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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Amanda Nascimento Pereira

Camus em resistência: uma leitura para o Brasil de agora.

Florianópolis
2021
Amanda Nascimento Pereira

Camus em resistência: uma leitura para o Brasil de agora.

Dissertação submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Literatura da Universidade Federal
de Santa Catarina para a obtenção do título de
mestra em Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca

Florianópolis
2021
Amanda Nascimento Pereira

Camus em resistência: uma leitura para o Brasil de agora.


O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca
examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Demétrio Panarotto


Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

Prof. Dr. Artur de Vargas Giorgi


Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca


Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi
julgado adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.

____________________________
Prof. Dr. Pedro Falleiros Heise
Coordenador(a) do Programa

____________________________
Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca
Orientador

Florianópolis, 25 de agosto de 2021.


A Maria Catarina, Rosângela, Ozamir e Samanta.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos poucos e bons que realmente estão ao meu lado: pai, mãe e
irmã. Aos amigos que me ajudam a persistir nos meus sonhos e lutas. Ao meu
orientador, que está comigo desde o trabalho de conclusão de curso em Letras Língua
Portuguesa e Literaturas.
Agradeço aos meus professores, é incrível como suas aulas continuam
significando com o passar dos semestres. Minha admiração e carinho a todos que
participaram dessa trajetória.
Veja, Mersault. toda a baixeza e a crueldade de nossa civilização
medem-se por este axioma tolo de que os povos felizes
não têm história. (CAMUS, 2018, p. 59)
RESUMO
A partir da publicação A Peste, de Albert Camus, esta dissertação apresenta uma
leitura possível de como regimes totalitários se infiltram e se alastram em uma
comunidade/sociedade. Para esse olhar, perpassa-se algumas características
camusianas, tal qual o próprio legado da pessoa Camus, aqui interpretado como ato
de resistência. Em hipótese, levar a vida da melhor maneira que se pode, ou aceitar
os dias enquanto sucessão de horas e intervalos de dia e noite, talvez seja um modo
de esperança/espera por dias melhores, um dos nortes argumentados aqui, como
“sentido de vida”. Para essas reflexões, o próprio conceito de “História” orienta como
os fatos sociais significam ao longo do tempo, e como é necessário buscarmos sempre
outros modos de olhar para o que é dito e legitimado coletivamente.

Palavras-chave: A Peste; Albert Camus; regimes totalitários; História.


ABSTRACT
Drawing upon the novel The Plague by Albert Camus, this dissertation presents a
possible reading of how totalitarian regimes infiltrate and disseminate through a
community/society. This perspective entails some Camusian characteristics, such as
Camus' own personal legacy, here interpreted as an act of resistance. Hypothetically,
living life as best as one can, or accepting the days as a succession of hours and
day/night intervals, might be a form of hoping/waiting for better days, argued here to
be a leading light, a "meaning of life." For these reflections, the very concept of
"History" guides the meaning of social facts over time and demonstrates how it is
necessary to always seek other ways of looking at what is said and legitimized
collectively.

Keywords: The Plague; Albert Camus; totalitarian regimes; History.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AfD Alternative für Deutschland (Alternativa para Alemanha)


PSL Partido Social Liberal
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFU Universidade Federal de Uberlândia
Unesp Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
FPE Frente Parlamentar Evangélica
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 15
2 SER UM PIED NOIR NÃO LIMITA A CAMINHADA ................................... 20
2.1 Amar a vida em sua absurdidade ............................................................. 24

2.2 Camus um amante das letras.................................................................... 33

3 A PESTE: ANAIS DE UMA EPIDEMIA OU ROMANCE DA SOLIDÃO ...... 38


3.1 Orã: um mergulho na costa argelina ........................................................ 45

3.2 Entre ratos e baratas ................................................................................. 57

3.3 Para não deixar de mencionar SARTRE &CAMUS .................................. 67

4 UMA PERCEPÇÃO SOBRE A HISTÓRIA .................................................. 73


4.1 Entre a História e tempos suspensos ...................................................... 81

5 O HOMEM ABSURDO E O SOL ................................................................. 90


5.1 Em meio ao absurdo, o amanhã ............................................................... 97

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 107


7 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 111
15

1 INTRODUÇÃO

A Literatura é, para muitas pessoas, uma companheira e instigadora ao pensar.


A partir dela, é possível suspendermos realidades, soltar a imaginação, como também
fazer com que nos voltemos ao nosso eu ou que lancemos um outro olhar a nosso
mundo, sociedade, lugar em que vivemos e porque se vive. No caso deste estudo, a
Literatura é refúgio e resistência. Refúgio como lugar de aconchego, em que se pode
vivenciar histórias, refletir sobre outros modos e termos de um existir humano.
Resistência, pois a Literatura reclama o mundo, no clichê máximo de “mãe de todas
as artes”, a Literatura vive, revive, sobrevive, acusa, protesta, conta, ou simplesmente
existe à toa. Como diria Ferreira Gullar, “a arte existe, porque a vida não basta.”, então,
a Literatura nos salva e nos oferece um continuum.
Ao revisitar os autores que moldaram o meu percurso como leitora lembro
primeiro de Adélia Prado. Demorei a ter esse encontro, aconteceu quando tinha
dezesseis anos. A bagagem roubou a cena com tanta sinestesia em forma de livro.
Tardes ensolaradas, rotina familiar, frutos colhidos do pé, conquistas de uma mulher
que recebeu uma criação para ser esposa e não poeta. Adélia logo me mostrou a
pluralidade das coisas, o quanto não somos isso ou aquilo e sim isso e aquilo e aquilo
outro. Um desdobrar-se em versões de si, algumas nos acompanham pela vida, outras
ficam pelo caminho. Com as leituras que perpassam nossas vidas vem sempre um
sabor novo. Quem não tem um livro que já leu quatro ou cinco vezes e que continua
favorito. Ler é uma novidade, e ler muitas vezes o mesmo texto faz com que, de
tempos em tempos, ele acuse algo ainda não visto. Por isso, lembrei de Adélia, pois
ela por vezes é pura nostalgia, um lugarzinho no interior em que se pode observar o
entardecer sem interrupções urbanas, em outras ocasiões ela era a que não se
permitia ser gauche na vida e anjo, só se for daqueles que tocam trombeta.
Nesta dissertação, escolhi trabalhar com um autor que descobri há pouco
tempo, Albert Camus. A princípio, não me preocupei se sabia muito ou pouco sobre a
obra deste franco argelino. Na verdade, não conhecia muito. Apenas O Mito de Sísifo
e O Estrangeiro, ainda assim, eram leituras feitas com pouco compromisso. Não havia
um debruçar-se sobre Albert Camus, nem uma grande paixão, como tive com Adélia
e outras e outros. Havia uma inquietação quanto ao cenário que já se mostrava em
16

2017, quando resolvi me inscrever no processo seletivo para o mestrado em


Literatura, na Universidade Federal de Santa Catarina. Camus soltou aos meus olhos,
pois naquele momento sentia um desconforto enorme frente aos cenários políticos
que se desenhavam. Era o Brasil e o mundo adotando, mais uma vez, posturas
conservadoras, o que me passava uma sensação de retrocesso. Lá estava eu, caindo
na falsa ideia de uma história feita de progresso. Nem parecia ter lido Walter Benjamin
e refletido sobre o equívoco de se olhar para a história como uma sucessão linear de
fatos. Estava na armadilha primária e rasa de uma visão amadora de uma História
Positivista e Progressista. Como poderia o mundo, agora, depois de um “avanço” em
busca de equidade social voltar a uma postura conservadora, pautada em medo,
insegurança e descrédito científico? Como poderíamos estar repetindo feitos dos
passados? E aquela pergunta: “não aprendemos nada com a História?”. Por mais que
se estude teorias, que em sala de aula pensemos o mundo e sua disruptividade, ainda
se tem um olhar viciado e calcado em uma linearidade. Ao menos foi a armadilha em
que acabei por cair.
E Camus veio feito um campo fértil me fazer companhia nestes um pouco mais
de três anos de Mestrado. Primero, pelo conceito de “absurdo” em sua obra mais
célebre, o ensaístico O mito de Sísifo, em seguida, com o seu romance mais popular,
O Estrangeiro, como não me sentir um pouco Meursaut, naquelas eleições de 2018,
sendo bolsista de pesquisa, em uma universidade pública, dentro de um programa de
pós-graduação em Literatura. Passei boa parte do percurso de pós-graduação
questionando o meu próprio existir dentro dessas estruturas acadêmicas. Desde a
estrutura física, o campus universitário, o Centro de Comunicação e Expressão, o
auditório, as salas de aula, a coordenação de curso, o corpo docente, o corpo
discente, os colóquios, seminários, grupos de estudos, núcleos de pesquisa,
palestras, cafés, encontros e desencontros com frentes de pesquisa, olhares
diferentes pela perspectiva de cada autor que se estuda. Questionar a pouca presença
do material literário como do ponto de partida do que se estuda em sala de aula. Qual
o nosso contato com os cânones, qual o nosso contato com os clássicos, qual o nosso
contato com galerias de arte e museus. No entanto, em sala, estudamos como se
tivéssemos essa bagagem. Como se o Angelus Novus tivesse sido observado
pessoalmente, por horas, por cada um de nós. Ou melhor, que chegamos até o
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mestrado, obviamente, conhecendo e sabendo que se trata de um desenho feito a


nanquim, giz pastel e aquarela sobre papel, que os traços – talvez até um pouco mal-
acabados – são de Paul Klee, e que foi produzido em 1920. Além disso, é natural que
se chegue aqui sabendo que o desenho fez parte dos pertences de Walter Benjamin,
e posteriormente ficou de herança a um amigo dele e, atualmente, faz parte da coleção
do Museu de Israel, em Jerusalém. Descarta-se a possibilidade de que o aluno só
conhece a obra por ter “jogado no Google” para, então, ter uma rápida e breve ideia
do que se trata.
Somos acadêmicos amadores. Chegamos aqui tomados pelo o que nos toca.
A Literatura, em suas muitas versões. Eis o que se tem em comum, independente de
tempo e caminho decorrido em demorar-se em produções artísticas, sejam elas livros,
produções audiovisuais, imagens, esculturas, instalações. Seja a leitura silenciosa e
solitária de uma obra literária, seja uma instalação itinerante em Inhotim. Sabemos
que o que faz com que todos os anos se tenham inscritos em um processo seletivo
de um programa de pós-graduação em Literatura é o desejo de ter um olhar diferente
para as possibilidades plurais de expressões artísticas do fazer humano.
Exercitar esse olhar, buscar um amparo, ampliar um horizonte, está entre as
atividades que exercemos a cada novo autor que consultamos. Ainda tenho
dificuldade em saber ao certo como passar, imprimir, compartilhar esses múltiplos
olhares que nos compõem enquanto acadêmicos – pós-graduandos em Literatura.
Porém, de algum jeito toma-se ciência de que essa bagagem, ora perfumaria ora pilar
de sustentação, deixa o seu rastro em cada ato que realizamos. Está em nós enquanto
seres sociais, está em nosso trabalho, prática, posturas, escolhas ou uma coisa que
derive de nossas ações.
Nesta dissertação, faço meu caminho ao lado de Camus revisitando teóricos
que fazem parte dos meus estudos acadêmicos até aqui, bem como autores que
descobri no exercício da pesquisa, em suma, sobre os tópicos destaques neste
estudo, como Howard Mumma, teólogo amigo de Camus, que no final de sua vida
resolveu registrar no livro Albert Camus e o teólogo memórias e confissões das
conversas que teve com ele. Outros autores foram consultados enquanto fortuna
crítica sobre as obras camusianas: Vicente Barreto, um dos primeiros a escrever em
língua portuguesa sobre Camus; Morvan Lebesque, Emmanuel Mounier, Ronald
18

Aronson e Roland Barthes, com uma crítica em que analisa se A peste é um romance
ou uma crônica.
Conceitos com o de “história” e discussões sobre “tempo”, “tempo-presente” e
“tempo-agora” são necessários para tópicos fundamentais nesta pesquisa. Sugere-se
que Albert Camus exercitava e imprimia em sua práxis o olhar para a História a
contrapelo, aquele modelo teorizado por Walter Benjamim, feito a escovar um tapete
de lã no sentido oposto de suas cerdas. Para discorrer sobre esses temas recorri aos
autores-base dos estudos literários no curso: Walter Benjamin, Giorgio Agamben,
Michael Löwy e Gilles Deleuze.
Além de discutir o conceito de História e convidar o leitor a percebê-la como
disruptiva, não progressivista, tampouco linear, a pesquisa dedica-se a falar como de
tempos em tempo os fatos históricos, em dada medida, se repetem. Como é o caso
de governos autoritários, que se valem de inseguranças socioeconômicas para
ascender ao poder, exercendo amplo domínio e, por vezes, agindo com atitudes
bárbaras e violentas para manter-se no poder e controle de dada população. Para dar
base à hipótese lançada, recorria a Hanna Arendt, com Origens do totalitarismo,
Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo, uma breve passagem pelo
conceito de “alegoria”, recorrendo a João Adolfo Hansen, Alegoria: construção e
interpretação da metáfora, e Flavio Kothe, A Alegoria.
Clarice Lispector aparece em, ao menos, quatro momentos no desenvolvimento
deste projeto. Com A paixão segundo G.H., faço um breve paralelo entre a relação de
G.H. ao deparar-se com a barata morta, e o médico de A peste, Dr. Bernard Rieux, ao
encontrar o primeiro rato morto. Em seguida, recorro à crônica Escrever para jornal e
escrever livro, da coletânea de crônicas publicadas originalmente na coluna semanal
que Clarice Lispector escrevia aos sábados, no Caderno B, do Jornal do Brasil. Neste
texto, a autora menciona Albert Camus como alguém que exercia bem as funções de
jornalista e romancista. Os contos Relatório da coisa, para discutir o ritmo urbano
ditado pelo passar das horas de um relógio, e Uma esperança, para somar ao capítulo
sobre este tópico. O diálogo entre mãe e filho sobre “espera” e “esperança” inspiram
o pensamento de em que medida ter esperança é um ato de resistência, ou uma
terceirização de responsabilidade frente a uma situação em que nos sentimos “sem
saída”, o que fazer enquanto espera-se “um amanhã melhor”.
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Das obras camusianas, cinco são citadas diretamente: o ensaio mais famoso
do autor: O mito de Sísifo, o romance mais célebre, O estrangeiro, o objeto de estudo,
A peste, o romance em que aparece “o segundo Mersault”, A morte feliz, e o Diário de
Viagens, em que podemos encontrar algumas impressões de Camus sobre o Brasil e
a América.
A base teórica mencionada está entre os pontos de partida para a construção
de leitura proposta nesta pesquisa: ler a partir dos escritos de Camus, em especial A
peste, uma percepção de como a História é feita e como, para entendê-la, é
necessário olhar para o que não está catalogado em livros didáticos, enciclopédias e
museus. Além disso, este estudo também dá vazão a como os regimes totalitários e
governos conservadores se valem de situações de fragilidade e insegurança coletiva
para instalar-se e impor por uma série de posturas autoritárias um norte de ordem e
segurança, em que dada população acaba por ser governada, sendo refém de seu
próprio medo.
Para além da pandemia que o mundo vivencia desde o final de 2019, dissertar
sobre A peste vai além de um paralelo de uma comunidade que lida com uma doença
desconhecida e letal. Ler A peste no tempo-agora é ver a atualidade deste livro e o
quanto ele pode significar feito um caleidoscópio, de acordo com a maneira que
olhamos para ele. Esta dissertação convida a este olhar para o agora pelo arquivo
crônico do que em 194... Orã, a cidade da costa argelina, vivera.
20

2 SER UM PIED NOIR NÃO LIMITA A CAMINHADA


Notre héritage n’est précédé d’aucun testament.1
René Char

Albert Camus, um dos principais nomes da literatura mundial, é apresentado a


nós como um grande romancista, dramaturgo, jornalista e filósofo francófono, argelino,
naturalizado francês. Por mais que seja mais reconhecido por seus romances e
ensaios, sua produção inclui peças de teatro, novelas, notícias, filmes e poemas.
Nascido na Argélia, na localidade de Mondovi, em 1913, não chegou a ver sua terra
natal se tornar um país independente, visto que morrera em 1960 e os acordos de
Évian só foram assinados entre os governos francês e argelino em 1962. Pós
independência, Mondovi passou a se chamar Dréan, localizada na costeira argelina
e, atualmente, possui uma população de 40 mil habitantes.
Como jornalista, Camus militou na Resistência Francesa e foi um dos
fundadores do jornal clandestino Combat, que iniciou suas atividades durante a
Segunda Guerra Mundial, atuando fortemente contra a ocupação alemã em território
francês até 1944, quando Paris foi desocupada pelos nazistas. A partir desta data, os
editoriais passaram a adotar uma postura anticomunista. Em 1947, Camus deixou de
escrever para o periódico, priorizando outras frentes da sua atividade de escrita. O
Combat teve grande destaque na década de 1960, com os eventos da Guerra da
Argélia e o movimento de Maio de 1968. Em agosto de 1974, o jornal deixou de
circular, por conta de problemas financeiros.
Um dos pontos sempre destacados quando se fala em Albert Camus, é o fato
dele ter desenvolvido um humanismo baseado na consciência do absurdo da condição
humana e na revolta como uma resposta a esse absurdo. À época, Sartre e seus
discípulos traziam em voga o Existencialismo, contudo, por mais que Camus
participasse de encontros sartrianos, sempre se distinguiu do rótulo de “discípulo” e
mesmo de “existencialista” ou “niilista”, termos muitas vezes atribuídos a ele, porém
rejeitados pelo mesmo. Camus recusava essas denominações, pois para ele a revolta
do homem o leva à ação e fornece sentido ao mundo e à existência, posicionamento

1 A nossa herança não foi precedida de nenhum testamento.


21

pouco compreendido naquela época. O autor estudado recebeu o Prêmio Nobel de


Literatura em 1957, e por mais que tenha acabado por aceitar a premiação, sua
primeira reação foi de renúncia a esta titulação2. Na ocasião, Albert Camus não deixou
de agradecer à primeira pessoa que lhe abriu as portas para o mundo das Letras, o
professor primário, Louis Germain, a quem escreveu uma carta de agradecimento.
Abaixo, um texto do conteúdo destinado a Monsieur Germain. A versão abaixo é uma
tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira,
publicada em O primeiro homem, de Albert Camus, pela editora Nova Fronteira, em
2005.

Caro Monsieur Germain, deixei que passasse um pouco o movimento que me


envolveu todos esses dias antes de vir-lhe falar-lhe de coração aberto. Acaba
de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas quando
eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi
para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino
pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria
acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao
menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e
para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração
generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com
relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não
cessou jamais de ser seu aluno reconhecido. Eu o abraço com todas as
minhas forças.3

Ao estudarmos as obras de Camus, ler relatos de amigos próximos ou assistir


a filmes que remontam sua vida, pode-se depreender que o autor reconhece em sua
trajetória e as pessoas que contribuíram para que conseguisse se tornar um escritor
renomado, que viveu de seu ofício, faz parte dos traços deixados pelo autor em seu
legado escrito, o qual ao longo da carreira soube referenciar quem lhe estendeu a

2 A principiante renuncia à premiação pode ser vista no registro fílmico francês lançado em 2010, Albert
Camus (Camus, 2010), com direção de Laurent Jaoui e elenco: Stéphane Freiss, Anouk Grinberg,
Agathe Dronne.
3 Versão original da carta em francês: Cher Monsieur Germain, J’ai laissé s’éteindre un peu le bruit qui

m’a entouré tous ces jours-ci avant de venir vous parler de tout mon cœur. On vient de me faire un
bien trop grand honneur, que je n’ai ni recherché ni sollicité. Mais quand j’en ai appris la nouvelle, ma
première pensée, après ma mère, a été pour vous. Sans vous, sans cette main affectueuse que vous
avez tendue au petit enfant pauvre que j’étais, sans votre enseignement, et votre exemple, rien de
tout cela ne serait arrivé. Je ne me fais pas un monde de cette sorte d’honneur. Mais celui-là est du
moins une occasion pour vous dire ce que vous avez été, et êtes toujours pour moi, et pour vous
assurer que vos efforts, votre travail et le cœur généreux que vous y mettiez sont toujours vivants
chez un de vos petits écoliers qui, malgré l’âge, n’a pas cessé d’être votre reconnaissant élève. Je
vous embrasse de toutes mes forces. Albert Camus. Disponivel em:
https://www.revistaprosaversoearte.com/de-albert-camus-com-carinho-ao-seu-mestre/
22

mão, bem como soube deixar de lado o que não contribuía para sua vida. Além de ter
vindo de uma família humilde e enfrentado graves problemas ao longo da vida, Camus
sabia como era ser uma pessoa deslocada, um estranho, um estrangeiro. Mesmo com
a cidadania francesa em documento, um papel não o libertava de ser um pied-noir4
(pé preto). Não estamos aqui para uma defesa de que as obras de Camus sejam uma
espécie de biografia do próprio autor, no entanto, não há como negar que essa
bagagem de vida pode ser percebida em sua produção literária de intelectual.

À margem de outras correntes filosóficas, Camus foi sobretudo uma


testemunha de seu tempo. Intransigente, recusou qualquer filiação
ideológica. Lutou energicamente contra todas as ideologias e abstrações que
deturpavam a natureza humana. Dessa maneira, ele foi levado a opor-se ao
existencialismo e ao marxismo, discordando de Jean-Paul Sartre e de seus
antigos amigos. Camus incorporou uma das mais elevadas consciências
morais do século XX. O humanismo de seus escritos foi fundamentado na
experiência de alguns dos piores momentos da história. A sua crítica ao
totalitarismo soviético rendeu-lhe diversas retaliações e culminou na
desavença intelectual com seu antigo colega Sartre. (BOAVENTURA, 2020.)

Nesta pesquisa, não nos aprofundaremos nas diferenças de vertentes


filosóficas entre Camus e Sartre. No entanto, leves pinceladas dessa famosa relação
de amizade e divergências teóricas apareceram em uma ou outra passagem deste
estudo. Uma das vezes em que se pode notar Camus como filosofo “à margem” das
correntes filosóficas evidenciou-se quando publicou o ensaístico O Homem Revoltado,
em 1951. Camus estava à espera da recepção e repercussão do seu lançamento do
momento, foi quando – para a sua surpresa – recebeu uma forte crítica de Sartre, um
marco no fim de uma amizade que já andava abalada por discordâncias ideológicas.
Um dos pontos mais comentados sobre Albert Camus é sobre a briga dele com
Sartre. As pessoas costumam destacar a relevância de Sartre para a Filosofia, o
quanto ele apresentou uma obra mais consistente e convincente para aquele contexto.
Camus nunca se considerou existencialista, e há quem diga que nem se considerava

4 Pied noir é um termo pejorativo que os franceses empregavam aos seus colonizados africanos, usado
para fazer referência aos cidadãos franceses e outros de ascendência europeia que viveram no Norte
da África francesa, como a Argélia francesa, o Protetorado Francês do Marrocos ou o Protetorado
Francês da Tunísia. A expressão foi fortemente usada até a independência dessas então colônias,
isto é, até os anos de 1956 e 1962. No entanto, ainda continuou sendo utilizada para designar os
cidadãos descendentes de europeus que "regressaram" à França assim que a Argélia se tornou
independente.
23

filósofo. É como se Sartre fosse um filósofo que fracassara como romancista, e Camus
um romancista que fracassara como filósofo. Porém, deve-se lembrar o que era ser
filósofo na academia francesa entre os anos de 1940 e 1960.
A rixa entre os dois se acentuou com a crítica de Sartre a O Homem Revoltado.
Em críticas5, podemos constatar que Camus virou motivo de boato entre os
intelectuais franceses, que falavam que ele havia lançado um texto inconsistente,
quem sabe, amador, sobre a própria existência humana, entre outros pontos, por
assumir o absurdo como condição para a vida. Não pretendo me aprofundar na
discussão de O Homem Revoltado, nem na desavença entre Sartre e Camus, mas
um ponto dessas críticas, em especial, chama atenção a esta pesquisa. Albert Camus
pode ser considerado um amador? O que essa característica poderia acarretar à sua
carreira intelectual? Como um leitor de Camus poderia perceber esse traço de autoria
ou de descompromisso intelectual?
Entre tantas dúvidas que tentaremos, se não desvendar, ao menos discorrer a
respeito, este estudo também se dedica a reunir algumas curiosidades sobre o autor
em estudo. Como é o caso de sua passagem pelas Américas. Em seu Diário de
Viagem, Albert Camus relata sua passagem pela América do Norte e América Latina.
Entre os meses de junho a agosto de 1949, Albert Camus viajou pela América do Sul,
e entre outros destinos teve o Brasil. No entanto, pelos relatos feitos em seu diário
pessoal, não pareceu se agradar muito do clima dos trópicos. Ainda em alto mar
anotou em seu diário o mal-estar de estar navegando por tanto tempo e em
temperaturas nada amenas. Curioso, o sol tão familiar a Camus e sua terra natal,
Argel, parecia causar desgosto desde que se aproximara do continente americano.
Nas primeiras impressões sobre o Brasil, a preocupação em ser recepcionado com
luxo, os motoristas brasileiros que em sua percepção ou eram “alegres loucos ou frios
sádicos”, mas todos querendo chegar na frente a qualquer custo, além dos demais
contrastes.

O contraste mais impressionante é fornecido pela ostentação de luxo dos


palácios e dos prédios modernos com as favelas, às vezes a cem metros do
luxo, espécies de bidonvilles agarrados ao flanco dos morros, sem água nem
luz, onde vive uma população miserável, negra e branca. As mulheres vão

5
Como a que podemos ler no livro Camus e Sartre - O Fim de uma Amizade no Pós-guerra, de Ronald Aronson.
24

buscar água no sopé dos morros, onde fazem fila, e trazem de volta sua
provisão em latas de alumínio, que carregam na cabeça como as mulheres
kabyles. Enquanto esperam, passam diante delas, numa fileira ininterrupta,
os animais niquelados e silenciosos da indústria automobilística americana.
Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados.
(CAMUS, 2017, p. 62)

As impressões de Camus relatadas em seu diário no dia 7 de julho, não diferem


muito de suas anotações do dia 7 de agosto. Na verdade, para nós brasileiros esses
testemunhos são recorrentes até hoje, nem precisariam remontar ao ano de 1949,
nossos contrastes seguem com a mesma aparência.

País em que as estações se confundem umas com as outras; onde a


vegetação inextricável torna-se disforme; onde os sangues misturam-se a tal
ponto que a alma perdeu seus limites. Um marulhar pesado, a luz esverdeada
das florestas, o verniz de poeira vermelha que cobre todas as coisas, o tempo
que se derrete, a lentidão da vida rural, a excitação breve e insensata das
grandes cidades – é o país da indiferença e da exaltação. Não adianta o
arranha-céu, ele ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a
imensidão, a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem
melhor o que quero dizer. (CAMUS. 2017, p.108)

Pelas anotações, Camus esteve longe de se encantar pelo exótico Brasil.


Confesso que, antes de ler o diário, imaginava que o autor se identificaria mais com o
sol dos Trópicos, com o calor do Rio de Janeiro, com os contrastes culturais. A
miscelânia brasileira que imagino não ser tão diferente assim da realidade do norte
africano e sua querida Argel. Não seria o mesmo sol o africano e o brasileiro? Não
seria o Brasil tão colônia quanto lá? Pois, agora.

