As Irmnandades Negras em Goiás
As Irmnandades Negras em Goiás
As Irmnandades Negras em Goiás
GOIÂNIA
2001
11
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
GOIÂNIA
2001
ANTÔNIO
12
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
SUMARIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10
CAPÍTULO I
1. ORIGEM DOS POVOS AFRICANOS E CONTEXTO ESCRAVOCRATA
EM GOIÁS ................................................................................................................ 14
1.1 O Ciclo do Ouro e o Negro, em Goiás, no Século XIX ............................................... 14
1.2 A Cultura e a Religião dos Povos Banto..................................................................... 18
1.3 A Religião Tradicional Africana .................................................................................. 23
1.4 As Irmandades Leigas Católicas ................................................................................ 32
1.4.1 Linhas gerais ........................................................................................................... 32
1.4.2 Suas origens ........................................................................................................... 33
1.4.3 Sua presença em Goiás .......................................................................................... 36
1.4.4 As festas nas irmandades como expressão do lúdico e do religioso ...................... 42
CAPÍTULO II
2 IDENTIDADE E RELIGIÃO COMO RESISTÊNCIA CULTURAL ................................. 48
2.1 Identidade como Elemento Gestado na Cultura......................................................... 49
2.2 Identidade Social como Afirmação do Espírito de Pertença....................................... 51
2.3 Identidade Cultural como Construção da Dignidade .................................................. 54
2.4 Religião como Resgate da Identidade Cultural .......................................................... 56
CAPÍTULO III
3 AS IRMANDADES COMO ESPAÇO DE RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
DOS POVOS NEGROS EM GOIÁS ............................................................................. 70
RESUMO
SOUZA, Antônio Rocha. As Irmandades Católicas dos Negros na Cidade de Goiás no século
XIX. Goiânia, 2001. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Goiás, 2001.
ABSTRACT
SOUZA, Antônio Rocha. The Catholic Fraternal by Negroes in the City of Goiás During the
19th. Goiânia, 2001. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Goiás, 2001.
Our dissertation attempts to investigate the Catholic Fraternal Associations that were founded
by negroes in the city of Goiás (GO), during the 19th.century. We start with the hypothesis
that these institution may have served as space for the reconstruction of the identity of these
african people in Goiás. To arrive at this conclusion, we try to contextualize historically the
origin and the presence of the predominant ethnic groups in Goiás, showing that their cultural
and religious traits are constitutive elements of their identity. We also identify the origens of
these institutions (irmandades) and the elements that were reinterpreted by the negro members
who were associate in them, in the social and religious context of the diaspora in Goiás.
INTRODUÇÃO
da identidade dos povos africanos traficados para esta região. Aqui, na diáspora
goiana, eles eram feitos escravos ou já chegavam nessa condição, quando eram
da fonte de vida de seus mitos, de suas origens. Mas, se isto não era factível de
realização, então que, pelo menos, se pudesse recriar o seu universo simbólico em
habituados a lutarem pela vida, pela dignidade e pela liberdade num esforço
XIX, na Cidade de Goiás. Essas associações de irmãos leigos em Goiás, por terem
uma certa autonomia, podem ter ensejado aos africanos a recriação de seus valores,
20
de suas raízes e mitos por meio dos ritos e festas católicas, numa atitude de
fortalecimento da identidade.
objetivando, com isso, perceber esses aspectos nas Irmandades Negras Católicas,
em Goiás.
Históricos do Brasil Central. Também procuramos nos fundamentar com uma fonte
citada nas referências bibliográficas deste trabalho, que está estruturado em três
capítulos.
traficados para Goiás bem como as suas cultura e religião, que se contrasta com o
cultura, uma tradição. Ainda fazem parte deste capitulo alguns conceitos e o
Goiás, no século XIX. Este capítulo tem a função de servir de suporte para
indissociável dos povos negros, na qual encontram sentido e explicação para a vida
as nossas reflexões, para que não pudéssemos perder de vista nosso objeto de
identidade. Como capítulo norteador de nossa pesquisa, ele carrega, no seu interior,
22
reiteradamente, os conceitos e aspectos da cultura, da religião e da identidade
CAPÍTULO I
GOIÁS
também uma alma, uma cultura, uma religião, sentimentos e tradições que chegando
depois nos córregos da Barra, Ferreiro, Ouro Fino entre outros, o que atraiu
africanos em Goiás.1
povoado, vinham a miséria e a fome, única herança dos negros ali escravizados. O
constituindo, portanto, uma grande mistura de povos africanos2. Citando o Pe. José
Pereira de Maria, Brandão nos traz a informação de que a maioria dos negros que
vieram para Goiás era “mina”.3 Sabe-se que a expedição organizada pelos paulistas
e dirigida pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva o pai trazia, no seu interior,
vários negros da província de São Paulo para Goiás. Em dez anos de exploração
autor aqui citado, Palacin, não define a origem étnica dos negros de Goiás.
O negro foi trazido à força para o Brasil, atendendo aos imperativos das
atividades mercantis, sem nenhuma preocupação com, pelo menos, treiná-lo para
1
PALACIN,L. M.; SANTANNA, M. A. de. História de Goiás. 5 ed. Goiânia: Ed. da UCG, 1986. p. 10.
Cf. MEMÓRIAS Goianas, Goiânia, v. 1, n. 9, p. 154-5, 1998.
2
BRANDÃO, C. R. Peões pretos e congos: trabalho e identidade étnica em Goiás. Brasília: Ed. da
UnB, 1977. p. 109.
3
Id. Ibid., p. 183.
4
PALACIN, L. Goiás: 1722-1822: estrutura e conjuntura. Goiânia: Oriente, 1972. p. 33-4. Cf.
também SantAnna, M. A. de. op cit., p. 10.
25
uma melhor adaptação à nova terra. Os povos africanos vieram para movimentar os
século XVIII. O latifúndio não poupou a mão-de-obra indígena, mas foi em direção à
mão-de-obra escrava africana que ele lançou a sua fúria. As terras da colônia foram
trabalho era sugado até a exaustão. Ao lançarmos a pergunta sobre a origem dos
reafirma a tese do antropólogo Artur Ramos no que tange à origem dos grupos
para Goiás, entre elas as etnias que constituem o povo banto, tais como angolanos,
de Goiás.6
São Paulo, das Minas Gerais, da Bahia e muito pouco de Mato Grosso. Silva busca
amparo na tese do pesquisador Arthur Ramos para afirmar que os negros que
vieram para Goiás, no século XIX, eram bantos, os quais tem como grupo de
5
BAIOCCHI, M. N. Kalunga: povo da terra. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria dos Direitos
Humanos, 1999. p. 29.
6
KARASH, M. Minha Nação: identidades escravas no fim do Brasil colonial:In: ______. Liberdade
por um fio. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
26
linhagem os angolas, congos e moçambicanos. Essa afirmação é referendada ainda
pelo folclore goiano nas literaturas de contos e romances goianos. Citando Zoroastro
Silva conta ainda que o historiador Zoroastro Artiaga era defensor da tese que
Capitania de Goiás veio de São Paulo por volta de 1752. De qualquer forma, essa
predominante dos povos banto, uma vez que as regiões que alimentaram Goiás de
mão-de-obra escrava, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, tinham as
Fortes indícios nos levam a crer numa presença expressiva dos povos
africanos banto em Goiás, uma vez que elementos típicos da cultura religiosa
desses povos africanos bantos chegaram até nós, como o ritual festivo da congada,
em nosso Estado. Estes povos que foram traficados para Goiás possuíam cultura
cultural deles para que possamos visualizar o processo de mudança que sofreram.
Tomaremos como referência principal a religião, uma vez ser esta o elemento
7
SILVA, M. J. da. Sombra dos quilombos. Goiânia: Barão de Itararé, 1974. p. 29-30.
8
Ibid., p. 19. Cf. também RAMOS, A. As culturas negras no Novo Mundo. 4. ed. São Paulo:
Nacional, 1979, p. 179-181.
27
pessoas, um terço da população africana. Por ser um povo tão numeroso, forma um
cultural própria do grupo. A estrutura cultural que permeia, que cimenta, que está por
esforço de adaptação.9
formas de manifestar as idéias e sentimentos de grupo para grupo. Altuna diz que:
9
ALTUNA, R. R. de A. Cultura tradicional Banto. Luanda: da Secretaria Arquidiocesana de Pastoral,
1985. p. 9.
10
Ibid., p. 10.
28
Esse conjunto de valores, essa herança cultural traduzida por princípios,
manancial, o “poço de água viva”, a riqueza humana e moral desses povos. Assim, a
herança cultural é algo intocável para o africano. É isso que motiva os milhões de
própria existência.11
fundamento último dessa cultura. A cultura banto se mostra, dessa forma, pela
religião e esta, por sua vez, revela a cultura desses povos. A religião entra, desse
dinamismo.12
tal forma que o ato de participar da mesma vida e da promoção da união vital
11
Ibid., p. 23.
12
Ibid., p. 11.
13
Ibid., p. 46.
29
A vida é o princípio de tudo que foi criado, é o princípio das comunidades dos
seres e instituiu o princípio de vida. Essa vida é energia, é dinamismo, é a força que
permeia e que está no Universo todo. Isto aparece como algo misterioso, carregado
do místico, mas que pode ser atingível e é real e se concretiza nas ações. Porque
existe uma única corrente vital, há, portanto, uma comunhão universal de todos os
É a união vital que estrutura o Universo como uma teia de forças equilibradas
e que, muitas vezes, os homens podem desequilibrar e ordenar outra vez. É isso
que explica e torna coerente a cultura banto e que fundamenta a existência desses
parte exatamente da idéia da corrente vital, dessa energia idêntica que nasceu do
tradicional.15
que cria unidade entre os seus membros é a idéia de participação que tem, por
vocação, promover a integração dos seres tanto no plano do mundo visível quanto
modo de viver, a união vital que se torna a maior aspiração da cultura banto.16
feiticeiro ou espírita, quebre o equilíbrio com a união vital, desviando-a para fins não
harmoniosos. A civilização banto faz que o homem mergulhe com todo o seu ser nas
14
Ibid., p. 47.
