A Boa Morte e o Bem Morrer
A Boa Morte e o Bem Morrer
A Boa Morte e o Bem Morrer
(1721 A 1822)
Belo Horizonte
2006
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(1721 A 1822)
Belo Horizonte
2006
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Dissertação intitulada “A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades
mineiras (1721 a 1822)”, de autoria da mestranda Sabrina Mara Sant’Anna, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Adalgisa Arantes Campos – FAFICH/UFMG – Orientadora
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Caio César Boschi – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis Costa Taborda – Instituto Santo Inácio de Loyola
_________________________________________________________________
Profa. Dr. Regina Horta Duarte
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História: FAFICH/UFMG
AGRADECIMENTOS
A realização e conclusão deste trabalho não foi uma tarefa solitária. Ao longo de seu
diversos lares e pude poupar gastos com os serviços hoteleiros. Em Ouro Preto, no início do
levantamento arquivístico, fiquei alojada na República Art & Manha por intermédio das amigas
Sofia Antezana e Cristina Sousa. Na ocasião da transcrição dos documentos, minha estimada
orientadora cedeu-me sua aconchegante residência ouro-pretana por dois longos meses. Em
Mariana, contei com a generosidade do casal Júlia e Orlando Diniz Carvalho, que me abrigaram
com conforto e simpatia. Em São João Del-Rei, passei uma semana agradabilíssima na casa dos
anfitriões Adma e Erman Lima, que me foram apresentados pela querida Zélia Fattini.
Nas Instituições onde pesquisei, fui atendida com cordialidade e presteza. No Arquivo
Paroquial de Nossa Senhora da Conceição (Ouro Preto), recebi prestimosa assistência do Diácono
das Graças Reis Quirino e do seminarista Bráulio Sérgio Mendes. No Arquivo Paroquial de
Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto), a agilidade de Carlos Aparecido de Oliveira (Caju) foi
fundamental para o rápido andamento das consultas. Monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues,
Assunção, Fabiane Borges Maia Moreira e Adelma dos Santos – não pouparam esforços em
tornar acessíveis os diversos documentos que requisitei para análise. Na Biblioteca dos Bispos
com zelo e dedicação. No Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João Del-Rei, contei com a
de Paula e do confrade Aluísio José Viegas. A este último muito devo pelas conversas
proveitosas que tivemos e por conceder-me acesso livre ao precioso acervo documental e à
também a gentileza dos funcionários do Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto, do Museu da
Todo trabalho tem seus interlocutores. Com agradecimento especial distingo três pessoas.
livros, leitura crítica de meus textos e amizade. O Dr. Francisco de Assis Costa Taborda por
cristianismo. O amigo mestre Felipe Augusto Bernardi, pela delicadeza com que escutava minhas
lamentações nos momentos de dificuldades, longas tardes de estudo regadas a café forte e
pelas sugestões e pertinentes observações que fez na ocasião de meu exame de qualificação. Aos
queridos Alex Bohrer, Cecília Luttembarck, Flávia Gervásio, Jader Barroso Neto, Júlio Caetano,
Júlio Martins, Naiane Loureiro, Pablo Mendonça, Renato Franco, Talma Pereira e Wanete Costa
7
pela parceria, interesse, material fotográfico e informações sobre a localização de algumas fontes.
À Maria Beatriz Jacob Leite pelos bons conselhos, amizade sincera e dedicada ajuda na tradução
de textos em francês. Aos seminaristas Bráulio Sérgio Mendes, Claudinei Lourenço de Souza,
João Paulo da Silva, Jorge Henrique Abreu Tanus, Joaquim Diogo de Melo e Eduardo Bordoni
Teixeira pelos empréstimos de livros, auxílio nas pesquisas, conversas agradáveis, almoços, chás
Herinaldo Oliveira Alves pela colaboração e eficiente trabalho de transcrição que realizaram.
Esta foi uma dissertação feita em família. Minha mãe procurou as referências bíblicas que
utilizei e me apoiou em todos os momentos. Meu irmão Ramon digitalizou e tratou as imagens.
inúmeras vezes e acabaram decorando algumas partes. Meus pequenos sobrinhos Anna, Felipe,
Luiza e Isadora de tanto ouvirem falar sobre o “bem morrer” tornaram-se especialistas no
assunto. Meu namorado, Luiz Carlos Villela Milagres, foi responsável pelo levantamento das
fontes impressas que usei. Sem o seu companheirismo, cumplicidade e paciência nas horas de
angústia tenho dúvidas de que teria conseguido chegar ao fim deste trabalho. O incentivo e
carinho do meu pai, dos meus tios Fábio e Neusa e da minha avó Iolanda Djanira também foram
fundamentais. Aos meus familiares, incluindo o Luiz, ofereço o resultado de nossa bela parceria.
Para finalizar, registro minha eterna gratidão a todos que – de uma maneira ou de outra –
contribuíram para a elaboração desta dissertação de mestrado. Agradeço também ao CNPq pela
Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
Eclesiastes 3, 1-8
9
ABREVIATURAS
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................01
CAPÍTULO 1
A CRENÇA NA DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA: APÓCRIFOS, LITURGIA E
DOUTRINA...................................................................................................................................03
1.1 Os apócrifos..............................................................................................................................03
1.2 A liturgia e a doutrina católica.................................................................................................07
CAPÍTULO 2
A ICONOGRAFIA DO “TRÂNSITO” DE MARIA: DO ORIENTE CRISTÃO À CAPITANIA
DAS MINAS..................................................................................................................................20
2.1 A Legenda Áurea e as representações do “Trânsito” mariano.................................................20
2.1.1 A Segunda Anunciação...................................................................................................22
2.1.2 A navegação aérea dos discípulos...................................................................................27
2.1.3 A Dormição e a assunção da alma de Maria....................................................................29
2.1.4 O cortejo fúnebre e o primeiro milagre post-mortem de Maria.......................................40
2.1.5 A Assunção corporal de Maria........................................................................................44
CAPÍTULO 3
OS “FINS ÚLTIMOS” DO HOMEM E A CONCEPÇÃO DE BOA MORTE: LITERATURA
PIEDOSA, REPRESENTAÇÕES E COTIDIANO......................................................................56
3.1 A doutrina dos Novíssimos.....................................................................................................56
3.2 O Juízo Particular, o Juízo Universal e a arte do “bem morrer”.............................................57
3.3 A boa morte e a vivência do “bem morrer” nas Minas..........................................................69
13
CAPÍTULO 4
IRMANDADES MINEIRAS DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE: COMPROMISSOS E
SOCIABILIDADE CONFRARIAL NO TERRITÓRIO DAS MINAS (1721-1822)...................74
4.1 As Irmandades mineiras de Nossa Senhora da Boa Morte.......................................................74
4.2 A composição étnica, os deveres e os direitos dos confrades...................................................77
4.3 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção...............................................................83
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................88
REFERÊNCIAS............................................................................................................................89
ANEXOS
I. Relato apócrifo atribuído a São João Evangelista ......................................................................97
II. Novena de Nossa Senhora da Boa Morte ...............................................................................123
1
INTRODUÇÃO
A morte é uma realidade, uma lei natural a qual todos os seres viventes estão sujeitos e
que não conseguem burlar. Ela é o limite entre a existência terrena e o desconhecido, entre o fim
das atividades corpóreas e um por vir incerto. Experiência incógnita que inquieta a humanidade
cerimônias fúnebres que, entre outras coisas, testemunham o desejo de perpetuação da memória e
vida além-túmulo. 2 Estudos etnológicos mostram “que em toda parte os mortos foram ou são
objetos de práticas que correspondem, todas elas, a crenças referentes a sua sobrevivência (na
extensão da vida após o falecimento é antiga e está presente em várias tradições religiosas.
Nesta dissertação abordamos a concepção imortalista cristã, cuja doutrina não ignora as
leis biológicas, mas, ao contrário, reconhece na finitude física o portal para a eternidade do ser.
1
MARTINS, Mário. Introdução histórica à vidência do tempo e da morte. Braga: Livraria Cruz, 1969. v. 1. p. 25.
2
Sobre o processo de individualização humana e a consciência da morte cf. LANDSBERG, Paul-Louis. Essai sur
l’expérience de la mort. Paris: Éditions du Seuil, 1951. p. 25-30. Sobre os ritos fúnebres cf. BAYARD, Jean-Pierre.
Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996. 321 p. Título original: Les sens caché
des rites mortuaires: mourir est-il morrir?; MORIN, Edgar. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
354 p. Título original: L’homme et la mort.
3
MORIN, Edgar. O homem e a morte... op. cit., p. 25.
2
(assumptio animae e/ou assumptio corporis). Partindo dos estudos feitos por Simon Claude
existência terrena de Maria e a função litúrgico-pedagógica de cada um dos temas que o compõe.
Correlacionado o relato apócrifo atribuído a São João Evangelista – difundido no ocidente com
grande êxito a partir do século XIII – com imagens produzidas durante a Idade Média e a época
como referência os trabalhos de Michael Schmaus, Alberto Tenenti e Adalgisa Arantes Campos,
expressa na literatura piedosa dos séculos XVII e XVIII, o papel instrutivo-formador das
representações advindas da Ars Moriendi e a vivência do “bem morrer” na Capitania das Minas.
No quarto capítulo, seguindo a linha de estudos confrarias de Caio César Boschi, Marcos
da Boa Morte erigidas em Minas Gerais entre 1721 e 1822 e analisamos a composição étnica dos
o peso da aniquilação, pois não se limita à corrupção corpórea. A morte é o meio que permite
transcender a realidade efêmera deste mundo e alcançar a plenitude do espírito, ou seja, a vida
eterna. Por esta razão, a boa morte e os ritos de “bem morrer” foram assuntos de grande
1.1 OS APÓCRIFOS
Nas Sagradas Escrituras não existe relato sobre a morte e a assunção da mãe de Jesus.
Estes temas marianos surgiram no oriente e foram difundidos, desde a patrística, pela tradição
oculto. No século IV, após a definição do Cânon da Bíblia, o termo tornou-se pejorativo (tomou o
sentido de falso, suposto) e passou a designar os textos não incluídos no corpus bíblico por se
tratarem de obras sem o reconhecimento eclesial. Apesar de não ser considerada pela Igreja como
vista da história da cultura religiosa cristã, pois manifesta a alma popular dos primeiros tempos
“que crê nas verdades fundamentais da fé, mas que, para além dessas verdades, quer saciar-se
com gestos e situações em que o divino não esteja reduzido a fórmulas estáticas”. 5
4
Cf. JUNOD, Eric. APÓCRIFO. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas; Edições Loyola, 2004. p. 167-170. Título original: Dictionnaire critique de théologie.; PERETTO, Elio.
APÓCRIFO. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995. p.
125-140. Título original: Nuovo Dizionario di Mariologia.; APÓCRIFO. In: AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral.
Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 34.
5
PERETTO, Elio. APÓCRIFO. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op.
cit., p. 127.
4
transladação de seu corpo aos céus, por exemplo, os textos transmitiram ensinamentos que
integridade virginal 6 – que, posteriormente, fundamentaram o dogma proclamado pelo Papa Pio
XII em 1950. 7
redações, conhecidas sob o título de Dormição (Dormitio) e Trânsito (Transitus) 8 . Essas fontes
escritas são encontradas em diferentes tradições lingüísticas: siríaca, grega, copta, árabe, etíope,
latina, georgiana, armênia, eslava e irlandesa, sendo as mais antigas datadas da segunda metade
do século V. 9
texto grego atribuído a São João Evangelista 10 . Estas duas obras são importantes pelo grande
6
A Maternidade Divina foi afirmada explicitamente no concílio de Éfeso, realizado em 431. A Virgindade perpétua
de Maria foi aceita oficialmente pela Igreja no concílio de Latrão, sob o Papa Martinho I, em 649. Cf. AIELLO,
Ângelo Giovanni. DOGMAS. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p.
410-422.; SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria. In: ______. Teologia Dogmatica. Madrid: Ediciones Rialp S. A,
1963. v. 8. § 3 a 6. p. 82-230.
7
SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria. In: ______. Teologia Dogmática... op. cit., § 7. p. 230-255.
8
Para se referirem ao falecimento da Virgem, os bizantinos utilizavam a palavra grega Koimesis, que significa sono
da morte. A Igreja latina, por sua vez, empregou dois termos distintos: Dormitio (Dormição) e Transitus (Trânsito).
O primeiro era empregado para designar o momento da morte de Maria, considerado um simples sono, pois seu
corpo, de acordo com os relatos apócrifos, foi poupado da corrupção. O segundo, quando se tratava do conjunto –
morte e assunção ou simplesmente assunção. Cf. RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la
Biblia – Nuevo Testamento. Traduccíon Daniel Alcoba. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996. p. 627. Título
original: Iconographie de l’Art Chrétien.; MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie: histoire
des traditions anciennes. Paris: Beauchesne, 1995. v. 98. p. 7-13. (Collection Théologie Historique).
9
MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 57-59.
10
Para assegurar ao conteúdo mitológico a qualidade de verdadeiro, as redações apócrifas, no contexto de suas
produções, foram atribuídas a importantes autores cristãos, como: Dionísio Areopagita, José de Arimatéia, Tiago,
Matheus, Tomé, João Evangelista, seu discípulo Prócoro e outros destacados patriarcas. Cf. CASADO, Pilar
González (Ed.). La dormición de la Virgen: cinco relatos árabes. Madrid: Editorial Trotta S.A., 2002. p. 30.
5
sucesso que alcançaram no ocidente durante a Idade Média, especialmente a última, com a
lendas no imaginário 12 cristão, que foram difundidas, em princípio, através da tradição oral. Por
Simon Claude Mimouni, após analisar sessenta e dois relatos apócrifos (séculos V a VIII),
distintos. O primeiro, denominado pelo autor de “Dormição sem Ressurreição”, reúne redações
que afirmam a morte de Maria. De acordo com esta concepção, o corpo da Mãe de Jesus foi
e sua alma transladada para os céus, onde aguarda o dia da Ressurreição dos Mortos. O segundo
conjunto, chamado “Dormição e Assunção”, é composto por narrativas escritas cujo conteúdo
comuns aos dois tipos de crença. O terceiro e último grupo foi subdividido em duas categorias e
por isso recebeu o nome: “Assunção com ou sem Ressurreição”. A ele pertencem os textos que
11 A última referência bíblica sobre a vida de Maria encontra-se no Novo Testamento em Atos 1, 14. Nesta
passagem lê-se que depois da Ascensão do Cristo, sua mãe perseverara na oração, juntamente com os apóstolos e
com outras mulheres.
12
Utilizamos nesta dissertação o conceito desenvolvido por Patlagean: “o domínio do imaginário é constituído pelo
conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos
encadeamentos dedutivos que estas autorizam.” Cf. PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE
GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 291.
13
Mimouni utiliza o termo “doutrina” para classificar os textos analisados (“doutrina da dormição sem
ressurreição”, “doutrina da dormição e assunção” e “doutrina da assunção com ou sem ressurreição”), entretanto o
autor nos adverte que melhor seria usar a palavra “crença”, pois para o período abordado (séculos V a VIII) não
havia ensinamento oficial a respeito do fim da existência terrena de Maria. Cf. MIMOUNI, Simon Claude.
Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 16.
6
que consideram sua imortalidade (corpo e alma foram transferidos para o céu sem passar pela
tumba). 14
As doutrinas enfatizadas por Mimouni nas fontes literárias, classificadas de acordo com a
Ressurreição” é encontrada nos textos mais antigos (2ª metade do século V). A “Dormição e
Assunção” é considerada a etapa intermediária, pois une aspectos das duas crenças sem fundi-las
concepção mais recente, em relação às duas primeiras (2ª metade do século VI). Entretanto, é
preciso frisar que não se trata de uma evolução histórica das crenças dormicionistas e
assuncionistas, pois uma não suplantou, necessariamente, a outra. De fato, à medida que as
Resumidamente, podemos dizer que os relatos sobre a sorte final de Maria dividem-se
entre os que afirmam sua morte e os que atestam sua imortalidade. Todos os textos, independente
Jesus, embora reservem a este corpo destinos diferentes. A tradição literária latina, de maneira
propagado na Idade Média pela Legenda Áurea, sobre o qual nos deteremos mais adiante,
14
MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 13-22.
15
Sobre as tradições literárias apócrifas dormicionistas e assuncionistas Cf. Ibidem, p. 37-73.
7
era presente, consideramos que a liturgia, respaldada na religiosidade popular, instituiu como
verdade a assunção corporal de Maria, antes mesmo da teologia formular os argumentos para
sustentá-la 16 . A convicção do povo cristão foi a mola propulsora para a Igreja incluir essa crença
em seu quadro doutrinal, mas isso não significou a legitimação das narrativas apócrifas.
fiéis e refutando a tradição oral, afirmou que o modo como ocorreu o fim terreno da Virgem e o
destino que teve seu corpo eram mistérios divinos e não podiam ser descritos devido à ausência
de dados bíblicos sobre o assunto. 17 Entretanto constatamos que esta rígida opinião não
neste caso, pela mariologia incipiente das primeiras centúrias, que de fato só existia em função da
cristologia descendente.
431. 18 A pauta principal era a resolução do problema nestoriano, que negava a dupla natureza
16
AIELLO, Ângelo Giovanni. DOGMAS. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de
Mariologia... op. cit, p. 415.
17
O bispo Epifânio, natural de Eleuterópolis, na Judéia , é célebre na teologia mariana por questionar o modo como
ocorreu o fim da existência terrena da mãe de Jesus. Cf. SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria... op. cit., § 7. p.
242-243.; TONIOLO, Ermanno. PADRES DA IGREJA. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário
de Mariologia... op. cit, p. 1018.
18
Sobre o desenvolvimento histórico dos dogmas marianos (concílios) ver: FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone
do mistério: ensaio de mariologia simbólico-narrativa. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. p. 98-140.; AIELLO,
Ângelo Giovanni. DOGMAS. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p.
410-422.
8
Theotókos (aquela que pariu alguém que é Deus, em latim deipara). 20 Teologicamente, a
expressão significa que a Virgem é a genitora do Verbo encarnado, e neste sentido, a palavra
impulsionando a teologia mariana. A vida da Virgem tornou-se relevante para a Igreja em toda a
surgiu em Jerusalém a Festa da Assunção 21 . Esta comemoração litúrgica teve grande êxito no
oriente a partir da segunda metade do século V, sendo valorosa para isso a contribuição dos
Teotecno de Lívia, que procurou justificar os elementos apócrifos com argumentos bíblico-
teológicos, e Tiago de Sarug ou de Batnan († 521), que, em ambiente siríaco, compôs um poema
19
Nestório († 451), bispo de Constantionopla entre 428 e 431, defendia que em Cristo existiam duas naturezas
distintas e também duas pessoas. Para ele Maria não era mãe de Deus (o Incriado), mas genitora do homem Jesus
(instrumento da divindade na Terra). Portanto, a Virgem deveria ser chamada de Cristotókos (mãe de Cristo) e não
de Theotókos (mãe de Deus). Cf. TONIOLO, Ermanno. PADRES DA IGREJA. In: FIORES, Stefano de; MEO,
Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p. 1020-1022.; LANGEVIN, Gilles. NESTORIANISMO. In:
LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia... op. cit., p. 1245-1247. MIMOUNI, Simon Claude.
Dormition et Assomption de Marie… op. cit., p. 659-664.
20
COTHENET, Édouard.; JOURJON, Maurice.; MEUNIER, Bernard. MARIA. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.).
Dicionário Crítico de Teologia... op. cit., p. 1095.
21
Sobre a origem da Festa da Assunção no Oriente e no Ocidente ver: MIMOUNI, Simon Claude. Dormition et
Assomption de Marie… op. cit., p. 22-28.; SERRA, Aristide. et al. ASSUNÇÃO. In: FIORES, Stefano de; MEO,
Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p. 186-188.
9
os sermões dos padres: Modesto de Jerusalém († 634), André de Creta († 720), Germano de
litúrgico por influência de monges orientais que emigraram em massa, desde as primeiras
décadas do século VII, fugindo das invasões persas e árabes. Essa festa, realizada em Roma sob o
papado de Sérgio I (687-701) com solene procissão, foi assimilada pela França e depois pela
Pseudo-Agostinho, favorável à assunção, foi seguida pelos célebres escolásticos Alberto Magno
(† 1280) e Boaventura († 1274), que, citando o versículo bíblico registrado em Cantares (8, 5),
ocasionaram, segundo o historiador Georges Duby, uma crescente busca pela autonomia pessoal
A Igreja, antes absoluta na comunicação entre Deus e os homens, aos poucos foi
22
A respeito da assunção de Maria na tradição patrística do século IV ao VIII. Ver: TONIOLO, Ermanno. PADRES
DA IGREJA. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia... op. cit, p. 1030.; BOVER,
José M; ALDAMA, José de; SOLA, Francisco de P. La Asunción de Maria: estudio teológico histórico sobre
la asunción corporal de la Virgen a los cielos. Madrid: La Editorial Catolica, 1951. p. 97-144.
23
SESBOÜÉ, Bernard (Dir.). História dos Dogmas Tomo 3: Os sinais da salvação (séculos XII-XX). São Paulo:
Edições Loyola, 2005. p. 502-503. Título original: Histoire des dogmes Tome III: Les signes du salut.
24
“Tal movimento, a mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização progressiva da pessoa”.
DUBY, Georges. A solidão nos séculos XI-XIII. In: ______(Org.). História da vida privada: da Europa feudal à
Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.2. p. 506. Título original: Histoire de la vie privée, vol. 2: De
l’Europe féodale à la Renaissance.
25
Ibidem, p. 522.
10
“devoção privada” que incentivava a subjetivação dos princípios cristãos, cujos agentes foram os
clérigos, substituídos no século XIII pelos frades mendicantes, gerou profundas alterações nas
cristãos, após atingirem a idade da razão, deveriam confessar pessoalmente os seus pecados ao
as relações cotidianas dos vivos, uma vez que abriu para estes, outra possibilidade de salvação,
se o surgimento da idéia do Juízo Particular. Essa visão eclesiástica, contida ou suposta nas
28
declarações do II concílio de Lião (1274) , responsabilizava cada alma por atos e iniqüidades
falecimento, fato que reforçou o recurso à intercessão dos santos e da Virgem glorificada pelos
que a imagem apocalíptica da ressurreição dos mortos e do Cristo voltando no final dos tempos,
escatologia cristã das primeiras centúrias, começou a ser substituída no século XII. A nova
pecadores. O Cristo assentado no trono de juiz foi colocado no centro da cena apresentando-se,
26
SESBOÜÉ, Bernard (Dir.). História dos Dogmas Tomo 3... op. cit., p. 116.
27
A doutrina do Purgatório foi oficializada no II concílio de Lião em 1274. Cf. LE GOFF, Jacques. O Nascimento do
Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1995. p. 330-332. Título original: La Naissance de Purgatoire.
28
BETTENCOURT, Estêvão. A vida que começa com a morte. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1955. p. 49. Sobre o
Juízo Particular e o Juízo Universal consulte o terceiro capítulo desta dissertação.
11
geralmente, rodeado por uma corte (apóstolos e/ou anjos). A partir do século XIII, duas ações
ganharam destaque: a avaliação das almas pelo arcanjo São Miguel e a mediação da Bem-
aventurada Maria e de São João Evangelista, que, ajoelhados e de mãos postas, ladeavam o “Sol
Não por acaso, foi neste contexto, entre 1253 e 1270, que o dominicano Jacopo de
maneira decisiva, o texto assuncionista atribuído ao evangelista João e também várias homilias,
sobre este tema mariano, que teriam sido proferidas por São Cosme, apelidado Vestidor,
29
Cf. ARIÈS, Philippe. Images de l’homme devant la mort. Paris: Éditions du Seuil, 1983. p. 141-181; ARIÈS,
Philippe. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 47-49.
Título original: Essais sur l’histoire de la mort em Occident.
30
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São Paulo:
Companhia das Letras 2003. 1040 p. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição
fac-similada.
12
Com o objetivo de fornecer aos seus colegas de hábito material para a elaboração de sermões
compreensíveis a todos os fiéis e não apenas aos doutos, o autor italiano utilizou como
relatos, lições de cunho moral e religioso tornando mais eficiente a parenética e o trabalho
presos”. 33 Neste sentido, a estrutura narrativa de sua obra privilegiava o efeito edificante em
Da Legenda Áurea existe hoje 1100 manuscritos, dado que revela o sucesso e a
popularidade que esta obra conheceu durante a Idade Média, tendo circulado por vários
territórios. Ela foi traduzida no século de sua produção em vernáculo, em catalão e em alemão.
Na centúria seguinte, foi vertida em provençal, em francês (por volta de 1340), em holandês
(1358) e em tcheco (1360). Entre os anos 1470 e 1500, com a imprensa, alcançou o número de
156 edições superando as publicações da Bíblia Sagrada que, neste período, somaram 128. 34 Se
levarmos em consideração que esta obra era utilizada pelos sacerdotes na elaboração de seus
sermões, fica evidente a extensão de sua difusão. Por esta razão, a elegemos como um marco na
31
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit., p. 657-681.
32
Sobre o assunto, cf. a apresentação feita por Hilário Franco Júnior In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea...
op. cit., p. 11-25. A respeito do uso de “exempla” nos sermões, veja também: DUBY, Georges. A solidão nos
séculos XI-XIII. In: ______(Org.). História da vida privada... op. cit., p. 524-525.
33
Apresentação feita por Hilário Franco Júnior In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit., p. 20.
34
Cf. a apresentação feita por Hilário Franco Júnior In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 21-22.
13
Em meados do século XIV, diversos lugares da Europa foram assolados pela chamada
“peste negra”. Constantinopla e Gênova foram atingidas em 1347, logo depois Portugal e
finalmente da Irlanda a Moscou. Esta epidemia estendeu-se pelos anos 1348-1351, eliminando
uma enorme parte da população, estimada entre 2/3 e 1/8 dependendo da região. Entre 1348 e
1720 a peste reapareceu inúmeras vezes abalando as bases do psiquismo individual e instaurando
o medo coletivo. 35
doença, interrupção dos ritos públicos de alegria e de tristeza, dissolução da família causada por
comuns, entre outras – aliadas a uma crescente insegurança social, minaram, gradativamente, a
obrigava a considerar cada minuto como um sursis e a não ter outro horizonte diante de si que
como um simples sono, inspirava os fiéis a vencerem com serenidade e contrição a última etapa
da existência terrena. A elevação da alma e do corpo da Virgem aos céus, transmitia aos cristãos
cuja exortação é dirigida para a aceitação tranqüila da finitude da vida, reforçou a doutrina do
Juízo Particular e o recurso à intercessão dos santos, corroborando com a idéia de que apenas os
justos tinham uma boa morte como a da mãe de Jesus. 37 De acordo com os clérigos do declínio
da Idade Média e época Moderna, aqueles que viviam dentro da orientação ética do cristianismo
não temiam a hora da passagem deste mundo para o do Além, pois tinham confiança na salvação.
Na FIG. 2, Maria deitada em sua cama, rodeada pelos apóstolos, vislumbra um espetáculo
espiritual: o Cristo, acompanhado de anjos, abre os braços para recebê-la no céu (assumptio
resignada e seu total desapego às coisas terrenas. Ao fundo da cena, dois homens acendem uma
vela, conforme o costume, para ser colocada entre as mãos da mulher agonizante. A FIG. 3, por
sua vez, apresenta-nos um moribundo devoto em seu leito mortuário; seguindo o mesmo padrão
comportamental da Virgem, ele segura um círio aceso entregue pelo monge que o ladeia. Sua
alma (pequena figura humana em posição de oração) é recebida por um anjo debruçado sobre a
cabeceira. Ao fundo, vemos Jesus crucificado cercado por santos intercessores e no primeiro
plano, os demônios derrotados proferindo as seguintes palavras (inscrições que saem de suas
bocas): “Estou furioso”, “Estamos perdidos”, “Estou assombrado”, “Isto não é consolo”,
37
Sobre a “Ars Moriendi” Cf. TENENTI, Alberto. Ars Moriendi: quelques notes sur le problème de la mort à la fin
du XVe siècle. In: Annales ESC, oct/dec, 1951. p. 433-46; ROMANO, Ruggiero; TENENTI, Alberto. Los
fundamentos del mundo moderno: edad media tardia, reforma, renascimiento. Madrid: Ediciones Castilla S.A, 1971.
p. 71-103. TENENTI, Alberto. Il senso della morte e l’amore della vita nel Rinascimento: Francia e Italia. Torino:
Einaudi Editore, 1989. p. 62-120.; CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro: o culto
a São Miguel e Almas. 1994. 432 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. p. 33-37.
38
A tradução das inscrições que saem das bocas dos demônios encontra-se em: GOMBRICH, E. H. A História da
Arte. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1999. p. 282. Título original: The Story of Art.
15
No século XVI, as Reformas Protestantes e suas críticas ao culto mariano deram novo
impulso à antiga crença assuncionista. Martinho Lutero (1483-1546), Huldrych Zuínglio (1484-
1531) e João Calvino (1509-1564) contestaram a transladação do corpo de Maria ao Paraíso, por
não encontrarem fundamento bíblico que a sustentasse. Para eles apenas a Ascensão do Cristo é
“Verdade Revelada” e só nela o povo deveria depositar confiança. A pronta reação dos teólogos
o culto à Santa Mãe de Deus 40 , fundou-se, na Igreja do Gesú, em Roma, a Confraria da Boa
Morte. Esta associação religiosa, que tinha como prática regular a devoção a Jesus, suas chagas, à
Eucaristia e às aflições da Virgem 41 , foi difundida com grande êxito em Portugal e seus
instituído no primeiro quartel do século XVIII, quando irmandades leigas vocacionadas à Nossa
Senhora da Boa Morte começaram a ser erigidas. A primeira delas estabeleceu-se em 1721, na
freguesia de Antônio Dias de Vila Rica (Ouro Preto) 43 , a segunda no ano de 1730, na freguesia
44
de Nossa Senhora de Nazareth da Cachoeira (Cachoeira do Campo) e a terceira por volta de
39
Cf. SERRA, Aristide. et al. ASSUNÇÃO. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de
Mariologia... op. cit., p. 175.
