Arquivo T
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Florianópolis
2021
Amanda Nascimento Pereira
Florianópolis
2021
Amanda Nascimento Pereira
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi
julgado adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.
____________________________
Prof. Dr. Pedro Falleiros Heise
Coordenador(a) do Programa
____________________________
Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca
Orientador
Agradeço aos poucos e bons que realmente estão ao meu lado: pai, mãe e
irmã. Aos amigos que me ajudam a persistir nos meus sonhos e lutas. Ao meu
orientador, que está comigo desde o trabalho de conclusão de curso em Letras Língua
Portuguesa e Literaturas.
Agradeço aos meus professores, é incrível como suas aulas continuam
significando com o passar dos semestres. Minha admiração e carinho a todos que
participaram dessa trajetória.
Veja, Mersault. toda a baixeza e a crueldade de nossa civilização
medem-se por este axioma tolo de que os povos felizes
não têm história. (CAMUS, 2018, p. 59)
RESUMO
A partir da publicação A Peste, de Albert Camus, esta dissertação apresenta uma
leitura possível de como regimes totalitários se infiltram e se alastram em uma
comunidade/sociedade. Para esse olhar, perpassa-se algumas características
camusianas, tal qual o próprio legado da pessoa Camus, aqui interpretado como ato
de resistência. Em hipótese, levar a vida da melhor maneira que se pode, ou aceitar
os dias enquanto sucessão de horas e intervalos de dia e noite, talvez seja um modo
de esperança/espera por dias melhores, um dos nortes argumentados aqui, como
“sentido de vida”. Para essas reflexões, o próprio conceito de “História” orienta como
os fatos sociais significam ao longo do tempo, e como é necessário buscarmos sempre
outros modos de olhar para o que é dito e legitimado coletivamente.
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 15
2 SER UM PIED NOIR NÃO LIMITA A CAMINHADA ................................... 20
2.1 Amar a vida em sua absurdidade ............................................................. 24
1 INTRODUÇÃO
Aronson e Roland Barthes, com uma crítica em que analisa se A peste é um romance
ou uma crônica.
Conceitos com o de “história” e discussões sobre “tempo”, “tempo-presente” e
“tempo-agora” são necessários para tópicos fundamentais nesta pesquisa. Sugere-se
que Albert Camus exercitava e imprimia em sua práxis o olhar para a História a
contrapelo, aquele modelo teorizado por Walter Benjamim, feito a escovar um tapete
de lã no sentido oposto de suas cerdas. Para discorrer sobre esses temas recorri aos
autores-base dos estudos literários no curso: Walter Benjamin, Giorgio Agamben,
Michael Löwy e Gilles Deleuze.
Além de discutir o conceito de História e convidar o leitor a percebê-la como
disruptiva, não progressivista, tampouco linear, a pesquisa dedica-se a falar como de
tempos em tempo os fatos históricos, em dada medida, se repetem. Como é o caso
de governos autoritários, que se valem de inseguranças socioeconômicas para
ascender ao poder, exercendo amplo domínio e, por vezes, agindo com atitudes
bárbaras e violentas para manter-se no poder e controle de dada população. Para dar
base à hipótese lançada, recorria a Hanna Arendt, com Origens do totalitarismo,
Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo, uma breve passagem pelo
conceito de “alegoria”, recorrendo a João Adolfo Hansen, Alegoria: construção e
interpretação da metáfora, e Flavio Kothe, A Alegoria.
Clarice Lispector aparece em, ao menos, quatro momentos no desenvolvimento
deste projeto. Com A paixão segundo G.H., faço um breve paralelo entre a relação de
G.H. ao deparar-se com a barata morta, e o médico de A peste, Dr. Bernard Rieux, ao
encontrar o primeiro rato morto. Em seguida, recorro à crônica Escrever para jornal e
escrever livro, da coletânea de crônicas publicadas originalmente na coluna semanal
que Clarice Lispector escrevia aos sábados, no Caderno B, do Jornal do Brasil. Neste
texto, a autora menciona Albert Camus como alguém que exercia bem as funções de
jornalista e romancista. Os contos Relatório da coisa, para discutir o ritmo urbano
ditado pelo passar das horas de um relógio, e Uma esperança, para somar ao capítulo
sobre este tópico. O diálogo entre mãe e filho sobre “espera” e “esperança” inspiram
o pensamento de em que medida ter esperança é um ato de resistência, ou uma
terceirização de responsabilidade frente a uma situação em que nos sentimos “sem
saída”, o que fazer enquanto espera-se “um amanhã melhor”.
19
Das obras camusianas, cinco são citadas diretamente: o ensaio mais famoso
do autor: O mito de Sísifo, o romance mais célebre, O estrangeiro, o objeto de estudo,
A peste, o romance em que aparece “o segundo Mersault”, A morte feliz, e o Diário de
Viagens, em que podemos encontrar algumas impressões de Camus sobre o Brasil e
a América.
A base teórica mencionada está entre os pontos de partida para a construção
de leitura proposta nesta pesquisa: ler a partir dos escritos de Camus, em especial A
peste, uma percepção de como a História é feita e como, para entendê-la, é
necessário olhar para o que não está catalogado em livros didáticos, enciclopédias e
museus. Além disso, este estudo também dá vazão a como os regimes totalitários e
governos conservadores se valem de situações de fragilidade e insegurança coletiva
para instalar-se e impor por uma série de posturas autoritárias um norte de ordem e
segurança, em que dada população acaba por ser governada, sendo refém de seu
próprio medo.
Para além da pandemia que o mundo vivencia desde o final de 2019, dissertar
sobre A peste vai além de um paralelo de uma comunidade que lida com uma doença
desconhecida e letal. Ler A peste no tempo-agora é ver a atualidade deste livro e o
quanto ele pode significar feito um caleidoscópio, de acordo com a maneira que
olhamos para ele. Esta dissertação convida a este olhar para o agora pelo arquivo
crônico do que em 194... Orã, a cidade da costa argelina, vivera.
20
2 A principiante renuncia à premiação pode ser vista no registro fílmico francês lançado em 2010, Albert
Camus (Camus, 2010), com direção de Laurent Jaoui e elenco: Stéphane Freiss, Anouk Grinberg,
Agathe Dronne.
3 Versão original da carta em francês: Cher Monsieur Germain, J’ai laissé s’éteindre un peu le bruit qui
m’a entouré tous ces jours-ci avant de venir vous parler de tout mon cœur. On vient de me faire un
bien trop grand honneur, que je n’ai ni recherché ni sollicité. Mais quand j’en ai appris la nouvelle, ma
première pensée, après ma mère, a été pour vous. Sans vous, sans cette main affectueuse que vous
avez tendue au petit enfant pauvre que j’étais, sans votre enseignement, et votre exemple, rien de
tout cela ne serait arrivé. Je ne me fais pas un monde de cette sorte d’honneur. Mais celui-là est du
moins une occasion pour vous dire ce que vous avez été, et êtes toujours pour moi, et pour vous
assurer que vos efforts, votre travail et le cœur généreux que vous y mettiez sont toujours vivants
chez un de vos petits écoliers qui, malgré l’âge, n’a pas cessé d’être votre reconnaissant élève. Je
vous embrasse de toutes mes forces. Albert Camus. Disponivel em:
https://www.revistaprosaversoearte.com/de-albert-camus-com-carinho-ao-seu-mestre/
22
mão, bem como soube deixar de lado o que não contribuía para sua vida. Além de ter
vindo de uma família humilde e enfrentado graves problemas ao longo da vida, Camus
sabia como era ser uma pessoa deslocada, um estranho, um estrangeiro. Mesmo com
a cidadania francesa em documento, um papel não o libertava de ser um pied-noir4
(pé preto). Não estamos aqui para uma defesa de que as obras de Camus sejam uma
espécie de biografia do próprio autor, no entanto, não há como negar que essa
bagagem de vida pode ser percebida em sua produção literária de intelectual.
4 Pied noir é um termo pejorativo que os franceses empregavam aos seus colonizados africanos, usado
para fazer referência aos cidadãos franceses e outros de ascendência europeia que viveram no Norte
da África francesa, como a Argélia francesa, o Protetorado Francês do Marrocos ou o Protetorado
Francês da Tunísia. A expressão foi fortemente usada até a independência dessas então colônias,
isto é, até os anos de 1956 e 1962. No entanto, ainda continuou sendo utilizada para designar os
cidadãos descendentes de europeus que "regressaram" à França assim que a Argélia se tornou
independente.
23
filósofo. É como se Sartre fosse um filósofo que fracassara como romancista, e Camus
um romancista que fracassara como filósofo. Porém, deve-se lembrar o que era ser
filósofo na academia francesa entre os anos de 1940 e 1960.
A rixa entre os dois se acentuou com a crítica de Sartre a O Homem Revoltado.
Em críticas5, podemos constatar que Camus virou motivo de boato entre os
intelectuais franceses, que falavam que ele havia lançado um texto inconsistente,
quem sabe, amador, sobre a própria existência humana, entre outros pontos, por
assumir o absurdo como condição para a vida. Não pretendo me aprofundar na
discussão de O Homem Revoltado, nem na desavença entre Sartre e Camus, mas
um ponto dessas críticas, em especial, chama atenção a esta pesquisa. Albert Camus
pode ser considerado um amador? O que essa característica poderia acarretar à sua
carreira intelectual? Como um leitor de Camus poderia perceber esse traço de autoria
ou de descompromisso intelectual?
Entre tantas dúvidas que tentaremos, se não desvendar, ao menos discorrer a
respeito, este estudo também se dedica a reunir algumas curiosidades sobre o autor
em estudo. Como é o caso de sua passagem pelas Américas. Em seu Diário de
Viagem, Albert Camus relata sua passagem pela América do Norte e América Latina.
Entre os meses de junho a agosto de 1949, Albert Camus viajou pela América do Sul,
e entre outros destinos teve o Brasil. No entanto, pelos relatos feitos em seu diário
pessoal, não pareceu se agradar muito do clima dos trópicos. Ainda em alto mar
anotou em seu diário o mal-estar de estar navegando por tanto tempo e em
temperaturas nada amenas. Curioso, o sol tão familiar a Camus e sua terra natal,
Argel, parecia causar desgosto desde que se aproximara do continente americano.
Nas primeiras impressões sobre o Brasil, a preocupação em ser recepcionado com
luxo, os motoristas brasileiros que em sua percepção ou eram “alegres loucos ou frios
sádicos”, mas todos querendo chegar na frente a qualquer custo, além dos demais
contrastes.
5
Como a que podemos ler no livro Camus e Sartre - O Fim de uma Amizade no Pós-guerra, de Ronald Aronson.
24
buscar água no sopé dos morros, onde fazem fila, e trazem de volta sua
provisão em latas de alumínio, que carregam na cabeça como as mulheres
kabyles. Enquanto esperam, passam diante delas, numa fileira ininterrupta,
os animais niquelados e silenciosos da indústria automobilística americana.
Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados.
(CAMUS, 2017, p. 62)
não houvesse o amanhã.”. A linha entre a indiferença à vida e gozá-la como se não
houvesse um amanhã coloca as duas personagens em uma relação intima com a
morte. A morte virá, então, o que fazer nesse intervalo? No decorrer do romance A
morte feliz, Mersault explicita a sua contradição entre desejar uma felicidade na
solidão, um resgate ao já vivido, indo ao encontro de afetos importantes de seu
passado, chegando ao isolamento como um refúgio ao íntimo. Já o estrangeiro é
marcado por traços de indiferença e apatia, e com o passar das páginas do livro
evidencia-se que Meursault era estrangeiro não por estar de passeio em outro país,
mas por ser estrangeiro a si mesmo e à sociedade. Em certo senso comum, ele não
correspondia aos estímulos socialmente aceitos e esperados. Não demonstrava, por
exemplo, paixão por Marrie, não chorava o luto pela morte de sua mãe, tampouco
justificava um possível porquê por ter assassinado o árabe na praia. Por mais que
essas personagens tragam consigo um “quê” de melancolia, um aceitar a vida sem
muito questioná-la, não se pode depreender que assim era o modo como o criador
delas percebia o mundo e os fatos da vida.
