Mestrado Isadora Republica Cicero

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

ISADORA PRÉVIDE BERNARDO

Política e História em Cícero: do Conhecimento da


Natureza à Ação Política

(versão corrigida)

São Paulo

2018
ISADORA PRÉVIDE BERNARDO

Política e História em Cícero: do conhecimento da


natureza à ação política

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia do Departamento
de Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutora em
Filosofia sob a orientação da Profa. Dra.
Maria das Graças de Souza.

(versão corrigida)

Profa. Dra. Maria das Graças de Souza

03/09/2018

São Paulo

2018
Nome: BERNARDO, Isadora Prévide
Título: Política e História em Cícero: do conhecimento da natureza à ação política

Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo para obtenção do título
de Doutora em Filosofia.

Aprovada em:

Banca examinadora

Prof.Dr.:______________________________Instituição:________________________
Julgamento:____________________________Assinatura:_______________________

Prof.Dr.:______________________________Instituição:________________________
Julgamento:____________________________Assinatura:_______________________

Prof.Dr.:______________________________Instituição:________________________
Julgamento:____________________________Assinatura:_______________________

Prof.Dr.:______________________________Instituição:________________________
Julgamento:____________________________Assinatura:_______________________

Prof.Dr.:______________________________Instituição:________________________
Julgamento:____________________________Assinatura:_______________________
A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o
poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e
temperada.
(Guimarães Rosa, Grande Sertão:Veredas)

Tempora cum causis Latium digesta per annum


lapsaque sub terras ortaque signa canam.

Cantarei os tempos divididos ao longo do ano no Lácio com suas causas,


o nascer e o ocaso dos astros sobre a terra.
(Ovídio, Fasti, I)
Ao Bruno, pelo companheirismo, força e amor.

Agradecimentos
À Maria, pela paciência, dedicação, generosidade e carinho. Suas lições foram muito além
dos ensinamentos filosóficos. Antes de tudo, ensinou-me sobre as questões da vida, o
cuidado e a humanidade nas relações professor-aluno. A senhora é meu grande exemplo
de professora!
À Patrícia, pela persistência, dedicação e firmeza. Não apenas por ter aberto as portas do
caminho filosófico, mas também pelo acompanhamento durante todo o percurso de modo
cuidadoso e firme.
À Maria e Patrícia, por me ensinarem sobre todos os assuntos que Lélio e Cipião trataram,
inclusive a amizade.
Ao professor Sérgio Xavier, pela leitura generosa, atenta, cuidadosa e pelas questões que
me abriram os olhos no exame de qualificação.
Aos professores do departamento de Filosofia que acompanharam essa jornada e, de
modo generoso, muito me ensinaram, especialmente Luís César, Marilena Chaui e
Alberto.
Às meninas da secretaria, que sempre prontamente ajudaram e resolveram tudo.
Ao pessoal do grupo de estudos Res Publica – onde recebi grande parte de minha
formação filosófica – que alegraram as sextas-feiras e tornaram o percurso filosófico mais
saboroso: Flávia, André, Alê, Rodrigo, Mari, Chris, Patrício, Caio, Rodison e Giovani;
especial agradecimento à Taynam, que me ajudou nas questões estoicas e compartilhou
comigo os livros trazidos da França.
Ao amigo Silvinho, pela generosidade e pelas oportunidades abertas.
Aos amigos dos Cadernos de Ética e Filosofia Política; especial agradecimento ao
Thomaz Kawauche, que me ensinou tudo o que sei sobre os procedimentos editoriais.
Ao pessoal de Poços de Caldas: Jú e Mayara que de alunas se tornaram grandes amigas;
às amigas de todas as horas que posso compartilhar tudo, Katita, Lilia e Fer; aos amigos
Filipe e Fabiano, pela generosidade e pelas discussões; ao meu afilhado Rafa e às suas
irmãs Bibi e Bia, que são pura alegria de viver e amor.
Às minhas tias Nair e Nice, pelo exemplo e pelo apoio durante toda a minha vida. Vocês
me mostraram a maravilha da docência.
À Maria Pasquina Veronez Prévide (in memoriam) e Irineu Melchior (in memoriam), avó
e tio que foram exemplos e tornaram minha vida mais leve e protegida enquanto estiveram
comigo.
À Naíssa, minha irmã, pelo apoio, carinho e cuidado que sempre teve comigo. Não saberia
dizer o quanto sua disciplina e força me motivaram e me motivam.
Aos meus pais, Maria e José, que apoiaram incondicionalmente meu sonho. Eu não tenho
palavras para agradecer e não saberia expressar o amor que tenho por vocês.
À Capes, pelo apoio à pesquisa.
Resumo

BERNARDO, I. P. Política e História em Cícero: do Conhecimento da Natureza à Ação


Política. 2018. 199f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

O objetivo da tese é analisar a relação entre política e história na obra ciceroniana.


Primeiramente, examinamos a concepção de homem, principalmente do sábio-político, e
sua capacidade de ação na república. Analisamos a ação humana retratada nos diálogos
filosóficos, nos discursos e nas narrativas históricas; observamos que a ação política é a
matéria das narrativas históricas e os exemplos históricos são constitutivos da
argumentação político-filosófica. Dessa maneira, as obras políticas são particularizadas
pelos exemplos históricos, e as narrativas históricas são universalizadas pela presença do
pensamento político-filosófico. Segundo a preceituação da narrativa histórica, o recurso
à história tem, em todas as obras, uma função pedagógico-política ao guardar as ações
dignas de memória do passado, falar ao tempo presente e poder ser estendido ao futuro.
Por meio da análise do recurso à história, observamos uma concepção ciceroniana do
curso dos acontecimentos em Roma, que não é nem circular nem linear. Mediante a
análise das obras, percebemos que Cícero retrata a República de seu tempo, ou seja, do
presente, como decadente, e apenas haveria expectativa de melhora se as ações
exemplares do passado fossem recuperadas.

Palavras-chave: Cícero; ação humana; república; política; história.


Abstract

BERNARDO, I. P. Politics and History in Cicero: from knowledge of nature to political


action. 2018. 199f. Thesis (Doctoral) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

The aim of the thesis is to analyze the relation between politics and history in Ciceronian
work. Initially, we examine the conception of man, especially the wise-politician, and his
capacity for action in the republic. We analyze human action portrayed in philosophical
dialogues, discourses and historical narratives; we observe that political action is the
subject of historical narratives and historical examples are constitutive of political-
philosophical argumentation. Thus, political works are particularized by historical
examples and historical narratives are universalized by the presence of political-
philosophical thought. According to the precept of historical narrative, resorting to
history has in all works a pedagogical-political function, preserving the actions worthy of
memory of the past, speaking to the present time and being able to be extended to the
future. Through the analysis of the use of history we observe a Ciceronian conception of
the course of history in Rome, which is neither circular nor linear. Through the analysis
of the works we understand that Cicero describes the Republic of his time, that is, of the
present, as decadent, and there would be only expectation of improvement if the
exemplary actions of the past were recovered.

Key-words: Cicero; human action; republic; politics; history.


Sumário

Introdução............................................................................................................................ 12
I. Filosofia e Ação Política ........................................................................................ 21
II. Diálogos entre os tempos ..................................................................................... 61
II.I. OBRAS CONSTRUÍDAS COM BASE NO PASSADO PARA DIALOGAREM COM O PRESENTE ................................ 63
II.II. O FUTURO E O PASSADO: O SONHO DE CIPIÃO .............................................................................................................. 92
II.III. OBRA CONSTRUÍDA NO PRESENTE PARA FALAR AO FUTURO: DE OFFICIIS ............................................................ 99

III. DISCURSOS: TESTEMUNHOS DA DECADÊNCIA .................................................... 112


III.I. O LUGAR DA HISTÓRIA NOS DISCURSOS ..................................................................................................................... 114
III.II. CATILINARIAE ................................................................................................................................................................. 122
III.III. PHILIPPICAE .................................................................................................................................................................. 136

IV. O Curso da História: Nem Círculo, Nem Linha ....................................... 149


IV.I. A EXPOSIÇÃO DAS COISAS REQUER UMA ORDEM TEMPORAL ...................................................................... 152
IV.II. DE RE PUBLICA, II ........................................................................................................................................................ 162
IV.III. BRUTUS ........................................................................................................................................................................ 179

Considerações Finais ................................................................................................... 190


Referências bibliográficas ........................................................................................ 192
12

INTRODUÇÃO

É perceptível na obra ciceroniana, mesmo com a prática do método eclético 1 pelo


autor, a presença de um legado da filosofia estoica tanto do ponto de vista da concepção
de natureza quanto no pensamento ético e político 2; porém, há um distanciamento desta
escola na concepção de necessidade do destino, o que acarreta numa compreensão da
teoria da ação sem filiação estoica e tipicamente ciceroniana, abrindo espaço para a ação
voluntária. Não podemos negligenciar a forma como Cícero se apropria de questões
fundamentais para a escola e as aplica de modo próprio ao contexto político da Roma
Republicana; por isso, nesta tese, observaremos o tratamento propriamente ciceroniano
das questões filosóficas ético-políticas e da história de Roma e não nos preocuparemos
tanto em comparar os conceitos dos predecessores com os de Cícero.

Se observarmos a totalidade da obra ciceroniana, parece-nos que a grande


preocupação do autor era com a formação ético-política dos romanos3 – principalmente
dos optimates –, a forma como os homens agiam na república e a consolidação das letras
latinas4, tarefas de alguma maneira interdependentes. Cícero apresenta seu propósito
pedagógico incitando os homens a buscarem a virtude, ou seja, a realizarem a sua natureza
e, consequentemente, a viverem em sociedade; devemos nos lembrar de que se trata de
uma sociedade específica, Roma, que se tornava cada vez mais universal, não do ponto
de vista cosmológico, mas do ponto de vista territorial e cultural.

De acordo com Sabine e Smith5 o pensamento político do período entre a morte de


Aristóteles e o tempo da atividade literária de Cícero – ou seja, quase todo o período

1
Radford, em Cicero: a Study in the origins of republican philosophy, aponta a multiplicidade de
influências tanto filosóficas quanto historiográficas no pensamento político ciceroniano.
RADFORD, R. T. Cicero: a Study in the origins of republican philosophy. Amsterdam, Editions
Rodopi B.V., 2002.
2
Vogt afirma que, segundo Plutarco, Zenão dizia que nós deveríamos zelar por todos os seres
humanos como fazemos com nossos concidadãos. Disso, a autora depreende que a preocupação
política na escola do pórtico vem desde os seus primeiros tempos. Ainda de acordo com a autora,
Zenão concebeu uma cidade de sábios, que Crisipo chamou de “cosmópolis”. Nós, uma vez que
conhecemos o legado recebido por Cícero, sabemos que se serviu de uma série de conceitos e
ideias estoicas, fundamentadas filosoficamente e historicamente adaptando-as a Roma. VOGT,
K. M. Law, Reason and the Cosmic City: political philosophy in the early Stoa. New York, Oxford
University Press, 2008. p.11
3
Cf. CÍCERO. De Officiis.
4
Cf. CÍCERO. Academica Posteriora.
5
CICERO. On The Commonwealth. Translated, with an Introduction by George Holland Sabine
and Stanley Barney Smith. Indianapolis, A Liberal arts press book. pp.7-8.
13

helenístico – foi, ao mesmo tempo, importante e obscuro. Obscuro porque não restaram
muitos trabalhos da época. Importante porque, neste período, ocorreu uma mudança dos
grandes ideais sociais e políticos. A visão política de Platão e Aristóteles está atrelada à
pólis, e sua filosofia é dedicada a ideias e problemas desse tipo de organização política.
As explicações sobre a pólis não eram suficientes para pensr os grandes impérios, e os
ideais políticos de comunidades urbanas centralizadas tiveram de ser reconstituídos para
adequar-se à ideia de uma comunidade universal, ao mesmo tempo humana e ampla.
Tornou-se necessário aos romanos pensar em um novo modo de agir que se adequasse a
um novo espaço e tempo políticos. Ora, a filosofia estoica em Roma era capaz de refletir
sobre as ideias dessa nova configuração política.

Assim, independentemente dos grandiosos sistemas tanto de


Platão quanto de Aristóteles, os estoicos encontraram preparado
seu território. O “uno” deve ser unificado com os “muitos”; a
Natureza deve estar em aliança ofensiva e defensiva com o
Homem; os homens, como indivíduos, devem estar alinhados
com a Humanidade, o universal. Embora os fatores do estoicismo
possam ser encontrados no pensamento grego anterior, os
catastróficos eventos seculares exigiram sua reorganização. O
Helenismo chegou a ter contrastes e exclusões; a originalidade do
estoicismo está na sua corajosa tentativa de fornecer inclusões,
clamor imperativo, dadas as circunstâncias da época. 6

Cícero pensa o homem para a República, um homem diferente do rei-filósofo, do


biós politikós, pois os tempos eram outros e a forma política na qual vivia também. Mas
não podemos negar as múltiplas influências na obra do autor.

Na obra ciceroniana, é a partir das questões voltadas à natureza e à ética que


chegamos às questões políticas e às narrativas históricas. Antes de nos questionarmos em
que medida se estabelece a relação entre política e história em sua obra, concentrar-nos-
emos em sua teoria da ação, em suas concepções de homem virtuoso e vicioso. O sábio,
o homem apto a agir na República, é capaz de salvá-la, enquanto um homem vicioso no

6
WENLEY, R.M. Stoicism and its influence. New York, Cooper Square Publishers, 1963. p.80.
14

comando pode degenerá-la. Por meio da definição das atribuições da razão humana,
observaremos que o homem possui uma sociabilidade e uma percepção da história
naturais. Isso nos permitirá pensar na liberdade da ação política na construção da narrativa
histórica e até da percepção histórica, que é retratada nas narrativas históricas e nos
exemplos históricos citados ao longo das obras políticas. Como indica a preceituação da
narrativa histórica, o recurso à história tem, em todas as obras, uma função pedagógico-
política, ao guardar as ações dignas de memória do passado, falar para o tempo presente
e poder ser estendida ao futuro. Por meio da análise do recurso à história, observaremos
a concepção ciceroniana do curso dos acontecimentos em Roma. Ademais, como
veremos, a percepção e a organização do tempo são atributos tipicamente humanos e
inerentes às relações sociais.

Alain Michel observa que há uma tendência na obra ciceroniana em substituir o


fictício pela história:

Isso torna mais significativo o método adotado nos principais


diálogos oratórios. Dessa forma, Cícero renuncia completamente
às causas fictícias. Pelo contrário, ele desenha todas as
justificativas para o seu ensino na tradição romana. Ele dá a
palavra aos maiores oradores que o precederam.7

O que Michel afirma sobre a exemplaridade nas obras oratórias pode ser também
estendido aos diálogos filosóficos, em que questões políticas e morais são exemplificadas
historicamente como paradigmas das ações humanas.

Dessa forma, para analisarmos a relação entre política e história, dividimos a tese
em quatro capítulos: no primeiro, trata-se de examinar a relação entre natureza e natureza
humana, ação e política na obra de Cícero; este capítulo se relaciona com os outros três,
pois o que nos interessa é a ação humana e a capacidade do homem de se deslocar no
tempo por meio da razão e da linguagem; investigaremos o homem e a sua capacidade de
ação; a ação virtuosa e a viciosa e a relação com o destino e a liberdade; o quão livre ou
o quão determinada é a ação humana? No segundo, terceiro e quarto capítulos, seguiremos
o que é dito em Orator, 36, 124, quando Cícero afirma que a narração nos discursos não

7
MICHEL, A. Les rapports de la rhétorique et de la philosophie dans l´oeuvre de Cicéron.
Leuven, Peeters, 2003. pp.423-424.
15

deve seguir as mesmas leis, a mesma preceituação da narrativa histórica. E como a obra
ciceroniana nos traz uma variedade de assuntos escritos em muitos gêneros 8, seguimos
também Hadot, quando afirma que o texto deve ser interpretado segundo seu gênero. Com
isso, baseando-nos nas questões de forma e conteúdo, separamos as obras segundo os
gêneros em que foram escritas; no segundo capítulo, observamos como se estabelece a
relação entre política e história nos diálogos filosóficos; no terceiro, examinamos essa
relação nos discursos. Dessa forma, no segundo e terceiro capítulos, observamos como
ocorre o uso da exemplificação histórica em obras políticas. No quarto capítulo, por sua
vez, analisamos duas narrativas históricas e como se estabelece a relação entre história e
política, isto é, como o autor extrai argumentos políticos de narrativas históricas. A
história aparece na obra ciceroniana como narrativa e como exemplificação. Podemos
afirmar que a principal diferença entre esses dois usos é a extensão – o que talvez permita
ao autor elaborar uma concepção do curso dos acontecimentos em uma e não na outra; a
maior semelhança é a função pedagógica, a utilidade e a força argumentativa de ambas.
Além disso, devemos destacar a dependência existente entre história e política, pois as
ações políticas são matéria das narrativas históricas, e os exemplos históricos fornecem
paradigmas de ação para as ações políticas. Momigliano afirma em seu artigo “Time in
Ancient Historiography” que: “A história é para os gregos e, consequentemente, os
romanos, uma operação contra o tempo que destrói toda a ordem para salvar a memória
de eventos que merecem ser lembrados. A luta contra o esquecimento é travada pela busca
da evidência”9.

Segundo Aristóteles, a filosofia se refere ao universal, e a história, ao particular10.


Assim, atribui-se a um homem, segundo a definição de universal, “determinada natureza

8
Taynam Bueno em sua tese, Formação moral e ação política em Sêneca: entre o sábio e o
princeps. p. 162, aponta que Pierre Hadot, na obra Éloge de la philosophie antique, afirma que se
deve seguir o “simples princípio segundo o qual um texto deve se interpretar em função do gênero
literário ao qual pertence”.
9
MOMIGLIANO. “Time in Ancient Historiography”. In: History and Theory, vol. 6, pp. 1-23,
1996. p.15.
10
Aristóteles cita a oposição entre universal e particular na Poética, IX, 50: “Pelas precedentes
considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível sugundo a verossimilhança e a
necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois
que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser
história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que
sucederam, e o outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais
sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por
‘referir-se ao universal’ entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos
e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal,
16

de pensamentos e ações” 11, enquanto o particular refere-se ao “que fez Alcebíades ou o


que lhe aconteceu”12. Com isso, temos o primeiro problema a ser enfrentado, do ponto de
vista da forma, pois, em certa medida, os exemplos particularizam a universalidade da
filosofia política e os argumentos filosóficos universalizam a narrativa histórica.

Hartog, ao analisar a obra de Aristóteles em seu artigo “A Fábrica da História: do


“Acontecimento” à Escrita da História as Primeiras Escolhas Gregas”, argumenta que:

Se, por um lado, é claro que Aristóteles nunca escreveu história


ou mesmo obra teórica sobre história, por outro lado, as passagens
da Poética em que é estabelecida a superioridade da poesia trágica
(tendo acesso ao geral) sobre o relato histórico (limitado ao
particular), marcam, no entanto um corte importante. Estava de
fato colocada uma questão que, mesmo esquecida, não cessaria
de trabalhar13 a história tomada como tentativa de
conhecimento14.

Por sua vez, a história não depende de uma poética, ela está ligada à retórica, à
figura do exemplo e, por estar circunscrita ao particular, “o que Alcebíades fez ou lhe
aconteceu”, ela “não tem condições de ser uma ciência, pois só existe ciência do geral.
Ela se move na diversidade e na sucessão aleatórias do particular.” 15

Segundo Hartog, Políbio afirma que a história universal, que ele escreve e a
denomina assim, possui as mesmas característica do muthos trágico16 de Aristóteles:

ela forma um todo, isso quer dizer em termos aristotélicos que ela
tende a um fim único, que ela tem um começo, um meio e um fim,

assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário,
é o que fez Alcebíades ou o que lhe aconteceu.”
11
ARISTÓTELES. Poética, IX, 50.
12
ARISTÓTELES. Poética, IX, 50.
13
Há um sentido no texto original de atormentar.
14
HARTOG, F. “A Fábrica da História: do “Acontecimento” à Escrita da História as Primeiras
Escolhas Gregas”. p.16.
15
HARTOG, F. “A Fábrica da História: do “Acontecimento” à Escrita da História as Primeiras
Escolhas Gregas”. p.16.
16
ARISTÓTELES. Poética, 23: “onde necessariamente se opõe não uma só ação, mas um só
tempo, tudo que aconteceu durante esse tempo respeitante a um personagem só ou a vários, em
que cada elemento relaciona-se um com o outro conforme os caprichos do acaso”.
17

e que assim lhe pertence a beleza que é própria de um corpo vivo.


Em suma, ele transfere para a história, de forma ousada ou
selvagem, a definição de muthos, mas ignorando muito
tranquilamente a questão da mimêsis e da poiêsis. Ora, isso não é
problema, pois o ideal do historiador é, para Políbio, não
Demódocos, mas Ulisses, o homem da experiência, aquele que
suportou e viu com seus próprios olhos 17.

No século II a.C., Políbio apela ao universal, ao geral18, para caracterizar a história


que propõe, pois o que precedeu Roma foi limitado temporal e espacialmente. Segundo o
historiador, os acontecimentos entre Itália, África, Ásia e Grécia se entrelaçaram, então é
necessário

que o relato histórico torne visível esse novo curso da história.


Adotando, ao menos por um momento, o ponto de vista da
Fortuna, o historiador poderá construir essa visão “sinóptica” que
evoca a vitória de Roma. Essa é a tarefa que assume para si o
exilado Políbio. O historiador vê isso com clareza pela segunda
vez: mas com a condição de ver o mundo a partir de Roma.
Políbio perdeu a guerra, mas exilado e refém, ganhou um ponto
de vista19.

De acordo com Hartog, Políbio reflete a partir de e em resposta a Aristóteles. A


história geral vai se especializar e “a geografia assume o posto. A história ‘universal’
significa o espaço reunido pela conquista romana”20.

17
HARTOG, F. “A Fábrica da História: do “Acontecimento” à Escrita da História as Primeiras
Escolhas Gregas”.p.18.
18
katholou, geral, ou ainda katholiké, global, universal.
19
HARTOG, F. “A Fábrica da História: do “Acontecimento” à Escrita da História as Primeiras
Escolhas Gregas”. p.17.
20
HARTOG, F. “A Fábrica da História: do “Acontecimento” à Escrita da História as Primeiras
Escolhas Gregas”.p.17.
18

Cícero, como herdeiro não apenas de Políbio, mas também de Heródoto e


Tucídides na historiografia, e não só de Panécio, como também de Aristóteles e Platão,
elabora uma obra em que filosofia política e história são indissociáveis. E justamente esta
junção garante coesão ao texto, somam suas características uma à outra. E o homem,
retratado em ambas, pode ser pensado, do ponto de vista ético, político, republicano e
histórico. Fox argumenta que “Cícero explora a história como um discurso que pode
proporcionar uma fundação para estabilidade social e para a continuidade” 21. Isso faz
sentido, pois o autor vivia no período do declínio da República, e era preciso buscar
paradigmas para recuperar a estabilidade política.

Seja no uso de exemplos históricos, como analisamos nos capítulos dois e três, seja
na construção de narrativas, no quarto, Cícero constrói temporalidades que conversam
com o presente. Se Políbio fez uma história universal pela espacialidade de Roma, Cícero
se serviu dos exemplos e da narrativa histórica para temporalmente criar uma concepção
do curso dos acontecimentos em Roma em que o foco fossem as mudanças necessárias
que deveriam acontecer no presente.

A relação entre política e história é estabelecida na obra ciceroniana, pois a política


é a matéria da história, ou seja, a história narra feitos políticos. Com isso, podemos
observar uma anterioridade de uma em relação à outra. Collingwood aponta que a
historiografia greco-romana não pode mostrar como surge alguma coisa; ao contrário:

todas as ações que aparecem no palco da história têm de ser


consideradas como já feitas antes de começar a história, sendo
relacionadas com acontecimentos históricos exatamente como
uma máquina está relacionada com os seus movimentos. O
âmbito da história limita-se à descrição do que as pessoas e as
coisas fazem, permanecendo fora do seu campo visual a natureza
dessas pessoas e dessas coisas 22.

No campo visual ciceroniano está a “natureza das pessoas”, e essa se reflete em


suas ações. É possível relacionar essas duas matérias, pois o autor elabora em sua obra
política uma concepção de homem sábio e político que realiza as ações visando ao bem

21
FOX. Cicero´s Philosophy of History. Oxford University Press, 2007. p. 21.
22
COLLINGWOOD. A Ideia de História. pp.77-78.
19

comum da república. É justamente esse homem e seus feitos que são retratados nas obras
históricas. Ou seja, o autor une, em sua obra, a “natureza das pessoas” às ações que elas
realizaram.

Em relação ao conteúdo da obra ciceroniana, notamos uma questão: apesar de se


tratar da política de Roma, há um predomínio da descrição de ações particulares quando
Cícero trata de momentos decisivos para a República, seja a fundação, seja em sua
construção, seja em momentos de crise. Isto é, as ações coletivas não são exemplificadas
ou narradas de modo abundante, predominando os feitos de singulos, particulares, que,
quando virtuosos, agiam para o bem comum. Ao mesmo tempo, ele argumenta em De Re
Publica, II, 2, que Roma não foi constituída pelo engenho de um só, mas de muitos e de
muitas gerações. E paradoxalmente, por meio da somatória de ações e dessa construção
ao longo do tempo, observamos, de alguma forma, a ação coletiva.

Pelo fato de as narrativas históricas retratarem uma série de acontecimentos, um


curso dos acontecimentos em Roma, podemos compreender que a visão ciceroniana sobre
o tempo não é circular nem linear, mas retrata os acontecimentos sem se preocupar com
essas questões. Momigliano assevera: “A história pode ser escrita de inumeráveis formas,
mas os gregos escolheram uma forma que foi aceita pelos romanos e que, provavelmente,
não se presta a uma visão cíclica da história” 23. Por isso, sustentamos nessa tese que há,
na obra ciceroniana, uma forma própria de conceber o tempo em Roma, principalmente
porque identificamos a liberdade da vontade nos homens – e, por isso, eles são capazes
de construir seu próprio curso na República – e porque, ao refletir sobre o passado, o autor
especula, de alguma forma, sobre o futuro.

Fox adverte que “os termos filosofia e história devem ser usados com consciência
do perigo de associações anacrônicas”; as obras de Cícero são “textos, em geral, que
pertencem a um tipo de escrita com as quais os leitores de hoje têm pouca conexão
imediata” 24. Isso pode obscurecer mais do que iluminar a sua obra. Da mesma forma em
que há a integração entre essas duas matérias, há também entre filosofia e retórica. São
três matérias coexistentes em sua obra cuja relação não podemos ignorar, mesmo que a
história esteja mais preocupada com a veracidade dos fatos e a filosofia seja uma forma

23
MOMIGLIANO. Time in Ancient Historiography. p.14.
24
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p. 2.
20

de pensar a vida na república além da história, ao mesmo tempo em que usa a história
para recuperar a ação exemplar do passado a ser imitada.

Sabemos que a recuperação do passado é feita pela memória, que deve ser a
garantidora da veracidade histórica, mas, na obra de Cícero, o significado simbólico da
memória é mais importante do que qualquer base factual, como podemos perceber, no
segundo capítulo, nos recursos retóricos utilizados para compor obras com base no
passado, mas que falam ao presente, como De Re Publica, De Oratore, De Senectute e
De Amicitia, e o livro VI da obra De Re Publica, em que futuro e passado estão
misturados, ou em De Officiis, ao falar ao filho e às futuras gerações; no terceiro capítulo,
os discuros Catilinárias e Filípicas são obras escritas para serem testemunhos de um
tempo e, por isso, deixar seus feitos na memória dos romanos é tão importante. Ou seja,
a memória não representa apenas a fixação dos eventos, mas sua representação nas obras
e sua perpetuação pelas obras e pelos próprios romanos. Fox argumenta que a memória
está preocupada com o histórico e, de alguma forma, com o futuro25. Dessa maneira,
Cícero constrói argumentos buscando determinado efeito, o que pode ser notado
principalmente nos discursos, pois os exemplos históricos fornecem um paradigma,
valores sobre determinado assunto ou comportamento.

Temporalmente, Cícero está no final da República e vive sua decadência,


testemunhada, por exemplo, em Brutus e nos discursos; De Re Publica, II, entretanto, está
voltada para a recuperação do passado glorioso para, de alguma forma, salvar a
República. Fox afirma que isso faz com que ele busque uma identidade para Roma26. As
questões históricas, de algum modo, estão voltadas para buscar essa identidade, assim
como a filosofia. Há uma tentativa do autor de estabelecer uma política e uma moralidade
para além do tempo, ou seja, filosóficas, e simultaneamente ele nos mostra que essas
chegaram ao seu apogeu no passado. Na narrativa histórica, também podemos encontrar
a busca por uma verdade universal – a estabilidade da República pautada na moral dos
concidadãos –, apesar da transitoriedade.

25
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p.165.
26
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p.175.
21

I. FILOSOFIA E AÇÃO POLÍTICA

Cícero recorre a alguns elementos de matriz estoica que incidem no pensamento


político e explica que homens e deuses são partícipes da mesma razão, ou seja, da mesma
natureza27. O “homem, como animal previdente, sagaz, complexo, aguçado, dotado de
memória, de razão e de discernimento, recebeu do deus supremo uma condição que o
diferencia, pois ele é partícipe da razão e do pensamento”28. A verdade e a Lei29 são outros
elementos comuns a deuses e homens, que fazem com que eles vivam em um mundo que
seja a mesma casa para ambos. A razão, a mente, a verdade e a prudência apenas
chegaram aos homens pelas mãos dos deuses, como observamos em De natura deorum,
II, 79:

(...) neles [nos deuses] existe o mesmo que existe no gênero


humano: a razão e a verdade; dos dois lados existe também uma
mesma lei, cujo objetivo é procurar o reto e rejeitar o mal. Disso
se compreende que a prudência e a mente chegaram ao homem
por meio dos deuses 30.

A natureza dotou os homens de uma mente ágil, deu-lhe sentidos e uma forma
corpórea bem adaptada31. Os homens agem do modo como agem porque os deuses lhes
proporcionaram os meios específicos para realizarem as ações, cumprindo sua natureza.

27
Assim, a natureza é uma razão ordenadora que reúne os homens em uma república, é fonte de
uma moralidade que permite as ações retas e virtuosas e o afastamento das paixões, assegurando
uma coesão das ações humanas.
28
CÍCERO. De Legibus, I, 22. animal hoc prouidum, sagax, multiplex, acutum, memor, plenum
rationis et consilii, quem uocamus hominem, praeclara quadam condicione generatum esse a
supremo deo. Solum est enim ex tot animantium generibus atque naturis particeps rationis et
cogitationis, quom cetera sint omnia expertia
29
Em De Legibus, 18-19, Cícero afirma: “(...) a lei é a razão suprema da natureza, que ordena o
que se deve fazer e proíbe o contrário. Esta mesma razão, uma vez confirmada e desenvolvida
pela mente humana, se transforma em lei. 19. Por isso, afirmam que a razão prática é uma lei,
cuja missão consiste em exigir as boas ações e vetar as más. (...) e a lei é a força da natureza, é o
espírito e a razão do homem dotado de sabedoria prática, é o critério do justo e do injusto.”
30
(...) ut eadem sit in is quae humano in genere ratio, eadem veritas utrobique sit eademque lex,
quae est recti praeceptio pravique depulsio, ex quo intellegitur prudentiam quoque et mentem a
deis ad homines prevenisse (...).
31
Cf. CÍCERO. De Legibus, 24-25.
22

E é por meio de um princípio inato chamado hormê, um impulso de conservação análogo


a um impulso vital, encontrado no homem, que este começa a realizar a sua natureza.

E assim como os membros nos foram dados por certa razão e para
certo modo de viver, assim o apetite da alma, ao qual os gregos
chamam hormê, não nos foi concedido para qualquer espécie de
vida, mas para determinada regra e norma dela; e o mesmo se
passa com a razão e a reta razão32.

De acordo com Vogt, esse impulso – hormê – não é um simples movimento


corporal ou ação, mas é um impulso definido como um movimento do pensamento em
relação a uma ação em determinada esfera 33. O homem, por meio da razão, tem a hormê
como um impulso à sua conservação e à prática virtuosa. Desse modo, ele busca o útil e
vive de acordo com a sua natureza, e esse impulso manifesta-se, em última análise, na
vida política, na constituição da república, pois “a virtude não é senão a natureza realizada
e levada à sua mais alta perfeição”34. A tendência natural de se agrupar faz com que o
homem crie uma segunda natureza na natureza – algo como parte da natureza, cuja criação
é tarefa humana. Essa espécie de impulso do homem para a constituição de uma ciuitas é
a hormê, e não realizá-la significa a rejeição da natureza. Assim, de acordo com Valente,
a hormê reúne no homem diversas forças para aprimorar e defender o ser constitutivo. O
homem vem ao mundo dotado de algo que o especifica enquanto ser e lhe pertence como
próprio, devendo adaptar-se a si mesmo para se tornar o que é. Desse modo, a hormê é
um traço da natureza nos homens, e o seu fim é a tendência natural à auto-conservação35
– a oikeiósis36, que chamaremos de “cuidado”37; ela garante ao homem o conhecimento
de sua constituição e da sua própria natureza, assegurando o conhecimento de si mesmo.

32
Atque ut membra nobis ita data sunt, ut ad quandam rationem vivendi data esse appareant, sic
appetitio animi, quae hormê Graece vocatur, non ad quodvis genus vitae, sed ad quandam
formam vivendi videtur data, itemque et ratio et perfecta ratio. CÍCERO. De Finibus bonorum et
malorum, III, 23.
33
VOGT. Law, Reason and the Cosmic City. p.169.
34
De Legibus, I, 25. Est autem uirtus nihil aliud, nisi perfecta et ad summum perducta natura
35
VALENTE. A Ética Estoica em Cícero. p.45.
36
Devemos destacar que Cícero não se serve da palavra oikeiósis, mas utiliza uma série de
expressões que transmitem este conceito, por exemplo: principio generis, caritate, conseruo e o
verbo conseruare e affectum.
37
Inwood, em The Cambridge History of Hellenistic Philosophy, pp. 677-682, discute a oikeiósis
no pensamento estoico e afirma o quão difícil é traduzir esse termo.
23

A todos os seres animados a natureza deu esse princípio de cuidado38 e em relação ao


homem, além disso, dotou-o de razão. Cícero explica a atribuição da razão aos homens e
do senso aos animais da seguinte forma em De natura deorum, II, 33-34:

Constatamos, pois, que a natureza, primeiramente, sustém tudo


aquilo que vem da terra, e que para a natureza nada é mais
apropriado do que cuidar da alimentação e do crescimento. 34.
Aos animais, porém, deu senso, movimento e um instinto natural
para procurar as coisas que lhes são salutares e evitar as que lhes
fazem mal. Ao homem, por sua vez, deu-lhe mais: ofertou-lhe a
razão, pela qual são moderados todos os instintos do seu ânimo,
deixando uns atuar e forçando outros a se conter 39.

A natureza não dotou os animais de razão e esta é a primeira diferenciação que


podemos fazer entre eles e os homens; mas a primeira40 forma de cuidado41, a mais
instintiva, que corresponde aos cuidados consigo, à procriação e aos cuidados com a prole
são comuns a ambos. Isso é ilustrado em De Finibus Bonorum et Malorum, V, IX, 24:

Todo ser animado tem zelo por si mesmo e, desde o nascimento,


faz o possível para conservar-se vivo, pois o primeiro desejo que
a natureza lhe dá é este, que o acompanha ao longo da vida, tanto
o de conservar-se quanto o de afeiçoar-se42;

Em De Officiis I, 11, Cícero trata das coisas necessárias à vida, recuperando o que
é comum a homens e animais:

38
Em latim, encontramos o verbo conservo para designar esse conceito. Cf. CÍCERO. De Finibus,
III, 16; V, 24.
39
[33] (...) Prima enim animadvertimus a natura sustineri ea, quae gignantur e terra, quibus
natura nihil tribuit amplius quam, ut ea alendo atque augendo tueretur. [34] bestiis autem sensum
et motum dedit et cum quodam adpetitu accessum ad res salutares a pestiferis recessum, hoc
homini amplius, quod addidit rationem, qua regerentur animi adpetitus, qui tum remitterentur,
tum continerentur.
40
Sobre a divisão da oikeiósis estoica em quatro formas cf. RADICE. Oikeiosis: Ricerche sul
fondamento del pensiero stoico sulla sua genesi.
41
Vogt, assim como Radice, também trata de quatro aspectos da oikeiósis, porém sem a
numeração feita pelo autor italiano. Cf. VOGT. Law, Reason and the Cosmic City, p. 181.
42
Omne animal se ipsum diligit ac, simul et ortum est, id agit, se ut conservet, quod hic ei primus
ad omnem vitam tuendam appetitus a natura datur, se ut conservet atque ita sit affectum.
24

A natureza deu a todos os seres viventes o princípio dos gêneros 43,


para a vida e para o corpo, de evitar tudo o que é nocivo e de
procurar e adquirir as coisas necessárias ao sustento da vida,
como a comida, o abrigo e outras coisas do mesmo gênero.
Igualmente comum a todos é o instinto de procriar e o cuidado
com a prole44.

O cuidado é um amor45 natural que faz com que homens e animais se cuidem e se
preservem em conformidade com a natureza, ou seja, no homem este princípio remete
primeiramente à autossuficiência e à conservação; ele deve amar a si mesmo e conhecer-
se.

Na obra De Amicitia, em que Cícero disserta sobre a amizade, ele usa as definições
de amizade, de princípio do vínculo de benevolência e de caridade de modo semelhante
à ideia de cuidado, ao afirmar que:

O amor, que dá nome à amizade, é o princípio do vínculo de


benevolência. (...) a amizade é tudo aquilo que é verdadeiro e
voluntário. (...) essa é uma verdade que podemos constatar até em
alguns animais, naqueles que amam os filhotes por algum tempo
e por eles são amados, de modo que o sentimento facilmente
aparece. E evidencia-se ainda mais nos homens, primeiro pela
caridade que une pais e filhos, que só um crime abominável pode
destruir;46

43
A ideia de cuidado, oikeiosis, aqui está definida como principio generi.
44
CÍCERO. De Officiis, I, 11: Principio generi animantium omni est a natura tributum, ut se,
vitam corpusque tueatur, declinet ea, quae nocitura videantur, omniaque, quae sint ad vivendum
necessaria anquirat et paret, ut pastum, ut latibula, ut alia generis eiusdem. Commune item
animantium omnium est coniunctionis appetitus procreandi causa et cura quaedam eorum, quae
procreata sint.
45
Vogt observa que esse conceito de amor não é um pathos. Cf. VOGT. Law, Reason and the
Cosmic City, p. 104.
46
CÍCERO. De Amicitia, 26-27: Amor enim, ex quo amicitia nominata est, princeps est ad
benevolentiam coniungendam.(...) [amicitiae] est, id est verum et voluntarium. [27] Quod quidem
quale sit, etiam in bestiis quibusdam animadverti potest, quae ex se natos ita amant ad quoddam
tempus et ab eis ita amantur ut facile earum sensus appareat. Quod in homine multo est
evidentius, primum ex ea caritate quae est inter natos et parentes, quae dirimi nisi detestabili
scelere non potest;
25

Disso depreendemos que não só não temos uma única palavra em latim para
designar este conceito, como também é de difícil determinação; ao mesmo tempo em que
é um cuidado para com a conservação e a sobrevivência é um amor natural e espontâneo47.

A segunda forma de cuidado, apenas observada nos homens, estabelece-se em uma


relação deste princípio de conservação com o agir. Cícero diz que as coisas conforme a
natureza são apetecíveis em si mesmas e as contrárias devem ser evitadas. Assim, o
primeiro dever (kathekon) do homem é conservar a sua natureza, e o segundo é obter as
coisas que lhe são conformes e rejeitar as contrárias. Trata-se de uma constante
conformidade com a natureza, que coincide com o verdadeiro bem; os deveres derivam
do honesto e se fundamentam nele, e a sua finalidade é a virtude 48; as fontes dos deveres
são enunciadas nas virtudes49 como sabedoria, justiça, magnanimidade e decoro,
apresentadas em De Officiis, I, 15:

Tudo aquilo que é honesto é oriundo de uma dessas quatro fontes:


ou se encontra na diligente procura pela verdade; ou na proteção
da sociedade humana, ao dar a cada um o seu e ao preocupar-se
com os assuntos acordados; ou na grandeza e força de um ânimo
sublime e invencível; ou na ordem e na medida de todas as coisas
que se faz e se diz, em que há moderação e temperança. Essas
quatro partes são coligadas entre si e implicam umas nas outras 50.

47
LÉVY, na obra Cicero Academicus, analisa a origem, a extensão do conceito e as formulações
ciceronianas para esse. pp.377-444. LÉVY, C. Cicero academicus: Recherches sur les
Académiques et sur la philosophie cicéronienne. Paris: Collection de l'Ecole française de Rome,
1992.
48
CÍCERO. De Officiis, II, 1.
49
Ao analisar essa parte da teoria segundo a obra crisipiana, Vogt aponta que um importante
aspecto da teoria da oikeiôsis é como vemos os outros e afirma que, ao nos tornarmos virtuosos,
mudamos nossa disposição em relação aos outros; ademais, essa teoria diz respeito a como nós
vemos os outros pertencendo ao mesmo todo que nós. Cf. VOGT. Law, Reason and the Cosmic
City, p. 100.
50
CÍCERO. De Officiis, I, 15: Sed omne, quod est honestum, id quattuor partium oritur ex aliqua.
Aut enim in perspicientia veri sollertiaque versatur aut in hominum societate tuenda tribuendoque
suum cuique et rerum contractarum fide aut in animi excelsi atque invicti magnitudine ac robore
aut in omnium, quae fiunt quaeque dicuntur ordine et modo, in quo inest modestia et temperantia.
Quae quattuor quamquam inter se colligata atque implicata sunt, tamen ex singulis certa
officiorum genera nascuntur, velut ex ea parte, quae prima discripta est, in qua sapientiam et
prudentiam ponimus, inest indagatio atque inventio veri, eiusque virtutis hoc munus est proprium.
26

Os ensinamentos acerca dos deveres, deixados nos preceitos, porém de maior


aplicação prática, devem ser utilizados em todos os âmbitos da vida, quer pública ou
privada. De certa maneira, os deveres se fundamentam nessas virtudes: eles devem ser
úteis e o seu cumprimento pode ocorrer por cinco vias, das quais duas dizem respeito à
conveniência e à honestidade, duas pertencem ao domínio daquilo que é útil para a vida
e a quinta consiste na análise do que será escolhido, principalmente quando as partes estão
em conflito51. A virtude, por sua vez, consiste em três coisas: primeira, conhecer aquilo
que em cada coisa há de verdadeiro e autêntico, o que lhe é mais conforme e a
consequência disso, a origem e a causa; segunda, frear as paixões da alma e fazer com
que os apetites obedeçam à razão; e, terceira, tratar com moderação e sensatez aqueles
com os quais convivemos, a fim de que, graças às suas cooperações possamos ter em
abundância aquilo que a natureza exige, defendendo-nos daquilo que é oposto, vingando-
nos daqueles que ameaçam e infligindo castigos de acordo com o que a equidade e a
humanidade permitem52. Com isso, Cícero nos permite pensar, no primeiro caso, na
virtude da sabedoria, no decoro no segundo e na magnanimidade e justiça no terceiro.

A ação útil conduz o homem ao bem moral; essa pode ser praticada tanto pelo sábio
quanto pelo homem médio – adiante trataremos da figura do sábio. E as ações médias
podem ser exercidas tanto pelo sábio quanto pelo homem comum. No entanto, as ações
médias, para o sábio, serão sempre ações corretas, pois, em princípio, a inclinação do
sábio é virtuosa. Não se mede a ação pelo escopo, mas por sua intenção 53; é por isso que
as ações virtuosas, quando exercidas por homens comuns, serão (apesar de corretas e
terem satisfeito os mesmos objetivos das ações retas) sempre ações médias, nunca
perfeitas. O sábio, por conhecer justamente a ordem do universo e, com sua firme
disposição, age de forma perfeita. Ademais, com a vontade do sábio visando apenas ao
bem supremo, ele jamais se afasta da moralidade perfeita. É na vontade (nesta inclinação
da alma à virtude) que existe a diferença entre as ações médias (homens comuns de alma
imperfeita) e as ações perfeitas, dos sábios. Assim, a investigação sobre os deveres é
dupla: pois há o dever absoluto, os katórthoma, que levam à ação correta, e o dever

51
CÍCERO. De Officiis, II, 9.
52
CÍCERO. De Officiis, II, 18.
53 Adiante veremos que esta questão é mais complexa, e a ação tem grande importância, uma

vez que a intenção não é suficiente para o exemplo histórico.


27

comum, os kathékon54, officium55. A ação reta do sábio está, assim, de acordo com o dever
absoluto. A ação honesta é encontrada nos sábios e jamais pode ser separada da virtude56.
Cícero considera o útil e o honesto conjuntamente ao descrever o virtuoso; apenas seria
virtuoso, para o filósofo, aquilo que fosse simultaneamente útil e honesto, fundamentos
da ação paradigmática do sábio-político.

Outra forma de explicar os deveres é por meio das imagens das personae, as
personagens, pelos quais os poetas, pelo critério de verossimilhança, estabelecem o que
é conveniente a cada um a partir do caráter, ou seja, as ações humanas devem ser
decorosas assim como as das personagens, verossímeis 57. O decoro aparece como virtude
que ordena, diz o que é adequado a cada um, dá constância e moderação às palavras e
ações. O primeiro dever que decorre disso é agir de acordo com a harmonia da natureza
e respeitar as leis; em seguida, o que é mais conveniente para a vida dos homens em
comunidade é a fortaleza e a coragem. O resultado deve ser a razão comandar e o apetite
obedecer. E “qualquer ação deve, todavia, ser isenta de toda a temeridade e de toda a
negligência, nem se deve realmente fazer algo em relação ao qual nenhuma razão
provável possa ser aduzida – tal é, com efeito a definição de dever” 58.

Pelo uso da razão, o homem percebe a ordem e a harmonia dos deveres e os estima
mais do que as coisas que amava antes. Cícero afirma que a sabedoria passa a ser mais
estimada que os princípios da própria natureza. Esta seria, então, a terceira forma de
cuidado, como lemos em De Finibus, III, 23:

Como, no entanto, tudo deve ter o seu princípio na natureza, é


necessário que dela proceda também a própria sabedoria. E, assim
como frequentemente acontece que aquele que foi recomendado
a outro estima mais aquele a quem foi recomendado que aquele
que o recomendou, assim não é de admirar que, tendo a natureza

54
CÍCERO. De Officiis, I, 7-8.
55
Cf. LÉVY, C. Cicero Academicus. pp. 523-535. Aponta como a teoria dos deveres é
indissociável do mundo da cidade e examina a teoria em De Officiis e sua relação com as obras
políticas De Re Publica e De Legibus.
56
CÍCERO. De Officiis, III, 13.
57
CÍCERO. De Officiis, I, 96-110.
58
CÍCERO. De Officiis, I, 101: Omnis autem actio vacare debet temeritate et neglegentia nec
vero agere quicquam, cuius non possit causam probabilem reddere; haec est enim fere discriptio
officii.
28

posto nas mãos a sabedoria, venhamos depois a estimar mais a


sabedoria que a própria natureza59.

A sabedoria, como uma das virtudes em que se fundamentam os deveres, consiste


na busca pela verdade, “é o conhecimento não apenas de tudo aquilo que é divino e
humano como também das causas que os determinam” 60. Ela é a primeira fonte do dever
e melhor se manifesta na vida humana mostrando aos homens o que deve ser seguido e
evitado, de modo prudencial.

Por fim, podemos estabelecer a dimensão social do homem no quarto momento do


cuidado; essa etapa se fundamenta na associação dos seres racionais, na pátria comum de
homens e deuses61. Do cuidado consociável depende o comportamento do sábio, suas
ações retas e seu caráter socialmente e politicamente engajado 62. Cícero expõe sua
percepção da sociabilidade natural na passagem em que estabelece uma relação direta
entre o cuidado dos nascidos e a natureza, e entre a natureza e a sociedade. O cuidado
consociável permite-nos pensar que a natureza, ao dotar os homens de um impulso social,
faz com que eles o manifestem na união recíproca, como lemos em De Finibus Bonorum
et Malorum III, XIX, 62-63:

Julgam relacionadas a essas coisas a compreensão de ser uma


disposição natural os filhos serem amados pelos pais; e deste
princípio nasceu a sociedade e a comunidade do gênero humano.
Basta observar a própria forma e os próprios membros do corpo
para perceber a motivação para a procriação que, por si,
expressam o cuidado que a natureza teve. E não é possível que a
natureza tenha querido procriar e que não cuide de zelar e
conservar o procriado. (...) Assim, a natureza mesma nos impele
a amar o que geramos. 63. Deste modo, provém da natureza a
tendência para relacionar os homens entre os homens, o que faz

59
CÍCERO. De Finibus, III, 23: Cum autem omnia officia a principiis naturae proficiscantur, ab
isdem necesse est proficisci ipsam sapientiam. sed quem ad modum saepe fit, ut is, qui
commendatus sit alicui, pluris eum faciat, cui commendatus sit, quam illum, a quo, sic minime
mirum est primo nos sapientiae commendari ab initiis naturae, post autem ipsam sapientiam
nobis cariorem fieri, quam illa sint, a quibus ad hanc venerimus.
60
CÍCERO. De Officiis, II, 5.
61
CÍCERO. De Legibus, I, VII, 23.
62
RADICE. Oikeiosis: Ricerche sul fondamento del pensiero stoico sulla sua genesi . p.222.
29

com que nenhum homem possa parecer estranho a outro homem,


e isto pelo simples fato de ser homem. (...) Muito maior é a
agregação entre os homens, e por natureza somos aptos a nos
reunirmos em agrupamentos, conselhos e ciuitates 63.

Portanto, o cuidado, uma disposição ou estado da alma 64, faz com que os homens
busquem não apenas a conservação de si, mas também dos filhos, dos que são próximos,
até alcançar os membros de uma ciuitas. Desse modo, todos os homens tendem a
conciliar-se, uma vez que o cuidado, primeiramente, é apenas de cada homem para
consigo mesmo e, depois, passa ao todo como uma extensão do amor de si65, pelos
deveres e pela sociabilidade. Logo, reunir-se em uma ciuitas é uma manifestação da
autoconservação, dos deveres, dos atos de acordo com a natureza e do impulso de
sociabilidade, ou seja, dos quatro momentos do cuidado. É ele que determina o sentido
do que é ser útil, pois é por meio dele que se estabelecem as relações sociais; logo, agir
para ser útil é agir de acordo com a virtude, ou seja, com a natureza, o que, para Cícero,
equivale a agir segundo os costumes da ciuitas. Além disso, uma vez que os homens
buscam sua autoconservação, buscam também o que lhes é apropriado, e buscar o que é
apropriado a cada um é um princípio da justiça, já que esta significa dar a cada homem o
que lhe convém, e seus fundamentos são: “primeiro, que ninguém seja lesado, depois, que
a utilidade comum seja salvaguardada” 66; ou seja, este último princípio do cuidado
relaciona-se com a justiça, pois o homem deve buscar aquilo que é útil a todos e não
apenas a si próprio. O que é justo é decoroso, pois consiste “em tudo aquilo que é
conforme a excelência dos homens” e “aquilo que é conforme a natureza com vista à
moderação e à temperança” 67. As noções de justiça e ordem moral estão intimamente

63
CÍCERO. De Finibus, III, 62-63: [62] Pertinere autem ad rem arbitrantur intellegi natura fieri
ut liberi a parentibus amentur. A quo initio profectam communem humani generis societatem
persequimur. Quod primum intellegi debet figura membrisque corporum, quae ipsa declarant
procreandi a natura habitam esse rationem. Neque vero haec inter se congruere possent, ut
natura et procreari vellet et diligi procreatos non curaret. (...) sic apparet a natura ipsa, ut eos,
quos genuerimus, amemus, inpelli. [63] ex hoc nascitur ut etiam communis hominum inter
homines naturalis sit commendatio, ut oporteat hominem ab homine ob id ipsum, quod homo sit,
non alienum videri.
(...) multo haec coniunctius homines. Itaque natura sumus apti ad coetus, concilia, civitates.
64
VOGT. Law, Reason and the Cosmic City. p.149.
65
CÍCERO. De Finibus, III, 62-63.
66
CÍCERO. De Officiis, I, 31.
67
CÍCERO. De Officiis, I, 96.
30

ligadas àquela de agenciamento regulador do tempo, das fases e do que é apropriado à


vida humana. Segundo Lloyd, “a justiça é concebida em parte como ligada à ordem
temporal da vida humana, e, inversamente, o tempo não é simplesmente um fenômeno
natural, é um aspecto do ordenamento moral do universo” 68. Se a cada idade, em cada
fase, o homem deve fazer aquilo que lhe é apropriado, então deve fazer aquilo que é justo,
ao mesmo tempo, à idade, ou seja, o tempo é um aspecto de ordenação moral.

Do ponto de vista coletivo, de certa forma, o cuidado já aponta para o amor pátrio,
uma vez que expõe como naturais os laços entre os homens virtuosos e o que lhes é
apropriado. Estão postos na natureza humana o amor e, por extensão, uma concórdia com
seus semelhantes. Disso depreendemos que, na obra ciceroniana, há um espaço para um
afeto social e o cuidado com o outro – o homem deve desenvolver sua sociabilidade
natural. A ação racional que visa à sociabilidade já é uma ação política, uma vez que trata
do bem comum. Vogt aponta que, para Cícero:

a teoria da oikeiôsis está ligada às ideias-chave da filosofia


política estoica. A instrução para considerar todos os outros como
concidadãos acrescenta um domínio político às exigências que a
teoria da oikeiôsis esboça; isso enfatiza o aspecto de estar afiliado
com os outros para considerá-los como protegidos pela mesma
lei69.

A razão possibilita ao homem desenvolver outras habilidades, como a linguagem


e a percepção do tempo, fundamentais para a vida em sociedade. O homem é o único que
pode perceber o passado, o presente e projetar o futuro, e estabelecer as relações de causa
e consequência. Não ignora o que vem antes, ou seja, o passado, e com o conhecimento
do presente pode projetar o futuro, pois o presente fornece as causas para o futuro; além
disso, os homens, por conhecerem bem o passado e o presente, tornam-se mais preparados
para o que tem por vir, sendo prudentes. Em De Officiis, I, 11 Cícero diferencia homens
e animais por essas características, como lemos:

68
LLOYD. Les Cultures et le temps, p.140. La justice est conçue em partie comme liée au bom
ordre temporel de la vie humaine et, inversement, le temps n´est pas simplement um phénomène
naturel, il est un aspect de l´ordonnancement moral de l´univers.
69
VOGT. Law, Reason and the Cosmic City, p. 105.
31

11 (...) Mas a diferença mais marcante entre homens e animais é


a seguinte: o animal, porque é comandado pelos sentidos, adapta
as suas ações apenas àquilo que é próximo e presente, e é pouco
afeito à percepção do passado e do futuro; o homem, porém,
porque é partícipe da razão, por meio dela estabelece relações,
percebe a causa das coisas, não ignora os pregressos e, por assim
dizer, os antecedentes, compara as coisas iguais e associa
intimamente as coisas futuras às presentes, pode facilmente
perceber todo o curso da vida e preparar as coisas necessárias para
a sua conduta70.

Nessa passagem, Cícero usa três palavras como sinônimas para amplificar e
reforçar o sentido do que quer dizer: “causa”, “pregressos” e “antecedentes” marcam a
capacidade natural do homem de perceber o passado por ser racional. É preciso
compreender o passado para explicar as ações humanas presentes, e uma das formas de
se fazer isso é escrevendo narrativas históricas e usando exemplos históricos. Com isso,
o homem naturalmente é capaz de perceber o curso da vida e da pátria. Se vimos até agora
que o homem possui uma sociabilidade natural, a partir de então, pela percepção temporal
podemos dizer que o homem possui uma historicidade natural.

Da mesma forma que a razão possibilita a percepção temporal, ela também permite
ao homem conjeturar, e, dessa forma, ele exerce sua capacidade prudencial. Além disso,
a sociabilidade e a historicidade naturais são possíveis, pois, segundo De Officiis, I, 12,
Cícero relaciona a linguagem dada pela natureza e para a vida social:

12. Essa mesma natureza, pela força da razão, associa homem


com homens e cria uma correspondência que se manifesta na
linguagem e na vida social, inspira acima de tudo um
extraordinário amor pela prole, induz a desejar associações e
celebrações; por esses mesmos motivos, [a natureza] comanda os

70
CÍCERO. De Officiis, I, 11: Sed inter hominem et beluam hoc maxime interest, quod haec
tantum, quantum sensu movetur, ad id solum, quod adest quodque praesens est se accommodat,
paulum admodum sentiens praeteritum aut futurum. Homo autem, quod rationis est particeps,
per quam consequentia cernit, causas rerum videt earumque praegressus et quasi antecessiones
non ignorat, similitudines comparat rebusque praesentibus adiungit atque adnectit futuras, facile
totius vitae cursum videt ad eamque degendam praeparat res necessarias.
32

esforços dos homens para procurarem aquelas coisas que são


necessárias à vida e à sua comodidade e não apenas para si
mesmos, mas para a mulher, os filhos, para todos os outros que
lhes são caros e devem proteger. Este cuidado estimula os ânimos
e os torna maiores, tendo em vista as ações que estão por serem
feitas 71.

