Livro Do Aria Tradicional Vimaranense

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Doçaria Tradicional VIMARANENSE

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FICHA TÉCNICA

Título: Doçaria Tradicional Vimaranense


Coordenação: Isabel Maria Fernandes
Assistente de coordenação: Vítor Marques
Autores dos textos: Isabel Maria Fernandes, Maria da
Conceição Costa Mendes, Nuno Vieira e Brito, Virgínia
Ribeiro
Créditos fotográficos: Paulo Pacheco; Foto Beleza;
IPVC: Instituto Politécnico de Viana do Castelo; Sofia
Sampaio de Faria Mota e Silva
Design: layout por Maria Alexandre Neves
Revisão de provas: Isabel Maria Fernandes
Editor: Câmara Municipal de Guimarães
Data de edição: 2011
Tiragem: 500
ISBN: 978-972-8050-47-4
Impressão: FALTA
Depósito legal: FALTA

Agradecimentos: Museu de Alberto Sampaio; Família


Sampaio da Nóvoa; Família Freitas do Amaral;
Sociedade Martins Sarmento; Amiguinhos do Museu
de Alberto Sampaio; Foto Beleza.
Um agradecimento muito especial à Casa Costinhas
e à Pastelaria Clarinha que permitiram a recolha de
imagens nas suas lojas.

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ÍNDICE

pág. 5 pág. 47 Mexidos ou formigos


Mensagem | António Magalhães pág. 48 Ovos-moles
pág. 49 Ovos reais
pág. 7 pág. 49 Palmilhas
Prefácio | Amadeu Portilha pág. 50 Palitos
pág. 51 Pão-de-ló
pág. 9 pág. 54 Passas
Prólogo | Nuno Vieira e Brito pág. 55 Pastéis
pág. 55 Queijadas
pág. 11 pág. 57 Queimadas de fio
Doçaria de Guimarães: um doce património, pág. 57 Sopa doce
Isabel Maria Fernandes pág. 57 Suplicos
pág. 15 Nos longínquos anos de Quinhentos e pág. 59 Tortas
Seiscentos
pág. 69 Toucinho-do-céu
pág. 15 A primazia dos doces das freiras clarissas
pág. 17 Outros doces conventuais
pág. 78
pág. 17 No século XIX: doces para todos os gostos
Conclusão
pág. 19 Os cadernos de receitas familiares – Sampaio
da Nóvoa e Freitas do Amaral
pág. 21 Doces vimaranenses: do século XVI até hoje pág. 79
pág. 21 Aletria Tortas de Guimarães: um contributo para a sua
Qualificação, Virgínia Ribeiro e Nuno Vieira e Brito
pág. 22 Arroz doce
pág. 23 Biscoitos
pág. 81
pág. 23 Broinhas
Toucinho do Céu: um contributo para a sua
pág. 23 Caramelo
Qualificação, Maria da Conceição Costa Mendes e
pág. 24 Chouriços e morcelas doces
Nuno Vieira e Brito
pág. 27 Confeitos
pág. 28 Conservas ou doces de fruta
pág. 83
pág. 39 Creme
Bibliografia
pág. 40 Doce de chá
pág. 40 Doces de romaria
pág. 87
pág. 44 Grãos doces
Legendas
pág. 44 Leite-crespo
pág. 44 Manjar
pág. 45 Massapães e massapão rosado

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MENSAGEM

A edição do livro “Doçaria Tradicional Vimaranense” é mais um esforço que a Câmara Municipal concretiza na
preservação e defesa da memória do património de Guimarães.
É hoje reconhecido por todos o grande e diversificado número de iniciativas que têm sido avançadas com esse
objectivo. Desde a reabilitação do edificado até ao levantamento de tantas tradições imateriais, temos sempre
procurado que o passado continue a ser um guião para o presente e um estímulo para as gerações futuras.
A Doçaria tradicional é também património. Em séculos passados foram criadas e experimentadas receitas
de doçaria que fizeram as delícias daqueles que habitavam o burgo, a Vila, e mais tarde a Cidade, e que
transmitidas de geração em geração continuam a presentear aqueles que a elas têm acesso.
As tortas de Guimarães e o toucinho-do-céu são apenas dois exemplos, talvez os mais marcantes, desse longo
receituário que constitui o património da doçaria tradicional vimaranense.
O levantamento que agora se publica em livro será um contributo importante para a preservação e divulgação
da nossa doçaria.
Felicito todos os que mais se empenharam na sua edição e expresso votos que ela venha a ter a divulgação
correspondente ao carinho que nela colocaram.

António Magalhães | Presidente da Câmara Municipal de Guimarães

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PREFÁCIO

Guimarães orgulha-se, desde tempos imemoriais, da riqueza e beleza do seu património edificado, cujo processo
metódico de requalificação e regeneração nos permite ostentar hoje o estatuto de Património Cultural da
Humanidade.
Mas esse patamar de excelência de Guimarães, que nos releva enquanto destino turístico cultural de referência,
não só nosso país, mas em todo o Mundo, está também intimamente ligado à qualidade e diversidade da nossa
gastronomia, onde a doçaria assume papel significativo.
E a doçaria tradicional é, objectivamente, um elemento marcante e diferenciador do nosso património cultural,
pelo seu estatuto de tradição cultural antiga, com referências bibliográficas que nos chegam desde o séc. XVI.
O receituário, a produção e utilização de alguns ingredientes locais, assim como o método de confecção,
principalmente quando falamos das Tortas de Guimarães e do Toucinho-do-Céu, são um património que
desejamos legar para os vindouros, quer pela sua intrínseca capacidade de se poderem converter numa
actividade económica capaz de gerar oportunidades de negócio, quer porque ninguém nos perdoaria se, por
inação, essa memória da nossa identidade e do nosso património se perdesse.
Com a presente edição do livro “Doçaria Tradicional Vimaranense”, a Câmara Municipal oferece um contributo
inestimável para a preservação e defesa dessa memória do património vimaranense, permitindo mesmo reavi-
vá-la, porque generaliza um receituário tradicional que potencia a reintrodução na actividade económica local de
um produto único e diferenciador de uma região e da sua cultura.
Com este livro, recuperamos memórias antigas e registamos para memória futura os receituários e a confecção
de dois doces tradicionais vimaranenses.
Um livro que só foi possível com o apoio e colaboração de algumas pessoas e entidades, a quem a Câmara
Municipal muito agradece.
À Dra. Isabel Maria Fernandes, pelo cuidado e rigor científicos dedicados ao estudo sobre a doçaria vimaranense
antiga, recuperando o seu receituário tradicional, e que permite a publicação deste livro.
Ao Prof. Nuno Vieira de Brito, do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, grande entusiasta e parceiro
empenhado deste projecto desde o seu primeiro dia.
Às suas alunas Virgínia Ribeiro e Maria da Conceição Costa Mendes, que fizeram as suas teses de mestrado
dedicadas ao tema Tortas de Guimarães e Toucinho-do-Céu: um contributo para a sua Qualificação.
Ao IPVC TV (Instituto Politécnico de Viana do Castelo), pela recolha de imagens e produção de um filme inédito,
anexo a esta publicação, onde surgem as etapas de preparação do Toucinho-do-Céu e das Tortas de Guimarães.
Sem estes contributos, um livro destes nunca seria possível.

Amadeu Portilha | Vereador do Turismo da Câmara Municipal de Guimarães

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PRÓLOGO

Arte e Gastronomia, senão mesmo a Doçaria, estiveram sempre condenadas ao longo dos séculos a viver
entrelaçadas numa quente paixão, que “regada e acarinhada” sobrevive até aos nossos tempos e integra
honrosamente a nossa Cultura e o nosso Património. Se, tal como referia Marie-Antoine Carême (1783-1833),
Doçaria é um dos principais ramos da Arquitectura e esta um dos cinco ramos de Arte:
“The fine arts are five in number, namely: painting, sculpture, poetry, music, and architecture, the principal branch
of the latter being pastry”.
Esta (Arte), manifesta-se profundamente feminina, como nos descreve Graham Kerr (The Galloping Gourmet,
1960), delicada, subtil e um pouco amarga, deixando-nos um irreconhecível sabor que persiste e perdura…
“I prefer to regard a dessert as I would imagine the perfect woman: subtle, a little bittersweet, not blowsy and
extrovert. Delicately made up, not highly rouged. Holding back, not exposing everything and, of course, with a flavor
that lasts.”
Revelar os segredos desta Arte, escondidos ao longo dos Anos numa majestosa combinação geracional, sempre
no feminino e comprometendo fidalgas, monjas, burguesas e criadas, é hoje também um profundo gesto de cultura
que orgulha toda uma região de encantos e saberes e um exercício literário e de investigação indispensável
numa ancestral cidade como a de Guimarães, que vincada e justamente pretende ser um polo de ciência,
conhecimento e cultura.
A continuidade de alguma estrutura social e familiar, que permitiu conservar receitas e tradições, a presença
de inúmeros edifícios de cariz religioso, locais físicos de outrora opulentas e influentes ordens, o interesse de
algumas famílias na “viagem” entre o passado e o presente e, por fim, o mérito de quem apoia, pesquisa e
investiga, foram ingredientes determinantes para, hoje, se reconhecer e identificar uma doçaria tradicional de
Guimarães.
Esta exaustiva pesquisa de doçaria local, baseada em receituário quer proveniente de ancestrais famílias de
Guimarães quer conventual, permite iniciar um determinante trabalho de caracterização e qualificação, muito em
particular, de dois dos mais tradicionais e emblemáticos doces conventuais provenientes do Convento de Santa
Clara: o Toucinho-do-céu e as Tortas de Guimarães.
Pensarão os puristas e defensores da genuinidade que se poderá pôr em risco a autenticidade deste património,
padronizando-o e qualificando-o. Descansem estes, já que uma das maiores riquezas destas iguarias é o
processo, o toque, o sentido, particulares e únicos que cada uma das nossas doceiras mantêm, ao longo de
toda a construção arquitectónica que revelam e surpreendem nesta específica Arte.
Sosseguem, ainda, todos os que procuram e se obstinam numa espartana e rigorosa dieta saudável. Se atentos
ao valor calórico que nos suplementa, aos ovos que nos revigoram, à amêndoa que nos recorda o Tempo Pascal
ou à chila ou o calondro que nos relembra as pequenas hortas das nossas avós, temos, então, sucessivos
momentos de prazer, de memória, gosto ou sentido, enfim, um prazer divino, certamente semelhante ao que
noviças e freiras partilhavam naquelas poderosíssimas cozinhas e refeitórios conventuais. Como diria Juvenal,
o poeta romano do Séc. I, “Gustus elementa per omnia quaerunt”.
Iremos, pois, durante este percurso literário, sonhar com as receitas das nossas famílias. Recordar como o leite-
creme, desde sempre famoso em Penselo, os ovos-moles e os ovos reais, a sopa doce ou a sopa dourada, os
mexidos ou formigos ou tantos outros doces ou suas variantes, fazem parte do nosso imaginário e, para alguns
mais privilegiados, ainda de momentos presentes de conforto prandial em épocas festivas, mas infelizmente
cada vez mais raras.

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Creio, pois, que um primeiro desafio está ganho: o da identificação do receituário de Doces de Guimarães.
Muito temos de agradecer ao interesse e labor de quem tanto gosta de Guimarães e de todo o seu Património,
museológico ou gastronómico. Mais alguma informação nos foi transmitida pela investigação nos seus trabalhos
de Mestrado, de duas alunas do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, que oportunamente valorizou a obra
final com o recurso às novas tecnologias multimédia, na missão de divulgar a Gastronomia vimaranense.
Esta inteligente estratégia de valorização dos produtos locais que a Câmara Municipal revela, implica ambição.
Ambição de, depois de identificar, registar “o saber-fazer” e o multiplicar, para que os visitantes (e mesmo os
vimaranenses) não reconheçam apenas a doçaria local de forma literária. Com este estímulo e consequente
divulgação, justifica-se a sua certificação no objectivo de reconhecer um Património Gastronómico único e
imperdível. Como dizia Brillat-Savarin “De toutes les qualités du cuisinier, la plus indispensable est l’exactitude”
(Physiologie do Goût, 1825).
Então, em Guimarães, Berço da Nacionalidade, Capital de Património e de Cultura, poderosa na sua Colegiada e
conventos, majestosa nas suas casas senhoriais, única no seu burgo classificado e invencível no seu bairrismo,
preencheremos todos os sentidos, num incomparável e inesquecível percurso gustativo que, entre outras
especialidades, descobre entre vielas e casas típicas, o Toucinho-do-céu e as Tortas de Guimarães.
Este levantar de véu e de segredos há muito escondidos desperta, cada vez mais, a curiosidade científica na
investigação dos usos e costumes gastronómicos, em particular dos seus doces, numa região muito fértil em
conventos e tradições familiares. Continuar este desafio, contribuir para a caracterização do Minho como região
de referência da Gastronomia serão, com toda a certeza, os “capítulos seguintes” desta indispensável Obra.
A todos a que para ela contribuíram, a gratidão de todos os que se interessam e envolvem nestes temas de
Património Gastronómico. A Isabel Maria Fernandes, uma muito particular e especial referência e agradecimento…

Nuno Vieira e Brito | Vice-Presidente Intituto Politécnico de Viana do Castelo

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Doçaria de Guimarães:
sua história

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Doçaria de Guimarães:
sua história
Isabel Maria Fernandes1
Numa terra de pergaminhos, com um plêiade de investigadores que ao
longo dos tempos foram dando a conhecer o património documental,
histórico e arquitectónico de Guimarães, há, no entanto, um enorme vazio
no que se refere aos alimentos e à alimentação dos vimaranenses de
outras épocas. Sobre alimentação vimaranense apenas se conhecem
os textos de: Abade de Tagilde referentes ao convento de Santa Clara
de Guimarães (GUIMARÃES, 1892-93); Alberto Vieira Braga sobre «As
indústrias caseiras de Guimarães2» (BRAGA, 1923), «Os doces de Santa
imagem 4
Clara» (BRAGA, 1927) e «Indústrias Caseiras» (BRAGA, 1928); e Eduardo
Almeida, sobre «Os doces de Santa Clara» (ALMEIDA, 1925).
De facto, a arte culinária não tem colhido a atenção dos investigadores,
desconhecendo-se o receituário usado em casa dos vimaranenses de
antanho.
Percorrendo a documentação coeva ficamos com uma ideia
dos produtos usados na alimentação e, num ou noutro caso,
ficamos a saber o nome do prato ou do doce confeccionado,
mas, não nos é dado o receituário nem nos é permitido saber
como se preparavam os alimentos que iam à mesa de cada um3.
Neste texto debruçar-nos-emos apenas sobre a arte da doçaria em
Guimarães procurando, através da documentação existente, saber que
doces os vimaranenses foram comendo aos longo dos últimos séculos.
Daremos especial atenção à doçaria confeccionada nos conventos de
Guimarães, principalmente no convento de Santa Clara, bem como
ao receituário que se perpetuou em casa de duas ilustres famílias
vimaranenses.

1
Investigadora (Museu de Alberto Sampaio). Email: [email protected]. Agradeço à Dr.ª
Maria José Meireles que conseguiu alguma da bibliografia de mais difícil acesso; à Dr.ª
Adelaide Sampaio da Nóvoa que transcreveu o receituário do caderno de receitas de Dona
Maria Henriqueta Leal Sampaio; à Dr.ª Alexandra Pedro que transcreveu o receituário dos
cadernos de receitas da Família Freitas do Amaral e à Dr.ª Maria José Nobre, da Biblioteca
Municipal Raul Brandão, que conseguiu os artigos publicados em periódicos por Alberto Vieira
Braga e Eduardo de Almeida.
2
Neste texto Alberto Vieira Braga refere a doçaria simplesmente deste modo: “e doce das
Costinhas” (BRAGA, 1923).
3
Já publicámos um texto em que se analisa o que se comia em Guimarães. Veja-se «A arte de
bem cozinhar os alimentos, em Guimarães» (FERNANDES, 2006).

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Nos longínquos anos de Quinhentos e Seiscentos


No foral concedido por D. Manuel a Guimarães, a 20 de Novembro de 1517, encontramos referência à venda de
biscoitos, queijadas e conservas de açúcar e mel4 (MEIRELES, 1994 [1517]: 55, 60). Alguns anos mais tarde,
no regimento e taxas de 15525, há referência à venda pelos oleiros de açucareiros, ou seja, de recipientes onde
se guardava o açúcar ou, talvez, as conservas de açúcar (ALMEIDA, 1930: 149).
No século XVII o açúcar ganha maior importância vindo provavelmente a substituir cada vez mais o mel na
confecção de doces. Nas actas das vereações seiscentistas refere-se o açúcar, quer o açúcar branco ou fino
quer o “açúcar preto” (BRAGA, 1992: 171, 179, 180, etc). Na acta de vereação de 23 de Janeiro de 1663, há
referência a diferentes tipos de açúcar: “puseram o açúcar fino, a 80 réis o arrátel; o mais baixo, a 70 réis; o de
pedaços, a 120 réis, e o refinado, a 200 réis” 6 (BRAGA, 1992: 191).
Em Seiscentos era costume oferecer-se doces aos membros da administração vimaranense, e, aos visitantes
ilustres “caixas de doces e pratos de ovos reais” (BRAGA, 1992: 197-198).
Os doces eram feitos pelos confeiteiros, tendo A. L. de Carvalho encontrado referência, em 1609, a um tal
Pascoal de Freitas, confeiteiro em Guimarães, que aparece citado como mamposteiro da Santa Casa da
Misericórdia (CARVALHO, 1939-1951, IV: 39).
É também no século XVII que encontramos a primeira referência a pão-de-ló em Guimarães. Numa acta de
vereação, datada de 25 de Junho de 1678, o pão-de-ló é taxado a 70 réis o arrátel7 (BRAGA, 1992: 233).

A primazia dos doces das freiras clarissas


É o abade de Tagilde quem nos dá preciosas informações sobre a doçaria do convento de Santa Clara de
Guimarães, criado no século XVI e extinto no último quartel do século XIX (FERNANDES; OLIVEIRA, 2004).
Segundo este autor nas festas do Natal, de Janeiro e dos Reis as freiras clarissas tinham como «mimos», na
“véspera de Natal, meio arrátel de pessegada, uma rosca de Braga de 40 réis, dois arráteis de passas; vésperas de
Janeiro, um pão de 20 réis, 2 pastéis, 4 frutas de doce, 2 massapães; véspera de Reis, meia galinha. A abadessa
tinha sempre o dobro” (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3).
As clarissas vimaranenses eram exímias no fabrico de doces, o que, ao longo de várias décadas, lhes granjeou
fama. Na exposição industrial de 1884, realizada em Guimarães, estiveram a concurso doces fabricados pelas
duas últimas abadessas do convento de Santa Clara, Ana Angelina Moreira e Antónia Amália Viegas8: doce de
calondro, de laranja, de pêra, marmelada e toucinho-do-céu (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 117; GUIMARÃES, 1892:
203, nota 1).

4
“A qual portagem se não pagará de todo o pão cozido, queijadas, biscoitos, farelos, ovos, leite nem de cousa dele que seja sem sal” (MEIRELES,
1994 [1517]: 55); “e por açúcar e todas as conservas dele ou de mel” (MEIRELES, 1994 [1517]: 60).
5
As «Taxas para a vila de Guimarães» e seu termo foram publicadas por Eduardo de Almeida, na Revista de Guimarães com o título de
«Regimento de Salários e Preços», datando-as este autor do ano 1522 (ALMEIDA, 1930). Mas, o documento está mal datado. De facto,
compulsado o original que se encontra no Arquivo da Sociedade Martins Sarmento, pudemos verificar que a data nele contida é 1552, e não
1522, como refere Eduardo de Almeida. Agradecemos à Dr.ª Maria José Queirós Meireles que nos ajudou na leitura deste documento.
6
Ao longo deste texto são citados diversos documentos tendo-se optado por actualizar a grafia.
7
Arquivo Alfredo Pimenta (Guimarães). Acta da vereação de 25 de Junho de 1678. Assim reza: “Pão de Ló. Nesta vereação puzerão o arratel de
pão de ló a presso de setenta reis ho arratel he que com penna de dous mil reis o não tem por mayor presso e assinarão. Goncallo Monteiro da
Costa o escrevi”. Agradeço à Dr.ª Maria José Meireles que fez o favor de me transcrever este excerto da Acta.
8
Oliveira Guimarães faz uma resenha de todas as abadessas do convento de Santa Clara, indicando como últimas abadessas: Ana Angelina da
Conceição (1862 a 1885) e Antónia Amália da Ascensão (1885-1991) (GUIMARÃES, 1893: 27-28).

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As clarissas vimaranenses confeccionavam uma enorme variedade de


doces, referidos nos textos do Abade de Tagilde (GUIMARÃES, 1892: 200,
nota 3; 202-203) e de Alberto Vieira Braga (BRAGA, 1927:113-118): arroz
de leite, arroz doce9, broinhas de amêndoa e canela, caramelo (bandeja),
chouriço doce, confeitos, doce de calondro, doce de laranja, doce de pêra,
frutas de doce, ginja (bandejas de), grãos doces, leite-crespo (prato de),
marmelada (em caixas, covilhetes, ladrilhos e tigelinhas), massapães,
massapão rosado, morcela doce (em caixas), ovos-moles, passas,
perada, pessegada, queijadas, rosca de Braga, rosca de nata, rosca de
manteiga, rosca doce, sopa doce, tortas, toucinho-do-céu10.
Parece que as clarissas abusavam do fabrico de doces, esquecendo,
talvez, as obrigações da sua Regra. De facto, na visita efectuada pelo
arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles ao convento, em 1724, este “ordenou
que cada uma das religiosas não fizesse anualmente mais de 9 arrobas de
doce” (GUIMARÃES, 1892: 203), ou seja, cerca de cento e trinta e cinco
quilos de doce por ano, por freira! Esta limitação não deve ter sido do
agrado das religiosas, pois, em 1730, é revogada pelo vigário capitular, e,
em 1771, o arcebispo D. Gaspar, permite-lhes o fabrico de “chouriços, não
obstante levarem açúcar”11 (GUIMARÃES, 1892: 203-204).
Não podemos deixar de narrar a disputa havida, em 1757, entre as freiras
e o abade António de Magalhães e Abreu: “costumavam as freiras, a 24
de Julho, dia de Santa Cristina, mandar buscar a prestação vencida pelo
S. João e por acto de primor, mimo e galanteria (como se exprimem na
contrariedade) ofereciam ao mesmo tempo ao abade, ‘a fim de lhe adoçar
a boca para não ser remisso ao pagamento’ (textual), uma caixa de doce
do peso de 8 a 9 arráteis” (GUIMARÃES, 1892: 196-197). Nesse ano, o
doce foi em menor quantidade tendo o abade apresentado queixa ao juiz
de fora de Guimarães e recorrido para o Tribunal da Relação do Porto, não
lhe tendo sido reconhecida razão.