Neste contexto, podemos pensar que Camus não era um pessimista. Ao
contrário, pelo seu decurso de vida, atuando em resistência, por exemplo como
jornalista, e de escrita, com suas obras literárias e demais trabalhos, ficou registrado
a espera por dias melhores. Se Albert Camus não fosse alguém com fé no mundo –
fé na vida, certamente, não seria ele a fundar um jornal de resistência. O que de mais
atuante em esperança do que fundar um jornal clandestino que denunciava a invasão
nazista? Um veículo de comunicação a que outros franceses, em suma os moradores
de Paris, pudessem recorrer para ler palavras que defendiam uma França em
liberdade, livre de nazistas. Dias que estavam por vir, em algum amanhecer que
chegaria em mais ou menos tempo.
Os editoriais do Combat atribuídos6 a Camus não são por menos.
Denunciavam, registravam e esperançavam um amanhã sem totalitarismo, sem
ocupação nazista, sem mortes em nome do poder7. Nada justificava matar. Que causa
6 Muitas vezes, os editoriais não vinham assinados, pois Camus optava por não se expor. Contudo,
sabia-se que eram dele os textos do espaço editorial de Combat. (BOVE, 2019)
7
No artigo escrito por Renato M. Perissinotto Hannah Arendt, poder e a crítica da "tradição”, o autor escreve
sobre o conceito de “poder” de Arendt. ParafraseioPerissinoto para ambientar o sentido da palavra “poder” ao
longo desta dissertação. Hannah Arendt, em Poder e violência, apresenta uma conceituação de poder (e de ação
26
seria essa que orientava os homens que se deve matar para então conquistar-se uma
unidade, um bem comum? Neste sentido, podemos pensar que Albert Camus
condenava essa atitude, e que via a vida era como um bem comum. Mas quem resiste,
resiste ainda às absurdidades do mundo. Com a forma como descrevia seus
personagens, o autor abria uma possibilidade para um modo de vida que resistia as
adversidades, como guerras e pestes. Viver apesar da cega busca por poder. Viver,
pois, fora isso, cair-se-ia no niilismo ou na adesão ao suicídio.
Em uma vertente de interpretação, Albert Camus pode ser considerado um
antagonista em alguns momentos de sua vida. Convido você a pensar comigo quantas
vezes o percurso do autor subverteu o caminho mais fácil ou ao próprio destino –
recorrentemente comum - de garoto pobre de uma colônia francesa - fazendo dos
percalços trilha de seu modo de existir, de escrever e de ser no mundo. Se a espera
e a esperança nos acompanham por seus livros e demais escritos, talvez não
houvesse o contrário em suas posturas como cidadão. Aceitar a vida como ela se
apresenta estava intrínseco a isso.
política) como um fim em si mesmo, e com um sentido de promover a interação entre os homens. Para a autora,
o poder não pode ser avaliado pelo seu resultado final, mas valorizado por si mesmo (Arendt 2001: 41; 1981:
217-19). Neste sentido, pode-se pensar no acordo que representantes políticos fazem com seus eleitores ou
governados. Recentemente, acompanhamos no Brasil uma promessa enviesada por uma agenda conservadora,
em que os “bons costumes” devem imperar para se manter a ordem e os valores “do povo brasileiro”. A Bancada
Evangélica (formada por Deputados Federais de partidos conservadores) negocia essa agenda com demais
lideranças governamentais, garantindo em troca a fidelidade (e votos) dos fieis membros das igrejas
pentecostais. Ou seja, a figura do “pai autoritário” (este conceito será abordado no subcapítulo Entre a História
e tempos suspensos) faz-se presente e é legitimada em defesa de um “bem maior”, assim, acompanhamos o
modo como os defensores do atual governo sustentam seus argumentos em concerto com a agenda
conservadora, a promessa de um “bem coletivo”. Valendo-se de Arendt, esse exemplo ilustra o consentimento
necessário para uma relação de poder ser sustentar. Todo grupo que age em concerto visa produzir poder, isto
é, pretende criar consentimento. Nesta dissertação, alude-se a expressão “cede de poder” não só o desejo de
um homem ou grupo político em prevalecer no comando e em situação de privilégios, mas também sobre a
consonância desses “acordos sociais” para que a relação de poder se estabeleça.
27
Esse relato amigável de Howard Mumma pode nos ajudar a ver alguns
personagens camusianos com mais doçura, a exemplo do mais popular entre os
leitores de Albert Camus, Meursault, de O Estrangeiro. Comumente visto como um
descrente ensimesmado, talvez fosse alguém que viveu a vida como ela é, aceitando
dores e sabores. Poderia não expressar grande paixão por Marrie, mas não
dispensava uma ida ao cinema ou um banho de mar em sua companhia. Há de se
pensar se é dar pouco valor à vida, vivê-la como se apresenta. Aceitar os dias com
sucessão de horas, pode não ser tão ruim, quanto viver esperando pelos grandes
fatos e feitos. Uma vida pautada em ocasiões especiais ou em busca de uma
felicidade que nunca vem, pode ser tão limitante, quanto uma vida presa ao compasso
do relógio.
O sol, elemento marcante nos escritos de Camus, indica que o autor via nesse
astro motivo suficiente para acreditar num “dia-pós-dia”. No prefácio da tradução
portuguesa de Albert Camus e o teólogo, Frei Betto destaca a fé humanista de Albert
Camus, pelo próprio traço do autor de exaltar o humano. É como se o autor nos falasse
a cada texto publicado que o que se aprende com os flagelos é que há nos homens
mais coisas a admirar do que desdenhar.
se tem e de saber que a vida é feita do agora. Se hoje se tem o que comer, amanhã
é um novo dia em que a luta pelo pão retorna. Se hoje se consegue sentir o cheiro de
maresia, o perfume de uma nova estação, amanhã o pulmão pode estar comprometido
pela tuberculose. O doce disso tudo é se pender pelo o que é permitido por hoje, como
Camus e seus personagens bem sabiam fazer. O sol de Camus era a Argélia em si.
O litoral africano, o calor de sua terra, o amanhã sempre por vir.
Essa doçura também é denunciada pelo amigo Howard Mumma. Em “Nota do
Autor”, o teólogo inicia sua escrita fazendo uma meia culpa, denunciando possíveis
deslizes de veracidade dos fatos mencionados no livro que relata os encontros e
conversas entre ele e Camus. Mumma salienta que sacerdotes não costumam
quebrar promessas, mas que aos 91 anos de idade – e com Camus morto há 40 anos
–, ele se sentia confiante de que os benefícios de compartilhar a sua história
sobrepujam a traição de sua confiança quanto a sua relação com o antigo amigo.
O amigo sugere que, para Camus, o Partido Comunista era uma esperança de
um mundo igualitário e de oportunidade para todas as pessoas. Um partido que
deveria opor-se a regimes totalitários e, principalmente, se opor a qualquer forma de
violência. Por essa via, acompanhando os movimentos políticos que desenhavam a
Guerra Fria, o escritor acabou por distanciar-se do Partido Comunista, e por mais que
ainda se considerasse esquerdista, seu posicionamento não foi bem aceito pelos
demais, em suma pelos intelectuais esquerdistas. O teólogo Howard Humma lembra
um dos diálogos que teve com seu amigo, em que Camus destacou o seu desencontro
com o comunismo:
Camus não aceita o absurdo. Não lhe pergunteis por quê: todas as grandes
articulações de sua obra são atos sem defesa, é entre elas que ele dá a força
de seu pensamento. Coloquemo-nos um pouco de lado: torna-se evidente
30
9 Em 1936, Albert Camus junto a outros intelectuais fundaram o Théâtre du Travail, na cidade de Argel.
Após romper com o Partido Comunista, Camus dissolveu o teatro, que logo ressurgiu com o nome de
Théâtre de l'Equipe
32
Duros combates ainda nos esperam. Mas a paz retornará a esta terra
eviscerada e aos corações torturados por esperanças e lembranças. Não se
pode viver somente de assassinatos e de violência. A felicidade e a justa
ternura terão seu tempo. Mas essa paz não nos encontrará esquecidos. E,
para alguns entre nós, a face de nossos camaradas mortos conservem para
si essa paz que nos é prometida na noite ofegante e que eles já conquistaram.
Nosso combate será o seu. Nada foi dado aos homens e o pouco que eles
podem conquistar se paga com mortes injustas. Mas a grandeza do homem
não está aí. Ela está em sua decisão de ser mais forte que sua condição. E
se sua condição é injusta, não há senão uma maneira de superá-la, que é de
ser ele próprio justo. Nossa verdade desta noite, aquela que paira no céu de
agosto, é justamente ela a consolação do homem. E é a paz de nosso
coração, assim como era a paz de nossos camaradas mortos, poder dizer,
diante da vitória reconquistada, sem espírito de retorno nem de reivindicação:
“Nós fizemos o que era necessário”. (BOVE, 2019, p. 205)
necessários mais corpos caídos, e duas bombas atômicas, para então a ganância por
poder chegar a uma trégua. A guerra, enquanto embate bélico, chegou ao seu fim em
2 de setembro de 1945, porém o eco de seus estrondos e a poeira de seus escombros
perduraram, e nem sabemos até quando.
11 “Grata Surpresa”, pois quando fui consultar A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector, buscava
por algum texto em que a escritora tratasse do ato da escrita, mas não esperava encontrar uma
menção a Albert Camus.
12 Ernest Miller Hemingway foi um escritor norte-americano. Trabalhou como correspondente de guerra
LISPECTOR, Clarice. “Escrever para jornal e escrever livro”. IN: A descoberta do mundo, 2ª edição,
13
Orã não mais seria a cidade banal, do fluxo comercial e de cafés para se estender o
dia depois do expediente.
A barata poderia ser só mais uma entre tantas que cruzam nosso caminho, não
fosse o desconforto causado à personagem de Lispector. Assim como aconteceu com
o Dr. Bernard Rieux, médico e cidadão de Orã, que na manhã do dia 16 de abril (de
194...) sai de seu consultório e tropeça em um rato morto. O tropeço poderia ser um
prelúdio do que estava por vir, pois foi a partir desse momento que se deu o aviso da
peste que se desenharia nos próximos dias. Por ora, era um rato morto, que poderia
“passar batido”, não fosse a sensação de que aquele rato estivesse no lugar errado.
Já na rua, Rieux resolve retornar ao prédio e avisar ao porteiro, Michel, sobre o rato
morto. O porteiro negou a possibilidade de que pudesse ter um rato morto no patamar
do primeiro andar do prédio, mesmo que Rieux o garantisse, a Michel não passava de
uma impossibilidade. Não há ratos, ou no mínimo alguém trouxera da rua – em um
ato de brincadeira. No outro dia, o porteiro avisava que havia três ratos mortos.
Buscava os culpados. Na rua, Rieux deparou-se com mais doze mortos, jogados sobre
restos de legumes e trapos sujos. A partir do dia 18, os concidadãos alardeavam
centenas de ratos mortos por todos os lados. O serviço de desratização começou a
percorrer a cidade durante as madrugadas, e encaminhar os ratos mortos para o forno
de incineração de lixo para serem queimados. Porém, mais uma vez, ressalto que o
aviso – o primeiro rato morto – foi ignorado, desacreditado em significância.
38
Roland Barthes escreveu uma crítica sobre A peste, em que ele questiona se o
livro é uma espécie de reunião de anais de uma epidemia ou um romance da solidão.
O teórico aponta que antes de ser considerado um romance, A peste era uma crônica
e que as demais características que servem de roupagem para o texto acompanham
esta tipologia textual. A cidade como protagonista, o tempo presente, os fatos
narrados no limite do agora, e os detalhes corriqueiros descritos e dispostos de modo
a nos dar imagens de uma rotina comum. Imagens que vemos no dia a dia sem ser
como fatos ou acontecimentos extraordinários. Um casal que se despede em uma
estação de trem, ou ir à missa aos domingos, é tão banal como qualquer outro ato
corriqueiro do cotidiano. Porém, a crônica tem o poder de fazer com que observemos
esses detalhes, escritos como se pensados para estabelecer uma identificação íntima,
o cronista em contato com o banal/comum que cada leitor identifica em sua própria
vida.
A Peste não é um romance, é uma crônica: pelo menos era assim que se
chamava no início. Quer dizer que todos os objetos comuns do romance – o
homem, o amor ou sofrimento – são vistos através da transparência e da
distância de uma história coletiva, percorrida, porém no dia-a-dia, sem jamais
se deixar penetrar por uma significação propriamente histórica. A meio
caminho entre História e o Romance, A Peste também poderia ter sido uma
tragédia. Veremos em breve que ela preferiu ser o ato fundador de uma Moral.