15
Ibid., p. 48.
16
Ibid., p. 50.
30
profundidades da natureza, no interior dos seus antepassados, da comunidade, de
qual vão moldando a sua própria identidade de vida, capaz de promover uma
transmitida por idênticos laços de sangue mas, também, por laços de afinidade,
desde que o indivíduo, que relaciona e interage com o grupo, esteja disposto a
vivos. Cada homem nasce com uma energia, que também mora em outros seres.
porque isto é um dom que deve ser colocado e desenvolvido entre os povos e a
comunidade.
17
Ibid., p. 54.
18
Ibid., p. 55.
31
iniqüidade. Viver é mais que locomover. Viver é ser visualizado com formas
humanas, “com olhos que captam, ouvidos atentos, frescuras, vigor, sensibilidade,
totalidade de vida, e a vida é alegria “porque viver é ser com a vida”. Mas esta está
prolonga nos seus pertences.20 As forças ocultas aterrorizam esses povos, o que os
mas, ao mesmo tempo, comunitária também, uma vez que provém de uma mesma
intensidade. Os anciãos, por sua vez, juntamente com os chefes, são os que
possuem o depósito da vida que pode tanto vivificar como desintegrar os parentes
invocações a Deus feitas pelos africanos, bem como as suas atividades estruturadas
integral supõe ser forte, físico e virtuoso; é possuir a sabedoria, ser estimado. Viver
19
Ibid., p. 55.
20
Ibid., p. 56.
32
com intensidade significa fazer o caminho até os antepassados, tradições herdadas
dos ancestrais.21
sem levar em conta o seu aspecto religioso. Estão misturados, um dentro da outro.
vista o grau de relevância que esta ocupa na vida dos povos da África e sua
brasileiras. O teólogo Edir Soares afirma que, devido às inúmeras crenças negro-
africanas não receberem uma denominação por parte do colonialismo ocidental que
21
Ibid., p. 58.
22
SOARES, E. Encontro e solidariedade: Igreja Católica e religião afro-brasileira no período de
1955 a 1995. São Paulo: Loyola, 2000. p. 87. Cf. também ALTUNA, op. cit., p.369.
23
CEZNE, I. D. de O. A religião tradicional africana: o caso Tsonga. Fragmentos de Cultura,
Goiânia, v. 9, n. 1, p. 8, jan./fev., 1999.
33
Ao abordarmos essa temática, naturalmente indagamos sobre a idéia de
Deus nesta religião. A maioria das religiões africanas acredita num Deus único
Desse modo, a religião africana recorre sempre ao passado para buscar sabedoria e
preocupação no trato da preservação dos valores, das crenças e das práticas pelas
comunidades africanas, uma vez que tudo isto é passado para as gerações
fruto fecundado na cultura dos variados e diferentes grupos étnicos africanos, que se
morais e espirituais são intocáveis, sob pena de tudo se desmoronar, uma vez que a
religião é grande manancial da vida, de cuja fonte todos devem beber, sendo que
o fim dos tempos e a perspectiva do céu não são considerados pelos africanos. O
24
LANGA, A. Questões cristãs: a religião tradicional africana (Moçambique). Braga: Franciscana,
1992. p. 8-9.
25
CEZNE, op. cit., p. 8.
26
SERRA, O. Águas do rei. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 251-6.
34
interesse primordial deles é este mundo. A vida humana é profundamente
Os seres humanos ocupam o centro de toda criação, já que tudo foi feito em
é o maior dom de Deus e dele provém na sua totalidade, de maneira que a vida
para os povos banto, daremos uma atenção maior à religião e cultura desses povos,
de modo que, uma vez conhecida na sua origem, possamos ter elementos para as
onde habita Deus no seu vértice, o detentor da vida e de suas modalidades; também
constituindo o elo que liga Deus aos homens. Depois, surgem os heróis, espécie de
seqüência, vêm os espíritos e gênios que estão encostados nas árvores e objetos
guerreiros.27
invisíveis desenvolve um ritual mágico e regula a vida social pela ética - “Os
iniciação.28
Os banto acreditam na sobrevivência depois da morte, por isso eles tem uma
27
ALTUNA, op. cit., p. 59.
28
Ibid., p. 371.
36
Os povos negros não separam a vida cotidiana do fenômeno e da prática
religiosa. A religião entra no todo da vida desses povos, penetrando nas suas
é por intermédio dela que os grupos buscam respostas para suas indagações. Ao
falar sobre a estrutura da religião dos povos banto, Roger Bastide diz:
No Congo, região povoada pelos povos banto, havia toda uma mitologia
comportando um deus celeste, uma deusa terra ligada às grandes famílias reais.
divindade da vingança, estão cada vez mais presentes na vida e na luta dos povos
africanos.
afirma que os povos banto tinham a idéia de um Deus, de um ser supremo distante e
escondido que não recebia nenhum tipo de culto. Era como o princípio de vida,
29
BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. Tradução de Maria Eloísa Capelato e Olívia
Krohenabuhl. São Paulo: Livraria Pioneira, 1989. p. 85-86.
37
porém muito abstrato e recebia o nome de Olorum pelos loruba. No que se refere
aos cultos, os povos banto se dirigiam aos espíritos dos parentes falecidos. Assim,
espiritualista, que se mostra, sobretudo, nas ações cultuais desses povos, conforme
afirma Hoornaert:
Para entender esse ‘transe’ ou ‘possessão’, tão discriminados entre nós, é preciso
não esquecer que a cultura banto considera que o universo é composto de três
estruturas simultâneas, como se fosse uma construção em três andares. Nós mortais
vivemos no andar intermediário, em cima de nós vivem homens e mulheres iguais a
nós em diversos pontos, mas diferentes no sentido que eles não conhecem a morte
30
nem a diferença entre natureza e cultura.
Estes seres são responsáveis pela chuva, pela luz, pela fecundidade e
vivos. O transe se constitui no elemento que rompe a separação entre esses dois
mundos.
Entendendo que as comunidades banto são governadas por um rei, este tem
uma vez que o conceito de rei é essencialmente sacral. O pesquisador Artur Ramos
afirma que o culto da religião dos banto foi perdendo, ao longo dos tempos e das
30
HOORNAERT, E. A cristandade durante a primeira época colonial. In: História da Igreja no Brasil.
São Paulo: Paulinas, 1992. Tomo II/1. p.84.
38
nas macumbas, alguns desses orixás ainda se conservam, embora um pouco
denominada calunga, cujo sentido primitivo em Angola era o mar. Uma série de
deuses, espíritos bons e maus, que eram cultuados na terra de origem, deixariam de
colocam a favor da vida nos terreiros, nas cabanas, nos altares e na sociedade.32
das plantas e da terra são elementos naturais que nos convidam a integrá-los. A
do corpo, faz-se necessário apontar para o lugar importante dos cantos litúrgicos
31
SCHLESINGER, H. Dicionário enciclopédico das religiões. Petrópolis: Vozes, 1995.V. II. Cf.
também RAMOS, A. As culturas negras..., p. 228; FREYRE, G. Casa grande e senzala. Rio de
Janeiro: Record, 1998. p. 309.
32
SILVA, S. R. de L.. Comunidades em Diálogo na Causa Afro-brasileira. ENCONTRO
INTERECLESIAL, X, 1999, Paulo Afonso. Anais... Paulo Afonso: Fonte viva, 1999. p. 214
39
significativos e universais da religião. Ela constitui um dado de extraordinária
Esta definição nos leva a compreender a festa como espaço propiciador para
mesmo, com a comunidade, com a vida, numa dimensão libertadora. Cada festa
leitores que os negros africanos estavam entrando num país cuja organização
branco-européia.
Apostólica Romana. Aliás, a vida social era promovida pela Igreja. No seu recinto,
religião e a sua vida social, fizeram-no por de uma imposição de um modelo padrão
33
SCHLESINGER, op. cit., p. 654.
40
branco. Os negros eram subjugados político, social, econômico e religiosamente. A
esquema dos brancos, forçados, desse modo, a negarem sua própria cultura.
Mesmo sendo maioria na população da Província de Goiás nos séculos XVIII e XIX,
dificuldades em preservar a sua própria cultura, uma vez que a sociedade não se
para os diferentes grupos sociais.34 Cabe aqui indagarmos sobre a vida social dos
negros em Goiás, uma vez que eles eram considerados elemento servil, portadores
excomungados.36
social na província de Goiás era por meio das atividades promovidas pela Igreja nas
34
PALACIN, L.; MORAES, M. A. S. História de Goiás. 5. ed. Goiânia: Ed. da UCG, 1989. p. 29.
35
GOIÁS. Termos das visitas pastorais, cartas pastorais, provisões, certificados, editais etc. 1734-
1824. p 3, 7, 13.
36
GOIÁS. Termos das visitas pastorais, cartas pastorais, provisões, certificados, editais etc. 1734-
1824. pp 3,7,13.
41
Católicas, que nasceram na Europa, alcançando parte da África e, posteriormente,
recurso.
católicas tanto dedicadas aos brancos como aos negros e ‘pardos’. De modo que se
século XIX.
catolicismo tradicional, afirma que uma das formas de os leigos organizarem sua
37
BOSCHI, C. C.. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986. Cf. também SCARANO, J. Devoção
e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino, no
século XVIII. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1978; HOORNAERT, E. O cristianismo moreno no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1990.
42
participação era nas Confrarias religiosas, que ele define como “…associações
uma certa autonomia pelos leigos, e a outra se refere às Ordens Terceiras que são
entendemos que a palavra ‘confraria’ funciona como uma terminologia geral que se
aplica tanto às Irmandades como às Ordens Terceiras. Mas preferimos optar pela
terminologia ‘Irmandade’, uma vez que esta traduz melhor a idéia de uma
Irmandades.
Irmandades se deu na Baixa Idade Média, por volta do século XIII, motivadas pelo
38
AZZI, R. As Irmandades. In: História da Igreja no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1992. Tomo II/I. p. 234-5.
39
Id.
40
BOSCHI, op. cit., p. 12-4.
