações. Os discípulos, carregando sobre os ombros uma

padiola, transportam o cadáver da Virgem até o sepulcro. À frente da comitiva mortuária, em

conformidade com a Legenda Áurea, João leva a palma advinda do Paraíso, com o intuito de

afugentar o mal. Normalmente a Bem-aventurada não pode ser vista, pois se encontra em ataúde

fechado, mas esta não foi uma regra seguida à risca. Na FIG. 20, podemos ver o trabalho do

artista Duccio de Buoninsegna que representou o corpo da Mãe de Jesus livre de qualquer

impedimento visual. No retábulo de Ternant, datado do século XV, sua face está descoberta

enquanto o resto do corpo permanece oculto aos olhos dos expectadores.

O episódio do primeiro milagre post-mortem de Maria – a cura das mãos do sacerdote

judeu – que na arte bizantina aparece associado à cena da Dormição, não foi popular no mundo

ocidental, onde, apesar da infreqüência, três variantes podem ser observadas. O judeu

arrependido mostra suas mãos ao apóstolo Pedro, suplicando o restabelecimento de sua saúde; o

81
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 661.
82
Ibidem, p. 662.
83
Cf. Inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos XIII a XVII. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 635.
42

arcanjo Miguel, usando uma espada, mutila o profanador; as extremidades dos membros

superiores do homem incrédulo ficam grudadas ao féretro. 84 (Veja FIG. 20)

Por volta de 1525, um pouco antes do Concílio de Trento (1545-63), mas no âmbito da

Reforma Católica, este tema anti-semita desapareceu. Louis Réau atribui tal fato ao momento

histórico da Igreja, que neste período estava mais preocupada em combater a ameaça protestante

do que as heresias judaicas.

FIG. 20 – O funeral de Maria e seu primeiro milagre post-mortem.


Painel da Maestà, Museu Opera del Duomo, Siena (Itália), 1308-1311.
Fonte: <http: //www.wga.hu/frames-e.html?/html/d/duccio/buoninse/maesta/crown_f/> Acesso em: 20 jul. 2005.

84
RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 634.
43

O cortejo fúnebre de Maria não foi um tema recorrente em Minas Gerais. Durante esta

pesquisa a representação foi encontrada apenas na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em

Sabará. Infelizmente o estado de conservação do painel, que está no forro da capela-mor, datado

do século XVIII e de autoria desconhecida, encontra-se bastante comprometido devido à

oxidação das cores originais. Contudo, é possível observarmos que a obra pictórica não registra a

cena do primeiro milagre post-mortem. Deitado sobre o féretro está o cadáver da Virgem. O

apóstolo João leva a palma mortis à frente da comitiva, três discípulos sustentam e transportam o

ataúde, enquanto outro traz às mãos um livro de preces ou um hinário. Quatro pessoas, no canto

direito da imagem, achegam-se e integram o solene acompanhamento funéreo. Ao fundo, muito

apagada, há uma paisagem urbana. (FIG. 21)

FIG. 21 – O Cortejo fúnebre de Maria


Painel do forro da capela-mor, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Sabará (Brasil) século XVIII.
Foto: Jader Barroso Neto
44

2.1.5 A ASSUNÇÃO CORPORAL DE MARIA

Chegando ao lugar escolhido pelo Senhor, os apóstolos, após sepultarem o cadáver da

Bem-aventurada, ficaram aguardando o retorno do Mestre Jesus. Conforme havia prometido, no

terceiro dia Ele veio ao encontro de seus irmãos, acompanhado por muitos anjos. Saudando a

todos disse o Cristo: “A paz esteja com vocês”. 85 Responderam os discípulos: “E a glória com

você, Deus, que sozinho faz grandes maravilhas”.85 O Salvador então perguntou: “Que graça e

que honra vocês pensam que eu deva conceder agora à minha mãe?”.85 Eles responderam:

“Estes seus escravos, Senhor, acham justo que da mesma forma que depois de ter vencido a

morte você reina eternamente, ressuscite, Jesus, o corpo de sua mãe e o coloque à sua direita

por toda a eternidade”.85 Concordando o Senhor falou: ”Levante-se, minha mãe, minha pomba,

tabernáculo de glória, vaso de vida, templo celeste, e da mesma maneira que me gerou sem coito

e sem mácula, também no sepulcro manterá o corpo íntegro”.85 Imediatamente o cadáver de

Maria saiu do túmulo, uniu-se à sua alma e foi levado aos céus na companhia de uma multidão de

anjos. Tomé que na ocasião estava ausente, para não duvidar da elevação corporal da Virgem,

recebeu do alto uma dádiva: a faixa que cingia a mortalha da Santa.

As representações imagéticas referentes a Assunção corpórea de Maria não têm raízes na

tradição bizantina. Enquanto o oriente cristão privilegiou a Dormição e a assunção da alma da

Bem-aventurada (Koimesis), o ocidente preferiu dar forma e cor à cena do triunfo físico da

Theotókos sobre a efemeridade das coisas terrenas.

85
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 662.
45

A iconografia da entrada da Virgem no Paraíso está presente na Europa desde a oitava

centúria, mas foi a partir do século XIV que este tema ganhou vulto. 86 Normalmente a Mãe de

Jesus sobe aos céus, carregada por anjos, com as mãos unidas em posição de oração, enquanto os

apóstolos, em torno do sepulcro vazio, vislumbram o milagre de sua glorificação corporal. Esta

composição, no entanto, também apresentou variações.

O artista italiano Lippo Memmi (1317-1347) representou a Assunção de Maria

suprimindo o plano terreno. A Bem-aventurada, sentada sobre uma nuvenzinha, ao som de

instrumentos musicais – flautas, trombetas, bumbo e bandolim – é levada por inteligências puras

ao encontro de seu Filho Divino, que a espera no alto, ladeado por santos. No topo da obra, Cristo

honra sua genitora coroando-a. (FIG. 22).

O baixo-relevo em mármore, esculpido por Donatello (1386?-1466) para a tumba do

cardeal Brancacci, enfatiza a cena do movimento transitório entre o mundo terrestre e o celeste. O

artista não fez referência aos apóstolos em volta do túmulo vazio e nem ao Messias, ou à

Trindade, esperando na eternidade. O florentino cinzelou o painel destacando no centro a serena

figura da Virgem, que está assentada e com as mãos postas em sinal de oração. Um grupo

angélico, enviado dos céus com a missão de transportar a “Cheia de Graça” para o Paraíso, reuni-

se em torno do corpo feminino, erguendo-o e sustentando-o no ar. (FIG. 23)

O afresco realizado por Filippino Lippi (1457-1504) para a Basílica di Santa Maria sopra

Minerva, em Roma, apresenta outra configuração: Maria não está sentada, mas de pé sobre uma

nuvem, da qual pendem dois turíbulos. Erguida por três anjos e louvada por outros seis, a Bem-

aventurada, com as mãos unidas, deixa a efemeridade para traz subindo em direção ao Reino de

Deus. (FIG. 24)

86
Cf. Inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos VIII a XVII. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia2 – Nuevo... op. cit., p. 641-42.
46

FIG. 22 – Assunção da Virgem


Lippo Memmi, Pinacoteca de Munique (Alemanha), 1340.
Fonte: <http: //www.pinakothek.de/alte-pinakothek/sammlung/rundgang/rundgang_inc_em.php?inc=bild&which=9603>
Acesso em: 10 agos. 2005.
47

FIGURA 23 – Assunção da Virgem


Donatello, detalhe da tumba do cardeal Brancacci, S. Ângelo em Nilo, Nápoles (Itália), 1427.
Fonte: <http: //www.wga.hu/frames-e.html?/html/d/donatell/1-early/3assumpt.html> Acesso em:20 fev. 2006.

FIGURA 24 – Assunção da Virgem


Filippino Lippi, Afresco da Basílica di Santa Maria sopra Minerva, Roma (Itália), 1488-1493.
Fonte: <http: //www.ca-catholics.net/churches/rome-s-maria-sopra-minerva/06-04.jpg> Acesso em: 10 agos. 2005.
48

Durante o quatrocentos, uma importante variante surgiu: a Bem-aventurada, com a fronte

voltada para o alto e os braços abertos e erguidos, levita por força própria. Esta nova versão, que

já não justifica o título de Assunção, mas o de Ascensão 87 , consumou-se na arte italiana do século

XVI. Entretanto é preciso frisar que ela não invalidou a antiga composição, mas que ambas

coexistiram.

No afresco localizado na cúpula da Catedral de Parma, cujo autor é Antonio Allegri,

apelidado Correggio (1489?-1534), vemos Maria adentrando o Paraíso sem ajuda alguma. Os

seres celestiais, dispostos entre nebulosas, apenas assistem à subida da “Gloriosa”. (FIG. 25)

FIGURA 25 – Assunção da Virgem


Correggio, Afresco: cúpula da Catedral de Parma (Itália), 1525.
Fonte: GOMBRICH, 1999, p. 338.

87
Ascensão, do latim ascensiõnis, exprime a ação de subir, subida. Assunção, do latim assumptiõnis, significa ação
de se juntar ou associar, tomada, aceitação. O termo ascensão é usado para designar a elevação do Cristo aos céus,
que subiu por força própria, e o vocábulo assunção para se referir à transladação da Virgem ao Paraíso, porque seu
corpo foi levado (tomado por forças externas). Cf. ASCENSIÔ; ASSUMPTIÕ. In: FARIA, Ernesto (Org.)
Dicionário Escolar Latino-Português. 3 ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1962. p. 103, 108.
49

O Italiano Guido Reni (1575-1642) e o francês Nicolas Poussin (1594-1665), no século

XVII, representaram a elevação da Virgem aos céus enfatizando a intervenção dos anjos. Estas

duas fontes imagéticas, entre outras do período, são a comprovação da coexistência dos temas

iconográficos – Assunção e “Ascensão” de Maria – e da interação entre os elementos figurativos

pertencentes a cada um deles. (Reparem as FIG. 26 e 27. Apesar das imagens expressarem o

conceito da palavra assunção, o corpo da Bem-aventurada foi pintado seguindo o modelo da

“ascensão mariana”: a Mulher tem os braços abertos e a cabeça votada para cima.).

FIGURA 26 – Assunção da Virgem


Guido Reni, Düsseldorf Galeria, 1642.
Fonte: <http://pinakothek.de/alte-pinakothek/sammlung/rundgang/rundgang_inc_en.php?inc=bild&which=6967>
Acesso: 20 jan. 2006.
50

FIGURA 27 – Assunção da Virgem


Nicolas Poussin, óleo sobre tela. Louvre, Paris (França), 1650.
Fonte: <http://www.abcgallery.com/P/poussin/poussin76.html> Acesso em: 20 jan. 2006.
51

Em Portugal a iconografia da “Ascensão” também esteve presente. A obra do lusitano

André Gonçalves, datada de 1730, apresenta-nos a Mãe de Jesus sentada sobre um nimbo,

subindo em direção ao Paraíso Celeste na companhia de inteligências puras. Os apóstolos, no

plano terreno, circundam o jazigo vazio onde uma figura feminina está recostada. Provavelmente

a referência é a mesma que aparece na cena da Dormição esculpida no tímpano da catedral gótica

de Estrasburgo (Veja FIG. 11 e 28)

FIGURA 28 – A Assunção da Virgem.


André Gonçalves, Palácio Nacional de Mafra (Portugal), 1730.
Fonte: <http: //www.uc.pt/artes/6spp/imagens/andre-goncalves_assuncao1.jpg> Acesso em: 10 agos. 2005
52

Na América Portuguesa, especificamente na região das Minas Gerais, muitos forros de

templos católicos, datados entre os séculos XVIII e XIX, apresentam a cena da Assunção da

Virgem, privilegiando o modelo da “Ascensão”. Essa recorrência iconográfica deve-se à

circulação de gravuras impressas em missais (executadas por gravadores europeus), que serviam

de inspiração aos pintores mineiros, e à influência de artistas estrangeiros – portugueses e

italianos, principalmente – que pela região passaram ou fixaram residência. 88

A pintura do forro da capela-mor do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em

Mariana, executada por Antônio Martins da Silveira em 1782 89 , mostra-nos Maria ascendendo

aos céus sobre um nimbo, com os braços erguidos e a fronte voltada para o alto. Um ser celestial

postado ao lado direito e dois ao lado oposto, dividindo o espaço da nuvem, acompanham o

“Trânsito” da Bem-aventurada, porém, sem interferir na sua elevação. Os querubins colocados

nas duas extremidades superiores e no meio da margem esquerda completam o cortejo divinal.

