R - D - Rondinelly Gomes Medeiros
R - D - Rondinelly Gomes Medeiros
R - D - Rondinelly Gomes Medeiros
CURITIBA
2018
CURITIBA
2018
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FOLHA DE APROVAÇÃO
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Para Heleno Bento, José Márcio F. Fragoso e
Guilherme Abilhoa, que me ensinaram a farejar os
rastros da perigosa síntese entre vida e pensamento.
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AGRADECIMENTOS
À Alexandre Nodari, orientador fabuloso e amigo do peito, pela generosidade, pela paciência
e por tudo que tem me ensinado desde há muito.
Aos membros das bancas de qualificação e defesa, Isabel Jasinski, Roberto Zular, Lucius
Provase, Rodrigo Tadeu Gonçalves e, em caráter não oficial, mas não menos importante,
Flávia Cera, por levarem em conta este trabalho.
À minha mãe, Nalva, meu pai, Chico, meus irmãos, Rodrigo e Carpegiany, minha madrinha,
Suênia, e meus padrinhos, Liá e Galego (in memoriam), por tudo que é vida e alegria desde
sempre. A meus avós, Adalcina e Daniel, pelos pequenos, afetuosos e instrutivos momentos
em que aprendi as coisas do sertão. E ao pequeno Gustavo, a quem inda vou conhecer, mas
cuja espera e chegada embalaram muitas noites de dedicação a este trabalho.
Às amigas e amigos da Paraíba de quem não esqueço e que não me esquecem: PC, Jaqueliny,
Betoven, Neilson, Cleilson, Zé Márcio, Allyson Slash, Thiago, Edneia, Sauron, Delzymar,
Ariano, Raffaella, Erick e, especialmente, Aurino Jr, companhia vibrante e benfazeja. E à
galera das Sonsicleias Patoenses.
Aos colegas, pela acolhida alegre na UFPR e por esse trajeto juntos: Clarissa, Yuri, Hugo,
Diamila, André, Mateus, Emerson, Amyr, Angélica, Guilherme, Matteu e Raphael.
7
A intuição (...) é mais do que uma ideia; e, no entanto, para lograr
transmitir-se, deverá cavalgar algumas ideias.
H. Bergson
8
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo propor uma leitura do romance Vidas secas, de Graciliano
Ramos, a partir das práticas e saberes dos povos habitantes do semiárido brasileiro, tais como
presentes nos episódios e acontecimentos da família protagonista da obra. A hipótese
principal da dissertação é que alguns traços dos modos de vida daquela família retratados no
romance são irredutíveis aos sistemas de poder e sugerem modos de subjetivação e de ação
que admitem e promovem a participação dos entes outros-que-humanos na co-constituição do
mundo e em suas estratégias de resistência. Para tanto, verificamos, na primeira parte, as
relações históricas entre o sertão semiárido e as obras literárias que lhe dizem respeito,
propondo instrumentos teóricos e metodológicos para uma compreensão do sertão que
privilegie, neste contexto, uma convergência entre concepções abertas de literatura, de
política e de modos-de-vida. Em seguida, revisitamos uma seleção dos principais textos da
recepção e da crítica à obra de Graciliano, para sugerir, considerando o padrão humanista
desta crítica, referenciais que ressaltem em conjunto os aspectos cosmológicos e políticos
implicados nos modos de vida e nas estratégias de resistência agenciadas por Fabiano, Sinhá
Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. A terceira e última parte consiste na proposição
de imagens conceituais, advindas do próprio texto, que auxiliam na percepção e na articulação
de uma leitura cosmopolítica do romance.
9
ABSTRACT
This dissertation proposes to read the novel Vidas Secas, by Graciliano Ramos, based on the
practices and knowledge of the peoples living in the Brazilian semi-arid region, such as those
present in the episodes and events of the protagonist's family. The main hypothesis is that
there are certain details, in the text, which suggest that the ways of life of that family are
irreducible to the systems of power delineated in that same work, while presenting modes of
subjectivation and action that admit and promote instead the participation of other-than-
human beings in the co-constitution of the world and in its strategies of resistance. For this,
we first show the historical relations between the semi-arid backlands (called sertão) and
some literary works that concern it, suggesting theoretical and methodological tools that may
allow us to understand the sertão by means of a convergence between open conceptions of
literature, politics and ways of life. Then, we revisit a selection of the main texts of the
reception and critique of the Graciliano‘s work, in order to suggest, considering the humanist
standard of this critique, references that highlight both cosmological and political aspects
implied in the ways of life and the strategies of resistance put in place by Fabiano, Sinhá
Vitória, the two boys and Baleia. The third and final part consists in the proposition of
conceptual images, derived from the text itself, which helps to perceive and articulate a
cosmopolitical reading of the novel.
10
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................................... 12
1. SERTÃO: COSMOS E POLÍTICA............................................................................ 19
1.1 Sertão e Literatura das Secas.................................................................................. 19
Juazeiro: sertão, modo................................................................................................. 28
1.2 Regionalismos, Nordeste e Sertão.......................................................................... 34
Caatinga: A antropologia especulativa está para a cosmopolítica assim como o
humanismo está para o antropocentrismo..................................................................... 41
1.3 Graciliano, Vidas secas e uma proposta cosmopolítica.......................................... 52
Mutirão: As alianças cosmopolíticas............................................................................ 58
2. HOMEM: INFRA-, SUPER-.................................................................................... 68
2.1 O parâmetro humanista da recepção da obra de Graciliano Ramos........................ 68
2.2 Pessimismo e vida interior....................................................................................... 73
Vereda: Ler é um ato de aliança. Em literatura, não há erro de interpretação,
mas somente consequências........................................................................................... 87
2.3 Vidas secas e os limites da interpretação humanista................................................ 90
3. SERTÃO: EXTRA-, MULTI-................................................................................... 100
3.1 Plano de leitura em dois planos............................................................................... 100
3.2 Roteiros. Roteiros. Roteiros..................................................................................... 107
3.3 Teoria da performance como antropologia especulativa: pode um extra-
humano falar?................................................................................................................ 110
3.4 Experiência Literária e Cosmopolítica......................................................................117
3.5 Poder e pessimismo................................................................................................ 126
3.6 Fabulação e cosmografia......................................................................................... 130
3.7 Um trajeto sem mapa............................................................................................... 135
4. RUMOS..................................................................................................................... 140
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 145
11
APRESENTAÇÃO
Quando eu tinha entre nove e doze anos de idade, uma estiagem severa se abateu sobre
grande parte do semiárido brasileiro. Morávamos na rua, como se diz na Paraíba de quem não
mora na zona rural; uma aglomeração à época com pouco mais de cinco mil habitantes, aonde
a calamidade chegou na forma do completo desabastecimento de água. Os poços artesianos
(cuja perfuração espetacular ajuntava uma pequena multidão expectante, espantada e
esperançosa) e as cacimbas eram as únicas fontes de água acessíveis, além dos caminhões-
pipa, que iam buscar água muito longe e periodicamente distribuíam-na em pontos
estratégicos nas ruas de São Mamede. Na calçada da nossa casa ficava uma das cisternas de
amianto que o governo gentilmente disponibilizara, onde o pipa despejava alguns mil litros de
água e se acotovelavam as pessoas com baldes e com medo de que a água fosse embora.
Nossa casa ficava numa das beiras da cidadezinha, bem próxima do rio Sabugi. Até aquela
idade eu nunca vira aquele rio com água. Rio, para mim, significava a areia, a cacimba e a
sombra das oiticicas. Era tarefa minha e de meu irmão mais novo irmos pela manhã até a
cacimba ou até o poço mais próximo buscar a água de uso do dia, que trazíamos em garrafas
de cinco litros amontoadas num carrinho de mão. Ali, enquanto esperavam sua vez, as pessoas
contavam estórias, pediam notícias de outras terras e de outras gentes, davam risadas, falavam
da televisão e das festas e, principalmente, recomendavam às crianças não baldear a água da
cacimba. Para aquelas crianças que éramos, fora o desconforto de não se ter água disponível
na torneira – desconforto que só olhando desde agora posso recuperar em parte, pois naquele
então não significava senão cuidado para não desperdiçar água da bacia e certa alegria colhida
dos passeios de abastecimento... para nós, não havia grandes apertos. Nenhum luxo, claro;
mas nenhum aperreio insuperável... Porém, havia aquilo – geralmente depois do meio-dia,
durava menos de um minuto: ouvíamos os cânticos tristes de mulheres tristes, os passos de
umas poucas gentes com cara e jeito muito marcados e algum choro resignado. Os cortejos
para anjinhos mortos passavam com uma frequência cada vez maior, combinando-se com a
maior frequência da decepção no rosto de meu pai, ao sair para o trabalho, olhando para a
barra do nascente, vermelha; com a maior frequência daquele terrível ―
ô de casa! dona, me dê
alguma coisa pr‘eu jejuar co‘as criança...‖; com a maior frequência dos redemoinhos... Uma
coisa de muito ruim acontecia ali bem perto, nos sítios ao redor, de que eu não tinha notícia,
mas sentia e pressentia... Era a seca. Que depois eu viria a conhecer também pelos livros.
12
Aos 25 anos, com a faculdade de História já concluída, eu estava envolvido em
projetos de assistência a comunidades camponesas daquela região. Foi quando conheci seu
Heleno Bento. Filho e neto de camponeses, Heleno vive até hoje, com sua esposa, dona
Branca, ambos idosos, em um sítio minúsculo, de pouco mais de um hectare, no Seridó, na
cintura da Paraíba, onde ela faz fronteira com o Rio Grande do Norte. O Seridó é uma das
regiões com processo de desertificação mais avançado do semiárido brasileiro, resultado do
acúmulo de práticas agropecuárias predatórias e destrutivas.1 Seu Heleno fala de um jeito
muito particular acerca de sua vida no campo: além de um respeitado agente comunitário de
saúde, ele se diz agricultor experimentador. Conta que a terra onde vive foi continuamente
massacrada desde que os colonizadores exterminaram os índios que ali viviam, há muito
tempo. Veio o latifúndio para o gado e, depois, a monocultura do algodão. Devastaram tudo,
derrubaram o mato, estruíram o solo, secaram os olhos d‘água. Sobraram só os tabuleiros e as
juremas. Seu Heleno explica que as juremas parecem uma peste, mas elas na verdade estão,
com os marmeleiros e as catingueiras, lentamente recuperando os solos desgastados, desde
que não se mexa nelas. Em seu pequeno sítio, que eles nunca denominam ―
propriedade‖, mas
―
área‖ ou ―
terreno‖, Heleno e Branca se dedicam a fazer o trabalho inverso ao do projeto
desertificador, o de aliar-se ao mutirão da terra, habitar esse perigoso e sutil cruzamento de
interesses vitais que constitui o sertão: as plantas, essas que se espalham pelo trabalho do
vento, dos passarinhos e das abelhas, podem servir às vezes de defensivos naturais nos
cultivos, para não se aplicar veneno, pois o veneno mata os bichos e micro-organismos do
solo, e um solo vivo é essencial tanto para os cultivos como para manter a terra úmida
durante a estiagem e firme durante as enxurradas das chuvas; chuvas que, se poucas ou
muitas, sempre virão, e é preciso estar preparado para, se pouca, guardar a água, de todos os
modos, com o auxílio da terra fofa, segurada pelas plantas, dos pequenos mananciais
ensombrados por árvores que, por isso mesmo, não se pode derrubar, pelas cisternas do
terreiro que captam a água do telhado, pelos tanques feitos nos lajedos e pelas pedras, que,
por sua vez, tendo aparecido à flor da terra devido ao desgaste do solo, podem ser usadas,
junto com garranchos, em pequenos e sucessivos barramentos para que, se a chuva for muita,
as enxurradas decorrentes das terras vizinhas ainda não recuperadas não carreguem esta terra
que está se recuperando; aliás no acúmulo de material orgânico nessas pequenas barragens dá
pra se plantar alguma coisinha...
Heleno e Branca fazem parte daquele movimento pluridirecional pelo qual, desde
1
Conforme a síntese dos estudos em PEREZ-MARIN, CAVALCANTE et alii., 2012.
13
meados da década de ‘90, comunidades camponesas do semiárido, assessorados por
organizações da sociedade civil, têm proliferado práticas e saberes experimentais que
cultivam os modos-de-existência do sertão. Baseados em sócio-técnicas resgatadas da
sabedoria indígena dos povos que habitam o semiárido, em tecnologias singelas re-inventadas
e adaptadas a cada realidade local, esse movimento carrega o slogan da convivência com o
semiárido, em contraposição à palavra de ordem dos poderes político-econômicos que, sob o
lema de ―
combate à seca‖, combatem, na verdade, a possibilidade de se viver no sertão, os
modos de vida que o sertão propõe, exige.2 A convivência com o semiárido não diz respeito a
uma suposta situação pacífica e paradisíaca. Essa é, na verdade, a propaganda de um sistema
que, desde há muito, promete, por meio da produção e do consumo irrefreável, do
crescimento ilimitado e do pretenso domínio de todas as variáveis da vida, fazer da terra um
paraíso – entregando, porém, um inferno. A convivência com o semiárido diz respeito à
possibilidade de promover os modos de vida que consideram a agência interativa dos entes da
terra, agenciamentos cósmicos de uma política terrana que leva em conta os intercâmbios
vivos de nuvens, bichos, solos, pessoas, plantas, cursos d‘água... Trata-se de cultivar e
experimentar, de adaptar, negociar e inventar. De colaborar com, confrontar os e aproveitar-
se dos acontecimentos nesse plano de intermitências que constitui o semiárido.
2
Interessa observar que parte considerável do êxito desses movimentos se deveu à capacidade de incidência
política das organizações de base junto a agentes e instâncias governamentais que, posicionando-se na contramão
dos interesses dos coronéis do sertão, foram de fundamental importância, por se comportarem de um modo mais
próximo ao de seu Tomás da Bolandeira do que ao do patrão de Fabiano. As políticas dos anos 2003-2010, que
foram propostas e asseguradas pela mobilização popular no semiárido a partir das muitas décadas anteriores de
lutas e resistências criativas, foram imprescindíveis para o enfrentamento das causas estruturais da catástrofe dos
retratos clássicos das secas. O atual momento é, no entanto, de extremo perigo, devido ao duro golpe que essa
rede sofre por parte de um governo inteiramente a serviço do agronegócio e do hidronegócio, que se empenha na
extinção de direitos e no sufocamento das resistências e dos modos-de-vida dos povos do sertão e dos outros
povos minoritários do país e na devastação da caatinga, do cerrado e da Amazônia.
14
responsabilidade das tragédias relatadas nas obras era atribuída às forças, por assim dizer,
naturais, e tentar problematizar, com o auxílio da crítica e da história, essa responsabilização.
Porém, este projeto foi aos poucos se transformando numa pesquisa obsedante acerca da mais
instigante dessas obras, que é Vidas secas.
Encarei o perigo de falar de uma obra canonizada, cuja fortuna crítica ultrapassa
qualquer esforço de síntese, devido à demanda particular de compreender o que se me
apresentava como continuidade intuitiva entre as experiências ambivalentes daquela família
sertaneja do romance (enredada por sistemas de poder, mas deslizando entre e por baixo
desses sistemas com as resistências do sertão) e as experiências das famílias e comunidades
do sertão, que são como que Fabianos, Vitórias, Meninos e Baleias em uma situação na qual
as dinâmicas de seus modos de vida são fomentadas (em vez de suprimidas) e que, diante dos
sistemas de poder, em vez de fuga do sertão, desenham linhas-de-fuga com o sertão.
Aquilo que se atravessou em minha leitura de Vidas secas é de natureza semelhante à
do enigma de que fala J. J. Saer: ―
se a verdade tem a obrigação moral de pensar-se a si mesma
como relativa, a ficção só existe como absoluto, mas um absoluto que não é afirmativo, um
absoluto que propõe mais enigmas que soluções.‖ (SAER, 2002). O enigma sentimental que
se me impunha nas leituras recorrentes de Vidas secas teve seu lugar justamente devido
àquele confronto, para mim vital, de que falei logo acima. Dado o meu percurso, foi, então,
inevitável perguntar: o que Fabiano tem a dizer sobre os modos de vida no sertão? O que
Baleia tem a dizer sobre humanidade e bichidade? Diante de quem e sob que condições eles o
dizem? Este enigma ganhou, para mim, o valor de uma proposição heurística, um modo de
prestar atenção, um modo de habitar o espaço do romance ao mesmo tempo inescapavelmente
guiado por um narrador que é um intérprete generoso, porém rigoroso, dos pensamentos,
desejos e situações vividas por aquela família, mas também mantendo a atenção para aquilo
que me parecia, na narrativa, não esgotar o sentido das vidas deles. Tentei, com isso,
compreender por quais caminhos eu poderia elaborar essas proposições heurísticas.
Uma primeira impressão foi a de haver uma espécie de quase irresistível aliança
imposta pela narração, que encadeia o narrador, o autor, a crítica e o cânone da literatura
brasileira. A perspectiva desta aliança, digamos, oficial, de interpretação do romance é muito
similar àquele complexo discursivo e interdisciplinar que atribui à porção semiárida do
nordeste brasileiro uma constituição pela falta, pela ausência, pela negatividade. A própria
pesquisa no arquivo da fortuna crítica sugere que a grande marca do romance seria a
dificuldade dos personagens com os meandros da língua – a falta: de linguagem, de
15
consciência, de raciocínio sofisticado... Ora, segundo essa perspectiva o fato de o narrador
emular o pensamento da cachorra Baleia leva, necessariamente, a uma alternativa instigante:
ou Baleia é gente, pois pensa, ou o pensamento, nessa família, não é distintivo de
humanidade. Essa promiscuidade, digamos assim, ontológica, entre Baleia e as outras pessoas
da família é coextensiva à proximidade ontológica entre as pessoas da família e os outros
entes do assim chamado espaço natural, a fazenda ocupada. Neste ponto, seguindo ainda a
proposta da abordagem negativa (da falta), ecoam os pressupostos romântico-naturalistas,
cujo epítome é alcançado em Os Sertões, segundo os quais o tipo-sertanejo seria uma
derivação direta da natureza indomável, indócil, hostil do sertão (por natureza indomável,
indócil, hostil, podemos entender natureza amorfa e homogênea, isto é, não participante do
sistema de diferença discreta entre Natureza e Civilização). Desta forma, a falta de linguagem
(de consciência) de Fabiano derivaria da falta de recursos naturais... Falta de consciência, falta
de língua, falta de recursos, falta de chuva, falta de água, falta de fertilidade... No sertão
parece que faltaria até mesmo natureza!
Essa percepção me lançou à procura dos esquemas de resistência, das formas de vida
política, dos estatutos de mundo e de gente que poderiam advir desde um posicionamento de
leitura de Vidas secas que valorizasse tais questões positivamente (isto é, para além da
constatação de suas ausências). Neste ponto se encontra a proposta de opor à falta
constitutiva, acusada por um projeto de subjetividade, consciência e ação (de política,
portanto) que deforma o ―
especificamente humano‖ em ―
exclusivamente humano‖, um outro
projeto, apenas vislumbrado na narração dos modos de vida daquela família, que redesenha os
limiares da subjetividade, da consciência e da ação desde sua relação contingente com os
humanos-outros e os entes outros-que-humanos (uma cosmopolítica, portanto). Se o escritor
Graciliano Ramos pôde fazer uma etno-psicografia coletiva perturbadoramente oblíqua,
espécie de Fabiano‖3, ora todos os personagens do
depondo que ele mesmo seria ora uma ―
livro4 – isto é, se o próprio autor declara identificar-se mais com os personagens do que com o
narrador reconhecidamente superpotente – não é descabido que dela se possa derivar uma
antropologia especulativa e sua cosmografia correspondente, segundo o próprio texto. Se a
ideia antropocêntrica de patronato seca as vidas possíveis do sertão, é preciso fazer valer a
existência de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos dois meninos e de Baleia como imaginações
concretas de efeitos vitais, e não somente como ideias ou tipos.
As ferramentas teóricas e metodológicas, ainda que utilizadas de modo errático e
3
Em carta a Antônio Candido, reproduzida em Ficção e Confissão (CANDIDO, 2006a, pp. 9-12).
4
―já uma vez o autor confessava que todos aqueles personagens eram ele mesmo...‖ (CÂMARA, 1966, p. 308).
16
intuitivo, me foram oferecidas tanto pelas práticas de convivência com o semiárido das
camponesas e camponeses do sertão (e as decorrentes reflexões políticas das assessorias a eles
prestadas pelas organizações sociais nas quais trabalhei), quanto pelas amizades cultivadas
como aprendizado dentro e fora da academia – muito embora o resultado desta combinação
seja de inteira responsabilidade minha. As conversas, os cursos e os escritos de Alexandre
Nodari formaram o primeiro esboço das impressões que tentei elaborar neste trabalho,
especialmente as que dizem respeito à teoria e crítica literária e a suas implicações estético-
políticas. Das sugestões e insights durante os muitos e preciosos diálogos com Guilherme
Abilhoa surgiu grande parte das imagens conceituais aqui utilizadas, sobretudo aquelas
advindas da filosofia de Gilles Deleuze. As conversas, as aulas e a leitura dos escritos de
Juliana Fausto, Marco Antônio Valentim, Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro
contribuíram com muitas das ideias da filosofia e da antropologia fundamentais para este
percurso, principalmente aquelas relacionadas ao Antropoceno e às cosmopolíticas.
Evidentemente não tive a pretensão de resolver o enigma de Vidas secas, mas sim de
apresentá-lo de um modo tal que eu pudesse elaborar as perguntas acerca do que está em jogo
nas estratégias de resistência daquela família, como imaginar com eles os regimes de signos e
sentidos que coordenam suas vidas no sertão. Os resultados são, como sugere o título,
apontamentos para uma leitura cosmopolítica de Vidas secas. Não se trata de um esgotamento
desta proposta– coisa para uma pesquisa mais extensa, mais dedicada e com mais precisão –,
muito menos de uma interpretação definitiva do romance, mas apenas de um laboratório de
confecção de perguntas e experimentos responsivos. O primeiro capítulo tenta oferecer uma
visão panorâmica das literaturas pertinentes ao sertão, especialmente ao sertão do semiárido e
às secas, e do lugar que a obra de Graciliano nelas ocupa, considerando, em todo o caso, a
oposição entre antropocentrismo e cosmopolítica como matrizes antagônicas dos modos de
ver e vivenciar o sertão. O segundo, o mais chato dos três, pretende ser um apanhado da
crítica humanista à obra de Graciliano. Humanista porque, como, espero, ficará claro,
informadas por um padrão que se preocupa exclusivamente com a agência unilateral, a
suposta substância e o lugar solitário (leia-se privilegiado) do Homem. Esses dois capítulos
são costurados por pausas textuais, nas quais, por meio de algumas alucinações teóricas, tento
elaborar as imagens e conceitos fundamentais para o argumento. Por fim, o terceiro capítulo é
um ensaio de aproximação cosmopolítica do texto de Vidas Secas. Evidentemente provisório
e mais intuitivo do que categórico, este capítulo não se pretende senão a fornecer pistas por
onde tal aproximação pode se realizar.
17
Este é um experimento de leitura que leva em conta a emergência do tempo, a tarefa
de imaginar e produzir conexões temporárias, mapas e alianças parciais, de invocar, como o
fazem os povos da convivência com o semiárido, o ―
povo que falta‖, ―
o povo de Gaia‖, o
povo mirim‖ do devaneio de Graciliano5; tarefa para a qual a literatura pode contribuir como
―
uma experiência que seja, no dizer de Oswald de Andrade, ―
desta terra, nesta terra, para esta
terra. E já é tempo‖.
5
In: FAUSTO, 2013; RAMOS, 2012, p. 104.
18
1. SERTÃO: COSMOS E POLÍTICA
6
Relatório do anno de 1840 apresentado à Assembleia Geral Legislativa na sessão ordinária de 1841.
Disponível na íntegra: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1831/ - o trecho citado encontra-se exatamente no link:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1831/000019.html Grifo meu.
19
sertão, denominando o desconhecido território imediatamente posterior à faixa litorânea. ―
O
sertão foi brasileiro antes de o Brasil ter sido batizado‖ (BARTELT, 2003, p. 586). À época
da invasão da América, o termo sertão, mesmo de pouco uso nas línguas ibéricas de então, já
pertencia a um campo semântico regido pela oposição entre os estados selvagem e
domesticado, nomeando ora terras continentais ainda não conquistadas, tidas como
desabitadas, ora regiões de acesso perigoso, de difícil comunicação ou governadas por forças
ignoradas.7 Até mesmo as tentativas de etimologia da palavra são desencontradas, como se,
ironicamente, as circunscrições semióticas da palavra sertão fossem contagiadas pela
resistência ao mapeamento e à domesticação.8 Seja como for, esta palavra transformou-se ―
em
Signo Linguístico da Expansão Portuguesa, (...) e, depois, expressão abrangente e multímoda
de uma ‗realidade‘ brasileira.‖ (FERREIRA, 2004, p. 27).
Do período colonial ao imperial o que muda no entendimento (e, portanto, na ação)
sobre o sertão é o destaque que passa do aspecto do incógnito para o da indocilidade. Se no
primeiro momento, ele era um apavorante desconhecido, supostamente bravio, ou seja,
humanamente indeterminado, que era preciso reconhecer para domesticar e fazer produzir, no
segundo momento, ele era certamente selvagem, ou seja, lugar onde os atributos civilizados
não se distinguiam das propriedades naturais, sendo preciso domesticá-lo, fazê-lo participar
da nação, para reconhecê-lo.9 Nos dois modos, sertão é o fenômeno que se apresenta diante do
projeto colonial-modernizador10 de ―
subsunção real‖ da terra, enquanto resistência às
7
―Sertão advém do latim desertanum, desertum, no antigo português desertão, isto é, lugar desconhecido, ermo,
solitário, seco e não entrelaçado ao conhecimento humano. Sertão também foi imaginado como a terra
continental, no sentido que se empregava o vocábulo em Portugal do fim da Idade Média. Com esses
significados, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, e ao longo dos três séculos de colonização, o conceito seria
empregado para denominar a terra ignota do continente, por vezes lugar sombrio e incompreensível, onde
habitava o bugre selvagem e onde se esperava encontrar inomináveis riquezas na América Portuguesa. Em 1711,
o Pe. Raphael Bluteau, no Vocabulário Portuguez Latino (v. VIII, 1711-1727. p. 612-3), definiu sertão como
‗região apartada do mar, e por todas as partes metida entreterras [...] lugar que faz a maior calma‘,
conferindo forma sintética à compreensão do conceito‖. (OLIVEIRA, 2009, p. 38)
8
―Encontrando uma comunicação de Joseph Piel a este respeito [da etimologia da palavra sertão], vemos que
ele, ao discutir exatamente os aspectos mais estritamente etimológicos da questão, comenta as dificuldades
fonéticas que envolvem o percurso do vocábulo sertão desde etimologias propostas. Diz-nos que o Dicionário
Etimológico de Meyer Lubke averba a palavra sob o lema desertanus e que Corominas o repudia. Propõe então o
autor que se remeta Sertão a Sertanus, derivado de sertum, particípio passado de sero, serui, sere, que significa
entrelaçar, entrançar. Remete ao substantivo sertum (plural serta) que significa grinaldas, coroas, tranças. O
significado primordial seria, para Piel, alusão a uma vegetação contínua e esta forma admitiria a contaminação
semântica com sertus, inserido, metido dentro‖ (FERREIRA, 2004, p. 26).
9
Ver, para o período colonial, o artigo de FERREIRA, 2004, e, para o período imperial, o estudo fartamente
documentado de MÄDER, 2012; e ainda, o balanço parcial das hipóteses etimológicas feito por SCOVILLE,
2011, pp. 55-63.
10
Tendo em vista a região geográfica que serve de fundo e de tema às narrativas das chamadas literaturas das
secas, em cujo conjunto se encontra a obra sobre a qual nos debruçamos neste trabalho, definiremos como
projeto colonial-modernizador aquele agenciamento geopolítico que caracteriza a sequência de ações, apoiadas
ou executadas pelo Estado (colonial, imperial e republicano), cujo cenário e alvo são aquilo que se convencionou
20
premissas deste projeto, ou sua confusão; premissas baseadas na distinção moderna entre, de
um lado, a Natureza, a matéria paciente, reino dotado de razões a serem descobertas,
manipuladas e consumadas, e, do outro, o Homem, a forma agente, sujeito dotado da Razão
destinada a descobrir, manipular e consumar.
Desde o ponto de vista do sertão, portanto, é possível identificar os aspectos de
continuidade deste projeto. O sentido objetivo da colonização é uma seta apontada
cosmopolitanamente‖ para fora11, na direção da metrópole, cujo correlato imediato é uma
―
ação orientada em seu sentido inverso, em direção à terra – intenção que podemos chamar de
cosmética‖, já que é uma ação de remodelagem do espaço 12. Essa violência que reconfigura
―
a terra colonizada objetiva a produção de mercadorias e riquezas destinadas à metrópole.
Trata-se, provavelmente, de um duplo movimento epistêmico da modernidade que
corresponde ao duplo movimento material da acumulação primitiva do capital: a concepção
antropocêntrica de ação do projeto colonial, eco do mandato designado ao homem desde o
submetei e dominai‖), combina com a concepção eurocêntrica de missão e extração
Gênesis (―
– assim como o Homem deve/pode, pelo seu engenho, domar a Natureza e dela retirar seu
sustento, a metrópole deve/pode, pelo seu domínio, conquistar a colônia e dela extrair
riquezas. O que a metrópole é para a colônia, o Homem é para a Natureza: ambos estão
imbuídos do encargo de imprimir-se no ―
Outro‖, domá-lo, subjugá-lo e coagi-lo. Para dar
certo, esse projeto deve começar por unificar o ―
Outro‖, identificá-lo e separá-lo em unidades
distintas – o que exige uma peleja que vai desde a simples cooptação (o batismo, a feitoria)
até uma possível necessidade de eliminação (o genocídio, o desmatamento). A primeira
operação que constitui este outro é a que reduz especularmente a multiplicidade ao um
categórico (assim como ―
o‖ Homem, ―
a‖ Natureza, a agência histórica de um lado e a
paciência eterna do outro) e depois o um a Outro, ao homogeneamente oposto (―
os índios‖); e
depois, ainda, a que reduz o Outro homogêneo ao Mesmo (a floresta abatida em fazenda, o
chamar de sertão, que, por sua vez, foi sendo cada vez mais assimilado ao bioma e formas de vida do semiárido
brasileiro, como veremos mais abaixo. O projeto colonial-modernizador, no sertão do semiárido, então, é o
conjunto de dispositivos normativos, formações discursivas e ações de configuração paisagístico-sócio-político-
econômica que abrange desde as entradas e a conquista armada do século XVII até a mais recente e drástica
intervenção, a transposição do Rio São Francisco. Cf. MEDEIROS, 2017, Mundo Quase Árido (a publicar).
11
Conforme análise seminal de PRADO Jr, 1994, pp. 19-32.
12
Utilizamo-nos aqui da concepção analógica da cosmética, tal como exposta magistralmente por B. Prèvost
(2015), que subjaz tanto à ideia de ― regularidade da Natureza‖ do pensamento da modernidade, quanto àquela
ideia da Antiguidade, a que este mesmo pensamento se contrapunha, de ― ordem do Cosmos‖. A novidade
moderna, neste sentido, é que ao ― ter expurgado a ideia de ordem da questão da unidade cósmica‖, ela coloca, a
partir de Kant, ―a unidade natural não mais num mundo objetivo mas no coração da subjetividade‖. Deixa-se de
reconhecer uma ordem inerente a um Cosmos unificado, para identificar regularidades lógicas da Natureza-
conforme-a-fins-do-Entendimento, alargando, assim, o caminho epistêmico que justifica racionalmente o
progresso como domínio da Natureza e formatação/configuração antropocêntrica do mundo.
21
sertão resumido em pasto, o gentio sintetizado em cristão)13. O antropocentrismo como
método de determinação material-semiótica da natureza e do homem é o princípio que funda e
orienta o projeto colonial-moderno.
Ora, se se convencionou denominar de Modernidade o período em que a expansão
material-semiótica da Europa começa a imprimir-se sobre as histórias (isto é, as existências
material-semióticas) de outros povos humanos e extra-humanos14, não deve surpreender que
as conquistas modernizadoras do período pós-colonial imprimissem as marcas materiais e
semióticas das práticas, dos valores e dos horizontes que constituíram o nascedouro de tudo
que é moderno. Já no período ―
independente‖ do Brasil, a modernização das ex-colônias não
seria muito mais do que, no que se convencionou chamar de ―
independência‖, uma
internalização da metrópole, a assunção, por parte de poderes provinciais, das tarefas que
haviam sido as da colonização, a saber, o círculo vicioso de verificar, medir e classificar terras
e povos, e civilizá-las, isto é, fazê-las produzir, coagi-las a colaborar com as tarefas da própria
modernização – governá-las. Modernizar, desde o início expansivo e humanista da
Modernidade, supõe rejeitar toda agência política não antropocêntrica; isto é, não apenas as
agências não-antrópicas, mas (e talvez sobretudo) aquelas agências consideradas antrópicas
engajadas em outras direções que não o centro irradiante do projeto colonial-moderno, o
Homem/a Metrópole. Antes de tudo, colonizar/modernizar é, portanto, des-terrar: e se a era
do Homem, a Modernidade, é coetânea, ou, mais exatamente, tributária da descoberta do
Outro, a agência política dessa era é um Desterro fundacional.
A relação deste programa de transcendentalização da terra, impulso genético que o
ímpeto modernizador herdou da colonização, com as narrativas literárias verifica-se, por
exemplo, desde aquela obra que consagrou o ícone antropocêntrico, o Fausto de Goethe. Seus
últimos atos ilustram o projeto de reconfiguração do mundo levado a cabo pelo homem
moderno: cansado do tédio da história humana, Fausto está fascinado pela possibilidade de
subjugar as energias do mar – ―
tanta energia propositalmente desatrelada‖, e fazer do litoral
um paraíso na terra. E para concluir seu empreendimento, precisa eliminar o casal Filêmon e
Báucis, últimos exemplares dos humanos pré-modernos e de seu mundo (cf. GOETHE, 2007,
13
Há, numa breve fórmula de Heidegger, em Ser e Tempo, uma curiosa e sinistra síntese da ontologia subjacente
ao projeto colonial-modernizante: ―Amata é reserva florestal, a montanha é pedreira, o rio é represa‖ (1993, p.
119).
14
O prefixo extra- será bastante utilizado neste trabalho, predominantemente combinado com ― humano‖ ou
―político‖, a fim de tensionar seus sentidos opostos e complementares. Em ― extra-humano‖, por exemplo, o
sentido de ―fora‖ do prefixo remete, assim, tanto a ―
outro-que-humano‖ como a ―humano-outro‖.
22
pp. 543-624).15
No fim do mesmo século XIX, que na Europa começara com a tragédia apoteótica de
Fausto, o repórter da primeira guerra de colonização/modernização da recém-instaurada
República brasileira, Euclides da Cunha, dedica a primeira parte de suas crônicas a um relato
geo-histórico das porções semiáridas do norte do Brasil, pontuado por um clamor obsessivo
diante do ―
aspecto estranho e atormentado da terra‖, lugar onde ―
não se podia fixar‖ –
caracterizado, na mais bela de suas formulações, pelo ―
traço melancólico das paisagens‖.
Aquele sertão era, ao mesmo tempo, paisagem inútil que nada realizava e alteridade
insurgente, que, com suas imensidades e intensidades, deflagrava uma rebelião titânica:
desenterram-se as montanhas‖16. Neste sertão, ao que parece, os elementos fundamentais que
―
deveriam ser dóceis àquele sonho fáustico de determinação material do espaço permanecem
inevitavelmente desobedientes, obrigando a um maior empenho do projeto sempre inacabado
de sua domesticação.
A recorrente violência ordenadora sobre a terra-sertão e sua resistência obstinada se
dão num complexo indissociável material-semiótico, de práticas e significações inter-
determinantes, e um dos confrontos decisivos que aí se desenrolam é o da batalha
imaginária/do imaginário.17 Ao longo das continuidades e rupturas no processo de exploração
das terras e povos dos interiores do país, as figurações dos elementos associados ao sertão
foram sendo revitalizadas e, em diversos nichos, do jornalismo à literatura, da retórica política
aos documentos governamentais, foram sedimentando os aspectos presentes nas posteriores
representações convencionais daqueles interiores, tendo sido atribuídos ao sertão significados
múltiplos e conflitantes: é o lugar da paz, da tradição e da beleza (como em José de Alencar e
Patativa do Assaré) ou o lugar da precariedade e da violência (como em Rodolfo Teófilo e
Rachel de Queiroz); o lugar de uma perigosa liberdade, a ser assumida e exercida (como em
15
Evitamos, nesta breve introdução ensaística, usar o gentílico ― europeus‖ justamente porque com ― Europa‖
queremos indicar o projeto moderno radicalmente antropocêntrico de dominação (governo de terras e povos) e
extração (produção de verdades e riquezas); projeto que, talvez, seja nutrido pelos imperialismos anteriores ao
período moderno, em cujas expansões, a antiga e a moderna, ― os [indígenas] europeus foram um dos primeiros
povos terranos a serem invadidos‖ (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 142) – os quais
podemos ver, sem forçar a barra, representados em Filêmon e Báucis massacrados pelo plano fáustico.
16
As citações são do início da primeira parte ―Aterra‖, p. 11-53 (CUNHA, 1982).
17
Para evitar um dualismo raso e improdutivo entre realismo e idealismo, entre infra- e superestrutura, entre
práticas reais/anteriores e seus efeitos significantes/posteriores, acompanhamos aqui os pressupostos da
abordagem declaradamente foucaultiana pela qual o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. analisa
minuciosamente a urdidura do ― objeto de saber e espaço de poder‖ chamado ― Nordeste‖, nas décadas de 1920 a
1960. Em suas premissas metodológicas, declara que o ― espaço regional‖, em vez de ― homogeneidade [ou]
identidade presente na natureza‖, é instituído por ― grupos de enunciados e imagens que se repetem, com certa
regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos‖ (ALBUQUERQUE Jr, 2011,
p. 35) e por ― positividades práticas, instituições e subjetividades sociais‖ (Id., p. 217) que com aquelas se
imbricam, se implicam, se contradizem e/ou se reforçam.
23
Guimarães Rosa) ou, muito ao contrário, a ser reprimida e domesticada (como no Visconde
do Uruguai).
O que está em jogo nessa batalha em torno do sertão são imagens, discursos, práticas
políticas e modos de vida que confluem e divergem, se aglutinam e se separam, se espelham e
se estranham. O campo semântico em que essa batalha se conflagra é aquele da dicotomia
colonial-modernizante entre ―
selvagem/bárbaro/inculto‖ e ―
civilizado‖, sendo o sertão aí o
espaço que ao mesmo tempo se institui por meio da dicotomia e mal é reconhecido por ela;
um espaço que, se ocasionalmente é reduzido a um recorte geográfico, remete antes a um
modo de ocupação, a um modo de viver o espaço, do que a uma cartografia; que, se
ocasionalmente é considerado como ―
natural‖, ―
primitivo‖ e ―
anterior‖ à civilização, é,
entretanto, um efeito imediato, de resistência, de re-existência transbordante, para fora da
dicotomia.18 Sertão parece ser, assim, o nome com que o regime da governamentalidade quer
contrair, no interior de sua dicotomia produtiva, aquela multiplicidade selvagem que não se
presta a, e que resiste ao, processo colonial-modernizador (manifeste-se esta multiplicidade
como regime de variações antropo-eco-lógicas em um perímetro cartográfico, em um caráter
geomorfológico, em fenômenos climáticos, coletivos de seres vivos ou vandalismos
políticos).19
Uma operação desta batalha, por exemplo, foi a paulatina e seletiva identificação do
sertão com certo trecho daquilo que emerge a partir da década de 1920 como a região
Nordeste – a sua porção semiárida, que, com um peculiar regime de variações (climáticas,
antropológicas, geográficas) ressonantes, foi especialmente estigmatizada como contrapondo
uma inconveniente hostilidade ao projeto colonial-modernizador.
Como demonstra exaustivamente Durval Muniz, o conceito de Nordeste é uma
poderosa versão do regionalismo em vigor no começo do século XX, forjado por interações
entre práticas sociais, estruturas políticas e elaborações discursivas e destinado a ressaltar uma
singularidade regional que obtém seu lugar no conjunto do projeto de nação no mesmo
movimento em que a ele reage (cf. ALBUQUERQUE Jr., 2011, pp. 67ss). O imaginário
relacionado às secas do semiárido cumpre aí um papel fundamental, com a estilização
18
Eduardo Viveiros de Castro tem propagado o termo ― rexistência‖ como cifra criativa para as diversas acepções
dos termos homófonos e homógrafos relacionados. (Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 8). Aqui
utilizaremos ora uma ora outra forma de grafá-lo.
19
―P or ‗governamentalidade‘ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de
conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‗governo‘ sobre
todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de
aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes‖
FOUCAULT, 2008, pp. 143-4.
24
emblemática das formações discursivas que lhe imprimiram a marca da tragédia social
perpetrada pelo ―
flagelo impiedoso da natureza‖, interpretação hegemônica na música (Luiz
Gonzaga), nas artes plásticas (Portinari) e na literatura. Foi o fenômeno ecopolítico da seca
que propiciou o nascimento do mecanismo governamental que estabeleceu, a partir da área de
sua ocorrência, uma região chamada Nordeste, definida como uma alteridade homogênea em
relação ao resto do país.20 Os emblemas de inospitalidade, imprevisibilidade e perigo
associados ao sertão foram sendo aplicados cada vez mais restritamente ao sertão das
estiagens. ―
Agenciado para representar uma região, o sertão deixa de ser aquele espaço
abstrato que se definia a partir da ‗fronteira da civilização‘, como todo o espaço interior do
país, para ser apropriado pelo Nordeste‖ (ibid., p. 134). Neste processo de crescente
identificação do sertão com a parte semiárida do país, aquele conjunto de práticas da escrita
que se chama de literatura exerce(u) um papel fundamental.
O final do período romântico na produção romanesca do século XIX no Brasil, logo
depois do chamado indianismo, coincidiu com o surgimento, na prosa acerca dos interiores
que então era predominante, de um primeiro regionalismo do semiárido, no qual obras como
O Sertanejo (1875), de José de Alencar, ou O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, já
indicam a tendência de aglutinar no mesmo código o sertão e a caatinga, a terra indômita e a
terra indócil, e de representar o sertão por meio de seu tipo comportamental correspondente, o
sertanejo, de onde serão derivados os espectros mais comuns de referência da sertanidade – o
primitivo, o beato, o cangaceiro, o retirante –, e suas expressões estético-políticas mais
revisitadas – a tradição, o fanatismo religioso, a violência, a miséria (cf. CANDIDO, 2000,
vol. II, p. 267). O colapso ecopolítico do semiárido setentrional, a ―
Grande Seca‖ (1877-
1878), considerada uma catástrofe nacional, gravou a fogo no imaginário sobre o sertão a
distopia da terra devastada e as violências engendradas na e pela desagregação social. Aos
poucos vai se sedimentando aquela herança do programa de centralização do Império que
estigmatizara o sertão como o lugar da violência, da crueldade incivilizada. A matriz natural-
racialista serviu de amálgama a essa concepção de sertão, já que segundo ela a ―
sub-raça
retrógrada‖ seria produto direto de um meio considerado extremo e hostil (Cf. OLIVEIRA
VIANNA, 1959, pp. 231ss). A partir da justaposição dessas matrizes discursivas e das
práticas políticas a elas relacionadas (como seus nascedouros ou como seus efeitos), as
narrativas sobre o sertão semiárido passam a versar quase exclusivamente acerca do regime de
20
O primeiro uso do termo Nordeste em documentos oficiais designou a sub-região do ― Norte‖ sujeita ao
fenômeno das estiagens prolongadas, onde atuaria a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, criada em
1919.