9
Também Emanuel Ribeiro se refere, ao de leve, ao arroz doce das franciscanas vimaranenses
(RIBEIRO, 1997 [1928]: 47).
10
Alfredo Saramago, no seu livro «Cozinha do Minho», publica receitas de três conventos de
Guimarães: Convento de Santa Clara – «Arroz-doce do abade», «Sopa dourada rica» e «Bucho
doce da Irmã Teresa» (SARAMAGO, 2001: 210, 226, 233); Convento de S. José de Guimarães
(actual Lar de Santa Estefânia) – «Pudim do Patrono» (SARAMAGO, 2001: 230); Convento da
Madre de Deus de Guimarães – «Rabanadas vimaranenses» (SARAMAGO, 2001: 239). Não
sabemos onde possa ter recolhido estas receitas dado o autor não indicar a fonte.
11
Talvez o termo correcto não fosse chouriço, mas sim morcela doce. Infelizmente o abade de
Tagilde não refere o documento que consultou para podermos cotejar com o original. imagem 6

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Outros doces conventuais


Segundo informação de António José Ferreira Caldas, o Convento de
Santa Rosa de Lima, ou das Dominicas como é vulgarmente designado
em Guimarães, era “muito conhecido pelo excelente doce de fruta” que aí
se fazia (CALDAS, 1996 [1881]: 336). Emanuel Ribeiro conta que neste
mesmo convento tinham fama os suplicos (RIBEIRO, 1997 [1928]: 47).
Repare-se que o fabrico de doce de fruta, ou seja conservas de fruta, –
em calda ou cristalizada –, já aparece referido no Foral quinhentista de
Guimarães, designado então como conservas de açúcar e mel (MEIRELES,
1994 [1517]: 60).
Avelino da Silva Guimarães, em artigo publicado no «Jornal do Comércio»
sobre a Exposição Industrial de Guimarães de 1884, afirma que sendo
Guimarães “terra de conventos de freiras, a indústria da doçaria teve uma
tal prosperidade, que estabeleceu e sustentou por muitos anos abundante
comércio com Inglaterra”. Este autor refere especificamente o pão-de-
ló e o toucinho-do-céu explicando que “era, porém, no recolhimento das
Trinas, que se fabricava o melhor pão-de-ló, que disputava competências
ao afamado pão-de-ló de Margaride (Felgueiras). O toucinho-do-céu faz-
se especialmente nos conventos de Santa Clara e das Dominicas. É
uma especialidade vimaranense, muito usada em presentes de Páscoa”
(GUIMARÃES, 1991 [1884]: 248).
Não sabemos o que se confeccionava no Convento de S. José do Carmo,
mas sabemos que as freiras carmelitas “costumavam pôr na porta do
armário, onde arrecadavam o doce, um papel com o seguinte letreiro: ‘Em
louvor de S. Bento / que não venham as formigas / cá dentro’ (RIBEIRO,
1997 [1928]: 48)12.

No século XIX: doces para todos os gostos


Neste século, através do inquérito paroquial enviado pela autarquia
vimaranense, em 1842, às freguesias que então constituíam o concelho
de Guimarães, conseguimos vislumbrar um pouco do que comia o povo
(FERNANDES, 2006: 120-129). Algumas referências são feitas aos doces,
comidos, é certo, em ocasiões especiais. O pároco de S. João Baptista de
Penselo refere vários doces: leite-creme (que ele designa creme), “arroz
doce de príncipe”, aletria, “boas queimadas de fio” e “manjar de diferentes
qualidades” (LAMEIRAS, 1998 [1842]: 444). Pelas informações do pároco
de S. Salvador do Souto ficamos, por exemplo, a saber que a paróquia
tinha poucas colmeias não dando o mel “para os formigos da véspera de

12
Alfredo Saramago inclui no seu livro «Cozinha do Minho» uma receita intitulada «Pudim do
Patrono». Informando ser receita “do Convento de S. José de Guimarães” (SARAMAGO, 2000:
230).

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Natal, prato favorito destes povos em tal noite” (LAMEIRAS, 1998 [1842]: 582). Por último o pároco de Santo
Estêvão de Urgeses refere que as ginjeiras da terra eram excelentes e que com os seus frutos se fazia doce
de ginja, o mesmo sucedendo com os marmeleiros com cujos marmelos se fazia doce de “muitas qualidades”
(LAMEIRAS, 1998 [1842]: 606).
Da ceia de Natal oferecida, em 1870, aos pobres no Albergue de S. Crispim e “enquanto o mundo durar”, consta,
entre outras iguarias que era costume oferecer-se, um pratinho de arroz doce ou de aletria (CARVALHO, 1939-
1951, III: 140).
No século XIX, no «Asilo de entrevados de S. Francisco», come-se, no “dia de desobriga e quinta-feira maior, um
prato de arroz doce” (CALDAS, 1996 [1881]: 396).
Uma panorâmica da doçaria vimaranense do século XIX é-nos dada no Relatório da Exposição Industrial de
Guimarães, em 1884. Aí se expõe a doçaria vimaranense que então se confeccionava e vendia, e que podemos
subdividir de forma esquemática em cinco grupos (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 70, 116-117, 142, 175; 180, 247):
a) Doce de fruta – marmelada (em caixas, covilhetes, ladrilhos13 e tigelinhas), pessegada e perada; fruta
cristalizada – ameixa, calondro, cidrão, damasco, figo, ginja, maracujá, pêssego, pêra; doces de ameixa
comprida e redonda, de calondro, de cereja, de cidra14, de damasco, de figo, de ginja, de laranja, e de pêra,
bem como geleia.
b) Doce de ovos – pão-de-ló, pão-de-ló (bolinhol), pão-de-ló coberto, tortas, toucinho-do-céu;
c) Doces de chá – doces de chá, doce de chá coberto;
d) Doces de romaria – cavacas, doce de massa;
e) Outros – biscoitos, bolinhos, bolos, bolos cobertos, morcelas, palitos, palmilhas.

Os cadernos de receitas familiares – Sampaio da Nóvoa e Freitas do Amaral


Têm-se prestado pouca atenção aos cadernos de receitas manuscritos que se encontram nas mãos de antigas
famílias vimaranenses, mas, através deles conseguimos perceber o que se comia no século XIX e XX e ficar a
saber as quantidades e os ingredientes usados na confecção dos doces. Os cadernos de receitas são também
um modo importante para se conhecer receituário mais arcaico, como, por exemplo, as receitas dos doces que
se confeccionavam no convento de Santa Clara de Guimarães, concretamente as dos afamados toucinho-do-céu
e tortas de Guimarães, os quais ainda hoje se fazem em algumas casas particulares e confeitarias.
Os cadernos de receitas que conhecemos (séc. XIX-XX) pertencem a ilustres famílias vimaranenses e foram
escritos por mulheres, sendo que, no caso da Família Freitas do Amaral, um dos cadernos é manuscrito pelo
Tenente-coronel Duarte do Amaral Pinto de Freitas, que teve o cuidado de, em 1919, passar a limpo as receitas
mais importantes confeccionadas na família15. Como sabemos era às mulheres que competia realizarem as
lides culinárias. Nas famílias de maiores posses a mulher sabia cozinhar, mas tinha sempre o apoio de uma

13
Existe uma receita de «ladrilhos de marmelada» num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA,
2005: 107).
14
A cidra é o fruto da árvore cidreira, da família das rutáceas. Trata-se de um fruto grande e azedo que em Guimarães se usava para fazer doce
de cidra. O cidrão é a designação dada à casca da cidra cristalizada. Existe uma receita de «cidrada» num manuscrito pertencente à Livraria do
Mosteiro de Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 105).
15
Foi a Dr.ª Albertina Freitas do Amaral que teve a gentileza de identificar o nome do Coronel Duarte do Amaral Pinto de Freitas (1871-1964)
que consta num dos cadernos de receitas.

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ou mais serviçais para estas tarefas. A dona da casa, detentora da receita, por vezes limitava-se a orientar os
afazeres da cozinha vigiando para que tudo corresse em conformidade ou, se participava na feitura do doce
era apenas nas tarefas de mistura dos ingredientes e realização do doce propriamente dito, deixando para as
serviçais, por exemplo, as tarefas de cortar, descascar, partir, bater a massa, bem como a arrumação posterior
da cozinha.
Neste texto teremos ocasião de divulgar o receituário de alguns doces confeccionados desde há muito tempo
em Guimarães e que constam nos cadernos de receitas da família Sampaio da Nóvoa, descendentes de Alberto
Sampaio, e da família Freitas do Amaral.
O caderno de receitas da família Sampaio da Nóvoa, pertencia a Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio nascida
em Guimarães, a 20 de Janeiro de 1871, tendo habitado nesta cidade até cerca de 1900, altura em que se
muda, com a mãe e o tio Alberto Sampaio para a propriedade da família, Casa de Boamense, em Famalicão. Em
1925, após a morte da mãe, casa com Sebastião de Carvalho, tendo passado a residir na sua casa do mosteiro
de Landim, local onde faleceu, em 1960, com 89 anos de idade. Este caderno de receitas, que contém apenas
receitas de doces, foi recentemente publicado (FARIA; FERNANDES, 2010).
Os cadernos na posse da família Freitas do Amaral são cinco, o mais antigo deve datar do final do século XIX
ou início do século XX e os seguintes têm como base este caderno inicial (repetindo alguma das receitas do
caderno original) mas a que vão sendo acrescentadas novas receitas. No receituário da família Freitas do Amaral
encontramos também receitas de carne e peixe, apesar de conter principalmente receitas de doce.
Os cadernos situam-se cronologicamente entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, mas as
receitas que contêm são provenientes de um período mais recuado. De facto, os cadernos de receitas incluem
aquelas que uma mulher herdou do receituário de sua mãe, e que estava habituada a comer em casa de seus
pais e outros familiares, bem como aquelas que ao longo da sua vida foi recolhendo aqui e ali, e incorporando na
sua dieta. Ou seja, um caderno de receitas é sempre memória de um passado, apesar de também incluir novas
receitas. Um caderno de receitas é simultaneamente tradição e contemporaneidade.
Os cadernos de receitas, de um modo geral, estão confinados aos produtos da região. Ou seja, no receituário
vimaranense encontramos doces feitos com ingredientes locais, a que se acrescentam, de quando em vez,
ingredientes que não sendo de produção nacional são no entanto de uso generalizado desde há séculos, por
exemplo, canela e açúcar.
Os cadernos de receitas são também influenciados pelo círculo familiar em que a mulher se move, pelo que
não nos admiremos se num caderno de receitas vimaranense pudermos encontrar, por exemplo, um prato usual
em Trás-os-Montes, no Douro ou em Lisboa. De facto, estas famílias vimaranenses ilustres tinham ligações
familiares extensas e o receituário inscrito no caderno pode conter receitas de várias partes do País e mesmo
do estrangeiro. Os cadernos de receitas são dinâmicos, são espaços de confluência de influências diversas.
É também visível nestes cadernos a marca da época em que são escritos, havendo receitas que são comuns a
cadernos de diferentes famílias, o que denota o gosto culinário vigente naquele período em concreto.

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21

Doces vimaranenses: do século XVI


até hoje
Quando se trabalha com a documentação vimaranense
apercebemo-nos que há doces que aqui se fazem desde
pelo menos o século XVI. Demos dois exemplos: no
Foral de Guimarães, datado de 1517, já encontramos
referência a “conservas de açúcar e mel”, as quais
se perpetuarão até ao século XIX, constituindo, em
certos casos, uma fonte de rendimento para quem as
fazia. No mesmo documento há também referência a
“queijadas” (MEIRELES, 1994 [1517]: 55, 60), doce
que sabemos se confeccionava no Convento de Santa
Clara de Guimarães, no século XVIII (BRAGA, 1927:
117).

Se conjugarmos as referências documentais a


doces, com as receitas desses mesmos doces que imagem 8
se mantiveram nas mãos das famílias Sampaio da Aletria
Nóvoa e Freitas do Amaral, conseguimos saber quais
Só encontramos documentalmente referência à
os ingredientes e o modo de os preparar. Podemos,
aletria, em Guimarães, no século XIX, mas é provável
pois, dar contexto histórico a muitos dos receitas
que fosse doce de tradição mais antiga. É o padre
que foram sendo perpetuadas, quer nos conventos
da freguesia de S. João Baptista de Penselo que,
femininos vimaranenses quer na mão de várias
ao referir os doces consumidos na sua paróquia,
gerações de mulheres para quem a alimentação era,
em 1842, faz referência à “letria” (LAMEIRAS, 1998
para além de uma necessidade fisiológica, um modo
[1842]: 444). Este doce constava também na ceia de
de arte, um modo de sociabilidade e de afectos.
Natal oferecida, em 1870 e “enquanto o mundo durar”,
Ao divulgar este receituário arcaico conseguimos aos pobres no Albergue de S. Crispim (CARVALHO,
perpetuar a tradição doceira de uma terra que é 1939-1951, III: 140).
Património Cultural da Humanidade e que se preocupa,
Nem no caderno de receitas da família Sampaio da
também, em preservar o seu património culinário.
Nóvoa nem no da família Freitas do Amaral existe
Uma palavra de sincero agradecimento às famílias receita de aletria.
Sampaio da Nóvoa e Freitas do Amaral que nos
permitiram ter acesso aos seus cadernos de
receitas, tendo compreendido que estes só são
verdadeiramente património quando são divulgados,
e, quando, qualquer um pode confeccionar essas
receitas. Quanto mais se divulgar melhor se
perpetuará a tradição gastronómica vimaranense.

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Arroz doce Freitas do Amaral temos a receita do arroz doce de


Príncipe bem como uma receita de arroz doce que não
Ainda hoje o arroz doce aparece à mesa dos
leva leite.
portugueses, servido em ocasiões especiais e
presença obrigatória nas festas da Páscoa e do
Natal. Em 1751-1753, no Convento de Santa Clara de Arroz de príncipe (Família Freitas do Amaral)19
Guimarães as freiras confeccionavam arroz de leite16 Componentes:
e arroz doce17. Quer-nos parecer que arroz de leite e
Arroz 400 g
arroz doce são dois termos distintos para designar
o mesmo doce18 – o qual as freiras degustariam, em Leite 1 litro
várias épocas do ano – mas de presença obrigatória Açúcar fino 400 g
à mesa nos quatro domingos anteriores ao Advento Amêndoa pisada 60 g
(BRAGA, 1927: 116). Existe uma receita de «arroz Gemas de ovos batidas 10
de leite» num manuscrito pertencente à Livraria do
Canela em pau q.b.
Mosteiro de Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA,
Canela em pó q.b.
2005: 103).
Casca de limão q.b.
Arroz doce, a par com aletria, adoça, em 1870, a
ceia de Natal dos frequentadores do Albergue de S. Até meia cozedura, coze-se o arroz em água e sal.
Crispim (CARVALHO, 1939-1951, III: 140). Também no Continua-se depois no leite, conjuntamente com a
asilo dos entrevados de S. Francisco, no século XIX, canela em pau, o limão e a amêndoa e o açúcar até
era costume dar-se, no “dia de desobriga e quinta-feira este ter o ponto de espadana baixo ou o doce estar em
maior, um prato de arroz doce” (CALDAS, 1996 [1881]: massa enxuta. Previamente tem-se retirado do lume
396). e adicionado os ovos, mexendo sempre, voltando ao
lume para estes cozerem.
Em 1842, na paróquia de Penselo, a arroz doce, na
sua variante de arroz doce de príncipe, é referido como Deita-se em travessa e polvilha-se com canela.
uma das iguarias que ia à mesa dos que habitavam
naquela freguesia. O que provavelmente distingue o Arroz doce sem leite (Família Freitas do Amaral)
arroz doce, do arroz doce de príncipe, é o facto do
Coze-se o arroz em água como de costume, mas bem
segundo ser mais rico, entrando na sua composição
cozido e nesta água tem-se deitado um bocado de
ovos e amêndoa. No caderno de receitas da família
manteiga, um cálice de vinho fino, um pau de canela,
um bocadinho de sal e uma tona de limão; cozido o
arroz com isto tudo se lhe deita o açúcar a gosto,
ferve mais um pouco e vai para a mesa. O arroz doce
16
Alberto Vieira Braga, com base no livro de «Recibo e Despesa» deve ficar um bocadinho corredio, e deve levar canela
(1751-1753) do Convento de Santa Clara de Guimarães dá conta
dos ingredientes usados na confecção do «Arroz de leite» – leite, em pó na travessa.
arroz, açúcar e canela: “Outras vezes era servido arroz de leite, que
fazia quase sempre de despesa o seguinte: de leite doze canadas,
quatrocentos e oitenta de arroz, catorze arráteis quinhentos e sessenta
de açúcar doze arráteis quatrocentos e oitenta, de canela uma onça
cento e dez, soma mil e seiscentos e trinta reis” (BRAGA, 1927: 116).
17
Alberto Vieira Braga, com base no livro de «Recibo e Despesa»
(1751-1753) do Convento de Santa Clara de Guimarães informa que
“nas quatro Domingas de Advento se deu arroz doce, levaram de leite
dois almudes, de açúcar vinte e quatro arráteis, de arroz quarenta
19
arráteis, tudo fez despesa de 3$240 rs” (BRAGA, 1927: 116). Existe mais uma receita de arroz de príncipe nos cadernos de
receitas da Família Freitas do Amaral, mas trata-se basicamente da
18
Note-se, no entanto, que no livro de Recibo e Despesa do Convento mesma receita. Optamos por colocar a receita mais recente dado
de Santa Clara o arroz de leite leva canela enquanto o arroz doce não indicar as quantidades em quilogramas e ser mais específica sobre
leva. Vejam-se as duas notas anteriores. o modo de confeccionar.

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23

Biscoitos nenhuma receita deste doce nos cadernos que vimos


O biscoito é um doce seco, de formato pequeno, citando.
feito à base de farinha, açúcar e manteiga podendo No entanto, num manuscrito pertencente à Livraria do
levar outros ingredientes que lhe acrescentam sabor Mosteiro de Tibães, existe uma receita de broinhas
específico. É provável que os biscoitos de séculos doces que também levam amêndoas, canela e ovos
anteriores pudessem levar mel em vez de açúcar e (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 103).
azeite em vez de manteiga.
Sabemos que, em 1517, se confeccionavam biscoitos Caramelo
em Guimarães pois eles são referidos no foral Em 1751, as freiras clarissas vimaranenses do
vimaranense (MEIRELES, 1994 [1517]: 55, 60). Convento de Santa Clara costumavam oferecer ao
No Livro da Infanta Dona Maria, datado do final do convento de S. Domingos, na festa do seu padroeiro,
século XV, existe uma receita de biscoito feito com “uma bandeja de caramelo” (BRAGA, 1927: 118).
farinha, açúcar, água de flor de laranjeira, vinho branco O caramelo obtém-se a partir de uma calda de açúcar
e manteiga. Podendo a manteiga ser substituída pelo que se deixa levar a um ponto forte, ficando com
azeite doce. Depois destes ingredientes amassados uma cor acastanhada. Ainda hoje, em Portugal, em
faziam-se biscoitos e levavam-se a cozer em forno determinadas festividades se vendem rebuçados de
quente (LIVRO, 1986: 134-137). caramelo envolvidos em papéis coloridos.
Não sabemos como seriam estes biscoitos que
chegavam à mesa dos vimaranenses do século
XVI pelo que, apesar de existirem algumas receitas
de biscoitos nos cadernos de receitas das famílias
Alberto Sampaio e Freitas do Amaral, e dada a
enorme variedade de biscoitos que sempre existiu,
não incluiremos neste texto nenhuma receita.

Broinhas
Em 1751, as freiras clarissas de Guimarães faziam
broinhas de amêndoa que levavam açúcar, ovos,
amêndoa pisada, canela e “cheiro”20 (BRAGA,
1927: 118). Broinhas doces faziam-se em vários
conventos portugueses, sendo ainda hoje um doce
confeccionado, por exemplo, na região de Coimbra.
Desconhecemos o modo como eram feitas as broinhas
de amêndoa das exímias doceiras do convento das
Clarissas e, infelizmente, também não possuímos

20
No livro de «Recibo e Despesa» (1751-1753) do Convento de
Santa Clara de Guimarães consta: “Mais se deu uma dúzia de pastéis
e meia de broinhas, para o que se deu de açúcar quarenta e nove
arráteis: custo 3$062 e meio – para os pastéis, de manteiga de vaca
três quartilhos, custo 330 rs – de ovãos para as broinhas 480 rs –
de amêndoa uma arroba, 1$920 rs – de pisar a amêndoa e cheiro e
canela, 420 rs – de papel para se darem estes doces, 300 rs.” (BRAGA,
imagem 9 1927: 118).

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24

Chouriços e morcelas doces


A referência mais antiga que conhecemos ao fabrico
de morcelas doces constam no Livro de «Recibo
e Despesa» (ano de 1692) do Convento de Santa
Clara de Guimarães, no qual se assinala que as
freiras clarissas nesse ano, entre outros presentes,
ofereceram 24 arráteis de morcelas21 (GUIMARÃES,
1892: 202, nota 1).
O Abade de Tagilde, em artigo publicado sobre o
Convento de Santa Clara de Guimarães, informa que,
em Janeiro de 1724, o arcebispo D. Rodrigo de Moura
Teles limita o fabrico de doces no convento, não
podendo cada uma das freiras produzir anualmente
“mais de 6 arrobas de doce”. Houve reclamação por
parte das visadas tendo a ordem dada pelo referido
arcebispo sido revogada em 1730 (GUIMARÃES,
1892: 203-204).
Sabemos que, em 1751, as freiras clarissas enviaram
para Lisboa “umas caixas de morcelas” (BRAGA, 1927:
118).
A 1 de Dezembro de 1771, as freiras obtêm despacho
do arcebispo D. Gaspar permitindo-lhes “fazerem
chouriços, não obstante levarem açúcar” (GUIMARÃES,
1892: 203-204).
O chouriço é, por definição, um enchido fumado, que
imagem 10 leva na sua composição carne, gordura de porco e
temperos introduzidos dentro de tripas finas de
porco ou boi. Há chouriços que são preparados com
sangue de porco sendo então designados chouriços
de sangue.
A morcela é, por definição, um enchido fumado,
que em princípio não leva carne, entrando na sua
composição principalmente sangue de porco e
temperos diversos, sendo esta mistura introduzida
dentro de tripas finas de porco ou boi. O chouriço e a
morcela, depois de confeccionados, requerem algum
tempo de fumeiro. Quando se acrescenta açúcar ou
mel aos ingredientes destes enchidos, passa-se a ter
chouriço e morcela doces.

21
No livro de Cozinha da Infanta D. Maria, datado do séc. XVI, consta
uma receita de morcela doce (LIVRO, 1986: 23).

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25

No entanto, a definição de morcela dada acima não deixar o lombo pegar. Depois de muito bem cozido,
se coaduna com o que em Guimarães se designa deita-se num alguidar e desfaz-se com as mãos muito
por morcela. De facto, uma das receitas de morcela bem desfeito.
doce que possuímos, e que sabemos proveniente do Clarifica-se o açúcar23 e deixa-se ferver até vir a ponto
Convento de Santa Clara de Guimarães, leva carne de espadana alto; deita-se-lhe a carne dentro, torna-
de porco não entrando na sua composição o sangue. se a deixar ferver um bocado, deita-se-lhe a amêndoa,
Na exposição industrial de Guimarães (1884) o Sr. e ferve até fazer pingos grossos e pegar nos dedos.
António Serafim Barbosa entre outros doces expôs Depois disto tira-se do lume e deita-se-lhe dentro o
também “morcelas” (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 180; pão muito bem ralado; deita-se-lhe pingue de porco,
247). mais ou menos conforme se gostar; volta ao lume um
Nos cadernos de receitas das famílias Sampaio da bocado pouco, tendo o cuidado de mexer bem. Tira-se
Nóvoa e Freitas do Amaral temos uma variedade depois do lume, deixa-se esfriar um bocado e fazem-
significativa de receitas de chouriços e morcelas22, se as morcelas, metendo esta massa em tripas de
sendo que numa das receitas vem especificamente boi (delgadas).
indicado ser proveniente do Convento das clarissas
vimaranenses – «morcelas, receita do convento de S.ta
Clara (Guimarães)».
Também interessante é verificar que se faziam
morcelas doces especificamente para “dia de
jejum”. Sendo estes doces produzidos em contexto
conventual, e conhecida a prática de jejum que a
Igreja católica impunha em determinadas épocas do
ano, é compreensível que se fizessem morcelas sem
sangue, especificamente para dias de jejum.
A morcela doce era uma iguaria produzida em vários
pontos do País, correspondendo a um gosto agridoce
característico da alimentação de séculos anteriores e
de clara influência oriental.