(Veja a FIG. 29)

O quadro central do forro da nave da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Santa Rita

Durão, realizado por João Batista de Figueiredo entre 1788 e 1790 90 , e o da nave da Matriz de

Santa Luzia, cuja datação e autoria são desconhecidas, constituem mais dois exemplos de

iconografia ascensionista. A composição, dividida em dois planos: terrestre e celeste, registra o

túmulo vazio e a Virgem levitando. (FIG. 30)

88
Sobre o uso de estampas dos missais na produção artística das Minas Cf. BOHRER, Alex. Um Repertório em
Reinvenção: apropriação e uso de fontes iconográficas na pintura colonial mineira. Barroco, Belo Horizonte, v. 19,
p. 297-310, maio 2005. Sobre a influência dos estrangeiros na produção artísticas das Minas Cf. OLIVEIRA,
Myriam Andrade Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas Colonial. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco:
teoria e análise. São Paulo: Perspectiva/Belo Horizonte Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997. p.
443-64.
89
ANTÔNIO MARTINS DA SILVEIRA. In: MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos séculos
XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
1974, v. 2. p. 247.
90
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas Colonial: ciclo Rococó In: ÁVILA,
Affonso (Org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo: Perspectiva/Belo Horizonte Companhia Brasileira de
Metalurgia e Mineração, 1997. p. 468.
53

FIGURA 29 – A Assunção da Virgem


Forro da capela-mor do Seminário de N.S. da Boa Morte, Mariana (Brasil), 1782.
Foto: Hélcio Rocha.
54

FIGURA 30 – A Assunção da Virgem


Forro da nave da Matriz de Santa Luzia (Brasil), autoria desconhecida, s.d.
Fonte:
55

No contexto religioso das Minas do setecentos e oitocentos, as representações da

Dormição, do cortejo fúnebre, da Assunção e “Ascensão” de Maria não foram constituídas de

forma isolada. Conforme demonstramos, as referências literárias e artísticas do oriente e do

ocidente cristão atravessaram o oceano e se fizeram presentes nas terras do Ultramar. O trânsito

cultural, efetivado pela circulação de tradições orais, de livros, de estampas impressas e de

artistas estrangeiros, contribuiu não só para o enriquecimento da imaginária local e

desenvolvimento do culto mariano, mas também para a assimilação – pela população douta e

iletrada – do conceito e modelo cristão de “bem morrer”.


56

3. OS “FINS ÚLTIMOS” DO HOMEM E A CONCEPÇÃO DE BOA MORTE:


LITERATURA PIEDOSA, REPRESENTAÇÕES E COTIDIANO

“E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para


a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno.”
(Daniel 12, 2)

3.1 A DOUTRINA DOS NOVÍSSIMOS

O termo “novíssimos” – do latim novíssimus – era usado durante o período Medieval e

época Moderna para designar a doutrina dos fins últimos, isto é, os remates da vida humana

segundo a perspectiva das Sagradas Escrituras. Atualmente, esses ensinamentos são conhecidos

como “escatologia” – denominação que tem origem na palavra grega escháton e que se tornou

corrente entre os dogmáticos a partir do fim do século XIX. 91

Os Tratados sobre os Novíssimos, especialmente os que foram escritos após o concílio de

Trento (1545-1564), abordam questões doutrinárias a respeito da Morte, do Juízo Particular, dos

lugares reservados às almas (Céu, Inferno e Purgatório) e do Juízo Final (consumação dos

tempos). 92 Versam, portanto, sobre os derradeiros destinos do homem, considerando o plano

individual e o universal.

91
Cf. GRESHAKE, Gisbert. ESCATOLOGIA. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia.
São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2004. p. 620-625. Título original: Dictionnaire critique de théologie.; LE
GOFF, Jacques. Escatologia. In: ______. História e Memória. 5ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. p. 323-
371.
92
O Purgatório, após ser admitido pelo Magistério Eclesiástico em 1274, foi incorporado aos ensinamentos
escatológicos tornando-se freqüente na literatura sobre os Novíssimos. O mesmo ocorreu com o Juízo Particular, que
embora nunca tenha sido declarado pela Igreja como um dogma de fé, está suposto ou contido nas decisões
doutrinais do II concílio de Lião (1274), de Florença (1439) e no catecismo elaborado pelo concílio de Trento. Sobre
o Purgatório Cf. LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1995. 448 p Título
original: La Naissance du Purgatoire. Sobre o Juízo Particular veja: SCHMAUS, Michael. Los Novisimos. In:
______. Teologia Dogmatica. Madrid: Ediciones Rialp, 1965. v. 7. § 302. p. 412-429.
57

De acordo com as concepções católicas, vigentes no período colonial, após o falecimento,

o corpo volta ao pó (decompõe-se) e a alma comparece diante do juízo de Deus para prestar

contas e receber sentença irrevogável: salvação ou danação eterna. Os justos entrarão no Paraíso,

os réprobos sofrerão no Inferno e os que necessitam de expiar pecados veniais, antes de atingirem

a visão beatífica, passarão pelo Purgatório. Com a segunda vinda de Cristo e a ressurreição dos

mortos, consumar-se-á o Juízo Universal. Este evento porá termo à história do mundo presente e

definirá, de uma vez por todas, a situação da humanidade: os bons estarão reunidos na “Nova

Jerusalém” junto aos anjos e à Trindade, enquanto os maus ficarão na companhia dos demônios

para sempre.

Diante disso, podemos dizer que a doutrina dos fins últimos assegura uma existência após

o cessar das atividades corpóreas, entretanto não promete um futuro de felicidade plena para

todos. Só gozarão da eternidade aqueles que forem salvos, porque os condenados padecerão

tormentos infindáveis. Neste sentido, a morte só iguala os homens do ponto de vista biológico –

todos vão morrer – porque no além os destinos serão distintos.

3.2 O JUÍZO PARTICULAR, O JUÍZO UNIVERSAL E A ARTE DO BEM MORRER

A teologia católica pós-tridentina, em continuidade com a teologia medieval, admite a

existência de dois juízos: o Particular, que ocorre logo após o falecimento, e o Universal, que se

efetivará com a volta gloriosa do Cristo. Segundo esta asserção escatológica, ao deixar o corpo, a

alma é imediatamente examinada e sentenciada por Deus, contudo o mesmo parecer divino será

novamente proferido quando o tempo da parusia chegar e o Tribunal presidido por Jesus for

instaurado. Isso significa que, embora o exame seja duplo, a sentença é única, ou seja, na essência
58

os julgamentos são idênticos. Todavia é preciso ressaltar que no Juízo Particular a avaliação recai

sobre a boa ou má vontade do homem e, no Juízo Final, o que importa é o valor das ações

individuais para o transcurso da história. 93

Nas Sagradas Escrituras não há nenhuma referência que afirme a ocorrência do Juízo

Particular. Entretanto, o teólogo Michael Schmaus pondera que este Juízo está implícito na

doutrina veterotestamentária e neotestamentária da sanção, uma vez que depois da morte o estado

dos justos e dos pecadores é diferente. O estudioso elenca uma série de passagens bíblicas que

deram suporte a esta interpretação eclesiástica, destacando a Parábola do rico e Lázaro (Lc 16,

19-31) e a promessa feita por Jesus ao ladrão crucificado: “Em verdade te digo que hoje estarás

comigo no Paraíso.” (Lc 23, 43). 94

Em geral, o Julgamento Individual (Particular) é aceito pelos teólogos católicos, mas há

divergências de opiniões sobre sua natureza e processo. Das proposições apresentadas por

Schmaus, escolhemos a que mais se identifica com o conceito expresso nas fontes analisadas

nesta dissertação. Sendo assim, no exato momento em que a vida expira, a alma recebe uma

efusão da luz divina e, de modo inevitável, toma consciência de seus méritos e deméritos. A

onipotência e onisciência de Deus trazem à memória do homem todos os pensamentos, ações e

decisões tomadas durante sua existência terrena. Sem poder apartar-se deste exame, que atinge o

estrato mais íntimo do ser, a alma conhece seu destino eterno. 95

O Juízo Universal, ao contrário do Particular 96 , é um dogma de fé e está atestado

explicitamente em várias passagens bíblicas. As Santas Escrituras não informam a data em que

este evento ocorrerá (Mc 13, 32-37), mas revelam que no “fim dos tempos” a humanidade inteira

93
Cf. SCHMAUS, Michael. Los Novisimos. In: ______. Teologia Dogmatica... op. cit., § 302. p. 424.
94
Ibidem, § 302. p. 413-415.
95
SCHMAUS, Michael. Los Novisimos. In: ______. Teologia Dogmatica... op. cit., § 302. p. 424-429. Cf. também
BETTENCOURT, Estêvão. A vida que começa com a morte. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1955. p. 45-55.
96
Cf. nota nº 92.
59

– os vivos e os mortos – serão publicamente julgados por Jesus, a quem o Pai (Deus) investiu de

autoridade e honra (Jo 5, 22-27; At 10, 42). O chamado “Dia do Senhor” será precedido por

grandes sinais e marcará o término, ou melhor, o cumprimento da história da criação – quando o

cosmo, segundo a perspectiva doutrinária embasada na visão apocalíptica de João, será

consumido e dará lugar a um “novo Céu” e uma “nova Terra” (Ap. 20, 11 e 21, 1). 97

O imaginário e a cultura devota do Declínio da Idade Média e época Moderna não

consideravam o fim do mundo como uma realidade próxima e por isso a religiosidade, neste

período, manteve-se estreitamente ligada à doutrina do Juízo Particular. 98 Por esta razão o ato de

testar na iminência da morte foi freqüente. Através destes documentos os fiéis suplicavam a

intercessão dos santos, distribuíam seus bens, praticavam caridade (deixando doações para ordens

religiosas, órfãos, pobres e donzelas), solicitavam expressivo número de missas em sufrágio pela

sua alma e pelas do Purgatório, escolhiam a mortalha e o lugar em que queriam ser sepultados,

resolviam assuntos pendentes (como o pagamento de dívidas) e emendavam erros (como o

reconhecimento de filhos ilegítimos). O testamento, para além de ter função puramente

97
II Pd 3, 10-13 também é muito significativo neste contexto. Sobre o Juízo Universal Cf. BETTENCOURT,
Estêvão. A vida que começa com a morte... op. cit., p. 155-258.
98
O padre Manuel Bernardes, discorrendo sobre o Juízo Universal e distinguindo-o do Particular, pauta-se na visão
catastrófica do fim do mundo descrita por João no canônico livro do Apocalipse. A obra do religioso Nuno Marques
Pereira, mais afinada com a mentalidade do catolicismo barroco – que não crê na iminência do Juízo Final,
preocupando-se mais com o julgamento individual após a morte –, destaca a importância da conduta terrena para se
alcançar a salvação. Nada de consumação dos tempos, seu discurso concentra-se no valor das ações praticadas neste
mundo frente ao exame de Deus na eternidade. Cf. BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: Obras
Completas do Padre Manuel Bernardes. São Paulo: Editora Anchieta, 1946. v. 7. Tomo II, Exercício IV, p. 32-213.
Reprodução fac-similada da edição de 1686.; PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da
América. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1939. v. 2. p. 247-255. O padre Manuel Bernardes
nasceu em Lisboa a 20 de agosto de 1644 e faleceu em 17 de agosto de 1710. Entre os anos 1674 e 1708, ao abrigo
da Congregação do Oratório de Lisboa, escreveu extensa obra – onze títulos somando 17 tomos – voltada à vida
virtuosa e aos fins últimos do homem. Sua produção literária é importante porque muito circulou pela América
Portuguesa, influenciando a cultura e o imaginário devoto na Capitania das Minas. Sobre a vida e obra deste
religioso Cf. SILVEIRA, Francisco Maciel. Textos Doutrinais: Pe Manuel Bernardes. São Paulo: Cultrix: Editora da
Universidade de São Paulo, 1981. p. 1-14. O lusitano Nuno Marques Pereira, nascido em 1652 e falecido em Lisboa
depois de 1733, viveu parte de seus dias na colônia americana portuguesa. Sua obra, publicada primeiramente em
1728, teve cinco edições até o ano de 1765 – dado que revela sua popularidade.
60

econômica, era um instrumento de fé e um meio de “bem morrer”, ou seja, de passar a

consciência a limpo e estar pronto para o julgamento individual na eternidade. 99

A boa morte, nas palavras do historiador João José Reis, “significava que o fim não

chegaria de surpresa para o indivíduo, sem que ele prestasse contas aos que ficavam e também

os instruísse sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus bens terrenos.”100

Almejado e praticado (na medida do possível) pelos cristãos, desde o medievo, o “morrer bem”

consistia na aceitação da vontade divina, na resignação diante do sofrimento, na entrega espiritual

e na perseverança, sendo a venerada imagem da Dormição de Maria exemplo para os devotos.