2.1 Amar a vida em sua absurdidade

Entre criador e criatura, a personagem mais conhecida do público de Camus é


o estrangeiro Meursault, e a sua variável Mersault, de A morte feliz. Os leitores mais
assíduos já devem ter se perguntado qual seria a diferença entre a sua personagem
de O Estrangeiro e este outro. A ligeira mudança na grafia de seus nomes nos dá o
sinal de não ser a mesma personagem, contudo, há aproximações entre elas. Se o
estrangeiro se mostra um ser apático à vida, o segundo corre para o mundo em busca
de vivê-la, assim como ela merece ser vivida, ou, no jargão popular “viver como se
25

não houvesse o amanhã.”. A linha entre a indiferença à vida e gozá-la como se não
houvesse um amanhã coloca as duas personagens em uma relação intima com a
morte. A morte virá, então, o que fazer nesse intervalo? No decorrer do romance A
morte feliz, Mersault explicita a sua contradição entre desejar uma felicidade na
solidão, um resgate ao já vivido, indo ao encontro de afetos importantes de seu
passado, chegando ao isolamento como um refúgio ao íntimo. Já o estrangeiro é
marcado por traços de indiferença e apatia, e com o passar das páginas do livro
evidencia-se que Meursault era estrangeiro não por estar de passeio em outro país,
mas por ser estrangeiro a si mesmo e à sociedade. Em certo senso comum, ele não
correspondia aos estímulos socialmente aceitos e esperados. Não demonstrava, por
exemplo, paixão por Marrie, não chorava o luto pela morte de sua mãe, tampouco
justificava um possível porquê por ter assassinado o árabe na praia. Por mais que
essas personagens tragam consigo um “quê” de melancolia, um aceitar a vida sem
muito questioná-la, não se pode depreender que assim era o modo como o criador
delas percebia o mundo e os fatos da vida.
Neste contexto, podemos pensar que Camus não era um pessimista. Ao
contrário, pelo seu decurso de vida, atuando em resistência, por exemplo como
jornalista, e de escrita, com suas obras literárias e demais trabalhos, ficou registrado
a espera por dias melhores. Se Albert Camus não fosse alguém com fé no mundo –
fé na vida, certamente, não seria ele a fundar um jornal de resistência. O que de mais
atuante em esperança do que fundar um jornal clandestino que denunciava a invasão
nazista? Um veículo de comunicação a que outros franceses, em suma os moradores
de Paris, pudessem recorrer para ler palavras que defendiam uma França em
liberdade, livre de nazistas. Dias que estavam por vir, em algum amanhecer que
chegaria em mais ou menos tempo.
Os editoriais do Combat atribuídos6 a Camus não são por menos.
Denunciavam, registravam e esperançavam um amanhã sem totalitarismo, sem
ocupação nazista, sem mortes em nome do poder7. Nada justificava matar. Que causa

6 Muitas vezes, os editoriais não vinham assinados, pois Camus optava por não se expor. Contudo,
sabia-se que eram dele os textos do espaço editorial de Combat. (BOVE, 2019)
7
No artigo escrito por Renato M. Perissinotto Hannah Arendt, poder e a crítica da "tradição”, o autor escreve
sobre o conceito de “poder” de Arendt. ParafraseioPerissinoto para ambientar o sentido da palavra “poder” ao
longo desta dissertação. Hannah Arendt, em Poder e violência, apresenta uma conceituação de poder (e de ação
26

seria essa que orientava os homens que se deve matar para então conquistar-se uma
unidade, um bem comum? Neste sentido, podemos pensar que Albert Camus
condenava essa atitude, e que via a vida era como um bem comum. Mas quem resiste,
resiste ainda às absurdidades do mundo. Com a forma como descrevia seus
personagens, o autor abria uma possibilidade para um modo de vida que resistia as
adversidades, como guerras e pestes. Viver apesar da cega busca por poder. Viver,
pois, fora isso, cair-se-ia no niilismo ou na adesão ao suicídio.
Em uma vertente de interpretação, Albert Camus pode ser considerado um
antagonista em alguns momentos de sua vida. Convido você a pensar comigo quantas
vezes o percurso do autor subverteu o caminho mais fácil ou ao próprio destino –
recorrentemente comum - de garoto pobre de uma colônia francesa - fazendo dos
percalços trilha de seu modo de existir, de escrever e de ser no mundo. Se a espera
e a esperança nos acompanham por seus livros e demais escritos, talvez não
houvesse o contrário em suas posturas como cidadão. Aceitar a vida como ela se
apresenta estava intrínseco a isso.

Para mim essa era a espantosa verdade que fundamentava a filosofia de


Camus: apesar de tudo, o escritor era um otimista a respeito da condição
humana. Acreditava que, ainda que pudesse considerar absurda, a vida
também era preciosa. Albert começou então a relacionar os tipos de homem
que, acreditava ele, podiam ser usados como modelos de vida. São homens
que aceitam a vida como absurda e ainda assim a amam em sua totalidade,
a despeito de suas restrições. O que fazia deles grandes homens que viviam
a vida apaixonadamente. (MUMMA, 2005, p. 97)

política) como um fim em si mesmo, e com um sentido de promover a interação entre os homens. Para a autora,
o poder não pode ser avaliado pelo seu resultado final, mas valorizado por si mesmo (Arendt 2001: 41; 1981:
217-19). Neste sentido, pode-se pensar no acordo que representantes políticos fazem com seus eleitores ou
governados. Recentemente, acompanhamos no Brasil uma promessa enviesada por uma agenda conservadora,
em que os “bons costumes” devem imperar para se manter a ordem e os valores “do povo brasileiro”. A Bancada
Evangélica (formada por Deputados Federais de partidos conservadores) negocia essa agenda com demais
lideranças governamentais, garantindo em troca a fidelidade (e votos) dos fieis membros das igrejas
pentecostais. Ou seja, a figura do “pai autoritário” (este conceito será abordado no subcapítulo Entre a História
e tempos suspensos) faz-se presente e é legitimada em defesa de um “bem maior”, assim, acompanhamos o
modo como os defensores do atual governo sustentam seus argumentos em concerto com a agenda
conservadora, a promessa de um “bem coletivo”. Valendo-se de Arendt, esse exemplo ilustra o consentimento
necessário para uma relação de poder ser sustentar. Todo grupo que age em concerto visa produzir poder, isto
é, pretende criar consentimento. Nesta dissertação, alude-se a expressão “cede de poder” não só o desejo de
um homem ou grupo político em prevalecer no comando e em situação de privilégios, mas também sobre a
consonância desses “acordos sociais” para que a relação de poder se estabeleça.
27

Esse relato amigável de Howard Mumma pode nos ajudar a ver alguns
personagens camusianos com mais doçura, a exemplo do mais popular entre os
leitores de Albert Camus, Meursault, de O Estrangeiro. Comumente visto como um
descrente ensimesmado, talvez fosse alguém que viveu a vida como ela é, aceitando
dores e sabores. Poderia não expressar grande paixão por Marrie, mas não
dispensava uma ida ao cinema ou um banho de mar em sua companhia. Há de se
pensar se é dar pouco valor à vida, vivê-la como se apresenta. Aceitar os dias com
sucessão de horas, pode não ser tão ruim, quanto viver esperando pelos grandes
fatos e feitos. Uma vida pautada em ocasiões especiais ou em busca de uma
felicidade que nunca vem, pode ser tão limitante, quanto uma vida presa ao compasso
do relógio.
O sol, elemento marcante nos escritos de Camus, indica que o autor via nesse
astro motivo suficiente para acreditar num “dia-pós-dia”. No prefácio da tradução
portuguesa de Albert Camus e o teólogo, Frei Betto destaca a fé humanista de Albert
Camus, pelo próprio traço do autor de exaltar o humano. É como se o autor nos falasse
a cada texto publicado que o que se aprende com os flagelos é que há nos homens
mais coisas a admirar do que desdenhar.

Essa exaltação do humano marca a literatura de Camus, ensolarada pela


ênfase na felicidade, tributo de sua origem mediterrânea. Não é o destino que
o preocupava, mas o presente, a possibilidade de ser feliz agora. Seu time é
o de Montaigne, Voltaire e Rabelais, e não o de Pascal, Baudelaire e
Rimbaud, que oscilavam entre angústia e desespero. “No âmago de minha
obra há um sol invencível”, declarou ele em entrevista a G. d’Aubarède
(Nouvelles Littéraires, nº1236, 10/05/1951). “Não há vergonha em ser feliz”,
exclamou ele ao entrevistador. “Há vergonha em ser feliz sozinho”, completou
pela boca de Rambert, em A peste. (MUMMA, 2005, p. 11)

Pelo trecho de entrevista mencionado, podemos depreender que Camus


buscava esse presente, esse viver o hoje. Destacar o fato de o autor ser nativo do
mediterrâneo, alude à ideia de que os povos de países quentes são mais felizes que
os de lugares frios. Quanto ao comparativo aos outros intelectuais, lembremos que
Montaigne é quase um “bom vivant”, e por isso teria tempo de sobra para produzir
ensaios ou textos sem expressiva utilidade social, atingindo um campo mais reflexivo
e menos utilitário. Por outro viés, talvez, os dias difíceis da infância pobre na Argélia,
as dores e cicatrizes acumuladas tenham refletido nesse senso de aproveitar o que
28

se tem e de saber que a vida é feita do agora. Se hoje se tem o que comer, amanhã
é um novo dia em que a luta pelo pão retorna. Se hoje se consegue sentir o cheiro de
maresia, o perfume de uma nova estação, amanhã o pulmão pode estar comprometido
pela tuberculose. O doce disso tudo é se pender pelo o que é permitido por hoje, como
Camus e seus personagens bem sabiam fazer. O sol de Camus era a Argélia em si.
O litoral africano, o calor de sua terra, o amanhã sempre por vir.
Essa doçura também é denunciada pelo amigo Howard Mumma. Em “Nota do
Autor”, o teólogo inicia sua escrita fazendo uma meia culpa, denunciando possíveis
deslizes de veracidade dos fatos mencionados no livro que relata os encontros e
conversas entre ele e Camus. Mumma salienta que sacerdotes não costumam
quebrar promessas, mas que aos 91 anos de idade – e com Camus morto há 40 anos
–, ele se sentia confiante de que os benefícios de compartilhar a sua história
sobrepujam a traição de sua confiança quanto a sua relação com o antigo amigo.
O amigo sugere que, para Camus, o Partido Comunista era uma esperança de
um mundo igualitário e de oportunidade para todas as pessoas. Um partido que
deveria opor-se a regimes totalitários e, principalmente, se opor a qualquer forma de
violência. Por essa via, acompanhando os movimentos políticos que desenhavam a
Guerra Fria, o escritor acabou por distanciar-se do Partido Comunista, e por mais que
ainda se considerasse esquerdista, seu posicionamento não foi bem aceito pelos
demais, em suma pelos intelectuais esquerdistas. O teólogo Howard Humma lembra
um dos diálogos que teve com seu amigo, em que Camus destacou o seu desencontro
com o comunismo:

- Eu acreditava que os ideais do Partido (Comunista) nos libertariam da


pobreza e da intolerância – continuou Camus. – Mas, quando vi Stalin
ignorando o sofrimento de seus concidadãos, não pude mais suportar o
comunismo. Muitos de meus amigos foram capazes de ignorar condutas
antiéticas em favor da política abstrata, mas eu não pude. Sempre me
perturbou o conflito entre a teoria e a prática. É por isso que estou sempre no
limite de negar que a vida tenha qualquer significado, ou que a existência de
um Ser Supremo poderia trazer algum significado a este mundo. (MUMMA,
2005, p. 29)

Talvez, o Albert Camus considerasse “política abstrata” como um modo de


legitimar atitudes limites – que se valem de autoritarismo, privação de liberdade ou até
que promovem morte – em defesa e manutenção de benefícios próprios para
29

sustentação de um lugar de poder. Curioso Albert Camus ir ao encontro do líder


anglicano e confessar suas desventuras nas crenças. Fosse na fé de uma boa política
ou a fé religiosa, ele permanecia numa dúvida entre o sim e o não de seus ideais.
Essa dúvida se fazia presente frente à sucessão de fatos sociais, como as guerras. É
como se Camus não tivesse suas preces ouvidas e, ao invés de nomear um deus,
responsabilizava o silêncio do universo – uma energia maior e imensurável – que de
algum modo comunicava o não sentindo do mundo. No entanto, é esse mundo sem
sentido que se vive, portanto, para ele, restava seguir a escrita, que, ao que lhe
parecia, valia mais do que abraçar o niilismo ou suicidar-se.

- O silêncio do universo levou-me a concluir que o mundo não tem significado.


Esse silêncio sinaliza os males da guerra, da pobreza e o sofrimento do
inocente. Tenho estado imerso nesse sofrimento e pobreza desde a
ascensão do fascismo e do nazismo de Hitler. Diante disso, o que fazer? Para
mim, as únicas respostas eram – aqui ele puxou um dedo indicador com outro
– cometer suicídio, suicídio intelectual ou físico, ou – aqui ele puxou o seu
dedo médio – abraçar o niilismo e prosseguir sobrevivendo em um mundo
sem significado. Tudo que posso fazer é escrever a respeito e continuar
escrevendo a respeito. (MUMMA, 2005, p. 30)

Em um de seus encontros com Howard Mumma, o teólogo questionou se não


era inusitado o autor buscar conselhos, trocar confidências e gestos de amizade logo
com uma figura religiosa. Logo ele, que parecia alguém de pouca fé. Camus, então,
confessou se declarando um homem desiludido e exausto, que perdeu a fé e a
esperança, desde a ascensão de Hitler. No entanto, ele, mesmo nessa ausência,
ainda procurava algo em que acreditar. A fala de Camus ao representante da igreja
anglicana relembrava o legado já prescrito em O Mito de Sísifo e revisto em O Homem
Revoltado, a vida pode ser uma coisa sem importância, mas perder o sentido, para
Camus, era insuportável. Para o autor, era possível viver uma vida sem significado,
contudo perder o sentido da vida seria algo próximo ao não viver. Em A esperança
dos desesperados, Emmanuel Mounier publicou um ensaio intitulado Alberta Camus
ou o apelo dos humilhados, lançando um olhar para a obra camusiana e o seu
constante flerte com a esperança, ou a ausência dela.

Camus não aceita o absurdo. Não lhe pergunteis por quê: todas as grandes
articulações de sua obra são atos sem defesa, é entre elas que ele dá a força
de seu pensamento. Coloquemo-nos um pouco de lado: torna-se evidente
30

que sua revolta é um salto cego, exatamente como essa passagem do


absurdo à esperança que ele reprova aos existencialistas. (MOUNIER, 1972,
p. 72 - 73)

É preciso viver, apesar do absurdo, e admitir o absurdo da vida é vivê-la,


mesmo que ela não apresente um propósito mais claro do que ater-se a ela. No
básico, a vida era aproveitar o mar, o sol, o ar da montanha, ir a cafés, conhecer
mulheres novas, jogar conversa fora, beber, entre outras distrações e prazeres mais
válidos que desperdiçar o viver por falta de um “sentido maior”.
Viver a vida apaixonadamente talvez fosse um modo de ver nos homens as
possibilidades de serem heróis de si mesmos. Albert Camus acreditava que o homem
não é uma marionete arrastada (manipulada) pelo inevitável processo de viver, pois
cada homem tem a liberdade de escolher o tom a dar a sua vida. Até mesmo desafiar
o absurdo da vida está entre as possibilidades de bem vivê-la. O homem pode optar
por combater as injustiças sociais que o incomodem. Por isso, em suas escritas, o
autor costumava contar histórias com heróis e anti-heróis da vida comum: o
conquistador, o rebelde, o médico virtuoso combatendo a praga. Eles aludem à
qualidade heroica do homem.

- Para mim isso é tudo que existe: simplesmente continuar vivendo –


sentenciou o escritor – A única esperança que posso oferecer é continuar a
viver. A repetição, inquirindo cada dia como o puro ato de viver. Recomeçar
vez após outra até a morte é tudo que existe. Ainda assim, Howard, eu
percebo que algo está faltando. Existe Mais? (MUMMA, 2005, p. 100)

Para Howard Mumma a indagação do amigo era no mínimo primária, afinal,


como sacerdote, a esperança estava na salvação para uma vida eterna. Se o mundo
nunca mais foi o mesmo, depois das Grandes Guerras, a produção artística e
intelectual desenvolvida ao longo do século 20 também não. A geração de intelectuais
e artistas que nasceram de 1900 em diante vivenciou acontecimentos capitais da
história da humanidade como a Primeira Guerra Mundial, a depressão econômica de
1929, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a ascensão de regimes totalitários (como
o fascismo e o nazismo), a Segunda Guerra Mundial, além do desfecho tão
catastrófico quanto os embates bélicos com as bombas atômicas jogadas em
Hiroshima e Nagasaki. Não teria como ser diferente: essas sucessões de episódios
31

da história mundial impactaram diretamente na vida e na produção de toda uma


geração. Aqui, falamos de nomes como André Malraux, Jean-Paul Sartre e, claro,
Albert Camus.

Quando em 1945 iniciou-se a recuperação moral, política, social e econômica


da Europa existia no espírito e no coração dos homens um estranho
sentimento, chamado pelo poeta “triste opacidade”. Os intelectuais e artistas
recém-saídos da guerra, muitos deles, principalmente na França, vindos dos
subterrâneos da luta clandestina tinham consciência da solidão em que se
encontravam. Agora mais do que nunca sabiam que a revolta deveria ser
dirigida para a salvação de cada um como artistas, pensadores e intelectuais
e também como homens. Não se tratava mais de questionar a ordem
estabelecida, mas de construir sobre os escombros do passado um mundo
mais digno e mais justo. Pela primeira vez na história da cultura ocidental
essa reconstrução ia-se processar sem a possibilidade de ajuda do passado.
[...] A obra desses deserdados não se poderia permitir aspectos exóticos ou
uma indiferença histórica. A realidade cotidiana entrou em suas páginas
obrigando-os a esquecer os ideais de beleza, verdade, moralidade, que
serviam como ponto de referência para as gerações passadas. (BARRETO,
197, p. 9-10)

Com isso, a literatura, a arte e as demais produções intelectuais passaram a


deixar de lado referenciais de uma práxis tradicionalista e dicotômica de bem/mal,
belo/feio, certo/errado, verdadeiro/falso. Nesse caminho, Camus seguiu com sua
produção intelectual, durante a Segunda Grande Guerra: ele atuava no jornal
Combat8, editado pela Resistência Francesa, que circulava de forma clandestina, até
o fim da ocupação nazista em Paris. Foi nesse momento que Albert Camus atuou
ativamente em sua militância antifascista.

A situação europeia agravava-se. Hitler subiu ao poder na Alemanha depois


de ter derrotado a frágil e titubeante República de Weimar. A Itália empolgada
pelo fascismo parecia confirmar as predições hitleristas de que iríamos viver
o milênio totalitário. Camus logo entrou para a militância antifascista,
participando das atividades do Partido Comunista. No partido foi encarregado
de propaganda entre os mulçumanos e depois continuou nas ligações com o
PC quando dirigiu a Casa de Cultura de Argel e fundou o Théâtre du Travail.
(BARRETO, 1971, p. 16)9

9 Em 1936, Albert Camus junto a outros intelectuais fundaram o Théâtre du Travail, na cidade de Argel.
Após romper com o Partido Comunista, Camus dissolveu o teatro, que logo ressurgiu com o nome de
Théâtre de l'Equipe
32

Ser da resistência é ter uma esperança de um amanhã melhor. E, além disso,


é imprimir na prática das ações a busca por um resistir. Em tempos difíceis, um
professor resiste a cada aula dada. As bibliotecas, a cada livro lido. Os poetas, a cada
poema reclamado. Os jornalistas, a cada matéria não censurada. Claro, desde que
essa prática parta de um “apesar de” segue-se em frente. Quem militava na resistência
aos regimes totalitários, em suma, na resistência contra as barbaridades nazistas,
buscava meios de não deixar se contaminar pela violência e pelo autoritarismo. Era
preciso um contraponto, alguma lucidez no modo de ver o mundo e no que está por
vir. Como sabemos, a arte (questionadora) é uma forma de resistência. Camus
pensava em resistir à guerra, explicitava seus ideais nos editoriais que escrevera para
o Combat, assim como o publicado no dia 25 de agosto de 1944, intitulado A noite da
verdade, e que acompanhamos no trecho abaixo.

Duros combates ainda nos esperam. Mas a paz retornará a esta terra
eviscerada e aos corações torturados por esperanças e lembranças. Não se
pode viver somente de assassinatos e de violência. A felicidade e a justa
ternura terão seu tempo. Mas essa paz não nos encontrará esquecidos. E,
para alguns entre nós, a face de nossos camaradas mortos conservem para
si essa paz que nos é prometida na noite ofegante e que eles já conquistaram.
Nosso combate será o seu. Nada foi dado aos homens e o pouco que eles
podem conquistar se paga com mortes injustas. Mas a grandeza do homem
não está aí. Ela está em sua decisão de ser mais forte que sua condição. E
se sua condição é injusta, não há senão uma maneira de superá-la, que é de
ser ele próprio justo. Nossa verdade desta noite, aquela que paira no céu de
agosto, é justamente ela a consolação do homem. E é a paz de nosso
coração, assim como era a paz de nossos camaradas mortos, poder dizer,
diante da vitória reconquistada, sem espírito de retorno nem de reivindicação:
“Nós fizemos o que era necessário”. (BOVE, 2019, p. 205)

Esse editorial foi lançado no dia em que Paris libertava-se da dominação


nazista. Podemos perceber que, embora Camus trouxesse um ar esperançoso em
suas palavras, seu discurso estava mais alinhado com a ideia de que era preciso
desanuviar o olhar e assumir o estrago da guerra, além da ameaça de mais corpos
caírem ao chão para que seja possível chegar à sonhada liberdade. Porém, o autor
sempre lembra que “a grandeza do homem está em ser mais forte do que a sua
condição”. A lucidez de Camus indicava algo que acompanharemos ao longo dos
capítulos, de que é preciso assimilar o absurdo da vida para bem vivê-la. Paris estava
livre do domínio nazista, mas a guerra ainda teve mais um ano de fôlego, foram
33

necessários mais corpos caídos, e duas bombas atômicas, para então a ganância por
poder chegar a uma trégua. A guerra, enquanto embate bélico, chegou ao seu fim em
2 de setembro de 1945, porém o eco de seus estrondos e a poeira de seus escombros
perduraram, e nem sabemos até quando.

A II Guerra Mundial terminou em condições que deixaram latentes os germes


da violência e da discórdia no mundo ocidental. Essa situação agravava-se
pelo despertar das colônias europeias na Ásia e na África. Os acontecimentos
políticos confirmam a tese de Camus de que a guerra não ensinara o mundo
a libertar-se da violência. (BARRETO, 1971, p. 21)

O que aprendemos com a guerra? Como tomamos um legado de tanta dor?


Afinal, de que vale a vida frente aos destroços de uma guerra? Nesse tom reflexivo e,
por vezes, com certo tom existencialista10, valermo-nos da produção camusiana para
pensar o homem enquanto um estrangeiro de si mesmo, em suma em contextos como
esse de guerra – de instabilidade – em que temos que nos reencontrar com a nossa
necessidade de pertencer a um clã, a um nicho, a uma sociedade. Assumir as
adversidades da vida, a vida em seus absurdos, como caminho para uma vida feliz,
lúcida em sua errância.

2.2 Camus um amante das letras

Segundo o dicionário, ‘amante’ é “aquele que ama; apaixonado, enamorado,


namorado”, já ‘amador’ é a “qualidade ou condição de amador” ou, quem sabe,
“demonstração de inabilidade ou pouca qualificação no cumprimento de uma atividade
qualquer; inexperiência”. Enquanto ‘diletante’ significa “quem exerce uma arte como

10 Nessa dissertação, quando citamos o termo “existencialismo”, fazemos referência à corrente


filosófica que surgiu na Europa no período entre guerras (1918-1939), centrada na análise da
existência e do modo como seres humanos têm existência no mundo. Um dos pontos dos filósofos
dessa doutrina é encontrar o sentido da vida através da liberdade incondicional, escolha e
responsabilidade pessoal. Independentemente da existência ou não de um Deus (o Todo Poderoso),
é o indivíduo o responsável por suas ações no mundo. Ou ainda, como João da Penha nos apresenta
em O que é existencialismo: “Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, numa Europa
mergulhada nas sequelas do conflito, sufocada numa crise geral (política, social, econômica, moral,
financeira, etc.), irradia-se do continente europeu, espraiando-se por todo mundo, o movimento
filosófico existencialista. A experiência traumática da guerra gerou um ambiente de desânimo e
desespero, sentimentos que atingiram particularmente a juventude, descrente dos valores burgueses
tradicionais e da capacidade de o homem solucionar racionalmente as contradições da sociedade.”
(PENHA, 1996, p. 7)
34

amador ou se dedica a um assunto exclusivamente por gosto e não por ofício ou


obrigação”. Um campo semântico que nos indica o exercício de alguma atividade por
base emocional e não com a razão como ponto de partida. Em que medida essas
características podem ser atribuídas a Albert Camus? A crítica de Sartre, grande
formador de opinião daquela época, seria o suficiente para que a “classe cultural”
olhasse para Camus como um amador, alguém que apresentava uma filosofia falha
e, inclusive, algumas posturas contraditórias as suas próprias teses. Porém, lanço um
olhar mais doce a esse amadorismo. Qual seria o problema em trazer consigo esse
traço, imprimir em suas linhas algo embebido de uma emoção. Camus não era de
tradição acadêmica, não era de berço aristocrata, nem de uma família influente, nem
tinha dinheiro, era de uma França que os próprios franceses sustentavam só por
dominação, pois quem legitimaria um pobre argelino? É nesse mar de não-lugares
que ele caminhava. Escrevia por necessidade, teimosia e paixão. Necessidade, pois
é um ofício, o “ganha-pão”, o amor, pela paixão e crença que imprimia em seus
escritos, pois quem superaria tantos obstáculos para viver da escrita se não fosse não
fosse ela parte dos motivos que o mantinham vivo? E teimosia, pois contrariava os
ditos sociais tanto de ter uma origem pobre, quanto de não pertencer ao grupo
intelectual de maior prestígio naquela época. A teimosia também se faz presente em
seus atos de resistência, resistir é teimar em um ideal, mesmo que não apenas isso.
No entanto, se era um problema para a classe intelectual francesa que um
escritor apresentasse alguma fragilidade, para nós leitores esse pode ser mais um
ponto de deleite, já que questionável qualquer filosofia deve ser. O amadorismo de
um intelectual pode ser visto como um chame de personalidade desse autor. Camus
estava acostumado a ter suas particularidades, e não parecia muito convencido em
deixar-se de lado por carisma, cativava quem o queria como era, sem rodeios para
atender a caprichos ou favores em troca de ser aceito ou prestigiado na classe
intelectual ou, até mesmo, ganhar mais notoriedade e – consequentemente – mais
público. Camus não é o único a furar a cartilha da notoriedade intelectual, em um
contexto mais próximo, esse amadorismo pode ser encontrado em outros grandes
nomes da Literatura como em Clarice Lispector. Não são poucas as vezes em que a
escritora se questiona quanto a seu exercício da escrita, e quanto à função de
35

escrever. Em grata surpresa11, em A Descoberta do Mundo – livro que reúne suas


crônicas públicas no Jornal do Brasil, Clarice publicou um texto com o título Escrever
para o Jornal e Escrever Livro. Nesse texto, ela se refere a Camus como um escritor
que conseguiu ser romancista e jornalista. Quem hoje em dia questionaria a
grandiosidade de Lispector para a literatura brasileira e a de Camus para a literatura
francesa?
Se não fosse do conhecimento comum que muitos autores (e demais artistas)
passam a vida questionando o próprio exercício, não nos passaria pela cabeça que
os citados tiveram desses momentos. Clarice questionava-se quanto a sua
capacidade enquanto escritora, principalmente, como cronista. Questionava-se sobre
ter na escrita uma profissão ou ter na escrita uma forma de existir no mundo. Provável
que uma coisa não impediria a outra, no entanto, escrever crônicas para um jornal de
notícias, parecia ir além de “escrever para ganhar a vida”. Talvez não fosse o modo
em que mais se sentia à vontade com o ato de escrever, ou tinha um certo incômodo
pelo formato, um texto que seria publicado em um jornal, e que em vinte e quatro
horas serviria no máximo para embrulhar peixe. Escrever para uma mercadoria e
ainda com um prazo de validade tão curto, poderia lhe trazer alguma sensação de
desprestígio e pressão para que o texto esteja entregue a tempo da diagramação,
impressão, distribuição e, então, estar nas bancas de jornais, bancadas de padaria,
ou mesmo na casa do assinante, aguardando a sorte de ser lido. Talvez considerasse
que outros cronistas fossem mais dignos do ofício que ela. Mesmo porque existir por
conta da escrita, tem mais a ver com um encontro consigo do que como uma atividade
de sobrevivência.

Hemingway12 e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua


literatura. Guardadíssimas as devidas e significativas proporções, era
isto o que eu ambicionaria para mim também, se tivesse fôlego. Mas
tenho medo: escrever muito e sempre pode corromper a palavra. Seria
para ela mais protetor vender ou fabricar sapatos: a palavra ficaria intata.
Pena que não sei fazer sapatos. Outro problema: num jornal nunca se
pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior

11 “Grata Surpresa”, pois quando fui consultar A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector, buscava
por algum texto em que a escritora tratasse do ato da escrita, mas não esperava encontrar uma
menção a Albert Camus.
12 Ernest Miller Hemingway foi um escritor norte-americano. Trabalhou como correspondente de guerra

em Madri durante a Guerra Civil Espanhola.


36

liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem


compromisso nenhum.13

Como leitora, mesmo que descompromissada, de Lispector e de Camus, já


havia feito aproximações entre a autora e o autor. Não somente pelo fato de terem
práxis próximas, ou vulgarmente serem (por vezes) considerados existencialistas ou
decorrentes do existencialismo. Mas sim pelo modo como discorrem sobre o absurdo
que é viver, e o como lidar com a vida, mesmo em suas absurdidades, já que é o que
resta para quem ainda vive. Quando lia A peste pela primeira vez, em um momento
em especial, lembrei de A paixão segundo G.H. Quando o médico Rieux depara-se
com o primeiro rato morto no patamar do primeiro andar do prédio onde morava. De
imediato, recordei do momento em que G.H. avistou a barata, naquele cômodo de
casa que bem precisava de uma organização. A partir do momento que G.H. se
interpela pela barata, que inadmite a sua existência, a personagem começa a
repensar-se a si mesma e os sins e nãos da vida, o porquê de existir, o que seria o
amor, como ele se faz presente no dia a dia. A barata funcionou como um aviso, um
alarme que perturbaria G.H., que não aceitava aquela presença desconfortante.
Enquanto em A peste, Rieux estranha o rato morto, é incentivado pelo porteiro do
prédio a dar uma importância menor ao caso, até que os ratos mortos passam a se
multiplicar, tornando-se amontoados de ratos mortos pelas calçadas de Orã.
A barata e o rato são bichos que, comumente, causam asco. Geralmente, são
considerados indícios de sujeira, podridão, vetores de doenças, entre outras
possibilidades que apontam que a normalidade foi interrompida. No caso dos ratos
mortos, que tanto chamaram a atenção de Riuex, a quebra de normalidade era bem
mais expansiva do que a interpelação da barata no universo de G.H. Enquanto G.H.
partia da barata para questionar o seu íntimo, os ratos alardeavam que a normalidade
de Orã estava suspensa, e que toda uma população sentia as consequências que
estavam apenas se anunciando. Não se tratava de um caso sanitário pontual, ou uma
questão de zoonose que se pudesse resolver com poucas providências. Era o aviso
de uma epidemia que alteraria por completo a rotina da cidade e de seus moradores.