Morcelas, receita do convento de S.ta Clara (Guimarães)


(Família Sampaio da Nóvoa)
Três arráteis de lombo de porco, seis arráteis de
açúcar grosso, 1 ½ de amêndoa, 20 réis de canela e
280 réis de pão trigo.
23
Coze-se o lombo numa panela e deita-se a água Num dos cadernos de receita da Família Freitas do Amaral explica-
se que “o açúcar limpa-se ou clarifica-se levando-o num tacho a ponto
precisa para o cozer, sem que seja preciso deitar-lhe de espadana”. No Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria também
mais água. Há-de ferver até que chupe a água toda. se descreve como clarificar o açúcar: “Deitarão a cada arrátel de
açúcar um púcaro de água e deitarão quantos arráteis quiserem
Não se deve deixar a panela deitar fora e não se deve num tacho com outros tantos púcaros de água. E, primeiro que lhe
deitem o açúcar, deitem-lhe duas claras de ovos nesta água, muito bem
batidas, que façam grandes ensaboadas. E como assim estiver, deitem
o açúcar e ponham-no ao fogo, e deixem-no ferver sem o mexerem nem
bulirem com ele. Então, depois que ferver e que se ajuntar todo aquela
sujidade, tirem-no do fogo e escumem-no e coem-no, e então ponham-
22
Num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães, no no ponto que quiserem. E se não ficar bem limpo, tomem um ovo
há a receita de «morcelas», «morcelas brancas» e «morcelas doces» numa pouca de água e tornem-lhe as escumas. E como deitar escumas
(RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 108-109). alvas, é limpo de todo” (LIVRO, 1986: 121).

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26

Morcelas de carne (Família Freitas do Amaral)24 Morcelas de mel (Família Sampaio da Nóvoa)
Lombo de porco 1 kg Um pão de cantos, meia quarta de amêndoa, uma
Açúcar clarificado 1,5 kg
25 quarta de açúcar, um bocado de pingue e algum mel.
Amêndoa pisada 300 g – 500 g O pão quer-se ralado muito miudinho, a amêndoa
muito bem pisada, o pingue derretido e a ferver, o
Pão ralado de ovelhinha26 600 g (3 pães)
açúcar em ponto de espadana; mistura-se tudo num
Pingue de porco 1 ½ quartilhos alguidar, junta-se-lhe algum mel, mas não muito, e
Água 2 ½ litros mexe-se bem para que tudo fique bem misturado.
Canela em pau q.b. Depois enchem-se em tripa de boi, a qual deve estar
Tripa de boi, não muito larga, cortada em traços de muito bem lavada, atam-se e metem-se num tacho em
0,15 m água a ferver e aí se deixam ferver alguns minutos. As
morcelas devem-se meter no tacho penduradas numa
Em primeiro lugar coze-se, muito bem o lombo; desfaz-
cana de maneira que não toquem no fundo do tacho e
se ou pisa-se bem. Deita-se esta carne no açúcar que
não devem ficar muito cheias para que não rebentem.
misturado com a água, vai a ponto de espanada, e
com a amêndoa se deixa cozer. Depois de ferver bem Cada pão de cantos pode dar quatro morcelas.
tira-se o tacho do lume e deita-se-lhe o pão, o pingue e
a canela. O cozinhado não torna ao lume, mas mexe- Receita para fazer morcelas de dia de jejum (Família
se muito bem para incorporar estes componentes. A Freitas do Amaral)27
tripa está já, previamente, atada de um lado com fio
A cada dois arráteis de açúcar se deve deitar meio
suficientemente comprido que chegue para atar do
arrátel de amêndoa bem pisada, e meio quartilho de
outro lado. Ainda bastante quente a massa, enchem-
manteiga.
se as tripas e atam-se. Depois vão as morcelas
a encalir até que a água ferva bem; pondo-se, A amêndoa deita-se-lhe quando o açúcar está a chegar
em seguida, ao fumo, mas não por muito tempo e a ponto de espadana. Depois de ferver um pouco e já
somente até secarem. quando a espadana está completa, tira-se para fora
do lume e se lhe deita o pão trigo muito ralado que
vem a ser dois pães a cada arrátel de açúcar, meia
onça de canela e um vintém de água de flor.
Depois se abafa com um alguidar por algum tempo.
Logo depois se enchem e depois de atadas se
encalem e põe ao fumo.

24
Existem mais três receitas de morcela de carne nos cadernos de
receitas da Família Freitas do Amaral, mas trata-se basicamente da
mesma receita. Optamos por colocar a receita mais recente dado
indicar as quantidades em quilogramas e ser mais específica sobre
o modo de confeccionar.
25
Veja-se como se clarifica o açúcar na nota N.º 21.
26
Pão de Ovelhinha é a designação dada ao pão de quatro cantos
produzido no lugar de Ovelhinha, em Gondar, freguesia do concelho
27
de Amarante. Hoje em dia o pão mais conhecido produzido naquele Existem mais duas receitas de morcela de dia de jejum nos
concelho é o Pão de Padronelo, tendo deixado de se produzir pão cadernos de receitas da Família Freitas do Amaral, mas trata-se
em Ovelhinha, mas produzindo-se ainda em padarias do vizinho lugar basicamente da mesma receita. Optamos por colocar a receita mais
de Chedas. Veja-se http://informaticahb.blogspot.com/2008/04/ recente dado indicar as quantidades em quilogramas e ser mais
ovelhinha-gondar-amarante.html. específica sobre o modo de confeccionar.

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27

Chouriços com sangue de porco e mel e açúcar (Família Sampaio da


Nóvoa)
Fazem-se como as morcelas de mel com a diferença de se lhes juntar
sangue de porco que não esteja coalhado, mais ou menos como se
quiser. Quando se lhe deita o sangue, a massa não deve estar muito
quente para o sangue não cozer. Depois de cheias, cozem-se em água a
ferver como as morcelas de mel, mas querem maior fervura para que o
sangue fique cozido, para que não se estraguem.

Receita para fazer chouriças de sangue (Família Freitas do Amaral)


Dois arráteis de açúcar mascavado, uma porção de nozes muito pisadas,
meio quartilho de mel, sal, farinha milhona passada pela peneira de seda,
mas em quantidade relativa à porção da água que levar.
Advirto que o sangue é do que sai do porco depois que se dependura e
se lava com vinho verde. A água em que elas devem ser feitas é a mesma
em que se coze a carne.
A carne deve ser muito cozida e desfeita aos bocadinhos com alguns
ossos de suão. Depois de feitas se encalem e se põe ao fumo.

Confeitos
Confeitos são pequenas pastilhas de açúcar muito usadas nos séculos
anteriores. No Livro de receitas da Infanta D. Maria, datado do final do
século XV, encontra-se uma receita de confeitos que leva açúcar em ponto
“muito delgado”, erva-doce e água-de-cheiro (LIVRO, 1986: 128-131).
No ano de 1692, as freiras clarissas do convento de Santa Clara oferecem
de presente “confeitos na importância de 2$240 réis” (GUIMARÃES, 1892:
202, nota 1).
Emanuel Ribeiro, em texto escrito em 1923 e reeditado em 1928, diz que
“no Minho há o hábito de fazerem passar por debaixo do andor de S. Luís
as crianças tardeiras na fala, levando aquelas um cartucho de confeitos na
mão direita. As pessoas que as acompanham dizem alto:
“S. Luís, rei de França
Dai fala a esta criança
Que ela quer falar e cansa” (RIBEIRO, 1997 [1928]: 34).

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28

Conservas ou doces de fruta


No foral vimaranense de 1517 temos referência a conservas de açúcar e mel28 (MEIRELES, 1994 [1517]: 60).
É interessante verificar que já nessa altura o açúcar começava a substituir o mel na confecção dos doces. As
conservas de açúcar e mel não são mais do que uma mistura de açúcar, água e fruta, sendo que o açúcar,
juntamente com a água, tem de ir ao lume até atingir o ponto necessário para “cozinhar” a fruta. Deste modo
esta conserva-se muito mais tempo (daí o termo conserva). Este processo era o indicado para poder conservar
durante mais tempo a fruta, transformando-a num alimento de alto valor calórico e energético.
Esta designação genérica de «conservas de açúcar e mel» servia provavelmente para designar toda a fruta
cozinhada em calda de açúcar, podendo adquirir a forma de compotas29, purés de fruta30, fruta em calda31, fruta
cristalizada32 e geleia33.
O termo «doce de fruta» designa todo o doce feito com fruta e açúcar, sendo que em tempos mais recuados o
mel substituiria o açúcar. No entanto, no século XIX, «doce de fruta» parece passar a designar especificamente
as compotas de fruta.
O termo «fruta de doce» designa apenas a fruta cristalizada.
No livro de cozinha da Infanta Dona Maria, datado do séc. XVI são referidos vários doces de fruta alguns dos
quais se confeccionavam e ainda se confeccionam em Guimarães34.
Encontramos em diversa documentação vimaranense a referência a caixas de doce ofertadas em diferentes
ocasiões. Talvez estas caixas de doces contivessem fruta de doce.
Em Novembro de 1665, a Câmara Municipal oferece ao General de Almeida, Pedro Jacques de Magalhães e ao
Marquês de Schomberg, que passaram por Guimarães, caixas de doces, sendo seis delas, “grandes” (BRAGA,
1992: 197). No mês seguinte decide “dar um serviço (presente) aos Condes de S. João e da Torre, como convinha
às pessoas de sua qualidade, que por aqui passaram, vindos do Minho, e constou de seis caixas de doce e um prato
de ovos reais, por não haver tempo para outra coisa” (BRAGA, 1992: 197). Também as freiras clarissas, em 1757,
e mantendo um costume antigo, enviam ao abade António de Magalhães Abreu “uma caixa de doce do peso de
8 a 9 arráteis” (GUIMARÃES, 1892: 196-197).
Nos conventos das dominicas (CALDAS, 1996 [1881]: 336) e das clarissas vimaranenses produziu-se «doce de
fruta».

28
“e por açúcar e todas as conservas dele ou de mel” (MEIRELES, 1994 [1517]: 60).
29
Compota – fruta em pedaços que vai ao lume a cozer numa calda de açúcar e água, ficando com uma consistência pastosa.
30
Puré de fruta – fruta cozida e passada pela peneira, pelo passevite ou mais recentemente pela varinha mágica, à qual se mistura uma
quantidade semelhante de açúcar. Em Guimarães, as freiras clarissas e dominicas faziam: puré de marmelo, designado marmelada; puré de
pêra, designado perada; e puré de pêssego, designado pessegada.
31
Fruta em calda – de um modo geral usa-se a fruta inteira e descaroçada, que vai ao lume a cozinhar numa calda de açúcar e água. Na fruta
em calda distingue-se bem a fruta da calda, tendo esta uma consistência mais ou menos forte consoante o gosto de cada um.
32
Fruta cristalizada – também designada fruta confeitada ou glaceada é feita com fruta descaroçada e cozida em água, sendo depois cozinhada
numa calda de açúcar. No final a fruta é coberta com um xarope de açúcar quente ficando com um aspecto cristalino. No livro de receitas da
família Sampaio da Nóvoa a fruta cristalizada é designada fruta seca, o que não está correcto. De facto fruta seca é aquela que é seca por
processos naturais.
33
Geleia – feita com parte da fruta cozida em água (por exemplo no caso da geleia de marmelo usam-se as cascas e os caroços). Depois de
cozida escorre-se a água sendo esta misturada com uma quantidade semelhante de açúcar e posta ao lume até ganhar presa. As geleias ficam
com um aspecto semitransparente e uma textura gelatinosa.
34
Os doces de fruta referidos no Livro da Infanta D. Maria são: compota de diacidrão, casquinhas, compota de pêssego, doce de limão, compota
de pêras ou codornos, perinhas dormideiras, doce de abóbora, diacidrão cristalizado, doce de flor de laranjeira, marmelada de Ximenes, bocados,
compota de marmelo, perada, marmelada de D. Joana, pessegada, geleia de marmelo (LIVRO, 1986).

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29

De entre os doces de fruta confeccionados em Guimarães encontramos referência a: marmelada (em caixas,
covilhetes, ladrilhos e tigelinhas), pessegada e perada (GUIMARÃES, 1892: 202, nota 1; BRAGA, 1927: 118);
fruta cristalizada – ameixa, calondro, cidrão35, damasco, figo, ginja, maracujá, pêssego, pêra (GUIMARÃES, 1991
[1884]: 247); doces de ameixa comprida e redonda, de calondro, de cereja, de cidra, de damasco, de figo, de
ginja, de laranja, e de pêra (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 69-70; 116-117; 180); bem como geleia.
Através do Livro de receita e despesa de 1692, do Convento de Santa Clara de Guimarães, ficamos a saber que
cada freira clarissa tinha direito, entre outros «mimos», na véspera de Natal a “meio arrátel de pessegada” e,
nas vésperas de Janeiro, a “quatro frutas de doce” (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3). Explique-se que perada,
pessegada36 e marmelada eram doces feitos com puré de fruta e açúcar, sendo de notar que no Livro de Cozinha
da Infanta D. Maria já aparecem receitas de marmelada, perada e outra de pessegada (LIVRO, 1986: 116, 122,
140). Refira-se que a receita da perada da Infanta Dona Maria não difere muito no modo de confeccionar da que
vem inscrita no caderno de receitas de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio e que abaixo reproduzimos. A única
diferença a apontar é que, no primeiro caso, a pêra é utilizada com casca, e, no segundo, sem ela.
Nesse mesmo ano de 1692, se inscreve, no Livro de receita e despesa, os presentes oferecidos pelas freiras
clarissas entre os quais constam “perada e marmelada 25 caixas, que importaram em 13$700 réis” (GUIMARÃES,
1892: 202, nota 1).
Alberto Vieira Braga, com base no livro de «Recibo e Despesa» (1751-1753) do Convento de Santa Clara de
Guimarães dá conta dos presentes oferecidos pelas freiras nesses anos, e entre os quais constam: “perada,
marmelada (em caixas, covilhetes, ladrilhos e tigelinhas), pessegada, bandejas de ginjas” (BRAGA, 1927: 116).
No Livro de «Recibo e Despesa» (1751-1753) especifica-se a quem estas oferecem os doces que as deixaram
famosas: “a quem emprestou d[inheir]ro à comunidade, uma rosca de nata, dois covilhetes (de marmelada), 150
rs”37 (BRAGA, 1927: 117).
Mas nem só em espaço conventual se produziam os doces de fruta. Em 1842, o pároco de Santo Estêvão de
Urgeses refere que as ginjeiras da terra eram “excelentes para doce”, colhendo-se também marmelos com que
se produzia doce de “muitas qualidades” (LAMEIRAS, 1998 [1842]: 606). Existem duas receitas de doce de
«ginjas» num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 106-
107).
Num dicionário geográfico datado de 1852, ao referir-se a Guimarães aí se informa ser a cidade “comerciante
e laboriosa em obras de ferro e de linho; doce de ameixa e de figos (que em 1835 rendeu oito contos de réis)”
(PEREIRA, 1852: 133).

35
Cidrão é uma fruta cristalizada feita com a casca da cidra. Na «Arte de Cozinha» (1693) de Domingos Rodrigues consta uma receita de «cidrão
de conserva» (RODRIGUES, 2001 [1693]: 138). No livro de cozinha da infanta D. Maria existem três receitas feitas com cidra - «para fazer
diacidrão», «casquinhas», «para cobrir diacidrão» (LIVRO, 1986: 86, 90, 108). A última receita é o modo de fazer casca de cidra cristalizada. Existe
uma receita de «diacidrão» num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 105).
36
Num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães, existem as seguintes receitas: «perada», «perada de peras carvalhais», «peras
cobertas», «peras em conserva», «pessegada», «outro modo de fazer pêssegos» (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 111-112).
37
Alberto Vieira Braga especifica os presentes oferecidos pelas freiras entre 1751-1753: “Também recebiam, (como se vê pelo livro de contas)
em uso e costume, presentes de caixas de ladrilhos de seis arráteis e covilhetes, todos os anos, as pessoas seguintes: o médico da casa, Dr. Manuel
Lopes, uma caixa e 4 covilhetes; Dr. João Gonçalves, uma caixa; ao Letrado da casa, uma e 4; ao Almoxarife, 2 caixas; ao P.e capelão, 3 covilhetes;
ao P.e confessor, 2; ao sacristão, 1; ao P.e que diz a missa de prima, 2; ao Sangrador, 2; ao rendeiro de Ribeiros, 2; ao dito de Lanhoso, 2; ao dito de
Basto, 1; a quem trata dos juros em Lisboa e esmola de cera, 2 caixas e mais algum mimo segundo o seu merecimento; ao P.e pregador da calenda,
2 caixas pequenas de arrátel e meio; quando se faz alguma escritura se dá um covilhete ao escrivão e a todas as pessoas que trazem juros ou
alguma pensão de dinheiro se dá um covilhete e uma caixa pequena” (BRAGA, 1927: 118).

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30

A confecção de doce de fruta era uma actividade importante em Guimarães, pelo menos desde o século XVIII,
mas, aquando da exposição industrial vimaranense de 1884, já se encontrava em decadência: “a histórica
indústria de doce de fruta de Guimarães tem decaído de tal modo que hoje resta apenas uma sombra do que foi
em outros tempos” (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 69-70).
Avelino da Silva Guimarães, em artigo publicado, em 1884, em «A correspondência de Portugal», informa que
sendo Guimarães “terra de conventos de freiras, a indústria de doçaria teve uma tal prosperidade, que estabeleceu
e sustentou por muitos anos abundante comércio com Inglaterra” (GUIMARÃES, 1991 [1884]: 248). No entanto,
aquando da exposição industrial de Guimarães em 1884, o doce de fruta já estava em decadência, sendo feito
quer com fruta local quer com a que vinha do Douro, ocupando-se na sua confecção cerca de trinta mulheres.
Avelino da Silva Guimarães aponta como causa da decadência desta doçaria quer uma fraude perpetrada por
um negociante que utilizava caixas com peso excessivo quer a fama adquirida pelo doce de fruta doutros locais
produtores38 (GUIMARÃES, 1991 [1884]: 248).
No relatório da Exposição Industrial de 1884 diz-se que “a confeitaria de frutas compreende as seguintes
variedades: marmelada, geleia, pêra, figo, ameixa, damasco, calondro ou abóbora branca, ginja e cidra. As frutas,
açúcar e combustível, que empregam por ano, valerão 1400$00 réis, e a produção deverá regular por 3500$00
réis. Empregam-se nesta espécie 25 pessoas, quase todas do sexo feminino, desde Junho a Outubro; digamos 12
por ano” (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 69-70).
Joaquim de Vasconcelos também esteve presente na exposição industrial de 1884 escrevendo sobre ela no
«Comércio do Porto»: “Quem subir a elegante escada encontrará na primeira sala o que há de mais apetitoso no
género doces, desde o pão-de-ló monumental de 0,60 cm de diâmetro, até à fruta confeitada de maior apreço,
oculta entre as flores e rendas de uma boceta vistosíssima” (VASCONCELOS, 1991 [1884]: 142).
Graças aos cadernos de receitas das famílias Sampaio da Nóvoa e Freitas do Amaral conseguimos ainda hoje
saber como se faziam alguns destes doces de fruta que se foram perpetuando em mãos femininas. Refira-se
que ambos os cadernos contêm muito mais receitas de doces de fruta, no entanto, iremos inserir aqui apenas
as receitas que a documentação nos permite saber terem sido produzidas noutros tempos em Guimarães.
Não podemos afirmar que as receitas abaixo apresentadas correspondem exactamente ao modo como eram
confeccionados os doces nos séculos anteriores, mas cremos que o processo de produção seria semelhante.
A única receita que corresponderá seguramente aquela que a documentação nos dá a conhecer é a receita dos
figos cristalizados, constante no caderno de receitas de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio (Família Sampaio
da Nóvoa), na qual se anota ser originária do Convento de Santa Clara de Guimarães.
Através dos documentos atrás referidos podemos afirmar que, em Guimarães, se fabrica desde há séculos
doces de fruta, cuja qualidade era reconhecida fora de portas e cujo saber-fazer se foi perpetuando quer nos
conventos quer nas casas de família.

38
“O doce de fruta ainda hoje se fabrica, mas apenas para consumo interno. Diz-se que uma fraude no peso das caixas, grosseira invenção de
um falecido negociante, fora a causa da perda deste ramo de comércio da exportação. Naturalmente, a maior foi o tornarem-se conhecidos outros
centros produtores. O doce de fruta é geralmente bem feito, quer com a fruta importada do Douro, quer com a produzida no concelho. Esta indústria
ocupa uma população feminina, que pode calcular-se em 30 pessoas pelo menos nas ocasiões de colheita e fruta e nas festas do ano, e de 10
pessoas, ou mais, que se ocupam durante todo o ano no doce de chá e de romarias” (GUIMARÃES, 1991 [1884]: 248). imagem 1

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32

Figo seco, receita do Convento de S.ta Clara de Receita para fazer figos de doce (Família Freitas do
Guimarães (Família Sampaio da Nóvoa)39 Amaral)40
Um arrátel de figo, outro de açúcar. Os figos devem ser muito cozidos, e para isso é
Os figos não se querem inteiramente maduros, e melhor que se ponham ao lume em um púcaro, que
querem-se colhidos com o pé. não tenha servido a gordura, e sempre cobertos, e
podem-se pôr em água fria; depois de estar cozidos
Picam-se os figos com um garfo, deitam-se num
escorre-se a água, e deitam-se os figos em água
alguidar e cobrem-se com água a ferver: deixam-se
fria, e deixam-se estar um pouco. Depois tem-se o
estar uma hora.
açúcar coado, e escorre-se a água que se lhe tem
Tem-se o açúcar ao lume em ponto de espadana baixo, deitado, e se lhe deita o açúcar mesmo assim sem
tiram-se os figos da água e deitam-se no açúcar, onde ponto, só coado. O açúcar regula quatro arráteis
se deixam ferver bastante tempo. É preciso mexê-los cada cento. Depois todos os dias levam calda, o que
com cuidado para os não escangalhar. Depois tiram- é deitá-los no tacho e ferverem um pouco, e depois
se com um garfo, um a um, outra vez para o alguidar tiram-se do lume, a primeira vez devem estar pouco
e deita-se-lhes outra vez o açúcar por cima e deixa-se tempo a ferver, e depois vão fervendo mais tempo até
ficar até ao dia seguinte. completar cinco caldas: a última deve ficar em ponto
No dia seguinte, tornam ao lume – pode-se fazer esta que faça fio no dedo, mas não muito forte. Põem-se
operação pela manhã e repeti-la à tarde, pois para depois a escorrer em um raro, e vão depois para o sol
ficarem bons precisam levar três caldeadelas, isto é, em tabuleiros mas mudam-se de tabuleiro, e viram-se
irem ao lume três vezes. Da última vez deve ficar o para secar depressa.
ponto subido para poderem secar.
Tiram-se na última vez para o alguidar e deixam-se Doce de pêra (Perada) (Família Sampaio da Nóvoa)41
ficar no açúcar até ao dia seguinte, para se tomarem
Um arrátel de açúcar, outro de pêra. Descasca-se a
bem do açúcar: então tiram-se, escorre-se-lhe bem o
pêra, parte-se aos quartos, cozem-se e passam-se
açúcar e põem-se em peneiras a secar no sol.
pela peneira.
São muito bons.
Tem-se o açúcar ao lume em ponto forte, tira-se o
tacho do lume e junta-se a pêra. Torna-se a pôr ao
Figo de calda (Família Sampaio da Nóvoa) lume, até o doce engrossar e fazer espelho. Tira-se do
Prepara-se como para doce [sic, mas leia-se figo] lume, deita-se em malgas, deixa-se arrefecer e põe-se
seco, mas pode-se fazer só de uma vez. É muito bom ao sol até ganhar vidro; assim se conserva durante
e metido em frasco conserva-se muito tempo. todo o ano.
N.B. O figo para secar pode-se conservar todo o ano na
calda, e vai-se secando à medida que se quiser.