40
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia: manual de los símbolos, definiciones y declaraciones de La
Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Editorial Herder, 1963. n° 986. Título original: Enchiridion
Symbolorum.
41
LAVIN, Irving. "Bernini's Death" In: The art bulletin, LIV, 2. 1972. p. 158-86.
42
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Morte, a mortificação e o heroísmo: o homem 'comum' e o 'santo'. Revista do
IFAC/UFOP, Ouro Preto, v. 1, 20 dez. 1996. p. 8.
43
APM, CC – 2004, microfilme 127 (2/7), E5. Livro de assento de irmãos (1721-1765). Infelizmente não
encontramos nos arquivos pesquisados os Estatutos, os Livros de Posse, Receita e Despesas desta irmandade.
44
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Livro de Compromisso (1731),
Livro de Assento de Irmãos (1730-1840), Livro de Receita e Despesas (1730-1746), Livro de Posse (1736-1807).
45
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Livro de Compromisso (1786). Na
folha 2 dos Estatutos de 1786 se lê que esta irmandade havia sido ereta há mais de cinqüenta anos.
18
Com o claro objetivo de ensinar Teologia Moral 46 e formar padres capazes de ajudar a
população a “bem morrer”, 47 o bispo Dom Frei Manoel da Cruz, em 20 de dezembro de 1750,
assunta. Quatro anos depois, iniciou-se uma gradativa proliferação de confrarias com esta
lista. Em plena atividade, estiveram elas nas seguintes regiões: Arraial de Guarapiranga
Princesa (Campanha) e Arraial de Catas Altas do Mato Dentro (Catas Altas), constituindo ao
todo, no período entre 1721 a 1822, nove centros irradiadores deste culto, devidamente
relevante papel sócio-pio-cultural porque funcionaram como agentes da caridade cristã, prestando
santoral, incentivado pelo Concílio de Trento (1545-63) e reiterado pelas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia (1707), e atuaram como patrocinadoras das artes, encomendando obras
46
AEAM, Relatório Decenal do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento, redigida
por Dom Frei Manoel da Cruz. Mariana, 1 de julho de 1757. Língua original: Latim. Tradução de Monsenhor Flávio
Cordeiro.
47
APM, Códice 19, CMM, 11-05-1753, Lisboa, p. 108, fotogramas 232-234. Ordem de sua Majestade, expedida
pelo Conselho Ultramarino, para informar à Câmara de Mariana sobre a construção do Seminário da Boa Morte.
48
Esta associação leiga foi formada em 28 de setembro de 1754, contando a princípio com a inscrição de doze
filiados. Regida nos primeiros tempos por um compromisso provisório, ela foi formalmente instituída em 1782 -
quando o novo estatuto, ratificado por Provisão Régia de 18 de janeiro de 1788, foi organizado. Cf. IPHAN, IBMI,
Minas Gerais, Barbacena, Pasta da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Morte.; LIMA, Newton Siqueira de
Araújo. A Irmandade e a Igreja da Boa Morte. Barbacena: Cidade de Barbacena Gráfica e Editora, 2004. p. 17-18.
49
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, Compromissos: Guarapiranga (1779), Aiuruoca (1896),
Campanha da Princesa (1840), Catas Altas do Mato Dentro (1822). Quanto à Irmandade de Baependi não
encontramos nenhuma documentação nos arquivos pesquisados e por isso utilizamos as referências do historiador
Caio César Boschi. Cf. BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em
Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 222. Esclarecemos que também utilizamos as datas registradas na
obra de Boschi para as Irmandades de Aiuruoca (1814) e Campanha da Princesa (1820), porque só tivemos acesso às
reformas de Compromisso destas instituições. Cf. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder... op. cit. p. 221-222.
19
atividades supracitadas, comuns a todas as confrarias e Ordens Terceiras com oragos diversos, as
seus familiares a aceitarem com resignação a realidade da existência humana: porquanto és pó, e
em pó te tornarás”. 51 Por meio de literatura piedosa, festas, procissões e veneração das imagens,
elas transmitiram ao povo católico a certeza da vida eterna, ou seja, a recompensa divina de uma
50
Cf. MARQUES, Edmilson Barreto. A obra de Valentim Correa Pais como referencial para identificação de uma
“Escola” na região de São João Del Rei e sul de Minas. Imagem Brasileira, Belo Horizonte, n. 2, p. 55-60, agos.
2003.; CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro... op. cit.; AGUIAR, Marcos
Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil Colonial. 1999. 402 f. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1999.; IRMANDADE E ORDEM TERCEIRA. In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Ângela Vianna.
Dicionário Histórico das Minas Gerais: período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 180-184.;
BONICENHA, Walace. Devoção e caridade: As Irmandades Religiosas na Cidade de Vitória. Vitória:
Multiplicidade, 2004. 182 p.; OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A Imaginária Religiosa em Minas Gerais.
Barroco, Belo Horizonte, v. 19, p. 163-179, maio 2005.
51
“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó, e
em pó te tornarás”. (Gênesis 3, 19).
20
Apesar de ser numerosa a literatura apócrifa sobre o destino final da Mãe de Jesus,
optamos por utilizar nesta dissertação a versão vulgarizada no ocidente, através da Legenda
Áurea, do texto grego atribuído a São João Evangelista (ANEXO I). Esta escolha deve-se ao fato
deste relato ter servido de inspiração para a elaboração das representações bizantinas da
De acordo com o teólogo Michael Schmaus, o modo como ocorreu a assunção corporal de
Maria trata-se de um mistério, pois a definição deste dogma mariano, expressa através da
Encíclica Munificentissimus Deus, proclamada em 1950 pelo Papa Pio XII, nada esclarece a
autor mencionado explica que as narrativas apócrifas nunca foram legitimadas pelo Magistério
Eclesiástico, embora tenham sido largamente utilizadas pelos artistas na composição das cenas
52
Termo grego que designa a dormição de Maria. Cf. nota nº 8.
53
SCHMAUS, Michael. La Virgen Maria. In: ______. Teologia Dogmatica. Madrid: Ediciones Rialp S. A, 1963. v.
8. § 7. p. 250-51.
21
Desde o cristianismo das primeiras centúrias a imagem foi usada como estratégica
As imagens não foram introduzidas na Igreja sem causa razoável. Elas derivam de três
causas: a incultura dos simples, a frouxidão dos afetos e a impermanência da memória.
Elas foram inventadas em razão da incultura dos simples, que não podendo ler o texto
escrito utilizam as esculturas e pinturas como se fossem livros para se instruir nos
mistérios de nossa fé. Da mesma forma, elas foram introduzidas em função da frouxidão
dos afetos para que aqueles cuja devoção não é estimulada pelos gestos do Cristo
recebidos por intermédio dos ouvidos sejam provocados pela contemplação dos olhos do
corpo em sua presença nas esculturas e pinturas, já que na realidade o que se vê estimula
mais os afetos do que o que se ouve... Finalmente por causa da impermanência da
memória, já que o que se ouve é mais facilmente esquecido do que o que se vê... Assim,
por um dom divino, as imagens foram executadas nas Igrejas para que vendo-as nos
lembremos das graças que recebemos e das obras virtuosas dos santos. 54 (sic)
de dezembro de 1563, reiterou as resoluções de Nicéia (787), esclarecendo a função das imagens.
54
Apud OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Capítulo I. In: AGUILAR, Nelson (Org.). Mostra do
Redescobrimento: arte barroca. Fundação Bienal de SP. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000.
p. 38. Veja o texto do II Concílio de Nicéia em DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia: manual de los
símbolos, definiciones y declaraciones de la Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Editorial Herder,
1963. n° 302 e segs. Título original: Enchiridion Symbolorum.
55
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia... op. cit., n° 986.
22
formas de mediação cultual, ou a apreensão mais imediata, sensível e material dos significados
atribuídos às imagens.” 56 É neste sentido que nosso estudo analisa a iconografia do “Trânsito”
empregado.
A redação apócrifa em análise possui cinco episódios principais, tendo cada um deles
mãe de Jesus”.
A narrativa popularizada no século XIII pelo dominicano Jacopo de Varazze conta que a
Virgem, na antevéspera de sua morte, recebeu a visita de um mensageiro divino que a saudou
dizendo: “Bendita Maria, receba a bênção daquele que deu a salvação a Jacó. Aqui está um
ramo de palmeira que trouxe do Paraíso para você, minha senhora, e que deve ser levado diante
56
RIBEIRO, José Manuel. Significado e função das imagens. In: Câmara Municipal de Paredes de Coura.
Arciprestado de Paredes de Coura. Universidade Portucalense Infante D. Henrique (Org.). Imaginária Religiosa
Barroca: Paredes de Coura 2002/2003. Paredes de Coura: Câmara Municipal de Paredes de Coura. 2002. p. 15. Cf
também. MÂLE, Émile. L’art religieux du XVIIe siècle: Italie, France, Espagne, Flandres. Paris: Armand Colin
Éditeur, 1984. 479 p.; WEISBACH, Werner. El Barroco: Arte de la Contrarreforma. Madrid. Espasa-Calpe S.A.,
1948. 337 p.
23
de seu caixão, pois em três dias sairá do corpo, já que o filho espera sua reverenda mãe”. 57
Se encontrei graça diante de seus olhos, peço que se digne a revelar seu nome. Mas o
que peço ainda mais insistentemente é que meus filhos e irmãos, os apóstolos, estejam
reunidos junto de mim para que possa vê-los com os olhos do corpo antes de morrer, e
que possa ser sepultada por eles depois que tiver entregue meu espírito ao Senhor na
presença deles. Há outra coisa que desejo avidamente: que ao sair do corpo, minha alma
não veja nenhum mau espírito e que nenhuma das potências de Satanás apareça nesse
momento.57
Por que, senhora, deseja saber meu nome, que é admirável e grande? Quanto aos
apóstolos, virão todos e estarão reunidos junto de você, farão magníficos funerais
quando de seu passamento, que acontecerá na presença deles. Aquele que outrora, em
um piscar de olhos, levou pelo cabelo o profeta da Judéia até a Babilônia, certamente
poderá em um instante trazer os apóstolos para perto de você. Por que você teme ver o
espírito maligno, a quem destruiu inteiramente a cabeça e despojou de todo poder? Seja
feita contudo a sua vontade; você não o verá.57
Neste momento, após cumprir sua tarefa reveladora, o ser celestial retornou aos Céus.
mortem, suscitou poucas produções iconográficas. De acordo com Louis Réau a arte cristã
oriental e ocidental não privilegiou este tema por considerar sua composição muito próxima da
cena do anúncio da Natividade do Redentor. 58 As imagens não deveriam causar confusão, mas
Buoninsegna (1255-1319) representou Maria como uma mulher idosa. 59 Sentada sobre uma arca,
ela escuta atentamente as palavras do anjo que lhe entrega a “palma mortis”, símbolo de vitória,
57
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São Paulo:
Companhia das Letras 2003. p. 658. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta. Edição
fac-similada.
58
Cf. inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos XII a XVI. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo Testamento. Traducción Daniel Alcoba. Barcelona: Ediciones del
Serbal, 1996. p. 624. Título original: Iconographie de l’Art Chrétien.
59
Segundo a Legenda Áurea a mãe do Cristo era sexagenária quando faleceu. Para Epifânio (315-403), bispo de
Constantia, em Chipre, a Virgem deixou este mundo aos 72 anos, porém alguns autores bizantinos atestam que sua
passagem para a eternidade se deu aos 80 anos. Cf. VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 657.; RÉAU,
Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 627.
24
a interiorização das Sagradas Letras, a Bem-aventurada está vestida de azul, portando véu sobre a
cabeça e o ser celestial está à sua frente. Se à primeira vista podemos achar que os temas tratados
tem aparência jovial e o mensageiro celeste segura um bastão ao invés do ramo de palmeira. 61
60
Cf. PALMA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p. 680. Título original: Dictionnaire des
Symboles.
61
Na cena da Anunciação do Nascimento do Redentor o arcanjo Gabriel pode ser representado segurando lírios, um
cetro ou um bastão de mensageiro e também sem nada portar nas mãos.
25
A iluminura realizada pelo francês Jean Fouquet no século XV, para o Livro de Horas de
(Veja a FIG. 6). Maria está vestida de azul, sobre sua cabeça há um véu e ela está ajoelhada e de
mãos postas frente à Bíblia. O atributo do anjo (a “palma mortis”) e a idade avançada da Virgem,
despercebidos aos olhos dos observadores menos cautelosos e daqueles que desconhecem o
26
conteúdo dos relatos dormicionistas ou assuncionistas, gerando dúvidas e enganos entre os não
convertidos (a quem a Igreja quer alcançar), entre os neófitos e até mesmo fiéis devotos. 62
62
Nas localidades pesquisadas – Ouro Preto, Cachoeira do Campo, Barbacena, Mariana, São João Del Rei, Piranga,
Aiuruoca, Baependi, Campanha da Princesa, Catas Altas do Mato Dentro e Sabará – não encontramos fonte
imagética referente ao tema da Segunda Anunciação.
27
milagrosa dos discípulos aos aposentos da mãe do Messias. O evangelista João, que na ocasião
estava pregando em Éfeso, foi o primeiro a ser transladado por uma nuvem branca. Feliz em vê-
João, meu filho, lembre-se das palavras do seu mestre que me confiou a você como a um
filho e você a mim como a uma mãe. Eis-me chamada pelo Senhor para pagar o tributo à
condição humana, separando-me de meu corpo, e peço que cuide dele, pois soube que os
judeus se reuniram e disseram: “Esperemos, irmãos, o momento em que aquela que
carregou Jesus sofrerá a morte, para imediatamente raptarmos seu corpo e o jogarmos ao
fogo”. Quando meu corpo estiver sendo conduzido à sepultura, você mandará levar esta
63
palma diante de meu esquife.
E João respondeu: “Ó, quisesse Deus que todos os apóstolos, meus irmãos, estivessem aqui, a fim
digna”. 64 Neste instante, todos os discípulos foram arrebatados por nuvens dos lugares onde
estavam pregando e levados até a porta do quarto da Virgem. Estupefatos e confusos, eles
perguntaram: “Por que o Senhor nos reúne aqui?”64 E João, revelando-os o que estava
acontecendo, advertiu: “Prestem atenção, irmãos, para que ninguém chore quando ela estiver
morta, a fim de que vendo isso o povo não fique inquieto e diga: ‘Vejam como temem a morte
denominado por Louis Rèau de “Navegação Aérea dos Apóstolos”, foram mais freqüentes na arte
63
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 658.
64
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 659.
28
maioria dos exemplares são tardios, pois datam dos séculos XIV e XVI. 65 Por ser esta cena
amados de Cristo viajando em nuvens coletivas, como no convento de Xenophon no monte Athos
(século XVI), onde duas nebulosas levam seis passageiros cada uma, ou em nuvens individuais,
65
Cf. Inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos X a XVI. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 625.