25
violências acumuladas. Quando diferentes registros de escrita se sobrepõem – como no caso
d‘A Fome (1890), de Rodolfo Teófilo e d‘Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, nos quais
ficção e crônica se enredam em relatos jornalísticos e elucubrações científicas –, as múltiplas
violências são integradas sob duas chaves interpretativas: a violência do meio ambiente (o
―
flagelo da natureza‖) e a violência da desagregação social (a corrupção, a tirania, a miséria,
as revoltas...), a segunda apresentada como efeito da primeira e a tragédia relatada como
efeito de ambas. Além de cenário, o sertão também passa a ser (ou antes, volta a ser) fator
determinante da violência, devido ao clima hostil, à terra inóspita, ao povo inculto...
obliterando, assim, o conjunto dos procedimentos ordinários do projeto colonial-
modernizador como mais provável causa do esgotamento e da desintegração dos modos de
vida do sertão.21 Narra-se o desmoronamento de um sistema de produção violentamente
imposto aos povos humanos e extra-humanos da região, que, em seu colapso, os devasta e
arrasta, como se fora uma violência imperdoável da própria terra.22
Uma linha de fuga, no entanto, parece atravessar as narrativas em questão, traçada pela
presença de elementos diferentemente estranhos ao processo colonial-modernizador de
ordenação antropocêntrica. Essa presença manifesta-se na agregação magnética dos sinais de
negatividade associados às forças naturais e das suas derivações de ordem cultural, dispersos
nos textos, esculpindo o signo do sertão. Somente com Guimarães Rosa o sertão vai ser
concebido, na literatura, como um apontamento metafísico, um signo presente, mas não-
mapeável, ubíquo e sem coordenadas, como uma grandeza física ou como um método da
existência, diverso do cálculo determinante. Porém é já em Euclides da Cunha que o sertão
incorpora um conjunto de forças colossais e imprevisíveis, bárbaras e impossíveis de redução
a uma lei ordinária; conjunto que abrange, mal os distinguindo, energias telúricas e atavismos
culturais, violências políticas e titanismos geológicos. Segundo a concepção positivista-
naturalista a que Euclides se filia, o conjunto de forças naturais inclui o comportamento do
sertanejo, continuidade necessária (porém, nessa concepção, indistinta) entre natureza e
cultura, cujo principal predicado, n‟Os Sertões, é o seu incurável ―
atavismo‖. A ―
rigidez‖ e a
―
força‖ usadas para repetidamente caracterizar o sertanejo servem, assim, para consolidar as
duas imagens-matrizes que se convencionou associar ao sertão/sertanejo: a tradição e a
21
Segundo Paulo C. L. Cerqueira, a expansão temporal e geográfica da ocorrência de secas severas tem um
estreito vínculo, de acordo com a documentação disponível, com as ― próprias transformações ecológicas
acontecidas por conta da exploração agrícola, frequentemente predatória (...) [que vai] se espalhando cada vez
mais pelas áreas de fronteira, reproduzindo sempre as condições das áreas antigas‖ (CERQUEIRA, 1989, p. 60,
nota 6).
22
Para um aprofundamento acerca das relações entre ficção e facticidade nas literaturas das secas, ver o estudo
panorâmico de SCOVILLE, 2011.
26
violência. O ―
barbarismo da terra‖ do sertão e a ―
intimidade com o meio físico‖ do sertanejo,
nos dizeres de Euclides, constituem o duplo dispositivo conceitual segundo o qual a aliança
que torna indistinguíveis natureza e cultura no sertão explicaria, por um lado, a origem natural
das violências que ali se alastram (terra e homem seriam irremediavelmente brutos) e, por
outro, a antiguidade isomórfica dos aspectos naturais e dos costumes, ambos formando o
complexo anticivilizacional do sertão ora atacado pelos poderes nacionais, ora enaltecido
como autenticidade dessa mesma nação.23 A fórmula magistral com que Dawid D. Bartelt
sintetiza os usos da palavra sertão no século XIX serve também para resumir esta operação
imagético-conceitual que Os Sertões transporta de um naturalismo (romântico) a outro
(modernista), de um nacionalismo (imperial) a outro (republicano), de um regionalismo
(naturalista) a outro (crítico), como signo do sertão: ―
A violência do sertanejo provém da sua
natureza bruta... que é por sua vez produto da natureza ingrata da caatinga. No sertão a
Cultura é a Natureza, evidentemente oposta à Civilização‖ (BARTELT, 2003, p. 587). Desse
modo, é possível concebermos que esses signos sejam, de certa forma, irrupções material-
semióticas, enquanto co-partícipes da guerra do imaginário, agora como imaginações sobre o
sertão que ecoam, obliquamente, imaginações do sertão.
A percepção desse traço bárbaro, que aparece nas narrativas como uma resistência
criativa em relação à agência antropocêntrica ocidental, não é recente na crítica estético-
política da literatura brasileira. Encontrando em Araripe Jr. um precursor da antropofagia
oswaldiana, Alexandre Nodari destaca o conceito de obnubilação brasílica do crítico como
constituindo ―
a chave para a compreensão da originalidade da literatura brasileira‖. A
obnubilação brasílica consiste, segundo o entendimento de Nodari acerca do crítico cearense,
no ―
excesso de luz solar que cega, metáfora para as imposições do rude ambiente tropical que
obriga os indivíduos a jogar fora a bagagem da tradição de modo a se adaptar‖ (NODARI,
2008, s/p). Impondo a recusa da roupagem civilizatória, o ambiente tropical exigiria do
colono uma adequação radical a suas dinâmicas, um desnudamento da polidez da tradição,
realizando uma verdadeira virada cósmica, súbita manifestação do lugar no indivíduo. As
―
forças da terra‖, o campo de energias do ―
rude ambiente tropical‖ que efetua a ―
obnubilação
brasílica‖, são expressões que parecem apontar para a irredutibilidade daquela multiplicidade
de que falamos acima como sendo o substrato material-semiótico atacado pela ação
23
As referências na obra são abundantes. Escolhemos arbitrariamente esta passagem da segunda parte, O
Homem: ― Despontou uma raça de curibocas puros (...) [que] tiveram, ampliando seus atributos ancestrais, uma
rude escola de força e coragem naqueles gerais amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a
ema velocíssima‖. (p. 81)
27
antropocêntrica colonial-modernizadora; trata-se, nesse caso, de voltar a atenção para essa
espécie de insurgência que mobiliza os vestígios atávicos do homem colonizado(r), inserindo-
o no movimento da tropical devoração cósmica, como vivamente descrito por um dos
membros do grupo antropófago, Garcia Rezende: ―
O meio físico brasileiro, como irradiador e
rector das mais violentas energias cósmicas, exerce ferozmente a antropofagia... O europeu,
aqui, depois de algum tempo de luta contra as energias dominadoras da Terra, perde a sua
raça‖ (apud NODARI, 2008, s/p). No caso das literaturas das secas, a manifestação dessa
―
obnubilação brasílica‖ ocorreria num contexto de catástrofe, associada não a uma
glorificação tropical, mas ao caráter violento e distópico dos fenômenos que caracterizam as
secas narradas: a fome generalizada, a desagregação social, a tirania política. Tudo se passa
como se, no caso das literaturas das secas, em vez de uma alucinação tropical exuberante, o
fenômeno da obnubilação brasílica propiciasse um pesadelo, um retorno ficcional e vital,
feroz e destrutivo, no registro da situação colonizada, daquilo que havia sido agressivamente
reprimido pela violência ordenadora sobre o sertão.
28
ocupação do espaço. E de desocupação.
Ao apontar para a invulnerabilidade do sertão à captura cartográfica, esta ideia se
aproxima daquela metamorfose metafísica por que o sertão passa na obra de Guimarães Rosa
o sertão está em toda parte‖. Neste caso, o sertão é a tendência ao sensível não-localizável,
–―
que antecede e subjaz a qualquer projeção esquemática. O que significa que o sertão está em
todo lugar, mas não em um lugar qualquer. Trata-se, talvez, de causar um estranhamento e
um distanciamento entre o cosmos e a ordem, pensando não em uma outra distribuição dos
lugares (ordem), mas em um outro modo de distribuir lugares (cosmos); uma dinâmica
política cósmica24, que persiste nas próprias perturbações cósmicas de fundo, nessas
alterações ininterruptas e omnidirecionais, na forma de resistências, repetições,
distanciamentos e intermitências, que, por sua vez, fazem vacilar o estatuto de sujeito e objeto
da ação, tal como territorializado no esquema antropocêntrico, e que não permitem, portanto,
o assentamento definitivo de uma determinação unilateral da constituição do espaço (o que
temos chamado de projeto colonial-modernizador/antropocêntrico).
Admitindo a possibilidade dessa abordagem, podemos perceber que, se por um lado, a
atribuição do signo da violência ao sertão corresponde à intuição daquela
incomensurabilidade entre os modos intermitentes e variáveis de constituição e ocupação do
espaço e a determinação antropocêntrica do mundo, por outro, ela confunde causa e efeito ao
pasteurizar as diferenças entre resistência e agressão, entre re-existência e tragédia. É por
meio dessa confusão que se esconde a diferença entre as derivações socioambientais que
constituem/destituem/restituem espaços, ocupam-nos e desocupam-nos, escapando à métrica
antropocêntrica (derivações que vão do regime das águas aos regimes de deslocamento das
populações humanas e extra-humanas), e os efeitos nefastos que sobrevêm na esteira da
violência da ação colonial-modernizadora sobre aquelas derivações (efeitos que vão das
―
invasões‖ dos retirantes às cidades, e seu aprisionamento em campos de concentração, até os
fenômenos de desertificação que atualmente avançam em muitos trechos do semiárido). Nessa
confusão, o mundo-sertão é percebido como violento principalmente porque hostil à violência
da colonização; os seus habitantes são violentos porque escorregadios à força das leis. A
eficácia da violência colonizadora depende de que os entes estejam docilmente
indiferenciados dentro da divisão categórica em que foram enfiados (Civilizado, que sabe e
24
Em um contexto particular, diferente do campo das nossas elaborações, porém delas inspirador, Eduardo
Viveiros de Castro descreve o multinaturalismo subjacente ao xamanismo perspectivista ameríndio como
política cósmica, ―n a medida em que são os xamãs que administram as relações dos humanos com o componente
espiritual dos extra-humanos, capazes como são de assumir o ponto de vista desses seres e, principalmente, de
voltar para contar a história‖ (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 120).
29
age x Não-civilizado que não sabe e se subordina), ao que eles respondem com a barbárie, isto
é, modificando sua diferenciação entre as opções da divisão categórica. Em vez de
indiferenciação (ou seja, a redução do múltiplo em plural e, no mesmo passo, em unidade),
ensaia-se uma transdiferenciação: se a civilização exige que se resista às intempéries da
―
natureza‖, que seria hostil e agressiva, são os elementos mesmos da civilização (o latifúndio,
o patronato, a monocultura tóxica) aquilo que se revela agressivo e ao que é preciso resistir; e
aquilo que no recorte colonizador é a paisagem natural, unidimensional e homogênea, no
sertão é a rede das associações micropolíticas de ocupação infinitesimal do espaço. (cf.
MEDEIROS, 2017).
Fazer convergir a concepção de sertão como modo de existência e a obnubilação
brasílica como método de leitura das literaturas das secas pode nos aproximar diagonalmente
do programa de pesquisa sugerido por Jaime Ginzburg em torno das escritas da violência.
Baseado nas análises de Adorno e Auerbach sobre a íntima ligação entre a fragmentação
formal nas obras literárias modernas e as sucessivas mudanças históricas das concepções de
sujeito, Ginzburg descreve a singularidade dessa ligação no caso da história e da literatura
brasileiras, apontando o autoritarismo e os processos de desumanização característicos de
nossa história como fundamentos da crise de representação do sujeito no Brasil. Para explicar
a limitação das possibilidades de ―
emancipação do sujeito‖ e as figuras arquetípicas da
opressão e do medo nas narrativas que analisa, Ginzburg recorre ao conceito psicanalítico de
trauma como causa dos impasses para a construção de uma narrativa histórica coerente, o que
estaria na origem tanto da explosão de gêneros híbridos na literatura quanto do
questionamento do estatuto da verdade nas ciências humanas. O parágrafo em questão traça
um programa de pesquisa que tem sido bastante explorado, especialmente no que concerne ao
aspecto propriamente político destacado no final:
Para a pesquisa literária, é necessário verificar como, nas formas literárias,
encontramos lapsos, descontinuidades, contradições, subversões de
convenções, rupturas com gêneros tradicionais, questionamentos a respeito
da capacidade comunicativa e expressiva da literatura. Devemos redobrar a
atenção sobre esses elementos quando interessam não como fins em si
mesmos, como experimentos formais, mas quando associados a temas que,
direta ou indiretamente, digam respeito ao impacto brutal da violência social.
(GINZBURG, 2000, p. 50)
Supomos uma aproximação diagonal com tal programa justamente porque a
compreensão do sertão como modo de existência exige que se reelabore a complexidade das
violências relatadas nas literaturas das secas, de forma que se ultrapasse a mera distinção
convencional entre violência ―
social‖ e condições ―
ambientais‖ (estas servindo de antessala
30
para aquela, a única com direito a expressividade), em vista de estabelecer novos regimes de
diferenciação, atentos tanto às violências do projeto antropocêntrico (que atingem os
―
ambientes‖ e as ―
sociedades‖) quanto aos efeitos catastróficos do colapso do projeto
colonial-modernizador no semiárido. Evita-se, assim, permanecer apenas na divisão
categórica moderna entre Natureza-paisagem, de um lado, e Sociedade-agente, de outro, como
chave de leitura das obras; divisão de que o sertão é acusado de desfuncionar (Sertão =
Natureza/Sociedade x Civilização, segundo a fórmula de Dawid D. Bartelt acima
mencionada) e dentro da qual, pelas heranças naturalista, positivista e nacionalista que
sedimentaram suas significações sobre o sertão, as violências sociais são tomadas como
consequência direta e incontornável da hostilidade da terra.
Esta proposta de leitura passa por uma abordagem que costure as práticas políticas
(que se dão simultaneamente no plano material e no plano semiótico) e o campo mais
abrangente das visões-de-mundo/cosmologias implicadas. Nesse caso, permanecer na leitura
que subsome o sertão às violências indiscriminadas corresponde ao ponto de vista do projeto
colonial-modernizador. Para esse ponto de vista, a única maneira legítima de ocupar o espaço
é aquele segundo o qual ―
o Homem‖ determina ―
a Paisagem‖ (isto é, transforma ―
a
Natureza‖). A agência é unilateral, civilizacional, conformativa; por isso, aliás, que ―
a
Natureza‖ também é uma só – ambiente indistinto onde se desenrola a ação humana. É por
essa perspectiva antropocêntrica que o sertão é reduzido a um campo de violências indistintas,
onde ―
natureza‖ e ―
sociedade‖ ―
desconhecem a força das leis‖; é por ela que se deixa de
reconhecer a multiplicidade de agências implicadas em todo ato político.
Compreender, portanto, o sertão como modo de existência e a obnubilação brasílica
como método de leitura exige uma radical rejeição do antropocentrismo e a admissão da
multiplicidade de agências inerente ao processo de instituição/destituição/restituição dos
espaços. Inerente porque o estatuto mesmo do ato político de constituição do espaço implica
inevitavelmente todo esse complexo dinâmico de agências. Trata-se de tomar os ―
fenômenos‖
do sertão nas literaturas das secas desde o ponto de vista daquela multiplicidade de agências
atacada pelo projeto antropocêntrico – desde o sertão, portanto, e não sobre o sertão. Supõe-
se, desta forma, que política e cosmologia estão intimamente unidas; o que
institui/destitui/restitui espaços (política) são agências multi-inter-determinadas (cosmos) e a
complexidade vital de fatores multi-inter-determinados (cosmos) afeta e é afetada direta e
constantemente pelos modos de ocupação do espaço (política).
Sob essa perspectiva, as catástrofes do sertão (a seca, a miséria, a violência) são o
31
efeito da agência antropocêntrica, o retorno violento daquela multiplicidade violentamente
ignorada, reprimida ou suprimida. Concretamente, trata-se de entender a seca como fenômeno
cosmopolítico, que diz respeito não antes à ―
Natureza‖ mas aos métodos do projeto colonial-
modernizador de ocupar o espaço – desde o latifúndio/monocultura/escravidão do primeiro
período até a indústria/eco-engenharia/exploração do atual. A seca é, neste sentido,
emergência destrutiva daquela multiplicidade de agências ignorada, reprimida e suprimida. É
o combate entre a ordem antropocêntrica e um regime cosmopolítico que engendra a tensão.
No caso das obras literárias, trata-se de conferir visibilidade aos traços minimizados
no texto que evidenciam o registro da estranheza do sertão e que se manifestam como
rebaixamento inumano ou falência civilizacional. Em trechos os mais diversos estes
elementos aparecem ora como uma força exercida pela terra, que perverte, com seus ciclos
cósmicos, os procedimentos do projeto colonial-modernizador (como n‘Os Sertões), ora como
um aviltamento do homem civilizado a participante integrado das dinâmicas naturais do meio
onde vive (como n‘A Fome).
Essa proposta de mapear linhas de tensão cosmopolíticas e de tentar compreender
novos significados não se distancia de outros exercícios que na crítica literária buscam
compreender e interpretar obras ou conjuntos narrativos a partir do rastreamento de elementos
menores, e não por isso menos constitutivos, do enredo, sem, no entanto, se dissociar da
análise estrutural e morfológica dos textos. Trata-se de uma técnica possível para
compreender os aspectos da escritura que, presentes em seu próprio tecido, são minimizados
pela interpretação canônica ou tornados invisíveis pelo desenvolvimento da própria narrativa.
A busca do minimizado e do não-autorizado/não-valorizado é o fundamento
metodológico, por exemplo, da Errática, método que Oswald de Andrade identificou na
mistura de imaginação e pesquisa durante a revisão de documentos antigos realizada por J. J.
Bachofen para validar sua singular teoria do arcaico Direito Materno, realidade ancestral
comum, segundo este, a todas as sociedades, e que, ultrapassada e reprimida pelo atual estágio
patriarcal, permanece pulsante (cf. ANDRADE, 2011, pp. 299-302). Ao descrever a
descoberta da Errática por Oswald de Andrade como ―
subversão do conceito de autoridade‖,
Gonzalo Aguilar afirma que ―
Bachofen recusa a ideia do mito como fantasia e reivindica seu
estatuto de documento, sustentando que o mito se forma ao redor dos fatos como uma
concha‖ (AGUILAR, 2010, p. 82.). Essa metáfora da concha remete, erraticamente, à maneira
como a psicanálise freudiana compreende a fabricação das narrativas do sujeito acerca de si
mesmo, sobre e ao redor de um núcleo duro e inacessível que constitui a experiência
32
traumática primitiva, deixando que esta venha à tona nas chamadas formações do inconsciente
– lapsos, chistes e de-formações – pelas quais, errando, o sujeito acerta a sua verdade.
Presumimos que a latência da experiência traumática nos aspectos minoritários e nas formas
fragmentadas de comunicação da experiência instaura uma tensão cuja evidenciação, ao
modificar por dentro o destino da narrativa, aponta para significados diferentes dos canônicos.
Uma ―
ciência dos vestígios erráticos‖, título da supracitada obra de Aguilar, enquanto
conjunto de métodos que proporcionem esta leitura, torna-se, então, um instrumento legítimo
de escuta e indagação dos textos e de suas tensões traumáticas.
Nas literaturas das secas, o trauma originário se insinua naquelas paisagens da tragédia
que dominam a imagética do sertão: o quadro da tragédia começa, comumente, com o fim da
propriedade produtiva – a extenuação do solo, a morte dos planteis, a demissão dos
trabalhadores – e termina na capital, onde se localiza o paroxismo da barbárie levando o
projeto de determinação material do mundo à sua mais nefasta consequência: o campo de
concentração (é assim que se iniciam e terminam A Fome, de Rodolfo Teófilo e O Quinze, de
Rachel de Queiroz). Nesse percurso, o sertão como modo de existência, escondido sob a
tragédia civilizacional, cintila na superfície do texto, sob a forma da alegação de uma
necessidade trágica da seca, isto é, a intuição de que, de alguma forma, a estabilização
definitiva do projeto antropocêntrico (propriedade privada, monocultura, exploração do
trabalho etc.) é, ali, impossível. Também se pode ver a evocação telúrica de modos de
subsistência – que se manifestam no texto como rebaixamento à animalidade – funcionando
como admissão momentânea e traumática daquela multiplicidade de agências que constituem
o sertão. Ali onde esses lapsos se insurgem, reencena-se o combate contra as técnicas
civilizatórias (cuja cena final, não do combate mas das técnicas, é o abarracamento, o campo
de concentração), a ocupação colonial produtivista do espaço, a tradição patriarcal e a
exploração do trabalho.
Evidenciando a origem do drama da família de retirantes em Vidas secas, Alfredo Bosi
aponta as ―
dimensões cósmicas‖ da negatividade da narração, em que o narrador desloca, ―
o
‗fatum‘ do eu para a natureza e para o latifúndio, segunda natureza do Agreste‖ (BOSI, 2006.
pp. 405-406). Essa breve sugestão de que o latifúndio, mecanismo estruturante do projeto
colonial, se sobrepõe à primeira ―
natureza‖ e, quando inevitavelmente desmorona, produz a
tragédia social de todas as crônicas, pode também ser estendida à negatividade cósmica
acusada pelo crítico. As dimensões cósmicas do latifúndio, isto é, do projeto colonial-
modernizador, sugeririam assim uma chave de leitura de Vidas secas que privilegiasse os
33
regimes cosmológicos ali em disputa, em que o estatuto do sertão não fosse mais, ou não
apenas, uma dada paisagem ou cenário, nem estivesse constrangido, como quis parte da
crítica, à psicologia dos personagens, mas residisse nas formas intensivas de narração, nas
alianças possíveis entre os personagens, na transitividade entre as espécies de humanidade e
animalidade (suspensão do antropocentrismo) e nas especulações fabulativas – sertão como
modo de existência.
Os rastros descontínuos que ocorrem na construção psicológica destes personagens
são, por seu estatuto, ambivalentes, exibem um significado enquanto escondem outras
significações. Assim, a suposta incapacidade comunicativa de Fabiano, em Vidas secas, cujas
poucas enunciações vão se resumindo a tentativas de compreender seu próprio estatuto na
Fabiano, você é um homem” / “Você é um bicho, Fabiano”) também pode
paisagem (―
apontar para uma aliança estratégica entre os personagens, que evidencia a incompatibilidade
entre diferentes regimes cosmológicos e suas antropologias: depois das duas sentenças citadas
existe outra, “Você é um bicho, Baleia”, numa cena em que Fabiano e Baleia estão
estabelecendo aliança. Se, por um lado, tendo o mundo sido reprimido, os personagens de
Vidas secas não podem narrar, pois a violência total implodiria a possibilidade de
comunicação da experiência (tal como Walter Benjamin descreve a falência da narrativa
durante a violência da modernização (Cf. BENJAMIN, 1987)), por outro lado, o complexo
imaginativo que todos eles põem para funcionar diante das dificuldades supõe que a
capacidade de narrar não foi completamente destruída e que sua emergência depende da
aliança com forças intensivas que rejeitem a ação do poder – é assim que funcionam as
especulações de Fabiano, na prisão, sobre sua proximidade com bichos e com homens e as
fabulações cosmológicas do Menino Mais Velho depois de repreendido por Sinhá Vitória.
Tais vestígios da evocação cósmica e política (cosmopolítica) indicariam uma
resistência criativa ao projeto colonial-modernizador e seu paradigma antropocêntrico e um
chamado a outras alianças. Diríamos até que tais vestígios sugerem a ocorrência de uma
obnubilação sertaneja – por meio da qual o sertão como modo de existência insiste, persiste,
rexiste.
34
que o homem de letras de então encontrava no aparato burocrático governamental – como
reconhecimento e recompensa – e seu consequente espírito de concordância, cívico e
construtivo, harmonizado com a demanda política do momento (cf. CANDIDO, 2006, pp. 83-
98). Talvez, por isso, não seja por acaso que, logo após a implementação do programa
centralizador do Império, tenham surgido as obras que constituirão a primeira fase da
literatura chamada de regionalista (regionalismo pitoresco, segundo o mesmo Candido, p.
121), em que aparecem traços semelhantes àqueles que compõem as, no dizer do Visconde do
Uruguai, ―
partes distintas da Sociedade do nosso litoral‖. As obras literárias que têm por tema
e cenário o sertão semiárido são uma parte significativa e bastante eficaz desse conjunto de
representações dos interiores do Brasil.
As obras regionalistas do semiárido se destacam seja pela crueza naturalista dos
relatos das catástrofes ecopolíticas, seja pela caracterização do habitante dessa região como
totalmente subjugado por forças opressivas; nesse nicho do regionalismo, aquele estado de
natureza do não-civilizado, exaltado na literatura indianista, reaparece como estado de miséria
das populações abatidas pela combinação destrutiva da natureza árida com o poder despótico.
As representações do conflito entre o esforço humano e o espaço geográfico deixam entrever
um certo grau de incompatibilidade dos modos de ocupação do espaço próprios da condição
colonial moderna, baseada na propriedade privada produtivista, cujo desmoronamento
engendra as tragédias relatadas sob o signo da seca. Em tais representações ocorrem irrupções
de forças extra-políticas25, tais como os aspectos climáticos, geográficos e bióticos, que
aparecem, frequentemente, enquanto causas daquela impossibilidade, como se a ―
mal
entendida liberdade‖, os ―
costumes bárbaros‖ e o desconhecimento da ―
força das Leis‖, que o
Visconde saquarema atribui às populações ―
isoladas‖ dos interiores, fossem antes, no caso do
sertão semiárido, comportamentos telúricos de desobediência, insubmissão das ―
longas
distâncias cobertas de matas e serras‖, subversão da terra26.
O já referido assombro de Euclides da Cunha diante da natureza inóspita do sertão e
de suas consequências para o esforço civilizatório se coaduna com a perplexidade presente
nas outras obras literárias relacionadas com a região semiárida. O quadro emblemático da
seca que serve de tema e cenário para essas obras apresenta um campo saturado de violências
entrecruzadas que constituem a tessitura mesma do sertão. Aí, as violências polimorfas e
polissêmicas terminam por configurar uma realidade turva, opaca e confusa, na qual se torna
25
V. Nota de rodapé 14, p. 22.
26
Utilizamo-nos aqui do equívoco inerente ao termo terra, especialmente a oscilação entre as suas acepções de
substrato material da paisagem e de porção geográfica de certo território.
35
difícil discernir contingências naturais de intervenções políticas, despotismo das classes
dominantes de catástrofe ambiental, com suas vítimas inextricavelmente enredadas em uma
paisagem desoladora de opressão e autoritarismo, em que a indiferenciação entre natureza e
cultura, marca distintiva do sertão segundo a abordagem oficial, se intensifica dos dois lados –
tanto a natureza torna-se um agente político como os sistemas de poder são naturalizados.
A publicação d‘Os Sertões em 1902 pode servir de marco para o cruzamento entre
diversas linhas de força pelas quais se compreende a história da literatura brasileira e, nela, o
lugar e o alcance do regionalismo das secas. Fortemente influenciada pelas teses positivistas e
racialistas, disseminadas nos meios letrados oficiais do Brasil no final do século XIX, esta
obra, ao mesmo tempo que herda a visão determinista que informa a narrativa naturalista do
―
sertanejo‖, é tomada, no culto unânime da crítica que se lhe seguiu, como restauradora da
―
verdade‖ sobre a pátria desconhecida do sertão e sobre a ―
raça genuína brasileira‖ que lá
habita. A dicotomia litoral x sertão é, nela, revitalizada, agora com o acento na valorização do
sertão como o lugar ―
onde a nacionalidade se esconde, livre das influências estrangeiras‖
(ALBUQUERQUE Jr, 2011, p. 67), tema retomado e ampliado pelos movimentos de
renovação da literatura da década de 1920, que, por sua vez, serão a origem das duas vertentes
do chamado regionalismo de 30.
A fusão entre naturalismo e positivismo na obra de Euclides da Cunha gera a tipologia
do homem sertanejo, daquele tipo específico e espectral, valente e ambivalente, originado
fatalisticamente pelo próprio meio ―
rude e ingrato‖. Essa filiação inextrincável faria com que
retrógrado‖27 devesse ou desaparecer ou ser subjugado por raças superiores. Se ―
este tipo ― o
sertanejo é antes de tudo um forte‖ é também ―
o homem permanentemente fatigado‖
(CUNHA, 1982, p. 91). Segundo Euclides, esse tipo hesitante constituiria ―
a rocha viva da
raça‖ que, tendo sido massacrada em Canudos, clamaria por resgate e justiça históricas. 28 Pois
27
N‘Os Sertões o adjetivo ― retrógrado‖ caracteriza o resultado singular do cruzamento de raças e do alegado
isolamento insular da ― raça sertaneja‖, em oposição ao tipo ―degenerado‖ e ― proteiforme‖ do litoral. Retrógrado
diz respeito a ―um tipo mestiço [que] tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico,
que, ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças
formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente‖. (CUNHA, 1982, p. 89).
28
Luiz Costa Lima identifica neste ponto uma contradição decisiva para a interpretação da obra (apesar de
―pouco explorada pelos intérpretes‖). Na famosa Nota Preliminar, Euclides afirma que as ― sub-raças sertanejas
do Brasil‖, tracejadas na obra, estariam ―destinadas a próximo desaparecimento‖ (― ante as exigências crescentes
da civilização (...), retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo‖), porém também imprime
deliberadamente, ao longo do livro, o tom de denúncia do crime cometido em Canudos. Costa Lima identifica
justamente essa contradição entre a denúncia da extinção da ― rocha viva da raça brasileira‖ como um dos
aspectos mais nefastos do massacre e a constatação, na Nota Preliminar, de que esta mesma raça estaria fadada à
extinção devido à força das leis evolucionistas. Para Costa Lima ― não é que a explicação evolucionista
impugnasse o tom de denúncia, mas a enfraquecia de maneira taxativa, pois [segundo Euclides] a comunidade
que ali se trucidara, durante anos de uma luta desigual, já estava fadada pela ‗força motriz da História‘ a
36
é justamente nessa renovada concepção da relação determinista entre o sertão e o sertanejo
que Durval Muniz localiza a emergência do discurso salvacionista que origina a ―
indústria da
seca‖:
desaparecer.‖ Mais à frente, Costa Lima justifica: ― o interesse [desta] observação (...) está em concretizar o
embaraço que o evolucionismo criava para seu adepto nos trópicos‖ (COSTA LIMA, 1997, p. 27).
29
―Aemergência de uma nova ideia de região não nasce apenas da mudança de sensibilidade em relação ao
espaço, (...) mas da mudança mais geral na disposição dos saberes (...), provocando o surgimento de uma
consciência regional generalizada, difusa no espaço, que consegue ir se ligando às existências individuais, mas
principalmente à própria vida coletiva‖ (ALBUQUERQUE Jr, 2011, pp. 60-1).
37
(...), o Modernismo vai tomar os elementos regionais como signos a serem
arquivados para (...) rearrumá-los em um novo texto para o país. Uma
centralização dos sentidos (ALBUQUERQUE JR, 2011, p. 69).
Seja como reação a esta ideia de integração nacional pelas diferenças, seja como colaboração
em sua efetivação, o ―
Nordeste‖ surge no bojo da nova onda regionalista, assim como as
ressignificações de sertão que lhe acompanham. Nos dois momentos regionalistas o sertão
aparece como a alteridade irredutível da nação, objeto de domesticação no primeiro momento
e de integração/salvação, no segundo, mediados pela ideia de sertanidade, agora circunscrita
ao interior do recém-nascido Nordeste, como a ―
rocha viva da raça‖ popularizada pel‘Os
Sertões.
O chamado ―
Romance de 30‖ é parte dessa estratégia de revivescer e atualizar a
imagética do sertão, de acordo com as realidades modernizadas/modernizantes
(nordestinizadas), e isto se fará pela sintetização de novas imagens do sertão-passado e do
sertão-presente, por meio tanto da rejeição das fórmulas drásticas do naturalismo romântico30
quanto da fundação de uma tradição que colaborasse com a confecção da identidade nacional
em jogo na ―
formação discursiva nacional-popular‖ (cf. LIPPI OLIVEIRA, 1990, p.194).
Talvez não seja por acaso que no bojo do fortalecimento da análise que privilegia o
homem brasileiro‖ nas emergentes ciências sociais das décadas de ‘20 e ‘30 31 surjam
tipo do ―
obras literárias que valorizam os tipos regionais. Se a literatura é tomada, neste período, como
uma forma privilegiada de evidenciar e dar sentido à realidade nacional (Id., p. 196) – vide as
linhas de interpretação do Brasil que atravessam a produção dos grupos do modernismo da
Semana de ‘22 –, o regionalismo renovado que nela emerge serviria para dar a tonalidade
específica de cada porção do país. Essa é, afinal, a tese do ―
arquipélago cultural‖ de Viana
Moog para a interpretação da literatura brasileira: entender o Brasil, segundo sua literatura,
seria entender suas partes, suas irredutíveis ilhas culturais. E entender as partes do Brasil,
seria entender o homem que emerge de suas singularidades climáticas, geográficas e
econômicas (cf. VIANNA MOOG, 1966, p. 110). Para tanto, a personalidade na narrativa
literária era de primeira importância, por propiciar a agregação das características das regiões
como ―e
xpressão dos diferentes gênios locais que compunham o caráter nacional‖ (Id. Ibid.).
Ora, é plausível que esta luta pela individualidade seja o traço marcante daquele
30
Ressalte-se, por exemplo, esta curiosa observação feita por José Murilo de Carvalho em seu discurso de posse
na Academia Brasileira de Letras: ―A o escrever O Quinze, [Rachel de Queiroz] buscou explicitamente afastar-se
da crueza naturalista de Rodolfo Teófilo, autor de A Fome (...). Queria mostrar uma seca mais clean, mais light.
Uma seca light, talvez esteja aí uma chave para entender a ficção de Rachel‖ (CARVALHO, 2004, s/p.).
31
Pensamos aqui nas clássicas análises ensaísticas do homem cordial, de Sérgio B. de Hollanda, do homem
tropical moreno, de Gilberto Freyre, e do povo triste, de Paulo Prado.
38
engajamento do romance de 30. Anota Durval Muniz que o ―
discurso identitário‖ do romance
de 30 estava ―
preocupado em elaborar personagens simbólicos, dotadas de uma
individualidade coerente, garantida a ação [pela] manutenção de uma essência e elimina[ção]
de qualquer virtualidade‖ (ALBUQUERQUE Jr, 2011, p. 126). Tal ―
essência‖ reunida nos
personagens é, para essa estratégia, de fundamental importância, pois coincide exatamente
com o caráter regional, a regionalidade: ―
Os personagens do ‗romance de trinta‘ são típicos,
tipos fixos que mesmo diante de todos os conflitos (...) têm garantida a continuidade de ‗um
modo de agir‘ regional‖ (Id., p. 127). Ou seja, no romance de 30 seria justamente o ―
tipo
regional de homem brasileiro‖, a expressão do ―
gênio local‖, o veículo de reconhecimento das
partes do Brasil (do ponto de vista de seu suposto ―
todo nacional‖) e de resistência saudosista
ou revolucionária. No caso da renovação do tema da seca e do sertão neste nicho neo-
regionalista, esta tipicidade humanizadora parece estar em profunda concordância com a
perspectiva antropocêntrica colonial-modernizadora.
Ainda assim, nem o segundo regionalismo, nem, em sua esteira, o ―
romance de 30‖,
podem ser tomados como unidades orgânicas e coerentes sem que se escamoteiem as
diferenças significativas que marcam as obras deste período. A forte polarização ideológica da
época, por exemplo, entre grupos mais afinados à direita ou à esquerda do espectro político,
assinala uma dessas diferenças durante a consolidação do regionalismo, assim como as
maneiras diferentes com que os autores desses grupos lidavam com a relação entre suas
preferências políticas e a confecção de suas obras.
Uma parte dos romancistas de 30 estava umbilicalmente ligada a uma concepção
tradicionalista e memorial do nascente Nordeste e estes se filiaram quase imediatamente aos
pressupostos conservadores do regionalismo sociológico em torno das ideias de Gilberto
Freyre e do grupo de Recife, que em 1926 lançava seu Manifesto Regionalista. Descendentes,
em sua maioria, das elites político-econômicas do Nordeste (já decadentes naquele momento),
as autoras e autores vinculados a esse grupo iniciaram ali um processo de ―
desoficialização‖
do ofício literário. Sem dependerem necessariamente do cabide governamental, puderam visar
um público leitor, incipiente e ainda em conformação, porém já de natureza diferente da
classe letrada vigente até então. Se estas novas situações socioeconômicas da cena literária
oferecem, devido à ausência de um comprometimento estrito com grupos outrora dominantes,
um panorama favorável para a descoberta e o ensaio de novos temas e estilos, o efeito do
alinhamento com o grupo tradicionalista cria uma região radicalmente antimoderna e
anticapitalista, idílica, cujo destino, para não ser destruída, seria o resgate – o que se manifesta
39
nas obras de, por exemplo, José Américo de Almeida e Rachel de Queiroz, que privilegiam a
representação do sertão como lugar condenado à miséria e à violência inatas, que precisa ser
redimido de si mesmo, sobre o qual a ação do homem-produtivo-persistente (A Bagaceira) ou
da mulher-consciente-caridosa (O Quinze) torna-se imprescindível como meio de salvação.
De outro lado, florescem também autoras e autores com uma prosa regionalista mais
próxima do espírito do movimento modernista, declaradamente comprometidos na disputa do
imaginário acerca do sertão e do país32. O sertão, nas obras deste realismo nordestino
engajado, continua tributado à síntese natural/cultural euclidiana de violência e
ancestralidade. Porém, se nelas o sertão continua a ser objeto de salvação, o aspecto
anticivilizado que se conjuga à pressuposta hostilidade da natureza não é mais o atavismo de
fundo natural propalado pelo positivismo naturalista, nem o primitivismo de costumes que se
infere no regionalismo tradicionalista, mas uma estrutura social inerentemente injusta e
opressiva. Neste realismo da seca, o sertão continua sendo um lugar que precisa ser
domesticado/resgatado, residindo, porém, a incivilização a ser superada não na natureza
mesma das pessoas que ali vivem, mas num sistema de dominação que impede o Homem de
armar-se dos meios adequados para enfrentar a tarefa de assujeitamento da ―
natureza‖.
Comungando do anticapitalismo das obras do regionalismo tradicionalista, estas, contudo,
privilegiam não o regresso às tradições, mas a progressão revolucionária, o aprofundamento
da modernização. O sertão nordestino passa a ser
o lugar onde se encontram uma ética guerreira e uma ética salvacionista. A
primeira proveniente do mando, do poder; a última, da subserviência, da
catequese, da obediência, do misticismo. A luta dialética entre elas daria
origem a uma terceira: a revolucionária e humanista que as sintetizava
(ALBUQUERQUE Jr, 2011, p. 227. Grifo nosso).
A consciência política do sertão aí se manifesta exteriorizada, seja numa relação de
fora para dentro (a autoria romanceira colocando-se a serviço da denúncia de uma situação de
carência e opressão), seja de dentro para fora, com um possível destino feliz dos personagens
estando fora do sertão, na cidade, na capital, no Sul (de Pernambuco, da Bahia ou do Brasil).
Neste sentido, gemina-se à suposição do regionalismo naturalista de que o homem sertanejo
assujeitado à Natureza”, a sugestão de que essa
seria incapaz da civilização porque ―
assujeitar a
incapacidade residiria na estrutura social injusta que o impossibilita de ―
Natureza”. Pode ser que estas duas posições devam a síntese de sua opositividade à
concepção radicalmente antropocêntrica de compreensão/ação sobre o mundo, que informa o
32
―[Na década de 1930] o romance social, influenciado não só pelo modernismo, mas sofrendo ecos do realismo
socialista, serve aos artistas como veículo de enfrentamento da ordem existente.‖ (ALBUQUERQUE Jr, 2011, p.
235).
40
que temos chamado de projeto colonial-modernizador e segundo a qual, em um jogo de
alternativas perversas, ou o ―
Homem‖ é senhor absoluto da ―
Natureza‖ ou dela é
completamente servo e escravo, a potência cosmológica do sertão sendo, neste jogo,
obliterada pela superpotência do civilizado, de um lado, e pela impotência do sertanejo, do
outro.
33
―[Artaud] reconhecia (...) que toda a literatura em geral, e a poesia em particular, falhavam como fenómeno
comunicativo. Para Artaud, a escrita poética instituía‑se como locus privilegiado do impoder («impouvoir»), i.
e., da impossibilidade de pensar, espaço onde a inscrição das palavras mais não seria do que um gesto guiado
pela angustiosa descoberta de que nada há para exprimir.‖ E-Dicionário de Termos Literários, verbete
―Impoder‖. In: http://edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/5932/impoder/
34
―Retrupé esbarra com o impoder da cegueira; agora, ele não pode alcançar ninguém, se a raiva mais o cega;
pode? O cego Retrupé cochicha consigo — ele ofende o invisível. Para ele, graças à cegueira, este nosso mundo
já é algum além‖. (ROSA, 1998, p. 119).
35
Uma relação semelhante entre impoder e potência, à qual acrescentamos, cruzando-a, a relação, a nosso ver
correspondente, entre poder e impotência, foi delineada por Deleuze, no capítulo ―Aimagem do pensamento‖ de
Diferença e Repetição. Ali, descrevendo a dificuldade de Artaud tanto em estabilizar o ato mesmo de pensar
como em comunicar esse impasse nas suas cartas a J. Rivière, Deleuze sugere que, em Artaud, essa dificuldade
―concerne à essência do que significa pensar e afeta essa essência (...). Assim, o que o pensamento é forçado a
pensar é igualmente sua derrocada central, sua rachadura, seu próprio ‗impoder‘ natural, que se confunde com
sua maior potência‖ (DELEUZE, 2006, p. 212. Grifo nosso.). Mais à frente, formulando a relação complexa
entre imperativos e Ideias (respectivamente, a necessidade do pensamento de ― lançar os dados‖ e as
combinações que resultam desse lance – os ― dados‖ aí sendo as questões que atravessam o pensamento desde
41
Esteja o sertão num dia do mês de novembro: debaixo da chapa de aço do azul de fogo
a paciência longa e lenta da mata densa, espinhenta, rabiscada toda em tons grises, gravura de
grafite. Kaa‘ tinga, do tupi, mata branca, cinza. Aqui e ali as manchas verdosas que lembram
quem se esqueceu de estiar – umbuzeiros, paus-ferro, juazeiros. Debaixo dela, da floresta de
garranchos, o tapete cinza das folhas secas. Risque-se um traço no tronco de um pé-de-pau:
escorre seiva. Cave-se com o dedo por baixo desse tapete: vai se ver, quase no fim, a memória
da umidade. Aí está: o impoder da caatinga. Pois bem, no primeiro chuvisco de dezembro, o
começo da estação verão, que no sertão se chama inverno, do verde que tinha sobrado nos
juazeiros e de outros mil verdes: acontecimento – a mata verdeja completa. O que é que
verdeja? O cinzento da mata.
O que está em jogo nesse fluxo de intermitências é a co-constituição36 de estados de
transformação dos corpos seco-verde-úmido-cinza (porque quem verdeja é o cinza seco que
forma ilhas e guarda rastros de umidade), dos quais se equivocam interioridades e
exterioridades (o interior das árvores e do solo secos é atravessado pela umidade que invoca o
exterior verde). E estes estados de transformação são realizados como uma cosmotécnica,
uma técnica de composição do cosmos. Os corpos em estado de transformação são
implicados mutuamente e atravessam-se, interdeterminam-se. Os profetas da chuva no sertão
do Ceará adivinham a chegada da quadra de inverno pela sincronia das modificações dos
corpos: organização e disposição de cupinzeiros e formigueiros, comportamentos
diferenciados de algumas aves, floração e frutificação de algumas árvores, gestação de
animais e sensações corporais próprias... Trata-se, segundo o antropólogo Renzo Taddei, de
uma espécie de duplicação intensiva dos existentes, que não se reduziria apenas a mera
reprodução de cada espécie, nem apenas a uma semiótica puramente mundana, exterior, mas
―
à intensidade dos fluxos energéticos, à percepção da intensidade do devir-organismo
coletivo‖ (TADDEI, 2014, p. 601). Conforme Taddei, é ―
um processo cósmico, de sincronia
coletiva, sobre o qual não se tem controle e que une plantas, bichos e gentes como uma
imensa transformação, ou imensa rede de transformações‖ (Id., p. 604).37 Um corpo próprio,
fora), Deleuze diz que ― os imperativos em forma de questões significam, pois minha maior impotência, mas
também esse ponto ao qual Maurice Blanchot sempre se refere, ponto aleatório original, cego, acéfalo, afásico,
que designa a ‗impossibilidade de pensar que é o pensamento‘ e que se desenvolve na obra como problema e
onde o „impoder‟ se transmuda em potência‖ (Id., p. 282. Grifo nosso).
36
Este termo foi inspirado nas noções de espaços/mundos co-constituídos segundo FAUSTO, 2017.
37
Citação levemente alterada sem prejuízo do sentido original. O texto original é este: ―Arelação entre ‗profetas
que leem os sinais da chuva‘ e a fonte dos sinais – plantas, bichos, o corpo humano – é menos a ‗produção de
informação (sobre chuva) como subsídio à tomada de decisões agrícolas‘ e mais um processo de sincronia
coletiva que une plantas, bichos e gentes, processo maior do que todos os indivíduos, sobre o qual não se tem
controle e no qual, não raro, os indivíduos se predam mutuamente. O enquadre desse processo cósmico como
42
uma subjetividade, surge aí do flagrar-se atravessado do fluxo de outros corpos38. Trata-se de
um procedimento-sertão de co-constituição do cosmos.