LISPECTOR, Clarice. “Escrever para jornal e escrever livro”. IN: A descoberta do mundo, 2ª edição,
13

Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 668-669.


37

Orã não mais seria a cidade banal, do fluxo comercial e de cafés para se estender o
dia depois do expediente.
A barata poderia ser só mais uma entre tantas que cruzam nosso caminho, não
fosse o desconforto causado à personagem de Lispector. Assim como aconteceu com
o Dr. Bernard Rieux, médico e cidadão de Orã, que na manhã do dia 16 de abril (de
194...) sai de seu consultório e tropeça em um rato morto. O tropeço poderia ser um
prelúdio do que estava por vir, pois foi a partir desse momento que se deu o aviso da
peste que se desenharia nos próximos dias. Por ora, era um rato morto, que poderia
“passar batido”, não fosse a sensação de que aquele rato estivesse no lugar errado.
Já na rua, Rieux resolve retornar ao prédio e avisar ao porteiro, Michel, sobre o rato
morto. O porteiro negou a possibilidade de que pudesse ter um rato morto no patamar
do primeiro andar do prédio, mesmo que Rieux o garantisse, a Michel não passava de
uma impossibilidade. Não há ratos, ou no mínimo alguém trouxera da rua – em um
ato de brincadeira. No outro dia, o porteiro avisava que havia três ratos mortos.
Buscava os culpados. Na rua, Rieux deparou-se com mais doze mortos, jogados sobre
restos de legumes e trapos sujos. A partir do dia 18, os concidadãos alardeavam
centenas de ratos mortos por todos os lados. O serviço de desratização começou a
percorrer a cidade durante as madrugadas, e encaminhar os ratos mortos para o forno
de incineração de lixo para serem queimados. Porém, mais uma vez, ressalto que o
aviso – o primeiro rato morto – foi ignorado, desacreditado em significância.
38

3 A PESTE: ANAIS DE UMA EPIDEMIA OU ROMANCE DA SOLIDÃO

Roland Barthes escreveu uma crítica sobre A peste, em que ele questiona se o
livro é uma espécie de reunião de anais de uma epidemia ou um romance da solidão.
O teórico aponta que antes de ser considerado um romance, A peste era uma crônica
e que as demais características que servem de roupagem para o texto acompanham
esta tipologia textual. A cidade como protagonista, o tempo presente, os fatos
narrados no limite do agora, e os detalhes corriqueiros descritos e dispostos de modo
a nos dar imagens de uma rotina comum. Imagens que vemos no dia a dia sem ser
como fatos ou acontecimentos extraordinários. Um casal que se despede em uma
estação de trem, ou ir à missa aos domingos, é tão banal como qualquer outro ato
corriqueiro do cotidiano. Porém, a crônica tem o poder de fazer com que observemos
esses detalhes, escritos como se pensados para estabelecer uma identificação íntima,
o cronista em contato com o banal/comum que cada leitor identifica em sua própria
vida.

A Peste não é um romance, é uma crônica: pelo menos era assim que se
chamava no início. Quer dizer que todos os objetos comuns do romance – o
homem, o amor ou sofrimento – são vistos através da transparência e da
distância de uma história coletiva, percorrida, porém no dia-a-dia, sem jamais
se deixar penetrar por uma significação propriamente histórica. A meio
caminho entre História e o Romance, A Peste também poderia ter sido uma
tragédia. Veremos em breve que ela preferiu ser o ato fundador de uma Moral.
(BARTHES, 2005, p.44 – 45)

Em formato, na edição brasileira lançada pela editora Record em 2017, essa


história escrita por Camus é “vendida” como um romance e o conteúdo está distribuído
em 287 páginas. Pode ser que a extensão do texto aponte uma contradição com a
primeira memória que se tem de uma crônica, aquele texto de leitura rápida e que
ocupava uma coluna de uma página de jornal diário. A crônica carrega consigo o dom
de abordar o cotidiano banal em riqueza de detalhes. Cenas observadas nas rotinas
urbanas, ou mesmo, no caso de A peste, ter a cidade como protagonista e os enredos
com apelo coletivo de fácil assimilação e identificação para o leitor. E, de fato,
podemos lançar esse olhar ao romance camusiano, já que a cidade de Orã é o que
permite com que a crônica (ou o romance) se desencadeie. Não é à toa que um
39

escritor que tem entre suas atividades escrever romances e a prática jornalística
encontre na crônica um recurso de escrita que aproxima os tipos textuais. Relatar a
rotina da cidade, dos moradores, de um problema em comum é o insumo base ao se
escrever crônicas.

A cidade é objeto e fundamento da narrativa; fora dela não há realidade nem


recurso, e seu caráter definitivo é ressaltado pela própria fábula: toda a
crônica de A Peste está no fechamento material de Oran, o mar, de um lado,
e as portas fechadas do outro (As Portas da Cidade, tema trágico secular),
fechamento rigoroso que concentra a cidade como uma essência, um
princípio, um objeto perfeitamente finito, pronto para ser captado pelo
símbolo, ou seja, pela arte. (BARTHES, 2005, p. 45)

Barthes identifica o caráter crônico de A Peste também pelo aspecto temporal.


As personagens de Orã vivem um constante presente. Desde que a peste se alastrou
pela cidade argelina, os moradores não podiam mais contar com o que fora a vida
antes da doença, tampouco o que seria depois dela. O recorte temporal é pautado no
presente, e a trama confunde-se com relato, feito os escritos de um diário. Ou seja, o
dia de hoje em sua extrema consequência de ser o que se tem. A condição da peste
era o que se tinha, não mais fazendo sentido referenciar-se ao que se tinha de
percursos até estourar a pandemia. Exceto o padre, o jornalista e o médico que
desempenhavam papéis atuantes e contínuos apesar da peste. Claro, o tempo
também havia parado a eles nesse eterno presente, mas estes desempenham
funções que impactam diretamente em uma vida após a peste. A notícia do fim da
pandemia, o tratamento que curasse os edemas, que desse jeito nas bolas de pus ou
que vetasse a febre e os calafrios. E o padre, imagem de redenção e pessoa a quem
os fiéis ou temerosos à morte recorrem em busca de um conforto.

A Peste também é crônica, à medida que Oran, submetida à epidemia,


constitui um mundo ``sem causas e sem consequências'' que, segundo à
definição de Littré, seria um mundo (privado)* de História. Os homens da A
Peste só veem ``a ordem cronológica'': estão vivendo, depois chega a Peste,
depois a cidade é fechada, depois eles morrem, depois a Peste se vai: não
sabem mais nada, e tudo o que podem pensar da vida, da morte, do
sofrimento ou da solidariedade, de suas faltas ou de seus deveres, só lhes
vem dessa ordem rasa da Peste, que chega, golpeia, e depois vai embora.
Não há estrutura da Peste, não há causa, não há ligação entre a Peste e um
alhures que poderia ser o passado de outros lugares e outros fatos; em suma,
não há correlação. Essa ordem cronológica desenha uma crise, por assim
dizer, não tem núcleo em parte alguma. É próprio da História “organizar” o
40

desenrolar progressivo dos fatos em função de um epicentro exterior à própria


crise, substituindo a ideia de tempo pela de estrutura. Aqui, não há nada
disso: tem-se os seus momentos. Mas essa passagem dramática da Peste
pela cidade nunca é recuperada, de algum modo, por sua passagem pela
humanidade inteira. (BARTHES, 2005, p. 46)

A ausência de um epicentro exterior à própria crise contribui ainda mais para


essa sensação e ritmo narrativo de eterno presente. No cotidiano narrado, observa-
se o desejo de um dia sem a peste. Contudo, o enredo se envereda por uma história
ritmada ao compasso em que os concidadãos vivenciavam a peste, a condição de
quem estava enfrentando a epidemia, sem saber o dia de se ver livre do convívio com
a doença. Restava o desejo, a espera e a esperança por um amanhã em que a peste
se tornaria uma página do passado. Essa esperança desdobra-se no desejo das
pessoas em resgatarem “a vida sem peste”, a cidade com fronteiras abertas, as
missas de domingo, as idas à praia, o reencontro com os afetos, o ir e vir, a rotina do
comércio, os cafés para se estender o dia noite adentro. Roland Barthes destaca,
ainda, que A Peste carrega consigo um elemento trágico puro, que é a própria peste,
uma presença que vence qualquer ligação antecessora, um fato desconhecido e que
não se tem como domar, vencer, nem ideia de que chegue ao fim. É preciso, primeiro,
reconhecer a sua existência, respeitar a sua presença, para, então, buscar o modo de
um viver para além desse mal, que se faz parte, potente e invencível.

Há, contudo, em A Peste um elemento trágico puro, que é a própria Peste.


Essa deusa desconhecida desempenha aqui seu papel inumano com um
destino quase tão fechado quanto Fatum antigo. Nada se sabe dela, a não
ser que é; ignoram-se sua origem e sua forma; não se pode sequer atribuir-
lhe algum adjetivo, que seria o primeiro meio de domesticá-la; ela é o Mal
absoluto, e por isso não pode ser classificada por aqueles que oprime; ela é
visível, evidente, no entanto incognoscível; pelo menos com ela não há
conhecimento possível, senão a consciência de seu absoluto. Por isso, o
primeiro ato humano a que ela obriga os habitantes de Oran – e esse início
não é a parte menos bela do livro – é reconhecê-la: é preciso dar nome à
Peste. (BARTHES, 2005, p. 47)

Dar nome ao deus sofrimento, assim como nas tragédias, nomear a peste é
uma forma de personificá-la ou de reconhecê-la. Nas leituras possíveis, a peste não
se restringe a uma doença, mas a um estado de dominação que pode se dar por uma
enfermidade, uma pessoa, um regime político ou qualquer condição imposta e que se
infiltra, dominando um território até que uma comunidade esteja em sua dominação,
41

medo, receio, sem horizonte e refém de uma esperança qualquer. No entanto, o bacilo
que se comporta semelhante à febre do tipo tifo, ainda está no desconhecido, é o mal
ainda sem nome, sem prognóstico e sem tratamento. Ou seja, por mais que se tenha
essa primeira interpretação de uma doença assombrosa, a peste desdobra-se em
significados.

No entanto, o mal às vezes tem um rosto humano, e isto a Peste não diz.
Defender-se da Peste é, em suma, apesar dos esforços do livro, problema de
conduta mais que de escolha. Mas defender-se dos homens. Ser-lhes algoz
para não lhes ser vítima, são coisas que começam quando a Peste já não é
apenas Peste, mas imagem de um mal com rosto humano. Dizem que a
Peste, na realidade, é o símbolo da Ocupação. Que Oran fechada nada mais
é que a França invadida. É verdade que todos os episódios do livro podem
ser traduzidos em termos de Ocupação e Resistência: os oranenses lutando
com a Peste deparam exatamente as mesmas situações enfrentadas pelos
franceses em 1942, às voltas com a ocupação nazista; a epígrafe do livro
ratifica em grande parte essa interpretação (“É [...] razoável representar uma
espécie de prisão por outra [...]”). Esse símbolo constante, o efeito de
generalização que produz, as lembranças pessoais que ativa, a familiaridade
até que mal que descreve, tudo isso torna o livro ainda mais dilacerante.
(BARTHES, 2005, p. 51)

O trecho acima remete à lembrança de atos de censura que ocorrem em


momentos de controle autoritário consoantes com a postura de governos totalitários.
Nessas ocasiões, não se pode mencionar o nome dos “representantes públicos”
aliando essas pessoas a posturas reprováveis, pois eles “fazem o que fazem por um
bem comum”. Não é um nome para a peste, mas não se tem como fugir para fora
dela. Sua presença e desconforto atingem a coletividade. A pesquisa se iniciou antes
de estarmos vivendo uma pandemia. Desde março de 2020, o livro de Albert Camus
ganhou novo destaque nas prateleiras, no Brasil e no mundo. Com as vendas14
reaquecidas, muitas reportagens e críticas ressurgiram sobre o livro. Uma das

14Em março de 2020 a edição brasileira da revista Rolling Stone publicou uma matéria com o seguinte
título: “A Peste, obra de Albert Camus, é um dos livros mais vendidos na era do coronavírus”,
disponível em: https://rollingstone.uol.com.br/noticia/peste-livro-de-albert-camus-e-um-dos-livros-
mais-vendidos-na-era-do-coronavirus/
No mesmo mês, o livro também foi reportagem do jornal A Folha de São Paulo. A matéria dá destaque
ao aumento das vendas na França e na Itália. “ 'A Peste', de Albert Camus, vira best-seller em meio
à pandemia de coronavírus”: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/a-peste-
de-albert-camus-vira-best-seller-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus.shtml
Ainda em março, a Estante Virtual publicou a listagem dos mais vendidos e A peste configura entre
os 10 títulos mais vendidos pelo site. Disponível em:
https://blog.estantevirtual.com.br/2020/03/26/livros-mais-vendidos-na-estante-virtual-em-marco/
42

principais características destacadas nesses conteúdos publicados recentemente,


está em reconhecer em A peste uma obra atemporal, que dialoga com a
contemporaneidade de incertezas. Relembrar que o livro aborda as consequências de
uma epidemia que atinge a cidade de Orã, na Argélia, narrando o início, ápice e fim
do surto ao longo de 10 meses. Além disso, frisar que a narrativa traz no eixo central
a figura de um médico, a obra narra a história de pessoas contaminadas, que morrem
aos milhares, lutam contra a doença e se isolam. Em paralelo, a pandemia do
coronavírus é narrada pelos profissionais da saúde, de quem está na linha da frente,
ora como heróis da saúde, ora como frustrados e cansados de tentar vencer a doença
ainda não decodificada.
A ligação do enredo da história com o que estamos vivendo com o coronavírus
é, realmente, muito próximo. No entanto, seria pouco atrelar as coincidências do
narrado em A peste ao assombro de uma doença assustadora, da qual se desconhece
o prognóstico e tratamento. Vale recordar que a primeira edição de A Peste foi
publicada em 1947, nessa data era possível, e até mesmo fácil, captar uma analogia
com a recente a ocupação alemã na França durante a Segunda Guerra Mundial. O
enredo camusiano se aproximava do vivido pelos franceses durante a ocupação
nazista. Eles encontravam-se em um lugar sitiado, conviviam com o risco de morte,
tinham a liberdade restringida. Era como se fossem estrangeiros em sua própria terra
tomada pela “peste marrom” do nazismo. Além disso, outros fatos históricos e, até
mesmo, a situação da Argélia, como colônia da França, poderiam servir de pano para
leituras alegóricas. O clássico contemporâneo foi recuperado em outros momentos de
calamidade social, como é o caso do aumento de vendas do livro quando houve o
acidente nuclear na usina de Fukushima, no Japão, em 2011. E assim sucessivamente
a quaisquer situações em que A Peste possa abrir diálogo com um sentimento de
absurdo do cotidiano, assim como o vivenciado por nós no momento, com a pandemia.
Em todos os casos impera a mesma sensação de incerteza e de agarrar-se em
alguma esperança de que o desalento terminará. O desconhecimento sobre de onde
vem esse inimigo invisível, além de carregar consigo uma imprecisa ideia de que, de
algum modo, esse mal chegou para ensinar uma grande lição coletiva, um castigo e
punição por algo que foi feito de forma indevida por toda a humanidade. Neste sentido,
43

A Peste é uma obra que, além de abrir diálogo com esses episódios da História da
humanidade, possibilita um debate sobre a própria condição humana frente a
elementos que comumente assustam as pessoas com a solidão, o medo, a morte, a
fé, a solidariedade, a coletividade, a ideia de segurança, de uma vida cotidiana em
que se pode prever possíveis problemas, mas que ainda estão sob um suposto
controle. Se perdemos o emprego, pode-se ir atrás de outro. Já em uma situação
sitiada, não existe a possibilidade de um outro emprego, não se sabe por quanto
tempo essa possibilidade estará suspensa. Portanto, nada mais fértil do que continuar
partindo deste livro para pensar o nosso tempo-presente.
Com isso, o questionamento sobre A Peste ser uma crônica ainda ganha o
fôlego das nuances utilizadas pelo autor para que a rotina cotidiana suspensa seja
percebida pelos leitores. Camus aponta insistentemente para o papel que o hábito
desempenha na vida de cada pessoa. Nessa perspectiva, ele nos dá elementos para
que se reflita sobre o modo como automatizamos uma rotina e a seguimos, por vezes,
por muitos e muitos anos, atrelando a ela um senso de normalidade e segurança, “as
coisas dentro de um controle”. Assim, sair deste controle torna-se amedrontador,
aterrorizante, tudo faz pensar que o melhor seria estar como era antes da ameaça.
Quando a peste se alastra há uma abrupta ruptura com todos os hábitos e costume
cotidianos, a rotina segura. Fora a perda de sentido de muito do que se tinha como
valor precioso. Se comprávamos roupas para sair, onde as usaremos? Se
guardávamos dinheiro para viajar, quando isso será possível? Se ir ao trabalho era a
principal atividade do dia, como executá-lo em um regime lockdown?

As semelhanças também englobam o próprio desempenho da doença. Assim

como o bacilo que tomava o corpo dos moradores de Orã sem distinguir classe social,

raça ou credos, o coronavírus também não poupa os mais abastados. Inclusive, os

primeiros casos de pessoas que testaram positivo para Covid-19 aqui no Brasil foram

de pessoas que vieram de férias ou viagens de negócios realizados pela Europa, ou

seja, uma classe média/classe média alta que gozava das possibilidades de um

mundo conectado e globalizado e de um ir e vir além-mar. A vida de todos é

transformada, em questão de dias, a morte transborda em cemitérios superlotados e


44

passamos a acompanhar no principal telejornal do país números estatísticos de

quantos infectados, quantos internados, quantos curados, casos de reinfecção e, até

mesmo, o aumento desordenado de demanda de serviços funerários. A promessa de

remédios milagrosos, a negação da ciência, o apelo divino, o isolamento social e a

ausência de futuro são peças que incrementam a engrenagem do medo e da

insegurança. Esses sentimentos são justamente aquilo que Camus denomina de

“exílio”, outra temática muito presente desde seus primeiros escritos e que não ficou

de fora de A Peste.

Roland Barthes finaliza a crítica feita a A Peste denunciando renúncias e


escolhas de Albert Camus quanto autor. Em poucas linhas, a síntese que se tem de
que Camus era um homem que optava pelo simples, e que não se importava em estar
fora dos holofotes, não pertencer à “patotinha”, mas sim em estar em par com sua
própria crença, as causas que acreditava, além de uma percepção particular sobre a
História, são elementos bem familiares a Camus.

O mundo de Camus é um mundo de amigos, não de militares. Os homens de


Camus só podem abster-se de ser algozes, ou cumplices dos algozes,
aceitando ser sós, e são. Assim também A Peste deu início a uma carreira de
solidão para seu autor; a obra nascida de uma consciência da História, não
vai, contudo, buscar evidência na História, e prefere fazer lucidez derivar em
moral; é pelo mesmo movimento que seu autor, primeira testemunha de
nossa História presente, acabou preferindo recusar os compromissos – mas
também a solidariedade – de seu combate. (BARTHES, 2005, p. 53)

Mais uma vez, percebemos que o compromisso de Camus é consoante com a


sua crença e pelo coletivo que defendia, frente a qualquer outro interesse individual.
Ainda nesta dissertação conversaremos sobre o Conceito de História. Recorrendo às
teses benjaminianas e, principalmente, no tocante ao que denuncia o ponto de
desencontro de Walter Benjamin com o Materialismo Histórico, poderemos perceber
uma intersecção entre o modo como Benjamin e Camus liam a História. Uma
consciência da História, amplia as evidências e marcos históricos, embebidos de uma
falsa relação progressiva em uma linha do tempo.
45

3.1 Orã: um mergulho na costa argelina

Dado o panorama geral, tanto dos principais marcos da vida e produção


artística e intelectual de Albert Camus, até o mapeamento de possíveis leituras e
impressões de A peste, debrucemo-nos nos detalhes desta história que, para a autora
desta dissertação, tem a cidade como personagem principal. A peste somente
acontece porque tem lugar certo para chegar e se instalar: a cidade. A costa argelina
não reclama por mudanças em seu estilo e ritmo. Esse aparente marasmo de uma
rotina regular faz com que os moradores se acostumem ao conforto de uma suposta
segurança permanente. Ao que parece, no início da narrativa, Orã estava habituada
a ser o lugar da rotina, das lojas e do horário comercial. Os cafés eram a opção de
lazer. O próprio narrador propõe que uma forma conveniente de se conhecer Orã é
procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre por lá.
Assim como em O Relatório da Coisa, de Clarice Lispector, os moradores de
Orã optam por um estilo de vida que segue o fluxo de uma agenda de negócios.
Hábitos diários ditados pelas necessidades do ofício comercial, negócios e diretrizes
para um melhor fluxo de caixa. Enriquecer, mesmo que seja o dinheiro pelo dinheiro,
sem convertê-lo, por exemplo, em um life style menos entediante ou corriqueiro do
que o vivido por ali. No conto O Relatório da coisa Clarice Lispector brinca com a
dicotomia “tempo” e “relógio”, entre as leituras que se pode fazer do conto, pode-se
pensar que o hábito humano de categorizar o tempo em fração de segundos, minutos,
horas, dias, meses, anos, horário comercial, feriado, dias úteis, final de semana, ou
qualquer outra forma de dividir o tempo faz com que o humano se perca entre viver e
cumprir tarefas.

Nós dividimos o tempo quando ele na realidade não é divisível. Ele é sempre
e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo E para isso criou-se uma coisa
monstruosa: o relógio. Não vou falar sobre relógios. Mas sobre um
determinado relógio. O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e
sem literatura. Este relatório é anti-literatura da coisa. (LISPECTOR, 2015, p.
494.)

Porém, vale lembrar como chegamos a esse compasso apressado do relógio


que nos cerca e dita ritmo, marcando o ser-no-mundo e suas consequências. No
46

ensaio Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire, Walter Benjamin nos lembra que
o spleen em que o poeta francês estava imerso ao escrever As Flores do Mal refletiam
a melancolia de quem não se identificava com a nova e moderna Paris do século XIX.
A Paris de Baudelaire é ainda aquela de uma arquitetura medieval, ruas tortuosas,
envoltas por muros e muralhas de pedras. Uma cidade de um ritmo ainda lento, até
mesmo pelo o que permite esses percursos duros e estreitos, vetados de um
horizonte. A ausência dessa Paris nos apresenta outra, as dos bulevares, largas
avenidas que nos trazem o ritmo das grandes cidades, e que - pela primeira vez - dão
a Paris um horizonte de sonhos e encantos, tal como ainda conhecemos hoje. Há uma
relação íntima de tempo calculado e o ritmo urbano.
Edgard Alan Poe, no mais que conhecido O Homem da Multidão, nos fala de
Londres e de seu ritmo urbano e fabril. O compasso dos operários andando pelas
ruas, e a forma como esses passos se apertam com o anoitecer, anunciando que o
expediente acabou e o tempo urge ao raiar de um novo dia. Poe descreve uma
sociedade composta por pessoas fechadas em seus próprios relógios e a serviços de
um cumprir. Cumprir com a jornada de trabalha, cumprir com as tarefas de casa,
cumprir com as funções de esposa, de marido, de operário, de quem está a serviço,
mercê a deum prazo, mecânico e perecível, o tempo-agora.

A maior parte dos que passavam pareciam pessoas satisfeitas consigo


próprias e com os dois pés bem assentes na terra. Pareciam estar apenas
preocupadas em abrir caminho por entre a multidão. Franziam as
sobrancelhas e olhavam para todos os lados. Se levavam um empurrão de
outro transeunte, não pareciam muito irritadas; ajeitavam a roupa e seguiam
caminho rapidamente. Outras, e também este grupo era grande, tinham
movimentos desordenados, o rosto afogueado, falavam sozinhas e
gesticulavam, como que sentindo-se sós precisamente devido à enorme
multidão que as rodeava. (POE apud BENJAMIN. 2015, p. 123)15

Ou seja, para corresponder a um imenso relógio urbano, as pessoas (os


operários) passam a ter todos um mesmo ritmo, como uma dança coreografada em
que não se pode errar o passo, caso contrário, fica-se para trás. O ritmo urbano não
permite um descompasso. Despertador, café da manhã, pegar a condução para o

Referência utilizada por Walter Benjamin: Edgar Poe, Nouvelles hístoíres extraordínaíres. Traduction
15

de Charles Baudelaire (Charles Baudelaire, Ceuvres completes, vol. 6: Traductions li. Ed. Calmann-
Lévy), Paris, 1887, p. 88.
47

trabalho, bater o cartão, hora do almoço, bater o cartão para o segundo turno, pegar
a condução, ir para casa, novo dia e repete-se a rotina. Benjamin recorre a Friedrich
Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra16:

Aquelas centenas de milhares, de todas as classes e posições, que aí se


acotovelam não serão todas elas pessoas humanas com as mesmas
qualidades e capacidades e com o mesmo desejo de ser feliz?... Apesar
disso, passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem nada em
comum, nada a ver uns com os outros; e, no entanto, o único acordo tácito
entre eles é o de seguirem pelo passeio do lado direito, para que as duas
correntes da multidão não constituam entrave uma para a outra; e, no
entanto, ninguém se digna lançar ao outro um olhar que seja. Essa
indiferença brutal, o isolamento insensível do indivíduo nos seus interesses
privados é tanto mais chocante e gritante quanto mais esses indivíduos se
comprimem num espaço exíguo. (ENGELS apud BENJAMIN, 2015, p.117 -
118)

Esse acordo tácito feito em um perímetro urbano, acaba por tomar conta do
nosso tempo, o tempo de nossa existência. Esse “tempo útil” era o tempo do cotidiano
da cidade de Orã, mesmo que houvesse o “estender das horas” em um café e o
mergulho matinal no mar da costa argelina. No conto de Clarice há um paralelo entre
tempo e relógio, e nos convida a pensar o que fazemos com nosso tempo e se
estamos reféns de um relógio. Há muitas diferenças entre o tempo e um relógio. O
relógio tem estrutura, é a corda, a pilha, a eletricidade. Tem até relógio solar. O tempo,
apenas, aí está. Deixa suas marcas em nós, nos outros e nas coisas. Se o tempo “aí
está” podemos cair naquele ditado: “se não podes contra o inimigo, junte-se a ele”,
conselho para quem precisa, de imediato, sobreviver. Se não podemos contra o
tempo, precisamos utilizá-lo a nosso favor, aliar-se ao tempo:

É preciso viver com o tempo e morrer com ele, ou fugir dele para uma vida
maior. Sei que se pode transigir e que se pode viver no século e acreditar no
eterno. Isto se chama aceitar. Mas este termo me repugna e quero tudo ou
nada. Se escolho a ação, não pensem que a contemplação seja para mim
uma terra desconhecida. Mas ela não pode me dar tudo e, privado do eterno,
quero me aliar ao tempo. (CAMUS, 2014, p. 101)

16Referência utilizada por Walter Benjamin: (Friedrich Engels, Die Lage der arbeitenden Klasse in
England. Nacheigner Anschauung und authentischen Quellen [A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra. Observações pessoais e fontes autênticas]. 2' ed. Leipzig, 1848, p. 36-37.
48

Assim como Albert Camus nos adverte no ensaístico O Mito de Sísifo, assumir
o nosso próprio tempo é uma forma de assimilá-lo e, quem sabe, “fazer as pazes com
ele”, ao menos, compreendê-lo para fazer um bom proveito do tempo que nos resta.
Pois, como sabemos, o ritmo que nos dita a vida, imersos em uma sociedade em que
“tempo é dinheiro”, faz com que ao invés de o administrarmos bem, acabamos por
competir com ele, ou melhor: queremos vencê-lo. Surgem os desejos absurdos:
“gostaria que o dia tivesse 48 horas, assim eu daria conta de tudo”, ou assim se ficaria
escravo das horas por horas a mais. Nos tornamos escravos de um tempo que
criamos. E mais, não é de hoje que temos esse desejo de vencer o tempo, na Era
Vitoriana já se lutava contra o tempo e suas marcas. Esse foi o caso do jovem Dorian
Gray, sua fixação por sua própria beleza, o belo como valor mais precioso e como
motivo reverenciável: “Na dura luta pela existência, queremos ter algo que perdure,
por isso enchemos nossas cabeças com lixo e com fatos, na tola esperança de
garantirmos um lugar ao sol.” (WILDE, 2013, p. 97).