Os últimos instantes da vida eram considerados primordiais para a salvação porque, não

resistindo às tentações deste mundo e aos insistentes ataques do demônio, os moribundos

poderiam perder a bem-aventurança celestial. Refletindo sobre esta problemática o oratoriano

lisboeta Manuel Bernardes escreveu:

Que a nossa salvação depende de termos uma boa morte, é coisa certa; porque assim
como quem dá a sentença entre as duas balanças, sobre qual delas pesa mais, é o ponto,
que está no ápice do fiel das mesmas balanças; assim o ponto, ou momento último da
nossa vida, é o que dá a sentença entre as duas eternidades, uma de pena, outra de glória,
qual delas há de levar a alma. 101 (sic)

A doutrina dos Novíssimos – ensinada pela Igreja através de sermões, literatura piedosa e

artes visuais 102 – gerou, ao longo do tempo, crenças e costumes relativos ao fim da existência

99
Sobre o ato de testar cf. VOVELLE, Michel. Pieté barroque et déchristianisation en Provence au XVIIIe siècle.
Paris: Editions du Seuil. 1978. p. 229-64.; MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980. p. 209-228.
100
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 92. A boa morte foi chamada pelo historiador Philippe Ariès de “morte domada”
(mort apprivoisée). Cf. ARIÈS, Philippe. L’homme devant la mort. Paris: Éditions du Seuil, 1977. p. 13-36.
101
BERNARDES, Pe. Manuel. Os Últimos Fins do Homem. In: Obras Completas do Padre Manuel Bernardes. São
Paulo: Anchieta, 1946. v. 9. Livro I, cap. XI, p. 171. Reprodução fac-similada da edição de 1728. (Atualizamos a
grafia nesta transcrição). A respeito de outras mensagens relativas ao “bem morrer” Cf. VIEIRA, Antônio. Sermões
do Padre Antonio Vieira. São Paulo: Anchieta, 1944. v. 1, p. 87-142. Reprodução fac-similada da edição de 1679.;
PEREIRA, Nuno Marques. Compendio Narrativo do Peregrino... op. cit., v. 2. p. 236-46.
102
Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Os Novíssimos do Homem” – a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso: fontes
escritas e iconografia. In: ______. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro: o culto a São Miguel e Almas. 1994.
432 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1994. cap. 1, p. 12-81.
61

terrena. Imbuídos dos princípios escatológicos, os fiéis, na América Portuguesa, desejavam o

“bem morrer” e repudiavam o contrário. Falecer sem deixar testamento, sem tempo para

preparação e arrependimento ante mortem, sem assistência e preces de parentes, amigos,

confrades e sacerdote era motivo de temor entre os cristãos, pois a possibilidade de conserto só

existia para os vivos. Uma vez passado o umbral da eternidade a sorte das almas estava lançada.

Advertindo sobre esta matéria o religioso Nuno Marques Pereira redigiu o seguinte trecho:

E considerai que vos aviso agora, pois tendes tempo para o fazer; obrai muito para
aplacares a indignação deste Deus ofendido, porque depois vos não falte tempo de o
poderes fazer naquela tão apertada hora, entre o instante da vida, e a morte; porque já
então não haverá lugar para serem admitidos vossos rogos, nem terem mais despachos as
vossas súplicas, nem para vossas lágrimas perdão, nem para o vosso arrependimento
misericórdia. 103 (sic)

No Catecismo Romano, elaborado pelo concílio de Trento, não há informação sobre o

local onde se dá o Juízo Particular. Todavia o padre Manuel Bernardes, em seus Exercícios

Espirituais, afirmou que o exame individual ocorre no mesmo lugar onde a morte nos colhe. Por

esta razão o pio autor aconselhou: “(...) quando te fores deitar na tua cama, não olhes para o

leito como lugar de descanso de teu corpo, senão como tribunal do juízo de tua alma pois nesse

leito, e nessa noite podes morrer, e ser julgado.” 104 (sic). Esta orientação não foi uma novidade

da época Moderna. No declínio da Idade Média, a literatura religiosa conhecida como Ars

Moriendi difundiu ilustrações que mostravam moribundos vislumbrando a sentença divina em

seus dormitórios (Veja FIG. 3). Tais imagens, utilizadas por missionários na evangelização dos

povos desde o século XV, circularam pela América Portuguesa e Espanhola propagando os

ensinamentos acerca dos “fins últimos”. 105

103
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino... op. cit., v. 2. p. 252. (A grafia foi atualizada
nesta transcrição parcial).
104
BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: ______. Obras Completas do Padre Manuel... op. cit.,
Tomo II, Exercício IV, p. 15. Reprodução fac-similada da edição de 1686. (A grafia foi atualizada).
105
VOVELLE, Michel. A conversão vista através das imagens: das vaidades aos fins últimos, passando pelo
macabro, na iconografia do século XVII. In: ______. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas
mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Editora Ática, 1997. cap. 6, p. 119-133.
62

O tema da morte do justo e do pecador, presente na cultura e no imaginário devoto do

Novo Mundo, foi recorrente em Minas Gerais durante os séculos XIX e XX. Apesar das fontes

imagéticas que encontramos serem datadas do oitocentos e do novecentos, isso não significa que

elas foram inexistentes no período anterior. Além do mais, podemos assegurar que a deficiência

iconográfica não implica na ausência ou na fragilidade de uma crença. A prática comum de testar

na iminência do falecimento é prova suficiente de que a doutrina do Julgamento Individual estava

interiorizada e assimilada pela população mineira do setecentos. Desta forma, compreendemos

que a análise das representações inspiradas no modelo da Ars Moriendi e figuradas na região

mineradora no espaço de tempo posterior ao delimitado por nossa pesquisa não exprime

anacronismo histórico. Esclarecemos ainda que, neste caso, os recursos visuais sobre os quais nos

detemos servem para elucidar a concepção de boa morte internalizada pela sociedade colonial,

posto que se enquadram e exprimem perfeitamente a mentalidade do catolicismo barroco.

No Museu Regional Casa dos Otoni, localizado no Serro, há duas litogravuras cujo

conteúdo expressa a tradição iconográfica proveniente do medievo (Veja FIG. 31 e 32). As

estampas são de procedência francesa e outrora pertenceram à instituição serrana chamada Santa

Casa de Misericórdia. 106

Na FIG. 31, datada do século XIX, podemos observar a “morte do justo”. O homem

representado é magro e aparenta idade avançada, dado que nos assinala a prática penitencial do

jejum e a dádiva da longevidade. Ele está deitado em leito modesto, onde recebe efusão da luz

divina e contempla sua salvação. O quarto está repleto de seres celestiais que vieram ao encontro

da alma eleita. No alto, à esquerda, um anjinho ladeado por querubins mostra a coroa da vida

eterna, enquanto o diabo, no canto inferior direito, está com a fronte voltada para o chão em

posição de derrota. Ao redor do moribundo, que segura um crucifixo de madeira e possui tonsura

106
IPHAN, IBMI, Minas Gerais, Serro, Museu Regional Casa dos Otoni.
63

sobre a cabeça (sinal de que é um religioso), destaca-se a presença de três membros da hierarquia

clerical: um papa, um bispo e um pároco. Este último, com traje marrom e estola bordada, parece

ministrar o sacramento da confissão. São José, considerado o patrono da boa morte, está presente

na cena. O arcanjo Miguel, vestido de guerreiro (manto azul, saiote e botas cinza), empunha sua

espada na direção do satã antropomorfo. Ao fundo, na parte esquerda da imagem, uma figura

angélica porta o símbolo universal da justiça: a balança.

FIGURA 31 – A morte do justo.


Litogravura, acervo do Museu Regional Casa dos Otoni, Serro (Brasil), século XIX.
Foto: Júlio Martins.

A FIG. 32, datada do século XX, apresenta-nos a “morte do pecador”. O moribundo tem

aparência robusta e jovem, informação visual que denota seu falecimento precoce. Ele está

deitado em leito confortável (equipado com duplo colchão), onde, iluminado pela justiça divina,

toma consciência de sua desgraça eterna. Diferente dos aposentos do justo, o quarto está repleto

de seres danados. No canto esquerdo, sentado no trono e segurando um tridente, o rei do inferno
64

aguarda a chegada da alma perdida. Três demônios antropomorfos dominam a cena: um puxa o

lençol que está sob o corpo do enfermo rumo ao mundo das trevas; o outro segura um espelho

que reflete imagem de mulher jovem e ricamente ornada, seduzindo o homem a permanecer no

engano das paixões efêmeras; enquanto o terceiro, movimentando o braço na direção do anjo que

retorna aos céus, alegra-se com a vitória do mal. Simbolizando o apego material e o pecado da

avareza, vemos ao lado da cama, sobre o móvel, uma caixinha de jóias e logo abaixo, no chão,

um baú e um saco de moedas envolto por uma serpente. Tentando apartar-se da visão do Juízo, o

moribundo levanta a mão direita, vira o rosto contra a luz celestial, despreza a presença do

sacerdote e mira a figura feminina que está na moldura sustentada pelo diabo. Ajoelhada ao pé do

leito sua esposa chora copiosamente, mas as lágrimas derramadas não podem salvar o pecador

renitente.

FIGURA 32 – A morte do pecador.


Litogravura, acervo do Museu Regional Casa dos Otoni, Serro (Brasil), século XX.
Foto: Júlio Martins.
65

No acervo do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, existe um par de telas oriundas da

segunda metade do oitocentos (Veja FIG. 33 e 34). As obras, cuja autoria é desconhecida, foram

doadas para a instituição ouropretana pelo Museu Arquidiocesano de Mariana. 107

O quadro que apresenta a “morte do justo” foi executado, sem sombra de dúvidas,

seguindo o modelo da litogravura descrita anteriormente. O artista usou paleta de cores

diferentes, acrescentou e retirou alguns elementos iconográficos, mas manteve a mesma

composição imagética (Compare as FIG. 31 e 33). O moribundo está deitado, usando tonsura

sobre a cabeça e segurando um crucifixo. No mesmo instante em que recebe auxílio sacerdotal,

ele vislumbra seu Juízo Particular. Ao lado da cabeceira, no canto direito da tela, o diabo lamenta

sua derrota, enquanto o Arcanjo Miguel vigia-o com a espada em punho. São José e os demais

personagens presentes no recinto acompanham a boa morte do enfermo.

FIGURA 33 – A morte do justo.


Óleo sobre tela, acervo do Museu da Inconfidência, Ouro Preto (Brasil), século XIX.
Fonte: O Museu da Inconfidência, 1995, p. 290.