Procedimento similar é experimentado, em Vidas secas, por Fabiano, quando da sua
indecisão sobre ser um homem ou ser um bicho (1, 18-19)39. Ele está num movimento
vacilante entre dois planos na mesma superfície, dois regimes de afirmação de um corpo
próprio. Um regime que projeta individualização (ser homem definitivo) e outro que conecta
acontecimentos (compartilhar um lugar ontológico com um bicho). Enquanto a projeção
individualizante cria uma circunscrição, uma separação do resto dos existentes, um privilégio
ontológico, do outro lado a ―
desumanização‖ gerada pela conexão de acontecimentos
prolifera agências extra-humanas tanto para Baleia quanto para Fabiano. Ser um bicho ora é
ser menos que gente e causa vergonha (segundo uma prescrição da ordem de um poder), ora é
ser a-gente em composição (segundo uma transformação do sertão). Partindo de uma
observação de si mesmo, à exclamação humanista ―
você é um homem‖, Fabiano opõe,
vexado, o murmúrio pessimista ―
você é um bicho‖. Para sair deste plano que lhe entristece
por projetar poder (ser-Homem), mas só realizar impotência, ele aquiesce aos
atravessamentos de sentidos que lhe perpassam no outro plano, o do impoder. Aí, diante da
isto para ele era motivo de
terra, proliferam-se as diferenças. Diferença de estado: ser bicho, ―
orgulho (...), aparecera como bicho‖. Diferença de estatuto: ―
mas criara raízes, estava
plantado‖. Diferença de intensidade: ―
olhou os mandacarus (...) era mais forte (...) era como
as baraúnas‖. E diante de Baleia, enternecido, reconhece: ―
você é um bicho, Baleia‖. O
sertão-modo é, então, o plano que modula essa co-constituição dos corpos de um homem / um
bicho / uma planta em estados de transformação. Do outro lado, a vergonha de ser um homem
é muito concreta.40
Fabiano faz, primeiro consigo mesmo e depois, e de forma mais exitosa, com Baleia e
a terra, antropologia especulativa, um procedimento do pensamento que procura os
uma imensa transformação, ou uma imensa rede de transformações de substância, à forma de peristaltismo
cósmico, abre uma série de possibilidades teóricas e existenciais.‖ (TADDEI, 2014, p. 604).
38
Ao se deter sobre a relação entre procedimento metodológico e tese metafísica na filosofia de Bergson, Bento
Prado Jr. assim explica a gênese de um corpo próprio no exercício especulativo do filósofo: ― não é a
interioridade do corpo próprio que fornece a perspectiva para a descrição do mundo. A explicação (...) é efetuada
como se tentasse capturar o de-dentro pelo de-fora [dedans par le dehors, no original]. Isto porque a
complexidade maior da imagem do corpo próprio deve ser compreendida à luz da simplicidade das demais
imagens. O movimento é o inverso daquele percorrido pelo pensamento existencialista: não se trata de partir da
experiência subjetiva do corpo para se chegar, depois, ao corpo objetivo, ou ao corpo do outro. Trata-se de
construir a subjetividade do corpo próprio, a partir do corpo objeto e, mais ainda do corpo objeto a partir das
imagens em geral‖ (PRADO Jr, 1988, pp. 143-144).
39
Ao longo do texto nos referiremos à 83ª edição de Vidas Secas, de 2001, pela Editora Record. As referências
apontarão primeiro o número do capítulo seguido do(s) número(s) da página(s).
40
A expressão, como se sabe, é de Primo Levi, retomada oportunamente por Gilles Deleuze.
43
parâmetros do que é ser homem e os descobre situados em dois registros distintos e
confrontantes, um que anula as relações com o mundo em nome de um conjunto vazio e pré-
estabelecido, outro que relança a pergunta estabelecendo as regras de uma relação inter-
determinada com pelo menos um elemento que não faz conjunto com os termos pré-
estabelecidos. Inter-determinada, aqui, significando, não uma simetria generalizada, mas uma
assimetria controlada: passa-se de bicho a planta não para engendrar uma universalidade de
planta, mas para estabelecer a diferença contingente – o acontecimento Fabiano-planta se
relaciona (isto é, se distingue e se liga) com o acontecimento paralelo Baleia-bicho. Homem-
menos-que-gente, no primeiro exercício; Gente virtualmente homem-planta-bicho, no
segundo exercício. São exercícios especulativos porque se destinam, neste caso, a dar saltos
imagéticos e conceituais e a comparar as imagens derivadas desses saltos: que imagem é
gerada do espelhamento de Fabiano consigo mesmo, o salto para dentro? A imagem do
Homem-que-não-pode-ser-gente, tristeza, vergonha, murmúrio. Que imagens são geradas no
espelhamento de Fabiano com as imagens do cosmos? São imagens interpenetradas e, de
repente, homem e planta e bicho habitam um espaço de in(ter)-determinação, no qual o
estatuto de ‗homem‘ está incluído, como questão, no regime de variação de ‗gente‘. O que se
gera do espelhamento entre esses dois espelhamentos? Esta é a máquina do romance Vidas
secas. Há simultaneamente dois registros agindo na narrativa. À pergunta (feita pela série de
sujeitos autor/narrador/crítica e, virtualmente, leitor) ―
o que é o Homem?‖, a resposta (dada
pelos acontecimentos personagens/maquinaria do texto/sertão e, virtualmente, leitor) é ―
Como
a-gente se faz?‖ – como diria Riobaldo, ―o
nde é bobice a qualquer resposta, é aí que a
pergunta se pergunta‖.
A pergunta ―
como a-gente se faz?‖ é já um fazer, é já uma técnica de composição
(assim como ―
O que é o Homem?‖ é sempre uma injunção). Fabiano acha o lugar de sua
potência no impoder de fingir-se homem-bicho-planta: a-gente, nesse caso, se faz fingindo ser
outro. A ficcionalização está na origem do termo antropologia especulativa, cunhado por
Juan José Saer para designar a literatura como exercício de pensamento. ―
Podemos definir de
um modo global a ficção como uma antropologia especulativa.‖ (SAER, 2009, p. 4):
É antropologia porque toda literatura de ficção propõe uma visão do homem.
E especulativa porque não é uma antropologia afirmativa. É uma
especulação acerca das possíveis maneiras de ser do homem, do mundo, da
sociedade. Mas também especulativa pela noção de espelho que está
implícita. Não como em Stendhal, para quem o romance é um espelho que o
narrador usa para refletir os acontecimentos, mas no sentido dos espelhos
44
deformantes. (SAER, 2002, s/p. Tradução minha.) 41
A ficção a que se refere Saer não se relacionaria à qualidade de falso, em oposição a
verdadeiro, mas a um procedimento de especulação (espelhamento e reconhecimento das
virtualidades) que, acrescentando e retirando, ampliando e reduzindo os atributos da faixa de
frequência que se experimenta como realidade, modula essa faixa e a modifica. O
procedimento de ficcionalização realizado por Fabiano não diz respeito à paridade falso x
verdadeiro; fingir, neste caso, não é falsificar uma substância primitiva, anterior e verdadeira
(o bicho, a árvore, a ―
Natureza‖), mas supor que o que se chama de real constitui-se por
modulações e variações; e assim proceder. Não para dizer, conotar ou evidenciar uma
variação subjetiva da verdade objetiva, mas para habitar a própria verdade da variação que
Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu‖.42 A
constitui o mundo – ―
ficção envolvida na antropologia especulativa de Fabiano não significa falsear, mas variar(-
se)43. Trata-se de uma experiência literária – como ato de experimentar e como ser
atravessado por um conjunto heteróclito destas variações. E de outras.
Como o mesmo Saer alerta, ―
a ficção não solicita ser acreditada enquanto verdade e
sim enquanto ficção‖. Ao fazer antropologia especulativa Fabiano não diz ―
o que é um
homem‖ (injunção, verdade), mas demonstra ―
como a-gente se faz‖ (composição, ficção). Se
ser gente, ser humano, é variar-com-o-cosmos, então, neste trecho, a passagem entre os dois
planos de existência de Fabiano carrega consigo o mundo inteiro; passa-se de um registro
antropocêntrico para um regime cosmopolítico. Afinal, como conclui Saer, ―
ela [a ficção] não
é a exposição romanceada de tal ou qual ideologia, mas um tratamento específico do mundo,
inseparável do que trata.‖ (SAER, 2009, p. 2. Grifo nosso.)
Esta talvez seja uma das dimensões fundamentais da experiência literária em Vidas
secas, o fato de que por ela é possível experimentar, num primeiro instante, a implicação
mútua entre uma ficcionalização e a cartografia do mundo. Os dois registros nos quais
Fabiano transita são desenhos, cada um, ao mesmo tempo, de esquemas de humanidade e de
mundanidade. Sua antropologia especulativa se repete no episódio ―
Festa‖, desta vez
coletivamente, por assim dizer. No meio da quermesse, na cidade, Fabiano tenta novamente
41
O autor faz questão, também, de enfatizar a concretude/realidade envolvida nesse exercício, alertando que
especulativo não diz respeito apenas a imaginário, muito embora possa incluí-lo: ― eu poderia ter dito
‗antropologia imaginária‘, mas a palavra especulativa, me pareceu que englobaria, de modo mais claro, dois ou
três conceitos relativos ao fictício; e ao mesmo tempo porque no conceito de especulativo há um quê de
racionalidade de que a palavra imaginário carece‖ (Id. Ibid)
42
Famoso aforisma do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade.
43
―Aficção, seja ela literária seja ela antropológica, é o que torna experienciável e tradutível, por meio da
virtualização, da obliquação, a variação de si, o outrar-se que é a condição ontológica primeira de toda
subjetividade.‖ (NODARI, 2015b, 10)
45
definir, nos dois registros, o seu estatuto. Ao grito inumano: ―
Apareça um homem!‖, Fabiano,
que estava bêbado e procurava briga, prossegue esperando a palavra fugidia que completaria o
significado dicotômico de sua antropologia: ―
Cambada de... (...) Cambada de cachorros!
Evidentemente os matutos como ele não passavam de cachorros‖ (8, 74). Baleia,
curiosamente, nesta hora, estava afastada da família, no meio do povo. Ora, pouco tempo
antes de seu berro afrontoso, Fabiano estava relembrando, furioso, o episódio em que fora
preso injusta e cruelmente pelo soldado amarelo. É nesse contexto, diante da autoridade, ou
seja, em um regime de indiferenciação dos corpos, que Fabiano desconfia e conjura a
existência de um homem (o começo do capítulo conta os constrangimentos pelos quais
Fabiano e Sinhá Vitória passam por terem que se vestir como as pessoas da cidade, isto é,
serem compelidos a entrar em um regime de supressão da diferença). Novamente, no registro,
digamos, da cidade e da autoridade, ser uma ―
cambada de cachorros‖ é pertencer a uma classe
menos-que-gente. O que seria isso no regime de relações horizontais do sertão?
Num registro humanista-antropocêntrico, o mundo existe como território estático,
definitivo, austero, cenário onde o Homem solitariamente assiste à sua própria dança ridícula
e triste – de que é exemplo a abertura do romance como um trágico solo de tímpanos em
andamento descendente: ―
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas
verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro...‖ (1,9). Esse registro estende sobre o
mundo uma ideia de infinitude e depõe na natureza humana a impossibilidade de alcançar esta
infinitude, limitando drasticamente as possibilidades de nele se ser gente, ser feliz: ―
Os
juazeiros aproximaram-se. Recuaram. Sumiram‖.
Já em um regime de co-constituição cósmica, a cartografia do cosmos pode ser não
apenas uma reprodução objetivada de seus contornos, mas a própria ação de grafar: o cosmos
é grafado e grafa, assim como o anthropos especula e é especulado – ―
Subiu a ladeira. A
aragem morna sacudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitação nova. Sentiu um
arrepio na catinga, uma ressurreição de garranchos e folhas secas‖ (1,15). Aqui os
acontecimentos são cruzamentos de entes heterogêneos, misturas de tipos de agências. Quem
arrepiou, o personagem ou a caatinga ela mesma? Ou será que o personagem e a caatinga de
repente intensificaram suas vibrações ressonantes e ocorreu então de sentirem-se um no
sentido do outro? Aqui não é mais a extensividade cartográfica que é infinita, mas a
intensividade cosmográfica que é ilimitada.
O efeito especulativo e gráfico, isto é, abstratamente real, do cosmos sobre os corpos,
no caso do sertão, foi notado por Alexandre Nodari, em um comentário acerca de uma frase
46
ambivalente das Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade – ―
Eo
sertão para lá eldoradava sempres e liberdades‖:
o Eldorado [não] é um lugar fixo (não é um substantivo), e sim uma ação
(um verbo, eldoradar), a produção de um efeito pelo lugar (no caso, o
sertão) sobre o sujeito, que possibilita vê-lo de outro modo, de outra
perspectiva, mesmo que, ao fim e ao cabo, se trate de uma ilusão, de uma
ficção. (NODARI, 2017a, p. 126.)
ilusão‖ aqui não se refere a alguma crítica da ficção baseada em uma realpolitik da
A―
verdade, mas justamente ao fato de que a ―
produção de um efeito pelo lugar‖, a inscrição
cósmica sobre os sujeitos, é já um artifício, uma confecção. Neste sentido, as inscrições
cósmicas são, de direito, políticas, isto é, incidem sobre a realidade (essa categoria
frequentemente associada ao ―
mundo humano‖), constituem-na e a transformam. A aplicação
de uma crítica baseada na realpolitik dos fatos ao caso de Fabiano resultaria em um pacto
sombrio com a perspectiva de um narrador que muito frequentemente distancia-se das ilusões
(ficções) do vaqueiro, mesmo que as alimente como ingênuas alegorias da esperança.44
Porém, a maquinação do romance, segundo uma leitura que considere os dois registros
narrativos, permite que a ficcionalização module a realidade, em vez de escamoteá-la,
escondê-la ou pretensamente dela se afastar. Nesse sentido, o efeito da grafia do sertão
constitui, em ressonância, o próprio campo da experiência literária. Antropologia
especulativa e cosmografia se implicam, co-constituem-se, o que significa que as
especulações e as grafias se distribuem de modo recíproco. Em outro texto, acerca da
antropologia especulativa e onde está boa parte dos conceitos empregados nesta seção, o
próprio Nodari fornece a perspectiva mais fecunda de que uma experiência literária não se faz
só com textos escritos:
―...não lemos só para dar consistência a esse mundo, sustentá-lo ou entendê-
lo (ciência, filosofia, etc.): também lemos para ver que ele não é tão
consistente assim, que podemos transformá-lo, que ele é contingente
(literatura, manifestos políticos, etc.). A leitura talvez só se torne uma
experiência quando há o encontro entre essas duas dimensões – sem tal
encontro, facilmente resulta em conformismo tanto de um lado quanto de
outro. Mas se a leitura é esse entrecruzamento (fazer o mundo consistir e
também desconsisti-lo, dando consistência a outros mundos descobertos),
então ela não se reduz à leitura de textos escritos, isto é, à leitura em sentido
estrito, mas constitui uma experiência de contato com o mundo e suas
44
Há pelo menos duas linhas interpretativas do uso jubiloso do futuro do pretérito em trechos variados, como no
final do primeiro capítulo: "as cores da saúde voltariam (...), os meninos se espojariam (...) Chocalhos
tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde‖ (1,16). Uma delas entende que isto se deve ao determinismo
fatalista de Graciliano Ramos fazendo do narrador o oráculo de uma temporalidade circular que vai da seca para
a fartura e depois de volta à seca. Outra linha enxerga neste uso justamente o distanciamento meio irônico, meio
higiênico, mas, de todo modo, paternal, do narrador em relação aos planos/sonhos dos personagens. Para uma
análise rápida desse aspecto, v. CINTRA, 1993, pp.94-95; RIBEIRO, 2016, pp. 85-86.
47
diferentes intensidades, uma prática ético-política (ou ecológica) de adquirir
uma consistência singular, mas sempre fugidia, no encontro com as
multiplicidades, um habitat (sempre precário e finito) no cosmos, ou seja,
uma experiência de antropologia e cosmografia.‖ (NODARI, 2015a, p. 78.
Grifo nosso.)
No caso que estamos estudando, a experiência literária em Vidas secas, como
antropologia especulativa e cosmografia (ou seja, a experiência literária dos personagens) é
uma experiência extra-humana e extra-mundana45, cósmico-política: trata-se de uma
experiência literária – no que diz respeito à leitura como a de um texto e no que diz respeito à
grafia como a de um cosmos.
Para compreender o que significa extra-humanidade e extra-mundanidade na
experiência literária, acompanhemos ainda o percurso de Alexandre Nodari acerca da
antropologia especulativa. Ao confrontar o posicionamento do observador na etnografia,
segundo Lévi-Strauss, e na literatura, segundo a personagem Elizabeth Costello de J. M.
Coetzee, Nodari sugere que, no percurso que desloca a capacidade de subjetividade do
sujeito-observador em direção aos outros entes do mundo, há dois segmentos sucessivos.
Primeiro, para Lévi-Strauss, a compreensão que o etnógrafo tem de que o nativo que ele
estuda não é só um objeto, mas também um sujeito, reside, em última instância, na capacidade
de especulativamente habitar um espaço abstrato comum às ―
milhares de sociedades que
existem ou existiram na terra [que] são humanas, [sendo] por essa razão [que] dela
participamos de forma subjetiva‖ (LÉVI-STRAUSS apud NODARI, 2015a, p. 78-79). Já para
a romancista australiana de Coetzee, a ficção literária é uma espécie de imaginação simpática
pensar meu modo de adentrar a existência de um ser que nunca existiu‖. Se
que se perfaz ao ―
a literatura pode ser ―
como Lévi-Strauss definira a etnografia, uma ‗forma experimental e
concreta‘ do ‗processo ilimitado de objetivação do sujeito‘ (...), na formulação de Costello, a
ilimitação desse processo se revela em sua inteireza, indo para além das fronteiras do
humano‖ (Id. Ibid.). Ou seja, trata-se de uma sucessiva exteriorização da capacidade de
habitar um campo comum a pelo menos duas subjetividades supostas; o que Nodari vai
chamar, inspirado em Clarice Lispector, de obliquação, o ―
manter uma posição transversal,
ser ao mesmo tempo e conjuntamente sujeito e objeto, eu-próprio e mim-outro‖ (Id., p. 78).
Dissemos dois segmentos do mesmo movimento justamente porque a perspectiva de
Elizabeth Costello enxerga o interstício no meio do plano da humanização, sobre o qual dá
um salto ontológico na direção contrária à do antropocentrismo. Se o método etnológico de se
45
―Se a antropologia cartografa mundos possíveis, constituindo uma cosmografia comparada das perspectivas do
anthropos, aquilo que a literatura cartografa são mundos inexistentes, sendo uma cosmografia comparada das
perspectivas extra-mundanas.‖ (NODARI, 2015a, p. 81).
48
obliquar se assenta na capacidade de considerar os objetos observados como sujeitos (sendo,
essa capacidade, o atributo especulativo inerente à subjetividade), supõe-se, então, que estes
objetos-sujeitos também gozarão da faculdade de obliquar-se (já que inerente à subjetividade),
ou seja, da faculdade de estabelecer quem comunga ou não desta faculdade. Aquilo que se
obliqua ou não – que é ou não um sujeito – está em jogo a cada vez que existe uma agência
especulativa. Ora, a atribuição de subjetividade, nesse caso, é virtualmente multiplicadora, ela
pode reconhecer agências especulativas em qualquer objeto (o que não significa,
evidentemente, que ela deva reconhecê-las em todos os objetos).
Este salto retorna sobre o plano da humanização valorizando o que nele é mais o
regime da obliquação subjetivante do que o da especiação humanizante, pois ―
se é possível
adentrar a existência de um ser que nunca existiu, também é possível ‗pensar meu modo de
adentrar a existência de um morcego ou um chimpanzé ou uma ostra, de qualquer ser que
participe comigo do substrato da vida‘ (Id., p. 81, citando Coetzee). Como percebe Nodari,
se a descrição de Lévi-Strauss se fundamenta na equação Sujeito =
Anthropos (em sua argumentação, participamos de forma subjetiva de todas
as sociedades na Terra – poderíamos ter nascido nelas – porque elas são
humanas), a antropologia especulativa proposta por Coetzee especula sobre a
antropologia, questionando a imagem da espécie e suas prerrogativas
ontológicas sobre a subjetividade. Assim, de certo modo a equação se
mantém, mas invertida: Anthropos = Sujeito, ou seja, todos os seres
existentes e inexistentes são humanos porque podemos participar de forma
subjetiva de sua existência, obliquarmo-nos como se fôssemos eles.‖
(NODARI, 2015a, p. 81).
Uma experiência literária se dá, então, num plano que conecta indefinidamente
humanidades-outras e as conecta segundo modos de composição heterogêneos, mundos-
outros. Extra-humano e extra-mundano, assim, carregam a duplicidade do prefixo extra: desde
fora e para fora do círculo categórico.
Se a cosmografia implicada nesta experiência é uma precipitação conjugada do mundo
e do sujeito e se a capacidade de ser sujeito é proliferada no mundo, ela constitui ainda uma
outra dimensão além da ênfase na multiplicidade de sujeitos. Trata-se de intensificar o sentido
de outro que o prefixo extra pode comportar na expressão extra-humano, isto que a
compreensão da subjetivação como obliquação implica, que é a oscilação do próprio modo de
subjetivação.
Na tese A cosmopolítica dos animais, ao explorar os desdobramentos do conceito de
devir-animal de Deleuze e Guattari, Juliana Fausto sugere que ―
se um povo menor pode ser
invocado pela escrita, em um agenciamento coletivo de enunciação, também é possível que os
discursos não-humanos sejam trazidos ao centro da política por meio da literatura‖
49
(FAUSTO, 2017, p. 170. Grifo nosso). Neste sentido, a literatura seria não apenas uma
concessão do discurso humano para os outros entes do mundo, um reconhecimento de
humanidade nas outras subjetividades, mas, mais além, uma dissociação entre as categorias
discurso e humano, a admissão de que nem todo discurso é humano e, além disso, de que os
discursos não-humanos podem ser perfeitamente escutados e acolhidos, transformando o que
era um intercâmbio de subjetividades (a política) em um intercâmbio de modos de
subjetivação (cosmopolítica). Assim, a experiência literária traçaria as linhas de um outro
mapa de relações, no qual a antropologia especulativa e a cosmografia seriam,
respectivamente, a linha e o mapa que emergem de um movimento de descentramento do
sujeito e da subjetivação. Retomando: o método etnográfico pressupõe a experiência de que
todo ser humano é sujeito, isto é, se obliqua ou pode manter-se numa posição desde a qual
distingue quem é sujeito e quem não é. Depois, o método da antropologia especulativa inverte
os termos da equação e admite-se que todo sujeito é humano, tudo virtualmente pode revelar
seu caráter obliquado, subjetivado e, portanto, humano; porém, neste ponto, se subjetivar-se
consiste em atualizar a capacidade de se obliquar, de devir-outro, e de, no mesmo movimento,
atribuir essa agência ou partilhá-la com outros, então ser obliquado (sujeito) é
simultaneamente ser obliquante (admitir a subjetividade de outrem), e se outrem também é
sujeito-obliquado, será, também, portanto, sujeito obliquante e assim indefinidamente.
Portanto, ainda outro passo: além do reconhecimento da humanidade subjacente a qualquer
subjetividade, agora também é possível uma situação em que a subjetividade se dissocia da
humanidade e ainda permanece subjetiva, isto é, ativamente obliquada/obliquante. Tratar-se-
ia de uma experiência do devir-animal, um desconhecimento daquilo que separa um sujeito
humano de um animal sujeito, uma borda ontológica na qual um homem e um animal se
implicam, se destituem de e co-constituem sua humanidade/animalidade como corpos em
estado de transformação. Assim, por exemplo, acerca do poema Thought-Fox, do poeta inglês
Ted Hughes, Juliana Fausto comenta:
A raposa-pensamento é raposa e não é ao mesmo tempo, ela cria um mundo
que não é mais o do poeta nem o da raposa real, mas em que uma
comunicação entre ambos pode surgir (...). Uma aliança entre escritor e
raposa. (...) Diferentemente do que se passa na caça, a que esses animais são
sujeitados ainda hoje em práticas cruéis, a raposa e o escritor se encontram
em um tipo de entre-lugar, invocam-se ambos um ao outro, modificam-se.‖
(FAUSTO, 2017, p. 172)
Conforme Juliana Fausto, a escritura guarda uma relação especial com alguns dos
mecanismos que evocam o devir-animal, pois por eles ―
o escritor é atravessado por afetos
não-humanos, pelo qual a escrita pode, de alguma forma, encontrar um canal de comunicação
50
intermundos‖ (Id. p. 170). O que pode ecoar a afirmação de Derrida de que ―
o pensamento
animal cabe à poesia (...) e esta é a diferença entre um saber filosófico e um saber poético‖
(DERRIDA, 2002, p. 22). Se aquela grafia traçada pelo cosmos nos corpos, a cosmografia
ativa envolvida na experiência literária, é constituída pelo atravessamento desses afetos não-
humanos – se o sertão é o plano co-constituído por afetos de diversas ordens e intensidades –,
essa experiência é um acontecimento cósmico que envolve a composição e de-composição do
mundo. Trata-se de um reconhecimento das articulações de pensamento e das agências dos
entes do mundo a que a filosofia não estaria apta ou engajada e que a poesia (experiência
literária) deve realizar (quem sabe impelindo e estimulando a filosofia a ir junto?). Referindo-
se ao conto tríptico de Ursula Le Guin The Author of the Acacia Seeds, Juliana Fausto afirma
que a escritora americana ―
alarga a compreensão de literatura, devolve-a ao mundo, aos seres
do e no mundo, transformando-a em cosmoliteratura‖ (FAUSTO, 2017, p. 173. Grifo nosso).
Uma experiência literária, portanto, que suponha uma especulação acerca do estatuto
do humano, implica virtualmente uma escritura compósita do cosmos, que, por sua vez,
implica virtualmente uma devolução da literatura aos seres co-partícipes do mundo, na qual
não se trata de representar (falar por ou em nome de), mas de fazer presente (diante de). Um
mundo co-constituído, assim, se opõe frontalmente ao fascismo implícito de supor um
―
mundo-para outrem‖, e se aproxima do exercício de verificar e experimentar a existência
atual de um ―
mundo-de outrem‖. Porém, o que está em jogo nesta experiência não é só a
admissão passiva de uma subjetividade actante dos corpos-outros, que pode determinar
(mundo de outro) ou ser determinado (mundo para outro), mas habitar o mundo com os
corpos-outros, de forma que se reconheça e se engaje na proliferação e no fortalecimento do
mecanismo de atravessamento de corpos e faça com que ―
aquela que é recrutada sempre
como uma das maiores distinções da humanidade, a linguagem, [seja] reconceitualizada e
[imponha] um contínuo entre os humanos e outros entes terrenos.‖ (FAUSTO, 2017, p. 173)
Ursula Le Guin, a escritora americana que Juliana Fausto comenta, endereça à
Civilização a responsabilidade pela nefasta exclusividade humanista que se retira da
comunidade dos viventes e dos seres da terra, em um parágrafo de tremenda lucidez que
consideramos necessário, porque eficaz, reproduzir inteiro aqui:
Animais não falam – todo mundo sabe. Todo mundo; inclusive crianças bem
pequenas, e os homens e mulheres que contaram e contam aquelas histórias
de animais que falam, sabem que os animais são mudos: não têm palavras
próprias. Então por que nós continuamos a colocar palavras em suas bocas?
Nós quem? Nós os mudos/idiotas: os outros. No pavoroso autoisolamento da
Igreja, aquela imponente alma-fortaleza sobre os abismos sombrios do
bestial/mortal/Mundo/Inferno, que São Francisco tenha dito ―I rmã pardal,
51
Irmão lobo‖ foi uma grande coisa. Mas para o Buda, ser um chacal ou um
macaco não era grande coisa. E para as pessoas que a Civilização chama
―pr imitivas‖, ―s elvagens‖ ou ―s ubdesenvolvidas‖ (...), a continuidade,
interdependência e comunidade de toda a vida, de todas as formas de ser na
terra, é um fato vivido tornado consciente em narrativas (mito, ritual, ficção).
A continuidade da existência, nem benevolente nem cruel em si, é
fundamental para que qualquer moralidade seja erguida sobre ela. Apenas a
Civilização ergue sua moralidade negando seu fundamento. Ao subir até sua
cabeça e calar todas as vozes além da sua, o ―Ho mem Civilizado‖ ficou
surdo. Ele não consegue ouvir o lobo chamando-o de irmão – não de Senhor,
mas irmão. Ele não consegue ouvir a terra chamando-o de filho – não de Pai,
mas de filho. Ele ouve apenas suas próprias palavras fazendo o mundo.‘ (LE
GUIN, 1990, p. 9.)
Le Guin nos ensina, aqui, o caminho para compreender a cosmografia da antropologia
especulativa, que mal e mal viemos tentando explicar. Trata-se, portanto, de um exercício de
cosmopolítica, de evocar e invocar a composição e de-composição, arranjos e negociações,
coabitações, convivências e determinações multilaterais, baseada na ―
continuidade,
interdependência e comunidade de todas as formas de ser na terra‖; uma experiência em que o
mundo se comporta não como um parlamento (pois os discursos não são iguais, embora
igualmente partícipes, nem existe um lugar neutro onde se dissimule a ausência de interesses,
como em uma instituição legislativa): o mundo é um mutirão, multi- e inter-específico.
46
Cf. CARPEAUX, 1943; MARTINS, 1948; CANDIDO, 2006a (1956); FELDMANN, 1967; ASSIS BRASIL,
1969.
52
freyreano. Por fim, mesmo sua conhecida militância no comunismo oficial é narrada se não
como estando completamente apartada, no mínimo como sendo uma atividade paralela à de
escritor, restando raro o reconhecimento de uma influência ostensiva do realismo socialista
em sua obra.
A especificidade da contribuição de Graciliano no caldeirão do romance de ‘30 é
destacada sob três dimensões fundamentais. Em primeiro lugar, sua falta de solidariedade à
forma engajada da ficção regionalista de então. Um crítico insuspeito como Carlos Nelson
nada existe nele em comum com aquele estreito regionalismo, que foi
Coutinho destaca que ―
uma das manifestações brasileiras do naturalismo ‗sociológico‘‖ (1967, p. 73, grifo do autor).
Na esteira de Braga Montenegro, para quem Graciliano foi um ―
romancista destituído de
vocação sociológica‖ (1969, p. 23), Assis Brasil, mais acidamente, observa: ―
Ele estaria
desligado de seus ‗contemporâneos‘ imediatos, por se afastar rigidamente de qualquer
mentalidade romantizada ou para-realista do documento panfletário.‖ (1969, p. 19).
Em segundo lugar, sob o aspecto formal, sua obra é considerada particularmente
precisa e sofisticada, em comparação com seus coetâneos, no que se refere à linguagem e ao
trato com a língua portuguesa: ―
A ‗mestria singular‘ do romancista Graciliano Ramos reside
no seu estilo‖, declara Otto Maria Carpeaux na abertura de um dos primeiros ensaios de
análise geral da obra (1943, p. 25). E acrescenta: ―
escolha de palavras, escolha de
construções, escolha de ritmo dos fatos, escolha dos próprios fatos para conseguir uma
composição perfeita, perfeitamente pessoal‖. Também Assis Brasil, em seu opúsculo
analítico, responde:
Em que se distingue Graciliano Ramos dos três precursores do chamado
romance do Nordeste [José Américo de Almeida, José Lins do Rêgo e
Rachel de Queiroz]? Ele se distingue pela forma, pelo plano técnico da
narrativa, pela segurança em tratar com a língua. Em suma: ele se destaca
por ser, além de romancista, um bom escritor (1969, p. 16).
Por fim, um terceiro aspecto constantemente destacado, que corresponde também à
dimensão formal, porém com força particular, são os caracteres predominantemente
psicológicos que ele imprime a seus enredos, a substituição do regime paisagístico do
regionalismo de ‘30 pela paisagem interior dos personagens.
Se José Américo de Almeida observa no romance modernista regionalista,
de uma maneira geral, ―u ma ausência de atmosfera instrospectiva‖, a favor
da ―m assa que espontaneamente, rudemente, passa a vibrar ao toque da
arte‖, tal observação não é válida para Graciliano Ramos. ―Noromance
sociológico dos anos 30, Graciliano Ramos escreve o ‗romance
psicológico‘‖ (FELDMANN, 1967, p. 50, citação de Wilson Martins).
Mais à frente do trecho citado, Helmut Feldmann contrapõe a esta característica
53
formal, apontada por alguns críticos como sintoma de falta de regionalismo, o fator temático.
Diferentemente de outros representantes do movimento regionalista, que teriam se engajado
em temas diferentes (o caso, por exemplo, de Eurídice, de José Lins do Rêgo), Graciliano não
teria se afastado, ―
em seus romances, do chão do Nordeste‖: ―
Resumindo, podemos afirmar
que o romance de Graciliano é acentuadamente de natureza telúrica, com a restrição, porém,
de o interesse pela região subordinar-se continuamente ao interesse psicológico‖ (Id., p. 58-
59).
Com as reincidentes observações sobre esses três aspectos aparentemente passa-se a se
considerar, com Graciliano, a definitiva virada do regionalismo, que teria deixado de ser
apenas tema, e chegara, finalmente, a ser também estilo. Se, como anota Braga Montenegro, o
regionalismo havia sido tema do estilo romântico, do estilo naturalista e do estilo modernista
(cf. 1969, p. 13), o ―
telurismo psicológico‖ de Graciliano, sua particularidade em meio aos
grupos nos quais transitava, parece garantir uma forma específica da literatura regionalista no
Brasil – o que iria chegar a seu ápice com a obra de Guimarães Rosa. Se o tratamento
propriamente linguístico em Graciliano cumpre uma função importante nessa passagem47, é,
no entanto, a aposta no mundo interior do narrador, no ensimesmamento da narração, que se
torna o elemento de notoriedade na confecção de seu estilo e faz o regionalismo brasileiro ser
alçado pela primeira vez à qualidade de ―
validade universal‖ da literatura – seja lá o que isso
queira dizer.48
É curioso que a concretude estilística surgida no seio de uma literatura que teria como
cenário e tema o sertão seja identificada justamente como, de certa forma, a negação do
sertão, a saída intimista e solitária do cenário. Isso para ficar nesse registro convencional do
sertão como paisagem objetual da literatura. É como se, deixando o sociologismo e a
paisagem de lado, com Graciliano, a literatura regionalista tivesse conseguido, enfim, sua
autonomia; como se, em vez da comunidade/sociedade (dos realismos tradicionalista e crítico
de ‘30) ou do tipo-ideal de sertanejo (do romantismo e do naturalismo), o Homem em sua
recôndita essência fosse a única via possível de acesso à realidade do sertão. Talvez opere
aqui uma outra dicotomia, que, acoplada à clássica civilização x barbárie, opõe
homem/consciência x mundo/palco. Até mesmo porque se a verdade do mundo pairar sobre
47
―O espanto maior dos críticos e dos próprios romancistas da época relacionava-se com o fato de Graciliano
Ramos usar o coloquial brasileiro em nível literário (...). A estrutura de sua frase era, sem dúvida, clássica,
porque direta e despojada, mas nesta estrutura entrava o ‗sabor‘ de uma nova língua, de um coloquial brasileiro
facilmente identificável‖ (ASSIS BRASIL, 1969, p. 16).
48
Em artigo de 1961 sobre Graciliano, Anatol Rosenfeld declara que ― pela profundidade e força de sua arte,
atinge validade universal‖ (1994, p. 140).
54
(transcender) os modos de vida, se ela repousar em ―
validades universais‖ e se a consciência
humana for mesmo, como vem pretensamente sendo desde a Modernidade europeia, o
mecanismo privilegiado de reconhecimento e validação do universal, fica realmente difícil
manter o sertão nesse jogo, como campo de emergência dos possíveis, plano de consistência
fabricado pelas implicações mútuas de múltiplas agências... e só mesmo uma figura
autocentrada, que pudesse se dedicar autonomamente à contemplação de si mesma, poderia
fornecer um acesso legítimo a esse real. Se assim for, é de se lamentar que em Graciliano as
tentativas de autocentramento, o retorno à consciência pura e a contemplação de si mesmo dos
narradores alcancem seu termo não em satisfação ou alegria, mas inevitavelmente em
desilusão (Caetés), em nulidade (S. Bernardo), em morte (Angústia)...
Se, de fato, as obras de Graciliano – tanto em seu momento ficcional quanto no
memorialístico – privilegiam a consciência individual e suas vicissitudes, supomos que elas
não se esgotem aí. Neste ponto, o protagonismo da recepção crítica é decisivo para limar as
variações de leitura e fazer convergir uma abordagem uniformizante.
O próprio ―
fato‖ do regionalismo é, em grande parte, construção desta recepção
crítica. E não sem conflitos. Enquanto na década de ‘60, o realismo do romance de trinta é
considerado monoliticamente como expressão genuína da terra49, Albuquerque Jr. lembra as
ressalvas contundentes de críticos como Sérgio Milliet e Roberto Simões, ainda na década de
‘40, acerca da construção do romance engajado do nordeste, como escamoteamento da
realidade vivida (cf. 2011, pp.236-237). Para o historiador, a ideia de uma literatura regional
tradicionalista/modernista, enquanto tal, é um dispositivo do discurso de ―
sentido nacional‖
em vigor na primeira metade do século XX nos círculos letrados. É nessa época que ―a
literatura passa a ser vista como destinada a oferecer sentido às varias realidades do país; a
desvendar a essência do Brasil real (...), a análise das obras literárias passa[ndo] a ser feita por
meio de analogias com as características estereotipadas de cada espaço.‖ (Id., p. 123). Esta
geografização da crítica literária, que passa a atuar ―
no sentido de legitimar a vinculação da
produção literária a espaços que seriam ‗naturais‘ e fixos, a-históricos‖ (Id. Ibid.), retroage
sobre e retroalimenta a própria produção autoral: ―
estilisticamente a literatura do Nordeste, a
rigor, nunca existiu; ela é assim vista por uma identidade criada pela crítica e assumida pelos
próprios autores‖ (Id., p. 124. Grifo nosso).
49
―Somente o realismo criou um romance em que a ‗região‘ não era mais objeto pitoresco, visto sob a
perspectiva turístico-sentimental e distanciada do homem urbano intelectualizado, porém uma substância
própria, uma tonalidade inseparável de clima, paisagem, sociedade, cultura e língua‖ (ROSENFELD, 1994, p.
138-139).
55
Por isso, enfatizamos que a poderosa aliança entre a recepção/crítica e a historiografia
literária que fornece o lugar especial a Graciliano Ramos no cânone brasileiro reforça
continuamente este traço psicologizante de sua obra como sendo o principal caminho para a
fruição de seu texto, seu entendimento e sua interpretação. Por colocar de lado os outros
aspectos, escondendo possíveis divergências e desprezando possíveis matizes da obra, e
justamente pelo alinhamento com a secular matriz antropocêntrica de compreensão/ação sobre
o sertão, denominamos, para os fins desse trabalho, essa aliança canônica de super-
humanismo, no sentido em que ela destaca uma suposta substância de humanidade de seu
suposto fundo (seja comunitário, seja ―
natural‖) e a fortalece como univocidade do texto e do
mundo. O próximo capítulo analisará mais detidamente os traços de composição dessa matriz
de leitura e interpretação da obra de Graciliano, assim como tentará demonstrar seus limites e
abrir caminho para outras leituras que se insinuam desde outras posições. Como aí ficará mais
claro, para que essa máquina humanista continue funcionando é necessário isolar o caso de
Vidas secas. Opera-se um movimento similar ao destaque dado a Graciliano no contexto do
regionalismo de ‘30, porém dessa vez para isolar uma obra do quadro geral no qual se coloca
o autor50.
Pois bem, seguindo a pista desse interstício aberto pela crítica em relação a Vidas
secas e inspirados por diversos outros fatores que estão disseminados ao longo do texto, e
particularmente pelo que consta na introdução e na conclusão deste estudo, sugerimos a
possibilidade de efetuar uma leitura de Vidas secas que esteja atenta aos movimentos do texto
que propiciam (ou emergem em) uma experiência literária diferente daquela preconizada pela
matriz histórico-crítica super-humanista. A nosso ver, as alianças que fundamentam essa
matriz se abrigam num tipo de posicionamento sobre o sertão que se sedimentou durante a
história de ocupação e exploração colonial-modernizante que tende a visualizá-lo como mero
cenário fixo e passivo onde se desenrola a ação humana, ou como um lugar inerentemente
carente, onde a marca da falta atinge até mesmo, no âmbito da grande separação moderna, a
própria natureza. Não à toa a saída encontrada pela abordagem que instaura o regionalismo
(lembrando que essa abordagem crítica retorna, como aponta Albuquerque Jr., sobre as
próprias faturas autorais) para alcançar uma pretensa universalidade é aquela positividade
encontrada unicamente na humanidade restrita (em seus avatares convencionais: ora a
tradição, ora a consciência) e, portanto, e na esteira de sempre, na negação do sertão. No caso
de Graciliano, tal positividade (lógica) do propriamente humano é localizada na negatividade
50
A terceira e última sessão do próximo capítulo pretende fazer um levantamento sucinto dessa apreciação
particular de Vidas secas.
56
(existencialista), no solilóquio angustiado de seus personagens, na falta de saída, para onde se
em alguma parte a narrativa de Vidas secas converge, em outra parte, não. É nessa outra parte
que queremos prestar atenção.
Propomos, assim, que os aspectos que configuram a excepcionalidade de Vidas secas
no âmbito da obra de Graciliano abrem um caminho de leitura que contesta esse triunfo
humano-nihilista, até mesmo a contrapelo das consagradas intenções do autor.51 Para isso há
que se desvincular da maquinaria empreendida pelo arcabouço histórico-crítico, o sistema
canônico, cujos esquemas de individualização operam dentro e fora do texto, alinhando o
leitor às intenções do autor por meio do privilégio concedido ao ponto de vista do narrador.
Uma leitura outra-que-humanista que, se não nega o aspecto humanista constantemente
destacado nas obras, supõe, prefere e tenta compor uma outra série de alianças com o texto,
que, ao deslocar as posições usuais de leitor/narrador/intérprete, invoca outra experiência
possível, humanidades variantes, por assim dizer; uma leitura desde outro mapa espaço-
temporal, marcado, como é o nosso, por essa emergência do tempo que não é mais a de
revoluções messiânicas que, em nome de uma suposta excepcionalidade humana, relega a
terra a mero armazém de recursos naturais (as revoluções modernas, do capitalismo triunfante
ao socialismo real, isto é, o suposto socialismo); tempo em que as revoluções abaixo e à
esquerda, no dizer dos zapatistas, buscam frear os contornos cada vez mais nítidos desse
terrível rosto humano que se inscreve, com plástico e fumaça, nos oceanos e na atmosfera,
secando as vidas do sertão do mundo. Uma leitura, portanto, que rechaça o super-humanismo
e considera o sertão, a rexistência, os outros humanos, os humanos-outros, os extra-
humanos52.
Como ler, então, a presença do sertão em uma obra estigmatizada pelo signo da sua
falta? Que (tipos de) alianças são necessárias para verificar o alcance de uma experiência
literária de Vidas secas? Que outras presenças e forças podem/devem ser conjuradas neste
exercício?
51
Juan José Saer lembra que a experiência da leitura de narrações ficcionais excede a capacidade projetiva do
autor: ―Anarração outorga um sentido a essa experiência caótica que é a nossa [experiência] de todos os dias
(...). Mas este sentido não é discursivo, nem é exprimido de forma lógica e racional. O sentido é o da forma
mesma que o relato assume. E se esse sentido não se faz de todo evidente para aquele que o constrói,
seguramente se torna um pouco mais claro para o leitor. O livro, o relato, é uma espécie de objeto construído
capaz de emanar continuamente sentido‖ (SAER, 2002, s/p. Tradução e grifo nossos.)
52
Benjamin Abdala Jr. advoga a possibilidade de leituras localizadas espaço-temporalmente para a literatura de
Graciliano: ― os modos de articulação de sua escrita podem migrar, de acordo com as expectativas de seus
leitores, para outros campos, cujo conjunto impregna de criticidade contextos situacionais por eles vivenciados.‖
(ABDALA Jr., 2017, p. 8).