(BARTHES, 2005, p.44 – 45)
escritor que tem entre suas atividades escrever romances e a prática jornalística
encontre na crônica um recurso de escrita que aproxima os tipos textuais. Relatar a
rotina da cidade, dos moradores, de um problema em comum é o insumo base ao se
escrever crônicas.
Dar nome ao deus sofrimento, assim como nas tragédias, nomear a peste é
uma forma de personificá-la ou de reconhecê-la. Nas leituras possíveis, a peste não
se restringe a uma doença, mas a um estado de dominação que pode se dar por uma
enfermidade, uma pessoa, um regime político ou qualquer condição imposta e que se
infiltra, dominando um território até que uma comunidade esteja em sua dominação,
41
medo, receio, sem horizonte e refém de uma esperança qualquer. No entanto, o bacilo
que se comporta semelhante à febre do tipo tifo, ainda está no desconhecido, é o mal
ainda sem nome, sem prognóstico e sem tratamento. Ou seja, por mais que se tenha
essa primeira interpretação de uma doença assombrosa, a peste desdobra-se em
significados.
No entanto, o mal às vezes tem um rosto humano, e isto a Peste não diz.
Defender-se da Peste é, em suma, apesar dos esforços do livro, problema de
conduta mais que de escolha. Mas defender-se dos homens. Ser-lhes algoz
para não lhes ser vítima, são coisas que começam quando a Peste já não é
apenas Peste, mas imagem de um mal com rosto humano. Dizem que a
Peste, na realidade, é o símbolo da Ocupação. Que Oran fechada nada mais
é que a França invadida. É verdade que todos os episódios do livro podem
ser traduzidos em termos de Ocupação e Resistência: os oranenses lutando
com a Peste deparam exatamente as mesmas situações enfrentadas pelos
franceses em 1942, às voltas com a ocupação nazista; a epígrafe do livro
ratifica em grande parte essa interpretação (“É [...] razoável representar uma
espécie de prisão por outra [...]”). Esse símbolo constante, o efeito de
generalização que produz, as lembranças pessoais que ativa, a familiaridade
até que mal que descreve, tudo isso torna o livro ainda mais dilacerante.
(BARTHES, 2005, p. 51)
14Em março de 2020 a edição brasileira da revista Rolling Stone publicou uma matéria com o seguinte
título: “A Peste, obra de Albert Camus, é um dos livros mais vendidos na era do coronavírus”,
disponível em: https://rollingstone.uol.com.br/noticia/peste-livro-de-albert-camus-e-um-dos-livros-
mais-vendidos-na-era-do-coronavirus/
No mesmo mês, o livro também foi reportagem do jornal A Folha de São Paulo. A matéria dá destaque
ao aumento das vendas na França e na Itália. “ 'A Peste', de Albert Camus, vira best-seller em meio
à pandemia de coronavírus”: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/a-peste-
de-albert-camus-vira-best-seller-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus.shtml
Ainda em março, a Estante Virtual publicou a listagem dos mais vendidos e A peste configura entre
os 10 títulos mais vendidos pelo site. Disponível em:
https://blog.estantevirtual.com.br/2020/03/26/livros-mais-vendidos-na-estante-virtual-em-marco/
42
A Peste é uma obra que, além de abrir diálogo com esses episódios da História da
humanidade, possibilita um debate sobre a própria condição humana frente a
elementos que comumente assustam as pessoas com a solidão, o medo, a morte, a
fé, a solidariedade, a coletividade, a ideia de segurança, de uma vida cotidiana em
que se pode prever possíveis problemas, mas que ainda estão sob um suposto
controle. Se perdemos o emprego, pode-se ir atrás de outro. Já em uma situação
sitiada, não existe a possibilidade de um outro emprego, não se sabe por quanto
tempo essa possibilidade estará suspensa. Portanto, nada mais fértil do que continuar
partindo deste livro para pensar o nosso tempo-presente.
Com isso, o questionamento sobre A Peste ser uma crônica ainda ganha o
fôlego das nuances utilizadas pelo autor para que a rotina cotidiana suspensa seja
percebida pelos leitores. Camus aponta insistentemente para o papel que o hábito
desempenha na vida de cada pessoa. Nessa perspectiva, ele nos dá elementos para
que se reflita sobre o modo como automatizamos uma rotina e a seguimos, por vezes,
por muitos e muitos anos, atrelando a ela um senso de normalidade e segurança, “as
coisas dentro de um controle”. Assim, sair deste controle torna-se amedrontador,
aterrorizante, tudo faz pensar que o melhor seria estar como era antes da ameaça.
Quando a peste se alastra há uma abrupta ruptura com todos os hábitos e costume
cotidianos, a rotina segura. Fora a perda de sentido de muito do que se tinha como
valor precioso. Se comprávamos roupas para sair, onde as usaremos? Se
guardávamos dinheiro para viajar, quando isso será possível? Se ir ao trabalho era a
principal atividade do dia, como executá-lo em um regime lockdown?
como o bacilo que tomava o corpo dos moradores de Orã sem distinguir classe social,
primeiros casos de pessoas que testaram positivo para Covid-19 aqui no Brasil foram
seja, uma classe média/classe média alta que gozava das possibilidades de um
“exílio”, outra temática muito presente desde seus primeiros escritos e que não ficou
de fora de A Peste.
Nós dividimos o tempo quando ele na realidade não é divisível. Ele é sempre
e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo E para isso criou-se uma coisa
monstruosa: o relógio. Não vou falar sobre relógios. Mas sobre um
determinado relógio. O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e
sem literatura. Este relatório é anti-literatura da coisa. (LISPECTOR, 2015, p.
494.)
ensaio Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire, Walter Benjamin nos lembra que
o spleen em que o poeta francês estava imerso ao escrever As Flores do Mal refletiam
a melancolia de quem não se identificava com a nova e moderna Paris do século XIX.
A Paris de Baudelaire é ainda aquela de uma arquitetura medieval, ruas tortuosas,
envoltas por muros e muralhas de pedras. Uma cidade de um ritmo ainda lento, até
mesmo pelo o que permite esses percursos duros e estreitos, vetados de um
horizonte. A ausência dessa Paris nos apresenta outra, as dos bulevares, largas
avenidas que nos trazem o ritmo das grandes cidades, e que - pela primeira vez - dão
a Paris um horizonte de sonhos e encantos, tal como ainda conhecemos hoje. Há uma
relação íntima de tempo calculado e o ritmo urbano.
Edgard Alan Poe, no mais que conhecido O Homem da Multidão, nos fala de
Londres e de seu ritmo urbano e fabril. O compasso dos operários andando pelas
ruas, e a forma como esses passos se apertam com o anoitecer, anunciando que o
expediente acabou e o tempo urge ao raiar de um novo dia. Poe descreve uma
sociedade composta por pessoas fechadas em seus próprios relógios e a serviços de
um cumprir. Cumprir com a jornada de trabalha, cumprir com as tarefas de casa,
cumprir com as funções de esposa, de marido, de operário, de quem está a serviço,
mercê a deum prazo, mecânico e perecível, o tempo-agora.
Referência utilizada por Walter Benjamin: Edgar Poe, Nouvelles hístoíres extraordínaíres. Traduction
15
de Charles Baudelaire (Charles Baudelaire, Ceuvres completes, vol. 6: Traductions li. Ed. Calmann-
Lévy), Paris, 1887, p. 88.
47
trabalho, bater o cartão, hora do almoço, bater o cartão para o segundo turno, pegar
a condução, ir para casa, novo dia e repete-se a rotina. Benjamin recorre a Friedrich
Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra16:
Esse acordo tácito feito em um perímetro urbano, acaba por tomar conta do
nosso tempo, o tempo de nossa existência. Esse “tempo útil” era o tempo do cotidiano
da cidade de Orã, mesmo que houvesse o “estender das horas” em um café e o
mergulho matinal no mar da costa argelina. No conto de Clarice há um paralelo entre
tempo e relógio, e nos convida a pensar o que fazemos com nosso tempo e se
estamos reféns de um relógio. Há muitas diferenças entre o tempo e um relógio. O
relógio tem estrutura, é a corda, a pilha, a eletricidade. Tem até relógio solar. O tempo,
apenas, aí está. Deixa suas marcas em nós, nos outros e nas coisas. Se o tempo “aí
está” podemos cair naquele ditado: “se não podes contra o inimigo, junte-se a ele”,
conselho para quem precisa, de imediato, sobreviver. Se não podemos contra o
tempo, precisamos utilizá-lo a nosso favor, aliar-se ao tempo:
É preciso viver com o tempo e morrer com ele, ou fugir dele para uma vida
maior. Sei que se pode transigir e que se pode viver no século e acreditar no
eterno. Isto se chama aceitar. Mas este termo me repugna e quero tudo ou
nada. Se escolho a ação, não pensem que a contemplação seja para mim
uma terra desconhecida. Mas ela não pode me dar tudo e, privado do eterno,
quero me aliar ao tempo. (CAMUS, 2014, p. 101)
16Referência utilizada por Walter Benjamin: (Friedrich Engels, Die Lage der arbeitenden Klasse in
England. Nacheigner Anschauung und authentischen Quellen [A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra. Observações pessoais e fontes autênticas]. 2' ed. Leipzig, 1848, p. 36-37.
48
Assim como Albert Camus nos adverte no ensaístico O Mito de Sísifo, assumir
o nosso próprio tempo é uma forma de assimilá-lo e, quem sabe, “fazer as pazes com
ele”, ao menos, compreendê-lo para fazer um bom proveito do tempo que nos resta.
Pois, como sabemos, o ritmo que nos dita a vida, imersos em uma sociedade em que
“tempo é dinheiro”, faz com que ao invés de o administrarmos bem, acabamos por
competir com ele, ou melhor: queremos vencê-lo. Surgem os desejos absurdos:
“gostaria que o dia tivesse 48 horas, assim eu daria conta de tudo”, ou assim se ficaria
escravo das horas por horas a mais. Nos tornamos escravos de um tempo que
criamos. E mais, não é de hoje que temos esse desejo de vencer o tempo, na Era
Vitoriana já se lutava contra o tempo e suas marcas. Esse foi o caso do jovem Dorian
Gray, sua fixação por sua própria beleza, o belo como valor mais precioso e como
motivo reverenciável: “Na dura luta pela existência, queremos ter algo que perdure,
por isso enchemos nossas cabeças com lixo e com fatos, na tola esperança de
garantirmos um lugar ao sol.” (WILDE, 2013, p. 97).
corpos e prazeres que preenchem o que resta de tempo em uma rotina qualquer. Um
resto de vida em que até o amor se rende a um ato de banalidade:
Esse amor a qualquer maneira pode nos indicar uma certa falta de sensibilidade
entre os moradores de Orã que, independentemente de optarem por relações casuais
ou duradoras, carregam consigo um certo sentimento de tanto faz. Ao que me parece,
esse pouco caso se arrasta em outros percalços da vida, quando o narrador resolve
destacar Orã como péssimo lugar para se ficar doente e para se morrer. Haveria um
bom lugar para se ficar doente? Intrigante é que o narrador destaca esse como ponto
diferencial da cidade, a originalidade de Orã é a dificuldade que se pode ter para
morrer. Para quem conta a história é como se a cidade apresentasse um desconforto
a mais para quem passa por uma enfermidade ou encontra-se à beira da morte. Isso
porque o enfermo gostaria de qualquer coisa que o confortasse. Um gesto de carinho,
um aconchego que o amparasse no momento da mazela ou em leito de morte. Esse
desconforto se concretiza pelo mesmo ritmo impresso pela rotina da cidade, que, ao
mesmo tempo em que um morre, todos os outros seguem nos cafés ou ao telefone,
falando de câmbio, notas fiscais e descontos. Orã exige de seus concidadãos boa
saúde, assim se pode gozar dos prazeres e dedicar-se aos negócios.
17Nesta dissertação optou-se por trabalhar com a tradução de Valerie Rumjanek, com 23ª edição,
publicada pela editora Record em 2017. Embora a autora desta dissertação tenha tido contato com o
original, em francês, seja estudante da língua materna de Albert Camus, e tenha tido a oportunidade
de estudar e morar no sul da França por um breve período, ela acredita que a uma dissertação
produzida em uma universidade brasileira deve ter seu conteúdo produzido em língua nacional.