107
Cf. análise pioneira das telas do Museu da Inconfidência. CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do
Setecentos Mineiro... op. cit., p. 34-37.
66

Na FIG. 34 uma jovem mulher conhece o fim último dos pecadores renitentes. Trajando

camisola decotada e exibindo corpo escultural, ela está deitada sobre cama luxuosa dotada de

dossel e cortinado vermelho. Seu quarto está cheio de seres infernais. Debruçado sobre a

cabeceira do leito mortuário, um demônio aponta a cena em que ocorre o Juízo Particular. Nela

podemos ver o Cristo de pé sobre uma nuvem, Maria ajoelhada frente à âncora da salvação e um

diabinho mostrando o livro em que foram anotados todos os pensamentos impuros, ações e

decisões iníquas da ré. No primeiro plano, horrenda figura de dragão alado simboliza a luxúria e

os prazeres do amor carnal. Ao lado do único anjo de luz, que com tristeza olha a moribunda, um

espírito maligno segura o espelho da vaidade. O pároco, em vão, empunha um crucifixo tentando

convencer a enferma a arrepender-se de seus pecados, mas esta vira-lhe o rosto em sinal de

desprezo. Perto de sua mão esquerda encontra-se um baú de trastes e um saco de moedas,

representando a avareza e o apego material.

FIGURA 34 – A morte do pecador.


Óleo sobre tela, acervo do Museu da Inconfidência, Ouro Preto (Brasil), século XIX.
Fonte: O Museu da Inconfidência, 1995, p. 291.
67

Em Sabará, na sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, e em Campanha, no Museu

Regional do Sul de Minas, encontramos dois conjuntos (idênticos entre si) de litogravuras

datadas do século XX. A estampa da morte do pecador é igual àquela que compõe o acervo do

Museu Regional Casa dos Otoni, localizado no Serro (Veja FIG. 32). Entretanto, a gravura da

morte do justo é diferente das descritas anteriormente.

FIGURA 35 – A morte do justo.


Litogravura, Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Sabará (Brasil), século XX.
Foto: Jader Barroso Neto.

Na FIG. 35, reproduzida acima, podemos observar um leigo visualizando o Julgamento

Individual e recebendo a dádiva da salvação. Ele está deitado em seu leito, segurando crucifixo

de madeira com a mão esquerda e um rosário com a destra. Postado ao lado do moribundo, um

anjo aponta para a cena celeste onde a Trindade Divina aguarda a alma eleita. Ao fundo, com

espada em punho, outro ser angélico expulsa do recinto o diabo derrotado. À beira da cama, sem

desesperação, a esposa e os filhos do enfermo acompanham os últimos sacramentos ministrados


68

pelo pároco. No primeiro plano, sobre a mesinha, há um livro aberto (provavelmente a Bíblia

Sagrada) e um frasco de vidro contendo o óleo da extrema-unção. No canto esquerdo do quadro,

próximo ao cortinado rubro, um jovem em posição de orante (mãos unidas e cabeça reclinada)

auxilia com preces o bom desfecho da vida do agonizante. A conduta do justo é admirável. Com

fé, resignação e perseverança ele aceita a vontade do Criador, despede-se dos entes queridos e

renuncia aos prazeres mundanos. Seu comportamento diante da morte está em perficiente

conformidade com o modelo da Dormição de Maria.

A imaginária dormicionista e a iconografia proveniente da Ars Moriendi difundiram, de

maneira pedagógica e persuasória, um padrão cristão de “bem morrer”, mas também enfatizaram

a responsabilidade de cada um sobre seu próprio destino eterno. No que diz respeito a esta

questão a literatura religiosa do seiscentos e do setecentos foi consensual. O Catecismo

Tridentino ensinava: “Recordemos, además, que todos los hombres habremos de comparecer dos

veces delante del Señor para dar cuenta de todos y cada uno de nuestros pensamientos, palabras

y acciones, y para escuchar su sentencia de Juez.” 108 Manuel Bernardes, comentando as palavras

do Apóstolo Paulo em Gálatas (6, 7-8), exortava: “não nos enganemos: de Deus ninguém zomba:

o que cada um semear, isso colherá: será a sua morte conforme for a sua vida.” 109 A obra de

Nuno Marques Pereira também advertia: “(...) nem uma criatura racional pode escapar de ser

julgada naquele Diviníssimo Tribunal, diante do Retíssimo juiz dos bens e males, que neste

mundo tiver feito, até o último instante da hora da sua morte.” 110

108
HERNANDEZ, Pedro Martin (trad., introd e notas). Catecismo Romano. Madrid: Editorial Católica, 1956. cap.
VII, p. 174.
109
BERNARDES, Pe. Manuel. Os Últimos Fins do Homem. In: ______. Obras Completas do Padre Manuel... op.
cit., Livro I, cap. XII, p. 225. Reprodução fac-similada da edição de 1728. (A grafia foi atualizada).
110
PEREIRA, Nuno Marques. Compendio Narrativo do Peregrino da... op. cit., v. 2. p. 248. (Atualizamos a grafia).
69

3.3 A BOA MORTE E A VIVÊNCIA DO “BEM MORRER” NAS MINAS

Para alcançar a graça da redenção – objetivo de toda a cristandade – era necessário que os

fiéis zelassem por uma existência virtuosa, sendo primordial a prática contínua da auto-avaliação.

Os devotos deveriam resistir às tentações deste mundo, fixar os pensamentos na eternidade,

arrepender-se de seus pecados e confessá-los a um sacerdote, pois só assim conseguiriam

caminhar rumo à bem-aventurança celestial. O oratoriano Manuel Bernardes, em seus Exercícios

Espirituais, recomendava: “(...) aprende o modo com que podes fazer o juízo de Deus mais

antecipado, e mais vagaroso que é julgando-te a ti mesmo todos os dias.” 111 Destacando a

importância da contrição e do sacramento da penitência, o pio autor insistia:

Se fores contra ti testemunha fiel não dissimulando as culpas, e testemunha veloz, não
retardando a penitência, não te causará horror, mas alegria, que o Supremo Juiz seja
testemunha veloz, e testemunha fiel. Porque sendo fiel, não te imputará de novo os
pecados, que já perdoou, e sendo veloz, não te dilatará mais o prêmio, que já
mereceste. 112 (sic)

A boa morte era sinônimo de salvação e, portanto, conseqüência de uma vida ilibada, ou

seja, estava diretamente vinculada a uma conduta terrena pautada pela interiorização e prática dos

valores ético-cristãos. Neste sentido, os justos não tinham razão para temerem um falecimento

súbito, pois ainda que lhes faltassem o tempo necessário para as preparações ante mortem suas

atitudes cotidianas e seus testemunhos pios garantiam o prêmio da redenção eterna. A justiça e a

misericórdia divina jamais condenariam as almas que, enquanto estiveram unidas ao corpo,

respeitaram e obedeceram aos preceitos estabelecidos nas Sagradas Escrituras. Esta concepção

religiosa foi reiterada nos diversos manuais do “bem morrer”, produzidos desde o declínio da

Idade Média. As orientações contidas no Retiro Espiritual Para Hum Dia De Cada Mez, obra

111
BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: ______. Obras Completas do Padre Manuel... op. cit.,
Tomo II, Exercício IV, p. 13. Reprodução fac-similada da edição de 1686. (A grafia foi atualizada).
112
Ibidem, loc. cit. (Atualizamos a grafia).
70

voltada para a meditação e preparação daqueles que desejavam uma boa morte, cuja oitava edição

– “mais correta e exata” – data de 1818, reafirmavam a estreita relação entre a vida e o fim último

dos justos. No trecho transcrito abaixo podemos perceber como o “bem viver” e o “bem morrer”

estavam aliançados.

Considera quanto é suave o morrer para aquele, que tem vivido bem. A morte é castigo
do pecado: não é, pois, propriamente falando, só as almas manchadas com o pecado, que
ela deve causar aflição? E pode deixar de causar grande consolação, e alegria aqueles,
que têm vivido no exercício das virtudes cristãs? Poderá deixar de morrer contente quem
morre santo?
A morte dos justos é preciosa diante de Deus, diz o Profeta, ela é agradável. O que é
precioso, estima-se em qualquer lugar que esteja, tem-se muito cuidado dele. Assim,
ainda que os justos morram destituídos de todo o socorro humano, ainda que morram
subitamente, a sua morte nunca é improvisa, Deus tem um singular cuidado dela: E
como poderia deixar de ser feliz esta morte, sendo tão preciosa nos seus olhos? 113 (sic)

Desde o medievo a Igreja foi enfática em recomendar aos fiéis que se preparassem

continuamente durante a vida e que estivessem atentos aos mandamentos de Deus, porque no

momento derradeiro poderia não haver tempo para contrições. Entretanto, sabemos que existe

uma grande diferença entre o dever ser e o que realmente se efetiva no cotidiano.

Na Capitania das Minas, conforme observou a historiadora Adalgisa Arantes Campos, a

vivência e a experiência religiosa do leigo foram marcadas, essencialmente, pelo aspecto

devocional. Nada de heroísmos em nome da fé, comportamentos ilibados e práticas penitenciais

excessivas. O homem do qual tratamos, cuja cultura está sedimentada historicamente na

expressão barroca, “quer se salvar, mas – salienta-se – dentro de uma perspectiva bastante

aclimatada às exigências temporais.” 114

Na região aurífera, predominava a crença no milagre e o culto aos santos, mas também a

valorização do mundo das ocupações (status) em detrimento da mortificação e expiação dos

113
APNSPilar, Casa dos Contos – Ouro Preto. Volume 0091, Rolo/Microfilme 005/0360-0475. Retiro Espiritual
Para Hum Dia De Cada Mez. Obra muito útil para toda a sorte de pessoas e principalmente para aquelles que
desejam segurar uma boa morte. Traduzido da Língua Francesa. Tomo I. Oitava Edição mais correta, e exata. Lisboa,
na Officina de Antônio Rodrigues...1818. p. 184. (A grafia do trecho transcrito foi atualizada).
114
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro... op. cit., p. 32.
71

pecados em vida, a extroversão e a licenciosidade. O jejum e a continência sexual eram raramente

acatados, sendo levados a efeito somente em dias de grande significação do calendário litúrgico.

As obras de misericórdia eram feitas, basicamente, na iminência da morte e a participação nos

diversos sacramentos, principalmente o matrimônio, era demasiadamente irregular. 115

O cisterciense Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro bispo de Mariana e fundador do

Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, prestando contas à Sagrada Congregação do Concílio

de Trento sobre seu governo episcopal, escreveu no ano de 1757 um relatório decenal. Na sexta

sessão deste documento o benemérito prelado expôs suas observações sobre a vivência moral e

religiosa nas Minas. Segundo ele:

O território desta região aurífera, a nenhum outro inferior na incontável multidão de


habitantes e adventícios, sobrepuja as maiores Cidades do Orbe na torpeza diversificada
dos vícios. Porquanto estende-se longe com enorme multidão de indivíduos nele
dispersos e projeta-se para o alto, mais que as outras, com vértices de montes muito
elevados, alicia os habitantes para os campos demasiado amplos dos vícios, precipita-os
no abismo bastante profundo da ambição, atrai os mineiros para o incitamento do mal, a
saber, a extração do ouro: pois que eles, envolvendo seus irmãos com inumeráveis ardis
de injustiça, roubando em benefício próprio, através de demandas dolosas, os veios do
ouro alheio, ensoberbecem-se com a altivez demasiado arrogante da avareza. Daí
encontrarás vários de seus vizinhos iludidos e apegados aos hábitos da ambição, vaidade,
soberba e aos falazes prazeres carnais, impelindo-os talvez a estas faltas a abominável
ganância do ouro. Nem digas que alguns eclesiásticos ficam imunes de se queimar nesta
desonra, já que a eles, não sem motivo, pode aplicar-se aquele dito de Kolkocius:
Procuram Libras não livros, obedecem às moedas, não às monições, ajudam alguém com
preço, não com prece. Inclinados por demais a estes vícios, no entanto, torna-os
grandemente merecedores de um único louvor a copiosa liberalidade para com os
Santos, graças à qual rios de ouro são destinados a promover o esplendor de todas as
Igrejas. 116 (sic)

115
Sobre a irregularidade do matrimônio Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. A “torpeza diversificada dos vícios”:
celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas Gerais (1748-1801). 1993. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1993.; FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997. 198p. É preciso ressaltar que a simplificação da experiência religiosa e da conduta moral não foi uma
particularidade vivida na Capitania das Minas. De maneira geral, as sociedades cristãs da Idade Moderna
compartilhavam do mesmo padrão comportamental: só se preocupavam com o destino de suas almas na iminência da
morte. Cf. D’ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações 1700-1830. Lisboa: Editorial
Notícias, 1997. MORAES, Douglas Batista. Bem nascer, bem viver, bem morrer: administração dos sacramentos da
Igreja em Pernambuco (1650 à 1790). 2001. 111 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.; ROLDÁN, Francisco Núñez. La
vida cotidiana en la Sevilla del Siglo de Oro. Madrid: Sílex, 2004. 248p.
116
AEAM, Relatório Decenal do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento,
redigida por Dom Frei Manoel da Cruz. Mariana, 1 de julho de 1757. Língua original: Latim. Tradução de
Monsenhor Flávio Cordeiro.
72

De acordo com a análise coeva do bispo cisterciense, a situação de sua diocese era

aviltante. Na capitania sobrepujava a corrupção e a degradação dos bons costumes, sendo motivo

de elogio apenas a “liberalidade para com os Santos” praticada pela população viciosa. Nem os

padres resistiam aos prazeres mundanos e à concupiscência da carne.