57
Mutirão: As alianças cosmopolíticas
Em primeiro lugar, pressupomos que o que quer que se passe no que estamos
chamando de experiência literária se dá numa tensão constante entre a expectativa de sentido
e a habitação de um espaço de sentido indeterminado. Em relação a uma obra canônica, que
ocupa um lugar privilegiado na ―
grande literatura nacional‖, o coeficiente de expectativa de
sentido é muito alto. Ele carrega consigo uma carga de sedimentos interpretativos e de
indicativos oficiais de sentido que quase obrigam a se carregar toda a mobília historiográfica
junto do próprio livro, para que se o entenda adequadamente, deixando pouco espaço para
aquela virtualidade que instaura o lugar do leitor no ato mesmo da leitura. Não é inexplicável
que a literatura apresentada como sistema e como História, da maneira como tem sido
veiculada no ensino oficial do Brasil, conquiste poucos adeptos. É que a maquinação própria
da experiência literária pressupõe uma medida simétrica entre o saber da literatura e o sabor
da leitura, para tomar de Roland Barthes essas expressões tão singelas (cf. BARTHES, 1987),
isto é, entre a precedência da obra e a presença do texto. O ―
acontecimento da formação de
sentido‖, no dizer de W. Iser, deriva do processo em que o texto produz efeitos; e se há uma
―
práxis de interpretação‖ ela diz mais respeito
à função que os textos desempenham em contextos, à comunicação, por
meio da qual os textos transmitem experiências que, apesar de não-
familiares, são contudo compreensíveis e à assimilação, através da qual se
evidenciam a ―pr efiguração da recepção‖ do texto, bem como as faculdades
e competências do leitor por ela estimuladas. (ISER, 1996, pp. 13-14)
Ou seja, trata-se de garantir a elasticidade entre o que se diz do texto e o que o texto
diz, e entre o que o texto diz a partir de certo lugar, por meio de certas formas e com efeitos
particulares.
O famoso emblema, quase que programático, de Guimarães Rosa, ressalta a resistência
que a literatura como experiência oferece à literatura como sistema: ―
A estória não quer ser
história. A estória, em rigor, deve ser contra a História‖. Enquanto a justaposição
interpretativa que se acumula sobre a literatura tende a enrijecê-la como sistema da ―
grande‖
literatura, da literatura ―
nacional‖, uma experiência literária diz respeito àquilo que Gilles
Deleuze e Felix Guattari chamaram de literatura menor. A estória se imiscui por dentro e
contra a História: ―
Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à
língua que uma minoria constrói numa língua maior (...), uma língua desterritorializada,
conveniente a estranhos usos menores; [nas] literaturas menores tudo é político (...) [e] tudo
toma uma valor coletivo‖ (DELEUZE & GUATTARI, 2002, pp. 38-40).
Ao que parece, o que o sistema literário nacional instituiu como ―
regionalismo‖
58
constitui-se, em seu avesso, de uma constelação de experimentos de escrita radicalmente
implicados na deriva irrefreável da língua-mãe, no ato irremediavelmente político que
perpassa todas as suas dimensões (desde a fraseologia do texto até a crítica da obra) e no
comprometimento com a confecção de uma instância suplementar do mundo – instância
suplementar que, em sua oposição ao ―
mundo‖ domesticado da fenomenologia, pode se
confundir com a própria terra – onde habita um povo cujo nome está, a cada vez, por ser
pronunciado. Seguimos a dica de Ursula Le Guin, para uma reconsideração das ficções
regionalistas, retirando-as da clausura realista e as aproximando das chamadas literaturas
fantásticas (ou de fantasia):
A ficção ‗regional‘, sempre vista com desdém pelos modernistas, é parte de
um movimento para fora, em direção ao não-inteiramente-humano; um
deslizamento da psicologia humana em direção àquilo que a contém, a
paisagem. (...) Eu arrisco uma afirmação não-definidora: a ficção realista é
atraída em direção ao antropocentrismo, a fantasia para fora. (LE GUIN,
2009, posição 384.).53
Se a própria obra de Graciliano Ramos está, desde o início, e com a anuência passiva
do autor, inscrita na literatura sistemática como busca incessante de uma essência humana que
só é na medida em que se nega a existir, Vidas secas pode conter virtualmente uma entrada
clandestina desde e para o sertão como espaço da experiência vital de sua literatura. E se o
sertão de Vidas secas é essa experiência vital de Fabiano, Sinhá Vitória, do Menino Mais
Velho, do Menino Mais Novo, de Baleia, mutuamente se inter-determinando e em
composição contínua com o cosmos, ela é, permanentemente, também ameaçada e oprimida
pela língua-maior do patrão e da polícia; pela promessa nunca cumprida da civilização, da
propriedade, da cidade; e pelo governo do povo (genitivo objetivo). É urgente, então,
posicionar-se na dupla experiência, de dor e de opressão, por um lado, mas também daquilo
que a menoridade da literatura e o ―
povo que falta‖ são vestígios – o sertão do texto, no texto,
onde estes vestígios ―
existem apenas como forças diabólicas por vir ou como forças
revolucionárias por construir.‖ (DELEUZE & GUATTARI, 2002, p. 41).
Por esse realinhamento de posições, realça-se, no texto, a modalidade política que o
sertão como modo-de-existência exige. Essa política se caracteriza por não mais permitir a
realização definitiva de uma agência unilateral que congrega em si todas as capacidades de
decisão e ação (ainda que se encontre, essa política, sequestrada e violentada por essa
agência) e por convocar a presença de todas as agências que se implicam mutuamente e
constantemente se inter-determinam. Não é de outra forma que a posição e a coloração de
53
Este texto de Ursula Le Guin e o anteriormente citado me foram sugeridos por Juliana Fausto, de quem copio a
tradução pessoal.
59
certos astros, os movimentos e rastros de certos bichos, o comportamento das nuvens nos
nichos das serras, sejam para Fabiano linguagem elaborada da terra, que demanda uma
responsividade na forma de preparação para o tempo por vir. No sertão, a territorialidade é
matéria estudada pelas nuvens.54
Estas agências virtuais extra-humanas realizam-se sustentando o mecanismo de
instituição/destituição de espaços, ora negociados, ora disputados, a todo instante – certame
em que se confrontam e se aliam gentes, agentes climáticos, bichos, vegetação, solo, cursos
d‘água. Onde um pacto com um narrador que é intérprete e uma crítica que é antropocêntrica
enxerga apenas falta de consciência (alienação) quando Fabiano vê a migração das aves de
arribação e pressente a seca (acusação, aliás, que deixa de ver as associações que o mesmo
Fabiano faz da seca com o poder do patrão), pode-se ver, por outro lado, a proposição de uma
cosmologia em que os movimentos de todos os seres exigem uma responsividade
horizontalizada. Responsividade que é impedida pelo sistema de poder – durante a fuga,
Fabiano permanece lembrando daquilo a que precisa, por força vital, responder (o cavalo-
amigo, o curral, o chiqueiro), mas não pode mais porque essas são coisas ―
alheias‖, isto é, de
propriedade privada (cf. 13, 124). Aquelas agências, incluindo a estritamente humana, são
efetuações políticas que se implicam umas às outras na constante instituição/destituição de
espaços. O sertão é a superfície que simultaneamente propicia e surge deste fluxo de
intermitências – inverno, estio; rios cheios, rios secos; árvores folhadas, árvores secas; bichos
ativos, bichos dormentes; tempo de parar, tempo de caminhar... Temporalidades em que os
mecanismos de produção-consumo dos seres são regulados e balanceados uns pelos outros e
uns diante dos outros. Trata-se de uma sintonia fina política que envolve – questionando-a e
colocando-a à prova – toda a organização do cosmos, uma política cósmica, cosmopolítica55.
O agenciamento cosmopolítico que caracteriza o modo-de-existência do sertão na
experiência literária de Vidas secas se aproxima dos termos com que Isabelle Stengers aborda
a questão em seu artigo The Cosmopolitical Proposal (STENGERS, 2005). Em vez de um
princípio teórico ou do resultado de uma pesquisa metódica, a cosmopolítica seria uma
proposta de redefinição dos espaços decisórios – da política, que passaria a considerar como
agentes políticos os entes excisados dos processos decisórios convencionais.
54
O antropólogo Gabriel Holliver está compondo uma pesquisa acerca dos regimes de territorialização de
comunidades camponesas no semiárido paraibano, nos quais a série de sentidos cósmico-políticos decorrentes da
observação das nuvens cumpre um papel singular. Cf. HOLLIVER, 2016.
55
V. nota de rodapé n. 24, p. 29.
60
(arrodeio)
Os eixos em que a "proposta cosmopolítica" se sustenta são a inseparabilidade entre
propostas políticas e cosmopolíticas e sua inerente vulnerabilidade, expostas que estão ―
a
todos os mal-entendidos‖ e à ―
captura teórica‖, sob o ―
risco de reproduzir (...) uma das
fraquezas da tradição [ocidental]‖, que é o de ―
transformar um tipo de prática da qual nos
orgulhamos em uma chave neutra universal, válida para todas [as práticas]‖ (Id., p. 995).
Esta rejeição de um modelo teórico totalizante requer não apenas que se prescinda de
uma ―
história universal‖ ou de um destino comum, mas também que se trabalhe contra essa
política universalizante, evitando cair na
tentação de inferir que a política deve ter como objetivo permitir que um
‗cosmos‘, um ‗bom mundo comum‘, exista – enquanto a ideia é
precisamente desacelerar a construção desse mundo comum, criando um
espaço de hesitação sobre o que significa dizer ‗bom‘. (Id. Ibid. Grifo
nosso.)
Como essa política do comum opera por meio de um ―
modo consensual no qual uma
situação é apresentada e por cujas emergências mobilizam-se o pensamento e a ação.‖ (Id., p.
994), a cosmopolítica de Stengers primeiro instaura um procedimento de questionamento
desse consenso. É no personagem conceitual do idiota, que Deleuze tomava emprestado de
Dostoievsky, que ela encontra essa disposição para resistir ao consenso, ―
desacelerar‖,
ressaltando sua contraposição ao ―
idiota‖ – e ao ―
idioma‖ – da Grécia clássica, modos de
exclusão da vida política baseada numa ―
forma de comunicação caracterizada por um ideal de
transparência e anonimato, isto é, de permutabilidade dos falantes‖ (Id. Ibid.). Em vez de
ratificar o campo político que opera por uma equivalência anônima dos participantes
(qualquer um representa qualquer outro), o gesto idiota da cosmopolítica institui uma
presença que demanda uma dúvida antecipatória em relação ao saber tido por consensual (Id.,
p. 995), funcionando segundo uma igualdade demarcada, por meio da qual os participantes
―
de forma alguma podem ser definidos como intercambiáveis, como se uma medida comum
permitisse que os interesses e os argumentos fossem sopesados entre eles‖ (Id., o. 1003).
A recusa radical da proposta cosmopolítica em considerar um mundo consensual, uma
comunidade absoluta, seja como ponto de partida seja como objetivo final da política,
estabelece sua distinção tanto do cosmopolitanismo moderno, baseado na História Universal e
na Paz Perpétua de Kant, como da política grega clássica, como sistematizada por Aristóteles.
Se o cosmos ―
não se refere a um projeto planejado para englobar‖ os cosmos particulares –
―
pois sempre é uma má ideia planejar algo para englobar aqueles que se recusam a ser
englobados por este algo‖ (Id., p. 995) – também deve ser distinguido do ―
mundo, tal como
61
uma tradição particular pode concebê-lo‖ (Id. Ibid.). Nem particular, nem universal, o cosmos
da proposta cosmopolítica parece se assentar sobre o equívoco entre divergências
no termo cosmopolítica, cosmos refere-se ao desconhecido, constituído por
fundamentais: ―
esses mundos múltiplos e divergentes, e às articulações de que estes poderiam, eventualmente,
ser capazes‖ (Id. Ibid.).
Rejeitando o modelo representativo de tomada de decisão – em cuja cena os únicos
papeis relevantes seriam os do expert, que autoriza uma decisão por meio do reconhecimento
consensual do seu saber inquestionável, e do diplomata, que provê ―
uma voz para aqueles que
(...) são ameaçados por uma decisão (...) removendo a anestesia produzida pela referência ao
progresso ou ao interesse geral‖ (Id. 1003) – a autora alerta que a proposta cosmopolítica
também ―nã
o tem nada a ver com o milagre das decisões que ‗colocam todos em acordo‘‖. Se,
por um lado, a proposta cosmopolítica evita o arbítrio despótico levantando a questão de
―
como projetar a cena política de forma a protegê-la ativamente da ficção representativa de
que ‗os humanos de boa vontade decidirão em nome do interesse geral‘?‖, por outro, também
coloca a questão de ―
como projetá-la de forma que o pensamento coletivo prossiga ‗na
presença dos‘ que, de outra forma, seriam susceptíveis de ser desqualificados‖ por não
contarem ativamente na construção do mundo comum (Id., p. 1002).
Associando a famosa exortação de O. Cromwell – ―
Irmãos, pelas entranhas de Cristo,
imploro-vos a que penseis ser possível que estejais errados‖ – à divisa do Bartleby de H.
I would prefer not to‖–, Stengers sugere que a insistência na desaceleração da
Melville – ―
ação política, em vez de implicar um consenso silencioso, abre a possibilidade de uma
indeterminação do acontecimento. Se, ao abrir um ―
interstício no solo das boas razões‖
políticas, o temor característico da primeira frase não é suficiente, pois ―
interstícios fecham-se
rapidamente‖, o ―
murmúrio do idiota‖ da segunda frase ―
adiciona a dimensão cosmopolítica
aos problemas‖: ―
Dar a essa insistência um nome, o cosmos, inventar a maneira como a
‗política‘ (...) constrói seus motivos legítimos, ‗na presença do‘ que permanece surdo a essa
legitimidade: essa é a proposta cosmopolítica.‖ (Id., p. 996).
O que está em jogo são, portanto, as ―
vítimas‖, aqueles que, mesmo afetados de modo
vital pelas decisões políticas, não querem ou não podem participar de seus processos – estes
na presença das‖ vítimas, não em seu nome, que ocorre a
alinhados à figura do idiota. É ―
desaceleração da política suscitada pelo gesto idiota da proposta cosmopolítica. É aqui que
reside o sentido mais profundo da opositividade [oposição?] entre a equivalência política e a
igualdade cosmopolítica:
62
Igualdade não significa que todos tenham a mesma palavra no assunto, mas
que todos têm de estar presentes de modo a tornar a decisão o mais difícil
possível, impedindo qualquer simplificação, qualquer diferenciação a priori
entre o que importa e o que não. (Id., p. 1003)
A questão principal parece ser, não a da participação (fundamento da política para
Aristóteles e sentido da política para Kant), mas a da presença, tal como na expressão ―
em
presença de‖, ―
diante de‖. O personagem conceitual do idiota parece ser, assim, ao mesmo
tempo, a persistente vítima da política universalizante e o protagonista da cosmopolítica. Sua
recusa ocasional em participar é coextensiva ao seu questionamento inconsequente. Como
vítima, demanda testemunhas, cujo papel é ―
fazê-las ‗presentes‘ [às vítimas], não falando em
seus nomes, mas carregando isso que pode estar sendo ameaçado por um assunto‖ para o qual,
mesmo que diga respeito às suas vidas, ―e
las não têm nada a contribuir‖. (Id. Ibid.)
A emergência insistente do idiota/vítima instaura um horizonte de indeterminação no
movimento constante que, quando questiona inconsequentemente, exige uma redistribuição
dos fundamentos do consenso político. Isso fica mais claro por meio de outra ferramenta
conceitual que Stengers propõe, a ecologia política. Enquanto politização [mise en politique]
de práticas e saberes positivos localizados, a ecologia política opera segundo um paradigma
denominado pela autora de eto-ecológico, isto é, a aliança indissociável entre a modificação
do espaço/ambiente (oikos) e a consequente modificação indeterminada do comportamento
(ethos) dos seres que habitam esse espaço/ambiente. Essa indeterminação é justamente o
fundamento da ação do idiota cosmopolítico; ele ―
não nega o conhecimento articulado, não o
denuncia como mentira. Os constrangimentos propostos são ‗idiotas‘‖ no sentido de
demonstrar não haver ―
árbitro capaz de julgar a validade‖ de um comportamento segundo
apenas um dispositivo ambiental pré-determinado. (Id., p. 997), ou seja, demonstrar que toda
transcendência política – seja uma ontologia consensual que justifique a participação, seja um
projeto histórico de universalização – é parte de um dispositivo fundante (ecológico, no
sentido de ambiental) que, colocado na presença de suas vítimas, perde seu sentido
totalizante. Se ―
as chamadas ciências modernas parecem ser uma forma de responder à
questão política por excelência: quem pode falar do que, ser o porta-voz do que, representar o
que?‖ (Id., p. 995), ou seja, de colocar em questão a constituição estética de que fala J.
Rancière, é a ecologia política que oferece a oportunidade ao idiota de instaurar o interstício
cosmopolítico.
O cosmos da cosmopolítica parece ser, assim, da ordem antes do acontecimento –
provocado pela equivocidade da emergência de mundos irreconciliavelmente divergentes, por
meio da insistência do idiota – do que de um dado ontológico;
63
Ele [o cosmos da cosmopolítica] não tem representante, ninguém fala em seu
nome (...). Seu modo de existência se reflete em todos os modos artificiais a
serem criados, cuja eficácia é expor aqueles que têm que decidir, forçá-los a
sentir aquele susto que eu associei ao grito de Cromwell. Em suma, significa
abrir a possibilidade de se responder ao murmúrio do idiota não pela
definição ‗do que é mais importante‘, mas pela desaceleração sem a qual não
pode haver criação. (Id., p. 1003).
A cosmopolítica, neste sentido, não se referiria ao resgate de um cosmos, no sentido
forte empregado por Stengers, que seria preexistente a duas quaisquer formas de política. Ela
não se opõe à política, portanto. Ela a atravessa. O cosmos da cosmopolítica é instaurado a
cada instante, porque, justamente, toda decisão política implica suas vítimas. A instauração do
cosmos é, justamente, a presença incontornável dessas vítimas e sua insistência em existir, sua
rexistência.
(de volta)
O que está implicado numa experiência literária de Vidas secas são presenças
incontornáveis, nessa outra superfície narrativa, na forma de acontecimentos antes que de
individualidades fechadas em si mesmas. É diante desses atravessamentos-acontecimentos
que os personagens equivocam a posição do narrador e do leitor, idiotizam-se e idiotizam-nos
(no sentido empregado por Stengers). A perturbação mais pungente do romance, nesse caso, é
a inseparabilidade textual entre a instância político-intelectual que pretende universalizar a
narrativa – o narrador – e a insurgência cosmopolítica que ali insiste: Fabiano diante da
polícia e diante de Baleia – Baleia diante de Fabiano e diante da família – Menino Mais Novo
diante de Sinhá Vitória e diante do serrote dos preás – o leitor diante do narrador e diante do
sertão.
É outra vez Deleuze e Guattari que fornecem uma ferramenta conceitual conveniente
para compreendermos essa política inerentemente cósmica durante Vidas secas. O que se
passa como experiência literária no romance talvez seja a resistência oferecida por um
segundo plano de composição da obra, uma segunda camada na superfície do texto (como a
seiva dérmica dos rios intermitentes do semiárido), que a todo momento tensiona os sentidos
impostos pela primeira. Há um ―
plano de organização e desenvolvimento‖, gerenciado pelo
narrador e exigindo um rígido posicionamento de leitura em favor da centralização da
consciência narrativa por ele mediada (a sintaxe e o sentido da narração), por meio da qual o
narrador representa para o leitor os sentimentos e as percepções dos personagens; e há um
outro plano que o atravessa obliquamente e com ele disputa a superfície da narrativa, um
―
plano de consistência‖ cujos agenciamentos e conexões se realizam fora do domínio do
64
narrador e constituem ―
velocidades‖ e ―
afectos intensivos‖, onde a matéria narrada vacila
diante do deslize de padrões fugidios de individuação – individualidades que emergem mais
como cacimbas do que como barragens.56 Neste sentido, a um narrador que enxerga na
promessa de individualidades fechadas para os personagens a única forma de lhes prover a
dignidade humana, se contrapõe uma multiplicidade de acontecimentos, conjuntos de
afecções e percepções, ameaçados a todo instante pela incidência fulminante do plano do
narrador – e sendo, frequentemente, por este capturados.57 O simultâneo reconhecimento e
estranhamento entre Baleia e Fabiano, o equívoco entre as linguagens (sintaxe) e entre as
categorias de homem e bicho (sentido) é um exemplo desses tipos de acontecimentos
precipitados no outro plano.
Os dois planos não se cruzam da mesma forma. O plano do narrador é o ―
plano da
autoridade‖ presente em todo o romance (organização/desenvolvimento). Ele se realiza por
uma espécie de controle que se distingue em grau, mas não em natureza, da propriedade da
fazenda, do governo que cobra impostos, da polícia que prende, do homem que mata. Se se
comporta, no dizer de Antônio Candido, como ―
procurador dos pobres‖, também tende a
efetivar-se como universal e unívoco, como a voz que diz a verdade que os personagens
―
alienados‖ não conseguem dizer.
Se no plano da autoridade as subjetividades são capturadas e reduzidas a unidades
cujas identidades são simultaneamente prometidas e negadas (o sertão reduzido a propriedade
privada; o camponês reduzido a cidadão, isto é, alguém que deve receber sua identidade do
governo, que, ao contrário, o achaca e o prende; os sonhos e divagações dos meninos
reduzidos a importunações e perturbações da ordem; a cachorra pensante reduzida a
cadáver...), no plano do sertão o que está em jogo não é uma dignidade humana conquistada
sobre o domínio da natureza, mas justamente o questionamento do estatuto de gente e de
56
Sobre plano de consistência em oposição a plano de organização e de desenvolvimento, Deleuze e Guattari
escrevem nos Mil Platôs: ― O plano de consistência ou de composição (planômeno) se opõe ao plano de
organização e de desenvolvimento. A organização e o desenvolvimento dizem respeito à forma e à substância: ao
mesmo tempo desenvolvimento da forma e formação de substância ou de sujeito. Mas o plano de consistência
ignora a substância e a forma: as hecceidades, que se inscrevem nesse plano são precisamente modos de
individuação que não procedem pela forma nem pelo sujeito. O plano consiste, abstratamente mas de modo real,
nas relações de velocidade e de lentidão entre elementos não formados, e nas decomposições de
afectos intensivos correspondentes ("longitude" e "latitude" do plano). Num segundo sentido, a consistência
reúne concretamente os heterogêneos, os disparates enquanto tais: garante a consolidação dos
conjuntos vagos, isto é, das multiplicidades do tipo rizoma. Com efeito, procedendo por consolidação, a
consistência necessariamente age no meio, pelo meio, e se opõe a todo plano de princípio ou de finalidade‖
(DELEUZE & GUATTARI, 1997, pp. 220-221)
57
Ainda Deleuze e Guattari sobre os aparelhos de captura: ― o plano de consistência que se constitui, mesmo
pedaço por pedaço, ou então que se transforma em plano de organização e de dominação. Que haja comunicação
entre as duas linhas ou os dois planos, que cada um se nutra do outro, empreste do outro, é algo que se percebe
constantemente.‖ (1997, p. 95).
65
agente possível e o estabelecimento de negociações, conflitos e demandas políticas (alianças)
em diferentes escalas: Baleia fareja a caça, Sinhá Vitória prepara a trempe, Baleia reparte a
caça, Sinhá Vitória lambe o focinho ensanguentado de Baleia. No plano do sertão o que
garante a individuação é um deslize metonímico das formas, expresso na repetição
performática com que os personagens, até pela interpretação do narrador, imitam-se.
O plano do sertão (consistência) se opõe ao plano da autoridade (desenvolvimento),
tensiona-o, coloca-se diante dele (a vítima) e age diante dele (o idiota) – assim Baleia
questiona a humano-bichidade de Fabiano, assim Baleia não cessa de estar morrendo. Tende a
efetivar-se como cosmografia que transforma os valores de todo o conjunto de procedimentos,
individualidades e acontecimentos da história (a mudança, a seca, a fazenda, a figura do pai, a
família, a cidade), encontrando a todo momento saídas de dentro do sequestro do plano da
autoridade, seja pela afirmação da indeterminação transespecífica (ser cachorro e ser gente
não são a mesma coisa no plano do sertão e no plano da autoridade), seja pela escolha em
confiar na precipitação dos fluxos do mundo (os rastros, a língua dos bichos, a arribação das
aves) em vez de acreditar na lógica da autoridade (as contas do patrão, as leis dos soldados, os
escritos de seu Tomás da Bolandeira) – e mais ainda, usando aqueles como recurso
antecipatório a estes: as aves que migram são pestes porque agouram uma mudança de
comportamento do patrão, a expulsão da fazenda. Trata-se, como bem sonhou Fabiano, de
saídas concretas (isto é, abstratamente reais), como estar em casa e não na prisão.
De onde vem esse plano do sertão? Do próprio sertão como modo de existência. Não
passou despercebido pela crítica, o dilema ético que incomoda Graciliano acerca da
possibilidade e das maneiras adequadas de o intelectual engajado representar figuras
subalternas.58 Sendo a matéria da ficção de Graciliano Ramos relacionada à negatividade da
―
essência humana‖ (o pessimismo) pesquisada no conflito de classes do Nordeste do começo
do século XX, e sendo os seus três primeiros romances ambientados na ―
vida interior‖ de três
homens representantes de segmentos privilegiados da população (um letrado, outro
latifundiário e outro herdeiro da velha aristocracia) não é de pequena significação que o
romance onde se apresentam tipos da classe mais inferior prescinda da ambientação
exclusivamente ―
interior‖ de um personagem e apresente uma tensão constante entre o que
significa ―
interior‖ e ―
exterior‖, consciência e corpo, desde os pontos de vista irreconciliáveis
do narrador/representante e do sertão/presente. O drama ético de Graciliano, no caso de Vidas
secas, problematiza não apenas a representação de indivíduos mas a validade de um modo de
58
Destacamos o extenso estudo de RIBEIRO (2016) e o excepcional artigo de PACHECO (2014), no qual nos
deteremos no próximo capítulo.
66
vida da própria matéria narrada; não só a representação de indivíduos, mas a presentificação
de outro modo de individuação.
Não por outro motivo, talvez, as formas do pessimismo característico de Graciliano
em Vidas secas alcançam uma sofisticação dialética definitiva. O trágico não se apresenta
como inexorável, mas como exercício de poder, sequestro e captura em série das experiências
cosmopolíticas pelo plano da autoridade. É o poder, que promete a liberdade mas fecha todas
as saídas, que é o fundamento da angústia. Poder que se reproduz, como uma peste, por todas
as instâncias da obra: o Fabiano que é oprimido pelo soldado quer ser autoridade em sua
família; Sinhá Vitória manda o pirralho calar seu questionamento; o Menino Mais Velho
zomba do Menino Mais Novo; o narrador exprime-se em lugar dos personagens; a cidade para
onde supostamente iriam, no final, é um lugar onde eles ficarão ―
presos‖... todos, de repente,
se engajam para subsumir o plano do sertão para dentro do universal da autoridade, sob a
promessa de satisfação. Os projetos de individuação pelo plano do poder são irresistíveis e
inexoravelmente fracassados: Fabiano não consegue se expressar como exigem o patrão e o
governo (não consegue ser ―
homem‖), Sinhá Vitória não consegue calçar os sapatos
civilizados de gente da cidade (nem consegue a cama de seu Tomás da Bolandeira); o Menino
Mais Novo não consegue alcançar a desenvoltura do pai sobre o cavalo; o Menino Mais
Velho não consegue dominar o inferno; Baleia não consegue sobreviver. Culpa da terra
indócil do sertão ou do que sobre ela se abate na forma do poder?
67
2. HOMEM: SUPER-, INFRA-
68
Não surpreende que isto seja dito por José Lins do Rego, um escritor que se
distanciara do amigo comunista devido a questões de discordância estratégica. O humanismo
era o fundo comum sobre o qual se desenrolaram as disputas ideológicas drasticamente
polarizadas que marcaram o ambiente literário carioca entre as décadas de ‘30 e ‘50, o que
não só não poderia deixar de informar a recepção crítica da obra de Graciliano, como seria sua
pedra fundamental. Por isso, Wilson Martins, crítico severo do engajamento político em
literatura, destaca que ―
sempre é o homem que o sr. Graciliano Ramos tem em vista‖, que a
penetração profunda no ―
terreno alucinatório que é o homem dentro de si mesmo (...) é o que
salva a obra do Sr. Graciliano Ramos do perigo da mediocrização que hoje se observa em
nossa literatura entre os romancistas do ‗social‘‖; e o que lhe garante o posto de ―
maior
romancista brasileiro de seu tempo‖ é ter ―
mais convincentemente atingido a essência mesma
do homem e de sua alma‖ (MARTINS, 1948, p. 35)
Para Martins, Graciliano teria atingido essa essência, distanciando-se, no exercício
literário, de suas preferências políticas e ilustrando ali o drama próprio da humanidade que é a
moralidade: ―
é o problema do Bem e do Mal o que atormenta o escritor alagoano, e dito isto
terei definido toda a sua obra‖ (p. 39). Graciliano teria sabido, por este viés, determinar o
dilema interior que conduziria as decisões individuais perante os outros homens e chegar ao
âmago concupiscente da alma humana: ―
como um moralista, o sr. Graciliano Ramos sabe que
o mal reside principalmente no homem‖ (p. 40).
Do lado oposto do espectro ideológico, a leitura marxista ortodoxa também destaca o
humanismo na obra de Graciliano. Em extenso artigo, elaborado segundo o método histórico-
dialético aplicado à tentativa de compreender o lugar (da história) do Brasil no percurso
universal da revolução, Carlos Nelson Coutinho exclama que ―
a obra romanesca de
Graciliano Ramos abarca o inteiro processo de formação da realidade brasileira
contemporânea, em suas íntimas e essenciais determinações‖ (COUTINHO, 1967, p. 73).
Dadas as defasagens do Brasil (próprias, aliás, da ―
generalidade dos países coloniais ou
dependentes‖) em relação ao percurso europeu, que rompera com a ordem feudal baseando-se
num acervo de ideais humanistas e cuja posterior desilusão servira de lastro para as obras do
realismo francês do século XIX, torna-se, segundo Coutinho, ―
extremamente problemática,
entre nós, a criação de autênticas obras épicas e realistas‖ (p. 76). A esta altura, o Brasil
seguia ingenuamente o curso decadente da literatura europeia que, devido ao ―
triunfo da
burguesia sobre o proletariado em 1848 e com a intensiva trivialização ou abandono do
humanismo clássico‖, tendia ―
ao naturalismo, à mera descrição do ‗pequeno mundo‘‖ (p. 76).
69
O que Coutinho destaca em Graciliano é o seu ―
profundo realismo‖, isto é, sua competência,
―
sem exageros românticos ou reduções naturalistas‖, em figurar o ―
novo‖ que surgia no meio
da bagunça sem método do estágio do capitalismo brasileiro (Id., p. 77). O realismo de
Graciliano, segundo Coutinho, ao promover a ―
fusão entre indivíduo e classe‖, conseguiu
chegar ao ―
essencial do gênero romanesco‖, a saber, servir de síntese ficcional à ―
contradição
entre um mundo alienado e indivíduos inconformados que lutam contra a alienação‖. É
sintomático que ao fazer um desenho dos traços contraditórios do capitalismo, Coutinho
elenque, como contraponto a ―
uma sociedade rigidamente individualizada, dilacerada pela
luta de todos contra todos‖, fruto do capitalismo, ―
a superação da mediocridade da vida rural‖
e ―
o domínio e a conquista da natureza‖ entre aqueles traços do advento do mercado que
representaram ―
um formidável estímulo às potencialidades criadoras do homem‖. E é, para
ele, justamente nessa contradição que reside a estrutura e o sentido do romance de Graciliano
(p. 77-79).
Aproximar aqui a crítica de Wilson Martins e a de Carlos Nelson Coutinho, antes de
reduzi-las, tem para nós o valor de demonstrar que mesmo entre dois exemplos
simetricamente opostos de método e intenção – um abertamente conservador e outro
abertamente revolucionário – existe um plano idealista de organização da crítica que lhes é
comum, a saber, a concepção de que a literatura de Graciliano fala desde e sobre uma ideia de
Homem, de Humanidade. O que parece estar em jogo, neste caso, é justamente qual ideia de
humanidade subjaz às obras, quem é ―
O Homem‖ que, além de sofrer e/ou narrar as estórias,
está nas entrelinhas dos romances.
Para Wilson Martins, a tragédia própria do humano que ali se encontra ilustrada é a
teodiceia clássica, o problema da existência do mal e da concupiscência inerente ao humano:
―
O romance do sr. Graciliano Ramos coloca justamente à nossa frente, com uma insistência
que não sei disfarçar, o problema moral, no mais amplo sentido da palavra, o problema do
Homem, muito mais ontológico que político‖ (MARTINS, 1948, p. 41). Este ―
mais
ontológico que político‖, além de efeito retórico, serve para marcar posição frente à crítica
social das obras sociologicamente engajadas, típicas do regionalismo modernista. Martins
enxerga na obra de Graciliano – comunista militante – um recuo do engajamento, uma
concepção, supõe-se, filosoficamente mais ampla, que diz respeito ao também suposto ser
perene, universal do Homem.
Ao Homem como individualidade moral se opõe (ao menos, em aparência) o
humanismo crítico de Coutinho, para quem o que interessa nos romances de Graciliano ―
não é
70
a exemplificação de teses e concepções apriorísticas: é a narração do destino de homens
concretos, socialmente determinados, vivendo em uma realidade concreta‖ (COUTINHO,
1967, p. 74). A crítica, neste caso, também é duplamente endereçada, dirigindo-se primeiro
aos pressupostos universalizantes do homem – o bom-mocismo moralista – e depois ao texto
mesmo da obra. Daí os ―
homens socialmente determinados‖, isto é, homens cuja humanidade
emerge historicamente, em vez de constituída divinamente antes de sua existência atual.
Se este humanismo crítico é certamente mais sofisticado que o humanismo moral,
enreda-se em outro tipo de engrenagens metódicas que emperram o funcionamento de uma
experiência concreta da literatura de Graciliano. Nos dois casos, a crítica toma a literatura de
Graciliano mais como anagogia do que como mistagogia, isto é, menos como experiência
literária e mais como experimento alegórico, servindo a literatura como forma de representar,
positiva ou negativamente, uma ideia logicamente anterior e prevalente de homem e
humanidade. Seja desde o grave aspecto das determinações da ―
realidade econômica, isto é, o
homem concreto‖ (p. 104), figurando uma realidade que clama pela modificação da sociedade
em vista da reforma do homem, seja, ao contrário, desde uma dimensão carola da moralidade,
sob a qual estaria implícito o pressuposto de que ―
somente será possível salvar a sociedade no
dia em que pudermos reformar o homem‖ (MARTINS, 1948, p. 40), a crítica deposita sobre a
obra de Graciliano um volumoso sedimento que apela unanimemente a um parâmetro cujo
modelo, se não pode ser negado nem pela simples leitura de suas obras, nem pelo recurso às
opiniões e inclinações interpretativas do próprio autor, deixou por herança uma explicação
monolítica que arrisca, a nosso ver, empalidecer a riqueza vibrante que pode surgir de outras
perspectivas.
Um dos aspectos mais contundentes deste humanismo comum da crítica à obra de
Graciliano é a negatividade, o aspecto não-realizado da natureza humana, uma espécie de
substância constitutivamente mutilada do homem, em que aquilo que ele é aparece como
impossível. Nesse sentido, o homem prefigurado por Graciliano está curvado ora pelo peso
das exigências da consciência moral ora pelo sistema ideológico que lhe impede de aceder a
uma existência emancipada. As situações psicológicas de Luís da Silva, de Angústia, e Paulo
Honório, de S. Bernardo, segundo W. Martins, fazem-nos convergir e ―
encontrar-se, por fim,
na questão essencial (...). O Mal dominou em aparência a vida do homem simplesmente
porque este se encontra desorientado no meio da rede de confusões que a si mesmo estendeu‖
(MARTINS, 1948, p. 40). Esta visada negativa é, para o crítico, um ―
sinal do moralista, a
contraprova de suas preocupações diretamente orientadas no sentido do segredo último da
71
vida humana.‖ Em Graciliano, a restrita consciência moral do indivíduo seria o alvo do seu
juízo sobre a humanidade, de onde decorreriam as estruturas injustas da sociedade:
Dessa confusão moral decorrem todos os fenômenos que aparentemente se
mostram de funda importância para a interpretação da sociedade
contemporânea e para o diagnóstico dos seus males e a fixação dos seus
remédios. Não é a sociedade que devemos reformar, mas o homem (p. 40).
Já C. N. Coutinho prefere observar que ―
a universalidade de Graciliano é uma
universalidade concreta, ela se alimenta e vive da singularidade, da temporalidade social e
histórica‖ (COUTINHO, 1967, p. 73). Neste caso, Graciliano surge como a ―
figura mais alta e
representativa‖ da literatura nordestina da geração de ‗30, ―
o movimento literário mais
profundamente realista da história de nossa literatura‖ (p. 74), que teria narrado a crise
histórica por meio ―
da região mais típica do Brasil [o Nordeste], na medida em que aí as
contradições eram mais clássicas (no sentido de Marx)‖ (p. 74). É a realidade concreta do
Nordeste, tal como presente nas obras de Graciliano, que importaria para compreender as
contradições que operam no interior de sua literatura. Para Coutinho, não é o homem em sua
unidade ética formal que resultaria da escritura de Graciliano; pelo contrário, é por compor
seus romances desde uma realidade social contraditória que o escritor teria conseguido
expressar com realismo o seu homem. Aqui, em vez da consciência individual cerrada em si
mesma, é o homem originalmente fraturado pela realidade inerentemente contraditória que se
apresenta. E, no entanto, este homem converge para a mesma situação indeterminada,
considerada nociva, em que se encontra o homem-moral da leitura de Martins:
Representando uma realidade fragmentada (a nossa sociedade semicolonial,
penetrada por elementos capitalistas), que desconhece um ―
grande mundo‖
comunitário, Graciliano representa também as lutas individuais por
descobrir, no interior deste mundo alienado ou em oposição a ele, um
sentido para a vida (p. 78).
Apelando, assim, seja para a profundidade monolítica da consciência moral, seja para
a constituição dialética do homem social, trata-se de recuperar positivamente o motivo
fundamental do humanismo de Graciliano, o sentido do Homem subjacente às incapacidades
de seus personagens em alcançá-lo – a ―
autêntica vida humana comunitária‖, de que a
estagnação social do Nordeste havia separado os homens concretos (COUTINHO, 1967, p.
75), ou aquilo que ―
a corrupção que se apossa dos homens‖ e ―
o infortúnio da indistinção
entre o Mal e o Bem‖ haviam obliterado, a saber, a ―
essência mesma do homem‖ (MARTINS,
1948, p. 45).
72
2.2 Pessimismo e Vida Interior
A ―
essência mesma do homem‖, que Graciliano teria atingido negativamente,
consolidou-se como o fundamento das leituras, reflexões e pesquisas acerca de sua obra, por
meio do reforço de uma série de aspectos parciais do mesmo paradigma humanista. Algo
notado por Franklin de Oliveira, já em 1975:
Graciliano pagou alto preço às abordagens unilaterais de sua obra. Por conta
das análises centradas unicamente no psicologismo e no sociologismo,
construíram-se em torno do grande escritor os mitos do ―p essimismo
radical‖ e no ―n
egativismo orgânico‖ (OLIVEIRA, 1975, p. 312).
O primeiro e mais destacado daqueles aspectos, por sua onipresença, é a visão de
mundo fatalista e pessimista, impressa em seus personagens-narradores e transparente em
seus escritos não-ficcionais. Não por acaso, consta na abertura de uma coletânea de sua
fortuna crítica a afirmação de Sônia Brayner, em tom de alerta, de que ―
o homem e o mundo
de Graciliano Ramos expressam uma visão trágica do ser‖ (BRAYNER, 1977, p. 12). Em seu
estudo minucioso acerca de Angústia, ao mesmo tempo que admite haver um elemento
decisivo de moralidade na composição dos personagens de Graciliano, ela remete esse sistema
moral ao complexo multifacetado da realidade em que eles se encontram. Esta característica
aproximaria Graciliano do que Brayner chama de ―
romance trágico‖ (assim, sempre entre
aspas), a forma segundo a qual o romance teria roubado, no século XX, a tragicidade do teatro
e, ao ―
buscar a significação do homem de forma explicitamente histórico-social‖, teria
rebaixado as grandezas míticas da tragédia e conquistado gradativamente o cotidiano para
dentro da narrativa, constituindo assim simultaneamente um herói-comum (não um semideus)
e um sistema moral que não se resume à sua consciência egóica unitária:
O personagem do ― romance trágico‖ não tem o domínio do engano que
comete, que o envolve e encerra definitivamente. A culpabilidade remonta a
uma origem menos impenetrável que complexa, em que aos fatores
psicoculturais juntam-se os socioeconômicos (BRAYNER, 1973, p. 205).
O ―
romance trágico‖, cujo epítome, para Brayner, reside no personagem kafkiano,
revela-se um excelente dispositivo conceitual para circunscrever a inescapável agudeza do
pessimismo de Graciliano. É, aliás, o resultado a que o estudo de Brayner chega – em
Angústia, Graciliano é plenamente fiel ao ―
romance trágico‖, por eliminar, através de sutis
entrelaçamentos de motivos psicológicos e sociais, as possibilidades de completude daquilo
que se anuncia como destino humano:
A visão trágica e pessimista que constrói o sistema de valores da visão de
mundo de Graciliano generaliza o drama individual até o âmbito das relações
sociais, desvendando-as como aniquiladoras das possibilidades humanas (p.
215).
73
Ao também retirar o drama ético dos personagens de Graciliano do solipsismo da
consciência moral, Otto Maria Carpeaux entende que ele não mobiliza apenas as estruturas
socioeconômicas; indo mais além, esse drama traria em si o mundo inteiro, a subsistência
daquilo que existe, transformando o que seria um enredo puramente psicológico em uma
trama escatológica. Isto se dá em dois sentidos, segundo Carpeaux. O primeiro é a
transcendência do mundo de Graciliano; ―
a realidade, nos romances de Graciliano Ramos,
não é deste mundo. É uma realidade diferente (...). É um mundo fechado em si mesmo‖
(CARPEAUX, 1943, p. 30). Esta realidade suplementar, como que uma bolha de hiper-
realidade, que Carpeaux diz ser o mundo do sonho, do devaneio e da alucinação, seria obra do
demiurgo-narrador, engendrada unicamente para absorver todo o mal e, neste passo, ser
destruído. E esta catástrofe necessária é o segundo sentido da trama escatológica; o mundo
fechado em que se encontram encerrados os personagens de Graciliano conteria toda a
experiência do tenebroso e do impossível, sendo imprescindível conjurar sua destruição:
Todos os romances de Graciliano Ramos – e este é o sentido do seu
experimentar – são tentativas de destruição: tentativas de ―a
cabar com a
minha memória‖, tentativas de dissolver as recordações pelos ― estranhos
hiatos‖ dum sonho angustiado (p. 32).
Bem mais elaborada do que um mero discurso ―
conscientizante‖, ao apelar
simultaneamente para o sonho e para um mundo suplementar (algo de que talvez a expressão
freudiana ―
a outra cena‖ dê conta), a leitura escatológica que Carpeaux faz de Graciliano
proporciona um outro tipo de pessimismo, por meio do qual menos se acusa uma realidade
exterior e mais se habita um certo modo de vida; e por esta via os personagens de Graciliano
seriam variações do mesmo universal do qual participam os personagens de Dostoievski –
Luís da Silva, de Angústia, habitaria, assim, um porão existencial similar àquele onde se
guardam as memórias do subsolo. Para estas obras, segundo Carpeaux, não serviriam leituras
que as trancafiassem dentro de sistemas teóricos pré-estabelecidos, fruto, ao que parece, de
um comportamento reativo diante da imprudência pessimista:
Toda literatura pessimista encontra uma resistência fanática; leitores e
críticos não gostam disso. Sentem vagamente que arte e pessimismo se
contradizem. Mas em vez de estudarem esteticamente a possível contradição,
entrincheiram-se em regiões fora da arte, na filosofia, na ética, para
bombardear o romancista com a censura de ―pouc a generosidade‖ ou de
niilismo insaudável (...). O pessimismo não é uma moral nem uma filosofia.
É um estado de alma. É preciso esboçar uma psicologia do pessimismo (p.
29).
Ora, tendo sido publicado ainda na década de ‘40, o texto de Carpeaux parece
antecipar-se em alertar para aquela modalidade de leitura da obra de Graciliano que se
74
tornaria hegemônica. A ―
resistência fanática‖ ao pessimismo transformou-se numa calorosa
recepção, ainda que frequentemente ―
entrincheirada‖ na filosofia ou na ética (como é o caso
do padrão humanista acima levantado). Até mesmo porque se as ―
regiões fora da arte‖ que
Carpeaux denuncia podem asfixiar a própria experiência literária, o esboço de ―
uma
psicologia do pessimismo‖ que ele solicita, para fazer jus ao seu reclame de autonomia da
literatura, se confundiria, a rigor, com as obras mesmas que ele analisa.