Ao estabelecer que há ações por serem feitas, Cícero abre espaço para a ação
presente e futura. Ao conhecer as causas, o homem, como vimos, tem noção de seu
passado, vive no tempo presente, que é o tempo da ação, e deve se preocupar com o que
há por fazer, no futuro.

Como é retomado em De Officiis, I, 50-51, o vínculo entre os homens é


estabelecido por meio da razão e da linguagem, ratio e oratio. Elas associam os homens
uns aos outros, reunindo-os numa espécie de sociedade natural. Este é o aspecto que mais
nos afasta da natureza dos animais. Então, o laço que mais une os homens é aquele de
uma sociedade na qual todas as coisas foram criadas pela natureza para usufruto comum
e são pertença de toda a comunidade, de tal modo que tudo aquilo que é regulado pelas
leis civis possa ser encontrado em conformidade com aquilo que é estabelecido pelas leis
naturais. Assim, a tendência natural para constituir uma ciuitas tem a possibilidade de se
realizar, uma vez que a natureza associa, por meio da razão, “homem com homem pelos
laços de linguagem e de vida”. No estoicismo, o universo é racional e o homem é parte
dele; a reta razão só pode estar em conformidade com a incitação inicial da natureza. O
vínculo estabelecido pela razão e pela linguagem permite ao homem ensinar, aprender,
comunicar, discutir, raciocinar, e, nessas ações, se manifestam a sua sociabilidade natural
e a historicidade natural.

A construção do significado do termo sermonis é o correspondente exato do


conceito de oratio, ou seja, oratio em De Officiis é semelhante ao uso de sermonis em De

71
CÍCERO. De Officiis, I,12: Eademque natura vi rationis hominem conciliat homini et ad
orationis et ad vitae societatem ingeneratque inprimis praecipuum quendam amorem in eos, qui
procreati sunt impellitque, ut hominum coetus et celebrationes et esse et a se obiri velit ob easque
causas studeat parare ea, quae suppeditent ad cultum et ad victum, nec sibi soli, sed coniugi,
liberis, ceterisque quos caros habeat tuerique debeat, quae cura exsuscitat etiam animos et
maiores ad rem gerendam facit.
33

Re Publica, III, II, 3, quando Cícero apresenta sua teoria da escrita e da linguagem, por
meio da mente, que é identificada à razão e à natureza. A linguagem permite que os
homens se relacionem, comuniquem-se e vivam de modo consensual; além disso, a escrita
de cartas aos ausentes e a documentação dos feitos passados permitem à mente humana
se deslocar no espaço e no tempo, respectivamente:

(...) como tivesse encontrado os homens proferindo algo


incompleto e confuso mediante vozes disformes, [a mente] as
separou e as distinguiu em partes e imprimiu palavras às coisas,
como uma espécie de signos; e aos homens, dissociados antes,
congregou-os entre si com o vínculo de linguagem. Os sons da
voz, que pareciam infinitos, também foram todos, pela mesma
mente, identificados e expressos com alguns poucos caracteres
inventados, com os quais tiveram tanto colóquios com os ausentes
como indicações das vontades e documentos dos feitos
passados 72.

Cícero estabelece que linguagem e percepção do tempo conjugadas possibilitam


ao homem ordenar o tempo cronologicamente, dividi-lo e organizá-lo. A razão e a
linguagem permitem ao homem se deslocar no tempo e voltar ao passado por meio da
memória e de narrativas históricas. Assim, por querermos compreender o recurso à
história nas obras políticas consideramos tão importante a relação entre linguagem, razão
e tempo na matriz ciceroniano-estoica. Na vida política, é estabelecido um elo entre o
presente e o passado que dá sentido à ação do presente pela reinterpretação dos exempla,
e a razão fornecerá a interpretação correta, que guiará a ação para produzir novos feitos
memoráveis.

Devemos notar ainda que a percepção do tempo manifesta-se discursivamente, na


narrativa. A linguagem permite a agregação dos homens e a documentação dos feitos

72
CÍCERO. De Re Publica, III, 3: eademque cum accepisset homines inconditis uocibus
inchoatum quiddam et confusum sonantes, incidit has et distinxit in partis et ut signa quaedam
sic uerba rebus inpressit hominesque antea dissociatos iucundissimo inter se sermonis uinculo
conligauit. A simili etiam mente uocis, qui uidebantur infiniti, soni paucis notis inuentis sunt
omnes signati et expressi, quibus et conloquia cum absentibus et indicia uoluntatum et
monumenta rerum praeteritarum tenerentur.
34

passados, ou seja, a política e a história, e como veremos, nos próximos capítulos, a


matéria da história é a ação política.

As ações que estão por serem feitas, os novos feitos memoráveis serão os feitos
políticos. Sua realização cabe tanto ao homem médio como, principalmente, ao homem
sábio, que possui ânimo forte e constante, conserva o ânimo presente e é capaz de
discernir, sem se afastar da razão; consequentemente, possui maior capacidade
prudencial, como lemos em De Officiis, I, 81:

E se isso é privilégio de um ânimo forte, é sinal de um grande


engenho prever o pensamento as coisas futuras, e também
determinar o quanto possível, antecipadamente, aquilo que de
bom e de mau possa acontecer, bem como aquilo que deve ser
feito quando isto suceder, sem que tenha de se ver constrangido a
dizer que não havia pensado nisso. São estas as ações de um
espírito forte e excelente, que confia na prudência e no
discernimento73.

Se quem mais conhece e nos fornece o paradigma de ação é o homem sábio 74, cabe
à “filosofia elaborar a noção de virtude, na qual se realiza uma vida autenticamente
humana”75, pois esta apenas é possível por meio do conhecimento. Quem é o homem
sábio? Como Cícero elabora esta figura? Primeiramente, devemos considerar que a
sabedoria deve proceder da natureza76, e pode ser tanto interpretada como “diligente
procura pela verdade”77 ou como “ciência não apenas de tudo aquilo que é divino e
humano como também das causas que os determinam” 78; ou seja, se a sabedoria consiste
no conhecimento das causas, logo, é o conhecimento do passado. Se a vida se realiza na

73
CÍCERO. De Officiis, I, 81: Quamquam hoc animi, illud etiam ingenii magni est, praecipere
cogitatione futura et aliquanto ante constituere, quid accidere possit in utramque partem et quid
agendum sit, cum quid evenerit, nec committere, ut aliquando dicendum sit "non putaram". Haec
sunt opera magni animi et excelsi et prudentia consilioque fidentis;
74
Vogt analisa que na República, de Zenão, apenas os sábios eram cidadãos, amigos, parentes e
livres. Cícero parece manter a relação entre ser sábio, amigo e livre, mas não considera de modo
tão estrito as questões relativas à sabedoria e aos papéis do sábio. Cf. VOGT. Law, Reason and
the Cosmic City, p. 76.
75
CÍCERO. Academica Priora, 31.
76
CÍCERO. De Finibus, III, 7, 23
77
CÍCERO. De Officiis, I, 15.
78
CÍCERO. De Officiis, II, 5: rerum divinarum et humanarum causarumque, quibus eae res
continentur, scientia.
35

república, as ações devem visar ao bem comum, e todos os exemplos paradigmáticos de


sábios citados são homens políticos, como veremos nos parágrafos seguintes. Então, há
uma dimensão política no conceito de sabedoria, na medida em que a vida, segundo a
natureza, se realiza na ciuitas, pois o homem é sociável por nautreza. Devemos notar que
o sábio, na obra ciceroniana, não é uma construção hipotética, mas se refere a homens
que de fato existiram e realizaram grandes feitos, ou seja, eram também figuras históricas.

Dependendo da obra de Cícero, o sábio possui atribuições distintas 79, mas o que é
comum a todos é a participação na vida política, a condução de uma vida virtuosa, a busca
pelo bem comum e a correta interpretação das Leis da natureza, como lemos em De Re
Publica, I, 52:

Na verdade, o que pode ser mais ilustre do que a virtude como


governadora da república? Quando aquele que comanda outros
não é, ele próprio, servo de nenhuma paixão, quando ele institui
e conclama os concidadãos a todas aquelas obras de que ele
próprio participa e não impõe ao povo leis que ele próprio não
siga, mas apresenta sua vida a seus concidadãos como lei80.

Dizer que a virtude governa a república é o mesmo que dizer: um homem sábio
governa a república. O sábio visa o bem comum, a utilidade comum, colocando a
república em primeiro lugar, uma vez que o primeiro dever do homem é com a república
e, consequentemente, com todos os seus concidadãos. Cícero argumenta que o diálogo
De Re Publica é travado por “varões ilustríssimos e sapientíssimos” 81, que os homens
devem praticar as artes úteis à ciuitas, pois julga que “é a mais bela função da sabedoria

79
Em De Oratore, ele é o orador e político que participa da vida pública e é o mais apto a escrever
as narrativas históricas. Em De Legibus, o sábio é o político legislador. Em De Amicitia e De
Senectute, eles são políticos amigos e velhos. Em De Officiis, eles manifestam perfeitamente todas
as virtudes e trabalham para a realização dos deveres, sendo que o primeiro deles é para com a
pátria. Em De Re Publica, há por excelência a manifestação do sábio-político na gestão da
república, e se destacam as figuras de Catão e Cipião.
80
CÍCERO. De Re Publica, I, 52: Virtute vero gubernante rem publicam, quid potest esse
praeclarius? cum is qui inperat aliis servit ipse nulli cupiditati, cum quas ad res civis instituit et
vocat, eas omnis conplexus est ipse, nec leges inponit populo quibus ipse non pareat, sed suam
vitam ut legem praefert suis civibus.
81
CÍCERO. De Re Publica, I, 13: clarissimorum ac sapientissimorum nostrae ciuitatis uirorum
36

e, ou o grande exemplo, ou o dever da virtude”82. Dessa forma, temos uma obra em que
se relaciona sabedoria e política.

Cícero, no exórdio do De Re Publica, I83, constrói a figura do homem sábio por


meio de dois argumentos centrais: o amor pátrio e o combate aos que julgam que a
sabedoria é incompatível com a vida pública. Os varões que lutaram pela salvação da
pátria são dignos de admiração, pois colocaram os interesses públicos em primeiro lugar;
são os que antepõem o amor à pátria ao seu. O amor à pátria é um sentimento de
reconhecimento, na medida em que tudo o que temos devemos a ela; ele deve ser
incondicional. Cícero faz objeções àqueles que se opõem à atividade política e mostra a
necessidade de os bons concidadãos protegerem os outros concidadãos. Eles precisam
estar preparados a qualquer momento quando a república necessitar. Desse modo, o que
carregamos na memória é o nome dos homens públicos. O concidadão virtuoso deve
dedicar-se ativamente à política, deve ter qualidades morais que o habilitem à ação
política. Um político-sábio é aquele que é educado nas artes liberais e nos costumes
romanos, como o exemplo de Catão em De Re Publica, I, 1, que possui “ação e virtude”.

Nosso autor escreve contra os epicuristas – chamados de “opositores” ou “vulgo”


–, e, para sustentar sua argumentação, emprega a doutrina estoica e os exemplos de
homens que agem segundo preceitos estoicos e que lutaram pela pátria. Ao mesmo tempo
em que combate os epicuristas, elabora a figura do sábio baseando-se na virtude, como
aquela que foi dada aos homens pela natureza para a utilidade comum, pública. Ademais,
enfatiza a necessidade de praticá-la, ou seja, de usá-la na vida pública em benefício do
povo. O que os filósofos dizem de reto e honesto é confirmado pelos que fazem as leis
para a ciuitas. O sábio para Cícero é o que ensina as virtudes como justiça, confiança,
equidade, pudor, continência, honra, honestidade, fortitude, religião e direito das gentes
por meio das disciplinas 84. Algumas destas virtudes serão confirmadas pelos costumes e
outras sancionadas pelas leis. Assim, o concidadão sábio é aquele que defende os
interesses públicos, é um homem sábio e político. É dever do concidadão sábio e político
engrandecer as obras do gênero humano por meio de seu discernimento e trabalho, e isso
ocorre por estímulo da própria natureza. É dever dos concidadãos cuidar da pátria, ou
seja, servir a pátria para que ela também lhes proporcione um refúgio. Logo, a pátria não

82
CÍCERO. De Re Publica, I, 33: id enim esse praeclarissimum sapientiae munus maximumque
uirtutis uel documentum uel officium.
83
Cf. CÍCERO. De Re Publica, I, 1-13.
84
Cf. CÍCERO. De Re Publica, I, 2.
37

pode ser um simples refúgio sem darmos nada a ela. Aos bons, aos fortes e aos de grande
ânimo não haveria causa mais justa do que servir à república85.

Cícero, no exórdio, coloca-se como sábio-político, pois ocupou um cargo público


quando a República estava em crise. Todos os interlocutores ocuparam cargos públicos,
e o principal interlocutor, Cipião, ao explicar como as pessoas devem ouví-lo e, assim,
vê-lo, formula: um togado, “instruído de modo livre e foi abrasado pelo desejo de
aprender desde a infância, mas foi muito mais instruído pela experiência e pelos preceitos
domésticos do que pelas letras” 86. Assim, temos uma junção de teoria e prática, e se
pensarmos na filosofia estoica paneciana, que o formou, a teoria apenas possui
importância se praticada.

Quanto à sua formação, discute-se, especialmente, o espaço dado à filosofia, uma


vez que o filósofo não é necessariamente o sábio, mas o sábio possui formação filosófica 87
e precisa ter um equilíbrio entre sua formação e suas atividades, entre teoria e ação, ou
seja, filosofia e ação política; assim, une negotium e otium88, uita e sapientia89.

Cícero, Cipião, Catão, representam a perfeita figuração do exemplo. O sábio


político deve dar ao seus concidadãos o exemplo, deve possuir a virtude em si para que a
república tenha uma forma justa – consequentemente, não degenerada – pois a virtude de
quem governa a república ou daqueles que a governa proporciona a estabilidade para a
vida política. Dessa maneira, temos homens particulares que devem pensar no bem
comum. Em De Re Publica, III, 5, Cícero afirma: “(...) Pois o que pode ser mais notável
do que a união da prática e da experiência dos grandes feitos com o conhecimento e os
esforços naquelas artes? Ou quem pode se imaginar mais realizado que Públio Cipião,
que Caio Lélio, que Lucio Filo?” 90 Ele coloca na figura de três homens públicos a
realização, a ideia de dever cívico cumprido. Em outras obras, cita grandes exemplos de

85
Cícero, como um homem sábio e político, autoriza-se como escritor de suas obras políticas,
porque foi cônsul em um momento de crise; assim, coloca-se como o homem que ocupava o cargo
certo na hora certa.
86
CÍCERO. De Re Publica, I, 36: non illiberaliter institutum studioque discendi a pueritia
incensum, usu tamen et domesticis praeceptis multo magis eruditum quam litteris.
87
Cf. Os três exórdio de De Officiis.
88
Cf. Exórdio de De Re Publica, I.
89
Cf. CÍCERO. De Oratore, III, 88. Alain Michel afirma que o orador é “um representante da
sabedoria em ação”. MICHEL, A. Les rapports de la rhétorique et de la philosophie dans l´oeuvre
de Cicéron. p.656.
90
CÍCERO.De Re Publica, III, 5: Quid enim potest esse praeclarius, quam cum rerum magnarum
tractatio atque usus cum illarum artium studiis et cognitione coniungitur? aut quid P. Scipione,
quid C. Laelio, quid L. Philo perfectius cogitari potest?
38

sábios-políticos91, como em De Oratore92, Crasso93 e Antônio94; Lélio, Cipião e Catão


em De Senectute95 e De Amicitia96. Assim, o sábio é o mais apto a viver de acordo com a

91
O que depreendemos da figura do sábio, não importa se político, historiador, ancião, orador ou
filósofo, é que de um modo geral foram homens de formação estoica, conheciam os costumes
romanos, agiam de acordo com a razão, eram virtuosos e se dedicaram à vida pública. Sabiam
observar a passagem do tempo, conheciam o passado, sabiam como agir no presente e até no
futuro, com base nas experiências pregressas.
92
Em De Oratore, em que temos as posições de Crasso e Antônio sobre o melhor orador e qual a
formação ele deveria receber, Antônio critica Crasso, que defende a formação filosófica, dizendo
que o orador deve ser dotado de uma inclinação natural para tal tarefa e deve ter experiência, ser
hábil para identificar pensamentos, sentimentos, opiniões de seus concidadãos e daqueles que seu
discurso quer persuadir. Ele defende que os livros dos filósofos devem ficar restritos para os
tempos de férias, para o orador não correr o risco, por exemplo, de no momento em que lhe couber
falar da justiça, tomar de empréstimo Platão, que expôs o conceito de justiça de forma distante da
realidade da vida cotidiana e dos costumes da comunidade civil (De Oratore, III, 88). Com isso,
Antônio tenta defender que a filosofia distancia os homens da realidade. Crasso defende a tese de
que o orador deve conhecer muitas artes e reatar os laços entre retórica e filosofia. Devemos notar
que as considerações sobre a relação do estudo da filosofia atrelado à retórica devem ser
ponderadas, uma vez que Cícero combate todos que se afastam da vida pública apenas para
filosofar e defende uma interação entre a formação filosófica, os costumes e a prática; ou seja,
argumenta que é tarefa do sábio ocupar-se da política, logo, depreendemos que o orador é também
um político e um sábio; com isso, o ideal de filósofo e sábio não é mais aquele que se dedica
apenas à contemplação, mas às questões da vida prática. Cita como exemplo Catão e Cipião,
homens que tiveram uma ampla formação tanto nas artes quanto nos costumes e na vida. Pelo
fato de o orador conhecer todos os assuntos e atrelá-los à arte oratória, ele será o mais indicado
para tratá-los, pois saberá dizer de modo ornado.
93
Crasso tenta buscar escolas que seriam as mais adequadas para a formação do orador perfeito,
ou seja, escolas que não dissociavam a retórica da filosofia e que privilegiavam um tratamento
de questões voltadas mais à ética e à política do que às questões da natureza. Pois de nada adianta,
para Cícero, um discurso que não seja útil à república. O orador deve operar uma síntese entre
retórica e filosofia, técnica de composição e transmissão do discurso atrelada a um conteúdo
moral, ou seja, deve ser um orador, um filósofo e um homem de ação ao mesmo tempo, um guia
político, um chefe de governo, o principal no senado, nas assembleias populares e nas causas
públicas – com isso, estabelece um ideal de sábio. São afastados os epicuristas e os estoicos, e
aproximados os peripatéticos e os acadêmicos. Aqui temos um primeiro paradoxo, pois os
exemplos de Catão e Cipião o contradizem, uma vez que receberam formação estoica. Além
disso, critica Sócrates ao afirmar: “Sócrates depois separou, como expliquei, os eloquentes dos
doutos, e assim fizeram todos os socráticos, e a patir daquele momento os filósofos desprezaram
a eloquência, e os oradores, a sabedoria” (De Oratore, III, 72); assim, não houve mais aquela
aliança entre sabedoria e a palavra. Ou seja, Cícero quer demonstrar que a palavra, a retórica,
deve estar atrelada à sabedoria, à filosofia. Apesar de criticar a postura dos filósofos estoicos, não
seria a filosofia estoica média, defendida por Panécio, estudada por Catão e Cipião, adaptada ao
contexto romano a mais apta ao homem imerso na vida da república, ao contrário da acadêmica
e da peripatética? Esta resposta não será encontrada no De Oratore, mas em De Re Publica e De
Officiis, obras políticas e morais em que predomina o pensamento estoico. Essas visam a
formação do cidadão, principalmente o que deve estar apto a governar, que deve ser educado nas
artes liberais e nos costumes romanos. Fox em Cicero´s Philosophy of History, p. 120, aponta
que, nos diálogos, são as figuras históricas dos interlocutores que contribuem particularmente
com as obras, e Cícero trabalha com a verossimilhança dessas com a argumentação defendida.
Fox ainda argumenta que a questão central da obra é, na verdade, “o quanto a retórica é parte
essencial da vida política romana”, por isso é preciso discutir quem é o político, quem é o orador
e quem foram as figuras históricas romanas que atrelaram essas duas artes.
39

94
Parece-nos que Cícero defendia e acreditava mais nas ideias de Crasso do que de Antônio,
porém a argumentação de Antônio é pertinente, na medida em que o exemplo do conceito de
justiça de Platão é fortemente combatido por Cícero, que valoriza e defende conceitos
politicamente e historicamente fundamentados; por outro lado, a filosofia acadêmica é apontada
como uma das melhores a ser estudada pelo orador. Mas os exemplos dos grandes homens citados
são de cidadãos romanos que receberam como formação a filosofia estoica. Ao final, o que
importa é atrelar a filosofia à palavra. Além disso, a uita, a prática e a experiência são elementos
fundamentais na formação do orador, pois “o conhecimento das coisas fica fácil se a prática (usus)
firma a doutrina”. Assim, há complexidade e abrangência na formação do orador; não é algo
possível de ser feito isoladamente: “ninguém pode florescer e sobressair-se na eloquência, não
apenas sem a doutrina do dizer, mas ainda sem uma total sapiência. [II] Pois as outras artes se
sustentam sozinhas, por si mesmas; o bem dizer, porém – isto é, o dizer de maneira sábia, hábil e
ornamentada – não tem uma região definida, cujos limites possam ser demarcados” (CÍCERO. De
Oratore, II, 5). Cícero quer fazer do homem eloquente um sábio e de um sábio um homem
eloquente. Pois o sumo orador serão também todos aqueles homens que fazem uso da eloquência
como o advogado, o historiador, o político; ele estará apto para sempre socorrer a república.
95
Em De Senectute, Catão é representado como íntimo do círculo dos Cipiões, mestre de Lélio e
de Cipião Emiliano, um cultivador da humanitas e da sociabilidade natural. É retratado como o
senex sapiens, um ancião que conserva intacta sua auctoritas e seu prestígio político. A sabedoria,
na obra, está no saber envelhecer, no seguir a natureza (De Senectute, 5), ou seja, o curso da vida,
e no cultivo dos hábitos; com isso, a agricultura entra como metáfora do cultivo e do curso da
vida. A fase da velhice é aquela em que a força está no ânimo e na mente (De Senectute, 38) e
não no corpo, por isso a sabedoria é tão adequada aos anciãos. Notamos como a noção do que é
apropriado, ou seja, a justiça e o decoro se unem aqui com a passagem do tempo, a velhice. É
fazer na velhice o que é apropriado, decoroso, saber agir e envelhecer.
Cícero argumenta sobre o prazer dos agricultores: “esses não são impedidos de fato da velhice,
mas se avizinham, parece-me, maximamente, da vida do sábio” (De Senectute, 51), e nos parece
que a razão para isso é que ambos sabem observar o curso da vida, que de um grão transforma-se
em troncos grossos e ramos (De Senectute, 52); com isso, observamos que o sábio ganha mais
uma nuance: saber observar a vida, conhecer a passagem do tempo e saber se relacionar com ele.
Isso demonstra como a argumentação desenvolvida em De Oratore, do orador, um sábio, que
deve escrever as narrativas históricas, se relaciona com essa figura do sábio que observa o curso
da vida, da natureza, sabe observar a passagem do tempo e as transformações que ocorrem. Ao
indicar a leitura da obra Economico, de Xenofonte, Cícero afirma que essa obra louva a agricultura
e trata da administração do patrimônio. Narducci afirma que, para Xenofonte, o caráter real da
agricultura é estreitamente ligado à sophrosyne e consiste no saber comandar e no saber obedecer.
A agricultura ensina sobre o domínio, o comando, também porque requer endurance, confere
vigor viril a quem a pratica por levantar-se cedo, enfrentar longas jornadas, defender com as armas
e com o trabalho o campo. Cícero deixa subentendida a relação entre a sabedoria do agricultor e
a do político; ambos precisam do vigor e do comando. O imperium que se exprime no agricultor
é uma referência histórica aos tempos em que os heróis de Roma cultivavam o campo, que sabiam
trabalhar com o arado e governar. Como fundamenta a sabedoria e a magnitudo animi, a relação
com a terra fundamenta também a continuidade dos valores políticos. Se a aristocracia ligada à
terra mantiver este vínculo ficará ligada aos valores ético-políticos que fundamentaram o seu
poder. (NARDUCCI, E. Della Amicizia, traduzione, introduzine de Emanuelle Narducci, p.67-
70).
96
A amizade perfeita é aquela estabelecida entre homens sábios, no caso, Cipião e Lélio. Ela nada
mais é do que o acordo perfeito de todas as coisas divinas e humanas, dada aos homens pelos
deuses, e melhor do que ela, apenas a sabedoria (De Amicitia, 20). A amizade é pautada no
princípio da troca e na justiça, no “princípio de conceder aos amigos o que quiserem e deles obter
o que quisermos; seremos perfeitos sábios se o fizermos sem vício” (De Amicitia, 38). Dessa
forma, as trocas com os amigos não podem ser desiguais, pois ofereceriam ou requisitariam coisas
desiguais e talvez injustas. Assim, a amizade só pode existir entre os bons, e é próprio do sábio
manter duas qualidades, a saber: “evitar fingimentos e simulações, pois a franqueza é mais nobre
40

virtude, o que é equivalente a viver de acordo com a experiência das coisas que vêm
naturalmente.

De nada adianta possuir a virtude se não praticá-la; a sua grandeza está posta em
seu uso: as virtudes são exercidas necessariamente no plano concreto, da ação de fato,
com discernimento e escolha; nelas observamos a relação entre o conhecimento e a ação,
a virtude e a ação. Se o sábio 97 é aquele que age de forma reta, por que ele sabe assentir
e agir de forma reta melhor do que os outros homens? Em parte, é porque ele possui mais
virtudes, entretanto, ele as pratica mais, visando o bem comum. Como afirmado em De
Finibus, III, 64 “é digno de louvor aquele que se lança à morte pela república, dando-nos
testemunho de que devemos amar mais a pátria do que a nós mesmos”. Em De Re Publica,
I, 1-2, reitera-se o argumento das virtudes, do amor dado para a salvação comum – que
nos parece um aspecto da oikeiósis, de que já tratamos –, e a importância do sábio como
aquele homem que age e não fica proclamando coisas pelos cantos:

Afirmo apenas: tanta foi a necessidade de virtude dada ao gênero


humano pela natureza, tanto o amor dado para defender a
salvação comum, que esta força venceu todos os afagos da
volúpia e do ócio.

[II] 2. Não é suficiente, na verdade, ter a virtude, por assim dizer,


como uma arte, a menos que se a pratique. Ainda que uma arte
não seja praticada, sua ciência pode ser mantida, porém a virtude
está posta inteiramente em seu uso; no entanto, sua prática
máxima está em governar a ciuitas e não no discurso perfeito nem
nas próprias coisas que aqueles proclamam pelos cantos 98.

que a ocultação dos pensamentos” (De Amicitia, 65). A amizade é uma virtude que liga os homens
perfeitos, ou seja, os sábios; com isso, a amizade entre sábios é uma experimentação do amor (De
Amicitia, 100).
97
Sobre a teoria da ação e o sábio, Chaui observa: “Os estoicos comparam o sábio ao dançarino
e ao ator, cuja ação é seu próprio ser e cuja finalidade se esgota no próprio ato de dançar ou
representar, que exprime em cada instante a totalidade da ação, que tem seu fim em si mesma.
Essa metáfora é própria de uma filosofia que identifica ser e agir e na qual a causa eficiente é, em
ultima instância, a única causa real. A metáfora do dançarino e a do ator estão em conformidade
e em harmonia com a lógica e a física; a primeira, como vimos, concebe a proposição como
acontecimento e não como simpatia e harmonia de causas, isto é, como ordem e conexão de
acontecimentos. Além disso, tais metáforas indicam a relação entre o ato e o tempo”. CHAUI.
Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas. p. 167.
98
CÍCERO. De Re Publica, I, 1-2: unum hoc definio, tantam esse necessitatem virtutis generi
hominum a natura tantumque amorem ad communem salutem defendendam datum, ut ea vis
41

A utilidade posta na definição de república99 é recuperada nas exposições sobre as


virtudes. O que é útil a um deve ser útil a todos para que possa ser chamado de útil. Se
os homens devem socorrer uns aos outros pelo fato de serem homens, assim, pela mesma
natureza, a utilidade deve ser comum a todos. Ação útil é virtuosa e, por conseguinte,
honesta. A relação útil, honesta e virtuosa entre os cidadãos é permeada de afetividade,
pois incita ao amor e à relação concorde entre todos, de modo justo, benevolente,
magnânimo e decoroso. O sábio é aquele que mais pratica as ações virtuosas e sabe o que
é útil à pátria e aos concidadãos. Em nenhuma das concepções de sábio há a ideia do
afastamento da república.

Segundo Goldschmidt, a conformidade da república e do homem com a natureza


não supõe a realização de uma adequação entre termos separados: a natureza não é a
norma exterior à qual a ação deve se ajustar; na verdade, há um fim ético em viver em
conformidade com a natureza100. Estar em conformidade com a natureza é estar em
conformidade com a razão. Vejamos a seguinte passagem de De Legibus, I, 56:

(...) sem dúvida é óbvio que o sumo bem consiste em viver


conforme a natureza, isto é, uma vida moderada e própria da
virtude; e em seguir a natureza, vivendo, por assim dizer, sob suas
leis e sem nada poupar (enquanto seja possível) para realizar o
que pede a natureza, o que implica numa vida submetida à virtude
e às suas leis 101.

A inclinação natural, ou seja, a inclinação racional, leva os homens a agirem de


acordo com a uoluntas, que é regida pela racionalidade. Por sua vez, as paixões se opõem
à razão e são obstáculos para o homem atingir a felicidade 102. A paixão, diferentemente

omnia blandimenta voluptatis otique vicerit.(2) Nec vero habere virtutem satis est quasi artem
aliquam nisi utare; etsi ars quidem cum ea non utare scientia tamen ipsa teneri potest, virtus in
usu sui tota posita est; usus autem eius est maximus civitatis gubernatio, et earum ipsarum rerum
quas isti in angulis personant, reapse non oratione perfectio.
99
CÍCERO. De Re Publica, I, 39.
100
GOLDSCHMIDT. Le système stoïcien et l´idée de temps. Paris: Librairie Philosophique J.
Vrin, 1953. p. 59
101
CÍCERO. De Legibus, I, 56: Sed certe ita res se habet, ut ex natura uiuere summum bonum
sit, id est uita modica et apta uirtu<ti> perfrui; atqui naturam sequi et eius quasi lege uiuere, id
est nihil, quantum in ipso sit praetermittere, quominus ea quae natura postulet consequatur . . .
quo <par>iter haec uelit uirtut<is> tamquam lege <nos> uiuere.
102
Cf. VALENTE. A Ética Estoica em Cícero. p. 225.
42

da razão, tem raízes na opinião, por isso o sábio não pode estar sujeito a elas; é um
movimento irracional da alma e contrário à natureza. Os homens guiados pela razão são
os sábios, e os guiados pelas paixões são os não-sábios ou insensatos. Mas o que nos
interessa aqui é a ação dos homens sábios, livres, que desempenham suas tarefas,
conservam a virtude, enfim, que agem de acordo com a natureza. A sabedoria é viver,
pensar e agir em conformidade com a natureza. Aderir à natureza e estar em conformidade
a ela faz parte de um exercício consciente da parte que dirige a alma, ou seja, a razão.
Dessa maneira, precisamos recorrer à teoria do conhecimento 103 para compreendermos
de que modo o homem age racionalmente, pois apenas agimos retamente se conhecemos;
as etapas do conhecimento são explicitadas da seguinte forma em Academica Priora, 145:

Estendida a mão com os dedos esticados, dizia: “a representação


assemelha-se à minha mão”. Em seguida, encolhia um pouco os
dedos: “o assentimento parece-se com esta posição”. Depois,
dobrava completamente os dedos e, fechando o punho, dizia que
tinha atingido a apreensão; da semelhança nasceu então o nome
que ele deu à imagem do resultado desse gesto: katalépsis. Por
fim, agarrou, com toda a força, no punho fechado com a mão
esquerda, e disse que esta imagem correspondia ao conhecimento,
mas que ninguém, salvo o sábio, era capaz de atingir 104.

O homem conhece por meio da sua mente, pois a capacidade de assentimento lhe
garante a memória, e quando suas faculdades são aperfeiçoadas pela razão, chega-se à
sabedoria, como lemos em Academica Priora, 30:

(...) A própria mente, que por um lado é a fonte dos sentidos, por
outro, é ela mesma um sentido, dispõe de uma força natural que

103
Sobre a teoria estoica do conhecimento, vale conferir o capítulo 9, escrito por Michael Frede,
intitulado “Stoic Epistemology”, da obra The Cambridge History of Hellenistic Philosophy. Frede
argumenta longamente sobre como se adquire o conhecimento, segundo os argumentos
ciceronianos expostos em Academica Priora e Posteriora. pp. 295-322.
104
CÍCERO. Academica Priora, 145: nam cum extensis digitis adversam manum ostenderat,
'visum' inquiebat 'huius modi est'; dein cum paulum digitos contraxerat, 'adsensus huius modi';
tum cum plane conpresserat pugnumque fecerat, conprensionem illam esse dicebat, qua ex
similitudine etiam nomen ei rei, quod ante non fuerat, κατάλημψιν imposuit; cum autem laevam
manum admoverat et ilium pugnum arte vehementerque conpresserat, scientiam talem esse
dicebat, cuius compotem nisi sapientem esse neminem.
43

se dirige para aquelas coisas que lhe despertam a atenção. Assim,


recorre a algumas sensações, por assim dizer, mal as recebe,
outras como que as guarda escondidas, e daqui se origina a
memória; outras ainda as emprega para construir analogias, destas
decorrendo, por sua vez, a formação dos conceitos, os quais os
gregos chamam algumas vezes de ennóia e outras, de
prolémpseis. Quando estas faculdades se juntam à razão, aumenta
a capacidade argumentativa e a consideração da enorme
quantidade das coisas existentes, então, dá-se a percepção gradual
de todas elas, e a própria razão vai também, gradualmente,
aperfeiçoando-se até atingir a sabedoria105.

Segundo Lévy, “os estoicos pensam que é impossível separar a representação da


atividade da razão, porque é uma qualidade do hegemonikon”106. Pois é a razão humana
que irá deliberar o que será assentido e apreendido. De acordo com o comentador francês,
“o assentimento, que fundamenta o conhecimento e determina a ação, que diferencia o
sábio do tolo de uma mesma representação, é um dos conceitos fundamentais do
estoicismo”107. Cícero nos explica que o homem recebe uma combinação de impulsos
externos chamados de representação108, que são aceitos pelos sentidos de modo
voluntário. Os que têm uma forma manifesta são apreendidos – ou compreendidos109. O
objeto que causa uma impressão no homem está presente e produz a representação, age
sobre a alma, imprime algo nela e a afeta, e assim ela conhece o objeto. Dar o
assentimento dependerá do homem, e a retidão do assentimento depende da fidedignidade
da imagem ao que foi impresso na mente; o sábio apenas assente às representações
apreensivas, ou seja, as representações que possuem forma manifesta. A percepção dos

105
CÍCERO. Academica Priora, 30:
Mens enimipsa, quae sensuum fons est atque etiam ipsa sensus est, naturalem vim habet,quam i
ntendit ad ea quibus movetur. itaque alia visa sic arripit ut iis statim utatur,alia quasi recondit,
e quibus memoria oritur; cetera autem similitudinibusconstruit, ex quibus efficiuntur notitiae re
rum, quas Graeci tum ἐννοίας tumπρολήμψεις vocant; eo cum accessit ratio argumentique concl
usio rerumqueinnumerabilium multitudo, tum et perceptio eorum omnium apparet et eademrati
o perfecta is gradibus ad sapientiam pervenit.
106
LÉVY, C. Cicero Academicus, p. 216.
107
LÉVY, C. Cicero Academicus, p. 248.
108
Cícero traduziu phantasia, do grego, por visum; em latim, e em português, usou-se
“representação”, na medida em que imprime e afeta.
109
Cícero traduz katalepton por comprehensio, e em português, usou-se “apreensão”.
44

objetos é acompanhada de uma co-percepção de nós mesmos que, mais tarde, permitirá
não apenas compreender as coisas, mas também colocá-las em relação conosco. Em
Academica Priora, 31, Cícero explica a aquisição do conhecimento:

31. Uma vez que é a mente humana a faculdade mais adequada


para chegar ao saber do mundo e para assegurar um rumo à
existência, é ela quem assume sobretudo a aquisição do
conhecimento; é ela, pois, quem opera a katalépsis, à qual
conforme já disse, podemos chamar, em tradução literal,
compreensão – apreensão; a esta, a razão ama-a não só por si
mesma (pois nada agrada mais à razão do que a luz da verdade),
mas também pela sua utilidade110.

O homem, de acordo com o que assentir, determina a sua vontade e a disposição


para a ação; o que faz com que o homem realize a sua natureza é assentir verdadeiramente,
apreender, conhecer, logo, agir de modo virtuoso. Portanto, observaremos, em Academica
Priora, 39, como a teoria do conhecimento pressupõe a teoria da ação: “(...) antes de
fazermos algo é absolutamente necessário termos alguma representação e assentirmos ao
representado. Por conseguinte, eliminar a representação ou o assentimento equivale a
roubar de nossa vida toda a capacidade de ação.” 111 Se o assentimento é voluntário –
fruto de uma deliberação –, então, o homem é responsável pelas suas paixões, seus vícios,
pois assentiu ao falso.

A capacidade de ação do homem que conhece, o sábio, está em relação com um


objeto ou um fato. O conhecimento é, por assim dizer, concebido como prática, como
aquilo que apenas se realiza na ação. E a ação de cada homem só faz sentido na sua relação
com todos os homens. A teoria do conhecimento e a teoria da ação estão relacionadas,
pois conhecimento e ação estão encadeados, quem conhece age retamente, ou seja, ser
sábio se realiza no seu agir como sábio; devemos considerar que a ação se inicia já quando

110
CÍCERO Academica Priora, 31:
ad rerum igitur scientiam vitaeque constantiam aptissima cum sit menshominis amplectitur max
ime cognitionem et istam κατάλημψιν, quam ut dixiverbum e verbo exprimentes conprensionem
dicemus, cum ipsam per se amat (nihilenim est ei veritatis luce dulcius) tum etiam propter usum
(...).
111
CÍCERO. Academica Priora, 39: (...)
Omninoque ante videri aliquid quam agamusnecesse est eique quod visum sit adsentiatur. quare
qui aut visum aut adsenseumtollit is omnem actionem tollit e vita.
45

os homens aceitam ou rejeitam as impressões. O homem sábio consegue abraçar totius


uitae cursum112, isto é, consegue perceber o curso da vida. Ele tem uma capacidade
prudencial, consegue perceber o passado e, dessa forma, antever o futuro. Com isso, ele
pode agir da melhor forma para a república. Como é argumentado em De Amicitia, 40:

Sucede, Fânio e Cévola, que ocupamos uma posição política em


que é necessário prever com muita antecedência as futuras
vicissitudes da República. Ora, já nos desviamos bastante do
caminho que nossos antepassados costumavam seguir 113.

O presente é o tempo da ação; por meio da razão e da percepção das causas, os


homens conseguem perceber e agir na vida. Podemos ter a percepção do tempo pela mente
e pelo o que é dito; em De Finibus, I, 17, 55, Cícero afirma: “por meio do corpo não
podemos sentir nada senão o que está presente no tempo e no espaço, ao passo que por
meio da mente sentimos também o passado e o futuro”.114 Com isso, retomamos aqui a
ideia de tempo para avançarmos na discussão sobre o curso da vida e do destino. Assim,
o tempo da ação é o presente, e neste está a liberdade dos agentes para seguir sua razão;
em uma escola como a estoica, o que seria a ação livre115, uma vez que o pensamento é
marcado pelo destino, no qual se deve viver de acordo com a natureza? 116 Como conceber
o fatum? O que seriam a livre vontade, uoluntas libera, e a permissão do arbítrio,
arbitretur licere? Qual o lugar do destino no pensamento ciceroniano, se este é marcado
pelas referências históricas, se o que é histórico é um evento transitório, ou seja, se a

112
“Todo o curso da vida”. CÍCERO. De Officiis, I, IV, 11.
113
CÍCERO. De Amicitia, 40: Etenim eo loco, Fanni et Scaevola, locati sumus ut nos longe
prospicere oporteat futuros casus rei publicae. Deflexit iam aliquantum de spatio curriculoque
consuetudo maiorum.
114
CÍCERO. De Finibus, I, 55: nam corpore nihil nisi praesens et quod adest sentire possumus,
animo autem et praeterita et futura.
115
O fatalismo e a liberdade são dois problemas complexos da teoria estoica, e na obra
ciceroniana isso se torna ainda mais difícil, considerando o ecletismo e o espaço dados à história.
Para tratar esse assunto no pensamento estoico, estudamos: Les Stoiciens: la liberté et la ordre
du monde, de Muller, e Los estoicos y el problema de la libertad, de Salles.
116
“O caráter sistemático do estoicismo torna inseparáveis a física e a ética; a ideia do destino
introduz o primeiro problema: pode haver liberdade num mundo regido por uma causalidade
necessária e no qual a sabedoria consiste em viver de acordo com as leis necessárias da natureza?
Se tudo é necessário, como o homem poderia ser livre e responsável pelos seus atos? O estoicismo
não seria um fatalismo? As paixões, os desvarios e a loucura não fazem parte das leis necessárias
do universo? Como censurar e condenar o homem passional?” CHAUI. Introdução à história da
filosofia: as escolas helenísticas. p.152.
46

história é oposta ao determinismo? Veremos, apenas nos capítulos seguintes, como a


noção de uma liberdade racional contribui com a obra ciceroniana, fundamentada em
argumentos históricos. Se o estoicismo não julga uma ação pelo seu êxito, mas pela
intenção, como afirmado em De Finibus, III, 32, devemos observar que essa definição
não é possível na obra ciceroniana, pois, se o autor valoriza a exemplaridade histórica e
fundamenta suas obras nela, então, o que vale é a ação como um todo, concreta e
realizada, da sua intenção até sua realização, que deve visar à utilidade comum. Em outras
palavras, se apenas a intenção fosse suficiente, de que valeria o exemplo histórico nas
obras? E um exemplo desse rompimento com o estoicismo é que a virtude para Cícero
está posta na sua prática e nas ações virtuosas que são retratadas como memoráveis, não
na intenção.

Destacamos que, no pensamento ciceroniano, o conceito de liberdade aparece


primeiramente nas obras políticas como virtude típica do povo117, mas este conceito
ganha outro aspecto quando voltado para a ação deliberada do homem. Além disso, a
liberdade é uma capacidade para agir em conformidade com a natureza, ou seja, de acordo
com a razão; é agir de modo decoroso, o que quer dizer, de modo livre, como observamos
em De Officiis, I, 96, quando se define decoro:

96. Porém a definição [de decoro] é dupla: há um decoro geral,


que se encontra em todo o honesto, e, um decoro subordinado a
esse, que compreende as partes do honesto. O primeiro costuma
ser definido assim: o decoro é aquilo que é consentâneo à
excelência do homem, enquanto a sua natureza se diferencia da
dos outros seres animados. E a parte que se subordina ao gênero
é definida da seguinte forma: aquilo que é consentâneo à natureza
humana, de modo que apareça a moderação, a temperança e uma
espécie de liberdade118.

117
Cf. CÍCERO. De Re Publica.
118
CÍCERO. De Officiis, I, 96: Est autem eius discriptio duplex; nam et generale quoddam
decorum intellegimus, quod in omni honestate versatur, et aliud huic subiectum, quod pertinet ad
singulas partes honestatis. Atque illud superius sic fere definiri solet, decorum id esse, quod
consentaneum sit hominis excellentiae in eo, in quo natura eius a reliquis animantibus differat.
quae autem pars subiecta generi est, eam sic definiunt, ut id decorum velint esse, quod ita naturae
consentaneum sit, ut in eo moderatio et temperantia appareat cum specie quadam liberali.
47

Segundo o estoicismo, ser livre é agir ou fazer alguma coisa em conformidade com
a natureza, de modo apropriado. Se o homem é livre para realizar suas ações de acordo
com a natureza – de modo decoroso –, isso quer dizer que ele não é livre para fazer tudo
o que quer de modo aleatório, pois isso pode provocar ações viciosas, e agir de acordo
com a paixão não é ser livre. Os limites impostos pela Lei natural são a essência da
liberdade, que não é restringida, mas garantida 119 por ela. As ações de acordo com a
natureza, ou seja, com a Lei, regidas pela uoluntas refletem o que é útil ao todo, do qual
os homens fazem parte. Cabe à ação racional e regida pela uoluntas de cada homem ser
livre, ou seja, cumprir a sua própria natureza. A liberdade não contradiz a natureza: ela
leva ao seu cumprimento, o que significa que ela é uma ação racional e,
consequentemente, foi produzida a partir de um conhecimento. Não há incompatibilidade
entre a vontade e a liberdade, pois a ação é regida pela uoluntas, e uma vez sendo racional,
ela é livre. Isso não quer dizer que o homem não delibera, ao contrário, o homem faz uma
deliberação tanto para ser virtuoso quanto vicioso, ou seja, tanto para seguir a natureza
ou não, ser livre ou não. Outro aspecto da ação livre é a virtude do decoro inerente a ela,
pois quando uma ação é empreendida, devem-se observar três princípios:

(...) que o apetite seja subordinado à razão, não existe nada


melhor do que isso para conservar os deveres; que se considere a
importância da coisa que queremos fazer, de modo que o cuidado
e o esforço despendidos não sejam maiores nem menores em
relação ao que a causa requer; se deve fazer de modo que aquelas
coisas pertinentes às manifestações de liberalidade e dignidade
sejam moderadas.120

Nesses três princípios observamos a superioridade da razão sobre as paixões. Além


disso, a ação decorosa depende da occasio, que consiste em uma disposição das coisas
em lugares apropriados e convenientes. Atrelada a isso, está a prudência, virtude que
ajuda o homem a agir corretamente e no momento oportuno. Dessa forma, deduzimos que
a ação livre, ou seja, racional, decorosa, de acordo com a uoluntas, são sinônimas. Mas

119
BRUNT. The Fall of Roman Republic. p. 317.
120
CÍCERO. De Officiis, I, 141: primum ut appetitus rationi pareat, quo nihil est ad officia
conservanda accommodatius, deinde ut animadvertatur, quanta illa res sit, quam efficere
velimus, ut neve maior neve minor cura et opera suscipiatur, quam causa postulet. Tertium est,
ut caveamus, ut ea, quae pertinent ad liberalem speciem et dignitatem, moderata sint.
48

como a ação livre é possível na razão universal se, para os estoicos, tudo acontece de
acordo com o destino e a necessidade é imposta pela lei da natureza? Como a liberdade é
pensada por Cícero? Há liberdade na ação política?

Em De Fato, Cícero expõe as visões dos céticos, epicuristas e estoicos sobre as


questões referentes ao destino, sobre as teorias da causalidade e a liberdade reservadas à
reta ação humana. Ele parece deixar que seus leitores meçam o peso dos argumentos e
tirem suas conclusões. Hoje temos a obra incompleta, mas, ainda assim, notamos uma
postura bem particular do autor e um distanciamento do estoicismo, apesar de tê-lo como
ponto de partida e do vocabulário ser estoico. Antonini afirma que o destino era um
conceito central do pensamento tradicional romano. Havia muita penetração da filosofia
estoica, sobretudo nos ambientes republicanos, dos quais Cícero era próximo. E parece
que o problema da obra não era tanto achar uma resposta razoável a uma questão
filosófica sobre o destino, mas esconder arriscadas implicações para a vida política121.

A questão do destino é encontrada em duas partes da filosofia estoica, a saber: a


ética e a lógica122. Na primeira, está posto o problema da liberdade e da capacidade de
ação do homem, que é a questão mais cara a Cícero. Na segunda, está exposto o problema
do possível, ou seja, o valor das proposições com o verbo no futuro. Lévy demonstra que
há uma influência carneadeana na obra: ela ocorre pela presença da dialética
carneadeana123 que perpassa a obra, trazendo diversas fontes argumentativas, como os
tratados morais De Finibus e Tusculanae Disputationes. Observaremos como Cícero
combate a necessidade, abrindo espaço para a valorização da ação humana virtuosa e
rechaçando a viciosa. Com isso, o destino passa a ser entendido mais como uma
percepção própria da ação humana.

Para os estoicos, o destino é definido como a conexão eterna e imutável das causas,
identificadas com o lógos ou com a racionalidade do cosmos, pelo qual nada aconteceu,
acontece ou acontecerá de modo diferente de como era fatal que acontecesse. Estoubeu
argumentava que Crisipo identificava destino com racionalidade do mundo, uma vez que
por racionalidade pode-se entender: verdade, retidão, natureza ou necessidade 124. Em
Sobre a Providência, Crisipo afirmava que “o destino é uma certa ordenação natural e

121
Cf. Introdução de Antonini na obra Il Fato, de Cícero. pp.7-10.
122
De acordo com Levy, essa questão foi colocada em evidência por Boyancé em Cicerón et les
parties de la philosophie. Cf. Cicero Academicus, p. 589.
123
LEVY. Cicero Academicus, p.592.
124
LONG; SEDLEY. The Hellenistic Philosophers. p. 337.
49

eterna da totalidade das coisas, em que umas seguem as outras e se substituem em um


inviolável entrelaçamento”125.

Na obra De Fato, 9, Cícero, que primeiramente recupera o pensamento estoico,


argumenta que a vontade humana está baseada na natureza e rege a ação de modo
autônomo; há questões inerentes à vida humana que dependem dos homens e outras não,
mas a ação sempre está posta na vontade e não nas questões prédeterminadas pela
natureza:

9 (...) se as diversas inclinações dos homens são produto de causas


naturais e antecedentes, não por isso há causas naturais e
antecedentes também na origem das nossas vontades e de nossos
desejos. Se as coisas fossem assim, nada estaria em nossa
potestade. Reconhecemos que ser inteligente ou estúpido, forte ou
fraco, não depende de nós. Mas quem pensa que, por isso, se deve
aprovar que sentar ou caminhar não dependa da nossa vontade,
não compreende quais são as coisas ligadas pelo nexo de
causalidade126.

Com este excerto nos questionamos: o que estaria em nossa potestade? O agir. E
qual ação é livre? A racional, de acordo com a uoluntas, ou seja, a virtuosa. Então, como
esta ação pode ser livre, se ela é preestabelecida pela natureza? Ela pode ser livre na
medida em que o homem delibera entre outras ações também livres, entre outras ações
virtuosas. Seria como se todas as ações de acordo com a natureza seguissem o curso do
rio: ela não é única, mas é livre, pois está no curso da natureza. Já a ação viciosa estaria
fora do curso do rio. Cícero afirma ainda que o clima e os astros podem influenciar alguns
fatos humanos, mas nega que podem determinar nossas escolhas e nossas ações; apenas
a vontade pode ser causa das ações humanas e é capaz de controlar os desejos e, por assim
dizer, os vícios; ou seja, estão postas no homem as disposições necessárias para levar uma
vida reta, cabendo a ele se esforçar para seguir a razão; se o homem é autônomo quando

125
CRISIPO. SVF, II, 1000.
126
CÍCERO. De Fato, 9: (...) Non enim, si alii ad alia propensiores sunt propter causas naturalis
et antecedentis, idcirco etiam nostrarum voluntatum atque adpetitionum sunt causae naturales et
antecedentes. Nam nihil esset in nostra potestate, si ita se res haberet. Nunc vero fatemur, acuti
hebetesne, valentes inbecilline simus, non esse id in nobis. Qui autem ex eo cogi putat, ne ut
sedeamus quidem aut ambulemus voluntatis esse, is non videt, quae quamque rem res
consequatur.
50

regido pela razão, justamente por isso tem esta capacidade, como explica em De Fato,
11:

11. Esses vícios podem ter sua origem nas causas naturais, mas
podem ser eliminados e extirpados pela raiz se o homem, que por
si é a eles inclinado, os evita; isso não depende das causas
naturais, mas da vontade, do esforço e da disciplina; todas estas
possibilidades são negadas se a existência da adivinhação
confirmar a força e a natureza do destino127.

Aqui, o autor introduz mais um problema presente na sociedade romana, a saber, a


adivinhação. Se um homem souber qual será o futuro, o quanto será capaz de mudá-lo?
Em De Diuinatione, Cícero trata da adivinhação de modo a desmistificá-la. A diuinatio é
a análise e a interpretação das causas, do passado e do presente, para a projeção do futuro.
O homem, justamente por conseguir relacionar os tempos, consegue de certa forma prever
os acontecimentos futuros e preparar-se para eles. Esta previsão é também determinante
das ações retas. O sábio, prevendo o fim de uma ação, quer, antecipadamente, atingi-la.
E quer porque pode prever os resultados de seus atos. Pela capacidade de deslocamento
temporal e pela razão, o homem torna-se capaz de compreender as relações causais e
alguns sinais que indicam o futuro. Mas prever o futuro por meio de observação de
vísceras e dos astros é um processo artificial, e é feito por quem na verdade conhece as
narrativas históricas e tem memória. Em De Diuinatione128, I, LVI, 127, Cícero
argumenta:

(...) quem, de fato, conhece as causas dos eventos futuros,


necessariamente conhecerá o futuro. (...) é necessário que o
homem se contente em prever o futuro com base em alguns sinais
que lhes são indicados. O futuro não surge de improviso (...).
Além disso, com a ajuda da memória, da diligência e de tudo o

127
CÍCERO. De Fato, 11: Sed haec ex naturalibus causis vitia nasci possunt, extirpari autem et
funditus tolli, ut is ipse, qui ad ea propensus fuerit, a tantis vitiis avocetur, non est id positum in
naturalibus causis, sed in voluntate, studio, disciplina. Quae tolluntur omnia, si vis et natura fati
ex divinationis ratione firmabitur.
128
Hankinson, em The Cambridge History of Hellenistic Philosophy, pp. 535-536, explica a
definição de adivinhação estoica exposta em Diuinatione, II, 13-15, 26, em que, segundo o
universo estoico, não há espaço para mudanças, e mostra como a concepção ciceroniana é diversa.
51

que foi proferido nos escritos de nossos antepassados, assim se


forma aquela adivinhação que é chamada artificial, baseada no
exame das vísceras, dos rios, das maravilhas e dos sinais
provenientes do céu 129.

Assim, a adivinhação é explicada por critérios racionais e não se trata, para nosso
autor, de uma ciência sobrenatural, mas de uma análise dos tempos e das causas. Ademais,
devemos desconfiar quando Cícero fala da religião romana ou da adivinhação de modo
crível.

Quanto ao destino, pode-se fazer uma projeção do futuro, principalmente por causa
da capacidade prudencial do sábio, mas não é possível afirmar que o futuro está
predeterminado. Conhecer a Lei natural é, de certo modo, conhecer também o futuro,
uma vez que as ações feitas visando à utilidade comum estão de acordo com a Lei e as
viciosas e injustas, não. O homem não é prisioneiro de uma concatenação de causas
enunciadas, podendo agir de modo diverso e não fazer o que foi enunciado, como
observamos em De Fato, 20:

E aqueles que afirmam que o futuro é imutável e não pode ser


transformado de verdadeiro em falso, não reforçam a necessidade
do destino, mas se referem à força dos enunciados. Ainda mais
aqueles que introduzem o conceito de uma série concatenada de
causas fixadas à eternidade, privando a mente do homem da livre
vontade130 e tornando-a prisioneira da necessidade do destino131.