Os católicos da região aurífera almejavam a salvação e desejavam o “bem morrer”, mas

não se preocupavam em viver cotidianamente segundo as regras e preceitos da fé que

professavam. Para compensarem a vida desregrada que levavam e assegurarem uma boa morte,

os devotos dedicavam-se ao culto santoral com extremado apreço e pompa. Agremiando-se em

associações leigas, eles honravam seus padroeiros, contribuindo materialmente para construção e

decoração de templos, realização de festas, procissões e caridades. Além disso, garantiam o

acompanhamento confrarial em seus funerais, sepultamento em covas internas (ad sanctos) e

missas em sufrágio de suas almas. 117 No momento derradeiro não dispensavam o direito de testar

e o auxílio sacerdotal, sendo prática receberem ao menos um dos três sacramentos ante mortem, a

saber: eucaristia, penitência e extrema-unção. 118

117
Sobre os sepultamentos “ad sanctos” e “apud ecclesiam” Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Idéia do Barroco e
os desígnios de uma nova mentalidade: a misericórdia através dos sepultamentos pelo amor de Deus na Paróquia do
Pilar de Vila Rica (1712-1750). Revista Barroco, Belo Horizonte, v. 19, p. 45-68, 2000.
118
A eucaristia consistia na comunhão. Os fiéis recebiam da mão do sacerdote o pão de trigo (Corpo de Cristo), que
no caso dos doentes podia significar o último alimento espiritual antes do trânsito de suas almas – viático. Cf. VIDE,
D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras Do Arcebispado Da Bahia. Coimbra: Real Colégio das Artes da
Companhia de Jesus, 1720. Livro 1, Título XXIII a XXXII, nº 83-122. p.35-53.; HERNANDEZ, Pedro Martin (trad.,
introd e notas). Catecismo Romano... op. cit. cap. III. p. 436-516. A penitência consistia no arrependimento sincero e
na confissão dos pecados a um sacerdote autorizado. Cf. VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras
Do Arcebispado Da Bahia... op. cit., Livro 1, Título XXXIII a XLVI, nº 123-190. p.54-80.; HERNANDEZ, Pedro
Martin (trad., introd e notas). Catecismo Romano... op. cit. cap. IV. p. 516-591. A extrema-unção era realizada pelo
sacerdote. Com óleo bento de oliva ele ungia partes do corpo do moribundo (olhos, ouvidos, nariz, boca, mãos e
eventualmente os pés), pedindo o perdão de Deus por todo pecado cometido através destes sentidos. Segundo as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: “Os efeitos próprios deste sacramento são muitos, e
principalmente três. O primeiro é, perdoar-nos as relíquias dos pecados, pelos quais faltava satisfazer da nossa
parte, ficando por isso aliviada a alma do enfermo. O segundo é, dar muitas vezes, ou em todo, ou em parte a saúde
corporal ao enfermo, quando assim convêm para bem de sua alma. O terceiro é, consolar ao enfermo, dando-lhe
confiança, e esforço, para que na agonia da morte possa resistir aos assaltos do inimigo, e levar com paciência as
dores da enfermidade.” Cf. VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras Do Arcebispado Da Bahia...
op. cit., Livro 1, Título XLVII, nº 193. p. 81-82. (a grafia foi atualizada nesta transcrição); HERNANDEZ, Pedro
Martin (trad., introd e notas). Catecismo Romano... op. cit. cap. V. p. 592-609.
73

Do ponto de vista estritamente doutrinal as Irmandades vocacionadas à Dormição de

Maria tiveram importante função nas Minas. Ao difundirem o modelo mariano de “bem morrer”,

elas enfatizaram a relevância do “bem viver”, ou seja, contribuíram para conscientizar a

população (incluindo seus irmãos filiados) acerca da estreita relação entre a existência terrena e o

destino eterno de cada um. A salvação era o coroamento da vida cristã e por isso não deveria ser

preocupação e objetivo apenas dos moribundos. Neste sentido, o culto a Nossa Senhora da Boa

Morte cooperou para a valorização do padrão de perfeição comportamental e espiritual ensinado

pela Igreja. Não foi por acaso que o Bispo Dom Frei Manuel da Cruz consagrou o Seminário de

Mariana – fundado por ele em 1750 – a esta invocação. 119

119
Sobre o Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte Cf. TRINDADE, Raymundo. Archidiocese de Marianna:
subsídios para sua história. São Paulo: Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus, 1929. v. 2. p. 754-918.
______. Breve Notícia dos Seminários de Mariana: publicação comemorativa do Bicentenário do Seminário e
Cinqüentenário Sacerdotal de Dom Helvécio Gomes de Oliveira. São Paulo: Oficinas da Empresa Gráfica da
“Revista dos Tribunais”, 1953. 280p.
74

4. AS IRMANDADES DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE: COMPROMISSOS E

SOCIABILIDADE CONFRARIAL NO TERRITÓRIO DAS MINAS (1721-1822)

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o


propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer;
tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou.”
(Eclesiastes 3, 1-2)

4.1 AS IRMANDADES MINEIRAS DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

As irmandades mineiras de Nossa Senhora da Boa Morte começaram a ser instituídas no

primeiro quartel do século XVIII. Entre os anos 1721 e 1822, elas foram erigidas em nove

localidades, a saber: Vila Rica (Ouro Preto), Arraial de Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira

ou Arraial da Cachoeira (Cachoeira do Campo), Vila de São João Del Rei (São João Del Rei),

Arraial de Guarapiranga (Piranga), Arraial da Borda do Campo (Barbacena), Arraial de Aiuruoca

(Aiuruoca), Vila de Baependi (Baependi), Vila da Campanha da Princesa (Campanha) e Arraial

de Catas Altas do Mato Dentro (Catas Altas). 120

Na Capitania das Minas, o culto ao “Trânsito” da Virgem não se limitou às regiões

supracitadas; a imaginária dormicionista e assuncionista foi venerada em diversos sítios do

território colonial mineiro – Sabará e Caeté, por exemplo, guardam excelente acervo em seus

templos e museus. Ratificamos que o objetivo de nossa pesquisa é o estudo das confrarias de

120
Caio César Boschi realizou levantamento exaustivo de irmandades mineiras, sob várias invocações. Entretanto,
sua listagem referente às Irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte encontra-se incompleta, contando apenas seis
das nove que conseguimos mapear. Cf. BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política
colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986. Anexos 4 e 5, p.189 e 192
75

compromisso e por este motivo não incluímos, nesta análise, os grêmios de devoção (entidades

sem estrutura administrativa reconhecida por autoridade competente). 121

No mapa abaixo (FIG. 36), estão destacadas apenas as localidades onde houveram

irmandades oficialmente constituídas. Observe que a influente cidade de Mariana, sede do

Bispado e do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, não foi assinalada. O suporte

cartográfico que usamos, apesar de corresponder à configuração do atual estado de Minas Gerais,

mostra que as associações vocacionadas à Dormição de Maria concentraram-se no sul da

Capitania, dividindo-se entre as antigas Comarcas de Vila Rica e do Rio das Mortes – dois

importantes centros urbanos e econômicos do período analisado. 122

FIGURA 36 – Mapa do Estado de Minas Gerais com demarcação das antigas Comarcas.
Fonte de dados: BOSCHI, 1986, p. 206. Edição digital: Ramon Sant’ Anna.

121
Sobre as diferenças entre Irmandades de compromisso (ou de obrigação) e Irmandades de devoção Cf. AGUIAR,
Marcos Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no século XVIII.
1993. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1993. p. 7-20.
122
A respeito da demarcação e configuração do território das Minas Gerais Cf. COSTA, Antônio Gilberto (Org.).
Cartografia da Conquista do Território das Minas. Belo Horizonte: Editora UFMG; Lisboa: Kapa Editorial, 2004. p.
99-159. Sobre a estrutura e dinâmica política-econômica-cultural da Comarca de Vila Rica e da Comarca do Rio das
Mortes Cf. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira (Brasil e Portugal – 1750-1808).
São Paulo: Paz e Terra, 1995. 317 p.; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas
Gerais (1716-1789). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 285 p.
76

Estabelecer com precisão a data de fundação das agremiações leigas é tarefa difícil, pois a

elaboração dos compromissos nem sempre coincide com a época em que o sodalício foi

organizado. Embora o mais freqüente fosse a defasagem de tempo entre os dois atos, optamos por

considerar o ano de redação dos estatutos – momento em que os devotos buscavam ter a

existência de suas confrarias confirmada de jure. Esclarecemos que a Irmandade de Vila Rica foi

datada conforme a referência do Livro de Entrada de Irmãos (1721-1765), pois infelizmente não

encontramos o seu Regimento 123 . A de São João Del Rei teve o ano fixado em 1734 por causa

das declarações contidas na folha dois do compromisso reformado, onde se lê:

Nós o Juiz, Escrivão, Tesoureiro, Procurador, e mais Irmãos de Mesa, que servimos o
presente ano de mil setecentos e oitenta e cinco, nesta Irmandade de Nossa Senhora da
Boa Morte ereta na Matriz de Nossa Senhora do Pilar desta Vila de São João Del Rei do
Rio das Mortes, juntos em Mesa no Consistório da mesma, por reconhecer-mos, que o
Compromisso, que até agora tem servido a esta Irmandade de diretório, para o seu
governo, e regimento aprovado tão somente pelo Ordinário há mais de cinqüenta
anos em que foi ereta a Irmandade, padece pela variação do tempo, e decadência do
País algumas dificuldades, e dureza na observância, e prática (...). 124 (sic)

Para as associações instituídas em Aiuruoca, Baependi e Campanha da Princesa mantemos a data

estipulada pelo historiador Caio César Boschi.125 As irmandades fundadas no Arraial da

Cachoeira, 126 de Guarapiranga 127 , da Borda do Campo 128 e de Catas Altas do Mato Dentro 129

123
APM, CC: 2004, microfilme 127 (2/7), E5. Livro de assento de irmãos da Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de
Vila Rica (1721-1765). O primeiro registro data de 03/12/1721.
124
AEDSJDR, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte: Compromisso (1786), folha dois. Grifos meus. (grafia atual).
125
BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder... op. cit., Anexo 14, p. 221-222. Nos arquivos pesquisados não foram
encontrados documentos referentes à Irmandade de Baependi e por esta razão utilizamos os dados registrados por
Caio César. Para as associações de Aiuruoca e de Campanha adotamos o mesmo procedimento, pois só localizamos
reformas de estatuto. AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de Aiuruoca: Compromisso (1896); Irmandade de
N. Sra. da Boa Morte de Campanha: Compromisso (1840).
126
AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731).
127
AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779).
128
Esta Irmandade foi fundada em 1754, mas somente em 1782 foi oficialmente instituída. Cf. IPHAN, IBMI, Minas
Gerais, Barbacena, Pasta da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena.
129
Certamente o sodalício de Catas Altas foi erigido antes de 1822 – ano em que se uniu à Arquiconfraria de São
Francisco – pois, de acordo com o compromisso, redigido na segunda década do oitocentos, as pessoas que
estivessem alistadas na Irmandade de N. Sra. da Boa Morte ou na Arquiconfraria de São Francisco, ficariam, daquela
data em diante (1822), automaticamente incorporadas na Irmandade e Arquiconfraria unidas. Entretanto, como não
encontramos outra referência, além do estatuto supracitado, estabelecemos como data de instituição oficial o ano de
1822. AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas Altas
do Mato Dentro: Compromisso (1822), sexto capítulo.
77

foram datadas conforme o critério que explicitamos em linhas anteriores. Desta maneira, o

quadro 1 nos informa o ano em que as associações leigas vocacionadas à Dormição de Maria

elaboraram seus regulamentos e pleitearam o status jurídico – salvo os casos de Vila Rica e São

João Del Rei.