De fato, a psicologia é o segundo aspecto importante do paradigma humanista da
crítica a Graciliano. A visão de mundo pessimista, enquanto imagem do pensamento vigente
nas obras, é veiculada nos romances por meio de consciências atormentadas. A psicologia do
pessimismo, reivindicada por Carpeaux, coincide exatamente, dentro do paradigma
humanista, com a obra de Graciliano; ela, a obra, já é a psicologia do pessimismo – a
introspecção como sintoma da subjetividade, a predominância da voz interior como índice do
espírito, a aposta na força humana por meio da substituição do regime paisagístico do
regionalismo de então pela paisagem da consciência... O que Álvaro Lins chama de ―
excesso
de introspecção‖ (LINS, 1947, p. 152) e Gilberto Freyre, de ―
antitropicalismo de palavra, da
expressão, da realização‖ (apud ALBUQUERQUE Jr, 2011, p. 226) podem ser exemplos da
―
reação fanática‖ caracterizada por Carpeaux. Mas esse tipo de reação será menos
condenatória do que declaratória na crítica subsequente, sendo este aspecto do recolhimento
destacado como método e estilo peculiares de Graciliano, o que leva um historiador da
literatura brasileira a afirmar que ―
Graciliano Ramos é o autor brasileiro moderno com
maiores tendências para o romance introspectivo, o romance interior‖ (MONTENEGRO,
1954, p. 215).
O destaque à vida interior própria dos narradores dos romances de Graciliano se torna
ainda mais realçado quando comparado com a prevalência da paisagem na literatura
regionalista que emergira na esteira do modernismo. Como, nesse contexto, a valorização
estratégica do panorama natural havia servido, contraditoriamente, tanto como elemento de
conexão entre as vanguardas modernistas e os regionalismos emergentes quanto como
marcação identitária destes diante daquelas, a vibração grave e introvertida da narração de
Graciliano estremeceu a crítica porque ao mesmo tempo que desviava do padrão estilístico
previsto, não deixava de ser perpassada pelas questões mais urgentes do regionalismo.
Segundo o apanhado crítico feito por Assis Brasil em 1969, Graciliano ―
troca a natureza
paisagística pela natureza humana‖ (ASSIS BRASIL, 1969, p. 17) e cede a ―
certo de tipo de
75
‗naturalismo‘ tendendo para a introspecção‖ (p. 19).59
Sendo a vida interior o correspondente formal do tema do pessimismo filosófico, a
coincidência entre ocorrências vividas por Graciliano, expostas em suas obras memorialísticas
posteriores, e experiências narradas pelos protagonistas dos romances torna-se uma
ferramenta conveniente para o paradigma humanista da crítica. Traçando uma linha de
continuidade entre os momentos ficcional e autobiográfico da obra de Graciliano o paradigma
encontra uma plausibilidade quase incontestável. Os narradores ficcionais introspectivos dos
primeiros romances coincidem, formalmente, com os narradores-escritores de Infância e
Memórias do Cárcere, e o recurso aos aspectos biográficos de Graciliano se torna um lugar-
comum para explicar acontecimentos cruciais nos romances e interpretar alguns de seus
aspectos estilísticos e filosóficos.
O estudioso alemão H. Feldmann dedica uma tese sucinta e perspicaz acerca da
relação entre a experiência vivida de Graciliano e sua ficção. Em Graciliano Ramos: reflexos
de sua personalidade na obra, Feldmann pretende compreender, mais do que fatos isolados,
as características psicológicas dos narradores dos romances a partir das indicações sugeridas
em Infância. Para tanto, fundamenta seu objeto de estudo na dedicação constante da crítica
em entender o abandono da ficção por parte de Graciliano em benefício da escritura
autobiográfica (FELDMANN, 1967, p. 64). Em vez de ruptura, convencionou-se interpretar
essa transição como um aprimoramento artístico. Baseado em Olívio Montenegro, para quem
Graciliano conseguira ―
dentro da realidade de sua vida uma literatura em muita parte mais
poderosa do que a de seus romances‖, e Lúcia Miguel Pereira, que avaliara o Graciliano
memorialista como ―
mais seguro, mais direto e mais denso que o romancista‖, Feldmann
considera que ―
as memórias significam talvez um passo além dos romances no
desenvolvimento artístico de Graciliano Ramos‖ (p. 70). À valorização do segundo momento
de Graciliano corresponde o movimento na direção oposta que consiste em reler sua obra
ficcional sob o signo de sua experiência vivida. E é na esteira do mote sugerido por Antônio
Candido – o de que os romances de Graciliano poderiam ser lidos como sua ―
autobiografia
virtual‖ (CANDIDO, 2006, p. 75) – que o estudo de Feldmann se insere.
O próprio Graciliano já declarara:
59
Talvez a título mesmo de contraponto formal e propositivo ao mandamento de José Américo de Almeida, no
prefácio d‘A Bagaceira, segundo o qual ―u m romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa do
paraíso‖ (ALMEIDA, 1980, p. 8), em um dos trechos de S. Bernardo, Paulo Honório esclarece o tipo de relação
que a sua intenção de escritor cultiva com o cenário: ―U ma coisa que omiti e produziria bom efeito foi a
paisagem. Andei mal. Efetivamente a minha narrativa dá ideia de uma palestra realizada fora da terra. Eu me
explico: ali, com a portinhola fechada, apenas via de relance, pelas outras janelas, pedaços de estações, pedaços
de mata, usinas e canaviais‖ (RAMOS, 2002, p. 86).
76
Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas aqui e
ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível
que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o
coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam (1981, p. 199).
Como é muito difícil discernir e isolar a ironia na escritura de Graciliano, não é de se
estranhar que tal declaração tenha sido tomada como sugestão de interpretação oferecida pelo
próprio autor. A experiência vivida do próprio autor parece ter autorizado, não sem razões
suficientes, uma transposição sem mediações de suas inclinações disfóricas, tal como
inferidas na leitura de suas memórias, para a forma artística empreendida em suas obras
catalograficamente ficcionais. O que nos interessa aqui é localizar essa chave de leitura
hegemônica da literatura de Graciliano na ligação entre o retorno efetuado desde a obra
memorialística para as obras ficcionais e a sobrevalorização da introspecção pessimista. O
dispositivo hermenêutico que conecta esses dois movimentos parece combinar a concepção
individualista e unitária da consciência e a certeza angustiada da insuperabilidade dos traumas
vividos. É o tormento solipsista que congrega tanto o memorialista quanto o ficcionista: ―
O
interesse pelo indivíduo e seu destino pessoal e inconfundível projeta-se em primeiro plano na
obra de Graciliano‖ (FELDMANN, 1967, p. 51). Nesse registro, a arte literária é, para
Graciliano, um veículo de ―
transposição, por onde canaliza, dolorosamente, toda uma
experiência, todo um mundo de sensações e reminiscências, de que só através dela se
libertaria‖ (Hildon Rocha, apud FELDMANN, 1967, p. 67, n. 10).
O recurso biográfico oferece então o melhor argumento para consolidar a leitura
humanista da obra de Graciliano, escamoteando as diferenças entre a ficção e a
memorialística e unificando-as sob o signo do império do Autor. Álvaro Lins, comentando a
―
desgraça‖ característica dos personagens dos romances de Graciliano, afirma sumariamente
que é ―
nas raízes da vida do romancista [que] se encontram os mesmos traços de infelicidade,
tristeza e solidão‖ (LINS, 1947, p. 137). Neste ponto se fundem os três pilares sobre os quais
se solidifica a recepção crítica hegemônica da obra de Graciliano: o pessimismo como
infelicidade, tristeza‖) e a introspecção como forma (―
tonalidade (― solidão‖), servindo,
unidos, como ponte segura que faz o registro de leitura da obra memorialística retroagir
sobre a obra ficcional (―
nas raízes da vida do romancista‖). É aqui que o paradigma
humanista encontra seu lugar:
Não há como recusar a evidência da constatação – são, ambos [Luís da Silva,
de Angústia, e Paulo Honório, de S. Bernardo], possíveis imagens de
Graciliano Ramos que neles se dá, corpo e alma... [e] se dá, em cada obra,
em todas as suas ‗possibilidades‘, para melhor testemunhar sobre o homem,
isto é: para melhor encontrar o homem (FARIA, 1969, p. 274, grifo do
autor).
77
O complexo pessimismo-vida interior constitui, assim, uma espécie de super-
humanismo que funciona como centro nervoso das interpretações da obra de Graciliano
Ramos. Este duplo existencialista, formal e filosófico, se desdobra em duas constantes
psicológicas dos seus personagens, invariavelmente apontadas na crítica como substrato de
seus pensamentos e ações, a saber, a angústia e a solidão. Se a angústia fruto do pessimismo é
a substância de uma vida interior solipsista, a solidão da vida interior serve de tema
conveniente ao decadentismo fatalista. Esse macabro cruzamento é, na perspectiva da crítica
super-humanista, o lastro da condição humana na obra de Graciliano.
Assim, Nelly Novaes Coelho afirma que o ―
isolamento total (...) é a trágica constante
que oprime todas as personagens gracilianas‖ (COELHO, 1964, p. 60). O ―
autêntico drama da
solidão humana‖ seria o leitmotiv da literatura de Graciliano e a cumulação de sentido nessa
sequência de palavras – ―
autêntico drama‖ e ―
solidão humana‖ – pode servir de resumo ao
levantamento feito até aqui do que chamamos de crítica super-humanista.
Segundo Coelho, ―
Graciliano fixa, principalmente, duas forças que se tornam
obsessivas em toda a sua obra: a solidão interior do homem e sua luta pela afirmação da
própria identidade‖ (p. 61, grifos da autora). A ―
identidade‖ do indivíduo não seria, portanto,
uma decorrência natural de sua introversão, mas um objetivo a ser alcançado – e nunca
alcançado, essa seria a tragédia. A existência do homem solipsista da obra de Graciliano seria
experimentada apenas enquanto pura virtualidade, como uma matéria sem forma, uma
existência puramente virtual, sem a possibilidade de atualização, isto é de realização de uma
identidade. A solidão, neste caso, supõe a inexistência de uma relação com alguma alteridade
que atestaria a substância do sujeito. Sendo essa relação negada de antemão, a identidade –
isto é, a autoafirmação que se segue ao auto-reconhecimento do sujeito perante outrem –
passa a ser, em vez de um ponto de partida, uma intenção a ser realizada.
Se essa abordagem se avizinha daquela moral propugnada por Wilson Martins, ela
problematiza, no entanto, a própria construção do inferno ético, rejeitando, para isso, o
modelo conservador, segundo o qual a decisão do ato moral é exclusivamente individual.
Diferentemente de Martins, para quem a confusão entre as categorias transcendentais de Bem
e Mal é o que origina, na obra de Graciliano, o infortúnio do mundo vivido pelos personagens
(MARTINS, 1948, p. 40), para Coelho o isolamento mortal dos personagens de Graciliano é
resultado da incapacidade do encontro salvífico com uma alteridade que lhe propicie um auto-
reconhecimento vivificante. ―
Há algo‖, escreve ela, ―
que os livros de Graciliano Ramos nos
transmitem continuadamente: é a dolorosa sensação da ‗descoberta do Outro‘ (...)
78
acompanhada da asfixiante certeza de que não há possibilidade de comunhão ou de
coexistência‖ (COELHO, 1964, p. 62).
A fatalidade da solidão não seria um propósito universal, nem uma implausível
inadequação dos personagens a preceitos transcendentes, mas sim a obra inacabada de uma
contingência inescapável; uma fatalidade, não um desígnio:
Aos analisarmos suas personagens, principais ou secundárias, nos damos
conta de que são todas elas estruturadas a partir de uma mesma constante: a
Solidão interior que brota quase sempre da rejeição afetiva, da infância sem
amor (p. 61).
A consequência desse isolamento historicamente determinado, por assim dizer, é,
seguindo o argumento de Nelly C. Coelho, o desenvolvimento de um espírito reativo, que
empreende uma luta sem clareza e sem método, cujo objetivo é chegar a reconhecer-se
egoisticamente:
Dessa maneira, impossibilitado de confiar e de apoiar-se no Outro, como
reclamam seus mais íntimos impulsos, o Homem, que Graciliano nos
oferece, fecha-se em si mesmo e se agarra ao seu isolamento como a um
destino fatal, se encouraça nele para não ser ferido, torna-se egoísta, porque
precisa vencer para não ser vencido (p. 62).
Coelho discorda, aqui, da chave de leitura moral oferecida por Olívio Montenegro,
para quem Graciliano ―
parte sempre para seus romances de uma ideia invariável – de que o
homem é um animal absolutamente egoísta, cruelmente ávido de si mesmo‖
(MONTENEGRO, 1954, p. 216). Para Coelho, não é a culpabilidade moral do homem que
está em jogo, mas as condições de possibilidade da emergência de um sujeito que possa
decidir moralmente: ―
não é ele [o egoísmo] a mola propulsora do comportamento e das
reações a que assistimos, mas sim uma das consequências do estado de solidão a que está
condenado o Homem‖ (p. 62).
A interpretação de Nelly C. Coelho adiciona mais um elemento ao fundamento crítico
humanista, que é o egoísmo como consequência ativa da solidão. Acumula-se, assim, no
complexo pessimismo-vida interior, ainda esta leitura super-humanista negativista. Ela
destaca que a essência humana positiva é ―
a comunhão com o Próximo‖ e que somente com
esse encontro verdadeiro com o Outro ―
o Homem pode escapar à rede de sua solidão e sair de
si mesmo ao encontro do irmão e viver enfim [uma] existência autêntica‖. Graciliano, por
―
não acreditar na possibilidade de o Amor existir‖ (p. 66, grifo nosso), teria encontrado,
então, esta essência pelo avesso, negativamente: o egoísmo de seus personagens sendo o
autêntico drama da solidão humana‖.60
avatar mais verdadeiro do ―
60
Sobre a natureza negativista do humanismo próprio de Graciliano, que a crítica acolhe como chave de leitura,
79
O tema do egoísmo já havia aparecido numa das primeiras apreciações de conjunto da
obra de Graciliano, porém sob um aspecto menos sombrio do que estes levantados por Olívio
Montenegro e Nelly N. Coelho. Foi Otto Maria Carpeaux quem chamou a atenção para o
solipsismo dos personagens de Graciliano, apontando aí um aspecto formal e positivo.
Baseado na observação de Álvaro Lins de que Graciliano sempre desenha os personagens
secundários como projeções do personagem principal, Carpeaux sugere que, ao lê-los,
―
entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, onde os romances de Graciliano Ramos
se passam: no sonho‖ (CARPEAUX, 1943, p. 31). Ele argumenta que se esse ambiente
onírico poderia já ser deduzido pelos ―
hiatos nas recordações‖ e ―
a carga de acontecimentos
insignificantes com fortes afetos inexplicáveis‖ que remetem à própria ―
técnica do sonho‖ de
Freud, ainda mais o confirmaria incontestavelmente a anotação de Álvaro Lins, que
―
[constituiria] a chave da obra do romancista descrevendo perfeitamente a nossa situação no
sonho, em que tudo é criação do nosso próprio espírito‖ (Id. Ibid.).
Para Carpeaux, a dedução da ambiência onírica explicaria o ―
extremo egoísmo dos
heróis de Graciliano.‖ Se, em seu texto de quase vinte anos depois do de Carpeaux, Nelly
alegaria que tal egoísmo exclui toda possibilidade de generosidade, de encontro com o Outro,
Carpeaux é bem mais convincente neste ponto ao atestar que, em vez de desidentificação, o
que a técnica do sonho propicia é ―
um sentimento mais vasto de identificação quase mística
com as criaturas da própria imaginação‖ (p. 31). A localização de um contorno de identidade
própria, que para Nelly seria o objetivo tragicamente inalcançado dos personagens de
Graciliano, é, na leitura de Carpeaux, o ponto de partida, desde o qual eles abarcam
unilateralmente o seu mundo. Segundo ele, a ―
cobiça de propriedade‖ seria o motivo principal
dos personagens do romancista; e o fato de que, ―
nos romances, esse afeto ultrapasse toda
medida [sugerindo] a impressão de sentimentos patológicos‖ aponta para o egoísmo do sonho
como terapêutica, servindo para que o personagem-total que dirige e atua a encenação possa
operar uma redução laboratorial da realidade, concentrando em si todo o mal circundante, e
solicitar sua destruição; do que se segue a escatologia, descrita acima, que Carpeaux enxerga
na obra de Graciliano.
Essa que poderia ser uma primeira estratégia de saída do paradigma humanista da
crítica a Graciliano, isto é, uma abordagem que faz do personagem-total, enredado na
multiplicidade de identificações, distribuir seu auto-reconhecimento por entre as outras
criaturas, permaneceu como uma interpretação menor da obra. Na verdade, o texto de Nelly
Álvaro Lins dispara: ―Asua obra constitui uma sátira violenta e um panfleto furioso contra a humanidade.‖
(LINS, 1947, p. 132).
80
C. Coelho, sem se referir explicitamente à crítica de Carpeaux, retoma o tema do egoísmo
ligando-o à negatividade da angústia característica dos personagens.
Ao distinguir Graciliano como ―
um escritor do nosso tempo, um escritor que sentiu
profundamente os problemas que avassalam o homem do século XX‖ (COELHO, 1964, p.
60), Nelly filia sua temática à da tradição existencialista da filosofia europeia de então:
―
convivendo com seus personagens somos pouco a pouco lançados na voragem de um
universo que parece ter sido criado à imagem do mundo sartreano‖ (p. 61).61
No artigo de 1973, já citado, Sônia Brayner reafirma a atualidade dos romances de
Graciliano Ramos, tendo em vista a unidade indissociável das dimensões temática e formal de
suas obras, ambas conectadas com as técnicas do romance moderno cujo ápice teria sido
alcançado no começo do século XX. A ―
permanência [dos romances] deve-se (...) ao alto
nível estético que preserva o verdadeiro dentro da História‖ e ao fato de que ―
a mensagem que
traz situa-se universalmente na realidade do humano, nos desencontros sempre mais
frequentes em um mundo estranho‖ (BRAYNER, 1973, p. 204).
O ―
universal‖ transmitido pelos romances regionalistas de Graciliano repousaria
naquilo que ―
se reflete na literatura moderna ao contaminar a ficção com um sentido de
tragédia até então contido na forma dramática‖, a saber, a transformação fantasmagórica das
utopias e tecnologias modernas, que instalam uma ―
situação-limite do homem a braços com
sua própria essência levando-o a perder o equilíbrio da lógica de um contexto em que confiara
e no qual colocara o endereçamento da vida‖ (Id., p. 205). Tendo sido o romance ―
a primeira
arte que vai buscar a significação do homem de forma explicitamente histórico-social‖, a
operação de redução fenomenológica, pela qual ―
os romancistas buscam concentrar em uma
figura, seu destino e sua crise, o erro ‗trágico‘‖, tem como consequência direta ―
a necessidade
da angústia humana na procura do sentido de sua historicidade. E é exatamente ela que está
em causa no romance‖ (Id., p. 205).
O que caracterizaria a tragédia própria ao romance moderno, segundo Brayner, e,
portanto, garantiria a distinção de Graciliano entre seus principais artesãos no Brasil, seria a
falta de uma verdade totalizante para as questões do homem, uma dúvida antropológica de
61
Não custa lembrar que, mesmo negando uma natureza pré-concebida e universal do homem, o existencialismo
sartreano (pretendendo englobar também o heideggeriano) é baseado na ideia de um projeto estritamente
humanizante, negando, junto com a antiga garantia divina da essência humana, também a existência de qualquer
outro nascedouro da experiência, tal como, por exemplo, o mundo: ― O existencialismo ateu, que eu represento
(...), declara que, se Deus não existe, há pelo menos um ser em quem a existência precede a essência, um ser que
existe antes de poder ser definido por algum conceito, e que este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a
realidade humana (...). O homem é de início um projeto que se vive subjetivamente (...) nada existe antes desse
projeto‖ (SARTRE, 1984, pp. 5-6. Grifo nosso).
81
fundo que permearia a experiência de prosa narrativa.
Enquanto os gregos buscam o ser em um mundo capaz de ser conhecido, o
homem moderno busca sua essência com a dúvida kantiana do conhecimento
encravada na alma. Não é mais trágico ainda buscar uma essência do ser,
desconfiando se a verdade é possível? (Id., p. 206, grifo da autora).
Para Brayner, o que estaria na origem do ―
analitismo‖ da prosa de vanguarda do
século XX (e por ―
analitismo‖, aqui, entendemos tanto uma admissão de que a realidade é
constituída de partes individualizáveis quanto o aprofundamento narrativo que esmiúça e tenta
esgotar a experiência da consciência que conecta essas partes) seria o ―
nascimento e
desenvolvimento de dois mitos que se complementam: o da dissolução do corpus social e o da
fragmentação da pessoa‖ (Id., p. 207).
Ora, viemos até agora tentando delinear o perfil deste espectro do Homem que
condiciona a crítica super-humanista. Vimos que suas principais características, tais como
absorvidas na ficção de Graciliano, são a introspecção solipsista e o pessimismo fatalista.
Nesse sentido, o texto de Sônia Brayner apresenta um aspecto a ser considerado, que é a
fragmentação originária da experiência pela qual passam os personagens gracilianos, para
usar essa duvidosa adjetivação. Tributários da eliminação do cartório transcendente que
supostamente lhe reconhecia a firma da existência e do sentido, o homem do romance
moderno teria de se avir com o próprio material disperso e efêmero de suas experiências
contingentes; sem a instância exterior a si que lhe daria coesão e significado, este herói do
cotidiano estaria jogado ao arbítrio da miríade irrefreável de acontecimentos mundanos. Por
isso, descobrir-se-ia a si mesmo constitutivamente homólogo a essa realidade frágil e
despedaçada. Seja, no romance realista, como a sensação de incompletude e esvanecimento de
Balzac a Dostoievski, seja, no de vanguarda, como a estrutura formal omni-direcionada de
Joyce a Faulkner, a figuração de sua consciência funcionaria, assim, como o reduto restante
da individualidade, reconstituição caricatural da suposta antiga unidade. O subjetivismo no
―
romance trágico‖, nesse sentido, ―
talvez seja uma das últimas tentativas de reconquista da
totalidade humana perdida‖ (p. 208).
Essa leitura de Sônia Brayner, que de certo modo flerta com alguns elementos da
crítica anti-humanista do estruturalismo francês da década de ‗60, também constitui uma
janela aberta dentro do paradigma super-humanista da recepção crítica de Graciliano. Ao
afirmar que ―
o ser humano foi expresso pelo romanesco quando assumiu um status
dominantemente histórico‖ (p. 216), sua análise de Angústia ressalta a inserção dessa obra no
ambiente que une realismo e vanguarda literária, que é a historicização radical da condição
humana, lastro epistemológico da fragmentação de sua identidade, e que na literatura
82
corresponde ao nascedouro, na filosofia, na psicanálise e na antropologia, da suspeita de que a
unidade essencial do Homem seria mais um fenômeno ótico de época do que um substrato
real universal.62
No entanto, este viés crítico ainda é bastante atraído pela força gravitacional que o
privilégio ontológico exerce por meio daquilo que o existencialismo afirma permanecer como
excepcionalidade do ser do Homem, a sua condição angustiada de liberdade perante o vazio.
Mesmo historicizado e fragmentado, é o ―
sentido do Homem consigo mesmo‖ que estaria em
jogo nesta literatura. Por isso que, para Brayner, assim como para Nelly C. Coelho, à
―
solidão‖ constatada sucede uma ―
luta‖ inglória: ―
A luta do homem com valores dicotômicos,
a busca do ser e do conhecer estão ficcionalmente encerradas na narratividade do romance‖.
Os personagens de Graciliano estariam, assim, ―
condenados à liberdade‖ de reconstituir
dolorosamente sua existência. Ao mesmo tempo consciências individuais e pessoas
fragmentadas, o que tais personagens vivenciam seria mesmo aquela emoção sofrida
característica da cisão entre vontade e potência, entre existir e não-ser, a saber, a angústia, na
qual se reconhecem e desde a qual falam; ―
a solidão instaura o ser‖, no dizer de S. Brayner. A
angústia, que, não por acaso, nomeia o mais paradigmático dos romances de Graciliano, seria
o berço do indivíduo e só diante de seu negativo, a possibilidade de não-ser, instituir-se-ia a
condição de possibilidade do sentido: ―o tr
ágico romanesco é o homem às voltas com o ser e o
tempo‖ (pp. 216-217).63
Se a angústia está ligada de modo tão estreito à consciência solitária, ela serviria, de
fato, perfeitamente, para caracterizar uma parte da obra ficcional de Graciliano. A clausura
solipsista e a fadiga existencial são temas que se encaixam na forma dos monólogos de João
Valério, em Caetés, Paulo Honório, em S. Bernardo, e Luis da Silva, em Angústia; e se não
esgotam a totalidade das possibilidades de leitura, constituem uma passagem incontornável.
Entretanto, reduzir a leitura de uma obra inteira e multifacetada ao monólito temático do
62
Lembramos do genial e belo parágrafo final d‘As Palavras e as coisas, de Foucault: ― Se estas disposições
viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito
pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a
promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do
pensamento clássico — então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de
areia.‖ (FOUCAULT, 2007, p. 536).
63
Não encontramos referência do conhecimento de Graciliano acerca da obra de Heidegger. É consabido que
Graciliano lera Camus, tendo até traduzido ― O Homem Revoltado‖ para edição da Livraria José Olympio
publicada em 1950. Se o tema obsedante da angústia em Graciliano não pode deixar de ser remetido à moda
existencialista da primeira metade do século XX e às suas preferências bibliográficas, é mais plausível que ele
comungue antes da proposta de angústia criativa de Camus (a saída do absurdo pela obra artística, como
elaborada em O Mito de Sísifo), do que da ontologia hermética de Heidegger. É o que intui a crítica pessimista e
escatológica de Otto Maria Carpeaux, tal como tentamos demonstrar acima.
83
pessimismo/solipsismo, abrigando-se convenientemente no espírito paternal da intenção do
autor, pode servir apenas para esconder a responsividade que uma experiência literária
solicita.
A via de mão única que o paradigma super-humanista pavimenta com o duplo par
angústia/pessimismo e solidão/vida-interior constitui uma falsa saída pela negatividade, típica
do existencialismo excepcionalista do século XX, por meio de uma negação da essência
positiva própria da condição humana que absolutiza o caráter nadificante do mundo que
produz (e que é produzido por essa condição), em detrimento da proliferação de mundos-
outros. Sugerimos com isso que, se a combinação de pessimismo e vida interior questiona a
plausibilidade de rastrear uma natureza humana positiva, o amálgama entre solidão e angústia
abraça a impossibilidade desse reencontro como sendo o cerne daquela natureza. A
negatividade funciona em casos assim como um lugar-tenente da positividade, fechando as
saídas para perspectivas plurais, como alertado por Merleau-Ponty:
Um pensamento negativista é do mesmo modo um pensamento positivista, e
nessa reviravolta permanece o mesmo, no seu propósito de, considerando o
vazio do nada ou o pleno absoluto do ser, ignorar em todo caso a espessura,
a profundidade, a pluralidade dos planos, os segundos-mundos [arrière-
mondes] (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 82).
As chaves de leitura do paradigma super-humanista representam uma aliança de
primeira hora e constantemente confirmada com a experiência de angústia vivida pelos
narradores dos romances, retirando sua legitimidade do recurso à experiência de angústia
vivida pelo escritor Graciliano Ramos, como se encontra em sua obra memorialística. O
recurso à biografia do autor constitui uma reiteração enfeitiçada do movimento de
ensimesmamento dos narradores dos romances. Desde 1945, Álvaro Lins já declarara ser ―
em
Infância que poderemos encontrar a significação de S. Bernardo e Angústia‖ (LINS, 1947,
138). Tudo se passa como se apenas uma aliança indissociável com a perspectiva ostensiva do
narrador, ratificada pela certificação da intenção do autor, pudesse fornecer uma leitura justa,
adequada e, no limite, plausível das obras. E isto como se a angústia extrapolasse os
temas/conteúdos das consciências perturbadas dos narradores e virasse a forma mesma do
enfoque do leitor. Comentando a relação entre as abordagens de Heidegger e Bergson acerca
do problema da angústia, Bento Prado Jr. sugere que, no caso filosófico, ―
a experiência da
angústia aparece como uma regressão à pura subjetividade e como perda de contato com o
real‖ (PRADO Jr, 1988, p. 37). Entendemos não ser exagerado transpor essa afirmação para o
caso da tensão teórica subjacente ao padrão super-humanista que aqui tentamos bosquejar. O
movimento de regressão subjetivista com que se assinalam os anti-heróis trágicos de
84
Graciliano Ramos é similar ao movimento de regressão biográfica que pretende localizar o
núcleo vital das memórias do escritor Graciliano para ali trancafiar aquele mundo soturno de
sua ficção, como se ao devolver ao autor sua criação diabólica a crítica se desvencilhasse do
embaraço causado por uma experiência literária tão singular e grave.
Porém, se a matriz super-humanista cabe com justeza nas medidas dos três primeiros
romances de Graciliano, é preciso um esforço adicional para que se acomode ao caso de Vidas
secas.
Tendo levantado, com o auxílio de alguns dos textos mais relevantes (porque mais
referenciados), os aspectos centrais daquilo que se destaca como plano de fundo da recepção
crítica da obra de Graciliano, e que aqui temos chamado de paradigma super-humanista,
cumpre observar que, antes mesmo do escamoteamento estratégico da ruptura formal que
Graciliano realiza entre os momentos ficcional e memorialístico de sua obra, o que esse
paradigma crítico empalma, para se manter funcionando, é a diferença significativa e vibrante
entre o conjunto dos três primeiros e o último dos romances de Graciliano. A sequência dos
romances de Graciliano é análoga à sequência dos evangelhos canônicos, no sentido de que,
em vez de um conjunto de quatro escritos, o que se tem, em cada caso, é um conjunto de 3 +
1, podendo-se avaliar as três primeiras obras de cada um desses conjuntos de acordo com os
mesmos parâmetros (daí o adjetivo sinópticos para qualificar os evangelhos segundo Mateus,
Marcos e Lucas), resguardando a última obra (o evangelho de João) uma diferença de forma e
sinópticas‖ de Graciliano, Caetés (1933), S. Bernardo (1934) e Angústia
conteúdo. As obras ―
(1936), podem ser de fato abarcadas com o mesmo golpe de vista: são narradas em primeira
pessoa por homens de meia-idade; os três narradores são hetero-escritores atormentados, que
pretendem escrever suas recordações como tentativa terapêutica de encontrar uma saída para a
dolorosa verdade de suas consciências angustiadas; a angústia e a solidão são a tônica e a
dominante que estão na origem e no destino de toda a narração... E, no entanto, se não é
possível dizer que estes elementos estejam absolutamente ausentes em Vidas secas, também
não se pode dizer que aí sejam prevalentes. E, prosseguindo na analogia, assim como é difícil
justificar, senão em um contexto doutrinário, o uso da mesma matriz exegética para
interpretar o quarto evangelho e os sinópticos, o paradigma super-humanista, que se assenta
com aparente justeza no escopo dos três primeiros romances, parece funcionar de forma
menos convincente no caso de Vidas secas.
É sintomático que, para garantir o seu argumento acerca da tendência autobiográfica
de Graciliano, Antônio Candido salte sobre a publicação de Vidas secas, ignorando-a:
85
à medida que os livros passam, vai-se acentuando a necessidade de abastecer
a imaginação no arsenal da memória, a ponto de o autor, a certa altura, largar
de todo a ficção em prol das recordações que a vinham invadindo de maneira
imperiosa. Com efeito, a um livro cheio de elementos tomados à experiência
de menino (Angústia) sucede outro, de recordações, é verdade, mas
apresentadas com tonalidade fictícia (Infância); e depois desta ponte, a
narrativa sem atavios dum trecho decisivo da sua vida de homem (Memórias
do Cárcere). (CANDIDO, 2006a, p. 102).
Ora, entre Angústia (1936) e Infância (1945), fora publicado, em 1938, Vidas secas.
Evidentemente, esse salto não se deve a um desconhecimento do fato por parte do crítico. Se
o recurso à tendência autobiográfica constitui um dos pilares do paradigma de leitura de
Graciliano que chamamos de super-humanista64 ele se sustenta justamente na consideração
monolítica da obra de Graciliano – que, no entanto, necessita esconder a particularidade ad
hoc de Vidas secas. É o mesmo movimento que faz Assis Brasil em sua apreciação de
conjunto:
A narrativa na primeira pessoa de seus três primeiros romances e a narrativa
na primeira pessoa de seus dois livros de memórias, estão unidas por uma
única visão de linguagem, o que não prejudica a ficção, mas valoriza a
memória (...). Assim, seu depoimento de vida, do ponto de vista da técnica,
se confunde com seu depoimento ficcional, fazendo de todos os seus livros
um monobloco literário dos mais importantes da literatura brasileira (ASSIS
BRASIL, 1969, p. 31. Grifo nosso).
O que aqui sugerimos, do ponto de vista crítico, é bem menos pretensioso do que uma
interpretação completamente inovadora da obra de Graciliano; trata-se, na verdade, de
valorizar essa particularidade de Vidas secas diante do paradigma super-humanista; ensaiar
uma leitura que considere o recuo em uma unidade de medida do recorte unificador (e essa
figura paradoxal é bastante útil) que, ao separar a obra ficcional e a autobiográfica de
Graciliano Ramos, mantém na projeção das memórias do escritor para dentro de sua ficção
uma das constantes que sustentam a consubstanciação de seus escritos em um todo coerente.
Em outras palavras, o que aqui se anuncia é a plausibilidade de que Vidas secas não ―
faça
conjunto‖ com os romances anteriores, e de que seja nesta obra que se estabeleça o recorte
fundamental da literatura de Graciliano, em vez de localizá-lo na publicação do seu primeiro
livro de memórias, Infância65. Esse recuo permite questionar o paradigma super-humanista –
tomando-o, claro, como estrutura formal, de modo a não reduzir a este paradigma as leituras e
interpretações que são de fundamental importância para o estabelecimento do lugar
64
Dois parágrafos à frente deste, em trecho que citamos mais acima, Candido irá concluir que o ― impulso
fundamental que constitui a unidade profunda de seus livros‖ seria ― o desejo intenso de testemunhar sobre o
homem.‖
65
A particularidade de Vidas Secas pode ser ressaltada, inclusive, também por razões biográficas. Tendo escrito
os três primeiros romances ainda em Alagoas, os contos independentes, que depois virariam o romance Vidas
Secas, foram escritos no Rio de Janeiro logo após sua saída da prisão política.
86
privilegiado que a obra de Graciliano ocupa na história da literatura brasileira... pois bem,
permite questionar o paradigma super-humanista como modo hegemônico de abordagem da
obra de Graciliano, modo que, supomos, não apenas não funciona plenamente no caso de
Vidas secas, mas até mesmo esconde as virtualidades ali presentes: em vez de ler Vidas secas
como continuidade dos outros romances (por sua vez, assiduamente lidos como precursores
da obra memorialística), distinguir a sua descontinuidade e tentar compreender como essa
descontinuidade pode apontar posições diferentes e enriquecedoras perante a obra.
Endereçamo-nos a indagação de Franklin de Oliveira: o que vão encontrar os jovens em
Graciliano Ramos?66
66
Em OLIVEIRA, 1975, p. 314.
67
Embora careça de citações abundantes, toda esta seção do texto (além de partes importantes das outras seções)
é devedora, mantendo sua responsabilidade pelo que diz, das leituras, debates e insights proporcionados pelo
curso ― ‗Tradizer‘: esboço de uma ontologia da experiência literária‖, ministrado por Alexandre Nodari na
disciplina ―
Teoria da Ficção II‖, do curso de Pós-Graduação em Letras, da UFPR, no segundo semestre de 2016.
87
marcado pela constante modificação de si (do lugar), isto é, pela indeterminação constitutiva.
Habitar essa área de indeterminação leva ao surgimento de um dispositivo metamórfico que
re-produz (produz de novo) incessantemente o próprio jogo de posições proporcionado pela
experiência literária e segundo o qual o espaço (do leitor, do narrador/autor, dos personagens,
do texto, do sentido) está, a cada vez, por ser ocupado. Essa geografia da vertigem impele
todos os entes envolvidos em sua vigência sempre para outro lugar.
Por este caminho, não é o leitor uma subjetividade mais soberana que o Autor em
decidir quais trilhas devem ser perseguidas e quais abortadas. Na experiência vertiginosa da
leitura, há uma suspensão do princípio do dever (que é sempre um dever-Ser) e a
evidenciação do entrelaçamento das virtualidades que pairam, como uma atmosfera, sobre
essa área de in-existência do real. O que uma leitura propicia não é um deve-ser mas um
pode-vir-a-ser do sentido do texto. Opõe ao dever o devir. Vê-se, então, que a fórmula
generosa de Antônio Candido, segundo a qual ―
interpretar é, em grande parte, usar a
capacidade de arbítrio e, sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, é definir o
que se escolheu, entre outros‖ (CANDIDO, 1993, p. 37), pode ainda estender-se a um leitor-
centrismo – este lugar que, provavelmente, o leitor-especializado, o crítico, sabe manejar
melhor, mas que reduz a um elemento unificador (o arbítrio) a vertigem psico-espacial
envolvida na experiência literária.
O outro lado dessa armadilha é a redução fenomenológica da experiência literária,
segundo a qual há qualquer coisa que salta voluntariamente do texto e se comunica
imediatamente com as expectativas do leitor, como que obrigando as formas de sua (do leitor)
intuição a adequarem-se ao sentido pleno. Um expoente da análise fenomenológica no Brasil,
em livro, aliás, dedicado ao estudo dos romances de Graciliano, assim pontifica: ―
O analista
deve se colocar diante da obra literária sem qualquer plano antecipado de trabalho, pondo em
suspenso, inclusive, a sua carga organizada de conhecimentos, a fim de que a intuição crítica
se realize em toda a plenitude. É necessário deixar o texto falar, até que se revelem os seus
suportes expressivos fundamentais‖ (MOURÃO, 2003, p. 26). O outro lado da interpretação
voluntarista é, neste caso, a Revelação de uma mensagem transcendente.
No meio dessas abordagens, sugerimos que, em vez da vontade soberana do leitor ou
do despotismo do texto-em-si, seja o entrecruzamento das séries de forças envolvidas na
experiência de leitura aquilo que forja o espaço ocupável por uma subjetividade-leitora. Nem
o autor, nem o texto, nem o leitor detêm a prerrogativa de definir a priori um lugar específico
de onde se pode ler. A experiência literária é justamente o regime de suspensão do espaço
88
estático e já-ocupado e a emergência de uma geografia em que os espaços são ocupáveis, isto
é, sempre em vias de apropriação, sempre em movimento.
Este deslocamento axial que parece fundar a experiência literária adquire maior
amplitude teórica com o conceito de obliquação tal como desenvolvido por Alexandre
Nodari, desde Clarice Lispector, como já citado mais acima. Nodari sugere que a experiência
(de vida) literária pressupõe uma posição oblíqua perante a existência do mundo, uma posição
que perturba a distribuição habitual do real entre existente/inexistente, atual/virtual,
sujeito/objeto. Habitar a fragilidade desse lugar transversal requer a manutenção de uma via
perigosa da vida, onde o ―
entrecruzamento entre o eu e o outro é real e existe‖, um mundo
―
em que tanto a identidade quanto a diferença se afirmam ao mesmo tempo e se reconfiguram
mutuamente‖ (NODARI, 2015a, p.82).
O que entra em campo aqui é da ordem da verdade do afeto, daquilo de que Deleuze se
aproxima chamando de ―
imagem do pensamento‖; o que se precipita da leitura e que se
chama geralmente de interpretação do texto pode ser entendido como a verdade de um desejo,
a realização de um sentido e de um valor: ―
não há verdade, que antes de ser uma verdade, não
seja a efetuação de um sentido ou a realização de um valor. A verdade como conceito é
totalmente indeterminada. Tudo depende do valor e do sentido do que pensamos‖
(DELEUZE, 1976, p. 110). O produto inacabado da oferta, no espaço literário, de um lugar
ocupável para o leitor, cuja indeterminação inerente destrava um perene vir-a-ser do sujeito-
leitor... o produto dessa relação pode ser intuído como um afeto-outro, um deslocamento da
experiência de subjetivação, que se desdobra em imagem do pensamento e que larga o leitor
diante da perturbadora situação de, ao ler, ser também ele lido.
O substrato dessa ―
via recíproca‖, dessa ―
ponte entre mundos‖, aquilo mesmo que faz
a obliquação, é justamente o campo de forças que constitui um corpo. É um corpo (o) que
lê/é-lido; sua natureza tangencia a famosa substituição de verbo que Deleuze realiza ao
interpretar Spinoza: não ‗o que é um corpo?‘, mas ‗o que pode um corpo na experiência
literária?‘. ―
Pode‖, aqui, no sentido de possibilidades e no sentido de sustentação, de
suspensão, como uma alça: o que pode um corpo na experiência literária. Um corpo se
apresenta ao mesmo tempo como suporte, como agente e como produto do trânsito de
virtualidades e atualidades que instaura o campo da leitura; ele se dispõe de forma obliqua à
divisão conceitual entre ficção e realidade. De forma tal, que, por exemplo, o que está
envolvido no jogo da narração em Vidas secas é a mútua confecção de um corpo-narrador e
corpos-personagens, cuja necessária performance – isto é, necessária habitação de um campo
89
de in-existência efetiva – exige de todas as partes (personagem-leitor-narrador) que transitem
nos corpos uns dos outros, devindo imagens alheias a si. O que pode imaginar outro corpo é já
um corpo, e esse é o ato da leitura, aja o actante como narrador, personagem ou leitor; o
corpo-leitor é a imagem que se dá a ver do pensamento (afetos, desejos, inclinações)
implicado na experiência literária. Você é (lido) como você lê.
90
considerado ―
um esmagado, pelos homens e pela natureza, mas o seu íntimo de primitivo é
puro.‖ (Id., p. 63)
Pretendemos, pois, considerar esta contradição e os termos que a perfazem como o
indício de que em Vidas secas se anunciam outras possibilidades de leitura, por baixo e contra
a série pessimismo / vida interior / autobiografia que informa o paradigma super-humanista.
Seguimos a sugestão de Benjamin Abdala Jr, de que é possível ―
uma visão processual e mais
abrangente das origens das carências, de seus emparedamentos [dos personagens], que pode
abrir ao leitor a possibilidade de romper com esses limites da convenção estabelecida,
exercitando e desenhando redes articulatórias tendentes a outros horizontes‖. (ABDALA Jr,
2017, p. 33).
Um primeiro elemento para essa mudança de foco pode ser encontrado naquilo que, de
passagem, Assis Brasil considera ser a aparição de corpos (em oposição à vida interior) na
obra de Graciliano: ―
A visão do romancista extroverteu-se, daí seus personagens serem
tratados de corpo inteiro, e não simplesmente através de seus dramas de consciência.‖ (ASSIS
BRASIL, 1969, p. 85). Qual, então, o estatuto deste “corpo inteiro” dos personagens, como
estes corpos inter-agem no romance e quais os efeitos dessa interação para a composição da
obra e para uma experiência literária com ela e com eles?
Este plano de oposição ao super-humanismo também irrompe quando Antônio
Candido, a pretexto de fortalecer seu argumento acerca do ―
primitivismo‖ e da ―
pouca
o matutar de Fabiano e Sinhá Vitória não corrói o eu
humanidade‖ dos personagens, diz que ―
nem representa atividade excepcional. Por isso é equiparado ao cismar dos dois meninos e da
cachorrinha‖ (CANDIDO, 2006a, p. 65). Surge, aqui, para nossos propósitos, as questões
acerca de que modo de individualidade/consciência (o eu de que o crítico fala) é a que emerge
na narrativa desta obra que equipara seres humanos e outros-que-humanos. É ela uma
individualidade/consciência que rebaixa a humanidade ou que a distribui de outra forma? Ou
são os dois modos distribuídos de maneiras diferentes e vertiginosas, segundo as variações
das posições de leitura, isto é, segundo os tipos de aliança que se fazem na experiência
literária? O que significaria, de um ponto de vista não super-humanista, que os meninos,
Sinhá Vitória, Fabiano e a cachorrinha ―
cismem‖, isto é, adotem posturas reflexivas? Como
poderíamos aqui levar a sério este outro estatuto de humanidade que também aparece de
modo fugaz na afirmação de Álvaro Lins acerca de Baleia: ―
o capítulo que lhe é dedicado se
acha revestido de uma humanidade talvez maior que a dos seres humanos‖ (LINS, 1947, p.
153)?
91
Sugerimos que, com estas questões, podemos vislumbrar aquela linha de fuga de que
falávamos ainda na primeira parte deste trabalho, e que constitui essa espécie de vitalidade
supra-orgânica – ou seja, um comportamento vital para além da ideia de organismo ou de
espécie – que caracteriza a teimosia do sertão, isto que insistimos em chamar de sertão como
modo (de vida). Não deve ser à-toa que, uma crítica tão mordaz e cerebral como a de Álvaro
Lins, assevere acerca de Vidas secas, que
além de ser o mais humano e comovente dos livros de ficção do sr.
Graciliano Ramos, é o que contém o maior sentimento da terra nordestina,
daquela parte que é áspera, dura e cruel, sem deixar de ser amada pelos que a
ela estão ligados teluricamente. (LINS, 1947, p. 153. Grifo nosso).