O desejo de eternidade não cabe a um ser terreno, a eternidade nos é


absurda. Em contrapartida, o tempo não desliga, não cessa, não para, não
se esquece de nós. E nós, mesmo quando, por acaso, nos esquecemos dele,
ele segue silencioso, deixando suas marcar por onde passa. Seja uma ruga
ou um fio de cabelo branco, ou o prazo de um relatório que deixamos de
entregar: Dorme, Sveglia, dorme um pouco, eu não suporto sua vigília. Você
não para de ser. Você não sonha. Não se pode dizer que você “funciona”:
você não é funcionamento, você apenas é. (LISPECTOR, 2015, p. 495)

É nesse existir simples que se encontravam os moradores do Orã. Apesar de


os concidadãos apreciarem alguns prazeres simples – mulheres, cinema e banhos de
mar – há hora marcada para distrações, o sábado e o domingo. Durante a semana é
possível, ainda, desprender-se de horas em cafés para saciar alguns vícios, jogar
conversa fora ou ocupar-se com algum jogo de cartas. Tudo isso é próximo das outras
cidades mencionadas – como a Paris pós-medieval, de Baudelaire, ou a Londres e a
modernidade, de Poe – ou qualquer outra de que se tem notícia, não é mera
exclusividade da cidade argelina. Afinal, nada mais natural do que ver pessoas que
trabalham da manhã a noite e que no pouco tempo livre buscam alguma espécie de
ópio que anestesiem seus corpos da sucessão de dias. Bares, copos, cafés, cartas,
49

corpos e prazeres que preenchem o que resta de tempo em uma rotina qualquer. Um
resto de vida em que até o amor se rende a um ato de banalidade:

Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os


homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou
a chamar de ato de amor, ou se entregam no hábito de uma longa vida a dois.
Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por falta de
tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber. (CAMUS, 2017, p.
10)17

Esse amor a qualquer maneira pode nos indicar uma certa falta de sensibilidade
entre os moradores de Orã que, independentemente de optarem por relações casuais
ou duradoras, carregam consigo um certo sentimento de tanto faz. Ao que me parece,
esse pouco caso se arrasta em outros percalços da vida, quando o narrador resolve
destacar Orã como péssimo lugar para se ficar doente e para se morrer. Haveria um
bom lugar para se ficar doente? Intrigante é que o narrador destaca esse como ponto
diferencial da cidade, a originalidade de Orã é a dificuldade que se pode ter para
morrer. Para quem conta a história é como se a cidade apresentasse um desconforto
a mais para quem passa por uma enfermidade ou encontra-se à beira da morte. Isso
porque o enfermo gostaria de qualquer coisa que o confortasse. Um gesto de carinho,
um aconchego que o amparasse no momento da mazela ou em leito de morte. Esse
desconforto se concretiza pelo mesmo ritmo impresso pela rotina da cidade, que, ao
mesmo tempo em que um morre, todos os outros seguem nos cafés ou ao telefone,
falando de câmbio, notas fiscais e descontos. Orã exige de seus concidadãos boa
saúde, assim se pode gozar dos prazeres e dedicar-se aos negócios.

17Nesta dissertação optou-se por trabalhar com a tradução de Valerie Rumjanek, com 23ª edição,
publicada pela editora Record em 2017. Embora a autora desta dissertação tenha tido contato com o
original, em francês, seja estudante da língua materna de Albert Camus, e tenha tido a oportunidade
de estudar e morar no sul da França por um breve período, ela acredita que a uma dissertação
produzida em uma universidade brasileira deve ter seu conteúdo produzido em língua nacional.
Contudo, já que o universo da pesquisa e da Academia demandam um aprofundamento e
conhecimento sem fronteiras, compartilharemos em nota de rodapé as citações em língua original.
Portanto, todas as citações de A peste, estarão em versão francesa para os desejosos de assim
acompanhá-las em versão original. As citações são retiradas da edição publicada pela editora
Gallimard, de 1947. Il n’est pas nécessaire, en conséquence, de préciser la façon dont on s’aime chez
nous. Les hommes et les femmes, ou bien se dévorent rapidement dans ce qu’on appelle l’acte
d’amour, ou bien s’engagent dans une longue habitude à deux. Entre ces extrêmes, il n’y a pas
souvent de milieu. Cela non plus n’est pas original. À Oran comme ailleurs, faute de temps et de
réflexion, on est bien obligé de s’aimer sans le savoir. (CAMUS, 1947, p. 10)
50

Aliás, é necessário não exagerar. O importante é ressaltar o aspecto banal


da cidade e da vida. Mas os dias passam sem dificuldades, desde que se
tenha criado hábitos. Partindo-se do princípio que a nossa cidade favorece
justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob esse aspecto,
sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Ao menos desconhece-se a
desordem. (CAMUS, 1947, p. 11).18

Não fosse pouco pragmatismo, o narrador ainda destaca a ausência de belezas


naturais, ou qualquer coisa que desse a Orã algum ar mais simpático, alguma tímida
beleza a qual se pudesse recorrer como repouso aos olhos. Uma cidade sem
pitoresco, sem vegetação e sem alma, em meio a um planalto nu, rodeada de colinas
luminosas, diante de uma baía de desenho perfeito, não fosse o detalhe de ter sido
construída de costas para essa baía, impossibilitando a vista para o mar. “É preciso ir
procurá-lo” (CAMUS, 1947, p.11). Essa busca pelo prazer, mesmo que em fragmentos
de tempo, faz com que por algum instante faça-se as pazes com ele. Nesse aspecto,
tomemos o conto de Clarice e a diferenciação entre “Sveglia” e “Tempo”. Se opor a
passagem do tempo e suas marcas pode ser visto com uma espécie de protesto
velado contra o Sveglia. Afinal, ser Sveglia é estar no compasso certo com as
demandas sociais. Agenda cheia de compromissos, executar funções, seguir em
frente sem muito questionar se está-se vivendo ou apenas pagando boletos, forma de
garantir a si uma subsistência necessária. Ter uma vida de uma forma absurda, como
condição de existência. Conviver com o absurdo pode ser uma forma de conseguir
existir. Pois é mais fácil existir sem questionar o absurdo:

Sveglia é burro: ele age clandestinamente sem meditar. Vou agora dizer uma
coisa muito grave que vai parecer heresia: Deus é burro. Porque ele não
entende, ele não pensa, ele é apenas. É verdade que é de uma burrice que
executa-se a si mesma. Mas ele comete muitos erros. E sabe que os comete.
Basta olharmos para nós mesmos que somos um erro grave. Basta ver o
modo como nos organizamos em sociedade e intrinsecamente, de si para si.
Mas um erro ele não comete: Ele não morre. (LISPECTOR, 2015, p. 498)

18Au demeurant, on ne doit rien exagérer. Ce qu’il fallait souligner, c’est l’aspect banal de la ville et de
la vie. Mais on passe ses journées sans difficultés aussitôt qu’on a des habitudes. Du moment que
notre ville favorise justement les habitudes, on peut dire que tout est pour le mieux. Sous cet angle,
sans doute, la vie n’est pas très passionnante. Du moins, on ne connaît pas chez nous le désordre.
(CAMUS, 1947, p. 11)
51

Se estamos mergulhados no Sveglia que é viver, tomar consciência disso faz


com que passemos a lidar com ele, ou correr para além dele. Quem sabe em um estilo
de vida na contramão desse ritmo, um reduto, um para além do Sveglia, o ser em
silêncio, o ser off-line, o ser sem holofote, o ser em tempo mando. Por difícil que
pareça estar em cena com Sveglia ou tirá-lo de enquadramento é uma escolha, ou
uma forma de tomar as rédeas da situação. Uma consciência ampliada que veta um
atropelamento. Ou quando em um rompante de tempo uma situação ou
acontecimento nos obriga a viver o tempo que se tem no agora, como tempo vivido
pelos moradores de Orã. Desde que a peste acometeu a cidade, viveu-se o eterno
presente da incerteza e o desejo de um retorno ao estilo de vida anterior a ela, a
espera pelo fim da epidemia, sem ter uma data no calendário que delimitasse essa
espera.
É nesse ritmo diário que a história é narrada, como mencionado no subcapítulo
anterior, na leitura de Roland Barthes sobre A peste, o dia de hoje, o tempo presente,
é o tempo da crônica. A tarefa do cronista é apenas dizer o que aconteceu, por mais
inverossímil que pareça a história.

Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de


meios para lançar-se num empreendimento deste gênero se o acaso não o
tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e
se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende
relatar. É isso que o autoriza agir como historiador. É claro que um historiador,
mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador
dessa história tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho;
em seguida, o de outros, visto que, pelo seu papel, foi levado a recolher as
confidências de todos os personagens desta crônica; e, finalmente, os textos
que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe
parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver. Propõe-se ainda..., Mas talvez
seja tempo de abandonar os comentários e as precauções de linguagem para
passar ao assunto em si. O relato dos primeiros dias exige certa minúcia.
(CAMUS, 2017, p. 12)19

19Du reste, le narrateur, qu’on connaîtra toujours à temps, n’aurait guère de titre à faire valoir dans une
temps, n’aurait guère de titre à faire valoir dans une entreprise de ce genre si le hasard ne l’avait mis
à même de recueillir un certain nombre de dépositions et si la force des choses ne l’avait mêlé à tout
ce qu’il prétend
relater. C’est ce qui l’autorise à faire oeuvre d’historien. Bien entendu, un historien, même s’il est un
amateur, atoujours des documents. Le narrateur de cette histoire a donc les siens : son témoignage
d’abord, celui des autres ensuite, puisque, par son rôle, il fut amené à recueillir les confidences de
tous les personnages de cette chronique, et, en dernier lieu, les textes qui finirent par tomber entre
ses mains. Il se propose d’y puiser quand il le jugera bom et de les utiliser comme il lui plaira. Il se
propose encore… Mais il est peut-être temps de laisser les commentaires et les précautions de
52

Nesse trecho, retirado logo do início do livro A peste, em suas primeiras


páginas, o leitor já é avisado de que se trata de uma narrativa do dia corrente, mas
que ao mesmo tempo também é uma forma de se fazer história. Há também um certo
destaque para o narrador que não se revela, contudo, declara-se que ele tem a visão
particular de cronista, além de ocupar um lugar de testemunha, o que denuncia que
ele tinha uma função social em contato com os demais moradores de Orã, uma
proximidade com a coletividade que a epidemia causada pelo desconhecido bacilo
atingia. A partir desses dados, o leitor está ambientado para acompanhar o que fora
a peste.
Somente nas últimas oito páginas do enredo, o leitor sabe com clareza que o
narrador de A Peste é o Dr. Bernard Rieux. Na página 280 da tradução utilizada nesta
pesquisa, finalmente o narrador que fora mencionado diversas vezes ao longo da
história é apresentado, é aquele que esteve presente em todos os momentos, quem
percebeu os primeiros sinais de que Orã saía de sua normalidade, que se espantou
com os ratos, que teve que lidar com cada novo caso de um cidadão infectado, que
teve o amor adiado, quem precisava lidar diretamente com a peste em todas as
espécies e, ainda, ser esperança para uma vida após os meses em que a cidade
encontrou-se dominada pelo bacilo. O médico, voz científica, é quem melhor sabe
lidar com enfermidades, a esperança de cura. No final do enredo, o leitor depara-se
com a revelação de quem é o narrador, além do próprio referir-se à A Peste como
crônica.

Esta crônica chega ao fim. É tempo de o Dr. Bernard Rieux confessar que é
o seu autor. Mas, antes de narrar os últimos acontecimentos, ele gostaria, ao
menos, de justificar a sua intervenção e fazer compreender por que quis
assumir o tom de testemunha objetiva. Ao longo de toda a duração da peste,
sua profissão o colocou em condição de ver a maior parte dos seus
concidadãos e de recolher os seus sentimentos. Estava, pois, em boa posição
para narrar o que tinha visto e ouvido. De uma maneira geral, esforçou-se no
sentido de não contar mais coisas do que pôde ver, de não atribuir aos
companheiros de peste pensamentos que, afinal, eles não eram obrigados a
formular e de utilizar apenas os textos que o acaso ou a desgraça lhe tinham
posto em mãos. (CAMUS, 2017, p. 280)

langage pour en venir au récit luimême. La relation des premières journées demande quelque minutie.
(CAMUS, 1947, p. 11)
53

O jornalista e ensaísta Morvan Lebesque, escreveu o livro Camus por ele


próprio, traduzido por de Maria José Palla e M. Vilaverde Cabral, e publicado pela
Portugália Editora, no ano de 1967. No livro, o autor perpassa os escritos de Albert
Camus e não deixa de mencionar o desafio do personagem Rieux em ser o narrador
de A Peste, que perdera a esposa, um amigo, e esteve o tempo todo na linha de frente
do combate ao bacilo desconhecido. Se no texto o narrador reivindica um “olhar de
fora”, o Dr. Bernard estava imerso no enredo.

Rieux também não, e não somente porque perdera um amigo e uma mulher.
Esta crônica aproxima-se do seu termo. É tempo que o Dr. Bernard Rieux
confesse que é autor dela. Estará terminada a tarefa do “eu” do livro, que
assume todos os “nós”, do “um” pluralizado sem esforço visível, do narrador
constantemente ausente-presente como a própria guerra e a própria morte?
Com certeza que não: já o vemos de estetoscópio na mão, debruçado sobre
o primeiro doente de após a peste. Que lhe resta? Pouca coisa, uma vez que,
analisando as razões que o levaram a redigir esta narrativa, apenas encontra
algumas bastantes modestas: não ser daqueles que se calam, testemunhar
a favor destes pestíferos... Da sua grandeza, de sua lucidez, do seu
heroísmo? Nem sequer... da injustiça e da violência que foram vítimas.
(LEBESQUE, 1967, p. 89)

No texto O Narrador, de Walter Benjamin, com tradução de Sérgio Paulo


Rouanet, o teórico escreve que a atividade de narrar histórias está em extinção, como
se a velocidade industrial nos tirasse o tempo de se contar e ouvir histórias,
impossibilitando a própria troca de experiências. No entanto, Dr. Bernard precisou
romper o limite de experiência pessoal, e mesmo a ética profissional de segredar o
que ocorre com os seus pacientes, para a necessidade coletiva de registrar o que
estava acontecendo em Orã, naquele tempo presente.

Essa distância e esse ângulo de observação nos são impostos por uma
experiência quase cotidiana. É a experiência de que a arte de narrar está em
vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar
devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma
história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos
sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 2012, p.
213)

Se bem que o relato de Rieux não era bem uma troca de experiência, estava
mais para registro de um fato inusitado – ratos mortos começaram a aparecer pelas
54

ruas da cidade – para em um segundo momento ser uma doença desconhecida, que
resultou em milhares de corpos mortos e Orã em estado de exceção por um período
que se estendeu por dez meses. Escrever poderia ser um recurso de sobrevivência,
de legado para prosperidade, mas vale lembrar que atravessar a peste – vencer o
período de exceção – não era garantia de gozar os dias ensolarados que estavam por
vir, feito um dia de domingo em que se toma banho no mar argelino. Provável que a
vida após a peste viesse a ser bem diferente do que fora a vida de então. Seja pela
ameaça de uma nova epidemia, pelas sequelas deixadas pelo bacilo, ou pelas vidas
dilaceradas. Nada fácil retomar a rotina sabendo que muitos afetos dos concidadãos
tiveram suas vidas ceifadas pela doença.
Por outro viés, quem mais viveria a situação epidêmica de forma mais lúcida e
elucidativa que o médico narrador? Rieux não só narrou a história, ele se apropriava
dela quase como um protagonista. Não fosse a vida em suspensão, restava contar a
sucessão de dias em espera e esperança. Fosse de um antidoto, um remédio ou um
instante de ópio que o livrasse da peste, um mergulho no mar. Por isso, a função de
cronista cabe ao médico, que em um cotidiano de horizonte restrito acabava por relatar
o dia a dia com o olhar que lhe cabia. Em umas passagens de A Peste lemos que
“Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. Encontram-se sempre as
pessoas igualmente desprevenidas.” (CAMUS, 2017, p. 40). O autor aproxima a
experiência de uma guerra a de uma epidemia. Nessas situações, o sentimento de
exílio e estado de exceção tomam conta das pessoas, a ausência de norte de uma
situação inimaginável, mas que se materializa frente aos olhos, com os corpos caídos
ao chão. Por mais que Dr. Rieux narre a crônica da peste, os dias em Orã foram
esvaziados em sentido, feito a ausência de perspectiva de soldados que voltam da
guerra sobreviventes, porém emudecidos.

Não se notou, ao final da guerra, que os combatentes voltaram mudos do


campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres de experiência
transmitida de boca em boca. E não havia nada de anormal nisso. Porque
nunca houve experiências mais radicalmente desmentidas que a experiência
estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação,
a experiência do corpo pela batalha material e a experiência moral pelos
governantes. (BENJAMIN, 2012, p. 214)
55

Narrar uma guerra, ou narrar a peste é documentá-la. Talvez não seja a troca
de experiência, mas a urgência de não a esquecer. A figura do médico é esta de quem
tem uma sabedoria, um conhecimento que não é alcançado por todos, mas que pode
exercer a função de dar essa voz ao coletivo. Portanto, Rieux era quem melhor podia
ser o cronista, quem tinha sabedoria e vivência de causa para registrar a peste, para
que todos os concidadãos possam ter essa mesma memória comum. Ou seja, o
narrador Rieux também guarda esse posto de lugar comum, um concidadão de Orã.
Pois, o narrador

Ele traz consigo, de forma aberta ou latente, uma utilidade. Essa utilidade
pode consistir por vezes num ensinamento moral, ou uma sugestão prática,
ou também num provérbio ou norma de vida – de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos ao ouvinte. Mas, se “dar
conselhos” soa hoje como algo antiquado, isto se deve ao fato de as
experiências estarem perdendo a sua comunicabilidade. Em consequência,
não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar
é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está se desenrolando. Para obter essa
sugestão, seria necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que
um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua
situação). (BENJAMIN, 2012, p. 216 - 217)

Por mais que o “narrador” de Benjamin seja referenciado nas imagens do


“contador de histórias”, da tradição oral e comunitária, e o ‘narrador do romance”, a
figura que estabelece uma relação solitária entre escritor e leitor, em A peste, o
narrador é aquele que experimentação uma situação coletiva, porém com algum olhar
de privilégio. Bernard Rieux ao mesmo tempo que era o médico, o narrador e a
esperança, também sentia as consequências da peste. A esposa doente (que
morreu), o amor suspenso, a falta de solução para a peste, sua práxis limitada a
deparar-se com o amontoado de corpos. Rieux foi o primeiro a perceber que a
normalidade de Orã estava ameaçada. Desde o momento que se deparou com um
rato morto em seu caminho, soou o aviso de que algo estava fora do lugar. Essa
sensação se confirmou em três, quatro, cinco dias, pois não era só um rato no
caminho, mas centenas de ratos mortos empilhados nas calçadas. Além de ser o
primeiro a tomar ciência do problema, era ele a esperança de alguma solução. A partir
do momento em que os concidadãos de Orã começaram a adoecer, era o médico o
único recurso. A quem recorrer, a quem devotar a esperança de cura, ou única escolha
56

entre lutar pela vida ou ser o próximo corpo a jazer em vala coletiva. O médico era
alguém mais perto da ciência com que aquelas pessoas podiam ter contato. Era quem
poderia desvendar a peste, achar uma saída. Rieux era a personificação de espera e
de esperança. Como narrador da História pelo espectro de uma crônica, ele não só
narra um enredo, como também faz parte dele e está imerso no que se é contato.

E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história


pode ser narrada estratifica-se como se fossem variações da mesma cor. O
cronista é o narrador da história. [...] O historiador é obrigado a explicar de
uma ou outra maneira os episódios com que lida; ele não pode absolutamente
contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É
exatamente isso, porém, o que faz o cronista, especialmente os seus
representantes clássicos, os cronistas medievais, percursores da história
moderna. (BENJAMIN, 2012, p. 226)

Portanto, a figura do narrador está intimamente atrelada à experiência,


observação, ao compartilhar conhecimentos, ao local de escuta, antes de ser lugar de
fala. No caso de um médico, antes de qualquer diagnóstico se realiza um exame de
anamnese, aquela entrevista feita com o paciente para saber todos os sintomas, o
histórico de doenças, progressão do quadro até dado momento, enfim, quanto melhor
realizado esse primeiro contato entre médico/paciente, maiores são as chances de
um diagnóstico certeiro. No caso de uma epidemia, a anamnese é quase uma “tecla
sap”, já que os sintomas e prognósticos se repetiam a cada novo caso notificado.

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos,
como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que
não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador infunde a sua substância mais intima também naquilo que
sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é
contar inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua
narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera
incomparável que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe
como em Stevenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo
mesmo. (BENJAMIN, 2012, p. 240)

No caso de A Peste, a experiência nova, coletiva e sem prazo para terminar


colocou os concidadãos em situação de comunhão frente ao desconhecido. Um olhar
analítico e de quem escreve por própria sobrevivência, faz da escrita um exercício de
57

resistência. Narrar A Peste é resistir ao flagelo. Alguém precisava tomar frente nessa
tarefa, que fosse quem a vivenciara em múltiplas faces e como testemunha.

3.2 Entre ratos e baratas

Orã, a cidade qualquer e banal, é onde a peste se infiltra. Os ratos, a princípio


ignorados, tiraram Orã de seu senso de normalidade. Suspendeu a rotina e o horário
comercial por meses. Pouco se sabia sobre o novo bacilo, que lembrava alguma
espécie de febre tifoide. A esperança não ia muito além do que se podia aguardar do
médico Rieux, afinal, quem melhor que um médico para que a saúde seja
reestabelecida. Ao ler esse trecho, logo recordei de outra obra de Clarice Lispector.
Em A paixão segundo G.H20, a personagem também questiona a desorientação e
desorganização que toma a sua vida frente à imagem da barata. Além de questionar-
se a si, assim em terceira pessoa, a personagem recorre inúmeras vezes ao neutro
na vida. Amor é neutro, a barata é neutra, a vida é neutra, a vida é a barata... O que
é o neutro? Teria a ver o neutro de Clarice com o de Camus?
Basta recordamos rapidamente a fortuna crítica que temos a respeito desse
termo relacionando nomes-base dos estudos literários como Roland Barthes e
Maurice Blanchot. Em A Conversa Infinita (vol.3), Blanchot discorre sobre o “neutro”
como o desconhecido, essa massa amorfa que sabemos existir e que, contudo, não
é visível. Inquieta-nos com a sua presença silenciosa, de quem prefere ensurdecer
perante a necessidade de se posicionar. Escolher uma posição, por vezes, é “comprar
um barulho”, é saber que a partir do momento que se está de um lado, abraçou-se um
“pacote completo”, não mais se podendo ficar apenas com o que está de acordo com
um eu individual, mas sim se tomar partido por uma coletividade, abarcando riscos e
bandeiras. O teórico nos alerta que “o neutro” não é tão somente uma questão de
vocabulário, pois a partir do momento que lidamos com o neutro, estamos lidando com
o desconhecido:

O desconhecido é verbalmente um neutro. A discrição da língua francesa,


que não dispõe do gênero neutro, é incômoda, mas, ao fim e ao cabo, não

20 Romance publicado pela editora Rocco, em 1964.


58

destruída de virtude, pois aquilo que pertence ao neutro é um terceiro gênero


oposto aos dois outros e constituindo uma classe determinada de existentes
ou de seres de razão. O neutro é aquilo que não se distribui em nenhum
gênero: o não geral, o não genérico, assim como o não particular. Ele recusa
a pertença tanto à categoria do objeto quanto a do sujeito. E isso não quer
dizer apenas que ele ainda está indeterminado e como que hesitando entre
dois, isso quer dizer que ele supõe uma outra relação, que não depende nem
de condições objetivas, nem das disposições subjetivas. (BLANCHOT, 2010,
p. 30)

Assim como a barata representa o desconhecido de G.H., o rato era o ainda


não conhecido em Orã, o inquietante sem nome. E se pensarmos a contrapelo, Orã
estava mesmo à mercê do desconhecido, a peste estava às vésperas de tomar a
cidade. E, é dessa forma, como lugar de certa indiferença, que nos é apresentado o
cenário da trama que está por vir nas próximas páginas. Uma cidade onde se tem
dificuldade para morrer, pois não é recomendada para se ficar doente.

O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para
morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em
desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que
nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O
doente precisa de carinho, ter algo em que se apoiar. Isso é muito natural.
Em Orã, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios, a
insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos
prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então
daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes
crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao
telefone ou nos cafés, fala de câmbio, de notas fiscais ou de descontos?
Compreende-se o que há de desconfortável na morte, mesmo nos dias de
hoje, quando ela chega assim a um lugar seco. Essas poucas indicações
talvez deem uma ideia da nossa cidade. Aliás, é necessário não exagerar. O
importante é ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias
passam sem dificuldades, desde que se tenha criado hábitos. Partindo-se do
princípio que a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer
que tudo vai bem. Sob esse aspecto, sem dúvida, a vida não é muito
emocionante. Ao menos desconhece-se a desordem. (CAMUS, 2017, p. 11)21

21Ce qui est plus original dans notre ville est la difficult qu’on peut y trouver à mourir. Difficulté, d’ailleurs,
n’est pas le bon mot et il serait plus juste de parler d’inconfort. Ce n’est jamais agréable d’être malade,
mais il y a des villes et des pays qui vous soutiennent dans la maladie, où l’on peut, en quelque sorte,
se laisser aller. Un malade a besoin de douceur, il aime à s’appuyer sur quelque chose, c’est bien
naturel. Mais à Oran, les excès du climat, l’importance des affaires qu’on y traite, l’insignifiance du
décor, la rapidité du crépuscule et la qualité des plaisirs, tout demande la bonne santé. Un malade s’y
trouve bien seul. Qu’on pense alors à celui qui va mourir, pris au piège derrière des centaines de murs
crépitants de chaleur, pendant qu’à la même minute, toute une population, au téléphone ou dans les
cafés, parle de traites, de connaissements et d’escompte. On comprendra ce qu’il peut y avoir
d’inconfortable dans la mort, même moderne, lorsqu’elle survient ainsi dans un lieu sec. Ces quelques
indications donnent peut-être une idée suffisante de notre cité. Au demeurant, on ne doit rien exagérer.
Ce qu’il fallait souligner, c’est l’aspect banal de la ville et de la vie. Mais on passe ses journées sans
difficultés aussitôt qu’on a des habitudes. Du moment que notre ville favorise justement les habitudes,
59

Mas, cá entre nós, haveria mesmo lugar ideal para ficar doente? Certo que o
narrador22 quer destacar o clima quente de uma cidade banhada pelo Mediterrâneo,
as noitadas em bares e cafés e o constante movimento de uma cidade voltada para
os negócios. Orã não está disposta a parar seu movimento natural, seu ritmo
acelerado. Por outro lado, recorrendo ao O Estrangeiro, Meursault é que não tem
muito por que se manter vivo. Era assim, para ele, a vida como uma banalidade, um
viver à toa e apático, já que “para morrer basta estar vivo” e cá está a nossa única
certeza:

Mais cedo do que outros, evidentemente. Mas todos sabem que a vida não
vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que tanto faz morrer aos trinta
ou aos setenta anos, pois em qualquer dos casos outros homens e outras
mulheres viverão, isso durante milhares de anos. Afinal, nada mais claro.
Hoje, ou daqui a vinte anos, era sempre eu quem morria. (CAMUS, 2016, p.
118)

Essa atmosfera do “tanto faz” ou “pouco importa a vida” pode se assemelhar


ao sentimento comum dos povos que estão vivendo uma guerra, passando por
alguma crise ou epidemia, em que muitos se encontram desesperançosos pois já
perderam entes queridos, perderam as rédeas de suas próprias vidas (com a
suspensão de uma rotina comum, por exemplo) ou, ainda, por verem diante de seus
olhos os feitos da destruição. A Peste nos dá uma perspectiva em que podemos
comparar a doença a um regime totalitário. Esse livro seria, então, uma grande
alegoria do nazismo, tornando-se umas das formas de expressão antitotalitárias de
Albert Camus, firmando seu posicionamento de resistência ao terror que assolava a
Europa:

La Peste, romance que trata de uma epidemia de peste na cidade de Oran


(na costa argelina), é publicado em 1947. Camus transmite para a obra a
determinação de fazer o que deve ser feito frente a uma ameaça total. O
generoso trabalho do Dr. Rieux, em conjunto com outros personagens da

on peut dire que tout est pour le mieux. Sous cet angle, sans doute, la vie n’est pas très passionnante.
Du moins, on ne connaît pas chez nous le désordre. (CAMUS, P. 11, 1947)
22 O leitor se depara com um grande mistério em torno do narrador de A Peste: em muitos momentos,

o narrador é evocado no enredo, porém não nos é revelada sua identidade. Com o passar dos
capítulos, o narrador se revela no personagem Rieux, o médico, personagem incógnitem toda a
trama.
60

obra, é uma mostra do engajamento por exigência da situação de caos


generalizado, mesmo que eles tenham de se submeter a certos riscos. A obra
é uma alegoria ao nazismo e, por extensão, a todo regime totalitário. O próprio
autor admitia que o conteúdo evidente fosse a resistência europeia a Hitler.
(SILVA, 2013, p. 32)

Quando o curso de nossas vidas sai da normalidade, instaurando uma


instabilidade tamanha a ponto de não sabermos quem sobreviverá, até quando
estaremos vivos, os valores frente ao bem que é a vida ficam suprimidos, como se
não tivessem mais o mesmo peso de antes. Em Orã, quanto mais a peste se alastrava,
mais as vidas se esvaziavam em sentido, sejam as dos infectados, que recebiam sua
sentença de morte, ou as dos sobreviventes, que estavam com os dias suspensos até
que a peste findasse.
Então, a peste era uma espécie de guerra, um embate que só havia o lado dos
vencidos:

Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo, as pestes,


como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.
Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é
necessário compreender assim as duas hesitações. Por isso, é preciso
compreender também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a
confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar
muito, seria estúpido”. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a
impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não
pensássemos sempre em nós. (CAMUS, 2017, p. 40).23

Nesse sentido, Rieux, por ser médico, era a grande esperança para que fosse
desvendada uma possível cura. Ele – mais do que os outros concidadãos – tinha
chance de vencer a peste, além de ser a esperança dos enfermos e de seus familiares.
Mesmo sem grandes resultados com os pacientes que estavam aos seus cuidados,
era Rieux o mais próximo de uma mediação a lidar com a peste e a uma remediação
possível, junto a um fio de esperança de conseguir a cura para esse mal. A cidade
inteira queimava em febre e, feito o estado físico de quem delira enfermo e acamado,

23Il y a eu dans le monde autant de pestes que de guerres. Et pourtant pestes et guerres trouvent les
gens toujours aussi dépourvus. Le docteur Rieux était dépourvu, comme l’étaient nos concitoyens, et
c’est ainsi qu’il faut comprendre ses hésitations. C’est ainsi qu’il faut comprendre aussi qu’il fut partagé
entre l’inquiétude et la confiance. Quand une guerre éclate, les gens disent : « Ça ne durera pas, c’est
trop bête. » Et sans doute une guerre est certainement trop bête, mais cela ne l’empêche pas de durer.
La bêtise insiste toujours, on s’em apercevrait si l’on ne pensait pas toujours à soi. (CAMUS, 1947, p.
42)
61

como vislumbrar um futuro? A peste suspendia qualquer ideia de tempo futuro. Esse
desânimo diante do futuro tomava até os que lutavam com e contra a peste, assim
como o médico Rieux.

Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Números
flutuavam na sua memória e ele dizia a si mesmo que umas três dezenas de
pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos.
Mas que são cem milhões de mortos? Quando se faz a guerra, já é muito
saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se
o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história
esfumaçam-se na imaginação. (Ibidem, p. 41)24

Essa luta contra a doença se tornava ainda mais grave pela dificuldade em
identificá-la com precisão, pois ela diferia de todos os bacilos já catalogados. Buscava-
se um diagnóstico para a peste; no entanto, mais importante do que um vocábulo que
enquadrasse a doença, eram medidas urgentes que a vetassem ou algum antídoto
para a cura. A velocidade com que a peste se propagava poderia vir a matar metade
da população de Orã em menos de dois meses:

Trata-se de uma febre de caráter tifoide, acompanhada de abscessos e de


vômitos. Fiz incisões nos abscessos. Pude, assim, proceder a análise em que
o laboratório julga reconhecer o bacilo da peste. Para ser preciso, é
necessário dizer, entretanto, que certas modificações específicas do micróbio
não coincidem com a descrição clássica. (CAMUS, 2017, p. 51)25

A peste trouxe à cidade um novo sentimento de comunidade. O velho ditado


até diz que em tempos de crise as pessoas tendem a se unir, mas, nesse caso, não
houve uma comoção e uma união por conta da doença que assolava a cidade, foi um
pouco diferente: ela passou a viver em uma espécie de estado de exceção, um exílio

24 Il essayait de rassembler dans son esprit ce qu’il savait de cette maladie. Des chiffres flottaient dans
sa mémoire et il se disait que la trentaine de grandes pestes que l’histoire a connues avait fait près de
cent millions de morts. Mais qu’est-ce que cent millions de morts ? Quand on a fait la guerre, c’est à
peine
si on sait déjà ce qu’est un mort. Et puisqu’un homme mort n’a de poids que si on l’a vu mort, cent
millions de cadavres semés à travers l’histoire ne sont qu’une fumée dans l’imagination. (CAMUS, P.
43, 1947)
25 Il s’agit d’une fièvre à caractère typhoïde, mais accompagnée de bubons et de vomissements. J’ai

pratiqué l’incision des bubons. J’ai pu ainsi provoquer des analyses où le laboratoire croit reconnaître
le bacille trapu
de la peste. Pour être complet, il faut dire cependant que certaines modifications spécifiques du
microbe ne coïncident pas avec la description classique. (CAMUS, 1947, P. 54)
62

coletivo em que não se podia mais ir ou vir, o exílio era um toque de recolher em
aguardo do fim da peste. Dia sim, dia não o governo anunciava alguma nova medida
para tentar fazer com que a peste não se alastrasse para as cidades vizinhas,
ganhando ainda mais força e agravando a catástrofe.

No entanto, uma vez fechadas as portas, deram-se conta de que estavam


todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário
ajeitar-se. Foi assim, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um
sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se
tornou, subitamente, o de todo um povo e, com o medo, o principal desse
longo tempo de exílio. (Ibidem, p. 67)26

Assim, estabeleceu-se um estado de exceção um tanto quando particular e


menos previsível do que quando ocorre por uma guerra civil. Era a peste que
deslocava o correr da carruagem e impedia qualquer sintoma de normalidade. O
modus operandi da cidade voltou a combater a peste, ou melhor, a resistir a ela. Como
sobreviver frente aos incontáveis corpos mortos? Como sobreviver na constante
ameaça de ser a próxima vítima? Se foram os ratos os primeiros a cair, quem
sobreviveria? O toque de recolher nem era tão necessário. Quem não sentia os
sintomas da peste no corpo os sentia de qualquer outro jeito, pois a enfermidade não
chegava apenas aos infectados com o bacilo: ela permanecia em Orã em definitivo.
O comércio se formava agora de ruas vazias, o deserto pairava, assim com o ar
pesado da peste que não deixava com que se esquecesse de sua presença forte e de
gritos ensurdecedores daqueles que padeciam. Assim, não ter tido um contato direto
com o bacilo da peste não deixava os concidadãos menos doentes. O estado de
exceção que se formara fazia com que todos estivessem no mesmo barco:

Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do


estado de exceção, apenas porque o soberano que decide sobre a exceção
é, na realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode
também ser definido pelo oximoro êxtase-pertencimento. (AGAMBEN, 2004,
p. 57, grifos do autor).

26Mais une fois les portes fermées, ils s’aperçurent qu’ils étaient tous, et le narrateur lui-même, pris
dans le même sac et qu’il fallait s’en arranger. C’est ainsi, par exemple, qu’um sentiment aussi
individuel que celui de la séparation d’avec un être aimé devint soudain, dès les premières semaines,
celui de tout un peuple, et, avec la peur, la souffrance principale de ce long temps d’exil. (CAMUS,
1947, p.71)
63

Todos pertenciam ao estado de exceção criado pela peste. Ela suspendera


qualquer senso de normalidade que Orã outrora defendera como seu estado de
espírito de cidade neutra, boêmia e voltada para os negócios. Na definição acima,
feita por Giorgio Agamben, em Estado de exceção: homo sacer, II, I, podemos
perceber a contradição inerente ao estado de exceção, porque ele vem acompanhado
de uma indeterminação de lógica e práxis, operando para além de uma referência de
normalidade. Nesse contexto, era como se cada concidadão não desfrutasse de
sentimentos individuais, havia apenas o sentimento comum e totalizante: a peste. A
comunicação com outras cidades estava vetada até mesmo por cartas, tudo para
evitar que o bacilo da peste tomasse proporções ainda maiores. Os concidadãos se
tornavam prisioneiros da peste.

Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o
exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de
todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que
muitos dos nossos concidadãos. Sim, era um sentimento de exílio esse vazio
que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo
irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo,
essas flechas ardentes da memória. (CAMUS, 2017, p. 71)27

Assim seguiam os dias em Orã: os concidadãos vivendo de seus passados, de


uma memória do que um dia foram, à espera de um aviso de que poderiam voltar a
reencontrar os parentes que ficaram de fora da peste, uma liberdade para poder ir e
vir de Orã e, principalmente, ganharem novamente a cidade onde não se tinha o direito
de ficar doente. Por vezes, essa vontade de um futuro sem a peste tomava o
pensamento e – ao mesmo tempo – esse futuro assustava, pois logo dava a dimensão
real de que, no futuro, muitos afetos (amores de antes da doença) terão ido embora,
assim como a peste. Em Albert Camus e o teólogo, Howard Mumma relata o trecho
de uma conversa que teve com o amigo franco-argelino em que o escritor de A Peste

27Ainsi, la première chose que la peste apporta à nos concitoyens fut l’exil. Et le narrateur est persuadé
qu’il
peut écrire ici, au nom de tous, ce que lui-même a éprouvé alors, puisqu’il l’a éprouvé en même temps
que
beaucoup de nos concitoyens. Oui, c’était bien le sentiment de l’exil que ce creux que nous portions
constamment en nous, cette émotion précise, le désir déraisonnable de revenir en arrière ou au
contraire de
presser la marche du temps, ces flèches brûlantes de la mémoire. (CAMUS, 1947, p. 75)
64

declara a relação de poder com sentimento de medo e insegurança. Para Camus, o


poder, em si, é neutro, porém esse neutro pode polarizar-se intencionalmente em
ações boas ou ruins.

- A competição pelo poder é a mais fundamental causa de guerra. De fato, a


própria guerra nada mais é do que a competição armada pelo poder. Mas –
ele continuou – cheguei à conclusão de que o poder em si mesmo é neutro,
não é bom nem mau. O propósito do poder é adquirir capacidade de viabilizar
objetivos ou fins desejados, e normalmente as nações querem poder porque
estão com medo. Tem medo do outro. Tem medo de outra nação, medo de
que seu comércio seja levado embora. Esse medo embutido de todas as
outras nações levam-nas a fabricar armas e buscar o máximo de poder que
possam chegar a conseguir; não apenas pelo o que ele pode fazer, mas pelo
poder em si mesmo. O desejo de poder não tem atrativos, é deplorável e
lamentável, mas também inescapável. As nações querem poder porque
querem segurança, e isso quase sempre conduz a alguma forma de
dominação. (MUMMA, 2002, p. 85)

Ou seja, a necessidade de proteger-se de qualquer ameaça faz com que se


busque dominar, neste caso, dada comunidade. O poder traz a sensação de controle
da situação. O neutro, neste caso, é a utilização do poder. Se a persona detentora do
poder tem a premissa para atitudes construtivas ou degradantes de uma coletividade.
A intempestividade constatada em Orã pode ser a mesma que encontramos
em Meursault. Um estrangeiro é um ser intempestivo, feito fora do tempo. Esse
deslocamento de tempo e espaço faz com que se tome uma posição em relação ao
presente. Meursault conseguia viver o tempo de agora como raro ser humano
conseguiria. Desde a imprecisão de tempo do telegrama que o avisara da morte de
sua mãe, talvez se possa apreender que o importante é que no tempo de agora ela
estava morta e nada mais poderia ser feito.
Esse tempo de agora também permitia a Meursault lidar com a morte, pelo
simples fato de aceitá-la. Nós, em nosso íntimo, negamos a morte, não queremos
encará-la. Nós “lutamos” (de luto) frente à morte de um ente querido e, se pudermos,
a reprimimos em desejo de vida perpétua, de mausoléus para o não esquecimento.
Enquanto viventes, também nos desviamos da morte, seja por evitar encararmos as
marcas do tempo – com plásticas e maquiagens –, seja por nos fingirmos eternos e
65

reivindicarmos uma eterna juventude28. Podemos dizer que Meursault vivenciava o


que Agamben, em O que é o contemporâneo? e outros ensaios, nos diz sobre ser
contemporâneo:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente


contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está
adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas,
exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse
anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o
seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58-59)

Agamben (2009) nos fala que um homem pode odiar seu tempo, mas deve
saber que não pode fugir dele. Meursault assume uma postura de contradição, pois
mergulha nos riscos de seu próprio tempo, assume os riscos de sua postura
antagonista e de anti-herói e – ao mesmo tempo – é essa figura questionada, seja por
Marie, pelo delegado ou pelo religioso. Como viver como Meursault em um tempo
único, de única ética e junto à moral de assumir o absurdo como própria condição de
vida? No rastro de Agamben, podemos encontrar uma possível resposta – ou
conformidade – a essa questão:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,


que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que este adere através de uma
dissociação e um anacronismo. (AGAMBEN, 2009, p. 59)

Esse saber olhar o tempo é que difere Meursault e o próprio Rieux de outros
personagens e até mesmo de nós, leitores. O estrangeiro assume a condição que lhe
é dada sem pestanejar ou reivindicar; ao contrário do que fez por vontade própria, ele
assume seus riscos e dissabores em viver. Já Rieux assume um papel que
naturalmente é dado a ele: atribuímos a um médico a esperança de cura. Assim, ele
também exemplifica que sabia ter tal relação singular com o próprio tempo. Certo que
este tinha uma vantagem: era médico. Cabia a ele saber lidar com a peste e ser

Não é de hoje que temos esse desejo de vencer o tempo: na Era Vitoriana já se lutava contra o tempo
28

e suas marcas. Esse foi o caso do jovem Dorian Gray, com sua fixação por sua própria beleza, o belo
como valor mais preciso e como motivo reverenciável: “Na dura luta pela existência, queremos ter
algo que perdure, por isso enchemos nossas cabeças com lixo e com fatos, na tola esperança de
garantirmos um lugar ao sol” (WILDE, 2013, p. 97).
66

invencível a ela. Conviver com a peste, no caso de Rieux, era coabitar com ela na
constante eminência de ser o próximo enfermo. Porém, quando os dias são apenas
uma sucessão de dia e noite, a esperança é de que em um novo amanhecer em uma
nova estação o vento tenha carregado consigo a atmosfera pesada da peste.
O dilema do tempo presente também é companheiro de quem se encontra
preso. Com sua liberdade suspendida, por conta do crime que cometera, Meursault
deparava-se novamente com o questionar o tempo e sua imprecisão. Como pode o
mesmo tempo ora ser acelerado, ora ser passivo? Na prisão, sabe-se de um novo dia
pelo intervalo feito por uma noite, a ausência de horizonte é tão forte quanto a de um
futuro:

Assim, com as horas de sono, as recordações, a leitura da minha ocorrência


e a alternância da luz e da sombra, o tempo passou. Tinha lido que na prisão
se acaba perdendo a noção do tempo. Mas para mim isto não fazia muito
sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao
mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal
modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros. E nisso
perdiam o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que
conservavam um sentido para mim. (CAMUS, 2016, p. 85)

No excerto acima, o próprio estrangeiro – Meursault – relata seus dias na


prisão. O tempo da pena criminal, assim como o tempo da peste, dá a sensação de
continuidade suspensa, o eterno “mais um dia”. No entanto, em A Peste, o enredo
aponta para a esperança pelo fim do “estado de exceção”, enquanto o estrangeiro
vivencia os dias preso ao mesmo compasso que levava sua vida em liberdade,
conformado com vida em como ela se apresenta.
67

3.3 Para não deixar de mencionar SARTRE &CAMUS

Vejo agora, que em seu íntimo não arde uma centelha sequer de
talento literário.
Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu
primo digno e paralítico, ou seja, um olho!
Um olho que realmente enxergue! (HOFFMANN, 2010, p. 16)

A amizade entre Camus e Sartre foi marcada pelas diferenças entre os dois
escritores. O primeiro, longe de ser vistoso aos olhos, trazia consigo algo que ainda
assim seduzia. Todos os intelectuais dos anos 40 queriam ser notados por Sartre,
participar das noitadas em cafés parisienses ou, em melhor oportunidade, receber um
convite para uma recepção em sua residência. Quem não queria ter o reconhecimento
de um renome ou de ter a chance de efetivar-se nas cátedras filosóficas francesas
como um de seus discípulos? Tudo isso poderia ser um grande cartão de visitas, uma
conquista de algum lugar ao sol, e a sensação de ser aprovado pela crítica e pelos
demais intelectuais que, dificilmente, iriam se opor a ele. Além disso, eles tinham
traços de personalidade marcantes e que, com certeza, perpetuaram características
em seus escritos. Podemos imaginar, por exemplo, que Sartre considerava que tinha
achado suas respostas, elaborado sua filosofia, atribuído a sua interpretação à vida,
ao mundo e às coisas. Enquanto Camus não, e é bem provável que não as
encontrasse. Por isso, ele era um contínuo, um aceitar essa vida como ela se
apresenta. Para Camus, o mistério da vida era uma batalha constante para se
encontrar uma verdade eternamente esquiva, mas que persistia em o convidar a
tentar, mais uma vez, dar crédito à vida, a esperá-la.
No cenário após a Segunda Guerra Mundial, o mundo acompanhou uma nova
polarização ideológica frente à Guerra Fria. Esse período, que nos livros escolares
compreende de 1947 a 1991, apontou dispersões de imediato. A ressaca de um pós-
guerra não foi o suficiente para que o desejo por poder chegasse a atos extremos por
essa conquista e muitos corpos ao chão pelo caminho. Na classe intelectual, a Guerra
Fria também deixou marcas. Nesta pesquisa, seria difícil não mencionar a famosa
discórdia entre Jean-Paul Sartre e Albert Camus. O posicionamento “de esquerda”,
neste contexto, foi o elemento principal que culminou no fim dessa amizade. As
68

pessoas demandavam um posicionamento político baseado em “ou isso ou aquilo”,


muito próximo aos que acompanhamos hoje. Camus não aderiu a um posicionamento,
assim, tão delineado, pois não acreditava que de algum modo a violência poderia
justificar uma causa, nem mesmo a do socialismo. Se era necessário matar para um
mundo socialista, esse mundo não se justificava para ele. A morte, para ele, tinha o
mesmo peso independente de que lado da trincheira se estivesse, e era insustentável
qualquer defesa da ausência de esperança de um mundo socialista. Ronald Aronson,
autor do livro Camus e Sartre: o polêmico fim de uma amizade no pós-guerra, destaca
a necessidade que se tinha no pós-guerra de definir-se como “comunista” ou “social-
democrático” e, automaticamente, se a pessoa não se firmasse em uma das
ideologias, automaticamente estar resignada à vala comum da contrária.

Depois da ruptura, um desanimador “ou isso ou aquilo” prevalecia na


esquerda: apoiar movimentos e governos revolucionários significava
concordar com o escamoteamento da liberdade; defender a liberdade
significava se opor ao único projeto significativo de desafio ao capitalismo.
Num sentido profundo, estamos falando do fracasso da esquerda no século
XX, do desaparecimento da esperança. As esperanças de uma geração em
avançar rumo ao socialismo e à liberdade viriam a ser frustradas.
(ARONSON, 2007, p.18)

Howard Mumma, o teólogo amigo de Camus, tratou da amizade entre os dois


célebres intelectuais. O teólogo diferenciava os dois como “o cheio de certezas” e “o
cheio de dúvidas”. Nessa perspectiva, Sartre, o intelectual da vez, o reconhecido por
suas contribuições para a filosofia e notória contribuição para o meio acadêmico, era
quem já tinha um legado, já tinha seus discípulos. Enquanto Camus ainda surfava em
ondas desconhecidas, experimentava novas oportunidades, mesmo que um pouco
teimoso em seus ideais. Camus já tinha certa fama, reconhecimento e prestígio, mas
não era um líder intelectual, um destaque atual da filosofia francesa, nem tinha alunos
que pesquisavam a partir de seus escritos.

Sartre achava que tinha achado suas respostas; Camus não, e talvez nunca
encontrasse. Para Camus, o mistério da vida era uma batalha constante, uma
luta contínua para encontrar uma verdade eternamente esquiva, mas que
sempre o convidava a tentar mais uma vez. (MUMMA, 2005, p. 82)
69

Com o ataque de Hervé em junho de 1945, e em seguida o ocorrido em


Hiroshima, marcou-se o fim das esperanças de Camus, e ocorreu a primeira onda de
reformismo social da Resistência, declarando-se que a Resistência estava de fato
fraturada.

Claramente uma mudança aconteceu. A resistência estava fraturada. No


outono de 1944, Camus havia usado o termo camaradas, mas por volta de
junho de 1945 ele era tratado como um inimigo, e isso com o apoio de uma
citação de Lenin. O artigo de Hervé foi calculado para humilhar Camus. De
fato, após essa surra pública, Camus escreveu apenas alguns artigos mais
no Combat, e então se calou. Como vimos em sua resposta a Hiroshima, e
em grande desacordo com o PCF, ele lamentou o uso das armas nucleares.
Mais tarde, nesse mesmo mês, declarando que o expurgo havia fracassado,
Camus colidiu com aqueles que queriam continuá-lo – os comunistas,
sobretudo. Sua admissão de que a força política da Resistência estava
exaurida foi um dos últimos editoriais de Camus por mais de um ano.
(LEBESQUE, 1967, p.138 - 139)

Camus pagou caro por manter-se em par com seus próprios ideais. Talvez,
fosse mais fácil compactuar e posicionar-se consoante com o Partido Comunista
Francês. Possivelmente, ele estaria evitando o desgaste que teve no campo
intelectual, não seria questionado quanto as suas atitudes e posturas políticas, não
teria sido considerado “de direita” ou “social-democrata”, nem como “quem virou as
costas para os companheiros de causa”. Paga-se caro sempre que se toma um
posicionamento menos popular, ou que vai de encontro com o que pensa líderes tão
expressivos, como era Sartre para o meio acadêmico e intelectual. Porém, para o
argelino ainda valia mais rejeitar a violência.

Ao rejeitar a violência política, Camus insistia que aceitar “o marxismo como


uma filosofia absoluta” era nada mais, nada menos que legitimar o
assassinato. “Nas perspectivas do marxismo”, escreveu, “cem mil mortos não
são nada, com efeito, se for o preço da felicidade de centenas de milhares de
pessoas”. (LEBESQUE, 1967, p. 155)

Então, agora, para a elite intelectual francesa Camus era um anticomunista.


Rejeitar a Guerra Fria foi o estopim em um desenrolar quanto ao seu posicionamento
político, quanto em seu relacionamento amigável com Jean-Paul Sartre. Talvez ele
tenha entrado em alguma contradição por ter marcado fortemente um discurso
70

anteocuparão nazista em Paris, e na causa soviética tenha se contrariado a postura


armada.

O anticomunismo não violento de Camus rejeitava a Guerra Fria, e fez com


uma clareza e uma consistência que outros anticomunistas gostariam de
imitar. Embora tenham justificado que se pegasse em armas contra os
ocupantes alemães, Camus não justificaria a mesma atitude em relação à
União Soviética. Embora ajudando a oferecer ideologia para um dos lados
em conflito, Camus jamais se juntaria claramente a este. Seus artigos foram
uma reivindicação inicial, e amplamente lida, por uma “terceira via” entre os
dois lados que estavam, então, apenas se formando. (LEBESQUE, 1967, p.
157)

Mesmo no cenário recente, espera-se que os intelectuais e a classe artística se


posicionem politicamente. No continente americano, tanto as últimas eleições nos
EUA, realizadas em 2020 e que elegeram Joe Biden, quanto as eleições à presidência
do Brasil, em 2018, foram marcadas por pronunciamentos de figuras da mídia sobre
que candidato acreditavam ser a melhor opção para se tornar o novo representante
da nação. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, ser “de direita” ou “de esquerda”
indica uma série de comportamentos político-sociais que determinam quais agendas
são prioridade, qual acordo tácito se assina a partir do momento que se declara de
acordo com tal lado. Ser em cima do muro é, praticamente, ser oposição. Camus
rompeu com o PC em um momento crucial, não teria como “passar batido”.

Claro, a Guerra Fria determinou amplamente quem escolheria qual lado. Os


intelectuais de esquerda pró-comunistas na França, em sua maioria, se
alinharam contra O homem revoltado, enquanto que um grupo menor, e de
menos repercussão, deu boas-vindas ao livro. Aqueles mais à direita o
aclamaram, com poucas exceções, como Raymond Aron, que claramente
desaprovou o estilo de pensamento de Camus. Não surpreende que
resenhas americanas e britânicas tenham congratulado Camus pela sua
coragem e argúcia. (LEBESQUE, 1967, p. 199)

Nesse contexto, o livro O homem revoltado, publicado em 1951, foi produzido


e lançado na ressaca da ruptura de Camus com o Partido Comunista Francês, e
coroou o relacionamento estremecido entre Camus e os intelectuais apoiadores do
comunismo e da União Soviética. Essa crise ideológica e intelectual ficou ainda mais
marcada com a crítica que Sartre fez sobre o livro do então amigo. Assim, O homem
71

revoltado ganhava fama de “filosofia pouco consistente”, ‘cheia de lacunas filosóficas”,


“beirando ao amadorismo”.

A agenda anticomunista de Camus enviesou e modelou O homem revoltado.


As fraquezas e limites do livro dificilmente podem ser separados de suas
forças, e decorrem, como estas, da escolha de Camus em escrever esse livro
deste modo particular. Partilho de sua equação inicial de comunismo e
assassinato, Camus então deduz revoluções de ideias e estados de espírito.
Ele não fez nenhuma análise detalhada de movimentos e eventos, não dando
nenhum papel às necessidades ou opressão materiais, mas apresentando
suas ideias genericamente. A busca por justiça social aparece apenas como
uma tentativa metafisicamente inspirada de substituir “o reino da graça pelo
reino da justiça”, e afirmações sobre dignidade humana são um pouco mais
que esforços para derrubar Deus. (LEBESQUE, 1967, p. 206)

Camus aguardava a crítica de Sartre a sua mais nova publicação, mal sabia ele
que O homem revoltado ficaria registrado como o fim de sua amizade. Na época, a
crítica negativa sobre o conteúdo deste livro circulou não só em crítica literária, mas
foi o comentário entre os demais intelectuais e até motivo para burburinho de
expectativa quanto a uma reaproximação entre o francês e o franco-argelino, o que
não aconteceu. No dia 05 de janeiro de 1960, um dia após o acidente de carro fatal
que resultou na morte de Albert Camus, Jean-Paul Sartre publicou uma carta em que
falava sobre o amigo de outrora. Abaixo o primeiro parágrafo, em tradução de Jorge
Luiz Gutiérrez. A carta na íntegra está disponível nos anexos.

Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas


fases e cujo termo final tratávamos de compreender. Representava neste
século e contra a história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas
obras constituem talvez o que há de mais original nas letras francesas. Seu
humanismo obstinado, estreito e puro, austero e sensual, travava um
combate duvidoso contra os acontecimentos em massa e disformes deste
tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de suas repulsas, reafirmava, no
coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de ouro
do realismo, a existência do fato moral. Era, por assim dizer, esta
inquebrantável afirmação. Por pouco que se o lesse ou refletisse a respeito,
chocávamos com os valores humanos que ele sustentava em seu punho
fechado, pondo em julgamento o ato político. (SARTRE, 1960)

Quando se morre, costuma-se ter uma memória mais afetiva em que


ressaltamos os pontos positivos de alguém cujo corpo não se faz mais presente. O
amadorismo de Camus pode, então, ser visto como traço positivo de uma
personalidade marcante e, em certa medida, não tão bem compreendida mais por
72

incapacidade dos outros do que por alguma falha de quem jazeu. Melhor pronunciar-
se que amargar qualquer culpa por não ter demonstrado qualquer elogio lutuoso após
a morte do célebre, um dia, amigo.
73

4 UMA PERCEPÇÃO SOBRE A HISTÓRIA

“[...] ninguém vê as coisas como elas são, mas como seus desejos e seu estado de espírito
o fazem ver.”
(Luiz Buñuel)

Um ponto culminante para que Albert Camus não abraçasse o Comunismo


Soviético29 esbarrava no modo como ele compreendia a História. O autor defendia
que não se poderia ter um engajamento histórico acima do engajamento individual,
pois, para ele, a História cria uma subordinação. Visto que na História há uma
visibilidade e legitimidade de um dos lados dos fatos ocorridos. Aquela situação que
nós brasileiros já conhecemos desde nosso fundamento quanto nação: uma história
branca, vitoriosa e eurocêntrica que nos acompanha também deixou seus marcos
mundo afora. Portanto, Camus acreditava que o mundo acaba por vencer a História.
Por exemplo, ao fim de uma guerra as árvores voltam a florescer, quem sobreviveu
tem o dever de retomar suas rotinas. Além disso, a História se vale de narrar o lado
dos vencedores. E assim como tantas “vitórias” arquivadas, não se poderia esquecer
que o lado vitorioso costuma deixar um rastro de sangue. Pela interpretação de
Camus, o comunismo Soviético estava em busca do seu lugar na História, sem se
importar com quantos corpos fossem necessários que caíssem ao chão. E o autor em
destaque nesta dissertação declarava o quanto a vida deveria ser preservada. Não
existia lado certo para preservar vidas, não haveria uma ideologia que justificasse a
morte em nome de um “bem maior” e “futuro próspero”. A História seria, então, uma
forma de alienar as pessoas e os aspectos que lhes são vitais. Para ele, estar na
História é abdicar às próprias escolhas. De nada valeria optar por estar de um lado,
legitimar-se como esquerdista, se isso feria crenças que a ele eram contínuas e
nobres. Estar na História é uma questão mais próxima à vaidade que um compromisso
com a sua própria crença.