129
CÍCERO. De Diuinatione, I, 127: (...) Qui enim teneat causas rerum futurarum, idem necesse
est omnia teneat quae futura sint. (...) relinquendum est homini, ut signis quibusdam consequentia
declarantibus futura praesentiat. Non enim illa quae futura sunt subito exsistunt (...). Qui etsi
causas ipsas non cernunt, signa tamen causarum et notas cernunt; ad quas adhibita memoria et
diligentia et monumentis superiorum efficitur ea divinatio, quae artificiosa dicitur, extorum,
fulgorum, ostentorum signorumque caelestium.
130
Talvez Cícero inaugure a expressão “livre vontade”, que depois ficou cristalizada na obra de
Agostinho, mas não cabe aqui analisar o desdobramento do conceito na obra agostiniana.
131
CÍCERO. De Fato, 20: Nec ei qui dicunt inmutabilia esse quae futura sint nec posse verum
futurum convertere in falsum, fati necessitatem confirmant, sed verborum vim interpretantur. At
qui introducunt causarum seriem sempiternam, ei mentem hominis voluntate libera spoliatam
necessitate fati devinciunt.
52

Na primeira frase, Cícero afirma que não existe destino, mas enunciados que
tentam prever o futuro por meio de seu valor. Esta afirmação está no plano das questões
lógicas. Em seguida, combate os que se tornam prisioneiros do destino, pois não há
necessidade de uma série concatenada de causas fixadas para a eternidade, pois isso
privaria os homens da deliberação e da livre vontade. Cícero é contrário à necessidade do
destino. O homem tem a livre vontade para deliberar e agir, sendo essa natural, ou seja,
racional; com isso, ganha força o argumento carneadeano em que se afirma: “nem tudo o
que acontece, acontece por obra do destino” 132, isto é, pela necessidade, pela
concatenação de fatos e de enunciados.

Sobre o uso dos conceitos de libertas e uoluntas Lévy afirma:

No entanto, nenhum dos textos gregos citados expressa com tanta


força quanto o ciceroniano De Fato a autonomia do ato
voluntário. A explicação parece-nos ser esta: há uma coincidência
neste trabalho entre a abordagem filosófica de Carnéades, que
torna a autonomia da alma a origem da liberdade, e a geniosidade
própria da língua latina, que, com seus conceitos de libertas e
uoluntas, imediatamente deu uma realidade psicológica ao livre-
arbítrio133.

Assim, na obra ciceroniana, o homem tem autonomia, pois no ato do pensar o


homem possui a livre vontade, sempre racional; com isso, o homem já é livre,
consequentemente autônomo para agir. Então, se a ação livre é racional, a ação viciosa,
fruto das paixões, não é livre; isso não quer dizer que a ação racional precise ser
predeterminada ou necessária, nem que o destino de algo esteja traçado. Mas a ação
racional, virtuosa, sempre conduz os homens, a república, ao êxito.

Cícero, em De Fato, não apenas recorre a argumentos carneadeanos como também


à obra crisipiana, e parece entender que a diferenciação das causas feitas por Crisipo não
nos ajuda a compreender o problema do destino, pois tudo acontece por obra de uma
causa antecedente que por si decorre na necessidade. Cícero nos esclarece o conceito de

132
CÍCERO. De Fato, 40: “non omnia fato fieri, quaecumque fiant”.
133
LÉVY. Cicero Academicus, p.614.
53

causa afirmando que é aquilo que é suficiente para realizar um feito de modo necessário,
como lemos em De Fato, 34:

De fato, se se concedesse que nada pode acontecer sem uma causa


antecedente, o que se ganharia dizendo que aquela causa não é
ligada às causas externas? Causa, de fato, é propriamente aquela
que produz aquilo do que é causa, como a ferida da morte (...).
Pois, no que diz respeito ao conceito de causa, não é preciso
pensar que a causa de alguma coisa seja aquilo que a precede, mas
aquilo que a precede de modo a produzi-la134.

De acordo com Cícero, Crisipo135 assume uma posição de juiz conciliador entre os
fatalistas e os antifatalistas, querendo afirmar o destino e salvar a liberdade, mas encontra
dificuldades e termina confirmando a necessidade do destino 136. Parece-nos que Cícero,
servindo-se da argumentação neoacadêmica, adere à ideia que ele diz que Crisipo não
realizou. Segundo Crisipo, o assentimento vem como resposta a uma representação, mas
não é necessário, enquanto a representação constitui apenas uma causa próxima, e não a
principal, do assentimento.

A causa verdadeira da ação, que é o assentimento, está sob o domínio do homem,


e cada ação precisa ser analisada por si. Por outro lado, se atrelarmos o assentimento ao
destino, imediatamente o ligamos à necessidade. Os que liberavam o assentimento do
destino argumentavam:

Se137 tudo acontece pelo destino, tudo acontece por meio de uma
causa antecedente; e se o apetite é também uma coisa que segue
o apetite, então, também segue o assentimento; e se a causa do
apetite não está em nós, nem o apetite está em nossa potestade; e

134
CÍCERO. De Fato, 34: Quodsi concedatur nihil posse evenire nisi causa antecedente, quid
proficiatur, si ea causa non ex aeternis causis apta dicatur? Causa autem ea est, quae id efficit,
cuius est causa, ut vulnus mortis (...) Itaque non sic causa intellegi debet, ut, quod cuique
antecedat, id ei causa sit, sed quod cuique efficienter antecedat.
135
Hankinson em The Cambridge History of Hellenistic Philosophy, pp.526-531 analisa os
argumentos crisipianos e mostra os paradoxos e a dificuldade de interpretá-los.
136
CÍCERO. De Fato, 39.
137
Cf. BOBZIEN, Determinism and Freedom in Stoicism, p. 245; nesse trecho a comentadora faz
uma argumentação de modo analítico do parágrafo, mas tal tipo de argumentação não nos
interessa aqui.
54

se estiverem [em nossa potestade], nem tudo que é produzido pelo


apetite depende de nós; então nem o assentimento nem as ações
estão em nossa potestade. Disso segue que nem louvores, nem
punições, nem honras, nem penas são justas. Então, isso é
errôneo. Eles acreditam que isso deva ser concluído com cada
probabilidade, pois nem tudo que acontece, acontece por obra do
destino138.

Se atribuirmos tudo o que acontece ao destino, o que caberia ao homem? Nosso


autor coloca as ações humanas sob a potestade humana, senão qualquer ação humana
seria justificável, até mesmo as viciosas; poder-se-ia afirmar que Catilina, Antônio e
César cumpriram o seu destino. Cícero parece querer dar um sentido à ação em um mundo
incerto. Negar a concatenação de causas e atribuir um outro significado à deliberação e à
ação humana significa, ao mesmo tempo, atribuir ao homem um comprometimento
consigo e com sua comunidade política.

Depreendemos dos excertos citados a autonomia do assentimento e do ato


voluntário, assim como da libera uoluntas, e agir de acordo com a natureza, ser livre não
significa realizar uma ação necessária, mas uma ação de acordo com a razão, que não é
predeterminada. Em De Fato, XVIII, 41, Cícero afirma o seguinte sobre a teoria
crisipiana:

Mas Crisipo, porque refuta a necessidade e, todavia, não admite


que alguma coisa aconteça sem causas antecedentes, distingue os
gêneros das causas, de modo a evitar a necessidade, sem negar o
destino. Ele diz: “existem causas perfeitas e principais e causas
auxiliares e próximas. Por isso, quando digo que tudo acontece
fatalmente por meio do trabalho de causas antecedentes, não

138
CÍCERO. De Fato, 40: 'Si omnia fato fiunt, omnia fiunt causa antecedente, et, si adpetitus,
illa etiam, quae adpetitum sequuntur, ergo etiam adsensiones; at, si causa adpetitus non est sita
in nobis, ne ipse quidem adpetitus est in nostra potestate; quod si ita est, ne illa quidem, quae
adpetitu efficiuntur, sunt sita in nobis; non sunt igitur neque adsensiones neque actiones in nostra
potestate. Ex quo efficitur, ut nec laudationes iustae sint nec vituperationes nec honores nec
supplicia'. Quod cum vitiosum sit, probabiliter concludi putant non omnia fato fieri, quaecumque
fiant.
55

entendo por trabalho de causas perfeitas e principais, mas pelo


trabalho de causas auxiliares e próximas”139.

Desse modo, compreendemos que as causas antecedentes até podem iniciar os


movimentos, por exemplo o do cone e o do cilindro, mas elas não têm ingerência sobre o
que acontece depois. Assim, as coisas referentes à natureza independem do homem, mas
o modo como ele reagirá frente a essas coisas é de comprometimento humano e dependerá
da sua racionalidade, pois o assentimento é responsabilidade humana, e a representação,
não140. Ou seja, o homem não pode recusar a representação, mas pode escolher aquilo a
que dará assentimento. A distinção entre causas perfeitas e principais e entre causas
auxiliares e próximas141 é a seguinte: as primeiras dependem dos homens; as outras
dependem do destino. Assim, Cícero, recuperando o exemplo crisipiano do cone e do
cilindro, argumenta que se eles deslizam sobre uma superfície igual de formas diferentes,
então, cada um age de acordo com a sua natureza, um rola e outro gira; isto é, cada homem
age de acordo com a sua natureza e com as impressões às quais dá assentimento. A ação

139
CÍCERO. De Fato, 41: Chrysippus autem cum et necessitatem inprobaret et nihil vellet sine
praepositis causis evenire, causarum genera distinguit, ut et necessitatem effugiat et retineat
fatum. 'Causarum enim', inquit, 'aliae sunt perfectae et principales, aliae adiuvantes et proximae.
Quam ob rem, cum dicimus omnia fato fieri causis antecedentibus, non hoc intellegi volumus:
causis perfectis et principalibus, sed causis adiuvantibus et proximis'.
140
CÍCERO. De Fato, 44.
141
Sobre esta dupla causalidade, Chaui nos ensina: “As causas perfeitas ou principais são as
causas imanentes que dependem de nós; as causas auxiliares ou antecedentes são exteriores a nós,
não dependem de nós e sim do destino, são elas que constituem os confatais. Assim, por exemplo,
a chuva que cai hoje depende de uma cadeia de causas antecedentes que não estão em nosso poder;
todavia, se não podemos fazer com que algo aconteça ou não no mundo, está em nosso poder
decidir que comportamento teremos diante desse acontecimento, pois isso depende de nós ou de
nossa causalidade imanente. Crisipo se valia do exemplo do cone e do cilindro para explicar essa
teoria da dupla causalidade: um cilindro e um cone entram em movimento pela ação de um mesmo
impulso externo, que não depende deles; porém, é em decorrência da estrutura própria de cada
um deles que se moverão cada qual de uma maneira particular – o cone gira e o cilindro rola. Da
mesma maneira, depende da coisa externa imprimir em nós sua imagem e não somos livres para
recebê-la nem recusá-la, porém, o assentimento a ela depende de nós apenas e está em nosso
poder. (...)
A dupla causalidade, além de evidenciar a liberdade humana, determina a atitude do sábio, pois
este distingue claramente o que está e o que não está em seu poder. O homem passional acredita
que a liberdade consiste em desejar que tudo aconteça conforme o seu desejo – é um louco, um
temerário. O sábio compreende que a liberdade verdadeira consiste em desejar que as coisas
aconteçam não como nos agrada, mas como realmente acontecem e saber como agir quando
acontecem, cooperando com o destino”. CHAUI. Introdução à história da filosofia: as escolas
helenísticas. pp.155-156.
56

humana deve acontecer de forma autônoma, desde que em um mundo ordenado pela razão
universal, mas isso não significa que ela será predeterminada.

Cícero afasta-se do estoicismo antigo ao não aderir ao fatalismo, mas aceita as


causas e atribui importância à autonomia humana de dar assentimento 142 e de agir; assim,
torna o homem responsável pela sua ação, uma vez que a capacidade de assentir está no
homem e não no destino ou na necessidade; ele é livre se assentir ao verdadeiro, agir
retamente e apreender.

Portanto, o destino, para Cícero, é a razão segundo a qual o mundo é dirigido, é o


curso de um rio, mas não determina a ação humana; o que nos interessa é como o homem
se comporta diante das impressões do mundo. A liberdade não consiste na capacidade de
agir de qualquer maneira, ao contrário, cabe a cada homem escolher aquilo a que assentirá
e, se apreender virtuosamente, agirá de modo livre e realizará a sua natureza. Mas nem
todos os homens são virtuosos. Os argumentos morais da obra ciceroniana
responsabilizam os homens pelas suas ações, tanto as bem quanto as mal sucedidas.

O homem sabe que as causas passadas o conduziram até seu momento presente e
sabe que terá um futuro baseado nas ações do presente, mas sem predeterminação. Se
estiver sendo guiado pelas paixões, assentirá ao falso, e disso, por exemplo, decorrerão
os mesmos vícios que levaram à queda da República. Outra forma de ir contra a natureza
é contrariar os costumes e as instituições da cidade com a permissão do arbítrio, arbitretur
licere. No exemplo citado por Cícero, em De Officiis, isso era permitido a Sócrates e
Aristipo, por serem sábios, mas não o era a mais ninguém 143. Ao contrário, as ações
viciosas e as que tiveram permissão do arbítrio eram contra a natureza, essas não são
livres, mas possíveis. A liberdade e a liberdade da vontade são pensadas para um cidadão
que age de modo decoroso, que trabalha para a pátria. Dessa forma, essas são concebidas
para justificarem a ação reta de um cidadão em suas relações sociais segundo os deveres,
e não para justificar os desejos de um homem qualquer.

Como interpretar a teoria ciceroniana do destino e da liberdade em uma época em


que a República estava em crise? Como interpretar a teoria ciceroniana do destino,

142
Lévy, em sua obra Cicero Academicus, voltada ao ceticismo ciceroniano, ao argumentar sobre
o De Fato, destaca o comentário de Ley, que trata da originalidade da obra, pois a noção de libera
uoluntas não existia na filosofia grega e era até impensável. A deliberação está centrada no
homem, e este é responsável pela ação. Cf. pp. 614-615.
143
CÍCERO. De Officiis, I, 148.
57

conhecendo o espaço que a retórica e a persuasão possuem na obra ciceroniana? E o


espaço do direito? Ambas as artes operam considerando o espaço para o convencimento,
a comoção dos ânimos e a deliberação. Se todas as decisões estivessem prefixadas, então,
de que nos serviria um orador ou um advogado? Por meio da argumentação, abrimos
espaço para interferir, mudar uma decisão ou um julgamento. Dessa forma, precisamos
do espaço para a ação deliberada e, consequentemente, para a liberdade humana. Cícero
precisava tratar sobre o assunto de modo a abrir espaço para a liberdade e para a ação,
caso contrário apenas poderia aceitar a finitude da República. Para isso, recorre à
construção das figuras dos homens sábio-políticos – como vimos, que lhe forneça os
paradigmas de ação –, ou seja, recorre à história. Por outro lado, homens como Catilina e
Antônio são retratados, nas Catilinárias e nas Filípicas, como os que deram
assentimentos falsos; logo, Cícero lhes atribui vícios, os submete a um forte julgamento
moral e reforça a importância da moral para toda a obra política. Em De Officiis, III, nos
parágrafos 21, 23, há exemplos de homens que agiram contra a natureza, por exemplo,
roubando e enriquecendo às custas dos despojos alheios. Nos parágrafos seguintes144,
conclui dizendo que se seguirem o princípio da justiça, ou seja, o que é útil a um deve ser
útil a todos, obviamente seguirão a natureza, porém se cobiçarem as coisas apenas para
si próprios, consequentemente, os laços sociais se dissolverão. Portanto, isso pode
explicar o declínio da República romana, uma vez que não houve justiça por conta de
certas atitudes humanas, assim, os laços sociais se desfizeram. Então, se as ações fossem
livres, racionais, Roma não teria caído. Grimal, ao se questionar sobre a morte das
civilizações, refletindo sobre a obra ciceroniana, argumenta:

E não será necessário, afinal, reconhecer que “as civilizações são


mortais?” Cícero, que estava plenamente consciente do problema,
recusará o desespero. Ele afirma que o determinismo do mundo
não é absoluto quando se trata de uma cidade como Roma. Entre
as leis inelutáveis, permanece a liberdade. E é possível atuar
efetivamente, no âmbito da contingência. Nós faremos isso
recorrendo às “boas leis” que, cada vez, serão refletidas e feitas
de forma consistente com a razão universal145.

144
CÍCERO. De Officiis, III, 26-27.
145
GRIMAL, P. “La philosophie romaine de l'histoire face à l'angoisse de notre temps”. In: Revue
belge de philologie et d'histoire. p.15.
58

Como relacionar o mundo, que deveria ser dominado pela razão, com o mundo
incerto da política retratado no pensamento ciceroniano? Não podemos seguir o que
Bréhier diz sobre a física estoica para pensarmos a obra de Cícero:

(...) tem por objetivo nos levar a representar, pela imaginação,


um mundo totalmente dominado pela razão, sem nenhum resíduo
irracional; nada dominado pelo acaso ou pela desordem, como em
Aristóteles ou Platão, tudo está na ordem universal. O
movimento, a mudança, o tempo, nada disso é indício de
imperfeição e de ser inacabado, como para o geômetra Platão ou
o biólogo Aristóteles 146.

O preocupação ciceroniana é diversa da estoica e da tradição, primeiramente


porque não está na ordem cosmológica, mas na política; os homens estão inseridos na
política, no campo da ação propriamente dita, e suas ações podem ser imperfeitas, pois
não são todos ali que são sábios ou assentem apenas ao verdadeiro. A política é permeada
de homens médios, tanto os que cumprem os seus deveres quanto os que não cumprem e
são viciosos, fazendo com que as formas políticas se degenerem, regenerem e que haja
uma instabilidade no mundo. Ainda segundo Bréhier:

o mundo dos estoicos é um mundo que nasce e se dissolve sem


que sua perfeição seja atingida. A racionalidade do mundo não
consiste mais na imagem de uma ordem imutável que se reflete
na matéria, o quanto esta lhe permite, mas na atividade de uma
razão que submete toda e qualquer coisa ao seu poder147.

Quanto ao nascer e dissolver-se do mundo, na obra ciceroniana temos o degenerar


e o regenerar das formas de governo; a perfeição, em Roma foi atingida com a República,
no passado, mas tudo pode ser mutável, pois a vida política depende das ações humanas.
Além disso, a necessidade da circularidade do ciclo não é uma questão fundamental para

146
BRÉHIER, E. Histoire de la Philosophie. Tome I. L´Antiquité et le Moyen Âge. Paris, Librarie
Felix Acan, 1928. pp. 213-214.
147
BRÉHIER, E. Histoire de la Philosophie. Tome I. L´Antiquité et le Moyen Âge. pp. 213-214.
59

Cícero, tanto porque, como vimos, não há necessidade que se preestabeleçam os


movimentos, quanto, como veremos nos capítulos seguintes, a degeneração e a
regeneração, os rumos da República e de Roma dependem de quem a governa, se o
governo for virtuoso ou vicioso.

Em suas obras políticas Cícero recorre aos fatos históricos para exemplificar e
mostrar o vício e a virtude, o assentimento falso e o verdadeiro e as ações que deles
decorrem. O conhecimento da história se faz imprescindível para a ação política, uma vez
que o passado fornece o exemplo do que deve ser imitado ou evitado.

Assim, para justificar a decadência de Roma e buscar uma alternativa para a


recuperação da República por meio do resgate das ações exemplares do passado, Cícero 148
rompe com a necessidade estoica, reelabora um conceito de destino atribuindo espaço
para a liberdade, para a capacidade humana de deliberar sobre suas ações, uma vez que o
homem é capaz de estabelecer a relação de causa e consequência, e, assim, coloca o
homem comprometido com as suas ações políticas, que serão retratadas nas narrativas
históricas; dessa forma, elabora uma concepção de narrativa histórica e de percepção do
curso dos acontecimentos em Roma, pautando-se sempre na ação humana. Com isso,
temos que observar o espaço dado à história, que nos mostra a construção de uma
comunidade política por meio de ações humanas, sujeitas a serem viciosas ou virtuosas.
Tanto os homens virtuosos quanto os viciosos, por deliberarem sobre suas ações, por
seguirem ou não a natureza, criam suas histórias e a história da pátria, de Roma. Ou seja,
a história mostra um nexo causal capaz de demonstrar todos os tipos de ações praticadas
no mundo da política. A função pedagógica da história está em mostrar os tipos de ações
e recuperar nos homens a capacidade de seguir a natureza, ou seja, praticar as ações
virtuosas.

***

148
Grimal afirma: “O dever do patriota consistirá, portanto, em dobrar o destino e as fatalidades
da natureza, por força da prudência, inteligência, fazendo o sacrifício de sua tranquilidade, do
seu egoísmo. E sua recompensa será a glória, o reconhecimento dos cidadãos a ele, devido à
salvação.” GRIMAL. “La philosophie romaine de l'histoire face à l'angoisse de notre temps”. In:
Revue belge de philologie et d'histoire. p.15.
60

Buscamos delinear, neste capítulo, quem é o homem que age, o sábio, como suas
ações são guiadas pela natureza, pela racionalidade, e como os viciosos assentem de modo
errado; assim, observaremos, nos próximos capítulos, como ambos são exemplificados
nas obras políticas e como são descritos juntamente com suas ações nas narrativas
históricas. O espaço que Cícero dá, no seu pensamento filosófico, à liberdade da ação do
homem e, consequentemente, à história, reflete-se nas obras políticas, morais e nos
discursos ao retratar as ações, ou seja, os feitos memoráveis, a história, e ao analisá-los.
Partindo do conhecimento do homem, de sua ação, de como ele se relaciona
politicamente, passamos aos próximos capítulos para entender a relação entre política e
história em três gêneros de obras: diálogos filosóficos, discursos149 e narrativas históricas.

Em todas as obras que serão analisadas, o recurso à história é constante, seja por
meio de narrativas históricas ou exemplos históricos, pois esse recurso retrata as ações
humanas, mas em cada uma o passado é recuperado à sua maneira. Observaremos o
tempo próprio em cada obra e os movimentos do texto.

O tempo da história é o passado, mas o discurso, o texto, é do presente. O filósofo


recupera o passado para explicar as causas do momento presente, para ensinar e para
deixar conselhos para o futuro. A ação humana do presente e do futuro pode ser
modificada ou pode ser refletida se o homem conhecer as suas causas. Então, voltar às
gerações passadas, como a de Cipião, está diretamente relacionado à defesa da República
e dos princípios republicanos, ao mesmo tempo em que valorizar a ação humana em um
determinado tempo significa abrir espaço para que essa ação seja imitada. Assim, o
homem que age é retratado em todas as obras políticas, seja por meio de exemplos
históricos – em diálogos e discursos –, seja por meio das narrativas históricas.

149
O que denominamos como obras políticas, o autor chamava de “discurso” e o dividia em dois
gêneros, cada um endereçado a um público específico e construído de modo muito diferente. Em
De Officiis, I, 132, Cícero afirma: “Grande é a eficácia do discurso, que é de dois tipos, o discurso
oratório e a conversação: do primeiro se faz uso nos debates processuais, nas reuniões do povo e
do senado; o segundo se usa na sociedade, nas discussões, nos colóquios com os familiares e
também nos convívios. Temos preceitos dos retores sobre o discurso oratório, mas não temos
sobre a conversação, mas eu creio que também nesse campo nem poderiam preceituar.”
61

II. DIÁLOGOS ENTRE OS TEMPOS

Neste capítulo analisamos alguns diálogos filosóficos ciceronianos nos quais as


obras possuem temporalidades muito particulares. O capítulo está organizado segundo o
tempo ao qual cada obra está endereçada ou segundo o tempo em que está baseada: na
primeira parte, trataremos das obras construídas com base no passado para conversarem
com o presente, tais como De Re Publica, I, III, V, De Oratore, De Senectute e De
Amicitia; na segunda parte, de um livro em que passado e futuro estão misturados, De Re
Publica, VI, mais conhecido como Sonho de Cipião; e, na terceira, de uma obra
construída no presente para falar ao futuro, De Officiis.

O gênero dialógico ainda não havia sido preceituado no século I a.C. É preciso
considerar a disputatio in utramque partem150, inerente à estrutura do diálogo, seu
movimento próprio, a construção de conceitos por meio de argumentação e contra
argumentação, certa informalidade necessária a uma conversa entre amigos habituados a
tratar do tema, porém elevada, já que a matéria é a política. De acordo com Santos:

a arte dialógica, na medida em que é arte, premedita um discurso,


na medida em que é dialógica, premedita um gênero de discurso
que é o da conversa. Ora, uma conversa é cheia de caminhos e
descaminhos, pelo que é mais fácil e espontânea que elaborada ou
premeditada. Logo, o que a arte dialógica nos propõe, ao fim e ao
cabo, é a elaboração e premeditação de um discurso vizinho ao
não elaborado e improvisado151.

No gênero dialógico, forma e conteúdo devem estar harmoniosamente imbricados,


assim, deve haver verossimilhança entre data dramática, cenário, interlocutores e o
conteúdo por eles proferido e os exemplos históricos usados. Pelo fato de os diálogos
serem compostos por discursos de seus interlocutores, o uso dos exemplos históricos não
segue a preceituação da narrativa histórica.

150
Discussão entre as partes.
151
SANTOS, M. M. dos. “Arte dialógica e epistolar segundo as epístolas morais a Lucílio”. In:
Letras Clássicas, n. 3. São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 1999, pp. 45-93.
62

Cícero se serve, em seus diálogos filosófico-políticos, de exemplos históricos como


comprovação dos preceitos éticos e políticos em todas as obras que analisaremos nesse
capítulo e como pano de fundo para o seu desenvolvimento. O exemplo histórico como
recuperação do passado é um recurso de comprovação dos argumentos, de autoridade e
de verossimilhança, uma vez que ele geralmente se serve dos exemplos de grandes
homens que lutaram pela República, como Cipião e Lélio, ou de destruidores da
República, como Antônio e Catilina. David argumenta que os exemplos por um lado
induzem os homens à imitação, à repetição e, por outro, fortalecem o mos maiorum e o
organizam em um sistema conceitual e mnemônico. Os exemplos permitem fenômenos
de identificação e repulsão, vivificando o que há na memória152. O exemplo histórico é
imprescindível para a estrutura argumentativa, pois comprova os argumentos teóricos, e,
ao mesmo tempo, notamos que ele passa a ser “constitutivo”153 da argumentação teórica,
tanto pela força que carrega quanto pela contextualização histórica efetuada.

152
David, J-M. “Maiorum exempla sequi : l'exemplum historique dans les discours judiciaires de
Cicéron”. p.86.
153
Esta terminologia é usada por Aranovich ao analisar o uso dos exemplos históricos na obra
maquiaveliana. ARANOVICH. História e Política em Maquiavel. p. 37.
63

II.I. OBRAS CONSTRUÍDAS COM BASE NO PASSADO PARA DIALOGAREM COM O


PRESENTE

As obras De Re Publica, I, III, V, De Oratore, De Amicitia e De Senectute se


servem de um recurso retórico, no exórdio, bem específico, em que se afasta
temporalmente a data dramática da obra do momento em que ela foi escrita. Ao
observarmos que essas obras políticas são escritas na chave do registro histórico e são
permeadas de exemplos históricos ainda mais antigos, não podemos separar precisamente
o que é a matéria política e o que é história. Parece-nos que a contextualização dessas
quatro obras no passado tem a função de mostrar aos contemporâneos como eles viviam
em um momento de declínio, e a solução para Roma retomar a sua grandeza seria
recuperando as ações virtuosas, portanto, exemplares do passado. De acordo com
Aranovich: “Para os antigos, a história testemunha um passado que funda o presente e é
mais glorioso que o presente, que está em um processo de decadência; o herói é tomado
em si mesmo, o que está em questão é a sua qualidade”154. O exemplo155 histórico carrega
principalmente duas funções: a ação a ser imitada e um paradigma moral, que não
necessariamente deve ser imitado, mas sempre tem uma função pedagógica. Então, o feito
político ou moral156 transformado em exemplo histórico deve ser interpretado pela sua
qualidade, sua força na obra; a força do exemplo é investida também daquilo ou daquele
que ele representa: no caso da obra ciceroniana, os homens que lutaram pela pátria, que
conduziram a república ao apogeu. Ademais, é apenas por meio da recuperação do
passado que se torna possível salvar a república do momento presente em decadência. De
modo geral, os exemplos na obra ciceroniana são atemporais por se tratarem de exemplos
de ações que refletem uma moral universal, o que de certa forma universaliza os exemplos

154
ARANOVICH. História e Política em Maquiavel. p. 54.
155
Guard argumenta sobre o uso dos exempla, em De Officiis, mas podemos estender o sentido
às obras analisadas nesse capítulo: Marchai confirma a força dos exempla ciceronianos:
“Enquanto se preocupa com a exatidão dos exempla que ele usa, ele então tem um meio de
persuasão: o presente encontra dessa maneira sua base no passado. É fácil entender o significado
de tal argumento para uma audiência romana fortemente ligado ao mos maiorum.” GUARD.
“Morale théorique et morale pratique: nature et signification des exempla dans le De officiis de
Cicéron”. p.55.
156
Segundo Guard, quando analisa De Officiis e aqui mais uma vez podemos estender o que ele
fala a todos os diálogos filosóficos que analisamos nesse capítulo: “A escolha dos exempla é
dupla, feita de acordo com o critério do que é digno de memória, expressão usada muitas vezes
por Cícero, uma vez que define como ‘digno de memória’ o fato histórico autêntico, por um lado,
e dotado de valor moral, por outro.” GUARD. “Morale théorique et morale pratique: nature et
signification des exempla dans le De officiis de Cicéron”. p.57.
64

históricos, sempre voltados às ações particulares. Os exemplos não são apenas


ilustrativos, mas também constitutivos 157 da argumentação e, se excluídos,
comprometeriam a obra.

Nessas obras, Cícero se coloca como filósofo e um testemunho158, um narrador


historiador. Fox aponta que “Cícero está explorando a ideia de dar ao diálogo um status
histórico confiável e o potencial dinâmico de remover sua própria voz de autor do
diálogo”159. No entanto, ele constrói uma cena em que ouve a discussão – a conversa – e
a narra a outrem na obra. As múltiplas figuras de narradores testemunhos trazem um
aspecto ainda mais testemunhal: quem viu e ouviu e transmitiu a outrem. O recurso aos
exemplos históricos ao longo das obras tem relevância não apenas como instrumento
retórico mas também como assunto que passa a ser incorporado ao conteúdo filosófico.
Ademais, esses exemplos garantem a coesão da argumentação, a sustentação por meio da
comprovação com as provas históricas. Ao colocar as discussões no passado, Cícero faz
com que a autoridade dos interlocutores seja trazida à obra.

É importante ressaltar o papel reservado à memória de quem está transmitindo a


história e o fato dessas obras serem portadoras da memória. A utilidade dessas obras já
se coloca por ser uma rememoração, pois apenas guarda-se na memória para transmitir
aquilo que é útil.

O homem guarda na memória porque assente verdadeiramente a uma representação


e a apreende, como observamos no primeiro capítulo. Apreende-se apenas aquilo que é
verdadeiro, portanto, útil. No caso, o argumento rememorado é um conhecimento
verdadeiro e útil, pois consiste em uma reflexão político-filosófica e histórica. Contar
uma história consiste no princípio de narrá-la, e assim, preservá-la – o que não deixa de
ser uma característica da tradição oral na Roma que já cultivava as letras. Contar histórias
sempre foi a arte de recontá-las. A relação narrador e tradição é dominada pela ideia de
preservar o que foi contado. A rememoração permite a existência de múltiplas

157
Esta terminologia é usada por Aranovich ao analisar o uso dos exemplos históricos na obra
maquiaveliana. p. 37.
158
Hartog, ao explicar o significado da palavra histoiê analisa: “Palavra abstrata, formada sobre
o verbo historein, investigar, historia derivou de histôr, termo ligado a idein, ver, e a (w) oida, eu
sei. O histôr seria a ‘testemunha’, ’aquele que sabe por ter visto ou sido informado’”. Cf.
HARTOG, F. “A Fábrica Da História: Do “Acontecimento” À Escrita Da História As Primeiras
Escolhas Gregas”. p. 7.
159
FOX. Cicero´s Philosophy of History, p. 89.
65

temporalidades, geralmente três: seja aquela em que aconteceu o diálogo, seja aquela em
que o diálogo foi contado a Cícero, seja a que Cícero narrou.

O recurso retórico que permite as obras De Oratore, De Re Publica, De Senectute


e De Amicitia serem construídas com base no passado, sem que se tornem inverossímeis,
é explicitado no exórdio; esse é de inspiração platônica e usa-se para afastar
temporalmente a data dramática das obras, colocando-as necessariamente no passado e
no registro histórico. Vejamos como Platão constrói esse recurso em Teeteto:

142 [c] (...) Euclides – Estava cheio de pressa em ir para casa. Eu


próprio o retive e aconselhei, mas não quis. E, enquanto o
acompanhava no regresso, fui-me lembrando de Sócrates e
surpreendi-me com o modo profético com que falou acerca dele
e de outras coisas. Parece-me que o encontrou pouco antes da sua
morte, quando Teeteto era ainda um jovem; e, depois de estarem
juntos e terem conversado, espantou-se bastante com a natureza
dele. Quando voltei para Atenas, contou-me as conversas que teve
e que bem merecem ser ouvidas; disse que, de certeza absoluta,
ele viria a ser notável, se chegasse à idade madura. Terpsion – E
disse a verdade, pelo que parece. Mas que conversas eram essas?
Será que as podes contar? E. – Não, por Zeus, pelo menos assim
de cor. Mas, quando cheguei a casa, fui [143a] logo registrar
alguns apontamentos, que posteriormente, segundo a minha
disponibilidade, escrevi, enquanto me ia recordando; e, sempre
que ia a Atenas, perguntava a Sócrates aquilo de que não me
lembrava. Depois, quando voltava a casa, corrigia. Assim, passei
à escrita praticamente toda a conversa. TER. – Também já te ouvi
isso antes e, no entanto, até agora hesitei e estive este tempo
sempre com a intenção de te pedir que a mostrasses. Mas há
alguma coisa que te impeça agora de o fazer? (...) Vamos então,
e enquanto descansamos, o moço lerá para nós 160.

160
PLATÃO. Teeteto. pp186-187.
66

No texto platônico, Euclides anotou a conversa que lhe foi contada por Sócrates,
aquela que este havia tido com Teeteto, e, agora, um moço lerá o que Euclides escreveu
para Terpsion. Platão elucida que Euclides relembra o que Sócrates lhe contou e que ele
registra por escrito e com fidedignidade, porque perguntava a Sócrates o que não
lembrava. Assim, a conversa entre Sócrates e Teeteto se transforma em um documento,
um registro escrito, um testemunho.

Cícero, de modo um pouco diverso, serve-se do mesmo recurso retórico platônico,


e nossa análise dos diálogos filosóficos tem como ponto de partida este recurso. O registro
escrito é feito por Cícero para que seus contemporâneos o lessem161 e para as futuras
gerações. Registrar algo por escrito transforma um acontecimento em um
monumentum162, um documento, uma prova para a posteridade. Assim, a obra filosófica
ganha um estatuto diverso e acumula funções, não apenas instrui e forma moralmente os
concidadãos como também registra por meio de testemunhos o diálogo entre homens
eminentes.

Analisamos De Re Publica163, que se serve de um recurso semelhante ao platônico,


escrita entre 54 e 51 a.C. e que tem como data dramática o ano de 129 a.C., antes da morte

161
Devemos ressaltar que, no período helenístico, aumentou a circulação de livros em Roma, a
quantidade de traduções e também o público leitor. Cf. OLIVA NETO. O Livro de Catulo. pp. 7-
11
162
Le Goff afirma: “O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas,
o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os
atos escritos. Quando Cícero fala dos munumenta huius ordinis (Philippicae, XIV, 41), designa
os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado. Mas desde a antiguidade romana, o
monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura
ou de escultura: arco de triunfo, coluna troféu, pórtico etc.; 2) um monumento funerário destinado
a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente
valorizada: a morte. O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação,
voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o
reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos.” (grifo nosso). LE
GOFF. História e Memória. p.486.
163
Observamos as outras obras que se utilizam do mesmo recurso. Em De Oratore, a conversa é
ambientada em 91 a.C, tendo sido a obra escrita em 55 a.C.; seus três exórdios são feitos na
própria voz de Cícero. Em todos é constante a temática da recuperação pela memória do diálogo
travado entre os interlocutores, principalmente Crasso e Antônio. Em De oratore, III, 16, ele
afirma: “eu, que não estive presente naquela conversação e recebi de Caio Cota apenas as
informações sobre os temas gerais e as opiniões imersas na discussão, tentei, de fato, reproduzir
nos discursos daqueles dois oradores o seu modo de falar, pelo tanto que eu os conhecia”. Cícero
recupera na sua memória o que conhecia de ambos para não deixar estas duas figuras de oradores
morrerem.
De Amicitia foi escrita logo depois de De Senectute, no final de 44 a.C. O diálogo se passa no ano
de 129 a.C., mesma data dramática de De Re Publica. Essa obra é dedicada ao amigo Ático, e,
com isso, Cícero parece querer fazer uma comparação entre a amizade e a velhice de Cipião e
Lélio e a dele e a de seu amigo. A conversa trata da amizade, fundada na virtude, que há entre
67

de Cipião, principal interlocutor da obra. Vejamos o exórdio do livro I em que temos


notícia de que foi uma conversa contada a Cícero da seguinte forma:

E, na verdade, o argumento que vou expor não é novo, nem


instituído por nós, mas devo rememorar a discussão de uma única
geração de varões ilustríssimos e sapientíssimos de nossa ciuitas,
que foi a mim e a ti164 exposta por Públio Rutílio Rufo, que era
adolescente quando estivemos com ele, por muitos dias, em
Esmirna. Penso que nada foi preterido do que era pertinente sobre
a maior das obras, sobre todas essas coisas 165.

Compreendemos, que, de certa forma, Cícero assume a figura do hístor como


“aquele que sabe por ter sido informado” 166, mesmo não se servindo da expressão e ainda
raramente utilizando a palavra “história” nessa obra. Ao afirmar que vai “rememorar a
discussão”, que foi exposta a ele e a seu irmão por Rutílio Rufo, elabora uma dupla figura

homens sábios-políticos, cujas opiniões políticas e morais são semelhantes. O discurso é posto na
boca de Lélio, que conversa com seus genros, Fânio e Cévola, alguns dias após a morte de Cipião
(De Amicitia, 3). A conversa foi contada a Cícero pelo seu mestre em direito, Cévola, “que
costumava narrar fielmente e com agrado muitas coisas a respeito de seu sogro” (De Amicitia, 1).
Para retratar a antiguidade da discussão, Cícero faz uso da seguinte expressão: “As sentenças
daquela discussão eu guardei na memória e vou expô-las neste livro do meu modo” (De Amicitia,
3). A narração com fidelidade e o papel da memória são fundamentais para a composição exordial
dessas obras; o aspecto testemunhal garante a antiguidade e, consequentemente, a
verossimilhança da obra. Ademais, torna todo exemplo histórico constitutivo tanto da
argumentação quanto da temporalidade da obra: “4 (...) Assim também, tendo ouvido de nossos
antepassados ter sido memorável a familiaridade de Caio Lélio e Públio Cipião, pareceu-me que
o primeiro era a personagem idônea para discorrer acerca do que, a propósito da amizade, Cévola
dele ouvira e se lembrava. É que esse gênero de dissertação apoiado na autoridade dos antigos, e
dos mais ilustres entre eles, parece adquirir, não sei por que, mais peso”.
Em De Senectute, escrito em 44 a.C., Cícero dedica a obra a Ático, e a data dramática é o ano de
150 a.C. Os interlocutores Catão o Censor, Cipião e Lélio dissertam sobre a boa velhice, a
independência da felicidade em relação à idade e a sua dependência da sabedoria. Os três homens
sábios, cada um a seu modo, agem de acordo com a natureza e lutam pela salvação da pátria. Os
principais argumentos – contrários às quatro vituperações possíveis relativas à senilidade - são
proferidos por Catão.
164
Cícero refere-se a seu irmão Quinto.
165
CÍCERO. De Re Publica, I, 13: nec uero nostra quaedam est instituenda noua et a nobis
inuenta ratio, sed unius aetatis clarissimorum ac sapientissimorum nostrae ciuitatis uirorum
disputatio repetenda memoria est, quae mihi tibique quondam adulescentulo est a P. Rutilio Rufo,
Smyrnae cum simul essemus complures dies, exposita, in qua nihil fere quod magno opere ad
rationes omnium <harum> rerum pertineret praetermissum puto.
166
HARTOG, F. “A Fábrica Da História: Do “Acontecimento” À Escrita Da História As
Primeiras Escolhas Gregas”. p. 7.
68

de narradores – Rutílio e ele –, que busca na memória aquilo que vai transmitir. Se temos
dois narradores, logo, temos uma tripla distância em relação ao acontecido e três tempos
distintos, a saber: o do acontecimento, o da narração de Rutílio a Cícero e o da narração
de Cícero. Dessa forma, há sempre presente três tempos, ou seja, uma tripla distância do
presente ao acontecimento: o tempo em que se desenrola o diálogo, o tempo em que o
diálogo foi contado a Cícero e o que Cícero está escrevendo; e nós vemos as ações
narradas filtradas por dois ângulos, o de Cícero e o de Rutílio; narrar é uma capacidade
de transmitir experiências, e a fonte dessa obra é a conversa transmitida de pessoa para
pessoa. A figura de Cícero como narrador é de um homem que conhece os costumes
romanos, a filosofia, a vida pública, está apto a governar em um momento de crise e
conhece as narrativas históricas de Roma. Essa dupla figura de narradores, sendo um deles
uma testemunha ocular, fortalece ainda mais o estatuto historiográfico que há na obra,
reforçando que, para falar sobre a melhor ciuitas e o melhor concidadão, não basta
construir uma obra ao mesmo tempo reflexiva e para o agir, trazendo apenas argumentos
filosóficos, mas que devemos nos servir da utilidade dos exemplos e argumentos
históricos. Ademais, ao longo do diálogo, pode-se observar o posicionamento político de
Cícero por meio das falas de Lélio e Cipião em defesa da república. Ao rememorar a
conversa de Cipião e seus amigos, o autor elabora conceitos políticos ao longo do curso
dos acontecimentos em Roma, assim, o constante resgate da história seja pela
ambientação, seja pelos exemplos citados faz com que percebamos uma maior distância
temporal de Cícero em relação à data do diálogo. Esse recurso ajuda a dar o efeito de uma
conversa que ocorreu com varões de duas gerações anteriores a de Cícero, e isso garante
a verossimilhança ao texto ao mesmo tempo em que todos os exemplos históricos
constitutivos da obra possuem mais força e qualidade, mostrando a grandiosidade do
passado e dos costumes. O narrador figura entre os sábios e sabe aconselhar, pois pode
recorrer ao que está guardado em sua memória, e o que está guardado é tanto o que ele
próprio viveu e aprendeu quanto o que lhe foi contado – as experiências de outros varões
eminentes. Fox argumenta que:

a memória deve ser a garantidora da veracidade histórica, mas, na


exploração de Cícero sobre isso, o significado simbólico da
memória é mais importante do que qualquer base factual. (...) A
69

própria memória realmente não expressa apenas a gravação de


eventos, mas também a sua representação e perpetuação167.

Esse argumento demonstra que aquilo que é rememorado é mais importante do que
uma prova factual, ou seja, na visão do romano sobre o que é história, a memória torna-
se mais importante do que as provas. Fox continua sua análise sobre como a memória
opera, afirmando:

a memória está sempre olhando ao mesmo tempo para um


referencial histórico e para algum momento indefinido de leitura
futura. Assim, torna-se uma ferramenta útil na produção de
argumento historicamente modulado destinado a criar um
determinado efeito. Esta formulação pode parecer um tanto
abstrata; a evidência concreta está, é claro, no uso abundante dos
exempla nos discursos de Cícero, onde existe uma suposição clara
de que a história fornece um sistema de valores compartilhado por
meio do qual o orador pode procurar promover um consenso com
sua audiência, enquanto, ao mesmo tempo, os exempla
individuais estão em constante reinterpretação ou mesmo
representação de um material familiar 168.

A argumentação de Fox sobre os discursos também pode ser trazida para nossa
análise dos diálogos filosóficos. A recuperação das ações passadas são utilizadas para
dialogarem com o presente e o futuro. Com isso, a recuperação pela memória dos exempla
estabelece o diálogo entre os diferentes tempos. Isso, de certa forma, demonstra que
Cícero tinha uma visão do curso dos acontecimentos em Roma pelo deslocamento
temporal que realizava ao escrever suas obras e por criar obras que dialogavam entre os
tempos.

Mas, diferentemente da obra De Re Publica, Fox observa que:

167
FOX. Cicero´s Philosophy of History. pp. 163-164.
168
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p. 165.
70

Os interlocutores de De Oratore são diferentes: eles são


escolhidos não porque sua visão da história romana pertence ao
momento final de uma tradição, mas porque são pioneiros;
pioneiros da excelência retórica, que, como Cipião e seus amigos,
são criados por Cícero para incorporar ideais que são claramente
projeções das próprias ambições de Cícero, mas que contêm um
equilíbrio, em seu próprio contexto histórico, entre plausibilidade
e uma manifesta idealização. Assim como os personagens em De
Re Publica, Crasso, Antônio e seu círculo expressam esse
equilíbrio na produção de visões concorrentes da história romana.
(...) em De Oratore, a retórica e seu papel na história de Roma é
o tema central169.

Em De Oratore, o exórdio na própria voz de Cícero e o deslocamento temporal dele


com os interlocutores corroboram com a argumentação sobre o posicionamento da
retórica como instituição central no desenvolvimento da vida política romana. E isso é
possível porque Cícero escolhe interlocutores que possuem uma reputação em Roma e
usa argumentos verossímeis com essas figuras históricas 170. Fox ainda afirma que tanto
em De Re Publica quanto em De Oratore171 – e podemos acrescentar aqui De Amicitia e

169
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p. 123.
170
Cf. FOX. Cicero´s Philosophy of History. p. 120.
171
Em De Oratore, I, Cícero está preocupado com a função da retórica como fenômeno político,
cultural e histórico e, ao “rememorar uma antiga história, não muito nítida”, recupera “o que os
homens eloquentíssimos e ilustríssimos pensavam acerca da doutrina oratória como um todo” (De
Oratore, I, 4). Um orador deve ter um repertório de todas as coisas, inclusive dominar toda a
história e a potestade dos antecessores e o direito civil; a memória é a guardiã de todo o
conhecimento e das palavras pensadas, ou seja, dos discursos elaborados, e fundamental a um
orador. Assim, a memória é posta não apenas como parte do discurso, mas como faculdade do
homem, que o orador, principalmente, deve ter. Cícero compõe a cena histórica do diálogo
afirmando que retomará uma discussão dos conterrâneos mais eloquentes e mais dignos. A época
é do consulado de Felipe; Crasso foi para sua villa em Túsculo juntamente com seus amigos para
conversarem “sobre os tempos e a totalidade da república” (De Oratore, I, 26). No exórdio do
segundo livro, ele reforça a função da história, sua importância e o estatuto histórico de
testemunho que a obra possui: “7. Por isso, também tive imensa felicidade em escrever a
conversação que eles tiveram acerca de tais temas, tanto para pôr fim àquela opinião, que sempre
existiu, de que um não era doutíssimo, o outro totalmente indouto, quanto para preservar por
escrito as palavras que eu julgava terem sido proferidas divinamente por sumos oradores acerca
da eloquência, se, de algum modo, pudesse compreender e representar; ou pudesse ainda, por
Hércules, na medida de minhas possibilidades, louvá-los, pois já estavam quase no esquecimento
dos homens e no silêncio”. Dessa maneira, Cícero expõe a função da obra e demonstra que a
história - o passado, a memória desses homens - precisa tanto ser registrada quanto recuperada.
71

De Senectute172 – a história é usada para contextualizar os argumentos, e isto é feito de


uma maneira que, em vez de simplesmente usar a história para validar ou verificar, ela é
usada para gerar mais complexidade na argumentação173. Acrescentaríamos que o uso dos
exemplos históricos e da argumentação sempre no tempo passado permite ao autor
elaborar a sua visão do curso dos acontecimentos em Roma, e no caso do De Oratore174,
dos acontecimentos políticos e do espaço que a retórica ocupava na vida política.

Ao dar o estatuto de um testemunho à obra, recuperando a figura desses oradores, imortaliza não
apenas esses varões como a retórica. Ademais, o autor segue a premissa da história de “tomar
como testemunho a memória dos que conheceram estes oradores e ainda estão vivos entre nós”
(De Oratore, II, 9). No exórdio do terceiro livro, Cícero relata tanto a morte de Crasso (ocorrida
depois de dez dias que teve a conversa com Antônio) quanto afirma que quem relatou a conversa
a ele e a seu irmão foi Cota: “De fato, nós, que não integramos pessoalmente a conversa e a quem
Cota relatou tanto os tópicos quanto as ideias dessa discussão, tentamos imitar, em suas falas, o
mesmo gênero de discurso em que conhecêramos os dois oradores” (De Oratore, III, 16). Em De
Oratore, Cota foi quem testemunhou a conversa e a contou a Cícero, fazendo o papel de
testemunho ocular, que se encontra no tempo intermediário entre a conversa e a redação da obra.
Com isso, observamos que, além de toda a obra ter um registro historiográfico, os exemplos
históricos utilizados pelos interlocutores são anteriores a 91 a.C., o que garante maior
verossimilhança à obra.
172
Os argumentos e os exemplos que o interlocutor Catão expõe ou estão, de alguma maneira,
relacionados com a sua vida e são suas memórias ou são fatos que ele narra por conhecer as
histórias e tê-las em sua memória, como podemos observar: “10. Quero muito bem Quinto
Maximo – aquele que tomou Taranto, quando já era velho e eu um adolescente – como um igual.
Tinha, de fato, naquele homem uma gravidade regada de gentileza, e a velhice não tinha mudado
seus costumes; mas é verdade que eu comecei a pensar que não era muito velho, mas já com idade
avançada, pois foi cônsul pela primeira vez um ano depois do meu nascimento; e com ele cônsul,
pela quarta vez, eu fui ainda adolescente combater como soldado em Cápua e, cinco anos depois,
em Taranto. Como questor, teve essa magistratura no consulado de Tuditano e Cetego, quando
ele, muito velho, foi o defensor da lei Cincia.” O diálogo é organizado, a partir do parágrafo
quinze, por meio das quatro razões pelas quais a velhice parece infeliz: a primeira, porque
distancia os homens das ocupações; a segunda, porque torna o corpo mais frágil; a terceira, porque
priva os homens de quase todos os prazeres; a quarta, porque é uma fase da vida próxima da
morte. Cícero descontrói cada argumento com exemplos de homens que usufruíram de sua
velhice: não se afastaram da vida ativa, como Quinto Máximo, Lúcio Paulo, os Fabrícios, os
Cúrios e os Coruncânios (De Senectute, 15); a memória diminui se não é exercitada, e o exemplo
citado é o de Temístocles, que sabia o nome de todos os concidadãos (De Senectute, 21). Já outros
homens envelhecem aprendendo coisas novas, como Sólon, que aprendia algo novo todos os dias
(De Senectute, 26). Toda a argumentação tem figuras exemplares de grandes homens como forma
de comprovar o argumento dado. Ademais, conclui-se que, na velhice, é possível preservar com
vigor a força do ânimo quando não há mais tanta força no corpo.
173
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p. 147.
174
A retórica, tema central da obra, só faz sentido a um romano pelo espaço que ela tem na vida
política, pois ela é um meio para a realização da ação política, uma vez que auxilia nos debates.
Questiona-se, inclusive, se foi a retórica que permitiu a agregação dos homens em cidades e se a
manutenção e salvação da ciuitas foi feita por intermédio da retórica ou da inteligência ou da
capacidade prudencial humana, segundo De Oratore, I: “36. Pois quem poderia conceder a ti que
o gênero humano, no início, espalhado por montes e florestas, encerrou-se em cidadelas e
muralhas não pelo discernimento dos prudentes, mas pelo discurso dos eloquentes? Ou, na
verdade, que as demais utilidades de estabelecer e preservar as ciuitates foram estabelecidas, não
pelos homens sábios e fortes, mas pelos eloquentes e de fala ornada?”
72

Quando Cícero se refere a esse “gênero de dissertação apoiado na autoridade dos


antigos” em De Amicitia, podemos entender que são todas essas obras em que ele se serve
desse recurso retórico de afastamento da data dramática da obra, como De Re Publica,
De Oratore e De Senectute175 e o próprio De Amicitia. Esse gênero consiste em trazer a
história para o interior do diálogo filosófico. Com isso, não podemos dissociar em suas
obras essas duas matérias. Ademais, ao trazer a exemplariedade da história para a
filosofia, Cícero particulariza essas ações, demonstrando o tempo e o lugar em que
ocorreram. Por outro lado, os argumentos morais, universais, da filosofia que retratam as
virtudes dos homens sábios, ao serem exemplificados com homens que fizeram parte da
história de Roma, são particularizados, e a história se universaliza por meio desses
grandes homens.

Ao mesmo tempo em que as obras são contextualizadas em um passado, elas


dialogam com o tempo em que estão sendo escritas. O livro I da obra De Re Publica está
voltado para questões políticas do presente 176 – tanto de Cícero quanto do de Cipião –, e
ainda assim os exemplos históricos são constitutivos da argumentação. Nessa primeira
parte do capítulo, recorremos aos argumentos das quatro obras – De Re Publica, De
Oratore, De Amicitia e De Senectute – que nos forneçam a exemplaridade da relação
entre virtude e ação, as referências ao curso da vida ou dos acontecimentos políticos e as
marcações temporais 177. A importância da exemplificação histórica, da prova, é tanta que,
ao longo de um dos diálogos, encontramos a seguinte fala de Lélio: “– Vejo, Cipião, que

175
De Senectute é uma consolatio com o intuito de que a velhice seja mais leve tanto para Cícero
quanto para seu amigo Ático, a quem dedica a obra. A filosofia é uma matéria, cujo aprendizado
permite que se passe qualquer idade da vida sem moléstias (De Senectute, 2). Falar sobre a velhice
é falar da passagem do tempo, pois é preciso saber envelhecer e saber observar a passagem do
tempo, conhecer o curso da vida, por isso ela é tão cara ao agricultor, que conhece o ciclo da
natureza, e ao filósofo, que conhece o ciclo da vida humana. Cícero argumenta que o discurso é
colocado na voz de Catão, pois não poderia conferir autoridade a Titão, como fez Aristão de Chio,
e dar voz a uma fábula (De Senectute, 3). A figura de Catão representa uma grande autoridade,
assim como seus dois outros interlocutores, Lélio e Cipião. A obra ganha mais verossimilhança,
pois o diálogo é ambientado antes da morte de Catão, representando uma conversa passada. Dessa
forma, este recurso retórico garante ainda mais verossimilhança, pois trata de dois momentos da
vida muito próximos, a saber, a velhice e a morte. No exórdio dessa obra não há a múltipla figura
de narradores como nos outros; o estilo é diferente, mas os exemplos históricos citados são
fidedignos, pois não haveria verossimilhança na obra se fosse uma narrativa inventada. A obra é
composta por 85 parágrafos, destes há exemplos históricos em 43, nos seguintes: 7, 8, 10, 11, 13,
14, 15, 16, 19, 21, 22, 23, 26, 27, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 37, 39, 41, 42, 43, 44, 47, 48, 49, 50, 54,
55, 56, 59, 60, 61, 63, 69, 72, 73, 75, 78, 82. Disso depreendemos que numericamente os exemplos
perpassam quase toda a obra.
176
O mesmo acontece em De Oratore, De Amicitia e De Senectute.
177
Não seguimos uma ordem das obras, e, muitas vezes, esses três assuntos aparecem
entrelaçados.
73

tu és suficientemente provido de testemunhos, mas, diante de mim, como diante do bom


juiz, os argumentos valem mais do que as provas.”178 Entretanto, a sequência da obra
demonstra que o argumento de Cipião será baseado em um testemunho – uma prova – do
próprio Lélio. Com isso percebemos que a argumentação é contruída a partir de
testemunhos.

O tom memorialístico e consolatório em que são recuperados os exemplos em De


Senectute trazem ao presente os feitos de um homem, suas ações virtuosas; dessa forma,
a grande consolação de um homem na velhice é ver suas ações que ficaram registradas na
história:

9. Cipião e Lélio, as artes e o exercício da virtude são em geral as


mais oportunas armas da velhice, as quais, cultivadas em cada
idade, quando vividas sempre e intensamente, produzem frutos
admiráveis, não apenas porque não abandonam mais, nem na
idade mais avançada (e esta é, na verdade, a coisa mais
importante), mas também porque a consciência de uma vida bem
vivida e a memória das muitas ações virtuosas cumpridas são uma
coisa agradabilíssima179.

Relembrar um passado de ações virtuosas é o que resta a um ancião. Mas o autor


pondera que não são todos como Cipião: nem todos teriam para recordar o domínio das
cidades, batalhas na terra ou no mar, guerras conduzidas por ele e triunfos. E cita o
exemplo de outros homens que tiveram uma velhice tranquila, como Platão e Isócrates 180;
todos modelos a serem imitados.