Contudo, já que o universo da pesquisa e da Academia demandam um aprofundamento e
conhecimento sem fronteiras, compartilharemos em nota de rodapé as citações em língua original.
Portanto, todas as citações de A peste, estarão em versão francesa para os desejosos de assim
acompanhá-las em versão original. As citações são retiradas da edição publicada pela editora
Gallimard, de 1947. Il n’est pas nécessaire, en conséquence, de préciser la façon dont on s’aime chez
nous. Les hommes et les femmes, ou bien se dévorent rapidement dans ce qu’on appelle l’acte
d’amour, ou bien s’engagent dans une longue habitude à deux. Entre ces extrêmes, il n’y a pas
souvent de milieu. Cela non plus n’est pas original. À Oran comme ailleurs, faute de temps et de
réflexion, on est bien obligé de s’aimer sans le savoir. (CAMUS, 1947, p. 10)
50
Sveglia é burro: ele age clandestinamente sem meditar. Vou agora dizer uma
coisa muito grave que vai parecer heresia: Deus é burro. Porque ele não
entende, ele não pensa, ele é apenas. É verdade que é de uma burrice que
executa-se a si mesma. Mas ele comete muitos erros. E sabe que os comete.
Basta olharmos para nós mesmos que somos um erro grave. Basta ver o
modo como nos organizamos em sociedade e intrinsecamente, de si para si.
Mas um erro ele não comete: Ele não morre. (LISPECTOR, 2015, p. 498)
18Au demeurant, on ne doit rien exagérer. Ce qu’il fallait souligner, c’est l’aspect banal de la ville et de
la vie. Mais on passe ses journées sans difficultés aussitôt qu’on a des habitudes. Du moment que
notre ville favorise justement les habitudes, on peut dire que tout est pour le mieux. Sous cet angle,
sans doute, la vie n’est pas très passionnante. Du moins, on ne connaît pas chez nous le désordre.
(CAMUS, 1947, p. 11)
51
19Du reste, le narrateur, qu’on connaîtra toujours à temps, n’aurait guère de titre à faire valoir dans une
temps, n’aurait guère de titre à faire valoir dans une entreprise de ce genre si le hasard ne l’avait mis
à même de recueillir un certain nombre de dépositions et si la force des choses ne l’avait mêlé à tout
ce qu’il prétend
relater. C’est ce qui l’autorise à faire oeuvre d’historien. Bien entendu, un historien, même s’il est un
amateur, atoujours des documents. Le narrateur de cette histoire a donc les siens : son témoignage
d’abord, celui des autres ensuite, puisque, par son rôle, il fut amené à recueillir les confidences de
tous les personnages de cette chronique, et, en dernier lieu, les textes qui finirent par tomber entre
ses mains. Il se propose d’y puiser quand il le jugera bom et de les utiliser comme il lui plaira. Il se
propose encore… Mais il est peut-être temps de laisser les commentaires et les précautions de
52
Esta crônica chega ao fim. É tempo de o Dr. Bernard Rieux confessar que é
o seu autor. Mas, antes de narrar os últimos acontecimentos, ele gostaria, ao
menos, de justificar a sua intervenção e fazer compreender por que quis
assumir o tom de testemunha objetiva. Ao longo de toda a duração da peste,
sua profissão o colocou em condição de ver a maior parte dos seus
concidadãos e de recolher os seus sentimentos. Estava, pois, em boa posição
para narrar o que tinha visto e ouvido. De uma maneira geral, esforçou-se no
sentido de não contar mais coisas do que pôde ver, de não atribuir aos
companheiros de peste pensamentos que, afinal, eles não eram obrigados a
formular e de utilizar apenas os textos que o acaso ou a desgraça lhe tinham
posto em mãos. (CAMUS, 2017, p. 280)
langage pour en venir au récit luimême. La relation des premières journées demande quelque minutie.
(CAMUS, 1947, p. 11)
53
Rieux também não, e não somente porque perdera um amigo e uma mulher.
Esta crônica aproxima-se do seu termo. É tempo que o Dr. Bernard Rieux
confesse que é autor dela. Estará terminada a tarefa do “eu” do livro, que
assume todos os “nós”, do “um” pluralizado sem esforço visível, do narrador
constantemente ausente-presente como a própria guerra e a própria morte?
Com certeza que não: já o vemos de estetoscópio na mão, debruçado sobre
o primeiro doente de após a peste. Que lhe resta? Pouca coisa, uma vez que,
analisando as razões que o levaram a redigir esta narrativa, apenas encontra
algumas bastantes modestas: não ser daqueles que se calam, testemunhar
a favor destes pestíferos... Da sua grandeza, de sua lucidez, do seu
heroísmo? Nem sequer... da injustiça e da violência que foram vítimas.
(LEBESQUE, 1967, p. 89)
Essa distância e esse ângulo de observação nos são impostos por uma
experiência quase cotidiana. É a experiência de que a arte de narrar está em
vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar
devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma
história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos
sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 2012, p.
213)
Se bem que o relato de Rieux não era bem uma troca de experiência, estava
mais para registro de um fato inusitado – ratos mortos começaram a aparecer pelas
54
ruas da cidade – para em um segundo momento ser uma doença desconhecida, que
resultou em milhares de corpos mortos e Orã em estado de exceção por um período
que se estendeu por dez meses. Escrever poderia ser um recurso de sobrevivência,
de legado para prosperidade, mas vale lembrar que atravessar a peste – vencer o
período de exceção – não era garantia de gozar os dias ensolarados que estavam por
vir, feito um dia de domingo em que se toma banho no mar argelino. Provável que a
vida após a peste viesse a ser bem diferente do que fora a vida de então. Seja pela
ameaça de uma nova epidemia, pelas sequelas deixadas pelo bacilo, ou pelas vidas
dilaceradas. Nada fácil retomar a rotina sabendo que muitos afetos dos concidadãos
tiveram suas vidas ceifadas pela doença.
Por outro viés, quem mais viveria a situação epidêmica de forma mais lúcida e
elucidativa que o médico narrador? Rieux não só narrou a história, ele se apropriava
dela quase como um protagonista. Não fosse a vida em suspensão, restava contar a
sucessão de dias em espera e esperança. Fosse de um antidoto, um remédio ou um
instante de ópio que o livrasse da peste, um mergulho no mar. Por isso, a função de
cronista cabe ao médico, que em um cotidiano de horizonte restrito acabava por relatar
o dia a dia com o olhar que lhe cabia. Em umas passagens de A Peste lemos que
“Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. Encontram-se sempre as
pessoas igualmente desprevenidas.” (CAMUS, 2017, p. 40). O autor aproxima a
experiência de uma guerra a de uma epidemia. Nessas situações, o sentimento de
exílio e estado de exceção tomam conta das pessoas, a ausência de norte de uma
situação inimaginável, mas que se materializa frente aos olhos, com os corpos caídos
ao chão. Por mais que Dr. Rieux narre a crônica da peste, os dias em Orã foram
esvaziados em sentido, feito a ausência de perspectiva de soldados que voltam da
guerra sobreviventes, porém emudecidos.
Narrar uma guerra, ou narrar a peste é documentá-la. Talvez não seja a troca
de experiência, mas a urgência de não a esquecer. A figura do médico é esta de quem
tem uma sabedoria, um conhecimento que não é alcançado por todos, mas que pode
exercer a função de dar essa voz ao coletivo. Portanto, Rieux era quem melhor podia
ser o cronista, quem tinha sabedoria e vivência de causa para registrar a peste, para
que todos os concidadãos possam ter essa mesma memória comum. Ou seja, o
narrador Rieux também guarda esse posto de lugar comum, um concidadão de Orã.
Pois, o narrador
Ele traz consigo, de forma aberta ou latente, uma utilidade. Essa utilidade
pode consistir por vezes num ensinamento moral, ou uma sugestão prática,
ou também num provérbio ou norma de vida – de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos ao ouvinte. Mas, se “dar
conselhos” soa hoje como algo antiquado, isto se deve ao fato de as
experiências estarem perdendo a sua comunicabilidade. Em consequência,
não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar
é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está se desenrolando. Para obter essa
sugestão, seria necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que
um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua
situação). (BENJAMIN, 2012, p. 216 - 217)
entre lutar pela vida ou ser o próximo corpo a jazer em vala coletiva. O médico era
alguém mais perto da ciência com que aquelas pessoas podiam ter contato. Era quem
poderia desvendar a peste, achar uma saída. Rieux era a personificação de espera e
de esperança. Como narrador da História pelo espectro de uma crônica, ele não só
narra um enredo, como também faz parte dele e está imerso no que se é contato.
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos,
como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que
não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador infunde a sua substância mais intima também naquilo que
sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é
contar inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua
narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera
incomparável que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe
como em Stevenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo
mesmo. (BENJAMIN, 2012, p. 240)
resistência. Narrar A Peste é resistir ao flagelo. Alguém precisava tomar frente nessa
tarefa, que fosse quem a vivenciara em múltiplas faces e como testemunha.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para
morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em
desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que
nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O
doente precisa de carinho, ter algo em que se apoiar. Isso é muito natural.
Em Orã, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios, a
insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos
prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então
daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes
crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao
telefone ou nos cafés, fala de câmbio, de notas fiscais ou de descontos?
Compreende-se o que há de desconfortável na morte, mesmo nos dias de
hoje, quando ela chega assim a um lugar seco. Essas poucas indicações
talvez deem uma ideia da nossa cidade. Aliás, é necessário não exagerar. O
importante é ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias
passam sem dificuldades, desde que se tenha criado hábitos. Partindo-se do
princípio que a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer
que tudo vai bem. Sob esse aspecto, sem dúvida, a vida não é muito
emocionante. Ao menos desconhece-se a desordem. (CAMUS, 2017, p. 11)21
21Ce qui est plus original dans notre ville est la difficult qu’on peut y trouver à mourir. Difficulté, d’ailleurs,
n’est pas le bon mot et il serait plus juste de parler d’inconfort. Ce n’est jamais agréable d’être malade,
mais il y a des villes et des pays qui vous soutiennent dans la maladie, où l’on peut, en quelque sorte,
se laisser aller. Un malade a besoin de douceur, il aime à s’appuyer sur quelque chose, c’est bien
naturel. Mais à Oran, les excès du climat, l’importance des affaires qu’on y traite, l’insignifiance du
décor, la rapidité du crépuscule et la qualité des plaisirs, tout demande la bonne santé. Un malade s’y
trouve bien seul. Qu’on pense alors à celui qui va mourir, pris au piège derrière des centaines de murs
crépitants de chaleur, pendant qu’à la même minute, toute une population, au téléphone ou dans les
cafés, parle de traites, de connaissements et d’escompte. On comprendra ce qu’il peut y avoir
d’inconfortable dans la mort, même moderne, lorsqu’elle survient ainsi dans un lieu sec. Ces quelques
indications donnent peut-être une idée suffisante de notre cité. Au demeurant, on ne doit rien exagérer.
Ce qu’il fallait souligner, c’est l’aspect banal de la ville et de la vie. Mais on passe ses journées sans
difficultés aussitôt qu’on a des habitudes. Du moment que notre ville favorise justement les habitudes,
59
Mas, cá entre nós, haveria mesmo lugar ideal para ficar doente? Certo que o
narrador22 quer destacar o clima quente de uma cidade banhada pelo Mediterrâneo,
as noitadas em bares e cafés e o constante movimento de uma cidade voltada para
os negócios. Orã não está disposta a parar seu movimento natural, seu ritmo
acelerado. Por outro lado, recorrendo ao O Estrangeiro, Meursault é que não tem
muito por que se manter vivo. Era assim, para ele, a vida como uma banalidade, um
viver à toa e apático, já que “para morrer basta estar vivo” e cá está a nossa única
certeza:
Mais cedo do que outros, evidentemente. Mas todos sabem que a vida não
vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que tanto faz morrer aos trinta
ou aos setenta anos, pois em qualquer dos casos outros homens e outras
mulheres viverão, isso durante milhares de anos. Afinal, nada mais claro.