43
a unir em torno de associações voluntárias, daí originando uma proliferação de
mortos, assistirem aos doentes, originando daí a instituição das Santas Casas de
Misericórdia.42
Irmandades surgiram na Europa entre os séculos XII e XIII, assumindo uma postura
Riolando Azzi afirma que as Irmandades tiveram seu período de grande florescência
no Brasil na época colonial perdurando a sua força até a época imperial. O caráter
41
Ibid., p. 13.
42
SCHLESINGER, op. cit., p. 654.
43
HOORNAERT, O cristianismo moreno... p. 92.
44
SOARES, J. F. Á. A vivência do divino na tradição de um povo. Petrópolis: Vozes, 1986. p.110.
Cf. também SCARANO, op. cit.
45
CINTRA, R. Candomblé e umbanda: o desafio brasileiro. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 110.
44
Misericórdia, que, desde Portugal, já se definiam como de caráter religioso e
de serem ou associados.46
Rosário, que, desde o século XVI, foi difundida no Brasil, tendo por objetivo
dominicanos para propagar essa devoção entre os negros traficados para o Brasil,
Irmandades no Brasil se deu mesmo, com toda força e expressão, no ciclo do ouro,
nos meados do século XVIII. Como nosso objetivo, nesta pesquisa, é estudar as
46
AZZI, R. A instituição eclesiástica durante a primeira época colonial. In: História da Igreja no
Brasil. São Paulo: Paulinas, 1992. Tomo II/1. p. 234-5.
47
LIVRO de Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz da Senhora
Santanna da Villaboa de Goyaz. Arquivo Fr Simão.
48
HOORNAERT, E. A cristandade durante... p.384.
49
Id.
45
1.4.3 Sua presença em Goiás
coloniais. Eis aqui uma das explicações para o aglomerado de Igrejas e Irmandades
em Minas Gerais.50
do precioso metal.51
Todavia, em Goiás, o Padre Palacin tem duas explicações para este fenômeno:
50
HOORNEART, O cristianismo moreno... p.93.
51
MATTOS, R. J. da C. Chorografia histórica da província de Goyáz. Goiânia: Líder, 1978. p. 97-8.
Cf. MORAES, C. de C. P. A Capitania dos Guayazes em festa: as comemorações pela
convalescência do Rei Dom José I em 1760. Estudos Ibero-Americano. Porto Alegre, v. 25, jun. 1999.
p. 81-92
46
A segunda causa estaria no emprego da riqueza adquirida nas minas pelos
portugueses em construção de Igreja uma vez a morte sem herdeiro seus bens cairia
nas mãos do juízo de órfãos ausentes.52
grande posse de escravos e outros itens pelo seu benfeitor, além de exibir as
associados.
Paróquia de Santana de Vila Boa e, no ano de 1758, sua colação com capelas filiais
da Boa Morte e São Gonçalo; em 1739, com a Capela de Nossa Senhora do Rosário
52
CASTRO, J. L. de. A organização da Igreja Católica na Capitania de Goiás (1726-1824). 1995.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1995. p.177. Cf. PHOL, J. E.
Viagem no interior do Brasil. Tradução de Milton Amado e Eugenio Amado. São Paulo: Itatiaia, 1976.
p. 141.
47
dos Pretos, que foi construída no ano de 1743, com a capela de Nossa Senhora da
Lapa, que foi edificada em 1751, e, por último, com a capela de São Francisco de
Paula, edificada em 1761. Cada uma dessas capelas possuía uma Irmandade que
início no ano de 1736.54 Nos altares laterais, as devoções dirigiam-se a São Miguel e
Irmandade do Senhor dos Bons Passos, nos inícios de 1745.55 No ano de 1792,
mesmo nome.
pela Irmandade da Boa Morte e São Gonçalo Garcia, composta pelos denominados
53
MATTOS, R. J. da C.. Chorografia Histórica da Província de Goyaz, Goiânia, Gráfica Editora
Líder 1978. p. 97,98 . Cf. MORAES, C. de C. P. A Capitania dos Goyazes em festa: as
comemorações pela convalescência do Rei Dom José I em 1760. Estudos Ibero-Americano, Porto
Alegre, v. 25, jun. 1999. p. 81-2.
54
REQUERIMENTO do provedor e irmãos da Confraria do Santíssimo Sacramento de Vila Boa
Capitania de Goiás, à rainha Dona Maria solicitando a confirmação do compromisso da referida
Confraria. Microfilme do Arquivo IPEHBC.
55
A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos foi criada pelo padre espanhol Perestrello e tem
como sede a Igreja São Francisco. Cf. MENDONÇA, B. S. Carneiro. A música em Goiás. Goiânia:
Líder, s/d, p. 176
48
56
Capela de São Francisco em 1782, abandonando o seu antigo lugar na Matriz. As
e ainda porque esta teve início no século XVIII, perpassando quase todo o século
XIX -, decidimos adotá-la como referencial maior, tendo como perspectiva, sempre a
XVIII, afirma que a Irmandade do Rosário teve o seu primeiro termo de compromisso
Mas o referido termo só teve a sua aprovação em 1796 e novamente autorizado sob
56
MATTOS, C. op. cit., p. 97-8. Cf. também MORAES, C. de C. P. A Capitania dos Guayazes em
Festa: as comemorações pela convalescência do rei Dom José I em 1760. Estudos Ibero-
Americanos, Porto Alegre, v. 25, 1999. p. 81-92.
57
REQUERIMENTO da Irmandade de São Benedito, estabelecidos na Igreja da Matriz de Nossa
Senhora do Carmo de Vila Boa, ao príncipe regente D. João, solicitando a confirmação do
compromisso da Irmandade.(doc. Anterior a 18 de junho de 1805). Microfilme do Arquivo IPEHBC.
REQUERIMENTO do juiz e demais irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte dos
Homens Pardos á rainha Dona Maria I solicitando confirmação do compromisso.(doc. Anterior 18 de
janeiro de 1792). Microfilme do Arquivo IPEHBC.
58
A preocupação do poder público para com a manutenção das igrejas inclusive repassando
dinheiro diretamente para as mãos dos tesoureiros dessas associações, demonstra a importância de
tais instituições em Goiás. Cf. Memórias Goianas v. 11, Goiânia, 1999. p. 74, 115.
49
exigido para dar validade a um documento de 24 páginas, chamado de livro de
sendo que dezoito deles eram analfabetos e faziam parte da mesa da Irmandade.
era de uma mesa composta por juiz, escrivão, tesoureiro, procurador, zelador,
associação.
Termo de Compromisso. O escrivão, por sua vez, assumia a guarda dos livros,
irmão e irmã de mesa. As regras da Irmandade exigiam que esses cargos fossem
A presença dos homens brancos nas Irmandades dos negros pode ter duas
a escrita, ou deveria ser uma estratégia de controle da associação dos negros pelos
59
MORAES, c. de C. P. Artigo para colóquio: piedade popular: espiritualidade, representações,
sociabilidades. [S. l.] : [s.d.]. (divulgação restrita). p. 135.
50
dos negros quanto no patrimonial - casas, peças de ouro, prata, bronze e até
associados, todos eram irmãos e tinham por dever servir o santo e a Irmandade. As
eleições eram anuais e deviam eleger os membros da mesa, com o número de doze
irmãos e doze irmãs, mais os cargos de rei, rainha, juiz e juíza. Antes de três anos,
60
Ibid., p.138-9.
61
LIVRO de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Arquivo Fr Simão, Goiás.
Livro de Compromisso de Nossa Senhora das Mercês de Cocalzinho 1788. Arquivo IPEHBC.
62
AZZI, Riolando. op. cit., p. 234-235. Cf. também Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário. Op. Cit Cap. 2 e 3.
51
naturalmente, em Goiás eram as suas festas, que se davam com muito brilho e
ponto, com brancos, ‘pardos’ e negros. De fato, a Igreja Católica era a grande
XIX.63
tanto nas Irmandades dos negros e pardos quanto nas Irmandades dos brancos
Johann Emmuel Phol chegou a noticiar, quando passou por Vila Boa, no século XIX,
que assistiu a uma festa relacionada com a Semana Santa. Era a procissão do
Senhor dos Passos. Nessa procissão, havia uma imagem que representava o
Salvador carregando a sua cruz e, atrás dela, uma grande multidão, com banda de
No outro dia, depois de uma missa cantada, deu-se início à festa e, às cinco horas
63
CURADO, Sebastião Fleury. Memórias Históricas. 1 ed. São Paulo : Impresso nas Oficinas a da
Empresa Gráfica de Revistas dos Tribunais, 1959. p. 127-133
64
PHOL, J. op. cit. p. 143.
52
escravos e libertos. O cortejo era aberto com uma sessão de exercícios de
penitência, ritual cumprido na sua maior parte por mulatos e negros escravos.
Também havia nessa procissão o porta-estandarte com uma bandeira roxa e uma
as mulheres, excluídas de festa pública, iam para o interior da Igreja. Esta festa era
Os mulatos, entretanto, faziam uma outra festa oito dias depois, obedecendo
Passos, entraria Nossa Senhora das Dores. No lugar dos anjos brancos, desfilavam
dos Pardos das Dores de Nossa Senhora. A imagem era vestida de Mãe de Deus e
portava uma espada no peito. Os negros esforçavam-se para superar a festa dos
brancos.65
65
POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Tradução de Milton Amado e Eugênio Amado. São
Paulo: Itatiaia, 1976. p.144-5. Cf. também MENDONÇA. op cit. p. 175.
66
Ibid., p.142.
53
Tanto nas festas dos brancos quanto nas festas dos negros havia uma
ostentação do luxo. Era uma boa ocasião para as mulheres saírem de casa aos
participantes atingia 1.500 pessoas. Isto mostra para nós como era a vida social em
escravos para a catequese católica e para as festas e missas dominicais e dos dias
santos. Estes deveriam ser batizados e ungidos na hora da morte pelo padre, vigário
nos quadros da Igreja Católica, a ponto de dom José, por intermédio do seu
visitador, Pe. João de Almeida Cardoso, sob o pretexto de zelar pela situação moral
assistência de um padre.69
67
MATTOS, R. J. da C. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas províncias de Minas
Gerais e Goiaz. Rio de Janeiro: Imperial e Constitucional de J. Villencuve, 1986. p.139, 155. V. I, II.