Falar da velhice é o mesmo que falar do curso da vida de cada um, da forma como
cada um viveu sua vida e como ainda vive; ao mesmo tempo em que se analisa a vida do
ponto de vista privado, quando observamos os grandes homens, olhamos o curso da vida

178
De Re publica, I, 59: ‘uideo te, Scipio, testimoniis satis instructum, sed apud me, ut apud
bonum iudicem, argumenta plus quam testes ualent.’
179
CÍCERO. De Senectute, 9: Aptissima omnino sunt, Scipio et Laeli, arma senectutis artes
exercitationesque virtutum, quae in omni aetate cultae, cum diu multumque vixeris, mirificos
ecferunt fructus, non solum quia numquam deserunt, ne extremo quidem tempore aetatis
(quamquam id quidem maximum est), verum etiam quia conscientia bene actae vitae
multorumque bene factorum recordatio iucundissima est.
180
CÍCERO. De Senectute, 13.
74

pelo aspecto público, pelos feitos em prol da pátria; além disso, temos duas perspectivas
da passagem do tempo: a primeira, que segue o curso da vida, da natureza, e a segunda,
que se refere ao tempo da sociedade, da sua história. Ou seja, temos unido em De
Senectute o tempo como algo significativo da vida privada e como construção da
sociedade por meio da relação dessa com a sua história. Os grandes sábios-políticos unem
em si essa manifestação da dupla temporalidade, principalmente quando velhos, pois já
viveram muito, conhecem o curso natural da vida e se dedicaram à república. Como
lemos: “nos velhos, de fato, há mente, razão e discernimento; e sem esses não poderia
haver as ciuitates”181; ademais, “a velhice, especialmente a de quem teve cargo público,
tem tamanha autoridade, que vale mais do que todos os prazeres da juventude”182. Quanto
ao tempo da natureza:

O curso da vida é certo, e o caminho da natureza é único e


simples; e a cada parte da vida é dada uma fisionomia oportuna;
a moleza das crianças, a ferocidade dos jovens, a gravidade da
idade já consolidada e a maturidade da velhice têm algo de
natural, que deve ser colhido no seu tempo183.

Temos um curso da vida, de um lado, sobre o qual o homem não possui tanta
ingerência, por outro, há o curso da vida que está voltado para as ações políticas. Vejamos
como deve ser o curso dos melhores concidadãos, pois são eles, com suas ações, que
moderam o curso da república. No primeiro parágrafo do exórdio de De Re Publica, feito
na própria voz de Cícero, lemos:

1 (...) Na verdade, a Marco Catão, homem desconhecido e novo,


por quem – como um modelo para todos nós que nos dedicamos
às mesmas coisas – somos, por assim dizer, conduzidos à ação e
à virtude, certamente tinha sido permitido deleitar-se no ócio, em
Túsculo, lugar salutar e próximo. Mas homem insensato, como

181
CÍCERO. De Senectute, 67: (...) Mens enim et ratio et consilium in senibus est; qui si nulli
fuissent, nullae omnino civitates fuissent.
182
CÍCERO. De Senectute, 61: (...) Habet senectus, honorata praesertim, tantam auctoritatem,
ut ea pluris sit quam omnes adulescentiae voluptates.
183
CÍCERO. De Senectute, 33: (...)Cursus est certus aetatis et una via naturae, eaque simplex,
suaque cuique parti aetatis tempestivitas est data, ut et infirmitas puerorum, et ferocitas iuvenum
et gravitas iam constantis aetatis et senectutis maturitas naturale quiddam habeat, quod suo
tempore percipi debeat.
75

aqueles consideram, ainda que nenhuma necessidade o coagisse,


preferiu ser sacudido nestas ondas e tempestades até a suma
velhice a viver naquela tranquilidade e ócio jocundíssimo. Omito
inumeráveis varões que foram, cada um, a salvação dessa ciuitas,
e, uma vez que não estão afastados da memória dessa época,
deixo de mencioná-los, para que ninguém se queixe de que o
esqueci ou a algum dos seus. Afirmo apenas: tanta foi a
necessidade de virtude dada ao gênero humano pela natureza,
tanto o amor dado para defender a salvação comum, que esta força
venceu todos os afagos da volúpia e do ócio184.

Catão é um modelo, um exemplo, tanto para Cícero quanto para outros romanos.
Com a exposição breve da escolha de Catão, que preferiu a vida pública ao ócio, temos
um exemplo da importância dessa figura para a formação dos romanos, que são
conduzidos à ação e à virtude, por meio do exemplo; observamos como a função
pedagógica do exemplo é utilizada na obra tanto para tratar dos assuntos políticos quanto
morais. Catão, cônsul em 195 a.C., era uma figura dominante tanto na vida política quanto
intelectual de Roma e tinha tanto a virtude quanto o amor pátrio, caros à vida republicana.
Os que governam as urbes com discernimento devem ser preferíveis a todos os outros, e
os que se empenham na vida pública são incitados pelos estímulos da própria natureza e
devem manter o curso dos melhores concidadãos, ou seja, seguir os seus exemplos 185. E
da mesma forma que a virtude modera as ações desse homem, este, consequentemente,
modera o curso da República. Dedicar-se à pátria186 é o mesmo que dedicar-se à natureza,

184
CÍCERO. De Re Publica, I, 1: M. uero Catoni homini ignoto et nouo, quo omnes qui isdem
rebus studemus quasi exemplari ad industriam uirtutemque ducimur, certe licuit Tusculi se in otio
delectare, salubri et propinquo loco. sed homo demens ut isti putant, cum cogeret eum necessitas
nulla, in his undis et tempestatibus ad summam senectutem maluit iactari, quam in illa
tranquillitate atque otio iucundissime uiuere. omitto innumerabiles uiros, quorum singuli saluti
huic ciuitatifuerunt, et qui sunt <haud> procul ab aetatis huius memoria; commemorare eos
desino, ne quis se aut suorum aliquem praetermissum queratur. unum hoc definio, tantam esse
necessitatem uirtutis generi hominum a natura tantumque amorem ad communem salutem
defendendam datum, ut ea uis omnia blandimenta uoluptatis otique uicerit.
185
CÍCERO. De Re Publica, I, 3.
186
Cícero se autoriza como autor da obra, pois no mesmo exórdio em que argumenta que os
romanos devem seguir o exemplo de Catão, adiante, ele se coloca como um romano que serviu a
pátria em um momento de crise, ou seja, ele também é um exemplo, mas está no tempo presente
e não no passado: “10. Porém, quem pode, afinal, aprovar aquela restrição segundo a qual o sábio
não terá nenhuma participação na república, exceto quando os tempos e a necessidade o
76

pois o homem está se dedicando às coisas humanas e aos seus concidadãos, e, é melhor
ao homem dedicar-se à pátria do que ser consumido pela vida por não fazer nada.

Assim como Catão, Cipião é um exemplo de sábio a ser seguido e se autoriza a


falar da principal república, pois não

ignora absolutamente as teorias gregas, nem como a quem as


antepõe, sobretudo neste gênero, às nossas, mas como a um dentre
os togados que (...) foi abrasado pelo desejo de aprender desde a
infância, mas foi muito mais instruído pela experiência e pelos
preceitos domésticos do que pelas letras187.

Cipião, ao ser instruído nos preceitos domésticos, conhece o mos maiorum e está
inserido na vida pública romana, discutia filosofia e história: “costumava discutir com
Panécio, na presença de Políbio – dois gregos, talvez os maiores peritos nas coisas civis
–, e reuniam muitas para ensinar que o melhor estado da ciuitas é, de longe, o que nossos
predecessores nos deixaram” 188. Com isso, Cícero, Catão e Cipião são os três grandes
exemplos de sábios-políticos a serem imitados, tanto pela formação que receberam quanto
por estarem sempre dispostos a salvar a república.

A marcação temporal, em De Re Publica, mostra-nos que o apogeu da ciuitas foi


atingido e deixado pelos predecessores, Catão e Cipião. Isso evidencia como o passado é
sempre considerado glorioso e, no momento presente, o de Cícero, os romanos vivem a

obrigarem? Como se a alguém pudesse sobrevir uma necessidade maior, por assim dizer, do que
a que se abateu sobre nós; nela, o que eu poderia ter feito, então, que não fosse ser cônsul? Porém
como poderia ser cônsul se não tivesse [mantido], desde a infância, esse curso de vida pelo qual,
nascido de origem equestre, alcançaria tão grande honra? Portanto não há possibilidade de
socorrer a república a qualquer momento ou segundo teu desejo, por mais que ela esteja permeada
de perigos, a não ser que estejas em uma posição que te permita fazê-lo.”
187
CÍCERO. De Re Publica, I, 36: sed neque iis contentus sum quae de ista consultatione scripta
nobis summi ex Graecia sapientissimique homines reliquerunt, neque ea quae mihi uidentur
anteferre illis audeo. quam ob rem peto a uobis ut me sic audiatis: neque ut omnino expertem
Graecarum rerum, neque ut eas nostris in hoc praesertim genere anteponentem, sed ut unum e
togatis patris diligentia non illiberaliter institutum studioque discendi a pueritia incensum, usu
tamen et domesticis praeceptis multo magis eruditum quam litteris.’
188
CÍCERO. De Re Publica, I, 34: sed etiam quod memineram persaepe te cum Panaetio
disserere solitum coram Polybio, duobus Graecis uel peritissimis rerum ciuilium, multaque
colligere ac docere, optimum longe statum ciuitatis esse eum quem maiores nostri nobis
reliquissent.
77

decadência da República. A única forma da República voltar ao apogeu é por meio da


recuperação do passado, ou seja, por meio do resgaste da exemplariedade das ações.

Quanto ao curso da República – no exórdio do livro V, feito na própria voz de


Cícero –, Roma, apesar de não se consumir, de não morrer, decai por conta dos vícios; os
romanos não conseguiram nem manter a forma do governo misto, nem os costumes que
firmaram a república, nem as virtudes. Cícero descreve e lamenta o declínio de Roma em
De Re Publica, V, 2, da seguinte forma:

2. Na verdade, como nossos tempos receberam a República como


se fosse uma pintura notável, mas já de pouco fôlego por sua
antiguidade, não apenas negligenciou renová-la com as cores que
tivera, como também não procurou conservar sua forma e seus
últimos delineamentos. Pois o que permanece dos antigos
costumes nos quais Ênio disse que se firmou a coisa [pública]
romana? Nós os observamos esquecidos de modo obsoleto, e não
apenas não são cultivados como também são ignorados. Com
efeito, o que dizer dos varões? Pois os próprios costumes se
enterraram na penúria dos varões, mal de que tanto temos que
prestar contas, como também explicar a razão, como se fossemos
réus da pena capital. De fato, não por algum acaso, mantemos
uma República nas palavras, [mas], na verdade, já a perdemos há
muito tempo por nossos vícios. (Agostinho, Cidade de Deus, 2,
21)189.

Cícero atribui a decadência da República aos vícios humanos. Podemos,


inicialmente, pensar que ela estava decadente pela sua velhice, e seria possível renová-la,
desde que houvesse homens virtuosos para essa tarefa. Mas os homens corruptos e

189
CÍCERO. De Re Publica, V, 2: nostra uero aetas cum rem publicam sicut picturam accepisset
egregiam, sed iam evanescentem uetustate, non modo eam coloribus isdem quibus fuerat
renouare neglexit, sed ne id quidem curauit ut formam saltem eius et extrema tamquam liniamenta
seruaret. quid enim manet ex antiquis moribus, quibus ille dixit rem estare Romanam? quos ita
obliuione obsoletos uidemos, ut non modo non colantur, sed iam ignorentur. nam de uiris quid
dicam? mores enim ipsi interierunt uirorum penuria, cuius tanti mali non modo reddenda ratio
nobis, sed etiam tamquam reis capitis quodam modo dicenda causa est. nostris enim uitiis, non
casu aliquo, rem publicam uerbo retinemus, re ipsa uero iam pridem amisimus. (Aug. Ciu. 2, 21).
78

viciosos, com suas ações, degeneram a República; as instituições não se degeneram


sozinhas e nem possuem a capacidade de se regularem, se não for por meio das ações
humanas.

Em De Re Publica, enquanto os interlocutores deslocados temporalmente, que


viviam no ápice do governo da República em Roma representam o ideal que deveria ser
seguido, Cícero, quando argumenta em sua própria voz nos exórdios, retrata a realidade
do seu tempo, a decadência, a inserção de Roma em um período de degeneração; Fox
argumenta que:

Em De Re Publica, vemos como os interlocutores do diálogo


apresentam uma espécie de pré-história para os problemas
políticos dos tempos de Cícero. Cipião e seus amigos podem
trazer uma visão otimista do potencial dos grandes homens de
Roma para assumir o controle da república de forma benigna,
precisamente porque estão situados em um ponto da história em
que os horrores completos, sob a forma das guerras civis que
caracterizaram as ditaduras de Mário e de Sula ainda não haviam
ocorrido, e o equilíbrio entre a ambição individual e o governo
coletivo da República não se degenerou inequivocamente em um
medo que indivíduos poderosos necessariamente extinguiram o
poder de seus pares 190.

Com isso, observamos que Cícero se serve da representatividade e da


exemplaridade da ação para mostrar as questões políticas em Roma e, ao mesmo tempo,
a sua percepção tanto da política quanto da história.

As marcações temporais ao longo da obra De Re Publica são várias, como a


seguinte: “58191. *mas se queres, Lélio, dar-te-ei testemunhos, nem demasiado antigos

190
FOX. Cicero´s Philosophy of History, p. 122.
191
De acordo com Gorman, The Socratic Method in the Dialogues of Cicero (pp. 37-47), em I,
58, Cícero inicia um diálogo tentando emular a obra platônica, servindo-se do método socrático
de pergunta e resposta, o que se estende até I, 63. Neste excerto, Cipião e Lélio discutem se a
monarquia é a melhor forma de governo ou não. E a parte racional da alma, como chamava Platão,
foi denominada neste trecho como consilium. Assim, consilium, como manifestação da ratio, está
intimamente ligado à prudentia.
79

nem de algum modo bárbaros.” Com essa frase Cícero marca temporalmente e
espacialmente a obra, ou seja, os exemplos não serão muito distantes do tempo de Lélio
e não serão estrangeiros, mas romanos. Na continuação, percebemos que eles voltam ao
início do período republicano, quando não havia mais reis em Roma, ou seja, deslocam-
se quatrocentos anos:

– Quero-os. – disse [Lélio]. – Vês, portanto, que há menos de


quatrocentos anos esta urbe está sem reis? – Na verdade, menos.
– Quanto, então? Esta idade de quatrocentos anos é, por acaso,
muito longa como a idade de uma urbe ou de uma ciuitas? – Esta,
na verdade – disse –, é apenas adulta. – Logo, há quatrocentos
anos havia em Roma um rei? – E soberbo, precisamente. – E
antes? – Um justíssimo, e [outros] antes até chegar a Rômulo, que
era rei no ano seiscentos, contando desde esse tempo. – Logo,
nem sequer este [Rômulo] é muito antigo? – De modo algum,
viveu quando a Grécia já estava envelhecendo. – Concordo.
Acaso Rômulo foi rei dos bárbaros? – Se, como dizem os gregos,
todos são ou gregos ou bárbaros, temo que tenha sido rei dos
bárbaros; mas se este nome deve dar-se pelos costumes e não pela
língua, não considero os gregos menos bárbaros que os romanos.
E Cipião: – Todavia, sobre o [assunto] que tratamos, não
investigamos a gente, investigamos os temperamentos. Se, de
fato, homens prudentes e não tão antigos quiseram ter reis, valho-
me de testemunhas nem muito antigas nem inumanas e ferozes 192.

192
CÍCERO. De Re Publica, I, 58: *‘sed si uis, Laeli, dabo tibi testes nec nimis antiquos nec ullo
modo barbaros.’ ‘Istos’ inquit ‘uolo.’ ‘Videsne igitur minus quadringentorum annorum esse hanc
urbem ut sine regibus sit?’ ‘Vero minus.’ ‘Quid ergo? haec quadringentorum annorum aetas ut
urbis et ciuitatis num ualde longa est?’ ‘Ista uero’ inquit ‘adulta uix.’ ‘Ergo his annis
quadringentis Romae rex erat?’ ‘Et superbus quidem.’ ‘Quid supra?’ ‘Iustissimus, et deinceps
retro usque ad Romulum, qui ab hoc tempore anno sescentesimo rex erat.’ ‘Ergo ne iste quidem
peruetus?’ ‘Minime, ac prope senescente iam Graecia.’ ‘Cedo, num barbarorum Romulus rex
fuit?’ ‘Si ut Graeci dicunt omnes aut Graios esse aut barbaros, uereor ne barbarorum rex fuerit;
sin id nomen moribus dandum est, non linguis, non Graecos minus barbaros quam Romanos
puto.’ Et Scipio: ‘atqui ad hoc de quo agitur non quaerimus gentem, ingenia quaerimus. si enim
et prudentes homines et non ueteres reges habere uoluerunt, utor neque perantiquis neque
inhumanis ac feris testibus.’
80

Temporalmente, Cícero revela a maturidade da República. O diálogo demonstra


que Roma não é tão antiga quanto parece ser, ou seja, em pouco tempo ela atingiu uma
maturidade política e surgiu quando a Grécia já estava decaindo. Um segundo ponto que
merece destaque é a forma como Rômulo começou a reinar. A fala de Cipião já aponta
para o que será narrado no segundo livro, quando os romanos se juntam com os sabinos
e reinam conjuntamente Rômulo e Tito Tácio. Não importa quais serão os povos aliados,
mas o temperamento, o caráter, sua virtude; mais do que isso, ao dizer que investiga os
temperamentos, de alguma maneira, singularizam-se essas pessoas, pois o temperamento
é de alguém em particular e não da coletividade. De acordo com o caráter do povo será a
sua vontade e, consequentemente, quem ele colocará para governar – e devemos lembrar
que os monarcas em Roma eram eleitos. Notamos que a atribuição do cargo a quem vai
governar é definida mais pela questão moral do que puramente política.

Em De Oratore, o início de Roma é descrito por meio do seguinte exemplo:

37. Na verdade, parece a ti que Rômulo reuniu os pastores e os


estrangeiros ou estabeleceu o matrimônio com as sabinas ou
mesmo reprimiu a força dos povos vizinhos pela eloquência e não
pelo discernimento e sabedoria singulares? O quê? E o que [dizer]
de Numa Pompílio? E de Servio Túlio? E dos demais reis, que
tiveram exímio lugar na constituição da república: acaso aparece
neles algum vestígio de eloquência? E então? Depois da expulsão
dos reis, entretanto, percebemos que a própria expulsão foi
realizada pela mente, não pela língua de L. Bruto; não
percebemos que havia por toda parte muito discernimento e pouca
eloquência?193

Observamos o argumento construído por meio de um exemplo histórico.


Percebemos que aquilo que conduz os homens em suas grandes decisões não é a

193
CÍCERO. De oratore, I, 37: An vero tibi Romulus ille aut pastores et convenas congregasse
aut Sabinorum conubia coniunxisse aut finitimorum vim repressisse eloquentia videtur, non
consilio et sapientia singulari? Quid? In Numa Pompilio, quid? In Servio Tullio, quid? In ceteris
regibus, quorum multa sunt eximia ad constituendam rem publicam, num eloquentiae vestigium
apparet? Quid? Exactis regibus, tametsi ipsam exactionem mente, non lingua perfectam L. Bruti
esse cernimus, sed deinceps omnia nonne plena consiliorum, inania verborum videmus?
81

eloquência, mas o discernimento, e este marca o início de Roma. Percebemos tanto o


espaço da retórica quanto do discernimento por meio de uma perspectiva histórica.
Devemos ressaltar que o discernimento é a principal virtude atribuída aos optimates na
obra que Cícero escreve na sequência, De Re Publica.

O equilíbrio das virtudes – elemento da longevidade de Roma – e das partes


existentes no governo misto romano é o que garante a sua longevidade, pois a conduz à
concórdia. O equilíbrio, que permite o tempero de Roma, é que desde sua fundação ela
carrega elementos do governo misto: os reis colocaram elementos mistos na sua
constituição como os pais e as tribos. Depois, no período republicano, a figura do cônsul
foi combinada com o senado194 e com o tribunado da plebe. Assim, instituições foram
criadas e incorporadas, e essa construção ocorreu de acordo com a necessidade de
equilíbrio. Para Cícero, o tempero dos elementos limitou a potestade um do outro,
regulando-os195. Desse modo, tenta-se chegar a uma igualdade da potestade e escapa-se
dos vícios inerentes das formas simples. Talvez este seja um motivo da longevidade da
república: “(...) toda a república, que, como disse, é a coisa do povo, deve ser conduzida
pelo discernimento para que seja duradoura. Porém, este discernimento, em primeiro
lugar, deve sempre refletir a mesma causa que gerou a ciuitas”196. Sabemos que o
discernimento é a virtude típica dos optimates e que a República romana tem um forte
caráter aristocrático, com a predominância dessas figuras, então, ela nasceu para ser
duradoura. Essa quarta forma de governo é a alternativa para se fugir do ciclo de
degeneração e regeneração das formas simples de governo. Um governo moderado e
misto197, que se origina de partes, ou melhor, das virtudes, dos três gêneros primários, e
apenas se degenera quando há “grandes vícios provenientes dos homens principais”.

194
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, XXVIII, 50 e 56.
195
Podemos observar que não há motivo para mudança quando cada qual está em seu lugar, ou
seja, quando há justiça e cada um tem o que lhe é apropriado. Assim, nota-se aqui uma repercussão
da ideia de oikeiósis, uma vez que se deve buscar o que lhe é apropriado, e ter o que lhe é
apropriado é ter justiça.
196
CÍCERO. De Re Publica, I, 41: (...) omnis ergo populus, qui est talis coetus multitudinis
qualem exposui, omnis ciuitas, quae est constitutio populi, omnis res publica, quae ut dixi populi
res est, consilio quodam regenda est, ut diuturna sit. id autem consilium primum semper ad eam
causam referendum est quae causa genuit ciuitatem.
197
CÍCERO. De Re Publica, I, 45: “Consequentemente, considero que é muito mais aprovável
uma espécie de quarto gênero de república, moderado e misto (...)”. Itaque quartum quoddam
genus rei publicae maxime probandum esse sentio, quod est ex his quae prima dixi moderatum et
permixtum tribus.’
82

Ademais, na forma republicana é como se o progresso moral, a perfeição moral dos


sábios, atingisse também a perfeição política, que apesar de não ser eterna é duradoura.

As formas simples estão mais sujeitas à degeneração e à regeneração, pois “cada


república é tal e qual a natureza ou a vontade de quem a rege.” 198 Quem governa a
república determina de qual tipo ela será, qual a sua forma; o caráter virtuoso ou vicioso
de quem a rege determina se sua forma será degenerada ou regenerada. A degeneração é
causada pela exagerada licença:

(...) é desta exagerada licença que aqueles consideram a única


liberdade, diz ele, que surge como de uma raiz e, por assim dizer,
que nasce o tirano. Pois da mesma maneira que da exagerada
potência dos principais se origina a sua própria ruína, assim
também a própria liberdade põe [em posição] servil este povo
exageradamente livre199.

As formas políticas se modificam de acordo com a ação, os excessos, os vícios e


as virtudes dos homens. A falta das virtudes faz com que as formas de governo se
degenerem. O vício é fruto das paixões, e toda forma de governo tem uma tendência a um
vício. De acordo com Valente, as formas de governo se degeneram

porque o espírito se corrompe também pelas falsas opiniões. A


quem apelaremos para corrigi-lo? À natureza. Ela, na verdade,
encarrega-se de guiá-lo. Mas a natureza também se corrompe sob
a influência dos maus hábitos, que, nascidos das paixões, a
impelem a destruir a obra da razão. Nesse momento, a própria
natureza apela para a razão, que já não tem culpa, se estiver
pervertida. Recorrer-se-á, então, aos bons germes das virtudes e
pedir-se-lhe-á que regenerem a natureza. Mas é a natureza que
encerra esses germes e, má, ela os sufoca 200.

198
CÍCERO. De Re Publica, I, 47.
199
CÍCERO. De Re Publica, I, 68.
200
VALENTE. A Ética Estoica em Cícero.p. 342.
83

A alternância das formas de governo não é mecânica, pois deve-se considerar as


deliberações humanas. Deve-se partir do homem e do que lhe é próprio, a política. Apenas
o homem tem a capacidade de destruição e de regeneração da república, de acordo com
as suas ações. A ideia de que é possível refazer a forma política demonstra que há um
constante movimento, nada é estático e nenhuma ação isolada é suficiente para a
construção de uma república, nem apenas a sua fundação. São inegáveis as mudanças nas
formas de governo, a inconstância, quando não se tem um governo misto, mas um varão
sábio, prudente, pode prever e regular sua forma; com isso, notamos que a degeneração e
regeneração não se dão por obra do destino, mas pelas deliberações humanas, e, da mesma
forma que alguns podem degenerá-la, outros podem regenerá-la, conduzir seu curso,
como lemos:

São admiráveis as voltas e, por assim dizer, os ciclos de mudanças


e vicissitudes nas repúblicas. Conhecê-los é próprio do sábio,
então, prever as ameaças, a regulação do curso201 da república e
a retenção em sua potestade é próprio de um grande concidadão
e varão quase divino, no governo da república, moderando seu
curso e mantendo-os sob sua potestade. Consequentemente,
considero que é muito mais aprovável uma espécie de quarto
gênero de república, moderado e misto, que se origina desses três
que citei acima202.

Se o curso pode ser antecipado, de alguma maneira, e moderado pelo homem, ele
não é predeterminado; Cícero não segue a teoria da anaciclose polibiana 203, que ilustraria
uma teoria perfeita do eterno retorno, como descrita nas Histórias, V, IV, 7-12:

Então, a primeira forma que se constitui naturalmente e não por


criação artificiosa é a monarquia, a qual se degenera e a [forma]

201
Cícero usa circuitos e orbis para se referir às infinitas variações dos ciclos.
202
CÍCERO. De Re Publica, I, 45: mirique sunt orbes et quasi circuitus in rebus publicis
commutationum et uicissitudinum. quos cum cognosse sapientis est, tum uero prospicere
impendentes, in gubernanda re publica moderantem cursum atque in sua potestate retinentem,
magni cuiusdam ciuis et diuini paene est uiri. itaque quartum quoddam genus rei publicae
maxime probandum esse sentio, quod est ex his quae prima dixi moderatum et permixtum tribus.’
203
Cf. SCHOFIELD. The Cambridge History of Hellenistic Philosophy. pp. 744-748. Nessas
páginas, o autor analisa a teoria polibiana da anaciclose.
84

que a segue é uma elaboração, e o melhoramento dessa, a realeza.


Esta última modifica-se em sua forma negativa, que é
naturalmente conexa, ou seja, a tirania, e da sua queda nasce a
aristocracia. Quando ela, segundo a natureza, degenera-se em
oligarquia e o povo, tomado pela ira, pune as injustiças dos
chefes, nasce a democracia. Com as prevaricações e as
ilegalidades desta última, novamente, com o tempo se produz a
oclocracia (...). De fato, apenas quem compreendeu como cada
[forma] nasce poderá compreender também quando, como e onde
cada nova [forma] se desenvolverá, conhecerá o ápice, a mudança
e o fim.

Na obra ciceroniana, não observamos uma teoria do eterno retorno – como nos
primeiros estoicos 204 –, e de modo análogo, não observamos a anaciclose, mas sim a teoria
do ciclo de degeneração e regeneração das formas de governo sem uma ordem fixa e sem
uma forma fixa, sem circularidade. Pode haver retorno e repetição, mas na obra
ciceroniana o mundo não se consome e se recria – isso seria o que a anaciclose representa.
Radice aponta, com base em um excerto de Cícero, que Panécio duvidava da teoria da
conflagração cósmica, e, a partir disso, podemos depreender que Cícero também:

Em virtude disto, os estoicos sustentam que seja destinado a


ocorrer aquilo de que diziam que Panécio duvidava, ou seja, ao
fim dos tempos, uma conflagração do Universo inteiro (...). Não
sobraria então nada além de fogo, do qual, exatamente como de
um ser animado e de um deus, aconteceria uma paligênese do
Universo, e este estaria marcado pelas mesmíssimas
características 205.

204
Vogt analisa que, para os antigos estoicos, cada ciclo do mundo era pensado para ser igual ao
anterior, assim, os deuses, que eram eternos, sempre saberiam o que iria acontecer. Cf. VOGT.
Law, Reason and the Cosmic City. p. 117.
205
CÍCERO. De Natura Deorum, II, 46, 118.
85

Radice aponta, ainda, que o filósofo Panécio “negou a doutrina da conflagração


cósmica por assumir o princípio aristotélico da eternidade do cosmos”206. Com isso,
Cícero parece ter herdado de Panécio o rompimento com a conflagração cósmica e somou
a isso o rompimento com a anaciclose polibiana; assim, houve lugar para a degeneração
e a regeneração das formas de governo sem ordem pré-determinada, ou seja, não há
anaciclose, mas há mudanças. Disso depreendemos que o curso da história de Roma é
construído pelas ações de quem rege a república e não pré-determinado pelo destino.
Momigliano em Time in Ancient Historiography afirma:

Tudo isso não é muito coerente e dificilmente equivale a uma


visão abrangente da história, mas, na medida em que expressa
uma visão sobre a tendência dos eventos humanos e sobre as
forças que operam por trás deles, não tem nada a ver com os ciclos
da existência humana. Políbio provavelmente aprendeu sobre o
ciclo das formas de governo com algum filósofo e gostou da
ideia, mas não pôde aplicá-la à sua narrativa histórica (como a
conhecemos). Políbio, o historiador das guerras púnicas e da
macedônica, parece não ter aprendido muito com o Políbio
estudante das constituições. Gostaria de levar Políbio como um
exemplo do fato de que os filósofos gregos geralmente pensavam
em termos de ciclos, mas os historiadores gregos não o fizeram.
É inútil argumentar se o seu sucessor Posidônio aplicou a visão
estoica dos ciclos cósmicos à narrativa histórica porque não temos
uma ideia precisa de como Posidônio escreveu a história como
duração207.

Cícero não aceita a anaciclose como filósofo e, no quarto capítulo, veremos que
também não aceita a circularidade ao escrever sua narrativa histórica. Sabemos que
apenas é possível aos homens prever o futuro da república porque conhecem a história e
os valores das ações passadas, mas isso não quer dizer que o futuro seja predeterminado.

206
RADICE. Estoicismo. p. 198.
207
MOMIGLIANO. Time in Ancient Historiography. p.13.
86

No futuro está a incerteza, mas é perceptível a ideia de declínio ao mesmo tempo


em que o autor possui, por assim dizer, a esperança de que a situação possa melhorar. Em
um único parágrafo da obra De Amicitia, Cícero expõe dois momentos passados, sendo
que um tem aspecto de presente, por ser o momento da data dramática da obra, e o outro,
uma insinuação do futuro, como podemos ler:

41. Tibério Graco tentou ser rei ou reinou de fato durante poucos
meses. Acaso o povo romano vira ou ouvira semelhante coisa?
Mesmo depois de sua morte, amigos e parentes, seguindo-lhe o
exemplo, agiram para com Públio Cipião de um modo que não
posso evocar sem lágrimas. Suportamos Carbão como pudemos,
pois Tibério Graco acabara de ser punido. A respeito de um
tribunado de Caio Graco, não me agrada falar sobre a minha
expectativa. Mas o mal se espalha e, uma vez começado, desce
pela encosta até a catástrofe. Bem vedes, a propósito das eleições,
que mal nos causaram a lei Gabínia e, dois anos mais tarde, a Lei
Cássia208.

Ou seja, por meio da descrição da ação de homens particulares, observamos a ação


de Tibério Graco e o que aconteceu depois de sua morte, no passado, um tribunado de
Caio Graco, no presente, e a expectativa sobre esse governo, no futuro. Como os sábios
têm a capacidade prudencial, Lélio já deixa transparecer sua visão de declínio. Dessa
maneira, obervamos como o tempo (a história) perpassa a obra e constrói a visão política
do autor sobre a sociedade.

Em De Re Publica, I, 65, podemos analisar possíveis formas de degeneração e


regeneração sem a exemplaridade histórica que vimos anteriormente:

Quando eu disser tudo o que penso acerca daquele gênero de


república que mais aprovo, terei de falar, mais cuidadosamente,

208
CÍCERO. De Amicitia, 41: Ti. Gracchus regnum occupare conatus est, vel regnavit is quidem
paucos menses. Num quid simile populus Romanus audierat aut viderat? Hunc etiam post mortem
secuti amici et propinqui quid in P. Scipione effecerint, sine lacrimis non queo dicere. Nam
Carbonem, quocumque modo potuimus, propter recentem poenam Ti. Gracchi sustinuimus; de
C. Gracchi autem tribunatu quid expectem, non libet augurari. Serpit deinde res; quae proclivis
ad perniciem, cum semel coepit, labitur. Videtis in tabella iam ante quanta sit facta labes, primo
Gabinia lege, biennio autem post Cassia.
87

acerca das mudanças das repúblicas e, mesmo não sendo fácil,


considero que hão de acontecer nessa república. Mas, neste
[governo] régio, a primeira mudança e a mais provável é esta:
assim que o rei começa a ser injusto, imediatamente perece este
gênero, e o rei fica idêntico a um tirano – o pior gênero e [ao
mesmo tempo] o mais próximo do ótimo. Se os optimates o
derrubam, como acontece quase sempre, a república tem o
segundo estado dos três; com efeito, surge, por assim dizer, um
conselho régio, ou seja, paternal209, de principais [concidadãos]
que cuidam bem do povo. Mas, se o povo por si mesmo mata ou
expulsa o tirano, é bastante moderado enquanto tem percepção e
discernimento, e se alegra de seu feito e quer proteger por si
mesmo a república constituída. Mas, se, alguma vez, o povo é
violento com um rei justo ou o despoja inclusive de seu trono, o
que acontece com mais frequência, provou o sangue dos
optimates e submeteu toda a república aos seus caprichos (...) 210.

No excerto citado, observamos uma série de marcas de indeterminação para tratar


da degeneração e da regeneração, tais como: “provável”, “se”, “quase sempre”, “alguma
vez”. Esses advérbios e os usos da conjunção “se” deixam o espaço aberto para múltiplas
possibilidades, o que demonstra uma quantidade de probabilidades do que pode
acontecer. Então, temos o espaço para a ação humana deliberar sobre o que vai acontecer

209
Parece que o uso de patrium tenta aproximar o governo dos seletos ao régio.
210
CÍCERO. De Re Publica, I, 65: Et Scipio: 'est omnino, cum de illo genere rei publicae quod
maxime probo quae sentio dixero, accuratius mihi dicendum de commutationibus rerum
publicarum, etsi minime facile eas in ea re publica futuras puto. sed huius regiae prima et
certissima est illa mutatio: cum rex iniustus esse coepit, perit illud ilico genus, et est idem ille
tyrannus, deterrimum genus et finitimum optimo; quem si optimates oppresserunt, quod ferme
evenit, habet statum res publica de tribus secundarium; est enim quasi regium, id est patrium
consilium populo bene consulentium principum. sin per se populus interfecit aut eiecit tyrannum,
est moderatior, quoad sentit et sapit, et sua re gesta laetatur, tuerique vult per se constitutam rem
publicam. sin quando aut regi iusto vim populus attulit regnove eum spoliavit, aut etiam, id quod
evenit saepius, optimatium sanguinem gustavit ac totam rem publicam substravit libidini suae:
cave putes aut[em] mare ullum aut flammam esse tantam, quam non facilius sit sedare quam
effrenatam insolentia multitudinem! tum fit illud quod apud Platonem est luculente dictum, si
modo id exprimere Latine potuero; difficile factu est, sed conabor tamen.
88

com a república quando estamos no campo da política. Outra possibilidade de


degeneração e regeneração sem pré-determinação é apontada em De Re Publica, I, 68:

Dessa maneira, como se fosse uma bola, os tiranos tomam para si


o governo da república dos reis, mas os principais tomam esse dos
tiranos ou do povo, e as facções tiram dos principais ou do tirano,
e nunca se mantém por muito tempo o mesmo tipo de república 211.

Nessa passagem, Cícero usa a expressão “pilam” para dizer que a degeneração e a
regeneração podem ser circular, mas não quer dizer que exista uma ordem
preestabelecida, e, com isso, essa forma circular não se trata de um círculo, por assim
dizer, perfeito. Ademais, um ciclo não significa necessariamente o mesmo que uma
perspectiva circular. Com essas passagens, observamos a inexistência de um ciclo
predeterminado, a recusa ciceroniana da necessidade do destino, a recusa de um
encadeamento de ações predeterminadas e do nexo necessário de causalidade, no plano
da história e da política. É justamente porque o homem é capaz de deliberar que não temos
aqui a teoria polibiana da anaciclose, pois Cícero rompeu com o determinismo estoico e
colocou no homem a responsabilidade por suas ações e pela república. Logo, as formas
de governo se degeneram não porque o destino assim determinou, mas porque os homens
agiram de modo vicioso. Grimal, em Du De re publica au Du Clementia: réflexions sur
l´evolution de l´idée monarchique à Rome212, defende a necessidade do ciclo, e nós
defendemos que Roma estaria imune aos ciclos predeterminados, à circularidade, tanto
pela capacidade da deliberação humana quanto pelo governo misto, que instauraria uma
estabilidade e tiraria Roma da circularidade da degeneração e regeneração.

Assim, desde já podemos observar filosoficamente o que se confirmará,


historicamente na análise do segundo livro da obra De Re Publica, no quarto capítulo da
tese: que a história de Roma, para Cícero, não é circular. Há a passagem da monarquia
para a tirania, em que temos uma curva decrescente, mas da tirania surgiu o governo
misto, e, com isso, temos uma reta ascendente, fora de qualquer circularidade.

211
CÍCERO. De Re Publica, I, 68: sic tanquam pilam rapiunt inter se rei publicae statum tyranni
ab regibus, ab iis autem principes aut populi, a quibus aut factiones aut tyranni, nec diutius
unquam tenetur idem rei publicae modus.
212
GRIMAL, P. “Du De re publica au Du Clementia: réflexions sur l´evolution de l´idée
monarchique à Rome”. In: Mélanges de l´Ecole française de Rome. Antiquité, tome 91, no. 2,
1979. pp. 674-675.
89

O direito civil e o natural são diferenciados no livro III da obra De Re Publica pela
temporalidade de cada um. O grande exemplo histórico do livro é a rememoração do
discurso de Carnéades, que, enviado a Roma como embaixador, fez primeiramente um
discurso sobre a injustiça e, no segundo dia, sobre a justiça.

Carnéades demonstra que as leis civis são feitas para determinados tempos e são
mutáveis, ou seja, não há constância nem eternidade nelas, e os fatores históricos
determinam sua modificação ou não, havendo uma interferência humana muito grande.
Os tempos mudam, a sociedade romana mudou e, consequentemente, o direito também.
Por outro lado, as leis naturais são perenes, imutáveis, como observamos:

18(...) – * [se a natureza] nos tivesse sancionado as leis, todos


teriam as mesmas, e não haveria diferentes leis em diferentes
tempos. Porém, pergunto: se é próprio do homem justo e se é
próprio do varão bom obedecer às leis, [então], a quais? Acaso a
todas que existem? Mas nem a virtude admite inconstância nem a
natureza tolera a variação; e reconhecemos as leis por causa do
castigo, não por nossa justiça; portanto, o direito nada tem de
natural ; a partir disso demonstra-se que nem sequer há justos por
natureza. Dizem que há variedade nas leis, mas que, por natureza, os
varões bons seguem aquilo que é a justiça e não aquilo que se
considera como justiça? De fato, é próprio do varão bom e justo
conceder a cada qual exatamete o que é digno de cada um213.

Se a virtude não “admite inconstância, nem a natureza tolera a variação’’, o direito


natural, na discussão carneadeana, está fora do tempo e não é influenciado pelos fatos
históricos, ou seja, pelas ações humanas e pela forma como o homem entende a urbe em
cada momento. A imutabilidade da lei natural não é apenas temporal como também
espacial, conforme vemos em III, 33: “nem haverá uma lei em Roma, outra em Atenas,

213
CÍCERO. De Re Publica, III, 18:‘*sanxisset iura nobis, et omnes isdem et idem non alias aliis
uterentur. Quaero autem, si iusti hominis et si boni est uiri parere legibus, quibus? an
quaecumque erunt? At nec inconstantiam uirtus recipit, nec uarietatem natura patitur, legesque
poena, non iustitia nostra comprobantur; nihil habet igitur naturale ius; ex quo illud efficitur, ne
iustos quidem esse natura. An uero in legibus uarietatem esse dicunt, natura autem uiros bonos
eam iustitiam sequi, quae sit, non eam, quae putetur? esse enim hoc boni uiri et iusti, tribuere id
cuique, quod sit quoque dignum.
90

outra aqui, outra depois, mas em todas as gentes e em todos os tempos uma lei eterna e
imutável.”214

A ciuitas, quando regida pelas leis da natureza, deve ser eterna. À ciuitas não cabe
a morte:

34. (...). Porém, para as ciuitates a própria morte é a pena, morte


esta que parece libertar os privados da própria pena, pois uma
ciuitas deve ser constituída de tal forma que seja eterna. Além
disso, não há morte natural para uma república como há para um
homem, para quem a morte não é apenas necessária, mas, em um
certo momento, desejável. Porém quando uma ciuitas é
devastada, destruída, extinta, se compararmos o que é pequeno ao
que é grande, é como se todo o mundo findasse e
desmoronasse215.

Se a ciuitas seguir o curso da natureza, ela não perecerá, isso quer dizer que, se os
homens que a governam forem virtuosos, ela sempre será virtuosa e não se degenerará.
Isso nos mostra duas coisas: a primeira, que na vida política da ciuitas, ao seguir a
natureza, ela sempre tende à virtude e não ao vício; a segunda, ela tende à eternidade e
não à destruição e ressurreição, como a conflagração universal. O curso da ciuitas é
distinto do da vida humana: enquanto a vida do homem tem um começo e um fim, a
ciuitas, enquanto for virtuosa, não é necessário que haja um declínio.

Nessas obras dialógicas, por meio do que observamos nos exórdios, há um estatuto
histórico, de testemunho, pois o texto reproduz o que foi contado a Cícero, e ele registra
essas conversas, de modo dialógico, para que esses exemplos de seus concidadãos não
morram. Em todas elas, os assuntos são tratados na chave política e moral; o que interessa
é a república e a virtude. Concluímos, então, o quanto uma obra filosófica é histórica,
apesar do gênero não ser alterado pela quantidade de exemplos, mas esses são

214
CÍCERO. De Re Publica, III, 33: (...) nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia
posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex et sempiterna et immutabilis continebit (...).
215
CÍCERO. De Re Publica, III, 34: (...)ciuitatibus autem mors ipsa poena est, quae uidetur a
poena singulos uindicare; debet enim constituta sic esse ciuitas ut aeterna sit. Itaque nullus
interitus est rei publicae naturalis ut hominis, in quo mors non modo necessaria est, uerum etiam
optanda persaepe. Ciuitas autem cum tollitur, deletur, extinguitur, símile est quodam modo, ut
parua magnis conferamus, ac si omnis hic mundus intereat et concidat.
91

constitutivos da argumentação e a particularidade dos exemplos se soma à universalidade


da filosofia. Com isso, Cícero também manifesta como percebe o passado e o presente,
quase que como um curso dos acontecimentos, com relações de causa e consequência.
92

II.II. O FUTURO E O PASSADO: O SONHO DE CIPIÃO

No livro De Re Publica, VI, conhecido como Sonho de Cipião, devemos observar


que o ano dramático é 149 a.C, sendo que a obra De Re Publica, escrita entre 54 e 51
a.C., tem como data fictícia o ano de 129 a.C., ano da morte de Cipião, como vimos. Neste
livro, Cícero elabora uma visão do futuro em que o avô mostrará em sonho a seu neto
Cipião os acontecimentos futuros. Parece que o intuito não é mostrar apenas as glórias,
mas também o que será necessário fazer para recuperar a república. A escatologia 216 é
verossímil, pois a obra foi concluída em 51 a.C. e tudo que é narrado como acontecimento
futuro já era conhecido dos leitores da época. Os homens públicos, como sábios, que
percebiam o curso dos acontecimentos de modo prudencial, já viam a queda da República
e queriam resgatá-la. Como narrativa escatológica, o Sonho visa à salvação da República
e dos que a ajudaram, e traria a glória para o salvador e para a pátria 217.

Zetzel afirma que o Sonho é o trecho da obra em que Cícero mais imita Platão e,
como resultado, mostra as diferenças mais claramente:

O mito de Er platônico destina-se a ser uma última prova de que


a justiça é melhor do que a injustiça para o indivíduo: trata-se de
uma jornada da alma após a morte, descrevendo punição e
recompensas para a ação terrena e a escolha de um futuro da

216
“A escatologia refere-se, por um lado, ao destino último do indivíduo e, por outro, ao da
coletividade – humanidade, universo. Mas, como me parece que esta consideração das
enciclopédias contemporâneas ampliam um pouco abusivamente aos indivíduos um termo
formado e usado tradicionalmente para falar dos fins últimos coletivos e, como o destino final
individual depende em grande parte do destino universal, tratarei essencialmente da escatologia
coletiva. A escatologia individual só assume real importância na perspectiva da salvação que
adquiriu, inegavelmente, um lugar de primeiro plano nas especulações escatológicas, mas não é
certo que ela seja fundamental nem original nas concepções escatológicas (cf. §4). Os problemas
ligados à escatologia individual são fundamentalmente os de um julgamento depois da morte, da
ressurreição e da vida eterna, da imortalidade”. LE GOFF. História e Memória. p.301. E continua:
“Mito e escatologia têm duas estruturas, dois discursos diferentes. O mito está voltado para o
passado, exprime-se pela narrativa. A escatologia olha para o futuro e revela-se na visão da
profecia que ‘realiza a transgressão da narrativa: está iminente uma nova intervenção de Javé, que
eclipsará a precedente’ (Ricoeur, 1971, p. 534). Mas mito e escatologia “aliaram-se para dar, por
um lado, a ideia de uma criação entendida como primeiro ato de libertação e, por outro, a ideia de
libertação como ato criador. A escatologia, sobretudo na literatura tardia do cânon hebraico,
projeta uma forma profética que é suscetível de fazer um novo pacto com o mito.” (op. Cit., p.
535) LE GOFF. História e Memória, pp. 304-305.
217
CÍCERO. De Re Publica, VI, 25.
93

existência terrena (...). A vida após a morte e a natureza da alma


estão subordinadas à prova da importância da vida cívica no aqui
e agora. O mito de Er, além disso, refere-se metaforicamente
apenas à estrutura física do universo descrito por Platão como
um conjunto de espirais girando em torno das voltas do eixo da
necessidade; para Cícero, no Sonho, geografia e astronomia são
cruciais, demonstrando ao mesmo tempo a centralidade literal da
Terra – e, portanto, do seu governo – na ordem do universo e a
trivialidade da glória humana, em comparação com a glória
celestial do mundo por vir. 218

Em De Senectute, 81, Cícero argumenta:

E ainda vedes que nada é tão parecido com a morte quanto o sono.
E as almas dos sonolentos revelam maximamente a sua
adivinhação: preveem, pois, muitas coisas futuras, quando estão
relaxadas e livres. Disso se compreende quais serão os futuros,
quando estiverem completamente separadas dos vínculos com o
corpo219.

Por isso o avô aparece enquanto Cipião dormia. O avô representa aquele que
conhece o passado, e, como se fosse um deus, seria capaz de prever o futuro. Cipião, com
sua glória eterna, era uma prefiguração da plenitude no tempo. O livro trata do futuro de
Cipião, e, ao mesmo tempo em que há o caráter profético e quase tudo profetizado já
havia acontecido, Cícero também nos oferece um elemento programático, quando diz que
Cipião seria ditador. Ele compõe uma trama, segundo sua própria definição de trama em
De Inuentione, isto é, uma narração de um fato inventado, mas que poderia ter
acontecido220. Ele sabe que Cipião não foi ditador. Com isso, ele sai do futuro que
realmente aconteceu e descreve um futuro que deveria ter acontecido, sai do ser e passa

218
ZETZEL. In: CICERO. De re publica. (with an English translation by James E. G. Zetzel).
Cambridge, Cambridge University Press, 1999. p.15.
219
CÍCERO. De Senectute, 81. Atqui dormientium animi maxime declarant divinitatem suam;
multa enim, cum remissi et liberi sunt, futura prospiciunt. Ex quo intellegitur quales futuri sint,
cum se plane corporis vinculis relaxaverint.
220
Cf. CÍCERO. De Inuentione, I, XIX, 27.
94

ao dever ser. Saímos do plano da verdade e passamos ao do verossímil. E o avô de Cipião


representa o conhecedor do destino que, ao mesmo tempo, mostra a vida humana como
algo que tem começo, meio e fim e lhe atribui também o caráter eterno da alma; ela é
concedida de dois modos: pela glória terrena e pela vida após a morte. A imortalidade
dada pela glória de Cipião é defendida por Lévy:

As vitórias dos comandantes do fim da República colocaram em


questão o destino destes homens excepcionais. Paradoxalmente,
foi Cícero, ainda atrelado à forma republicana, o primeiro que
deu, no Somnium Scipionis, uma forma filosófica e literária ao
desejo de imortalidade dos grandes homens, lhes assegurando,
por meio da transformação em astros, uma eternidade luminosa
no firmamento221.

Mas não podemos nos esquecer que Rômulo, em De Re Publica, II, também foi
transformado em astro. A eternidade, no Sonho, similarmente está manifesta pela
memória, que garante a transmissão das ideias: o avô não está morto nem na memória do
neto, nem na de Masinissa, nem na memória do povo romano. Masinissa viu no neto o
avô e “recordava não somente todos os seus feitos, mas também seus ditos” 222. E o neto,
em, sonho, viu o avô que “se mostrou com uma forma que me era mais conhecida por sua
estátua do que por sua própria pessoa” 223. A estátua significa a perenidade da imagem, a
imutabilidade daquela figura.

Pela oscilação temporal ocorrida neste livro com a mistura entre passado e futuro,
parece-nos que o intuito é estabelecer que apenas haverá avanço no futuro se o passado
grandioso for resgatado, se forem recuperados os grandes nomes, feitos e virtudes, pois
o presente é o tempo da decadência e ao mesmo tempo da ação. Mas questionamo-nos:
por que algumas coisas são postas no plano do dever ser, do que não ocorreu, como a
ditadura de Cipião? Por que os planos históricos e do dever ser se confundem na obra?
Vejamos:

221
LÉVY, C. Devenir dieux: désir de puissance et rêve d´éternité chez les Anciens. p, 113.
222
CÍCERO. De Re Publica, VI, 10: omniaque eius non facta solum sed etiam dicta meminisset.
223
CÍCERO. De Re Publica, VI, 10: Africanus se ostendit ea forma quae mihi ex imagine eius
quam ex ipso erat notior.
95

– Ânimo, Cipião, abandone o temor e confie à memória o que vou


dizer: [II] 11. Vês aquela urbe forçada por mim a obedecer ao
povo romano, onde recomeçam as antigas guerras e não pode
estar tranquila? E, em um lugar excelso e repleto de estrelas,
resplandecente e claro, mostrava-me Cartago. – Tu vens agora
sitiá-la224, quase como um soldado. Daqui a dois anos, sendo
cônsul, virás derrubá-la, e terás esse sobrenome que, até agora
tens de nós como herdeiro, construído por ti. Depois que
destruíres Cartago, celebrares o triunfo, fores censor e tiveres
percorrido o Egito, a Síria, a Ásia, a Grécia, na qualidade de
legado225, serás eleito cônsul pela segunda vez enquanto estiveres
ausente e terminarás uma guerra muito grande destruindo a
Numância226. Mas quando fores levado, em carro triunfal, ao
Capitólio, encontrarás a República perturbada pelas ideias de
meu227 neto228.

Até este trecho tudo o que é descrito, de fato, ocorreu229.

12. Então, Africano, será necessário que tu mostres à pátria a luz


de teu ânimo, de teu engenho e de teu discernimento. E nessa
época vejo, por assim dizer, [diferentes] caminhos para o destino.
Pois quando tua idade tiver cumprido oito vezes sete movimentos

224
Cipião derrubou Cartago em 146 a.C.
225
Funcionário que cuida da fiscalização e administração das províncias.
226
Em 133 a.C.
227
Aqui se refere a Tibério Graco. Sua mãe, Cornélia, era filha de Cipião Africano Maior. Cícero
se refere às ideias de Tibério Graco como tribuno em 133 a.C., e uma de suas principais ideias
consistia na divisão do ager publico para a população romana.
228
CÍCERO. De Re Publica, VI, 10: (...)“animo et omitte timorem, Scipio, et quae dicam trade
memoriae.[II] 11. ‘Videsne illam urbem, quae parere populo Romano coacta per me renouat
pristina bella nec potest quiescere?” (ostendebat autem Carthaginem de excelso et pleno
stellarum, illustri et claro quodam loco.) “ad quam tu oppugnandam nunc uenis paene miles,
hanc hoc biennio consul euertes, eritque cognomen id tibi per te partum quod habes adhuc a
nobis hereditarium. cum autem Carthaginem deleueris, triumphum egeris censorque fueris, et
obieris legatus Aegyptum, Syriam, Asiam, Graeciam, deligere iterum consul absens bellumque
maximum conficies, Numantiam exscindes. sed cum eris curru in Capitolium inuectus, offendes
rem publicam consiliis perturbatam nepotis mei.
229
Observamos que mesmo Cipião sendo um general, raramente os feitos guerreiro são descritos
como ações coletivas.
96

de idas e vindas do sol, e esses dois números (cada um dos quais


é considerado perfeito, por razões diferentes) tiverem completado
seu ciclo natural, a soma que o destino estabeleceu a ti, a ciuitas
voltar-se-á apenas para ti e para o teu nome; a ti o senado, a ti
todos os bons, a ti todos os aliados, a ti todos os latinos
contemplarão; tu serás o único em quem a salvação da ciuitas se
apoiará. E, em poucas palavras, será necessário que, como
ditador, organizes a República, se escapardes das mãos ímpias de
teus parentes230.

Na última frase do parágrafo, parece que Cícero acredita que a república teria sido
salva se Cipião tivesse sido ditador. Ademais, neste parágrafo, além de insinuar que a
morte de Cipião pode ter se dado pelos familiares, o exemplo do Cipião como ditador é o
único, na obra, que toma uma figura histórica e o coloca no plano do dever ser. É
verossímil, poderia ter acontecido, mas não é verdadeiro, e Cícero sabia disso. Apenas é
possível trabalhar no plano do dever ser, pois trata-se de uma escatologia, do destino de
um homem e de um povo em busca de glória. O tempo da existência humana não é oposto
à eternidade, mas essa, quando bem vivida, conduz à glória e à eternidade. Para o homem
usufruir da glória celestial é preciso que, no passado, tenha tido a glória na terra, ou seja,
o futuro é uma projeção do passado.

25. Se não tiveres esperança de regressar a este lugar, no qual tudo


existe para os grandes e ilustres varões, que valor tem, enfim, esta
glória dos homens, que apenas pode dizer respeito a uma exígua
parte de um ano? Assim, se queres olhar para o alto e contemplar
esta sede e casa eterna, não te importes com o que fala o vulgo
nem ponhas a esperança de [ser recompensado] por teus feitos nos
prêmios humanos. A própria virtude te atrairá com seus encantos

230
CÍCERO. De Re Publica, VI, 12: hic tu, Africane, ostendas oportebit patriae lumen animi
ingeniique tui consiliique. sed eius temporis ancipitem uideo quasi fatorum uiam. nam cum aetas
tua septenos octiens solis anfractus reditusque conuerterit, duoque hi numeri, quorum uterque
plenus alter altera de causa habetur, circuitu naturali summam tibi fatalem confecerint, in te
unum atque in tuum nomen se tota conuertet ciuitas: te senatus, te omnes boni, te socii, te Latini
intuebuntur; tu eris unus in quo nitatur ciuitatis salus. ac ne multa: dictator rem publicam
constituas oportet, si impias propinquorum manus effugeris.”’
97

para o verdadeiro decoro. Os mesmos que falaram de ti são os que


te observam, e falarão ainda. Mas toda conversa fica limitada à
pequenez das regiões que vês; ela nunca foi perene em relação a
ninguém, é sepultada com a desaparição dos homens e se extingue
com o esquecimento das [gerações] posteriores 231.

Apenas os nomes dos grandes varões não são sepultados, ou seja, não caem no
esquecimento pelas gerações posteriores, se as narrativas históricas os imortalizarem. É a
narrativa histórica que guarda o passado para ser mostrado às gerações futuras. Os feitos
vivem nas memórias e nas narrativas. A imortalidade da alma é reforçada pela grande
capacidade da mente humana, como lemos :

26 (...) – Na verdade, tu te esforças e tens entendido que não és tu


que és mortal, mas este corpo; pois tu não és este que manifesta
esta forma, mas cada um é a sua própria mente e não essa figura
que se pode mostrar com o dedo. Logo, tens de saber que tu és
um deus, posto que é um deus aquilo que tem vida, que sente, que
recorda, que prevê, que rege, governa e move este corpo à frente
do qual foi posto, assim como o deus principal deste mundo. E,
assim como esse mesmo deus eterno faz mover um mundo que é
em parte mortal, a alma eterna move um corpo frágil232.