Afirmações como esta da terra ―
áspera, dura e cruel‖ ou, mais acima, a de Antônio
esmagado pelos homens e pela natureza‖, são parte do
Candido, sobre Fabiano ser ―
sedimento antropocêntrico assentado sobre a concepção e as práticas estético-políticas acerca
do sertão, que, ao intuir a impossibilidade da plena estabilização de um modelo colonial-
modernizador (isto é, propriedade privada, monocultura, industrialismo etc.) sobre o sertão,
atribui à própria terra a impossibilidade de qualquer modo de vida, confirmando a sua suposta
carência constitutiva, suposta falta absoluta – que, como já dissemos, aparece comumente, nas
narrativas literárias, jornalísticas, científicas, oficiais etc. como causa material e eficiente da
violência e miséria, estas que, na nossa abordagem, seriam antes frutos do colapso do próprio
sistema de imposição civilizatória. Trata-se, aqui, de opor à falta (de civilização, de progresso,
de consciência, de condições, de correlação de forças...) a proposição ecopolítica do sertão,
considerando-se que, para entender a ―
seca‖ e seus efeitos catastróficos, serve-nos o alerta que
Eduardo Viveiros de Castro faz acerca da noção de salvação pelo desenvolvimento
econômico:
Nossa concepção linear e cumulativa de história — congenitamente cega à
estrutura, às regulações sistêmicas, às causalidades circulares — demorou
demais a acordar para a constatação de que a miséria, a fome e a injustiça
não são o fruto do caráter ainda parcial, incompleto, da marcha do progresso,
mas seus ―s ub-produtos‖ necessários, que aumentam à medida que tal
marcha prossegue na mesma direção. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p.
4).
Encontramos na apreciação marxista que Carlos N. Coutinho faz da obra uma
aproximação fecunda. Nela, o crítico aponta o mundo supostamente inóspito da seca, como
hostilidade aparentemente encarnada no desencadeamento de forças naturais incontroláveis‖
―
(COUTINHO, 1967, p. 105. Grifo do autor), alertando que ―
só aparentemente o nomadismo
de Fabiano decorre de um fenômeno natural, da seca: ele se liga, em primeira instância, ao
fato de não ser Fabiano um proprietário‖ (Id., p. 106). Entretanto, mesmo ao entender que seja
92
―
o monopólio da terra (...) e não a seca, que só tem efeitos catastróficos por causa da estrutura
social de dominação da natureza (...) que impede Fabiano de levar uma vida autêntica e
humana‖ (Id. Ibid.), Coutinho toma como base da ―
vida autenticamente humana‖ o domínio
mesmo da natureza por parte do homem. Ao naturalizar a suposta impotência constitutiva da
terra – já que, para ele, ―
a baixa rentabilidade econômica da região é causa e efeito do
desinteresse e do conservadorismo do proprietário‖ (Id., p. 105) – o crítico acede à concepção
de que é preciso lutar contra a terra para viver dignamente: ―
a problemática de Fabiano se
liga ao baixo nível tecnológico da exploração agropecuária, que torna os homens impotentes
na luta contra os fatores naturais‖ (Id., p. 106. Grifo nosso). Ouvimos aqui o eco longínquo
do lema do ―
combate à seca‖ que durante tanto tempo tem servido aos poderes dos coronéis e
do capital, sinistramente aliados, para reprimir e suprimir modos de vida conviventes de
povos humanos e extra-humanos, em nome do desenvolvimento econômico da região, ou
seja, em nome do reforço a todos os padrões de ocupação destrutiva do semiárido que
engendraram as tragédias da seca – e isso desde as frentes de emergência do DNOCS,
passando pela criação da Sudene e agora com a Transposição do Rio São Francisco...68
Curiosamente, é por essa via que Coutinho chega a afirmar que o romance ―
representa o
próprio movimento essencial da realidade brasileira, na medida em que o desenvolvimento do
capitalismo pode (...) elevar o nível de vida do nosso campesinato‖ (Id., p. 108) (!).
A análise de Coutinho converge vagarosamente para o mesmo padrão de interpretação
da obra de Graciliano como drama da solidão humana. No caso do crítico marxista, seria a
solidão revolucionária de Fabiano a chave de leitura psicológica do livro. O que faria de
Fabiano uma espécie de ―
herói problemático‖, que se alinharia ao drama realista próprio do
liberalismo moderno, seria o ―
campo de possibilidades abstratas‖ para a mudança da realidade
opressiva que se deixa ver nos seus sentimentos de revolta e nas suas ―
aspirações mal
formuladas‖. Esse campo dos possíveis seria o vislumbre da vida autenticamente humana, da
construção de um ―
grande mundo democrático‖, em oposição ao ―
pequeno mundo‖ a que
Fabiano encontra-se condenado. Para que essa apreciação se sustente, Coutinho exclui de sua
análise as outras pessoas envolvidas na narrativa e, especialmente, a cachorra Baleia, que
problematizaria justamente o estatuto de humanidade autêntica a que ele se refere.
O―
íntimo de primitivo puro‖ e o ―
pequeno mundo‖, de que falam Antônio Candido e
68
O estudo de MARINHO, 2006, atesta, de um ponto de vista estritamente técnico-econômico, que a crise de
sustentabilidade do paradigma do combate à seca obteve continuidade por meio da ―matriz de modernização
econômica e tecnológica‖, implantada desde o regime militar, com vistas a garantir ― a durabilidade do
desenvolvimento com base na eficiência tecnológica e na racionalidade produtiva‖.
93
Carlos N. Coutinho sobre Fabiano, não deixam de ter uma filiação com o paradigma que
enxerga na série sertão/terra/nativos puramente negatividades, falta de fertilidade
(―
rentabilidade econômica‖), falta de fala, falta de pensamento e falta de vida. É contra esse
paradigma da pura falta em Vidas secas que Leônidas Câmara se revolta, respondendo de
forma feroz à crítica de Olívio Montenegro, para quem a psicologia inventada por Graciliano
para os personagens neste romance seria inverossímil, já que suas ―
mentes primitivas‖ não
seriam capazes de pensamentos elaborados ou associações sofisticadas. O parágrafo de
Câmara é tão singularmente preciso que achamos por bem reproduzi-lo inteiro, apesar de sua
extensão:
Julgamos, muitas vezes, que não pode haver outra forma de pensamento se
não a nossa, de gente instruída, bem vestida, bem alimentada, bem pensante.
Os outros, aqueles que estão debaixo dos nossos pés, forçados pela servidão
dos séculos (...), não podem pensar como pessoas de vida mental superior.
Vida, sobretudo, economicamente superior (...). O preconceito é que cria a
ideia de que aqueles seres não são capazes de um plano psicológico (...).
Justamente porque são uma gente acostumada a serem caladas [sic] é que
não a imaginamos pensando, atuando conscientemente, atuando
efetivamente, possuidoras de uma organização tão ou mais complexa que a
nossa, porque nelas a vida se intromete de tal modo pelo interior (...) que o
pensamento é a única liberdade que possuem e que não precisa ser exposta e
talvez espoliada como os outros bens que já lhe foram sonegados.
(CÂMARA, 1966, pp. 291-292).
Contudo, o perigo de uma leitura exatamente oposta àquela humanista seria o de
aceder a uma concepção essencialista da terra-sertão, mudando apenas o sinal da figura para o
fundo, mas permanecendo nesta divisão fundante entre Homem-agente e Natureza-paciente.
Neste sentido (ou melhor, contra este sentido), nossas questões se inclinam sobre uma linha-
de-fuga, sobre o sertão como modo de vir-a-ser, da terra-sertão como a
constituição/destituição/restituição de espaços (dos personagens, das linguagens, das
consciências), desta modalidade estético-política que age, na obra, contra a suposição de um
mundo universal dado e a favor da disputa de mundos, a cada vez, e de sua emergência
pluriversal - o que chamaremos, no próximo capítulo de multimundanidade.
E se radicalizássemos aquela leitura sobre a origem da angústia de Fabiano residir na
estrutura sócio-econômica que se abateu sobre o sertão, afastando-nos o máximo possível das
chaves interpretativas fornecidas pelo próprio arcabouço conceitual que corresponde a esta
estrutura? Não haveria na narrativa indícios de uma resposta modal à promessa perversa e
nunca cumprida que os agentes dessa estrutura fazem a Fabiano, de acesso ao mundo
―
autenticamente humano‖? E para percebê-los não seria necessário levar a sério (isto é, para
além de pura excentricidade estilística ou de mera concessão ao ―
primitivismo‖) as
94
implicações advindas das relações horizontais entre os personagens do romance e entre eles e
o mundo, aquilo que nessas relações se anuncia como modo-de-vida e aquilo que lhes
atrapalha o funcionamento? Será que a autenticação de humanidade que o sistema
patronal/governamental oferece a Fabiano, sempre o frustrando, não se repete, como
micropolítica, naquelas significativas pequenas opressões de Fabiano sobre Baleia, de Sinhá
Vitória sobre o Menino Mais Velho, do Menino Mais Velho sobre o Menino Mais Novo? E
será que, contra elas, a cada vez, também não se anunciam outras modalidades de
convivência, como a mútua identificação multilinguística entre Fabiano e Baleia? Será que,
assim como Leônidas Câmara reivindica com justeza a legitimidade do ―
plano psicológico‖
dos personagens, também poderíamos nós reivindicar seu aprofundamento e rastrear, no plano
psicológico, o plano cosmológico ali implicado?
Se assim for, podemos ver duas forças no romance, que disputam a cada vez e a todo
instante a totalidade do cosmos, forças que oferecem práticas material-semióticas para a
significação do que seja o mundo e do que seja gente. Haveria, assim, em todo o texto, uma
tensão entre dois planos de mundo, um baseado na autoridade, na propriedade, no patronato, e
outro na partilha fractal de espaços, na mútua confecção do mundo; duas cosmologias, uma
baseada no poder como cartório da existência humana e outra na distribuição seriada das
agências de co-constituição do mundo, na interpenetração e no questionamento mútuo dos
estatutos de humano e animal, nas alianças extra-humana e multimundana entre os
personagens – o sertão contra o poder. Do avesso do homem solitariamente revoltado ―
contra
os homens e a natureza‖, figurado em Fabiano, se insinua uma revolução contida no próprio
modo sertão, um ―
outro mundo possível‖ que seria pervasivo e insistente neste.
Para compreender esta tensão não seria, então, necessário habitar outras posições de
leitura da obra? Habitar, talvez, o próprio sistema de alianças que se deixa entrever nas
relações horizontais entre os personagens?
É num artigo recente de Ana Paula Pacheco, que analisa a constituição do ponto-de-
vista em Vidas secas à luz das relações entre patronato e campesinato no contexto de sua
publicação, que encontramos a interlocução e a inspiração mais fecundas para a elaboração do
que seriam os efeitos cosmopolíticos de uma experiência literária em Vidas secas.69 A autora
disseca a ―
posição sempre contraditória encenada por seu narrador‖ (PACHECO, 2014, p. 43,
n. 19) como melhor via para se compreender ―
as difíceis relações entre o ponto de vista e o
mundo representado, seu lastro de realidade.‖ (Id. Ibid.).
69
Agradecemos a Roberto Zular a preciosa indicação do artigo de Ana Paula Pachêco, sem o qual boa parte dos
argumentos desta dissertação careceria ainda mais de consistência.
95
Partindo da observação de que, no romance, ―
o narrador de terceira pessoa se define
nas suas indefinições, como uma voz que oscila nos seus vínculos de classe‖ (p. 49), a autora
compreende que a postura do narrador coincide com a do intelectual de classe média
comprometido com o exato entendimento da realidade social e engajado eticamente em
auxiliar as classes subalternas a conquistar uma voz. Para isso, o discurso indireto livre, como
se convencionou caracterizar a narrativa da obra, ―
funciona como um atalho que conduz à
interioridade da personagem, sem abrir mão da intermediação (‗indireto‘)‖ (p. 51). Mantendo
a autonomia exigida para o rigor da análise social, ao mesmo tempo ―
a voz narrativa mistura-
se ‗intimamente‘ aos pensamentos, sentimentos e percepções da(s) personagem(ns) (...), sem
ser a voz de nenhum deles‖ (Id. Ibid.).
Implicada no dilema ético que constitui o ato de representar – a ambivalência inerente
ao ato de ―
falar em lugar de‖ – ―
a voz narrativa, que não é apenas ‗superior‘, busca, em
diversos momentos, aprender com as dificuldades e com a força das personagens‖ (Id., p. 49),
sem deixar de controlar, consertar e fornecer soluções pontuais para aquilo que ela mesma, a
voz narrativa, entende ser uma dificuldade atávica da expressividade dos personagens. Esse
gesto de segura generosidade instala, segundo Pacheco, uma ambiguidade na própria
expressão do narrador. Sua indecisão acerca do momento de interferir ressalta nas elaborações
da narrativa ―anão-coincidência das perspectivas, ou dos lugares sociais a que correspondem‖
(Id., p. 47). Tal disjunção posicional revela-se, no texto mesmo, ―
à medida que as próprias
cenas por vezes sugerem ou mostram o contrário do que o narrador diz, de tal maneira que
suas inferências ficam relativizadas, ou melhor, posicionadas.‖ (Id. Ibid.).
Essa ambiguidade seria, assim, o veículo de formalização do problema ético contido
procurador dos pobres‖, dado por Antônio Candido ao narrador de Vidas
no estatuto de ―
secas:
Se por um lado o estilo indireto livre é, no livro, uma solução de
compromisso para representar a pobreza sem forjar um modo direto de
acesso à fala e aos pensamentos que não costumam vir à tona na arena das
vozes públicas; por outro lado ele implica uma mistura de vozes em que a
instância narrativa traspassa a fala e o pensamento dos seres representados.
(...) Nesse sentido, pode-se dizer que os movimentos da prosa têm
correspondência na assimetria das relações entre o intelectual e os pobres – a
qual criticam, ao estranharem a intimidade do ―p ensar com‖, e repõem
noutros momentos, especialmente quando a fusão própria a esse tipo de
discurso se torna justaposição, comandada pela voz mais forte (Id., p. 51.
Grifos nossos).
Este narrador, assim, é o organizador do plano de desenvolvimento do enredo e dos
personagens. É pelo seu plano, generoso e seguro, que se garantem as ainda precárias
96
existências individuais, a capacidade mínima de distinguir ações e reações, a sequência lógica
de pensamentos e a coerência sentimental. Sem esconder a duplicidade envolvida em cada
ato, em cada cena, ele age como se fosse o único mediador possível para o acesso a essa
realidade. A consciência do narrador apresenta-se, assim, como uma hipóstase da consciência,
o―
universal concreto‖ de que fala Carlos N. Coutinho. Tudo se passa, segundo o narrador,
como se a única garantia possível de um saber literário fosse aquela da cadeia
autor/narrador/leitor, por ele mediada, cada qual representando o universo ficcional da obra,
uma série coextensiva àquela que reúne a consciência-intérprete do intelectual nacional e a
realidade por ele devidamente interpretada. O ―
procurador dos pobres‖ seria, assim, o
engenheiro social, o responsável pela maquinação científica que autoriza o sentido próprio e
autentica a capacidade interpretativa do leitor. Em certo sentido, o narrador, no ato engajado
de representar os pobres, acaba por ceder ao esquema de centralização da autoridade que
funciona como distribuidor da capacidade de fala e que é uma das operações da excisão das
agências outras-que-humanas que caracteriza o antropocentrismo; a autoridade do saber,
embora engajada em bem interpretar a voz dos outros, não é, aqui, de natureza distinta da
autoridade do governo, até mesmo porque é o poder e seu corolário que constituem, no
interior do antropocentrismo, o saber da autoridade.
A sugestão irresistível de Ana Paula Pacheco levanta a suspeita de que seja possível
evocar, na superfície mesma da narração, o plano em que deslizam o tumulto das outras
vozes, e valorizar este segundo plano do texto que se comporta de modo diverso e, como ela
mesma admite, ao revés do sistema representativo do narrador, essa irrupção das falas e cenas
não completamente dominadas pelo narrador e, mesmo assim, tendo que ser por ele tratadas.
Florência Garramuño assinala, em direção oposta à de Ana Paula Pacheco, que ―
o romance
demonstra, talvez (...) a recusa de constituir uma voz autoral à qual caberia o papel de
articular o sentido. Não haveria uma preocupação realista (...) mas um deslocamento da
política para outro espaço‖. (GARRAMUÑO, 2010, p. 98). Talvez, então, o saber claro e
distinto que o narrador tenta fornecer simultaneamente aos personagens (pois primitivos) e ao
leitor (pois distante), um saber sociológico e literário, não dê conta dos acontecimentos que se
precipitam no próprio texto. Estes acontecimentos, atravessando a própria chancela da voz
narrativa, seriam o espaço constituído pela experiência literária. Experiência que não é,
portanto, detida pelo sistema que o narrador medeia, mas cintila e se acumula no plano de
alianças engendrado pelas agências outras-que-o-narrador. A experiência literária que desloca
a posição do leitor em relação ao narrador (e, portanto, desloca – não suprime – a agência
97
mesma deste) é protagonizada antes pelos próprios acontecimentos, deslizando sobre essa
espécie de superfície subterrânea constituída pelas relações horizontais entre personagens que
agora não são mais (ou não apenas) autorizados pelo narrador, mas constituídos errática e
mutuamente segundo o campo de virtualidades da terra-sertão. Apontamos, preliminarmente,
a título de indicação, a aliança temporária entre Baleia e Fabiano/Sinhá Vitória na
constituição de linguagens inter-traduzidas, no episódio em que Baleia caça um preá e Sinhá
Vitória lhe beija o focinho (1, 14), que equivocam a natureza de ‗humano‘ e ‗bicho‘, mediante
um complexo de performances e imitações entre as pessoas envolvidas (‗pessoas‘ inclui
Baleia): a confusão ontológica que para o saber do narrador-intérprete significa um
rebaixamento da dignidade humana, enquanto aliança cosmopolítica engendra uma
problematização logicamente positiva dos modos-de-existência; ou, ainda, as pujantes
especulações dos personagens diante da radical assimetria de situações vividas segundo o
regime da autoridade ou segundo o regime do sertão, que, no plano de organização do
narrador é um saber amorfo, não-categórico e ilógico, no plano do sertão são ontologias
fabulativas que funcionam mais por conexão e transformação qualitativa do que por
individualização e sistematização – vide o episódio em que o Menino Mais Velho descreve a
cosmopolítica da floresta além dos serrotes (6, 56-60).
Parece-nos, assim, que, enquanto o sistema representativo organizado pelo narrador
exerce uma força centrípeta que no mesmo movimento tenta concentrar em si o acesso ao
mundo-sertão e estabilizar as individualidades – as consciências, as vidas interiores – dos
personagens, os acontecimentos precipitados no plano de composição extra-narrador deslizam
as identificações e as significações entre mundo e pessoas. A performance/imitação e a
fabulação seriam assim as estratégias cosmopolíticas, na forma de experiências literárias dos
personagens e, coextensivamente, estratégia cosmopolítica e experiência de leitura de Vidas
secas. Para acessar esse plano, é preciso habitar esse interstício deixado pelo dilema ético de
Graciliano Ramos diante da interrogação honesta de se é possível representar a fala dos
oprimidos70. Esse interstício parece ser já uma intromissão do segundo plano, no sentido em
que se a crítica justificadamente enxerga a contiguidade entre a posição do narrador e a do
escritor, por outro lado Graciliano mais de uma vez declarou identificar-se com todos os
personagens71. Se pudermos suspeitar, com Graciliano, que há uma espécie de ―
estranheza‖
70
O estudo de RIBEIRO, 2016 (pp. 73-129), como dissemos em nota anterior, se debruça sobre este tema da
representação da voz dos subalternos em Vidas secas. A certa altura, o autor diz que ―
Graciliano procura limitar
a linguagem ao indispensável porque, assim, limitaria a si mesmo como autor, abrindo espaço para a voz e a
demanda dos outros.‖ (p.77, grifo nosso.)
71
V. nota de rodapé n. 4, p. 16.
98
nos modos de vida daqueles ―
viventes‖ do sertão, que a distância da consciência crítica do
intelectual (escritor-narrador) impede de compreender, talvez também possamos com ele
suspeitar que seja possível ainda assim fazer uma experiência literária (escrever/ler) de Vidas
secas aliando-se antes aos viventes narrados do que ao escritor narrador.
Que efeito teria, então, prestar uma atenção mais detida a esse plano cosmopolítico de
Vidas secas, verificando que séries (e que tipos de) de entidades co-constituem-na e como
nela se comportam e qual o estatuto daquelas entidades individualizadas no plano da
autoridade desenvolvido pelo narrador? Que ―
outro espaço‖ a política ocuparia nesta leitura?
99
3. SERTÃO: EXTRA-, MULTI-
72
Utilizamos o termo indígena aqui no sentido que Eduardo Viveiros de Castro lapidarmente formulou, em
recente aula pública, fazendo oposição (positiva) com o conceito de ― índio‖ e (negativa) com o conceito de
―cidadão‖: ― Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se
estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-
rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou
seja, é integrar um 'povo'. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma 'população' controlada (ao mesmo tempo
―defendida‖ e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua
força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele
recebe seus direitos do alto.‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, pp. 9-10)
101
capítulo, p. 14) e se essa versatilidade salvífica é fruto da imersão indígena no multiverso do
sertão, da co-constituição de mundos entre a família e os outros entes ali presentes, então a
escassez e a insegurança não seriam efeitos nem da suposta obtusidade de espírito destes, nem
da suposta hostilidade natural do ambiente; ela viria de alguma outra ordem de fatores, uma
ordem que, ao impor a escassez, obriga à fuga final.
A fractalidade dessa divisão insegurança/segurança - escassez/fartura revela que algo
no romance oscila sempre, como se segundo dois regimes de existência. Toda a superfície que
constitui o romance se desdobra continuamente segundo os dois planos de que falávamos
anteriormente, estendidos sobre o corpo da narrativa. Dois planos na mesma superfície, um
plano da autoridade/do poder (plano de organização e desenvolvimento) e um plano do
sertão/cosmopolítico (plano de composição e consistência). Embora a imagem pareça contra-
intuitiva, neste caso ela se explica pela diferença de natureza entre plano e superfície. A
superfície é corpórea, extensiva: o texto e a narrativa. Os planos são as abstrações reais
(inclinações, desejos e afetos envolvidos na narração) que engendram transformações
material-semióticas – os sentidos que deslizam sobre o texto. Em Vidas secas esses dois
planos se implicam, disputam continuamente o espaço da superfície (o sentido do texto) e
aparecem um para o outro como que em miragens, como as manchas dos juazeiros na abertura
do romance.
Ao contrário da superfície, os planos são em si, totalizantes, ou seja, são irredutíveis
um ao outro, e no entanto, se dão em apenas uma superfície. Muito embora suas intensidades
variem de personagem para personagem e de capítulo para capítulo, nem os capítulos, nem os
personagens estão em um ou outro plano, eles deslizam inteiramente pelos dois planos –
incluso o narrador – mas suas aproximações e distanciamentos têm diferentes proporções
segundo estes planos. Nos episódios, por exemplo, da ―
Cadeia‖ e das ―
Contas‖ o ―
plano da
autoridade‖ ganha opacidade e o plano do sertão, transparência... Mas trata-se sempre da
mesma superfície sobre a qual os dois planos se estendem, como na imagem do
corpo/consciência de Fabiano: ―
Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os
cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava dos animais alheios, descobria-se,
encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.‖ (2, 18). Fabiano é branco, mas não
―
branco‖. Ou o contrário. E ao mesmo tempo. A natureza daquilo que gera uma subjetividade
e um corpo está em jogo em cada um dos planos: em um dos planos há uma síntese
afirmativa, categórica e descritiva: existe uma separação entre fenótipo e tipo e há para ela
uma genuína explicação sociológica; no outro, a síntese é interrogativa, sensorial e
102
imaginativa: existem modos de separação entre fenótipo e tipo e há neles perigosas
implicações cosmológicas e políticas. Tudo isso em torno dos sentidos dos termos ―
julgava-
se‖ e ―
cabra‖. Ao julgar-se, Fabiano pode estar afirmando ou pode estar especulando; e o que
torna Fabiano um cabra é uma implicação política, por estar ao mesmo tempo
cosmologicamente perto dos animais e socialmente longe dos brancos.73
O plano que temos chamado de plano da autoridade opera pela reincidente captura dos
eventos e personagens para dentro de um sistema que projeta neles uma individualidade e, no
mesmo instante, nega-lhes a plena participação. Plano da autoridade porque nele se acumula
tudo o que, no romance, impõe a ordem, a autoridade, o poder: o soldado, o patrão, o pai, a
cidade, a civilização. É neste plano que o sertão é reduzido em latifúndio com a promessa do
desenvolvimento, que Fabiano vira vaqueiro e exerce em casa sua autoridade patriarcal, que
Sinhá Vitória espanta os meninos e chuta Baleia; neste plano, a cidade, onde Fabiano é
humilhado e preso, se torna o centro do poder em relação ao sertão; é este plano que sequestra
a capacidade imaginativa dos personagens e nela inscreve projetos adequados às promessas
das autoridades (virar vaqueiro, ser citadino, triunfar humanamente). Trata-se do logos que
oprime, como o caracteriza Haroldo de Campos, ao teorizar sobre este romance: ―
dominar o
logos é aceder à condição de hominidade. Mas o logos despista. O logos é minado pelo
ideológico‖ (CAMPOS, 2006, p. 228).
Neste plano, o narrador desempenha o papel ressaltado por Ana Paula Pachêco, na
esteira de Antônio Candido, de ―
procurador dos pobres‖. Ao mesmo tempo que denuncia um
sistema opressivo, ele se posiciona como intérprete engajado em compreender, fornecer um
sentido e, ocasionalmente, salvar as vidas ali oprimidas. Não por acaso a marcação corporal
que o narrador faz dos personagens se parece com uma espécie de documentário de modos e
costumes. Por exemplo, no capítulo ―
Fabiano‖ (2, 17-25), há uma descrição do personagem
bastante semelhante àquele estudo de antropologia física que Euclides da Cunha dedica ao seu
tipo ―
sertanejo‖. Vejamos os dois trechos em sequência:
A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para
a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do
vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se
acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. (Vidas
Secas 2, 17).
É desgracioso, desengonçado, torto. O andar sem firmeza, sem aprumo,
quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados.
Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência
73
Consideramos, aqui, a ambivalência do termo ― cabra‖, que designaria tanto o animal de que se cuida, quanto o
fenótipo do ―m
ulato‖ nos interiores da região nordeste.
103
que lhe dá um caráter de humildade deprimente. (Os Sertões, p. 91)
Trata-se de um plano psico-sociologizante, no sentido em que a posição crítica e
generosa do narrador, ao mesmo tempo que captura e traduz as agitações subjetivas dos
personagens e produz para eles papéis específicos, também se distancia de seus aspectos mais
―
atávicos‖, interpretando os sinais de sua primitividade e afastando-se daquilo que ameaça sua
função de crítica categórica, ou seja, afastando-se do ―
sistema‖ anódino, ―
arcaico‖, de
subjetivação daqueles personagens, denotado em suas elucubrações ingênuas e erráticas, e a
estranha‖ cosmologia que nelas está implicada. São as estranhezas das posições dos
―
personagens diante do mundo que este plano captura e transforma em carências e
excentricidades a serem superadas.
Por sua vez, essas estranhezas são justamente as heterogenias que faíscam na
superfície do texto, engendradas segundo o plano que temos chamado ora de plano da
cosmopolítica, ora de plano do sertão, e que, embora constantemente capturadas pelo plano da
autoridade (isto é, pelo narrador-intérprete), insistem, rexistem na superfície. Esse plano não
se dá apenas em momentos específicos, como se fosse somente uma exceção pontual, mas em
todo o texto; é uma exceção de todo o texto, no sentido de que está totalmente fora do plano
que engendra um narrador-intérprete. É o sentido do texto todo que ele põe em jogo.
Seguimos aqui, a pista de Florência Garramuño, confrontando-a à abordagem de Ana Paula
Pachêco, de que, desde o título, Vidas secas ―
parece postular (...) uma série de diferenças e
subversões pausadas, cuja soterrada forma de ação consiste em fazer explodir por dentro os
pilares do realismo [convencional]‖ (GARRAMUÑO, 2010, p. 95). Assim, os acontecimentos
que nele anunciam outro regime de composição do mundo, fora do plano da autoridade,
podem lampejar por meio da desconfiança do ―
algo‖ que persiste naquelas vidas secas e que
não são subsumidas pelo narrador-intérprete no plano da autoridade. Onde, por exemplo, o
plano da autoridade projeta uma infra-humanização dos humanos por meio de sua
aproximação dos bichos – o que gera tanto a consideração inferiorizante da psicologia de
Baleia (neste mundo o pensamento dos homens seria tão primário que até uma cachorra pensa
como eles) quanto as metáforas pejorativas do narrador, como em ―
o corpo do vaqueiro
derreava-se (...). Parecia um macaco‖ (2, 19)... nessa mesma superfície o plano do sertão
engendra uma pluralidade de modos de ser gente, uma extra-humanização, como, um pouco
antes, se diz ―
Sim, senhor, um bicho capaz de vencer dificuldades‖. Para percebê-lo é preciso
demorar-se no que Gustavo S. Ribeiro considera ser o ―
estado de suspensão‖ em que a
―
língua de Fabiano‖ coloca o narrador (cf. RIBEIRO, 2016, p. 112).
104
O flagrante desse acontecimento só é possível mediante a concepção dessa posição
narrativa ambígua habitada por Graciliano, para a qual alertamos no final do capítulo anterior.
Trata-se de fazer alianças com a perspectiva de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos Meninos e de
Baleia, como inscritas na superfície do texto (ou seja, considerando as contradições das
perspectivas narrativas e as origens dessas contradições), de desdobrar especulativamente suas
estratégias de resistência e seus modos de vida. O plano do sertão exige habitar
especulativamente o sertão. Neste sentido, um plano cosmopolítico de Vidas secas opera por
deglutição e metamorfose, por cujo meio a superfície, o texto, funciona absorvendo e
transformando tudo o que nele se precipita, em favor das estratégias de rexistência do sertão.
Uma propriedade privada é ocupada por retirantes; uma cachorra pensa, imagina e deseja; a
terra e o céu não são mais apenas cenário, mas dialogam, enviam significantes-corpos, se vem
chuva ou se não vem. Neste plano, o papel do narrador é obliquado. O fato de ele não ―
emitir
nenhum tipo de explicação sobre o próprio romance pode não ser interpretado como uma
falta, mas como uma forma da negação‖ (GARRAMUÑO, 2010, p. 97). Aqui ele não pode
mais ser intérprete, mas é impelido a fazer como e com os personagens-acontecimentos. Ele
comporta-se como um narrador-performer, como veremos mais abaixo. É como se técnicas de
composição do mundo, incompreendidas e constantemente ameaçadas, oprimidas e
sequestradas pelo plano da autoridade, persistissem como modos de vida naquelas vidas que,
se secas, ainda são vidas. Essas técnicas são os acontecimentos do plano de consistência, o
plano do sertão.
Entretanto, e essa é a maquinaria da leitura cosmopolítica do romance, os planos se
dão em dimensões diversas: o plano da autoridade perpassa e perfaz o narrador-intérprete,
mas também constitui os efeitos de autoridade no interior do enredo; o plano cosmopolítico
perpassa e perfaz os acontecimentos do sertão no enredo, mas também instaura tensões entre o
narrador e a narrativa. Cada um dos planos separa-se do outro de modo diferente, implicando-
se um no outro constantemente. Cada um dos planos inscreve na superfície da narrativa
diferentes movimentos que são endereçadas ao outro plano: se no plano do sertão, os
movimentos são horizontalizados, contíguos e centrífugos (rastros no chão que levam a
rastros no céu, alianças entre bichos e gentes, caminhadas, proximidades), no plano da
autoridade tudo se dá como aplicações verticais do movimento de captura e centralização,
como os ―
cascudos‖ e ―
cocorotes‖ que Sinhá Vitória aplica sobre os meninos; o poder
pervade tudo (prisão, constrangimento, morte). Se o plano da autoridade prescinde do outro
plano para se realizar (porque o enquadra, o suprime, o ―
desenvolve‖), o plano do sertão
105
necessariamente considerará o poder que pesa sobre ele e precisará daquela ―
vigilância
constante, autoquestionamento e negociação de estratégias teóricas e textuais sempre
renovadas‖ de que fala Gustavo S. Ribeiro, advogando uma leitura na qual os subalternos
―
possam fazer uso de sua voz‖ (RIBEIRO, 2016, p. 87). Enquanto no plano do sertão uma
cachorra pode se fazer de gente, uma mulher pode imitar um papagaio, um homem-cabra
injustamente encarcerado pode avaliar corretamente que nunca terá lugar numa sociedade
hierarquizada e que é melhor aliar-se ao mundo do sertão, no plano da autoridade o agregado
de acontecimentos heterogêneos que atravessam insistentemente essas vidas secas é anódino,
caricato e precisa ser interpretado, desenvolvido, dominado. Donde se depreende que a
tristeza dos personagens não vem da terra, vem do poder que se abate sobre a terra; e que o
pessimismo de Graciliano finalmente se explicaria, neste romance, pelo triunfo triste de um
mundo super-humanizado.
Haver dois planos na mesma superfície do texto não quer dizer que há dois textos.
Assim como em relação aos dois planos (―
branco‖ e ―
não-branco‖) que atravessam o corpo de
Fabiano, no caso do texto, trata-se sempre de mais que um e menos que dois74. Mais que um
texto, devido às implicações totalizantes de um ou de outro dos planos de leitura, mas menos
que dois, pois não temos dois romances distintos. Mais que um sertão, pois as direções
apontadas por cada um dos planos são irreconciliáveis (o sertão que emerge do poder do
coronel não é o mesmo sertão que é constituído pela interação de modos de vida), mas menos
que dois, pois chega a hora em que o sertão, desoladoramente, é desertificado...
A imagem da cacimba pode nos aproximar do sentido em que dois planos habitam a
mesma superfície75: ―
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco,
achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que
a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito.‖ (1, 14).
A cacimba é uma técnica muito antiga de obtenção de água, no sertão, durante os
períodos prolongados de estiagem. Como se sabe, os cursos d‘água no semiárido são em sua
quase totalidade intermitentes, eles secam no período entre-chuvas, de forma que é possível,
num período do ano, caminhar sobre um rio como se por uma estrada de areia. Em alguns
pontos desse leito seco é possível encontrar fluxos de água correndo entre a camada de areia.
Porém, não em qualquer ponto. É preciso achar o veio da água. Essa é uma tarefa para os que,
74
Essa expressão é usada magistralmente pela antropóloga peruana Marisol de La Cadena para explicar a
―f ormação complexa‖ das ontologias indígenas dos povos andinos em suas relações com os aparatos estatais. Cf.
DE LA CADENA, 2010.
75
Esta aproximação imagética me foi sugerida por Guilherme Abilhoa, em comunicação pessoal.
106
no sertão, são chamados de ―
vedores d‘água‖ ou ―
adivinhões‖, pessoas que se considera terem
capacidades incomuns para perceber onde estará o veio d‘água. Elas geralmente utilizam-se
da observação e da sensação corporal veiculada por uma forquilha de madeira, feita de um
galho ainda com seiva, que lhes serve de guia e que, ao tremular em suas mãos, indica a
localização da água. Naquele local, instala-se a cacimba, uma abertura, a poucos metros de
profundidade, às vezes mesmo algumas dezenas de centímetros, para onde vertem os veios
d‘água que ocorrem na areia.76
A cacimba revela que, no sertão, um rio é uma superfície com dois planos. É um rio,
mas é uma estrada. O rio está seco não porque não tem água, mas porque ela está invisível. A
água não está embaixo da terra (uma cacimba não é um poço), ela está no corpo da areia, logo
ali. Uma superfície: dois planos. Fabiano descobre o segundo plano com as unhas. É ali que
existe alegria. ―
Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo.
Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente
cobria-se de cirros - e uma alegria doida enchia o coração de Fabiano‖ (1, 14). E a alegria,
como se sabe, é a prova dos nove.
76
O IRPAA (Instituto Regional de Pequena Agropecuária Apropriada), organização não-governamental sediada
no sertão da Bahia, elaborou uma cartilha sobre as experiências dos vedores d‘água e as técnicas de escavação de
cacimbas no semiárido. Cf. GNADLINGER, 2001.
107
precisava chegar, não sabia onde‖ (1,10) – ―
fechou os olhos.‖ (1,9). Fabiano ― Fabiano queria
viver‖ (1, 14), ―
não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras.‖ (2, 23).
São mapas de tipos diversos: cartografias corporais, geográficas, cognitivas, celestiais,
que se interpenetram e geram estados de transformação. O plano do sertão não é idílico, é,
pelo contrário, muito perigoso. Conviver com o sertão supõe aliar-se, confrontar e se
aproveitar das oportunidades do mundo: é preciso fazer mapas (como o mapa conceitual de
Sinhá Vitória, decifrado por Fabiano, a partir da aparição das aves de arribação. 12, 109).
Baleia sabe: ―
Baleia tomou a frente do grupo (...), de quando em quando se detinha,
esperando as pessoas, que se retardavam.‖ (1,11). O sertão, aqui, não oferece senão
possibilidades de conexões parciais77. Diferente do plano da autoridade, que promete um
lugar específico, um papel determinado e a dignidade humana – e nunca cumpre.
Na rota até os juazeiros, Fabiano encontra um canto de cerca (uma circunscrição do
poder) e ―
encheu-o a esperança de achar comida‖. Chegam ao ponto dos juazeiros.
Acomodam-se. Trata-se de uma fazenda, um ponto por excelência. Porém abandonada, ―
uma
fazenda sem vida‖, não havia comida. ―
Certamente o gado se finara e os moradores tinham
fugido‖ (1, 12). A promessa de segurança oferecida pela fazenda, pelo latifúndio, não se
cumpre. O ponto aonde eles chegam é exatamente igual àquele do qual haviam saído, pois
também eram ―
fugitivos‖ (1, 13) de um ―d
esastre‖ (1, 11).
Mas o sertão das rotas cumpre a oferta das conexões parciais. Fabiano volta aos
Neste ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de
juazeiros: ―
preás, farejou um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu correndo.‖ (1,13). Do mapa
terrestre que Baleia desenha, Fabiano compõe outro, terrestre-celeste: ―
seguiu-a com a vista e
espantou-se: uma sombra passava por cima do monte‖ (1,13). O mapa terrestre-celeste é de
fundamental importância neste plano, pois em todo o romance aparecerão inter-determinações
entre as rotas destes rastros: olhares para o horizonte, decifração e seguimento de signos –
como as nuvens, as estrelas, a incandescência do sol e as aves de arribação. Para compor rotas
é preciso estar atento e examinar os rastros no mundo, aliar-se ao sertão. Esse exame, porém,
não é feito de ideias transcendentes, mas de uma espécie de especulação corporal: 78 ―
Espiava
77
O termo é emprestado, e deslocado, de Partial Connections (STRATHERN, 2014), livro em que a eminente
antropóloga inglesa, avançando a ideia de James Clifford de que a escrita etnográfica só poderia produzir
―v erdades parciais‖, sugere que o texto etnográfico seria, antes, um instrumento para evidenciar diferentes
contextos (o do observador, o do seu interlocutor, o do leitor, o da disciplina em que está inserido...) envolvidos
em sua elaboração. Um texto etnográfico produzido, irremediavelmente, por meio de conexões parciais, assim,
seria impossível de ser submetido à prova de uma metodologia universal/impessoal, importando mais os efeitos
que ele pode traduzir do convívio da pesquisa e os que pode produzir no âmbito disciplinar e além.
78
Renzo Taddei, falando acerca da prática do rastejo entre os ― profetas da chuva‖ do sertão do Ceará, diz que
108
o chão como de costume, decifrando rastos (...), observando esses sinais e outros que se
cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar o solo - e a catinga deserta
animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam‖ (11, 99).
Os mapas engendram alianças. De volta aos juazeiros, os personagens juntam-se,
desvalidos. Baleia retorna com a caça e partilha: ―
Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia‖.
Os mapas, as conexões e alianças parciais servem, no sertão, como motor da vida: ―
Aquilo era
caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver‖ (1,14). Nova rota
e novos mapas: Fabiano desce a ladeira, cava uma cacimba, sacia-se, conta as estrelas e –
principalmente – percebe as nuvens no horizonte! Alegra-se e volta. As nuvens engendram
novos mapas. Por causa delas, Fabiano imagina um futuro próximo e a metamorfose dos
corpos: ele deixaria de ser coisa, como a bolandeira de seu Tomás, ―
a catinga ressuscitaria, a
semente de gado voltaria ao curral, ele seria o vaqueiro‖. Chocalhos, brincadeiras, vestidos, ―
a
catinga ficaria toda verde‖ (1, 16). Transformações.
O que é um ponto para o plano do sertão? É a possibilidade de novas rotas. Assim, o
ponto de ―
uma fazenda sem vida‖ só pode revivescer ao ser enredada em novas rotas e novas
alianças: é preciso ir do juazeiro ao monte, do juazeiro à cacimba e de volta, da cacimba ao
horizonte, dos corpos-estáveis (mortificados) aos corpos-em-transformação (revivescidos).
Mapas e alianças para ocupar a fazenda e desrespeitar as cercas. Um mapa não se reduz, aqui,
à sua significação cartográfica, nem, muito menos, a uma concepção puramente positiva,
como se em contraposição aos pontos, puramente negativos. Um mapa é feito desde pontos e
para fora dos pontos; este movimento constitui o plano do sertão: como Sinhá Vitória
andando ao redor de casa, como Baleia nos bancos de macambira, como a imaginação do
Menino Mais Velho nos montes e capões de mato, como os sonhos de Fabiano e Sinhá
Vitória que conectam seus corpos aos corpos de cabras, de meninos, da caatinga, da cachorra.
Diferente dos procedimentos da autoridade que são centrípetos, jogam o sertão para fora e
desde esse fora absoluto, sugam, sintetizam, reduzem tudo ao par super-humano/infra-
humano: como Fabiano reduzido a empregado diante do patrão e a autoridade diante da
família. Os mapas do sertão constituem-se desse fluxo de metamorfoses intermitentes que
conectam parcialmente os corpos, atravessando-os, uns transformando os outros e a si nos
outros: ―
As cores da saúde voltariam à cara triste de Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam
na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria
verde.‖ (1, 16). Esses mapas animam o sertão: ―
[Fabiano] espiava o chão como de costume,
―
rastejo é algo que se faz com o corpo, e não (usualmente) com as ideias‖ (TADDEI, 2014, p. 598).
109
decifrando rastos (...) observando os sinais que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda,
parecia farejar o solo – e a catinga deserta animava-se‖ (11, 99). São as zonas onde as
perspectivas/corpos podem se implicar, interpenetrarem-se e, talvez, se misturarem, que
geram os mapas do mundo: ―
Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas
andavam em cima dela. Como era possível haver estrelas na terra?‖ (6, 61).
Já para o plano da autoridade, o que é uma rota? É, em vez da possibilidade de
encontros, a falta de pontos. Durante todo o romance, este plano oferece constantemente a
falsa segurança de pontos sedentários: a fazenda no começo (―
Mudança‖), a cidade no meio
(―
Festa‖), o Sul no fim (―
Fuga‖). E não se trata apenas de pontos geográficos, mas também
ideográficos e sociais, por assim dizer. O ponto da cama que promete fazer Sinhá Vitória ser
uma igual a seu Tomás da Bolandeira é o que captura os mapas que ela faz ao redor da casa e
Nesse ponto, as ideias de Sinhá Vitória seguiram outro caminho, que pouco
pelas memórias: ―
depois foi desembocar no primeiro‖ (4, 45). No plano da autoridade, os trajetos transformam
as pessoas em menos que gente. O narrador-intérprete oferece uma figura não muito lisonjeira
de Fabiano, em sua rota da cacimba aos juazeiros, que ele percorre fazendo seus mapas
Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava
cosmopolíticos: ―
muito da bolandeira de seu Tomás‖ (1,14). Em vez de fortalecer o plano do sertão, retirar dele
o açoite do poder e promover as rotas e as conexões, o plano da autoridade, que engendra o
narrador-intérprete (que é, na nomenclatura que emprestamos de Deleuze, o plano de
desenvolvimento) exige uma negação das rotas, dos mapas e alianças, por exemplo,
prometendo a Fabiano (e impelindo-o a pontuar-se em) lugares fixos, geográfica e
A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria
socialmente: ―
dono daquele mundo‖. (1, 16). Sublinhamos a expressão para bem dizer, porque é justamente
pensando bem‖) que o romance vai sendo pontuado (as rotas
por ela (e suas variações como ―
capturadas em pontos). ―
Bem dizer‖, neste caso, significa, adquirir a clareza de um ponto
imóvel, no qual não há transformação; aí, ou não se tem um papel definido (e é-se uma coisa)
ou o papel definido lhe designa uma autoridade cada vez maior: o vaqueiro o é de uma
fazenda, mas o dono o é de um mundo.