Hoje, ou daqui a vinte anos, era sempre eu quem morria. (CAMUS, 2016, p.
118)
on peut dire que tout est pour le mieux. Sous cet angle, sans doute, la vie n’est pas très passionnante.
Du moins, on ne connaît pas chez nous le désordre. (CAMUS, P. 11, 1947)
22 O leitor se depara com um grande mistério em torno do narrador de A Peste: em muitos momentos,
o narrador é evocado no enredo, porém não nos é revelada sua identidade. Com o passar dos
capítulos, o narrador se revela no personagem Rieux, o médico, personagem incógnitem toda a
trama.
60
Nesse sentido, Rieux, por ser médico, era a grande esperança para que fosse
desvendada uma possível cura. Ele – mais do que os outros concidadãos – tinha
chance de vencer a peste, além de ser a esperança dos enfermos e de seus familiares.
Mesmo sem grandes resultados com os pacientes que estavam aos seus cuidados,
era Rieux o mais próximo de uma mediação a lidar com a peste e a uma remediação
possível, junto a um fio de esperança de conseguir a cura para esse mal. A cidade
inteira queimava em febre e, feito o estado físico de quem delira enfermo e acamado,
23Il y a eu dans le monde autant de pestes que de guerres. Et pourtant pestes et guerres trouvent les
gens toujours aussi dépourvus. Le docteur Rieux était dépourvu, comme l’étaient nos concitoyens, et
c’est ainsi qu’il faut comprendre ses hésitations. C’est ainsi qu’il faut comprendre aussi qu’il fut partagé
entre l’inquiétude et la confiance. Quand une guerre éclate, les gens disent : « Ça ne durera pas, c’est
trop bête. » Et sans doute une guerre est certainement trop bête, mais cela ne l’empêche pas de durer.
La bêtise insiste toujours, on s’em apercevrait si l’on ne pensait pas toujours à soi. (CAMUS, 1947, p.
42)
61
como vislumbrar um futuro? A peste suspendia qualquer ideia de tempo futuro. Esse
desânimo diante do futuro tomava até os que lutavam com e contra a peste, assim
como o médico Rieux.
Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Números
flutuavam na sua memória e ele dizia a si mesmo que umas três dezenas de
pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos.
Mas que são cem milhões de mortos? Quando se faz a guerra, já é muito
saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se
o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história
esfumaçam-se na imaginação. (Ibidem, p. 41)24
Essa luta contra a doença se tornava ainda mais grave pela dificuldade em
identificá-la com precisão, pois ela diferia de todos os bacilos já catalogados. Buscava-
se um diagnóstico para a peste; no entanto, mais importante do que um vocábulo que
enquadrasse a doença, eram medidas urgentes que a vetassem ou algum antídoto
para a cura. A velocidade com que a peste se propagava poderia vir a matar metade
da população de Orã em menos de dois meses:
24 Il essayait de rassembler dans son esprit ce qu’il savait de cette maladie. Des chiffres flottaient dans
sa mémoire et il se disait que la trentaine de grandes pestes que l’histoire a connues avait fait près de
cent millions de morts. Mais qu’est-ce que cent millions de morts ? Quand on a fait la guerre, c’est à
peine
si on sait déjà ce qu’est un mort. Et puisqu’un homme mort n’a de poids que si on l’a vu mort, cent
millions de cadavres semés à travers l’histoire ne sont qu’une fumée dans l’imagination. (CAMUS, P.
43, 1947)
25 Il s’agit d’une fièvre à caractère typhoïde, mais accompagnée de bubons et de vomissements. J’ai
pratiqué l’incision des bubons. J’ai pu ainsi provoquer des analyses où le laboratoire croit reconnaître
le bacille trapu
de la peste. Pour être complet, il faut dire cependant que certaines modifications spécifiques du
microbe ne coïncident pas avec la description classique. (CAMUS, 1947, P. 54)
62
coletivo em que não se podia mais ir ou vir, o exílio era um toque de recolher em
aguardo do fim da peste. Dia sim, dia não o governo anunciava alguma nova medida
para tentar fazer com que a peste não se alastrasse para as cidades vizinhas,
ganhando ainda mais força e agravando a catástrofe.
26Mais une fois les portes fermées, ils s’aperçurent qu’ils étaient tous, et le narrateur lui-même, pris
dans le même sac et qu’il fallait s’en arranger. C’est ainsi, par exemple, qu’um sentiment aussi
individuel que celui de la séparation d’avec un être aimé devint soudain, dès les premières semaines,
celui de tout un peuple, et, avec la peur, la souffrance principale de ce long temps d’exil. (CAMUS,
1947, p.71)
63
Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o
exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de
todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que
muitos dos nossos concidadãos. Sim, era um sentimento de exílio esse vazio
que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo
irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo,
essas flechas ardentes da memória. (CAMUS, 2017, p. 71)27
27Ainsi, la première chose que la peste apporta à nos concitoyens fut l’exil. Et le narrateur est persuadé
qu’il
peut écrire ici, au nom de tous, ce que lui-même a éprouvé alors, puisqu’il l’a éprouvé en même temps
que
beaucoup de nos concitoyens. Oui, c’était bien le sentiment de l’exil que ce creux que nous portions
constamment en nous, cette émotion précise, le désir déraisonnable de revenir en arrière ou au
contraire de
presser la marche du temps, ces flèches brûlantes de la mémoire. (CAMUS, 1947, p. 75)
64
Agamben (2009) nos fala que um homem pode odiar seu tempo, mas deve
saber que não pode fugir dele. Meursault assume uma postura de contradição, pois
mergulha nos riscos de seu próprio tempo, assume os riscos de sua postura
antagonista e de anti-herói e – ao mesmo tempo – é essa figura questionada, seja por
Marie, pelo delegado ou pelo religioso. Como viver como Meursault em um tempo
único, de única ética e junto à moral de assumir o absurdo como própria condição de
vida? No rastro de Agamben, podemos encontrar uma possível resposta – ou
conformidade – a essa questão:
Esse saber olhar o tempo é que difere Meursault e o próprio Rieux de outros
personagens e até mesmo de nós, leitores. O estrangeiro assume a condição que lhe
é dada sem pestanejar ou reivindicar; ao contrário do que fez por vontade própria, ele
assume seus riscos e dissabores em viver. Já Rieux assume um papel que
naturalmente é dado a ele: atribuímos a um médico a esperança de cura. Assim, ele
também exemplifica que sabia ter tal relação singular com o próprio tempo. Certo que
este tinha uma vantagem: era médico. Cabia a ele saber lidar com a peste e ser
Não é de hoje que temos esse desejo de vencer o tempo: na Era Vitoriana já se lutava contra o tempo
28
e suas marcas. Esse foi o caso do jovem Dorian Gray, com sua fixação por sua própria beleza, o belo
como valor mais preciso e como motivo reverenciável: “Na dura luta pela existência, queremos ter
algo que perdure, por isso enchemos nossas cabeças com lixo e com fatos, na tola esperança de
garantirmos um lugar ao sol” (WILDE, 2013, p. 97).
66
invencível a ela. Conviver com a peste, no caso de Rieux, era coabitar com ela na
constante eminência de ser o próximo enfermo. Porém, quando os dias são apenas
uma sucessão de dia e noite, a esperança é de que em um novo amanhecer em uma
nova estação o vento tenha carregado consigo a atmosfera pesada da peste.
O dilema do tempo presente também é companheiro de quem se encontra
preso. Com sua liberdade suspendida, por conta do crime que cometera, Meursault
deparava-se novamente com o questionar o tempo e sua imprecisão. Como pode o
mesmo tempo ora ser acelerado, ora ser passivo? Na prisão, sabe-se de um novo dia
pelo intervalo feito por uma noite, a ausência de horizonte é tão forte quanto a de um
futuro:
Vejo agora, que em seu íntimo não arde uma centelha sequer de
talento literário.
Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu
primo digno e paralítico, ou seja, um olho!
Um olho que realmente enxergue! (HOFFMANN, 2010, p. 16)
A amizade entre Camus e Sartre foi marcada pelas diferenças entre os dois
escritores. O primeiro, longe de ser vistoso aos olhos, trazia consigo algo que ainda
assim seduzia. Todos os intelectuais dos anos 40 queriam ser notados por Sartre,
participar das noitadas em cafés parisienses ou, em melhor oportunidade, receber um
convite para uma recepção em sua residência. Quem não queria ter o reconhecimento
de um renome ou de ter a chance de efetivar-se nas cátedras filosóficas francesas
como um de seus discípulos? Tudo isso poderia ser um grande cartão de visitas, uma
conquista de algum lugar ao sol, e a sensação de ser aprovado pela crítica e pelos
demais intelectuais que, dificilmente, iriam se opor a ele. Além disso, eles tinham
traços de personalidade marcantes e que, com certeza, perpetuaram características
em seus escritos. Podemos imaginar, por exemplo, que Sartre considerava que tinha
achado suas respostas, elaborado sua filosofia, atribuído a sua interpretação à vida,
ao mundo e às coisas. Enquanto Camus não, e é bem provável que não as
encontrasse. Por isso, ele era um contínuo, um aceitar essa vida como ela se
apresenta. Para Camus, o mistério da vida era uma batalha constante para se
encontrar uma verdade eternamente esquiva, mas que persistia em o convidar a
tentar, mais uma vez, dar crédito à vida, a esperá-la.
No cenário após a Segunda Guerra Mundial, o mundo acompanhou uma nova
polarização ideológica frente à Guerra Fria. Esse período, que nos livros escolares
compreende de 1947 a 1991, apontou dispersões de imediato. A ressaca de um pós-
guerra não foi o suficiente para que o desejo por poder chegasse a atos extremos por
essa conquista e muitos corpos ao chão pelo caminho. Na classe intelectual, a Guerra
Fria também deixou marcas. Nesta pesquisa, seria difícil não mencionar a famosa
discórdia entre Jean-Paul Sartre e Albert Camus. O posicionamento “de esquerda”,
neste contexto, foi o elemento principal que culminou no fim dessa amizade. As
68
Sartre achava que tinha achado suas respostas; Camus não, e talvez nunca
encontrasse. Para Camus, o mistério da vida era uma batalha constante, uma
luta contínua para encontrar uma verdade eternamente esquiva, mas que
sempre o convidava a tentar mais uma vez. (MUMMA, 2005, p. 82)
69
Camus pagou caro por manter-se em par com seus próprios ideais. Talvez,
fosse mais fácil compactuar e posicionar-se consoante com o Partido Comunista
Francês. Possivelmente, ele estaria evitando o desgaste que teve no campo
intelectual, não seria questionado quanto as suas atitudes e posturas políticas, não
teria sido considerado “de direita” ou “social-democrata”, nem como “quem virou as
costas para os companheiros de causa”. Paga-se caro sempre que se toma um
posicionamento menos popular, ou que vai de encontro com o que pensa líderes tão
expressivos, como era Sartre para o meio acadêmico e intelectual. Porém, para o
argelino ainda valia mais rejeitar a violência.
Camus aguardava a crítica de Sartre a sua mais nova publicação, mal sabia ele
que O homem revoltado ficaria registrado como o fim de sua amizade. Na época, a
crítica negativa sobre o conteúdo deste livro circulou não só em crítica literária, mas
foi o comentário entre os demais intelectuais e até motivo para burburinho de
expectativa quanto a uma reaproximação entre o francês e o franco-argelino, o que
não aconteceu. No dia 05 de janeiro de 1960, um dia após o acidente de carro fatal
que resultou na morte de Albert Camus, Jean-Paul Sartre publicou uma carta em que
falava sobre o amigo de outrora. Abaixo o primeiro parágrafo, em tradução de Jorge
Luiz Gutiérrez. A carta na íntegra está disponível nos anexos.
incapacidade dos outros do que por alguma falha de quem jazeu. Melhor pronunciar-
se que amargar qualquer culpa por não ter demonstrado qualquer elogio lutuoso após
a morte do célebre, um dia, amigo.
73
“[...] ninguém vê as coisas como elas são, mas como seus desejos e seu estado de espírito
o fazem ver.”