QUADRO 1 – IRMANDADES DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE


Localidade Ano Freguesia
Vila Rica 1721 N. Sra. da Conceição de Antônio Dias
Arraial da Cachoeira 1731 N. Sra. de Nazaré
Vila de São João Del Rei 1734 N. Sra. do Pilar
Arraial de Guarapiranga 1779 N. Sra. da Conceição
Arraial da Borda do Campo 1782 N. Sra. da Piedade
Arraial de Aiuruoca 1814 N. Sra. da Conceição
Vila de Baependi 1815 N. Sra. do Monserrate
Vila da Campanha da Princesa 1820 Santo Antônio do Rio Verde
Arraial de Catas Altas do Mato Dentro 1822 N. Sra. da Conceição

4.2 A COMPOSIÇÃO ÉTNICA, OS DEVERES E OS DIREITOS DOS CONFRADES

Na Capitania das Minas, as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte foram

compostas, mormente, por mulatos de ambos os sexos. Nos seus estatutos, em petições

endereçadas à coroa, os confrades sempre se identificaram como “pardos”, embora a filiação dos

membros não se restringisse a este segmento racial. O compromisso do sodalício instituído no

Arraial da Cachoeira, escrito em 1731, estabelecia: “toda a pessoa que quiser ser irmão desta

Santa Irmandade fará petição ao Juiz dela o qual informando-se da geração, vida e costumes da

tal pessoa, e parecendo-lhe capaz o aceitará mandando ao escrivão que faça termo (...)” (sic). 130

O do grêmio fundado no Arraial de Guarapiranga, redigido em 1779, determinava: “Todas as

pessoas homens e mulheres pardos, assim forros como cativos se poderão assentar por Irmãos

130
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731), folha dois.
(atualizamos a grafia)
78

desta Irmandade, como também quaisquer pessoas assim brancas como pretas de qualquer

condição e qualidade (...)” (sic). 131 O da associação erigida na Vila de São João Del Rei,

reformado entre 1785 e 1786, declarava: “Para Irmãos desta Irmandade, se aceitarão todas

aquelas pessoas que forem brancos, pardos legítimos, e libertos, assim homens como mulheres

que por sua devoção quiserem servir à Mãe de Deus (...)” (sic). 132 Os estatutos e os livros de

matrícula (assento de irmãos) das demais confrarias mineiras vocacionadas à Dormição de Maria

nos permitem assegurar que elas também não foram agremiações exclusivas de mulatos.

Para ingressarem nas corporações religiosas de leigos e terem acesso à assistência

material e espiritual que buscavam, os devotos deveriam corresponder às exigências da entidade

(pré-requisitos como raça e status social, por exemplo) e se comprometerem a cumprir os deveres

estipulados nos compromissos. De maneira geral, as obrigações dos confrades eram as seguintes:

pagar a taxa de entrada, manter as anuidades em dia, acompanhar os funerais dos outros filiados,

rezar pelas almas dos irmãos defuntos, zelar pelos bons costumes (leia-se: não ter comportamento

vexatório) e participar dos festejos e procissões realizados em honra do orago cultuado. Em

contrapartida, os direitos garantidos eram: socorro em caso de doença, viuvez ou desgraça

pessoal, cortejos e enterros solenes acompanhados pela irmandade e seu respectivo capelão,

sepultura em solo sagrado e missas em sufrágio da alma.

Normalmente o recebimento dos benefícios estava condicionado ao pagamento das cotas

(entradas e anuais). Algumas associações eram condescendentes com a situação financeira de

seus fregueses e admitiam atenuantes. Os irmãos que interrompiam ou atrasavam suas

contribuições por impossibilidade material poderiam ser sufragados, mas os inadimplentes por

131
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779), folha 4 verso.
(atualizamos a grafia)
132
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Compromisso (1786), folha 5 verso.
(atualizamos a grafia)
79

displicência sofreriam as conseqüências prescritas. Em outras agremiações prevalecia a

racionalidade administrativa em detrimento da função caritativa. Nestas, independente da causa

da dívida, os insolventes tinham os direitos cerceados.

As irmandades mineiras de Nossa Senhora da Boa Morte, em geral, eram benevolentes

para com os seus confrades. Nenhum dos estatutos analisados, especificamente os redigidos entre

1721 e 1822, possuía cláusula que desabonasse (em totalidade) os direitos dos inadimplentes por

motivo de pobreza. O sodalício erigido no Arraial de Catas Altas do Mato Dentro, embora não se

comprometesse a sufragar os irmãos devedores, permitia “por misericórdia” que eles fossem

conduzidos até a sepultura no esquife da associação. 133 O quadro 2 nos informa o valor das taxas

cobradas e o número de missas prometidas pelos grêmios devotados à Dormição de Maria. 134

QUADRO 2 - TAXAS E MISSAS


Irmandades de N. Sra. da Boa Morte Valores em oitava ∗ Número de
Localidade Ano Entrada Anuidade Sufrágios
Cachoeira 1730 1 ½ 8
Guarapiranga 1779 1 ½ 12
Borda do Campo 1782 1 ½ 12
São João Del Rei 1786 1½ ½ 12
Vila Rica ** Fins do séc. XVIII 1 ½ 8
Catas Altas 1822 1 + 1 libra de cera ½ 4
133
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas
Altas do Mato Dentro: Compromisso (1822), décimo primeiro capítulo.
134
Não tivemos acesso à documentação da irmandade erigida em Baependi e por isso não a incluímos no quadro 2.
Quanto às associações de Campanha da Princesa e de Aiuruoca só consultamos as reformas de compromisso, cujas
datas – respectivamente 1840 e 1896 – são posteriores ao período que nos propomos a analisar. Contudo, para
informar o leitor, explicitamos aqui os seguintes dados: Campanha da Princesa – entrada: mil réis; anuidade:
quinhentos réis; missas em sufrágio das almas dos irmãos defuntos: 12. Aiuruoca – entrada: três mil réis; anuidade:
mil réis; missas em sufrágio das almas dos irmãos defuntos: 4.

ACC – Ouro Preto, CC: 1676, microfilme: 096. Valores que teve o ouro em diferentes tempos nesta Capitania. De
acordo com este documento: de 1 de janeiro de 1700 até 31 de janeiro de 1725 a oitava valia mil e quinhentos réis;
de 1 de fevereiro de 1725 até 25 de maio de 1730 valia mil e duzentos réis; de 25 de maio de 1730 até 5 de setembro
de 1732 valia mil e trezentos e vinte réis; de 5 de setembro de 1732 até 30 de junho de 1735 valia mil e duzentos réis;
de 30 de junho de 1735 até 30 de julho de 1751 valia mil e quinhentos réis. O último valor descrito permaneceu até o
fim do século XVIII. Cf. COELHO, José João Teixeira. Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais.
Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. 301 p.
* *
Sobre os dados utilizados para a irmandade de Vila Rica Cf. APM, CC: 2004, microfilme 127 (2/7), E5. Livro de
assento de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Vila Rica (1721-1765). AGUIAR, Marcos
Magalhães de. Negras Minas Gerais/ uma história da diáspora africana no Brasil Colonial. 1999. 402 f. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1999. p. 293.
80

Observando os dados, percebemos uma padronização entre as entradas e anuidades. A Irmandade

de São João Del Rei diferenciava-se por exigir de matrícula meia oitava de ouro a mais e a de

Catas Altas porque requeria uma libra de cera. Com relação aos sufrágios, notamos que a

quantidade variou entre 4, 8 e 12, contudo, de acordo com as pesquisas de Marcos Magalhães de

Aguiar, sabemos que estes índices estão dentro da normalidade, pois correspondem ao costume

praticado pelas associações negras e mulatas erigidas em Minas Gerais durante o setecentos e o

início do oitocentos. 135

O numerário arrecadado por cada entidade (quantias advindas de matrículas, anuais,

mesadas, esmolas e doações testamentárias) garantia o auto-sustento individual destas, ou seja, as

confrarias eram independentes entre si. O balanço positivo entre a receita e a despesa

possibilitava o cumprimento responsável das obrigações e atividades litúrgicas – socorrer os

filiados, sepultar e sufragar os irmãos, realizar os Ofícios Divinos, ataviar altares e imagens para

as festividades, etc – como também a construção e ornamentação de capelas próprias. Das nove

irmandades mapeadas apenas a da Borda do Campo (Barbacena) e a de Baependi edificaram

templos, embora todas tivessem essa intenção. 136

As associações mineiras da Boa Morte, assim como as demais dedicadas a outros oragos,

primavam pelas obras pio-caritativas e pela prestação de serviços funerários. 137 A agremiação

135
AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais... op. cit., p. 291-293.
136
A capela de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena foi aberta ao culto (inaugurada) em 25 de março de 1796,
mesmo dia em que se entronizou a imagem da Virgem jacente. Entretanto, não correspondendo às expectativas dos
irmãos, a construção primitiva cedeu lugar a outra edificação em 1816 – data que se encontra esculpida no medalhão
localizado sobre a portada. A capela de Nossa Senhora da Boa Morte de Baependi foi erigida em 1815. Cf. IPHAN,
IBMI, Minas Gerais, Barbacena, Pasta da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena.; IEPHA, Inventário/
2002, caixa 09, Pasta de Baependi. A Irmandade de São João Del Rei – embora nunca tenha concretizado tal intento
– em 1796, contando com mais de 400 irmãos filiados, requereu licença para construir capela própria no termo da
mesma Vila. Cf. APM, AHU, caixa 142, documento 47, código 10877, microfilme 129.
137
Cf. BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder... op. cit., p. 150-151.; CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira
Devoção do Setecentos Mineiro: o culto a São Miguel e Almas. 1994. 432 f. Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. p. 29.; AGUIAR,
Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais... op. cit., p. 320-321.
81

instituída em 1731 no Arraial de Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira, determinava no sexto

capítulo de seu compromisso: “estando algum (irmão) enfermo será visitado pelos oficiais da

Mesa e sendo tão pobre que não tenha com que se puder sustentar a Mesa o socorrerá com suas

esmolas mostrando nisto a verdadeira caridade de irmãos (...)” (sic). No que diz respeito às

exéquias, assunto de grande relevância no imaginário e na cultura cristã barroca, o capítulo

terceiro estabelecia:

Serão obrigados os Irmãos desta Irmandade a carregarem o Irmão defunto na tumba até a
sepultura e sendo distância grande se irão revezando conforme a distância do caminho
(...) e serão obrigados cada Irmão a ter sua opa branca e nas procissões e
acompanhamentos irão com ela e com sua vela que também terão para isso com pena de
138
ser riscado o que faltar sendo primeiramente admoestado três vezes. (sic)