110
feito uma leitura provisória e rápida perceberá que o que chamamos de plano da autoridade
vence incontestavelmente o jogo. Quase toda a imensa crítica que se dedicou a este romance
parte desta vitória (ainda que, claro, sem chamá-la de vitória ou de plano da autoridade). O
fato é que ao final Baleia terá morrido, Fabiano e Sinhá Vitória culparão a ―
natureza‖ pela
seca e ir-se-ão embora para a cidade do Sul. A vitória do plano da autoridade é justamente
esta: o abandono do sertão. Porém, dela só temos acesso pelo narrador-intérprete, que sequer
lamenta esta fuga. Quase que a celebra, como uma libertação, uma emancipação da terra
ingrata. Como se, aos poucos, a chegada da estiagem também propiciasse ao narrador-
intérprete uma definitiva proposta sedutora de aliança civilizatória, e ele pudesse interferir
diretamente nas elaborações daqueles nativos que servem de trabalho de campo para a sua
etno-psicografia. Como se a seca fosse a oportunidade de subsumir inteiramente o sertão
(dominá-lo, segundo o patrão; explicá-lo, segundo o sociólogo; superá-lo, segundo o
progresso). Não por acaso, a história das secas é indissociável da história da indústria da seca.
A catástrofe ecopolítica que tão bem conhecemos é imputada à natureza justamente por
aqueles que mais a fomentam e com ela mais lucram.
Apoiamo-nos numa observação de Vilma Arêas acerca deste narrador de Vidas secas:
―
a partir de certo momento começa a ficar muito claro para o leitor que a onipotência do
narrador existe como feição delirante de sua impossibilidade de falar disso. Sua insistência
acompanha (...) o incerto raciocínio de Fabiano‖. (ARÊAS, 2005, p. 95. Grifo da autora.). O
que é esse disso de que a autora fala? O que acontece com o mundo e seus corpos desde a
perspectiva do ―
incerto raciocínio de Fabiano‖? Se o narrador-intérprete faz-se procurador das
vítimas, como essas vítimas se comportam no corpo do texto? Que estratégias de rexistência
são aí tentadas ou realizadas? Que tipo de interação política e cosmológica estão nelas
implicadas? Essas são perguntas que orientam o desdobramento do plano cosmopolítico. O
próprio sistema de deslocamentos pode servir como chave de leitura aqui. Parece haver um
mapa antropológico e cosmográfico empreendido pelos próprios personagens, e que inclui,
como agentes, os seres extra-humanos da terra.
No agregado polimorfo que perfaz a narrativa parece haver uma sequência de
movimentos, repetida e diferida a cada vez. O vai-e-vem da descrição do narrador, dentro,
próximo e fora da consciência dos personagens, performa justamente essa dança em que os
mundos de cada personagem se mimetizam uns aos outros. Se um possível corpo
performático do narrador desloca-se por entre os corpos-outros dos personagens, dos quais a
narrativa é constituída, estes, por sua vez, são constituídos dos corpos-outros do cosmos, do
111
qual participam coextensivamente tanto as intermitências da língua, quanto seus afetos,
pensamentos e desejos. Se o Menino Mais Novo performa Fabiano amansando um cavalo,
Fabiano performa um ―
bicho capaz de vencer dificuldades‖ (2, 18); se Sinhá Vitória, quando
de salto alto, anda feito o papagaio (4, 42), o papagaio reproduz o aboio de Fabiano e imita o
latido de Baleia (4, 43), que, por sua vez, em seus saltos de alegria, anda de dois pés,
―
imitando gente‖ (4, 39).
A maquinação do romance propicia uma experiência que se dá nas passagens confusas
entre os dois planos de estar-no-mundo-com-os-outros. Um plano institui e é instituído pela
distribuição precisa e ordenada de um sistema de posições que medeiam, fazem reduções
sintéticas da matéria narrada: o narrador medeia, de um lado, a relação de Fabiano consigo
mesmo e com o mundo, para lhe garantir uma dignidade de Homem; se, por um lado, ele
torce e se esforça para que o personagem ganhe altivez e coragem diante dos poderes
opressores, por outro, faz isso coagindo o vaqueiro errante a entrar no jogo da
autodeterminação que não é outra coisa senão o projeto de humanidade autônoma; e é por
isso, nesse regime, que Fabiano também medeia a relação do cosmos com o projeto de
humanidade emancipada (projeto sempre oferecido e nunca efetivado), uma autoridade que
não consegue realizar plenamente, entristecendo-o. O narrador, por outro lado, também
medeia a relação do leitor com tudo isso, fazendo com que ele permaneça na posição
incômoda mas altruísta de compreender o que se passa, como um cientista social, um
psicólogo e um filantropo. Neste regime, o narrador distribui e retira as agências conforme o
seu plano de interpretação: ele interpreta sociológica e psicologicamente os personagens,
pretende sintetizá-los numa dicção de fácil manuseio intelectual (―
para bem dizer‖). A série
de mediações sintéticas é um sistema de poder.
O narrador narra, interpreta a história, sociologiza e celebra uma pequena vitória de
Fabiano sobre o poder opressivo, fornecendo-o um papel social: ―
Apossara-se da casa porque
não tinha onde cair morto (...). Viera a trovoada e, com ela, o fazendeiro, que o expulsara.
Fabiano fizera-se de desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando (...) E o patrão
aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro. Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria
dali.‖ Mas eis que, na imediata sequência, algo surge no texto que, se não retira a palavra do
narrador, muda-lhe a dicção: ―
Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas
criara raízes, estava plantado‖. Ora, de onde vem essa mudança frasal radical, da história e da
sociologia normatizante para uma espécie de performance indígena? Vemos na sequência.
Um deslize do narrador e é já uma outra forma de espacialização, outra espécie de
112
subjetivação e outra cosmografia que aparecem, já não mais interpretada pelo narrador, mas
impelindo-o a narrar e a reproduzir: ―
Olhou as quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era
mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois
filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.‖ Do ponto de vista de um dos planos, é
uma impotência do narrador que revela um rebaixamento da dignidade de Fabiano e da
família; do ponto de vista do outro, o impoder que se manifesta na narrativa (o narrador ser
não eliminado, mas diferentemente agenciado) abre espaço para o devir-bicho-planta-terra.
Toda a narrativa é costurada por esses como se pelos quais os personagens diferem de
si mesmos. Pelo movimento pulsante de aproximação e distanciamento, o poderoso narrador,
neste plano, faz as vezes de um veículo das vozes conflitantes, justapostas ou entrecruzadas,
dos personagens; ele habita simultaneamente, como um leitor, o dentro e o fora dos desejos e
imaginações do que narra e, portanto, é descentrado de si mesmo em favor da multiplicidade
locutória do texto. Por ser o narrador o veículo dessas evoluções interiores/exteriores ele se
comporta, no plano cosmopolítico, antes como um performer do que como um intérprete, no
sentido em que aquilo que uma interpretação fecha e harmoniza, uma performance abre e
multiplica. Assim com Sinhá Vitória: ―
Encostou o fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava
pensando?‖ (4, 42), a pergunta é ao mesmo tempo do narrador e de Sinhá Vitória; com o
Menino Mais Novo: ―
Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos
couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo‖ (5, 47);
com Baleia: ―
A cachorra Baleia (...) repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera
de um osso (...) Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta
certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados‖ (6, 55). Todo o romance
é bordado por essa pulsação do narrador-performer entre descrições exteriores e exibição dos
desejos, memórias e especulações dos personagens.79 O narrador como performer é um
79
Esta pulsação por meio da qual queremos evidenciar o caráter performático do narrador no plano
cosmopolítico é uma forma de considerar o discurso indireto livre ao avesso da ideia de onipresença
interpretante que nos parece estar na base da apreciação do papel deste narrador por parte de Ana Paula Pacheco.
Recordamos a maneira com que a linguista J. Authier-Revuz fala do discurso indireto livre como sendo um dos
modos ― de negociação com a heterogeneidade constitutiva‖ do discurso. Se as ―f ormas marcadas da
heterogeneidade mostrada‖ (a saber, citações, aspas, expressões como ― para bem dizer‖, toda sorte de
apontamentos da intromissão de uma instância alheia ao sujeito suposto falante que, na medida em que delimita
o surgimento do ‗outro‘ garante também a solidez do ‗eu‘ que fala) são dispositivos de segurança, um tanto
caretas, para um sujeito-discursante (por exemplo, um narrador) que tenta esconder e se livrar da
heterogeneidade constitutiva de todo discurso, as formas não-marcadas (ironia, metáforas e discurso indireto
livre, por exemplo) estabelecem relações arriscadas com esta heterogeneidade constitutiva ― porque joga com a
diluição, com a dissolução do outro no um, onde este, precisamente aqui, pode ser enfaticamente confirmado,
mas também onde pode se perder‖ (AUTHIER REVUZ, 1990, p. 34). No nosso caso, o discurso indireto livre
serve para retirar do narrador-intérprete o controle total da narrativa e verificar que aquilo que ele veicula pode
também ser uma coreografia, uma espécie de ritmo corporal do texto que ele é levado a performar.
113
coreógrafo que mimetiza o movimento do pensamento, compartilhando da mesma categoria
de actante dos personagens e provocando a multiplicação dessa performance no movimento
exigido do leitor. As metamorfoses por que Fabiano passa indicam que essa performance do
narrador ora vem de uma espontaneidade descuidada devido à sua promiscuidade com a
subjetividade do personagem, ora em tom pejorativo, como uma espécie de obrigação
narrativa que ele, ao efetuar, distorce. Veja-se por exemplo a mudança de tonalidade entre
quando se diz que Fabiano ―
parecia um macaco‖ e ―
roncava como um porco‖ (10,98), e
quando se diz que, ―
aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes,
estava plantado (...) era como as catingueiras e as baraúnas‖ (2, 19); ou ainda entre quando se
diz que ―
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem
cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia.‖ (2,19), e quando se diz que
―
de perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu‖ (5, 47). Além de
Fabiano, os outros personagens participam desse trânsito interespecífico e diferentemente
agenciado: o papagaio, que ―
aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a
cachorra‖ (1, 11); ou o Menino Mais Velho, que ―
imitava os berros dos animais, o barulho do
vento, o som dos galhos que rangiam na catinga‖ (6, 59); e ainda a exortação interior de
Fabiano: ―
precisavam ser duros. Virar tatus‖ (2, 24). O que ocorre com isso é um constante
ajuste morfológico dos corpos, que, em vez de apagar, multiplica as diferenças,
interiorizando-as. Cada corpo participa dos outros corpos; a agência performática, por assim
dizer, é descentrada. ―
Ossos e seixos transformavam-se às vezes nos entes que povoavam as
moitas, o morro, a serra distante e os bancos de macambira‖ (6, 59). O trânsito de corpos
sugere haver um cruzamento de perspectivas, ou seja, de mundos diversos e interpenetrados.
Se Fabiano age como ―
um bicho‖ e Baleia age ―
como gente‖ é porque mais do que a
coincidência, é a diferença de si que decide a capacidade de agir.
Neste plano da narrativa, os homens devêm animais, para que os animais devenham
outra coisa.80 A-gente é quem imita, isto é, difere de si mesmo, vira outro. Essa com-fecção81
do mundo retira a vantagem do Homem sobre a linguagem e propaga a capacidade
performática entre seres-outros-que-humanos, instaura um campo de extra-humanidades
atuantes. Aqui, onde há a partilha de agência (riqueza) pela capacidade de diferenciação
(variação), uma abordagem super-humanista enxergaria uma redução e uma pobreza82. Porém
80
Paráfrase do dito de G. Deleuze, reelaborado em comunicação pessoal de Alexandre Nodari.
81
Confectio: ação de realizar algo a partir de uma mistura.
82
―[O] seu mundo interior [de Fabiano] é amorfo e nebuloso, como o dos filhos e da cachorra Baleia‖, lamenta
Antônio Candido (2006a, p. 146). E Rui Mourão denuncia: ― movem-se oprimidos dentro da casca de um
embotamento total. O primarismo de seu raciocínio é geral... Ninguém ali tem condições para enxergar muito
114
o que a distribuição da actância das performances faz é criar os universos, multiplicar os
centros irradiadores do enredo, lançar, segundo o que diz Caetano Veloso dos livros, ―
mundos
no mundo‖. Os corpos que instauram mundos ―
transformam-se fisicamente numa resistência
bárbara‖ (MOURÃO, 2003, p. 132) – atributo distintivo do sertão, nas suas representações
literárias e culturais. O funcionamento variante dos corpos segue a natureza metamórfica das
nuvens, sujeitos da maior importância no sertão semiárido e, também no romance, observados
atenta e ansiosamente por todos: eram ―
como carneirinhos, mas desmanchavam-se e
tornavam-se bichos diferentes‖ (5, 50).
a linguagem, parece dizer Vidas secas, é mais
Como desconfia Florência Garramuño, ―
performativa que representativa‖ (GARRAMUÑO, 2010, p. 97). O estatuto vacilante de
Baleia é decisivo para este funcionamento deslizante dos corpos. Baleia é fazedora de mapas:
persegue rastros, imita gente, calcula, imagina, fabula. Gustavo S. Ribeiro assinala que, nas
relações entre Baleia e o restante da família,
uma espécie de continuidade, de transmissão, se estabelece: o mesmo
impulso que percorre o corpo de Fabiano e Sinhá Vitória, apesar de sua
origem racional (toda reflexão sobre o porvir sempre envolve um tipo de
cálculo) também atravessa a existência de Baleia, só que motivado por
outras e mais imediatas demandas. Mas a provação compartilhada, por mais
que seja percebida de modos distintos pelos homens e pelo animalzinho,
coloca a todos num mesmo lugar, num mesmo percurso em que as fronteiras
que os separam se vêem, de algum modo, questionadas. (RIBEIRO, 2016, p.
122).
É o regime mesmo da ―
linguação‖, da gênese, do comportamento e da função da
linguagem, que está em questão neste plano. A linguagem só funciona, ou seja, só passa a
existir, quando se realiza como trânsito de formas, transformação dos corpos-consciências.
Enquanto permanece ferramenta do plano da autoridade, para os seres daquela família a
linguagem não passa de engodo (o patrão que engana Fabiano), de inutilidade (o saber frívolo
de seu Tomás), de poder (a prisão contra a qual Fabiano não tem palavras). Entretanto, há este
outro agenciamento da linguagem, um circuito que conecta frases, interjeições, modos de se
portar, corporificações, afetos e que estabelece uma política da performance cósmica.
Caberia considerar aqui uma observação de J. Derrida acerca da dialética entre as
ideias de natureza e imitação na filosofia musical de Rousseau:
Em diferentes níveis, a natureza é o solo, o grau inferior: é preciso transpô-
lo, excedê-lo, mas também alcançá-lo. É preciso retornar a ele sem anular a
diferença que separa a imitação do que ela imita. É preciso pela voz
transgredir a natureza animal, selvagem, muda infante ou gritante; pelo
canto, transgredir ou modificar a voz. Mas o canto deve imitar os gritos e
além do que se encontra à frente dos seus próprios olhos‖ (2003, p. 128).
115
lamentos. De onde uma segunda determinação polar da natureza: esta se
torna a unidade – como limite ideal – da imitação e do que é imitado
(DERRIDA, 1973, p. 241).
Se pudermos utilizar o princípio da ―
natureza paradoxal‖ de Derrida (natureza que é ao
mesmo tempo objeto e campo da imitação) para entender o caso de Vidas secas, diremos que
solo, grau inferior‖) é a subjetividade
no romance a natureza-objeto da imitação (―
corpo/consciência, a existência dos corpos-agentes enquanto sempre em relação com outros
corpos: a caatinga que arrepia (n)o homem, as nuvens que viram bichos, o homem que é como
as plantas, a mulher que é como o papagaio, o menino que é como o homem, a cachorra que é
unidade da imitação e do que é imitado‖) é a capacidade de
como gente. A natureza-campo (―
diferir na e pela imitação dos corpos, de fazer-se gente/bicho, que constitui um mapa vital das
conexões parciais entre os corpos do sertão. O movimento de assemelhar e diferir
simultaneamente, habitar um espaço indeciso entre Fabiano-bicho, Fabiano-planta, Baleia-
bicho, Baleia-gente, são os acontecimentos do plano do sertão. Agir como gente, no sertão, é
sempre agir a partir e com os outros seres: decifrar e enviar sinais, perseguir rastros e deixá-
los, aproveitar-se das circunstâncias, fazer alianças, confrontar, conviver. A performance
universal é o modo desse agir. Aqui faz sentido, em uma direção oposta, a sinopse com que
Danilo D. Bartelt explica como o sertão era visto pelos poderes centralizadores no século
XIX: ―
No sertão a Cultura é a Natureza, evidentemente oposta à Civilização‖ (BARTELT,
2003, p. 587). Em uma direção oposta porque esta síncope sintetiza o sertão pela negatividade
que o Império lhe atribuía (no sertão faltaria cultura porque a natureza a havia engolido) e, no
nosso caso, ela serve como descrição de uma positividade do sertão, se lhe invertemos os
termos: a natureza, no sertão, é cultura, é política. Bento Prado Jr. comenta aquela passagem
de Derrida acima citada nos seguintes termos: ―
É a obliquidade da imitação que fornece a
unidade destes dois movimentos contraditórios [a natureza-objeto e a natureza-campo da
imitação] (...). Se a imitação deve ultrapassar a natureza para alcançá-la (...) é porque é
apenas pela imitação que a natureza se mostra e se deixa ver‖. (PRADO Jr., 2008, p. 159.
Grifo do autor).
Habitando/performando o devir-outro de cada personagem, o corpo da narrativa
redistribui a habilidade comunicativa entre os entes do mundo por meio da possibilidade de
variação dos corpos. Não apenas o Homem não detém o privilégio da linguagem – porque a
linguagem-própria-do-humano não é nenhuma vantagem para o homem-Fabiano, para os
homens-meninos – como a própria linguagem é redimensionada e seus meios multiplicados
116
de acordo com os movimentos de intensificação e distensão.83 ―
Às vezes [Fabiano] utilizava
nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações,
onomatopeias‖ (2, 20). Como diz Alexandre Nodari, nesta obra, há ―
um novo uso da
linguagem e da imaginação, a linguagem vai se reelaborando, incorporando o contato com a
subjetividade e a linguagem não-humanas, atravessada pela animalidade‖.84 É o próprio
Fabiano quem, numa repentina mudança de ânimo, oferece ao narrador uma entrada para os
modos de co-constituição de mundos vigente no sertão:
Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse
aparecido um buraco. (...)
- Ecô! Ecô!
Baleia voou de novo entre as macambiras. As crianças divertiram-se,
animaram-se, e o espírito de Fabiano se destoldou. Aquilo é que estava certo.
(...) bater palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do
animal. (2, 21).
Pelo cruzamento de perspectivas, em Vidas secas, como observa Assis Brasil, ―
o
contato do personagem é direto com o mundo‖ (ASSIS BRASIL, 1969, p. 28), isto é, a
interioridade que este mesmo crítico, entre outros, ressaltara como característica da prosa de
Graciliano Ramos, é, em Vidas secas, um efeito do cruzamento de exterioridades; a
perspectiva – o mundo (interior) – é um agregado de mundos. Sendo um ―
romance telúrico‖,
decorrência da paisagem‖85, Vidas secas é um romance simultaneamente social e
uma ―
cosmológico, porque não há nenhuma síntese possível entre o sistema de opressão e os
modos-de-existência no sertão.
83
É neste sentido que, ao mesmo tempo, nos aproximamos e nos distanciamos da perspectiva de Clarissa Comin,
para quem a ― esperança é uma possibilidade que vai se desenvolvendo ao longo do romance: a construção de
uma identidade projetada a partir da linguagem‖ (COMIN, 2015, p. 103). Supomos tratar-se, no caso do plano
cosmopolítico, de um sistema de identidades equívoco e baseado na diluição da linguagem excepcional em
linguagens compartilhadas.
84
Manuscrito. Arguição na banca examinadora da dissertação de Clarissa Comin.
85
Os dois termos são usados por Antônio Candido em Ficção e Confissão (2006a, p. 45).
117
Neste capítulo, junto com a revolução cósmica da tempestade, as linguagens se
entrechocam e se misturam. O narrador-performer é instado a perceber a insurgência de
volições, desejos, vocalizações e imaginações por toda parte, multifocalizando a narrativa.
Cada aproximação do ponto de vista de um personagem multiplica a agência subjetiva de um
mundo e o que o narrador performa é a promiscuidade vocativa, a emergência e a
interpenetração de diversas agências específicas com direito a voz e mundo.
Não obstante isso, o plano do narrador-intérprete também captura essa promiscuidade
de vozes no registro da baixeza, do desentendimento, da falta de clareza e da insignificância.
Sua interpretação do que se passa no episódio é marcada pelo gesto de censura: ―
Não era
propriamente uma conversa‖; ―
[Fabiano] via os acontecimentos com exagero‖, sem levar em
conta, senão caricaturalmente, que ―
Fabiano repisou o trecho incompreensível utilizando
palavras diferentes‖. A língua de Fabiano instaura uma tensão na interpretação, o narrador-
intérprete não a compreende e galhofa. Até mesmo as disposições corporais são
nomeadamente aviltantes: ―
Sentado no pilão, Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele
jeito de bicho lerdo...‖ (7, 68). Se, como notou Luiz Costa Lima acerca de S. Bernardo, a
identificação entre homem e bicho funciona como uma resistência à reificação que resulta do
latifúndio espoliador (cf. COSTA LIMA, 1969, pp. 55), neste plano, em Vidas secas, o
narrador-intérprete ocasionalmente escamoteia esta estratégia, fazendo com que a
proximidade bicho-homem seja pejorativa. É também pelo plano da autoridade, em outra
dimensão, que Fabiano tenta castigar o Menino Mais Velho que no ato de buscar lenha para
iluminar a face do pai, interrompera sua gesta: ―
achou que o procedimento do filho era falta
de respeito e esticou o braço para castigá-lo‖ (7, 64).
Porém, inevitavelmente, a proliferação de vozes, rumores, barulhos – como se o
mundo inteiro falasse – evidencia o plano do narrador-performer, que é levado a coreografar
essa multivocalidade do mundo. O barulho das águas e a crescente aproximação da enchente
Seria que ele estava com intenção de progredir?‖ (7, 66),
do rio, ele mesmo sujeito volitivo – ―
pergunta-se Sinhá Vitória – intensifica, na família reunida, o rumor de vozes. Como que
acompanhando o andamento crescente das águas e do fogo, Fabiano cresce também em
narrativa: ―
contava‖, ―
relatava‖, ―
narrava‖, ―
gesticulava‖ – performava sua estória. Os
meninos ―
arengavam‖, ―
discutiam‖; especialmente o Menino Mais Velho, cheio de
recordações e dúvidas, atento à multidão de estórias que habita aquele espaço: ―
as goteiras
pingavam, o chocalho das vacas tiniam, os sapos cantavam (...) As moitas e capões de mato
onde viviam seres misteriosos tinham sido violados. (...) Tentou contar as vozes, atrapalhou-
118
se. Eram muitas‖ (7, 69).
Essa experiência cosmoliterária e cosmopolítica, em que os seres ganham estatuto
político, têm voz, revela que a sertanidade deste plano da narrativa não significa pacificação
redentora ou qualquer tipo de idílio. É justamente pelo fato de se levar em conta todas as
agências implicadas numa composição de mundo que se compreende que no plano do sertão
―
viver é muito perigoso‖, que é preciso estar atento, negociar e compor. ―
Por enquanto a
inundação crescia, matava bichos‖ e ―
as moitas e capões do mato onde viviam seres
misteriosos tinham sido violados‖. No ―
Inverno‖, o crescimento do plano do sertão evidencia
também os perigos e a necessidade de cuidado e atenção: ―
A água tinha subido (...), estava
com vontade de chegar aos juazeiros? Se a água topasse os juazeiros a casa seria invadida‖.
Muito embora as estratégias de negociação fortaleçam os modos de existência deste mesmo
se isto acontecesse, os moradores teriam de viver uns dias no morro, como preás‖ (6,
plano: ―
65).
O relato encerra-se com o foco no espírito de Baleia, que, sob close, revela a
fractalidade do multiverso do episódio, povoado, em cada dimensão auscultada pelo narrador,
por muitos seres: enredada nas recordações de um dia aventuresco, a cachorra ―
adormeceria
(...) ouvindo rumores desconhecidos, o tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o
sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la‖ (7, 70). Não por acaso,
Inverno‖ é o capítulo em que a família está completamente engajada no mundo-abrigo86 do
―
sertão, onde o estado de transformação dos corpos se apresenta em toda a sua força e a fortuna
adota a cara da metamorfose: ―
tudo estava mudado‖ (7, 69).
(arrodeio)
A cosmopolítica do sertão se realiza neste capítulo de Vidas secas como experiência
literária. Porém, não apenas como experiência de leitura (do leitor). O que o leitor
experimenta é da mesma ordem da mobilização de exterioridades falantes que os personagens
experimentam; o mundo confabulado é coextensivo, por meio do narrador-performer, ao
campo de experiência do leitor. Assim como o leitor, o narrador propaga vozes; e assim como
o narrador, os personagens escutam e auscultam as outras vozes. Nesse sentido, uma
86
Este é o nome de um projeto do artista plástico e pensador brasileiro Hélio Oiticica, cujos fragmentos
datilografados se encontram disponíveis na página:
http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=484&tipo=2. Flávia
Cera diz que o projeto de ―experimentação vital‖ de Hélio Oiticica, inspirado em grande parte na música Gimme
Shelter, de Keith Richards e Mick Jagger (de cujo refrão, diz Oiticica ser a passagem da ―m
ultivocalização‖ para
o― grito-multidão‖) ―era um projeto de ocupação da Terra (...) sem regras, sem família, sem hierarquia de um
mundo fundamentado na propriedade privada.‖ (CERA, 2012, p. 181).
119
experiência literária que implique o cosmos se dá na continuação ininterrupta da sequência
performática que interconecta agentes comunicativos humanos e extra-humanos – isto é, cuja
capacidade discursiva não depende exclusivamente de e não se subsome à agência
especificamente humana.
Segundo Alexandre Nodari,
o fazer que caracteriza a literatura (...) consiste em fazer falar – fazer falar,
por exemplo, os animais não humanos, mas não só eles, já que tudo fala em
um texto literário (...) O princípio poético é o da animação, a subjetivação
potencial de todas as coisas, vivas e não-vivas: a literatura, desse modo,
constitui uma forma de animismo – como já sabia Aristóteles, ao afirmar que
as metáforas eram capazes de tornar o inanimado (apsyche) animado
(eupsyche)‖ (NODARI, 2017b, s/p)
A experiência literária dependeria, então, da pressuposição de que a distribuição da
capacidade de falar não se reduz ao ―
propriamente humano‖ e que, muito pelo contrário, é a
fala imprópria o ponto de partida. O exercício poético é o de, como diz Jean-Luc Nancy,
―
fazer tudo falar – e depor, em retorno, todo falar nas coisas‖ (NANCY, 2016, p. 151); a
condição de falante (pensante, fabulante) é amplificada e os seres que o cadinho reduzido da
linguagem domesticada emudecera são virtualmente dotados de habilidades discursivas.
A primeira figura que se avizinha dessa compreensão é a da prosopopeia. Em um curto
ensaio, o escrito argentino Cesar Aira sugere que, embora o próprio da prosopopeia seja que o
―
falante impossível não seja bem uma personagem, mas o sujeito de um discurso‖ (AIRA,
2007, p. 25) e que o tropo sirva unicamente como estratégia retórica textual, é possível que ela
funcione na forma de uma ―
maquinaria elementar operando como modelo ou motor de alguns
grandes romances‖ (Id., p.26). Para Aira, o modelo primordial da prosopopeia são antes os
seres inanimados que os animados, já que os inanimados se prestam melhor a incorporar os
três aspectos que ele destaca como mecanismos estruturantes da prosopopeia, que funcionam
de forma simultânea e justaposta, a saber: ―
o escândalo de que fale quem não pode falar, a
intencionalidade justiceira de seu discurso e o excesso sobre o tempo orgânico‖ (Id., p. 29).
Esta maquinaria agiria, assim, como uma espécie de
estrutura profunda que se pode somar à superfície como
formação retórica, a prosopopeia propriamente dita, ou bem
prosseguir sua travessia subterrânea e emergir (...). A
emergência, isto é, a [sua] elaboração histórica é a literatura
(Id., p. 29).
Se a literatura age a partir do ―
dispositivo prosopopeia‖ (Id., 28), isto que
denominamos de experiência literária dependeria tanto de uma redistribuição da agência
vocativa quanto da habitação especulativa desse espaço de suspensão da excepcionalidade da
120
linguagem humana e de reabilitação da alma subjacente às coisas: ―
a prosopopeia, enquanto
figura da animação, é o modus operandi por excelência da experiência literária‖ (NODARI,
2017b, s/p).
Um tal desmantelamento, não por supressão mas por mútua implicação, dos ―
lugares-
de-fala‖ convencionais, como em jogo na experiência literária, parece uma das configurações
possíveis daquilo que Jacques Rancière denomina de ―
partilha do sensível que dá forma à
comunidade (...) sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de
um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas‖ (RANCIÉRE, 2009,
pp. 7;15). Neste caso, a ―
constituição estética‖, enquanto instauração de um espaço comum do
sensível e repartição dos lugares específicos que o compõem, seria fundamentalmente
política, por fazer ―
ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do
tempo e do espaço em que essa atividade se exerce‖ (Id., p. 16).
A partilha do sensível, para Ranciére, que pode ser entendida ―
num sentido kantiano‖
(Id. Ibid.), é análoga a um sistema de formas a priori que oferece as condições de
possibilidade da experiência, mas que é geográfico-historicamente constituído; ou seja, ela é
ao mesmo tempo condição e efeito de uma práxis especulativa, no sentido em que as formas
de distribuição dos lugares são atingidas em sua realidade por meio de práticas nas quais elas
mesmas, as formas de distribuição, estão em jogo. Esta práxis especulativa seria realizada
pelas práticas artísticas, ―
‗maneiras de fazer‘ que intervêm na distribuição geral das maneiras
de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade‖ (Id., p. 17).
Assim, se ―
é um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra
e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma
de experiência‖ (Id., p. 16), se ―
a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre
o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer‖ (Id., p. 17), então a
gênese e a ocupação de um espaço especulativo em que a própria repartição das agências de
fala é reconfigurada – a experiência literária – é fundamentalmente e especificamente política,
pois ―
as artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que
lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente o que têm em comum com elas: posições
e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível‖ (Id., p.
26).
Já em Aristóteles, o fundamento da constituição da polis está assentado sobre um
sistema de distribuição das capacidades de falar. Para o filósofo, o princípio da submissão às
leis repousa sobre a homologia entre a natural submissão do corpo à alma e o desígnio inato
121
de alguns homens para o comando e outros para a sujeição (cf. ARISTÓTELES, 1999,
I.5.16). A cidade-estado tem por finalidade o bem comum e se mantém estável graças à
obediência às leis que regem essa finalidade e a obediência às leis segue o concurso da
hierarquia natural que está na base da própria autarquia da polis. Se a polis, por ser finalidade
natural, é logicamente anterior aos agregados que evoluem cronologicamente, a família não
deixa de estar na cadeia causal do Estado, por ser o agregado primordial, prévio à comunidade
(Id., I.2.7). E é justamente nas semelhanças e diferenças com a administração da família (da
casa, da propriedade) que Aristóteles vai basear a constituição do governo da polis. O
elemento de ligação entre a família e a propriedade é o escravo que participa da família (além
das mulheres e das crianças), enquanto possuidor de virtudes próprias, e da propriedade,
enquanto instrumento de realização do trabalho (Id., I.4.13). A escravidão ―
por natureza‖ se
justifica, para o filósofo, pela homologia natural; já que assim como ―
é claro que o domínio
da alma sobre o corpo, e o da mente e do racional sobre as paixões, é natural e conveniente,
ao passo que a equidade entre ambos ou o domínio do inferior é sempre doloroso‖ (Id.,
I.3.18), também ―
onde houver essa mesma diferença entre alma e corpo ou entre homens e
animais é melhor para os inferiores estar sob o domínio do senhor (...) não havendo diferença
entre o uso dos escravos e dos animais domésticos‖ (Id. Ibid.). As diferenças de natureza do
domínio do senhor se baseiam, por sua vez, na distribuição das ―
partes da alma‖, nas virtudes
próprias a quem é dominado e quem domina: ―
A faculdade de decisão, na alma, não está
completamente presente num escravo; na mulher, é inoperante; numa criança, não-
desenvolvida‖ (Id., I.13.55). Esta parcialidade da faculdade de decisão deve ser governada
pelo dirigente, que ―
então deve ter a virtude ética por completo, pois sua tarefa é liderar e a
razão lidera‖ (Id. Ibid.). Assim, a soberania do senhor distribui-se por razões distintas sobre os
subordinados, dependendo do modo como cada categoria de subordinados acessa o logos,
porém decorre da posse completa desse logos pelo senhor, que é parcialmente distribuído
entre as mulheres, os escravos e as crianças, e é o mesmo logos cuja posse distingue
radicalmente o homem dos outros animais, como no célebre trecho encadeado: ―
O homem é,
por natureza, um animal político (...). O homem é um animal mais político que qualquer outro
ser gregário (...). O homem é o único animal que tem o dom da palavra (...). O poder da
palavra tende a expor o justo e o injusto (...) E a associação dos seres que têm uma opinião
comum acerca desses assuntos [o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o bem e o
mal] faz uma família ou uma cidade.‖ (Id. I.2.9). O logos se distingue, portanto, da phoné,
―
mera voz, encontrada em outros animais‖ (Id. Ibid.). Enquanto a ―
mera voz‖ é comum e
122
constitui o pano de fundo natural, o logos é qualificado e ―
característica do ser humano, único
a ter noção do bem e do mal‖ (Id. Ibid.).
É essa mesma qualidade racional completa que capacita, segundo Aristóteles, os
homens aos processos decisórios da polis – à política. Como ―
não há melhor critério para
definir o que é o político, em sentido estrito, do que entender a ação política como capacidade
de participar‖ (Id., I.2.22-23), e todos (desde os animais aos escravos) participam dos destinos
da polis, o que qualifica os que são mais aptos ao governo é o domínio completo do logos, ou
a capacidade de deliberar. Portanto, se ―
um regime político resulta de certo modo de ordenar
os habitantes da cidade‖ (Id. III.1.38), baseado na atribuição da articulação do logos ao senhor
(sua suposta capacidade de decidir) e no emudecimento dos demais entes participantes (sua
suposta incapacidade de decidir), a política aristotélica é fundamentalmente uma justificativa
do sequestro senhorial da capacidade de falar. É essa distribuição que está em jogo, nos
parece, na experiência literária – entre outras.
Esse movimento restritivo que primeiro retira a possibilidade de articulação das
espécies outras-que-humanas para depois se recusar a ouvir e rebaixar as vozes de outros
humanos a menos-humanos se assemelha, em sua cartografia, ao belo parágrafo em que Lévi-
Strauss denuncia a aliança pérfida entre especismo, racismo, sexismo, classismo e as formas
de discriminação excludente que são abundantes no Ocidente moderno:
Começou-se por separar o homem da natureza e constituí-lo como um reino
supremo. Supunha-se apagar desse modo seu caráter mais irrecusável, qual
seja, que ele é primeiro um ser vivo. E permanecendo cegos a essa
propriedade comum, deixou-se o campo livre para todos os abusos. Nunca
antes do termo destes últimos quatro séculos de sua história, o homem
ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar
radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que
tirava da outra, abria um ciclo maldito. E que a mesma fronteira,
constantemente empurrada, serviria para separar homens de outros homens,
e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o privilégio de um
humanismo corrompido de nascença, por ter feito do amor-próprio seu
princípio e sua noção. (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 53)
Se o próprio do homem é sua excepcionalidade cada vez mais restrita de ser falante, o
―
dispositivo prosopopeia‖ que ativa o campo da experiência literária impede a estabilização
definitiva da fala-própria-do-homem e possibilita um levante subversivo dos seres até então
falsamente emudecidos.
Na Ágora, segundo uma constatação também exortativa do mesmo Aristóteles, em sua
Retórica, o homem político utiliza-se de três gêneros de argumentos para persuadir seus pares
na plateia: o argumento da autoridade do sujeito falante (ethos), o argumento da emoção do
sujeito ouvinte (pathos) e o argumento da verdade do objeto falado (logos). Ora, se a
123
magnitude expressiva do cidadão-de-bem na Ágora depende do recalque da fala dos outros
habitantes do oikos, uma experiência política que se baseie na redistribuição dessa capacidade
de argumentar personifica (prosopopeiza) os habitantes da propriedade familiar, revelando
suas vozes. O argumento em jogo na experiência literária seria assim um retorno (talvez
violento) do argumento do oikos. Depois da política baseada nos argumentos ético, patético e
lógico, a cosmopolítica talvez, então, evoque o argumento ecumênico, campo no qual as
capacidades falantes são disseminadas e inter-relacionadas, gerando uma confusão
participativa. Desse modo, na experiência literária não apenas se deixa falar todos os seres,
como também se fala com eles, confronta-se, aprende-se e compõe-se com suas vozes. Menos
do que uma democratização do logos articulado, como se o homem passasse a ser um ente
totalitário, tal qual o Cristo paulino que é ―
tudo em todos‖, trata-se, pelo contrário, de uma
horizontalização multifocalizada, em que um homem habita um espaço compartilhado de voz
e mundo (isto é, mistura sua voz para compor o mundo) com uma mulher, um estrangeiro, um
animal, uma paisagem.
O que acontece nesta experiência, então, é que a política da excepcionalidade humana
baseada no aprisionamento do logos é substituída por um coro desarmônico repleto de
variações de mundos. Para dizer com Eduardo Viveiros de Castro, quando fala acerca do
multinaturalismo, cosmologia subjacente ao perspectivismo ameríndio, se a repressão das
vozes do mundo é o monólogo do cidadão como política pública, o trânsito das vozes
qualificadas dos seres que habitam o mundo é a experiência literária como política cósmica
(cf. VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 121. V. nota de rodapé 24, p. 26, acima)
De forma um tanto inesperada, as vozes aprisionadas no oikos e impedidas de
participar da vida pública da polis, podem se transformar, por circuitos cosmopolíticos, nas
vozes que compõem conjuntamente o cosmos, o espaço partilhado do sensível. Ou seja, a
cosmopolítica da experiência literária subverte a partilha econômica (em que cada ente ocupa
um lugar pré-determinado – a casa administrada) na co-constituição ecumênica, em que o
cosmos é constitutivamente compartilhado, as vozes se multiplicam, se interpenetram e se co-
transformam: um escravo, uma mulher, uma criança, um animal não apenas podem falar,
como também falam diante uns dos outros, para que não mais sejam somente os nomes que
seu patrão lhes designou. A casa-prisão onde as vozes dissonantes são abafadas é e não é, ao
mesmo tempo, a casa-cosmos, o mundo-abrigo, onde a política é cósmica.
O que está em jogo nessa imagem parcial da experiência literária como cosmopolítica
é o próprio agenciamento dos ―
lugares-de-fala‖, isto é, não se trata apenas da elevação dos
124
entes emudecidos à categoria de seres falantes, como mais profundamente do
desmantelamento de uma certa configuração da partilha dos lugares, uma suspensão
cosmológica, por cujo efeito é a própria capacidade de distribuir as línguas que se disputa. A
cosmopolítica em que a experiência literária se engaja não pretende trazer todas as vozes para
a Ágora, ou pelo menos não somente isso, mas destituir a partilha econômica entre ―
ágora‖ e
―
casa‖, transformá-la em cosmos composto, compartilhado. E isso não se dá sem algum
confronto.
Retomando Aristóteles livremente, sendo a Ágora o lugar do exercício do poder
persuasivo do cidadão livre e possuidor pleno do logos, ou seja, o lugar próprio da política,
onde o homem encena sua apoteose de domínio e senhorio, a política imprópria reivindicada e
realizada pelas múltiplas vozes da casa-cosmos descentra a humanidade (a agência falante) do
Homem e, pela redistribuição dos lugares do sensível e seus modos de confecção do mundo,
empurra-o para uma clivagem dentro da qual os seres podem habitar os espaços de voz uns
dos outros e um homem e um animal interdeterminam-se mutuamente. Como sugere
Alexandre Nodari,
a literatura não é uma forma de humanização; antes, ela nos abre à
possibilidade de voci-ferar, adquirir a voz e o corpo, a fala e a perspectiva de
uma fera: ‗A poesia (e as artes)‘, diz Emmanuel Taub, ‗nos desumanizam da
humanidade do humano‘. (NODARI, 2017b, s/p)
Seguindo essa pista, a prosopopeia que surgira como imagem da redistribuição dos
espaços de fala operada na experiência literária, resultado de uma subversão da política em
cosmopolítica, tem naturalmente na onomatopeia a sua face especular, o seu desdobramento
inevitável. A prosopopeia redistribui a agência falante para que todos os seres participem da
língua própria do homem, a onomatopeia derrete a língua própria do homem em contato com
as especificidades das línguas dos seres-outros-que-humanos. O aspecto cosmopolítico da
experiência literária se desdobra, assim, tanto na democratização revolucionária da
propriedade discursiva como na subversão anárquica da discursividade ela mesma: os seres
humanos e extra-humanos não apenas podem falar como também virtualmente instalam
campos xamânicos de inter-tradução das línguas, estas que devêm umas-com-as-outras.
―
Assim, se a literatura faz tudo falar, se ela tudo anima, tornando tudo humano, é apenas sob o
risco e o preço da fala humana, da fala e do humano, se desfamiliarizarem e se tornarem algo
outro‖ (NODARI, 2017b, s/p).
(de volta)
Inverno‖ de Vidas
A multiplicidade de vozes presente no mundo-abrigo do episódio ―
125
secas atualiza uma política de distribuição das sensibilidades discursivas. Trata-se de uma
agenciamento cosmopolítico de enunciação87, um desdobramento de mundos em perspectiva,
cheios de gentes humanas e outras-que-humanas, como no devaneio do Menino Mais Velho:
―
Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pátio,
o bebedouro – mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da fazenda.
Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás,
veredas quase imperceptíveis na catinga, moitas e capões de mato, impenetráveis bancos de
macambira - e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como
gente‖ (6, 56).
87
O termo me foi sugerido por Alexandre Nodari, em comunicação pessoal, e ecoa, evidentemente, a imagem
conceitual de Deleuze e Guattari, nos ―
postulados da linguística‖, cf. DELEUZE e GUATTARI, 1997, vol. 2, pp.
11-62.
126
17). Porém, suas especulações esperançosas só esbarram quando se dá conta de que ―
era
apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros (...). Entristeceu. Considerar-se
plantado em terra alheia‖ (2, 19). Esse primeiro indício informa todas as outras passagens em
que a angústia prevalece: invariavelmente os espíritos dos personagens se atribulam diante do
domínio de uma autoridade política que os transcende e que os mantêm aprisionados ao não-
saber e à impotência.
Essa ordem que vige sobre suas vidas aparece de formas diferentes conforme a
posição ocupada pelos personagens em questão, mas sempre gera uma situação de ansiedade
inescapável e entrecorta-se com as variações de ânimo provenientes do contato com o regime
cosmológico do sertão, no qual o trânsito de corpos possibilita maneiras diversificadas de
comunicação. Segundo o plano de interpretação da narrativa, a angústia seria, antes, fruto da
obtusidade de espírito – da falta de consciência – dos personagens e da hostilidade da terra (a
―
primitividade‖ de pensamento, a terra ―
áspera e cruel‖ etc.). Segundo o plano do sertão, a
angústia prevalece sempre que os personagens se veem entre as duas ordens cosmológicas,
uma dominada pelo poder e outra composta pela multimundanidade. Da prisão de Fabiano ao
sacrifício da cachorra Baleia, é sempre uma ordem superior que retira a capacidade de agência
(de comunicação) e os joga na sarjeta. O que opera nos silêncios de Vidas secas é antes um
silenciamento do que uma resposta voluntária na forma de silêncio. Essa ordem é apresentada
no texto não apenas, embora principalmente, no ambiente citadino, e se desdobra como
modelo de relações de autoridade, como se fora exatamente um regime de relações e não um
lugar específico. Trata-se de uma hierarquização absoluta, que perverte o sertão habitado pela
família e que, ao mesmo tempo que prenuncia ratificar a natureza humana, nega o acesso
pleno a esta. É o mundo da autoridade super-humana, que desautoriza o virar-outro (e,
portanto, as extra-humanidades), privatiza a agência por meio da violência e se repete na
forma do exercício de poder, inclusive no interior da família. Fabiano reproduz com o Menino
Mais Novo o fascínio perverso que o poder, pelo patrão e pelo soldado, exerce sobre Fabiano,
o de ―
ser um homem‖ (perverso não exatamente porque ser um homem seja inerentemente
ruim, mas ainda mais porque é o movimento mesmo, que os super-homens engendram, de
prometer e negar a humanização, que angustia Fabiano); Sinhá Vitória reproduz com o
Menino Mais Velho o poder que impede o acesso a um saber (saber o que é o inferno) e a um
desejo (a cama de seu Tomás da Bolandeira). Assim, a autoridade que se exerce sobre
Fabiano é similar à autoridade que Sinhá Vitória exerce sobre o Menino Mais Velho no
capítulo a este dedicado, ou à que Fabiano exerce ocasionalmente sobre as crianças e,
127
contrafeito, sobre Baleia, quando decide monocraticamente pela sua morte. Este é o
dispositivo de silenciamento, é ele, o poder, e não uma suposta hostilidade inerente ao
ambiente, que, ao seduzir para uma humanização exclusiva e gloriosa, inibe o regime de co-
constituição de mundos, e que, ao negar o acesso e a estabilização plena dessa humanidade
exclusiva, produz silêncios angustiantes. Ora, se apenas não se pode ser plenamente humano
segundo o regime do poder e se esse mesmo regime desautoriza os modos de subjetivação do
regime de cosmopolítico do sertão, fica impossível, então, ―
ser gente‖, em qualquer dos
regimes. A super-humanidade gera uma infra-humanidade. É no regime da autoridade, na
cidade, que se ouve, por exemplo, a ordem do soldado amarelo na casa de jogo: ―
Desafasta,
aqui tem gente‖ (gente sendo, portanto, um atributo privado da autoridade). É engolfado pela
afirmação de uma excepcionalidade poderosa que Fabiano reduz o impoder à categoria de
uma impotência:
Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como um tatu. Mas um dia
sairia da toca. Andaria com a cabeça levantada, seria homem.