(Luiz Buñuel)
29 O Partido Comunista da União Soviética (PCUS) foi o partido político fundador e governante da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Até no ano de 1990, foi o único partido permitido por
lei dentro da União Soviética. O partido foi fundado no ano de 1912 pelos bolcheviques, liderado por
Vladimir Lenin, que ascendeu ao poder após a Revolução de Outubro de 1917. O partido foi dissolvido
no dia 29 de agosto de 1991 em território soviético e, após uma tentativa de golpe de Estado, no dia
6 de novembro de 1991 em território russo.
74
30Bloch foi morto pela Gestapo durante a ocupação alemã da França, na Segunda Guerra Mundial, e
Febvre seguiu com a abordagem dos Annales nas décadas de 1940 e 1950. Nesse período, orientou
Fernand Braudel, que se tornou um dos mais conhecidos expoentes dessa escola. A obra de Braudel
definiu uma segunda geração na historiografia dos Annales e foi muito influente nos anos 1960 e
1970, especialmente por sua obra de 1946, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de
Felipe. A terceira geração dos Annales é conduzida por Jacques Le Goff e ficou mais conhecida como
a Nova História, segundo a qual, toda atividade humana é considerada história. Além de Le Goff,
nesse período se destaca Pierre Nora.
75
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. (1)
(MARX, 1978, p. 329)
31
Vale lembrar que Walter Benjamin partia de uma perspectiva judaico-cristão. No paralelo com contexto
presente, a oposição religiosa que trazemos é a uma perspectiva neopentecostal.
76
Na carta, Engels evidencia o olhar plural para a História, mas ainda embebido
de uma atmosfera progressista e positivista de registro dos fatos. Outros pensadores
de referência do século XX visitaram o conceito de Materialismo Histórico
mencionado, como Antonio Gramsci e Hannah Arendt. Assim como Camus, Gramsci
também tinha uma percepção comunista de mundo, e teve suas contradições em seu
percurso enquanto esquerdista em meio ao século XX. Apesar de ter tido a intenção
de fundar um Estado aos moldes do soviético na Itália, como alternativa ao fascismo
de Mussolini, o filósofo também não estava em total acordo com a proposta de
governo de Lênin, e, muito menos, compreendia o Estado como mera aplicação total
da força sobre os indivíduos, como foi o Estado totalitário imposto pelo regime
stalinista. O teórico italiano estava em uma espécie de meio termo, visando um
caminho entre a força e o controle de um governo, embora vinculado ao comunismo.
Por outro caminho, mas também nesse campo de ideias, Hannah Arendt voltou
suas pesquisas e escritos ao estudo do totalitarismo. A partir do legado totalitário de
Adolf Hitler, Benito Mussolini e Josef Stalin, a teórica Arendt relacionou partes das
preleções revolucionárias apontadas por Karl Marx ao que vivera na prática. Como a
perseguição nazista que sofreu durante o governo de Hitler, chegando a ser presa e
a fugir para os Estados Unidos da América. Com a bagagem de quem sentiu na pele
os feitos de um regime totalitário, conseguia problematizar com clareza os problemas
de governos ditatoriais, independente de qual abordagem e premissa esse governo
teria para justificar a sede pelo poder.
Em partes, o totalitarismo nasce do projeto de poder centrado em uma ideia de
Estado forte e antidemocrático levado às últimas consequências como formar um
inimigo a ser combatido, mesmo que esse embate – a princípio ideológico –
transforma-se em embate bélico, em que vidas não são poupadas para que se chegue
ao poder e que se mantenha nele. E é nesse questionamento quanto ao poder pelo
poder e, principalmente, quanto a vidas perdidas para que se chegue a esse campo
77
de força, que Camus se aproxima das ideias de Gramsci e Arendt. Camus não poderia
admitir que a maldade do homem pudesse ser utilizada para um bem comum, como
caminho para um mundo mais igualitário e de oportunidades. Portanto, contradizer-se
enquanto esquerdista estava em voga por conta de uma perspectiva de grupo, de que
lado se está, mas não quanto a uma visão sobre em que mundo se acredita.
Definitivamente, não era o mundo do “matar pelo bem coletivo” o lado em que Camus
se enveredava. Em Origens do totalitarismo, Hannah Arendt nos apresenta um
extenso estudo em que mapeia o Antissemitismo, o Imperialismo, até chegar no
Totalitarismo, ao se referir aos regimes totalitários vigentes na Europa do século XX,
a teórica e filósofa diz:
O jogo de xadrez tem o seu circuito de regras próprias, em que vence quem
conseguir – estrategicamente – derrubar mais peças do adversário. Não importa o
tempo de embate, mas sim o raciocínio do jogador e, até mesmo, a sua capacidade
de prever as próximas rodadas. O enxadrista lança os passos pelo tabuleiro, como
acontece em um combate bélico. Um passo em falso, o jogo pode ser dado a perder,
em um repente pode haver xeque mate. Contudo, dentro da lógica do Materialismo
Histórico matar e morrer define bem quem está de que lado, provavelmente, e ouve-
se falar de quem matou de forma heroica. Para Camus, a vida não pode ser uma peça
de um jogo de xadrez. E no caso da história, nela vai constar o vitorioso
independentemente de que lado represente. Benjamin destacou a figura do espelho,
que confunde o tabuleiro de xadrez num jogo de imagem. O espelho embaralha as
peças e os lados. Contudo, se a estratégia é derrubar vidas, tanto faz de que lado elas
pertencem. Considerar a História é não esquecer das vozes que foram silenciadas.
Além disso, o espelho é um grande símbolo da representação, pois ele indica
o “ser” e o “não ser” ao mesmo tempo. Quando estamos diante do espelho, nos
deixamos iludir pela imagem refletida, mesmo sabendo que ela é falsa. Podemos crer
79
O passado traz consigo um index secreto que o remete para a redenção. Não
passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de
nós? Não é a voz a que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas? As
mulheres que cortejamos não têm irmãs que já não conheceram? A ser
assim, então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a nossa.
Então, fomos esperados sobre esta Terra. Então, foi-nos dada, como todas
as gerações que nos antecederam, uma tênue força messiânica a que o
passado tem direito. Não se pode rejeitar de ânimo leve esse direito. E o
materialismo histórico sabe disso. (BENJAMIN, 2018, p. 10)
Portando, “não dar bola para a História”, no sentido de não a legitimar como
versão fidedigna dos fatos ocorridos, é não esquecer das vozes que foram silenciadas.
Camus sabia que a História, nas mais frequentes das vezes, é contada pelo homem
80
e eurocêntrico, branco, visto como vitorioso, mesmo que essa glória derive de sangue
e fracasso de outros povos. Albert Camus estava acostumado a ter outros olhares
para a História, percebê-la em outras perspectivas, para além da teoria e de uma
filiação partidária. Por mais que ele tivesse por um tempo se aliado ao Partido
Comunista Francês, sabia que o olhar para as injustiças do mundo independe de uma
bandeira que se levante. Morvan Lebesque reservou a Albert Camus o lugar de quem
exercita um olhar para a História com uma lâmpada bem direcionada, para perceber
as nuances e detalhes que poderiam (ou costumam) não ser revelados.
Ler Lebesque em 2021 faz com que pensemos como seu ensaio sobre Camus
é atual e lúcido, pois continuamos considerando o autor um mestre que aproveita a
atividade da escrita para dar luz ao lado dos fatos que, na maioria das vezes, a História
não dava conta de contemplar, na maioria dos casos pelo próprio formato arquitetado:
uma história eurocêntrica, escrita por brancos, que venciam todos os embates. Boa
parte desses europeus “vencedores “eram das classes dominantes da sociedade, ou
seja, dos clãs renomados, muitas vezes relacionados diretamente com postos de
governo, ou de influência social (fosse pela fortuna que detinham ou tradição que
representavam). O ensaísta se espanta com a possibilidade de uma cidade “em pleno
século XX” vivenciar uma pandemia. Mas, como leremos em Michael Löwy no próximo
subcapítulo, a própria modernidade possibilita e instrumentaliza que epidemias
aconteçam.
Como pode declarar-se, em pleno século XX, uma epidemia como a peste
numa cidade tão moderna? O que eles ignoram é que o vazio dos dias em
Orã, essa paz inútil, ou melhor inutilizada, chamava, com efeito, a peste. Os
habitantes de Orã não tinham sequer consciência da felicidade de viver: a
peste vai-lhes ensinar a infelicidade de morrer. (LEBESQUE, 1967, p. 82)
81
Não fosse mera coincidência descritas por Morvan Lebesque, o crítico ainda
denuncia uma situação bem familiar ao contexto do nosso tempo-agora. Não baste
termos o registro de mais de 400 mil mortes por Covid-19 oficialmente registradas no
Brasil. Ainda nos deparamos com a negação do vírus e de sua letalidade. O trecho
abaixo faz com que recordemos tantas falas ouvidas, atitudes testemunhadas de
pessoas que ainda não se deram conta da gravidade que é vivenciar uma pandemia,
com uma doença em que a ciência ainda não mapeou prognóstico e tratamentos.
Mas se Orã se quer embalar com a ideia de uma febre inofensiva, o resto do
mundo, que escapa ainda do flagelo, está bem decidido, no que lhe diz
respeito, a chamá-lo pelo verdadeiro nome. Assim, numa manhã, a cidade é
declarada de quarentena. O estado de sítio é proclamado. Orã encerra-se,
tornando-se um vaso fechado. (LEBESQUE, 1967, p. 83)
Não há como preparar-se para viver um estado de exceção, mas negar todos
os avisos de que algo está errado, fechar os olhos para a gravidade disso faz só
contribuir para que a situação se alastre e se agrave, restringindo horizontes e
alimentando o desejo para um retorno a vida em segurança e suposta normalidade.
Uma rotina morna, circundada pelo horário comercial.
Assim como Benjamin e Löwy, Camus exercitava o olhar para o hiato formado pelo
materialismo histórico, por mais que este incluísse aspectos individuais do homem e
seu contexto socioeconômico e psicológico, ainda assim, não considerava o poder de
desruptividade da História. Perceber para além das ausências que esse sistema
promovia. O olhar para o que falta, para o que não está na História para além da
interpretação primeira de retroalimentação e permanência no poder. O que o
materialismo histórico não dava conta saltava aos olhos de Camus, ou melhor, era o
modo como podia ver história, sua lente sobre o mundo. Não há registros de que
83
32
Mmencionada na página 78 desta dissertação.
84
Talvez, com as discussões recentes que estamos tendo sobre nosso próprio
contexto político e social, relembrar o que foi a Segunda Guerra Mundial se torne mais
importante pelas memórias semelhantes e o pensamento de como sobreviver frente
às ruínas, assim como podemos pensar sobre o nosso Museu Nacional. Certo que
sempre nos chocamos com o que líamos nos livros de História, mas nunca pudemos
sentir o cheiro de cinza tão de perto quanto o sentimos no momento em que o Museu
se pôs em chamas. Isso evoca o que antes, como brasileiros, teorizávamos, mas não
sentíamos: o pavor de uma nova onda fascista, o eco da guerra, o que não
aprendemos com o passado, o que julgávamos distante e “história do outro”. Porém
Susan Buck-Morss, em Presente do passado, nos relembra e alerta:
Ao passo que a imagem retorna e volta a ser fugaz, isso faz com que pensemos
no conceito de transitoriedade de Walter Benjamim, uma vez que, assim como “[...] é
só de passagem que a verdade está disponível para nós. Sua imagem é sensível ao
tempo. Não é que a verdade mude. Nós mudamos”33. Benjamin nos alerta que a
história sempre se apresenta de forma alegórica, como uma ruína que não podemos
apreender por completo por um único olhar, pois
Assim, a história pode ser contada a partir do olhar que se lança sobre ela. Por
isso, para além de uma memória escolar e/ou coletiva, a história não cessa de
retornar. Já demos de cara com ela antes e esse movimento de passagem ressurge,
nos interpela, nos coloca no mesmo lugar de Angelus Novus34 a pensar o tempo.
Recentemente, foi lançada a tradução A imagem queima, de Didi-Huberman, feita por
Helano Ribeiro, em que podemos conferir o prefácio escrito por Raul Antelo,
História(s): a arte arde, em que nos lembra que as imagens
Era preciso sobreviver diante da guerra, era preciso se acostumar com a ferida
aberta. Como Georges Didi-Huberman nos fala, estar diante de uma imagem é estar
diante do tempo. Temos, ao menos, dois tempos nessa experiência: o tempo da
imagem e o tempo de que a observa. Por isso, a imagem é sempre dialética, isto é,
34 Desenho de Paul Klee, referência no ensaio de Walter Benjamin: “Sobre o conceito de história”.
Angelus Novus é considero o anjo da história.