29
De acordo com a Legenda Áurea, após a milagrosa reunião dos discípulos, “por volta da
terceira hora da noite” Jesus desceu ao encontro de sua mãe, acompanhado dos anjos, dos
patriarcas, dos mártires, do exército dos confessores e dos coros das virgens. Disse o Cristo:
“Venha, minha eleita, e eu a colocarei em meu trono porque desejo sua beleza”. 66 Ela
respondeu: “Meu coração está preparado, Senhor, meu coração está preparado”. 67 Os seres
celestiais que seguiam Jesus proferiram as seguintes palavras: “Aqui está quem conservou seu
leito sem mácula e que por isso receberá a recompensa que cabe às almas santas”. 68 Ela disse:
fez em mim grandes coisas”. 69 E o chantre entoou: “Venha do Líbano, minha esposa, venha do
Líbano e você será coroada”. 70 E ela por fim respondeu: “Aqui estou, pois está escrito no Livro
da Lei que eu faria sua vontade, Deus, porque meu espírito exulta de alegria em Deus, meu
Salvador”. 71 Dito isso, a alma de Maria voou em direção aos braços do filho ressuscitado
(assumptio animae). O Senhor dirigindo-se aos apóstolos, ordenou: “Levem o corpo da Virgem
Mãe para o vale de Josafá e coloquem-no em um sepulcro novo que encontrarão ali, e esperem-
66
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit., p. 659.
67
Ibidem, p. 659-60.
68
Ibidem, p. 660.
69
Ibidem, 660. O relato apócrifo faz, nesta passagem, referência a dois versículos bíblicos: Lucas 1, 48-49. Na
ocasião em que Maria proferiu as palavras contidas nesta frase, ela não estava morrendo, mas visitando Isabel (mãe
de João Batista).
70
Ibidem, p. 660. Esta frase foi inspirada em uma passagem do Velho Testamento. No Livro chamado Cantares de
Salomão ou Cântico dos Cânticos (4, 8) se lê: “Vem comigo do Líbano, minha esposa, vem comigo do Líbano. Olha
desde o cume de Amaná, desde o cume de Senir e de Hermom, desde as moradas dos leões, desde os montes dos
leopardos”.
71
Ibidem, p. 660. Esta frase foi pronunciada por Maria no momento em que visitava Isabel, antes do nascimento de
Jesus. (Lucas 1, 46-47).
72
Ibidem, p. 660.
30
O culto à morte da Genitora do Verbo foi muito popular entre os cristãos do medievo, mas
foi a arte bizantina que deu forma à Koimesis. Na tradição iconográfica oriental, Maria é
representada jacente, tendo ao seu lado os apóstolos e uma multidão de adoradores. O Cristo,
enfaixada como múmia). 73 Três discípulos se destacam na cena: Pedro, que à cabeceira da cama
mortuária segura um incensário, Paulo, que beija os pés da Santa, e João, que respeitosamente
recosta uma de suas orelhas sobre o peito (ou sobre o leito) da Virgem. (Veja FIG. 7, 8, 9 e 10).
73
Apesar do esquema supracitado ser o mais freqüente, podemos encontrar variações. Em algumas fontes imagéticas
Jesus não se encontra no plano terrestre, mas paira no ar levando nas mãos uma pequena nuvem sobre a qual está
ajoelhada a alma de sua mãe (pequena figura humana, despida de roupas e ornamentos). Cf. RÉAU, Louis de.
Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 628.
31
rígida composição cruciforme, cuja linha horizontal é definida pelo corpo de Maria e a vertical
pelo Cristo, sofreu adaptações e modificações na arte ocidental. O tradicional modelo, aos
poucos, cedeu lugar a novas formas e movimentos, permitindo diferentes representações do tema.
em conformidade com a simetria oriental, apresenta alterações quanto aos elementos figurativos.
32
O artista, nesta obra, não faz referência à corte celestial que acompanha Jesus. O turíbulo
carregado por Pedro foi suprimido, o apóstolo Paulo reclina-se e acaricia os pés da Virgem
enquanto João, sustentando o rosto com a mão direita, fita o cadáver. No primeiro plano, uma
mulher, sentada no chão à beira da cama, confere à cena a dramaticidade do luto. Trata-se,
provavelmente, de uma das três virgens citadas na Legenda Áurea, que cuidaram da toilette
74
Para o historiador da arte E. H. Gombrich a mulher representada no pórtico da catedral de Estrasburgo é a Maria
Madalena, mas segundo os estudos de Louis Réau trata-se de uma das duas viúvas, citadas em fontes apócrifas
diferentes do relato difundido pela Legenda Áurea, que receberam de herança da amiga Maria (mãe de Jesus) dois
vestidos. Cf. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.,
1999. p. 192. Título original: The Story of Art.; RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la
Biblia – Nuevo... op. cit., p. 631. Para elucidar a questão – quem é a mulher sentada ao lado do leito da Virgem? – é
preciso um estudo aprofundado, que permita assegurar, com certeza, qual das versões apócrifas dormicionistas foi
utilizada (ou era conhecida) pelo artista.
33
Outra variação do tema pode ser vista na FIG. 12 (Veja também a FIG. 2). O italiano
bizantina que sempre representou Maria morta – a alma fora do corpo, nos braços do Cristo –,
pintou a cena da Dormição (1462) retratando o momento que antecede o “Trânsito”. A Virgem
agonizante está em seu quarto, deitada sobre uma cama e rodeada pelos discípulos. Os papéis
litúrgicos se repartem de forma diversa 75 : João, em conformidade com o relato apócrifo, segura a
“palma mortis”, André balança o incensário, Pedro, Príncipe dos apóstolos, vestido com capa, lê
um livro de preces, enquanto ao seu lado um irmão sustenta a caldeirinha de água benta.
75
Sobre a mudança das ações dos discípulos no tema do passamento da Virgem Cf. RÉAU, Louis de. Iconografía
del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 630-31.
34
Inspirado na conjectura dos místicos do fim da Idade Média, que acreditavam que Maria
tinha dado à luz ajoelhada, a arte alemã criou uma nova versão para a iconografia
realizado por Veit Stoss entre 1477 e 1489, mostra-nos a Virgem cercada pelos doze apóstolos.
Entretanto, nesta obra, ela não foi representada jacente, mas ajoelhada em oração. No centro, sua
alma é recebida pelo Cristo (assumptio animae) e no topo, sua coroação é efetivada pela
76
Sobre as representações alemãs da morte da Virgem de joelhos, artistas e obras Cf. RÉAU, Louis de. Iconografía
del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 629-30.
35
1501 e 1502, para a Igreja dos Dominicanos em Frankfurt, apresenta-nos outra versão
iconográfica sobre o destino final de Maria. Baseado na opinião de teólogos que asseguravam que
a Virgem deixou este mundo sem sofrimento e que a morte a surpreendeu sentada, o artista
alemão compôs, sem desprender-se da tradição antecedente, uma cena até então inusitada. 77 A
contrição e o amor a Deus), tem ao seu lado o apóstolo João, que lhe entregando um círio aceso
sustenta com a mão direita um ramo de palmeira. No primeiro plano, Pedro, ajoelhado próximo
ao turíbulo e à caldeira com hissope, faz leitura de preces. Ao fundo, vemos os demais discípulos
77
RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 630.
36
recostada sobre leito retratado em posição oblíqua (FIG. 2), ajoelhada (FIG.13), sentada (FIG.
14), morta (FIG. 11) ou agonizante (FIG.12) – elas não invalidaram o antigo modelo bizantino
(FIG. 7, 8 e 9), ao contrário. A arte ocidental reformulou o tema da Koimesis, mas conservou
algumas características marcantes desta tradição – a cama mortuária, a presença dos apóstolos, o
Senhora da Conceição, na freguesia de Antônio Dias, em Ouro Preto, vemos a Virgem jacente
(imagem de roca) em um nicho que lhe serve de lugar de repouso. Ao fundo (talha em relevo),
dez discípulos, portando livro de orações e caldeira de água benta com hissope, assistem ao fim
da Bem-aventurada (busto feminino) sobe aos céus em uma pequena nuvem. (FIG. 16 e 18)
Portanto, nesta obra, Maria está morta (como na arte oriental) e não moribunda. A Trindade
Divina espera-a na eternidade, segurando uma coroa, símbolo cristão que indica a transcendência,
Na região de Minas Gerais, os altares de Nossa Senhora da Boa Morte erigidos entre 1721
e 1822, não apresentam outra versão iconográfica além da que situa a Dormição no plano
inferior é destinada ao corpo da Santa, que fica exposto em um esquife, enquanto a superior
78
COROA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos... op. cit., p. 289-92.
38
abriga imagem de Nossa Senhora da Assunção.79 Este formato, comum nos séculos XVIII e XIX,
alcançou inclusive os oratórios (FIG. 17), permitindo uma eficiente doutrinação dos fiéis – doutos
ou iletrados – e evangelização dos incrédulos, à medida que oferecia uma espécie de resumo
teológico da promessa do cristianismo: os salvos terão vida eterna com Cristo. Vida no sentido
do gozo da imortalidade, o que não é o caso dos condenados ao inferno. (FIG. 18 e 19)
79
Exceto o altar de Nossa Senhora da Boa Morte da Matriz de Antônio Dias, que agrega três etapas: na parte inferior
a morte da Virgem, na parte superior a assunção corporal (Imagem de Nossa Senhora da Assunção) e no coroamento
do altar a transladação da alma de Maria para os céus.
39
Depois que alma da Bem-aventurada subiu aos céus, Jacopo de Varazze registra que três
virgens prepararam o corpo da Santa para o sepultamento. Terminada a toilette fúnebre, Pedro,
erguendo o ataúde junto com Paulo, começou a cantar: “Israel saiu do Egito, aleluia!”. 80 Os
outros apóstolos continuaram o canto, enquanto João, à frente do cortejo, levava a “palma
mortis”.
Envolvida por uma névoa, remetida dos céus, a comitiva mortuária ficou oculta aos olhos
humanos. Entretanto a música que cantavam chamou a atenção do povo, que se dirigiu para fora
da cidade, a fim de saber o que estava acontecendo. De repente, alguém gritou: “São os
discípulos de Jesus que carregam Maria morta, em volta de quem cantam essa melodia que
escutamos”.80 Imediatamente a multidão incrédula empunhou armas dizendo uns aos outros:
“Vamos, matemos todos os discípulos e entreguemos ao fogo o corpo que carregou aquele
sedutor”.80 Furioso, o príncipe dos sacerdotes judeus estendeu os braços em direção ao corpo da
Virgem para jogá-lo ao chão, mas suas mãos instantaneamente secaram, ficando grudadas ao
féretro. Os demais revoltosos foram acometidos por uma cegueira, provocada pelos anjos que a
tudo assistiam.
O príncipe dos sacerdotes, sentindo muita dor, gritou: “São Pedro, não me abandone na
tribulação em que me encontro, reze por mim ao Senhor, eu imploro, lembre-se de que certa vez
eu o socorri quando você foi acusado por uma escrava”.80 Pedro respondeu: “Estamos ocupados
nos funerais de Nossa Senhora e não podemos curá-lo. Se você acreditar em Nosso Senhor Jesus
Cristo e naquela que o gerou e o carregou, espero que você possa recuperar imediatamente a
80
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 661.
41
saúde”. 81 Então, disse o judeu: “Creio que o Senhor Jesus é realmente o Filho de Deus e que
essa é sua santíssima mãe”. 82 Dito isso, suas mãos desprenderam-se do esquife, mas a dor não
cessou. Pedro falou: “Beije o caixão e diga ‘Creio em Deus Jesus Cristo, que ela carregou no
útero, permanecendo Virgem depois do parto’”.82 Após repetir estas palavras, o príncipe dos
sacerdotes ficou curado. Pedro, enfim ordenou: “Pegue esta palma das mãos de nosso irmão
João e passe-a sobre esse povo cego, e então aquele que quiser crer recuperará a visão, quem
A iconografia do cortejo fúnebre de Maria foi comum no ocidente cristão entre os séculos
83
XIII e XVI e apresentou poucas variações. Os discípulos, carregando sobre os ombros uma
conformidade com a Legenda Áurea, João leva a palma advinda do Paraíso, com o intuito de
afugentar o mal. Normalmente a Bem-aventurada não pode ser vista, pois se encontra em ataúde
fechado, mas esta não foi uma regra seguida à risca. Na FIG. 20, podemos ver o trabalho do
artista Duccio de Buoninsegna que representou o corpo da Mãe de Jesus livre de qualquer
impedimento visual. No retábulo de Ternant, datado do século XV, sua face está descoberta
judeu – que na arte bizantina aparece associado à cena da Dormição, não foi popular no mundo
ocidental, onde, apesar da infreqüência, três variantes podem ser observadas. O judeu
arrependido mostra suas mãos ao apóstolo Pedro, suplicando o restabelecimento de sua saúde; o
81
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 661.
82
Ibidem, p. 662.
83
Cf. Inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos XIII a XVII. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 635.
42
arcanjo Miguel, usando uma espada, mutila o profanador; as extremidades dos membros
Por volta de 1525, um pouco antes do Concílio de Trento (1545-63), mas no âmbito da
Reforma Católica, este tema anti-semita desapareceu. Louis Réau atribui tal fato ao momento
histórico da Igreja, que neste período estava mais preocupada em combater a ameaça protestante
84
RÉAU, Louis de. Iconografía del Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia – Nuevo... op. cit., p. 634.
43
O cortejo fúnebre de Maria não foi um tema recorrente em Minas Gerais. Durante esta
Sabará. Infelizmente o estado de conservação do painel, que está no forro da capela-mor, datado
oxidação das cores originais. Contudo, é possível observarmos que a obra pictórica não registra a
cena do primeiro milagre post-mortem. Deitado sobre o féretro está o cadáver da Virgem. O
apóstolo João leva a palma mortis à frente da comitiva, três discípulos sustentam e transportam o
ataúde, enquanto outro traz às mãos um livro de preces ou um hinário. Quatro pessoas, no canto
terceiro dia Ele veio ao encontro de seus irmãos, acompanhado por muitos anjos. Saudando a
todos disse o Cristo: “A paz esteja com vocês”. 85 Responderam os discípulos: “E a glória com
você, Deus, que sozinho faz grandes maravilhas”.85 O Salvador então perguntou: “Que graça e
que honra vocês pensam que eu deva conceder agora à minha mãe?”.85 Eles responderam:
“Estes seus escravos, Senhor, acham justo que da mesma forma que depois de ter vencido a
morte você reina eternamente, ressuscite, Jesus, o corpo de sua mãe e o coloque à sua direita
por toda a eternidade”.85 Concordando o Senhor falou: ”Levante-se, minha mãe, minha pomba,
tabernáculo de glória, vaso de vida, templo celeste, e da mesma maneira que me gerou sem coito
Maria saiu do túmulo, uniu-se à sua alma e foi levado aos céus na companhia de uma multidão de
anjos. Tomé que na ocasião estava ausente, para não duvidar da elevação corporal da Virgem,
Bem-aventurada (Koimesis), o ocidente preferiu dar forma e cor à cena do triunfo físico da
85
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea... op. cit, p. 662.