231
CÍCERO. Quocirca si reditum in hunc locum desperaueris, in quo omnia sunt magnis et
praestantibus uiris, quanti tandem est ista hominum gloria, quae pertinere uix ad unius anni
partem exiguam potest? igitur alte spectare si uoles atque hanc sedem et aeternam domum
contueri neque te sermonibus uulgi dederis nec in praemiis humanis spem posueris rerum tuarum,
suis te oportet illecebris ipsa uirtus trahat ad uerum decus. quid de te alii loquantur, ipsi uideant,
sed loquentur tamen; sermo autem omnis ille et angustiis cingitur his regionum quas uides nec
umquam de ullo perennis fuit et obruitur hominum interitu et obliuione posteritatis exstinguitur.
232
CÍCERO. De Re Publica, VI, 26: tu uero enitere et sic habeto, non esse te mortalem sed corpus
hoc; nec enim tu is es quem forma ista declarat, sed mens cuiusque is est quisque, non ea figura
quae digito demonstrari potest. deum te igitur scito esse, siquidem est deus qui uiget, qui sentit,
qui meminit, qui prouidet, qui tam regit et moderatur et mouet id corpus cui praepositus est, quam
hunc mundum ille princeps deus; et ut mundum ex quadam parte mortalem ipse deus aeternus,
sic fragile corpus animus sempiternus mouet.
98

Há um limite nas ações humanas, mas não há na alma humana e, por isso, o homem
é capaz de agir segundo sua razão, sonhar e fazer os deslocamentos temporais retratados
nesse livro, pensar no passado e no futuro ao mesmo tempo.
99

II.III. OBRA CONSTRUÍDA NO PRESENTE PARA FALAR AO FUTURO: DE OFFICIIS

A obra De Officiis, ao contrário das obras que analisamos anteriormente, não está
voltado para a recuperação de uma discussão que ocorreu no passado entre homens
eminentes, mas sim à retomada dos argumentos panecianos para falar ao filho e às futuras
gerações. Isso nos mostra: primeiramente, que Cícero recupera um argumento paneciano
de autoridade, já consagrado no passado, para explicar a teoria dos deveres. Em segundo
lugar, falar ao filho e aos jovens romanos quer dizer que falará às futuras gerações, aos
que agirão no futuro, com os que poderão salvar a República, uma vez que julga nesta
obra, assim como em tantas outras, que a República está decadente, como lemos em De
Officiis, III, 4: “Assim, em pouco tempo, escrevemos mais com a República em ruína do
que em muitos anos quando ela estava em pé”233. O ócio, por não poder agir na República,
apenas pode ser exercido com dignidade quando se escreve sobre e para a República e
seus homens.

De Officiis é uma obra com menos argumentos históricos, se comparada às outras


que analisamos anteriormente. Os livros, entretanto, não se sustentam se retirarmos seus
exemplos históricos, pois perdem a força argumentativa que a exemplificação histórica
oferece. Os exemplos históricos, que inicialmente aparentam ser meramente ilustrativos,
possuem tanta força argumentativa por meio das ações retratadas que se tornam
“constitutivos”234 da argumentação. Aqui, os exemplos estão relacionados à matéria
política exposta, o que significa que o exemplo histórico é dependente do contexto
filosófico criado na obra, pois há uma relação de causa e consequência entre o
conhecimento e ação virtuosa. Cícero nos traz exemplos históricos de homens que agiram
de modo virtuoso e vicioso, ou seja, a favor e contra a natureza. Da mesma forma que há
homens que não agem de acordo com a razão, como César, há homens racionais, que
praticam ações virtuosas, como Cipião. Cícero demonstra que há uma autonomia no
homem, – os exemplos históricos nos provam isso e demonstram a relação causal entre
as ações. No primeiro livro, com o principal intuito de explicar a natureza humana e dar
conselhos ao filho e aos jovens, a explicação da natureza é feita por meio da recuperação
dos argumentos panecianos, que trazem ao presente a autoridade do passado.

233
Itaque plura brevi tempore eversa quam multis annis stante re publica scripsimus.
234
Continuamos utilizando o conceito de Aranovich.
100

Os exemplos históricos235 da obra nos mostram ações úteis, honestas e justas, que
deveriam ser imitadas. Muitas vezes, os exemplos históricos são de um passado próximo,
o que traz a história para perto do tempo do leitor; essa é outra diferença que notamos em
relação às obras anteriores. Cícero, nos três exórdios da obra, explica que a obra é
dedicada e endereçada ao filho que estava na Grécia. Porém o autor também afirma que
faz o discurso não apenas por causa do filho, “mas dos jovens em geral” 236. Não apenas
recupera a teoria dos deveres paneciana, fundamentada na virtude, mas a adapta para
fornecer conselhos políticos e morais para aqueles que viam a República cair 237. Isso nos
mostra que a história humana se desenrola em direção a um futuro incerto, mas que pode
ser promissor, se os exemplos do passado forem recuperados. Luciani afirma que De
Officiis consiste em um tratado epistolar de circunstância:

E, no entanto, podemos bem considerar que o De officiis é uma


obra de circunstância no sentido de que o papel atribuído aos
tempora em sua elaboração refere-se especificamente aos
princípios filosóficos que determinam a conduta do agente moral.
Levar em consideração os tempora é, de fato, um imperativo que
intervém na vida prática e na reflexão teórica. Sublinhando o peso
das circunstâncias na avaliação do honestum, Cícero esforça-se
para atualizar o requisito moral universal dentro da comunidade
humana. O consular que envia a seu filho um tratado epistolar
sobre os deveres dá, aqui e agora, um exemplo de officium
perfeitamente apropriado às circunstâncias 238.

Em De Officiis, Cícero explica a teoria dos deveres e dá conselhos. Um tom de


aconselhamento perpassa toda a obra, visa ao futuro, ao que o filho e os jovens romanos
deveriam fazer; se a classificássemos segundo os gêneros do discurso, seria uma obra

235
Guard argumenta: “O exemplum já não é uma simples ilustração, mas oferece uma solução
concreta, técnica e precisa para problemas sociais e políticos encontrados pelos próprios
romanos”. GUARD. Morale théorique et morale pratique: nature et signification des exempla
dans le De officiis de Cicéron. p.53.
236
CÍCERO. De Officiis, II, 45.
237
CÍCERO. De Officiis, II, 3: “e, todavia, se a república tivesse permanecido tal como era e não
tivesse caído nas mãos de homens ambiciosos e desejosos não só de mudanças mas ainda de
destruição de cada coisa.”
238
LUCIANI. Tempora et philosophie dans le De officiis de Cicéron. In: Vita Latina. p.56.
101

predominantemente deliberativa. Ademais, o aconselhamento de um pai a um filho é


citado como exemplo histórico, quando Cícero se refere às cartas de Filipe a Alexandre,
de Antípatro a Cassandro, de Antígono ao seu filho Filipe 239e quando Catão escreve ao
seu filho Marco240.

Ao dissertar sobre a guerra justa, Cícero recupera como exemplo a relação entre
Catão e seu filho, e, ao fazer isso, sua obra ganha autoridade e força por recuperar o
exemplo histórico de um pai que faz o mesmo que ele a um filho; há uma permeabilidade
entre o público e o privado, ou seja, a guerra e a relação com o filho, quando lemos:

nenhuma guerra pode ser justa se não for declarada depois do


pedido oficial respectivo. Popílio era o responsável pelo comando
de uma província, em cujo exército o filho de Catão tanto servia
como militava. Como tivesse Popílio decidido licenciar uma
legião, e o filho de Catão, que se encontrava nessa mesma legião
incorporado, permanecera no exército movido pelo desejo de
lutar, Catão escreveu a Popílio dizendo que, caso aceitasse a
permanência de seu filho no exército, deveria então submetê-lo a
um novo juramento militar, em virtude de ele não poder lutar
segundo o [juramento] anterior com o inimigo, uma vez que esse
havia caducado. 37. Tão grande era a observância das leis de
guerra, naqueles dias! Existe, de fato, uma carta de Marco Catão,
já idoso, ao seu filho Marco, na qual afirma ter ouvido falar que
ele havia sido dispensado pelo cônsul, quando era soldado na
Macedônia, durante a guerra com Perseu. Aconselha-o, então, a
tomar o devido cuidado para não entrar em combate, pois não é
legítimo a alguém poder combater com o inimigo sem ser soldado
por direito241.

239
Cf. CÍCERO. De Officiis, II, 52,53,54.
240
CÍCERO. De Officiis, I, 36-37.
241
CÍCERO. De Officiis, I, 36-37: Ex quo intellegi potest nullum bellum esse iustum, nisi quod
aut rebus repetitis geratur aut denuntiatum ante sit et indictum. [Popilius imperator tenebat
provinciam, in cuius exercitu Catonis filius tiro militabat. Cum autem Popilio videretur unam
dimittere legionem, Catonis quoque filium, qui in eadem legione militabat, dimisit. Sed cum
amore pugnandi in exercitu remansisset, Cato ad Popilium scripsit, ut, si eum patitur in exercitu
remanere, secundo eum obliget militiae sacramento, quia priore amisso iure cum hostibus
pugnare non poterat.[37] Adeo summa erat observatio in bello movendo.] M. quidem Catonis
senis est epistula ad M. filium, in qua scribit se audisse eum missum factum esse a consule cum
102

Aparentemente, é um simples exemplo, mas carrega o conselho que Catão dá ao


filho, e o respeito às questões da guerra se tornam um paradigma de ação. Trata-se de um
conhecimento de uma questão política, das leis sobre a guerra, que é deduzido por meio
de um exemplo histórico. Sobre a exemplaridade nas relações entre pais e filhos, Cícero
afirma:

Aqueles, cujos pais ou antepassados alcançaram a glória em algo,


frequentemente se esforçam para serem excelentes naquele
mesmo gênero de honra, como Quinto Múcio, filho de Públio, no
direito civil, ou o Africano, filho de Paulo, na vida militar.
Alguns, no entanto, conseguem acrescentar honras ao nome dos
pais por alguma honra sua em outro domínio, como aconteceu
com este mesmo Africano, por exemplo, que associou a glória
militar à eloquência; o mesmo fez Timóteo, filho de Conão, que,
no louvor das armas, não foi inferior ao pai, acrescentando-lhe
louvor na doutrina e glória no engenho242.

Então, Cícero exorta o filho a seguir o caminho do pai ou a superá-lo por meio
desses exemplos. Sem eles, não haveria a construção do argumento de modo tão
convincente.

Outro exemplo emblemático na obra, citado mais de uma vez, é o de Régulo,


empregado primeiramente em De Officiis, I, 39-40 e, depois, em III, 99, 100, 101, 105,
108, 110, 111, 113 e 114. No primeiro livro, é ressaltada a importância da palavra
empenhada, uma vez que, na Primeira Guerra Púnica, “como prisioneiro dos cartagineses
foi enviado a Roma para tratar da troca de prisioneiros, depois de ter jurado voltar (...)” 243,

in Macedonia bello Persico miles esset. Monet igitur ut caveat, ne proelium ineat; negat enim ius
esse, qui miles non sit cum hoste pugnare.
242
CÍCERO. De Officiis, I, 116: quorum vero patres aut maiores aliqua gloria praestiterunt, ii
student plerumque eodem in genere laudis excellere, ut Q. Mucius P. f. In iure civili, Pauli filius
Africanus in re militari. quidam autem ad eas laudes quas a patribus acceperunt, addunt aliquam
suam, ut hic idem Africanus eloquentia cumulavit bellicam gloriam, quod idem fecit Timotheus,
Cononis filius, qui cum belli laude non inferior fuisset quam pater, ad eam laudem doctrinae et
ingenii gloriam adiecit.
243
CÍCERO. De Officiis, I, 39: cum de captivis commutandis Romam missus esset iurassetque se
rediturum,
103

Régulo preferiu voltar a faltar com a palavra dada ao inimigo – trata-se de uma correção
moral. Régulo foi fiel ao juramento, e isso comprova sua magnanimidade e sua
fortitude244, mostra que uma ação não pode ser útil a ele se for danosa à República 245; o
que Régulo fez foi útil à República, portanto, honesto. O feito de Régulo não apenas se
tornou um paradigma de ação, como também, na obra, seu exemplo constitui um elemento
da argumentação. E Cícero continua afirmando que, entre exemplos admiráveis, esse é o
mais louvável246. De modo contrário, na Segunda Guerra Púnica, aconteceu um fato em
que não se cumpriu, propriamente, o que foi prometido:

Na segunda Guerra Púnica, porém, depois da batalha de Canas,


Aníbal enviou a Roma dez prisioneiros que juraram voltar todos
se não conseguissem resgatar os prisioneiros [cartagineses].
Todos os censores os mantiveram, enquanto viveram, entre o
número dos erários em virtude de serem culpados de perjúrio;
inclusive aquele que, no seu juramento, cometera o erro de tê-lo
fraudado (esse deixou o acampamento com a permissão de
Aníbal, voltando pouco depois, alegando ter se esquecido de não
sei que coisa, então, tendo saído outra vez, julgava-se livre do
juramento firmado – assim o era pelas palavras, mas não pelos
fatos). Devemos sempre ser fiéis ao que no pensamento tem
significado e não no que é dito247.

O homem que deixou o campo duas vezes e por isso se sentiu livre do juramento
foi desonesto. Guard utiliza outro conceito para explicar o exemplo de Régulo em De
Officiis:

244
Cf. CÍCERO. De Officiis, III, 99.
245
Cf. CÍCERO. De Officiis, III, 101.
246
CÍCERO. De Officiis, III, 110.
247
CÍCERO. De Officiis, I, 40: Secundo autem Punico bello post Cannensem pugnam quos decem
Hannibal Romam misit astrictos iure iurando se redituros esse nisi de redimendis is, qui capti
erant, impetrassent, eos omnes censores, quoad quisque eorum vixit, quod peierassent in aerariis
reliquerunt, nec minus illum, qui iure iurando fraude culpam invenerat. Cum enim permissu
Hannibalis exisset e castris, rediit paulo post, quod se oblitum nescio quid diceret; deinde
egressus e castris iure iurando se solutum putabat, et erat verbis, re non erat. Semper autem in
fide quid senseris, non quid dixeris, cogitandum est.
104

alguns exemplos ocupam todo o seu lugar na argumentação, eles


constituem um suporte. Este é o caso com Régulo, um verdadeiro
fio condutor de raciocínio ciceroniano que justifica a
superioridade do honesto sobre o útil. O exemplo é desenvolvido
por um debate dialético dedicado à atitude de Régulo, ela mesma
ilustrada por outros exempla. Depois de completar a história do
exemplo, Cícero imagina as críticas que poderiam ser dirigidas a
Régulo (...). O exemplo é citado porque é representativo da
discussão filosófica248.

O exemplo histórico pode ser moral, e, diante da narração, o leitor pode formar
um juízo sobre o assunto, no caso, observar principalmente se é honesto ou não. Cícero
continua:

o louvor não é dos homens, mas dos tempos: pois os nossos


antepassados não reconheciam vínculo mais fiel do que o
juramento para manter as promessas. Isso é provado pelas Leis
das Doze Tábuas, pelas leis sagradas, pelos tratados com os quais
nos ligamos pelos laços de fidelidade até com o inimigo, pelas
investigações e pelas penas dos censores, os quais nada julgavam
com maior diligência do que o juramento249.

Podemos interpretar, então, que não se trata apenas da moralidade de Régulo, mas
de um hábito muito difundido em Roma, no passado. Ou seja, o momento histórico, a
época em que aconteceu o ocorrido era outra, em que as leis e o costumes eram
respeitados. Com isso, é possível inferir que, no tempo de Cícero, as coisas ocorriam de
outra forma e dependia-se muito mais da moralidade de cada um, o que reforça a ideia
de um passado glorioso, um presente decadente e um futuro que apenas pode ser

248
GUARD. Morale théorique et morale pratique: nature et signification des exempla dans le De
officiis de Cicéron. pp.52-53
249
CÍCERO. De Officiis, III, 111: (...)Itaque ista laus non est hominis, sed temporum. Nullum
enim vinculum ad astringendam fidem iure iurando maiores artius esse voluerunt. Id indicant
leges in duodecim tabulis, indicant sacratae, indicant foedera, quibus etiam cum hoste devincitur
fides, indicant notiones animadversionesque censorum, qui nulla de re diligentius quam de iure
iurando iudicabant.
105

promissor se resgatar a grandiosidade do passado. Mas, como não é possível reconstruir


um tempo, Cícero tenta mostrar a exemplaridade das ações humanas para que essas sejam
imitadas. Em outro momento da obra, afirma que não se trata apenas das características
de cada homem, mas do próprio tempo em que se vive; vejamos:

Panécio louva Africano pela sua moderação. Mas, se Africano


possui outras virtudes ainda maiores, o que louva? Não é a
moderação apenas daquele homem, mas do próprio tempo.
Quando Paulo se apoderou de todas as riquezas da Macedônia,
aliás vastíssimas, trouxe para o nosso tesouro tanto dinheiro que
os despojos de um só general puderam permitir a revogação dos
impostos fundiários. Mas, por outro lado, ele nada trouxe para sua
casa, a não ser a glória de um nome memorável. Africano imitou
seu pai, e nada mais precioso do que a vitória sobre Cartago 250.

Dessa forma, Cícero percebe uma diferença entre cada época, não apenas nos
homens, mas em toda a sociedade romana. Há uma inconstância nos tempos e uma
fragilidade nos homens, que podem ser corrigidas por meio de uma boa formação. Grande
é a mudança dos tempos e dos lugares e a diferença entre os homens, mesmo os mais
eminentes.

Cícero mostra a singularidade dos homens por meio dos exemplos e, sem eles,
dificilmente poderia fazê-lo, como lemos:

Havia em Lúcio Crasso e em Lúcio Filipe muito humor, sendo em


Caio César, filho de Lúcio, ainda maior e mais refinado. Na
mesma época Marco Escauro e Marco Druso eram adolescentes,
conhecidos por uma singular severidade. Grande era a alegria em
Caio Lélio; por outro lado, em Cipião, seu amigo, a ambição era
maior, a vida, porém, mais triste. Entre os gregos, Sócrates era
doce, fazia festa na conversação e encantador para além de ser um

250
CÍCERO. De Officiis, II, 76: Laudat Africanum Panaetius, quod fuerit abstinens. Quidni
laudet? Sed in illo alia maiora; laus abstinentiae non hominis est solum, sed etiam temporum
illorum. Omni Macedonum gaza, quae fuit maxima, potitus [est] Paulus; tantum in aerarium
pecuniae invexit, ut unius imperatoris praeda finem attulerit tributorum. At hic nihil domum suam
intulit praeter memoriam nominis sempiternam. Imitatus patrem Africanus nihilo locupletior
Carthagine eversa.
106

fingidor em todo tipo de conversação – aquilo que os gregos


denominam eiron. Pitágoras e Péricles, pelo contrário,
alcançaram a suma autoridade sem nenhum humor. Entre os
cartagineses, Aníbal, e, entre os nossos generais, Quinto Máximo
eram, conforme ouvimos contar, de uma habilidade exímia em
ocultar, calar, dissimular e em armar ciladas bem como em se
antecipar com facilidade aos planos do inimigo. Neste gênero os
gregos se destacam, e acima de todos os outros, Temístocles e
Jasão de Feras, porém, em primeiro lugar, sobressai o astucioso
feito do hábil Sólon que, como melhor desejasse proteger a sua
vida e mais ainda servir a república, simulou ter enlouquecido251.

Ele elabora, por assim dizer, retratos desses homens com características
específicas de cada um, pois, “proprie singulis est tributa”252, ou seja, certos traços são
distribuídos a cada um. Há variedade na alma humana, assim como nos corpos, e Cícero
comprova isso por meio dos exemplos. Ao mesmo tempo que cada homem tem suas
singularidades, ele deve reconhecer o outro para viver em uma república. Se os homens
não vivessem em ciuitates não haveria as leis e os costumes. Os homens se tornaram mais
humanos, desenvolveram o respeito, e a vida se tornou mais segura, nada faltando, pois
passaram a trocar tanto os meios de subsistência como os seus respectivos benefícios 253.

(...) efetivamente ninguém, quer se trate de um general em tempo


de guerra, quer seja o principal senhor, poderia ter realizado
grandes e salutares feitos sem o esforço dos homens? Recorda
Temístocles, Péricles, Ciro, Agesilau, Alexandre, os quais negam

251
CÍCERO. De Officiis, I, 108: Erat in L. Crasso, in L. Philippo multus lepos, maior etiam
magisque de industria in C. Caesare, L. filio; at isdem temporibus in M. Scauro et in M. Druso
adulescente singularis severitas, in C. Laelio multa hilaritas, in eius familiari Scipione ambitio
maior, vita tristior. de Graecis autem dulcem et facetum festivique sermonis atque in omni
oratione simulatorem, quem eirona Graeci nominarunt, Socratem accepimus, contra Pythagoram
et Periclem summam auctoritatem consecutos sine ulla hilaritate. Callidum Hannibalem ex
Poenorum, ex nostris ducibus Q. Maximum accepimus, facile celare, tacere, dissimulare,
insidiari, praeripere hostium consilia. In quo genere Graeci Themistoclem et Pheraeum Iasonem
ceteris anteponunt, in primisque versutum et callidum factum Solonis, qui, quo et tutior eius vita
esset et plus aliquanto rei publicae prodesset, furere se simulavit.
252
CÍCERO. De Officiis, I, 107.
253
CÍCERO. De Officiis, II, 15.
107

terem vez alguma podido realizar tantos feitos sem a assistência


dos homens 254.

No excerto citado, observamos que Cícero dá importância à ação coletiva. É na


relação com o outro, no reconhecimento do outro, que se estabelece o bem comum. Não
é possível agir sem a ajuda dos concidadãos, não é possível realizar grandes feitos em
prol da república sem eles. Ninguém vence uma guerra nem constrói uma república
sozinho. Parece muito óbvio, mas a importância da relação com o outro reafirma o que o
autor defende sobre a república: que foi ela construída por muitos, de muitas gerações –
como veremos no quarto capítulo. Em De Officiis, II, 72, o autor afirma que as ações que
beneficiam os particulares devem, de modo ideal, beneficiar a todos os cidadãos ou, pelo
menos, não prejudicar a República; em seguida, cita como exemplo a distribuição de
grãos feita por Caio Graco:

A grande distribuição de cereais de Caio Graco exauriu


completamente o erário [público], enquanto que aquela outra, de
responsabilidade de Marco Otávio, foi relativamente tolerável
para a República e necessária para a plebe, tendo, portanto, sido
salutar não só para os cidadãos como também para a República255.

Ao dissertar sobre o que é mais apropriado para manter a potestade, Cícero


argumenta que é preferível ser amado a ser temido 256. Ao citar os exemplos dos que
preferiram ser temidos a amados, o autor argumenta: “Prefiro, nesse assunto, recordar
exemplos estrangeiros a domésticos” 257.

Na verdade, não existe força ou comando algum que, durante


muito tempo, possa resistir ao temor. Fálaris é testemunha disso

254
CÍCERO. De Officiis, II, 16: Longiores hoc loco sumus quam necesse est. Quis est enim, cui
non perspicua sint illa, quae pluribus verbis a Panaetio commemorantur, neminem neque ducem
bello nec principem domi magnas res et salutares sine hominum studiis gerere potuisse.
Commemoratur ab eo Themistocles, Pericles, Cyrus, Agesilaos, Alexander, quos negat sine
adiumentis hominum tantas res efficere potuisse..
255
CÍCERO. De Officiis, II, 72: (...) C. Gracchi frumentaria magna largitio, exhauriebat igitur
aerarium; modica M. Octavii et rei publicae tolerabilis et plebi necessaria, ergo et civibus et rei
publicae salutaris.
256
CÍCERO. De Officiis, II, 23.
257
CÍCERO. De Officiis, II, 26: Externa libentius in tali re quam domestica recordor.
108

– a sua crueldade, mais do que qualquer outro exemplo, ficou


famosa. Ele não morreu numa emboscada (como aconteceu a
Alexandre, acerca de quem me referi há pouco) nem nas mãos de
muitos (como o nosso amigo), mas, antes, teve contra si toda a
multidão de Agrigento em fúria. E o que dizer de Demétrio? Os
macedônios o abandonaram, passando-se todos para o lado de
Pirro? E o que sucedeu aos lacedemônios, o que veio a acontecer
ao seu domínio ilegítimo, não é verdade que todos os seus aliados
imediatamente deles desertaram, tornando-se impávidos
espectadores da sua derrota em Leuctras?258

Assim, poder algum resiste por muito tempo ao ódio da multidão. O medo não é
uma garantia da longa duração de um governo, ao passo que a benevolência leva à
fidelidade. Se o povo odeia aqueles que temem, os que preferem ser temidos conduzem a
república à ruína. Então,

enquanto se assegurava o império do povo romano com ações


benéficas, sem se cometer injustiças, ou as guerras eram
empreendidas em defesa dos aliados ou do império, sendo o êxito
das guerras ou dócil ou necessário, o senado era um refúgio, um
porto para reis, povos e nações, e os nossos magistrados e os
nossos comandantes, ao defenderem com equidade e fidelidade
as províncias e os aliados, alcançavam a máxima honra259.

O sucesso para a grandeza, a manutenção da potestade de Roma e a longa duração


da República não se fundavam no temor, mas em um senado que acolhia a todos e tratava

258
CÍCERO. De Officiis, II, 25-26: Nec vero ulla vis imperii tanta est, quae premente metu possit
esse diuturna. Testis est Phalaris, cuius est praeter ceteros nobilitata crudelitas, qui non ex
insidiis interiit, ut is, quem modo dixi, Alexander, non a paucis, ut hic noster, sed in quem universa
Agrigentinorum multitudo impetum fecit. Quid? Macedones nonne Demetrium reliquerunt
universique se ad Pyrrhum contulerunt? Quid? Lacedaemonios iniuste imperantes nonne repente
omnes fere socii deseruerunt spectatoresque se otiosos praebuerunt Leuctricae calamitatis?
259
CÍCERO. De Officiis, II, 26: Verum tamen quam diu imperium populi Romani beneficiis
tenebatur, non iniuriis, bella aut pro sociis aut de imperio gerebantur, exitus erant bellorum aut
mites aut necessarii, regum, populorum, nationum portus erat et refugium senatus, nostri autem
magistratus imperatoresque ex hac una re maximam laudem capere studebant, si provincias, si
socios aequitate et fide defendissent.
109

a todos com equidade e fidelidade, e, com isso, os próprios romanos alcançavam a honra
e a glória.

Um dos fins da vida do homem é a busca da verdadeira glória. Para alcançá-la, não
basta que as ações pareçam úteis, mas o sejam efetivamente. Cícero expõe o conflito entre
ser e parecer, demonstrando que não basta fingir uma ação gloriosa, pois a dissimulação
cai por terra, enquanto a verdadeira glória tem raízes. O autor cita como exemplo a glória
verdadeira de um pai e a glória aparente dos filhos:

Para sermos breves, contentar-nos-emos com o exemplo de uma


única família. Tibério Graco, filho de Públio, será efetivamente
um dos mais louvados, enquanto a memória dos feitos de Roma
permanecer; mas os seus filhos, enquanto vivos, não foram
aprovados pelos homens bons e, depois de mortos, pertenceriam
ao número dos justamente derrubados. Portanto, se alguém
desejar alcançar a verdadeira glória, que cumpra os deveres da
justiça260.

Cícero aqui se refere a Tibério Semprônio Graco, que se casou com Cornélia
Africana, e seus filhos são Caio e Tibério Graco. O pai foi cônsul por duas vezes, em 177
e 163 a.C., enquanto seus filhos foram os tribunos da plebe, responsáveis pelas propostas
das leis agrárias. Podemos inferir que Cícero, como crítico das reformas dos Gracos, julga
que suas ações eram injustas e aparentemente gloriosas; aparentemente úteis, porém não
eram honestas com a república.

Ainda sobre o conflito entre ser e parecer, Cícero disserta sobre a relação entre o
útil e o honesto, e o exemplo mais emblemático citado é o que aconteceu na queda da
monarquia, ou melhor, da tirania em Roma. O autor destacou a ação coletiva dos
principais, como lemos:

Quando os principais concidadãos tomaram a decisão de dever


extinguir toda a estirpe de Soberbo, assim como o nome dos
Tarquínios e ainda a memória da sua monarquia, aquilo se revelou

260
CÍCERO. De Officiis, II, 43: (...) sed brevitatis causa familia contenti erimus una. Tiberius
enim Gracchus, P. f., tam diu laudabitur, dum memoria rerum Romanarum manebit, at eius filii
nec vivi probabantur bonis et mortui numerum optinent iure caesorum. Qui igitur adipisci veram
gloriam volet, iustitiae fungatur officiis.
110

útil – considerando os interesses da pátria – e também honesto, a


tal ponto que mereceu o apoio do próprio Colatino. Assim, a
utilidade valeu pela honestidade, sem a qual aquela nunca poderia
vir a ser aquilo que é261.

Por outro lado, as atitudes de Rômulo, na fundação de Roma, pareceram úteis,


mas não o foram, como lemos:

No caso do rei que fundou a nossa urbe, isso [a honestidade] não


houve. Com efeito, a aparência de utilidade alcançou na sua alma
a crença de que, naquele momento, parecia ser mais útil governar
só do que fazê-lo com outro; ele matou o seu irmão, ignorou a
piedade e a humanidade para poder alcançar algo que parecia útil,
mas não era; e, no entanto, a fim de apresentar uma aparência de
honestidade, alegou como pretexto a muralha, argumento que
nem era provável nem idôneo. Portanto, procedeu mal (e falo com
todo o respeito a Quirino e Rômulo) 262.

E, adiante, o autor continua: “(...) foram muitas as ocasiões em que a aparência de


utilidade causou um mal tão grande à nossa república, como se verificou, aliás, com a
destruição pelos nossos exércitos da cidade de Corinto”263.

Por fim, como afirma David, “na verdade, o exemplo não tem outra função do que
fixar aos contemporâneos de Cícero a conformidade com o comportamento
tradicional.”264 Depois dos exemplos expostos, concluímos que, numa obra que pretende

261
CÍCERO. De Officiis, III, 40: (...) Cum autem consilium hoc principes cepissent, cognationem
Superbi nomenque Tarquiniorum et memoriam regni esse tollendam, quod erat utile, patriae
consulere, id erat ita honestum, ut etiam ipsi Collatino placere deberet. Itaque utilitas valuit
propter honestatem, sine qua ne utilitas quidem esse potuisset.
262
CÍCERO. De Officiis, III, 41: At in eo rege, qui urbem condidit, non item. Species enim
utilitatis animum pepulit eius; cui cum visum esset utilius solum quam cum altero regnare, fratrem
interemit. Omisit hic et pietatem et humanitatem, ut id, quod utile videbatur, neque erat, assequi
posset, et tamen muri causa opposuit, speciem honestatis nec probabilem nec sane idoneam.
Peccavit igitur, pace vel Quirini vel Romuli dixerim.
263
CÍCERO. De Officiis, III, 46: (...) Sed utilitatis specie in republica saepissime peccatur, ut in
Corinthi disturbatione nostri;
264
DAVID, J-M. “Maiorum exempla sequi : l'exemplum historique dans les discours judiciaires
de Cicéron”. In: Mélanges de l'Ecole française de Rome. p.84.
111

aconselhar e formar os jovens, os exemplos históricos são constitutivos da argumentação


filosófica. A universalidade da filosofia expressa na natureza e na moralidade acaba
universalizando os exemplos particulares que incorpora. A temporalidade na obra é
marcada pelo passado glorioso, pelo presente decadente e por um futuro que está por vir
e que pode ser glorioso, se os deveres e as ações passado forem recuperadas.
112

III. DISCURSOS: TESTEMUNHOS DA DECADÊNCIA

Os discursos Philippicae e In Catilinam são significativos do ponto de vista da


crise republicana, e neles abundam os argumentos que recuperam a grandeza do passado
romano e os exemplos das ações viciosas de alguns cidadãos que usurparam a república.
Quando os analisamos, observamos que a constante recuperação do passado é
imprescindível para a construção dos discursos, pois eles foram elaborados para serem
testemunhos de um tempo265.

Os discursos, ao contrário dos diálogos filosóficos, tinham preceituação vasta,


inclusive feita por Cícero. Os que são aqui analisados seguem rigorosamente os preceitos,
mas poderemos notar que, por muitas vezes, os gêneros se mesclam e as narrativas não
ocupam seu lugar apenas após o exórdio. Estas são evocadas frequentemente para
recuperar a força dos argumentos políticos. De acordo com Rambaud 266, diversos são os
motivos e as razões de Cícero para introduzir os exemplos históricos em seus discursos.
Pode ser para servir de argumento secundário em uma refutação, para fazer uma pintura
moral, como nas Philippicae, ou para explicar a história de um povo, de um cargo ou de
uma lei, ou para mostrar o mal que causaram as ações de Catilina e Antônio, nas
Catilinárias e nas Filípicas, respectivamente. Nessas duas obras, a exemplaridade
histórica provoca o leitor a buscar em sua memória quem eram esses homens citados para
provar, ao analisar os seus vícios, o que não deve ser feito. A função pedagógica do
exemplo, nesses casos, cumpre seu papel não ao dizer o que deve ser imitado, mas o que
deve ser evitado.

Guard aponta que os exemplos recuperados devem seguir um critério da história,


ou seja, deve-se recuperar aquilo que é digno de memória, como observa:

A importância do exemplum é conhecida na prática oratória em


geral e na de Cícero em particular, que oferece a autoridade e o
prestígio de um modelo como referência e que permite ao orador
inscrever sua ação na continuidade dos heróis da República

265
Guard afirma que “Gowing viu no discurso do orador seu próprio monumentum, que
provavelmente ficará para a posteridade, porque é a expressão de sua ação política e faz dele uma
figura histórica, dignus memoria.”265. A argumentação é pertinente, pois Cícero os considera
como testemunhos. GUARD. “La parole historique mise en scène dans les discours de Cicéron.
Éloquence et idéologie politique”. In: Dialogues d'histoire ancienne. p.81.
266
RAMBAUD. Cicerón et l´histoire Romaine. p. 21.
113

romana. (...). Aparece como um exemplum particular a citação de


uma palavra histórica, isto é, que deve ser inscrito na memória
coletiva e transmitido à posteridade, de acordo com o critério do
dignum memoria que define a historicidade de um fato na teoria
historiográfica ciceroniana267.

Segundo David, “o exemplum não é senão um meio de provar por comparação” 268.
E o autor continua:

O exemplum é, antes de mais nada, uma comparação. Ele organiza


duas séries de comportamentos, com o entendimento de que
aqueles que são julgados ou procurados para induzir são por vezes
implícitos. Mas também opera por meio de uma imagem
exemplar que permite a identificação ou repulsão paradigmática
e, portanto, se aproxima da metáfora 269.

267
GUARD. “La parole historique mise en scène dans les discours de Cicéron. Éloquence et
idéologie politique.” In: Dialogues d'histoire ancienne. p.82.
268
DAVID. “Maiorum exempla sequi : l'exemplum historique dans les discours judiciaires de
Cicéron”. p.71.
269
DAVID. “Maiorum exempla sequi : l'exemplum historique dans les discours judiciaires de
Cicéron”. p.81.
114

III.I. O LUGAR DA HISTÓRIA NOS DISCURSOS

O recurso à história ocorre principalmente em duas partes da dispositio no discurso,


a saber: na narratio e na confirmatio, quando o orador narra um acontecimento ou quando
demonstra, por meio de provas, a sua argumentação. Aqui reuniremos os argumentos do
autor sobre a preceituação do discurso, servindo-nos das obras De Inuentione270 e De
Oratore.
A relação entre história e oratória no pensamento ciceroniano pode ser observada
desde o De Oratore. Nesta obra, as matérias políticas, retóricas e historiográficas se
mesclam da mesma forma que o melhor orador é, ao mesmo tempo, o melhor filósofo,
legislador, político e o melhor historiador. A narrativa histórica é constantemente tratada
em termos retóricos, pois a retórica estava no início da formação dos cidadãos e,
principalmente, dos que estavam inseridos na vida política, que faziam discursos, e
escreviam as narrativas.
De acordo com a preceituação retórica, em De Inuentione, há três gêneros de
discurso: o epidítico, cuja finalidade é louvar ou vituperar e está voltado para o tempo
presente; o deliberativo, usado nas causas civis, uma vez que visa aconselhar ou
desaconselhar, portanto, voltado ao tempo futuro; e o judiciário, que tem por finalidade
acusar ou defender e se reporta ao tempo passado 271. Os discursos não são
necessariamente compostos por apenas um gênero, esses podem estar mesclados.
Para elaborar um discurso, cinco etapas devem ser seguidas, a saber: a inuentio, que
consiste em encontrar argumentos verdadeiros ou verossímeis para que a causa seja
crível; a dispositio, que é a ordenação dos argumentos; a elocutio, que consiste em colocá-
lo em palavras; a memoria, a capacidade de guardar as ideias e os argumentos; e, por fim,
a pronuntiatio, etapa em que se profere um discurso, é a ação em si272.
A dispositio é dividida em: exordium, narratio, partitio, confirmatio, reprehensio
e conclusio. No exordium, o orador inaugura seu discurso, e é o momento ideal para captar
a benevolência do auditório. Cícero, em De Inuentione, I, XIX, 27-30, afirma que na

270
Obra retórica ciceroniana escrita na juventude. As obras em gênero dialógico dialogam entre
si e se tornariam de difícil compreensão se tomarmos os livros de maneira isolada. Do ponto de
vista da política, devemos isolar De Inuentione, pois traz concepções políticas mais platônico-
aristotélicas, diferindo das concepções estoicas que Cícero adotou em 54, quando começou a
escrever De Re Publica e as seguiu até o De Officiis, seu último diálogo filosófico.
271
CÍCERO. De Inuentione, I, V, 7.
272
CÍCERO. De Inuentione, I, VII, 9.
115

narração – narratio – se expõem os fatos que realmente aconteceram ou os que se supõe


como tais 273. Além disso, divide a narração em três gêneros, a saber: o que contém a causa
e a essência da controvérsia; o segundo insere digressões úteis para ampliar a exposição;
o terceiro se usa para exercitar de modo útil. Este terceiro gênero se subdivide em duas
partes: uma se refere aos negotiis, e a segunda, às personis274. A parte referente aos
negócios se subdivide em três outras: fabulam, historiam e argumentum. A fábula conta
coisas que não são nem verdadeiras nem verossímeis; a história conta um fato que
realmente aconteceu, mas distante do nosso tempo; a trama é a narração de um fato
inventado, mas que poderia ter acontecido, e disso depreendemos que não é verdadeira,
mas verossímil. Nos parágrafos subsequentes, continua sua exposição sobre as outras
partes e, ao final, afirma:
E a narração poderá ser clara se expusermos, como primeiro feito,
aquilo que é verificado como primeiro, e se respeitarmos a ordem
cronológica dos feitos, de modo que estes sejam expostos da
mesma forma que aconteceram ou como pareceria ser possível o
seu desenvolvimento (...).
A narração será provável se parecer que tenha aqueles elementos
que costuma ter na verdade; se forem respeitadas a dignidade das
pessoas; se as causas dos fatos forem evidentes; se parecer que foi
possível determinar as ações; se demonstrar que o tempo era
idôneo, o espaço de tempo suficiente, o lugar oportuno para se
narrar o fato; se o fato será acomodado seja à natureza dos
agentes, seja aos costumes do vulgo, seja à opinião da
audiência275.

273
A verossimilhança é uma qualidade da narratio . Cf. CÍCERO. De Oratore, II, 83.
274
CÍCERO. De Inuentione. I, XIX, 27
275
CÍCERO. De Inuentione. I, XX, 29-XXI: [29] Aperta autem narratio poterit esse, si, ut
quidque primum gestum erit, ita primum exponetur, et rerum ac temporum ordo servabitur, ut ita
narrentur, ut gestae res erunt aut ut potuisse geri videbuntur. (...)
Probabilis erit narratio, si in ea videbuntur inesse ea, quae solent apparere in veritate; si
personarum dignitates servabuntur; si causae factorum exstabunt; si fuisse facultates faciundi
videbuntur; si tempus idoneum, si spatii satis, si locus opportunus ad eandem rem, qua de re
narrabitur, fuisse ostendetur; si res et ad eorum, qui agent, naturam et ad vulgi morem et ad
eorum, qui audient, opinionem accommodabitur.
116

Observamos que não basta a verdade de um fato, mas a verossimilhança entre ele,
o espaço, o tempo e o que ocasionou a ação. Cícero enfatiza a importância da narração 276,
seus gêneros, suas partes, e desenvolve qual o tipo de matéria deve ser narrada; a narrativa
histórica tem um espaço central, pois pode colaborar para o julgamento, uma vez que
torna possível formar um juízo.
Em De Oratore, a apreciação da narração é exposta de modo diverso 277, sem as
divisões e subdivisões típicas de um manual, sendo mais descritiva e explicativa sobre o
que deve conter, seu estilo e a ordem das palavras. O autor começa afirmando que ela
deve ser breve, prazerosa e persuasiva. Deve ser verossímil, expor do modo como as
coisas aconteceram, respeitando a sequência cronológica dos fatos. A narração precisa
ser muito clara – pois se for obscura tornará todo o discurso confuso –, as palavras devem
ser da linguagem quotidiana, não deve ter interrupções e deve ser a fonte de todas as
outras partes do discurso.
A confirmatio, preceituada longamente em De Inuentione 34-77 e, brevemente, em
De Oratore, II, 116, é a parte do discurso que garante credibilidade, autoridade e sustenta
a defesa da causa por meio da argumentação, mais precisamente por provas. Em De
Oratore, Cícero afirma:
Para demonstrar a veracidade de suas teses, o orador tem à
disposição elementos de duas matérias: o primeiro não é de sua
invenção, mas é constituído por provas postas pelo próprio fato e
adotadas segundo um modo preciso: tábuas, testemunhos,
acordos, interrogatórios, leis, decretos senatoriais, sentenças
proferidas anteriormente, decretos, especialistas e outras provas,
se houver, que não sejam produzidas pelo próprio orador, mas

276
Ao se referir à elaboração dos discursos, devemos notar que, do ponto de vista retórico, das
partes da dispositio, Cícero diverge de Aristóteles quanto à narratio. Enquanto Aristóteles afirma
que: “(...) é preciso que se componham narrações não de grandes dimensões, tal como não se
devem elaborar proêmios nem provas muito extensas. Pois também aqui o melhor não é a rapidez
ou a concisão, mas sim a justa medida. (...) É conveniente que a narração incida sobre a
componente ética. Isto assim resulta se soubermos o que produz a expressão do caráter moral.
Um recurso é mostrar a intenção moral: o caráter corresponde ao tipo de intenção, e a intenção
moral, por sua vez, ao tipo de finalidade (...). No gênero deliberativo, a narração é menos
importante, porque ninguém elabora uma narração sobre fatos futuros. Mas se por acaso houver
narração, que seja sobre acontecimentos passados de forma que, sendo recordados, se delibere
melhor sobre os futuros, quer se critique quer se elogie. Porém, o orador nesse caso não perfaz a
função de um orador do gênero deliberativo”. ARISTÓTELES. Retórica, 1417a-1417b.
277
Cf. CÍCERO. De Oratore, II, 326-330.
117

fornecidas a ele; o segundo é representado inteiramente pelo


modo de discutir e argumentar do orador 278.

No primeiro caso, são as provas que já existem, no segundo, as que ele deve
inventar. Ou seja, as provas devem ser verdadeiras, sempre se referirão ao passado, assim,
serão históricas. É o material que o orador terá para usar em seu discurso e que o narrador
terá para escrever sua narrativa histórica.
Em De Inuentione, 34-77, na confirmatio, Cícero divide o modo de expor: pelos
meios de demonstração – que podem ser segundo atributos das pessoas ou dos fatos –,
pelo caráter da demonstração e pelos tipos de argumentação, ou seja, por raciocínio
indutivo ou dedutivo.
A argumentação segundo os atributos das pessoas deve tratar do nome, da natureza,
dos parentescos, da idade, dos hábitos, das emoções, das tendências, dos projetos, dos
discursos e das ações, ou seja, deve-se traçar perfeitamente o perfil moral da pessoa. As
ações, os eventos e os discursos devem ser considerados em relação aos três tempos,
narrando: as coisas que uma pessoa fez, que lhe aconteceu ou que disse; ou, ainda, as
coisas que ela faz, lhe acontece ou que diz; ou as coisas que estão por fazer, por acontecer
ou que dirá.
Os atributos dos fatos são, em parte, inerentes a esses, em parte são circunstâncias
que os acompanham, em parte são acessórios e consequentes aos fatos. Deve-se explicar
por qual razão um homem cometeu a ação, o lugar, o tempo, o modo, a ocasião, as
possibilidades. A demonstração segundo o caráter da argumentação deve ser provável ou
necessária. Ou seja, a argumentação é um procedimento para esclarecer que uma coisa é
provável ou para demonstrar que uma coisa é necessária. Ela deve ser conduzida ou com
o método indutivo, inductio, ou dedutivo, ratiocinatio. A indução279 é o procedimento

278
CÍCERO. De Oratore, II, 116: Ad probandum autem duplex est oratori subiecta materies: una
rerum earum, quae non excogitantur ab oratore, sed in re positae ratione tractantur, ut tabulae,
testimonia, pacta conventa, quaestiones, leges, senatus consulta, res iudicatae, decreta, responsa,
reliqua, si quae sunt, quae non reperiuntur ab oratore, sed ad oratorem a causa [atque a re]
deferuntur; altera est, quae tota in disputatione et in argumentatione oratoris conlocata est;
279
A primeira regra do método indutivo é que o elemento analógico proposto seja tal que
necessariamente seja concedido; a segunda, que a consequência tenha uma relação de semelhança
com as premissas que foram propostas. Este método possui três partes: a primeira consiste em
uma ou mais proposições semelhantes ou análogas; a segunda, na verdade que queremos admitir;
a terceira, na conclusão, ou uma confirmação, ou uma mostra da consequência que se possa tirar.
118

pelo qual do particular chega-se ao universal. Na dedução280, do universal chega-se ao


particular. Na narrativa histórica, trabalha-se mais com o método indutivo, pois é pela
indução que se observam os fatos, os particulares, para se chegar às conclusões universais.
Cícero afirma que o orador deve usar os dois métodos argumentativos, de acordo com o
que for mais conveniente 281. Teoricamente, se levarmos essas ideias para as obras
político-filosóficas e para as narrativas históricas, as primeiras deveriam ser dedutivas, e
as segundas, indutivas. No entanto, raramente Cícero constrói deduções em suas obras
políticas. Ele se serve da exemplaridade histórica e elabora argumentos indutivos.
Cícero não nos fornece, como observamos, nenhuma preceituação retórica sobre a
narrativa histórica em De Inuentione, apenas sobre o exemplo histórico, pois está
preocupado com a elaboração do discurso forense. De acordo com Rambaud 282, o
exemplo é utilizado como maneira de embelezar o discurso e torná-lo mais persuasivo.
Cícero cita o passado como se a história romana tivesse uma virtude particular e relaciona
auctor e exemplum. Na Retórica a Herenio, IV, 49, 62, auctor e exemplum são definidos
da seguinte maneira: “o exemplo é a proposição de nomes, de fatos ou ditos pretéritos
com certa autoridade”. Com isso, Rambaud afirma: “O que ele entende por autor não é
uma fonte histórica, mas uma figura histórica determinada que é tanto o autor da ação
quanto o da fala”283. Em De Inuentione esta ideia aparece de modo mais preciso em I, 49
quando Cícero assevera: “o exemplo é o que confirma ou refuta um fato baseado ou na
autoridade ou nos eventos de uma pessoa ou dos fatos”. O exemplo histórico torna os
discursos mais persuasivos e lhe confere também mais autoridade.
Nos diálogos filosóficos e nos discursos forenses, os exemplos possuem a mesma
forma, pois a fala de um interlocutor em um diálogo é, por assim dizer, um tipo de
discurso. Mas, nos diálogos filosóficos, há outros recursos de contextualização do texto
que propiciam uma temporalidade que, quando conjugada com os exemplos, que são
indispensáveis à argumentação, conferem mais autoridade e força persuasiva à obra; e a
história corrobora com as afirmações filosóficas ou a teoria filosófica pode se sustentar
por meio do exemplo histórico. Neste caso, poderíamos comparar com o discurso

280
Já a dedução é um raciocínio que traz um elemento crível que, uma vez exposto e conhecido,
se impõe com a sua força e se justifica sozinho. Ele pode ser composto por cinco, quatro ou três
proposições; a última deve ser a conclusão, e as anteriores, as premissas.
281
CÍCERO. De Inuentione, I, 76.
282
RAMBAUD, M. Cicéron et l´histoire romaine. p. 36.
283
RAMBAUD, M. Cicéron et l´histoire romaine. p. 39.
119

judiciário, que tem como tempo o passado, ou seja, é a narrativa que constitui parte da
argumentação que sustenta o discurso.

Rambaud284 aponta: “se, ao mesmo tempo, tanto nos tratados quanto nos discursos,
o fato de citar os exemplos traduz o desejo que o autor tem de se fundar sobre uma
autoridade, então as condições em que ele recorreu aos exemplos foram todas
diferentes285”. Ainda assim, acrescentaríamos que o objetivo de dar autoridade ao texto
pelo uso dos exemplos foi atingido. E por mais que a temporalidade – a forma como os
exemplos históricos são retomados – nos discursos seja diferente dos diálogos filosóficos,
em ambos há força persuasiva; porém, no diálogo, pela extensão e pelo gênero, é possível
uma maior complexidade temporal, colocando a obra no passado, as figuras dos
testemunhos e mais de um narrador.

Ademais, é preciso destacar que não há interação entre interlocutores em um


discurso (apenas a percepção que o orador tem da plateia); ele é feito de modo unilateral,
ou seja, apenas um fala, e isto resulta, no caso, não em uma relação amistosa entre iguais,
mas na relação muitas vezes beligerante e entre desiguais ou oponentes. Cícero expõe
tanto nas Catilinárias quanto nas Filípicas os sentimentos, emoções, paixões, vícios e

284
Já os exemplos apresentados como breves citações são abundantes nos dois tipos de obra, como
podemos ver o exemplo sobre Mancino no discurso Pro Caecina, 98: “O direito de cidadania
pode ser levado embora, frequentemente nossos cidadãos têm ido para as colônias latinas. Eles
vão ou por sua vontade ou por alguma penalidade imposta pela lei; embora se se submetessem à
pena, eles poderiam permanecer na ciuitas. O que fazer? O que digo sobre um homem a quem o
chefe dos feciais entregou, ou a quem o seu próprio pai ou o seu povo vendeu? Por qual lei ele
perde a sua cidadania? Com qual finalidade a ciuitas pode ser liberada de alguma obrigação
religiosa, e um cidadão romano é entregue; e quando ele for aceito, então ele pertence a esses
homens a quem tenha sido entregue. Se eles se recusam a recebê-lo, como o povo de Numância
recusou-se a receber Mancino, ele então mantém os seus direitos originais de cidadania intacta. Se
seu pai o vendeu, ele livrou-o de toda a sujeição ao seu poder; pois desde quando nasceu, o pai
tinha poder absoluto sobre.” Em De Oratore, I, XL, 181, uma obra dialógica: “Já omitindo
numerosos exemplos, que são inumeráveis, de causas muito importantes (...). Tomemos o
exemplo de Caio Mancino, homem muito nobre, varão ótimo, ex-cônsul; depois da indignação
suscitada pelo tratado feito por ele na Numância, o chefe dos feciais, com base em uma
deliberação do senado, o tinha recomendado aos numantinos, mas aqueles não o acolheram, e, em
seguida, Mancino retornou à pátria e não hesitou de participar de uma cadeira do senado.” E, em
De Re Publica, III, XVIII, 28: “O mesmo que [ocorre] com cada um, [ocorre] com os povos:
nenhuma ciuitas é tão insensata que não prefira mandar injustamente a servir justamente. Na
verdade, nem irei muito longe: quando fui cônsul 284, consultei o [senado] acerca do tratado de
Numância, quando éreis junto a mim no conselho. Quem ignorava que Quinto Pompeu havia feito
este tratado e que Mancino estava na mesma situação? Um ótimo varão, inclusive, apoiou o
projeto de lei que apresentei sob a forma de um decreto do Senado, e outro se defendeu
veementemente. Se se busca a honra, a probidade, a confiança, [então] Mancino apresentou estas
qualidades; se [se busca] a razão, o discernimento, a prudência, [então] Pompeu está à frente.
Acaso*”
285
RAMBAUD, M. Cicéron et l´histoire romaine. p. 41.
120

virtudes humanas, graças tanto à sua capacidade narrativa quanto à sua percepção das
ações humanas. Uma vez que os discursos visam ao convencimento e à comoção por meio
das paixões, Cícero aponta em Catilinárias, IV, 11, que ele julga e emite suas opiniões
segundo seus próprios sentimentos. Segundo Guard:

J.-M. David define exemplum como “a história curta que lembra


um fato passado da vida de um grande homem”. Vamos relembrar
a natureza do exemplum: um meio de demonstração e persuasão
em discursos, de acordo com os autores da antiguidade. É uma
ferramenta demonstrativa que coloca o argumento sob a
autoridade de um precedente conhecido por todos, como
enfatizou ele próprio no De Inuentione, I, 49: “Exemplo é o que
confirma ou invalida o argumento pela autoridade ou tipo de um
homem ou de um negócio.”(...) O exemplum, portanto, procede
por analogia do presente com o passado. É também um
instrumento de persuasão que provoca emoção, prazer no
ouvinte-leitor286.

Ao analisarmos os discursos, não nos prenderemos tanto aos exemplos históricos


específicos, pois essas obras possuem uma natureza histórica – apesar de não serem
narrativas históricas –, uma porque foi escrita três anos depois de proferida, a outra,
porque o autor a trata como um testemunho. As questões de gênero e da forma do discurso
ficam menores quando, por conta do conteúdo, ultrapassam-se as premissas e as regras
de composição. Fox aponta que “nos discursos de Cícero, os exemplos históricos
serviram, obviamente ao lado de outras armas retóricas, como um meio para alcançar
resultados políticos particulares” 287. Ademais, o comentador prossegue:

Trabalhar o uso dos exempla na retórica sugere que podemos estar


errados ao pensar que a exemplaridade demanda constância de
interpretação: os exempla desenharam modelos capazes de uma
variedade de interpretações. A função exemplar permanece

286
GUARD. “Morale théorique et morale pratique: nature et signification des exempla dans le
De officiis de Cicéron”. In: Vita Latina. p.50.
287
FOX. Cicero´s Philosphy of History. pp. 152-153.
121

constante, mas exemplos individuais podem ser encontrados


numa variedade de argumentos diferentes 288.

Nesses discursos, notamos que a única ação coletiva é a dos conjurados, que agem
segundo as ordens de Catilina, e as ações de Cícero são individuais. Dessa forma,
observamos uma valorização das ações particulares sobre as ações coletivas.

288
FOX. Cicero´s Philosphy of History. p.154.
122

III.II. CATILINARIAE

As Catilinárias289 foram quatro discursos elaborados contra Catilina em 63 a.C. e


redigidos e publicados apenas em 60 a.C. Dessa maneira, podemos analisar a obra não
apenas como um discurso mas também como um registro que Cícero fez de seu discurso,
como um testemunho para a posteridade. Isso nos traz um grande problema em relação à
temporalidade da obra, pois classificá-la segundo a temporalidade típica de cada gênero
não é possível, já que há uma forte presença do futuro – quando Cícero se volta ao que
Catilina fará –, do passado, quando descreve as reuniões dos conjurados, e do presente,
quando pronuncia os insultos. Durante o estudo desses quatro discursos, não conseguimos
definir a presença de apenas um gênero, mas dos três, a saber: epidítico, deliberativo e
judiciário. A obra não segue efetivamente a preceituação retórica dos gêneros dos
discursos, pois, por exemplo, ao dizer, na primeira Catilinária: “Catilina, até quando
abusará de nossa paciência?”, o enunciado está voltado ao futuro. Mas não se trata do
gênero deliberativo, então, como conduzir a interpretação desses discursos? Talvez a
solução seja interpretá-los como testemunhos do que aconteceu e conferir a eles um
caráter histórico. Cícero coloca-se como testemunho de seu próprio discurso, de suas
ações e das ações de Catilina e dos conjurados. Nos quatro discursos, a recuperação dos
exemplos históricos fornecem paradigmas do que deve ser evitado ou imitado, as ações
de Catilina e dos conjurados e as ações de Cícero, respectivamente.

De acordo com Guard,

o status da palavra histórica deve ser colocado em paralelo com a


ambição de Cícero de ficar para a posteridade; ao tomar
emprestada a palavra dos grandes homens, ele torna-se um deles
e, assim, acaba fazendo seu próprio discurso histórico para se
tornar um exemplum e assumir a continuidade da herança
romana290.