29 O Partido Comunista da União Soviética (PCUS) foi o partido político fundador e governante da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Até no ano de 1990, foi o único partido permitido por
lei dentro da União Soviética. O partido foi fundado no ano de 1912 pelos bolcheviques, liderado por
Vladimir Lenin, que ascendeu ao poder após a Revolução de Outubro de 1917. O partido foi dissolvido
no dia 29 de agosto de 1991 em território soviético e, após uma tentativa de golpe de Estado, no dia
6 de novembro de 1991 em território russo.
74

Na visão de Camus, a exigência de engajamento que Sartre fez colocava a


história acima do individual. Diferentemente da natureza, a história prescreve
responsabilidades que o indivíduo deve encontrar, ou se refere a vastas
formas que subordinam o individual. Segundo Camus, embora tenha partido
da contingência, foi infiel a seu próprio ponto de partida porque desembocou
numa história com H maiúsculo. O existencialismo não era menos culpado do
que o cristianismo ou o marxismo de se evadir do absurdo de modos
diagnosticados em O mito de Sísifo. Camus afirmou isso numa famosa
entrevista no outono de 1945. Após insistir em que não era filósofo porque
“não acreditava suficientemente na razão para acreditar num sistema”,
Camus assinalou que o existencialismo toma duas formas, a religiosa e a
estética. (ARONSON, 2007, p. 101)

A História com “H” maiúsculo, neste contexto, corresponde ao Materialismo


Histórico, ao qual Camus não se identificava puramente, bem como não se identifica
com o comunismo em sua integralidade. Para entender uma possível percepção sobre
o conceito de História para Albert Camus, vamos retomar o momento em que essa
faculdade passou por grandes transformações. Academicamente, o conceito de
“História” começou a ser questionado ainda na década de 20, com a corrente
intelectual que ficou conhecida como a Escola dos Annales (Annales d'histoire
économique et sociale), que foi um movimento historiográfico fundado por Lucien
Febvre e Marc Bloch30, em 1929. Esse movimento ganhou notoriedade por incluir em
seus estudos métodos das Ciências Sociais na consideração da História.
A partir de então, as pesquisas históricas abriram o “olhar para a História”,
incluindo saberes da Sociologia, Psicologia, Economia e Geografia, pluralizando o
método e, consequentemente, pulverizando a ideia de que História não pode ser
pautada em uma perspectiva puramente progressista e positivista. Porém, não
podemos esquecer que antes dessa reformulação metodológica da própria faculdade
de História, entre o final do século XIX e início do século XX, Marx e Engels já
ensaiavam o Materialismo Histórico. Em escritos como A Ideologia Alemã e o

30Bloch foi morto pela Gestapo durante a ocupação alemã da França, na Segunda Guerra Mundial, e
Febvre seguiu com a abordagem dos Annales nas décadas de 1940 e 1950. Nesse período, orientou
Fernand Braudel, que se tornou um dos mais conhecidos expoentes dessa escola. A obra de Braudel
definiu uma segunda geração na historiografia dos Annales e foi muito influente nos anos 1960 e
1970, especialmente por sua obra de 1946, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de
Felipe. A terceira geração dos Annales é conduzida por Jacques Le Goff e ficou mais conhecida como
a Nova História, segundo a qual, toda atividade humana é considerada história. Além de Le Goff,
nesse período se destaca Pierre Nora.
75

Manifesto Comunista, passando por O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte e os


estudos Engelsianos sobre as Guerras Camponesas na Alemanha, uma perspectiva
metodológica e analítica perpassou toda a tradição, reclamando as classes sociais e
suas lutas como motores fundamentais dos processos históricos e políticos e as
classes revolucionárias como protagonistas das grandes transformações econômicas
e sociais. Vale destacar que essa perspectiva não negava a importância das
personalidades individuais nos processos históricos, apenas condicionava a ação dos
indivíduos no marco de uma realidade histórico-social preestabelecida pela ação de
outros fatores, considerando os atos individuais como também influentes.

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. (1)
(MARX, 1978, p. 329)

No trecho acima, de O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, Karl Marx


evidenciava a necessidade de considerar as circunstâncias do homem no fazer
História. No entanto, o Materialismo Histórico não reivindicava um ponto crucial no
“ver a História”, que logo perceberemos retomando a perspectiva benjaminiana31 de
História que, neste estudo, é consoante com a visão de Albert Camus. O conceito de
Materialismo Histórico também foi debatido na celebre carta de Friedrich Engels para
Joseph Bloch, em setembro de 1890.

De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante


final na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso,
nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto
afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta
proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia. As
condições econômicas são a infraestrutura , a base, mas vários outros
vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus
resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a
batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças
dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções
religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas)
também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos
casos, preponderam na determinação de sua forma. Há uma interação entre
todos estes vetores entre os quais há um sem número de acidentes (isto é,

31
Vale lembrar que Walter Benjamin partia de uma perspectiva judaico-cristão. No paralelo com contexto
presente, a oposição religiosa que trazemos é a uma perspectiva neopentecostal.
76

coisas e eventos de conexão tão remota, ou mesmo impossível, de provar


que podemos tomá-los como não-existentes ou negligenciá-los em nossa
análise), mas que o movimento econômico se assenta finalmente como
necessário. Do contrário, a aplicação da teoria a qualquer período da história
que seja selecionado seria mais fácil do que uma simples equação de
primeiro grau. (ENGELS, 1978)

Na carta, Engels evidencia o olhar plural para a História, mas ainda embebido
de uma atmosfera progressista e positivista de registro dos fatos. Outros pensadores
de referência do século XX visitaram o conceito de Materialismo Histórico
mencionado, como Antonio Gramsci e Hannah Arendt. Assim como Camus, Gramsci
também tinha uma percepção comunista de mundo, e teve suas contradições em seu
percurso enquanto esquerdista em meio ao século XX. Apesar de ter tido a intenção
de fundar um Estado aos moldes do soviético na Itália, como alternativa ao fascismo
de Mussolini, o filósofo também não estava em total acordo com a proposta de
governo de Lênin, e, muito menos, compreendia o Estado como mera aplicação total
da força sobre os indivíduos, como foi o Estado totalitário imposto pelo regime
stalinista. O teórico italiano estava em uma espécie de meio termo, visando um
caminho entre a força e o controle de um governo, embora vinculado ao comunismo.
Por outro caminho, mas também nesse campo de ideias, Hannah Arendt voltou
suas pesquisas e escritos ao estudo do totalitarismo. A partir do legado totalitário de
Adolf Hitler, Benito Mussolini e Josef Stalin, a teórica Arendt relacionou partes das
preleções revolucionárias apontadas por Karl Marx ao que vivera na prática. Como a
perseguição nazista que sofreu durante o governo de Hitler, chegando a ser presa e
a fugir para os Estados Unidos da América. Com a bagagem de quem sentiu na pele
os feitos de um regime totalitário, conseguia problematizar com clareza os problemas
de governos ditatoriais, independente de qual abordagem e premissa esse governo
teria para justificar a sede pelo poder.
Em partes, o totalitarismo nasce do projeto de poder centrado em uma ideia de
Estado forte e antidemocrático levado às últimas consequências como formar um
inimigo a ser combatido, mesmo que esse embate – a princípio ideológico –
transforma-se em embate bélico, em que vidas não são poupadas para que se chegue
ao poder e que se mantenha nele. E é nesse questionamento quanto ao poder pelo
poder e, principalmente, quanto a vidas perdidas para que se chegue a esse campo
77

de força, que Camus se aproxima das ideias de Gramsci e Arendt. Camus não poderia
admitir que a maldade do homem pudesse ser utilizada para um bem comum, como
caminho para um mundo mais igualitário e de oportunidades. Portanto, contradizer-se
enquanto esquerdista estava em voga por conta de uma perspectiva de grupo, de que
lado se está, mas não quanto a uma visão sobre em que mundo se acredita.
Definitivamente, não era o mundo do “matar pelo bem coletivo” o lado em que Camus
se enveredava. Em Origens do totalitarismo, Hannah Arendt nos apresenta um
extenso estudo em que mapeia o Antissemitismo, o Imperialismo, até chegar no
Totalitarismo, ao se referir aos regimes totalitários vigentes na Europa do século XX,
a teórica e filósofa diz:

Os nazistas “estavam convencionados de que o mal, em nosso tempo, tem


uma atração mórbida”, os bolchevistas diziam não reconhecer os padrões
morais comuns, e essa afirmação, feita dentro e fora da Rússia, tornou-se um
dos pilares da propaganda comunista; e a experiência demonstrou que o
valor propagandístico do mal e o desprezo geral pelos padrões morais
independem do interesse pessoal, que se supõe ser o fator psicológico mais
poderoso na política (ARENDT, 2012, p. 435)

Ou seja, proclamava-se um ideal de unidade e coletividade para se legitimar os


percalços do poder, os abusos e absurdos efetuados para se estabelecer um
autoritarismo maquiado de bem comum. Um olhar mais apurado logo percebia esse
impasse que os comunistas à época fingiam não ver. O risco de estarem cometendo
atos próximos aos condenados quando a questão tinha outro lado. Por isso, Camus
estava atento às vozes silenciadas, independentemente da bandeira que carregavam.
Suprimir vidas era uma ação comum, independente de causas. Uma das ideias mais
célebres do teórico Walter Benjamin, em linhas gerais, diz que “todo documento de
cultura é também um documento de barbárie”, síntese máxima de que os monumentos
que marcam os vitoriosos de um combate conquistaram essa vitória em cima de atos
de crueldade e violência. Esse Norte vai ao encontro do que foi mencionando sobre
Albert Camus, que também percebia na História o registro de injustiças, de vozes
silenciadas de povos cruelmente mortos, vidas que ficaram pelo caminho em nome
de uma ideologia e, em suma, por conta de uma sede de poder. Manter-se no poder
também é uma forma de não ter que responsabilizar-se pelas barbáries, sequer
questioná-las, mas sim continuar “do lado certo”, e legitimado dos fatos,
78

consequentemente, não lidar com os danos de ser o desfavorecido em dado contexto.


Nas famosas Teses de História, Benjamin disserta sobre o conceito de História em
quinze verbetes, em que vai desdobrando sua concepção sobre o que é a História.
Essas teses, até hoje, nos ajudam no exercício de pensar como nos constituíamos
como sociedade, em cima de quais referências nos organizamos estruturalmente e,
principalmente, como pensar para fora dessas estruturas. A Tese I nos fala o seguinte.

É conhecida a história daquele autômato que teria sido construído de tal


maneira que respondia a cada lance de um jogador de xadrez com um outro
lance que lhe assegurava a vitória na partida. Diante do tabuleiro, assente
sobre uma mesa espaçosa, estava sentado um boneco em traje turco,
cachimbo de água na boca. Um sistema de espelhos criava a ilusão de uma
mesa transparente de todos os lados. De fato, dentro da mesa estava sentado
um anãozinho corcunda, mestre de xadrez, que conduzia os movimentos do
boneco por meio de um sistema de arames. É possível imaginar o
contraponto dessa aparelhagem na filosofia. A vitória está sempre reservada
ao boneco a que se chama “materialismo histórico”. Pode desafiar qualquer
um se tiver ao serviço a teologia, que, como se sabe, hoje é pequena e feia
e, assim como assim, não pode aparecer à luz do dia. (BENJAMIN, 2018, p.
9)

O jogo de xadrez tem o seu circuito de regras próprias, em que vence quem
conseguir – estrategicamente – derrubar mais peças do adversário. Não importa o
tempo de embate, mas sim o raciocínio do jogador e, até mesmo, a sua capacidade
de prever as próximas rodadas. O enxadrista lança os passos pelo tabuleiro, como
acontece em um combate bélico. Um passo em falso, o jogo pode ser dado a perder,
em um repente pode haver xeque mate. Contudo, dentro da lógica do Materialismo
Histórico matar e morrer define bem quem está de que lado, provavelmente, e ouve-
se falar de quem matou de forma heroica. Para Camus, a vida não pode ser uma peça
de um jogo de xadrez. E no caso da história, nela vai constar o vitorioso
independentemente de que lado represente. Benjamin destacou a figura do espelho,
que confunde o tabuleiro de xadrez num jogo de imagem. O espelho embaralha as
peças e os lados. Contudo, se a estratégia é derrubar vidas, tanto faz de que lado elas
pertencem. Considerar a História é não esquecer das vozes que foram silenciadas.
Além disso, o espelho é um grande símbolo da representação, pois ele indica
o “ser” e o “não ser” ao mesmo tempo. Quando estamos diante do espelho, nos
deixamos iludir pela imagem refletida, mesmo sabendo que ela é falsa. Podemos crer
79

que funciona como uma brincadeira de “verdadeiro ou falso”. Um mudar de


perspectiva que nos confunde. Nesse reflexivo exercício diante da imagem, um
convite a pensar a História faz com que se perceba que Camus estava certo em
desconfiar desta faculdade. Ele já tinha vivência o suficiente para saber que a História
deixa muitos buracos. Basta lembrar que o pai dele morreu durante a 1ª Guerra
Mundial, crescer com essa falta e saber que a ausência da figura paterna se deu por
um embate bélico pode ser um bom indício do porquê de a História dos vitoriosos
fazer pouco sentido a ele.

O passado traz consigo um index secreto que o remete para a redenção. Não
passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de
nós? Não é a voz a que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas? As
mulheres que cortejamos não têm irmãs que já não conheceram? A ser
assim, então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa.
Então, fomos esperados sobre esta Terra. Então, foi-nos dada, como todas
as gerações que nos antecederam, uma tênue força messiânica a que o
passado tem direito. Não se pode rejeitar de ânimo leve esse direito. E o
materialismo histórico sabe disso. (BENJAMIN, 2018, p. 10)

Nessa medida, podemos recordar o index contido em Camus, pobre franco-


argelino que perdera o pai para a guerra, o pied-noir da colônia francesa no continente
africano, o que encetou nos estudos por apadrinhamento de um professor, enfim, o
que sabia como poucos intelectuais como era o lugar de desprestígio e em que lutar
por uma comunidade e preservar vidas é algo da prática diária, e não dos campos das
ideias e discussões em seminários, noitadas e cafés. Poderia ser perturbador em
âmbito acadêmico e filosófico opor-se a Sartre e outros, mas, certamente, ele não
dava as costas a sua história e ao percurso que o levou a ser um Nobel da Literatura.

Não surpreendente que Camus rejeitasse a característica totalizante do


pensamento de Sartre. Ele disse não ser um filósofo por reivindicar áreas da
vida não governadas pelos princípios da visão sintetizadora: a arte não
conhece nenhuma lógica a não ser a sua própria; a moralidade julga a
política; os indivíduos são livres para se engajar; o mundo é governado por
pessoas e processos específicos, não apenas por umas poucas forças
maiores. (ARONSON, 2007, p.103 - 104)

Portando, “não dar bola para a História”, no sentido de não a legitimar como
versão fidedigna dos fatos ocorridos, é não esquecer das vozes que foram silenciadas.
Camus sabia que a História, nas mais frequentes das vezes, é contada pelo homem
80

e eurocêntrico, branco, visto como vitorioso, mesmo que essa glória derive de sangue
e fracasso de outros povos. Albert Camus estava acostumado a ter outros olhares
para a História, percebê-la em outras perspectivas, para além da teoria e de uma
filiação partidária. Por mais que ele tivesse por um tempo se aliado ao Partido
Comunista Francês, sabia que o olhar para as injustiças do mundo independe de uma
bandeira que se levante. Morvan Lebesque reservou a Albert Camus o lugar de quem
exercita um olhar para a História com uma lâmpada bem direcionada, para perceber
as nuances e detalhes que poderiam (ou costumam) não ser revelados.

Tomar certa distância em relação aos factos recentes, projetá-los numa


alegoria que fosse o contrário de uma mentira, pois permitiria iluminar a
História, deslocar estes anos no tempo e no espaço, torná-los assim
reconhecíveis por todas as gerações, eis, sem dúvida, o que esperávamos
de um escritor mais intuitivo do que os outros. Era preciso a crônica e a lenda,
o real e o “surreal”; era preciso o sol e a História. A nossa espera não foi inútil.
Em 1947 apareceu A Peste, fábula histórica e profética. (LEBESQUE, 1967,
p. 78)

Ler Lebesque em 2021 faz com que pensemos como seu ensaio sobre Camus
é atual e lúcido, pois continuamos considerando o autor um mestre que aproveita a
atividade da escrita para dar luz ao lado dos fatos que, na maioria das vezes, a História
não dava conta de contemplar, na maioria dos casos pelo próprio formato arquitetado:
uma história eurocêntrica, escrita por brancos, que venciam todos os embates. Boa
parte desses europeus “vencedores “eram das classes dominantes da sociedade, ou
seja, dos clãs renomados, muitas vezes relacionados diretamente com postos de
governo, ou de influência social (fosse pela fortuna que detinham ou tradição que
representavam). O ensaísta se espanta com a possibilidade de uma cidade “em pleno
século XX” vivenciar uma pandemia. Mas, como leremos em Michael Löwy no próximo
subcapítulo, a própria modernidade possibilita e instrumentaliza que epidemias
aconteçam.

Como pode declarar-se, em pleno século XX, uma epidemia como a peste
numa cidade tão moderna? O que eles ignoram é que o vazio dos dias em
Orã, essa paz inútil, ou melhor inutilizada, chamava, com efeito, a peste. Os
habitantes de Orã não tinham sequer consciência da felicidade de viver: a
peste vai-lhes ensinar a infelicidade de morrer. (LEBESQUE, 1967, p. 82)
81

Não fosse mera coincidência descritas por Morvan Lebesque, o crítico ainda
denuncia uma situação bem familiar ao contexto do nosso tempo-agora. Não baste
termos o registro de mais de 400 mil mortes por Covid-19 oficialmente registradas no
Brasil. Ainda nos deparamos com a negação do vírus e de sua letalidade. O trecho
abaixo faz com que recordemos tantas falas ouvidas, atitudes testemunhadas de
pessoas que ainda não se deram conta da gravidade que é vivenciar uma pandemia,
com uma doença em que a ciência ainda não mapeou prognóstico e tratamentos.

Mas se Orã se quer embalar com a ideia de uma febre inofensiva, o resto do
mundo, que escapa ainda do flagelo, está bem decidido, no que lhe diz
respeito, a chamá-lo pelo verdadeiro nome. Assim, numa manhã, a cidade é
declarada de quarentena. O estado de sítio é proclamado. Orã encerra-se,
tornando-se um vaso fechado. (LEBESQUE, 1967, p. 83)

Não há como preparar-se para viver um estado de exceção, mas negar todos
os avisos de que algo está errado, fechar os olhos para a gravidade disso faz só
contribuir para que a situação se alastre e se agrave, restringindo horizontes e
alimentando o desejo para um retorno a vida em segurança e suposta normalidade.
Uma rotina morna, circundada pelo horário comercial.

4.1 Entre a História e tempos suspensos

Na década de 30, Walter Benjamin e outros intelectuais de esquerda viam na


União Soviética uma esperança. Com Albert Camus não foi diferente, por muito tempo
ele viu no comunismo uma esperança, mas passou a questionar o modo como “a
busca por um futuro melhor” era colocada em prática, por exemplo, no Leste Europeu,
onde a liderança comunista imperava. Se a busca por “condições melhores” também
passava por um campo sangrento, de nada valia essa luta. Foi nesse momento que
Camus desapontou-se com o comunismo, mesmo perseverando em seus ideais
esquerdistas. Michael Löwy, em A revolução é o freio de emergência: ensaios sobre
Walter Benjamin, no ensaio “Teologia e antifascismo em Walter Benjamin”, relembra
Tese 1 dos conceitos sobre História:
82

A teologia, como o anão na alegoria, atualmente não pode agir senão de


maneira oculta, no interior do materialismo histórico. Em uma época
racionalista e agnóstica, ela é uma “velha feia e encolhida” (tradução de
Benjamin) que tem que se esconder... Curiosamente, Benjamin não parece
se conformar com essa regra, pois nas Teses, a teologia é realmente visível.
Talvez se trate de um conselho aos leitores do documento: usem a teologia,
mas não a mostrem. (LÖWY, 2019, p. 119)

Nessa leitura, o materialismo histórico conquista o seu êxodo com auxílio de


ferramentas, como na alegoria do anão no interior da mesa de xadrez. Um ajuda que
automatiza “o processo” o modo como a História consegue consolidar-se. A um quê
de magia que faz com qualquer jogo de controle imposto pelo materialismo histórico
se efetue. Benjamin e, recentemente, Löwy lembram que os esquemas de poder
necessitam de uma retroalimentação, ou seja, a teologia e o materialismo histórico
são às vezes mestre, às vezes servo. Para suprir o sistema automatizado, cria-se uma
relação de dependência um do outro.

Como, então, interpretar a relação entre a teologia e o materialismo? Essa


questão está apresentada na maneira eminentemente paradoxal na alegoria:
primeiro o anão teológico aparece como sendo o mestre do autômato, do qual
ele se serve como um instrumento; no entanto, no fim, está escrito que o anão
está “ao serviço” do autômato. O que significa esta inversão? Uma hipótese
seria que Benjamin quer mostrar a complementariedade dialética entre os
dois: a teologia e o materialismo histórico são às vezes mestre, às vezes
servo, eles são ao mesmo tempo o mestre e o servo um do outro, eles
precisam um do outro. Há de se levar a sério a ideia segundo a qual a teologia
está “a serviço” do materialismo – fórmula que inverte a tradicional definição
escolástica da filosofia como ancila theologiae, “servidora da teologia”. A
teologia para Benjamin não é um objetivo em si, ela não pretende a
contemplação inefável das verdades eternas, e ainda menos, como indica a
sua etimologia, a reflexão sobre a natureza do Ser divino: ela está a serviço
da luta dos oprimidos. (LÖWY, 2019, p. 120)

Assim como Benjamin e Löwy, Camus exercitava o olhar para o hiato formado pelo
materialismo histórico, por mais que este incluísse aspectos individuais do homem e
seu contexto socioeconômico e psicológico, ainda assim, não considerava o poder de
desruptividade da História. Perceber para além das ausências que esse sistema
promovia. O olhar para o que falta, para o que não está na História para além da
interpretação primeira de retroalimentação e permanência no poder. O que o
materialismo histórico não dava conta saltava aos olhos de Camus, ou melhor, era o
modo como podia ver história, sua lente sobre o mundo. Não há registros de que
83

Camus e Benjamin tenham tido contato, ou se Camus fora leitor de Benjamin,


provavelmente não. No entanto, foram contemporâneos e há uma franca proximidade
no modo como olhavam para as vozes silenciadas, o não dito e, acima de tudo,
consideravam que a História não é linear, tampouco progressista e positivista, assim
como, Tese 232. Esse exercício benjaminiano de olhar a história a contrapelo coloca
por terra a ideia de uma história progressista. Por esta leitura, podemos depreender
que por mais que a humanidade tenha registrado milhares de barbáries, fatos
estrondosos continuarão a acontecer. Não apenas catástrofes decorrentes de
acidentes ou desastres naturais, mas o barulho feito pelas mãos dos homens, que na
cessão de buscar lugares de destaque e poder, um modo de prevalecer suas vontades
e regalias, geralmente, se um comprometimento com uma equidade social e sem
medir as consequências dos atos. Se necessário, mata-se, aniquila-se, anula-se o
outro, a pedra no caminho que estiver servindo de percalço por algum espaço de
soberania almejado. Ao observamos que o mundo vive uma nova onda conservadora
e que pessoas voltaram a se identificar com ideários fascistas, não se deve esquecer
de que a História não vem em linearidade. A luta antifascista não pode se ater a uma
falsa ideia progressista de História. Quantas vezes perguntamos como movimentos
totalitários ganharam adesão massiva em pleno século 20, quando a humanidade já
havia historicizado inúmeras barbáries. Pós Idade Média, a humanidade já tinha uma
bagagem de atrocidades com as quais deveria ter aprendido e se convencido a não
as repetir. Mas Walter Benjamin nos alerta para a ilusão de uma história progressista,
a ilusão de que há uma linha histórica e que a humanidade caminha para uma
evolução linear. Recentemente, com a nova onda conservadora, muita gente também
voltou a questionar-se sobre como o conservadorismo pode ter tantos adeptos em
pleno século 21. Como as pessoas podem se sentir representadas por líderes
conservadores. Como os feitos da ciência podem ser postos em xeque, como as
pessoas podem duvidar de uma pandemia, como pode-se ter medo da vacina. Uma
infinidade de questionamentos que nos coloca no mesmo moinho da ilusão
progressista, por isso, vale lembrar ainda das Teses de Benjamin o excerto “8”.

32
Mmencionada na página 78 desta dissertação.
84

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que


vivemos é regra. Temos que chegar a um conceito de história que
corresponda a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos,
como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de
exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. A
hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de os seus
opositores o verem como uma norma histórica, em nome do progresso. O
espanto por as coisas que assistimos “ainda” poderem ser assim no século
vinte não é um espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de
conhecimento, a não ser o de que a ideia de história de onde provém não é
sustentável. (BENJAMIN, 2018, p. 13)

Talvez, com as discussões recentes que estamos tendo sobre nosso próprio
contexto político e social, relembrar o que foi a Segunda Guerra Mundial se torne mais
importante pelas memórias semelhantes e o pensamento de como sobreviver frente
às ruínas, assim como podemos pensar sobre o nosso Museu Nacional. Certo que
sempre nos chocamos com o que líamos nos livros de História, mas nunca pudemos
sentir o cheiro de cinza tão de perto quanto o sentimos no momento em que o Museu
se pôs em chamas. Isso evoca o que antes, como brasileiros, teorizávamos, mas não
sentíamos: o pavor de uma nova onda fascista, o eco da guerra, o que não
aprendemos com o passado, o que julgávamos distante e “história do outro”. Porém
Susan Buck-Morss, em Presente do passado, nos relembra e alerta:

A história é feita de camadas. Mas as camadas não estão empilhadas em


ordem. A força disruptiva do presente pressiona o passado, espalhando seus
pedaços. Ninguém possui esses pedaços. Pensar que alguém os possui seria
permitir que categorias da propriedade privada invadissem um terreno
comum compartilhado em que as leis de patrimônio excludente não se
aplicam. A história da humanidade exige um modo de recepção comunista. A
meta não é nada menos que uma ordem mundial diferente. Ela exigirá o
resgate do passado baseado em uma estrutura de memória coletiva
desprivatizada e desnacionalizada. (BUCK-MORSS, 2018, p. 5)

Ao passo que a imagem retorna e volta a ser fugaz, isso faz com que pensemos
no conceito de transitoriedade de Walter Benjamim, uma vez que, assim como “[...] é
só de passagem que a verdade está disponível para nós. Sua imagem é sensível ao
tempo. Não é que a verdade mude. Nós mudamos”33. Benjamin nos alerta que a
história sempre se apresenta de forma alegórica, como uma ruína que não podemos
apreender por completo por um único olhar, pois

33 Idem (p. 14).


85

A palavra “história” está gravada no rosto da natureza com os caracteres da


transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural, que o drama trágico
coloca em cena, está realmente presente sob a forma de ruína. Com ela, a
história transferiu-se de forma sensível par o palco. Assim configurada, a
história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o
progredir de um inevitável declínio. Com isso, a alegoria coloca-se
declaradamente para lá da beleza. As alegorias são, no reino dos
pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas. (BENJAMIN, op. cit.,
p. 189)

Assim, a história pode ser contada a partir do olhar que se lança sobre ela. Por
isso, para além de uma memória escolar e/ou coletiva, a história não cessa de
retornar. Já demos de cara com ela antes e esse movimento de passagem ressurge,
nos interpela, nos coloca no mesmo lugar de Angelus Novus34 a pensar o tempo.
Recentemente, foi lançada a tradução A imagem queima, de Didi-Huberman, feita por
Helano Ribeiro, em que podemos conferir o prefácio escrito por Raul Antelo,
História(s): a arte arde, em que nos lembra que as imagens

São, simultaneamente, tempos e movimentos, ambos impossíveis de serem


detidos e absolutamente imprevisíveis de antemão, já que constantemente
migram no espaço e pervivem na história, como mostrou Warburg. (ANTELO,
2018, In: DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 13)

Antelo se refere a Didi-Huberman como arqueólogo da imagem. O arqueólogo


faz uma leitura imagética, comparando a imagem a uma borboleta em movimento:

Corremos o dia todo, sem rede, atrás da imagem. Admiramos nela


precisamente o que lhe escapa, o batimento das asas, os motivos que são
impossíveis de fixar, que vão e vêm, que aparecem e desaparecem à mercê
de um acontecimento imprevisível.35

Era preciso sobreviver diante da guerra, era preciso se acostumar com a ferida
aberta. Como Georges Didi-Huberman nos fala, estar diante de uma imagem é estar
diante do tempo. Temos, ao menos, dois tempos nessa experiência: o tempo da
imagem e o tempo de que a observa. Por isso, a imagem é sempre dialética, isto é,

34 Desenho de Paul Klee, referência no ensaio de Walter Benjamin: “Sobre o conceito de história”.
Angelus Novus é considero o anjo da história.
35 Idem (p. 33).
86

ela contém todos os passados e possibilitará os futuros, não cessando de retornar a


cada olhar sobre ela.

Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente isto: que
ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de
passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da
duração [durée], A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro
que o ser [étant] que a olha. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 16)

Contra a estetização fascista da política, deve-se responder pela politização da


arte. A visão de uma história progressista faz com que se questione a possibilidade
de uma retomada fascista. Eis o que Benjamin já assinalava nos anos 30. O século
20 instrumentalizou o fascismo – tecnologia e modernidade junto ao efeito de agulha
hipodérmica. Numa visão progressista da história, o fascismo é um retrocesso. Porém
a História é feito uma espiral, não cessa em retornar, feito um relâmpago ou um aviso
de incêndio. Angelus Novus em alegoria da passagem do tempo.

Só uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um


fenômeno como o fascismo, profundamente enraizado dentro do “progresso”
industrial e técnico moderno, que era possível, em última análise só no século
XX. A compreensão de que o fascismo pode triunfar nos países mais
“civilizados” e que o “progresso” não o fará desaparecer automaticamente nos
permitirá aprimorar nosso posicionamento na luta antifascista, pensa
Benjamin. Uma luta cujo objetivo supremo é produzir “o verdadeiro estado de
exceção”, ou seja, a abolição da dominação, a sociedade sem classe.
(LÖWY, 2019, p. 111)

Como elucida Löwy, é preciso olhar para os processos de dominação das


massas despidos de positivismo. Admitir a ruína da história e a forma como se
apresenta em camadas. Não se deve ficar à espera de um “salvador da pátria” ou
acreditar que a humanidade se vale de sua própria história para superar os erros do
passado. Seria até mesmo ingenuidade crer que não se caia nas mesmas arapucas,
com mais ou com menos consciência dos processos enfrentados.

O único messias possível é o coletivo: a humanidade mesma – e mais


precisamente, como veremos mais à frente, a humanidade oprimida. Não se
trata de esperar o Messias, ou de calcular o dia de sua chegada – como nos
cabalistas e outros místicos judeus praticantes da guématria -, mas de agir
coletivamente. (LÖWY, 2019, p. 122)
87

Não há o grande redentor. Michael Löwy adverte que a transformação social


parte do coletivo e para o coletivo. Então, se ainda é possível que se tenha governos
autoritários, uma retomada de movimentos conservadores é que na coletividade esses
ideais ainda circundam e fecundam. Wilhelm Reich, em Psicologia de massas do
fascismo, escreve, no prefácio à 3ª edição em língua inglesa, sobre suas experiências
profissionais, no exercício da medicina. Nessa prática diária, o autor pode observar
entre seus pacientes uma média do comportamento das pessoas em sociedade, como
um termômetro para depreender que o fascismo é uma composição da própria média
do ser humano, e não um partido político.

Opondo-se a isso, minhas experiências médicas com homens e mulheres de


diferentes classes, raças, nações, credos, etc, ensinaram-me que o
“fascismo” não é mais que a expressão politicamente organizada da estrutura
do caráter do homem médio, uma estrutura que não é o apanágio de
determinadas raças ou nações, ou de determinados partidos, mas é geral e
internacional. Neste sentido caracterial, o “fascismo” é a atitude emocional
básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua
maneira mística e mecanicista de encarar a vida. É o caráter mecanicista e
místico do homem moderno que cria os partidos fascistas e não ao contrário.
(REICH, 1988, p. 23)

Ou seja, além de governos autoritários terem um terreno fértil na modernidade


industrial (pós-industrial, e todas as outras revoluções tecnológicas sequentes), é o
caráter mecanicista e místico do homem moderno que cria os partidos fascistas e não
ao contrário. Parece óbvio que são os homens que criam os partidos políticos, e não
contrário, mas o modo como ganham poder nesse “quê” de misticismos, ainda nos
surpreende, tamanhas forças, persuasão e repetição em diferentes contextos.
Consequentemente, podemos assimilar que a situação econômica não se traduz em
consciência política. O médico e teórico adverte que a psicologia de massas se inicia
quando as explicações socioeconômicas fracassam. Nesse sentido, a imagem de
líder, o homem a frente de uma nação, confunde-se com a imagem de um pai
autoritário. Alguém que faz o que faz pelo bem maior, a segurança de seus filhos, o
bem-estar de sua família. Na psicologia de massas, o führer nacionalista é a
personificação da nação. Uma figura que gera um elo familiar, uma ligação pessoal.

Se ele souber como despertar os laços afetivos da família, nos indivíduos das
massas, ele será também uma figura do pai autoritário. Ele atrai todas as
88

atitudes emocionais que foram num dado momento devidas ao pai, severo,
mas também protetor e poderoso (poderoso na visão da criança). (REICH,
1988, p. 57)

Aqui, Reich demonstra como se dá essa relação de dependência e desejo por


um líder que nos ampare frente às desordens, inseguranças e demais ameaças do
mundo. A “domesticação” dos operários industriais faz com que se ofereça a massa
um sentido de pertencimento ao universo de quem os governa. Os regimes autoritários
flertam com todos os lados, em suma com os que denotam simbologias de ordem,
segurança e proteção. No nosso momento atual e no contexto brasileiro, podemos
perceber representantes públicos com postura conservadora que emendam suas falas
à agenda conservadora, a exemplo dos costumes defendidos pelas igrejas
neopentecostais, a defesa do porte de armas ou, até mesmo, os desdobramentos dos
jornais diários, que se assemelham a um folhetim cotidiano de baboseiras, que se
pode acompanhar feito capítulos de uma novela.

A tacanhice da vida conservadora tem uma influência contínua, infiltra-se por


cada faceta do cotidiano, enquanto o trabalho na fábrica e os panfletos
revolucionários só têm uma breve influência. Foi por isso um grave erro o fato
de se ter pretendido ir ao encontro das tendências conservadoras dos
trabalhadores, por exemplo, organizando festas para conseguir uma
“aproximação” das massas. O fascismo reacionário sabia ser muito mais
eficiente. Não se alimentava a construção de hábitos de vida revolucionários.
O “vestido longo” que a mulher do trabalhador adquiria para ir à tal “festa” é
muito mais revelador da estrutura reacionária dos trabalhadores do que uma
centena de artigos de jornal. (REICH, 1988, p. 63)

Neste sentido Reich evidencia como as estruturas de poder se apropriam do


cotidiano das pessoas, oferecendo a elas um pertencimento em segurança, um “agora
está tudo bem”, “nosso líder faz o que faz pelo bem maior coletivo”. Uma estrutura que
se caracteriza pelo pensamento metafísico, além de uma fixação por ideais éticos
abstratas e fé na predestinação divina do grande pai, líder da coletividade. O autor
salienta que a ideia de um líder está diretamente ligada à de nação, pertencimento.
Nesse tecer autoritário flagrado pela conquista emocional das massas, distancia-se à
suma validação científica e racional de uma percepção de mundo, dos fatos e de como
agir perante esses fatos (as tais ameaças que instaram medo e insegurança).
89

O prosseguimento de um objetivo impossível do ponto de vista histórico e


social é inteiramente contrário a uma visão científica do mundo. A função da
ciência não é imaginar sistemas e perseguir sonhos fantásticos sobre um
“futuro melhor”, mas sim compreender o desenvolvimento, tal como este
realmente se processa, reconhecer suas contradições e contribuir para a
vitória das forças progressistas revolucionárias, resolver dificuldades e tornar
a sociedade humana capaz de dominar as condições de sua própria
existência. O “futuro melhor” só se tornará uma realidade quando estiverem
preenchidas as condições prévias de natureza social e quando a estrutura
das massas for capaz de utilizá-las eficientemente, isso é, de assumir a sua
responsabilidade. (REICH, 1988, p. 221)

Acreditar na figura do líder, o pai autoritário e protetor, nos exime da


responsabilidade de ter que tomar uma decisão ou atitude frente as dificuldades ou
dura realidade apresentada. O que deu certo e o que deu errado foi pensado pelo líder
e ele não tomaria uma atitude para um prejuízo coletivo, se deu errado, fora um
fracasso perante o “melhor de si” que o pai protetor tentou prover ao coletivo. O
descrédito científico ganha força, quando se depara ao amparo paternal e a promessa
de segurança da figura paternal.
90

5 O HOMEM ABSURDO E O SOL

“O alegórico aponta para o outro, para um sentido mais além: ele não é apenas ele mesmo,
mas também não é apenas o outro que o nega e no qual ele se afirma.”
(KHOTE, 1986)

“O que é absurdo? É a espessura e a estranheza do mundo, é o pecado sem Deus. Não


pode haver absurdo fora de um espírito humano. Assim, o absurdo termina, como todas as coisas,
com a morte. Mas também não pode existir absurdo fora deste mundo. E é por esse critério elementar
que julgo que a noção de absurdo é essencial e que pode figurar como a primeira de minhas
verdades.”
(LEBESQUE, 1967)

Cada personagem e cada enrede contado por Albert Camus, em dada medida,
pode ser visto como um Homem Absurdo. Essa persona em um contexto
desconcertante. Alguém em constante montagem e remontagem interior ou, até
mesmo, social. O Homem Absurdo é aquele que está de frente para os percalços da
vida e, diante deles, opta por “viver apesar dele”. Essa trilha, muitas vezes, é cheia de
tons de dourados, feito o sol argelino. O Homem Absurdo recorre ao sol, como que
suplica um instante de paz.
As cores e elementos da natureza são recorrentes nas obras de Camus. Os
personagens centrais das histórias contadas por ele costumam recorrer ao sol, ao
campo, ou ao mar para terem um reencontro consigo, a reconexão com sua essência
ou intervalo no tempo de caos, como fez o médico Rieux, que se permite a nadar na
companhia silenciosa do amigo Tarrou, os dois permitiram-se a quebra de protocolo
e em uma manhã, ainda antes do sol raiar, nadaram na mar da costa argelina, em
silêncio, feio um segredo de uma amizade, uma breve fuga da peste.
O sol, para Camus, é o tempo natural, portanto, o Homem Absurdo é aquele
que aceita a vida como ela é. Vive o tempo presente, pois é o horizonte restrito de um
agora que se pode “ter a vida”. Ao encarar a passagem do tempo com naturalidade,
também se encara com naturalidade os acontecimentos mais duros de nossas vidas.
Não em resignação, mas por saber que os dias de sol são tão necessários quanto os
nublados.
91

Eis o objetivo do homem absurdo: ser lúcido até o fim juntamente com a
natureza. O absurdo da vida de Meursault vem sempre acompanhado com o
prazer que o sol oferece. O sol, o mar e o verde são motivos de felicidade
para o homem absurdo que precisa viver o presente sem se refugiar na
esperança ou no divino. Para ele, não há salvação. Sua felicidade está em
seu presente. Fazer parte da natureza e viver como se o homem fosse uma
extensão dela é uma forma de felicidade neste mundo. (SILVA, 2013, p. 41)

Ser o Homem Absurdo é ser aquele que sabe que não dá para fugir desta
condição. Aceitar a vida assim como ela é, é aceitar a natureza das coisas. Por isso,
Meursault, o homem estrangeiro, aceita o tempo presente com naturalidade, o seu
tempo é o mesmo do sol, o tempo natural. Incorporar-se à natureza é estar nessa vida
como ela nos é dada. Em meio aos absurdos da vida, o sol faz que se possa crer em
um novo amanhã, um continuar. Quem nunca expressou seu sentimento de
admiração ou de espanto com um sonoro “isso é um absurdo!”. O absurdo é aquilo
que foge do nosso senso de normalidade ou, pelo menos, do que podemos considerar
admissível. Não expressar emoção a morte da própria mãe, ser indiferente a um
pedido de casamento, ser réu confesso e não interceder em sua própria defesa são
atitudes (ou ausência de atitude) que podem ser vistas como absurdas. Ter uma
cidade inteira acometida por um bacilo desconhecido ou, em nosso contexto atual,
vivenciar uma pandemia de um novo vírus. No contexto político atual, acompanhar
uma nova onda conservadora no Brasil e no mundo. O que não faltam são exemplos
de casos em que a palavra “absurdo” cai como um adjetivo que contempla a situação
por completo, além do poder de síntese, já que depois que se fala “Isso é um
absurdo!”, não se precisa mais dizer muita coisa.
Recorro ao já conhecido, Meursault, de O Estrangeiro. O personagem mais
conhecido de Camus poderia ser a versão romance do ensaio O Mito de Sísifo. Ele
se encaixa perfeitamente nesse contexto que nos aparece tão estranho, até
desconfortável. Meursault é o Homem Absurdo. O mito de Sísifo e O estrangeiro são
produções de Camus que caminham juntas. Se na primeira ele ensaia sobre o seu
conceito de absurdo, na segunda ele molda o personagem principal feito a
personificação do absurdo. Neste caso, sugere-se a leitura de que a possível pessoa,
Meursault, é a personificação do absurdo, ou seja, uma alegoria do absurdo.
Conceituar alegoria não é exatamente uma tarefa fácil, por isso, recorrer a etimologia
92

da palavra, talvez, seja uma forma de elucidarmos um sentido possível para este
termo, assim como nos explica João Adolfo Hansen, em Alegoria – construção e
interpretação da metáfora:

A alegoria (grego allós = outro; agourein = falar) diz b para significar a. A


Retórica antiga assim se constituiu, teorizando-a como modalidade da
elocução, isto é, como ornatos ou ornamento do discurso. Retomando
definições de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, entre muitos, Lausberg assim
redefine: A alegoria é uma metáfora continuada como tropo de pensamento,
e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento,
que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento.
(HANSEN, 2006, p. 7)

Hansen (2006) resume alegoria com “diz b para significar a”, no entanto, na
prática, sabemos que para “b” dizer “a” não se trata de uma leitura linear. Há um
pequeno infinito entre “b” e “a”, fazendo-se necessário um olhar atento para notarmos
que os dois elementos possuem a mesma sombra. Por isso, quem percorre os escritos
de Albert Camus pode, com mais facilidade, perceber que esses recursos estavam
presentes em suas obras, seja em O estrangeiro, com Meursault como alegoria do
Absurdo, ou em A morte feliz, com o outro Mersault em busca de si pela experiência
com o outro, ou em A peste, em que a infiltração de “um mal” acomete a cidade de
Orã por inteira. Esse mal pode ser a doença, como pode ser um governo autoritário,
que domina a população permeando medo, insegurança, espera por uma solução
milagrosa, desejo por dias melhores, ater-se a autoridades que representam alguma
possibilidade de “controle” ou “segurança”, a esperança na figura de um padre ou do
médico. Hansen nos diz, ainda, que existe a alegoria retórica e a alegoria
interpretativa: a retórica está no ato do ator (ou cineasta ou demais artistas) em
construir a alegoria, enquanto a interpretativa fica por conta de o leitor perceber os
elementos que compõem essa alegoria a partir da análise do que lhe parece familiar,
os “lugares comuns” presentes na obra alegórica:

Por isso, frente a um texto que se supõe alegórico, o leitor tem dupla opção:
analisar os procedimentos formais que produzem a significação figurada,
lendo-a apenas como convenção linguística que ornamenta um discurso
próprio, ou analisar a significação figurada nela pesquisando seu sentido
primeiro, tido como preexistente nas coisas, nos homens e nos
acontecimentos e, assim, revelado na alegoria. (HANSEN, 2006, p. 9)
93

Portanto, nada mais natural que em março de 2020, quando o coronavírus


ganhou a proporção de uma pandemia, A Peste ganhasse novo fôlego de vendas, a
interpretação imediata de uma história que conta a ameaça de uma doença ainda
desconhecida, e que domina toda a cidade, impondo uma nova rotina cheia de
restrições, exatamente como nos deparamos com a ameaça Covid-19. Porém, como
discutido ao longo desta pesquisa, essa não é a única possibilidade de leitura
alegórica, nem a propomos com a “mais interessante”. A alegoria também permite
esse desdobrar de leituras, partindo do ponto em que se olha para ela. Assim, a cada
fato vivido por Meursault o leitor pode depreender que a personagem representa o
próprio conceito de Absurdo ensaiado por Camus em O Mito de Sísifo.
Se a alegoria nos propõe uma simultaneidade dos acontecimentos, não
podemos esquecer que esse excesso de informação, de adereços e extravagâncias
está na essência do Barroco. No capítulo em que discutimos sobre o conceito de
História, chegamos a um possível olhar casado entre Benjamin e Camus, como se os
dois escritores tivessem percepções bem próximas dessa faculdade. Saber que a
história é disruptiva, não linear, nem positivista ou progressista, tampouco formada
pelos nomes de figurões célebres. A História é um ir e vir no tempo e sempre
dependente do prisma que a observa.

A essência do Barroco é a simultaneidade das suas ações”, afirma


Hausenstein36, de uma forma um tanto grosseira, mas com uma intuição certa
do problema. De fato, para que se dê uma presentificação de tempo e espaço
– e que coisa é a sua secularização senão a sua transformação em puro
presente? -, o processo essencial é o da apresentação simultânea dos
acontecimentos. A dualidade de significação e realidade reflete-se na
organização do palco. (BENJAMIN, 2013, p. 209)

A Peste, feito uma crônica que relata o tempo presente, deu a Orã um horizonte
restrito ao agora. No entanto, ao ler A Peste tem-se ao menos um tempo duplo, e a
infinidade de multiplicidades. Feito Angelus Novus37, o anjo da história que tem um
olho virado para o passado e o outro para o presente – ou para o que está por vir –
Benjamin nos apresenta em Origem do drama trágico alemão esse olhar dialético,

Wilhelm Hausenstein foi um crítico de arte alemão.


36
37Desenho de Paul Klee referência no ensaio de Walter Benjamin “Sobre o Conceito de História”.
Angelus Novus é considero o anjo da História.
94

essa forma de ler uma obra para além do que nos é posto, destrinchá-la, lançar um
movimento a contrapelo. A partir dessa tese benjaminiana, podemos repensar a forma
de ler uma obra, em suma, as ricas em alegorias e desdobramentos. O estrangeiro
Meursault nos insulta com suas escolhas de vida. Tira-nos o sossego em sua falta de
expressão emocional e apatia à vida, cada vez que ele não corresponde ao código
social normalizado, a grande maioria dos leitores se questiona o porquê de a
personagem ter tal comportamento.

Foi com o sentimento do absurdo que Camus moldou Meursault, o


protagonista de L’étranger. O personagem locomove-se no absurdo proposto
por Camus e extrai dele aspectos que lhe conferem um distanciamento da
sociedade que o vê como um estrangeiro. Seu modo de agir e sua
honestidade vêm de encontro ao padrão de comportamento que essa
sociedade geralmente exige. O crime que o personagem comete fica em
segundo plano e Meursault será julgado não só pelo tribunal, mas com críticas
pelas pessoas que o cercam e que o acusam de não ter chorado no enterro
de sua mãe. (SILVA, 2013, p. 50)

A ausência de emoções nos revela um Meursault que vive o tempo presente.


Todo o primeiro capítulo de O estrangeiro se assemelha ao relato cotidiano, dia após
dia. Mas neste caso, diferente de ritmo de crônica de A Peste, em O estrangeiro o
leitor acompanha o íntimo de um diário, em que quem escreve sente-se à vontade em
expor tal com sente e percebe a sua própria vida. Meursault tem uma rotina simples e
preocupações breves: comer, dormir, fumar. Parece estranho que alguém possa viver
em tamanha palidez, imagine então vislumbrar uma felicidade nessas condições. É
como se optássemos em levar uma vida em que o passar dos dias no calendário
pouco interferisse em nossas ações, sendo tão somente uma sequência sucessiva e
inesgotável de um existir, já que chegamos a esse mundo.
Viver sem esperança em sem planos, feito a escola que nos lança Meursault,
afinal ele nos ensina que uma vida absurda é exequível, ou seja, é vida e é vivível. No
livro O mito de Sísifo, Albert Camus introduz sua filosofia do absurdo, em que o
homem aparece em busca de sentido para a sua própria existência, frente a um
mundo inteligível desprovido de Deus e de eternidade. A partir dessa filosofia,
podemos perceber a ideia de futuro desprovido de esperança. Não há motivos para a
“esperança de um mundo melhor”, pois esse amanhã promissor não se faz possível –
para Camus, seria a infecundidade do absurdo, ou seja, vidas privadas de futuro:
95

Tudo o que faz o homem trabalhar e se agitar utiliza esperança. O único


pensamento não enganoso é, então, um pensamento estéril. No mundo
absurdo, o valor de uma noção ou de uma vida se mede por sua
infecundidade. (CAMUS, 2014, p. 81)

O absurdo recusa a esperança, ao passo que ela nos prende a um futuro que
nem sabemos se ocorrerá. Projetar a nossa vida para um amanhã, de certa forma,
priva-nos de viver em plenitude no tempo em que nos encontramos. Em uma vida sem
esperança, o homem somente pode se ater ao que tem de fato e nas consequências
imediatas de suas ações.

Outra característica do homem absurdo presente em Le Mythe de Sisyphe é


que ele não abre espaço para a esperança: recusa-se, aliás, a aceitá-la.
Quando o homem descobre sua vida tomada e abalada pelo absurdo,
descobre também que a única verdade é a morte. Refugiar-se no divino
significa saltar para fora do absurdo agarrando-se a uma esperança. A sua
única liberdade, então, é a de existir. Quando o homem absurdo percebe que
estava vinculado a ilusões, ele se solta da trava que o prendia e aí sim é livre
para gozar a vida sem esperanças. (SILVA, 2013, p. 52)

Essa infecundidade do absurdo é compreendida na ideia de não contar com a


sorte, tampouco com a força ou interferência de divindades. O homem absurdo é um
homem sem Deus.

De acordo com Camus, o homem absurdo vive à margem de Deus. Ele é


centrado na razão lúcida e não há nada mais além dessa razão. Para Camus,
o homem é o próprio centro de sua vida e nela é depositada a força de viver
com toda intensidade. Apesar da consciência de que a morte é certa, o
homem absurdo se recusa a morrer. Ele quer viver o máximo possível sua
vida em comunhão com a natureza. (SILVA, 2013, p. 53).

Porém o viver aparentemente à toa, sem se preocupar com o passar do tempo,


pela ausência de esperança e de futuro, não é tão diferente de um cronograma
cronometrado, em que cada segundo do relógio dita o ritmo a ser dado à vida. Eis
uma diferença crucial entre Meursault e Rieux, ou entre O Estrangeiro e A Peste. Se
os dois enredos se fincam em um eterno presente, o presente de Orã era de uma
espera, o raiar do sol sem a doença.
A “esperança qualquer” é muito próxima do que atribuímos inconscientemente
e automaticamente a Deus. Ou seja, para os cristãos ou para quem se vale de ditados
96

populares, é da conta de Deus que tenhamos um “amanhã melhor”, mesmo porque


“Se Deus quiser, dias melhores virão”. Tangenciamos nossas vidas a Deus, o todo
poderoso a quem devemos nossa existência. Ou a quem atribuímos o que não
conseguimos compreender ou nos custaria caro assumirmos como nossa
responsabilidade. Por isso, mais vale uma “esperança qualquer” a ter que objetivar o
que fazer com esse tempo de vida que me é dado.
Uma análise sobre o conceito camusiano de absurdo e os desdobramentos
dessa condição humana ainda hoje, feito um espelho para nossa sociedade atual:
feita de frágeis representações políticas, ideologias destorcidas, desenganada e sem
esperança. Nossas guerras são veladas, nossos preconceitos camuflados, nossas
vozes são caladas. Uma sociedade acuada em seu próprio absurdo:

Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável


queda diante da imagem daquilo que somos, essa “náusea”, como diz um
autor dos nossos dias, é também o absurdo. Tanto quanto o estranho que,
em certos instantes, vem ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar e,
no entanto, inquietante que encontramos nas nossas próprias fotos também
é absurdo. (CAMUS, 2014, p. 29)

Pensar o absurdo a partir de Camus é abrir-se para um exercício sobre os


“causos” enfrentamos cotidianamente, de guerras a forme, doenças, injustiças,
questões políticas, preconceitos, discursos de ódio, ganância, cede de poder.
Acompanhar a mídia, os portais de notícias os principais telejornais do nosso país é
abrir a janela do absurdo. A eterna pergunta de como é possível que se viva apesar
de todos esses fatos, o que faz com que as pessoas acreditem em um mundo de
equidade, que a vacina chegará a todos, antes que um ente querido seja o próximo a
aguardar por uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva. Afinal, o que faz com que
se resista ou que constitui a esperança.
Porém, vale ressaltar que, para Camus, a forma de resistir está na própria
escolha por escrever. Sua produção escrita, seja em romance, ensaio ou nos jornais,
Albert Camus fazia de sua escrita a forma de denunciar os absurdos de seu tempo,
bem como um olhar para além desse momento. Para estar além do absurdo, precisa-
se primeiro assimilá-lo, aceitá-lo como condição presente. A partir do momento que
optamos por viver o absurdo, assumimos uma postura lúcida diante dos fatos. Essa
97

lucidez que nos permite seguir vivendo, concomitantemente, a resistência está em


viver, apesar de tudo, continuemos.

Literatura, filosofia e política são partes indissociáveis das obras de Camus,


que denunciava o absurdo de sua era, as guerras e desordens que assolaram
o tempo em que ele viveu. Camus soube como inserir em suas obras de uma
maneira séria e respeitada os problemas dos homens e as reações dos
mesmos diante de tais problemas. É o próprio escritor que explica seu plano
de trabalho e os principais temas abordados em suas obras. (SILVA, 2013, p.
21)

No dia a dia, na prática, na atividade profissional, no “seguir apesar de”, em


partir de sua condição de pied-noir e valer-se de sua prática como recursos, denúncia
e registro do tempo que se vive, da vida possível no tempo-agora, e no desejo de que
alcance felicidade e equidade. Eis o que Albert Camus escrevia, como conseguiu levar
uma vida, apesar dos flagelos em seu trilho.

5.1 Em meio ao absurdo, o amanhã

Não existe a meu ver imagem mais tocante que a do cego com a
cabeça elevada como se estivesse mirando o firmamento. Os crepúsculos
da vida se puseram para a luz eterna, que brilha no além plena de consolo
esperança e bem-aventurança. (HOFFMANN, 2010, p. 42)

Na escrita de Albert Camus a esperança está em viver a vida como ela se


apresenta, em seus percalços e absurdidade. As personagens camusianas encontram
a esperança nas cores e no contato com a natureza. Uma peregrinação ao campo, o
sol quente argelino, as cores douradas e amarelas da Argélia, o mergulho no mar
argelino, qualquer possibilidade de um respiro no cotidiano maçante de sequência de
dias. Essa esperança qualquer aparece em A Peste em alguns elementos. Primeiro,
na própria figura do Dr. Rieux, médico que tentava salvar a vida dos cidadãos de Orã,
enquanto analisava o comportamento do bacilo nos corpos. O desejo de reencontro
“dos amores que ficaram para depois da peste”, aguarda a reabertura da fronteira para
retornar a terra natal, enfim, a espera até que a cidade retomasse a rotina, o horário
comercial, aos cafés, aos banhos de mar.
98

Pensando em nosso contexto, estamos na esperança de uma vacina, na


espera do fim da pandemia, na esperança de um governo melhor, na espera de
concluir mestrado/doutorado. A esperança é essa espera de algo que se está
gerando, um contínuo de um tempo por vir. Ernst Bloch escreveu um verdadeiro
compêndio sobre a esperança. Em O princípio esperança o autor divide em três
volumes uma pluralidade de olhares para esse tema, o quanto a esperança desdobra-
se e influencia nas práticas humanas. Em uma síntese breve, ainda nas primeiras
páginas do primeiro volume, Bloch alerta sobre a importância do “esperar”

O que importa é aprender a esperar. O ato de esperar não resigna: ele é


apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso. A espera, coloca acima do ato
de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em um nada.
O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de
estreitá-las: ele nem consegue saber o bastante sobre o que interiormente as
faz dirigirem-se para um alvo, ou sobre o que exteriormente pode ser aliado
a elas. (BLOCH, 2005, p.13)

No entanto, essa espera também é feita de renúncias. Em A Peste os


moradores de Orã aguardaram por dez meses o fim da epidemia. Milhares de corpos
foram enterrados nesse período, histórias foram interrompidas, amores ficaram para
depois, e a atmosfera de medo fez-se presente. Como ter certeza de que a peste
realmente havia acabado ou se haveria a ameaça de outra. A Literatura, muitas vezes,
pode servir como amparo e aconchego de uma espera por algo. Seja pela companhia
silenciosa e, talvez, solitária, de quem está a ler por passatempo ou no intervalo entre
uma atividade ou outra. Ou porque o próprio enredo do livro nos enverede a uma
espera ao que vai ser desvendado nas páginas seguintes. Em A esperança dos
desesperados, Emmanuel Mounier relata o cuidado de Camus em dosar em sua
escrita a frieza dos fatos com a possibilidade de bem aproveitá-los. Ou seja, ao mesmo
tempo em que a vida se mostra dura, não podemos deixar de vivê-la.