O sodalício erigido em 1779 no Arraial de Guarapiranga estipulava em seu regimento:

Esta nossa Irmandade, falecendo algum Irmão será obrigada, enquanto o corpo estiver
sobre a terra, a assistir-lhe com quatro luzes, depois de amortalhado; e havendo
acompanhamento, esta Irmandade o acompanhará com suas opas, luzes, e cruz, e o
carregará na tumba desta Irmandade e lhe dará sepultura dentro da Igreja, e lhe mandará
dizer doze missas. 139 (sic)

O grêmio de São João Del Rei, no estatuto reformado entre 1785 e 1786, ordenava:

Terá a Irmandade um esquife para conduzir os seus Irmãos que falecerem à sepultura,
mandando dizer a cada um doze missas de sufrágio pela sua alma com um responso no
fim de cada uma (...) e será obrigada a Irmandade acompanhar, e dar sepultura, aos seus
irmãos falecidos, sendo para esse efeito avisados os Irmãos pelo Andador, que também
haverá na Irmandade para o dito enterro, sendo acompanhado pelo Capelão, e os Irmãos
serão obrigados a rezar cada um uma coroa de Nossa Senhora pela Alma do que
falecer. 140 (sic)

Os compromissos redigidos no século XIX revelam que os cortejos e sepultamentos solenes

(serviços funerários) permaneceram como direito dos irmãos defuntos e dever dos confrades

vivos. Mesmo após as leis de secularização dos cemitérios – que proibiam enterros dentro das

igrejas – as irmandades, ainda que lentamente tenham se adequado às exigências da nova ordem,

138
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731), sexto
capítulo, folha 3; terceiro capítulo, folha 2 verso. (atualizamos a grafia)
139
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779), sexto capítulo.
(atualizamos a grafia)
140
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Compromisso (1786), décimo
segundo capítulo. (atualizamos a grafia)
82

continuaram a zelar pelos ritos de “bem morrer” e pelas exéquias de seus filiados.141 O regimento

de 1822 da agremiação vocacionada à Nossa Senhora da Boa Morte, fundada no arraial de Catas

Altas, determinava: “No esquife da Irmandade e Arquiconfraria unidas pegarão Irmãos

Confrades, e se algum Irmão Confrade quiser ser conduzido no esquife de outras Irmandades, ou

o queiram seus parentes, contudo sempre será acompanhado do maior número de irmãos (...)”

(sic). 142 A associação de Campanha da Princesa decretava em 1840:

Falecendo algum Irmão desta Irmandade será a mesma obrigada a acompanhar à


sepultura com Cruz, para o que serão chamados os Irmãos por Campainha que tangerá o
Irmão Andador incorporada nesta o Reverendo Pároco Capelão [?] Juizes levará a Vara,
em sua falha o Escrivão, ou Tesoureiro, ou Procurador irão todos em boa ordem com
toda a modéstia até a casa do falecido, e ali fará conduzir o corpo no seu esquife com a
mesma devoção até ficar sepultado será também esta Irmandade obrigada a acompanhar
as mulheres dos Irmãos e seus filhos legítimos menores até a idade de quatorze anos, e
as viúvas não tomando outro estado também logrará os mesmos privilégios sem que para
isso sejam obrigados [?] com esmolas alguma. 143 (sic)

Em 1896, o grêmio de Aiuruoca estabelecia:

Esta Irmandade acompanhará gratuitamente a seus Irmãos falecidos; aos cônjuges deles,
e a seus filhos legítimos até vinte e um anos, enquanto estiverem sob o pátrio poder. Aos
que não forem irmãos mas gozarem das regalias supracitadas poderá esta Irmandade
acompanhar dando-se a esmola de oito mil réis. 144 (sic)

A extensão do benefício exequial às esposas e prole dos confrades da Boa Morte não foi uma

particularidade do oitocentos. A irmandade do Arraial da Cachoeira, no estatuto de 1731,

comprometia-se a enterrar e sufragar, com o mesmo número de missas, as mulheres dos

irmãos. 145

141
Sobre as leis de secularização dos cemitérios Cf. SILVEIRA, Felipe Augusto de Bernardi. Entre políticas
públicas e tradições: o processo de criação do campo santo na cidade de Diamantina (1846-1915). 2005. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2005. p. 92-155.
142
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas
Altas do Mato Dentro: Compromisso (1822), décimo segundo capítulo. (atualizamos a grafia)
143
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Campanha: Compromisso (1840), décimo terceiro
capítulo. (atualizamos a grafia)
144
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Aiuruoca: Compromisso (1896), nono capítulo.
(atualizamos a grafia.)
145
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731), quarto
capítulo.
83

Portanto, sob a égide das corporações religiosas de leigos, os devotos sentiam-se seguros,

pois contavam com a tranqüilidade do assistencialismo mútuo que lhes garantia amparo em

momentos de tribulação, apoio na iminência da morte, dignidade nos sepultamentos e missas na

intenção de suas almas. Neste sentido, as confrarias e Ordens Terceiras desempenharam

importante função pio-social, posto que cuidavam dos vivos e também dos mortos garantido aos

seus filiados auxílio intra e extraterreno. Mesmo que as associações não fossem zelosas no

cumprimento de suas obrigações materiais e espirituais – as Visitas Pastorais registraram várias

irregularidades – os cristãos na América portuguesa experimentavam, através da vinculação a

estas entidades, a sensação de proteção que a política metropolitana não lhes proporcionava. As

características e atividades descritas acima contribuíram para a rápida disseminação e sucesso das

agremiações leigas no território das Minas, onde a formação delas precedeu à instalação do

aparelho burocrático e militar português. 146

4.3 A FESTA DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE E ASSUNÇÃO

Na Capitania das Minas, as Irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte festejavam o

“Trânsito” da Virgem com pompa e devoção. Todos os anos, na ocasião da festa, realizavam-se

novenas, matinas, missas, procissões e sermões para homenagear a padroeira. A execução anual

146
Sobre a instituição das associações leigas no território das Minas, a segurança do assistencialismo mútuo e a
política metropolitana Cf. BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder... op. cit., p. 1-29. Sobre as admoestações das
Visitas Pastorais Cf. TRINDADE, José da Santíssima; OLIVEIRA, Ronaldo Polito de; LIMA, Jose Arnaldo Coelho
de Aguiar. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825). Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1998 446 p. (Mineiriana. Série
clássicos). CAMPOS, Adalgisa Arantes. A mentalidade religiosa do setecentos: o Curral Del Rei e as visitas
pastorais. VARIA HISTÓRIA. Revista do Depto. de História da UFMG, Belo Horizonte, v. 18, p. 11-28, 1997.
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Cachoeira do Campo: Livro de Receita e Despesa, folhas 25 e 25 verso. Em
25 de setembro de 1753, a irmandade da Cachoeira foi advertida por não registrar as missas celebradas pelos irmãos
defuntos, deixando dúvidas quanto ao cumprimento dos sufrágios.
84

das solenidades era obrigação de compromisso e devia ser cumprida com seriedade e esmero,

afinal, a principal atividade religiosa das associações leigas era a veneração do orago. Em 1779, a

agremiação de Guarapiranga determinava: “Todos os anos se fará eleição na ante véspera, ou

véspera da Festa de Nossa Senhora, havendo-a, caso que não haja Festa, sempre se fará eleição

(...)” (sic). Entretanto, o termo de confirmação deste estatuto, datado de 1781, registrou a

seguinte admoestação: “No Capítulo Segundo se declarará, que em todos os anos haja Festa a

Nossa Senhora, porque só para o fim do seu solene culto, se admite a criação desta Irmandade

(...)” (sic). 147

As confrarias mineiras da Boa Morte celebravam o “Trânsito” da Virgem no dia 15 de

agosto, mas algumas se comprometiam a comemorar a Dormição e a Assunção em datas

distintas. A fórmula do festejo, descrita no estatuto do sodalício de São João Del Rei, prescrevia

que no dia 14 do oitavo mês de cada ano, no altar da irmandade, haveria missa cantada e sermão.

À tarde, os irmãos sairiam em procissão, sendo o esquife, com a imagem da Senhora jacente,

carregado por sacerdotes paramentados (representação do cortejo fúnebre). Retornando para a

igreja, a mesma Virgem deveria ser depositada, pelos condutores do féretro, no túmulo armado

no altar da confraria (representação do sepultamento). À noite, matinas seriam oficiadas. No dia

subseqüente haveria missa cantada e sermão com exposição do Santíssimo Sacramento no Trono

da capela-mor. À tarde, em procissão solene, sairiam pelas ruas o Santíssimo Sacramento e o

andor com a imagem da Senhora da Assunção, sendo este último conduzido pelos irmãos. 148 A

irmandade de Catas Altas do Mato Dentro comprometeu-se em seguir ritual semelhante, pois,

147
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779), folha 4 verso e folha
9. (a grafia foi atualizada).
148
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Compromisso (1786), décimo
capítulo: Das festividades de Nossa Senhora.
85

apesar de não haver detalhado a liturgia de suas cerimônias, estabeleceu como dever do Capelão

celebrar a missa da Assunção e, na véspera, presidir a procissão e as matinas. 149

As agremiações leigas que concentravam as comemorações da padroeira em um só dia

não deixavam de solenizar a festa com pompa e decoro. Os acórdãos do Livro de Posse do

sodalício erigido no Arraial da Cachoeira, normalmente, ordenavam que fossem realizadas

matinas, missas cantadas, procissões, sermões, exposição do Santíssimo e música. Estas

atividades podiam variar de um ano para o outro dependendo da receita disponível, das doações

espontâneas de devotos e das determinações dos oficiais da Mesa. O livro de Contas da

irmandade da Cachoeira, anualmente, registrava gastos com a compra de cera e incenso para os

festejos, pagamento de músicos, de sacerdotes convidados para oficiar as cerimônias e da

provisão para expor o Santíssimo Sacramento. Em 1758 esta associação, alegando decadência,

celebrou na data oficial da festa apenas uma missa rezada em seu altar. Quatro anos depois, em

1763, as comemorações foram solenizadas com missa cantada, coral, sermão e exposição do

Santíssimo. A partir desta época observamos uma estabilização do padrão festivo. 150

Embora o grêmio do Arraial da Cachoeira tenha se comprometido a comemorar o

“Trânsito” de Maria todo dia 15 de agosto, observamos que, na prática, nem sempre os seus

festejos ocorriam na data estabelecida. O Livro de Posse desta associação possui vários acórdãos,

aprovados pelo Reverendo Vigário, nos quais as Mesas eleitas determinavam dias mais

149
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas
Altas do Mato Dentro: Compromisso (1822), décimo quarto capítulo, sétima obrigação do capelão comissário.
150
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Cachoeira do Campo: Livro de Posse. Sobre as decisões a respeito da
festa da padroeira de 1758 veja folha 39. Após esta data a fonte registra eleições e posse dos oficiais da Mesa e só
volta a mencionar as determinações a cerca da comemoração do “Trânsito da Virgem” em 1763, veja folha 63 verso.
Cf. também, no mesmo arquivo: Livro de Receita e Despesa. Para os gastos com a festa de 1757 veja folha 35; de
1758 veja folha 36 verso; de 1761 veja folha 39; de 1763 veja folha 40. Esta fonte não obedece a uma criteriosa
ordem cronológica. Muitas vezes há recuo de datas, grandes saltos de tempo nos registros, ou faltam relatórios
financeiros de alguns anos. Contudo, observamos que entre 1763 e 1822 o padrão dos festejos permaneceu
equilibrado, pois há registro de gastos com material para as celebrações e pagamento de sacerdotes, de músicos e da
provisão para expor o Santíssimo Sacramento. Veja folhas 40-59.
86

convenientes para se realizar as solenidades. 151 De acordo com a fonte supracitada, entre 1740 e

1822 a entidade rompeu 19 vezes com o costume. (Veja o QUADRO 3)

QUADRO 3 – CELEBRAÇÃO DO “TRÂNSITO” DA VIRGEM


Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte – Arraial da Cachoeira
Ano Dia Ano Dia Ano Dia Ano Dia
1740 08/09 1767 23/08 1781 26/12 1807 07/09
1741 24/09 1768 11/09 1782 18/08 1820 10/09
1742 09/09 1772 16/08 1785 21/08 1821 09/09
1747 08/09 1774 28/10 1805 30/09 1822 24/08
1763 28/08 1779 22/08 1806 07/09 - -

Conforme mencionamos em linhas anteriores, a agremiação instituída em São João Del

Rei celebrava a Dormição e a Assunção de Maria com reverência e devoção. Tradicionalmente,

entre os dias cinco e treze de agosto, ocorria a novena da Senhora da Boa Morte (ANEXO II).