40
Existe outra receita de doce de figo nos cadernos de receitas
da Família Freitas do Amaral, mas trata-se basicamente da mesma
receita.
39 41
No caderno de receitas da família Sampaio da Nóvoa chama-se Repare-se na designação perada, que, como já atrás referimos é
fruta seca ao que hoje designamos como fruta cristalizada. De facto designação antiga. De facto, à fruta feita em puré e cozida em calda
fruta seca é aquela que é seca por processos naturais. Assim sendo de açúcar acrescenta-se o sufixo “–rada” e deste modo se designa o
onde diz figo seco deveria dizer figo cristalizado. doce – marmelada, perada, pessegada….

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33

Calondro seco (Família Sampaio da Nóvoa)42


Para fazer o calondro seco é preciso para cada quilo de calondro 1500 gramas de açúcar areado.
Descasca-se fatias de calondro grosso – coze-se em água fria.
Depois coze-se em água simples, com umas pedrinhas de sal refinado – meia cozedura. Tira-se, deixa-se
arrefecer e deita-se em alguidares cheios de água fria e deixa-se estar 2 ou 3 dias, mudando-lhe todos os dias
a água para ele perder o gosto ao cabaço.
Quem o quer muito branquinho, põem-no ao sol a corar.
Põe-se ao lume o açúcar em ponto de espadana muito baixo, deita-se-lhe dentro o calondro e deixa-se ferver um
pouco; tira-se do lume e deixa-se ficar na calda umas poucas de horas. Repete-se esta operação duas vezes por
dia até o calondro estar bem passado e em ponto de secar. Então tira-se para uma rede ou peneira de cabelo
e põem-se a secar ao sol.
É costume, para quem tem prática, deitar a água precisa no açúcar e esta vai apurando até o calondro estar
pronto. Fica muito bem.

Doce de calondro (Família Freitas do Amaral)43


Calondro cozido e partido aos bocadinhos, sem casca 500 g
Açúcar branco por clarificar 500 g
44

Água ½ litro
Põem-se a água ao lume num tacho. Quando esta começa a aquecer deita-se-lhe algumas claras de ovos e
mexe-se muito. Depois lança-se-lhe o açúcar e quando principia a ferver borrifa-se com água, até 3 vezes. Depois
côa-se. Em seguida leva-se o açúcar a ponto de espadana subido. Deita-se-lhe o calondro e aí ferve até estar
em ponto grosso, isto é: tira-se um pouco para um pires e logo que ele faça uma pequena côdea, pode-se tirar
para malgas.

Receita para fazer doce de ginja (Família Freitas do Amaral)45


Tira-se-lhe o caroço com um palito, depois pesa-se e logo em seguida se põem a ferver em água, e apenas
levanta fervura tira-se para fora do lume e se deita em um guardanapo e se dependura até escorrer. Depois de
limpo e coado o açúcar se coloca o tacho no lume, e se lhe deita a cereja a qual deve ferver até que a calda faça
uma codinha espelhada; e mostrando essa mesma codinha está pronta.
A cada arrátel de açúcar, deve deitar-se arrátel e meio de fruta.
N.B. a nove e meio de açúcar, 14 arráteis de fruta. N.B. ou um arrátel e quarta a sete de açúcar.

42
Nos cadernos de receitas existem duas receitas de calondro seco, mas não diferem muito uma da outra. No caderno de receitas da família
Sampaio da Nóvoa chama-se fruta seca ao que hoje designamos como fruta cristalizada. De facto fruta seca é aquela que é seca por processos
naturais. Assim sendo onde diz calondro seco deveria dizer calondro cristalizado.
43
Existem quatro receitas de doce de calondro nos cadernos de receitas da Família Freitas do Amaral, mas correspondem basicamente a uma
mesma receita. Decidimos incluir esta receita dado os pesos indicados serem em gramas, ao contrário das outras que ainda são em arráteis.
44
Veja-se como se clarifica o açúcar na nota N.º 21.
45
Nos cadernos de receitas existem quatro receitas de ginja, mas não diferem muito umas das outras.

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34

Ameixa seca (Família Sampaio da Nóvoa)46


Um arrátel de açúcar para um arrátel de ameixa.
As ameixas querem-se muito doces e de polpa dura, como a ameixa Rainha Cláudia. Nem muito verdes, nem
em completa maturação.
Tem-se ao lume um tacho com água bem quente, sem ferver e o lume deve ser apenas um pequeno borralho.
Deitam-se dentro as ameixas e deixam-se cozer aí um pouco, mas não se deixa ferver a água: quando apertando
a ameixa entre os dedos se conhecer que o caroço está a despegar, estão prontas. Não se mexe, apenas se
abana o tacho. É preciso muito cuidado para elas não perderem a casca (é uma operação muito melindrosa).
Tiram-se e deitam-se em água fria durante algumas horas e durante esse tempo, renova-se-lhe a água algumas
vezes.
Tem-se ao lume o açúcar em ponto de espadana não muito alto, deita-se-lhe as ameixas e deixa-se ferver um
bocadinho, muito pouco.
Tiram-se para fora com muito cuidado para se não escangalharem e deixa-se o açúcar ao lume a ferver mais um
bocado, o qual se deita em seguida em cima das ameixas.
Nos dois dias seguintes, repete-se esta operação.
Deixam-se descansar dois dias ou três, no fim dos quais se torna a repetir esta operação; é a última. Deixam-
se então descansar na calda uns poucos de dias, ao fim dos quais se tiram da calda, escorre-se-lhe bem esta,
lavam-se em água fria e põem-se em redes ao sol a secar.
Não se lhe tira o pé.
Ficando bem feito, ficam muito boas.
Só servem ameixas muito doces e de carne dura, nem verdes, nem completamente maduras. Querem-se colhidas
de véspera. São difíceis de fazer.

Receita para fazer marmelada47 branca (Família Freitas do Amaral)48


Cozem-se os marmelos inteiros, esbulham-se e ralam-se depois sem que se chegue a entrar no caroço. Depois
passa-se a massa por uma peneira de cabelo fina, ou por uma meia de linho. Mede-se depois por um copo de
quartilho, e a cada quartilho de massa deitam-se-lhe dois arráteis de açúcar bom e que seja do brasileiro.
O açúcar deve levar-se ao ponto de rebuçado e depois tira-se para fora do lume e se lhe deita a massa. Torna
depois ao lume e fervendo um pouco tira-se para fora e se lança em copos.

46
No caderno de receitas da família Sampaio da Nóvoa chama-se fruta seca ao que hoje designamos como fruta cristalizada. De facto fruta seca
é aquela que é seca por processos naturais. Assim sendo onde diz ameixa seca deveria dizer ameixa cristalizada.
47
Num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães, existe a receita de «ladrilhos de marmelada», «marmelada» e «marmelada
vermelha» (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 107-108).
48
Existem três receitas de marmelada branca nos cadernos de receitas da Família Freitas do Amaral, mas correspondem basicamente a uma
mesma receita. Um dos títulos explicita que se trata de «Receita de marmelada branca de talhada». imagem 1

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35

Receita de marmelada de sumo


ou vermelha (Família Freitas do
Amaral)49
Esbulha-se o marmelo como
acima se diz mas não se deita
em água para se pôr vermelho;
e depois pesa-se e cada arrátel
de marmelo leva arrátel e quarta
de açúcar50. O açúcar deve ser
por limpar, e depois de se limpar
põem-se ao lume e logo que
levanta fervura deita-se-lhe o
marmelo dentro a cozer, e estando
cozido tira-se para fora e esmaga-
se em uma prateira e depois deita-
se dentro outra vez e torna-se a
pôr um instante ao lume51, e se a
querem com muito sumo, levanta
fervura e tira-se mas assim dura
menos, e se a querem mais presa
deixa-se com menos sumo e ferve
mais alguma coisa. A cada arrátel
de marmelo deita-se um quartilho
de água e mais uma pinga para o
açúcar.

49
Existem três receitas de marmelada
vermelha nos cadernos de receitas
da Família Freitas do Amaral, mas
correspondem a uma mesma receita.
50
Por cima, entre linhas, “é melhor arrátel
e meio”.
51
imagem 13 Por cima, entre linhas, “mexer sempre”.

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36

Compota de pêra, pêssego, maçã, melancia e melão Este doce é bom para comer de calda, ou também
(Família Freitas do Amaral) se podem tirar os gomos do açúcar polvilhá-los com
Água q.b., para dissolver o açúcar açúcar cristalizado e pôr ao sol a secar.
Açúcar, 3 quilos
Fruta (conforme se desejar mais ou menos doce), 3 Doce de casca de laranja (Família Freitas do Amaral)
a 4 quilos Pesam-se as cascas e deve ser igual peso de
Limpa-se, primeiramente o açúcar com clara de ovo. açúcar. Com um dedal ou forma cortam-se as cascas
Depois de ferver por 3 vezes e por outras tantas se em rodinhas e trazem-se 24 horas em água fria.
fazer baixar tal fervura com borrifos de água fria, côa- Depois cozem-se em açúcar em ponto até ficarem
se a calda. Novamente se põem a ferver até que o transparentes. Isto pode fazer-se em 2 dias deixando
açúcar esteja em ponto de espadana, que pode ser as rodinhas no açúcar. Em estando cozidas envolvem-
baixo ou alto, se lhe deita a fruta e se faz ferver até se em açúcar cristalizado.
alcançar o ponto de espadana subido. Tira-se depois
para vasilhas pequenas. Doce de laranja (Família Freitas do Amaral)
NB. Logo que arrefeça alguma coisa deve o doce Tira-se com a faca a tona às laranjas sem entrar
apresentar, à fraca pressão da cabeça de um dedo, muito no branco e não ofendendo o miolo da laranja;
um veuzinho, para o ponto do açúcar estar bem. partem-se depois às fatias e se corta o branco que
tem no meio em forma de estrela com umas tesouras
Compota de laranjas (Família Sampaio da Nóvoa) e mais um pouco do branco em toda a volta, deixando
só uma tirinha certa para segurar o miolo. Depois de
30 laranjas para 5 quilos de açúcar.
estar assim preparada pesa-se tantos quilogramas
Partem-se as laranjas em quartos, descascam-se ao de laranja como de açúcar, leva-se este a ponto de
de leve e deixam-se estar em água a ferver 8 ou 10 espadana e se deita dentro a laranja. Logo que ferva
minutos. Depois deitam-se em água fria e deixa-se começa-se a tirar com uma escumadeira a espuma
corar, 4 ou 5 dias, mudando-se-lhe a água todos os amarela e uns bocados (…)52 brancos que começam
dias de manhã e à noite. a aparecer (nestas limpezas quer-se muito cuidado
Deita-se a cozer no açúcar; logo que a laranja esteja pois do contrário amarga) e se deixa ferver até que a
bem cozida, deixa-se levar o açúcar até ao ponto que laranja esteja molezinha, mas conservando a forma
se quiser. das fatias e até que o ponto seja o próprio do doce
Receita escrita pelo Tio José [José Barroso Pereira, tio de calda. Deita-se depois em frascos ou compoteiras.
avô paterno de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio]. Este doce se for para durar leva o açúcar que atrás se
diz e se for para comer logo pode levar menos 125 g
em cada quilograma. Para encher uma compoteira é
Doce de laranja aos gomos (Família Sampaio da
preciso 12 laranjas pouco mais ou menos e o relativo
Nóvoa)
peso de açúcar.
Raspam-se laranjas, muito ligeiramente, para que
fiquem amarelas. Cortam-se aos gomos e deitam-se
em água fria durante um ou dois dias, conforme o
gosto de cada um.
Tanto peso de laranjas como de açúcar.
Põe-se o açúcar ao lume, deixa-se levantar fervura,
deita-se-lhe dentro os gomos das laranjas e deixa-se
ferver até ficarem bem cozidas. 52
Palavra não identificada. imagem 1

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imagem 14

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imagem 15

Marmelada de maçã (Família Sampaio da Nóvoa) Geleia (Família Freitas do Amaral)54


Coze-se a maçã como o marmelo, escorre-se na Esbulha-se o marmelo e tira-se-lhe a pevide e o
peneira e espreme-se no pano para lhe tirar algum branco onde ele está, e se deita em água para não se
sumo e depois passa-se na peneira. Tem-se o açúcar pôr vermelho. (Os marmelos sendo bons, 5 dão um
em ponto de rebuçado, mas o mais subido possível, quartilho de gelo55). Depois põem-se a cozer em água
deita-se dentro a maçã e deixa-se ferver até que tenha
e estando cozidos principia-se a espremer o gelo para
consistência para prender.
um pano que seja tapado. Depois do gelo estar pronto,
Para um arrátel de maçã, outro de açúcar. põem-se o açúcar ao lume da maneira seguinte, deita-
Deve depois de tirada, ir ao sol como a outra se um quartilho de água para 2 arráteis de açúcar,
marmelada, e deitada em ladrilhos, fica muito bonita. isto para o limpar porque o açúcar deve ser do muito
branco e seco, e depois de ele estar limpo põe-se a
Pêras secas 53 ferver até estar em ponto de dar fios e fazer rebuçado,
A um cento de pêras, 7 arráteis de açúcar. e estando assim tira-se para fora do lume, e assim
Deitam-se as pêras a cozer em água a ferver (depois que ele está a abater deita-se-lhe o gelo dentro, e
de descascadas e limpas do caroço) durante meia mexe-se quando se deita, e depois torna ao lume a
hora. ferver tudo até mostrar uma prisão, isto é tira-se para
Depois deitam-se as pêras em água fria.
fora um bocado e deita-se a um pires e vendo que
Põe-se o açúcar em ponto de espadana baixo, deitam- arma um espelho a codinha está pronta. É de advertir
se-lhe dentro as pêras e deixa-se ferver um bocado que depois de deitar o gelo não se deve tirar o tacho
bom. Depois tiram-se para um alguidar e deixam-se
do lume senão de vez. É que tirando e tornando-o a
estar até ao dia seguinte. No dia seguinte tornam ao
pôr faz a geleia vermelha.
lume e esta operação tem de se repetir quatro vezes
para que a pêra fique bem passada e branquinha. Resumo – A cada quartilho de gelo leva 2 arráteis de
Depois põem-se a secar ao sol sobre peneiras ou açúcar.
redes. As pêras querem-se pequenas e doces.

54
53
Existem três receitas de geleia nos cadernos de receitas da Família
No caderno de receitas da família Sampaio da Nóvoa chama-se Freitas do Amaral, mas trata-se basicamente da mesma receita.
fruta seca ao que hoje designamos como fruta cristalizada. De facto
fruta seca é aquela que é seca por processos naturais. Assim sendo 55
Gelo é termo usado para designar a água que resulta da cozedura
onde diz maçãs secas deveria dizer maçãs cristalizadas. da casca do marmelo.

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Creme
O leite-creme, tal como hoje
vulgarmente o designamos, é um
doce feito à base de leite, açúcar,
farinha e ovos, a que se acrescenta
canela e casca de limão. Depois
de pronto costuma cobrir-se com
açúcar que se queima, passando
então a designar-se leite-creme
queimado. Trata-se de um doce
usual em diversos países da
Europa, tais como Espanha,
Inglaterra e França.
Sabemos que, em Guimarães,
em 1842, era doce apreciado na
freguesia de Penselo, mas a sua
origem será seguramente anterior.
No caderno de receitas de Família
Freitas do Amaral encontramos
três receitas de creme.

imagem 16

Receita de creme (Família Freitas Creme de Páscoa receita da nossa casa (Família Freitas do Amaral)
do Amaral) Para 5 quartilhos de leite, 5 colheres, das de sopa, bem cheias de
A um arrátel e quarta de açúcar, farinha, 500 g de açúcar e as gemas de 24 ovos. Deita-se a farinha numa
se lhe lançam 13 gemas de ovos, bacia e a pouco e pouco vão-se-lhe misturando o leite de modo que a
batem-se com o açúcar muito farinha fique muito bem desfeita. Um pau de canela e casca de limão.
batido, e deita-se-lhe também a Junta-se-lhe o sal preciso e vão ao lume depois de ser passado pelo
farinha 4 onças, o sal preciso, com passador. Mexe-se sempre até a farinha estar muito bem cozida. Nesta
uma canada de leite, mexendo- altura, mistura-se o açúcar e deixa-se ferver mais um pouco: se estiver
se sempre até ficar sem fatoco em creme grosso pode-se-lhe deitar mais o leite que for preciso.
algum, e depois vai o tacho ao Tira-se do lume depois de bem cozido e deita-se-lhe os ovos, mexendo
lume, mexe-se sempre, até ferver, sempre e vai outra vez ao lume, continuando a mexer para não pegar, até
em lume brando, para não ganhar levantar fervura.
esturro, e assim quando engrossar,
Não deve ficar grosso. Quanto mais ovos levar melhor fica.
tira-se para fora, e pulveriza-se
com canela.
N. B. Quando se bate o açúcar com
os ovos juntam-se-lhe 4 colheres
de sopa, de farinha triga; e depois
de estar tudo bem desfeito é que
se lhe deita o leite e se mexe
antes de ir para o lume.

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Leite creme (Família Freitas do Amaral)


Leite 2 litros
Açúcar refinado 750 gramas
Ovos (gemas batidas) 18
Sal q.b.
Farinha triga 120 g
Canela em pau q.b.
Canela em pó q.b.
Casca de limão q.b.
Bate-se muito bem o açúcar com os ovos, juntando-se-lhe o sal e pouco a pouco a farinha triga, sem deixar
fatocos. Incorpora-se-lhe pouco a pouco o leite mexendo sempre. Leva-se o tacho ao lume brando e faz-se ferver
durante bastante tempo (a farinha não deve ter o gosto de crua) mexendo sempre.
Deita-se em travessa e polvilha-se com canela.

Doce de chá
Doce de chá designa a variedade de pequenos doces individuais que se costumam comer acompanhados por
uma chávena de chá. De um modo geral os doces de chá são doces secos. Em Guimarães, em 1884, mais de
10 mulheres tinham como profissão fazer “doce de chá e de romarias” (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 248).
Em 1884, na Exposição Industrial de Guimarães expõe-se “diverso doce de chá” (RELATÓRIO, 1991 [1884]:
247). D. Maria dos Prazeres Ribeiro Varanda e D. Maria Mendes Lucas apresentam “doces de chá cobertos”
(RELATÓRIO, 1991 [1884]: 116). O termo «coberto» serve para designar um bolo de massa fofa coberto com
calda de açúcar em ponto forte. Esta calda, depois de ligeiramente arrefecida, é espalhada sobre a superfície
do bolo mantendo-o húmido durante mais tempo.
No caderno de receitas de Dona Maria Henriqueta Sampaio da Nóvoa, na receita das «Paciências» aquela
senhora anota serem estas “esplêndidas para o chá”. No caderno de receitas da Família Freitas do Amaral diz-se
que com a receita do «Bolo de Pão-de-ló» também se podem fazer “bolinhos de chá”.
Em ambos os cadernos existem diversas receitas que muito provavelmente seriam usadas para acompanhar
a ingestão de chá, no entanto, apenas transcrevemos a receita de Dona Maria Henriqueta Sampaio da Nóvoa
designada «Bolinhos de chá».

Bolinhos de chá (Família Sampaio da Nóvoa)


Deita-se num alguidar um arrátel de açúcar, 12 gemas de ovos, 4 claras, sal e raspa de limão e bate-se tudo
muito batido.
Depois junta-se-lhe um arrátel de farinha triga e torna-se a bater tudo.
Untam-se as folhetas com manteiga, polvilham-se com farinha trigo, deita-se-lhe dentro a massa com uma colher
e mete-se à fornalha a cozer.