289
Alain Michel argumenta que, segundo Lepore, nas Catilinárias, como sabemos são discursos
políticos, mas o pensamento político do orador se torna mais filosófico. MICHEL. Les rapports
de la rhétorique et de la philosophie dans l´oeuvre de Cicéron. p.543. Podemos atribuir isso ao
pensamento ciceroniano pela forte presença da moralidade nos discursos.
290
GUARD, T. “La parole historique mise en scène dans les discours de Cicéron. Éloquence et
idéologie politique”. In: Dialogues d'histoire ancienne.p. 92.
123

Guard cita a frase Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?, da


Primeira Catilinária, e afirma: “assim, o status histórico adquirido pela palavra
ciceroniana, que é suficiente com a sua citação simples para perpetuar na memória da
posteridade a própria memória da ideia romana.” 291

Lintott, na obra Cicero as Evidence, argumenta que não podemos “tratar os textos
de Cícero como um autêntico testemunho da história”292. Porém, não podemos aplicar o
método contemporâneo de investigação histórica a um autor que viveu em outro período,
que possuía outra metodologia para a escrita das narrativas históricas, em que não havia
cientificismo e as comprovações da contemporaneidade. O autor continua argumentando
que Cícero não é um narrador imparcial293, e com isto devemos concordar. Ele nos dá a
sua versão dos fatos, e isso será notado tanto nas Catilinárias quanto nas Filípicas. Ainda
segundo Lintott, as Catilinárias foram cuidadosamente editadas segundo os outros
discursos consulares. Nas três primeiras, não há inconsistências entre o momento em que
foram redigidas e a ocasião em que foram proferidas. Mas a quarta foi elaborada
remetendo às outras obras 294. Por outro lado, Guard, que adota uma postura diante do
conceito de história próxima à dos antigos, afirma que há uma igualdade entre as palavras
e os atos de um cônsul e

ambos são suscetíveis de entrar na memória coletiva romana; as


palavras se tornam um monumentum, ou seja, um meio de
memória deixado por Cícero para a posteridade, e constituem a
essência do que chamamos hoje discurso histórico, destinado a
ser lembrado pelas gerações futuras por causa de sua importância
política295.

Podemos considerar esta afirmação tanto na análise das Catilinárias quanto das
Filípicas.

291
GUARD, T. “La parole historique mise en scène dans les discours de Cicéron. Éloquence et
idéologie politique”. In: Dialogues d'histoire ancienne.p.92.
292
LINTOTT. Cicero as Evidence. p. 3.
293
LINTOTT. Cicero as Evidence. p. 3.
294
LINTOTT. Cicero as Evidence. p. 17.
295
GUARD, T. “La parole historique mise en scène dans les discours de Cicéron. Éloquence et
idéologie politique.” In: Dialogues d'histoire ancienne.p.90.
124

No exórdio da Primeira Catilinária296, Cícero chama a atenção de Catilina de


modo violento e abrupto, enumera exemplos de castigos a cidadãos menos culpados do
que ele e anuncia que deferirá o castigo, e se manterá vigilante. O exemplo de castigo
utilizado é o sofrido por Tibério Graco: “Se um homem exímio, Públio Cipião – Pontífice
Máximo – sem nenhum mandato, privou da vida Tibério Graco que perturbava
ligeiramente a estabilidade da República, nós, cônsules, teríamos que aguentar Catilina,
que se esforça para arrasar com sangue e fogo a orbe da terra? 297”. O exemplo de Graco
representa o que deveria ser feito com Catilina e, ao mesmo tempo, dá autoridade a
qualquer ato que feito em relação a ele, ou seja, justifica a expulsão de Catilina da urbe.

Durante a argumentação, Cícero defende que Catilina deve sair da cidade, porque
todos os homens o detestam, todos conhecem os seus desejos, e a pátria tem horror de
seus planos. Com isso, Catilina condenou-se atraindo o ódio dos concidadãos; então, o
melhor a fazer é exilar-se. Cícero justifica sua conduta e já se defende, pois pode ser que,
pelo exílio de Catilina, o acusem de cruel. Ao final, o autor invoca Júpiter para que salve
a urbe e que saiam dela todos os que querem destruí-la:

Com estes presságios, Catilina, prestes a se cumprirem agora para


a suprema salvação da república e para a tua ruína e perdição
junto com a dos teus cúmplices nos crimes e dos delitos contra a
pátria, partes para uma guerra criminosa e nefasta. E tu, Júpiter,
cujo culto foi instituído por Rômulo, que com os mesmos
auspícios com os quais fundou a urbe, tu que invocamos com o
nome de Estator da urbe e do império, manterás longe este homem
e seus aliados do seu templo e dos outros deuses, da urbe, da casa
dos romanos, dos muros, da vida, dos bens de todos os seus
concidadãos; e punirás com suplícios eternos, na vida e na morte,
esses adversários da gente honesta, inimigos da pátria,
devastadores da Itália, ligados por um pacto criminoso e uma
cumplicidade de morte298.

296
Exórdio: 1-6; narração: 6-8; argumentação: 9-31; peroração:32-33.
297
Catilinária, I, 3: An vero vir amplissumus, P. Scipio, pontifex maximus, Ti. Gracchum
mediocriter labefactantem statum rei publicae privatus interfecit; Catilinam orbem terrae caede
atque incendiis vastare cupientem nos consules perferemus?
298
CÍCERO. Catilinária, I, 33: Hisce ominibus, Catilina, cum summa rei publicae salute, cum
tua peste ac pernicie cumque eorum exitio, qui se tecum omni scelere parricidioque iunxerunt,
proficiscere ad impium bellum ac nefarium. Tu, Iuppiter, qui isdem quibus haec urbs auspiciis a
125

Nessa peroração, Cícero não apenas invoca a figura do fundador de Roma como
também da divindade, o exemplo histórico e um mítico. Eles ilustram tanto a autoridade
quanto a proteção necessária para a República, uma vez que é preciso manter Catilina e
seu aliados afastados da urbe, pois eles são a causa da ruína e do mal. Com a primeira
Catilinária, Cícero conseguiu expulsar Catilina de Roma, mas ainda ficaram na cidade
outros conjuradores.

Na Segunda Catilinária299, Cícero comemora de modo enfático, pois Catilina saiu


de Roma, e demonstra que ele era a causa da ruína da cidade, como observamos no
exórdio:

Por fim, Quirites, L. Catilina, audaz até no delírio, respirava


crime, tramava a ruína da pátria e ameaçava destruir com ferro e
fogo vós e a urbe; nós o expulsamos da cidade, ou o fizemos sair,
ou o acompanhamos, marchando com palavras de despedida. Ele
se foi, fugiu da cidade, escapou. Esse monstro nefasto já não
provocará nenhuma ruína, estando dentro dos muros, sob esses
muros. E vencemos, certamente, sem discussão, o único chefe
dessa guerra civil300.

Notamos três versões da saída de Catilina de Roma, o que demonstra, de certa


forma, a imparcialidade proposital de Cícero. E, nesse primeiro momento, ele não atribui
apenas a si o feito, mas usa os verbos na primeira pessoa do plural, como se ele e os
senadores fossem os responsáveis pela expulsão de Catilina. Veremos que, em outros
momentos, ele atribui o feito apenas a si; aqui, usa o “nós” muito provavelmente para
captar a benevolência dos senadores, como se esse feito fosse uma ação coletiva.

Romulo es constitutus, quem Statorem huius urbis atque imperii vere nominamus, hunc et huius
socios a tuis [aris] ceterisque templis, a tectis urbis ac moenibus, a vita fortunisque civium
[omnium] arcebis et homines bonorum inimicos, hostis patriae, latrones Italiae scelerum foedere
inter se ac nefaria societate coniunctos aeternis suppliciis vivos mortuosque mactabis.
299
Exórdio: 1-2; argumentação: 3-26; peroração: 27-29.
300
CÍCERO. Catilinária, II, 1: Tandem aliquando, Quirites, L. Catilinam furentem audacia,
scelus anhelantem, pestem patriae nefarie molientem, vobis atque huic urbi ferro flammaque
minitantem ex urbe vel eiecimus vel emisimus vel ipsum egredientem verbis prosecuti sumus.
Abiit, excessit, evasit, erupit. Nulla iam pernicies a monstro illo atque prodigio moenibus ipsis
intra moenia comparabitur. Atque hunc quidem unum huius belli domestici ducem sine
controversia vicimus.
126

Ademais, observamos algo já visto no primeiro capítulo da tese: uma vez que cada homem
é responsável por suas ações, também pode ser responsabilizado pela ruína, pernicies, da
República, e pela guerra civil. Da mesma forma que as ações de Catilina tentaram causar
a ruína, as de Cícero e dos senadores foram para salvá-la. Na argumentação, Cícero
justifica sua conduta ao deixar Catilina sair de Roma, ou seja, ir para o exílio, deixar de
ser um cidadão, pois pretendia descobrir o que tramava, e queria que ele levasse consigo
todos os que ameaçavam Roma. Defende-se da acusação de, como cônsul, ter expulsado
Catilina, argumentando que não o expulsou, mas apenas o aconselhou a sair de Roma.

Em outro momento, a expulsão de Catilina passa de um feito coletivo a uma ação


individual. Observamos que a ação particular de Cícero, nas Catilinárias, II, 11,
demonstra a preocupação dele com a coletividade:

(...) Se o meu consulado não tem a capacidade de saná-lo, mas


tenta ao menos suprimi-lo, terá alongado a vida da República, não
por um breve tempo, mas por séculos e séculos; de fato, nenhuma
nação lhe dá medo, nenhum povo arrisca a guerrear contra os
romanos; tudo, no exterior, está em paz – por terra e por mar –,
graças ao valor de um homem [Pompeu]. Uma guerra civil é o
que temos, é aqui dentro que encontramos as emboscadas, aqui
dentro se encontra o perigo, aqui dentro se encontra o inimigo.
Nossa luta é contra a luxúria, contra a loucura, contra o crime 301.

No momento de crise, a República poderia ser salva pela intervenção de um


homem. Quem seria esse governante? Pompeu mantinha a paz fora da urbe, Cícero
eliminaria um homem vicioso e evitaria a decadência. Essa ação seria suficiente para
manter a República, e Cícero acredita na estabilidade futura causada por seus atos. E
continua sua argumentação, traçando um perfil moral tanto de si quanto de Catilina.

301
CÍCERO. Catilinária, II, 11: (...)Quos si meus consulatus, quoniam sanare non potest,
sustulerit, non breve nescio quod tempus, sed multa saecula propagarit rei publicae. Nulla est
enim natio, quam pertimescamus, nullus rex, qui bellum populo Romano facere possit. Omnia
sunt externa unius virtute terra marique pacata; domesticum bellum manet, intus insidiae sunt,
intus inclusum periculum est, intus est hostis. Cum luxuria nobis, cum amentia, cum scelere
certandum est.
127

mas, ainda prescindindo daquilo que temos abundantemente e do


que a ele carece – o senado, os cavaleiros romanos, a urbe, o
tesouro, os tributos, toda a Itália, todas as províncias, as nações
estrangeiras –, ainda prescindindo disso, se compararmos as
causas enfrentadas, podemos compreender, sem dúvida, o quão
grande é seu abatimento. Porque desse lado luta o pudor, daquele
a petulância; desse, a pureza, daquele, o vício; desse, a lealdade,
daquele, a fraude; desse, a piedade, daquele, o crime; desse, a
firmeza, daquele, a loucura; desse, a honestidade, daquele, a
torpeza; desse, a moderação, daquele, a libertinagem; desse, a
equidade, a temperança, a fortitude, a prudência, todas as virtudes
lutam contra a iniquidade, a luxúria, a covardia, a temeridade e
contra todos os vícios; por último, a copiosidade conflita com a
pobreza, a boa razão, com o desvairio, a mente sã, com a loucura
e, enfim, a esperança bem fundada, com o total desespero. Em
uma luta deste tipo, até se houvesse menos esforço da parte dos
homens, os deuses imortais fariam com que tantos e tão grandes
vícios fossem vencidos pelas preclaríssimas virtudes. 302

Cícero opõe as virtudes do mos maiorum e as que julga possuir aos vícios de
Catilina: ele representa as virtudes da República, e o outro, os vícios. Há um conflito entre
a moralidade de Cícero e a de Catilina, e a forma como suas ações são regidas. Por fim,
declara que mesmo se eles não vencessem Catilina, os deuses não permitiriam seu triunfo.
Como vimos no primeiro capítulo, Cícero não é adepto das questões religiosas, e o recurso

302
CÍCERO. Catilinária, II, 25: Sed si omissis his rebus, quibus nos suppeditamur, eget ille,
senatu, equitibus Romanis, urbe, aerario, vectigalibus, cuncta Italia, provinciis omnibus, exteris
nationibus, si his rebus omissis causas ipsas, quae inter se confligunt, contendere velimus, ex eo
ipso, quam valde illi iaceant, intellegere possumus. Ex hac enim parte pudor pugnat, illinc
petulantia; hinc pudicitia, illinc stuprum; hinc fides, illinc fraudatio; hinc pietas, illinc scelus;
hinc constantia, illinc furor; hinc honestas, illinc turpitudo; hinc continentia, illinc lubido;
denique aequitas, temperantia, fortitudo, prudentia, virtutes omnes certant cum iniquitate,
luxuria, ignavia, temeritate, cum vitiis omnibus; postremo copia cum egestate, bona ratio cum
perdita, mens sana cum amentia, bona denique spes cum omnium rerum desperatione confligit.
In eius modi certamine ac proelio nonne, si hominum studia deficiant, di ipsi inmortales cogant
ab his praeclarissimis virtutibus tot et tanta vitia superari?
128

aos deuses imortais é muito mais um recurso retórico que capta a benevolência do público
do que algo em que ele acredita.

Na peroração, Cícero demonstra que as instituições republicanas estão atentas e


que não há perigo para a pátria e seus concidadãos.

De agora em diante, já não posso me esquecer que essa é minha


pátria, que sou o cônsul dos presentes e que devo ou viver com
eles, ou morrer por eles. Não há nenhum guarda nas portas,
ninguém obstrui o caminho; se alguém quiser sair, posso simular
que não vi; mas aquele que perturbar a urbe, e eu o pegar seja
executando ou preparando algo contra a pátria, sentirá que nessa
urbe há cônsules vigilantes, magistrados egrégios, um senado
forte, armas e um cárcere pronto, por vontade de nossos maiores,
para o castigo dos crimes de impiedade manifesta 303.

O maior crime que um cidadão pode cometer é contra a pátria. E esta é uma
advertência aos conjurados, pois as instituições romanas estão sólidas e são enérgicas.
Observamos que Cícero não se referiu à instituição republicana do tribunado da plebe, o
que demonstra o forte caráter aristocrático que atribui a sua concepção de república.

Na Terceira Catilinária304, Cícero inicia o exórdio no gênero epidítico fazendo um


auto-elogio. Afirma que a cidade foi salva, e o povo deve agradecer a ele e aos deuses
imortais.

E se para nós não é menos feliz e radiante o dia em que se salva a


vida do que aquele em que nascemos – porque a alegria de nos
vermos salvos é certa, as condições em que nascemos são
incertas, e nascemos sem ter senso disso, mas nos salvamos
sentindo prazer –, é óbvio que sim, amparados na nossa própria

303
CÍCERO. Catilinária, II, 27: Quod reliquum est, iam non possum oblivisci meam hanc esse
patriam, me horum esse consulem, mihi aut cum his vivendum aut pro his esse moriendum. Nullus
est portis custos, nullus insidiator viae; si qui exire volunt, conivere possum; qui vero se in urbe
commoverit, cuius ego non modo factum, sed inceptum ullum conatumve contra patriam
deprehendero, sentiet in hac urbe esse consules vigilantis, esse egregios magistratus, esse fortem
senatum, esse arma, esse carcerem, quem vindicem nefariorum ac manifestorum scelerum
maiores nostri esse voluerunt.
304
Exórdio: 1-2; narração e confirmação: 3-26; peroração: 27-29.
129

benevolência e no que dizia, elevamos ao patamar dos deuses


imortais o fundador dessa urbe; vós e vossos descendentes
deveriam honrar a memória de quem salvou, uma vez fundada e
engrandecida essa mesma urbe. Pois fomos nós que apagamos as
chamas que circundavam toda a urbe, os templos, os santuários,
os edifícios e as muralhas; nós fizemos cair as espadas que se
desembainharam contra a República e tiramos suas pontas de
vossas gargantas.305

Cícero se compara ao fundador da urbe, compara a salvação ao nascimento e


argumenta que o seu ato foi semelhante ao ato de fundação da cidade, ou seja, salvar é
tão importante quanto fundar, ou até mais importante, pois no momento da salvação já
possui senso, e quando se nasce, não. Com a República salva e a conjuração destruída, o
povo deve agradecer aos deuses, a Júpiter. Cícero se contenta com que se recordem dele
na posteridade. Com isso, observamos que realizar um feito para que seja rememorado
no futuro é um aspecto histórico do elogio. A recompensa é a imortalidade do nome na
história, ou seja, a constante lembrança, no futuro, de sua importância no passado. Ele
entra para as narrativas históricas de Roma, torna-se um personagem histórico.

Nessa Catilinária, primeiramente, o autor argumenta que Lêntulo havia


assegurado ao povo que era o terceiro Cornélio, segundo os livros sibilinos, que Cina e
Sila o tinham precedido e que “o décimo ano depois da abolição das vestais e o vigésimo
desde o incêndio do Capitólio era um ano fatal, no qual se verificaria a destruição da urbe
e do império”306. Por outro lado, no parágrafo 18 e seguintes, Cícero argumenta que tudo
pareceu um desígnio dos deuses. Retoma-se, aqui, uma questão: o que ele narra é uma
fábula, uma narrativa ou uma trama? Vejamos como ele descreve:

305
CÍCERO. Catilinária, III, 2: Et si non minus nobis iucundi atque inlustres sunt ei dies, quibus
conservamur, quam illi, quibus nascimur, quod salutis certa laetitia est, nascendi incerta
condicio, et quod sine sensu nascimur, cum voluptate servamur, profecto, quoniam illum, qui
hanc urbem condidit, ad deos immortales benivolentia famaque sustulimus, esse apud vos
posterosque vestros in honore debebit is, qui eandem hanc urbem conditam amplificatamque
servavit. Nam toti urbi, templis, delubris, tectis ac moenibus subiectos prope iam ignis
circumdatosque restinximus, idemque gladios in rem publicam destrictos rettudimus
mucronesque eorum a iugulis vestris deiecimus.
306
CÍCERO. Catilinária, III, 9: (...) Eundemque dixisse fatalem hunc annum esse ad interitum
huius urbis atque imperii, qui esset annus decimus post virginum absolutionem, post Capitoli
autem incensionem vicesimus.
130

Mas todas essas coisas, Quirites, administrei de tal forma que


pareceram realizadas e previstas pelo conselho e desígnio dos
deuses imortais. E a esta conclusão podemos chegar não apenas
por uma conjectura – já que apenas parece possível aos homens o
discernimento e o governo nessas cirscuntâncias –, senão também
porque nos auxiliaram, nesses tempos, com uma assistência tal
que parece que podemos vê-los com nossos olhos 307.

O uso do verbo parecer, uidere, nos indica a forma como devemos interpretar o
texto: não como algo que foi, mas que pareceu obra dos deuses, ou seja, foi uma obra
humana. E para tentar convencer de que foi obra humana, Cícero continua sua narrativa,
oscilando entre a importância dos deuses e das ações humanas:

Porque, seguramente, recordais que, nos tempos dos cônsules


Cota e Torquato, diversos objetos no Capitólio foram atingidos
por um raio e, nesse momento, as imagens dos deuses foram
removidas de seus lugares, as tábuas de bronze das leis fundidas
e até os fundadores da urbe foram atingidos, como Rômulo, que
se erguia no Capitólio, feito em ouro, como uma criança lactante
mamando nos úberes de uma loba – como lembrais. Naquele
tempo, recorrendo aos arúspices de toda a Etruria, estes
vaticinaram que estavam para acontecer mortes, incêndios, ruína
das leis, uma guerra civil entre os concidadãos, assim como o fim
total da cidade e de seu império, a não ser que todos os deuses
imortais, aplacados de alguma forma, curvassem com sua
intervenção o destino 308.

307
CÍCERO. Catilinária, III, 18: Quamquam haec omnia, Quirites, ita sunt a me administrata, ut
deorum immortalium nutu atque consilio et gesta et provisa esse videantur. Idque cum coniectura
consequi possumus, quod vix videtur humani consilii tantarum rerum gubernatio esse potuisse,
tum vero ita praesentes his temporibus opem et auxilium nobis tulerunt, ut eos paene oculis videre
possemus.
308
CÍCERO. Catilinária, III, 19: Nam profecto memoria tenetis Cotta et Torquato consulibus
complures in Capitolio res de caelo esse percussas, cum et simulacra deorum depulsa sunt et
statuae veterum hominum deiectae et legum aera liquefacta et tactus etiam ille, qui hanc urbem
condidit, Romulus, quem inauratum in Capitolio parvum atque lactantem uberibus lupinis
inhiantem fuisse meministis. Quo quidem tempore cum haruspices ex tota Etruria convenissent,
caedes atque incendia et legum interitum et bellum civile ac domesticum et totius urbis atque
131

Quando terminamos a leitura desse parágrafo, ficamos com a impressão de que o


destino de Roma está nas mãos dos deuses. No parágrafo seguinte, Cícero continua
descrevendo as ordens dos arúspices: que se construísse uma estátua de Júpiter de grandes
proporções e que fosse colocada no alto, voltada para o oriente, ao contrário de sua
posição anterior. Argumenta que, quando os conjurados e seus delatores eram conduzidos
através do fórum em direção ao templo da Concórdia, levavam a estátua com a face para
o senado. E continua afirmando:

Se eu disser que fui eu que lhes fiz frente, seria pretensão


excessiva de minha parte que não deveria ser tolerada; foi Júpiter
quem os enfrentou; foi ele que quis salvar o Capitólio, esses
templos, toda a urbe e a todos vós. Conduzido pelos deuses
imortais, fui eu com essa mente e vontade, Quirites, que descobri
essas provas tão convincentes. 309

E argumenta: “vencestes vestidos de toga tendo um togado como chefe e


comandante”310. Com isso, observamos que foi ele que venceu, e não Júpiter, como
afirmara anteriormente, nem nenhum general, o que quer dizer que não foi preciso fazer
guerra. Trata-se de uma narrativa ao mesmo tempo com elementos religiosos, podendo
quase se tornar uma fábula. Mas a história aconteceu, e o uso de Júpiter e dos deuses
imortais apenas parece ser um recurso retórico para captar a benevolência dos ouvintes.
Com o último trecho citado, também observamos a valorização da paz, pois Cícero agiu

imperii occasum appropinquare dixerunt, nisi di immortales omni ratione placati suo numine
prope fata ipsa flexissent.
309
CÍCERO. Catilinárias, III, 22: (...) Quibus ego si me restitisse dicam, nimium mihi sumam et
non sim ferendus; ille, ille Iuppiter restitit; ille Capitolium, ille haec templa, ille cunctam urbem,
ille vos omnes salvos esse voluit. Dis ego immortalibus ducibus hanc mentem, Quirites,
voluntatemque suscepi atque ad haec tanta indicia perveni. Iam vero [illa Allobrogum sollicitatio,
iam] ab Lentulo ceterisque domesticis hostibus tam dementer tantae res creditae et ignotis et
barbaris commissaeque litterae numquam essent profecto, nisi ab dis immortalibus huic tantae
audaciae consilium esset ereptum. Quid vero? ut homines Galli ex civitate male pacata, quae
gens una restat quae bellum populo Romano facere et posse et non nolle videatur, spem imperii
ac rerum maximarum ultro sibi a patriciis hominibus oblatam neglegerent vestramque salutem
suis opibus anteponerent, id non divinitus esse factum putatis, praesertim qui nos non pugnando,
sed tacendo superare potuerint?
310
CÍCERO. Catilinárias, III, 23: togati me uno togato duce et imperatore vicistis.
132

pelo discurso, ou seja, sem derramar sangue, sem pegar em armas. Por fim, fala como
quer ser lembrado:

(...) Quero que todos os meus triunfos, meus títulos honoríficos,


os monumentos de minha glória, as insígnias de louvor que me
enaltecem sejam guardadas em vossas almas. (...) A vossa
memória, Quirites, manterá os meus feitos, os vossos discursos os
enaltecerão, os monumentos literários perpetuarão a memória 311.

Ou seja, ele quer permanecer vivo na memória dos romanos e que, por seus feitos,
se torne matéria das narrativas históricas. Essa obra, redigida três anos depois do fato, já
é um monumento, um testemunho de seus feitos.

Ao final, na peroração, reafirma que sua obra é fruto seu e não do destino: “tratarei
de sempre ser lembrado pelos meus feitos e cuidarei para que seja mostrado como
resultado da virtude dos feitos e não do acaso” 312. Cícero demonstra que a fortuna –
acaso, destino – ou os deuses não tiveram importância na sua glória, mas ele conseguiu
salvar a República pelo seu esforço. Pelo percurso observado na obra, ao final ele retira
qualquer importância seja do destino, seja da religião romana, seja da ação coletiva. O
que possui importância é a sua ação e a memória de seu nome. Coloca sua obra como um
testemunho de seus feitos, que os manterá vivos. E para não parecer cético quanto à
religião romana e às ações dos senadores, termina o discurso da seguinte forma:

Vós, Quirites, uma vez que já é noite, venerais a Júpiter –


guardião vosso e da urbe – e voltais a vossas casas; e, ainda que
o perigo já esteja conjurado, defendei-as com sentinelas e turno
de guardas, como fizestes na noite anterior. Eu cuidarei, Quirites,
de que não tenhais de fazê-lo dioturnamente e de que possais
viver em paz perpétua.313

311
CÍCERO. Catilinárias, III, 26: In animis ego vestris omnes triumphos meos, omnia ornamenta
honoris, monumenta gloriae, laudis insignia condi et collocari volo. (...) Memoria vestra,
Quirites, nostrae res alentur, sermonibus crescent, litterarum monumentis inveterascent et
corroborabuntur
312
CÍCERO. Catilinárias, III, 29: Denique ita me in re publica tractabo, ut meminerim semper,
quae gesserim, curemque, ut ea virtute, non casu gesta esse videantur (...).
313
CÍCERO. Catilinárias, III, 29: (...) Vos, Quirites, quoniam iam est nox, venerati Iovem illum,
custodem huius urbis ac vestrum, in vestra tecta discedite et ea, quamquam iam est periculum
133

Na Quarta Catilinária314, predomina o discurso no gênero judiciário. Cícero


argumenta no exórdio que cabe a ele expor o mal e aos ouvintes julgarem os conjurados.
Esse discurso, que segundo Lintott 315 foi o mais elaborado e editado de todos, representa
um relato, relatio, do consulado, como o próprio autor romano afirma na Epístola a Ático,
XII, 21, 1, de março de 45 a.C.: “(...) mas por que segui a sentença de Catão? Porque ele
tinha exposto a situação mais amplamente e mais eficazmente que os outros. Depois,
louva-me porque denunciei a conjuração, não porque a descobri, não pela minha
exortação ao senado, nem mesmo por ter dado o meu juízo antes de colher os votos” 316.
Ele busca consultar o senado e a sua aprovação:

Por isso, pais conscritos, apoiai a salvação da República; vede em


torno de vós todas as tempestades que nos ameaçam, se não
estiverdes alertas. Não há tanto perigo e não está sobreposto à
severidade do vosso juízo Tibério Graco, que se submeteu a uma
situação extrema por querer ser eleito pela segunda vez tribuno
da plebe, nem Caio Graco, porque tentou levantar os partidários
da lei agrária, nem Lúcio Saturnino por ter matado a Caio Memio;
temos aqui os que ficaram para incendiar a urbe, para matar a
todos vós, para preparar o retorno de Catilina a Roma; temos suas
cartas, seu selos, sua letra e, enfim, a confissão de cada um deles;
conspirarão com os alóbroges, incitarão os escravos e
reconduzirão Catilina; esta é a decisão tomada, de modo que, se
formos todos aniquilados, ninguém possa lamentar a desaparição
do nome do povo romano e a queda de tão vasto império317.

depulsum, tamen aeque ac priore nocte custodiis vigiliisque defendite. Id ne vobis diutius
faciendum sit, atque ut in perpetua pace esse possitis, providebo, Quirites.
314
Exórdio: 1-6; narração: 7-22; peroração: 23-24.
315
LINTOTT. Cicero as Evidence. p. 17.
316
CÍCERO. Ad. Att. XII, 21, 1: (...) cur ego in sententiam Catonis? quia verbis luculentioribus
et pluribus rem eandem comprehenderat. me autem hic laudat quod rettulerim, non quod
patefecerim, quod <cohortatus> sim, quod denique ante quam consulerem ipse iudicaverim.
317
CÍCERO. Catilinárias, IV, 4: Quare, patres conscripti, incumbite ad salutem rei publicae,
circumspicite omnes procellas, quae inpendent, nisi providetis. Non Ti. Gracchus, quod iterum
tribunus plebis fieri voluit, non C. Gracchus, quod agrarios concitare conatus est, non L.
Saturninus, quod C. Memmium occidit, in discrimen aliquod atque in vestrae severitatis iudicium
adducitur. Tenentur ii, qui ad urbis incendium, ad vestram omnium caedem, ad Catilinam
accipiendum Romae restiterunt, tenentur litterae, signa, manus, denique unius cuiusque
134

Cícero demonstra que quem deve ser temido não são homens que já fizeram suas
ações contra a República – e a exemplaridade volta a ser usada –, mas os que estão por
fazer essas novas ações, ou seja, os aliados de Catilina que ficaram em Roma e querem o
seu retorno. Já vimos que Cícero redige os discursos três anos depois do fato, então ele
sabia o que havia acontecido, mas mantém a verossimilhança por meio da ideia de futuro.

Se o senado e todos os concidadãos 318 estão de acordo com a defesa da República,


se o governo tomou as medidas necessárias para isto, então, Cícero discute se a Lei
Semprônia, a qual proíbe condenar um cidadão romano, teria validade para quem foi
inimigo da pátria. Sobre essa questão, fica subentendida a resposta. Catilina merece ser
julgado sem ser considerado um cidadão romano. Cícero elabora seu ethos de cônsul,
como podemos ler, tendo em vista a ação contra Catilina:

Tendes um chefe que se lembra de vós e se esquece dele mesmo;


e isso não acontece sempre; tendes unidas todas as ordens, todos
os homens, todo o conjunto do povo romano, algo que vemos hoje
pela primeira vez em uma causa civil. Pensai que, em uma noite
quase, se foi capaz de destruir um império fundado com trabalho,
com a liberdade assentada sobre a virtude e com a prosperidade
crescida e aumentada graças à boa ação dos deuses. (...) E sabeis
que não falo assim para estimulá-los, vós que quase superastes
meu esforço, mas para que se visse que minha voz de cônsul, que
deve ser a primeira a ser escutada na república, cumpriu seu
dever319.

confessio; sollicitantur Allobroges, servitia excitantur, Catilina accersitur; id est initum


consilium, ut interfectis omnibus nemo ne ad deplorandum quidem populi Romani nomen atque
ad lamentandam tanti imperii calamitatem relinquatur.
318
CÍCERO. Catilinárias, IV, 18.
319
CÍCERO. Catilinárias, IV, 19: Habetis ducem memorem vestri, oblitum sui, quae non semper
facultas datur; habetis omnis ordines, omnis homines, universum populum Romanum, id quod in
civili causa hodierno die primum videmus, unum atque idem sentientem. Cogitate, quantis
laboribus fundatum imperium, quanta virtute stabilitam libertatem, quanta deorum benignitate
auctas exaggeratasque fortunas una nox paene delerit. (...) Atque haec, non ut vos, qui mihi studio
paene praecurritis, excitarem, locutus sum, sed ut mea vox, quae debet esse in re publica
princeps, officio functa consulari videretur.
135

E após enaltecer seus feitos, Cícero enaltece os feitos de grandes homens do


passado, quase, por assim dizer, comparando-se e igualando-se a eles, demonstrando que
tornam-se modelos de imitação e compõem as histórias:

Enalteci ao célebre Cipião, cujo discernimento e virtude


obrigaram Aníbal a voltar à África e abandonar a Itália; um
exímio louvor ao segundo Africano, que destruiu as cidades de
Cartago e Numância, as duas maiores inimigas deste império;
tenha por homem o ilustre Paulo, cujo carro de triunfo se viu
honrado por levar o rei Perseu, em outro tempo poderosíssimo e
nobilíssimo; glória eterna a Mário, que liberou a Itália, por duas
vezes, das invasões e do medo da escravidão; anteponha Pompeu
antes de todos eles, cujos feitos e virtudes se estendem até as
regiões e aos confins e limites do curso do sol; entre as honras de
todos eles, sem dúvida, haverá um lugar para a minha, a não ser
que se considere um afazer mais árduo conquistar novas
províncias para nossa expansão do que cuidar, para os que estão
ausentes, para que tenham um lugar para onde voltar depois das
vitórias 320.

Por fim, Cícero pede ao povo romano que, como retribuição, faça perdurar sua
memória. Nas Catilinárias, observamos que a República oscila entre a constante ameaça
e a possibilidade de declínio, de um lado, e a atitude de defesa e a salvação da pátria por
Cícero, de outro.

320
CÍCERO. Catilinárias, IV, 21: Sit Scipio clarus ille, cuius consilio atque virtute Hannibal in
Africam redire atque [ex] Italia decedere coactus est, ornetur alter eximia laude Africanus, qui
duas urbes huic imperio infestissimas, Carthaginem Numantiamque, delevit, habeatur vir
egregius Paulus ille, cuius currum rex potentissimus quondam et nobilissimus Perses honestavit,
sit aeterna gloria Marius, qui bis Italiam obsidione et metu servitutis liberavit, anteponatur
omnibus Pompeius, cuius res gestae atque virtutes isdem quibus solis cursus regionibus ac
terminis continentur; erit profecto inter horum laudes aliquid loci nostrae gloriae, nisi forte
maius est patefacere nobis provincias, quo exire possimus, quam curare, ut etiam illi, qui absunt,
habeant, quo victores revertantur.
136

III.III. PHILIPPICAE

As Filípicas foram catorze discursos endereçados a Antônio, escritos entre 44 e 43


a.C., e possuem esse nome porque seguem o modelo de Demóstenes, que pronunciou
inúmeros discursos contra Filipe da Macedônia. De acordo com Wooten, a situação de
Cícero em 43 a.C. era similar a de Demóstenes na metade do quarto século, e ele leu a
obra de Demóstenes dois ou três anos antes do seu conflito com Antônio 321. Tanto
Demóstenes quanto Cícero viveram momentos de fortes mudanças políticas, um na
Grécia, o outro em Roma, e participaram da cena política; um não evitou o
estabelecimento das monarquias helenísticas, e o outro, do principado de Augusto. A
morte de Demóstenes marca o final da pólis independente, e a de Cícero, o fim do governo
republicano em Roma322.

Cícero julgava que Antônio seria um novo Catilina e queria o governo de um só.
Os argumentos históricos utilizados recuperam o passado próximo, envolvendo as ações
de Verres, Catilina e César. Temos particular interesse na primeira e na segunda Filípica,
a segunda conhecida como a “divina Filípica”. Nelas observamos como Cícero examina
as ações de Antônio tanto para acusá-lo quanto para vituperá-lo; com isso, notamos que
o autor analisa a singularidade das ações de cada homem também nos discursos. A
particularidade da ação, que nos é dada pelas pequenas narrativas, nos faz pensar e
analisar as ações desse homem isoladamente e lhe atribuir responsabilidade por aquilo
que ele faz e interfere na república.

Nas duas Filípicas, observamos a composição de um éthos tanto do orador, Cícero,


quanto de Antônio; um prefigura a recuperação dos valores republicanos, enquanto o
outro, os vícios humanos. Ademais, ao elaborar o éthos do orador ele demonstra o que se
é esperado da classe senatorial, dos optimates, para reforçar a sua importância para a
República.

Cícero pronunciou a Primeira Filípica em 2 de setembro de 44 a.C., no senado,


endereçando-a aos senadores, mas especificamente, a Antônio. É nítido que ele tenta, por
meio de muitos vitupérios, de alguns elogios e de alguns conselhos, não apenas trazer
Antônio para o caminho de glória de seu avô, mas também mobilizar os ânimos de todos

321
WOOTEN, Cecil W. Cicero´s Philippics and their Demosthenic model. p.X.
322
WOOTEN, Cecil W. Cicero´s Philippics and their Demosthenic model. p. 3.
137

os opositores para a recuperação da República e manifestar-se contra a atribuição de


honras divinas a um homem morto, César.

Querer conduzir Antônio para que este resgatasse a antiga glória e fidelidade ao
senado que tinha seu avô é a questão central que conduz a argumentação. Dessa maneira,
notamos como o passado é usado para mobilizar os ânimos dos senadores e do próprio
Antônio. Mesmo se servindo de uma argumentação baseada no tempo passado para
convencer Antônio e motivá-lo a ser como seu avô, não se trata, por conta disso, do gênero
judiciário, mas ora do epidítico, ora do deliberativo, pois encontramos elogios, vitupérios
e aconselhamentos. Não temos uma pureza dos gêneros do discurso, mas uma
coexistência e relação entre eles.

O éthos ciceroniano começa a ser delineado quando, no segundo parágrafo, ele


inicia a narrativa dos motivos que o levaram a deixar Roma e os que fizeram com que ele
voltasse, narrando também o percurso feito. Ele se autoriza a elaborar um discurso que
denomina testem, ou seja, um testemunho da sua eterna devoção à República 323. Nesse
sentido, reconhece que sua obra ficaria para a posteridade, como lemos:

(...) Então, acelerei [a viagem] para dar o meu apoio àqueles que
os presentes não apoiavam; não que eu pudesse fazer algo – pois
eu nem esperava isso, nem poderia fazê-lo –, mas, se pode
acontecer com a humanidade o que aconteceu a mim (que parece
impedir mesmo além do curso da natureza e do destino), então eu
poderia deixar minha voz, nesse dia, como testemunha de minha
eterna boa vontade para com a república 324.

Aqui Cícero expõe a capacidade da ação humana para impedir ou mudar o curso do
destino, pois, como vimos, atribui à ação a capacidade de construir uma história.
Ademais, ao afirmar que seu discurso é um testemunho, o trata como uma prova histórica
do seu posicionamento. Em outro momento desse discurso, afirma: “(...) Mas a glória é
constituída pelo elogio das ações honestas e dos grandes serviços prestados à República,

323
CÍCERO. Philippica, I, 10.
324
CÍCERO. Philippica, I , 10: (...) Hunc igitur ut sequerer, properavi, quem praesentes non sunt
secuti, non ut proficerem aliquid (nec enim sperabam id nec praestare poteram), sed ut, si quid
mihi humanitus accidisset (multa autem impendere videntur praeter naturam etiam praeterque
fatum), huius tamen diei vocem testem rei publicae relinquerem meae perpetuae erga se
voluntatis.
138

que é confirmada pelo testemunho não apenas dos ótimos concidadãos, mas também da
multidão”325. Assim, observamos que a glória de um cidadão existe enquanto houver
história para comprová-la.

Cícero defende, por meio de exemplos, que muitas das ações de César se tratavam
de leis elaboradas por ele. A forma com que se refere a César é ambígua: ora ele é elogiado
por suas leis, ora vituperado por ele mesmo não considerá-las um ato e pela sua ditadura;
sobre suas leis, lemos:

E que coisa mais se poderia chamar com tanta propriedade de


ação do que um togado, na República, investido tanto da
potestade militar quanto da civil, por meio de uma lei? Se
perguntar das ações dos Gracos, as leis Semprônias serão trazidas,
se perguntar das de Silla, as leis Cornélias. E o terceiro consulado
de Pompeu, é constituído por quais atos? Com certeza pelas suas
leis. E se perguntasses a César quais eram seus atos na urbe e
como magistrado, responderia citando as muitas e ilustres leis;
mas, nos seus apontamentos pessoais, na verdade, ou mudou ou
não as entregou, ou se as produziu não as reconheceu entre seus
atos; mas apenas concedo esses pontos, que em alguns até fui
conivente; mas em respeito às coisas mais importantes, isto é,
suas leis, julgo ser intolerável que as ações de César devam ser
anuladas 326.

Além de considerar a preservação das leis, cita exemplos de leis romanas


importantes e que merecem ser lembradas e preservadas. Mas, diante das atitudes de

325
CÍCERO. Philippica, I, 29: (...) Est autem gloria laus recte factorum magnorumque in rem
publicam meritorum, quae cum optimi cuiusque, tum etiam multitudinis testimonio comprobatur.
326
CÍCERO. Philippica, I, 18: Ecquid est, quod tam proprie dici possit actum eius, qui togatus in
re publica cum potestate imperioque versatus sit, quam lex? Quaere acta Gracchi; leges
Semproniae proferentur. Quaere Sullae; Corneliae. Quid? Pompei tertius consulatus in quibus
actis constitit? Nempe in legibus. De Caesare ipso si quaereres, quidnam egisset in urbe et in
toga, leges multas responderet se et praeclaras tulisse, chirographa vero aut mutaret aut non
daret, aut, si dedisset, non istas res in actis suis duceret. Sed haec ipsa concedo; quibusdam etiam
in rebus coniveo; in maximis vero rebus, id est in legibus, acta Caesaris dissolvi ferendum non
puto.
139

Antônio, ele traz o passado para que, com sua capacidade prudencial, vislumbre um
futuro:

(...) Que povo? Aquele a quem foi impedido o acesso? A norma


de qual lei? Talvez daquela totalmente abolida pela força e pelas
armas? E falo do futuro, porque é tarefa dos amigos mostrar com
antecedência os males que podem ser evitados; se isso não
ocorrer, meu discurso será refutado. Falo apenas das leis
promulgadas, que cabe a vós preservar; mostro-lhes os vícios:
eliminai-os! Denuncio a violência armada: distanciai-a!327

Cícero não apenas escreve como um filosófo, orador e político que age na
república, mas que observa as ações as registra, e tem a capacidade de prever o futuro por
conhecer muito bem tanto os homens quanto suas ações. Ele tenta mostrar a Antônio,
nesse primeiro discurso, o que é a verdadeira glória, como conquistá-la e como perpetuá-
la. Com isso, retoma o argumento da obra De Officiis, em que afirma que é melhor ser
amado do que temido. As ações de Antônio não o conduzirão à verdadeira glória, pois
acumular riquezas e ser temido conduz ao ódio. Paul328 argumenta que “os mesmos
termos aplicados a Tarquínio, na Primeira Filípica, foram aqueles usados quando se
dirigiu a Antônio: nihil enim umquam in te sordidum, nihil humile cognoui 329”.

Primeiro, compara Antônio a Tarquinio, o Soberbo, um tirano, e em seguida, para


captar a benevolência de Antônio, Cícero rememora a figura de seu avô:

(...) Tomara, Marco Antônio, que tenhas recordado de teu avô! E


ouviste tantas coisas dele contadas por mim e tantas vezes! Pensas
o que ele desejaria mais: a glória imortal ou ser temido pela sua
habilidade de manter guarda armado? Eis a verdadeira vida para
ele, segundo sua fortuna: ser parecido aos outros quanto à
liberdade e o primeiro em dignidade. É por isso que, para omitir

327
CÍCERO. Philippica, I, 26: (...) Qui populus? isne, qui exclusus est? Quo iure? an eo, quod vi
et armis omne sublatum est? Atque dico de futuris, quod est amicorum ante dicere ea, quae vitari
possint; quae si facta non erunt, refelletur oratio mea. Loquor de legibus promulgatis, de quibus
est integrum vobis; demonstro vitia; tollite: denuntio vim, arma; removete.
328
PAUL, M. M. “La manipulation rhétorique de l’Histoire dans les Philippiques de Cicéron”. In:
Dialogues d'histoire ancienne. p.118.
329
CÍCERO. Philippica, I, 33: “Em ti não reconheci nada nem de sórdido, nem de vil.”
140

a prosperidade de teu avô, prefiro o último amarguíssimo dia da


sua vida, em que Lúcio Cina o matou de modo muito cruel330.

Cícero, na sequencia, exorta Antônio a olhar para seus antepassados e,


consequentemente, a imitá-los e permitir que os concidadãos se alegrem com ele pelas
suas ações na República, pois “sem isso não é absolutamente possível, para qualquer
homem, ser ou feliz, ou preclaro, ou estar em segurança” 331. O autor atrela três ideias
temporais: o olhar para as ações do passado, o agir no presente imitando-as para que se
tenha futuro glorioso.

Ao, final, na peroração, o autor demonstra seu caráter e sua estreita relação e
preocupação com a República:

E então? Pelos deuses imortais, vós não interpretais o significado


disso? O quê? Pensa que eles não refletem sobre as ações de
vossas vidas, quando as vidas que eles esperam que servirão à
República são tão caras a eles? Pais conscritos, colhi os frutos do
meu retorno ao fazer esse discurso, então, o que quer que possa
acontecer, com ele pode sobreviver alguma evidência da minha
constância, do meu testemunho, e nisso fui benigna e
diligentemente ouvido por vós. Essa oportunidade, se fosse dada
sem perigo a mim e a vós, eu usaria; se não fosse, procuraria, o
quanto pudesse, conservar-me não tanto por mim mesmo quanto
pela República. Para mim já vivi o suficiente, tanto pela minha
idade quanto pela glória; se adicionar qualquer coisa à minha
vida, não será adicionada tanto por mim, mas por vós e pela
República332.

330
CÍCERO. Philippica, I , 34: Utinam, M. Antoni, avum tuum meminisses! de quo tamen audisti
multa ex me, eaque saepissime. Putasne illum immortalitatem mereri voluisse, ut propter
armorum habendorum licentiam metueretur? Illa erat vita, illa secunda fortuna, libertate esse
parem ceteris, principem dignitate. Itaque, ut omittam res avi tui prosperas, acerbissimum eius
supremum diem malim quam L. Cinnae dominatum, a quo ille crudelissime est interfectus.
331
CÍCERO. Philippica, I, 35: (...) sine quo nec beatus nec clarus nec tutus quisquam esse omnino
potest.
332
CÍCERO. Philippica, I, 38: Quid igitur? hoc vos, per deos immortales! quale sit, non
interpretamini? Quid? eos de vestra vita cogitare non censetis, quibus eorum, quos sperant rei
publicae consulturos, vita tam cara sit? Cepi fructum, patres conscripti, reversionis meae,
quoniam et ea dixi, ut, quicumque casus consecutus esset, exstaret constantiae meae testimonium,
et sum a vobis benigne ac diligenter auditus. Quae potestas si mihi saepius sine meo vestroque
141

O autor, ao final, em um tom de falsa modéstia, argumenta que, se realizar alguma


outra ação, e esse discurso contra Antônio é uma dessas ações, não o faz por ele, mas pela
República. Ele considera que já agiu o suficiente e já deixou testemunhos suficientes, e
esse discurso é um deles.

Wooten aponta que, em 19 de setembro de 44 a.C., Antônio responde com um


discurso abusivo e furioso, atacando toda a vida de Cícero e sua carreira. Então Cícero
responde com a Segunda Filípica, na qual efetivamente remove a possibilidade de
reconciliação e polariza o conflito333 com Antônio.

A Segunda Filípica, com um tom mais violento do que a primeira, é escrita em


outubro, mas não é pronunciada; Cícero apenas a publica em novembro, quando já tinha
pronunciado a terceira e a quarta Filípicas. O autor se defende das acusações feitas por
Antônio, após a Primeira Filípica, e mostra como foi útil para a República o afastamento
de Verres, Catilina, Pisão e Clódio. Ademais, sugere o retrato que Demóstenes fez de
Ésquines, no discurso Sobre a Coroa, no qual Demóstenes acusa Ésquines de se deixar
corromper por Filipe da Macedônia.

Observam-se dois movimentos principais nesse discurso: o primeiro, quando


Cícero se defende das acusações de Antônio, e o segundo, quando acusa Antônio,
denunciando tanto sua vida privada quanto a pública, e o vitupera. Dessa forma,
predomina o gênero do discurso judiciário, mas também há traços do gênero epidítico
por conta dos vitupérios. A temporalidade do discurso é predominantemente o passado.
E desde o exórdio, há uma exortação aos senadores para que recorram à sua memória,
como podemos observar: “Pais conscritos, a quem meu destino deveria atribuir o fato de
que nesses últimos vinte anos não houve inimigo da república que não tenha
simultaneamente declarado guerra a mim? E não tenho necessidade de dizer nenhum
nome, pois vós recordais”334. Dessa maneira, ao longo de todo o discurso, Cícero recupera
os exemplos históricos para mostrar, de um lado, as suas virtudes e, de outro, os vícios de

periculo fiet, utar; si minus, quantum potero, non tam mihi me quam rei publicae reservabo. Mihi
fere satis est, quod vixi, vel ad aetatem vel ad gloriam; huc si quid accesserit, non tam mihi quam
vobis reique publicae accesserit.
333
WOOTEN, Cecil W. Cicero´s Philippics and their Demosthenic model. p. 14.
334
CÍCERO. Philippica, II, 1: Quonam meo fato, patres conscripti, fieri dicam, ut nemo his annis
viginti rei publicae fuerit hostis, qui non bellum eodem tempore mihi quoque indixerit? Nec vero
necesse est quemquam a me nominari; vobiscum ipsi recordamini.
142

seus inimigos e de Antônio – que são também os inimigos da República. Antônio não é
tratado e reconhecido como um cônsul por Cícero, como lemos:

Pais conscritos, devo dizer algo a meu favor e muito contra Marco
Antônio; quanto a mim, peço a vós sua consideração, pois falo
para o meu próprio bem; quanto ao outro, eu mesmo tomarei o
cuidado de que, enquanto falo contra ele, me ouçais atentamente.
Ao mesmo tempo, faço essa solicitação: se reconhecerdes minha
moderação em toda a minha vida e, em particular, em todo o meu
discurso, não penseis que hoje responderei a ele como me
provocou; e que disso eu não me esqueça. Não o tratarei como um
cônsul, uma vez que ele não me tratou como um consular. E ele
não é de forma alguma um cônsul, seja no que diz respeito à sua
vida, seja na gestão da república, seja pela sua nomeação; eu, sem
qualquer controvérsia, sou um consular 335.

Antônio não foi eleito cônsul336; na verdade, quem foi eleito foi César, mas ele
assumiu o poder. Então, apenas por isso ele não poderia criticar Cícero, que foi eleito de
modo legítimo, em 63 a.C. Ademais, o autor defende que, em seu consulado, as decisões
eram fundamentadas nas votações das assembleias do senado e não segundo o seu próprio
desejo. Cícero, no discurso, mostrará os vícios de Antônio em sua vida privada, na gestão
da república e na forma de sua nomeação.

De modo diverso à forma como Antônio gere a República, o consulado de Cícero


agradou a muitos, e sua autoridade sempre estará presente entre os romanos, como
Servílio, Cátulo, Luculo, Crasso, Hortênsio, Curião, Pisão, Glabrione, Lépido, Volcácio,
Fígulo, Sila, Murena, Catão e Pompeu. E o autor questiona: “Mas por que menciono
singulares? Se foi todo o senado que agradei, e não houve um senador que não expressou
sua gratidão a mim como a um pai, que não declarasse que devia a sua vida a mim, a sua

335
CÍCERO. Philippica, II, 10: (...) [V] Sed cum mihi, patres conscripti, et pro me aliquid et in
M. Antonium multa dicenda sint, alterum peto a vobis, ut me pro me dicentem benigne, alterum
ipse efficiam, ut, contra illum cum dicam, attente audiatis. Simul illud oro: si meam cum in omni
vita, tum in dicendo moderationem modestiamque cognostis, ne me hodie, cum isti, ut provocavit,
respondero, oblitum esse putetis mei. Non tractabo ut consulem; ne ille quidem me ut consularem.
Etsi ille nullo modo consul, vel quod ita vivit vel quod ita rem publicam gerit vel quod ita factus
est; ego sine ulla controversia consularis.
336
Cf. CÍCERO. Philippica, II, 79.
143

fortuna, seus filhos e a República”337. Nessa citação, ao usar a palavra singulos, refere-se
a homens específicos, que representam a instituição do senado. Menciona-os
nominalmente, pois cada um realizou ações importantes para a República, e no tempo de
Antônio ela estava privada deles. O sábio consular Cota, ainda vivo, fez com que
aprovassem uma cerimônia de agradecimento pelos feitos de Cícero, a primeira concedida
a um togado desde a fundação da urbe 338. O autor valoriza ações singulares, mas que em
sua totalidade foram feitas para o proveito de toda a República, e não segundo os
interesses próprios, como as ações de Antônio.

Cícero se defende da acusação de Antônio, que afirmava que ele havia causado a
quebra da amizade entre César e Pompeu 339, e subentende-se com isso a responsabilidade
da guerra civil que derivou desse rompimento, com o seguinte argumento:

Ocorreram dois momentos nos quais dei conselhos a Pompeu


contra César – e gostaria que me refutasse, se conseguires; a
primeira vez o aconselhei a não prorrogar a César o seu comando
quinquenal; a segunda, a não consentir a votação da lei que
permitia a César apresentar-se como candidato, mesmo se fora
[de Roma]. Se eu o tivesse convencido sobre esses dois pontos,
não teríamos caído na atual miséria. E ainda, quando Pompeu
estava abandonado nas mãos de César, todo o recurso, seja o seu,
seja aquele do povo romano, começou muito tarde a ser
percebido, a partir do momento que eu havia previsto muito antes.
Então vendo nossa pátria cair em uma guerra desastrosa, não parei
de aconselhar pela paz, a concórdia, a conciliação. (...) e se meu
ponto de vista tivesse sido valorizado, a república estaria em pé,
enquanto tu estarias flagelado, consumido pela tua infâmia 340.

337
CÍCERO. Philippica, II , 12: (...) Sed quid singulos commemoro? Frequentissimo senatui sic
placuit ut esset nemo qui mihi non ut parenti gratias ageret, qui mihi non vitam suam, fortunas,
liberos, rem publicam referret acceptam.
338
Cf. CÍCERO. Philippica, II, 13.
339
Cf. CÍCERO. Philippica, II, 23.
340
CÍCERO. Philippica, II, 24: Duo tamen tempora inciderunt, quibus aliquid contra Caesarem
Pompeio suaserim. Ea velim reprehendas, si potes, unum, ne quinquennii imperium Caesari
prorogaret, alterum, ne pateretur ferri, ut absentis eius ratio haberetur. Quorum si utrumvis
persuasissem, in has miserias numquam incidissemus. Atque idem ego, cum iam opes omnis et
suas et populi Romani Pompeius ad Caesarem detulisset seroque ea sentire coepisset, quae multo
ante provideram, inferrique patriae bellum viderem nefarium, pacis, concordiae, compositionis
auctor esse non destiti, meaque illa vox est nota multis: 'Utinam, Pompei, cum Caesare societatem
144

Nesse parágrafo, Cícero interpreta o momento presente da República e atribui a


responsabilidade pela sua ruína a Antônio. Ao mesmo tempo, mostra o que poderia ter
sido diferente se ele tivesse sido ouvido. Como podemos observar aqui, nas Catilinárias
e nos diálogos filosóficos, o momento presente sempre é o da decadência, miséria, ruína.
Esse argumento é reiterado inúmeras vezes nesse discurso, que culmina atribuindo a
responsabilidade da ruína a Antônio.

A vida de Antônio é narrada como uma história de sucessivas ações viciosas. A


partir do parágrafo 44 até o 47, Cícero analisa as condutas de Antônio e aponta todos os
seus erros, como a falência quando pleiteava a toga pretexta, os escândalos e as dívidas,
como se sua vida fosse constituída por uma sucessão de erros. Por fim, aponta:

(...) Escuta, agora, te peço, esse registro não da impureza e


intemperança que desonrou a ti mesmo e tua própria família, mas
da desonestidade e dos crimes contra nós e nossas fortunas, que
são contra todo o corpo da República; pois com seu péssimo
comportamento, encontrarás a primeira origem de todos os nossos
males. (...) Contra ti, Marco Antônio, o senado – quando ainda
estava incólume e não tinha perdido suas luzes – aprovou o
decreto que é normalmente feito contra um inimigo civil, segundo
o costume dos nossos antepassados 341.