35 Idem (p. 33).
86
Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente isto: que
ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de
passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da
duração [durée], A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro
que o ser [étant] que a olha. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 16)
Se ele souber como despertar os laços afetivos da família, nos indivíduos das
massas, ele será também uma figura do pai autoritário. Ele atrai todas as
88
atitudes emocionais que foram num dado momento devidas ao pai, severo,
mas também protetor e poderoso (poderoso na visão da criança). (REICH,
1988, p. 57)
“O alegórico aponta para o outro, para um sentido mais além: ele não é apenas ele mesmo,
mas também não é apenas o outro que o nega e no qual ele se afirma.”
(KHOTE, 1986)
Cada personagem e cada enrede contado por Albert Camus, em dada medida,
pode ser visto como um Homem Absurdo. Essa persona em um contexto
desconcertante. Alguém em constante montagem e remontagem interior ou, até
mesmo, social. O Homem Absurdo é aquele que está de frente para os percalços da
vida e, diante deles, opta por “viver apesar dele”. Essa trilha, muitas vezes, é cheia de
tons de dourados, feito o sol argelino. O Homem Absurdo recorre ao sol, como que
suplica um instante de paz.
As cores e elementos da natureza são recorrentes nas obras de Camus. Os
personagens centrais das histórias contadas por ele costumam recorrer ao sol, ao
campo, ou ao mar para terem um reencontro consigo, a reconexão com sua essência
ou intervalo no tempo de caos, como fez o médico Rieux, que se permite a nadar na
companhia silenciosa do amigo Tarrou, os dois permitiram-se a quebra de protocolo
e em uma manhã, ainda antes do sol raiar, nadaram na mar da costa argelina, em
silêncio, feio um segredo de uma amizade, uma breve fuga da peste.
O sol, para Camus, é o tempo natural, portanto, o Homem Absurdo é aquele
que aceita a vida como ela é. Vive o tempo presente, pois é o horizonte restrito de um
agora que se pode “ter a vida”. Ao encarar a passagem do tempo com naturalidade,
também se encara com naturalidade os acontecimentos mais duros de nossas vidas.
Não em resignação, mas por saber que os dias de sol são tão necessários quanto os
nublados.
91
Eis o objetivo do homem absurdo: ser lúcido até o fim juntamente com a
natureza. O absurdo da vida de Meursault vem sempre acompanhado com o
prazer que o sol oferece. O sol, o mar e o verde são motivos de felicidade
para o homem absurdo que precisa viver o presente sem se refugiar na
esperança ou no divino. Para ele, não há salvação. Sua felicidade está em
seu presente. Fazer parte da natureza e viver como se o homem fosse uma
extensão dela é uma forma de felicidade neste mundo. (SILVA, 2013, p. 41)
Ser o Homem Absurdo é ser aquele que sabe que não dá para fugir desta
condição. Aceitar a vida assim como ela é, é aceitar a natureza das coisas. Por isso,
Meursault, o homem estrangeiro, aceita o tempo presente com naturalidade, o seu
tempo é o mesmo do sol, o tempo natural. Incorporar-se à natureza é estar nessa vida
como ela nos é dada. Em meio aos absurdos da vida, o sol faz que se possa crer em
um novo amanhã, um continuar. Quem nunca expressou seu sentimento de
admiração ou de espanto com um sonoro “isso é um absurdo!”. O absurdo é aquilo
que foge do nosso senso de normalidade ou, pelo menos, do que podemos considerar
admissível. Não expressar emoção a morte da própria mãe, ser indiferente a um
pedido de casamento, ser réu confesso e não interceder em sua própria defesa são
atitudes (ou ausência de atitude) que podem ser vistas como absurdas. Ter uma
cidade inteira acometida por um bacilo desconhecido ou, em nosso contexto atual,
vivenciar uma pandemia de um novo vírus. No contexto político atual, acompanhar
uma nova onda conservadora no Brasil e no mundo. O que não faltam são exemplos
de casos em que a palavra “absurdo” cai como um adjetivo que contempla a situação
por completo, além do poder de síntese, já que depois que se fala “Isso é um
absurdo!”, não se precisa mais dizer muita coisa.
Recorro ao já conhecido, Meursault, de O Estrangeiro. O personagem mais
conhecido de Camus poderia ser a versão romance do ensaio O Mito de Sísifo. Ele
se encaixa perfeitamente nesse contexto que nos aparece tão estranho, até
desconfortável. Meursault é o Homem Absurdo. O mito de Sísifo e O estrangeiro são
produções de Camus que caminham juntas. Se na primeira ele ensaia sobre o seu
conceito de absurdo, na segunda ele molda o personagem principal feito a
personificação do absurdo. Neste caso, sugere-se a leitura de que a possível pessoa,
Meursault, é a personificação do absurdo, ou seja, uma alegoria do absurdo.
Conceituar alegoria não é exatamente uma tarefa fácil, por isso, recorrer a etimologia
92
da palavra, talvez, seja uma forma de elucidarmos um sentido possível para este
termo, assim como nos explica João Adolfo Hansen, em Alegoria – construção e
interpretação da metáfora:
Hansen (2006) resume alegoria com “diz b para significar a”, no entanto, na
prática, sabemos que para “b” dizer “a” não se trata de uma leitura linear. Há um
pequeno infinito entre “b” e “a”, fazendo-se necessário um olhar atento para notarmos
que os dois elementos possuem a mesma sombra. Por isso, quem percorre os escritos
de Albert Camus pode, com mais facilidade, perceber que esses recursos estavam
presentes em suas obras, seja em O estrangeiro, com Meursault como alegoria do
Absurdo, ou em A morte feliz, com o outro Mersault em busca de si pela experiência
com o outro, ou em A peste, em que a infiltração de “um mal” acomete a cidade de
Orã por inteira. Esse mal pode ser a doença, como pode ser um governo autoritário,
que domina a população permeando medo, insegurança, espera por uma solução
milagrosa, desejo por dias melhores, ater-se a autoridades que representam alguma
possibilidade de “controle” ou “segurança”, a esperança na figura de um padre ou do
médico. Hansen nos diz, ainda, que existe a alegoria retórica e a alegoria
interpretativa: a retórica está no ato do ator (ou cineasta ou demais artistas) em
construir a alegoria, enquanto a interpretativa fica por conta de o leitor perceber os
elementos que compõem essa alegoria a partir da análise do que lhe parece familiar,
os “lugares comuns” presentes na obra alegórica:
Por isso, frente a um texto que se supõe alegórico, o leitor tem dupla opção:
analisar os procedimentos formais que produzem a significação figurada,
lendo-a apenas como convenção linguística que ornamenta um discurso
próprio, ou analisar a significação figurada nela pesquisando seu sentido
primeiro, tido como preexistente nas coisas, nos homens e nos
acontecimentos e, assim, revelado na alegoria. (HANSEN, 2006, p. 9)
93
A Peste, feito uma crônica que relata o tempo presente, deu a Orã um horizonte
restrito ao agora. No entanto, ao ler A Peste tem-se ao menos um tempo duplo, e a
infinidade de multiplicidades. Feito Angelus Novus37, o anjo da história que tem um
olho virado para o passado e o outro para o presente – ou para o que está por vir –
Benjamin nos apresenta em Origem do drama trágico alemão esse olhar dialético,
essa forma de ler uma obra para além do que nos é posto, destrinchá-la, lançar um
movimento a contrapelo. A partir dessa tese benjaminiana, podemos repensar a forma
de ler uma obra, em suma, as ricas em alegorias e desdobramentos. O estrangeiro
Meursault nos insulta com suas escolhas de vida. Tira-nos o sossego em sua falta de
expressão emocional e apatia à vida, cada vez que ele não corresponde ao código
social normalizado, a grande maioria dos leitores se questiona o porquê de a
personagem ter tal comportamento.
O absurdo recusa a esperança, ao passo que ela nos prende a um futuro que
nem sabemos se ocorrerá. Projetar a nossa vida para um amanhã, de certa forma,
priva-nos de viver em plenitude no tempo em que nos encontramos. Em uma vida sem
esperança, o homem somente pode se ater ao que tem de fato e nas consequências
imediatas de suas ações.
Não existe a meu ver imagem mais tocante que a do cego com a
cabeça elevada como se estivesse mirando o firmamento. Os crepúsculos
da vida se puseram para a luz eterna, que brilha no além plena de consolo
esperança e bem-aventurança. (HOFFMANN, 2010, p. 42)
Camus toma cuidado de não fazer palavra alguma vibrar, por temor de
mobilizar simultaneamente, contra a sua profissão de fé, as ilusões
adormecidas e os desesperos não vencidos. Termos jurídicos, termos de
arquitetura: o absurdo é um divórcio entre o espírito que deseja e o mundo
que decepciona, esse espírito e esse mundo escorados um ao outro sem
poderem se abraçar. Parece que escutamos um médico que, diante de um
doente muito febril, procurasse dosar a sobriedade, que desencoraja os
nervos, e a credulidade que os sustenta. (MOUNIER, 1972, p. 65)
99
No diálogo entre filho e mãe, há um jogo de palavras que brinca com o sentido
de “esperança”, o inseto ou a esperança na vida. O menino descreve o inseto como
burro, talvez cego, guiado por impulsos e sentimentos incontroláveis. É a sua antena
que a serve de GPS. Outro ponto que ele interpreta como demonstrativo de pouca
inteligência do inseto, é que, mesmo após tentativas fracassadas, ele continua
persistindo em um caminho errante. No conto, surge uma aranha, uma ameaça,
100
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta,
pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente
que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não
mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada
fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim.
Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu
nada. (LISPECTOR, 2016, p. 413)
crítico refresca a memória pela filosofia que Camus defendia de que não se tem como
fugir dos absurdos da vida. E que, por mais atrocidades e fatos incompreensíveis nos
aconteçam, há ainda uma eterna juventude humana em ter esperança.
Curioso Mounier destacar que o homem honesto é aquele que não infecta
ninguém. O autor parece descartar de quem tem o desejo pelo poder como ação de
controle como alguém provavelmente desprovido de honestidade. Nos jogos de poder,
como já mencionado nesta dissertação, os atos não são feitos pelo senso de justiça,
mas sim pelo senso de dominação e que, muitas vezes, para se chegar ao domínio
comete-se barbáries, como falamos sobre “matar para um bem maior”, entre outras.
O médico é o que se tem de mais próximo de um tratamento para o bacilo
desconhecido, um alívio imediato para a dor, a chance de estancar as bolas de pus,
baixar a febre, vetar que a doença se alastre até que se contabilize mais um óbito,
mais um corpo para a vala comum, já que o necrotério e o cemitério não comportavam
mais corpos, desde que o sistema funerário havia colapsado, e restava aos que
entravam na estatística de mortos pela peste a vala comum. Amontoados de corpos
manobrados pelo maquinário que abria valas e os enterravam.
A consciência utópica quer enxergar bem longe, mas, no fundo, apenas para
atravessar a escuridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido,
em que todo o devir [Seinde] está à deriva e oculto de si mesmo. Em outras
palavras: necessitamos de um telescópio mais potente, o da consciência
utópica afiada, para atravessar o imediatismo mais imediato, em que reside
o cerne do encontrar-se e do estar-aí, no qual está simultaneamente todo o
nó do mistério do mundo. (BLOCH, 2005, p. 23)
102
Vale retomar o jovem Camus, o nascido na colônia francesa e que chegou aos
bancos escolares ao abraçar as oportunidades que surgiram em seu caminho. Foi
uma vida de resistência, seja pela infância pobre, pela mãe enferma, o pai morto em
guerra, uma bolsa de estudos. Um caminho feito de resiliência, um drible aos
percalços da vida. Camus poderia não ser o romancista mais vendido, ou o filósofo
mais aclamado pela academia francesa, mas em uma coisa ele triunfava frente às
críticas que recebera de Sartre e Jeanson, o papel que desempenhou na Resistência,
como fala Roland Aronson (2007, p. 270), pois comparado ao deles que “não
ofereceram nada de útil para os que buscavam orientação moral e política durante a
Ocupação”. O crítico lembra a situação em que Albert Camus recebeu severas críticas
da nata intelectual francesa, quando lançara O Homem Revoltado, livro mais
conhecido por ter ocasionado a ruptura da amizade Camus e Sartre, mais do que pelo
seu próprio conteúdo.
O pied-noir foi expulso por quem lhe abriu as portas de Paris; o escritor
reticente fora exposto publicamente e destroçado por alguém capaz de dizer
e mandar imprimir qualquer coisa; o anticomunista inseguro a respeito de seu
público fora desprezado por intelectuais de esquerda; o emergente
provinciano foi satirizado pelos mandarins, devido à sua educação de
segunda categoria e sua preguiça intelectual. As histórias que ele conseguiu
esboçar em 1954 e 1955 falam de traição, isolamento, sofrimento intenso, de
viver num aquário, de esterilidade artística. Sua história mais perturbadora,
“O renegado ou um espírito confuso”, descreve um intelectual “progressista”
– lembrando talvez Sartre, mas talvez também ele próprio -, um missionário
na África do Norte que tem a língua arrancada pelos nativos que ele viera
salvar. Em “Jonas ou o artista no trabalho”, a última tela do artista contém
uma única palavra, tão pequena que não se consegue identificar se é solitaire
ou solidaire. Como vai acabar o artista – totalmente só ou em solidariedade.
(ARONSON, 2007, p. 270)
Camus já era “menos” que qualquer intelectual de sua época pela condição
intrínseca que carregava de pied-noir, após as críticas e à ruptura com os intelectuais
franceses, ele seguiu produzindo, escrevendo, resistindo. Desdobrou-se para além da
crítica, fazendo de seu ofício um ato de resistência, a espera de uma nova manhã
ensolarada. Talvez, em muitos momentos, sentia-se em luta sozinho, mas os ideais
costumam guardar uma coletividade, mesmo que a voz que se escute não ressoe
retumbante, ora em sussurro, ora em berro de resistência, o contraponto Camus
103
seguia em busca e espera, sem resignação e sem estagnação. Ele sabia que é da
natureza do homem estar imerso nas adversidades.
Aceitar o absurdo como condição inerente ao ato de viver não significa ser
conivente com ele. O absurdo modera como podemos nos relacionar com os fatos da
vida. Ficar preso à ideia de um “futuro melhor” também pode compreender um
absurdo. Se o tempo em que se espera por um “por vier” for em estagnação e
terceirização de felicidade ou de qualquer outra coisa que se viva em substituição o
que um dia se pode viver em bonança, é um desperdício de tempo e de vida em uma
esperança infrutífera e paralisa. Por isso, Emmanuel Mounier se vale do conceito de
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absurdo para propor que o homem desaprenda a esperar para, então, abraçar o seu
presente.
Talvez uma das grandes percepções de Albert Camus sobre a vida seja que
não se precisaria de uma garantia de vida eterna para bem aproveitá-la. Camus
abraçava a oportunidade de viver, em cada detalhe. E com seus personagens nos
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apresentou “o possível” de como se pode ter uma vida frente as escolhas que se faz
e a realidade como ela se apresenta. Meursault tinha seu jeito particular de abraçar o
tempo-agora em franqueza e quiçá coragem de admitir os seus atos e a ausência de
desejo de pôr mais cores que o necessário em cada quadro de sua própria vida.
Assumir ser consoante consigo, mesmo que o código social advirta “não ser o certo”,
“não ser o convencional”, enfim, eram suas escolhas. Já Rieux fazia o que estava ao
seu alcance, mesmo sem poder garantir o futuro sem a peste, e se valia de sua prática
profissional para não deixar de lutar por esse amanhã, com as armas que tinha em
mãos. Cada vida não perdida para a peste era uma vitória e novo fôlego para que se
pudesse acreditar que havia a possibilidade de vencer o flagelo.
O absurdo que Camus expõe em suas obras não é o fim, mas, ao contrário,
o ponto de partida para a busca da felicidade. O homem revoltado quer
encontrar unidade. Da mesma forma que Sisyphe encontra felicidade
empurrando seu rochedo pela montanha, subentende-se que Meursault
encontra contentamento unindo-se à natureza. Cada personagem encontra a
alegria de viver à sua maneira. Ambos se satisfazem no próprio coração do
absurdo. Essa felicidade é revelada mesmo sem esperança e sem Deus. Isso
significa que o homem, mesmo vivendo a condição absurda imposta pelo
mundo, consegue encontrar felicidade em pequenos detalhes da vida.
(SILVA, 2013, p. 119 - 120)
Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria
estúpido.” Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar.
A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos
sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo
mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não
acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então
que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre
ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os
humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.
Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se
esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para
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A esperança, mesmo que nem sempre restrita a uma espera, pode ser uma
construção coletiva. E, em casos que acometem uma população inteira, atos
individuais influem no resultado desejado pelo mar de gente que anseia por dias
melhores. O discurso “quando a peste passar” é o mesmo de “quando a guerra
acabar”, “quando todos estiverem vacinados”, “quando as fronteiras voltarem a estar
abertas”. Em ditado popular “sonho que se sonha junto tem mais força”, mas saindo
do campo imaterial, o que se faz para o tão falado bem coletivo? No Brasil recente,
estamos há mais de um ano convivendo com o horizonte restrito de que o próximo
telejornal venha com uma notícia que nos surpreenda. A espera por qualquer novo
prazo que se possa dar para o fim da pandemia do coronavírus. Comemoram-se
pequenas vitórias de quem está conseguindo ser vacinado, mas as medidas
alcançadas ainda parecem poucas, perto do mar de ratos infiltrados e da
multiplicidade de flagelos a serem combatidos. Contudo, ainda há uma juventude em
cada um de nós, que faz com se faça o possível por hoje para acreditar em uma vida
particular e coletiva com mais equidade.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O atual cenário político e social pode ser lido como um aviso de incêndio38. Um
alarme para que despertemos devidamente frente aos retornos de momentos
históricos outrora superados. A nova onda conservadora ganhou espaço no Brasil e
no mundo, e faz com que recordemos de tempos sombrios, como os regimes
totalitários que ascenderam na Europa desde a década de 1920 até o fim da Segunda
Guerra Mundial. Crises econômicas, transformações nos modos de produção e de
negociação comercial, ações entre o protecionismo econômico e o liberalismo são
alguns ingredientes que rechearam o clima de instabilidade e de decisões drásticas
desse período amargo. Por isso, senti a necessidade de repensar como esses
momentos de instabilidade política-econômica-social causam uma perda de norte,
tanto nos indivíduos quanto na população como um todo. Nesse sentido, busquei em
Albert Camus, em especial em A Peste, um caminho para ler como governos com
perfis mais conservadores passaram a ter um número de votos expressivos no nosso
país e no mundo. Em A Peste, a cidade argelina Orã vive um estado de exceção,
acometida por uma enfermidade. Já o ensaístico O mito de Sísifo serviu de base para
estudarmos o homem absurdo, já que foi neste livro que Camus introduziu sua filosofia
do absurdo, abrindo-nos a reflexões sobre o incompreensível da vida.
38 Menção ao livro “Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história””, do autor Michael Löwy.
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39Nesta dissertação, quando falamos genericamente de regimes totalitários, estamos nos referindo aos
regimes totalitários de forte atuação no século XX.
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40 G1 MUNDO. Confronto em protesto de supremacistas brancos nos EUA deixa ao menos 1 morto e
33 feridos. G1, 12 ago. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/protesto-contra-
supremacistas-brancos-deixa-feridos-em-charlottesville.ghtml. Acesso em: 20 ago. 2017
41 G1 SANTA CATARINA. Cartazes racistas são colocados em poste e na casa de ativista negro em
abraçamos em nosso dia a dia, nas bandeiras que crermos ser os alicerces para ver
na vida o sentido de bem vivê-la. Camus, então, nos serve não em suas impressões
certeiras sobre o nosso Brasil, mas sobre o modo como escolheu manter-se em seus
ideais e propósitos sem se congelar, nem parecer um mero iludido. Na verdade, não
há nenhum ato heroico em suas atitudes, ele só não deixou de exercer as atividades
que lhe faziam sentido: fundar um jornal de resistência, teorizar sobre o absurdo da
vida, romancear sobre como viver apesar do absurdo. Registrar feito crônica a ameaça
constante de entrarmos em estado de exceção aos avisos de perigo ignorados,
quando um novo representante (governante), com postura autoritária se aproxima, e
deixarmos que ganhe força, muitas vezes por descrédito de que seria possível que
coletivamente elegeríamos alguém com este perfil como representante de toda uma
comunidade (ou nação).
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7 REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Estado de exceção: homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2004.
CAMUS, A. A peste. Tradução: Valerie Rumjanek 23. ed. Rio de Janeiro: Record,
2017.
CAMUS, A. O mito de Sísifo. Tradução: Valerie Rumjanek, 11. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2014.
ENGELS, F. Carta para Joseph Bloch [1890]. pp. 760-765. in TUCKER, Robert C.
(org.) The Marx-Engels reader. 2. ed. New York: W. W. Norton & Company, 1978.
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1890/09/22.htm.
FOLHA DE SÃO PAULO. 'A Peste', de Albert Camus, vira best-seller em meio à
pandemia de coronavírus. Folha de São Paulo, 13 mar. 2020. Disponível em:
113
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/a-peste-de-albert-camus-vira-best-
seller-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus.shtml
FREUD, S. Obras completas. v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LEBESQUE, Morvan. Camus por ele próprio. Tradução de Maria José Palla e M.
Vilaverde Cabral. Escritores de sempre. Portugália Editora, 1967.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2016.
Marx, Karl. O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo, Abril, 1978, Col.
Os Pensadores, p.329.
PENHA, João da. O que é existencialismo. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
ROLLING STONES. A Peste, obra de Albert Camus, é um dos livros mais vendidos
na era do coronavírus”. Rolling Stones, 13 mar. 2020. Disponível em:
https://rollingstone.uol.com.br/noticia/peste-livro-de-albert-camus-e-um-dos-livros-
mais-vendidos-na-era-do-coronavirus/.
SARTRE, Jean-Paul.
SILVA, A. R. B. A indiferença e o sol: Meursault, o herói absurdo em O Estrangeiro,
de Albert Camus. Vitória: UFES, 2013.
Anexo
Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo
termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a
história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras constituem talvez
o que há de mais original nas letras francesas. Seu humanismo obstinado, estreito e
puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos em
massa e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de suas repulsas,
reafirmava, no coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de
ouro do realismo, a existência do fato moral. Era, por assim dizer, esta inquebrantável
afirmação. Por pouco que se o lesse ou refletisse a respeito, chocávamos com os
valores humanos que ele sustentava em seu punho fechado, pondo em julgamento o
ato político.
Inclusive seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo: este cartesiano
do absurdo se negava a abandonar o terreno seguro da moralidade e entrar nos
incertos caminhos da prática. Nós o adivinhávamos e adivinhávamos também os
conflitos que calava, pois a moral, se se a considera, exige e condena juntamente a
rebelião. Qualquer coisa que fosse o que Camus tivesse podido fazer ou decidir a sua
frente, nunca teria deixado de ser uma das forças principais de nosso campo cultural,
nem de representar a sua maneira a história da França e de seu século.
A ordem humana segue sendo só uma desordem; é injusta e precária; nela se mata e
se morre de fome; mas pelo menos a fundam, a mantêm e a combatem, os homens.
Nessa ordem Camus devia viver: este homem em marcha nos punha entre
interrogações, ele mesmo era uma interrogação que procurava sua resposta; vivia no
meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem com que a
ordem reine como para os que a recusam, era importante que Camus saísse do
silêncio, que decidisse, que concluísse. Raramente os caracteres de uma obra e as
condições do momento histórico exigiram com tanta clareza que um escritor viva.
Para todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável. Mas, teremos
que aprender a ver esta obra truncada como uma obra total. Na medida mesmo em
que o humanismo de Camus contém uma atitude humana frente à morte que havia de
surpreendê-lo, na medida em que sua busca orgulhosa e pura da felicidade implicava
e reclamava a necessidade desumana de morrer, reconheceremos nesta obra e nesta
vida, inseparáveis uma de outra, a tentativa pura e vitoriosa de um homem
reconquistando cada instante de sua existência frente à sua morte futura.