Camus toma cuidado de não fazer palavra alguma vibrar, por temor de
mobilizar simultaneamente, contra a sua profissão de fé, as ilusões
adormecidas e os desesperos não vencidos. Termos jurídicos, termos de
arquitetura: o absurdo é um divórcio entre o espírito que deseja e o mundo
que decepciona, esse espírito e esse mundo escorados um ao outro sem
poderem se abraçar. Parece que escutamos um médico que, diante de um
doente muito febril, procurasse dosar a sobriedade, que desencoraja os
nervos, e a credulidade que os sustenta. (MOUNIER, 1972, p. 65)
99

Nesse sentido, Rieux, o médico, é quem vive a peste em múltiplas faces:


cidadão de Orã experimentando a cidade em estado de exceção, o medo eminente
de ser o próximo contaminado pelo bacilo desconhecido, o que aceita a condição da
doença, mas não deixa de lutar contra ela, o que representa esperança para os
enfermos, o que também precisa ater-se aos seus motivos de esperança, reencontra
a esposa, para banhar-se no mar argelino sem a culpa da quebra de protocolo de
restrição de conduta social.
A Literatura também pode ter a espera como metalinguagem. A espera é uma
esperança, e isso – em boa companhia literária – bem se pode ver em Clarice
Lispector no conto Uma esperança, publicado em Felicidade Clandestina. O conto
revela uma simples situação do cotidiano encorpada de sensações e pensamentos.
Na aparição de uma esperança, emerge um mar de diferentes visões. Da criança
curiosa, querendo preservar e entender o pequeno inseto. Da mãe, surge uma
indagação sobre as diferentes esperanças e suas surpreendentes semelhanças.
Como a esperança-inseto, a outra esperança pousa e por ali fica. Clarice passeia entre
a esperança aos olhos de uma criança, uma esperança imaculada, e a esperança pela
perspectiva da mãe, que se assemelha ao ato de uma espera, uma esperança secreta
e silenciosa, muitas vezes ilusória.

- Ela é burrinha. Comentou o menino


- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe,
coitada, como ela hesita.
-Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe,
é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda (LISPECTOR, 2016, p. 411)

No diálogo entre filho e mãe, há um jogo de palavras que brinca com o sentido
de “esperança”, o inseto ou a esperança na vida. O menino descreve o inseto como
burro, talvez cego, guiado por impulsos e sentimentos incontroláveis. É a sua antena
que a serve de GPS. Outro ponto que ele interpreta como demonstrativo de pouca
inteligência do inseto, é que, mesmo após tentativas fracassadas, ele continua
persistindo em um caminho errante. No conto, surge uma aranha, uma ameaça,
100

prestes a abocanhar a esperança a qualquer momento. É neste momento que o


menino se sente no dever de proteger a esperança de um fim trágico. Ele busca uma
vassoura para dar cabo à ameaça. Aranha que desce na sua teia invisível, e até nos
lembra a peste, aquela que se infiltrou em Orã, sem ser vista.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta,
pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente
que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não
mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada
fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim.
Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu
nada. (LISPECTOR, 2016, p. 413)

Onde há flor, há esperança de que nasçam frutos. É questão de espera, nem


sempre no tempo que se deseja, mesmo porque, até o tempo de floreio, o de semear
já aconteceu um tanto de tempo antes. Para Bloch, não há nada mais desumano que
a ausência de esperança. Ter esperança, para o autor, é um dos motrizes de força
para a própria existência. Além disso, a esperança tem o poder de irromper o medo
diante de algo que se tem que enfrentar no agora em que se vive.

A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em


conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as
necessidades humanas. É por isso que até mesmo a fraude, para que seja
eficaz, tem de trabalhar com a esperança lisonjeira e perversamente
estimada. É por isso que justamente a esperança, limitada porém a uma mera
manifestação interior ou como consolação voltada para além, é pregada de
todos púlpitos. [...] A esperança sabedora e concreta, portanto, é a que
irrompe subjetivamente com mais força contra o medo, a que objetivamente
leva com mais habilidade à interrupção causal dos conteúdos do medo, junto
com a insatisfação manifesta que faz parte da esperança, porque ambas
brotam do não à carência. (BLOCH, 2005, p.15-16)

Ernst Bloch chama a atenção para o “ainda-não-consciente no ser humano”,


que se trata dessa ideia de um futuro, algo que não se pode depreender, apenas ter-
se fé, imaginar um futuro, um “por vir”, melhor do que o que se vive no agora. Em A
Peste, os moradores de Orã experimentaram esse “ainda-não-consciente” em agarrar
suas esperanças no médico e no padre. Figuras que representam a possibilidade de
cura e de fé de um amanhã que chegará, e Orã voltará a ser a cidade ensolarada,
propícia para um banho de mar matinal e um pós-expediente nas noites em cafés.
Mounier relembra o Mito de Sísifo, aonde Albert Camus ensaia sobre o absurdo. O
101

crítico refresca a memória pela filosofia que Camus defendia de que não se tem como
fugir dos absurdos da vida. E que, por mais atrocidades e fatos incompreensíveis nos
aconteçam, há ainda uma eterna juventude humana em ter esperança.

Onde o absurdo é nossa situação essencial, e daí o divórcio inevitável entre


o espírito que deseja a unidade e o mundo irrazoável que decepciona essa
esperança: mas então, essa condição da natureza, por que será necessário
esforçar-se tanto para mantê-la atual na consciência? Por que o espírito,
depois de haver enterrado tantos sistemas e religiões, continua a reinventar
a esperança, geração após geração, com a mesma infatigável juventude? Por
que essa paixão da unidade, e da reconciliação, que sobrevive a todos os
insucessos, e se satisfaz não importa como, de preferência a renunciar? “O
que é natural, responde la Peste, é o micróbio. O resto, a saúde, a
integridade, a pureza, se deve descansar nunca. O homem honesto, aquele
que não infecta quase ninguém, é aquele que tem um mínimo de distração.
É preciso vontade e tensão para não ser jamais distraído. (MOUNIER, 1972,
p. 68)

Curioso Mounier destacar que o homem honesto é aquele que não infecta
ninguém. O autor parece descartar de quem tem o desejo pelo poder como ação de
controle como alguém provavelmente desprovido de honestidade. Nos jogos de poder,
como já mencionado nesta dissertação, os atos não são feitos pelo senso de justiça,
mas sim pelo senso de dominação e que, muitas vezes, para se chegar ao domínio
comete-se barbáries, como falamos sobre “matar para um bem maior”, entre outras.
O médico é o que se tem de mais próximo de um tratamento para o bacilo
desconhecido, um alívio imediato para a dor, a chance de estancar as bolas de pus,
baixar a febre, vetar que a doença se alastre até que se contabilize mais um óbito,
mais um corpo para a vala comum, já que o necrotério e o cemitério não comportavam
mais corpos, desde que o sistema funerário havia colapsado, e restava aos que
entravam na estatística de mortos pela peste a vala comum. Amontoados de corpos
manobrados pelo maquinário que abria valas e os enterravam.

A consciência utópica quer enxergar bem longe, mas, no fundo, apenas para
atravessar a escuridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido,
em que todo o devir [Seinde] está à deriva e oculto de si mesmo. Em outras
palavras: necessitamos de um telescópio mais potente, o da consciência
utópica afiada, para atravessar o imediatismo mais imediato, em que reside
o cerne do encontrar-se e do estar-aí, no qual está simultaneamente todo o
nó do mistério do mundo. (BLOCH, 2005, p. 23)
102

Vale retomar o jovem Camus, o nascido na colônia francesa e que chegou aos
bancos escolares ao abraçar as oportunidades que surgiram em seu caminho. Foi
uma vida de resistência, seja pela infância pobre, pela mãe enferma, o pai morto em
guerra, uma bolsa de estudos. Um caminho feito de resiliência, um drible aos
percalços da vida. Camus poderia não ser o romancista mais vendido, ou o filósofo
mais aclamado pela academia francesa, mas em uma coisa ele triunfava frente às
críticas que recebera de Sartre e Jeanson, o papel que desempenhou na Resistência,
como fala Roland Aronson (2007, p. 270), pois comparado ao deles que “não
ofereceram nada de útil para os que buscavam orientação moral e política durante a
Ocupação”. O crítico lembra a situação em que Albert Camus recebeu severas críticas
da nata intelectual francesa, quando lançara O Homem Revoltado, livro mais
conhecido por ter ocasionado a ruptura da amizade Camus e Sartre, mais do que pelo
seu próprio conteúdo.

O pied-noir foi expulso por quem lhe abriu as portas de Paris; o escritor
reticente fora exposto publicamente e destroçado por alguém capaz de dizer
e mandar imprimir qualquer coisa; o anticomunista inseguro a respeito de seu
público fora desprezado por intelectuais de esquerda; o emergente
provinciano foi satirizado pelos mandarins, devido à sua educação de
segunda categoria e sua preguiça intelectual. As histórias que ele conseguiu
esboçar em 1954 e 1955 falam de traição, isolamento, sofrimento intenso, de
viver num aquário, de esterilidade artística. Sua história mais perturbadora,
“O renegado ou um espírito confuso”, descreve um intelectual “progressista”
– lembrando talvez Sartre, mas talvez também ele próprio -, um missionário
na África do Norte que tem a língua arrancada pelos nativos que ele viera
salvar. Em “Jonas ou o artista no trabalho”, a última tela do artista contém
uma única palavra, tão pequena que não se consegue identificar se é solitaire
ou solidaire. Como vai acabar o artista – totalmente só ou em solidariedade.
(ARONSON, 2007, p. 270)

Camus já era “menos” que qualquer intelectual de sua época pela condição
intrínseca que carregava de pied-noir, após as críticas e à ruptura com os intelectuais
franceses, ele seguiu produzindo, escrevendo, resistindo. Desdobrou-se para além da
crítica, fazendo de seu ofício um ato de resistência, a espera de uma nova manhã
ensolarada. Talvez, em muitos momentos, sentia-se em luta sozinho, mas os ideais
costumam guardar uma coletividade, mesmo que a voz que se escute não ressoe
retumbante, ora em sussurro, ora em berro de resistência, o contraponto Camus
103

seguia em busca e espera, sem resignação e sem estagnação. Ele sabia que é da
natureza do homem estar imerso nas adversidades.

Porque o homem absurdo não é um homem libertado, é um homem cercado.


Ele não tem um além. Não tem amanhãs. Orã, diante das portas fechadas,
imerso em sua peste, lançando esses cidadãos separados do mundo uns
sobre os outros, ao mesmo tempo em que sobre a sua solidão,
empreendendo, com suas cartas sem resposta, “uma conversa com o muro”,
é essa condição humana. Mas Orã e o homem, são também esses velhos
silenciosos que fazem um cerco contra Meursault diante do caixão de sua
mãe, como vagos juízes mudos. (MOUNIER, 1972, p. 69)

O homem absurdo é aquele que vive em estado de exceção e ainda assim


enfrenta um bacilo desconhecido. Esse homem absurdo permite-se entrar no mar.
Entra no mar em acordo tácito com quem está em seu lado, não há denúncias, pois o
silêncio entre os aliados impera. No excerto abaixo, as primeiras aspas fazem menção
a A Peste, e as segundas a O mito de Sísifo. Rieux é aquele que pode prorrogar a
vida, a esperança de salvação frente à enfermidade, porém ele jamais poderá garantir
a vida eterna, tampouco que a morte um dia chegue.

A salvação é a abstração antagônica da cumplicidade. Aliás, rejeitando o


padre após o herói, Camus se fixa no ideal mais modesto do médico. Não é
por acaso que escolheu o Dr. Rieux para fazer a cônica da peste. É ele que,
finalmente, tem a visão mais justa da calamidade: “A salvação do homem é
uma expressão muito grande para mim, responde ao padre. Não vou assim
tão longe. É sua saúde que me interessa, primeiramente sua saúde”. Mesmo
nesse plano modesto, o médico não salva senão por um adiantamento; para
cada homem ele será, um dia, o vencido no combate. Mas não se sente por
isso o menos solidário de “todos os homens que, não podendo ser santos, e
se recusando a admitir as calamidades, se esforçarão, entretanto, em ser
médico”. Todas as ilusões têm um nome em comum: a esperança. O Absurdo
é o contrário das da esperança”. (MONIER, 1972, p. 78)

Aceitar o absurdo como condição inerente ao ato de viver não significa ser
conivente com ele. O absurdo modera como podemos nos relacionar com os fatos da
vida. Ficar preso à ideia de um “futuro melhor” também pode compreender um
absurdo. Se o tempo em que se espera por um “por vier” for em estagnação e
terceirização de felicidade ou de qualquer outra coisa que se viva em substituição o
que um dia se pode viver em bonança, é um desperdício de tempo e de vida em uma
esperança infrutífera e paralisa. Por isso, Emmanuel Mounier se vale do conceito de
104

absurdo para propor que o homem desaprenda a esperar para, então, abraçar o seu
presente.

A crença na vida futura é o símbolo mais comum e mais nocivo da esperança.


Mas não é o único. Existem transposições para um ateu: o humanismo, por
exemplo, que não acredita na infelicidade. Não basta apenas expulsar a
esperança, mas lhe arrancar seu prestígio. Ela não é a exaltação da vida,
mas o pecado contra a vida, ela mata a vida, transportando-a para as páginas
do nada e da ilusão. É preciso desensinar ao homem a esperar, ensinar-lhe
a se contentar, diante de si, com seu conhecimento sem recursos, à
retaguarda, com sua memória estéril; a entrar com um passo firme no inferno
do presente. (MOUNIER, 1972, p. 78 - 79)

Neste ponto, percebemos o posicionamento à parte do cristianismo, que


legitima um amanhã em pleno gozo do viver a eternidade. No excerto podemos
retomar a amizade de Camus com o teólogo Howard Mumma e ver bem o que
aproximava e o que distanciava os dois amigos. Crer na vida, bem vivê-la – cada qual
ao seu modo – ter ciência da absurdidade do mundo e, mesmo assim, tentar sempre
um “para além do absurdo” sem, necessariamente, responsabilizar o futuro por um
raiar do sol de pleno gozo e liberdade. No entanto, Camus também não contava com
o benefício/recompensa de uma vida eterna ao lado do Pai Celestial. Aí morava a
diferença entre os amigos. A comunhão estava no zelo pela vida, no olhar fraterno a
cada vida. No ensaio sobre a esperança dos desesperançados, o teórico reflete,
ainda, sobre um ponto caro a Albert Camus, aquele que fez com que este desse as
costas ao Partido Comunista. O desacordo com qualquer motivo que autorizaria que
um homem execute a outro, assinala o esvaziamento de sentido do quem é e do
quanto vale um corpo que vive.

Matar-se raramente por má índole, pensa Camus, mata-se por ignorância: a


ignorância acredita saber tudo, e essa suficiência se desequilibra no mundo
das ideias absolutas e do messianismo sem matizes. E então que ela se
autoriza a assassinar. Mata-se, sobretudo por abstração: esquece-se pela
ideia, a beleza inolvidável do mundo e dos rostos, e a ideia, cega, se oferece
um mundo cego, de carrascos e de máquinas que agem por meio de
procurações mais e mais recuadas. (MOUNIER, 1972, p. 101)

Talvez uma das grandes percepções de Albert Camus sobre a vida seja que
não se precisaria de uma garantia de vida eterna para bem aproveitá-la. Camus
abraçava a oportunidade de viver, em cada detalhe. E com seus personagens nos
105

apresentou “o possível” de como se pode ter uma vida frente as escolhas que se faz
e a realidade como ela se apresenta. Meursault tinha seu jeito particular de abraçar o
tempo-agora em franqueza e quiçá coragem de admitir os seus atos e a ausência de
desejo de pôr mais cores que o necessário em cada quadro de sua própria vida.
Assumir ser consoante consigo, mesmo que o código social advirta “não ser o certo”,
“não ser o convencional”, enfim, eram suas escolhas. Já Rieux fazia o que estava ao
seu alcance, mesmo sem poder garantir o futuro sem a peste, e se valia de sua prática
profissional para não deixar de lutar por esse amanhã, com as armas que tinha em
mãos. Cada vida não perdida para a peste era uma vitória e novo fôlego para que se
pudesse acreditar que havia a possibilidade de vencer o flagelo.

O absurdo que Camus expõe em suas obras não é o fim, mas, ao contrário,
o ponto de partida para a busca da felicidade. O homem revoltado quer
encontrar unidade. Da mesma forma que Sisyphe encontra felicidade
empurrando seu rochedo pela montanha, subentende-se que Meursault
encontra contentamento unindo-se à natureza. Cada personagem encontra a
alegria de viver à sua maneira. Ambos se satisfazem no próprio coração do
absurdo. Essa felicidade é revelada mesmo sem esperança e sem Deus. Isso
significa que o homem, mesmo vivendo a condição absurda imposta pelo
mundo, consegue encontrar felicidade em pequenos detalhes da vida.
(SILVA, 2013, p. 119 - 120)

A felicidade, em contextos tão adversos, torna-se um resistir. Ao irmos ao


encontro de nossos afetos, pequenos atos que nos trazem aconchego, como um bolo
caseiro e um café recém-passado, são pequenos rituais, breves instantes de
felicidade. Vá se saber se a promessa de um amanhã de gozo e plenitude chegará,
ou se o existir humano perseguirá flagelos e repetirá a passagem pelos períodos de
“futuro suspendido”. O que aprender com os flagelos, além de suas habilidades de
infiltrar-se, instalar-se sem ser convidados. Que a resiliência deles não vença a nossa.

Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria
estúpido.” Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar.
A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos
sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo
mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não
acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então
que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre
ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os
humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.
Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se
esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para
106

eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a


fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter
pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões?
Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.
(CAMUS, 2017, p. 40 - 41)

A esperança, mesmo que nem sempre restrita a uma espera, pode ser uma
construção coletiva. E, em casos que acometem uma população inteira, atos
individuais influem no resultado desejado pelo mar de gente que anseia por dias
melhores. O discurso “quando a peste passar” é o mesmo de “quando a guerra
acabar”, “quando todos estiverem vacinados”, “quando as fronteiras voltarem a estar
abertas”. Em ditado popular “sonho que se sonha junto tem mais força”, mas saindo
do campo imaterial, o que se faz para o tão falado bem coletivo? No Brasil recente,
estamos há mais de um ano convivendo com o horizonte restrito de que o próximo
telejornal venha com uma notícia que nos surpreenda. A espera por qualquer novo
prazo que se possa dar para o fim da pandemia do coronavírus. Comemoram-se
pequenas vitórias de quem está conseguindo ser vacinado, mas as medidas
alcançadas ainda parecem poucas, perto do mar de ratos infiltrados e da
multiplicidade de flagelos a serem combatidos. Contudo, ainda há uma juventude em
cada um de nós, que faz com se faça o possível por hoje para acreditar em uma vida
particular e coletiva com mais equidade.
107

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Todas as obras literárias, em outras palavras, são


‘reescritas’, mesmo que inconscientemente, pelas
sociedades que as leem; na verdade, não há releitura
de uma obra que não seja também uma ‘reescritura’.
Nenhuma obra, e nenhuma avaliação atual dela, pode
ser simplesmente estendida a novos grupos de
pessoas sem que, nesse processo, sofra
modificações, talvez quase imperceptíveis.”
(Terry Eagleton)

O atual cenário político e social pode ser lido como um aviso de incêndio38. Um
alarme para que despertemos devidamente frente aos retornos de momentos
históricos outrora superados. A nova onda conservadora ganhou espaço no Brasil e
no mundo, e faz com que recordemos de tempos sombrios, como os regimes
totalitários que ascenderam na Europa desde a década de 1920 até o fim da Segunda
Guerra Mundial. Crises econômicas, transformações nos modos de produção e de
negociação comercial, ações entre o protecionismo econômico e o liberalismo são
alguns ingredientes que rechearam o clima de instabilidade e de decisões drásticas
desse período amargo. Por isso, senti a necessidade de repensar como esses
momentos de instabilidade política-econômica-social causam uma perda de norte,
tanto nos indivíduos quanto na população como um todo. Nesse sentido, busquei em
Albert Camus, em especial em A Peste, um caminho para ler como governos com
perfis mais conservadores passaram a ter um número de votos expressivos no nosso
país e no mundo. Em A Peste, a cidade argelina Orã vive um estado de exceção,
acometida por uma enfermidade. Já o ensaístico O mito de Sísifo serviu de base para
estudarmos o homem absurdo, já que foi neste livro que Camus introduziu sua filosofia
do absurdo, abrindo-nos a reflexões sobre o incompreensível da vida.

38 Menção ao livro “Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história””, do autor Michael Löwy.
108

Neste percurso de pesquisa, foi necessário refrescar a memória de como


regimes totalitários39 conquistam a confiança – e até mesmo a adesão – popular,
trazendo a elas uma sensação de ordem, bem como a esperança de dias melhores e
que os sacrifícios são feitos em nome de um bem comum: a pátria. Para além do
homem absurdo, como ter esperança frente aos destroços de uma guerra? O que
planejar para o amanhã quando o que nos resta é a saudade de quem se foi em um
embate bélico, e a solidão de se estar só e, ainda assim, ter que seguir em frente, pois
assim se espera que, naturalmente, as pessoas o façam? O desejo de uma
esperança-qualquer é uma utopia sonhada. Difícil seria evitar esse sonho (ou ilusão),
mas se a cada amanhecer os noticiários (e as redes sociais) funcionam como uma
avalanche de catástrofes, é possível crer em um novo dia ensolarado? Na verdade,
antes fossem catástrofes, pois assim teriam um ar de que algo aconteceu por acaso.
No entanto, podemos concluir que muitos incêndios são planejados, e estamos em
tempo real pagando por tanta cinza. Ao mesmo tempo, nos encontramos em uma
anestesia social, sem hora certa para se passar o efeito. Nessa trama, como ser
resiliente, ou o que é ser ou ter resistência em nosso tempo de agora? Feito um
horizonte tortuoso, como era a Paris de Baudelaire, o horizonte interrompido por uma
muralha de pedras insiste em estar em nossos caminhos. Contudo, acredito, estamos
em resistência, ocupando os bancos universitários, indo às ruas lutar por justiça,
reivindicando os direitos de quem não tem voz ou que, neste momento, não percebe
a necessidade e o valor que suas vozes teriam em manifesto. Por isso, é preciso ainda
defender o SUS, o Instituto Butantan, a ciência, a vacina.
Nesse sentido, refletiremos sobre os sintomas sociais que estamos
vivenciando, como: ausência de representantes no governo que pensem a população
como um todo, sem o interesse particular de privilegiar determinas classes da
sociedade, e a ausência de posicionamento político, medo de se opor a culturas
massificadas, além do retorno de movimentos conservadores (e autoritários). Como
exemplo, podemos citar a passeata neonazista que aconteceu no dia 12 de agosto de

39Nesta dissertação, quando falamos genericamente de regimes totalitários, estamos nos referindo aos
regimes totalitários de forte atuação no século XX.
109

201740, em Charlottesville (Virgínia/EUA), em que os temores que motivaram a


Segunda Guerra Mundial dão sinais de que ainda estão presentes em nosso cotidiano.
Ou exemplos mais próximos, como o caso do advogado negro que foi perseguido por
mensagens em referência ao Ku Klux Klan, em Blumenau, Santa Catarina, em
setembro de 201741. Os cartazes colados pela cidade mostravam um desenho de um
integrante do movimento neonazista norte-americano Ku Klux Klan e os dizeres
“Negro, comunista, antifa [integrante de movimento antifascista], macumbeiro.
Estamos de olho em você”. Assim como nos portais de notícias, estamos vivenciando
no nosso dia a dia uma série de fatos que nos evidenciam uma instabilidade. Essa
onda conservadora junto a atitudes de intolerância com a diversidade – cultural, racial,
ideológica – colocando-nos em uma situação muito similar à de um contexto de pós-
guerra. Mesmo que de forma velada, pois não há uma declaração de guerra oficial,
mas os embates estão ao nosso entorno, engolindo-nos e vetando um horizonte de
uma nova esperança qualquer.
As impressões que Albert Camus teve em sua visita ao Brasil seguem vigentes
e atuais. Quantas vezes sentimos certo constrangimento pelo nosso próprio jeito de
ser brasileiro, o modo como permitimos que o maneirismo tome lugar de
representatividade, seja da nossa cultura, quanto até mesmo dos representantes
governamentais que elegemos. Ter ainda graça, resiliência, força de espírito,
religiosidade, prosperidade cultural e, principalmente, a continuidade que damos na
sequência de dias seguindo em frente entre tantos “apesar de” que cruzam nossos
caminhos. Queria discordar de Camus, e dizer que tantos anos depois de sua visita
ao nosso país seria anacrônico demais destacar qualquer pressa no trânsito para
chegar a lugar nenhum. Ou a mania de ostentar luxo, mesmo que o desfrute seja feito
com vista para a favela.
Porém, nessa espera, seja pelo fim da pandemia do coronavírus, ou por uma
“nova onda progressista”, que busquemos mãos a se somarem nas lutas que

40 G1 MUNDO. Confronto em protesto de supremacistas brancos nos EUA deixa ao menos 1 morto e
33 feridos. G1, 12 ago. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/protesto-contra-
supremacistas-brancos-deixa-feridos-em-charlottesville.ghtml. Acesso em: 20 ago. 2017
41 G1 SANTA CATARINA. Cartazes racistas são colocados em poste e na casa de ativista negro em

Blumenau. G1 SC, 26 set. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-


catarina/noticia/cartazes-racistas-sao-colocados-em-poste-e-na-casa-de-ativista-negro-em-
blumenau-oab-repudia-ato.ghtml. Acesso em: 3 out. 2017.
110

abraçamos em nosso dia a dia, nas bandeiras que crermos ser os alicerces para ver
na vida o sentido de bem vivê-la. Camus, então, nos serve não em suas impressões
certeiras sobre o nosso Brasil, mas sobre o modo como escolheu manter-se em seus
ideais e propósitos sem se congelar, nem parecer um mero iludido. Na verdade, não
há nenhum ato heroico em suas atitudes, ele só não deixou de exercer as atividades
que lhe faziam sentido: fundar um jornal de resistência, teorizar sobre o absurdo da
vida, romancear sobre como viver apesar do absurdo. Registrar feito crônica a ameaça
constante de entrarmos em estado de exceção aos avisos de perigo ignorados,
quando um novo representante (governante), com postura autoritária se aproxima, e
deixarmos que ganhe força, muitas vezes por descrédito de que seria possível que
coletivamente elegeríamos alguém com este perfil como representante de toda uma
comunidade (ou nação).
111

7 REFERÊNCIAS

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2009.

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115

Anexo

ALBERT CAMUS POR JEAN-PAUL SARTRE

Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo
termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a
história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras constituem talvez
o que há de mais original nas letras francesas. Seu humanismo obstinado, estreito e
puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos em
massa e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de suas repulsas,
reafirmava, no coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de
ouro do realismo, a existência do fato moral. Era, por assim dizer, esta inquebrantável
afirmação. Por pouco que se o lesse ou refletisse a respeito, chocávamos com os
valores humanos que ele sustentava em seu punho fechado, pondo em julgamento o
ato político.

Inclusive seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo: este cartesiano
do absurdo se negava a abandonar o terreno seguro da moralidade e entrar nos
incertos caminhos da prática. Nós o adivinhávamos e adivinhávamos também os
conflitos que calava, pois a moral, se se a considera, exige e condena juntamente a
rebelião. Qualquer coisa que fosse o que Camus tivesse podido fazer ou decidir a sua
frente, nunca teria deixado de ser uma das forças principais de nosso campo cultural,
nem de representar a sua maneira a história da França e de seu século.

A ordem humana segue sendo só uma desordem; é injusta e precária; nela se mata e
se morre de fome; mas pelo menos a fundam, a mantêm e a combatem, os homens.
Nessa ordem Camus devia viver: este homem em marcha nos punha entre
interrogações, ele mesmo era uma interrogação que procurava sua resposta; vivia no
meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem com que a
ordem reine como para os que a recusam, era importante que Camus saísse do
silêncio, que decidisse, que concluísse. Raramente os caracteres de uma obra e as
condições do momento histórico exigiram com tanta clareza que um escritor viva.

Para todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável. Mas, teremos
que aprender a ver esta obra truncada como uma obra total. Na medida mesmo em
que o humanismo de Camus contém uma atitude humana frente à morte que havia de
surpreendê-lo, na medida em que sua busca orgulhosa e pura da felicidade implicava
e reclamava a necessidade desumana de morrer, reconheceremos nesta obra e nesta
vida, inseparáveis uma de outra, a tentativa pura e vitoriosa de um homem
reconquistando cada instante de sua existência frente à sua morte futura.

JEAN-PAUL SARTRE (Escrito um dia após a morte de Camus)


Tradução: Jorge Luis Gutiérrez Revisão: Terezinha Arco e Flexa
Disponível em: http://revistapandorabrasil.com/camus/sartre.htm

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