Reiteradas vezes é atribuída a Antônio a responsabilidade pelo declínio da


República, como verificamos a seguir:

Como a semente constitui a causa das árvores e das plantas,


assim, dessa guerra desastrosa a semente foste tu. Podes chorar o
fim de três exércitos romanos: foi Antônio que os exterminou.

aut numquam coisses aut numquam diremisses! Fuit alterum gravitatis, alterum prudentiae tuae.
' Haec mea, M. Antoni, semper et de Pompeio et de re publica consilia fuerunt. Quae si valuissent,
res publica staret, tu tuis flagitiis, egestate, infamia concidisses.
341
CÍCERO. Philippica, II, 50: (...) Accipite nunc, quaeso, non ea, quae ipse in se atque in
domesticum dedecus impure et intemperanter, sed quae is nos fortunasque nostras, id est in
universam rem publicam, impie ac nefarie fecerit. Ab huius enim scelere omnium malorum
principium natum reperietis. (...) In te, M. Antoni, id decrevit senatus, et quidem incolumis
nondum tot luminibus extinctis, quod in hostem togatum decerni est solitum more maiorum.
145

Podes sentir a falta dos mais ilustres concidadãos: também esses


Antônio destruiu. A autoridade dessa nossa assembleia foi
abatida: Antônio a abateu. Concluindo, todos os desastres que
vimos seguidamente – mas qual desastre não vimos? –, um reto
raciocínio o fará atribuir a Antônio. Como Helena foi para os
troianos, assim aconteceu para a nossa República, a causa da
guerra, a causa da destruição e da ruína. Pelo que diz respeito ao
resto do seu tribunado, esse foi conforme o princípio: realizou
tudo o que o senado havia feito, quando a República ainda era sã
e salva, de modo que não se pode verificar [suas ações] 342.

Cícero procura fundamentar, exemplificando com o comportamento e as ações de


Antônio, a ruína da República, responsabilizando-o, ou seja, a causa de todo o mal que
assola a república são as ações de Antônio. Como exemplo, argumenta que Antônio
ofereceu a César o pretexto para fazer guerra contra a pátria e promoveu a destruição das
instituições da República343. O autor, de modo enfático, repreende Antônio ao afirmar
que jamais serão esquecidas, pelas gerações futuras, as suas arbitrariedades, como
expulsar os consulares de Roma, juntamente com Pompeu, assim como pretores, tribunos,
grande parte do senado, a juventude, ou seja, “em uma palavra: a República foi expulsa e
exterminada da sua própria sede” 344. A instituição República é composta por homens e,
sem esses, ela não existe mais. A enumeração dos exemplos das ações de Antônio é longa,
pois Cícero relata todos os seus péssimos hábitos, como se fosse um relatório de erros.
Um exemplo emblemático em que o autor narra os abusos de Antônio e o compara ao
mesmo tempo com outros homens que causaram mal à república merece ser notado:

Além disso, fez constar no calendário, na data da Lupercália essa


anotação: “O cônsul Marco Antônio, pela vontade do povo

342
CÍCERO. Philippica, II, 55: Ut igitur in seminibus est causa arborum et stirpium, sic huius
luctuosissimi belli semen tu fuisti. Doletis tris exercitus populi Romani interfectos; interfecit
Antonius. Desideratis clarissimos civis; eos quoque vobis eripuit Antonius. Auctoritas huius
ordinis adflicta est; adflixit Antonius. Omnia denique, quae postea vidimus (quid autem mali non
vidimus?), si recte ratiocinabimur, uni accepta referemus Antonio. Ut Helena Troianis, sic iste
huic rei publicae [belli] causa pestis atque exitii fuit. Reliquae partes tribunatus principii similes.
Omnia perfecit quae senatus salva re publica ne fieri possent providerat.
343
Cf. CÍCERO. Philippica, II, 53.
344
CÍCERO. Philippica, II, 54: unoque verbo rem publicam expulsam atque exterminatam suis
sedibus!
146

romano, ofereceu o trono ao ditador vitalício Caio César, que o


recusou”. Não há nenhum espanto que tu perturbes a paz pública
e que odeies não apenas a urbe, mas também a luz, transcorrendo
a tua vida, não apenas de dia, mas até o retorno do dia com
perdidíssimos ladrões. De fato, onde podes estar em paz? Qual
refúgio poderias encontrar nas leis e nos tribunais que tu, de tua
parte, procuraste abater, substituindo-os com dominação régia? A
expulsão de Lúcio Tarquinio e a execução capital de Espúrio
Cassio, Espúrio Mélio e Marco Mânlio talvez, distante tanto
séculos de um Marco Antônio, permitiriam a restauração de um
rei em Roma [o que não é permitido]?345

Com esse argumento e essa exemplificação, notamos como é importante os homens


terem a história presente em sua memória para que não ocorram novamente os mesmos
abusos do passado, e não apenas não retorne a monarquia como também a tirania. A urbe
já havia passado por sucessivos momentos de dominação tirânica, com Sula, em 82 a.c, e
César, em 49 a.C., dois ditadores 346, que não respeitaram os princípios desta instituição
romana. E nesse parágrafo, Antônio é tratado como um monarca. Pelo exemplo histórico,
Cícero recusa uma questão política fundamental aos romanos, a saber: a extinção da
monarquia.

A partir do parágrado 111, a temporalidade do discurso muda, o discurso voltado


para as ações passadas de Antônio347 olha para o presente e para o futuro, ou seja, para o
que pode ser feito a partir daquele momento. Surge, então, no discurso um tom um pouco
esperançoso, e Cícero passa a exortar o que há de bom em Roma, como lemos:

Ao povo romano não falta a quem confiar o governo da república:


em qualquer ângulo da terra eles se encontram, é tanto cuidado

345
CÍCERO. Philippica, II, 87: At etiam adscribi iussit in fastis ad Lupercalia C. Caesari dictatori
perpetuo M. Antonium consulem populi iussu regnum detulisse; Caesarem uti noluisse. Iam iam
minime miror te otium perturbare, non modo urbem odisse, sed etiam lucem, cum perditissimis
latronibus non solum de die, sed etiam in diem uibere. Ubi enim tu in pace consistes? qui locus
tibi in legibus et in iudiciis esse potest, quae tu, quantum in te fuit, dominatu regio sustulisti?
Ideone L. Tarquinius exactus, Sp. Cassius, Sp. Maelius, M. Manlius necati, ut multis post saeculis
a M. Antonio [quod fas non est] rex Romae constitueretur?
346
Cf. CÍCERO. Philippica, II, 108.
347
CÍCERO. Philippica, II, 111: “mas o passado, deixemo-lo de lado”.
147

com a república ou, melhor dizendo, lá é a própria república, que


até hoje é apenas reclamado, mas ainda não foi restaurado.
Certamente, mas essa dispõe de jovens nobilíssimos prontos para
defendê-la; deixe-os ficarem afastados do seu ócio como
quiserem, ainda serão chamados pela república. A palavra paz
tem um som doce, e a paz é por si salutar, mas entre a paz e a
servidão há uma distância abissal. A paz é a liberdade na
tranquilidade, a servidão é o pior de todos os males, para ser
repelida não apenas pela guerra como também pela morte 348.

Muitos em Roma combateram contra a servidão, como Bruto, que combateu


contra Tarquinio, e, após citar esse exemplo, Cícero argumenta:

Um fato que não apenas por si mesmo é preclaro e divino, então


deve ser um modelo de imitação, tanto mais do que a glória
conquistada, que é evidente que apenas o céu pode contê-la. E
enquanto a consciência do belíssimo fato constitui por si mesmo
um fruto, um mortal não deve desprezar a imortalidade, segundo
a minha modesta opinião349.

Cícero exalta a imortalidade, a busca da glória eterna, que é a verdadeira


recompensa, ao mesmo tempo que valoriza a exemplaridade do fato, ou seja, da ação.
Isso é introduzido, pois o autor cita a única ação exemplar de Antônio, a saber: a abolição
da ditadura350. Antônio deve se lembrar daquele dia para saber separar o lucro da
verdadeira honra.

348
CÍCERO. Philippica, II, 113: Habet populus Romanus, ad quos gubernacula rei publicae
deferat; qui ubicumque terrarum sunt, ibi omne est rei publicae praesidium vel potius ipsa res
publica, quae se adhuc tantum modo ulta est, nondum reciperavit. Habet quidem certe res publica
adulescentis nobilissimos paratos defensores. Quam volent illi cedant otio consulentes, tamen a
re publica revocabuntur. Et nomen pacis dulce est et ipsa res salutaris, sed inter pacem et
servitutem plurimum interest. Pax est tranquilla libertas, servitus postremum malorum omnium
non modo bello, sed morte etiam repellendum.
349
CÍCERO. Philippica, II, 114: (...) Quod cum ipsum factum per se praeclarum est atque
divinum, tum eitum ad imitandum est, praesertim cum illi eam gloriam consecuti sint, quae vix
caelo capi posse videatur. Etsi enim satis in ipsa conscientia pulcherrimi facti fructus erat, tamen
mortali immortalitatem non arbitror esse contemnendam.
350
Cf. CÍCERO. Philippica, II, 115.
148

Na peroração, Cícero retoma suas ações gloriosas para dizer que não se abaterá
com as ações de Antônio, pois ele lutou contra as armas de Catilina. Agora, já velho,
declara que deveria desejar a morte pelas glórias que já possui e por tudo que realizou,
mas tem dois desejos: “o primeiro, mesmo morrendo, é deixar o povo romano livre – a
dádiva maior que os deuses poderiam me dar –, o segundo, é que cada um receba de
acordo com as benemerências feitas para a república”351.

351
CÍCERO. Philippica, II, 119: Duo modo haec opto, unum ut moriens populum Romanum
liberum relinquam (hoc mihi maius ad dis immortalibus dari nihil potest), alterum, ut ita cuique
eveniat, ut de re publica quisque mereatur.
149

IV. O CURSO DA HISTÓRIA: NEM CÍRCULO, NEM LINHA

Occiderat Tatius, populisque aequata duobus, Morto Tácio, tu, Rômulo, governas os dois povos
Romule, iura dabas: posita cum casside Mavors com as mesmas leis, até quando Marte,
talibus adfatur divumque hominumque parentem: recolocando seu elmo, volta-se com estas
'tempus adest, genitor, quoniam fundamine magno palavras ao pai dos deuses e dos homens:
res Romana valet nec praeside pendet ab uno, “Pai, já é tempo – uma vez que a grandeza dos
praemia, (sunt promissa mihi dignoque nepoti) romanos se apoia sobre um fundamento sólido e
solvere et ablatum terris inponere caelo. não depende de um único – de premiar e cumprir
a promessa feita a mim e a teu digno neto: de
salvá-lo da terra e leva-lo ao céu.”

(Ovídio, Metamorfoses, XIV, 805-811)

Muitos comentadores consideram que Cícero jamais escreveu narrativas históricas;


outros consideram que a obra De Re Publica, que interpretamos aqui como filosófica e
histórica, não é uma coisa nem outra. Schofield aponta que Moses Finley diz o seguinte
em Politics in the Ancient World sobre De Re Publica: “Como Mommsen, considero a
ideia central da República tanto não filosófica quanto não histórica (...)”352. Por outro
lado, Rambaud353 e Fox354 consideram que De Re Publica é uma obra filosófica e
histórica355. E Brutus, apesar de ser um diálogo, é considerado pelo próprio Cícero uma
narrativa histórica356.

Neste capítulo, analisaremos textos dialógicos em que predominam as narrativas


históricas para demonstrar que a matéria narrada é política e moral e que, da análise dos
fatos, o autor depreende argumentos filosóficos. Este capítulo será dividido de acordo
com as duas obras que serão estudadas: De Re Publica, II e Brutus. Por serem diálogos
filosóficos, teríamos um impedimento para interpretá-las como narrativas históricas, mas,
do ponto de vista do que é narrado, da temporalidade e da matéria, é indubitável que se
tratam de narrativas históricas. Em De Re Publica, analisaremos os conceitos de fábula e
história, de história cíclica e de progresso – mas não como entendido na modernidade;
observamos a construção de uma narrativa de um grande período histórico em que não há

352
SCHOFIELD, M. Cicero´s Definition of Res Publica.
353
RAMBAUD. Cicerón et l´histoire Romaine.
354
FOX. Cicero´s Philosophy of Hisrtory.
355
CÍCERO. De Re Publica, II, 33 (...) quando fala sobre Anco Márcio: “– Também esse rei deve
ser louvado. Mas é obscura a narrativa histórica romana, pois, embora conheçamos [o nome] da
mãe desse rei, desconhecemos [o de] seu pai.” Esse é o único momento da obra em que Cícero
usa a palavra historia, dentre os trechos que chegaram até nós.
356
CÍCERO. Brutus, 292.
150

uma concepção nem circular nem linear do tempo. Brutus é, ao mesmo tempo, um diálogo
filosófico, um relato histórico, uma laudatio funebris e uma biografia; o passado recente
predomina, ao mesmo tempo que predomina uma ideia de decadência.

A narrativa histórica tem duas marcas principais: a temporalidade 357 e a matéria;


trata da ação de homens, ações políticas feitas tanto na cidade quanto na guerra (raramente
retratada na obra ciceroniana) e dos feitos morais realizados em prol da pátria. O que está
em questão é o espaço público, sua manutenção, o diálogo inerente à vida republicana, as
ações de muitos homens de muitas gerações, a formação de homens educados nos
costumes e nas artes e a realização da natureza humana na vida política.

Segundo os antigos, a filosofia teria a sua origem na admiração


(thaumazein) dos homens perante os mistérios do mundo.
Considerada sob este ângulo, a história, não no sentido de res
gestae, mas de história rerum gestarum constitui certamente uma
fonte fecunda do pensamento filosófico e – apesar do que
pretendem os historiadores de orientação positivista – associa-se
estreitamente com a filosofia358.

Ainda segundo Schaff:

É admissível distinguir dois significados para a palavra história:


como processo histórico objetivo (res gestae) e como descrição
desse processo, ou seja, a historiografia (historia rerum
gestarum)359.

A história, como descrição de um processo, como narrativa, ensina o que os


homens têm feito, o que um povo tem feito e, consequentemente, o que os homens são e

357
“A matéria fundamental da história é o tempo; portanto, não é de hoje que a cronologia
desempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar da história. O instrumento
principal da cronologia é o calendário, que vai muito além do âmbito do histórico, sendo antes de
mais nada o quadro temporal do funcionamento da sociedade. O calendário revela o esforço
realizado pelas sociedades humanas para domesticar o tempo natural (...). Ele manifesta o esforço
das sociedades humanas para transformar o tempo cíclico da natureza e dos mitos, do eterno
retorno, num tempo linear escandido por grupos de anos: lustro, olimpíadas, séculos, eras etc.”
LE GOFF. História e Memória. p. 14.
358
SCHAFF, A. História e Verdade. p. 65.
359
SCHAFF, A. História e Verdade. pp. 133-134.
151

o que o povo é. As narrativas históricas enaltecem e valorizam a ação humana, as


atividades humanas, como a política. E ainda há uma necessidade de ordenar o fluxo dos
acontecimentos, por isso, as duas narrativas históricas analisadas aqui despertam nosso
interesse, pois, por meio delas, conseguimos perceber como Cícero entendia o curso dos
acontecimentos em Roma. Observamos que, ao contrário do que pensa a tradição, não
nos parece que Cícero entenda que o percurso dos acontecimentos seja circular.
Perceberemos ideias de avanço e decadência, e a segunda está ligada ao declínio da
República, ao fim do espaço público e ao momento presente do autor.

O tempo tem seu ponto no presente da palavra do historiador. Ou seja, o discurso


histórico está sempre no tempo presente. E o tempo mais almejado é o presente de homens
bem formados que agem retamente, pautados pelas ações dos homens do passado.
Importa-nos a utilidade do argumento do passado, sua capacidade de instruir e, se
necessário, comover. O avanço político ocorreu no tempo passado. Ele está posto em uma
época áurea da República, e que Cícero tenta resgatar.

Dizer que a concepção do tempo na obra ciceroniana oscila entre uma visão circular
e uma linear, ou que não é apenas uma ou outra, nos conduz a um problema aparentemente
maior, pois não podemos afirmar que a tradição grega, indo-europeia, percebe o tempo
como um círculo, e a tradição judaica como linear. Momigliano afirma que se alguém
quiser entender algo sobre a real diferença entre historiadores gregos e bíblicos, a primeira
precaução é tomar cuidado com a concepção circular de tempo 360. Seguindo Momigliano
e o que ele argumenta sobre os filósofos e historiadores gregos, podemos também afirmar
sobre Cícero, primeiramente, considera-se que: “até os filósofos gregos não são unânimes
sobre isso [concepção circular do tempo]” 361. Ademais, ele assevera:

Os filósofos gregos não são forçados pela raça ou pela língua a


terem apenas uma visão de tempo. Nem mesmo os historiadores
Heródoto, Tucídides e, claro, Políbio foram muitas vezes
descritos como historiadores que tiveram uma visão circular do
tempo. Eu devo tentar mostrar que não362.

360
MOMIGLIANO. “Time in Ancient Historiography”. p.10.
361
MOMIGLIANO. “Time in Ancient Historiography”. p.10.
362
MOMIGLIANO. “Time in Ancient Historiography”. pp.10-11.
152

E nós, nesse capítulo, mostramos que Cícero também não tinha uma visão circular
do tempo e dos acontecimentos.

IV.I. A EXPOSIÇÃO DAS COISAS REQUER UMA ORDEM TEMPORAL

Cícero preceituou sobre a narrativa histórica em Ad Familiares, V, 12, 7, De


Oratore e De Legibus. Rambaud363 assevera que Cícero propõe um método para a escrita
da história, uma vez que um discurso historiográfico pressupõe uma investigação
norteada por regras. Mas, ainda assim, a historiografia seria um discurso derivado do
discurso forense, a figura do orador-advogado-historiador será também revestida com a
toga do juiz, uma vez que, ao narrar os fatos ocorridos no passado, pronunciará uma
opinião valorativa sobre eles. E, apesar de termos distinções entre a narrativa histórica e
o recurso à história em um discurso, muitas das regras serão as mesmas do ponto de vista
do julgamento. Em De Oratore, II, 15, 62, Cícero afirma a principal regra da história:
Mas volto ao início. Vedes como é uma tarefa trabalhosa até para
o orador a escrita da história? Mesmo sabendo [escrever] com
orações fluidas e máxima variedade. Porém não considero que a
história deva ser tratada separadamente na preceituação retórica,
pois suas regras estão sob os olhos de todos. Quem não sabe que
a primeira regra da história é não dizer nada de falso? Então, ter
coragem de dizer apenas a verdade? De não levantar suspeita
[sobre algo] ao escrever? Esses são os fundamentos [da história]
conhecidos por todos 364.

Quem escreve a narrativa histórica, ou seja, o orador, deve estar preocupado com o
critério de verdade. Este argumento também foi retomado em De Legibus, I, II, 5. Nesse

363
RAMBAUD, M. Cicéron et l´histoire romaine. Paris, Les Belles Lettres, 1953.
364
CÍCERO. Sed illuc redeo: videtisne, quantum munus sit oratoris historia? Haud scio an
flumine orationis et varietate maximum; neque eam reperio usquam separatim instructam
rhetorum praeceptis; sita sunt enim ante oculos. Nam quis nescit primam esse historiae legem,
ne quid falsi dicere audeat? Deinde ne quid veri non audeat? Ne quae suspicio gratiae sit in
scribendo? Ne quae simultatis?
153

excerto, Cícero analisa, por meio do critério de verdade, a separação feita por Aristóteles
das diferenças entre história e poesia e enfatiza que o discurso histórico deve estar
comprometido com a verdade, ou seja, deve descrever o que realmente aconteceu. Além
disso, a história se torna útil ao ensinar por intermédio de um discurso persuasivo e
sempre verdadeiro. O critério para a escrita da história é a verdade, e este é um problema
filosófico. O que é a verdade para Cícero? Seria uma proposição verdadeira sobre algo
que aconteceu e, consequentemente, um juízo verdadeiro.
Nos tempos de Cícero, a narrativa histórica ainda fazia falta na literatura romana 365.
Corrobora com esse argumento a passagem da obra De Oratore, II, XIII, 15, em que o
autor afirma que os latinos se dedicavam à eloquência nos discursos judiciários e à
política, enquanto os gregos à redação da história. Parece que a concepção de uma
historiografia romana é uma preocupação ciceroniana.
Devemos notar que a preceituação da narrativa histórica feita por Cícero tem duas
abordagens, que podem variar de acordo com a finalidade da obra. Uma é a preceituação
da narrativa histórica feita, principalmente, em De Oratore e que o autor seguiu para
escrever o livro II da obra De Re Publica. Essa ficou cristalizada para os autores que o
sucederam e para a fortuna da historiografia. Outra preceituação foi a que ele recomendou
a Luceio, na epístola, para que escrevesse uma história de seu consulado que o
glorificasse. A narrativa pode oferecer um aconselhamento, um julgamento, um elogio ou
um vitupério, e formar um juízo valorativo; a narrativa histórica tem uma função
persuasiva, uma utilidade exemplar, que apenas cumpre seu papel se seu discurso
convencer, for útil, verdadeiro e deleitar.
Em De Oratore, ao mesmo tempo que o autor recupera as ideias de dois grandes
oradores, Crasso e Antônio, ele pretende se distanciar dos manuais de retórica dos gregos.
Além disso, Cícero formula sua figura de orador ideal pautando-se na formação e nas
diversas áreas que este deveria dominar e atuar, além da retórica, a saber: o direito, a
filosofia, a história e a política; isto é, o summus orator366 é o ideal ciceroniano de orador,
historiador, advogado, de homem político e sábio. Em De Oratore, II, 35-41, Cícero
expõe a capacidade e as tarefas do orador. Ele deve aconselhar, incitar os inertes e
moderar os desenfreados, usar a eloquência para culpar ou para salvar inocentes, levar às

365
Cf. CÍCERO. Exórdio da obra De Legibus.
366
Cícero concentra na figura do orador tudo o que considera importante: ser sábio, conhecer os
costumes, os feitos dos antepassados e ser capaz de narrá-los e participar da vida política; ele une
uita e sapientia.
154

virtudes, destruir os vícios, tecer elogio aos honestos, reprimir com vigor as paixões e
consolar docemente. E continua em II, 36: “Qual outra voz, senão aquela do orador, pode
levar à imortalidade a história, testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória,
mestra da vida, manifestação do passado?” 367 É a uox oratoris a mais indicada para a sua
escrita, pela capacidade de escolher as palavras e se expressar com variedade, clareza e
simplicidade. Cícero, nesta passagem não diz apenas o que é tarefa do orador, mas
também o que é a história, ou seja, uma manifestação do passado verdadeira, que dá vida
à memória e testemunha o tempo passado e as ações que nele aconteceram. Por ser uma
manifestação verdadeira, ela necessariamente rompe com a narrativa mítica. Ao dar vida
à memória, traz ao presente as ações que aconteceram no passado, e por ser mestra da
vida, ela nos fornece paradigmas de ação, ou seja, aprendemos quais as melhores ações,
quais os melhores caminhos que devem ser seguidos. Por sua natureza verdadeira, nunca
deve contar nada de falso, pois o que é falso não será instrutivo. A função pedagógica da
história, como mestra da vida, pode ser estendida à toda obra ciceroniana. O orador-
historiador será como uma testemunha que viu o feito ou aquele que ouviu o feito de fonte
fidedigna e o escreverá.
Se o principal critério da história é a verdade, então razão, história e verdade estão
intrincadas, compondo o pensamento ciceroniano. A ausência da relação histórica
compromete o uso da razão, assim como a ausência da razão comprometeria a relação
histórica, o que não é possível conceber no pensamento ciceroniano, dada a historicidade
natural do homem. É como se a história fosse indispensável para construir a ação do
homem e o conhecimento. O fato histórico em si não tem importância se o historiador
não o recuperar em sua obra. Ou seja, é a narrativa que impõe um significado duradouro
à ação.
Em De Oratore, II, 51-52 Cícero inicia uma narrativa sobre a história, remetendo
ao annales maximi e aos autores gregos que deveriam ser imitados e aos primeiros
historiadores latinos. Ao relembrar Catão, Pictor, Pisão e os Anais Máximos, Cícero trata
de fatos públicos. O interlocutor Antônio, pouco adiante, afirma que ninguém em Roma
estuda eloquência para se dedicar às narrativas históricas, mas aos processos judiciais; os
gregos, ao contrário, queriam se distanciar do judiciário e se dedicaram às outras
disciplinas, principalmente à escrita da história, como Heródoto e Tucídides, porém estes

367
CÍCERO. Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur?
155

não discutiam as causas. Cícero segue a exposição, enumerando Filisto de Siracusa,


Teopompo, Xenofonte, Calístenes e Timeu.
Muitos seguiram uma escrita semelhante, deixando, sem qualquer
ornamento, apenas os registros de tempos, homens, lugares e
feitos. Desse modo, tal como Ferécides, Helânico, Acusilau e
muitos outros entre os gregos, foram os nossos Catão, Píctor e
Pisão, que não dominaram as formas com as quais se orna o
discurso, pois essas acabam de ser importadas para cá – e basta
que se entenda o que dizem, pois julgam que a única virtude do
discurso é a brevidade368.

A escrita da história se, primeiramente, era apenas uma forma de registro, depois
passou a ser não apenas uma forma de documentar como também foi ornada; com isso,
ela se torna capaz de deleitar: “de fato, o próprio Heródoto, o primeiro a ornar este gênero,
não se ocupava de modo algum com as causas; mas sua eloquência era tanta, que a mim,
ao menos, no quanto sou capaz de compreender as obras escritas em grego, deleita
sobremaneira;”369. Colingwood aponta que, como pai da história, Heródoto se contrapôs
à tendência anti-histórica do pensamento grego, que argumentava que apenas o que é
imutável pode ser conhecido, demonstrando que o transitório pode ser conhecido370. E no
que consistiam esses conhecimentos? Exatamente dos mesmos temas registrados nos
anais, mas de forma ornada. Justamente por deleitar, o monumentum ganhou um aspecto
literário, e essa tradição seguiu.

56. E depois dele, Tucídides superou a todos com sua arte do


discurso, assim penso; de tal forma é denso pela frequência de
temas, quase faz o número de palavras alcançar o número de
ideias; então, é hábil e preciso com suas palavras; não se sabe se

368
CÍCERO. De Oratore, II, 53: Hanc similitudinem scribendi multi secuti sunt, qui sine ullis
ornamentis monumenta solum temporum, hominum, locorum gestarumque rerum reliquerunt;
itaque qualis apud Graecos Pherecydes, Hellanicus, Acusilas fuit aliique permulti, talis noster
Cato et Pictor et Piso, qui neque tenent, quibus rebus ornetur oratio - modo enim huc ista sunt
importata - et, dum intellegatur quid dicant, unam dicendi laudem putant esse brevitatem.
369
CÍCERO. De oratore, II, 55: namque et Herodotum illum, qui princeps genus hoc ornavit, in
causis nihil omnino versatum esse accepimus; atqui tanta est eloquentia, ut me quidem, quantum
ego Graece scripta intellegere possum, magno opere delectet;
370
Cf. COLLINGWOOD. A Ideia de História. p.51.
156

são os temas que são abrilhantados pelo discurso ou as palavras


pelas ideias; e soube que nem mesmo ele, apesar de versado na
república, estava no número dos que aceitavam com frequência
as causas; e dizem que teria escrito esses livros depois de afastado
da república, como era costume acontecer aos ótimos, em Atenas,
que eram condenados ao exílio371.

Collingwood aponta que Tucídides, influenciado pela medicina hipocrática e pela


psicologia patológica, foi o “pai da história psicológica” 372; isso quer dizer que ele não
estava apenas interessado nos acontecimentos políticos, mas nas consequências que as
guerras, as pestes, poderiam causar nos homens. De certa forma, ele singulariza ainda
mais os homens, por meio desse olhar médico-psicológico, e transmite lições implícitas,
com o brilhantismo nas palavras e nas ideias, do que os acontecimentos podem acarretar.
A influência do aspecto psicológico-moral da obra tucididiana, em Cícero, pode ser
observada tanto nos exemplos históricos dos diálogos filosóficos quanto nas narrativas
históricas, quando o autor demonstra as relações de causa e consequência, principalmente
ao se referir à queda da República, mostrando os vícios humanos que a conduziram à
decadência. O autor romano analisa a moralidade de quem governa e, consequentemente,
suas ações e a forma de governo serão um reflexo disso. A transitoriedade dada por
Heródoto à história ganha um aspecto imutável de verdade em Tucídides. Cícero é
influenciado por esses dois historiadores gregos. Observamos não apenas o registros de
tempos, homens, lugares e feitos como também das ações desses homens, a sua
moralidade e as suas consequências para a república.

Políbio, outra grande influência historiográfica de Cícero, escreve sua história de


um ponto que se encontra à distância de mais de 150 anos em relação ao momento em
que escreve. Collingwood aponta que:

371
CÍCERO. De Oratore, II, 56: [56] et post illum Thucydides omnis dicendi artificio mea
sententia facile vicit; qui ita creber est rerum frequentia, ut is verborum prope numerum
sententiarum numero consequatur, ita porro verbis est aptus et pressus, ut nescias, utrum res
oratione an verba sententiis inlustrentur: atqui ne hunc quidem, quamquam est in re publica
versatus, ex numero accepimus eorum, qui causas dictitarunt; et hos ipsos libros tum scripsisse
dicitur, cum a re publica remotus atque, id quod optimo cuique Athenis accidere solitum est, in
exsilium pulsus esset;
372
Cf. COLLINGWOOD. A Ideia de História. p.53.
157

sua aptidão para isto está ligada ao fato de ele trabalhar em Roma,
onde a consciência histórica era completamente diferente da que
existia na Grécia. Para os romanos, a história significa
continuidade: a herança do passado, de instituições
escrupulosamente preservadas na forma em que eram recebidas;
a conformação da vida, segundo o modelo do costume ancestral.
Os romanos, perfeitamente cônscios da sua continuidade em
relação ao passado, tinham o cuidado de preservar os
monumentos desse passado373.

Para o autor grego que escreveu sobre Roma, a história merece ser estudada por se
tratar de um campo de instrução para a vida política 374.

Cícero continua, nos parágrafos seguintes do De Oratore, destacando os


historiadores que seguiram Tucídides, demonstrando como muitos historiadores eram,
antes, estudiosos da filosofia, como Xenofonte, Calístenes e Timeu; estes não tinham
nenhuma experiência nas causas do fórum, mas sabiam ornar o discurso375. Da mesma
forma que Cícero se preocupa com o conhecimento da historiografia para a formação do
orador, ele também busca as melhores referências filosóficas, tendo em vista o espaço
dado à filosofia em Roma, por meio de uma perspectiva histórica, como lemos em De
Oratore, II, 154-155:

(...) De fato, no tempo em que uma parte da Itália era a famosa


Magna Grécia, ela estava repleta de pitagóricos; por isso, para
muitos, Numa Pompílio, nosso rei, havia sido um pitagórico, ele
que viveu muitos anos antes do próprio Pitágoras. Por isso
devemos considerá-lo um homem ainda mais importante, pois
conheceu aquela sabedoria para a constituição da ciuitas quase
dois séculos antes que os gregos percebessem que ela nascera; e
certamente esta ciuitas não gerou quaisquer homens mais ilustres
pela glória ou mais graves pela autoridade ou mais polidos pela
humanidade do que Públio Africano, Caio Lélio, Lúcio Fúrio, que

373
COLLINGWOOD. A Ideia de História. p.60.
374
COLLINGWOOD. A Ideia de História. p.62.
375
Cf. CÍCERO. De Oratore, II, 57-58.
158

sempre tiveram claramente ao seu lado os eruditíssimos homens


da Grécia376.

Compreendemos que, para Cícero, os romanos são superiores aos gregos no


governo da ciuitas, pois Numa Pompílio colaborou para a constituição de Roma dois
séculos antes dos conhecimentos pitagóricos; o conhecimento filosófico não foi
fundamental para conduzir Roma ao apogeu, mas os grandes homens romanos do período
republicano conheciam os filósofos gregos. A Grécia e o conhecimento proveniente dela
sempre são expostos como uma forma de mensurar a qualidade e a idade dos eventos em
Roma. Mas Cícero preocupa-se em destacar a superioridade dos romanos em relação aos
gregos no governo e na constituição da República. Com isso, o autor demonstra que a
fundação de Roma por Rômulo, que foi quem reinou antes de Numa Pompílio, foi anterior
ao florescimento da filosofia pitagórica; consequentemente, Roma, grandiosa desde sua
fundação, se tornou ainda maior sem a contribuição da filosofia. Porém, não era mais
possível dizer o mesmo no momento do ápice da República Romana, o tempo de Cipião,
Lélio e Fúrio.
Entre os parágrafos 62 e 64, Cícero retoma propriamente a preceituação da narrativa
histórica. Ao mesmo tempo que afirma a ausência de preceitos retóricos para a escrita da
história, começa a preceituar dizendo que ela não deve ser tratada separadamente da
retórica e que as suas regras estão sob os olhos de todos. Ou seja, não dizer nada de falso,
ter coragem de dizer a verdade e ser imparcial. Se a história está exposta a todos, então
todos, de certa forma, são juízes capazes de avaliar os fatos e tirar suas próprias
conclusões. Desse modo, o leitor julga os fatos, as ações que devem ser imitadas ou
evitadas, com a ajuda do historiador. Cícero nos explica que a narrativa histórica é
composta por fatos e por discursos, mas, ao compor suas narrativas, o autor se serve
pouco do recurso de narrar discursos. A relação entre o discernimento – plano ou
deliberação –, as ações e os resultados expressa a relação entre causa e consequência das
ações. Ou seja, em uma narrativa histórica é preciso que fiquem estabelecidos os motivos

376
CÍCERO. De Oratore, II, 154: nam et referta quondam Italia Pythagoreorum fuit tum, cum
erat in hac gente magna illa Graecia; ex quo etiam quidam Numam Pompilium, regem nostrum,
fuisse Pythagoreum ferunt, qui annis ante permultis fuit quam ipse Pythagoras; quo etiam maior
vir habendus est, quoniam illam sapientiam constituendae civitatis duobus prope saeculis ante
cognovit, quam eam Graeci natam esse senserunt; et certe non tulit ullos haec civitas aut gloria
clariores aut auctoritate graviores aut humanitate politiores P. Africano, C. Laelio, L. Furio, qui
secum eruditissimos homines ex Graecia palam semper habuerunt.
159

que geraram determinadas ações e quais foram as suas consequências. Deve-se fazer uma
biografia dos grandes homens e não apenas contar quais foram seus feitos e, com isso,
tornar visível que eles produzem grandes feitos por possuírem uma natureza grandiosa e
virtuosa. Por fim, as palavras devem ser precisas, pensadas e encadeadas em um texto
amplo. E afirma em De Oratore, II, 63-64:
A construção propriamente dita reside nos fatos e nas palavras. A
exposição dos fatos requer uma ordem temporal e uma descrição
das regiões. Por se tratar de grandes feitos dignos de memória,
exigem-se também, primeiramente, os discernimentos 377, depois
as ações e, por fim, os resultados; demanda-se a respeito dos
projetos que o escritor expresse o que aprova e se declare; sobre
os feitos, não apenas o que foi feito e dito, mas de que modo; e,
quando tratar do resultado, que todas as causas sejam explicadas,
sejam as fortuitas, as de sabedoria, ou as de temeridade; e dos
mesmos homens não se deve narrar apenas os feitos, mas também
a vida e a natureza daqueles que se destacam pela fama ou pelo
nome. Por fim, é necessário buscar uma razão das palavras e um
gênero de discurso amplo, solto e com uma fluidez que seja
uniforme com certa doçura, sem a aspereza dos discursos
judiciários e as farpas forenses 378.

Assim, na construção da narrativa histórica uma parte diz respeito à forma e outra,
ao conteúdo, que propicia conselhos políticos e morais, julgamentos e defesas, elogios ou
vitupérios. A narrativa é estabelecida por meio da relação de causa e consequência. A
narrativa histórica não tem um gênero do discurso específico, ora está mais próxima do
gênero judiciário, ora do deliberativo e ora do epidítico. Mas o discurso forense é o que
mais se serve da narrativa, principalmente porque o seu tempo é o passado. A narrativa

377
Consilio.
378
CÍCERO. Ipsa autem exaedificatio posita est in rebus et verbis: rerum ratio ordinem
temporum desiderat, regionum descriptionem; vult etiam, quoniam in rebus magnis memoriaque
dignis consilia primum, deinde acta, postea eventus exspectentur, et de consiliis significari quid
scriptor probet et in rebus gestis declarari non solum quid actum aut dictum sit, sed etiam quo
modo? et cum de eventu dicatur, ut causae explicentur omnes vel casus vel sapientiae vel
temeritatis hominumque ipsorum non solum res gestae, sed etiam, qui fama ac nomine excellant,
de cuiusque vita atque natura; [64] verborum autem ratio et genus orationis fusum atque tractum
et cum lenitate quadam aequabiliter profluens sine hac iudiciali asperitate et sine sententiarum
forensibus aculeis persequendum est.
160

histórica tem características do gênero epidítico ao louvar ou vituperar as ações dos


homens, ao mesmo tempo, depois de emitir um juízo valorativo sobre algo; ela também
pode aconselhar ou desaconselhar e, assim, opinar sobre as ações futuras, encontrando-se
no gênero deliberativo. Dessa forma, carrega em si sempre a função pedagógica e sempre
está próxima do judiciário por permitir que a ação narrada seja julgada. A história talvez
seja pouco preceituada, pois, por dar vida à memória e esta ser parte do dia a dia romano,
ela é natural, comum entre homens que baseiam suas ações nos mos maiorum, e por
permitir, mediante a interpretação do passado, a compreensão do presente e a percepção
do futuro.
Em De Diuinatione, Cícero afirma que as fábulas não trazem nem auctoritas nem
fides379. Temos bem marcada a oposição entre os historiadores e os poetas, a realidade e
a ficção. Uma tem como função ensinar e buscar a verdade, a outra, deleitar. Mas, de
alguma forma, isso se confunde na epístola a Luceio. Chiappetta, em seu artigo “‘Não
Diferem o Historiador e o Poeta...’ O Texto histórico como instrumento e Objeto de
Trabalho”, coloca a história como discurso que organiza os fatos históricos,
estabelecendo a relação de causa e consequência, e, uma vez que esta é bem estabelecida,
o texto garante sua verossimilhança. De acordo com a autora:
o critério definitivo da narrativa do historiador são,
aparentemente, os eventos e não a construção. No entanto a
narrativa tem uma maneira própria de se organizar, e esta é
comum à história e à ficção. Como construção acabada, a
narrativa sempre aponta para uma certa demonstração cujo
princípio formal é a consistência, trabalha a partir da articulação
das relações de causa e efeito380.

“Uma coisa é expor os fatos narrando, outra é argumentando, incriminar e absolver


de um crime; uma coisa é, ao narrar, entreter o auditório, outra, incitar” 381. Mas em que
medida essas práticas não se confundem, principalmente quando Cícero considera seus
discursos como testemunhos? A história, por assumir preceitos da retórica, possui ordem,
técnica, utilidade e quer agradar.

379
CÍCERO. De Diuinatione, II, 55, 113.
380
CHIAPPETTA. “ ‘Não Diferem o Historiador e o Poeta...’ O Texto histórico como instrumento
e Objeto de Trabalho”. In: Língua e Literatura. 1996, pp. 15-34. p. 15.
381
CÍCERO. Do melhor estilo de Oradores, V, 15; VI, 16
161

Diferentemente da preceituação clássica da narrativa histórica feita em De Oratore,


Cícero, na epístola Ad Familiares, V, 12, 7, instrui Luceio para que ele possa ser um
exornatorem rerum382 ao narrar a sua história – a história de seu consulado – e não apenas
um narratorem rerum383. O discurso ornado deve captar a benevolência do público e levá-
lo a compreender a glória do discurso, do homem de ação e da pátria, além de conferir
glória a quem o narrou. Por meio do paralelo entre os feitos de grandes homens narrados
e os grandes escritores que os narraram, Cícero expõe a Luceio o quão glorioso seria ter
a sua história narrada e como seria glorioso a Luceio narrá-la, pois sua figura é
reconhecida pelos maiores, e seus feitos e o motivo pelo qual os realizou são os mais
importantes da República. Ainda na epístola, o autor oferece mais exemplos de preceitos
retóricos para persuadir, contando uma história elogiosa. Chiappetta nos diz o seguinte
sobre essa epístola:
Cícero, portanto, propõe alguns procedimentos técnicos para a
escrita da história. No parágrafo 4, diz que, ao narrar, Luceio deve
usar a doxa de seus conhecimentos das mudanças civis, deve
explicar as coisas novas, indicar remédios para os males,
vituperar e elogiar, mostrando, em cada caso, seus motivos. Ou
seja, deve tornar seu discurso verossímil, urdido por relações de
causa e efeito, deve propor a fides que cai bem ao ethos da sua
autoridade384.

Assim, depois de reunirmos as principais passagens sobre a preceituação da


narrativa histórica ciceroniana, podemos concluir que sua escrita é própria do orador,
principalmente aquele que pode se dedicar a ela por mais tempo. Assim, tratamos a
Epistola a Luceio como uma preceituação pontual e apenas para a narrativa do consulado
de Cícero, mesmo porque verificaremos que, em De Re Publica, II e em Brutus, o autor
segue a preceituação feita em De Oratore.
A historia magistra uitae narrada por um orador-advogado-político-filósofo-sábio
deve ter por finalidade a formação de varões aptos a reger a república segundo um saber
de todas as coisas e costumes. E, no futuro, este varão será matéria de uma narrativa

382
Aquele que narra os feitos de modo ornado e belo.
383
Aquele que narra os feitos.
384
CHIAPPETTA. “ ‘Não Diferem o Historiador e o Poeta...’ O Texto histórico como instrumento
e Objeto de Trabalho”. In: Língua e Literatura. 1996. p.25
162

histórica. Assim, um dia ele é discípulo, no outro, um homem de ação, e na velhice, um


narrador que conta as ações de outros homens de ação ou as suas próprias.

IV.II. DE RE PUBLICA, II

Musti, ao introduzir a obra polibiana – obra historiográfica notadamente que mais


influenciou Cícero, principalmente em De Re Publica, II –, afirma que a reflexão
historiográfica de Políbio constitui um retorno, ainda que apenas em parte, a Tucídides 385,
para o qual o passado ensina a prever o futuro, pela imutabilidade da natureza humana.
Políbio também não está imune à influência da historiografia isocrática, com seu caráter
retórico e moralista, com o intuito de servir de parâmetro para a ação político-militar. E
ainda como Tucídides, Políbio considera a utilidade como fundamental para a ação
humana. Heródoto386 está preocupado com a história recente; Tucídides, com as
origens387. Além disso, devemos nos lembrar que a história polibiana é pragmática 388, ou
seja, trata de feitos político-militares em oposição à mítico-genealógica e àquela relativa
à fundação da cidade.

Se seguirmos o que Musti aponta sobre os autores que influenciaram Políbio e


sabendo que esse influenciou Cícero, podemos observar que Cícero adere à ideia de que,
por meio do conhecimento do passado, é possível prever o futuro (não por acreditar na
imutabilidade, mas pela exemplaridade), tanto do ponto de vista filosófico quanto

385
Momigliano argumenta sobre Tucídides e a história cíclica: “Prima facie pode ter mais sentido
atribuir uma visão cíclica da história a Tucídides, porque ele escreveu com o objetivo de ajudar
quem quer que deseje ter uma visão clara dos eventos que aconteceram e daqueles que, algum
dia, têm a probabilidade de acontecer novamente, da mesma forma ou de modo similar’ (I, 22).
Mas aqui, novamente, nenhum retorno eterno está implícito. Tucídides sugere vagamente que
haverá nos eventos futuros fatos idênticos ou similares aos que ele vai narrar. Ele não explica, no
entanto, se a identidade ou semelhança entre o presente e o futuro se destina a se estender a todo
o seu assunto – a Guerra do Peloponeso – ou, em parte, a isso, por exemplo, na maioria das vezes,
às alegações individuais”. MOMIGLIANO. “Time in Ancient Historiography”. pp.11-12.
386
Momigliano argumenta sobre Heródoto: “Os ciclos históricos no sentido exato do significado
são desconhecidos de Heródoto. Ele acredita que existem forças que operam na história que se
tornam visíveis apenas no final de uma longa cadeia de eventos. Essas forças geralmente estão
ligadas à intervenção dos deuses na vida humana. O homem deve contar com eles, embora não
seja certo se o homem pode realmente evitar o que é ordenado”. MOMIGLIANO. “Time in
Ancient Historiography”. p.11.
387
MUSTI. In: POLIBIO. Storie. A cura di Domenico Musti. Nota biografica di Domenico Musti.
Traduzione di Manuela Mari. Note di John Thornton. Volume primo (libri I-II). pp.19-20.
388
POLÍBIO. Storie, I, 2.
163

histórico; há um forte caráter retórico e moralista nas narrativas históricas, e a história,


por ser mestra da vida, fornece os paradigmas de imitação. O autor romano quase não
retrata feitos militares, batalhas, pois está mais preocupado com as questões políticas da
cidade, com a vida civil. A ação retratada na narrativa histórica deve ser sempre útil e o
critério de utilidade é filosófico-político: o que é útil a um deve ser útil a todos. Cícero se
serve do mito, apesar de não autorizá-lo como histórico e narra a fundação da cidade, mas
não atribui ao ato fundador toda a importância para a grandeza da ciuitas. Rawson afirma
que De Re Publica é um microcosmo de todos os interesses históricos de Cícero 389.
Podemos extrair do segundo livro, por meio da narrativa histórica, toda a teoria do
governo misto e a negação da circularidade do curso da história.

Durante a narrativa em De Re Publica, II, Cipião é interrompido por Lélio e


questionado sobre o método que está empregando:

21 (...) Nós realmente vemos que até mesmo tu começaste a


discutir com um método novo, que [não se encontra] em nenhuma
parte nos livros dos gregos. Pois aquele príncipe, com seus
escritos, foi mais insigne que todos, e ele próprio escolheu uma
área na qual construir, de acordo com seu arbítrio, uma ciuitas –
talvez excelente, mas incompatível com a vida e os costumes dos
homens390.

Lélio se refere ao método da narrativa histórica, algo novo, pois Platão (aquele
príncipe) construiu sua filosofia política baseando-se em uma politeia que não era real, e
os peripatéticos citaram diversas constituições, mas não detalharam o desenvolvimento
histórico de nenhuma. Aqui podemos observar que Cícero quer comprovar historicamente
o desenvolvimento de Roma. E continua:

22. Os outros dissertaram sobre os gêneros e razões das ciuitates


sem nenhum exemplo e forma definida de república. A mim me

389
RAWSON, E. “Cicero the Historian and Cicero the Antiquarian”. p.36.
390
CÍCERO. De Re Publica, II, 21: nos uero uidemus, et te quidem ingressum ratione ad
disputandum noua, quae nusquam est in Graecorum libris. nam princeps ille, quo nemo in
scribendo praestantior fuit, aream sibi sumpsit, in qua ciuitatem exstrueret arbitratu suo,
praeclaram ille quidem fortasse, sed a uita hominum abhorrentem et a moribus.
164

parece que farás as duas coisas: de fato, começaste de tal forma


que preferes atribuir a outros as coisas que tu mesmo encontras
do que forjar, como faz Sócrates em Platão. E sobre a localização
da urbe, atribui à razão aquelas coisas que foram feitas por
Rômulo por acaso ou por necessidade. E disputas não com um
discurso vago, mas definido, sobre a república; assim, continuas
como começaste, pois já pareço perceber, na medida em que
descreves os demais reis, uma república, por assim dizer,
perfeita391.

Fox aponta que os interlocutores fizeram uma “transição bem sucedida de uma
discussão sobre a república ideal com base na teoria constitucional para uma baseada na
história de Roma392”, entre o livro I e II; ou seja, filosofia e história podem estar
entrelaçadas. O autor observa que a história tem sido usada para garantir a aplicabilidade
de ideias teóricas e torná-las diretamente relevantes para a fundamentação. “Esta é uma
passagem emblemática para a produção filosófica inteira de Cícero, uma vez que
estabelece a luta entre teoria e prática como a [luta] entre Platão e Cícero, entre uma
maneira de fazer filosofia que é historicamente fundamentada e uma fundamentalmente
idealista”393. A história implica em uma maior autoridade para a obra ciceroniana. Por
meio dela, Cícero sugere uma maneira de compreender a relação do homem com o
mundo, Roma, que vai além do tempo presente, ou seja, há uma relação entre passado e
presente. Observamos, assim, qual o tempo que a narrativa histórica retrata e qual o ritmo.

Em De Re Publica, II, são utilizadas algumas unidades de medida do tempo, como


as olimpíadas e os acontecimentos naturais. Interessa-nos o aspecto humano do tempo,
ou seja, como o homem inserido em uma comunidade política o percebia, e como a
história, entendida como narrativa de feitos políticos memoráveis, refletia isso. A filosofia
política ciceroniana sugere uma forma de compreender a ação do homem em Roma em

391
CÍCERO. De Re Publica, II, 22: reliqui disseruerunt sine ullo certo exemplari formaque rei
publicae de generibus et de rationibus ciuitatum. tu mihi uideris utrumque facturus: es enim ita
ingressus ut quae ipse reperias tribuere aliis malis quam, ut facit apud Platonem Socrates, ipse
fingere, et illa de urbis situ reuoces ad rationem quae a Romulo casu aut necessitate facta sunt,
et disputes non uaganti oratione sed defixa in una re publica. quare perge ut instituisti; prospicere
enim iam uideor te reliquos reges persequente quasi perfectam rem publicam.
392
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p.62.
393
FOX. Cicero´s Philosophy of History. pp.62-63.
165

um determinado tempo, e a narrativa histórica descreve este percurso. A república romana


chegou a um ótimo estado por um curso natural, o povo se consolidou pelo discernimento
e pela disciplina394. Desde o início do livro II, do De Re Publica, ao enunciar que Roma
foi constituída pelo acúmulo de experiências, o autor afirma que sua narrativa histórica
mostra como ocorreu esse acúmulo. Portanto, a narrativa que reconstitui a história de
Roma trata do que lhe foi proporcionado na fundação e do acúmulo de experiências por
muitas gerações.

2. Sobre esse assunto ele costumava dizer que nosso estado de


ciuitas era superior às demais ciuitas, pois naquelas havia,
costumeiramente, alguns poucos dentre eles para constituir a
república, [fazendo] leis e instituições, tal como Minos dos
cretenses, Licurgo395 dos lacedemônios, Teseu, Drácon, Sólon,
Clístenes e muitos outros dentre os atenienses; por fim, até o
douto varão Demétrio 396 de Faleros conservando a já
enfraquecida e derrubada [república]. Porém, nossa república não
foi constituída pelo engenho de um, mas de muitos, nem durante
a vida de um homem, mas em alguns séculos e gerações. Pois
[Catão] dizia jamais ter existido um engenho tão grande – alguém
a quem nada escapasse – e que nem todos os engenhos reunidos
em um só poderiam prever tanto, [a ponto de] abarcar em apenas
um momento tudo, sem a experiência das coisas e sem
amadurecimento397.

Dessa forma, a República romana foi construída: trata-se de um somatório de


tempos, de gerações, de ações. Em Roma, não apenas o ato fundador foi grandioso, mas

394
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 30.
395
Cícero se refere a legisladores exemplares. A constituição feita por Licurgo foi considerada a
melhor constituição grega por Políbio, que compara também a de Cartago com a dos romanos.
Cf. VI, 48-52. Cf. De Rep. II, 42-43, quando Cícero retoma a comparação entre a constituição de
Licurgo e a romana.
396
Governou Atenas no final do século IV a.C.
397
CÍCERO. De Re Publica, II, 2. nostra autem res publica non unius esset ingenio sed multorum,
nec una hominis vita sed aliquot constituta saeculis et aetatibus. nam neque ullum ingenium
tantum extitisse dicebat, ut quem res nulla fugeret quisquam aliquando fuisset, neque cuncta
ingenia conlata in unum tantum posse uno tempore providere, ut omnia complecterentur sine
rerum usu ac vetustate.
166

também as ações que se seguiram. E esse acúmulo de ações levou Roma ao apogeu. Com
isso, podemos perceber ao longo da narrativa que a coletividade das ações ocorre mais
pelo acúmulo de ações durante séculos e gerações do que uma grande ação coletiva como
a guerra.

O ponto de partida da fundação de Roma é uma fábula 398 e não uma narrativa
histórica. Por que Cícero deu voz a uma narrativa que não se baseava no critério de
verdade, lemos em De Re Publica, II, II, 4:

– Por que temos um começo da instituição da república tão ilustre


e tão conhecido por todos, como é o início desta urbe fundada por
Rômulo? Nascido do pai Marte (pois concedamos [isso] à voz
corrente dos homens, não apenas porque [este mito] está
particularmente enraizado, mas também porque foi sabiamente
transmitido pelos predecessores o pensamento de que os
beneméritos das coisas que são comuns não são só de estirpe
como também de engenho divino) 399;

Apesar de Cícero preceituar um método para a escrita da história em que não há


espaço para as narrativas míticas, temos que considerar que os mitos faziam parte da
cultura greco-romana. Collingwood aponta que há

tais elementos até no sisudo Tucídides. (...) Aliás, elementos


lendários semelhantes são manifestamente frequentes em
Heródoto. Mas o que é notável por parte dos gregos não é o fato
de o seu pensamento histórico conter certos resíduos de elementos
que temos de considerar como não-históricos, e sim o fato de,

398
Dumézil afirma que, nas antigas sociedades itálicas, as lendas sobre as origens, a fundação,
serviam para justificar todo tipo de pretensão e de orientação política ou nacional. DUMÉZIL.
Mito e epopeya, III. p.196
399
CÍCERO. De Re Publica, II, 4: quod habemus’ inquit ‘institutae rei publicae tam clarum ac
tam omnibus notum exordium quam huius urbis condendae principium profectum a Romulo? qui
patre Marte natus (concedamus enim famae hominum, praesertim non inueteratae solum sed
etiam sapienter a maioribus proditae, bene meriti de rebus communibus ut genere etiam
putarentur, non solum ingenio esse diuino).
167

lado a lado com estes, conter elementos daquilo que chamamos


história400.

A fundação é elaborada pela ação humana, que apenas é possível porque os homens
são dotados de razão, possuem linguagem e agem racionalmente, como vimos no primeiro
capítulo. O ato fundador é um momento de afirmação da coletividade, e a partir dele
temos a aceitação de um conjunto de princípios. Se esses já estavam presentes desde o
nascimento da urbe e da república, então não poderiam mais ser abandonados, e, se
fossem, o corpo político poderia perder sua identidade401. As ações de Rômulo deixaram
um legado a Roma que permaneceram na constituição da república. Na narrativa
ciceroniana, em De Re Publica, II, recorre-se a Rômulo, filho do deus Marte, e o autor
continua:

Neste lugar, foi nutrido pelos úberes de um animal selvagem, e


pastores o acolheram e o criaram no costume e no trabalho do
campo. Relata-se que se desenvolveu e que era tão melhor que os
outros com seu corpo varonil e sua ferocidade no ânimo, que
todos que cultivavam o campo, onde hoje é esta urbe, obedeciam-
no de ânimo tranquilo e de livre vontade. Apresentando-se como
chefe das tropas, para já passarmos da fábula aos fatos, subjugou
Alba Longa, cidade forte e poderosa daqueles tempos, e matou o
rei Amúlio402.

Observamos que se servir do mito ou da fábula juntamente com a história não é um


problema, desde que se separe um do outro, como o autor faz: “para já passarmos da
fábula aos fatos”403. Um dos elementos de originalidade do livro II está em contar a

400
COLLINGWOOD. A Ideia de História. p. 15.
401
Cf. Bignotto. Problemas atuais da teoria republicana. p. 33.
402
CÍCERO. De Re Publica, II, 4 (...) quo in loco cum esset siluestris beluae sustentatus uberibus,
pastoresque eum sustulissent et in agresti cultu laboreque aluissent, perhibetur ut adoleuerit et
corporis uiribus et animi ferocitate tantum ceteris praestitisse ut omnes qui tum eos agros ubi
hodie est haec urbs incolebant, aequo animo illi libenterque parerent. quorum copiis cum se
ducem praebuisset, ut [et] iam a fabulis ad facta ueniamus, oppressisse Longam Albam, ualidam
urbem et potentem temporibus illis, Amuliumque regem interemisse fertur.
403
CÍCERO. De Re Publica, II, 4: (...) ut [et] iam a fabulis ad facta ueniamus, oppressisse
Longam Albam, ualidam urbem et potentem temporibus illis, Amuliumque regem interemisse
fertur.
168

história de Roma desde as suas origens, mesmo que a tratando de modo fabuloso404. É a
partir deste ponto, em que separa a fábula dos fatos, que continua a narrar a fundação de
Roma.

A ferocidade do animal que nutriu Rômulo parece ter sido transmitida ao seu
ânimo, e sua força física foi propagada à cidade. A obediência, a disciplina, cara aos povos
conquistadores, esteve presente desde a época em que ali havia apenas camponeses.
Pouco depois, Rômulo e o rei dos sabinos instituíram, para que seu governo fosse, de
algum modo, temperado, o conselho régio delegado aos principais, que chamaram de
“pais”, e dividiram o povo em três tribos e trinta cúrias. Mas, depois da morte de Tito
Tácio, Rômulo reinou muito mais de acordo com a autoridade e discernimento dos pais 405.
Quando Rômulo morreu, o povo romano já era vigoroso406.