45
centúria, mas foi a partir do século XIV que este tema ganhou vulto. 86 Normalmente a Mãe de
Jesus sobe aos céus, carregada por anjos, com as mãos unidas em posição de oração, enquanto os
apóstolos, em torno do sepulcro vazio, vislumbram o milagre de sua glorificação corporal. Esta
instrumentos musicais – flautas, trombetas, bumbo e bandolim – é levada por inteligências puras
ao encontro de seu Filho Divino, que a espera no alto, ladeado por santos. No topo da obra, Cristo
cardeal Brancacci, enfatiza a cena do movimento transitório entre o mundo terrestre e o celeste. O
artista não fez referência aos apóstolos em volta do túmulo vazio e nem ao Messias, ou à
figura da Virgem, que está assentada e com as mãos postas em sinal de oração. Um grupo
angélico, enviado dos céus com a missão de transportar a “Cheia de Graça” para o Paraíso, reuni-
O afresco realizado por Filippino Lippi (1457-1504) para a Basílica di Santa Maria sopra
Minerva, em Roma, apresenta outra configuração: Maria não está sentada, mas de pé sobre uma
nuvem, da qual pendem dois turíbulos. Erguida por três anjos e louvada por outros seis, a Bem-
aventurada, com as mãos unidas, deixa a efemeridade para traz subindo em direção ao Reino de
86
Cf. Inventário temático-iconográfico feito por Louis Réau, séculos VIII a XVII. RÉAU, Louis de. Iconografía del
Arte Cristiano: Iconografía de la Biblia2 – Nuevo... op. cit., p. 641-42.
46
voltada para o alto e os braços abertos e erguidos, levita por força própria. Esta nova versão, que
já não justifica o título de Assunção, mas o de Ascensão 87 , consumou-se na arte italiana do século
XVI. Entretanto é preciso frisar que ela não invalidou a antiga composição, mas que ambas
coexistiram.
apelidado Correggio (1489?-1534), vemos Maria adentrando o Paraíso sem ajuda alguma. Os
seres celestiais, dispostos entre nebulosas, apenas assistem à subida da “Gloriosa”. (FIG. 25)
87
Ascensão, do latim ascensiõnis, exprime a ação de subir, subida. Assunção, do latim assumptiõnis, significa ação
de se juntar ou associar, tomada, aceitação. O termo ascensão é usado para designar a elevação do Cristo aos céus,
que subiu por força própria, e o vocábulo assunção para se referir à transladação da Virgem ao Paraíso, porque seu
corpo foi levado (tomado por forças externas). Cf. ASCENSIÔ; ASSUMPTIÕ. In: FARIA, Ernesto (Org.)
Dicionário Escolar Latino-Português. 3 ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1962. p. 103, 108.
49
XVII, representaram a elevação da Virgem aos céus enfatizando a intervenção dos anjos. Estas
duas fontes imagéticas, entre outras do período, são a comprovação da coexistência dos temas
pertencentes a cada um deles. (Reparem as FIG. 26 e 27. Apesar das imagens expressarem o
“ascensão mariana”: a Mulher tem os braços abertos e a cabeça votada para cima.).
André Gonçalves, datada de 1730, apresenta-nos a Mãe de Jesus sentada sobre um nimbo,
plano terreno, circundam o jazigo vazio onde uma figura feminina está recostada. Provavelmente
a referência é a mesma que aparece na cena da Dormição esculpida no tímpano da catedral gótica
templos católicos, datados entre os séculos XVIII e XIX, apresentam a cena da Assunção da
circulação de gravuras impressas em missais (executadas por gravadores europeus), que serviam
Mariana, executada por Antônio Martins da Silveira em 1782 89 , mostra-nos Maria ascendendo
aos céus sobre um nimbo, com os braços erguidos e a fronte voltada para o alto. Um ser celestial
postado ao lado direito e dois ao lado oposto, dividindo o espaço da nuvem, acompanham o
nas duas extremidades superiores e no meio da margem esquerda completam o cortejo divinal.
O quadro central do forro da nave da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Santa Rita
Durão, realizado por João Batista de Figueiredo entre 1788 e 1790 90 , e o da nave da Matriz de
Santa Luzia, cuja datação e autoria são desconhecidas, constituem mais dois exemplos de
88
Sobre o uso de estampas dos missais na produção artística das Minas Cf. BOHRER, Alex. Um Repertório em
Reinvenção: apropriação e uso de fontes iconográficas na pintura colonial mineira. Barroco, Belo Horizonte, v. 19,
p. 297-310, maio 2005. Sobre a influência dos estrangeiros na produção artísticas das Minas Cf. OLIVEIRA,
Myriam Andrade Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas Colonial. In: ÁVILA, Affonso (Org.). Barroco:
teoria e análise. São Paulo: Perspectiva/Belo Horizonte Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997. p.
443-64.
89
ANTÔNIO MARTINS DA SILVEIRA. In: MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos séculos
XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
1974, v. 2. p. 247.
90
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas Colonial: ciclo Rococó In: ÁVILA,
Affonso (Org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo: Perspectiva/Belo Horizonte Companhia Brasileira de
Metalurgia e Mineração, 1997. p. 468.
53
ocidente cristão atravessaram o oceano e se fizeram presentes nas terras do Ultramar. O trânsito
desenvolvimento do culto mariano, mas também para a assimilação – pela população douta e
época Moderna para designar a doutrina dos fins últimos, isto é, os remates da vida humana
segundo a perspectiva das Sagradas Escrituras. Atualmente, esses ensinamentos são conhecidos
como “escatologia” – denominação que tem origem na palavra grega escháton e que se tornou
Trento (1545-1564), abordam questões doutrinárias a respeito da Morte, do Juízo Particular, dos
lugares reservados às almas (Céu, Inferno e Purgatório) e do Juízo Final (consumação dos
individual e o universal.
91
Cf. GRESHAKE, Gisbert. ESCATOLOGIA. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia.
São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2004. p. 620-625. Título original: Dictionnaire critique de théologie.; LE
GOFF, Jacques. Escatologia. In: ______. História e Memória. 5ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. p. 323-
371.
92
O Purgatório, após ser admitido pelo Magistério Eclesiástico em 1274, foi incorporado aos ensinamentos
escatológicos tornando-se freqüente na literatura sobre os Novíssimos. O mesmo ocorreu com o Juízo Particular, que
embora nunca tenha sido declarado pela Igreja como um dogma de fé, está suposto ou contido nas decisões
doutrinais do II concílio de Lião (1274), de Florença (1439) e no catecismo elaborado pelo concílio de Trento. Sobre
o Purgatório Cf. LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1995. 448 p Título
original: La Naissance du Purgatoire. Sobre o Juízo Particular veja: SCHMAUS, Michael. Los Novisimos. In:
______. Teologia Dogmatica. Madrid: Ediciones Rialp, 1965. v. 7. § 302. p. 412-429.
57
o corpo volta ao pó (decompõe-se) e a alma comparece diante do juízo de Deus para prestar
contas e receber sentença irrevogável: salvação ou danação eterna. Os justos entrarão no Paraíso,
os réprobos sofrerão no Inferno e os que necessitam de expiar pecados veniais, antes de atingirem
a visão beatífica, passarão pelo Purgatório. Com a segunda vinda de Cristo e a ressurreição dos
mortos, consumar-se-á o Juízo Universal. Este evento porá termo à história do mundo presente e
definirá, de uma vez por todas, a situação da humanidade: os bons estarão reunidos na “Nova
Jerusalém” junto aos anjos e à Trindade, enquanto os maus ficarão na companhia dos demônios
para sempre.
Diante disso, podemos dizer que a doutrina dos fins últimos assegura uma existência após
o cessar das atividades corpóreas, entretanto não promete um futuro de felicidade plena para
todos. Só gozarão da eternidade aqueles que forem salvos, porque os condenados padecerão
tormentos infindáveis. Neste sentido, a morte só iguala os homens do ponto de vista biológico –
existência de dois juízos: o Particular, que ocorre logo após o falecimento, e o Universal, que se
efetivará com a volta gloriosa do Cristo. Segundo esta asserção escatológica, ao deixar o corpo, a
alma é imediatamente examinada e sentenciada por Deus, contudo o mesmo parecer divino será
novamente proferido quando o tempo da parusia chegar e o Tribunal presidido por Jesus for
instaurado. Isso significa que, embora o exame seja duplo, a sentença é única, ou seja, na essência
58
os julgamentos são idênticos. Todavia é preciso ressaltar que no Juízo Particular a avaliação recai
sobre a boa ou má vontade do homem e, no Juízo Final, o que importa é o valor das ações
Nas Sagradas Escrituras não há nenhuma referência que afirme a ocorrência do Juízo
Particular. Entretanto, o teólogo Michael Schmaus pondera que este Juízo está implícito na
doutrina veterotestamentária e neotestamentária da sanção, uma vez que depois da morte o estado
dos justos e dos pecadores é diferente. O estudioso elenca uma série de passagens bíblicas que
deram suporte a esta interpretação eclesiástica, destacando a Parábola do rico e Lázaro (Lc 16,
19-31) e a promessa feita por Jesus ao ladrão crucificado: “Em verdade te digo que hoje estarás
divergências de opiniões sobre sua natureza e processo. Das proposições apresentadas por
Schmaus, escolhemos a que mais se identifica com o conceito expresso nas fontes analisadas
nesta dissertação. Sendo assim, no exato momento em que a vida expira, a alma recebe uma
efusão da luz divina e, de modo inevitável, toma consciência de seus méritos e deméritos. A
decisões tomadas durante sua existência terrena. Sem poder apartar-se deste exame, que atinge o
explicitamente em várias passagens bíblicas. As Santas Escrituras não informam a data em que
este evento ocorrerá (Mc 13, 32-37), mas revelam que no “fim dos tempos” a humanidade inteira
93
Cf. SCHMAUS, Michael. Los Novisimos. In: ______. Teologia Dogmatica... op. cit., § 302. p. 424.
94
Ibidem, § 302. p. 413-415.
95
SCHMAUS, Michael. Los Novisimos. In: ______. Teologia Dogmatica... op. cit., § 302. p. 424-429. Cf. também
BETTENCOURT, Estêvão. A vida que começa com a morte. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1955. p. 45-55.
96
Cf. nota nº 92.
59
– os vivos e os mortos – serão publicamente julgados por Jesus, a quem o Pai (Deus) investiu de
autoridade e honra (Jo 5, 22-27; At 10, 42). O chamado “Dia do Senhor” será precedido por
consumido e dará lugar a um “novo Céu” e uma “nova Terra” (Ap. 20, 11 e 21, 1). 97
consideravam o fim do mundo como uma realidade próxima e por isso a religiosidade, neste
período, manteve-se estreitamente ligada à doutrina do Juízo Particular. 98 Por esta razão o ato de
testar na iminência da morte foi freqüente. Através destes documentos os fiéis suplicavam a
intercessão dos santos, distribuíam seus bens, praticavam caridade (deixando doações para ordens
religiosas, órfãos, pobres e donzelas), solicitavam expressivo número de missas em sufrágio pela
sua alma e pelas do Purgatório, escolhiam a mortalha e o lugar em que queriam ser sepultados,
97
II Pd 3, 10-13 também é muito significativo neste contexto. Sobre o Juízo Universal Cf. BETTENCOURT,
Estêvão. A vida que começa com a morte... op. cit., p. 155-258.
98
O padre Manuel Bernardes, discorrendo sobre o Juízo Universal e distinguindo-o do Particular, pauta-se na visão
catastrófica do fim do mundo descrita por João no canônico livro do Apocalipse. A obra do religioso Nuno Marques
Pereira, mais afinada com a mentalidade do catolicismo barroco – que não crê na iminência do Juízo Final,
preocupando-se mais com o julgamento individual após a morte –, destaca a importância da conduta terrena para se
alcançar a salvação. Nada de consumação dos tempos, seu discurso concentra-se no valor das ações praticadas neste
mundo frente ao exame de Deus na eternidade. Cf. BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: Obras
Completas do Padre Manuel Bernardes. São Paulo: Editora Anchieta, 1946. v. 7. Tomo II, Exercício IV, p. 32-213.
Reprodução fac-similada da edição de 1686.; PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da
América. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1939. v. 2. p. 247-255. O padre Manuel Bernardes
nasceu em Lisboa a 20 de agosto de 1644 e faleceu em 17 de agosto de 1710. Entre os anos 1674 e 1708, ao abrigo
da Congregação do Oratório de Lisboa, escreveu extensa obra – onze títulos somando 17 tomos – voltada à vida
virtuosa e aos fins últimos do homem. Sua produção literária é importante porque muito circulou pela América
Portuguesa, influenciando a cultura e o imaginário devoto na Capitania das Minas. Sobre a vida e obra deste
religioso Cf. SILVEIRA, Francisco Maciel. Textos Doutrinais: Pe Manuel Bernardes. São Paulo: Cultrix: Editora da
Universidade de São Paulo, 1981. p. 1-14. O lusitano Nuno Marques Pereira, nascido em 1652 e falecido em Lisboa
depois de 1733, viveu parte de seus dias na colônia americana portuguesa. Sua obra, publicada primeiramente em
1728, teve cinco edições até o ano de 1765 – dado que revela sua popularidade.
60
A boa morte, nas palavras do historiador João José Reis, “significava que o fim não
chegaria de surpresa para o indivíduo, sem que ele prestasse contas aos que ficavam e também
os instruísse sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus bens terrenos.”100
Almejado e praticado (na medida do possível) pelos cristãos, desde o medievo, o “morrer bem”
Os últimos instantes da vida eram considerados primordiais para a salvação porque, não
Que a nossa salvação depende de termos uma boa morte, é coisa certa; porque assim
como quem dá a sentença entre as duas balanças, sobre qual delas pesa mais, é o ponto,
que está no ápice do fiel das mesmas balanças; assim o ponto, ou momento último da
nossa vida, é o que dá a sentença entre as duas eternidades, uma de pena, outra de glória,
qual delas há de levar a alma. 101 (sic)
A doutrina dos Novíssimos – ensinada pela Igreja através de sermões, literatura piedosa e
artes visuais 102 – gerou, ao longo do tempo, crenças e costumes relativos ao fim da existência
99
Sobre o ato de testar cf. VOVELLE, Michel. Pieté barroque et déchristianisation en Provence au XVIIIe siècle.
Paris: Editions du Seuil. 1978. p. 229-64.; MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980. p. 209-228.
100
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 92. A boa morte foi chamada pelo historiador Philippe Ariès de “morte domada”
(mort apprivoisée). Cf. ARIÈS, Philippe. L’homme devant la mort. Paris: Éditions du Seuil, 1977. p. 13-36.
101
BERNARDES, Pe. Manuel. Os Últimos Fins do Homem. In: Obras Completas do Padre Manuel Bernardes. São
Paulo: Anchieta, 1946. v. 9. Livro I, cap. XI, p. 171. Reprodução fac-similada da edição de 1728. (Atualizamos a
grafia nesta transcrição). A respeito de outras mensagens relativas ao “bem morrer” Cf. VIEIRA, Antônio. Sermões
do Padre Antonio Vieira. São Paulo: Anchieta, 1944. v. 1, p. 87-142. Reprodução fac-similada da edição de 1679.;
PEREIRA, Nuno Marques. Compendio Narrativo do Peregrino... op. cit., v. 2. p. 236-46.
102
Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Os Novíssimos do Homem” – a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso: fontes
escritas e iconografia. In: ______. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro: o culto a São Miguel e Almas. 1994.
432 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1994. cap. 1, p. 12-81.