Este evento era oficiado por três padres devidamente paramentados e contava com a participação

de todos os confrades. No dia 14 iniciavam-se as festividades propriamente ditas. 152 O Livro de

Contas desta sociedade religiosa, cujos registros foram feitos entre 1791 e 1809, não deixa

dúvidas quanto à pompa e execução zelosa das homenagens à padroeira. 153 Em geral,

compravam-se anualmente: lenha para a fogueira que era feita na véspera da festa, cera para o

altar e para as tochas da procissão, incenso, atavios para andores, adornos para as imagens,

alfinetes de latão e “foguetes” (barbantes e pólvora). Além destas despesas, a irmandade também

pagava aos sacerdotes que celebravam as cerimônias, aos músicos que tocavam nas solenidades,

151
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Livro de Posses, folhas 2-18;
32verso-93verso. Os acórdãos não explicitam o motivo da transferência da data das festividades. Não temos dados
suficientes para saber se as outras irmandades mineiras da Boa Morte também solenizavam a festa da padroeira em
dias diferentes dos que foram estabelecidos nos compromissos, mas ressaltamos que, provavelmente, esta não foi
uma particularidade da agremiação do Arraial da Cachoeira.
152
Segundo a tradição oral, um escravo sineiro chamado Francisco, cuja proprietária Ana Romeira do Sacramento
costumava alugar para as irmandades da cidade, criou no século XVIII um repique de sinos para a Festa da
Irmandade de São João Del Rei. A musicalidade e a singeleza dos badalos, até hoje executados, parecem declarar –
como o povo são-joanense diz – “dão, dem, dão, Senhora é morta num caixão”. (Agradeço ao amigo Aluízio Viegas
a gentileza da informação.).
153
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Livro de Receita e Despesa (1791-
1809) folhas 01-95verso.
87

aos armadores, a provisão para expor o Santíssimo, a confecção de opas novas, a fatura ou

reforma de paramentos e imagens sacras, o feitio de toalhas para o altar, entre outros. Analisando

as anotações financeiras da última década do setecentos e da primeira do oitocentos, percebemos

que esta associação realizava a festa do “Trânsito” da Virgem conforme a liturgia descrita em seu

estatuto, pois há registros detalhados dos pagamentos referentes a todas as atividades que os

festejos envolviam.

O culto ao “Trânsito” da Virgem, efetivado por todas as Irmandades mineiras de Nossa

Senhora da Boa Morte – e aqui nos referimos às associações de devoção e de compromisso –

difundiu entre a população branca, mestiça, negra, escrava e liberta a importância do “bem

morrer” e, principalmente, do “bem viver” para se alcançar a salvação.


88

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O culto ao “Trânsito” da Virgem, remotíssimo como vimos, foi oficialmente instituído na

Capitania das Minas no primeiro quartel do setecentos. A iconografia dormicionista e

assuncionista, como também as representações advindas da Ars Moriendi, contribuíram para a

doutrinação dos fiéis e evangelização dos incrédulos, para a difusão do padrão cristão de “bem

viver” e do modelo mariano de “bem morrer”, e para a interiorização dos ensinamentos acerca

dos Novíssimos do Homem.

De acordo com a doutrina católica, vigente no período colonial, após o falecimento, a

alma era imediatamente julgada e sentenciada. Os justos recebiam a graça da salvação, os

réprobos eram condenados ao inferno e os que precisavam expiar pecados veniais, antes de

atingirem a visão beatífica, eram destinados ao Purgatório.

A boa morte, sinônimo de redenção, estava condicionada a uma vida reta aos olhos de

Deus e da religião ou, em casos extremos, à conversão e arrependimento sincero antes do último

suspiro. Por esta razão, morrer sem deixar testamento, sem tempo para contrição, sem assistência

sacerdotal e sem preces de amigos e parentes era motivo de temor entre os cristãos, pois a

possibilidade de conserto só existia para os vivos. É neste ponto que ressaltamos o papel

devocional-evangelizador das Irmandades mineiras vocacionadas à Dormição de Maria, que

ensinavam e propagavam, através da veneração às imagens da Virgem jacente e assunta, a

doutrina da salvação e a certeza de que os justos gozariam de uma boa morte como a da mãe de

Jesus. O esforço terreno – privação dos prazeres efêmeros, mortificação da carne, expiação dos

pecados em vida etc – seria eternamente recompensado.


89

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Pinheiro: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1998. (Mineiriana. Série
clássicos).

TRINDADE, Raymundo. Archidiocese de Marianna: subsídios para sua história. São Paulo: Escolas
Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus, 1929. v. 2.

______. Breve Notícia dos Seminários de Mariana: publicação comemorativa do Bicentenário do


Seminário e Cinqüentenário Sacerdotal de Dom Helvécio Gomes de Oliveira. São Paulo: Oficinas da
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1953.

VERMEERSCH, A. Méditations sur la Sainte Vierge: fêtes de Marie. Bruges: Éditions CH Beyaert (dépôt
à Paris), 1953.

VILLALTA, Luiz Carlos. A “torpeza diversificada dos vícios”: celibato, concubinato e casamento no
mundo dos letrados de Minas Gerais (1748-1801). 1993. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo: 1993.

VOVELLE, Michel. Pieté barroque et déchristianisation en Provence au XVIIIe siècle. Paris: Editions du
Seuil. 1978.

______. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média
até o século XX. São Paulo: Editora Ática, 1997.

WEISBACH, Werner. El Barroco: Arte de la Contrarreforma. Madrid. Espasa-Calpe, 1948.

FONTES IMPRESSAS:

BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: Obras Completas do Padre Manuel Bernardes. São
Paulo: Editora Anchieta, 1946. v. 7. Tomo 1 e 2. Reprodução fac-similada da edição de 1686.
(encontramos exemplar datado de 1784 no Museu do Livro: Biblioteca dos Bispos Marianenses –
Mariana/MG – e no Arquivo Paroquial de Nossa Senhora da Conceição – Ouro Preto/MG.).

______. Os Últimos Fins do Homem. In: Obras Completas do Padre Manuel Bernardes. São Paulo:
Anchieta, 1946. v. 9. Reprodução fac-similada da edição de 1728. (encontramos exemplar datado de 1728
no Museu do Livro: Biblioteca dos Bispos Marianenses – Mariana/MG)

BLUTEAU, Rafael. Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus,
v. 1 a 4; Lisboa: Officina de Pascoal da Silva. V. 5 a 8, 1712-1721. CD-ROM produzido pela UERJ.

PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Rio de Janeiro: Publicações
da Academia Brasileira, 1939. v. 1 e 2.

Retiro Espiritual Para Hum Dia De Cada Mez. Obra muito útil para toda a sorte de pessoas e
principalmente para aquelles que desejam segurar uma boa morte. Traduzido da Língua Francesa. Tomo I.
Oitava Edição mais correta, e exata. Lisboa, na Officina de Antônio Rodrigues... 1818. (microfilmado pela
Casa dos Contos – Ouro Preto/MG. Volume 0091, Rolo/Microfilme 005/0360-0475. O exemplar impresso
encontra-se no Arquivo Paroquial de Nossa Senhora do Pilar – Ouro Preto/MG).
95

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São Paulo:
Companhia das Letras 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta.
Edição fac-similada.

VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra: Real
Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. .

VIEIRA, Antônio. Sermões do Padre Antonio Vieira. São Paulo: Anchieta, 1944. v. 1. Reprodução fac-
similada da edição de 1679. (encontramos este exemplar fac-similado no Arquivo da Casa dos Contos –
Ouro Preto/MG.).

FONTES MANUSCRITAS

Arquivo da Casa dos Contos – Ouro Preto


CC: Volume 1676, Microfilme: 096. Valores que teve o ouro em diferentes tempos nesta Capitania.

Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM)


Correspondências:
Arquivo 1/ 1ª Gaveta/ Pasta 17 - RELATÓRIO DECENAL de Dom Frei Manoel da Cruz à Santa Sé-
1757. Relatório do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento. (transcrito
e traduzido do latim por Mons. Flávio Carneiro Rodrigues).
Irmandades:
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo
Prateleira AA – Nº 29: Livro de Compromisso (1731)
Prateleira AA – Nº 30: Livro de Posse (1736-1807)
Prateleira AA – Nº 31: Livro de Receita e Despesa (1730-1746)
Prateleira W – Nº 31: Livro de Assento de Irmãos (1730-1840)
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga
Armário 8, Prateleira 1 – Nº 23: Livro de Compromisso (1779)
Prateleira Y – Nº 02: Livro de Assento de Irmãos (1788-1808)
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Catas Altas do Mato Dentro
Prateleira G – Nº 28: Livro de Compromisso (1822-1827)
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Campanha da Princesa
Armário 14, Pasta 3848: Livro de Compromisso (1840)
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Aiuruoca
Armário 14, Pasta 3847: Livro de Compromisso (1896)

Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João Del-Rei (AEDSJDR)


Inventário de Fontes do Acervo da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte (Catedral Basílica de
Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rei):
Caixa 01 – Nº 06: Livro de Compromisso (1786)
Caixa 03 – Nº 21: Livro de Assento de Irmãos (1799-1839)
Caixa 03 – Nº 22: Livro de Assento de Irmãos (1811-1840)
Caixa 13 – Nº 53: Livro de Receita e Despesa (1790-1809)

Arquivo Público Mineiro (APM)


CÓDICE 19, CMM, 11-05-1753, Lisboa, p. 108, fotogramas 232-234. Trata-se de ordem de sua
Majestade expedida pelo Conselho Ultramarino para informar à Câmara de Mariana a respeito do
seminário a ser construído. Afirma ainda que a protetora do Seminário seria Nossa Senhora da Boa Morte.
96

CC: Volume: 2004, microfilme: 127 (2/7), E5. Livro de assento de irmãos da Irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte de Vila Rica (1721-1765).
AHU, caixa 142, documento 47, código 10877, microfilme 129. Requerimento dos irmãos da Irmandade
de Nossa Senhora da Boa Morte, sita na Igreja Matriz da Vila de São João Del Rei, do Rio das Mortes,
bispado da cidade de Mariana, solicitando licença para construir a sua igreja dentro do território da
mesma Vila.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)


Casa do Seminário Menor e Capela de Nossa Senhora da Boa Morte – Minas Gerais – Módulo II –
Região de Mariana (V. 3) – Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados (IBMI).
Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Morte – Minas Gerais – Barbacena – Inventário Nacional de
Bens Móveis e Integrados (IBMI).
Museu Regional Casa do Otoni – Minas Gerais – Serro – Inventário Nacional de Bens Móveis e
Integrados (IBMI).

Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA)


Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte – Minas Gerais – Baependi – Inventário/2002. Caixa 09.
Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte – Minas Gerais – Barbacena – Inventário/2000. Caixa 06,
Pastas 05 e 04.
97

ANEXO I

A ASSUNÇÃO DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA

Relato apócrifo atribuído a São João Evangelista

Fonte: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São
Paulo: Companhia das Letras 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta.
Edição fac-similada. p. 657-681
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123

ANEXO II

NOVENA DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

(5 a 13 de agosto)

Fonte: Piedosas e Solenes Tradições de nossa Terra: Novenas, Tríduo, Setenário, Quinqüena e
Meses. São João Del Rei: SEGRAC, 1997, v. 2, p.104-120.
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