68
GOIÁS. Termos das visitas pastorais... op. cit.
69
SILVA, J. T. da F. Lugares e pessoas: subsídios eclesiásticos para a história de Goiás. São
Paulo: Salesianos, 1948. p.87. V. I.
54
misturarem com mulheres no interior da Igreja e também as festas que se
destoassem do rígido modelo católico. Então, a Igreja incentivava cada vez mais a
participando dessas festas, por ‘incentivo’ de seus senhores, ora por imposição das
figuras eclesiásticas, ora até mesmo por uma motivação pessoal ou grupal no
por meio das inúmeras advertências e proibições feitas pelos bispos por cartas
Dom Frei Antonio do Desterro, Bispo do Rio de Janeiro, escreveu uma carta
caírem no baile, nos saraus, nos batuques e outros divertimentos que não
“condiziam” com os louvores a Deus e sua mãe, Maria Santíssima. Para esta festa
convergia muita gente, porém, para as autoridades, isso era uma provocação, um
de qualquer santo com novenas à noite, leilões, vozes altas no interior da igreja em
70
Ibid., p. 151.A importância da religião cristã católica era tão grande em Goiás que figurava até nos
relatórios apresentados a Assembléia Legislativa Provincial de Goyaz. Cf. Memórias Goianas, v. 11,
p. 115-6, 1999; Memórias Goianas, v. 4 Goiânia, p. 45, 46, 64, 1996.
71
GOIÁS. Termos das visitas pastorais,...op. cit.
72
Ibid., p. 151.
55
frente ao santo, iguarias, flores, frutas, animais ou outras coisas recebidas por
esmolas e que, por conta disto, os negros toquem instrumentos e dancem dentro da
igreja. Para o bispo isso seria uma atitude irreverente e indecente diante de Deus e
do templo.
participação muito forte de grupos negros num espaço católico, em que os traços da
responsável pelo rebanho de Vila Boa, continuava sua exortação afirmando que a
Igreja era um lugar de oração e devoção onde se cantava a Santa Missa, a sua
Santa Palavra. Portanto, deveria afastar aquele abuso, como Jesus fez com os
templos católicos, em 1780 o bispo do Rio de Janeiro enviou outra proibição aos fiéis
que estavam prestando homenagem aos santos em casa ou nas suas residências. A
suspeita seria de que esses estariam ornamentando os altares com cera, chamando
73
Ibid., p. 65.
56
divertimentos. O bispo fazia esta advertência convocando o padre a ir procurar os
vida deles e como elemento formador de sua identidade, cremos que é importante
74
Ibid., p. 85.
57
CAPÍTULO II
Este capítulo é muito importante para nós, porque nos traz as idéias-eixo do
antiga Vila Boa, no século XIX, com base nas Irmandades negras católicas. Uma vez
que a religião é algo inseparável dos povos negros, que permeia toda a sua cultura e
biológico, gestado pelo próprio processo colonial, de modo que tal realidade - que
Essa questão serve para nos direcionar acerca do que se compreende por
Carlos Rodrigues Brandão afirma que a palavra identidade é muito antiga e foi
conceitos são de maior uso dos filósofos e psicólogos do que dos cientistas sociais.
Sociólogos e psicólogos sociais usam esta palavra mais associada à etnia para criar
75
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia. São Paulo : Brasiliense, 1986. p.33.
59
As representações controladas e marcadas com outras acabaram gestando
reflexo d’aquela.
debates sobre a questão da identidade, uma vez que a identidade não correspondia
76
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo : Pioneira. 1978, p.5.
60
77
a nenhuma realidade mas a algo apenas ‘virtual’. Não há um conceito matemático
exato sobre uma identidade relativa aos homens, uma vez que estes exibem
apenas no nível do discurso, utilizando recurso para referir a nós num tom coletivo,
algo forjado com base em elementos históricos e culturais e é invocada sempre que
tem necessidade de mostrar que ele é e tem o direito de ser diferente e, portanto, de
ideologia, mas deve-se somar a isso a regularidade dos padrões de conduta, que
comportamentos atualizados quando interage com outros grupos nos quais os seus
valores culturais são postos à prova. Esta situação faz brotar a consciência de se
77
NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogo de espelhos. São Paulo : Edusp, 1993. p.24.
61
pertencer a um determinado grupo social e a sua cultura, construindo aí a sua
identidade.
Brandão entende que a identidade social ou, como ele mesmo chama, “uma
de suas variantes, a identidade étnica, não são coisas dadas, mas constituem algo
como um trabalho simbólico “na” e “com” a sua cultura.78 É a cultura que nos leva
Laraia afirma que o conceito de cultura, da forma como é utilizado hoje, foi
definido pela primeira vez por Edward Tylor, da seguinte maneira: ”[…] tomado em
seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos,
é um aprendizado, e não uma aquisição inata advinda por vias biológicas. Para
biológico.80
78
BRANDÃO, Identidade e... p.110.
79
LARAIA, Roque de Barros. Cultura : um conceito antropológico. 11. ed. Rio de Janeiro : J. Zahar,
1997. p.25.
80
Ibid., p.28-29.
62
O conceito de cultura é algo que só existe a partir da constatação de que o
‘nós’ é diferente dos outros, diria Gilberto Velho. Os homens participam de uma rede
construção social da realidade que se dão no tempo e no espaço. É isto que nos
possibilita distinguir a cultura das etnias indígenas da cultura das etnias negras. A
culturas.
sobre a reconstrução da identidade dos povos africanos em Goiás. A nosso ver, não
indagação formulada anteriormente tem por objetivo dar um peso maior para esse
binômio identidade e cultura. Uma identidade cultural que me faz tomar consciência
fatores língua, leis, regras e mitos, que, articulados, dão ao grupo uma identidade. A
singularização do grupo, o que lhe é próprio. Muniz nos chama atenção indicando o
fato de que não é possível absolutizar as identidades nem no plano individual nem
se vê ameaçado de perdê-la.
aspecto cultural nos diversos grupos étnicos que povoam o nosso mundo. A cultura
é algo próprio do ser humano, que atravessa toda sua vida e ‘na qual’ e ‘pela qual’
ele atribui sentido às coisas, a si mesmo e ao mundo. A cultura congrega tudo aquilo
modo que ela é de fato elemento sem o qual não se constrói identidade, nem
diferença porque são capazes de exibir seus símbolos, suas imagens e suas
81
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros : identidade, povo e mídia no Brasil. 2. ed. Petrópolis : Vozes,
1999. p. 46-48.
64
identidade étnica parece estar na idéia de contraste, porque constitui uma auto-
de cultura como o resultado de tudo o que o ser humano faz, quer como indivíduo,
quer como coletividade. Algo, portanto, que gera um significado para o agente e que
é comunicado aos outros. Por ela, as coisas da natureza são narradas porque a
cultura carrega a marca do ser humano. Assim, a origem da cultura e da religião está
oferecer maior resistência ao mundo hostil e exterior, uma vez que estas
82
NOVAES, op. cit., p.45.
83
BRANDÃO, op. cit., 1988. p.145.
65
A inserção de uma abordagem sobre este tema neste capítulo tem um sentido
todo especial, uma vez que a elaboração ou mesmo a concepção do que é religião
como fenômeno e de que ela pode contribuir para resguardar uma memória e
manter a identidade de um povo constitui uma das idéias-eixo para o nosso trabalho.
detectado pelos seus vestígios, no tempo e na história, por meio das culturas, pode
ser chamado de religião, que pode também ser entendida como a busca da
socialmente visível da teia de relações dos homens entre si e dos homens com Deus
é o que pode ser denominado de religião. Também pode ser compreendida como
sistematizados, escrito ou oral. É provável que não haja nenhum povo sem religião.
84
Cf. SCHLESINGER, op. cit., p. 75.
66
Raimundo Cintra indica dois aspectos que devem ser levados em conta no
diversas religiões com a cultura de seus povos. Se não podemos dissociar o homem
de sua história se identificar quase por completo com a própria religião. A religião era
povos e culturas diversas, o povo vencedor sempre tentaria tirar do vencido a sua
religião para, depois, deixar-se dominar pelos valores mais significativos e fortes dos
oprimidos, de tal forma que, depois de uma certa tolerância, esses povos
homem, possibilitado pela infusão de seus ritos centrados no interior da realidade. Além
disso, estabelece uma relação íntima entre a prática religiosa e a solidariedade social.
85
CINTRA, op. cit., p. 527.
67
Essa atividade humana cria uma ordem sagrada de dimensão universal, uma presença
eterna do sagrado diante do caos. Qualquer sociedade humana mantém, portanto, laços
(1) Um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes
duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral (4) vestindo essas concepções com tal
aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente
realistas”.87
aqui, no que tange aos padrões culturais ou complexos de símbolos é que estes
86
BERGER, P. L. O dossel sagrado. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1985. Com ênfase para os
capítulos I e II.
87
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. p. 105.
88
Ibid., p. 106. Nas palavras do autor: “Eu quero dizer apenas que como os genes – eles fornecem
um diagrama ou gabarito em termos do qual se podem dar forma definida a processos externos a
eles mesmos”.
68
se inter-relacionam, modelando uma teia de informações entre as entidades nos
executar certas atividades e atos, mas não existe apenas uma espécie de motivação
circunstâncias, sem responder a qualquer fim. Isto quer dizer que as motivações
ganham significações quanto aos fins para os quais foram concebidas e conduzidas,
se for ajudada pelos padrões culturais. O homem é dependente dos símbolos ou dos
criatura. Se, por um lado, a religião ampara o poder dos nossos recursos simbólicos
a criação de idéias analíticas, por outro, ela obriga os nossos percursos simbólicos
a compreendê-lo.
qual pode ser descoberta em algum ponto do mundo no qual se desenvolve um culto
para algo que exerce domínio sobre os fiéis. A autoridade ao invés de ser cultuada é
respeitada e acolhida, de forma que, nas religiões tribais, a autoridade está na força
estão por baixo de uma perspectiva religiosa é o mesmo em qualquer lugar, porque
esquema de Geertz, que coloca a perspectiva religiosa como pano de fundo de três
perspectiva estética prima-se por insistir nas aparências, na absorção das coisas.
secular”.90
Geertz quer nos mostrar que a essência da ação religiosa, numa perspectiva
89
Ibid., p. 127.
90
Ibid., p. 128.
71
causadas ou originadas pelos símbolos sagrados nos homens e, daí, as formulações
Há um dado que deve ser levado muito em conta no ritual. Nele, o mundo
formas simbólicas num mundo único. Todavia, são os rituais mais elaborados e de
de símbolos, uma visão de mundo, uma imagem da ordem cósmica. Os homens não
vivem o tempo todo nesse mundo formulado pelos símbolos religiosos, contudo, boa
parte permanece nele por alguns momentos. Mas o mundo em que estamos
cotidiano, repleto de objetos do senso comum, dos muitos atos praticados pelos
colorido às concepções individuais que cada pessoa tem do mundo entendido como
ritual envolvendo totalmente a pessoa acaba por transportá-la para uma outra
tempo, diferentes do mundo, de si mesmo e das relações entre elas. Mas, também,
consiste em gerar disposições mentais e enraizadas. Isto quer dizer que a religião
cria modelos de atitude e também para atitude. Essas funções culturais são, por
91
Ibid., p. 135.
73
segundo estágio consistiria, portanto, no relacionamento de tais sistemas com os
enfrentar aqueles aspectos da vida social e psicológica nos quais, de fato, a religião
Neste momento, o leitor pode estar indagando sobre o papel do corpo e sua
importância na Religião. Pois bem, é o corpo que faz cultura, que desenvolve os
cultura africana por isso, devemos trazer aqui algumas reflexões sobre o rito e o
corpo como resistência cultural. Para uma melhor compreensão do caminho que
religião.
símbolos e este é a menor unidade do rito. Uma vez que o simbolismo traz consigo
algo que poderia ser denominado de comunicação, os ritos podem ser entendidos,
nesta visão, como algo que comunica sentido através dos símbolos. Todavia, o
símbolo não é relevante como traço característico do rito, mas pode ser como o de
imprimir uma certa fixidez, e esta se dá por meio do signo da repetição do passado
92
Conteúdo de uma crítica que Geertz faz aos trabalhos de antropologia social contemporânea. Ver
GEERTZ, op. cit., p. 142.
74
administrar a sua própria identidade bem como articular ou negociar possíveis
transições.93
que faz do controle e utilização de seus membros, como: sorrir, sentar, frangir o
rosto, assoviar, falar, vai-se formando e forjando a sua própria identidade e de seu
grupo familiar e, até mesmo, a de sua comunidade maior. Buckland diz entre
diversos povos da África que as mudanças de status são marcadas no corpo com
uma navalha. Essas marcas, as linhas e outros sinais trazidos no corpo são
individual.94
93
BUCKLAND, S. Rito, corpo e memória cultural. Concilium, Petrópolis, n. 1259. p. 74, 1983.
94
Ibid., p.76.
95
Ibid., p.78.
75
Desse modo, as capacidades das práticas corporais de se tornarem memórias
mudanças que ocorrem nas relações de âmbito social, político e religioso acabam
por marcar tanto o corpo como as suas práticas. É por isso que um iniciado numa
hábitos alimentares, a sua indumentária e até a sua saúde, como no caso do grupo
evidenciam uma certa fixidez e êxtase para restringir ou controlar a mudança por
tudo deve ser feito como sempre o foi. As crianças aprendem tudo isso desde
rito como ‘memória cultural’. Essa memória conserva e mantém a identidade pela
vez que o passado não está imune às contestações, quando se observa que a
espaço para se negociar e inovar o rito ao longo do tempo. Uma cerimônia pode,
ganha significado e criatividade. Isto se verifica nos ritos criados para inaugurar um
A repetição não é uma mesmice, mas um novo começo, um ato novo inserido
num tempo igualmente novo disfarçado no mesmo. Mesmo que não haja mudanças
nas marcas, nas linhas e nos movimentos desenvolvidos pelo corpo. O fato de os
96
Ibid, p.79.
77
ritos possibilitarem a repetição do passado faculta à comunidade a manutenção da
Buckland mostra que o rito religioso, por exemplo, pode servir como redutor da
não pode ser interpretado como controle autoritário. Entretanto, a identidade pode
que não pode é a identidade deixar de ser administrada ao longo da mudança, sob
expressões dos ritos com certa profundidade e intensidade numa certa unidade e
coerência.97 O rito faz viver uma situação atual voltada para as origens que
passagem e iniciação.
religião e identidade constituem um tripé quase que indissociável, visto que a pessoa
humana não escapa dessa dinâmica, dessa realidade modeladora ou forjadora das
97
Ibid., p. 81-82.
78
nitidamente o poder quase que determinante da cultura e, sobretudo, da religião na
vida destes. Daí, a importância desses dois elementos articulados nos grupos
Sendo o corpo o único depósito da fé, dos orixás, da lembrança, das tradições, do
sistema escravocrata branco - ele foi o grande responsável pela conservação dos
Brasil. É sobre essa possibilidade de reconstrução de uma tal identidade que, neste
CAPÍTULO III
nosso estudo, da identidade dos povos africanos traficados para a cidade de Goiás,
origem, cultura e religião dos povos africanos traficados para Goiás. Com esta
importantes e protegidos tanto pelo poder civil como pelo poder eclesiástico e divino.
solidariedade, irmanada pelo santo protetor.98 Nas ruas, faziam ouvir o seu grito de
fé, de alegria, desfilando com as suas velas e rosários ao som dos instrumentos
musicais e com fogos de artifício, dando viva aos santos, aos festeiros e aos foliões.
se comportar, viver, relacionar, gastar, trabalhar. Era ela que, por outro lado, dosava,
Enfim, a vida social era forjada, estimulada, mas, outrossim, vigiada pela religião.
Mas era lá, no interior da casa de Deus, conversando com o santo, rogando-lhe as
98
LIVRO de Compromisso de Nossa Senhora do Rosário. op. cit. Cf. Livro de Compromisso da
Irmandade de Nossa Senhora das Mercês do Cocalzinho, 1788. Arquivo IPHEBC.
81
Filiar-se a uma Irmandade era, na verdade, encontrar espaços para construir
a identidade. Ter identidade era ser reconhecido, ser respeitado, ganhar força e
dignidade; era ter uma família maior para ter com quem contar, ganhar status de
tinha como imperativo dedicar uma assistência religiosa total aos irmãos, sob pena
um mortal fiel era a certeza de que receberia várias missas pelo sufrágio de sua
chefes da Igreja ou, simplesmente, por uma iniciativa individual e/ou grupal. Nós
em Goiás, fizessem das Irmandades um nicho, um anteparo para que, sob o véu do
culto cristão ocidental, os orixás fossem cultuados, festejados e evocados por eles.
Foi só dessa forma, sem repressão da polícia, sem excomunhão da Igreja e com
permissão de seus senhores, que os negros puderam se reunir para prestar culto
99
Idem
100
GOIÁS. Termos de visitas... op. cit.
82
aos seus ancestrais e orixás, representados nos santos católicos. Assim, o templo
espaço no interior das Igrejas e dessas Irmandades. A Igreja queria, com isso,
sua fé nos orixás, as suas tradições simbólicas, enfim, a sua cultura; isto porque, o
que era sagrado para os africanos era profano para as autoridades eclesiásticas.
sagrado pela exaltação ao santo padroeiro, pelas rezas do terço, novenas e missas
que forma esses irmãos africanos poderiam se desvencilhar dessa camisa de força?
Como seria possível manter seus valores religiosos e culturais, uma vez que a
Moraes diz que, nas festas da colônia, no nosso caso em Vila Boa de Goiás, o
aquele que era diferente do cidadão europeu civilizado. A festa, desse modo,
101
SILVA, J. M. da. Racismo à brasileira: raízes históricas. 3. ed. São Paulo: Anita, 1995. Conforme
o relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial de Goiaz em 1856, a Igreja de Santa
Bárbara serviu como abrigo aos escravos foragidos e desertores. Cf. Memórias Goianas, v. 7.
Goiânia: Ed. da UCG, 1997. p. 21
83
passava a ser uma resistência simbólica ao modelo ditado pela ideologia do branco
colonialista.102
inferiores nos templos católicos. A estrutura familiar patriarcal fez que não houvesse
igualdade na prática cristã entre os brancos e negros. Por mais que os negros se
Bastide.103
intensificação dos cultos e festejos dos santos católicos que, no entender dos
das diferenças que se torna perceptível o jogo de articulação entre poder e cultura,
para que se chegue a reconstrução da identidade, pelas trilhas da cultura, uma vez
diferença.104
facilitando, de certo modo, o reforço dos laços de solidariedade das etnias africanas
102
MORAES, A capitania dos Guayazes... p.90. CURADO, op. cit. p. 133, também menciona as
festas das Taieiras, do Boi, do Vilão e das Congadas.
103
BASTIDE, As religiões africanas... p. 162. Cf. PHOL, J. op. cit.
104
NOVAES, op. cit. p. 24.
84
desespiritualizando o santo, humanizando-o, tornando-o parecido sobre todos os
a doutrina católica.
recitação do terço em família, nas casas, arraiais, fazendas e vilas, todos os dias.
Nas ruas, portanto, era proibido levantar altares e oratórios, bem como festas com
eclesiásticos a certos tipos de festas e festejos tem por objetivo, desse modo,
evidenciar elementos de uma outra cultura que vem à tona, evidentemente, pelo
O Frei Michel Laurent Berthet, na sua viagem pelo interior do Brasil, informava
aos seus patrícios franceses que a grande devoção dos brasileiros era a festa do
profanas que entusiasmavam o povo, “nestas festas a parte do diabo é maior que a
de Deus”.
105
BASTIDE, As religiões africanas...
106
Ibid., p. 98.
85
A festa tinha como personagem principal o ‘Imperador Divino’, que participava
Santa Missa. Mas, tudo isso era precedido da Folia do Divino, que fazia
nos campos e nas cidades devia cobrir os gastos com comida, bebida,
ornamentações, músicos e o padre. Além do giro dos foliões pela região, havia
também uma animada novena feita pelos devotos do Divino. Terminada a novena,
ao Espírito Santo “doces e flores”. Vale informar ao leitor que essa festa era
Outra devoção muito popular, e que estava na alma do brasileiro, pela sua
grande importância, era a festa de Nossa Senhora do Rosário. Berthet observou que
poucas pessoas viviam sem o rosário em suas mãos ou no pescoço. Também eram
intituladas Rosário dos Pretos, porque eram os negros, escravos ou livres, que
cuidavam dessas igrejas, que, geralmente, possuíam alguma riqueza. Cabia aos
Segundo Berthet, São Bento (ou Benedito) era negro da ordem franciscana.
Nos dias que precedem as festas, os negros se excitam de alegria. No dia da festa,
107
Cf. BERTHET, M. L. Uma Viagem de missões pelo Interior do Brasil. Memórias goianas, v. 1.
Goiânia: Ed. da UCG, 1982. p.148-150.
108
Ibid., p. 150-1.
86
festas um espaço que seria o lugar do senhor ou do patrão. Há, na festa do Rosário,
Na véspera, vêem-se passar pelas ruas, mulas carregadas demais que vêm parar
frente à igreja do Rosário. São as bagagens da Imperatriz. Pouco depois, a Imperatriz
com as damas de honra, pobres escravas mais bem vestidas do que suas patroas.
Todas vêm a cavalo. Apeiam frente à Igreja, simulam rezar, depois montam de novo
e conduzem a Imperatriz até sua casa. À noite há plantação dos mastros. Quando a
multidão desaparece, os negros e as velhas negras executam cantos e danças pouco
convenientes ao pé do mastro.109
Depois de ter passado uma noite festiva, com muitas músicas e samba, o
uma peça teatral cujos atores se vestem de cacique, põem chapéu de pena, espelho
celebrar a festa do Rosário dos Brancos após a festa dos negros. Aproveitam,
dominicano francês é de que essas igrejas, em 1883, estavam tão pobres quanto as
109
Ibid., p. 151.
110
Id.
87
profundamente negativa. Para ele, esta era uma religião supersticiosa, e o povo,
motivos pelos quais visitadores, enviados pelos bispos do Rio de Janeiro, traziam
Igreja Católica.
mobilização uma vez que abrigavam muitos membros associados nos seus quadros,
defesa dos bispos Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, da Igreja de Olinda, e
Dom Antônio de Macedo Costa, da Igreja do Grão Pará, acusando, por outro lado as
Irmandades de que elas estavam sem vida espiritual e sem Cristo no coração de
111
LIVRO de Compromisso da Irmandade Nossa Senhora do Rozário da Cidade de Goiaz. Op. cit.
88
Irmandades foram maçonizadas, fugindo do real objetivo da Igreja e da sua missão
original.112
Estado português em cima da Igreja, que era tutelada pela coroa, e da colônia.
juntos.
fazer a sua própria festa dentro da festa. Na religião popular, bem como na tradição,
sobre a população de Vila Boa, constituía espaço de alegria e felicidade, mesmo que
celebração.113
se adaptaram bem à sociedade colonial, por conta das tradições culturais dos povos
indígenas e africanos.
112
SILVA, op. cit., p. 241.
113
MORAES, A Capitania dos Guayazes... op. cit. p. 81-92.
89
A maioria das festas promovidas em Vila Boa estava ligada diretamente ao
calendário litúrgico da Igreja Católica, e era menos uma questão de Estado. Tanto as
Brasil e, de maneira particular, para Goiás, aqui chegaram com as suas tradições
culturais, valores e religião. Eles vieram com uma identidade cultural forjada há
vivências de um grupo étnico social que tem a sua maneira própria de viver e
interpretar o mundo. A relação desses povos com seus antepassados tem o sentido
origem, que está a força, a energia. Lá estão os ancestrais, que se unem, em todo
momento, à comunidade.115
114
Ibid., p. 82-5. Cf. PHOL, op. cit. p. 143.
115
CEZNE, op cit., p. 8.
90
costumes da religião cristã. Essa herança cultural é algo intocável, é fonte de vida
para as diversas etnias africanas. Essas raízes sagradas são alimentadoras dos
povos africanos e garantem a existência de sua cultura. É por essa razão que esses
ponto do viajante francês Saint Hilaire dizer que havia um relaxamento dos costumes
cristãos.116
A pressão racista dos brancos da Cidade de Goiás criava o desejo dos negros
se fazerem parecidos com eles para, assim, serem reconhecidos como gente. Isso
116
SAINT HILARIE, op. cit. apud BUENO, F. de M. S. História dos rituais religiosos na Cidade de
Goiás: quaresma e semana santa. Goiânia, 1997. Monografia - Departamento de História e Geografia
e Ciências Sociais da Universidade Católica de Goiás, 1997. p. 20.
91
seus valores culturais, fingindo aceitar, na sua totalidade, os ritos e os dogmas
cristãos. Porém, aos ritos, festas e celebrações cristãs foram incorporados símbolos
com o calendário das festas das religiões africanas. Então, ficaria fácil celebrar
sendo enegrecidos com a participação, cada vez maior, dos povos negros,
atualização. Ela vem totalmente nova, refeita, resignificada, porque é evocada num
pelo contrário, muitos grupos unidos entre si podem imprimir a sua marca sobre o
em pleno século XXI, podemos visualizar traços culturais tipicamente africanos nas
117
SERRA, O. Águas do Rei...op. cit. p. 213-7.
118
HALBWCHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 70.
92
Esse comportamento, evidentemente, fora distanciando os negros, cada vez
branco. As suas religiões tribais iam funcionando numa unidade de culto, facultando,
desses povos no seu interior de modo a favorecer essa partilha e junção dos valores
simbólica e quase que indecifrável pelos senhores brancos. Sem muitas palavras,
mas com o uso da linguagem corporal. Esses negros entendiam bem a linguagem
atabaque, tal qual ocorre nos cultos ritualísticos do candomblé ou outros cultos-afro,
onde o corpo e a dança falam mais que mil palavras, porque falam pelos símbolos,
pelo coração, pelo sensório, e não pela razão. Por isso, o racionalismo ocidental não
119
Segundo estudos de Martiniano o isolamento geográfico em Goiás não possibilitou essa
proliferação de religiões afro-brasileiras. Cf. SILVA, Sombra dos... p. 197.
120
UZUKWU, E. Corpo e memória na liturgia africana. Concilium, n. 259, Petrópolis, p. 92-101,
1995.
93
Dessa ressignificação dos espaços, para fazer deitar no chão dessa nova
realidade a sua identidade, tira a seguinte conclusão o Austríaco Phol: “Os negros
Essa declaração de Phol confirma que, de fato, houve uma persistência dos
não seria possível uma preservação cultural sem uma ressignificação dos espaços e
preciso sincretizar para sobreviver. Renato Ortiz diz que “A ênfase na autenticidade
pólo de dominação”.122
recuperado para ordenar, ou reordenar, a história dos africanos e sua vida social em
Goiás.124
121
PHOL, J. op. cit., p. 125.
122
ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 56.
123
Ibid., p. 107.
124
Ibid., p. 135. A insistência das autoridades eclesiásticas em proibir certas manifestações
ritualísticas dos negros nos cultos católicos, em Goiás, nos dá uma idéia de como o negro ia dando
uma coloração africana às celebrações católicas. Cf. GOIÁS. Termos de visitas... op. cit.
94
Mesmo abstrata e sem existência real, como afirmava Levi-Strauss no final de
cultural era, de fato, o que unia os africanos escravizados aqui em Goiás. Ela os
Cultural
influência religiosa, uma vez que esta era patrocinada pelo poder político. Por outro
lado, participar da religião era uma necessidade para se escapar da exclusão social
fazendo distinção entre ‘raças’ e categorias. Sendo verdade que negros e brancos
encontravam a sua maneira própria de tratar o sagrado, mesmo nos espaços e ritos
católicos.
destino, a vida do povo africano, da tribo, do clã e da família. De forma que a religião
lança raízes profundas na ‘alma’ africana de, modo a acompanhá-la, quer nas
125
Ibid., p. 137. MATTOS, R. J. da C. op. cit. 93-95, afirma que no gênero de dança a paixão
favorita das mulheres ordinárias era o lundu. O mesmo autor menciona também a crença em feitiçaria
e o hábito de fumar em cachimbo na Província de Goiás. Sabemos que estes elementos são típicos
da cultura africana.
95
grandes emigrações ou nos êxodos forçados da escravidão, alimentando-os, na
esperança, com seus símbolos e orixás, fonte d’onde emana energia e força. Assim,
a religião vai contribuindo para a resistência cultural, uma vez que religião e cultura
vital importância para as inúmeras etnias do Continente negro. Esses valores, sobre
religião dos banto, no início deste trabalho, mas é importante lembrar ao leitor que
eles consistem no conjunto de idéias, ritos, atributos e mitos, bem como nas
A exteriorização do sagrado se mostra pela religião, que por sua vez, faz a
revelação dos aspectos culturais. Daí que esta religião transportada e mantida no
corpo desses povos africanos, mostra-se com toda força nos momentos em que
as diversas etnias africanas. Clifford Geertz definiu cultura como “um padrão de
126
GEERTZ, op. cit., p. 103.
96
Pois bem, como a religião e a cultura africana são indissociáveis, e tendo
desses povos, cabe à religião, portanto, a função de, num contexto diferente, trazer
que foi herdado dos antepassados. A identidade serve para marcar a diferença
diante do outro. O modo de ser do outro e a sua visão de mundo foram construídos
em um outro espaço, numa outra experiência. Daí que a minha identidade cultural
segundo capítulo. A religião é mesmo esse sistema de símbolos que atua no grupo
e, por isso, diferente. Essa diferença o torna reconhecido coletivamente pelos seus
símbolos, que são anunciadores de sua diferença étnica ou cultural. Esse grupo
deve ser capaz de atribuir a si próprio e fazer com que os outros percebam em si
127
A organização das Irmandades negras e a participação dos negros como irmãos associados nos
seus quadros, nos dá uma idéia da importância desses espaços na Cidade de Goiás e em toda a
Província. Cf. LIVRO de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. op. cit. LIVRO
de Compromisso da irmandade de Nossa Senhora das Mercês de Cocalzinho. op. cit.
128
Ibid., p. 104.
97
constitui esforço e sucesso da transmissão dos princípios de orientação de conduta
social para os seus participantes, a fim de que todos sejam impregnados por valores
manter vivos alguns traços de sua identidade cultural, os seus referenciais, os seus
antepassados, a sua memória e as suas raízes históricas, mesmo que diluídas. Se,
para alguns homens, como dizia Geertz, a religião pode ser usada ou utilizada
ancestrais que, embora, modificado na sua originalidade, ausente não seria possível
129
BRANDÃO, Identidade e... p. 105-6.
130
GEERTZ, op. cit., p.140.
98
a esses povos vislumbrarem um futuro diferente e, por isso, resistirem. É essa
ligação que a religião é capaz de fazer tão bem, ligando os dois mundos, as duas
realidades. O grupo de viventes é ligado com as bases da energia vital. Esta energia
brota, passa pela ancestralidade e chega ao grupo pelos ritos, na linguagem de seus
mais variados símbolos. Esses povos sabem muito bem lidar com esses sistemas de
dom da vida para os povos africanos, daí o seu jeito festivo e alegre de celebrar a
Esse espaço só vai se dar no interior das Irmandades negras católicas. Ali, os
vida dos povos africanos. A religião africana promoveu unidade de grupos e etnias
africanas em Goiás.
Dessa forma é que a presença das religiões africanas em Goiás acabou por fixar
uma convivência, bem como a diferença religiosa entre os brancos e negros. Essas
Goiás.131
festa como espaço propiciador para a afirmação da vida. Ela possibilita a quebra da
rotina e o encontro consigo mesmo, com a comunidade, com a vida, numa dimensão
131
PALACIN, L., op. cit., 1996. p. 194. Cf. LIVRO de Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário. op. cit. cap. 2.
132
SCHLESINGER, op. cit., p. 654.
133
BERTAZZO, J. O escravo e a religião. In: AMADO, W. (Org.). A religião e o negro no Brasil. São
Paulo: Loyola, 1989. p. 55.
100
A festa mostra o desejo de quem é escravo de um dia ser livre e, na sua
interesses de uma classe, de uma raça ou de uma cultura de um grupo social. Esse
como reis, rainhas, juízes, juízas e governadores nas congadas de Goiás poderia
134
Nas festas do Espírito Santo em homenagem a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, os
negros se apresentavam na alvorada do domingo da festa com a intitulada “Banda de Couro”.
MENDONÇA, B. S. C. op. cit. p. 249.
135
FREYRE, op. cit., p. 387.
136
FREYRE, op. cit., p. 389.
101
armas sociais. A festa remetia os negros ao passado, aos seus ancestrais, às suas
expressão da vida social e cultural dos negros, o exercício do culto aos orixás. Os
negro constituía o veículo de vivência religiosa, por que a riqueza dos gestos
Mas era sobretudo nas festas que os negros suplantavam a igreja oficial. Elas eram
organizadas e dirigidas pelas Irmandades, e nelas a cultura africana das congadas,
da dança, dos instrumentos de percussão tomava o primeiro lugar, envolvendo e
diminuindo a força de celebração branca.137
festa era tudo isso e muito mais; era a forma de resistir ao sistema, na busca de
sociedade e todas as suas formas e a influência de uma religião nas relações sociais
forças que atentam contra a vida dos negros e contra seu conjunto de símbolos e
valores.
137
BERTAZZO, op. cit., p. 68.
102
Entendemos, contudo, que o universo cultural e religioso dos negros africanos
independente do credo religioso. Isto os tornava mais fortes para resistir contra tudo
e contra todos.138
carne, do ser humano, por oposição à alma, ao espírito139. É parte material do ser
vivo. Nos antigos livros bíblicos, não há uma contraposição entre o corpo e a alma,
uma prisão que retém a verdadeira humanidade que é feita dos valores
intelectuais”.140
138
DESROCHE, H. O homem e suas religiões: ciências humanas e experiências religiosas.
Tradução de Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 52.
139
HOLANDA, A. B. de. Novo Dicionário da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1986.
140
COMBLIN, J. Antropologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 76.
103
O evangelho cristão não comunga da concepção grega, mas o cristianismo
povo, melhor que o negro, soube valorizar a dimensão do corpo, celebrando nele o
valorizado porque não possui e nem assumiu a visão dualista da cultura dos filósofos
gregos que estabeleceram a dicotomia entre corpo e alma. O canto do negro embala
evidentemente, por meio do corpo, das mãos, dos pés, do coração e da mente,
porque o negro já carrega, em seu corpo, toda uma herança cultural herdada da
neste corpo que se enfeita de fitas, colares, pinturas, vestes coloridas, que gesticula,
reverencia, ginga capoeira, se rebela… é nele que mora a memória que faz a
social, a uma etnia com cultura e modo próprio de ver e interpretar a vida e o mundo.
penetra o divino, o sagrado. Daí é que entendemos como o corpo negro é litúrgico,
francês Halbawchs quando mostra que a nossa memória sustenta na história vivida.
presente.
Halbwachs, entendendo que não seria possível recuperar o passado sem que
tivesse sido conservado no material que nos cerca, proclamou o seguinte: “É sobre o
espaço, sobre o nosso espaço – aquele que ocupamos, por onde sempre passamos
ao qual sempre temos acesso e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso
interesse já que ela é constituída no presente”142. Acontece que não há como negar
141
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de Laurent Leon Shaffter. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1990. p. 143.
142
WOORTMANN, E. F. Homens de hoje mulheres de ontem: gênero e memória no seringal.
Memória, Goiânia, p. 90, 1998.
105
confrarias católicas dedicadas aos negros propiciaram a comunicação e perpetuação
dos valores culturais dos povos africanos subjugados nas terras de escravidão. Uma
comunicação que se dava menos no aspecto oral que na gestualidade, nas mais
“…é na memória que estão os significados de uma história vivida, e é graças a ela
prender ao passado, nem tampouco uma reprodução do que foi vivido a tempos
idos, mas uma idealização de um ‘devir’ coletivo. Cezne, ao falar sobre a religião
Acontece que não há dogmas nem compêndios de regras e leis escritas para
através da transmissão oral de geração para geração. Isso nos faz compreender
humilhado em terras estrangeiras. Eclea Bosi, citando Halbwachs, afirma que: “Na
143
Ibid., p. 106.
144
ECKERT, C. Estudo etnográfico dos ritmos temporais e da duração social de uma comunidade
de trabalho no Sul da França. Memórias, Goiânia, p. 144, 1998.
145
Ibid., p. 165.
146
CEZNE, op. cit., p. 9.
106
maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
Atingir este corpo era profanar um templo, negar uma religião, destruir uma
identidade, minar a sua resistência, apagar a sua memória, o seu passado. O corpo
negro era visto e tratado pelo branco europeu colonizador como fonte de lucro e
reduzi-lo a ninguém. Trazendo no corpo toda uma experiência social africana, com
foram alvo da tortura física, mental e espiritual, uma vez que a cultura branca
enigmático, da malícia.
Então, era necessário aviltar, aniquilar a vida pulsante dos corpos negros,
147
BOSI, E. Memória e sociedade. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 55.
148
SILVA, A. A. da. O dinamismo da cultura afro. Banquete da vida. São Paulo: Paulus, 1998. p.
105-17.
107
desprovido e arrancado de suas raízes. A visão dualista iniciada na alma de uma
terras de servidão agora está profanado pelo orgulho e prepotência de uma ‘elite'
colonial branca.
foram capazes de calar o negro, “Mesmo calada a boca, resta o peito”. Os negros
reconstruíram o seu universo cultural nas senzalas, nos terreiros, nos canaviais, nas
igrejas, nos cafezais, nos campos e nas cidades, com a sua linguagem própria,
funcionou e funciona sempre para os povos negros como elemento que carrega,
de Goiás. Uma religião sem muitas ou nenhuma palavra, mas carregada de gestos e
símbolos exteriorizados pelos ritos realizados por uma ação corporal. Nesses casos,
o corpo fala por mil palavras e costuma ser mais verdadeiro do que o discurso.
com muita saudade e apreço, como é o caso de Sebastião Fleury Curado, que, ao
ruas da cidade, apresentando uma bonita Rainha Negra, que haveria de depositar o
interior e fora dele (de certo modo aproximado dos valores da cultura dos povos
dos negros traficados para Goiás, especialmente dos povos banto, por serem aqui a
Vimos também a importância que os africanos davam ao corpo e a sua ligação com
149
CURADO, S. F. Memórias históricas. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1959. p. 129.
150
KARASCH, M. Minha Nação... op. cit.
109
boas relações com a natureza, com a força vital, com o Deus supremo criador.
Enquanto, nas Irmandades, esses mesmos negros iam encontrar uma estrutura com
comunitário. 151
Os negros olhavam tudo isso com o olhar dos valores culturais africanos e
certa autonomia, possuindo uma direção leiga composta pelos chamados ‘irmãos de
sincretizar, era possível prestar culto aos seus orixás, escondendo-os por trás dos
africana.153
desfilar em procissão na Cidade de Goiás. Descobriram que era possível fazer uma
151
Livros de Compromisso das Irmandades (op. cit. 110) citados na referência bibliográfica desta
dissertação. As irmandades gozavam de um prestígio tão significativo na sociedade de Goiás que
Belkiss Mendonça noticia, no seu livro, a morte de José Joaquim da Veiga no ano de 1840 e que o
cortejo fúnebre foi acompanhado por todas as Irmandades de Pirenópolis. Em 1878 faleceu o mestre
Pe Francisco Inácio da Luz musicista exímio de Pirenópolis e no seu cortejo fúnebre teve
acompanhamento de todas as irmandades religiosas.
152
BASTIDE, As religiões africanas... p.159.
153
SERRA, op. cit. p. 215
110
festa dentro da festa oficial e bem como viver os valores da religião de seus
Caso isto não fosse patente, de que forma nos chegariam a congada, o reisado, o
etnias africanas em Goiás e no Brasil, na medida em que, por meio de seus cultos e
festejos, os mitos de origem foram se revelando, pelos seus símbolos, nos variados
ritos desenvolvidos nos templos e, mais tarde, nos terreiros, livres então da pressão
em Goiás e no Brasil.156
mediações simbólicas, que vão responder pela identidade dos negros na Cidade de
que são diferentes do outro. Muniz Sodré diz que a “idéia de cultura aqui vale à de
uma unidade de identificações”. A cultura é uma maneira de abordar o real. Por isso
com os olhos e concepções de sua cultura. Daí que a identidade cultural anuncia, e
154
PHOL, J. op. cit. 143-145.
155
LEITE, I. B. Antropologia da Viagem: escravos e libertos em minas Gerais no século XIX. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 1996. p. 150.
156
LEITE, I. B. Antropologia da viagem... op. cit. p. 145.
157
SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
p. 45-7.
111
Nossa reflexão vai nos conduzindo a compreender, portanto, a identidade
cultural como a singularização desses irmãos negros. Mas nós estamos falando aqui
permitido pelos brancos para que os negros pudessem se encontrar num grupo
maior e festejar ou rezar. Também pelas Irmandades chegaram até nós fragmentos
da língua Kimbundo, dos banto, e a língua Ioruba, uma vez que os cantos das festas
e as congadas, bem com as suas falas, ainda carregam muitas frases do idioma dos
povos banto.158
religião, porque, mesmo sendo a cultura algo imanente, próprio do indivíduo, este a
158
BRANDÃO, C. R. Pretos, peões e congos... op. cit. Cf. BRMJAMIN, R. Caderno de folclore, Rio
de janeiro, 1977, n. 18.
159
Ibid., p. 102.
112
encontra na vivência do grupo. Se a identidade é um processo histórico, na história
com as fontes simbólicas, pulsava também nos irmãos das Irmandades negras a
práticas de poder.160
reconstruir uma identidade violentada, mas que resiste e que pretende conquistar
um novo espaço.
identidade em torno de uma cultura até certo ponto expropriada e nem sempre
assumida com orgulho pelas maiorias de negros e mestiços?”. Nós sabemos que
não foi fácil resistir e nem, tampouco, preservar aquilo que manteria a dignidade
negra na diáspora goiana. Mas era preciso reconstruir os seus valores, reelaborá-
160
O exercício de certas funções e cargos importantes nas Irmandades evidencia uma configuração
de poder e auto-estima. Cf. LIVRO de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. op.
cit. Cap. 2 e 3.
161
MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 124.
113
intelectual, permite-nos dizer que o corpo é a parte de integração dos símbolos e se
olhar e pelas atitudes. É esse mesmo corpo que incorpora e se torna o lugar do rito.
É esse corpo que vai entrar nas Irmandades do Rosário, de São Benedito e de
culturais.162
constituíam um dos únicos lugares onde os povos negros ainda poderiam viver com
maior profundidade a sacralidade do corpo. Nesses espaços, há, por parte dos
negros, o esforço pela recuperação da soberania que se mostra nos gestos, numa
troca de olhar, na fala e nas suas atitudes comportamentais. Mas o saber se revela
muito mais pelo segredo que está mergulhado no corpo e na liturgia, e só aí ele é
tempo e espaço para ser transmitido às gerações. O silêncio também constitui outro
ritual africano. Nas Irmandades, o Batismo e a Unção dos Enfermos soam como
162
SODRÉ, op. cit., p. 178-9. Cf. GOIÁS. Termos de visitas...op. cit.
114
ressignificando esses ritos, fazendo que os seus elementos de fé fossem por eles
a capacidade de recriação da cultura afro pode ser verificada sobretudo nas práticas
religiosas. Tanto no que diz respeito à recuperação das tradições religiosas africanas,
quanto à reconfiguração do catolicismo, o negro mostrou-se habilidoso e
engenhoso.163
ganharam novas expressões, uma vez que esses povos conseguiram recriar o
ao que nos parece, uma comunidade aparentemente heterogênea, mas unidos, pelo
destino comum, ao redor do altar e sob o véu da religião oficial para a grande
163
SILVA, A. A. de. op. cit. p. 112.
115
negros teriam de assumir o Evangelho proposto pela religião dos brancos com base
representava muito para quem não tinha nenhum reconhecimento, para quem tudo
era negado, inclusive o direito de morrer como gente. Mesmo tendo as Irmandades
negros souberam resistir e perpetuar nas Irmandades, ou por meio delas, certos
Mas foi nas Irmandades que a resistência moral e cultural se firmou, uma vez que o
164
LIVRO de Compromisso da Irmandade de N Srª do Rosário. Arquivo Frei Simão em Goiás, 1799. p. 128.
165
CURADO, op. cit. p. 133.
116
Nesse espaço, nas manifestações artísticas, na dança, no batuque, nas
religiões, superar as diferenças lingüísticas, eis a grande tarefa dos povos negros.
Além do que os negros das Irmandades tiveram que reinterpretar os santos cristãos
como uma das expressões mais vivas do mundo cultural africano no Brasil. Havia,
de fato, uma afinidade étnica entre o santo protetor das Irmandades e seus
cosmovisão africana.
166
BERTAZO, op. cit., p. 62.
167
SILVA, op. cit., p. 113.
117
Carlos Rodrigues Brandão, pesquisando as festas de Pirenópolis, percebeu
deixaram de ser negros. O ritual desta festa tinha a dimensão da identidade étnica
dos negros.168 A nosso ver, a retirada dos negros das Irmandades tradicionalmente
fundadas por eles deve ser interpretada como articulação de uma nova estratégia de
por meio dos encontros de negros nas ruas e becos. “Na cidade, em compensação,
reconstituir”.169
Benedito não são mais celebradas com o mesmo esplendor como na época da
168
BRANDÃO, O divino, o santo... p. 132.
169
BASTIDE, As religiões africanas... p. 342.
118
escravos não existe mais. Com a chegada dos dominicanos em Goiás, no ano de
1883, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário passou a ser dirigida por eles. Anos
depois, o antigo templo cede lugar para um novo, de estilo neogótico, apagando,
O que nos impressiona é que, enfrentando uma realidade em que quase tudo
As Irmandades Católicas em Goiás e no Brasil dos séculos XVIII e XIX, quer para
a estrutura dos grupos e não o grupo como tal172. Por que são as relações dos
170
AZZI, R.; BEOZO, O. Os religiosos no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1986, p.16-7. O missionário
dominicano francês Berthet dá notícia desta Igreja e Irmandade do Rosário no século XIX. op. cit. 114.
171
BRANDÃO, Peões pretos... p. 38-40.
172
BASTIDE, As religiões africanas... p. 339.
119
membros de um determinado contexto que possibilitam ou não a construção da
memória.
Mas será mesmo que as Irmandades proporcionaram aos negros uma certa
articulação da memória entre eles? A probabilidade é grande, uma vez que algumas
Irmandades abrigavam, no seu interior, grupos de uma mesma etnia africana, o que
com os seus orixás por intermédio de suas músicas, de seus corpos e de suas
liturgias camufladas.173
levando-nos a crer que tal progresso deve ter sido sustentado na cooperação mútua,
173
SERRA ,Ordep. Águas do rei...op. cit. 265
174
BASTIDE, As religiões africanas... p. 344.
120
Podemos perceber que o exercício permanente da memória é de fato o
importância tão grande como elemento agregador nas sociedades dos séculos XVIII
solicitou, em vida, que os seus restos mortais fossem enterrados no interior da Igreja
danças africanas em Goiás, antiga Vila Boa: Congos, dança do boi, dança dos
procuravam fazê-los com as cores da cultura africana. Esta habilidade dos negros
175
RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil: expansão missionária (séc. XVIII). Santa Maria: Pallotti,
1981. p. 292-293. V. II.
176
CURADO, op. cit., p. 133.
121
CONCLUSÃO
com a ancestralidade, com o antepassado, com a pátria-mãe que ficou para trás. A
arquitetura, na música, nas festas e devoções, nas novenas, nos rituais de morte ou
Goiás e suas impressões acerca da religião, das festas e de seus hábitos, vão
desenhando, para nós, a idéia de uma sociedade que possuía, de certo modo,
novo proveniente de uma outra cultura com símbolos e valores diferentes inseridos
Cidade de Goiás. Está nos muros de pedras, nas construções dos prédios públicos,
culinária, nos calçamentos de pedras, nas rezas, na religião, nas fazendas, estradas
tiveram a sua cultura continuada na alma do povo. Mesmo tendo confiscado os seus
espaço, ignorado os seus ritos no seu jeito próprio de comunicar com o sagrado, a
identidade cultural, como elemento identificador dos laços comuns dos membros do
mesmo grupo.
até certo ponto, ressignificar os espaços e recriar os seus valores e as suas crenças
nos nichos das Irmandades católicas. Eles souberam mascarar os seus orixás
negro determinado é a sua inabalável fé nos antepassados. É por isso que ele ia
terreiros afro-brasileiros.
Ricardo Franklin Ferreira diz que “A existência do homem pode ser vista como
suas experiências sociais, que se dão por meio de suas construções ‘dentro’ e
‘sobre’ o real. Nele, as suas referências sobre o mundo e sobre si mesmo, o seu
mesmo e sobre o ambiente físico social e político vão sendo articulados. É dessa
177
FERREIRA, R. Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. Rio de janeiro: Educ,
2000. p. 43.
124
forma que o indivíduo vai desenvolvendo os tecidos da sociedade e da cultura nos
Goiás, mas era algo em que os negros se constituíam, no interior de sua cultura e de
certa simbiose cultural, cremos que não é difícil perceber e identificar traços de um
178
Ibid, p. 46.
125
REFERÊNCIAS