61
“bem morrer” e repudiavam o contrário. Falecer sem deixar testamento, sem tempo para
confrades e sacerdote era motivo de temor entre os cristãos, pois a possibilidade de conserto só
existia para os vivos. Uma vez passado o umbral da eternidade a sorte das almas estava lançada.
Advertindo sobre esta matéria o religioso Nuno Marques Pereira redigiu o seguinte trecho:
E considerai que vos aviso agora, pois tendes tempo para o fazer; obrai muito para
aplacares a indignação deste Deus ofendido, porque depois vos não falte tempo de o
poderes fazer naquela tão apertada hora, entre o instante da vida, e a morte; porque já
então não haverá lugar para serem admitidos vossos rogos, nem terem mais despachos as
vossas súplicas, nem para vossas lágrimas perdão, nem para o vosso arrependimento
misericórdia. 103 (sic)
local onde se dá o Juízo Particular. Todavia o padre Manuel Bernardes, em seus Exercícios
Espirituais, afirmou que o exame individual ocorre no mesmo lugar onde a morte nos colhe. Por
esta razão o pio autor aconselhou: “(...) quando te fores deitar na tua cama, não olhes para o
leito como lugar de descanso de teu corpo, senão como tribunal do juízo de tua alma pois nesse
leito, e nessa noite podes morrer, e ser julgado.” 104 (sic). Esta orientação não foi uma novidade
da época Moderna. No declínio da Idade Média, a literatura religiosa conhecida como Ars
seus dormitórios (Veja FIG. 3). Tais imagens, utilizadas por missionários na evangelização dos
povos desde o século XV, circularam pela América Portuguesa e Espanhola propagando os
103
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino... op. cit., v. 2. p. 252. (A grafia foi atualizada
nesta transcrição parcial).
104
BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: ______. Obras Completas do Padre Manuel... op. cit.,
Tomo II, Exercício IV, p. 15. Reprodução fac-similada da edição de 1686. (A grafia foi atualizada).
105
VOVELLE, Michel. A conversão vista através das imagens: das vaidades aos fins últimos, passando pelo
macabro, na iconografia do século XVII. In: ______. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas
mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Editora Ática, 1997. cap. 6, p. 119-133.
62
Novo Mundo, foi recorrente em Minas Gerais durante os séculos XIX e XX. Apesar das fontes
imagéticas que encontramos serem datadas do oitocentos e do novecentos, isso não significa que
elas foram inexistentes no período anterior. Além do mais, podemos assegurar que a deficiência
iconográfica não implica na ausência ou na fragilidade de uma crença. A prática comum de testar
que a análise das representações inspiradas no modelo da Ars Moriendi e figuradas na região
mineradora no espaço de tempo posterior ao delimitado por nossa pesquisa não exprime
anacronismo histórico. Esclarecemos ainda que, neste caso, os recursos visuais sobre os quais nos
detemos servem para elucidar a concepção de boa morte internalizada pela sociedade colonial,
No Museu Regional Casa dos Otoni, localizado no Serro, há duas litogravuras cujo
estampas são de procedência francesa e outrora pertenceram à instituição serrana chamada Santa
Na FIG. 31, datada do século XIX, podemos observar a “morte do justo”. O homem
representado é magro e aparenta idade avançada, dado que nos assinala a prática penitencial do
jejum e a dádiva da longevidade. Ele está deitado em leito modesto, onde recebe efusão da luz
divina e contempla sua salvação. O quarto está repleto de seres celestiais que vieram ao encontro
da alma eleita. No alto, à esquerda, um anjinho ladeado por querubins mostra a coroa da vida
eterna, enquanto o diabo, no canto inferior direito, está com a fronte voltada para o chão em
posição de derrota. Ao redor do moribundo, que segura um crucifixo de madeira e possui tonsura
106
IPHAN, IBMI, Minas Gerais, Serro, Museu Regional Casa dos Otoni.
63
sobre a cabeça (sinal de que é um religioso), destaca-se a presença de três membros da hierarquia
clerical: um papa, um bispo e um pároco. Este último, com traje marrom e estola bordada, parece
ministrar o sacramento da confissão. São José, considerado o patrono da boa morte, está presente
na cena. O arcanjo Miguel, vestido de guerreiro (manto azul, saiote e botas cinza), empunha sua
espada na direção do satã antropomorfo. Ao fundo, na parte esquerda da imagem, uma figura
A FIG. 32, datada do século XX, apresenta-nos a “morte do pecador”. O moribundo tem
aparência robusta e jovem, informação visual que denota seu falecimento precoce. Ele está
deitado em leito confortável (equipado com duplo colchão), onde, iluminado pela justiça divina,
toma consciência de sua desgraça eterna. Diferente dos aposentos do justo, o quarto está repleto
de seres danados. No canto esquerdo, sentado no trono e segurando um tridente, o rei do inferno
64
aguarda a chegada da alma perdida. Três demônios antropomorfos dominam a cena: um puxa o
lençol que está sob o corpo do enfermo rumo ao mundo das trevas; o outro segura um espelho
que reflete imagem de mulher jovem e ricamente ornada, seduzindo o homem a permanecer no
engano das paixões efêmeras; enquanto o terceiro, movimentando o braço na direção do anjo que
retorna aos céus, alegra-se com a vitória do mal. Simbolizando o apego material e o pecado da
avareza, vemos ao lado da cama, sobre o móvel, uma caixinha de jóias e logo abaixo, no chão,
um baú e um saco de moedas envolto por uma serpente. Tentando apartar-se da visão do Juízo, o
moribundo levanta a mão direita, vira o rosto contra a luz celestial, despreza a presença do
sacerdote e mira a figura feminina que está na moldura sustentada pelo diabo. Ajoelhada ao pé do
leito sua esposa chora copiosamente, mas as lágrimas derramadas não podem salvar o pecador
renitente.
segunda metade do oitocentos (Veja FIG. 33 e 34). As obras, cuja autoria é desconhecida, foram
O quadro que apresenta a “morte do justo” foi executado, sem sombra de dúvidas,
composição imagética (Compare as FIG. 31 e 33). O moribundo está deitado, usando tonsura
sobre a cabeça e segurando um crucifixo. No mesmo instante em que recebe auxílio sacerdotal,
ele vislumbra seu Juízo Particular. Ao lado da cabeceira, no canto direito da tela, o diabo lamenta
sua derrota, enquanto o Arcanjo Miguel vigia-o com a espada em punho. São José e os demais
107
Cf. análise pioneira das telas do Museu da Inconfidência. CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do
Setecentos Mineiro... op. cit., p. 34-37.
66
Na FIG. 34 uma jovem mulher conhece o fim último dos pecadores renitentes. Trajando
camisola decotada e exibindo corpo escultural, ela está deitada sobre cama luxuosa dotada de
dossel e cortinado vermelho. Seu quarto está cheio de seres infernais. Debruçado sobre a
cabeceira do leito mortuário, um demônio aponta a cena em que ocorre o Juízo Particular. Nela
podemos ver o Cristo de pé sobre uma nuvem, Maria ajoelhada frente à âncora da salvação e um
diabinho mostrando o livro em que foram anotados todos os pensamentos impuros, ações e
decisões iníquas da ré. No primeiro plano, horrenda figura de dragão alado simboliza a luxúria e
os prazeres do amor carnal. Ao lado do único anjo de luz, que com tristeza olha a moribunda, um
espírito maligno segura o espelho da vaidade. O pároco, em vão, empunha um crucifixo tentando
convencer a enferma a arrepender-se de seus pecados, mas esta vira-lhe o rosto em sinal de
desprezo. Perto de sua mão esquerda encontra-se um baú de trastes e um saco de moedas,
Regional do Sul de Minas, encontramos dois conjuntos (idênticos entre si) de litogravuras
datadas do século XX. A estampa da morte do pecador é igual àquela que compõe o acervo do
Museu Regional Casa dos Otoni, localizado no Serro (Veja FIG. 32). Entretanto, a gravura da
Individual e recebendo a dádiva da salvação. Ele está deitado em seu leito, segurando crucifixo
de madeira com a mão esquerda e um rosário com a destra. Postado ao lado do moribundo, um
anjo aponta para a cena celeste onde a Trindade Divina aguarda a alma eleita. Ao fundo, com
espada em punho, outro ser angélico expulsa do recinto o diabo derrotado. À beira da cama, sem
pelo pároco. No primeiro plano, sobre a mesinha, há um livro aberto (provavelmente a Bíblia
próximo ao cortinado rubro, um jovem em posição de orante (mãos unidas e cabeça reclinada)
auxilia com preces o bom desfecho da vida do agonizante. A conduta do justo é admirável. Com
fé, resignação e perseverança ele aceita a vontade do Criador, despede-se dos entes queridos e
renuncia aos prazeres mundanos. Seu comportamento diante da morte está em perficiente
maneira pedagógica e persuasória, um padrão cristão de “bem morrer”, mas também enfatizaram
a responsabilidade de cada um sobre seu próprio destino eterno. No que diz respeito a esta
Tridentino ensinava: “Recordemos, además, que todos los hombres habremos de comparecer dos
veces delante del Señor para dar cuenta de todos y cada uno de nuestros pensamientos, palabras
y acciones, y para escuchar su sentencia de Juez.” 108 Manuel Bernardes, comentando as palavras
do Apóstolo Paulo em Gálatas (6, 7-8), exortava: “não nos enganemos: de Deus ninguém zomba:
o que cada um semear, isso colherá: será a sua morte conforme for a sua vida.” 109 A obra de
Nuno Marques Pereira também advertia: “(...) nem uma criatura racional pode escapar de ser
julgada naquele Diviníssimo Tribunal, diante do Retíssimo juiz dos bens e males, que neste
mundo tiver feito, até o último instante da hora da sua morte.” 110
108
HERNANDEZ, Pedro Martin (trad., introd e notas). Catecismo Romano. Madrid: Editorial Católica, 1956. cap.
VII, p. 174.
109
BERNARDES, Pe. Manuel. Os Últimos Fins do Homem. In: ______. Obras Completas do Padre Manuel... op.
cit., Livro I, cap. XII, p. 225. Reprodução fac-similada da edição de 1728. (A grafia foi atualizada).
110
PEREIRA, Nuno Marques. Compendio Narrativo do Peregrino da... op. cit., v. 2. p. 248. (Atualizamos a grafia).
69
Para alcançar a graça da redenção – objetivo de toda a cristandade – era necessário que os
fiéis zelassem por uma existência virtuosa, sendo primordial a prática contínua da auto-avaliação.
Espirituais, recomendava: “(...) aprende o modo com que podes fazer o juízo de Deus mais
antecipado, e mais vagaroso que é julgando-te a ti mesmo todos os dias.” 111 Destacando a
Se fores contra ti testemunha fiel não dissimulando as culpas, e testemunha veloz, não
retardando a penitência, não te causará horror, mas alegria, que o Supremo Juiz seja
testemunha veloz, e testemunha fiel. Porque sendo fiel, não te imputará de novo os
pecados, que já perdoou, e sendo veloz, não te dilatará mais o prêmio, que já
mereceste. 112 (sic)
A boa morte era sinônimo de salvação e, portanto, conseqüência de uma vida ilibada, ou
seja, estava diretamente vinculada a uma conduta terrena pautada pela interiorização e prática dos
valores ético-cristãos. Neste sentido, os justos não tinham razão para temerem um falecimento
súbito, pois ainda que lhes faltassem o tempo necessário para as preparações ante mortem suas
atitudes cotidianas e seus testemunhos pios garantiam o prêmio da redenção eterna. A justiça e a
misericórdia divina jamais condenariam as almas que, enquanto estiveram unidas ao corpo,
respeitaram e obedeceram aos preceitos estabelecidos nas Sagradas Escrituras. Esta concepção
religiosa foi reiterada nos diversos manuais do “bem morrer”, produzidos desde o declínio da
Idade Média. As orientações contidas no Retiro Espiritual Para Hum Dia De Cada Mez, obra
111
BERNARDES, Pe. Manuel. Exercícios Espirituais. In: ______. Obras Completas do Padre Manuel... op. cit.,
Tomo II, Exercício IV, p. 13. Reprodução fac-similada da edição de 1686. (A grafia foi atualizada).
112
Ibidem, loc. cit. (Atualizamos a grafia).
70
voltada para a meditação e preparação daqueles que desejavam uma boa morte, cuja oitava edição
– “mais correta e exata” – data de 1818, reafirmavam a estreita relação entre a vida e o fim último
dos justos. No trecho transcrito abaixo podemos perceber como o “bem viver” e o “bem morrer”
estavam aliançados.
Considera quanto é suave o morrer para aquele, que tem vivido bem. A morte é castigo
do pecado: não é, pois, propriamente falando, só as almas manchadas com o pecado, que
ela deve causar aflição? E pode deixar de causar grande consolação, e alegria aqueles,
que têm vivido no exercício das virtudes cristãs? Poderá deixar de morrer contente quem
morre santo?
A morte dos justos é preciosa diante de Deus, diz o Profeta, ela é agradável. O que é
precioso, estima-se em qualquer lugar que esteja, tem-se muito cuidado dele. Assim,
ainda que os justos morram destituídos de todo o socorro humano, ainda que morram
subitamente, a sua morte nunca é improvisa, Deus tem um singular cuidado dela: E
como poderia deixar de ser feliz esta morte, sendo tão preciosa nos seus olhos? 113 (sic)
Desde o medievo a Igreja foi enfática em recomendar aos fiéis que se preparassem
continuamente durante a vida e que estivessem atentos aos mandamentos de Deus, porque no
momento derradeiro poderia não haver tempo para contrições. Entretanto, sabemos que existe
uma grande diferença entre o dever ser e o que realmente se efetiva no cotidiano.
expressão barroca, “quer se salvar, mas – salienta-se – dentro de uma perspectiva bastante
Na região aurífera, predominava a crença no milagre e o culto aos santos, mas também a
113
APNSPilar, Casa dos Contos – Ouro Preto. Volume 0091, Rolo/Microfilme 005/0360-0475. Retiro Espiritual
Para Hum Dia De Cada Mez. Obra muito útil para toda a sorte de pessoas e principalmente para aquelles que
desejam segurar uma boa morte. Traduzido da Língua Francesa. Tomo I. Oitava Edição mais correta, e exata. Lisboa,
na Officina de Antônio Rodrigues...1818. p. 184. (A grafia do trecho transcrito foi atualizada).
114
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira Devoção do Setecentos Mineiro... op. cit., p. 32.
71
acatados, sendo levados a efeito somente em dias de grande significação do calendário litúrgico.
Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, prestando contas à Sagrada Congregação do Concílio
de Trento sobre seu governo episcopal, escreveu no ano de 1757 um relatório decenal. Na sexta
sessão deste documento o benemérito prelado expôs suas observações sobre a vivência moral e
115
Sobre a irregularidade do matrimônio Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. A “torpeza diversificada dos vícios”:
celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas Gerais (1748-1801). 1993. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1993.; FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997. 198p. É preciso ressaltar que a simplificação da experiência religiosa e da conduta moral não foi uma
particularidade vivida na Capitania das Minas. De maneira geral, as sociedades cristãs da Idade Moderna
compartilhavam do mesmo padrão comportamental: só se preocupavam com o destino de suas almas na iminência da
morte. Cf. D’ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações 1700-1830. Lisboa: Editorial
Notícias, 1997. MORAES, Douglas Batista. Bem nascer, bem viver, bem morrer: administração dos sacramentos da
Igreja em Pernambuco (1650 à 1790). 2001. 111 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.; ROLDÁN, Francisco Núñez. La
vida cotidiana en la Sevilla del Siglo de Oro. Madrid: Sílex, 2004. 248p.
116
AEAM, Relatório Decenal do Episcopado de Mariana para a Sagrada Congregação do Concílio de Trento,
redigida por Dom Frei Manoel da Cruz. Mariana, 1 de julho de 1757. Língua original: Latim. Tradução de
Monsenhor Flávio Cordeiro.
72
De acordo com a análise coeva do bispo cisterciense, a situação de sua diocese era
aviltante. Na capitania sobrepujava a corrupção e a degradação dos bons costumes, sendo motivo
de elogio apenas a “liberalidade para com os Santos” praticada pela população viciosa. Nem os
professavam. Para compensarem a vida desregrada que levavam e assegurarem uma boa morte,
associações leigas, eles honravam seus padroeiros, contribuindo materialmente para construção e
missas em sufrágio de suas almas. 117 No momento derradeiro não dispensavam o direito de testar
e o auxílio sacerdotal, sendo prática receberem ao menos um dos três sacramentos ante mortem, a
117
Sobre os sepultamentos “ad sanctos” e “apud ecclesiam” Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Idéia do Barroco e
os desígnios de uma nova mentalidade: a misericórdia através dos sepultamentos pelo amor de Deus na Paróquia do
Pilar de Vila Rica (1712-1750). Revista Barroco, Belo Horizonte, v. 19, p. 45-68, 2000.
118
A eucaristia consistia na comunhão. Os fiéis recebiam da mão do sacerdote o pão de trigo (Corpo de Cristo), que
no caso dos doentes podia significar o último alimento espiritual antes do trânsito de suas almas – viático. Cf. VIDE,
D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras Do Arcebispado Da Bahia. Coimbra: Real Colégio das Artes da
Companhia de Jesus, 1720. Livro 1, Título XXIII a XXXII, nº 83-122. p.35-53.; HERNANDEZ, Pedro Martin (trad.,
introd e notas). Catecismo Romano... op. cit. cap. III. p. 436-516. A penitência consistia no arrependimento sincero e
na confissão dos pecados a um sacerdote autorizado. Cf. VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras
Do Arcebispado Da Bahia... op. cit., Livro 1, Título XXXIII a XLVI, nº 123-190. p.54-80.; HERNANDEZ, Pedro
Martin (trad., introd e notas). Catecismo Romano... op. cit. cap. IV. p. 516-591. A extrema-unção era realizada pelo
sacerdote. Com óleo bento de oliva ele ungia partes do corpo do moribundo (olhos, ouvidos, nariz, boca, mãos e
eventualmente os pés), pedindo o perdão de Deus por todo pecado cometido através destes sentidos. Segundo as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: “Os efeitos próprios deste sacramento são muitos, e
principalmente três. O primeiro é, perdoar-nos as relíquias dos pecados, pelos quais faltava satisfazer da nossa
parte, ficando por isso aliviada a alma do enfermo. O segundo é, dar muitas vezes, ou em todo, ou em parte a saúde
corporal ao enfermo, quando assim convêm para bem de sua alma. O terceiro é, consolar ao enfermo, dando-lhe
confiança, e esforço, para que na agonia da morte possa resistir aos assaltos do inimigo, e levar com paciência as
dores da enfermidade.” Cf. VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras Do Arcebispado Da Bahia...
op. cit., Livro 1, Título XLVII, nº 193. p. 81-82. (a grafia foi atualizada nesta transcrição); HERNANDEZ, Pedro
Martin (trad., introd e notas). Catecismo Romano... op. cit. cap. V. p. 592-609.
73
Maria tiveram importante função nas Minas. Ao difundirem o modelo mariano de “bem morrer”,
população (incluindo seus irmãos filiados) acerca da estreita relação entre a existência terrena e o
destino eterno de cada um. A salvação era o coroamento da vida cristã e por isso não deveria ser
preocupação e objetivo apenas dos moribundos. Neste sentido, o culto a Nossa Senhora da Boa
pela Igreja. Não foi por acaso que o Bispo Dom Frei Manuel da Cruz consagrou o Seminário de
119
Sobre o Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte Cf. TRINDADE, Raymundo. Archidiocese de Marianna:
subsídios para sua história. São Paulo: Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus, 1929. v. 2. p. 754-918.
______. Breve Notícia dos Seminários de Mariana: publicação comemorativa do Bicentenário do Seminário e
Cinqüentenário Sacerdotal de Dom Helvécio Gomes de Oliveira. São Paulo: Oficinas da Empresa Gráfica da
“Revista dos Tribunais”, 1953. 280p.
74
primeiro quartel do século XVIII. Entre os anos 1721 e 1822, elas foram erigidas em nove
localidades, a saber: Vila Rica (Ouro Preto), Arraial de Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira
ou Arraial da Cachoeira (Cachoeira do Campo), Vila de São João Del Rei (São João Del Rei),
território colonial mineiro – Sabará e Caeté, por exemplo, guardam excelente acervo em seus
templos e museus. Ratificamos que o objetivo de nossa pesquisa é o estudo das confrarias de
120
Caio César Boschi realizou levantamento exaustivo de irmandades mineiras, sob várias invocações. Entretanto,
sua listagem referente às Irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte encontra-se incompleta, contando apenas seis
das nove que conseguimos mapear. Cf. BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política
colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986. Anexos 4 e 5, p.189 e 192
75
compromisso e por este motivo não incluímos, nesta análise, os grêmios de devoção (entidades
No mapa abaixo (FIG. 36), estão destacadas apenas as localidades onde houveram
Bispado e do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, não foi assinalada. O suporte
cartográfico que usamos, apesar de corresponder à configuração do atual estado de Minas Gerais,
Capitania, dividindo-se entre as antigas Comarcas de Vila Rica e do Rio das Mortes – dois
FIGURA 36 – Mapa do Estado de Minas Gerais com demarcação das antigas Comarcas.
Fonte de dados: BOSCHI, 1986, p. 206. Edição digital: Ramon Sant’ Anna.
121
Sobre as diferenças entre Irmandades de compromisso (ou de obrigação) e Irmandades de devoção Cf. AGUIAR,
Marcos Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre negros e mulatos no século XVIII.
1993. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1993. p. 7-20.
122
A respeito da demarcação e configuração do território das Minas Gerais Cf. COSTA, Antônio Gilberto (Org.).
Cartografia da Conquista do Território das Minas. Belo Horizonte: Editora UFMG; Lisboa: Kapa Editorial, 2004. p.
99-159. Sobre a estrutura e dinâmica política-econômica-cultural da Comarca de Vila Rica e da Comarca do Rio das
Mortes Cf. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira (Brasil e Portugal – 1750-1808).
São Paulo: Paz e Terra, 1995. 317 p.; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas
Gerais (1716-1789). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 285 p.
76
Estabelecer com precisão a data de fundação das agremiações leigas é tarefa difícil, pois a
elaboração dos compromissos nem sempre coincide com a época em que o sodalício foi
organizado. Embora o mais freqüente fosse a defasagem de tempo entre os dois atos, optamos por
considerar o ano de redação dos estatutos – momento em que os devotos buscavam ter a
existência de suas confrarias confirmada de jure. Esclarecemos que a Irmandade de Vila Rica foi
datada conforme a referência do Livro de Entrada de Irmãos (1721-1765), pois infelizmente não
encontramos o seu Regimento 123 . A de São João Del Rei teve o ano fixado em 1734 por causa
Nós o Juiz, Escrivão, Tesoureiro, Procurador, e mais Irmãos de Mesa, que servimos o
presente ano de mil setecentos e oitenta e cinco, nesta Irmandade de Nossa Senhora da
Boa Morte ereta na Matriz de Nossa Senhora do Pilar desta Vila de São João Del Rei do
Rio das Mortes, juntos em Mesa no Consistório da mesma, por reconhecer-mos, que o
Compromisso, que até agora tem servido a esta Irmandade de diretório, para o seu
governo, e regimento aprovado tão somente pelo Ordinário há mais de cinqüenta
anos em que foi ereta a Irmandade, padece pela variação do tempo, e decadência do
País algumas dificuldades, e dureza na observância, e prática (...). 124 (sic)
Cachoeira, 126 de Guarapiranga 127 , da Borda do Campo 128 e de Catas Altas do Mato Dentro 129
123
APM, CC: 2004, microfilme 127 (2/7), E5. Livro de assento de irmãos da Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de
Vila Rica (1721-1765). O primeiro registro data de 03/12/1721.
124
AEDSJDR, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte: Compromisso (1786), folha dois. Grifos meus. (grafia atual).
125
BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder... op. cit., Anexo 14, p. 221-222. Nos arquivos pesquisados não foram
encontrados documentos referentes à Irmandade de Baependi e por esta razão utilizamos os dados registrados por
Caio César. Para as associações de Aiuruoca e de Campanha adotamos o mesmo procedimento, pois só localizamos
reformas de estatuto. AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de Aiuruoca: Compromisso (1896); Irmandade de
N. Sra. da Boa Morte de Campanha: Compromisso (1840).
126
AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731).
127
AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779).
128
Esta Irmandade foi fundada em 1754, mas somente em 1782 foi oficialmente instituída. Cf. IPHAN, IBMI, Minas
Gerais, Barbacena, Pasta da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena.
129
Certamente o sodalício de Catas Altas foi erigido antes de 1822 – ano em que se uniu à Arquiconfraria de São
Francisco – pois, de acordo com o compromisso, redigido na segunda década do oitocentos, as pessoas que
estivessem alistadas na Irmandade de N. Sra. da Boa Morte ou na Arquiconfraria de São Francisco, ficariam, daquela
data em diante (1822), automaticamente incorporadas na Irmandade e Arquiconfraria unidas. Entretanto, como não
encontramos outra referência, além do estatuto supracitado, estabelecemos como data de instituição oficial o ano de
1822. AEAM, Irmandade de N. Sra. da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas Altas
do Mato Dentro: Compromisso (1822), sexto capítulo.
77
foram datadas conforme o critério que explicitamos em linhas anteriores. Desta maneira, o
quadro 1 nos informa o ano em que as associações leigas vocacionadas à Dormição de Maria
elaboraram seus regulamentos e pleitearam o status jurídico – salvo os casos de Vila Rica e São
compostas, mormente, por mulatos de ambos os sexos. Nos seus estatutos, em petições
endereçadas à coroa, os confrades sempre se identificaram como “pardos”, embora a filiação dos
Arraial da Cachoeira, escrito em 1731, estabelecia: “toda a pessoa que quiser ser irmão desta
Santa Irmandade fará petição ao Juiz dela o qual informando-se da geração, vida e costumes da
tal pessoa, e parecendo-lhe capaz o aceitará mandando ao escrivão que faça termo (...)” (sic). 130
pessoas homens e mulheres pardos, assim forros como cativos se poderão assentar por Irmãos
130
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731), folha dois.
(atualizamos a grafia)
78
desta Irmandade, como também quaisquer pessoas assim brancas como pretas de qualquer
condição e qualidade (...)” (sic). 131 O da associação erigida na Vila de São João Del Rei,
reformado entre 1785 e 1786, declarava: “Para Irmãos desta Irmandade, se aceitarão todas
aquelas pessoas que forem brancos, pardos legítimos, e libertos, assim homens como mulheres
que por sua devoção quiserem servir à Mãe de Deus (...)” (sic). 132 Os estatutos e os livros de
matrícula (assento de irmãos) das demais confrarias mineiras vocacionadas à Dormição de Maria
nos permitem assegurar que elas também não foram agremiações exclusivas de mulatos.
(pré-requisitos como raça e status social, por exemplo) e se comprometerem a cumprir os deveres
estipulados nos compromissos. De maneira geral, as obrigações dos confrades eram as seguintes:
pagar a taxa de entrada, manter as anuidades em dia, acompanhar os funerais dos outros filiados,
rezar pelas almas dos irmãos defuntos, zelar pelos bons costumes (leia-se: não ter comportamento
pessoal, cortejos e enterros solenes acompanhados pela irmandade e seu respectivo capelão,
contribuições por impossibilidade material poderiam ser sufragados, mas os inadimplentes por
131
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779), folha 4 verso.
(atualizamos a grafia)
132
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Compromisso (1786), folha 5 verso.
(atualizamos a grafia)
79
para com os seus confrades. Nenhum dos estatutos analisados, especificamente os redigidos entre
1721 e 1822, possuía cláusula que desabonasse (em totalidade) os direitos dos inadimplentes por
motivo de pobreza. O sodalício erigido no Arraial de Catas Altas do Mato Dentro, embora não se
comprometesse a sufragar os irmãos devedores, permitia “por misericórdia” que eles fossem
conduzidos até a sepultura no esquife da associação. 133 O quadro 2 nos informa o valor das taxas
cobradas e o número de missas prometidas pelos grêmios devotados à Dormição de Maria. 134
de São João Del Rei diferenciava-se por exigir de matrícula meia oitava de ouro a mais e a de
Catas Altas porque requeria uma libra de cera. Com relação aos sufrágios, notamos que a
quantidade variou entre 4, 8 e 12, contudo, de acordo com as pesquisas de Marcos Magalhães de
Aguiar, sabemos que estes índices estão dentro da normalidade, pois correspondem ao costume
praticado pelas associações negras e mulatas erigidas em Minas Gerais durante o setecentos e o
confrarias eram independentes entre si. O balanço positivo entre a receita e a despesa
filiados, sepultar e sufragar os irmãos, realizar os Ofícios Divinos, ataviar altares e imagens para
as festividades, etc – como também a construção e ornamentação de capelas próprias. Das nove
As associações mineiras da Boa Morte, assim como as demais dedicadas a outros oragos,
primavam pelas obras pio-caritativas e pela prestação de serviços funerários. 137 A agremiação
135
AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais... op. cit., p. 291-293.
136
A capela de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena foi aberta ao culto (inaugurada) em 25 de março de 1796,
mesmo dia em que se entronizou a imagem da Virgem jacente. Entretanto, não correspondendo às expectativas dos
irmãos, a construção primitiva cedeu lugar a outra edificação em 1816 – data que se encontra esculpida no medalhão
localizado sobre a portada. A capela de Nossa Senhora da Boa Morte de Baependi foi erigida em 1815. Cf. IPHAN,
IBMI, Minas Gerais, Barbacena, Pasta da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena.; IEPHA, Inventário/
2002, caixa 09, Pasta de Baependi. A Irmandade de São João Del Rei – embora nunca tenha concretizado tal intento
– em 1796, contando com mais de 400 irmãos filiados, requereu licença para construir capela própria no termo da
mesma Vila. Cf. APM, AHU, caixa 142, documento 47, código 10877, microfilme 129.
137
Cf. BOSCHI,Caio César. Os Leigos e o Poder... op. cit., p. 150-151.; CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Terceira
Devoção do Setecentos Mineiro: o culto a São Miguel e Almas. 1994. 432 f. Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. p. 29.; AGUIAR,
Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais... op. cit., p. 320-321.
81
capítulo de seu compromisso: “estando algum (irmão) enfermo será visitado pelos oficiais da
Mesa e sendo tão pobre que não tenha com que se puder sustentar a Mesa o socorrerá com suas
esmolas mostrando nisto a verdadeira caridade de irmãos (...)” (sic). No que diz respeito às
terceiro estabelecia:
Serão obrigados os Irmãos desta Irmandade a carregarem o Irmão defunto na tumba até a
sepultura e sendo distância grande se irão revezando conforme a distância do caminho
(...) e serão obrigados cada Irmão a ter sua opa branca e nas procissões e
acompanhamentos irão com ela e com sua vela que também terão para isso com pena de
138
ser riscado o que faltar sendo primeiramente admoestado três vezes. (sic)
Esta nossa Irmandade, falecendo algum Irmão será obrigada, enquanto o corpo estiver
sobre a terra, a assistir-lhe com quatro luzes, depois de amortalhado; e havendo
acompanhamento, esta Irmandade o acompanhará com suas opas, luzes, e cruz, e o
carregará na tumba desta Irmandade e lhe dará sepultura dentro da Igreja, e lhe mandará
dizer doze missas. 139 (sic)
O grêmio de São João Del Rei, no estatuto reformado entre 1785 e 1786, ordenava:
Terá a Irmandade um esquife para conduzir os seus Irmãos que falecerem à sepultura,
mandando dizer a cada um doze missas de sufrágio pela sua alma com um responso no
fim de cada uma (...) e será obrigada a Irmandade acompanhar, e dar sepultura, aos seus
irmãos falecidos, sendo para esse efeito avisados os Irmãos pelo Andador, que também
haverá na Irmandade para o dito enterro, sendo acompanhado pelo Capelão, e os Irmãos
serão obrigados a rezar cada um uma coroa de Nossa Senhora pela Alma do que
falecer. 140 (sic)
(serviços funerários) permaneceram como direito dos irmãos defuntos e dever dos confrades
vivos. Mesmo após as leis de secularização dos cemitérios – que proibiam enterros dentro das
igrejas – as irmandades, ainda que lentamente tenham se adequado às exigências da nova ordem,
138
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731), sexto
capítulo, folha 3; terceiro capítulo, folha 2 verso. (atualizamos a grafia)
139
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779), sexto capítulo.
(atualizamos a grafia)
140
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Compromisso (1786), décimo
segundo capítulo. (atualizamos a grafia)
82
continuaram a zelar pelos ritos de “bem morrer” e pelas exéquias de seus filiados.141 O regimento
de 1822 da agremiação vocacionada à Nossa Senhora da Boa Morte, fundada no arraial de Catas
Confrades, e se algum Irmão Confrade quiser ser conduzido no esquife de outras Irmandades, ou
o queiram seus parentes, contudo sempre será acompanhado do maior número de irmãos (...)”
Esta Irmandade acompanhará gratuitamente a seus Irmãos falecidos; aos cônjuges deles,
e a seus filhos legítimos até vinte e um anos, enquanto estiverem sob o pátrio poder. Aos
que não forem irmãos mas gozarem das regalias supracitadas poderá esta Irmandade
acompanhar dando-se a esmola de oito mil réis. 144 (sic)
A extensão do benefício exequial às esposas e prole dos confrades da Boa Morte não foi uma
irmãos. 145
141
Sobre as leis de secularização dos cemitérios Cf. SILVEIRA, Felipe Augusto de Bernardi. Entre políticas
públicas e tradições: o processo de criação do campo santo na cidade de Diamantina (1846-1915). 2005. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2005. p. 92-155.
142
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas
Altas do Mato Dentro: Compromisso (1822), décimo segundo capítulo. (atualizamos a grafia)
143
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Campanha: Compromisso (1840), décimo terceiro
capítulo. (atualizamos a grafia)
144
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Aiuruoca: Compromisso (1896), nono capítulo.
(atualizamos a grafia.)
145
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Compromisso (1731), quarto
capítulo.
83
Portanto, sob a égide das corporações religiosas de leigos, os devotos sentiam-se seguros,
pois contavam com a tranqüilidade do assistencialismo mútuo que lhes garantia amparo em
importante função pio-social, posto que cuidavam dos vivos e também dos mortos garantido aos
seus filiados auxílio intra e extraterreno. Mesmo que as associações não fossem zelosas no
estas entidades, a sensação de proteção que a política metropolitana não lhes proporcionava. As
características e atividades descritas acima contribuíram para a rápida disseminação e sucesso das
agremiações leigas no território das Minas, onde a formação delas precedeu à instalação do
“Trânsito” da Virgem com pompa e devoção. Todos os anos, na ocasião da festa, realizavam-se
novenas, matinas, missas, procissões e sermões para homenagear a padroeira. A execução anual
146
Sobre a instituição das associações leigas no território das Minas, a segurança do assistencialismo mútuo e a
política metropolitana Cf. BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder... op. cit., p. 1-29. Sobre as admoestações das
Visitas Pastorais Cf. TRINDADE, José da Santíssima; OLIVEIRA, Ronaldo Polito de; LIMA, Jose Arnaldo Coelho
de Aguiar. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825). Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, 1998 446 p. (Mineiriana. Série
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pastorais. VARIA HISTÓRIA. Revista do Depto. de História da UFMG, Belo Horizonte, v. 18, p. 11-28, 1997.
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Cachoeira do Campo: Livro de Receita e Despesa, folhas 25 e 25 verso. Em
25 de setembro de 1753, a irmandade da Cachoeira foi advertida por não registrar as missas celebradas pelos irmãos
defuntos, deixando dúvidas quanto ao cumprimento dos sufrágios.
84
das solenidades era obrigação de compromisso e devia ser cumprida com seriedade e esmero,
afinal, a principal atividade religiosa das associações leigas era a veneração do orago. Em 1779, a
véspera da Festa de Nossa Senhora, havendo-a, caso que não haja Festa, sempre se fará eleição
(...)” (sic). Entretanto, o termo de confirmação deste estatuto, datado de 1781, registrou a
seguinte admoestação: “No Capítulo Segundo se declarará, que em todos os anos haja Festa a
Nossa Senhora, porque só para o fim do seu solene culto, se admite a criação desta Irmandade
distintas. A fórmula do festejo, descrita no estatuto do sodalício de São João Del Rei, prescrevia
que no dia 14 do oitavo mês de cada ano, no altar da irmandade, haveria missa cantada e sermão.
À tarde, os irmãos sairiam em procissão, sendo o esquife, com a imagem da Senhora jacente,
igreja, a mesma Virgem deveria ser depositada, pelos condutores do féretro, no túmulo armado
subseqüente haveria missa cantada e sermão com exposição do Santíssimo Sacramento no Trono
andor com a imagem da Senhora da Assunção, sendo este último conduzido pelos irmãos. 148 A
irmandade de Catas Altas do Mato Dentro comprometeu-se em seguir ritual semelhante, pois,
147
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Guarapiranga: Compromisso (1779), folha 4 verso e folha
9. (a grafia foi atualizada).
148
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Compromisso (1786), décimo
capítulo: Das festividades de Nossa Senhora.
85
apesar de não haver detalhado a liturgia de suas cerimônias, estabeleceu como dever do Capelão
não deixavam de solenizar a festa com pompa e decoro. Os acórdãos do Livro de Posse do
atividades podiam variar de um ano para o outro dependendo da receita disponível, das doações
irmandade da Cachoeira, anualmente, registrava gastos com a compra de cera e incenso para os
provisão para expor o Santíssimo Sacramento. Em 1758 esta associação, alegando decadência,
celebrou na data oficial da festa apenas uma missa rezada em seu altar. Quatro anos depois, em
1763, as comemorações foram solenizadas com missa cantada, coral, sermão e exposição do
Santíssimo. A partir desta época observamos uma estabilização do padrão festivo. 150
“Trânsito” de Maria todo dia 15 de agosto, observamos que, na prática, nem sempre os seus
festejos ocorriam na data estabelecida. O Livro de Posse desta associação possui vários acórdãos,
aprovados pelo Reverendo Vigário, nos quais as Mesas eleitas determinavam dias mais
149
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção unida a Arquiconfraria de São Francisco. Catas
Altas do Mato Dentro: Compromisso (1822), décimo quarto capítulo, sétima obrigação do capelão comissário.
150
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Cachoeira do Campo: Livro de Posse. Sobre as decisões a respeito da
festa da padroeira de 1758 veja folha 39. Após esta data a fonte registra eleições e posse dos oficiais da Mesa e só
volta a mencionar as determinações a cerca da comemoração do “Trânsito da Virgem” em 1763, veja folha 63 verso.
Cf. também, no mesmo arquivo: Livro de Receita e Despesa. Para os gastos com a festa de 1757 veja folha 35; de
1758 veja folha 36 verso; de 1761 veja folha 39; de 1763 veja folha 40. Esta fonte não obedece a uma criteriosa
ordem cronológica. Muitas vezes há recuo de datas, grandes saltos de tempo nos registros, ou faltam relatórios
financeiros de alguns anos. Contudo, observamos que entre 1763 e 1822 o padrão dos festejos permaneceu
equilibrado, pois há registro de gastos com material para as celebrações e pagamento de sacerdotes, de músicos e da
provisão para expor o Santíssimo Sacramento. Veja folhas 40-59.
86
convenientes para se realizar as solenidades. 151 De acordo com a fonte supracitada, entre 1740 e
entre os dias cinco e treze de agosto, ocorria a novena da Senhora da Boa Morte (ANEXO II).
Este evento era oficiado por três padres devidamente paramentados e contava com a participação
Contas desta sociedade religiosa, cujos registros foram feitos entre 1791 e 1809, não deixa
dúvidas quanto à pompa e execução zelosa das homenagens à padroeira. 153 Em geral,
compravam-se anualmente: lenha para a fogueira que era feita na véspera da festa, cera para o
altar e para as tochas da procissão, incenso, atavios para andores, adornos para as imagens,
alfinetes de latão e “foguetes” (barbantes e pólvora). Além destas despesas, a irmandade também
pagava aos sacerdotes que celebravam as cerimônias, aos músicos que tocavam nas solenidades,
151
AEAM, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira do Campo: Livro de Posses, folhas 2-18;
32verso-93verso. Os acórdãos não explicitam o motivo da transferência da data das festividades. Não temos dados
suficientes para saber se as outras irmandades mineiras da Boa Morte também solenizavam a festa da padroeira em
dias diferentes dos que foram estabelecidos nos compromissos, mas ressaltamos que, provavelmente, esta não foi
uma particularidade da agremiação do Arraial da Cachoeira.
152
Segundo a tradição oral, um escravo sineiro chamado Francisco, cuja proprietária Ana Romeira do Sacramento
costumava alugar para as irmandades da cidade, criou no século XVIII um repique de sinos para a Festa da
Irmandade de São João Del Rei. A musicalidade e a singeleza dos badalos, até hoje executados, parecem declarar –
como o povo são-joanense diz – “dão, dem, dão, Senhora é morta num caixão”. (Agradeço ao amigo Aluízio Viegas
a gentileza da informação.).
153
AEDSJDR, Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de São João Del Rei: Livro de Receita e Despesa (1791-
1809) folhas 01-95verso.
87
aos armadores, a provisão para expor o Santíssimo, a confecção de opas novas, a fatura ou
reforma de paramentos e imagens sacras, o feitio de toalhas para o altar, entre outros. Analisando
que esta associação realizava a festa do “Trânsito” da Virgem conforme a liturgia descrita em seu
estatuto, pois há registros detalhados dos pagamentos referentes a todas as atividades que os
festejos envolviam.
difundiu entre a população branca, mestiça, negra, escrava e liberta a importância do “bem
CONSIDERAÇÕES FINAIS
doutrinação dos fiéis e evangelização dos incrédulos, para a difusão do padrão cristão de “bem
viver” e do modelo mariano de “bem morrer”, e para a interiorização dos ensinamentos acerca
réprobos eram condenados ao inferno e os que precisavam expiar pecados veniais, antes de
A boa morte, sinônimo de redenção, estava condicionada a uma vida reta aos olhos de
Deus e da religião ou, em casos extremos, à conversão e arrependimento sincero antes do último
suspiro. Por esta razão, morrer sem deixar testamento, sem tempo para contrição, sem assistência
sacerdotal e sem preces de amigos e parentes era motivo de temor entre os cristãos, pois a
possibilidade de conserto só existia para os vivos. É neste ponto que ressaltamos o papel
doutrina da salvação e a certeza de que os justos gozariam de uma boa morte como a da mãe de
Jesus. O esforço terreno – privação dos prazeres efêmeros, mortificação da carne, expiação dos
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Mariana/MG – e no Arquivo Paroquial de Nossa Senhora da Conceição – Ouro Preto/MG.).
______. Os Últimos Fins do Homem. In: Obras Completas do Padre Manuel Bernardes. São Paulo:
Anchieta, 1946. v. 9. Reprodução fac-similada da edição de 1728. (encontramos exemplar datado de 1728
no Museu do Livro: Biblioteca dos Bispos Marianenses – Mariana/MG)
BLUTEAU, Rafael. Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus,
v. 1 a 4; Lisboa: Officina de Pascoal da Silva. V. 5 a 8, 1712-1721. CD-ROM produzido pela UERJ.
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Rio de Janeiro: Publicações
da Academia Brasileira, 1939. v. 1 e 2.
Retiro Espiritual Para Hum Dia De Cada Mez. Obra muito útil para toda a sorte de pessoas e
principalmente para aquelles que desejam segurar uma boa morte. Traduzido da Língua Francesa. Tomo I.
Oitava Edição mais correta, e exata. Lisboa, na Officina de Antônio Rodrigues... 1818. (microfilmado pela
Casa dos Contos – Ouro Preto/MG. Volume 0091, Rolo/Microfilme 005/0360-0475. O exemplar impresso
encontra-se no Arquivo Paroquial de Nossa Senhora do Pilar – Ouro Preto/MG).
95
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São Paulo:
Companhia das Letras 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta.
Edição fac-similada.
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra: Real
Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. .
VIEIRA, Antônio. Sermões do Padre Antonio Vieira. São Paulo: Anchieta, 1944. v. 1. Reprodução fac-
similada da edição de 1679. (encontramos este exemplar fac-similado no Arquivo da Casa dos Contos –
Ouro Preto/MG.).
FONTES MANUSCRITAS
CC: Volume: 2004, microfilme: 127 (2/7), E5. Livro de assento de irmãos da Irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte de Vila Rica (1721-1765).
AHU, caixa 142, documento 47, código 10877, microfilme 129. Requerimento dos irmãos da Irmandade
de Nossa Senhora da Boa Morte, sita na Igreja Matriz da Vila de São João Del Rei, do Rio das Mortes,
bispado da cidade de Mariana, solicitando licença para construir a sua igreja dentro do território da
mesma Vila.
ANEXO I
Fonte: VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução de Hilário Franco Júnior, São
Paulo: Companhia das Letras 2003. Título original: Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta.
Edição fac-similada. p. 657-681
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ANEXO II
(5 a 13 de agosto)
Fonte: Piedosas e Solenes Tradições de nossa Terra: Novenas, Tríduo, Setenário, Quinqüena e
Meses. São João Del Rei: SEGRAC, 1997, v. 2, p.104-120.
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