- Um homem, Fabiano.
(...) Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira,
cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia. (2,24).
A pura presença de uma autoridade transforma, por uma triste redução, o mundo
inteiro, de cosmos-coabitado a mundo-ordenado. Fabiano encontra-se casualmente com o
soldado amarelo, em plena catinga, e a sequência de substantivos-qualidades é significativa:
A princípio o vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De
―
repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um
choque violento...‖ (11, 100). Até mesmo em detalhes mais prosaicos, a cada aproximação do
regime da autoridade, os personagens se veem primeiro enredados em um não-saber-fazer e
quase que simultaneamente suprimidos de sua capacidade de agência: além de todas os
périplos malfadados de Fabiano pela cidade, vemos isso acontecer quando o Menino Mais
Velho se aproxima de uma compreensão escatológica (acerca do inferno) e é silenciado pela
autoridade materna e, quando, no capítulo ―
Festa‖, Sinhá Vitória e Fabiano sentem-se
constrangidos fisicamente por suas vestimentas citadinas, a cachorra Baleia sente-se
extremamente incomodada pelo alvoroço e Fabiano sente-se sufocado e hesitante pela
multidão na missa.
Baleia é, do grupo, a mais empenhada no esquema de extra-humanização do sertão.
Além das alianças e conexões parciais que ela faz com todos os personagens, é ela que
também percebe os riscos de uma humanização baseada na autoridade. No capítulo do
Menino Mais Novo (5, 47-53), Fabiano e Sinhá Vitória tentam amansar uma égua nunca
128
montada. O Menino Mais Novo está encantado com aquele espetáculo que promete um
triunfo sobre a natureza e que um vocábulo da narrativa descreve de forma decisiva: ―
O
animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinhá Vitória subjugava-o
agarrando-lhe os beiços‖ (5, 47);88 ao tentar acordar Baleia para compartilhar seu entusiasmo,
depara-se com a indiferença dela: ―
A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de
amolar, bocejou e pegou no sono de novo.‖ (5, 48). Ou, quando o Menino Mais Velho se
comunica aos gritos com ela: ―
Baleia detestava expressões violentas: estirou as pernas, fechou
os olhos e bocejou‖ (6, 60). Por seu engajamento nas alianças e conexões parciais, Baleia
pouco liga para as alucinações de uma humanidade definitiva. O presságio disso, para Baleia,
é sinistro. Ela despreza o regime da autoridade. Baleia é cínica, no sentido profundo do termo.
Se as comunicações dos personagens se dão num quadrante em que a humano-
bichidade – isto é, a possibilidade de performar, imitar, virar-outro – é compartilhada com os
outros entes do cosmos, as dificuldades advêm quando dos contatos invariavelmente brutais
com o mundo ordenado da autoridade. É na cidade que Fabiano sente-se acossado,
angustiado, vilipendiado, agredido, preso. É o mundo tiranicamente harmônico da autoridade
que confere o seu estatuto de sub-humano: o soldado, o comerciante e o patrão que esfolam
suas possibilidades de vida. O ―
drama de uma impossibilidade da comunicação humana‖
(MOURÃO, 1969, p. 124) é, antes de tudo, o drama do sequestro dessas possibilidades, e não
da necessidade ontológica de sua impossibilidade. Diferentemente, no dia-a-dia, as ainda
dificultosas lidas com a língua podem ser contrastadas com as linguagens multimediadas e
interpenetradas do regime cosmopolítico: o aboio que comunica com o gado, os rastros dos
bichos – desde os quais se pode até mesmo curá-los, os sinais do céu, a comunicação
particular com a cachorra (―
valia-se, pois, de exclamações e de gestos, Baleia respondia com
o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender‖, 6, 56).
Embora poderosíssima, a alienação engendrada pelo poder não triunfa totalmente.
Contra ela, continua agindo e reagindo o regime de transformações performáticas do sertão;
os personagens capturados e assujeitados ao regime do poder confirmam sua aliança no plano
cosmopolítico. A cada episódio de elisão da comunicação multimediada, pela vigência de
uma super-humanidade que os empurra para um estado subalterno, os personagens respondem
com uma estratégia de retorno ao regime cosmológico que lhes proporciona um mínimo de
88
Além disso, parece haver em todo o romance uma diferença entre a categoria de bicho e a categoria de animal
sobre o que não podemos tratar aqui, nem encontramos estudos referenciais. Há um estudo interdisciplinar
interessante, embora preliminar, sobre a representação da fauna na obra, cf. BURITI, AGUIAR & ESTEVAM,
2013.
129
existência positiva. E é mesmo o choque entre essas duas ordens, a impossibilidade de
desvencilhar-se completamente de um mundo superordenado, o que gera a angústia
característica do romance. Ao contrário do que vê Rui Mourão – que ―
o primitivismo geral
deixa à disposição deles somente meios de sociabilidade por demais toscos e ineficientes‖
(MOURÃO, 1969, p. 124) – este ―
primitivismo‖ (a saber, pelo texto do crítico, a ―
falta de
meios humanos‖ e o ―
rebaixamento‖ ao nível animal) constitui exatamente o estado de
multiplicação de sociabilidades, a saturação de culturas/naturezas, que produz e prolifera
variações comunicativas e que resgata a alegria. O que silencia e os angustia é justamente a
obrigação de participar de um único meio de sociabilidade, no qual ocupam sempre um lugar
desumano.
Antônio Candido se aproxima dessa compreensão cosmológica do romance, ao
afirmar que ―
no primitivo, na criança e no animal a vida interior obedece outras leis: não se
opõe ao ato, mas nele se entrosa, imediatamente‖. Tais ―
outras leis‖ parecem ser justamente
aquilo cuja supressão constitui o ―
o entrosamento da dor humana na tortura da paisagem‖
(2006a, p. 45). Tanto é que a operação de tentativa de saída do mundo da autoridade é
realizada nos diversos estratos da narrativa, redesenhando, a cada quadro, um circuito
parabólico que vai da situação de poder/opressão ao impoder/relação: eles se libertam do
poder (super-humanidade), que suprime a comunicação e os lança num regime de
silenciamento (infra-humanidade), e acessam, pelo compartilhamento de agência com seres-
outros-que-humanos (extra-humanidades), as possibilidades de criação e comunicação
(multimundanidade, mundos co-constituídos). E como a autoridade (paterna, materna, do
patrão, do governo) é constantemente redobrada sobre o(s) mundo(s) do sertão, em vez de
uma parábola, o que se desenha é uma espiral infernal que se projeta como o cerne da
angústia, que é a impossibilidade, devido ao seu sequestro pelo sistema de poder, de viver
num regime de mundo compartilhado, pois ele está reincidentemente sendo capturado pelo
regime super-humano, sob o qual, por sua vez, também é impossível viver. A angústia, então,
é efeito do sequestro do mundo-compartilhado para dentro da ordem da autoridade (seja ela a
polícia/o patrão em relação a Fabiano, seja ela Fabiano/Sinhá Vitória em relação aos meninos
e a Baleia).
130
implacável daquele poder. Essa fabulação passa frequentemente pela reconciliação com um
mundo cheio de extra-humanidades, pelo ajuste morfológico dos corpos e pela
desorganização do Poder na vigência de um cosmos onde o mundo é co-constituído. Na
prisão, por exemplo, Fabiano tenta entender sua situação opondo ao regime da autoridade a
sua vida rural e familiar onde o regime de composição do mundo é outro (―
Fabiano se
aperreava por causa de Sinhá Vitória, dos filhos e da cachorra Baleia, que era sabida como
gente‖ 3, 34; ―
vivia tão agarrado aos bichos... nunca vira uma escola, por isso não conseguia
defender-se... só sabia lidar com bichos‖ 3, 36); no desconsolo de seu fracasso, o Menino
Mais Novo imagina: ―
quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante,
as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga
como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio
assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O Menino
Mais Velho e Baleia ficariam admirados‖ (5, 53). Até o silenciamento último imposto pela
autoridade, a pena de morte aplicada à cachorra Baleia, é driblada por uma fabulação que,
sendo escatológica, permanece imanente ao mundo-sertão: ―
Baleia queria dormir. Acordaria
feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As
crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme.
O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes‖ (9, 91).
Esta ficcionalização – ou seja, esta bricolagem de realidades, realizada como rota de
fuga da opressão – é o substrato da narrativa, é proporcionada pelas variações de ânimo e de
linguagens e é aquilo que o narrador-performer imita de seus personagens (coisa que o
narrador-intérprete realiza usando, frequentemente, o futuro do pretérito, como que se
mantendo saudavelmente distante). E tais variações nunca são estabilizadas plenamente, estão
sempre em vias de concretização dada a prevalência do plano da autoridade, de um lado, ou
do plano cosmopolítico, do outro. Dois casos aqui se opõem por estarem um mais próximo do
mundo da autoridade e outro mais próximo do mundo compartilhado do sertão: enquanto a
especulação nebulosa de Fabiano na prisão desenvolve-se em um conjunto de afetos
destrutivos, que ensejam em vez da fuga um enfrentamento mortal com o regime do poder (e
até mesmo neste momento, por uma variação extra-humana: ―
não envergaria o espinhaço não,
sairia dali como onça e faria uma asneira‖, 3, 37), a fabulação do Menino Mais Velho, depois
de repreendido pela mãe, é a mais completa descrição da combinação de mundos que sustenta
a vida comum: ―
Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o
barreiro, o pátio, o bebedouro – mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os
131
bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra
visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na catinga, moitas e capões de mato,
impenetráveis bancos de macambira – e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas
que procediam como gente‖ (6, 57). E prossegue explicando a interpenetração desses mundos
e a fundação da possibilidade de comunicação: ―
Esses mundos viviam em paz, às vezes
desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados entendiam-se perfeitamente e
auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças eram
sempre vencidas‖ (6, 57).
A ontologia formulada pelo Menino Mais Velho explica os dois jogos de geração do
mundo em que se (des)equilibra a narrativa: as forças cósmicas que povoam o universo de
agentes comunicativos (satura de cultura e natureza) e a ordem maléfica que silencia,
mortifica e desumaniza. O dinamismo conferido pela imanência contrasta com a detenção
estática diante da ordem transcendente, super-humana. Fabiano não sabe responder à
autoridade, não sabe explicar-se, nem sabe usar as palavras de seu Tomás da Bolandeira,
porém sabe ―
lidar com bichos‖, se comunica com a cachorra Baleia, sabe ler os sinais do
clima, sabe seguir animais na caatinga, sabe curar doenças pelo rastro desses animais. Todo o
problema, a causa da ansiedade que oprime o espírito de Fabiano, está no sequestro desse
mundo imanente por uma ordem hierárquica transcendente e maléfica. O que lhe causa
insegurança e pavor é passar a vida inteira a ―
trabalhar para o alheio‖; o que lhe causa ira é ser
perseguido pelo governo e ludibriado pelo comércio da cidade. A ―
necessidade‖ e a
―
naturalidade‖ destacadas por Fabiano (via narrador) como propriedades inescapáveis da
realidade são todas remetidas ao caráter transcendente da Ordem: a propriedade, o governo, a
polícia, a cidade.89 Um estudo mais amplo, seguindo esta disposição de leitura que tentamos
articular aqui, pode analisar o significado ambivalente do vocábulo ―
seca‖, tal qual aparece na
voz de Fabiano e Sinhá Vitória performadas ou interpretadas pelo narrador. Isto porque já nas
primeiras páginas lemos que ―
a seca aparecia como um fato necessário‖ (1, 10) e, logo mais à
frente, é o mesmo Fabiano que imagina que quando ―
as secas desaparecessem tudo andaria
direito‖ (2, 24). É a ―
seca‖ que empurra as pessoas para fora, que fez até mesmo seu Tomás
89
As ideias de ― necessidade‖ e ―naturalidade‖ são frequentes no texto e remetem quase sempre a uma ideologia
do plano do narrador em relação a como os personagens estariam lidando com os abusos de autoridade: ― a seca
aparecia-lhe como um fato necessário‖ (1, 10); ― O fazendeiro descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha
porque podia descompor‖ (2, 22); ― [a seca] chegaria, naturalmente.‖ (2, 23); ―o dinheiro fugira do bolso do
gibão, na venda de seu Inácio. Natural‖. (3, 28); ―[O Menino Mais Velho] Achava as pancadas naturais quando
as pessoas grandes se zangavam.‖ (6, 60); ―Nocampo, seguindo uma rês, ele [Fabiano] se esgoelava demais.
Natural‖ (7, 65), ― naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa [Sinhá Vitória sobre o sacrifício de
Baleia]‖ (9, 87) etc.
132
da Bolandeira fugir. Que relação existe entre o regime super-humano de propriedade e de
governo e a emergência da seca? Já que as angústias dos personagens, neste romance, são
produto da relação de exploração e desmando e da completa falta de recursos mesmo em
períodos de normalidade climática, dentro de um mundo super-humano, que priva os viventes
de seus meios de vida e os prende numa teia desumanizante, e já que é numa relação imanente
dentro do mesmo ambiente, ainda que estio, que os entes da narrativa encontram seus
caminhos de vida pelo trânsito comunicativo de corpos e linguagens, não seria a seca menos
uma hostilidade natural e necessária do meio-ambiente e mais um produto macabro da
imposição do mundo ordenado da autoridade? De que seca a família do romance foge? Que
tipo de deslocamentos, além ou aquém da fuga, acarretaria uma relação com as intermitências
características desta terra que não fossem sequestradas, a relação e a terra, pela propriedade
privada e pela autoridade? A angústia da seca que aflige a família não seria efeito não de sua
vida imanente (miserável, se vista pela abordagem super-humanista; subsistente, se vista pela
via oblíqua), mas da obliteração da possibilidade dessa vida?
A vida indígena de Fabiano é marcada pela comunicação interespécies e pela extra-
humanização (variação), em cuja zona o trânsito entre o estatuto de bicho e de homem é
positivo e agregador de forças; o Fabiano-homem também pode ser bicho: ―
– Você é um
bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho‖; a cachorra-gente também pode ser
bicho: ―
A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano
recebeu a carícia, enterneceu-se. – Você é um bicho, Baleia‖. Porém esse modo-de-vida é
acossado, espremido e perseguido pela força metrificadora da autoridade, sob o poder da qual
o estatuto extra-humano é suprimido e reduzido a infra-humano. Sob o regime super-humano,
ser ―
um bicho‖ é negativo, desagregador e desumanizador: ―
Cambada de cachorros.
Evidentemente os matutos como ele não passavam de cachorros‖ (8, 81), diz Fabiano no meio
da multidão da cidade. Em S. Bernardo, as lembranças do patrão Paulo Honório,
representante suficiente do que aqui temos chamado de sistema super-humano, destaca:
―
Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos‖ (RAMOS, 2002, p. 195).
Enquanto no sertão – onde ser a-gente sempre está em jogo – a variação da humanidade (a
extra-humanidade, a ―
bichidade‖) é o que instaura o espaço de comunicação, no regime
citadino (do patronato, do governo e do comércio), o mundo é reduzido e unívoco e tudo o
que não for super-humano – isto é, tudo o que não for patrão, governante e comerciante –
será, portanto, menos-que-gente. Nesta cidade o homem é transcendente, é super-homem;
133
naquele sertão, gente é outra coisa. 90
O episódio da ―
Festa‖ (8, 71-84) ilustra muito bem e de forma pitoresca o surgimento
da consciência ansiosa de todos os personagens quando confrontados com a modificação
extrema de seus modos-de-vida. No trecho inicial, a preparação para a ida à festa é uma
ocasião de constrangimento coletivo: eles são apertados por roupas que não lhes dizem
respeito e por posturas corporais que não lhes deixam à vontade. Assim coagidos a
civilizarem-se, isto é, indiferenciarem-se, vestirem-se igual aos demais, eles têm que expulsar
a cachorra Baleia de seu convívio (―
A cachorra Baleia, que vinha atrás...‖ 8, 72). Porém,
vendo-se desde o registro da cidade, como se participantes plenos da regência citadina, resta
neles uma percepção incômoda de serem empurrados para o quadrante infra-humano; Sinhá
Vitória sente-se rebaixada por andar ―
feito papagaio‖ porque, neste regime, parecer bicho é
ser menos que gente. Ainda a caminho, isto é, mais próximos do sertão do que da cidade,
decidem então desfazer-se dos apetrechos civilizatórios. Desapertam suas vestes e retiram
seus calçados; o contato com a terra reconcilia-os com o regime do sertão, e, portanto, com a
cachorra: ―
Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a gravata e o colarinho,
roncou aliviado. Sinhá Vitória decidiu imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou
no lenço. Os meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à vontade. A
cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo‖ (8, 72).
Já durante a festa, os cinco viventes sentem-se completamente desnorteados num
mundo impessoal, indiferente: Sinhá Vitória ora abandonada na multidão, ora sem saber como
realizar suas necessidades; Baleia particularmente incomodada com a impessoalidade dos
cheiros do lugar; os meninos entre medrosos e chocados com a novidade da cidade, e Fabiano
sufocado pela aglomeração e por suas lembranças das experiências naquele ambiente. Mais
uma vez, as rotas de fuga da despersonalização, acarretada por um mundo hostil, efetuadas
pelos meninos e por Fabiano são exatamente opostas. Fabiano novamente quer enfrentar esse
regime despótico, quer furar o bloqueio e garantir um lugar na ordem super-humana:
―
Apareça um homem!‖ (8, 78), desafia ele, bêbado. Esse é o caminho do cangaço – revirar a
90
Esta equivocidade do sentido da contiguidade homem/bicho – o fato de significar, no plano da autoridade, o
oposto do que significa no plano do sertão – se aproxima, como imagem conceitual, daquilo que, comentando
uma passagem de Eduardo Viveiros de Castro, e, portanto, em um contexto distinto do nosso, Marco Antônio
Valentim assinala como ― divergência transcendental‖ entre os modos de ― captura, ‗desumanização‘ e
metamorfose transespecífica‖ de uma ― situação sobrenatural típica do mundo ameríndio‖, de um lado, e da
―experiência quotidiana de existir sob um Estado‖, de outro. Segundo Valentim, entre os dois casos, ― o
dispositivo de desumanização difere quanto ao seu próprio sentido: enquanto, na cidade policial, a condição de
humano se define pela transcendência em relação aos polos negativos ou privativos da não-humanidade
(animais, coisas) e da sub-humanidade (selvagens, escravos), na floresta, a humanidade seria uma condição
imanente, eminentemente relacional‖ (VALENTIM, 2017, p. 14).
134
ordem, destruí-la, para, assim, conseguir se impor a ela. O caminho dos meninos e da
cachorra Baleia é o da guerrilha do imaginário. Perplexos, eles tentam esmiuçar, descobrir e
interpretar os elementos do mundo que os oprime (tudo o que viam eram ―
as pernas dos
transeuntes‖ 8, 83): ―
A opinião dos meninos assemelhava-se à dela [Baleia]. (...)
conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo.
Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao
outro as surpresas que os enchiam. (...) Seria que aquilo tinha sido feito por gente? Talvez
aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito; soprou-a no
ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes‖ (8, 83-84).
O capítulo final é, sem dúvida, desolador. Tanto mais porque nele o plano do sertão é
quase inteiramente tomado pelo plano da autoridade. Ainda assim, os regimes que logo acima
afirmamos engendrarem situações de angústia e desânimo ou situações de alegria e conforto
continuam valendo. É em ―
Fuga‖ que flagramos, como que em câmera lenta, o ponto de
cruzamento entre os dois planos. Os modos de deslocamento se repetem, mas ao contrário; em
vez de uma planície com dois juazeiros, o capítulo começa com ―
A vida na fazenda se tornara
difícil‖. Bem definido: a estiagem prolongada só se transforma na ―
seca‖, cujas clássicas
imagens marcam o imaginário nacional, quando desmoronam os aparelhos civilizatórios de
domínio do sertão – a propriedade privada e o sistema de servilização. Enquanto, na primeira
rota, a do primeiro capítulo, o regime do sertão fornece as saídas, por meio dos mapas que se
enredam a partir dos pontos (os juazeiros e a fazenda abandonada) e permitem a continuidade
da vida, neste último capítulo a fazenda, ponto fixo do regime de autoridade, torna impossível
a confecção de mapas, isto é, torna impossível a vida no sertão. Fecham-se as saídas.
Durante o trajeto que acompanhamos nessa fuga, a maldição lançada contra os
significantes naturalizados da seca (os urubus, a claridade, o céu azul) encobrem a lembrança
de uma causa mais estrutural da obrigatória retirada. A ―
catinga amarela‖, os ―
redemoinhos‖,
―
os garranchos retorcidos‖ do olhar de Fabiano são seguidos do ―
despovoamento da fazenda‖
– não há mais mapa possível, porque não há mais por onde se fazê-los. Imagem semelhante
aparece durante a morte de Baleia, em que o narrador-performer diz com a cachorra
agonizante: ―
agora parecia que a fazenda se tinha despovoado‖ (9, 90). Os mapas do regime
de composição de mundo do sertão parecem desaparecer, as condições de extra-humanização
e multimundanidade não estão mais presentes.
135
Um motivo mais plausível para a necessidade da fuga é, no entanto, vislumbrado no
largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia
próprio jogo da narração: ―
nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro
fugido‖. (13, 116). Fabiano ―
não queria deixar a fazenda‖, e se em um primeiro momento a
saudade é combatida contra a terra – ―
Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia
àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se‖ – revela-se, logo após, que
ele está combatendo, na verdade, o enredamento da terra em sistemas de privatização e poder
era o que Fabiano dizia, pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral (etc.)‖. (13,
–―
117). Mais à frente, ao lembrar-se do cavalo abandonado, ―
com olhos que pareciam de gente‖,
algo em Fabiano deixa claro que, embora fossem os urubus a fazer o trabalho sujo, o que
decretaria a morte do cavalo-amigo é outra ordem de fatores: ―
Ia morrer na certa, um animal
tão bom (...). Infelizmente pertencia ao fazendeiro - e definhava, sem ter quem lhe desse a
ração. Ia morrer o amigo, (...), vendo os urubus chegarem banzeiros.‖ (13, 124).
É neste último capítulo que, lido em sinopse com o primeiro, fica claro que nem todo
trajeto é um mapa do sertão. O trajeto obrigatório, percorrido ―
como se alguém os tangesse‖,
não constitui possibilidade de vida, o mapa ficou para trás.
Se nos primeiros roteiros do capítulo ―
Mudança‖ Baleia revelou-se a responsável por
desdobrar o plano do sertão, seus mapas e alianças possíveis, na ―
Fuga‖, a ausência de Baleia
é sentida como uma falta de consistência. Baleia e a vegetação se interpenetram e essa zona
indecisa se transforma em uma evocação sofrida e nefasta: ―
A lembrança da cachorra Baleia
picava-o, intolerável. Não podia livrar-se dela. Os mandacarus e os alastrados vestiam a
campina. Espinhos, só espinhos. E Baleia aperreava-o. Precisava fugir daquela vegetação
inimiga.‖ (13, 118)
Neste último capítulo, as promessas do plano da autoridade invadem as fabulações de
Sinhá Vitória e essa aliança poderosa decide os rumos da família. O silêncio da falta de
alianças possíveis (―
A manhã sem pássaros, sem folhas e sem vento progredia num silencio de
morte‖. 13, 119), provoca uma confusão entre os tempos: ―
Falou no passado, confundiu-o
com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido?‖ (13, 119). Esta realidade
confusa provoca, por sua vez, um surto de projetos. Entretanto, para empreendê-los, é preciso
negar completamente o plano do sertão e projetar todas as apostas numa outra vida:
Não seria bom tornar a viver como tinham vivido, muito longe? (...). Não
andariam sempre à toa, como ciganos. (...). Talvez esse lugar para onde iam
fosse melhor dos que os outros onde tinham estado (...). Por que não
haveriam de ser gente (...)? Por que haveriam de ser sempre desgraçados,
fugindo no mato como bichos? Podiam viver escondidos como bichos? (...)
136
Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes
baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente
morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os
sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de
espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes‖ (13,
119-122).
Se o papel de Sinhá Vitória é animar e convencer Fabiano desses projetos, e se
Fabiano também procura dar razões à sua fuga, alguma coisa permanece em seu espírito como
duvidoso e inconsistente. Nas suas lembranças habita a intuição de que a terra não é cruel (a
saudade), ela está enredada em infernos gerados pelo poder:
estirou os olhos em direção à fazenda abandonada. Recordou-se dos animais
feridos e logo afastou a lembrança. (...) uma grande saudade espremeu-lhe o
coração, mas um instante depois vieram-lhe ao espírito figuras
insuportáveis: o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada
junto às pedras do fim do pátio. (13, 120)
Muito embora Fabiano esteja legitimamente empenhado em aceder ao otimismo de
Sinhá Vitória e encontrar viabilidade em um projeto que recuse o sertão, é em seu corpo que
as evocações do plano do sertão acontecem: ―
O vaqueiro ensombrava-se com a ideia de que
se dirigia a terras onde talvez não houvesse gado para tratar. Sinhá Vitória tentou sossegá-lo
dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupações, e Fabiano estremeceu‖ (13, 120). Se
os modos de existência do sertão são renegados na imaginação e na fala curiosamente
volumosa deste capítulo, permanecem como circuitos no corpo de Fabiano: ―
Fabiano ouviu os
sonhos da mulher, deslumbrados (...). De repente, veio a fraqueza. Devia ser fome‖ E Fabiano
vira a cachorra Baleia do primeiro capítulo: ―
Baixou os olhos encandeados. Procurou
descobrir na planície uma sombra ou sinal de água. (...) Instintivamente procurou no
descampado um indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o (...). Fabiano lembrou-se da
cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha‖ (13, 123). Um último mapa e a
lembrança de como eles são feitos:
Fabiano indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? (...).
Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? (...).
Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de Fabiano? Tratar de
bichos, explorar os arredores no lombo de um cavalo. E ele explorava tudo.
Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso, mas
para cá, na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras‖ (13,
124).
Porém, Fabiano cede e amaldiçoa as forças elementares que, até agora, a narração
tornava significantes do plano do sertão: ―
Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou
Fabiano desafiando o céu, os espinhos e os urubus‖. Secundado por Sinhá Vitória: ―
E não é?
murmurou sem perguntar, apenas confirmando o que ele dizia.‖ (13, 125). Fabiano renega os
137
espinhos (que tinham sido associados a Baleia), os urubus (associados ao patrão) e a
totalidade do cosmos (o céu, onde habitam as nuvens salvíficas, mas também as arribações
agourentas), num mesmo movimento. Finalmente, o poder engoliu o sertão. A terra e o
carrasco se confundem. As últimas frases do livro fecharão o cerco ao regime cosmopolítico
do sertão e subsumirão essa palavra àquela significação clássica: terra sem lei, cruel e hostil.
E Fabiano concede ao feitiço dos projetos da aliança entre Sinhá Vitória e o plano
supostamente humanizador: ―
Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando
(...). As palavras de Sinhá Vitória encantavam-no (...). Repetia docilmente as palavras de
Sinhá Vitória.‖ (13, 126).
O plano de desenvolvimento vai encerrar o romance, vai fechar a porteira da fazenda,
fechar todas as saídas, enganando-nos que é o sertão quem os expulsa, vai tanger os retirantes
rumo a um espaço onde lhes faltará sertão mas lhes sobrarão lugares sociais bem definidos,
―
homens‖ e ―
fortes‖ que eles são: ―
E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão
mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois
meninos.‖
São as duas frases mais perturbadoras do romance, segundo uma leitura cosmopolítica.
Antes de tudo, devido ao estilo, como se fosse um zoom out muito veloz que se afasta dos
pensamentos e sensações dos personagens de modo mais rápido e para mais distante do que o
comum. Parece ser uma super-interpretação definitiva, meio lamentosa, meio sociológica,
que, ao contrário dos mecanismos de individualização, de pessoalização do ponto-de-vista,
em que até agora a superfície narrativa havia se empenhado, joga, repentinamente, os
personagens numa sombria indiferenciação categórica. Finalmente, Fabiano torna-se homem,
porém, para isso, tem de integrar um exército amorfo de mão-de-obra, de ―
homens fortes,
brutos‖.
***
138
***
Porém, o que dizer daquelas linhas de discurso indireto livre imediatamente antes do
fechamento súbito da narração? Aquela estranha lembrança de Baleia – para quem a fuga era
o único meio de evitar ―
pontapés desagradáveis e necessários‖ (6, 60)... Sinhá Vitória e
Fabiano de repente percebem, no extremo final do livro, que a promessa de humanização fora
do sertão, em um lugar onde a política se quer exclusiva em relação ao cosmos, era duvidosa;
que aquela fuga projetava liberdade, mas não realizava uma saída:
―El es dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, como Baleia.
Que iriam fazer?
Retardaram-se, temerosos.
Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela.‖
―
Retardaram-se‖: não lembra a desaceleração cosmopolítica de que falamos acima?
Estariam alerta ao aviso do plano do sertão, nas palavras de Deleuze, ―
desconfiem do sonho
dos outros!‖? Será que o triste trajeto prosseguiu? Será que há espaço para uma saída dentro
da fuga? Ou, ainda, será que, no meio da falsa alegria de uma fuga do sertão, a ponto de estar
aprisionados em um lugar onde os mapas cosmopolíticos seriam sequestrados, uma fabulação
consegue invocar o sertão alhures?
139
4. RUMOS
Iranildo é um homem de cerca de 40 anos que reside, com os pais, seu Inácio e dona
Fátima, já idosos, no sertão do Seridó paraibano. Desde quando ele era criança, a família
morou e trabalhou ali, cultivando o alheio – o trecho de terra pertencia a uma família de
pessoas endinheiradas que nunca iam lá. A terra estava completamente devastada, o solo
estruído. Foi muito gado, muito algodão, muito desmatamento. Quem hoje lá chega ainda
vislumbra, da parte frontal da casa, uns por volta de duzentos metros de uma superfície lunar,
terreno crestado, cheio de barrocas fundas e pedras soltas. Assim era toda a área onde eles
moravam. Apenas o trecho próximo ao riacho, de margens peladas, mantinha uma pouca
fertilidade no período das chuvas. Pois, um dia, Iranildo e sua família, com a ajuda de alguns
amigos, fizeram uma barragem subterrânea: no trecho onde o riacho derreava mais acentuado,
cavaram uma vala de alguns centímetros de largura por bem uns vinte metros de comprimento
e uns cinco de profundidade – com uma altura de três metros pra cima da superfície, a
barragem não exatamente barra o rio, apenas segura mais um pouco suas águas. Aquele
arranjo impediu que as águas que se infiltram na derme do riacho deslizassem com as águas
superficiais quando o inverno acabasse. Daquele pedaço até uns cento e cinquenta metros rio
acima, o terreno fica molhado o ano inteiro. Nesse trecho mais de cima do riacho, na terra
umedecida, Iranildo começou a fazer o que ele chama de agrofloresta. Plantou espécies
nativas, espécies forrageiras para os animais, espécies frutíferas e, nos intervalos, os cultivares
tradicionais da região (feijão, milho, melancia, jerimum). As forragens servem para o gado
miúdo que eles criam. Tendo descoberto que a terra nua do desmatamento, endurecida pelo
sol e arrastada pela chuva, resultava naquela paisagem desértica da frente de casa, Iranildo
negociou com a caatinga e com o gado miúdo, que precisava pastar; para não desmatar,
começou a fazer o que ele chama de raleamento da caatinga, que é a retirada dos arbustos
mais baixos, deixando os medianos e altos, para permitir o trânsito das cabras e ovelhas. Dos
resíduos do raleamento, Iranildo usa as folhas como adubo e forragem, guarda a madeira para
uso doméstico e os restolhos junta com as pedras pra tracejar linhas de barramento que
impedem que as enxurradas levem a terra, propiciando ao mesmo tempo recuperação do solo
e da mata. Em alguns anos, aquilo mudou. Porém, os donos de papel, que nunca iam lá,
tiveram notícia das mudanças. Vendo a terra ajeitada, pediram que a família saísse. Quantos
anos de estadia e trabalho! Ir para onde? Iranildo fincou o pé na terra. O processo judicial está
em andamento.
140
Se uma análise cosmopolítica de Vidas Secas, como a que tentamos testar
provisoriamente neste ensaio, for pertinente, muitos outros elementos do texto ainda estariam
por ser alcançados: a cartografia das referências aos seres do mundo como ―
viventes‖ e
―
criaturas‖ ou como ―
pessoas‖ e ―
homens‖; o efeito dos nomes de plantas e bichos do sertão
sobre os dois planos sugeridos; as diferenças entre seu Tomás da Bolandeira e as outras
autoridades; os modos de subsistência fora e contra a miséria e o abandono... Neste sentido,
ler a contrapelo um romance da importância histórica de Vidas Secas – importância que
extrapola os limites do interesse dos estudos literários – requer uma certa versatilidade
metodológica que justifique as imprecisões próprias de um trabalho de tatus e preás, de
rastreamento de indícios e de revoluções nas camadas do texto, equilibrando-se entre o que
um texto pode dizer e o que um leitor pode ler nele e através.
As abordagens desde onde ensaiamos ler o romance têm muitas e diversas motivações.
A maioria delas, entretanto, está ligada ao sentimento inquieto por tomar posição diante de
quatro aspectos entrecruzados: 1) o complexo imaginário-político que envolve as concepções
de nordeste, seca e semiárido; 2) a participação das literaturas das secas e, entre elas, de Vidas
Secas, na confecção secular deste complexo, 3) a resistência criativa dos povos do semiárido,
entre eles de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e Baleia, e 4) o agravamento das
condições ecopolíticas no semiárido brasileiro, bem como a relação disto com o imaginário-
político e o clima da Terra. Combinando a perplexidade e a inquietude diante dessas quatro
dimensões, surge uma suspeita forte e justificada (ética, histórica e teoricamente) de que é
possível (é urgente?) reposicionarmos nossas ferramentas de leitura e ação, especialmente esta
ferramenta-subjetividade, pela ocupação de limiares transversais, nos quais e pelos quais o
espaço literário, espaço da in-realidade, libere leituras-outras, leitores-outros, outros
imaginários-políticos, cosmopolíticos.
Observar a trama de Vidas Secas pelo cruzamento das perspectivas humana e
cosmológica permite apreender uma imagem do pensamento oblíqua oferecida pelo texto.
Esta imagem questiona o antropocentrismo que tem informado a análise mais corrente acerca
das sucessivas catástrofes ecopolíticas no semiárido brasileiro, incluindo a literária. A seca é
mais e menos que uma hostilidade necessária e invencível da natureza árida. Seu significado,
os usos e sentidos envolvidos apontam (embora o escondam) para um efeito perverso de um
modo de ocupação da terra, baseado, este, na autoproclamada vocação moderna (industrial). É
a própria fragilidade das conexões bióticas e climáticas (conexões que incluem, claro, os
povos humanos) do sertão que, reprimida pela uni-vocação antropocêntrica, volta como força
141
destrutiva. Por isso mesmo, compreender a terra-sertão como um agregado de
culturas/naturezas entrecruzadas, que se intercambiam e se interdeterminam, é intuir que a
causa dos sofrimentos continuados dos povos humanos e outros-que-humanos do sertão
semiárido são os sucessivos modelos de desenvolvimento, baseados em um regime
antropocêntrico que suprime modos de vida multimundanos e reduz tudo à infra-humanidade.
Este seria um exemplo dos efeitos cruzados de desterritorialização e reterritorialização em
jogo no tempo das catástrofes: a seca resulta do confronto entre um aparelho de
territorialização transcendente, isto é, que não leva em conta as agências multi-inter-
determinadas inerentemente envolvidas em toda instituição / destituição / restituição de
espaços, e as forças desterritorializantes soterradas e saturadas de história e de política. A seca
é, assim, um efeito da máquina da modernidade antropocêntrica. Em outras palavras, e
resgatando o antigo lema popular, ―
o problema não é a seca, é a cerca‖, e ainda mais, ―
o
problema é a cerca, que produz a seca‖. As vidas secas do romance são vidas cercadas e
secadas. Mas continuam vidas. Insistem na relação indígena com a terra de que fazem parte,
relação que multiplica modos-de-existência com os outros e admite que de sua confecção já
participam os entes outros-que-humanos; o que significa que é preciso prestar atenção,
utilizar-se daquele temor prudente, estupidamente abandonado pela industriosidade colonial-
modernizante, de que a frágil rede de associações se rompa e o tempo ruim sobrevenha, mas
também fazer e aproveitar-se das conexões possíveis, que fortaleçam, intensa e extensamente,
essa rede, assim como os cultivos e experimentações de seu Heleno e dona Branca, Iranildo e
tantos outros milhares de camponesas e camponeses cuja história é de resistência ao poder (e
não à terra) e composição rexistente com a terra.
Essa imbricação entre cultura e natureza, acusada pejorativamente, como vimos, pelo
sistema de poder91, é justamente o dispositivo cosmopolítico do modo de convivência do/no
sertão, que compreende que a terra não é uma circunscrição cercada. Nascer, ser do sertão,
como nascer em ou ser de uma determinada circunscrição (um país, um estado, uma região)
não garante nada, exceto a possibilidade dos mapas, das alianças e das conexões que ali e dali
se podem fazer, lidando com essa confusa linha demarcatória entre o sertão do patrão (ruim,
hostil, do qual se deve fugir) e o sertão do sertão (onde se experimentam e se cultivam modos
de vida cosmopolíticos), e com aquela outra linha pontilhada que liga as experiências
cosmopolíticas dos povos humanos e extra-humanos do semiárido, dos povos humanos e
extra-humanos da Amazônia, dos povos humanos e extra-humanos que habitam e resistem nas
91
V. pp. 27, 31 e 116 acima.
142
cidades, dos povos que querem ―
fazer a civilização que se julga a inventora da política, e que
tal invenção a distingue, entender que a política é apenas um departamento da cosmopolítica,
e que isto a iguala a todas as outras‖ (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.
126). O plano do sertão não admite regionalismos, isto é, nacionalismos (pois é por conta
disto que o conceito de Nordeste tem servido a máquinas poderosíssimas). Nem
universalismos, pois o sertão está em toda parte, mas não em qualquer lugar.
O plano do sertão é esse que admite a intermitência da caatinga, a provisoriedade das
chuvas e a responsividade dos seres. É preciso cultivar este plano experimental, pois ele pode
estar em toda parte. O plano do sertão permite descobrir e inventar estes outros modos de
subjetivação (antropologias especulativas) e o engajamento em conexões cosmopolíticas
(cosmografias comparadas). Sinhá Vitória beija a boca ensanguentada de Baleia. Fabiano vira
bicho e vira planta. Os meninos viram tatus. As nuvens e as aves fazem e desfazem territórios
celestes. Uma propriedade privada é ocupada. Até com seu Tomás da Bolandeira a sabedoria
de Fabiano não deixa de ver uma aliança que, embora faça toda a diferença, é muito frágil e
precisa ser fortalecida pelo mundo do sertão. Contra o plano da autoridade que, em nosso
tempo, tem ganhado uma força sinistra, levantando-se ridícula e não menos poderosamente
diante da terra e seus povos, em nome do fetiche da propriedade e do poder; contra o plano
que promete liberdade vigiada, progresso regressivo e a segurança de uma vida aprisionada, e
que, ao golpear todas as saídas, realiza apenas desregulação, desumanização, desmatamento,
desespero: é preciso achar, experimentar e cultivar o plano do sertão lá onde os remanescentes
do povo dos retirantes podem virar o povo das retomadas por vir, nas universidades, nas
escolas, nas ruas, campos, construções... Contra os soldados amarelos e os patrões brancos, é
preciso aliar-se a Fabiano, Sinhá Vitória, aos Meninos e a Baleia, fortalecer suas
desconfianças da existência definitiva de um homem e suas conexões epistêmico-corporais
com bichos, plantas, nuvens...
Vidas secas termina com uma contraditória lembrança de Sinhá Vitória e Fabiano,
uma conexão epiclética com Baleia, a fazedora de mapas. No meio da fuga acelerada do
sertão, ―
como se alguém os tangesse‖, o povo dos retirantes recorda que a velocidade extensa
da absorção e submissão da terra resulta em prisão, em angústia e morte (aqui estaria uma das
lições de pessimismo de Graciliano?). E o povo dos retirantes retarda-se, descrente. Enquanto
o plano do desenvolvimento exige crer e esperar em suas promessas de uma emancipação
radical do Homem e do domínio triunfal sobre os outros, entregando opressão e lixo, descrer
desse projeto é, já, no plano do sertão, criar alianças possíveis, apostar no ―
reenvolvimento
143
cosmopolítico‖, com aqueles que desde sempre são os outros sobre os quais se tem
tristemente triunfado, os pouco-humanos e extra-humanos, os camponeses, as florestas, os
operários, os quilombolas, os transgêneros, os animais, as mulheres, os rios, os índios... Mais
além de uma liberdade mesquinha e de uma cidadania compulsória, adquirida para poucos
com o sangue de muitos, deixar Baleia viva e rastrear com ela os sinais do mundo, confrontar
e conviver, ocupar as fazendas, ocupar tudo, transformar tudo em mundo-abrigo. Se a seca
virá, virar a seca contra o patrão.
Lendo Vidas secas num tempo irreversível de catástrofe planetária, à qual o Homem
empresta seu próprio nome como que assinando embaixo de sua obra macabra, percebemos
que as tragédias das literaturas das secas são, antes de tudo, tragédias ecopolíticas, narrativas
distópicas de um mundo em que as, digamos, forças de desterritorialização do capital (do
poder), materializadas na face na terra, tornam-se potências irrefreáveis de desterritorialização
total.92 No caso de Vidas Secas tentamos, aqui, prestar atenção às irredutibilidades do modo
de vida da família sertaneja em relação aos esquemas de dominação patriarcal / colonial /
modernizante (respectivamente, a polícia, o patrão e a cidade) e ao desmantelo provocado
pelo advento da estiagem – transformada em seca, isto é, em desterritorialização total, colapso
e retirada, justamente devido àquela irredutibilidade, o que nos leva a imaginar que a
resolução das angústias dos personagens não supõe a necessidade de uma redenção
glorificante, ademais impossível (a irredutibilidade...), mas somente o fortalecimento daquelas
possibilidades de saída – fechadas pelo cercamento privatista da terra, e essa é uma das
origens da tragédia; possibilidades pressupostas no que hoje se chama de convivência com o
semiárido: conexões parciais, alianças temporárias e mapas cosmopolíticos – e que, talvez,
estejam virtualmente presentes na melancólica evocação de Baleia, nas últimas linhas do
romance, por meio da qual os retirantes desaceleraram seus projetos políticos de negação da
terra, como um chamado, uma invocação, um clamor de e para se fazer com e como os povos
do sertão, os povos retirantes-retirados, para lembrar-se da terra, desacelerar, retardar, traçar
uma linha de fuga cosmopolítica, cavar as saídas, virar tatus, fugir da fuga, fugir para fora do
poder, para dentro da terra.
―
Fabiano, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra‖.
92
Essas narrativas podem ser vistas como antecessoras, em certa medida e guardadas as muitas diferenças, das
narrativas ficcionais de fim-de-mundo na última passagem de século. Pense-se, por exemplo, na convergência
entre a convivência religiosa que a personagem Conceição estabelece com os retirantes em O Quinze, de Rachel
de Queiroz (1930), e a religiosidade comunitarista da personagem, ela mesma retirante, Lauren Oya Olamina, do
romance The Parable of the Sower, de Octavia Butler (1993); ou ainda na sinistra semelhança entre os relatos
horrendos da família de retirantes em A Fome, de Rodolfo Téofilo (1890), e as situações extremas vividas pelos
personagens sem nome, pai e filho, também retirantes, em The Road, de Cormac McCarthy (2006).
144
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