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imagem 17

imagem 18

Doces de romaria onde as doceiras, com os seus tabuleiros forrados


de toalhas brancas, patenteiam as especialidades da
Avelino da Silva Guimarães informa que, em 1884,
região, alinhadas com as fabricantes de pão caseiro”
cerca de uma dezena de mulheres se ocupavam
(PESSANHA, 1997 [1957]: 57).
“durante todo o ano” na confecção de “doce de chá e
de romarias” (GUIMARÃES, 1991 [1884]: 248). Sebastião Pessanha refere ter adquirido em Guimarães
diversos doces de romaria com a forma de uma
Entende-se por “doce de romarias” aquele que se
sereia, tesoura, corneta, cruz de Cristo, Sacramento
vende nas feiras e festas que se realizam um pouco por
e um lagarto “muito pequeno” com “pintas verdes,
todo o País. Sebastião Pessanha, num texto intitulado
de papel brilhante, e coleira cor-de-rosa” (PESSANHA,
«Doçaria Popular Portuguesa», define-os como sendo
1997 [1957]: 43 e 47).
“doces feitos pelo povo e para o povo, principalmente,
como já disse, para satisfazer a gulodice da gente Alberto Vieira Braga refere que nas festas e romarias
miúda, que se enleva ante as formas mais pitorescas se encontravam à venda “rosquilhos, às molhas,
e deles faz largo consumo, ou para ofertas e permutas doces de farinha triga, com peneiramentos de açúcar;
entre os adultos, quase sempre de feição amorosa e cavacas e corações de pão-de-ló, cobertos de açúcar
até, por vezes, intencionalmente maliciosas. Assim, e com flores de papel ou folhos de trema espetados
nunca faltam, igualmente, nas feiras e nos mercados, (feitos em Guimarães). Ovos cozidos em água com

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várias ervas do conhecimento caseiro, para lhes dar necessário grande conhecimento de linguagem
a cor preferida, e com diversos desenhos feitos a simbólica nem de gíria de carácter sexual para fazer
gancho de cabelo (feitos pela ocasião da Páscoa, em associações coloridas entre aqueles objectos e o
Guimarães). Sardões, passarinhas, relógios, corações e seu significado. Entre as centenas de designações
macacada diversa, bugigangas feitas de farinha triga, populares que se aplicam aos órgãos genitais feminino
com peneiramentos de açúcar, e raminhos colados e masculino, a passarinha e o sardão são dos mais
com dizeres de amor e amizade (Feitos pelas festas de utilizados no linguarejar do nosso povo”58.
Santa Luzia e Senhora da Conceição, em Guimarães)” Sebastião Pessanha refere outras festas onde
(BRAGA, 1928: 137-138). são presença obrigatória o que ele designa como
Muitos dos doces de romaria eram cobertos com calda “bolos obscenos” e onde também marcam presença,
de açúcar, a qual se deveria deixar arrefecer um pouco “pitinhos” e “lagartos” (PESSANHA, 1997: 60 a 62).
antes de se colocar sobre o doce. Por ser cobertos Entre os doces de Romaria do Minho incluem-se os
com calda de açúcar é que se designavam «bolos «rosquilhos» e as «cavacas», também elas cobertos
cobertos». Na exposição Industrial de Guimarães, em com açúcar em calda.
1884, António Serafim Afonso Barbosa, da Senhora
Em 1751, as freiras clarissas oferecem ao “Dr. Juiz de
da Guia, apresentou «bolos cobertos» e «doce de
fora (…) umas cavacas” (BRAGA, 1927: 117). Também
massa56» (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 116).
na exposição industrial de Guimarães, em 1884, no
Entre os diversos doces de romaria confeccionados expositor de D. Maria Mendes Lucas, moradora na
pelas doceiras vimaranenses, feitos com farinha Rua D. João I, e no de D. Maria dos Prazeres Ribeiro
triga ou centeia, revestidos por uma massa de Varandas, moradora na Rua do Retiro, se expuseram
açúcar, e decorados com pequenos papéis de cores “cavacas” (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 116). Em 1919,
garridas, estariam, sem dúvida, as passarinhas e os no mercado municipal encontram-se as doceiras a
sardões, sempre presentes na Festa de Santa Luzia, vender: “os sequilhos59, as cavacas e o pão leve, para
em Guimarães, a 13 de Dezembro de cada ano57, e presente” (GUIMARÃES, 1919: 86).
também nas festas de N.ª Senhora da Conceição
Num dos cadernos de receitas da Família Freitas do
(BRAGA, 1928: 138). Nestas festas, o rapaz compra
Amaral temos uma receita de «Cavacas de manteiga».
o sardão para ofertar à rapariga de quem gosta; a
rapariga compra a passarinha para oferecer ao rapaz
que a encanta.
António Augusto Amaro das Neves num texto sobre
as «Passarinhas e os Sardões» explica que “não será

56
Não sabemos o que sejam doces de massa. Emanuel Ribeiro diz
que “na doçaria popular predomina o gosto do nosso povo e assim
aparecem os cestos, especiaria de massa-triga ou milha metida em
um banho de açúcar, adornados com flores sanguíneas de papel; os
corações pintalgados de missanga” (RIBEIRO, 1997 [1928]: 29).
57
Emanuel Ribeiro também refere as passarinhas e os sardões no seu
livro «O doce nunca amargou»: “Mas ainda temos (…) as passarinhas
e os sardões”. Explicando, em nota que “passarinhas” é o “termo 58
Veja-se no site Memórias de Araduca, da autoria de António
popular dado ao órgão genital feminino. Na ilha da Madeira dão-lhe Augusto Amaro das Neves, o texto e fotografias sobre passarinhas
o nome de ‘melrinho’”; e que “sardões” é o “termo popular dado ao e sardões http://araduca.blogspot.com/2006/12/passarinhas-e-
órgão genital masculino. Vendem-se, em Dezembro, no arraial de Nossa sardes.html e http://araduca.blogspot.com/search?q=passarinhas
Senhora da Conceição, freguesia de Azurei [sic] próximo de Guimarães”
59
(RIBEIRO, 1997 [1928]: 31). Alberto Vieira Braga também se refere a No livro de receitas da última freira de Odivelas consta uma receita
estes doces explicitando que se vendiam “pelas festas de Santa Luzia de sequilhos. Bolos feitos com manteiga, farinha, açúcar e gemas de
e Senhora da Conceição, em Guimarães” (BRAGA, 1928: 138). ovos, aromatizados com erva doce (CABRAL, 1999: 58).

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imagem 19 imagem 20

Cavacas de manteiga (Família Freitas do Amaral) Os rosquilhos ou rosquilhas, doces de romaria por
Açúcar fino 1 quilo excelência, constam no caderno de receitas da Família
Freitas do Amaral, mas, infelizmente, praticamente
Farinha triga 1 quilo
ilegível. Conhecemos no entanto duas receitas de
Manteiga 250 g rosquilhos, uma de Lousada60, outra do Alto-Minho
Canela em pó q.b. (SAMPAIO, 2003: 29). De facto, estamos perante
Cravos-da-índia em pó q.b. um doce com larga difusão nas festas e romarias
portuguesas. Os rosquilhos vendiam-se, por exemplo,
Em cerca de 300 g de água desfaz-se umas 200 g do
na feira de Cinfães (distrito de Viseu) em grupos de
açúcar e, com esta água doce amassa-se a farinha
cinco61.
triga, num alguidar. Junta-se-lhe, incorporando bem, a
manteiga, a canela e o cravo em pó. Feito isto tira-
se massa, com uma colher, para uma tábua, e tende-
se fazendo uma só cavaca de cada vez. Levam-se
ao forno a cozer e passam-se depois por açúcar em 60
É esta receita dos rosquilhos de Meinedo (Lousada): “Uns são
ponto. grandes, outros são pequenos e aparecem em todas as ocasiões de
festa ou romaria. “São preparados com uma dúzia de ovos batidos
com sal e raspas de limão, a que se junta 600 gramas de farinha com
fermento, até que a massa fique endurecida e apta a ser esticada para
enroscar à maneira de cada um. Vai então a um tabuleiro enfarinhado
e daí ao forno bem quente durante vinte minutos. A cobertura é
feita de açúcar em ponto, onde, quando o açúcar ainda está quente,
se mergulham as roscas uma a uma até se molharem bem!” In
http://www.cm-lousada.pt/VSD/Lousada/vPT/Publica/
O+Concelho/Gastronomia/
61
“Os rosquilhos que em tempos fizeram as delícias das crianças, é
hoje o doce menos procurado. Um bom pai quando ia à feira a Cinfães
trazia sempre um molho de rosquilhos para os filhos. O pior era os
rosquilhos serem só 5 e o número de filhos ser sempre elevado. Cabia
aos filhos encontrar a melhor forma de os repartir sem ninguém ficar a
perder” http://ranchotradicionalcinfaes.com/files/osdocesdasjulias.
pdf

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Grãos doces No século XIX as receitas de manjar branco já não


incluem galinha. O que dá a unidade a estes manjares
Alberto Vieira Braga informa que, em 1751-1752,
é o facto de serem todos confeccionados com farinha
as freiras do Convento de Santa Clara, “em vésperas
de arroz, leite e açúcar.
da Conceição e véspera de Natal” deram “grãos
doces, levaram três arráteis de açúcar cada um, faz
seis: custaram 240 rs.”. Refere ainda que “comiam Manjar branco da Costa, Guimarães (Família Sampaio
também em certos dias de festa e de aniversário (…) da Nóvoa)
grãos doces” (BRAGA, 1927: 116). Pesquisámos 250 gramas de farinha de arroz
em vários livros de receitas mas não conseguimos Meia canada de leite
encontrar nenhuma referência a «grãos doces» pelo 500 gramas de açúcar
que desconhecemos de que tipo de doce se trata.
1 pau de canela
1 casca de limão
Leite-crespo Ferve tudo até engrossar. Depois deixa-se arrefecer,
Em 1751 as freiras clarissas vimaranenses oferecem fazem-se pequenas broinhas e metem-se à fornalha
ao seu médico “dois pratos de leite crespo e um a tostar. Depois de frias põem-se sobre rodelinhas de
de pastéis” (BRAGA, 1927: 117-118). Também no papel de seda recortadas.
Mosteiro de Celas (Coimbra) se fazia leite-crespo
São muito boas
(RIBEIRO, 1997 [1928]: 45 e 70).
Este doce faz-se fervendo o leite muito lentamente,
acrescentando-se o açúcar numa fase avançada Manjar real62, receita antiga (Família Sampaio da
da fervura. O leite crespo pode ser mais ou menos Nóvoa)
consistente consoante o gosto de cada um. Este é um Num arrátel de açúcar coado, coze-se uma quarta
doce ainda hoje em voga no Brasil. de amêndoa bem pisada; juntam-se duas onças de
pão ralado, dá uma fervura, tira-se do lume e deixa-se
esfriar para lhe deitar dez gemas de ovos bem batidas
Manjar e uma pitada de canela. Depois de bem mexido, torna
O Pároco de Penselo, em 1842, refere que na sua ao lume, ferve até que fique em boa consistência:
paróquia se comia “creme, arroz doce de príncipe, deita-se numa travessa e polvilha-se com canela.
letria, boas queimadas de fio, manjar de diferentes
Esta receita é da prima Raquel [Raquel Ricardina da
qualidades” (LAMEIRAS, 1998 [1842]: 444). Esta é a
Cunha Vaz Vieira Berrance].
única referência que conhecemos relativa à confecção
de manjares em Guimarães. Muito provavelmente os Actualmente a prima Amélia [Amélia F. de Sousa Vaz
manjares de “diferentes qualidades” referidos nesta Vieira] emprega para este doce as doses seguintes:
citação não andariam longe dos que constam quer Açúcar refinado 750 gramas
no caderno de receita de Dona Maria Henriqueta Leal Amêndoa 130 gramas
Sampaio quer nos da Família Freitas do Amaral e que
Pão ralado 120 gramas
abaixo apresentamos.
Ovos 10 gemas de ovos
A receita de manjar-branco constante no Livro de
Receitas da Infanta D. Maria (séc. XV) inclui como
ingrediente galinha cozida e desfiada (LIVRO, 1986:
66-68), o mesmo sucedendo com alguns dos manjares
constantes no livro «Arte de Cozinha» (1693), de
Domingos Rodrigues (RODRIGUES, 2001 [1693]:
126-128, e numa receita de «manjar branco» inserida
num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de
Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 107-108). 62
Também existe uma receita de «manjar real» num manuscrito
pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães (RAMOS; SOARES;
OLIVEIRA, 2005: 108).

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Receita de bolos de manjar (Família Freitas do Amaral) Manjar de prato (Família Freitas do Amaral)63
Para uma canada de leite, um arrátel de farinha de Leite 1 litro / 2 litros
arroz, dois arráteis de açúcar refinado do melhor, Farinha de arroz 70 g /180 g
um bocado de amêndoa, isto é pouco mais de uma
Açúcar clarificado 64
375 g / 750 g
onça, bem pisada, esta antes de deitar-se no tacho
se desfaz em uma pinga de leite; deita-se tudo junto Amêndoa pisada 50 g /100 g
em um tacho, e se lhe deitam também algumas areias Sal q.b.
de sal, e depois põem-se ao lume e mexe-se sempre, Canela em pó q.b.
e logo que engrossa, e despega a massa da beira
Lança-se tudo junto no tacho (excepto a canela)
do tacho está pronto, o lume deve ser brando para
e deixa-se ferver a lume brando até estar cozido,
não torrar. Logo que a massa esteja pronta tem-se
mexendo sempre. Deita-se na travessa e polvilha-se
um tabuleiro com uma toalha empoada com farinha
com a canela.
de arroz, e se vai tirando o manjar aos bocados com
uma colher, conforme o tamanho que se quiserem os
bolos, e se vão embolando na mão até que fiquem Massapães e massapão rosado

imagem 21
lisas, e depois se vão pondo em bacias ou folhetas, Através do Livro de receita e despesa do Convento
que devem estar empoadas com farinha de arroz, e de Santa Clara de Guimarães, ficamos a saber que
mete-se ao forno, não estando forte demais, e logo as freiras clarissas, em 1692, tinham como mimos,
que elas tenham por baixo uma solinha estão prontas. na “Véspera de Janeiro” ou seja, no final do ano, “dois
Costumam estar mais de uma hora no forno. massapães” (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3). Em
1751, estas mesmas freiras oferecem ao “Dr. Juiz de
Receita para fazer doce de manjar (Família Freitas do fora, uma caixa de massapão rosado” (BRAGA, 1927:
Amaral) 117).

A uma canada de leite, um arrátel de açúcar, meio O massapão é um doce de origem árabe feito com
arrátel de farinha de arroz, um vintém de amêndoa e uma pasta de açúcar, amêndoas moídas e claras
dez réis de água de flor. de ovos sendo facilmente moldável65. Quando se
acrescenta água-de-rosas66 a esta pasta, o massapão
O açúcar deve ser limpo. (É para manjar de prato)
passa a designar-se massapão rosado.
sendo para pastéis então leva um arrátel de farinha
de arroz.

63
Existe mais uma receita de manjar de prato nos cadernos de
receitas da Família Freitas do Amaral, mas trata-se basicamente da
mesma receita. Optamos por colocar a receita na qual se indicam as
quantidades em quilogramas e litros.
64
Veja-se como se clarifica o açúcar na nota N.º 21.
65
Giacinto Manupella explica que “O substantivo maçapão (= massa
doce, feita de amêndoas pisadas, farinha, açúcar e claras de ovos)
através do castelhano mazapán deriva do italiano marzapane; este, por
sua vez, provém do árabe mauthabân, nome de moeda que, introduzido
no dialecto de Veneza (cfr. marzapàn e matapàn) e na língua franca do
Levante, sofreu várias alterações semânticas, tendo o nome da moeda
passado a indicar uma medida de capacidade de uso corrente em
todo o mediterrâneo centro-oriental, e por fim a caixa com maçapão”
(LIVRO, 1986: 210).
66
Água-de-rosas é o mesmo que água rosada. Giacinto Manupella
explica que “como é sabido, a água-rosada é o Hydrolatum rosae, ou,
por outras palavras, água destilada de rosas, água aromática de rosas”
(LIVRO, 1986: 169).

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Trata-se de um doce que começou por ter, como muitos outros, uma
origem medicinal, e que desde o século XV se transformou num doce
consumido nos conventos e pelas classes mais favorecidas da população.
O massapão admite duas grafias massapão e maçapão. É um doce ainda
hoje apreciado em Espanha, onde se designa «mazapán», e em Itália,
conhecido como «marzapane», mas também se confecciona noutros
países europeus.
No livro de cozinha da Infanta D. Maria, datado do século XVI, consta
uma receita «para fazer maçapães» (LIVRO, 1986: 137-139), bem como
na «Arte de Cozinha», de Domingos Rodrigues, onde consta uma receita
de «massapães de ovos» (RODRIGUES, 2001 [1693]: 132-133), e no
manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães, cuja receita é
simplesmente designada «maçapão» (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005:
107).
Num poema de Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), intitulado
«Pintura de uma Dama Conserveira» (OLIVEIRA, 1705), este, ao descrever
o rosto da Dama refere-se ao “massapão” e ao “massapão rosado”:
Maçapão rosado vejo
Em seu rosto de carmim,
Nas maçãs o maçapão,
No rosto o rosado diz”.
Não sabemos qual a receita dos massapães e do massapão rosado
confeccionado no convento de Santa Clara mas deixamos aqui uma
receita de massapães muito em voga no Minho e que consta do livro de
receitas de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio.
Maçapão e massapães usam os mesmos ingredientes base mas dão
origem a doces muito diferentes, havendo: a) os que não vão ao forno,
sendo preparados em cru. Este tipo de massapão ainda hoje se faz no
Algarve e em algumas regiões de Itália; b) os que vão ao lume em recipiente
pousado sobre o fogo, sendo de seguida a massa moldada à mão e que
são preparados de modo semelhante ao que consta no Livro de receitas
da Infanta Dona Maria (LIVRO, 1986: 137-139); c) os que vão ao forno,
como a receita dos massapães de Guimarães abaixo apresentada, os
do Livro «Arte de Cozinha» (1693), de Domingos Rodrigues (RODRIGUES,
2001 [1693]: 132-133) e os de algumas regiões de Espanha.

Massapães (Família Sampaio da Nóvoa)


Batem-se duas claras num alguidar e depois de estarem bem batidas,
junta-se-lhes ½ arrátel de açúcar pilé e ½ arrátel de amêndoa pisada e
torna-se a bater tudo outra vez.
Forra-se uma folheta com hóstias, deita-se-lhe a massa em cima com
uma colher, em bolinhos e mete-se à fornalha a cozer.
imagem 22

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Mexidos ou formigos
Ferreira Caldas, em 1881, refere que era costume servir-se, na véspera
de Natal, “um prato de mexidos” no Asilo dos entrevados de S. Francisco
(CALDAS, 1996 [1881]: 396).
Também o pároco de S. Salvador do Souto, em texto datado de 1842,
informa ser costume comer-se “formigos”, que levavam mel, na véspera
de Natal, especificando ser “prato favorito destes povos em tal noite”
(LAMEIRAS, 1998 [1842]: 582).
Mexidos ou formigos são palavras utilizadas para designar o doce que
ainda hoje é presença obrigatória à mesa de Natal.
Nos cadernos de receitas das famílias Sampaio da Nóvoa e Freitas do
Amaral constam três receitas de mexidos.

Mexidos do Natal (Família Sampaio da Nóvoa)


Põe-se ao lume um tacho com água adoçada com açúcar e mel a gosto
de cada um, uma colher de manteiga, uma casca de limão e um pau de
canela.
Tem-se pão trigo partido muito miudinho e em a calda fervendo, deita-se-
lhe dentro o trigo e deixa-se ferver. Tem-se algumas amêndoas pisadas,
nozes esmagadas, figos de caixa ou do Douro partidos aos bocadinhos
e junta-se tudo no tacho. Deixa-se ferver até estar o pão bem desfeito e
grosso. Deita-se então algumas uvas passas e pinhões. Tira-se do lume
e juntam-se-lhe os ovos, uns só a gema e outros com a clara, mas com
cuidado para estes não destalharem.
Torna ao lume para cozer os ovos. Deve ficar esta massa em consistência
de prender e ficar ligada como se fosse um pudim.
Quando se tira do lume, junta-se-lhe um cálice de aguardente boa, maior
ou mais pequenino conforme for a quantidade dos mexidos.
Deita-se em travessas e polvilham-se de canela.
Depois que se deita o pão é preciso mexer sempre para não pegar ao
tacho, o que acontece com facilidade.
Receita da Tia Teresa [Teresa Alexandrina da Cunha Berrance67]. Muito
bons.

67
Teresa Alexandrina da Cunha Berrance (1808-1886), filha primogénita de Ana Rita de Abreu
Cardoso Teixeira e de António Joaquim da Cunha Ribeiro e Moura, proprietário da Quinta de
Berrance situada na freguesia de Santa Maria de Ribeiros, concelho de Montelongo (actual
concelho de Fafe). Casou com seu primo direito José Barroso Pereira. Tia-avó materna de
Maria Henriqueta Leal Sampaio. imagem 23

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Mexidos (Família Freitas do Amaral)68


Pão de trigo ralado 3 pães de 400 gramas
Açúcar 750 a 1000 gramas
Água 1500 gramas
Gemas de ovo 13
Vinho maduro branco 150 gramas
Mel o suficiente para dar sabor pronunciado
imagem 24 Manteiga e sal quanto baste
Uvas passas e pinhões as que se quiser, mas não muitas
Canela em pó quanto baste para polvilhar
Água de flor de laranjeira 100 gramas
Deve-se limpar (a) o açúcar e depois de coado põe-se no lume até ferver, na água indicada. Tempera-se de sal;
junta-se-lhe a manteiga até saber a ela, o mel, e o vinho. Deitam-se as uvas e os pinhões. A seguir incorpora-se,
mexendo sempre, o pão ralado, que deve ferver bastante, até prender. Tira-se o tacho do lume e deixa-se esfriar
um pouco. Deita-se-lhe, depois, a água de flor de laranjeira e os ovos batidos e depois de tudo bem mexido no
tacho, põem-se este novamente ao lume somente até levantar fervura e cozer os ovos; em seguida deitam-se os
mexidos em prato ou travessa e polvilham-se com a canela em pó.

Ovos mexidos do Natal (Família Sampaio da Nóvoa)


Amolece-se o pão em bastante leite, juntando-se-lhe suficiente açúcar e algumas gemas de ovos com umas
poucas pedras de sal. Põe-se ao lume um tacho com bastante manteiga e mel; em fervendo, junta-se-lhe o pão
amolecido, mexendo sempre até ficar enxuto e louro.
São óptimos estes ovos mexidos muito em uso no Alto Minho.
imagem 25

Ovos-moles
Pelo menos no século XVIII as freiras clarissas vimaranenses confeccionavam «ovos-moles» que costumavam
oferecer e que comiam “em certos dias de festa e de aniversário” (BRAGA, 1927: 116).
Os ovos-moles eram confeccionados um pouco por todo País tendo ganho fama os produzidos em Aveiro que
ainda hoje se comercializam em casas da especialidade.
Numa calda de açúcar em ponto acrescentam-se gemas de ovos bem batidas, mistura-se tudo muito bem e volta
ao lume até ganhar presa.
No caderno de receitas da Família Freitas do Amaral existe uma receita de ovos-moles.

68
Existem mais duas receitas de mexidos nos cadernos de receitas da Família Freitas do Amaral, mas trata-se basicamente da mesma receita.
Optamos por colocar a receita na qual se indica as quantidades em quilogramas.

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49

Receita de ovos-moles (Família Freitas do Amaral)69


Açúcar 500 gramas
Água ½ litro
Gemas de ovos, bem batidas 15
Canela em pó q.b.
Leva-se o açúcar ao ponto de espadana, tira-se o tacho do lume até arrefecer bastante. Deita-se-lhe os ovos
e mexe-se bem. Volta tudo ao lume brando e, mexendo sempre, deixa-se engrossar. Deita-se em travessa e
polvilha-se com canela.
imagem 26

Ovos reais
Em 1665 a vereação vimaranense decide oferecer aos Condes de S. João e da Torre “seis caixas de doce e um
prato de ovos reais, por não haver tempo para outra coisa” (BRAGA, 1992: 198).
Ovos reais são o que actualmente designamos por fios de ovos, que na altura se designava «aletria de ovos»,
mas mais espessos. Em 1693, Domingos Rodrigues, na sua obra «Arte de Cozinha», ensina como fazer a «aletria
de ovos», ou seja fios de ovos como hoje dizemos. Acrescentando que “do mesmo modo se fazem ovos reais, mas
mais grossos”. Este mesmo autor, na receita da Torta de Marmelos, volta a referir-se-lhes: “façam-se ovos reais de
uma dúzia de gemas de ovos em um arrátel de açúcar” (RODRIGUES, 2001 [1693]: 133-134 e 124).
Refira-se no entanto que, num manuscrito existente na antiga livraria do Mosteiro de Tibães existe uma receita
designada ovos reais, tratando-se de um doce composto por fios de ovos dispostos por cima de fatias de pão
finas, passadas por açúcar e torradas70 (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 78-79 e 110). Muito provavelmente
os ovos reais que se dispõem por cima de fatias de pão adoçado acabaram por dar o nome a um doce em que
os ovos reais se conjugam com outros ingredientes – prato de ovos reais.
Nos cadernos de receitas que vimos compulsando não existe nenhuma receita de ovos reais.

Palmilhas
Em 1884, duas senhoras – Maria Mendes e Maria dos Prazeres – mostraram na Exposição Industrial de
Guimarães um doces designados «palmilhas» (GUIMARÃES, 1991 [1884]: 247), cuja receita consta no caderno
de receitas da Família Freitas do Amaral.

69
Existe mais uma receita de ovos moles, mas trata-se basicamente da mesma receita. Optamos por colocar a receita na qual se indicam as
quantidades em quilogramas e litros.
70
Agradeço à Dr.ª Aida Mata que chamou a minha atenção para a existência desta receita, e à Dr.ª Anabela Ramos que fez o favor de me facultar
o artigo que compulsei.

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Palmilhas (Família Freitas do Amaral)


Açúcar 125 / 84 /250 g
Ovos 3/2/6
Raspa de limão de 1 / 1 / 1
Sal q.b / – / q.b.
Farinha triga 250 / 170 / 500 g
Manteiga derretida meia / meia /1 colher de chá
Deita-se a raspa de limão, o sal e os ovos no açúcar. Mexe-se tudo por
espaço de 15 a 30 minutos. Junta-se-lhe depois, pouco a pouco e mexendo
sempre, a farinha triga até ficar muito bem incorporada e mexida. Depois,
incorpora-se-lhe a manteiga derretida. Feita assim a massa, lança-se esta
numa tábua, tendo o cuidado de a envolver sempre em farinha, para não
pegar, e estende-se com um rolo e se corta com a carricha no feitio que
se deseje. Vão depois à fornalha a cozer, em latas. Estando um tanto
tostadas, tiram-se e passam-se depois por açúcar em ponto de rebuçado
e deixam-se secar.
Latas enfarinhadas. Forno: primeiro até aquecer ao máximo, e depois a 3.

Palitos
Na exposição industrial de Guimarães em 1884, uma senhora, D. Maria
Mendes Lucas, residente na Rua de D. João I, expôs «palitos», entre outra
doçaria (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 116-117).
No caderno de receitas de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio consta
a receita de «Palitos».

Palitos (Família Sampaio da Nóvoa)


4 ovos
200 gramas de farinha
200 gramas de açúcar
Canela
Raspa de limão
Amêndoa pelada e cortada às fatias depois alourada na fornalha.
Noz aos bocadinhos
Cidrão aos bocadinhos
As gemas batem-se com o açúcar. As claras em nuvem. Depois junta-se
tudo e vai ao forno a cozer numa folheta untada com manteiga.
Estando cozida, vira-se numa tábua, corta-se aos palitos e voltam ao
forno a alourar.
São muito bons e fazem-se depressa.

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Pão-de-ló
imagem 27

No Livro de Receitas da Infanta Dona Maria, manuscrito do século XVI, há uma receita de pão-de-ló mas não
corresponde ao pão-de-ló tal como hoje o conhecemos. Trata-se de um doce de tabuleiro que leva na sua
constituição amêndoas (LIVRO, 1986: 138-139)
Em 1572, no regimento dos confeiteiros da cidade de Lisboa aparece referido o «pão-de-ló», o qual tinha de
ser feito com “açúcar da ilha da Madeira ou açúcar branco das outras ilhas” (CORREIA, 1926 [1572]: 208). Em
1609, encontra-se referência a um tal Pascoal de Freitas, confeiteiro em Guimarães e que aparece citado como
mamposteiro da Santa Casa da Misericórdia (CARVALHO, 1939-1951, IV: 39), mas não sabemos se produziria
pão-de-ló. Temos de esperar por 1678, para encontrar a primeira referência ao pão-de-ló vimaranense. De facto,
numa acta de vereação camarária de 25 de Junho desse ano taxa-se o pão-de-ló a 70 réis o arrátel71 (BRAGA,
1992: 233).
O pão-de-ló é um bolo feito com farinha de trigo, açúcar e ovos. Começa por bater-se durante bastante tempo
o açúcar com as gemas de modo a ficarem cremosos, acrescentando-se, no final, a farinha e as claras batidas
em castelo firme.
Camilo Castelo Branco, em «A viúva do Enforcado», refere o pão-de-ló: “Tinha passado a festa do Natal de 1822
em Guimarães, e levara à sobrinha um grilhão de ouro da sua viúva dentro de uma rosca de pão-de-ló” (BRANCO,
2009 [1876]: 423).
A designação rosca advém da forma que o pão-de-ló adquire, redondo com um buraco no meio, sendo antigamente
cozido, dentro do forno, em formas de barro forradas a papel72. Hoje, a utilização de formas de barro está a cair
em desuso, sendo apenas mantido em algumas, poucas, confeitarias. Note-se, no entanto, que o vocábulo rosca
é usado desde há muito para nomear também a rosca de pão de trigo. De facto, em 1611, já Agostinho Barbosa,
no seu dicionário refere a “rosca de pão” e a “rigueifa de pão ou rosca” (BARBOSA, 2007 [1611]: 954 e 946). No
concelho de Guimarães, Braga e Fafe havia o costume, hoje em desuso, de os padrinhos, no Domingo de Ramos,
receberem flores dos seus afilhados retribuindo-lhes o gesto, no dia de Páscoa, com a oferta de uma «rosca de
pão». Não sabemos se, no séc. XVII, o termo rosca já era usado para nomear quer a rosca de pão quer a rosca
de pão-de-ló, tal como hoje ainda é uso em Guimarães, Braga e Fafe.
Outra designação dada ao pão-de-ló era «regueifa» atribuída pelo jornalista do Jornal «Fígaro», de Lisboa, e que
esteve presente na Exposição Industrial de Guimarães, em 1884 (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 175). Note-se, no
entanto, que em Guimarães não se costuma chamar regueifa à rosca de pão-de-ló 73.

71
Arquivo Alfredo Pimenta (Guimarães). Acta da vereação de 25 de Junho de 1678. Assim reza: “Pão de Ló. Nesta vereação puzerão o arratel
de pão de ló a presso de setenta reis ho arratel he que com penna de dous mil reis o não tem por mayor presso e assinarão. Goncallo Monteiro da
Costa o escrevi”. Agradeço à Dr.ª Maria José Meireles que fez o favor de me transcrever este excerto da Acta.
72
A boda do casamento do Barão de Manique, no primeiro decénio de 1800, foi organizada pelo célebre António Marrare, tendo sido adquiridas
“7 dúzias de formas de pão-de-ló”. Em Guimarães as formas de barro eram feitas pelos oleiros locais que vendiam também para Felgueiras, onde
se produz o afamado pão-de-ló de Margaride.
73
Assim escreve o referido jornalista: “Apresenta-se bem a bela exposição de doces e pão de trigo, assim como amostras de açúcar refinado.
Destaca-se entre os trabalhos de doce uma grande regueifa de pão-de-ló de Margaride, de bonito aspecto” (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 175).
Repare-se que o autor chama «regueifa» ao que em Guimarães se costuma chamar «rosca» e diz ser o pão-de-ló originário de Margaride, o que
não corresponde à verdade. Toda a doçaria exposta na exposição industrial de 1884 foi confeccionada em Guimarães.

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Também é interessante referir que em Guimarães se aproveitava o pão-


de-ló que não se comia e ficava duro, «recesso» como por cá se diz, para
fazer «sopa dourada» ou então leva-se ao forno coberto superiormente
com doce de calondro74.
A documentação permite-nos saber que, em 1825, os irmãos da confraria
dos Sapateiros, se deleitavam, na Quarta-feira de cinzas com “pão leve
e vinho maduro” (CARVALHO, 1939-1951, III: 134) e que, em 1919, no
mercado as doceiras vendiam: “os sequilhos, as cavacas e o pão leve, para
presente” (GUIMARÃES, 1919: 86). O termo “pão leve” significa o mesmo
que pão-de-ló. Maria de Lurdes Modesto apresenta uma receita de “pão
leve ou pão-de-ló” feita no Peso, concelho da Covilhã, informando que:
“este pão-de-ló prepara-se para as festas do Santo Padroeiro. Ainda hoje é
costume, nas aldeias da Beira-Baixa, ser batido por quatro mulheres, que,
junto ao forno da aldeia e à volta do alguidar, vão passando o batedor de
mão em mão, ajudando-se mutuamente nesta tarefa” (MODESTO, 2001
[1981]: 131)75.
Em Guimarães, quer as freiras dos conventos de Santa Clara quer as
mulheres do recolhimento das Trinas dedicavam-se à produção de pão-
de-ló.
As freiras clarissas vimaranenses produziam rosca de Braga, rosca de
doce ou rosca doce, rosca de manteiga e rosca de nata. Infelizmente não
possuímos as receitas mas devia tratar-se de pão-de-ló com diferentes
ingredientes – só com ovos, açúcar e farinha, ou com estes produtos
mas a que era acrescentado natas – rosca de natas, ou manteiga – rosca
de manteiga (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3; BRAGA, 1927: 116-118).
Em 1692, as freiras clarissas vimaranenses tinham direito a uma “rosca
de Braga” na véspera de Natal (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3), sendo
certo que, em 1751, “comiam também em certos dias de festa e de
aniversário (…) roscas de manteiga” (BRAGA, 1927: 116). Nesse mesmo
ano, durante a Semana Santa, as freiras puderam deleitar-se com “roscas
doces [que] levaram de açúcar vinte e dois arráteis a cinquenta réis, com
canada e meia de manteiga, importa tudo 1$860 rs” (BRAGA, 1927:

74
Informação facultada pelo Sr. Miguel Sousa que ainda hoje costuma comer pão-de-ló com
calondro, pela Páscoa ou pelo Natal, em casa de sua mãe Dona Maria Henriqueta Rodrigues
Nunes, moradora na Rua da Rainha, em Guimarães e que aprendeu a fazer esta receita com
sua mãe Maria Oliveira Rodrigues (1909-1999). A receita faz-se do seguinte modo: tem-se
pão-de-ló recesso em fatias, as quais se torram previamente. Leva-se doce de calondro ao
lume ao qual se acrescenta um pouco de água de modo a torná-lo menos espesso. Entretanto
batem-se algumas gemas de ovos com doce de calondro à temperatura ambiente. Retira-se o
doce de calondro do lume e junta-se-lhe as gemas dos ovos já batidas. Põe-se este preparado
por cima das fatias torradas de pão-de-ló e leva-se um pouco ao forno para aquecer. Servem-
se quentes.
75
Na Pampilhosa da Serra, concelho de Coimbra ainda se continua a fazer pão leve. Veja-se
http://www.povoapampilhosa.net/index.php?option=com_content&view=article&id=81:pao-
leve&catid=45:gastronomia&Itemid=80
imagem 28

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116). Também o pão-de-ló fazia parte dos presentes É esta a referência mais antiga que conhecemos ao
oferecidos pelas clarissas àqueles a quem queriam bolinhol, pão-de-ló coberto de formato rectangular,
agradar: em 1751 oferecem “roscas de doce”, e “a cujo fabrico se mantém actualmente bem arreigado
quem emprestou d[inhei]ro à comunidade, uma rosca no concelho de Vizela77.
de nata” (BRAGA, 1927: 117). Avelino da Silva Guimarães, em artigo publicado no
Interessante é verificar que, em 1751-1752 as freiras «Jornal do Comércio», de Lisboa, descreve a doçaria
clarissas oferecem, em dia de Santo António dos exposta, afirmando que sendo Guimarães “terra de
Capuchos, um “vate” grande, voltando a oferecer conventos de freiras, a indústria da doçaria teve uma
outro “vate” por “uma obrigação do convento” (BRAGA, tal prosperidade, que estabeleceu e sustentou por
1927: 117). Alberto Vieira Braga desconhecia o muitos anos abundante comércio com Inglaterra”.
significado desta palavra. «Vate» ou «bate» é o Refere também o pão-de-ló explicando: “Era, porém,
mesmo que pão-de-ló. Ainda hoje, no Alto-Minho há no recolhimento das Trinas, que se fabricava o melhor
quem chame «bate» ao pão-de-ló76 (GOES, 2005: 35; pão-de-ló, que disputava competências ao afamado
SAMPAIO, 2003: 29). Infelizmente não possuímos pão-de-ló de Margaride (Felgueiras)” (GUIMARÃES,
o receituário destes doces manjares, para perceber 1991 [1884]: 247-248).
qual a diferença existente entre rosca de Braga, rosca Joaquim de Vasconcelos, em artigo publicado no
doce, bate, rosca de nata, rosca de manteiga… jornal «Comércio do Porto», também se refere ao pão-
Na exposição industrial de Guimarães, que decorreu de-ló patente na referida exposição industrial: “quem
em 1884, estiveram expostos vários tipos de doces, subir a elegante escada encontrará na primeira sala
de produção corrente no local, entre os quais «pão- o que há de mais apetitoso no género doces, desde o
de-ló», «pão-de-ló coberto», «pão-de-ló dito coberto», pão-de-ló monumental de 0,60 cm de diâmetro, até à
«pão-de-ló (bolinhol)» (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 116- fruta confeitada de maior apreço, oculta entre as flores
117; 142, 247). Repare-se a alusão ao que parece e rendas de uma boceta vistosíssima” (VASCONCELOS,
ser três tipos diferentes de pão-de-ló: pão-de-ló, pão- 1991 [1884]: 142).
de-ló coberto e pão-de-ló (bolinhol). À laia de conclusão podemos dizer que se fabrica pão-
de-ló em Guimarães desde pelo menos a segunda
metade do século XVII. Mas, provavelmente far-se-ia
há mais tempo, confeccionado nas casas de família,
no convento de Santa Clara e no Recolhimento das
Trinas, sendo que, no final do século XIX, o pão-de-ló
que saía dos fornos deste último tinha fama.
Infelizmente não possuímos nenhuma receita do
pão-de-ló confeccionado em Guimarães. No caderno
76
“À sobremesa [na Páscoa] não pode faltar o bate (pão de ló), o leite de receitas da família Freitas do Amaral existe uma
de creme queimado, o arroz doce, a aletria com desenhos de canela,
os "papudos", os doces de sequilhar, os bolos brancos (de gema), os receita mas está truncada. No livro de receitas da
rosquilhos, os beijinhos de Páscoa, as amêndoas, os rebuçados da Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio existe uma
Paixão. O vinho é de pipa, fazendo gala o Mordomo que seja o melhor
da adega. receita de pão-de-ló mas corresponde ao que se fazia
A receita dos rosquilhos e papudos é a seguinte: preparada a massa na confeitaria Bezerra, em Famalicão.
com farinha triga e água à qual se juntam manteiga, açafrão, fermento,
sal e açúcar, fica a levedar durante duas horas. Depois, as mãos das
doceiras moldam os rosquilhos e os papudos que são colocados em
tabuleiros polvilhados de farinha triga para não "apegar". Vai ao forno
de lenha, com a porta sempre aberta, até alourar. Levam cobertura de
açúcar refinado. O "bate" tem a mesma preparação da massa. Depois,
vai ao forno em alguidar de barro”. In http://comesebebes.forumakers.
77
com/receitas-de-pascoa-f5/pascoa-no-alto-minho-2008-t239.htm. Emanuel Ribeiro define o bolinhol como “espécie de pão-de-ló,
Maria Antónia Goes no seu «Dicionário de Gastronomia», explicita: coberto de açúcar e quase sempre rectangular. Província do Minho” e
“Bate – Minho – rosca de pão-de-ló” (GOES, 2005: 35). publica a receita (RIBEIRO, 1997 [1928]: 65 e 115).

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imagem 29

Passas
Em 1692, as freiras clarissas costumavam receber, em “véspera de Natal”,
“dois arráteis de passas” (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3). As passas
são um fruto seco preparado a partir de uvas que sofreram um processo
de desidratação, tendo em vista a sua conservação durante mais tempo.
As passas, para além de serem comidas ao natural entravam também na
composição de muitos doces.
No caderno de receitas de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio existe
uma receita de «Passas de uvas», proveniente da Casa Ferreirinha.

Passas de uvas
1 cântaro de água
1 malga de cinza de vide
e um fio de azeite muito bom
Ferve-se esta mistura durante uma hora e depois deita-se num cântaro
para assentar.
Deita-se depois esta água num tacho e quando estiver a ferver, mergulham-
se nela os cachos de uvas, tiram-se e repete-se esta operação mais duas
vezes. Tiram-se e põem-se em peneiros ou redes a secar ao sol.
Ficam muito boas. Receita da casa Ferreirinha.

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Pastéis
Pastel é, por definição, uma “massa de farinha de trigo, com recheio salgado
ou doce, que se frita ou assa” (HOUAISS, 2003: 2779). No regimento dos
Pasteleiros de Lisboa (1572), estes são obrigados a saber fazer pastéis
de carne, peixe e pastéis reais (CORREIA, 1926 [1572]: 222). Domingos
Rodrigues, na sua «Arte de Cozinha» (1693), tem várias receitas de pastéis
de carne e peixe e pastéis doces (RODRIGUES, 2001 [1693]).
Sabemos que as freiras de Santa Clara de Guimarães faziam “pastéis de
carne” (BRAGA, 1927: 117) e pastéis doces. De facto, em 1692, na véspera
de Janeiro, ou seja, na véspera de Ano Novo, têm direito a “dois pastéis”,
que deveriam ser doces (GUIMARÃES, 1892: 200, nota 3). Temos de
esperar por 1751-1752 para ficar a saber que faziam pastéis de carne e
pastéis doces. Nessa altura as freiras clarissas costumavam enviar para a
Convento vimaranense de S. Francisco, “em dia da Senhora de F[evereir]o
(…) pastéis de carne” (BRAGA, 1927: 117). Mas, na mesma época as freiras
oferecem também broinhas78 e pastéis doces, sendo estes feitos com açúcar
e manteiga, usando-se papel “para se darem estes doces”79 (BRAGA, 1927:
118). Ao médico do convento, também em 1751-1752, as freiras oferecem
“em o dia do recebimento da sua filha, dois pratos de leite crespo e um de
pastéis” (BRAGA, 1927: 117-118).
Nos cadernos de receitas das famílias Sampaio da Nóvoa e Freitas do Amaral
existem diversas receitas de pastéis, algumas com indicação de proveniência
– «Pastéis de Santa Clara», Porto (Sampaio da Nóvoa); «Pastéis fritos», receita
do Convento de Vairão, Vila do Conde (Sampaio da Nóvoa); «Pastéis de
Belém», Lisboa (Sampaio da Nóvoa); «Pastéis de Lorvão» (Freitas do Amaral),
mas nenhuma com a indicação de ser receita proveniente de Guimarães.

Queijadas
Encontra-se referência a «queijadas»80 no foral concedido por D. Manuel a
Guimarães, a 20 de Novembro de 1517 (MEIRELES, 1994 [1517]: 55). Este
doce era confeccionado no Convento de Santa Clara, pois as freiras clarissas,
em 1751, oferecem ao convento de S. Francisco de Guimarães, “em dia de
N[osso] P[adr]e uma bandeja de queijadas” (BRAGA, 1927: 117).
Num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de Tibães, existe uma

imagem 30
78
Existe uma receita de «broinhas doces» num manuscrito pertencente à Livraria do Mosteiro de
Tibães (RAMOS; SOARES; OLIVEIRA, 2005: 105).
79
“Mais se deu uma dúzia de pastéis e meia de broinhas, para o que se deu de açúcar quarenta e
nove arráteis: custo 3$062 e meio – para os pastéis, de manteiga de vaca três quartilhos, custo 330
rs – de ovãos para as broinhas 480 rs – de amêndoa uma arroba, 1$920 rs – de pisar a amêndoa e
cheiro e canela, 420 rs – de papel para se darem estes doces, 300 rs.” (BRAGA, 1927: 118).
80
“A qual portagem se não pagará de todo o pão cozido, queijadas, biscoitos, farelos, ovos, leite nem
de cousa dele que seja sem sal” (MEIRELES, 1994 [1517]: 55).

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receita de «queijadas», confeccionada com queijo, farinha, açúcar e uma clara de ovo “para liar” (RAMOS;
SOARES; OLIVEIRA, 2005: 112).
Em princípio uma queijada deveria ser um doce confeccionado com queijo. No entanto, no caderno de receita de
Dona Maria Henriqueta existe uma receita de queijadas que não leva queijo. Pelo País fora ainda hoje se fazem
queijadas com e sem queijo. Provavelmente alguns doces que não levam queijo designar-se-iam queijadas pelo
facto de o bolo ter a mesma forma das queijadas que levam realmente queijo.
Pode ser que a receita aqui apresentada não tenha nada a ver com as queijadas referidas no foral de Guimarães
de 1517 ou com as que se confeccionavam no Convento das clarissas, no entanto, achamos que dado tratar-se
de uma receita que se designa «Queijadas de Guimarães» a deveríamos apresentar.

Queijadas de Guimarães (Família Sampaio da Nóvoa)


Põe-se ao lume um arrátel de açúcar pilé, côa-se e deixa-se vir a ponto de voar. Deita-se-lhe então um arrátel de
açúcar e deixa-se ferver um bocado.
É preciso mexer sempre, para não pegar no fundo do tacho. Depois tira-se para fora e deitam-se-lhe 12 gemas
e uma clara batidas, torna-se a levar ao lume até levantar fervura, mexendo sempre. Há-de ficar a massa presa
para se poderem fazer as queijadas. Deixa-se descansar até ao dia seguinte, ou até estar bem fria. Depois
põe-se um pano em cima de uma tábua, cortam-se as hóstias redondas, molham-se as bordas ligeiramente,
deita-se-lhe no meio o doce e levantando as bordas das hóstias que estão molhadas, com os dedos dá-se-lhes
a forma das queijadas (ver molde).

imagem 31

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Queimadas de fio Suplicos (Família Freitas do Amaral)


O Pároco de Penselo, em 1842, refere que na sua paróquia se comia Açúcar fino 500 g
“creme, arroz doce de príncipe, letria, boas queimadas de fio, manjar de Ovos 6 ou 7
diferentes qualidades” (LAMEIRAS, 1998 [1842]: 444). Esta é a única
Raspa de limão de 1
referência que conhecemos a queimadas de fio, desconhecendo-se qual
Canela em pó
o tipo de doce a que corresponde esta designação.
Sal
Farinha triga, aproximadamente 375 g
Sopa doce
Manteiga para untar a lata q.b.
Em 1751, as freiras clarissas também comiam “em certos dias de festa
e de aniversário (…) sopa doce” (BRAGA, 1927: 116). Não conhecemos Junta-se ao açúcar os ovos, o limão, a canela em pó e o sal
nenhuma receita vimaranense de sopa doce81. e bate-se tudo muito bem até engrossar. Depois deita-se-lhe,
pouco a pouco, e envolvendo sempre com a mão, a farinha
Por todo o País há referência a sopa doce, mas as receitas variam
necessária para que a massa fique um tanto grossa e de forma
bastante. Por exemplo, a receita de «sopa doce» apresentada por António
a poder tirar-se aos bocados com uma colher. Estes bocados
Bello no seu livro «Culinária Portuguesa» é bem diferente daquela que é
embrulham-se em farinha triga, para não pegarem nas mãos, dá-
referida na «Carta gastronómica de Portugal», e que se diz ser originária
se-lhes a forma de S e põem-se em lata untada com manteiga.
do Entre-Douro-e-Minho82 (BELO, 1994 [1936]: 332).
Vão a cozer ao forno ou fornalha e quando estiverem cozidos
e com a cor bem loura aí tiram-se da lata. Deve guardar-se em
Suplicos latas fechadas.
Emanuel Ribeiro dá conta de que no convento de Santa Rosa de Lima
tinham fama os «suplicos» (RIBEIRO, 1997 [1928]: 47). Suplicos, Famalicão (Família Sampaio da Nóvoa)
Temos duas receitas de «suplicos»: uma, que consta no caderno de 12 ovos, sendo nesta conta 4 com clara, 500 gramas de açúcar,
Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio, anotada como sendo originária da 500 gramas de farinha triga flor raspa de limão, canela e sal
Confeitaria Bezerra, de Famalicão, a outra, da Família Freitas do Amaral, preciso.
a qual seria, presumimos, originária de Guimarães. De qualquer modo
Tudo bem batido (quer dizer a farinha só se deita no fim).
transcrevemos as duas receitas.
Depois disto bem batido, junta-se a farinha a pouco e pouco,
mexendo sempre.
Untam-se os tabuleiros com manteiga, polvilham-se com farinha
triga e deitam-se então os bolos que vão ao forno, não muito
forte.
É receita do Sr. José Guedes, da Confeitaria Bezerra de Vila Nova
de Famalicão. São muito bons.

81
Na «Carta gastronómica de Portugal», da União de Empresas de Hotelaria de Restauração
e de Turismo consta uma receita de sopa doce, confeccionada na região de Entre Douro
e Minho. Veja-se http://www.aphort.com/img_upload/Receita%20Sobremesas%2031_%20
SopaDoceEntreDouroeMinho.pdf. Prepara-se do seguinte modo: aquece-se num recipiente
vinho verde tinto e açúcar, aromatizado com pau de canela; quando quente adiciona-se pão
previamente demolhado e mexe-se até ganhar presa. Retira-se do lume e dispõe-se em pratos.
Será que a sopa doce feita pelas freiras clarissas vimaranense se assemelhava à receita que
acima indicamos? Não sabemos. Mas, custa a crer que a sopa doce da receita acima fosse
considerada um doce conventual…
82
Veja-se nota anterior.

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TORTAS DE Tortas
Desconhecemos documentação anterior ao século
GUIMARÃES XIX que refira as tortas de Guimarães, o que é para
estranhar dado tratar-se de um doce cuja proveniência
de fabrico se atribui ao Convento de Santa Clara
de Guimarães, e que hoje é considerado uma das
especialidades da doçaria vimaranense.
Possuímos, é certo, duas receitas de «tortas»,
existentes nos cadernos manuscritos de receitas
oitocentistas das famílias Sampaio da Nóvoa e Freitas
do Amaral, mas, na documentação escrita, a referência
mais antiga que conhecemos data de 1884, altura
em que, na Exposição Industrial de Guimarães, o
Senhor António Serafim Afonso Barbosa, da Senhora
da Guia83, expõe “tortas”, entre outra doçaria84
(GUIMARÃES, 1991 [1884]: 247).
É verdade que o Abade de Tagilde, que estudou com
rigor o convento de Santa Clara de Guimarães, já em
1892 refere a importância da doçaria confeccionada
pelas clarissas citando, entre os doces que lhes
deram nomeada, as tortas: “referimo-nos à indústria
de doce, seco e de calda, em que as religiosas se
tornaram exímias, merecendo os seus produtos
renome afamado, não só em Guimarães e no país, mas
até no estrangeiro. O toucinho-do-céu, as tortas e ainda
outras espécies de doce, fabricadas neste convento,
conservaram esta nomeada até aos nossos dias”
(GUIMARÃES, 1892: 203-204).
Alberto Vieira Braga, que compulsou o livro de «Recibo
e Despesa» (1751-1753) do Convento de Santa Clara
de Guimarães, não refere as tortas, mas, nomeia
os pastéis de carne e os pastéis de doce, citando
a documentação consultada85 (BRAGA, 1927). Será
que nos séculos XVII e XVIII as tortas se designavam

83
José de Meira e Alberto Sampaio são quem informa ser este senhor
residente na Senhora da Guia (RELATÓRIO, 1991 [1884]: 116).
84
“O Sr. António Serafim Afonso Barbosa expõe – pão-de-ló, diverso
doce de chá, tortas e fruta em caixas – ameixa comprida, colondros,
pêra, pêssego, damasco, ameixa redonda, figo, cidrão, marmelada,
maracujá. Também expõe morcelas e toucinho-do-céu” (GUIMARÃES,
1991 [1884]: 247).
85
Veja-se neste texto a entrada sobre pastéis. Aí se anota que, em
magem 32 1692 e 1751-52, são referidos pastéis de carne e pastéis doces.

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pastéis? É uma hipótese não despicienda, até porque é verdade que ainda hoje em Penafiel se fazem as
na receita das tortas de Dona Maria Henriqueta Leal «tortas de S. Martinho», tendo a mesma forma das
Sampaio esta as considera um pastel: “Passado este tortas de Guimarães, tradicionalmente degustadas no
tempo, corta-se o rolo em fatias da largura de um dedo dia desse santo (11 de Novembro), sendo feitas de
e principia-se a alargar estas fatias, de maneira a que massa tenra, recheadas com carne picada, fritas em
as folhas fiquem bem separadas umas das outras; azeite e polvilhadas com açúcar e canela.
mete-se-lhe o recheio e dobra-se a massa para que Talvez o nome de torta dado às tortas de Guimarães
fique em forma de pastéis” (Caderno de Receitas se fique a dever ao facto de, a determinado ponto da
Sampaio da Nóvoa). sua feitura, a massa ter de ser estendida, pincelada
Ainda hoje há memória, em Guimarães, da confecção com pingue e seguidamente enrolada, permanecendo
de “tortas de picado” ou seja, tortas cujo recheio levava assim durante algum tempo, assemelhando-se, nessa
carne. Eduardo de Almeida refere que as clarissas altura, quanto à forma, a uma verdadeira torta.
confeccionavam “as tortas de picado e de doce”, mas Nesta fase da investigação consideramos os «pastéis»,
também nomeia os “pastéis”86 (ALMEIDA, 1925), referidos na documentação seiscentista e setecentista,
apesar de não indicar a documentação compulsada. e as «tortas», referidas na documentação oitocentista,
Debrucemo-nos um pouco sobre a designação «torta» como manjares diferentes. No entanto, pode ser que
dado a este doce. «Torta» é por definição uma “espécie tortas e pastéis sejam a mesma coisa. Certo é que
de pão-de-ló fino, doce ou salgado, que se recheia e causa estranheza que um doce tão requintado, e
enrola sobre si mesmo” (HOUAISS, 2003: 3548). que se sabe ter sido confeccionado pelas clarissas
Ora, as tortas de Guimarães não são uma torta na vimaranenses, não vir referido na documentação do
verdadeira acepção da palavra, assemelhando-se Convento de Santa Clara dos séculos XVII e XVIII e
mais a alguns dos pastéis conventuais que ainda hoje apenas ser nomeado na documentação do século XIX,
se fazem um pouco por todo o País. Define-se «pastel» ao contrário dos pastéis que são referidos diversas
como “massa de farinha de trigo, com recheio salgado vezes…
ou doce, que se frita ou assa” (HOUAISS, 2003: 2779). Analisemos agora as semelhanças e diferenças
Ao contrário das verdadeiras tortas, – feitas com existentes entre as duas receitas de tortas de que
uma massa fina de ovos, farinha e manteiga que dispomos, a de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio
se envolve com colher de pau e se leva ao forno a e a da Família Freitas do Amaral.
cozer, e que só depois de cozidas são recheadas Em ambos os casos são idênticos os ingredientes
e enroladas –, as tortas de Guimarães são feitas para a massa – farinha triga e pingue, apenas havendo
com uma massa de farinha e pingue que se sova referência a mais um ingrediente, no caso da receita
com as mãos, que exige repouso, indo as tortas ao de Dona Maria Henriqueta, o sal.
forno depois de terem sido previamente recheadas.
O recheio, na sua essência é semelhante (açúcar,
Ou seja, a designação mais correcta para as tortas
amêndoa e ovos, sendo que uma receita leva mais
de Guimarães deveria ser pastéis… Mas, também
ovos do que a outra), adicionando-se, no caso da
receita da Família Freitas do Amaral, “um trigo ralado”,
ou seja, acrescentando-se pão. As tortas de Dona
Maria Henriqueta têm a particularidade de se lhes
86
Assim reza o texto: “Os doces de Santa Clara são coisa muito adicionar cidrão picado87 (ingrediente que vamos
devotamente afamada em vários sítios – cremos bem que, em parte
alguma, essa fama suplantou, e com tão delicioso mérito, os do
nosso convento. O toucinho-do-céu, as tortas de picado e de doce, as
chouriças, as frutas de calda ou secas, as conservas, os folhados, as
natas, os pastéis, em que, no dizer de quantos lambareiramente os
provaram e devoraram, eram exímias e inigualáveis, alcançaram nome
87
que transpôs o termo, pois o estrangeiros as importava…” (ALMEIDA, Sobre o que é a cidra e o cidrão veja-se as notas de rodapé
1925). N.º 13 e 33.

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também encontrar no toucinho-do-céu) e um pau de banha ou manteiga88. Tal como as tortas, os sfogliatelle
canela. depois de enrolados têm de descansar, antes de
No entanto, só na receita de Dona Maria Henriqueta serem cortados em rodelas e recheados. O recheio
Leal Sampaio é que se explica o modo de confeccionar doce destes pastéis, que também são assados no
este trabalhoso doce, cujos passos aqui resumimos: forno89 como as tortas, é variável mas um dos mais
amassa-se a farinha com água e sal, até esta fazer utilizados leva ricotta. A forma dos sfogliatelle, que
“bolhas”. Estende-se a massa fazendo-se com ela um também são designados caudas de lagosta dado o
rolo que se unta com pingue frio. O rolo de massa formato que adquirem90, possui uma forma um pouco
deve repousar pelo menos duas horas, no final das diferente do das tortas, mas podemos dizer que se
quais deve ser esticado e, de seguida, com o rolo de incluem dentro da mesma «família». Uma diferença
madeira, estendido “em fita” e puxado “para os lados importante é que os sfogliatelle, depois de assados
com as mãos tanto quanto se puder”. no forno, não são metidos numa calda de açúcar
como sucede com as tortas.
Depois de devidamente estendido unta-se com pingue
quente e vai-se, de novo, enrolando. Este rolo de A originalidade na preparação da massa das tortas,
massa volta a ser besuntado com pingue e “fica em o trabalho de confecção que lhe anda associado, a
descanso uma noite ou algumas horas”. De seguida simbiose entre a banha, a cozedura no forno, o banho
corta-se o rolo às fatias, que devem ter a espessura em calda de açúcar e o crocante característico que
de “um dedo e principia-se a alargar estas fatias, de adquirem, tornam este doce um manjar divino, único
maneira a que as folhas fiquem bem separadas umas entre a doçaria portuguesa.
das outras”. Por fim coloca-se no meio destas “folhas” Apresentam-se de seguida as duas receitas de tortas
o recheio e “dobra-se a massa para que fique em que constam nos Cadernos de Receitas das famílias
forma de pastéis”. Feitos os pastéis, estes têm de ir Sampaio da Nóvoa e Freitas do Amaral.
ao forno, “a cozer como os outros pastéis”. Quando
saem do forno têm de ser mergulhados numa calda
Tortas de Guimarães (Família Sampaio da Nóvoa)
de açúcar, “metem-se as tortas dentro e tiram-se logo
com uma escumadeira. Depois de frias polvilham- Amassa-se a farinha triga em água fria temperada
se com açúcar e canela”. Para o recheio faz-se uma de sal, de modo a que a massa fique dura. Depois
calda de açúcar que se leva a “ponto de espadana de estar assim amassada a farinha, o que pode ser
baixo”. Depois de esta calda arrefecer junta-se-lhe feito dentro de um alguidar, coloca-se em cima de
os restantes ingredientes – ovos batidos, pau de uma tábua bem lisa e trabalha-se, amassando-a e
canela, cidrão picado – e leva-se de novo “ao lume até esfregando-a, como se lava a roupa, até que principie
engrossar, não devendo o ponto ficar muito subido”. a fazer bolhas. Neste ponto, faz-se dela um rolo, que
se unta por todos os lados com pingue de porco dos
Apesar de termos procurado em bibliografia da
rojões, frio, e deixa-se o rolo a descansar em cima
especialidade doces que se assemelhassem às
da tábua durante duas horas. Passadas estas duas
tortas de Guimarães, o único pastel que encontramos
horas, toma uma pessoa o rolo por um dos lados,
que tem algumas semelhança com as tortas são
os sfogiatelle italianos. De facto, em Nápoles,
confecciona-se um pastel doce – sfogliatella riccia
(sfogliatelle, plural) – muito semelhante, no modo
88
Veja o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=hr-yaD1Gc1Y&
de preparar e na forma, às tortas de Guimarães. A feature=related. Visionado a 12 de Setembro de 2011.
massa usada tem similitude com a vimaranense, com 89
Veja o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=TUR3YxjQGOE&fea
a diferença de que leva, por vezes, um pouco de mel, ture=related. Visionado a 12 de Setembro de 2011.
sendo também, depois de estendida, besuntada com 90
Veja a imagem do sfogliatella riccia em http://www.madeinkitchen.
tv/blog/ricette/sfogliatella-riccia-napoletana/. Visionado a 12 de
Setembro de 2011.

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e outra toma-o pelo lado oposto e, com um cilindro


de madeira, principia-se a estendê-lo em fita, pouco a
pouco; feito um pedaço de fita, alarga-se, puxando-a
para os lados com as mãos tanto quanto se puder.
Depois de estar assim alargada, unta-se com pingue
quente, e principia-se a envolvê-la com muito cuidado;
e assim por diante até se acabar a massa. Deste
modo fica a massa outra vez em rolo, formado da
massa que se estendeu em fitas largas. Este rolo
assim formado, unta-se por todos os lados com
pingue e fica em descanso uma noite ou algumas
horas.
Passado este tempo, corta-se o rolo em fatias da
largura de um dedo e principia-se a alargar estas
imagem 33
fatias, de maneira a que as folhas fiquem bem
separadas umas das outras; mete-se-lhe o recheio e
dobra-se a massa para que fique em forma de pastéis.
Tem-se ao lume um tacho com açúcar em ponto de
espadana, metem-se as tortas dentro e tiram-se logo
com uma escumadeira. Depois de frias polvilham-se
com açúcar e canela.

Recheio para as tortas


Deita-se num tacho um arrátel de açúcar e um
quartilho de água, e deixa-se vir a ponto de
espadana baixo. Depois tira-se do lume e põe-
se a esfriar. Junta-se-lhe uma quarta de amêndoa
pisada, 20 gemas de ovos batidos, um pau de
canela e um bocado de cidrão picado e torna-se imagem 34
a pôr o tacho ao lume até engrossar, não devendo
o ponto ficar muito subido.
N.B. As tortas antes de se meterem no açúcar,
põem-se numa folheta e metem-se à fornalha a
cozer como os outros pastéis.

Receita de tortas (Família Freitas do Amaral)


Para a massa de dentro um arrátel de açúcar, catorze
gemas de ovos, uma quarta de amêndoa e um trigo
ralado.
Para o folhado dois arráteis de farinha triga e seis
onças de pingue e três quartas de açúcar para as
passar.
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TOUCINHO DO CÉU

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Toucinho-do-céu
Tal como no caso das tortas de Guimarães também
quanto ao toucinho-do-céu, – doce associado ao
Convento de Santa Clara de Guimarães e parece que
também ao de Santa Rosa de Lima –, desconhecemos
documentação anterior ao século XIX onde este
apareça referido91.
É verdade que o Abade de Tagilde, em 1892, refere
o toucinho-do-céu confeccionado pelas clarissas
mas não cita fontes documentais, pelo que ficamos
sem saber quando se terá começado a confeccionar
este doce: “Referimo-nos à indústria de doce, seco e
de calda, em que as religiosas se tornaram exímias,
merecendo os seus produtos renome afamado, não
só em Guimarães e no país, mas até no estrangeiro.
O toucinho-do-céu, as tortas e ainda outras espécies
de doce, fabricadas neste convento, conservaram esta
nomeada até aos nossos dias” (GUIMARÃES, 1892:
203-204).
Possuímos, é certo, três receitas de «toucinho-do-céu»,
existentes nos cadernos manuscritos oitocentistas
de receitas das famílias Sampaio da Nóvoa e Freitas
do Amaral, vindo indicado explicitamente, no caderno
de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio, tratar-se de
uma receita proveniente “de S.ta Clara (Guimarães)”.
Referência ao toucinho-do-céu consta no Relatório da
exposição Industrial de Guimarães, de 1884, na qual
várias pessoas – António Serafim Afonso Barbosa,
da Senhora da Guia; Antónia Amália Viegas e Ana
Angelina Moreira – expuseram doçaria vimaranense
inserindo-se aí o toucinho-do-céu (GUIMARÃES, 1991
[1884]: 247). Note-se que estas duas senhoras foram

91
O Abade de Tagilde dá conta de uma questão ocorrida em 1757
e havida entre o Abade António de Magalhães Abreu e as freiras
clarissas. O pleito ficou a dever-se ao facto de o dito abade costumar
receber anualmente das freiras, “a fim de lhe adoçar a boca para
não ser remisso no pagamento (textual), uma caixa de doce do
peso de 8 a 9 arráteis”, tendo nesse ano de 1757 o presente sido
mais diminuto (GUIMARÃES, 1892: 196-197). Desenvolvendo o seu
discurso o Abade de Tagilde refere-se ao toucinho-do-céu, mas não
transcreve o documento original. Da leitura do seu texto fica-se com
a ideia de que o documento original refere “uma caixa de doce” e não
toucinho-do-céu. Um toucinho-do-céu com o peso de 8 a 9 arráteis,
ou seja, cerca de 3,7 a 4,1 kg, parece excessivo… Será importante
consultar a documentação arquivística referida por este autor para se
ter a certeza se há ou não referência a toucinho-do-céu.

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as últimas abadessas do convento de Santa Clara de Sampaio, se aromatiza com cidrão94 e casca de
Guimarães92 (GUIMARÃES, 1892-93: 203 e 27-28). limão, enquanto no da família Freitas do Amaral se
O toucinho-do-céu era presença obrigatória na usa uma quantidade significativa de calondro e, na
mesa, no período Pascal, disso nos dando conta outra, calondro e cidra.
Avelino da Silva Guimarães: “O toucinho-do-céu faz- O uso ou não do calondro no toucinho-do-céu origina
se especialmente nos conventos de Santa Rosa e doces com características diferentes. O toucinho-
Dominicas. É uma especialidade vimaranense, muito do-céu de Dona Maria Henriqueta Leal Sampaio é
usada em presentes de Páscoa” (GUIMARÃES, 1991 basicamente açúcar, amêndoas e ovos, aromatizado
[1884]: 248). com um pouco de cidrão e casca de limão. No caso
Também Gustavo de Matos Sequeira refere o do toucinho-do-céu da família Freitas do Amaral o uso
toucinho-do-céu de Guimarães ao mencionar a doçaria de calondro, que entra na composição na mesma
conventual que ainda subsistia em 1908 (SEQUEIRA, quantidade que a amêndoa e com menos ovos do que
1908: 10). na receita da Família Alberto Sampaio, dá origem a
um doce mais encorpado e de sabor bem diferenciado
O toucinho-do-céu é doce conventual ainda hoje
do da família Sampaio da Nóvoa. Para que melhor se
confeccionado em diferentes regiões do País.
entenda o que afirmamos veja-se o quadro onde se
Passamos a analisar as semelhanças e diferenças indicam as quantidades (em gramas) utilizadas em
existentes entre a receita de toucinho-do-céu de Dona cada toucinho-do-céu.
Maria Henriqueta Leal Sampaio e as duas receitas da
A especificação na receita de que se trata de
Família Freitas do Amaral.
“calondro de malga” serve para distinguir do calondro
Convém explicitar que a diferença entre as duas cristalizado muito em voga na época. Nos cadernos
receitas de toucinho-do-céu da família Freitas do de receitas da Família Freitas do Amaral temos a
Amaral se prende essencialmente com a utilização, receita do «fazer calondro»95, indicando-se que depois
na primeira receita, de unidades de peso (arrátel, de este “estar em ponto grosso, isto é tira-se para um
quarta, onça93) ainda com base no antigo Sistema pires e logo que ele faça uma codinha, pode-se tirar
Português de Medidas, e o uso, na segunda receita, para as malgas”. Trata-se pois de doce de calondro,
do sistema métrico decimal (grama) que entrou em que se conserva em malgas, ao contrário da calondro
vigor, em Portugal, na segunda metade do século XIX. cristalizado que se guardava em caixas.
As receitas em apreço (Família Sampaio da Nóvoa
e Freitas do Amaral) usam como ingredientes base
açúcar, amêndoa e ovos. Sendo que, no caso do
toucinho-do-céu de Dona Maria Henriqueta Leal

92
No Relatório da Exposição industrial de 1884, constam Antónia
Amália Viegas e Ana Angelina Moreira, informando-nos o Abade de
Tagilde que “as duas últimas superioras de Santa Clara apresentaram
na exposição industrial de Guimarães de 1884, toucinho-do-
céu, colondro, marmelada e laranja” (GUIMARÃES, 1892: 203) e
remetendo para o citado Relatório de 1884. Mais à frente, no seu
texto, o autor enumera as abadessas de Santa Clara informando que
as duas últimas foram Ana Angelina da Conceição, de 1862 a 1885,
e António Amália da Ascensão, de 1885 a 8 de Setembro de 1891,
data em que falece (GUIMARÃES, 1893: 27-28). Repare-se, que os
nomes de família, tal como era hábito desapareceram quando estas 94
Sobre o que é a cidra e o cidrão veja-se as notas de rodapé N.º
passaram para a vida conventual. 13 e 33.
93
O arrátel corresponde a 459 gr; a quarta corresponde à quarta 95
Veja-se neste artigo a receita de calondro da Família Freitas do
magem 62 parte do arrátel, 115 gr; e a onça a 28,35 gr. Amaral.

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Quadro comparativo

Toucinho-do-céu Toucinho-do-céu (1) Toucinho-do-céu (2)


(Família Alberto Quantidade (Família Freitas do Quantidade (Família Freitas do Quantidade
Sampaio) Amaral) Amaral)

Açúcar pilé 459 gr Açúcar 459 gr Açúcar 500 gr

Amêndoa pisada 115 gr Amêndoa pisada 113 gr Amêndoa pisada 120 gr

------ ------ Calondro de malga 115 gr Calondro de malga 125 gr

Gemas de ovos 22 Gemas de ovos 20 Gemas de ovos 20

Cidrão q. b. ------ ------ Cidra (facultativo) 1 colher

Casca de limão 1 casca ------ ------ ------ ------

Farinha (polvilhar) q. b. Farinha triga (polvilhar) q. b. Farinha triga (polvilhar) q. b.

Manteiga q. b. ------ ------ ------ ------

Em ambos os casos, e isto é importante vincar, fim “Tira-se do forno logo que esteja cozido, deixa-
não há o recurso a chila, ingrediente hoje corrente se arrefecer, sacode-se-lhe a farinha com um pincel,
no toucinho-do-céu que se vende em Guimarães. polvilha-se bem com açúcar e enfeita-se com as flores
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”… de açúcar como é costume”.
O modo de preparação do toucinho-do-céu é idêntico Apresentam-se de seguida as três receitas de
em todas as receitas: clarifica-se o açúcar96, côa- toucinho-do-céu que constam nos Cadernos de
se e volta a pôr-se sobre o lume juntando-se-lhe os Receitas das famílias Sampaio da Nóvoa e Freitas do
restantes ingredientes e deixando ferver um pouco. Amaral.
Retira-se do lume, deixa-se arrefecer e quando o
preparado estiver frio juntam-se as gemas de ovos
Toucinho-do-céu de S.ta Clara, Guimarães (Família
que devem ser previamente “escangalhadas com
Sampaio da Nóvoa)
uma faca”. Volta ao lume brando para engrossar,
retira-se e deixa-se arrefecer. De seguida unta-se a Clarifica-se um arrátel de açúcar pilé mas sem ovo97,
forma com manteiga derretida (na receita da família côa-se e torna-se a pôr no lume, juntando-lhe uma
Freitas do Amaral não se usa a manteiga), polvilha-se quarta de amêndoa pisada, um bocado de cidrão e
muito generosamente com farinha, e enche-se com o uma casca de limão; deixa-se ferver até fazer trave
preparado. No final cobre-se o preparado com farinha nos dedos; depois tira-se do lume e põe-se a arrefecer.
e vai ao lume. Para saber se está cozido “deve-se tirar Têm-se 22 gemas de ovos separadas das claras, mas
para fora, e meter-se-lhe um palito; se este sair húmido não batidas e logo que o açúcar esteja quase frio,
deve tornar ao forno, se sair enxuto está cozido”. Por vai-se-lhe juntando, pouco a pouco, as gemas (estas

96
Veja-se como se clarifica o açúcar na nota N.º 21. 97
Veja-se como se clarifica o açúcar na nota N.º 21.

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devem ter sido previamente escangalhadas com uma como para cozer, e estando uma hora no forno, deve-
faca, para não serem muito batidas) e torna-se a pôr se tirar para fora, e meter-se-lhe um palito; se este
o tacho ao lume até engrossar. sair húmido deve tornar ao forno, se sair enxuto está
Deve-se mexer sempre com cuidado para não pegar cozido.
ao tacho, o que facilmente acontece. Depois tira-se
do lume e põe-se a esfriar. Untam-se as formas com Toucinho-do-céu (2) (Família Freitas do Amaral)
boa manteiga derretida e polvilham-se com farinha
Componentes:
triga, enchem-se com o doce e peneira-se-lhe farinha
em cima, para poder ir ao forno sem se queimar. As Açúcar 500 gramas
formas devem ser prateiras de barro, ou grandes, ou Amêndoa 120 gramas
pequeninas. Calondro de malga e (…) 125 gramas
98

Metem-se depois ao forno do pão, a cozer, com a Gemas de ovos batidas 20


porta do forno apenas encostada.
Farinha triga q.b.
Tira-se do forno logo que esteja cozido, deixa-se
Cidra (facultativo) 1 colher
arrefecer, sacode-se-lhe a farinha com um pincel,
polvilha-se bem com açúcar e enfeita-se com as flores Põe-se o açúcar a ferver em pouca água até atingir
de açúcar como é costume. o ponto de espadana baixo; deita-se-lhe, então, a
amêndoa e o calondro e fervendo assim poucos
N.B. Para encher cada forma das que tenho em forma
minutos se tira o tacho do lume e estando quase frio
de coração é preciso 1 arrátel com uma quarta. E para
adicionam-se-lhe os ovos, tornando a massa para o
a forma redonda 1 ½ arráteis.
lume, que deve ser muito brando e mexendo sempre
A têmpera do forno é a seguinte: mete-se ao forno um até ficar uma massa grossinha o que se reconhece
papel e saindo louro, mas não queimado, está bom e vendo-se o fundo do tacho ao mexer. Quando a
pode meter-se o doce. massa estiver fria deita-se em formas, nas quais se
Esta receita é muito boa. tenha já lançado a farinha triga numa camada de 3
a 4 milímetros de espessura, cobrindo-se depois a
massa, também, com farinha e untando a forma dos
Receita de fazer toucinho-do-céu (1) (Família Freitas
lados. Vai depois a cozer ao forno, por uma hora,
do Amaral)
aproximadamente, não devendo aquele estar muito
Um arrátel de açúcar depois de limpo se põem a quente. Para se reconhecer se está cozido mete-se-
ferver até estar em ponto de espadana baixo; então lhe um palito e deve este sair enxuto. Escova-se,
deitam-se-lhe 4 onças de amêndoa bem pisada, e cobre-se com açúcar e enfeita-se.
uma quarta de calandro de malga, e fervendo assim
poucos minutos se tira o tacho do lume, e estando
quase frio deitam-se-lhe 20 gemas de ovos, bem
amassadas, tornando então para o lume que deve
ser muito brando, e mexendo-se sempre até ficar
uma massa grossinha; estando assim tira-se para
fora. Logo que a massa esteja de todo fria se devem
preparar umas prateiras ou formas, nas quais se deita
farinha triga em quantidade, que fique na grossura de
um pataco, depois deita-se a massa mais ou menos
conforme cada um quiser, porque esta não costuma
crescer, e se cobre também de farinha por cima, para
se cozer no forno, o qual não deve estar tão quente, 98
Palavra não identificada.

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78

Conclusão
Traçamos deste modo uma panorâmica sobre os
doces que ao longo dos últimos séculos foram
adoçando a boca dos vimaranenses.
Exceptuando o toucinho-do-céu e as tortas de
Guimarães, toda a doçaria que fomos referindo ao
longo deste texto tinha/tem (os que ainda se fabricam)
uma área de consumo/uso muito mais vasta do que
as terras de Guimarães, correspondendo ao gosto da
época em que são confeccionados.
Doces houve que permaneceram nas mãos de exímias
doceiras e que foram galgando os anos, agradando a
muitos e chegando até nós.
Termine-se chamando a atenção para a necessidade
de preservar e divulgar o riquíssimo património
gastronómico nacional, dando a conhecer receitas
locais, neste caso vimaranenses, e fomentando a sua
feitura no nosso quotidiano.

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Tortas de Guimarães: um contributo


para a sua qualificação
Virgínia Ribeiro99
Nuno Vieira e Brito100
Desde meados do séc. XVI que se reconhece nas monjas dotes culinários na preparação de iguarias refinadas e
exigentes, que igualmente se reflectiam no poder e prestígio do Mosteiro e Ordem a que professavam. Guardados
ciosamente os segredos das composições e dos métodos de preparação, as receitas eram propriedade do
convento que as freiras, independentemente da sua origem ou função, se comprometiam a ocultar toda a vida.
É neste valioso e ancestral receituário que, no Convento de Santa Clara, as «Tortas de Guimarães» encontraram a
sua origem e num passar de séculos e de hábitos religiosos femininos, foram sendo consolidadas e promovidas
para além das muralhas ancestrais da cidade, envolvendo famílias conceituadas, em particular com ligações
familiares ao Mosteiro.
“Faz mais milagres uma mesa recheada de iguarias do que uma igreja cheia de santos” (Victor Faria).
O grande desafio da actualidade é conjugar a genuinidade e autenticidade da receita com as mais modernas
exigências em termos de fabrico e segurança alimentar, obtendo um produto que, fiel às suas origens, é produzido
tendo em conta os actuais parâmetros legislativos e garantindo simultaneamente Qualidade, Aparência e um
Sabor bem reconhecido pelos devotos apreciadores das «Tortas de Guimarães».
Será, certamente, através de mecanismos de protecção, como a Indicação Geográfica Protegida (IGP), que se
poderá garantir a autenticidade, combinando a genuinidade da receita com um moderno processo de fabrico,
segundo as actuais Normas em vigor.
Tendo em vista a elaboração de um Caderno de Especificações que permita a qualificação deste relevante
Património Cultural de Guimarães, é fundamental uma análise detalhada do produto «Tortas de Guimarães»,
um olhar atento sobre a diversidade entre produtores e, em cada um deles, dos pormenores do fabrico, dos
ingredientes na sua valorização qualitativa e/ou quantitativa, o conhecimento de métodos e processos em que
a ancestralidade, tipicidade e genuinidade se conjugam, enfim, um estudo cuidadoso na qualificação desta jóia
gastronómica da Cidade-Berço da Nacionalidade. O estudo de caracterização das «Tortas de Guimarães» foi
precedido de uma pesquisa exaustiva sobre a doçaria conventual nacional e estrangeira, valorizando a originalidade
e autenticidade deste doce tradicional, quanto à forma e método de fabrico. Seguiu-se, posteriormente, uma
avaliação físico-química e sensorial do doce, em diferentes momentos e provindos de diferentes produtores.
Desta avaliação observou-se, em valores médios, um valor calórico de 369,969 kcal/100g tendo por base um
valor percentual de gordura de 12,958%, proteína de 5,602% e hidratos de carbono de 57,735%.

99
Mestre em Qualidade Alimentar.
100
Vice-Presidente Instituto Politécnico de Viana do Castelo.

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80

A utilização dos ingredientes, suportada nos receituários originais conhecidos, quer na quantidade e qualidade,
em particular, o registo ainda tradicional da utilização de gordura de origem animal, a presença no recheio de
amêndoa, elemento rico em proteína e gordura, bem como a quantidade de açúcar utilizada na confecção, são
elementos determinantes e fundamentais no contributo para um valor calórico elevado desta doçaria tradicional.
Outros resultados relativos aos parâmetros físico-químicos estudados, – como o teor médio de humidade
encontrado (18,527%), muito influenciado pela quantidade de chila e ovos usados; o teor de fibra, com valores
médios de 0,536%, fortemente determinado pela incidência na utilização de amêndoa na confecção do recheio;
e os valores médios de amido (39,823%), indicadores da quantidade de farinha trigo utilizada na confecção da
massa –, são, de igual forma, relevantes para a caracterização e qualificação das «Tortas de Guimarães».
Se a autenticidade deve e tem de ser preservada, conjugando a receita, seus ingredientes e métodos de fabrico,
deverá, no entanto, ter-se em consideração as actuais preocupações da sociedade moderna em matéria de
nutrição e saúde. Este desafio será certamente um estímulo à inovação na tradição, pela promoção de novos
formatos comerciais mais reduzidos das «Tortas de Guimarães», consequentemente de menor valor calórico
ingerido por doce. Deste modo se conjuga a autenticidade do produto com as exigências de uma sociedade
moderna extremamente focada em todos os factores que preservem ou aumentem a sua qualidade de vida.
Constatou-se no estudo realizado que a memória gastronómica persiste no reconhecimento e valorização
dos sabores mais tradicionais. Com efeito, os provadores que integraram o painel sensorial revelaram maior
apetência na selecção e quantificação do produto oriundo do método mais artesanal, tradicional e não comercial.
A variabilidade que se observa nesta análise entre produtores e, mesmo entre provas, tem significado nas
provas sensoriais, concluindo-se que esta diversidade, apesar de não comprometer qualquer qualificação,
diferencia a opinião dos provadores em diferentes parâmetros e permite constatar um enfoque na valorização
dos indicadores sensoriais relacionados com o Sabor, Aroma e Aspecto.
Numa análise factorial de todos os elementos sensoriais seleccionados, destacaram-se os parâmetros
relacionados com o Aspecto e valorizaram-se, mas em sentido negativo, os indicadores relacionados com o
paladar (Textura pela Boca a Gordura e Sabor a Ranço). De referir igualmente a particularidade sentida da
Textura, bem como de outros parâmetros directamente relacionados com a incorporação da amêndoa na receita
(Sabor e/ou Aroma), de factores ligados ao recheio (Aroma a Amêndoa e/ou Textura pelo Tacto Consistência
do Recheio) que contribuíram de forma mais relevante para melhor explicar a variabilidade das “Tortas de
Guimarães” e, em última análise, a sua caracterização e identificação.
O conhecimento do receituário original e das metodologias de fabrico, sem menosprezar a diversidade inerente
a cada produtor, é determinante para a qualificação das «Tortas de Guimarães». Os resultados obtidos permitem
identificar um conjunto de parâmetros físico-químicos e indicadores sensoriais que tipificam a originalidade e
autenticidade deste único monumento gastronómico vimaranense.
“Se não sois capaz de um pouco de feitiçaria, não vale a pena meter-vos a cozinheiro” (Sidonie Colette).
Após a qualificação, importa, com o envolvimento e empenho da Câmara Municipal de Guimarães, promover as
«Tortas de Guimarães», favorecer o surgimento de mais artesãos ou pasteleiros, integrar no Património local um
ancestral testemunho gastronómico.
Com efeito, a gastronomia tradicional e as práticas turísticas associadas fomentam a cultura de produtos locais
e potenciam e complementam um enorme conjunto de recursos existentes.
Nas «Tortas de Guimarães» o que melhor as identifica é a característica forma do doce, mas também os seus
ingredientes, as suas qualidades organolépticas, a sua ligação á História da cidade de Guimarães, transformando-
as numa referência quer para a orgulhosa população local quer para os inúmeros visitantes que apreciam
Património.

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Toucinho do Céu: um contributo para


a sua qualificação
Maria da Conceição Costa Mendes101
Nuno Vieira e Brito102
A gastronomia desenvolveu-se consideravelmente ao longo dos tempos, e há numerosos estudos que traçam
o desenvolvimento de estilos e gostos gastronómicos. A estreita associação da gastronomia e das identidades
locais, regionais e nacionais poderá ser aparentemente ameaçada pelo processo de globalização, caso não se
implementem medidas de inventariação e protecção dos produtos tradicionais.
Identificar o património gastronómico, valorizá-lo e promovê-lo é um acto de Cultura. Guimarães, detentora
inquestionável de um património cultural vastíssimo, é também berço de riquíssima gastronomia, nomeadamente
em doçaria conventual, que tem sabido resistir aos ritmos apressados da realidade actual. Dar a conhecer, com
a relevância e dignidade que merece, esta parte de Guimarães é uma obrigação de todos que cuidam e estudam
Guimarães dado que a Gastronomia (e particularmente a tradicional) é, também, uma forma de Arte.
O reconhecimento desta riqueza obriga à sua preservação, através de acções de identificação, promoção e
salvaguarda do receituário gastronómico tradicional, de forma a garantir a sua autenticidade, bem como a
transmissão a futuras gerações, valorizando paralelamente todo o seu potencial económico. Protecções diversas
têm, aliás, sido propostas e implementadas pela União Europeia – a Denominação de Origem Protegida, a
Indicação Geográfica Protegida ou a Especialidade Tradicional Garantida – as quais muito têm contribuído para
esta dinâmica de conhecimento e reconhecimento de processos, produtos e tradições.
“Guimarães é berço de várias nacionalidades doces. Um toucinho-do-céu que embora não afonsino, parece que lá
é que foi armado cavaleiro doceiro, umas rabanadas com pós locais, uma torta e uns doces das Costinhas, outros
já desaparecidos, oriundos dos vetustos conventos de São Francisco e de Santa Clara” (QUITÉRIO, 1987).
Sendo o Toucinho-do-céu de Guimarães um produto genuíno e com tradição na região apresenta-se merecedor
de ser qualificado e consequentemente certificado. O estudo da sua caracterização baseou-se quer na recolha
das receitas tradicionais quer na avaliação físico-químico e sensorial deste doce tradicional.
Em termos de receituário, os ingredientes do Toucinho-do-céu de Guimarães são açúcar, gemas de ovo, amêndoa
picada e chila. O produto resultante é constituído, numa perspectiva físico-química, maioritariamente por água,
hidratos de carbono e proteínas.
Para estudo da caracterização do Toucinho-do-céu de Guimarães realizou-se uma pesquisa sobre a doçaria
conventual, enaltecendo a originalidade e a autenticidade deste doce conventual, quanto à sua forma de
apresentação e método de fabrico. Após este estudo procedeu-se a uma avaliação físico-química e sensorial do
doce, em diferentes momentos e provenientes de diferentes produtores.

101
Mestre em Qualidade Alimentar.
102
Doutor em Ciências Veterinárias. Instituto Politécnico de Viana do Castelo.

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Da avaliação dos parâmetros físico-químicos verificou-se, como valores médios, um valor calórico de 286,24
Kcal/100g, tendo por base um valor de gordura de 2,869%, proteína de 5,422% e hidratos de carbono de
59,682%. Para este valor calórico contribuiu em especial ingredientes como a amêndoa, rico em proteína e
gordura e em significativa quantidade, ovos, ricos em proteína e açúcar, com elevada contribuição nos hidratos
de carbono.
No que concerne a outros parâmetros físico-químicos estudados, igualmente indispensáveis para a caracterização
do Toucinho-do-céu, a humidade apresenta valores médios de 23,669%, suportado especialmente pelo contributo
quantitativo de ingredientes como a chila e os ovos; o amido com valores médios de 41,659%, relacionado
em particular com a quantidade de farinha que envolve o doce e valores de fibra de 1,362%, resultante da
quantidade de amêndoa utilizada.
Da análise das provas sensoriais, em que se estudaram quatro grandes parâmetros – Aspecto, Aroma, Textura
e Sabor – observou-se alguma diversidade entre os produtores e mesmo entre as provas. Constatou-se que
para o painel de provadores as características mais relevantes no Toucinho-do-céu são o Sabor a Amêndoa e
a Chila bem como o Aspecto, em particular a cor e a uniformidade da superfície e cor da massa. Realçou este
estudo que os painelistas valorizaram mais os sabores tradicionais, fruto de experiências gustativas anteriores,
enaltecendo os produtos provenientes de métodos de fabrico mais artesanais.
A originalidade e autenticidade do Toucinho-do-céu de Guimarães não se caracteriza apenas pelo seu sabor
e pela riqueza dos seus ingredientes, mas também pela sua forma única e diferente de apresentação, rica e
alegremente enfeitada, fazendo deste doce uma das mais soberbas especialidades da doçaria vimaranense,
verdadeiramente única no país.
Uma conclusão importante a retirar é o facto de na receita do Toucinho-do-céu de Guimarães, se manter a
genuinidade associada ao receituário conventual do convento de Santa Clara de Guimarães, tendo as receitas
sido transmitidas de geração em geração nas famílias que estiveram ligadas ao mosteiro.
Nos últimos anos tem-se assistido a alterações importantes na forma de produzir/comercializar o Toucinho-do-
céu de Guimarães. Este facto deve-se essencialmente à adaptação às exigências legais ao nível da Segurança
Alimentar e também à uma nova visão que leva a considerar-se este produto como uma fonte importante de
cultura e turismo gastronómico, um complemento ao rico Património Cultural e Monumental que interessa
divulgar e valorizar, esperando-se assim que surjam incentivos ao aumento de produtores e à divulgação deste
produto gastronómico de características únicas.

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83

BIBLIOGRAFIA

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LAMEIRAS, 1998 [1842]


FERNANDES; OLIVEIRA, 2003
Alberto Lameiras – Inquérito paroquial 1842. Revista
Isabel Maria Fernandes; António José de Oliveira - de Guimarães. Guimarães. 198 (1998). P. 9-644.
Ofícios e mesteres vimaranenses nos séculos XV e
XVI. Revista de Guimarães. Guimarães. Sociedade
Martins Sarmento. 113-114 (2003-2004). P. 43-209.

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LIVRO, 1986 RODRIGUES, 2001 [1693]


Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Prólogo, leitura, Domingos Rodrigues – Arte de cozinha, dividida em
notas aos textos de Giacinto Manuppella. Lisboa: três partes… Lisboa: Colares Editora, 2001.
Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1986. 1.ª ed., 1680. A edição aqui citada tem por base a 3.ª
edição, datada de 1693.
MEIRELES, 1994 [1517]
Maria José Marinho de Queirós Meireles – Carta de SARAMAGO, 2001
Foral de Guimarães: estudo codicológico. Guimarães: Alfredo Saramago – Cozinha do Minho. Lisboa: Assírio
Sociedade Martins Sarmento, 1994. & Alvim, 2001.

MODESTO, 2001 [1981] SAMPAIO, 2003


Maria de Lurdes Modesto – Cozinha Tradicional Francisco Sampaio – A boa mesa do Alto Minho.
Portuguesa. Lisboa: Verbo, 2001. 1.ª ed. 1981. Lisboa: Notícias Editorial, 2003.

OLIVEIRA, 1705 SEQUEIRA, 1908


Manuel Botelho de Oliveira – Música do Parnasso… G. Matos Sequeira – A guloseima nacional. Ilustração
Lisboa: Oficina de Miguel Manescal, 1705. Portuguesa. Lisboa: Edição semanal do Jornal O
Século. 99 (13 de Janeiro de 1908). P. 3 a 10.
PEREIRA, 1852 http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/
António Fernandes Pereira – Dicionário geográfico IlustracaoPort/1908/N99/N99_item1/P1.html
abreviado de Portugal e suas possessões
ultramarinas… Porto: Tipografia de Sebastião José VASCONCELOS, 1991 [1884]
Pereira, 1852.
Joaquim de Vasconcelos – [Exposição Industrial de
Guimarães]. In Relatório da Exposição Industrial de
PESSANHA, 1997 [1957] Guimarães em 1884. Guimarães: Muralha, 1991.
José Pessanha – Doçaria popular portuguesa: estudo Edição fac-similada. P. 139-152.
etnográfico. Sintra: Colares Editores, 1997. [1.ª ed. Estes artigos de Joaquim de Vasconcelos foram
1957]. publicados pela primeira vez em «Comércio do Porto».

RELATÓRIO, 1991 [1884]


RELATÓRIO da exposição industrial de Guimarães em
1884. Guimarães: Muralha. Associação de Guimarães
para a defesa do património, 1991. [1ª edição, 1884].

RIBEIRO, 1997 [1928]


Emanuel Ribeiro – O doce nunca amargou… Sintra:
Colares Editora, 1997. [1.ª ed., 1923. 2.ª ed. revista
e ampliada, 1828].

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LEGENDAS

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LEGENDAS imagem 10. imagens 27 e 28.


Morcelas de mel. Pastelaria Pão-de-ló. Pastelaria Clarinha.
imagem 1. Clarinha. Fotografia de Foto Fotografia de Foto Beleza.
Rabanadas. Casa Costinhas. Beleza.
Fotografia de Paulo Pacheco imagem 29.
imagem 11. Passas. Fotografia de Foto Beleza.
imagem 2. Doce de calondro. Fotografia de
Tortas de Guimarães. Casa Paulo Pacheco. imagem 30.
Costinhas. Fotografia de Paulo Desenho/modelo de queijada
Pacheco imagem 12. extraído do caderno manuscrito
Figos abertos a meio. de receitas de Dona Maria
imagem 3. http://www.sxc.hu/ Henriqueta Leal Sampaio.
Escultura de Santa Clara. Na photo/1164597 a 14 Novembro
fachada do extinto convento de 2011. imagem 31.
de Santa Clara, hoje Câmara Queijadas de Guimarães.
Municipal de Guimarães. imagens 13 e 15. Pastelaria Clarinha. Fotografia de
Fotografia de Paulo Pacheco Marmelada. Fotografia de Paulo Foto Beleza.
Pacheco.
imagem 4. imagem 32.
Molde para enformar forminhas imagem 14. Tortas de Guimarães. Pastelaria
de papel. Propriedade da Família Compota. Fotografia de Foto Clarinha. Fotografia de Foto
Sampaio da Nóvoa. Fotografia de Beleza. Beleza.
Sofia Sampaio de Faria Mota e
Silva imagem 16. imagens 33 a 60.
Leite creme. Fotografia de Foto Tortas de Guimarães: modo
imagem 5. Beleza. de execução. Casa Costinhas.
Foral de Guimarães. Fólio onde Fotografias de IPVC: Instituto
são referidas as conservas de imagens 17 a 19. Politécnico de Viana do Castelo.
açúcar e de mel. Sociedade Doces de romaria. Fotografia de
Martins Sarmento Foto Beleza. imagens 61 e 62.
Toucinho do céu. Fotografia de
imagem 6. imagem 20. Foto Beleza.
Livro do recibo e despesa do Rosquilhos. Fotografia de Foto
Convento de Santa Clara. Fólio Beleza. imagens 63 a 72 e 84.
onde são referidas despesas Toucinho do céu: modo de
com doces. Sociedade Martins imagens 21 e 22. execução. Pastelaria Clarinha.
Sarmento Massapães. Fotografia de Foto Fotografias do IPVC: Instituto
Beleza. Politécnico de Viana do Castelo.
imagem 7.
Página de um dos livros de imagens 23 e 24. imagens 73 a 83.
receitas manuscritos da Família Mexidos. Fotografia de Foto Toucinho do céu: modo de
Freitas do Amaral Beleza. execução. Casa Costinhas.
Fotografias do IPVC: Instituto
imagem 8. imagens 25 e 26. Politécnico de Viana do Castelo.
Aletria. Fotografia de Foto Beleza. Ovos moles. Fotografia de Paulo
Pacheco.
imagem 9.
Doces de romaria. Fotografia de
Foto Beleza.

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