O autor retira um pouco a importância da fundação e da engenhosidade de apenas


um homem e mostra que a experiência romana é diferente das demais, pois ao longo de
sua história houve, de acordo com as necessidades, um acúmulo de experiências. Cícero
tem a visão de um curso dos acontecimentos no qual, ao mesmo tempo que fundar é
consolidar em instituições um conjunto de princípios que estavam presentes desde o ato
inaugural, o fundador deve sair de cena para que outros homens contribuam para a
construção da pátria. É como se o ato heroico não se fizesse presente apenas na fundação,
mas também em derrubar Cartago, como Cipião o fez, e em governar a república. No
momento da fundação, a natureza dá ao homem o que é necessário para que ele construa
a república, mas não oferece a república pronta; são as ações humanas, ou seja, a liberdade
das ações humanas que permite a sua constante formação e o seu aperfeiçoamento. A
construção é o que permite aos homens realizarem a sua natureza e buscarem a utilidade
comum. Assim, os homens não terão a postura passiva diante da república como queriam
os epicuristas. A valorização da construção, que ocorreu pela experiência das coisas e
pelo amadurecimento dos homens e de seus feitos, permite que haja uma solidificação de
princípios, como os do governo misto, e esses conduzem Roma ao seu apogeu.

Roma nasce monárquica, mas a potestade é tripartida entre dois reis, os patres e o
povo dividido em tribos e cúrias, segundo Cícero:

404
Collingwood aponta que o primeiro a fazer isso foi Tito Lívio em Ab Vrbe Condita, mas vemos
que Cícero o fez antes de Tito Lívio.
405
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 14.
406
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 21.
169

14. Porém, depois da morte de Tácio, uma vez que recaía sobre
[Rômulo] todo o domínio, ainda que Tácio houvesse delegado o
conselho régio aos principais [concidadãos] (que, por afeto,
foram chamados de pais [patres]) e dividido o povo em três tribos
– às quais [Rômulo] deu o seu nome, o de Tácio e o de Lucumão,
companheiro de Rômulo, que morrera no combate contra os
sabinos – e em trinta cúrias, as quais nomeou com os nomes
daquelas virgens sabinas raptadas que, posteriormente, foram
suplicantes da paz e do tratado. Essa distribuição tinha sido feita
quando Tácio ainda vivia, entretanto, depois de sua morte,
Rômulo reinou muito mais de acordo com a autoridade e a
deliberação dos pais [patres]. [IX] 15. Rômulo, primeiramente,
observou e julgou o mesmo que, pouco antes, Licurgo havia
observado em Esparta: que as ciuitates seriam melhor governadas
e regidas sob o comando de um só e da potestade régia, se a essa
dominação se unir a autoridade dos optimates. Assim, sustentado
e apoiado por este conselho e, por assim dizer, pelo senado,(...) 407.

Nós nos questionamos, então, qual o sentido da tripartição? Podemos nos servir do
que Dumézil argumenta em sua obra Mito e Epopeya sobre o mecanismo das três funções
herdado dos indo-europeus:

(...) várias cenas ou grupos de cenas cuja intenção é trifuncional


se apresentam imediatamente para oferecer seu testemunho de
que os autores dos Anais ou seus antecessores dos séculos IV e
III a.C. usaram este esquema antigo com consciência plena,
mesmo que, segundo outros indícios, isso se prolongou além da

407
CÍCERO. De Re Publica, II 14: ‘Post interitum autem Tatii cum ad eum dominatus omnis
reccidisset, quamquam cum Tatio in regium consilium delegerat principes (qui appellati sunt
propter caritatem patres) populumque et suo et Tati nomine et Lucumonis, qui Romuli socius in
Sabino proelio occiderat, in tribus tres curiasque triginta discripserat (quas curias earum
nominibus nuncupauit quae ex Sabinis uirgines raptae postea fuerant oratrices pacis et foederis)
– sed quamquam ea Tatio sic erant discripta uiuo, tamen eo interfecto multo etiam magis Romulus
patrum auctoritate consilioque regnauit. [IX] 15. ‘Quo facto primum uidit iudicauitque idem
quod Spartae Lycurgus paulo ante uiderat, singulari imperio et potestate regia tum melius
gubernari et regi ciuitates, si esset optimi cuiusque ad illam uim dominationis adiuncta
auctoritas. itaque hoc consilio et quasi senatu fultus et munitus, et bella cum finitimis felicissime
multa gessit et, cum ipse nihil ex praeda domum suam reportaret, locupletare ciuis non destitit.
170

empresa restauradora de Augusto. Por conseguinte, tentar


desenvolver um repertório preciso e exaustivo desses vestígios ou
contribuições é legítimo. No entanto, é preciso distinguir com
muito cuidado dois tipos de dados, duas modalidades de
expressão do mecanismo das três funções, a saber: o teológico e
o ideológico. O primeiro se encontra cabalmente integrado pelos
deuses da tríade capitolina, Júpiter, Marte e Quirino, enquanto em
segundo lugar, ele pode adotar, e de fato faz, múltiplas formas,
rejuvenescendo-se e constantemente diversificando-se tanto na
história como nas demais produções do espírito romano408.

Podemos dizer que Cícero faz um uso “ideológico” das três funções 409 com o
governo tripartido, seja ele do período monárquico, seja do período republicano.

A tríade no governo, desde a monarquia, é importante na obra histórica ciceroniana,


pois mostra o horror dos romanos pela tirania e pelo governo de um só e, ao mesmo
tempo, demonstra que o governo de Roma nasceu, de alguma forma, misto. Ademais,
observamos que desse fato histórico Cícero depreende um argumento teórico: Roma já
nasce com características do governo misto. Cícero, em outros trechos, compara o
governo romano com o espartano e o cartaginês, como lemos:

24. Certamente, neste tempo, aquele povo ainda novo viu aquilo
que escapou ao lacedemônio Licurgo, que estabeleceu que um rei
não deveria ser eleito – se é que isso poderia estar na potestade de
Licurgo –, mas acolhido, quem quer que ele fosse, desde que
houvesse nascido da estirpe de Hércules. Os nossos [romanos],
então ainda rudes, observaram que era oportuno buscar a virtude
e a sapiência régia, não a progênie 410.

408
DUMÉZIL. Mito e Epopeya. p.195.
409
O sagrado, a força e a fecundidade. Cf. DUMÉZIL. Mito e Epopeya.p. 321.
410
CÍCERO. De Re Publica, II 24: quo quidem tempore nouus ille populus uidit tamen id quod
fugit Lacedaemonium Lycurgum, qui regem non deligendum duxit, si modo hoc in Lycurgi
potestate potuit esse, sed habendum, qualiscumque is foret, qui modo esset Herculi stirpe
generatus; nostri illi etiam tum agrestes uiderunt uirtutem et sapientiam regalem, non progeniem,
quaeri oportere.
171

Cícero destaca que os reis em Roma eram eleitos, diferentemente do que acontecia
em povos mais antigos, como entre os espartanos. Esse argumento é introduzido para que
o autor continue narrando a sucessão de Rômulo por Numa, que foi eleito, assim como
os outros reis que o sucederam. Ainda comparando Roma com povos mais antigos, o
autor narra:

42. – * [Cartago] havia sido fundada trinta e nove anos antes da


primeira olimpíada, portanto era sessenta e cinco anos mais antiga
[do que Roma]. E aquele antiquíssimo Licurgo observou quase o
mesmo [em Esparta]. Então parece-me que esta igualdade e este
tríplice tipo de república tiveram algo em comum com esses
povos. Mas o que foi particular em nossa república, e mais ilustre
que esta nenhuma pode ser, investigarei a fundo e, se puder, mais
sutilmente, pois nada igual ao nosso modo poderia ser encontrado
em nenhuma outra república. De fato, essas [constituições] que
até agora expus existiram nesta ciuitas, na dos lacedemônios e na
dos cartagineses, por um lado mescladas, mas, por outro, não
eram temperadas. 43. Pois em uma república que tenha apenas
um [homem] com potestade perpétua, sobretudo régia, ainda que
nela haja um senado, como houve, então, em Roma quando
existiam reis, ou em Esparta com as leis de Licurgo, ou ainda
quando havia algum direito do povo, como houve [no tempo] de
nossos reis, entretanto, ainda que prevalecesse o nome régio, uma
república [como essa] não poderia ser e se chamar reino411.

411
CÍCERO. De Re Publica, II, 42: *‘<quinque et> sexaginta annis antiquior, quod erat
XXXVIIII ante primam olympiadem condita, et antiquissimus ille Lycurgus eadem uidit fere.
itaque ista aequabilitas atque hoc triplex rerum publicarum genus uidetur mihi commune nobis
cum illis populis fuisse. sed quod proprium est in nostra re publica, quo nihil possit esse
praeclarius, id persequar si potero subtilius; quod erit eius modi, nihil ut tale ulla in re publica
reperiatur. haec enim quae adhuc exposui ita mixta fuerunt et in hac ciuitate et in
Lacedaemoniorum et in Carthaginiensium ut temperata nullo fuerint modo.
43. nam in qua re publica est unus aliquis perpetua potestate, praesertim regia, quamuis in ea sit
et senatus, ut tum fuit Romae cum erant reges, ut Spartae Lycurgi legibus, et ut sit aliquod etiam
populi ius, ut fuit apud nostros reges, tamen illud excellit regium nomen, neque potest eius modi
res publica non regnum et esse et uocari. ea autem forma ciuitatis mutabilis maxime est hanc ob
causam, quod unius uitio praecipitata in perniciosissimam partem facillime decidit. nam ipsum
regale genus ciuitatis non modo non est reprehendendum, sed haud scio an reliquis simplicibus
longe anteponendum (si ullum probarem simplex rei publicae genus), sed ita quoad statum suum
retineat. is est autem status, ut unius perpetua potestate et iustitia uniusque sapientia regatur
172

Aqui Cícero expõe que a diferença entre Roma e Esparta e Cartago era que Roma
tinha um governo temperado, enquanto as outras apenas eram mescladas. Esse tempero
traz um equilíbrio para a constituição romana, e isso pode ser observado desde o início.
O povo romano, como lemos, já nasce grande: “21. Vede, portanto, que pela deliberação
de um só varão não apenas nasceu um povo novo, mas já vigoroso e quase púbere, e que
não foi deixado chorando no berço?” 412 Mas se na obra ciceroniana não houvesse espaço
para a contínua construção da república, então de nada adiantaria discutir sobre a
formação e a ação do homem nessa. A divisão da potestade nos tempos de Rômulo e de
Tito Tácio foi aperfeiçoada no período republicano. Assim, a grandeza não é alcançada
de imediato. A ideia de amadurecimento, aperfeiçoamento, de construção durante séculos
e gerações nos remete à ideia de progresso, avanço. Não seria um progresso de técnicas
ou da moralidade, mas das experiências políticas. Vejamos as seguintes passagens:

Africano disse: – Pois muito facilmente reconhecerás isto se


observares nossa república progredir 413 e chegar a um ótimo
estado por um caminho e um curso naturais. Mais ainda,
concluirás que a sapiência de nossos ancestrais deve ser louvada,
porque entenderás, inclusive, que muitas coisas acolhidas de
outros por nós tornaram-se muito melhores do que haviam sido
lá, de onde foram trazidas até aqui e onde surgiram pela primeira
vez; e entenderás que o povo romano se consolidou, não por
acaso, mas mediante o discernimento e a disciplina; todavia, nem
a fortuna foi adversa. 414

salus et aequabilitas et otium ciuium. desunt omnino ei populo multa qui sub rege est, in
primisque libertas, quae non in eo est ut iusto utamur domino, sed ut nul<lo>*
412
CÍCERO. De Re Publica, II, 21: Videtisne igitur unius uiri consilio non solum ortum nouum
populum, neque ut in cunabulis uagientem relictum, sed adultum iam et paene puberem?
413
Progredientem enfatiza um avanço natural da república mediante processos que fazem com
que ela avance. Cícero, por meio dos processos históricos, tem uma visão do curso dos
acontecimentos.
414
CÍCERO. De Re Publica, II, 30: 'atqui multo id facilius cognosces,' inquit Africanus, 'si
progredientem rem publicam atque in optimum statum naturali quodam itinere et cursu venientem
videris; quin hoc ipso sapientiam maiorum statues esse laudandam, quod multa intelleges etiam
aliunde sumpta meliora apud nos multo esse facta, quam ibi fuissent unde huc translata essent
atque ubi primum extitissent, intellegesque non fortuito populum Romanum sed consilio et
disciplina confirmatum esse, nec tamen adversante fortuna.
173

Notamos o uso da palavra progredientem que foi traduzida por “progredir”. Parece
que o progresso político é natural e reforçado pelo discernimento do povo. Mas, ao
observar a história de Roma desde o período monárquico até o republicano, constatamos
que há fracassos e progressos inerentes à prática política. Cícero escreveu quando a
república estava em crise, parecia buscar uma solução e talvez a buscava por meio de uma
narrativa histórica que recuperasse a glória e mostrasse os exemplos que deveriam ser
seguidos e os que deveriam ser evitados. Essa ideia de progresso não nos leva a pensar
que Cícero tem uma visão linear do curso dos acontecimentos. Ao contrário, não
observamos nem uma concepção do curso dos acontecimentos circular nem uma linear.
Talvez a ideia de avanço predomine nesse livro. Ao observarmos a narrativa do período
régio de Roma, os reis se sucedem somando415 suas ações às ações dos antecessores.
Depois da morte de Rômulo, o povo exigiu um rei e nomeou Numa Pompílio nos
comícios curiados 416. As maiores contribuições desse rei foram a religião e a
clemência417. O rei que sucedeu Numa Pompílio, Tulo Hostílio, foi eleito pelo povo nos
comícios curiados. De acordo com Cícero, “os nossos reis já sabiamente observaram que
certas coisas devem ser atribuídas ao povo (pois muitas coisas devem ser ditas acerca
desse assunto). Tulo nem sequer ousou usar as insígnias régias se não fosse por ordem do
povo”418. Depois dele, Anco Márcio elegeu-se rei pelo povo e, em seguida, Tarquínio, o
Antigo. O rei seguinte, Sérvio Túlio, foi o primeiro a reinar sem a ordem do povo, mas
pela vontade e consentimento dos concidadãos 419, quando Tarquínio ainda vivia, mas
depois da morte desse, o povo ordenou-lhe que reinasse. Por fim, o rei, ou melhor, o tirano
Tarquínio, o Soberbo assassinou Sérvio Túlio para chegar ao poder. Com Tarquínio o
governo régio se degenerou em tirania:

45. Aqui já orbitará aquele ciclo 420, cujo movimento natural e em


círculos deveis aprender a reconhecer desde o princípio. De fato,
o essencial da prudência civil, sobre a qual versa todo este nosso

415
CÍCERO. De Re Publica, II, 37: – Agora se torna mais certo aquele [dito] de Catão: a
constituição de nossa república não é de um só tempo nem de um só homem. Pois, é evidente o
quão grande se torna o acréscimo de coisas boas e úteis por meio de cada rei.
416
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 25.
417
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 27.
418
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 31.
419
Cf. CÍCERO. De Re Publica, II, 38
420
Cícero começará a demonstrar um ciclo de degeneração e regeneração das formas de governo
em Roma, a partir do governo tirânico de Tarquínio, o Soberbo.
174

discurso, [consiste] em observar os caminhos e os desvios das


repúblicas; quando soubéreis para onde a coisa se inclinará,
podereis detê-la ou socorrê-la com antecedência421. Pois, o rei de
quem falo [Tarquínio], inicialmente, manchado pelo assassinato
de um ótimo rei [Sérvio Túlio] não estava com sua mente
tranquila e, como ele mesmo temia um grande castigo pelo seu
crime, queria ser temido; depois, baseando-se em suas vitórias e
riquezas, exultava insolentemente e não podia reger seus
costumes nem os desejos dos seus422. 46. E assim, como seu filho
mais velho violentou Lucrécia, filha de Tricipitino e esposa de
Colatino, esta pudica e nobre mulher castigou a si mesma com a
morte, por causa dessa injúria; então, um varão ilustre em
engenho e virtude, Lúcio Bruto, repeliu de seus concidadãos
aquela sujeição injusta a uma árdua servidão. E, ainda que fosse
um concidadão privado, sustentou toda a república e ensinou,
que, antes de tudo, nessa ciuitas ninguém é um [concidadão]
privado quando se trata de preservar a liberdade dos
concidadãos423. Sendo Lúcio Bruto autoridade e [concidadão]
principal, estando a ciuitas agitada e com uma nova queixa do pai
e dos parentes de Lucrécia, pela recordação da soberba de
Tarquínio e das suas muitas injúrias como as de seus filhos,
ordenou exilar tanto o próprio rei como seus filhos e a estirpe dos
Tarquínios 424.

421
É um exemplo da função pedagógica da historia, como magistrae vita. A natureza humana
parece ser tal que as repúblicas assim como os homens parecem ter caminhos e desvios, logo,
observar e aprender para onde a república se inclinará e socorrê-la faz parte da ação do sábio na
vida política.
422
Descrição de um tirano.
423
Cf. CÍCERO. De Re Publica, I, 9-10, quando se atrela a ação política à figura do homem sábio
que participa dela.
424
CÍCERO. De Re Publica, II, 45:‘Hic ille iam uertetur orbis, cuius naturalem motum atque
circuitum a primo discite agnoscere. id enim est caput ciuilis prudentiae, in qua omnis haec
nostra uersatur oratio, uidere itinera flexusque rerum publicarum, ut cum sciatis quo quaeque
res inclinet, retinere aut ante possitis occurrere. nam rex ille de quo loquor, primum optimi regis
caede maculatus integra mente non erat, et cum metueret ipse poenam sceleris sui summam, metui
se uolebat; deinde uictoriis diuitiisque subnixus exultabat insolentia, neque suos mores regere
poterat neque suorum libidines. 46. itaque cum maior eius filius Lucretiae Tricipitini filiae
Collatini uxori uim attulisset, mulierque pudens et nobilis ob illam iniuriam sese ipsa morte
multauisset, tum uir ingenio et uirtute praestans L. Brutus depulit a ciuibus suis iniustum illud
175

Cícero, apesar de falar em ciclo e círculos, demonstrará que não houve um círculo,
uma vez que, da tirania, Roma se regenera em uma República, forma de governo que é
um misto das três formas puras, e o governo misto não é uma forma que se encontra
passível de pertencer ao ciclo de degeneração e regeneração. Historicamente, Roma
jamais completou um círculo. Para Cícero, Roma não cumpriu um círculo conhecido,
como a anaciclose polibiana, mas estava, desde sua fundação, marcada para ser uma
República. Se no governo misto saímos do círculo, é porque nesse os vícios estão
contidos. A mentalidade cíclica nos ajuda a compreender os momentos em que não há
progresso; como o governo misto não está inserido no círculo, quando se sai deste entra-
se em tempos de progresso. Ou seja, a República é a forma em que há o acúmulo das
experiências, o avanço; por outro lado, no tempo circular pensa-se a destruição e o
recomeço; em ambos, há nexo de causalidade; a Roma fundada por Rômulo é refundada
no período republicano, e se Cipião tivesse tido tempo, também teria sido refundada por
ele, como ditador, como é apontado no Sonho. Em De Re Publica, II também Cícero nos
traz a imagem de que a República não segue caminhos sinuosos, ou seja, circulares, mas
chega diretamente em um ótimo estado, como podemos observar em De Re Publica, II,
33. “*e, de fato, de acordo com o início de tua exposição, a República não serpenteia, mas
voa para um ótimo estado”. 425 Ou seja, a República não serpenteia dentro dos ciclos de
degeneração e regeneração, mas a República romana conhece mais o avanço; ela não faz
caminhos sinuosos e lentos, mas voa; a imagem da serpente demonstra algo difícil de sair
do lugar em oposição ao que voa; aqui, por meio da narrativa histórica, Cícero se afasta
do fatalismo do ciclo dos primeiros estoicos, dos ciclos de degeneração e regeneração e
da anaciclose polibiana, como vimos nos capítulos anteriores. Afirmar que ela não
serpenteia nos transmite duas ideias: tanto de um tipo de percurso que não é sinuoso
quanto da velocidade desse percurso; isto é, não há idas e vindas. Assim, Roma foi
conduzida rapidamente à melhor forma. Momigliano, no artigo “Time in Ancient

durae seruitutis iugum. qui cum priuatus esset, totam rem publicam sustinuit, primusque in hac
ciuitate docuit in conseruanda ciuium libertate esse priuatum neminem. quo auctore et principe
concitata ciuitas et hac recenti querela Lucretiae patris ac propinquorum, et recordatione
superbiae Tarquinii multarumque iniuriarum et ipsius et filiorum, exulem et regem ipsum et
liberos eius et gentem Tarquiniorum esse iussit.
425
CÍCERO. De Re Publica, II, 33: (Laelius?) '<neque) enim serpit sed volat in optimum statum
instituto tuo sermone res publica.'
176

Historiography”, argumenta sobre a obra polibiana, e podemos aplicar o mesmo


raciocínio à ciceroniana:

Os defensores da visão cíclica da historiografia grega realmente


se apoiam em Políbio. No livro VI, ele afirma que homens
emergiram de algum tipo de cataclismo de primeira linha para a
monarquia; então passam de um tipo de constituição para outro
apenas para terminar onde começaram: “até que degenerem
novamente em selvagens perfeitos e encontrem mais uma vez um
mestre e um monarca”. O ciclo está lá para qualquer um ver, e
Políbio argumenta em detalhes as etapas únicas do processo. No
entanto, não devemos esquecer que esta seção do Livro VI sobre
as constituições é uma grande digressão. A relação entre essa
digressão e o resto do trabalho de Políbio não é fácil de entender,
e me arrisco a acreditar que o próprio Políbio teria ficado
envergonhado de explicá-lo. Para começar, não está claro qual é
a relação exata entre essa teoria geral, a teoria das constituições e
a descrição subsequente das constituições de Roma e Cartago. A
teoria geral diz respeito à humanidade e parece implicar que todos
os homens se encontrem em um determinado momento no mesmo
estágio do mesmo ciclo. Por outro lado, é certo que, de acordo
com Políbio, os estados individuais passam de um estágio
constitucional para outro em momentos diferentes. Por exemplo:
“tanto quanto o poder e a prosperidade de Cartago tinham sido
anteriores ao de Roma, tanto Cartago já começou a declinar
enquanto Roma estava exatamente no auge, pelo menos no que
diz respeito a seu sistema de governo preocupado” (VI, 51). Além
disso, temos que contar com as complicações provocadas pela
constituição mista, que prende a corrupção por um longo tempo,
se não for para sempre. Mas a principal consideração é que, fora
dos capítulos constitucionais, no resto de sua história, Políbio
opera como se ele não tivesse nenhuma visão cíclica da história.
A primeira e a segunda Guerras Púnicas não são tratadas como
repetições de eventos que ocorreram no passado remoto e
177

acontecerão novamente em um futuro distante. Os eventos


individuais são julgados de acordo com noções vagas, como
fortuna, ou de acordo com critérios mais precisos de sabedoria e
competência humanas. A supremacia romana no Mediterrâneo
proporciona ao historiador uma nova perspectiva histórica. Só
porque a fortuna fez quase todos os assuntos do mundo inclinar-
se em uma direção, é tarefa do historiador colocar diante de seus
leitores uma visão compendiosa das maneiras pelas quais a
fortuna realizou seus propósitos. O Império Romano torna
possível escrever a história universal426.

Da mesma forma que Momigliano mostra que não é possível afirmar uma visão
cíclica – no sentido de circular – do tempo na obra polibiana, mesmo havendo a digressão
para explicar a teoria da anaciclose, também afirmamos que a percepção do curso dos
acontecimentos em Roma na obra ciceroniana não está inserida na tradição do
pensamento circular. Da tirania surgiu a República, como lemos:

56. Portanto, naqueles tempos o senado manteve a república 427 na


seguinte situação: um povo livre em que poucos [assuntos] eram
geridos por ele, enquanto a maioria era gerida pela autoridade,
instituição e costumes do senado, de modo que os cônsules
tinham potestade que em tempo durava apenas um ano, mas em
gênero e direito era régia428.

Dumézil afirma que a fundação da República, uma espécie de segundo nascimento


de Roma, representa para os historiadores a oportunidade de evocar, mediante
paralelismos, as lendas tripartidas das origens de Roma 429.

426
MOMIGLIANO. “Time in Ancient Historiography”. p.12.
427
A partir do parágrafo 56, a palavra res publica refere-se à República romana.
428
CÍCERO. De Re Publica, II, 56: ‘Tenuit igitur hoc in statu senatus rem publicam temporibus
illis, ut in populo libero pauca per populum, pleraque senatus auctoritate et instituto ac more
gererentur, atque uti consules potestatem haberent tempore dumtaxat annuam, genere ipso ac
iure regiam, quodque erat ad obtinendam potentiam nobilium uel maximum, uehementer id
retinebatur, populi comitia ne essent rata nisi ea patrum approbauisset auctoritas.
429
DUMÉZIL. Mito e Epopeya, III. p.205.
178

Por fim, o livro se fragmenta, e temos a narrativa até o momento do governo dos
decênviros virtuosos e depois dos viciosos. Se a história é a arena em que os dilemas do
presente são elaborados usando o material extraído do passado, como afirma Fox 430.
Cícero de forma alguma conceberia um tempo fechado, no momento de decadência em
que vivia, mas consideraria, ainda, o que tinha por vir e o que ele almejava a salvação da
república por meio de um novo equilíbrio das potestades:

57 (...) Desse modo, vós haveis de prestar atenção naquilo que


disse no início: se em uma ciuitas não há uma equilibrada
compensação de direitos, deveres e funções – de tal forma que
haja potestade suficiente nos magistrados, autoridade no conselho
dos principais 431 e liberdade no povo –, não se pode conservar
imutável esse estado da República432.

Cícero espera buscar soluções para o seu tempo de declínio e acredita nas
experiências exemplares do passado para ajudar a resolver os problemas de seu presente,
da República. O passado parece ser o tempo das experiências perfeitas que foram
acumuladas, do progresso – dos processos de avanço – que pode reconduzir os homens e
a República novamente ao caminho da natureza. No futuro não haverá avanço, se o
passado não for recuperado. Talvez seja este o motivo de Cícero fazer o interlocutor
Cipião resgatar a história de Roma no livro II, da obra De Re Publica.

430
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p.109.
431
Consilio principium.
432
CÍCERO. De Re Publica, II, 57: id enim tenetote quod initio dixi, nisi aequabilis haec in
ciuitate compensatio sit et iuris et officii et muneris, ut et potestatis satis in magistratibus et
auctoritatis in principum consilio et libertatis in populo sit, non posse hunc incommutabilem rei
publicae conseruari statum.
179

IV.III. BRUTUS

Brutus, escrita em 46 a.C., é uma obra sobre a história da eloquência romana e


expõe a memória da cidade ao descrever as gerações de oradores, uma vez que a oratória
é inerente à urbe. Primeiramente, devemos considerar que dentro do gênero dialógico há
uma narrativa histórica, e Cícero afirma no parágrafo 292 que está desenvolvendo uma.
O diálogo filosófico, que se inicia com um elogio fúnebre e passa a ser uma recuperação
na memória, por conseguinte, um relato histórico da vida dos oradores, termina com um
autoelogio de Cícero. Notamos, de acordo com as marcas temporais na narrativa histórica,
que há uma decadência da retórica e do espaço público, e que estes são apenas
recuperados com Cícero, ao vencer Hortênsio. É como se Hortênsio estivesse no auge;
após sua morte, a curva é decrescente, e com Cícero há uma linha imediatamente
ascendente. Ou seja, não há um movimento circular, há um processo de decadência e de
avanço.

A história da oratória romana segue uma ordem cronológica e trata de oradores e


magistrados; Fox afirma que “o trabalho é um estranho relato do lugar da retórica em
Roma, e trata-se mais de uma deliberação pessoal sobre a questão central: qual estilo de
homem é mais adequado para exercer o controle político em Roma?433” Ou seja, Cícero
historiciza também a política romana por tratar as ações desses homens. Rosa Marchese
aponta que o estímulo para a sistematização da matéria vem da leitura do Liber annalis,
de Ático, um manual da cronologia que o amigo havia lhe dedicado, no qual, por meio de
um duplo critério ordenador, a sucessão dos oradores e magistrados e a genealogia das
famílias nobres encontrou uma forma de organizar a história de Roma até aqueles
tempos 434. Na obra, lemos o seguinte argumento do autor sobre o livro de Ático: “O livro
não apenas me apresentou muita coisa nova como também me foi de grande utilidade no
que eu procurava: perceber de uma só vez todos os fatos expostos em uma ordem
cronológica”435. Ao fim, Cícero transmite a memória da cidade por meio do elenco das
gerações de oradores. Segundo Marchese: “a evidência com a qual o passado recente
parece trazer os valores perdidos no presente, e é por essa razão que ocorre ao menos

433
FOX. Cicero´s Philosophy of History. p.177.
434
MARCHESE, pp.10-11. In: CICERONE. Bruto. Introduzione, traduzione e comento di Rosa
Rita Marchese. Roma, Carocci editore, 2011.
435
CÍCERO. Brutus, 15: Ille vero et nova, inquam, mihi quidem multa et eam utilitatem quam
requirebam, ut explicatis ordinibus temporum uno in conspectu omnia viderem.
180

experimentar construir a memória da cidade, para transmitir um filtro específico da


oratória”436.

Em Brutus, a perda dos oradores, a perda do espaço público para falar está
relacionada ao declínio da República. Parece, de certa forma, que uma causa do declínio
é a falta de oradores e de sua capacidade de convencimento. Ao mesmo tempo, parece
que o declínio da República levou à morte o espaço público do debate. Fox argumenta
que há uma imagem ambígua dos oradores em Roma, pois apresenta um indicador de
desespero tanto no decurso da história passada de Roma quanto de seu futuro potencial.

É razoável ver na reflexão do próprio Cícero um sentimento


pessoal de falência e da singularidade de seu próprio lugar na
história de Roma; um argumento ligeiramente mais forte é que o
sofrimento de Cícero se manifesta de maneira particularmente
irônica numa atitude em relação às instituições e à história
romana. (...) A questão central, no entanto, é esta: como
conscientemente Cícero produziu uma visão tão negativa de
Roma?437

Cícero retira do esquecimento os oradores mais importantes que viveram entre 149
a.C. (ano da morte de Catão) e 63 a.C. (ano de seu consulado) 438. A partir de Catão é
como se a oratória latina passasse por um período de refinamento, porém, ao mesmo
tempo, há a perda do espaço público. De acordo com Stroup,439 a eloquentia tem três
tempos: no presente, parágrafo 22, ela está emudecida; no passado, ela viajou do Pireu
para a Ásia; e, no futuro, ela é uma senhora adulta confinada no lar. O diálogo entre Bruto,
Ático e Cícero, a princípio, é elaborado para que o interlocutor Cícero fale apenas dos
oradores que já morreram, e fica a Ático a missão de falar sobre o estilo de César 440. A
cena do diálogo é composta de modo similar às outras obras – que analisamos no segundo
capítulo –, mas, diferentemente dessas, não há o distanciamento temporal de gerações,

436
MARCHESE. p.18. In: CICERONE. Bruto. Introduzione, traduzione e comento di Rosa Rita
Marchese. Roma, Carocci editore, 2011.
437
FOX. Cicero´s Philosophy of History. pp.42-43.
438
CÍCERO. Brutus, 60.
439
STROUP. “ Adulta uirgo: the personification of textual eloquence in Cicero´s Brutus”.
In: MD, 2003. p.128.
440
CÍCERO. Brutus, 251.
181

tratando-se apenas de “uma conversa que há pouco tempo você iniciou comigo em
Túsculo sobre os oradores: quando surgiram, quem eram e também quais eram as suas
qualidades”441. Descrito dessa forma, parece-nos que o livro é uma reunião de biografias
elaboradas por um método histórico. Mas, o contexto em que esses oradores viveram nos
fornece a visão negativa da República.

Cícero faz um autoelogio ao elogiar Hortênsio, que era excelente, mas fora
vencido por ele. A obra, em parte, também pode ser entendida como uma laudatio
funebris, e não apenas pelo elogio a Hortênsio, mas a todos os oradores que haviam
morrido e foram retratados. A laudatio funebris necessariamente refere-se às ações, aos
feitos passados dos homens elogiados, ou seja, ela carrega em si um caráter histórico de
preservação na memória das ações dignas de elogios desses homens. Ainda restaria
Cícero como orador em Roma, mas o espaço público republicano estaria comprometido
desde a ditadura de César. Ou seja, há a simultaneidade da queda da ciuitas e do fim da
eloquência, como podemos observar: “em nossa ciuitas, enquanto muitas instituições
sucumbiram, também a própria eloquência, sobre a qual começamos a discutir,
emudeceu.”442. Como vimos anteriormente, as instituições se degeneram por causa dos
vícios dos homens que as dirigem; uma das causas é a opção pelo vício em vez de se optar
pela razão; ademais, a ação racional, virtuosa, prudencial leva à sabedoria, que
obviamente é ausente nos homens viciosos. Sobre a prudência, o autor afirma: “De fato,
ninguém pode discursar bem, a não ser quem pensa com prudência; assim, quem se dedica
à verdadeira eloquência, se dedica à prudência, da qual mesmo nas maiores guerras
ninguém pode prescindir com ânimo equânime” 443. Com isso, observamos que a queda
das instituições é por causa da moralidade, tanto as instituições quanto a eloquência
sucumbiram, pois não havia mais prudência.

A narrativa, inicialmente, remonta à Grécia, particularmente a Atenas, “urbe onde


pela primeira vez surgiu um orador e também pela primeira vez a oratória passou a ser
confiada aos registros históricos e aos escritos.” 444 Com isso, Cícero começa a falar dos

441
CÍCERO. Brutus 20: Quod mihi nuper in Tusculano inchoavisti de oratoribus: quando esse
coepissent, qui etiam et quales fuissent.
442
CÍCERO. Brutus, 22: subito in civitate cum alia ceciderunt tum etiam ea ipsa, de qua
disputare ordimur, eloquentia obmutuit.
443
CÍCERO. Brutus, 23: dicere enim bene nemo potest nisi qui prudenter intellegit; quare qui
eloquentiae verae dat operam, dat prudentiae, qua ne maxumis quidem in bellis aequo animo
carere quisquam potest.
444
CÍCERO. Brutus, 26: qua in urbe primum se orator extulit primumque etiam monumentis et
litteris oratio est coepta mandari.
182

oradores gregos, enumerando um a um, a oposição de Sócrates, depois o trabalho de


Isócrates, na mesma época Lísias, Demóstenes, Hipérides, Ésquines, Licurgo, Dinarco,
Demades, Demétrio, Êupolis. Então, marca:

Percebes, então, que até mesmo naquela urbe, em que a


eloquência nasceu e foi nutrida, quão tarde ela veio à luz? (...)
Com efeito, embora tivessem florescido no reinado de Sérvio
Túlio, Atenas já existia há muito mais tempo do que Roma até os
dias de hoje.445

A forma de marcar temporalmente o apogeu da retórica na Grécia é por meio da


comparação com o que acontecia em Roma e a idade dessas duas urbes. Assinala-se a
velhice de Atenas e a jovialidade de Roma, esta, porém, já muito madura do ponto de
vista político. E continua afirmando que “a ciuitas de Atenas, antes de se deleitar com a
glória oratória, já havia conseguido muitos feitos memoráveis tanto domésticos como na
guerra. Mas esse esforço não era comum a toda Grécia, mas próprio de Atenas 446”. Com
isso, podemos entender que a oratória é inerente à urbe e ao modo de falar da urbe.

Continua a narrativa descrevendo que a oratória foi exportada do Pireu à Ásia,


quando se contaminou com hábitos estrangeiros e perdeu sua pureza447. Em Roma, Cícero
registra que, depois da expulsão dos reis, o ditador Marco Valério “aplacou as discórdias
com a palavra, e a ele, por isso, foram distribuídas as maiores honras e, pelo mesmo
hábito, ele foi o primeiro a ser chamado de Máximo” 448. Ou seja, ele chegou à concórdia
por meio da palavra e não por meio de guerra; Cícero como um filósofo que defende a
concórdia, acredita que, para amenizar os conflitos, o único elemento concorde que há
são as palavras.

O autor segue a narrativa, tomando como exemplo outros oradores e expondo


premissas retóricas; “Não pensei que com esta conversa eu chegaria à nossa época, mas

445
CÍCERO. Brutus, 39: Videsne igitur vel in ea ipsa urbe, in qua et nata et alta sit eloquentia,
quam ea sero prodierit in lucem? (...). nam etsi Servio Tullio regnante viguerunt, tamen multo
diutius Athenae iam erant, quam est Roma ad hodiernum diem.
446
CÍCERO. Brutus, 49: (...) nam ante quam delectata est Atheniensium civitas hac laude dicendi,
multa iam memorabilia et in domesticis et in bellicis rebus effecerat. hoc autem studium non erat
commune Graeciae, sed proprium Athenarum
447
CÍCERO. Brutus, 51.
448
CÍCERO. Brutus, 54: M. Valerium dictatorem dicendo sedavisse discordias, eique ob eam rem
honores amplissumos habitos et eum primum ob eam ipsam causam Maxumum esse appellatum.
183

a ordenação dos tempos levou nosso discurso até que chegássemos também aos mais
jovens. (...) porque espero conhecer seus graus e, por assim dizer, o processo de seu
esforço na oratória”449. Fazer uma ordo aetatum, ou seja, a ordenação dos tempos é a
forma de elaborar uma narrativa histórica. E processus aqui aparece como sinônimo de
progressão, uma série de processos, de avanços de um particular na disciplina oratória.
Ao chegar em seu tempo, argumenta que o valor do orador é percebido pela eficácia do
discurso e que um bom orador supera um pequeno general450, introduzindo, em seguida,
o discurso sobre César:

Mas, Bruto, disse Ático, a respeito de César, tanto penso como


ouço muito frequentemente de quem é profundo conhecedor do
assunto que entre quase todos os oradores ele fala o latim mais
elegante, e não só por um hábito familiar, como há pouco
ouvimos das famílias dos Lélios e dos Múcios, embora eu
acreditasse que fosse por isso também, como fosse completa a sua
glória oratória; no entanto, ele conseguiu, por meio de muitos
estudos, tanto os mais profundos como os mais refinados, e com
sumo esforço e diligência. 253. E, mesmo em meio a importantes
ocupações, a ti, disse, olhando para mim, com muito rigor
escreveu sobre o método oratório do bom latim e afirmou no
início do livro que a boa escolha das palavras era a origem da
eloquência; e, meu Bruto, conferiu ao nosso amigo, que preferiu
que eu e não ele falasse sobre aquele, um elogio singular. De fato,
depois de haver mencionado teu nome, escreveu nos seguintes
termos: “e se alguns são capazes de expressar claramente seus
pensamentos, que se empenharam no estudo e na prática, de cuja
copiosidade devemos considerar-lhe quase o primeiro inventor,
digno do nome e do prestígio diante do povo romano; conhecer

449
CÍCERO. Brutus, 232: (...) non me existimavi in hoc sermone usque ad hanc aetatem esse
venturum; sed ita traxit ordo aetatum orationem, ut iam ad minoris etiam pervenerim. (...) quam
quod gradus tuos et quasi processus dicendi studeo cognoscere.
450
Cf. CÍCERO. Brutus, 256.
184

essa linguagem fácil e cotidiana é algo que agora deve se deixar


de lado?”451

César elogia Cícero em sua obra, e, ao mesmo tempo, na obra de Cícero há um


elogio às habilidades oratórias de César. O bom latim falado por ele trata-se de um esforço
pessoal e não uma questão que era predominante na época. Nos tempos de Lélio e Cipião,
o bom latim, assim como a moral, era um costume mais difundido. “Mas, agora, quase
todos que não viveram fora da urbe falam corretamente, nem o deteriorou em um
barbarismo doméstico. Mas, sem dúvida, tanto em Roma quanto na Grécia essa situação
se deteriora pelo tempo”452. Ou seja, Roma já está velha e tanto a retórica quanto a moral
já se deterioraram. Cícero parece mostrar uma degeneração da língua que acontece pela
idade da urbe e pela influência estrangeira, pois, ao sair para guerrear e conviver com
costumes bárbaros, a língua pode se degenerar. Do ponto de vista da língua:

261. César, porém, recorrendo à razão, corrige o vicioso e


deteriorado uso com o uso puro e íntegro. Por isso, por um lado,
a essa diligência dos termos latinos – que, no entanto, é
necessária, embora orador não seja, mas seja um livre cidadão
romano – acrescenta os ornamentos da linguagem oratória; por
outro lado, é como se colocasse as telas bem pintadas em boa luz.
Enquanto obtém esse mérito notável entre as qualidades comuns,
não vejo a quem deva ceder. Possuiu um método oratório
esplêndido e que não se resume à experiência, e também de certo
modo magnífico e nobre na voz, no movimento, na forma. 262.

451
CÍCERO. Brutus, 252:Sed tamen, Brute, inquit Atticus, de Caesare et ipse ita iudico et de hoc
huius generis acerrumo existimatore saepissume audio, illum omnium fere oratorum Latine loqui
elegantissume; nec id solum domestica consuetudine ut dudum de Laeliorum et Muciorum familiis
audiebamus, sed quamquam id quoque credo fuisse, tamen, ut esset perfecta illa bene loquendi
laus, multis litteris et iis quidem reconditis et exquisitis summoque studio et diligentia est
consecutus:[253] Qui[n] etiam in maxumis occupationibus ad te ipsum, inquit in me intuens, de
ratione Latine loquendi accuratissume scripserit primoque in libro dixerit verborum dilectum
originem esse eloquentiae tribueritque, mi Brute, huic nostro, qui me de illo maluit quam se
dicere, laudem singularem; nam scripsit his verbis, cum hunc nomine esset adfatus: ac si, cogitata
praeclare eloqui <ut> possent, nonnulli studio et usu elaboraverunt, cuius te paene principem
copiae atque inventorem bene de nomine ac dignitate populi Romani meritum esse existumare
debemus: hunc facilem et cotidianum novisse sermonem nunc pro relicto est habendum?
452
CÍCERO. Brutus, 258: (...) sed omnes tum fere, qui nec extra urbem hanc vixerant neque eos
aliqua barbaries domestica infuscaverat, recte loquebantur. sed hanc certe rem deteriorem
vetustas fecit et Romae et in Graecia.
185

Bruto, então, disse: sim, seus discursos me agradaram muito. Li,


porém, só alguns; e ele também escreveu alguns comentários
sobre os seus feitos. – São realmente louváveis, acrescentei. Com
efeito, são desnudos, simples e elegantes, como se fosse retirada
a veste de todo ornamento do discurso. Mas, ao desejar que
estivesse à disposição de outros os elementos donde possam se
apropriar os que quiserem escrever história, fez talvez um bem
aos ineptos, que desejarão frisá-los com calamístros; é verdade
que dissuadiu homens sensatos de escrever; com efeito, nada é
mais agradável na história que a pura e clara brevidade. Mas, se
lhe apraz, voltemos àqueles que deixaram a vida 453.

Observamos que do ponto de vista moral não há elogio a César. O que ele faz
apenas é louvável do ponto de vista da oratória. Após falar de César, que é o mesmo que
falar do presente, voltam a falar do passado: “(...) De fato, tanto a recordação do passado
é amarga como ainda mais amargo é o futuro. Por isso, deixemos de lamentar e tão
somente exaltemos a qualidade que cada um possuía, já que investigamos isso” 454.
Podemos inferir que o futuro seria amargo, pois o presente estava sendo. Dessa forma, a
narrativa volta a Hortênsio:

301. Hortênsio, então, depois de começar a discursar no fórum


ainda jovem, rapidamente passou a defender as causas mais
importantes. E embora tivesse vivido na época de Cota e Sulpício,

453
CÍCERO. Brutus, 261: Caesar autem rationem adhibens consuetudinem vitiosam et corruptam
pura et incorrupta consuetudine emendat. itaque cum ad hanc elegantiam verborum Latinorum—
quae, etiam si orator non sis et sis ingenuus civis Romanus, tamen necessaria est—adiungit illa
oratoria ornamenta dicendi, tum videtur tamquam tabulas bene pictas conlocare in bono lumine.
hanc cum habeat praecipuam laudem in communibus, non video cui debeat cedere. splendidam
quandam minimeque veteratoriam rationem dicendi tenet, voce motu forma etiam magnificam et
generosam quodam modo.[262] Tum Brutus: orationes quidem eius mihi vehementer probantur.
compluris autem legi; atque etiam commentarios quosdam scripsit rerum suarum.
Valde quidem, inquam, probandos; nudi enim sunt, recti et venusti, omni ornatu orationis
tamquam veste detracta. sed dum voluit alios habere parata, unde sumerent qui vellent scribere
historiam, ineptis gratum fortasse fecit, qui volent illa calamistris inurere: sanos quidem homines
a scribendo deterruit; nihil est enim in historia pura et inlustri brevitate dulcius. sed ad eos, si
placet, qui vita excesserunt, revertamur.
454
CÍCERO. Brutus, 266: (...) nam et praeteritorum recordatio est acerba et acerbior exspectatio
reliquorum. itaque omittamus lugere et tantum quid quisque dicendo potuerit, quoniam id
quaerimus, praedicemus.
186

que eram dez anos mais velhos que ele, sendo os melhores Crasso
e Antônio, em seguida Filipo, depois Júlio, com eles era
comparado na glória oratória. (...)303. Era brilhante na escolha
das palavras, elegante na disposição, pleno de expressividade e
havia conseguido isso não apenas pelo excelente engenho mas
também com muitíssimos exercícios oratórios. Abarcava toda a
matéria na memória, dividia com agudeza e não deixava de lado
nada inerente à causa que pudesse fornecer ou à confirmação ou
à refutação. Possuía uma voz harmoniosa e suave, movimento e
gesto com mais arte do que era necessário a um orador. Então,
quando sua eloquência florescia, Crasso morreu, Cota foi exilado,
os tribunais suspensos pela guerra, e eu cheguei ao fórum. 304.
Hortênsio era soldado no primeiro ano da guerra, no seguinte,
tribuno militar, e Sulpício era legado455.

A guerra fez com que o espaço público do debate desaparecesse, pois os homens
tiveram que sair do fórum para irem às batalhas. Cícero, nessa época, chegou ao fórum,
ou seja, já chegou ao espaço público do debate em uma época em que este estava
esvaziado. O autor, então, introduz um argumento de falsa modéstia, dizendo que não
falará de si, mas dos outros, porém, faz um longo autoelogio, falando de sua formação
filosófica e moral, do direito civil, necessário às causas privadas, da história romana e da
sua capacidade argumentativa 456. Em seguida, volta a Hortênsio:

Por isso, quando Hortênsio já havia quase desvanecido, e eu, na


idade prevista, seis anos depois de seu consulado, havia sido
eleito cônsul, ele começou a retomar sua atividade, para que eu

455
CÍCERO. Brutus, 301: Hortensius igitur cum admodum adulescens orsus esset in foro dicere,
celeriter ad maiores causas adhiberi coeptus est; <et> quamquam inciderat in Cottae et Sulpici
aetatem, qui annis decem maiores <erant>, excellente tum Crasso et Antonio, dein Philippo, post
Iulio, cum his ipsis dicendi gloria comparabatur. (...) [303] Erat in verborum splendore elegans,
com positione aptus, facultate copiosus; eaque erat cum summo ingenio tum exercitationibus
maxumis consecutus. rem complectebatur memoriter, dividebat acute, nec praetermittebat fere
quicquam, quod esset in causa aut ad confirmandum aut ad refellendum. vox canora et suavis,
motus et gestus etiam plus artis habebat quam erat oratori satis. hoc igitur florescente Crassus
est mortuus, Cotta pulsus, iudicia intermissa bello, nos in forum venimus. [304] Erat Hortensius
in bello primo anno miles, altero tribunus militum, Sulpicius legatus;
456
Cf. CÍCERO. Brutus, 321-322.
187

não lhe parecesse superior em alguma coisa, já que nos


igualávamos na honra consular 457.

Hortênsio é o grande paradigma de Cícero na obra e o modelo com o qual Cícero


se compara, mas as épocas em que viveram influenciaram os trabalhos oratórios de cada
um. A eloquência de Hortênsio floresceu mais durante sua juventude do que na velhice,
e sua voz foi silenciada pela morte, já a de Cícero pela República 458:

(...) De fato, muitas vezes, lastimamos entre nós as desgraças


iminentes, quando víamos as motivações da guerra civil presentes
em ambições privadas, e estava excluída a esperança de paz pela
deliberação pública. Mas sua boa sorte, da qual sempre gozou,
parece tê-lo livrado com a morte das desventuras que se
sucederam. 330. Nós, porém, Bruto, já que depois da morte do
ilustríssimo orador Hortênsio, permanecemos, por assim dizer,
como tutores da eloquência órfã, guardemo-la no âmbito da casa,
protegida por um confinamento digno de uma pessoa livre,
repudiemos esses pretendentes desonrados e impudentes,
cuidemos de sua castidade de mulher adulta e a afastemos o
quanto pudermos da avidez de seus amantes. Quanto a mim,
lamento que, depois de iniciado um pouco tarde como que o
caminho da vida, antes que o itinerário fosse completado, eu tenha
caído nessa noite da república, todavia me sustenta aquela
consolação, Bruto, que você me proporcionou em suas
agradabilíssimas cartas, em que me aconselhava ser preciso
manter o ânimo forte, pois aquilo que eu havia feito, mesmo que
me calasse, por si só falariam por mim e sobreviveriam à minha
morte, feitos que, se se tomasse o reto caminho da salvação da

457
CÍCERO. Brutus, 323. Itaque cum iam paene evanuisset Hortensius et ego anno meo, sexto
autem post illum consulem, consul factus essem, revocare se ad industriam coepit, ne, cum pares
honore essemus, aliqua re superiores videremur.
458
CÍCERO. Brutus, 328.
188

república, se, do contrário, da sua própria ruína, testemunhariam


meus desígnios para a república459.

A paz deve ser conquistada por meio da eloquência no espaço público e não em
guerras, pois além de não trazerem a paz à urbe, as guerras esvaziam o espaço em que há
o debate. A eloquência, agora confinada no ambiente privado, tinha na elaboração de
cartas e de obras filosóficas o propósito de consolar Cícero. Tanto a eloquência quanto os
homens apenas estão livres no ambiente privado. Ademais, os feitos dignos de memória
realizados por Cícero para a salvação da República sobreviverão em obras, e apenas esses,
uma vez que a república pode ser arruinada pelas ações humanas. Dessa forma, há uma
relação direta entre o fim do espaço público e o aumento das guerras e da postura belicosa
dos generais, que fazem com que o espaço público se esvazie.

***

Enquanto em De Re Publica, II, observamos por meio da narrativa histórica uma


ideia de avanço e até de otimismo em relação à República, em Brutus, o que predomina
é a ideia do declínio da República, um temor em relação ao seu futuro, ou seja, uma visão,
por assim dizer, pessimista de Roma. O que é comum às duas narrativas históricas é que
não observamos uma concepção circular do curso dos acontecimentos. Não é possível
descrever em formas geométricas o que as narrativas retratam do ponto de vista temporal,
mas é possível afirmar uma não aderência de Cícero às formas circular e linear de
interpretação do tempo. Não há constância, não há repetição, não há intervalos iguais, há

459
CÍCERO. Brutus, 329: (...). saepe enim inter nos impendentis casus deflevimus, cum belli
civilis causas in privatorum cupiditatibus inclusas, pacis spem a publico consilio esse exclusam
videremus. sed illum videtur felicitas ipsius, qua semper est usus, ab eis miseriis, quae consecutae
sunt, morte vindicavisse. [330] Nos autem, Brute, quoniam post Hortensi clarissimi oratoris
mortem orbae eloquentiae quasi tutores relicti sumus, domi teneamus eam saeptam liberali
custodia, et hos ignotos atque impudentes procos repudiemus tueamurque ut adultam virginem
caste et ab amatorum impetu quantum possumus prohibeamus. equidem etsi doleo me in vitam
paulo serius tamquam in viam ingressum, priusquam confectum iter sit, in hanc rei publicae
noctem incidisse, tamen ea consolatione sustentor quam tu mihi, Brute, adhibuisti tuis suavissimis
litteris, quibus me forti animo esse oportere censebas, quod ea gessissem, quae de me etiam me
tacente ipsa loquerentur viverentque mortuo; quae, si recte esset, salute rei publicae, sin secus,
interitu ipso testimonium meorum de re publica consiliorum darent.
189

uma sucessão de acontecimentos, de ações humanas, segundo o juízo de cada homem, o


que pode conduzir a República ao avanço ou à decadência.
190

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra ciceroniana não parece, em nenhum momento, preocupada em se filiar a


autores ou a escolas para pensar a filosofia e a história – talvez essa seja uma necessidade
apenas nossa. Cícero se serve do vasto conhecimento recebido para pensar seu tempo, sua
República, Roma.

Com a retórica presente em toda a sua obra, seja nos diálogos filosóficos, nos
discursos e nas narrativas históricas, Cícero traz complexidade à obra ao colocar as
discussões dos diálogos filosóficos no passado, ao fazer discursos para serem
testemunhos e ao elaborar narrativas históricas no interior de obras dialógicas. Talvez ele
faça algo incomum, do ponto de vista da forma, pois particulariza a filosofia com os
exemplos históricos e universaliza a narrativa histórica com argumentos políticos e
morais, principalmente quando se refere à natureza humana.

É o homem de ação, o sábio, que é o político e, por conseguinte, o paradigma de


ação mais retratado nos exemplos e narrativas históricas. Ele tem liberdade para agir e
por isso pode salvar a República romana do declínio. Justamente por atribuir liberdade à
ação humana, Cícero nega as visões circulares, seja da filosofia, seja da história, do curso
dos acontecimentos em Roma. Assim, as ações não são predeterminadas nem obedecem
a uma ordem necessária. Por meio de um sujeito capaz de agir segundo sua própria
consciência, por assim dizer, sua singularidade, observamos suas ações políticas, sua
relação com o tempo, com a ciuitas e a República. A narrativa dos acontecimentos deixa
transparecer a consciência do curso dos acontecimentos.

Quando falamos de política, falamos de algo que é parte da natureza humana, assim
como a história, mas a ação política é anterior à narrativa. A história retratada tanto nos
exemplos quanto nas narrativas, na obra ciceroniana, é tão filosófica quanto a política.
Não se trata de ter o domínio dos acontecimentos exteriores aos homens, mas das ações
humanas, centradas na liberdade da vontade, que tornam os homens capazes de enfrentar
as questões da vida pública.

Cícero rompe com a suposta tradição de pensamento circular atribuída a autores


antigos. Do ponto de vista da teoria da ação, faz essa ruptura ao negar o destino estoico,
a pré-determinação fatalista, a conflagração e ao dar espaço para a liberdade da vontade
na ação humana. Políticamente, ele nega a teoria da anaciclose, podendo o processo de
191

degeneração e regeneração das formas de governo ser aleatório e segundo as ações e a


moral de quem governa. Historicamente, em De Re Publica, II, ele demonstra que não
há uma circularidade no curso dos acontecimentos, ao contrário, há um declínio e depois
a ascenção para uma forma de governo que não faz parte do ciclo, isto é, em Roma houve
monarcas, um tirano e depois a forma republicana. Em Brutus, também não observamos
circularidade, mas a decadência da retórica como o fim do espaço público para o debate.
Assim, a obra ciceroniana está aberta para pensar a situação política romana, do final do
século I a.C., em um período de declínio. Cícero queria salvá-la por meio da
fundamentação ético-política-histórica. Se a política do passado fosse resgatada, Roma
se salvaria. Com o resgate da moral e da política, haveria uma repetição, mas não a
circularidade.

Ao tratar da política seja nos diálogos filosóficos, seja nos discursos, seja
retratando-a em narrativas históricas, manifesta também sua concepção do tempo, do
curso dos acontecimentos em Roma: o passado, a época de Cipião como um período
glorioso e o seu tempo, o presente, como algo decadente, sem o espaço público para o
debate, o diálogo.

Os diálogos filosóficos nos ensinam principalmente sobre o curso da vida dos


homens e como eles se relacionam com a política; as narrativas históricas descrevem tanto
o curso da vida dos homens quanto sobre o curso da República; e, os discursos analisados
aqui são como testemunhos, monumenta, que Cícero deixa como prova de seu tempo e
de seus feitos para a posteridade.

Se a narrativa histórica, a recuperação de diálogos na memória e a sua transmissão


são questões importantes e que perpassam todas as obras analisadas, estamos diante da
importância da memória como faculdade da alma e da recuperação de eventos passados
para a vida de seus contemporâneos. