O Mais Antigo Livro de Cozinha Portugues

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O mais antigo livro de cozinha português: receitas e sabores

Autor(es): Santos, Maria José Azevedo


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL http://hdl.handle.net/10316.2/46375
persistente:
DOI: https://doi.org/10.14195/0870-4147_27_3

Accessed : 11-Nov-2022 22:26:59

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O MAIS ANTIGO LIVRO DE COZINHA
PORTUGUÊS — RECEITAS E SABORES*

Ao Nosso Querido e Ilustre Professor


Doutor Salvador Dias Amaut

Introdução

Arte de cozinha, mas não menos, arte de receber, de conviver,


de decorar. Na base de todas, a comida, a alimentação.
Alimentação que, no passado como no presente, é umalinguagem
reveladora de práticas, normas, comportamentos e éticas laicas e
religiosas.
Alimentação, manifestação quotidiana de costumes e mentali­
dades, símbolo de riqueza ou pobreza é, porém, vital para todos os
seres vivos.

* O texto que agora se publica foi apresentado nas "Jornadas Bem-Dizer e Bem-
-Comer" que se realizaram em Coimbra, nos dias 29 de Novembro - 1 de Dezembro de
1991. Fomos convidados pelo Departamento de Cultura e T urismo da Câmara Municipal
de Coimbra a quem, na pessoa do seu Director, Dr. Vasco Pereira da Costa, dirigimos o
nosso reconhecimento.
Desejamos deixar, aqui, expresso um particular agradecimento ao nosso muito
prezado Colega Dr. Rui Cunha Martins pela preciosa colaboração que nos prestou na
indicação e cedência de vários trabalhos que aqui utilizámos. Lamentamos, todavia, que
essa colaboração não se tivesse estendido à própria concepção deste estudo mas
compromissos de ordem profissional e académica a isso o obrigaram. Reconhecida
estamos ainda, e mais uma vez, ao Senhor João Mateus pelo apoio técnico prestado, na
concepção dos quadros e gráficos deste trabalho.
64 María José Azevedo Santos

Alimentação, em duplo sentido, consumo de alimentos, que


constituem o sustento diário do homem, mas igualmente arte ou
maneira de preparar e confeccionar o comer — a ars coquinariae.
Testemunhos preciosos daquela arte são os livros de cozinha.
Embora seja problemática a questão da produção de livros
conservada e a produção real, a primeira autoriza-nos a afirmar que
os mais antigos livros de cozinha, medievais, do ocidente europeu,
até hoje conhecidos, datam dos séculos XIV eXV (*). Aquele género
literário, de características diversas, é, em primeiro lugar, um
repositório da cultura culinária, a maior parte das vezes, de grandes
cozinheiros. Mas é, sobretudo, imagem social, económica, estética,
num dado espaço e tempo, das classes dominantes.
Os primeiros livros de cozinha reflectem, na sua maioria, um
saber, talvez secular, transmitido, ciosamente, de geração em
geração através, não do poder da escrita mas, do poder da fala e do
gesto. Ao longo dos séculos, a aprendizagem da cozinha fez-se de
uma forma verdadeiramente empírica. "Verfazer"e "ouvircontar"
foram os principais tratados culinários da época medieval e moderna
prolongando-se este ensino, ainda que em grau já muito reduzido,
até aos nossos dias.
Mas o facto de se confiar o conhecimento técnico-culinário à
palavra escrita constituiu um fenómeno de consequências múltiplas.
Assinale-se, por exemplo, a passagem da fase oral da cozinha à
sua fase codificada. Realce-se a aculturação do gosto, facilitada
pela capacidade difusora do escrito à mão, ou impresso. Atente-se,
enfim, na importância que o livro de cozinha encerra hoje como
uma das principais fontes de conhecimento do viver do homem
medieval e moderno. 1

(1) Sobre este assunto veja-se, entre outros, Bruno Laurioux, "Les premiers livres de
cuisine", in L’Histoire, n° 85, 1986, pp. 51-55 e ainda J. L. Flandrin-Olive Redon, "Les
livres de cuisine italiens des XTVe et XVe. siècles", in Arche ologia Me diev ale, VUI, 1981,
pp. 393-408.
0 mais antigo livro de cozinha português 65

Ainda assim, forçoso é acentuar o carácter restrito da acção do


livro de cozinha. Restrito, desde logo, porque reflecte, normalmente,
as práticas alimentares das classes superiores (na França, em
Espanha ou em Portugal) e, assim, quase só a elas se dirigiria.
Restrito ainda, porque acessível só àqueles que sabiam 1er, aliás,
em número bem escasso, por toda a Europa, nos fins da Idade
Média e princípios da Moderna.
De autores anónimos, na maioria dos casos, os livros de cozinha
distinguem-se dos tratados porque constituem apenas uma recolha
fortuita de receitas, de diversas proveniências. A omissão da ex­
pressão das quantidades dos ingredientes, da duração da confecção
dos pratos, ou mesmo o nome de temperos, supostamente
conhecidos, é frequente.
Aquele facto levou Bruno Laurioux a caracterizar a cozinha dos
livros tardo-medievais, em certa medida, como uma cozinha
inexequível destinada ao sonho, à imaginação (2).
Mas atentemos no caso português.

O livro de cozinha da Infanta D. Maria de Portugal

Completa-se este ano um quarto de século sobre a melhor


edição, até hoje elaborada, do livro de cozinha da Infanta D. Maria
de Portugal (3). Como "aperitivo" valiosíssimo, inclui o magistral

(2) Bruno Laurioux, art. cit,p. 53.


(3) Na verdade, cabe aqui dizer que o livro de cozinhadalnfanta D. Maria de Portugal
tem sido objecto de várias notícias, edições e até de uma dissertação de licenciatura em
Filologia Românica, (leitura crítica, estudo gramatical e glossário), apresentada por
Maria José da Gama Lobo Salema, em Lisboa, 1956 (inédita). É conhecido, fora da Itália,
pelo menos, desde 1895. Todavia, é em 1967 que os Professores de Coimbra, Giacinto
Manuppella e Salvador Dias Arnaut dão à estampa mais uma edição do ms. I-E-33 da
Biblioteca Nacional de Nápoles. Ao primeiro, coube a leitura e transcrição integral do
códice; ao segundo, uma “introdução” que constitui, sem dúvida, até hoje, o melhor
estudo sobre a cozinha portuguesa na Idade Média (O Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria de Portugal Coimbra, 1967). Mais recentemente, em 1986, a Imprensa Nacional
— Casa da Moeda reeditou aquele estudo desdobrando-o em dois volumes. O primeiro
leva a autoria de Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média
66 Maria José Azevedo Santos

estudo, do Doutor Salvador Dias Arnaut, sobre a arte de comer em


Portugal, na Idade Média. Todavia, a referida edição não integra
qualquer análise do conteúdo do manuscrito. E, lamentavelmente,
passados que são tantos anos, nenhum estudioso, além de certas
referências (4), intentou fazê-lo.
Impropriamente auto-designado por Trattato di cucina
Spagnuolo o mais antigo livro de cozinha português, até hoje co­
nhecido,
✓ está conservado na Biblioteca Nacional de Nápoles.
E vulgarmente chamado pelo nome da sua proprietária, a infanta D.
Maria de Portugal, filha do infante D. Duarte e neta do rei Venturoso.
Mulherculta casou, em 1565, com Alexandre Famésio, 3o duque de
Parma, Piacenza e Guastalla, tendo levado no seu principesco
enxoval um pequeno livro de receitas de cozinha.
Sem data, cronológica ou tópica, sem autor, com vários tipos de
grafia (presença de seis mãos diferentes), fácil é concluir como são
diversos os problemas que a sua tradição documental levanta.
E um códice em papel composto por 73 folhas, nem todas
escritas, e de dimensões relativamente pequenas (5). Possui
uma encadernação em carneira e o seu estado de conservação é
bom.
Após uma rigorosa análise crítica de todos aqueles elementos,

(introdução a O "Livro de Cozinha" da Infanta D. Maria de Portugal), Lisboa, 1986.0


segundo é o Livrode Cozinha da Infanta D. Maria, códice português LE. 33 da Biblioteca
Nacional de Nápoles. Prólogo, Leitura, notas aos textos, Glossário e índices deGiacinto
Manuppella, Lisboa, 1986. Ao longo do nosso trabalho citaremos, sempre, a 2a edição.
As receitas serão identificadas pelo seu título, na leitura e transcrição actualizada, seguido
do número de ordem em romano.
(4) É o caso de A. H. deOliveiraMarques quenasuanotável obra A Sociedade Medieval
Portuguesa, 5a ed., Lisboa, 1987, cap. I, A Mesa, faz algum aproveitamento do referido
manuscrito reproduzindo seis receitas: "Receitada vaca picada em seco", " Esta é a receita
da galinha cozida e ensopada", "Receitada lampreia", "Receita do coelho", "Tigeladade
leite" e "Talos de alface".
(5) Antes do restauro que lhe fizeram em 1957 as suas dimensões eram de 205x152
mm. Actualmente, as medidas da encadernação são 197x145 mm medindo as folhas
190x135 mm (Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, Prólogo).
0 mais antigo livro de cozinha português 67

externos e internos, os Doutores Salvador Dias Amaut e Giacinto


Manuppella, cruzando hipóteses e argumentos, apontaram como
termo ad quem, para a elaboração do referido códice, os fins do séc.
XV, princípios do séc. XVI. O que não invalida, como acrescentam
aqueles Autores, que a idade das receitas recolhidas seja mais
antiga.
O estabelecimento de uma data crítica, quer para o manuscri­
to, quer para as receitas que ele inclui, será sempre uma tarefa
difícil.
Desde logo, porque é o mais antigo livro do género, em língua
portuguesa, não havendo, anterior a ele, nem sequer receitas disper­
sas com as quais se pudesse estabelecer relação.
Sobre argumentos recolhidos pela crítica externa, nem nos
atrevemos a tecer considerações, visto que não nos foi possível
ver o manuscrito que, como já dissemos, se encontra em Nápoles.
Quanto à crítica interna, e no que respeita às receitas, diga-se que
os nomes de muitas delas, como "confeito", "marmelada", "alfitete",
"fartes", "almojávenas" e "maçapães", só são abonados a partir dos
inícios do séc. XVI. Este facto, todavia, não exclui o conhecimento
das receitas, e respectivos nomes, na época medieval, de que, é
certo, não nos chegou memória.
Em contrapartida, os termos "morcelas", "biscoutos" e "alféloas"
são conhecidos muito antes. O mesmo se aplica ao "manjar-bran-
co", receita famosa na Europa medieval.
A presença das especiarias, ou do açúcar, não pode, como sabe­
mos, servir de argumento para afirmar que uma receita é medieval
ou não.
Refira-se, agora, que algumas receitas têm nomes de pes­
soas, muito provavelmente, de figuras nobres. Ainda que identi­
ficadas, com reservas, pelos Doutores Salvador Dias Amaut e
Giacinto Manuppella, elas conduzem-nos à época de Quinhentos.
A menção a alguns utensílios culinários, como "tacho" e
"alguidar", parecem indiciar também os tempos modernos.
Por tudo o que fica dito, somos levada a crer que o manuscrito,
68 María José Azevedo Santos

embora contenha muitos elementos medievais, denuncia já outros


tantos do séc. XVI. O livro de cozinha da infanta D. Maria de
Portugal é um receitário onde, em grau variável, se funde o "antigo"
com o "novo".
Mas abramos o valioso manuscrito e folheêmo-lo.
Sem qualquer tipo de intróito, o livro contém como primeira
receita, e curiosamente, "o modo que se tem para engordar frangos
a leite" (I). Seguem-se, não menos desadequadas, duas outras re­
ceitas: "Para se fazer sessenta varas de veludo de pelo miúdo" (II)
e "Vinho de açúcar que se bebe no Brasil, que é muito saõ e para o
fígado é maravilhoso" (III).
Só após estas três receitas, de três mãos distintas, acrescentadas
ao corpo central do texto em momentos diferentes, podemos 1er o
título "caderno dos manjares de carne". Dele constam vinte e seis
receitas todas de carne à excepção da XVI e XVII, "receita dos
canudos dos ovos mexidos" e "receitada lampreia", respectivamente.
Aliás, a primeira ficaria muito melhor na segunda parte intitulada
"caderno dos manjares de ovos" do qual constam apenas quatro
receitas: "Para fazer ovos mexidos" (XXX), "canudos" (XXXI),
"ovos de laços" (XXXII) e "pastéis de marmelos" (XXXIII); quan­
to à segunda, só estará deslocada por ser uma receita de peixe,
porque, quanto à distinção da sua carne, a lampreia, tal como ainda
hoje, era pescado próprio da alta cozinha.
De seguida, deparamos com o "caderno dos manjares de leite"
cuja primeira receita, num total de sete, é o mui famoso e alvo
"manjar-branco" (XXXIV).
Por fim, encontramos "o caderno das cousas de conservas".
Constituem-no vinte e sete receitas onde não falta a da marmelada,
inteira ou em bocados, a dos biscoitos, a do pão-de-ló. Deste con­
junto, as três últimas, porém, são apenas mezinhas: para o mal de
dentes, "Receita de Dom Luis de Moura para os dentes" (LXV);
para o mal das amígdalas, "Receita para a esquinência" (LXVI); e
bem a propósito, sobretudo para os cozinheiros, para o mal de quei­
maduras, "não sendo esfoladas": "Receita para fogo, ou escal-
0 mais aníigo livro de cozinha português 69

daraento" (LXVII) (6).


Concluímos, pois, que de um total de sessenta e sete receitas que
o códice comporta, seis não são de comida o que diminui para
sessenta e uma o número real de receitas culinárias que compõem
o nosso mais antigo livro de cozinha (7).

Os "manjares de carne"

Detenhamo-nos, desde já, sobre a análise do primeiro caderno,


os manjares de carne, num total de vinte e seis receitas, sendo certo
que, como atrás dissemos, duas delas não são de carne, mas uma de
ovos e outra de lampreia, o que reduz aquele número para vinte e
quatro. Receitas que possuem um título, um nome, exigência
natural do saber culinário codificado, registado pela palavra escrita
e, por isso, sujeito a normas.
Com efeito, nenhuma tradição culinária de propagação pela
palavra e gesto concede um carácter rigoroso à nomenclatura das
receitas. Ainda hoje é frequente ouvir dizer-se "bacalhau à moda da
minha avó", "beilhós como se fazem na minha terra", "leite-creme
que a Maria, nossa criada, preparava".
O título de uma receita pode ser, só por si, indicador de
renovação ou aculturação de uma dada cozinha, revelador da

(6) É a cozinha médicalisée de que nos fala Bruno Laurioux chamando, muito
pertinentemente, a atenção para a estreita ligação que existiu, naldade Média, e em outras
épocas, entre a culinária e a medicina. Só o termo receita, desde logo, as aproxima. Não
deve, pois, ser considerada inédita e estranha a inclusão de receitas medicinais em livros
de cozinha. Mais, aquele facto associado ao tamanho, geralmente pequeno, e ao material-
suporte de escrita (papel) conduzem-nos ao manuscrito de cozinha, tipo, de que o da
infanta D. Maria é mais um exemplo. Bruno Laurioux, "Entre savoir et pratiques: le livre
de cuisine à la fin du Moyen Age", in Médiévales, 14, Paris, 1988, pp. 60-68.
(7) Dando-se conta deste facto, o Professor Antonio Gomes Filho, em 1963, ao editar
o manuscrito em estudo optou, sem qualquer esclarecimento, por omitir aquelas seis
receitas (Um Tratado da Cozinha Portuguêsa do século XV. Reproduçciofac-similar do
ms I-E-33 da Biblioteca Nacional de Nápoles; leitura diplomática; leitura moderna e
índice de vocábulos, Instituto Nacional do Livro, 1963).
70 María José Azevedo Santos
0 mais antigo livro de cozinha português 71

proveniência geográfica ou temporal do cozinhado, revelador,


enfim, do gosto e originalidade do seu autor (8). Características,
gosto e originalidade, que não nos pareceram estar subjacentes às
designações das receitas do livro que nos ocupa.
Das vinte e quatro receitas de carne, uma delas não leva título por
se tratar de uma variedade da que a precede, "receita das morcelas"
(X), enquanto outras duas têm nomes iguais, "tigelada de perdiz"
(V e XXIX) e "galinha mourisca" (VI e XXV).
Assim, dos vintee um nomes diferentes das receitas dos "manjares
de carne", diga-se que treze incluem o nome do animal cuja carne
serve de base à confecção do prato. Nada mais elementar.
Tigelada de perdiz, galinha mourisca, galinha albardada, frângãos
para os hécticos, pastel de fígados de cabrito, vaca picada em seco,
desfeito da galinha, pastéis dos pombinhos, galinha alardada,
galinha cozida e ensopada, coelho, láparos e coelho em tigela.
Acrescente-se ainda que, de entre aqueles títulos, dois se limitam
ao nome do animal: "receita dos láparos" (XXVI) e "receita do
coelho" (XXIV). Um inclui o termo mourisca, "galinha mourisca",
numa clara filiação na cozinha muçulmana. Outro alude ao tipo de
comensais, "frângãos para os hécticos", (XII). A maioria, porém,
caracteriza-se por referências, quer ao modo de preparação do
prato: "galinha albardada" (VII), "vaca picada em seco" (XVIII),
"desfeito da galinha" (XIX), "galinha alardada" (XXII), "galinha
cozida e ensopada" (XXIII), quer ao modo de o apresentar: "tigelada
de perdiz" (V), "pastel de fígados de cabrito" (XV), "pastéis dos
pombinhos" (XX) e "coelho em tigela" (XXVIII).
Quanto aos restantes oito títulos, "pastéis de carne", "pastéis de
tutanos", "alfitete", "morcelas", "tutanos", "receita da torta", "pas­
téis lepardados" e "boldroegas", merece especial referência o ter­
mo "alfitete", de origem árabe, documentado no século XVI e

(8) Sobre a importância dos títulos das receitas culinárias, veja-se Alain R. Girard,
"Du manuscrit à l’imprimé: le livre de cuisine en Europe aux 15e et 16e siècles", in Actes
du Colloque de Tours de mars 1979, Paris, 1982, pp. 109 e segs.
72 Maria José Azevedo Santos

que significa "bocadinho", "migalha" (9).


Curioso é, também, o nome "morcela", de origem castelhana, já
abonado no século XIII (10 *). Para "lepardados" não encontrámos
explicação, enquanto sobre "boldroegas", palavra igualmente não
dicionarizada, o Doutor Giacinto Manuppella opinou tratar-se da
fusão de beldroega com bodega, correspondendo às actuais al­
môndegas de carne (n).

Manjares de carnes - animais

Centremo-nos agora nas vinte e quatro receitas de carne que o


nosso receitário inclui. Carne, cujo alto consumo na Idade Média
e Moderna, constituía um aspecto caracterizador do comportamento
alimentar das camadas superiores da sociedade (12). Todavia, numa

(9) Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, p. 170.


(I®) José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 3* ed., Lisboa,
1977, s.v. morcela.
(11) Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, pp. 177-178.
(12) Sobre o valor e simbologiado consumo da carne veja-se, entre outros, B. Che­
valier, "L'alimentation camée à la fin du XVe siècle: réalité et symboles", in Actes du
colloque de Tours de mars 1979, Paris, 1982, pp. 193-199.
0 mais antigo livro de cozinha português 73

perspectiva da cultura monástica, a abstenção da mesma será A

considerada componente distinto e qualificante de santidade. E, no


fundo, a reunião na mesma palavra, carne, da realidade física,
corpo-prazer-pecado e da realidade alimentar (13).
O que ressalta, desde logo, na tipología das receitas analisadas
é a presença maioritária de aves (14) e animais de caça (15). No con­
junto, entram na constituição de 58,33% das receitas. Mas pormeno­
rizemos. A ave mais utilizada é de longe a galinha. 29,16% do total
das vinte e quatro receitas incluem-na, o coelho está presente em
12,5% das receitas, a perdiz em 8,33%, enquanto o pombo e a carne
de frangão, cada um, numasó receita (16). Em contrapartida, acame
proveniente do gado ovino e bovino é escassamente usada, enquanto
ade porco fresco, embora indicada algumas vezes como alternativa
à de carneiro ou de vaca, está presente em 20,83% de receitas (17).
O itinerário percorrido, na cozinha, pela maioria daquelas car-

(13) Massimo Montanari, Alimentazionee cultura riel Medioevo, 2a ed., Roma-Bari,


1989, p. 47.
( *4) Presença que, na opinião de Maguelonne Toussaint-Samat, se estende à iconografía
medieval, aqui, devido sobretudo ao valor estético das aves comparado com o de outros
animais ou alimentos (Histoire Naturelle et Morale de la nourriture, Paris, 1987, p. 259).
Valor estético que está igualmente presente, por exemplo, no “primeiro banquete de ceia,
que el-rei (D. João II) deu na sala da Madeira”: “e assim vieram juntamente a todas as
mesas muitos pavões assados com os rabos inteiros, e os pescoços, e cabeça com toda sua
pena, que pareceram muito bem por serem muitos e outras muitas sortes de aves...”
(Garcia de Resende, Crónica de D. João II; Coimbra, 1798, caps. 124 e 125, publicado
por Salvador Dias Amaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, p. 130).
(15) parece que, na verdade, se consumia abundantemente criação e caça. Lembremos
que esta última possuía, além da sua função alimentar, outras, bem importantes, como a
lúdica, a simbólica, a económica e a desportiva. Todos estes aspectos são realçados, com
muito interesse, num trabalho de Maria HelenadaCruz Coelho e Carlos Guilherme Riley,
"Sobre a caça medieval", in Estudos Medievais, n° 9, Porto, 1988, pp. 221-267. Na
mesma linha, leia-se ainda Paolo Galloni, "L’ambiguità culturale delia caccia nel me­
dioevo", in Quademi Medievali, 27, Bari, 1989, pp. 14-37.
(16) Numa indiscutível prova de que estamos em presença de receitas e carnes, na sua
esmagadora maioria, próprias de gostos e classes superiores, refira-se que as monjas de
Santa Clara de Santarém,e tendo por fonte livros de receita e despesa da 2a metade de
Quinhentos, distinguiam as suas visitas com carne de perdiz, pombo e coelho (Maria
Angela V. da Rocha Beirante, Santarém Quinhentista, Lisboa, 1981, p. 247).
(^)Cabe, aqui, distinguir, como muito bem faz M. Montanari, entre animais para
alimentação e animais para o trabalho. Esta oposição explica o consumo predominante
74 Maria José Azevedo Santos

nes é muito idêntico. Previamente cozidas, cruas ou meio-assadas,


as carnes são submetidas a um conjunto de preparos que as conduz
à forma final. Em 76% de casos levam uma gordura animal ou
vegetal. A gordura animal dominante é o toucinho (37,5%), em
talhadas ou picado, "porque põe sabor" (IV).
A manteiga, de vaca ou de porco, por seu lado, é muito usada
sobretudo como base do frigir ou para fazer as massas, no caso dos
pastéis (41,66%).
A azeite encontrámos duas referências (18): "afogada com azeite
ou manteiga" (V) e "em lugar de manteiga, azeite muito bom que
não tenha nenhum saibo" (XVIII).

E s p e c ia ría s

de uns, como os porcos, ovelhas, cabras, carneiros, e o consumo mais escasso de outros,
como o boi, a vaca, ou mesmo, excepcional, o do cavalo. A vocação alimentar destes
últimos era secundária, pois o seu papel desenvolvia-se no domínio dos trabalhos
agrícolas, dos transportes, ou ainda da guerra (no caso do gado equino). Gado bovino e
cavalar, normalmente, só no fim da vida eram abatidos e aplicados na alimentação (M.
Montanari, ob. cit., pp. 37-41). Reforçando o que acabamos de referir indique-se a carne
comprada pelo mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no ano de 1534-1536:
906 carneiros, 1 bode, 27 bois, 3 vacas, 20 ovelhas e 2 cordeirinhos, para leite (Maria
Helena da Cruz Coelho, "Receitas e despesas do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em
1534-1535", in Homens, espaços e poderes, séculos XI-XVI. II. Domínio senhorial,
Lisboa, 1990, pp. 95-96. Cfr. Quadro I.
(18)Por toda a Europa, o azeite é utilizado, sobretudo, como gordura alternativa para
os dias de Quaresma e abstinência (J. L. Flandrin-Olive Redon, "Les livres de cuisine
italiens des XIVe et XVe siècles", p. 403).
0 mais antigo livro de cozinha português 75

Uma das características da cozinha tardo-medieval foi o uso


quase excessivo de ervas e especiarias. Bruno Laurioux fala mesmo
de uma "folie d'épices" (19). Era uma manifestação de requinte e
luxo que só desaparecerá quando o seu consumo se tomar banal.
Em 33,33% dos pratos registados, no códice em estudo, lê-se
apenas cheiros (XVIII, XIX, XXVII e XXIX), adubos (XX e XXI)
ou cheiros e adubos (IX e XXVIII).

Ervas aromáticas

Nos "cheiros" incluir-se-ia, como nos informa a receita n°


XXVIII, "salsa, coentro, hortelã e cebola", enquanto nos adubos,
"cravo, açafrão, pimenta e gengibre" (20). Além destas ervas aro-

(19 ) Consumo maciço de especiarias que Bruno Laurioux considera ser produto de
uma tradição secular que via no seu uso um factor favorável à digestão. Reprova, assim,
aopiniãode alguns estudiosos que, pelo contrário, veem no uso exagerado das especiarias
uma forma de neutralizar ou disfarçar a putrefacção de muitos alimentos {Le Moyen Age
à table, Paris, 1989, p. 40). Ainda que anterior àquela obra veja-se, do mesmo autor, MDe
l'usage des épices dans l'alimentation médiévale", in Médiévales, 5, Paris, 1983, pp. 15-
-31.
(20 ) Domingos Rodrigues, mestre de cozinha da Casa Real, no reinado de D. Pedro
II, e autor do livro, A Arte de Cozinha, escreveu: "onde se nomearem todos os adubos, se
entende pimenta, cravo, noz-moscada, canela, açafrão, e coentro seco"; "se nomearem
espécies pretas, entendam porpimenta,cravo-da-India, noz-moscada" {A Arte de Cozinha
de Domingos Rodrigues. Leitura, apresentação, notas e glossário por Maria da Graça
Pericão e Maria Isabel Faria, Lisboa, 1987, p. 207).
76 María José Azevedo Santos

máticas e especiarias, geralmente associadas, há ainda uma receita


que leva cominhos.
De realçar, porém, que entre aquelas especiarias a mais indica­
da é o cravo-da-índia (45,83%), aliás, produto que, ao lado da noz-
-moscada, entre outros, denunciava pela sua raridade e elevado
preço as altas mesas (21). Logo a seguir, vem o açafrão e a pimenta
indicados em 33,33% de receitas e, finalmente, o gengibre em
20,83%.
Uma outra especiaria, a canela, merece referência particular.
Está presente em 45,83% de receitas mas, só em duas, ela é mis­
turada com os outros ingredientes; nas restantes é utilizada, tão-só,
como ornamento final: "canela pisada por riba".
Para dar sabor ácido empregou-se, em 25% das receitas, o
vinagre. E com a mesma função o sumo de limão e o de agraço (22).
Outro produto alimentar, muito referido, de origem animal, é o
ovo (62,5%). Inteiro, ou só em gemas, surge-nos na confecçâo das
massas ou, apenas, como ornamento "gemas de ovos escalfados
para ornamento" (VI e IX).

Outros ingredientes

(21) Cfr. Bruno Laurioux, Le Moyen Age à table, p. 40.


(22) Cfr. J. L. Flandrin-Olive Redon, art. citp. 402.
0 mais antigo livro de cozinha português 77

De uso milenar, e com o fim de dar sabor e tornar a comida mais


apetitosa, usou-se o sal em 45,83% dos pratos. Deveremos daqui
deduzir que as restantes receitas resultariam insossas? Não cremos,
dado o paladar activo e salgado de muitos ingredientes, como as
especiarias e as ervas aromáticas, além da provável conservação de
muitas carnes pelo processo de salmoura (23). Tudo misturado,
substituía com facilidade, o tempero do sal.

Açúcar e sal

Mas numa clara tendência para o agridoce, diga-se que ao


vinagre, ao limão, ao sal ou à pimenta, se juntou, em mais de
37,5% de receitas, o açúcar (24). Açúcar, sinal de distinção so-

(23) Residiria aqui um dos factores daquilo que B.H. Slicher van Bath designa por
"sede inextinguível" e que o homem medieval "mataria" com enormes quantidades de
vinho (Iria Gonçalves, O património do mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV,
Lisboa, 1989, p. 82). Aliás, Salvador Dias Arnaut baseando-se, entre outros dados, no
sentido figurativo em que surge, muitas vezes, o verbo beber, admite que na Idade Média
a sede não se anularia com o recurso a outra bebida senão o vinho (A arte de comer em
Portugal na Idade Média, pp. 34-35).
(24) Salvador Dias Arnaut documenta o uso do açúcar na alimentação portuguesa,
pelo menos, desde o último quartel do século XIII. Aponta para o século XV a existência
da função "açucareiro" do rei (A arte de comerem Portugal na Idade Média, p. 46). Cfr.
A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, p. 12. Não queremos,
todavia, deixar de aludir ao emprego do açúcar como mezinha ou medicamento.
O próprio livro da Infanta D. Maria é bem prova disso ao incluir na "receita para
esquinencia" (LXVI) uma onça de açúcar refinado. Outros exemplos encontramos no

6
78 Maria José Azevedo Santos
0 mais antigo livro de cozinha português 19

ciai (* 25), cuja atracção para as bocas dos sécs XV-XVI se mostrou
irresistível.
Além de ser misturado na carne ou na massa dos pastéis, foi fre­
quentemente usado para, com a canela, dar cor e beleza, final, ao
prato. Mas o açúcar está ainda presente em algumas das nove
receitas que indicam que a carne, de galinha ou outra, deve ir por
cima de fatias de pão passadas em ponto de açúcar.

Os "manjares de ovos"

Aos pratos de carne seguem-se os manjares de ovos num escasso


número de quatro receitas (26). Cabe, porém, realçar o emprego,
muito frequente, dos ovos na alimentação medieval e moderna,
relacionado, como se compreende, com a abundância de aves de
capoeira e outras.
Sobre o consumo dos ovos prescreveu o rei D. Duarte "...pera
esto non ha regra çerta por que a hús aproveyta, e a outros empe-

Livro dos Conselhos de el-rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), transcrição de João José
Alves Dias, Lisboa, 1982. É o caso da "reçepta d agoa pera dor d olhos”
(p. 250); do "Regimento que o homem deue de ter pera auer em pouco tempo boa lena"
(pp. 268-269) e dos "poos do duque" (p. 271). Todas aquelas receitas, com fins
terapêuticos, incluem quantidades e qualidades variáveis de açúcar. Curiosa é ainda a sua
presença em receitas de tinta para escrever. Neste caso, com a finalidade de dar brilho e,
por isso, o emprego de açúcar candil (Maria José Azevedo Santos, Da visigótica à carotina
- a escrita em Portugal de 882 a 1172, Coimbra, 1988, pp. 56 e 331. Acrescente-se,
finalmente, que o açúcar é, ao lado do bacalhau, da batata, do chá e do café, do cacau e
do chocolate, e ainda do milho, um dos mais importantes "alimentos novos" da nossa
culinária e farmacopeia (José Mon tal vão Machado, "Alimentos antigos e alimentos
novos", in Anais da Academia Portuguesa da História, II Série, vol. 29, Lisboa, 1984, pp.
516-518).
(25) Excelente prova disso, encontramos no facto de uma delegação de cónegos do
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra que se deslocou a Roma, em 1558, para tratar de
negócios da sua casa, ter oferecido ao seu Auditor, no Natal daquele ano, aves, canela,
pimenta e um "pão de acuquare" (Maria Helena da Cruz Coelho e Maria José Azevedo
Santos, De Coimbra a Roma - uma viagem em meados de Quinhentos, Coimbra, 1990,
pp. 42 e 101.
(26) Lembremos, porém, que no caderno dos manjares de carne se incluiu uma receita
de ovos "receita dos canudos dos ovos mexidos" que, j untamente com as acima referidas,
eleva para cinco o número de receitas de manjares de ovos. Cfr. Quadro II.
80 Maria José Azevedo Santos

çe // E porem cada hù vse de os comer como se deles sentyr" (27).

Manjares de ovos - ingredientes

"Receita dos canudos dos ovos mexidos" (XVI), "para fazer


ovos mexidos" (XXX), "canudos" (XXXI), "ovos de laços" (XXXII)
e "pastéis de marmelos" (XXXIII) são os nomes que levam os
manjares de ovos que constam do nosso códice. O ingrediente base,
nos quatro primeiros, é o ovo, enquanto no último ele está associado
aos marmelos que constituem a matéria-prima dos pastéis. Todas
as receitas são doces pois incluem açúcar (100%) pisado ou
clarificado. Ao lado de outros ingredientes, que podemos observar
no gráfico, a canela está, também, omnipresente (100%) numa
função de cor, perfume e gosto. As três principais funções das
especiarias que, ontem como hoje, estimulam o sentido da vista, do
olfacto e do tacto. O primeiro leva-nos a "comer com os olhos" (28),

(P)Livrodos Conselhos de el-reiD. Duarte, pp. 253-254. Vem apropósito mencionar


um riquíssimo manuscrito de fins do séc. XV que consiste no texto do "Parecer de D. An­
tónio Médico del Sr. D. Garcia de Toledo, duque de Alba sobre la curación del tenblor que
padecía". O parecer consta em dissertar sobre as vantagens e desvantagens das carnes, as
mais variadas, dos pescados, do beber, dos ovos (Angel Vaca - José A. Bonilla, Salaman­
ca en la documentación medieval de la Casa de Alba, Salamanca, 1989, pp. 288-312).
(28) Cfr. C. A. Wilson e outros, The Appetite and the eye. Visual aspects offood and
itsprésentation within the historie context, London, 1991.
0 mais antigo livro de cozinha português 81

o segundo a desejar só pelo cheiro, e o terceiro a "tomar consciência",


de uma forma mais ou menos inteligente, do amargo ou do doce, do
ácido ou do salgado, do quente ou do frio (29).

Os "manjares de leite"

Embora desconhecendo se houve algum critério de ordenação


nas receitas do livro da cozinha de D. Maria, verificamos que
surgem, em terceiro lugar, os "manjares de leite". Distribuem-se,
num total de sete, da receita n° XXXIV à XL. Como se pode
verificar pelo gráfico que se segue, são feitos à base de leite, açúcar,
ovos e farinha. Quer pelos títulos, quer pelos ingredientes, algumas
receitas merecem particular atenção. É, desde logo, o caso da pri­
meira, a do "manjar-branco", tradicionalmente ligado à vida con­
ventual feminina, que o confeccionava (30), e à congénere mascu­
lina que, pelo menos, em alguns casos, o consumia (31). A sua ori­
gem é incerta ainda que se possa afirmar, com segurança, que pelo
séc. XIV já era conhecido em Espanha, França e Inglaterra (32). A
sua composição, came branca (galinha), arroz, açúcar e leite (33),
bem como o formato, lembrando um seio de mulher, que a tradição,
mais ou menos genuinamente, veiculou até aos nossos dias, faz

(29) O que levou Maguelonne Toussaint-Samat a escrever: "La gustation est donc une
affaire de sensations physiques mais aussi une prise de conscience, une analyse, bref un
acte intellectuel" (ob. cit., p. 398).
(30) Como nos confirma a receita de manjarjbranco incluída no livro de receitas da
última abadessa do mosteiro de Santa Clara de Évora, Sóror Maria Leocádia do Monte
do Carmo, Livro das receitas de doces e cozinhados vários (1729), apresentação e notas
de Manuel Silva Lopes, Lisboa, 1988, pp. 13-14.
(3 *) Éo caso dos padres de S. Francisco de Santarém a quem, pela 2a metade do século
XVI, as clarissas, da mesma cidade, obsequiavam com aquela deliciosa iguaria (Maria
Angela V. da Rocha Beirante, ob. cit., p. 250.
(32) Bruno Laurioux, Le Moyen Age à table, p. 45 (são, ali, publicadas receitas de
manjar-branco de manuscritos franceses e ingleses do século XIV). Cfr. Salvador Dias
Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, pp. 114-117.
(33) Veja-se Quadro III. Sobre a substituição da carne de galinha por outras, como de
peixe ou lagosta, veja-se a obra de Salvador Dias Arnaut, citada na nota anterior, p. 117.
82 María José Azevedo Santos
0 mais antigo livro de cozinha português 83

daquele manjar um dos doces-amargos mais simbólicos e ca­


racterísticos da doçaria portuguesa.
De assinalar, ainda, que é na nomenclatura dos manjares de leite
que aparecem, pela primeira vez, dois títulos de receitas com o
nome, presumivelmente, da dama que de uma qualquer forma lhes
andava ligada — Dona Isabel de Vilhena (XXXIX e XL).
Infelizmente, a homonímia não permite identificar, sem reservas,
aquela apreciadora de requintada doçaria, sem dúvida, de elevada
condição social (34).

Manjares de leite - ingredientes

Referência merecem ainda os "beilhós de arroz" (XXXVIII) e as


"almojávenas", estas com o identificativo de Dona Isabel de Vilhe­
na (XL).
A primeira receita interessa-nos pelo título "beilhós", termo
tipicamente de Coimbra, e que anda, ainda hoje, associado aos bo­
los fritos, de Natal, feitos com abóbora e farinha (35). Os do nosso

(34) Livro de Cozinha da Infanta D. Maria,pp. 10-11.


(35) Já no séc. XVI as religiosas de Santa Clara de Santarém comiam, pelo Natal, uns
bolos fritos, beilhós, que melavam com mel e açúcar (Maria Angela V. da Rocha Beirante,
ob. cit., p. 249).
84 Maria José Azevedo Santos

códice são também fritos mas levam leite e arroz, por isso manjar
de leite. Curioso é ainda o nome "almojávenas". Termo de origem
árabe, baptiza uns bolinhos de queijo que, só pelos ingredientes, se
imagina serem deliciosos e bem próprios de uma mesa nobre.
Finalmente, unidos pelos ingredientes, que não variam em qua­
se nada (36) de uns para os outros, temos mais quatro manjares de
leite: tigeladas de leite (duas receitas), pastéis de leite e leite cozido.

As "cousas de conservas"

Vinte e sete receitas inclui a última parte do manuscrito, que


vimos percorrendo, e que leva o título geral de "caderno das cousas
de conservas". Lembremos, porém, que as três postumeiras são
mezinhas pelo que, propriamente culinárias, nos restam vinte e
quatro. Sobre o nome global do caderno, cabe ainda referir que com
a expressão "cousas de conservas" se pretendia abranger não só
doces ou frutas em conserva, mas também bolos e outras doçarias
que pelos ingredientes e processo de preparação constituíam, sem
dúvida, alimentos que se podiam conservar durante bastante tempo,
em boas condições de consumo.
Assim, em rigor, só onze receitas utilizam, efectivamente, um
método de conservar que parece ser o da calda de açúcar. As outras
treze são doces ou bolos que nada têm a ver com aquele método não
deixando, contudo, de ser alimentos "de conserva" no sentido que
acima assinalámos.
De entre as primeiras, contam-se "para fazer diacidrão" (XLI),
"casquinhas" (XLII), "receita para fazer pêssegos" (XLIII), "para
fazer limões" (XLIV), "peras e codornos" (XLV), "perinhas dor­
mideiras" (XLVI), "receita da abóbora" (XLVII), "talos dealfaçe"
(XLVIII), "para cobrir diacidrão" (XLIX), "flor-de-laranja" (L),
"para quartos de marmelos" (LIV); das segundas, indiquemos

(36) Veja-se Quadro III.


0 mais antigo livro de cozinha português 85

"para bocados" (LII), "marmelada de Cria Ximenes" (LI), "para


clarificar açúcar" (LUI), "perada" (LV), "marmelada de dona
Joana" (LVI), "para fazer alféloas" (LVII), "para confeitos" (LVIII),
"fartes" (LIX), "biscoutos" (LX), "para fazer maçapães" (LXI),
"pão-de-ló" (LXII), "pessegada" (LXIII) e "para fazer almívar de
marmelos" (LXIV) (37).
Por aquele rol de receitas, fácil é concluir como a maioria dos
seus nomes, e mais uma vez de forma simples, é inspirada na
nomenclatura dos frutos. Especial referência merece o título dado
ao doce de marmelo, marmelada. Palavra quinhentista í38) perdura,
ainda hoje, para designar, no essencial, o mesmo tipo de doce. O
nosso manuscrito dedica-lhe três receitas: uma, feita "à moda" de
uma senhora, de nome abreviado, Cria Ximenes, outra, "à moda" de
dona Joana, e ainda outra, em "bocados". Curiosos são os nomes
dados aos bolos e doces que integram também a parte final do
códice: "bocados" (em que, no entanto, se subentende "de
marmelada"), "alféloas", "confeitos", "fartes", "biscoutos",
"maçapães" e "pão-de-ló". De etimologia e significado, nalguns
casos obscuros, foram, por certo, aplicados pela correspondência
que existiria entre o sentido que guardavam e a forma, sabor, ou
ingredientes dos bolos (39).
Frutos frescos, secos, em doce, ou conserva (40), constituíam
parte importante da alimentação medieval e moderna, bem como

(37) O estudo que Maria Ángela V. da Rocha Beirante fez sobre a alimentação
quinhentista das religiosas de Santa Clara de Santarém permitiu-lhe registar o consumo
de muitos bolos e doces cuja nomenclatura é igual à do Livro de Cozinha: fartéis, cuja
receita não andariamuito longe daquelaque conhecemos, pois, incluia mel, azeite e erva-
doce; inassapães, confeitos, diacidrão, pão-de-ló e biscoitos (ob. cit., p. 249).
(38) José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, s.v.
marmelada.
(39) Sobre as dúvidas de significado que alguns termos levantam veja-se Livro de
Cozinha da Infanta D. Maria, índice de palavras, pp. 167 e segs.
(40) E citando uma vez mais a estada dos cónegos crúzios em Roma, entre 1558-1561,
e numaprovaevidente do requinte que constituiriam as "cousas de conserva", diga-se que
presentearam o Cardeal Borromeu com fruta de conserva e caixas de marmelada (Maria
Helena da Cruz Coelho e Maria José Azevedo Santos, ob. cit., p. 104).
86 Maria José Azevedo Santos

representavam, ainda, papel significativo no comércio nacional e


internacional de certas regiões do país (41). Aconselhados uns, pros­
critos outros (42), iam à mesa de leigos, de religiosos, de reis (43) e
de nobres e, por certo, do povo, em geral, dada a abundância e
variedade de árvores frutícolas que cobriam os terrenos do Portugal
dos séculos XV-XVI. Temos provas documentais do cultivo de
macieiras, pereiras, pessegueiros, cerejeiras, cidreiras, limoeiros,
laranjeiras, amendoeiras, nogueiras, entre muitas outras (44).
Mas tanto para a fruta como para todos os alimentos, sólidos ou
líquidos, colocava-se, com fortes razões, o problema da manutenção
em boas condições de consumo. A inexistência de processos
artificiais de conservação, levou o homem a recorrer a qualquer um
dos métodos tradicionais então conhecidos. Uns mais apropriados

(41) Veja-se, por exemplo, o trabalho de Manuela Santos Silva, "Para o estudo da
produção frutícola do concelho de Loulé", sep. das Actas das III Jornadas de História
Medieval do Algarve e Andaluzia, Loulé, 1989. A autora, baseando-se nos "Livros de
repartição da fruta" do séc. XV, conclui que em Loulé, pela centúria de Quatrocentos,
existia um forte comércio de exportação de fruta seca, figos e uvas, destinado à Flandres,
Brabante e cidades alemãs (p. 257). Curioso é referir que já um manuscrito francês do
século Xm, conservado naBibliotecaNacionai de Paris, cita, entre outros produtos, figos
e uvas que chegam do reino de Portugal (Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em
Portugal na Idade Média, p. 43).
(42) A fruta proibida, ao longo dos tempos, foi, sobretudo, a "verde" dado o perigo de
doenças que podia causar o seu consumo. Em tempo de peste, aquele perigo aumentaria
e, por isso, figos, amêndoas verdes, e ameixas, não podiam sequer entrar na cidade de
Florença, pelo ano de 1348 (Joie, Agrimi e Chiara Crisciani, Malato, medico emedicina
nelMedioevo, Torino, 1980, p. 230. Entre nós, D. Duarte através do "Regimento que fez
o muy claro senhor rey dom eduarte" desaconselha, entre outros alimentos, as cerejas e
pêssegos {Livro dos Conselhos de el-rei D. Duarte, p. 253). Mas a fruta "verde" continua
a ser perseguida, pois, no século XVI, em Coimbra, proíbe-se a sua venda, e na centúria
seguinte aquela que fosse encontrada na Praça seria lançada ao rio (António de Oliveira,
A vida económica e social de Coimbra de 1537 a 1640, vol. II, Coimbra, 1972,
p. 336).
(43) Sobre o consumo de fruta na mesa de D. Afonso V, veja-se o nosso estudo "O
peixe e a fruta na alimentação da corte de D. Afonso V - breves notas", sep. da Revista
Brigantia, vol. Dl, n° 3, 1983, pp. 312-313.
(44) Cfr. a riqueza frutícola da região alcobacense de Quatrocentos bem assinalada
na obra de Iria Gonçalves, O património do mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV,
pp. 93-96.
0 mais antigo livro de cozinha português 87

à came e peixe, como a salga e fumagem, outros utilizados


sobretudo na fruta, como a secagem e as caldas (45).
E é justamente este ultimo processo que parece ser aplicado em
todas as receitas de conserva que o códice contém já que elas se
limitam a referir apenas "conserva": "deitar-lhe-ão a conserva".

Coisas de conserva - frutos

Os frutos empregues são as cidras (só a casca), os pêssegos, os


limões, as peras ou os codornos (46), os marmelos e a abóbora. A
alface (só os talos) e a flor-de-laranja completam o rol dos alimen­
tos-base daquelas receitas. Duas características são, porém, comuns
a todas elas — confecção trabalhosa e prolongada. Da escolha da
fruta, sua cozedura, demolhas em águas frias e quentes, até à

(4^) Todos eles, aliás, ainda hoje empregues na nossa alimentação sem que os
congelados, ou o frio, tivessem demonstrado a sua fraqueza ou inutilidade.
(4^) Sobre este fruto veja-se Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, p. 183.
88 Maria José Azevedo Santos

colocação definitiva na conserva medeiam, no geral, quinze


dias.

Águas

A água-de-flor, à água-de-cheiro e ao almíscar, presentes em


muitas receitas, cabia, numa fase final, conceder um gosto fresco
e perfumado.
Passando ao grupo das receitas de bolos e outros doces, diga-se
que, ainda aqui, 46,15% incluem fruta. Quatro receitas são à base
de marmelos, uma de peras, e outra de pêssegos a que se junta
também marmelos. As restantes cinco receitas, à excepção do
almívar de marmelos, espécie de xarope, são muito semelhantes
pois o processo de confecção praticamente não varia. Pela-se a
fruta, coze-se, e depois pisa-se num gral. Entretanto, põe-se ao
lume o açúcar "a tomar ponto", deita-se nele a frutae deixa-se cozer
até que "se despeça do tacho". E, por experiência própria, sabemos
bem quão resistente é a marmelada e doces similares. Pode durar
anos mantendo-se em perfeitas condições de consumo. Merece
bem o classificativo de "cousa de conserva".
De longa conservação era também a alféloa (47). Trata-se, tão-

(4?) Sobre este doce, vejam-se curiosas referências em Salvador Dias Arnaut, A arte
de comer em Portugal na Idade Média, pp. 105-107.
0 mais antigo livro de cozinha português 89

Outros ingredientes

-só, de açúcar em ponto com um pouco de água-de-cheiro. Com


uma acentuada dureza, que o termo "quebrá-lo-ão" deixa imaginar,
aquela "massa" servia para enfeitar bolos.
À base igualmente de açúcar em ponto, delgado, a que se juntava
um arrátel de erva-doce, para oito de açúcar, e ainda "qualquer
água-de-cheiro", se preparavam os confeitos.
Muito curiosos são os bolos que levam o nome de "fartes". Nesta
receita cruza-se, tal como em algumas de carne, o amargo e o doce.
Assim, entre os seus ingredientes conta-se, além do mel ou do
açúcar, o cravo, o gengibre e a pimenta. Cada farte podia ainda levar
amêndoas ou pinhões.
A massa dos "biscoutos" (LX) é muito simples. Numa mesma
vasilha misturava-se farinha, açúcar, água-de-flor, água, vinho e
manteiga ou azeite. Sovava-se tudo, bem sovado, e obtinham-se os
biscoitos. Não parece ser, porém, da mesma massa o biscoito,
alimento que, pela sua resistência ao tempo, ao frio e ao calor, se
comia a bordo das armadas portuguesas e que fazendo jus à
90 Maria José Azevedo Santos

etimologia da palavra (48) seria cozido duas ou mais vezes, consoan­


te a duração das viagens (49).
Deliciosos seriam, por certo, os maçapães. Bolinhos doces que,
como atrás ficou dito, as religiosas de Santa Clara de Santarém, por
meados de Quinhentos, também confeccionavam. Tinham por
base açúcar em ponto e amêndoas pisadas, um pouco de farinha e
água-de-cheiro. No final, cada bolinho era colocado sobre uma
obreia.
Bem diferente do que hoje se denomina pelo mesmo nome é o
pão-de-ló do livro da Infanta D. Maria. Nada tem a ver com o actual
bolo de fatia, geralmente grande, fofo e muito amarelo, devido ao
grande número de gemas que, na maior parte dos casos, leva. O
pão-de-ló, cuja receita tem o número LXII no nosso manuscrito, é
mais uma "massa" composta apenas de açúcar, água-de-flor e
amêndoas pisadas. Tudo é levado ao lume e no fim corta-se às
"talhadas".
Com a omnipresença do açúcar naquelas receitas, fácil é
compreender que também se ensine a clarificá-lo (LUI). Opera­
ção que se deveria mostrar de extrema importância pois avaliar-
-se-á as impurezas e a cor escura com que ele chegava às cozi­
nhas. Aceita-se, pois, que o autor da receita fale mesmo em
"sujidade" e depois de todo o trabalho de clarificação use a palavra
"limpo".

(4*b Biscoito (do latim bis, duas vezes, e coctus, cozido).


(49) Cite-se, por exemplo, o rol de mantimentos entrados na nau de Santa Maria do
Monte que em Janeiro de 1520 partiu de Goa em direcção a Ormuz. Entre os alimentos
registados pode ler-se "seys quintaes de byxcoito" (T.T.-Li vro da receita e despesada nau
Santa Maria do Monte, núcleo antigo, n° 609, fl. 12, editado de forma criteriosa por
António Dias Farinha, "Os Portugueses no Golfo Pérsico (1507-1538) - contribuição
documental e crítica para a sua história", sep. de Mare Liberum, Revista de História dos
Mares, n° 3, Lisboa, 1991, pp. 46-55).
0 mais antigo livro de cozinha português 91

A cozinha

1. Os vocábulos e os utensilios culinarios

Pensemos em todo o afã subjacente à preparação daquelas co­


midas, não só pelo percurso dos ingredientes, mas também pelo
vocabulário empregue, quer nos verbos de acção, quer nos utensílios
culinários. Assim, podemossuporacozinheiraa "sovar"; a"amassar"
ou a "lavrar" as massas para os pastéis; a "frigir" a galinha ou o pão;
a "afogar" a carne em manteiga e cebola; a "enfriar" o carneiro, o
porco fresco ou o açúcar; a "bater rijo" o leite, com a farinha, para
o manjar branco. E imagine-se ainda o "fogo", as "brasas", o "bor­
ralho"^ "forno" ou o "fogareiro", que aquece e prepara os alimentos.
Com que sabores? Os vocábulos que pretendem definir aquela
característica são muito escassos. O termo "temperado" é o mais
frequente (41,66%). "Sabor", "saborosos" ou "ter gosto" surgem só
uma vez, enquanto a palavra doce é empregada em seis receitas
(9,83%). Para indicar o mau sabor usa-se o verbo azedar.
Mas às práticas alimentares andam ainda associadas as alfaias
da cozinha ou da mesa. O nosso manuscrito contribui um pouco
para reforçar o que já se conhece por outras fontes, aliás, algumas
bem mais antigas (50).
Com grande profusão são mencionadas: "tigela", "tigela nova",
"tigela de fogo" ou "tigelinha de barro", "panela" e "sertã" (esta

(50) Sem pretendermos, de forma alguma, ser exaustiva citemos alguns trabalhos que
publicam manuscritos com alguma riqueza de indicação de alfaias de cozinha. Maria José
Azevedo Santos, "As origens do mosteiro de S. Paulo de Almaziva", sep. de Arquivo
Coimbrão, vol. XXX, Coimbra, 1982 (apêndice documental, doc. 1 (1220); Noémiada
Conceição Simas Mendes, Palavras concretas de um inventário do séc. XIV, Coimbra,
1961 (doc. de 1366); Maria Helena da Cruz Coelho, "O senhorio crúzio do Alvorge na
centúria de Trezentos", in Homens, espaços e poderes (séculos XI-XVI). II. Domínio
senhorial, (apêndice documental, doc. de 1367); Maria José Azevedo Santos, "O peixe
e a fruta na alimentação da corte de D. Afonso V - breves notas", (apêndice documental
ms. de 1474).
92 Maria José Azevedo Santos

para frigir). Mais raro é o emprego de "tacho", "bacio de arame",


"escudela", "bacia", "prato", "tabuleiro", "púcara" ou "púcaro",
"vasilha", "borcelana", "alguidar" e "albarrada de bico". Para
cobrir usou-se o "testo", o "telhador", as "sapadouras" ou a
"sapadeira" e a "tapadeira".
Com funções mais específicas surge-nos o "canudo", ou "pau
roliço", para tender as massas, a "carretilha", para cortar os pastéis,
a "peneira de seda", ou a "joeira", para peneirar a farinha, a
"rapadoura", para rapar, o "canivete", para "lavrar" os canudos, o
"fuso", ou "furador", para furar as massas, a "escumadeira", para
tirar as escumas, o "gral", para pisar (51). E num claro sinal das
características económico-sociais daquela cozinha não faltam,
para cálculo da porção de certos produtos, as colheres de prata.
Acrescentando a tudo isto uma "pia larga" e uma "lajade mármore",
e sendo certo que o "fogo" não deixava de crepitar, obtemos uma
cozinha completa ainda que, tâo-só, pela faculdade de representar
em pensamento, palavras e coisas.
Dos utensílios, pouco aprendemos quanto às suas formas e
matéria-prima.
Todavia, a cozinha dos sécs. XV e XVI, mais diversificada e
abundante, adoptou, com certeza, novas formas de objectos, bem
como preferiu as alfaias de cerâmica ou de metal (por exemplo o
bacio de arame) às de madeira (52).

2. O pessoal

Os protagonistas da arte de cozinha, esses, eram muitos. No


entanto, o manuscrito que estudámos não nos permite conhecê-los.

(51) Quanto ao significado de muitos daqueles vocábulos veja-se o excelente glos-


sário aue acompanha a edição do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, pp. 167-244.
(52) Sobre alguns aspectos das formas e matéria-prima dos objectos culinários
relacionados com as práticas alimentares veja-se Joëlle Burnouf, "Diversification des
formes céramiques et transformation des modes culinaires à la fin du Moyen Age en
Alsace", in Actes du Colloque de Tours, mars 1979, pp. 119-126.
0 mais antigo livro de cozinha português 93

Mas eram homens e mulheres, de idades, saber e competência


variáveis, também eles diferenciados pela função que desem­
penhavam. A nomenclatura por que são tratados na documentação
medieval deixa perceber os graus sociais, culturais e económicos
que se estabeleceriam entre eles. Do cozinheiro-mor ao cozinheiro
pequeno, do pasteleiro à padeira, do assador ao açucareiro, do
braseiro ao porteiro da cozinha (53).

3. Conselhos práticos

Cabe, por fim, perguntar se o nosso manuscrito encerra, de


alguma forma, preocupações didácticas. Não cremos, pois o que
ressalta, nas receitas que estudámos, é a mistura dos ingredientes
efectuada, de uma forma geral, segundo quantidades indetermina­
das, mas prescrita com carácter imperativo (54), o que torna, hoje,
em certos casos, quase impossível a execução daqueles pratos.
Há, contudo, alguns conselhos práticos. É o caso da receita n° IV
que aconselha "e para estes pastéis serem muito mais saborosos
deitarão na massa a carne crua" e, ainda na mesma receita, " toucinho
velho, porque põe sabor".
A receita n° VIII, por sua vez, sendo de pastéis, refere que
"quanto mais delgada a massa for, tanto melhor" e, no fim, acres­
centa, muito curiosamente, "dá-los-ão a comer à mexia, pois que o
trabalho é seu, e, se os não comer, não são bem feitos". Em relação
ao alfitete, de que já falámos, aponta-se que "fique como massa de
pão lombardo".
Para as morcelas o conselho é: "metê-las-eis na fervura até que
se façam tesas e pequenas, para não arrebentarem".

(33) Salvador Dias Arnaut, A arte de comer em Portugal na Idade Média, pp. 51 e
segs.
(^4) Atentemos nas formas verbais: "apará-las-ão"; "tomarão a perdiz"; "deitar-lhe-
-ão o caldo"; "temperá-la-ão"; "emborcá-la-ão". Cfr. Marianne Mulon, "Les premières
recettes médiévales", in Pour une histoire de P alimentation, Paris, 1970, p. 240.

7
94 Maria José Azevedo Santos

Na receita n° XI, também de morcelas, refere-se "se a carne for


muito magra deitar-lhe-ão alguma carne de porco gorda".
Os manjares de ovos, de leite e de conserva, porque mais exi­
gentes na sua preparação, oferecem-nos curiosissimos ensinos
culinários. Citemos alguns dos mais interessantes, todos com base
na experiência e analogia.
Assim, na receita n° XXXIX recomenda-se que para se saber
quando a tigelada está cozida "metam pela tigela uma palha ou um
pau da mesma lenha do forno e, se sair limpa do leite, está cozida,
e se sair molhada, não o está ainda". Frequente é a indicação do uso
de um alfinete igualmente para se saber se os alimentos estão
cozidos (XLII, XLIII, XLIV). Quanto à flor-de-laranja, estará
cozida quando for provada e "não ranger nos dentes" (L).
Para cálculo do tempo de fervura diz-se "em que se possa cozer
uma pescada fresca" (XLVI), enquanto para avaliar a temperatura
da água esta deve estar "quente quanto possa sofrer a mão" (XLIX).
Mas a cozinheira deve ser observadora, sensível ao mundo que a
rodeia, aos animais, às plantas, à Natureza. Assim, aprenderá a
fazer ponto de açúcar semelhante "ao mel quando sai dos favos"
(LXIV) ou à resina dos pinheiros (LVI). E mais, calculará a fervura
do açúcar que "há-de ser como quando nasce água numa fonte, que
faz aqueles brinquilhos" (LVIII).

Conclusão

Livro de cozinha, manifestação de arte e não de um saber culi­


nário considerado como meio de satisfazer uma necessidade vital.
Livro de cozinha, da infanta D. Maria de Portugal, escrito, ou
copiado, onde, quando, e por quem, não sabemos.
Livro de cozinha, da infanta D. Maria, objecto pessoal, memória
de gostos e desejos gastronómicos particulares e colectivos.
Livro de cozinha, da infanta D. Maria, espelho da mesa de ricos,
de nobres, de príncipes e até de reis, de Quinhentos. Todo o seu
receitário reflecte à saciedade esta característica. A selecção das
0 mais antigo livro de cozinha português 95

carnes, o emprego de certos produtos, a variedade dos pratos, o


requinte da sua apresentação, tudo nos conduz às mesas dos
potentes. Potentes que unindo-se na qualidade e quantidade do
comer eram, todavia, por esse mesmo comer, divididos e hie­
rarquizados, quando se sentavam à mesa (55).
E a simbologia da alimentação, com todo o seu valor filológico,
social, económico e cultural, que "sustenta" ontem, como hoje, o
homem.

Maria José Azevedo Santos

(55) Sobre alguns aspectos do estar à mesa no séc. XVII veja-se, de Maria Isabel
Ribeiro de Faria e Paulino Mota Tavares, "Aspectos do comer e estar à mesa no século
XVn português", sep. do Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra, vol. X, 1990,
pp. 271-311.
96

APÊNDICES
Maria José Azevedo Santos

(*) Quantidade indeterminada.


(a) Deste quadro constam apenas as vinte e quatro receitas realmente de carne lendo-se omitido os "canudos dos ovos mexidos" e a “receita de lampreia" que. todavia, estio incluídas no caderno daqueles manjares.
Na dcscriçio das receitas seguiu-se a ordem do manuscrito.

(b) Como caso único, esta receita inclui frutos secos (amêndoas e pinhões).
(c) Diz-se apenas carne.
(d) Ensina-se apenas a entremear com o toucinho.
0 mais antigo livro de cozinha português 97

^ Como o próprio título indica esta receita inclui marmelos, e ainda tutanos de vaca.

^ Refere-se apenas que se faz da têmpera dos pastéis de leite mas sem açúcar.
Quadro IV • Coisas de conserva
98
Maria José Azevedo Santos

(*) Quantidade indeterminata.


(a) A conserva era uma mistura de água e açúcar levada ao lume atd fazer calda
(1*) Devia ainda juntar-se-Hw 1 púcaro de água i|iK n- lc.
0 mais antigo livro de cozinha português 99

índice Geral das Receitas do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de


Portugal

I - Este é o modo que se tem para engordar frangos a leite.


II - Para se fazer sessenta varas de veludo de pelo miúdo
III - Vinho de açúcar que se bebe no Brasil, que é muito são e para o
fígado é maravilhoso

Caderno dos manjares de carne

IV - Pastéis de carne
V - Tigelada de perdiz
VI - Galinha mourisca
VII - Galinha albardada
VIII - Pastéis de tutanos
IX - Alfitete
X - Receita das morcelas
XI - [Receita das morcelas]
XII - Como se fazem os frangãos para os hécticos
XIII - Receita dos tutanos
XIV - Receita da torta
XV - Receita de pastel de fígados de cabrito
XVI - Receita dos canudos dos ovos mexidos
XVII - Receita da lampreia
XVIII - Receita da vaca picada em seco
XIX - Receita do desfeito da galinha
XX - Receita dos pastéis dos pombinhos
XXI - Receita dos pastéis lepardados
XXII - Receita da galinha alardada
XXIII - Esta é a receita da galinha cozida e ensopada
XXIV - Receita do coelho
XXV - Receita da galinha mourisca
XXVI - Receita dos lâparos
XXVII - Receita das boldroegas
XXVIII - Receita do coelho em tigela
XXIX - Receita da tigelada de perdiz

Caderno dos manjares de ovos

XXX - Para fazer ovos mexidos


100 Maria José Azevedo Santos

XXXI - Canudos
XXXII - Ovos de laços
XXXIII - Pastéis de marmelos

Caderno dos manjares de leite

XXXIV - Manjar-branco
XXXV - Pastéis de leite
XXXVI - Leite cozido
XXXVII - Tigelada de leite
XXXVIII - Beilhós de arroz
XXXIX - Tigeladas de leite de Dona Isabel de Vilhena
XL - Alinojávenas de Dona Isabel de Vilhena

Caderno das cousas de conservas

XLI - Para fazer diacidrão


XLII - Casquinhas
XLIII - Receita para fazer pêssegos
XLIV - Para fazer limões
XLV - Peras e codornos
XLVI - Perinhas dormideiras
XLVII - Receita da abóbora
XL VIII - Talos de alface
XLIX - Para cobrir diacidrão
L - Flor-de-laranja
LI - Marmelada de C.ria Ximenes
LII - Para bocados
LUI - Para clarificar açúcar
LIV - Para quartos de marmelos
LV - Perada
LVI - Marmelada de Dona Joana
LVII - Para fazer alféloas
LVIII - Para confeitos
LIX - Fartes
LX - Biscoutos
LXI - Para fazer maçapães
LXII - Pão-de-ló
LXIII - Pessegada
LXIV - Para fazer almívar de marmelos
0 mais aníigo livro de cozinha português 101

LXV - Receita de Dom Luís de Moura para os dentes


LXVI - Receita para esquinencia
LXVII - Receita para fogo ou escaldamento

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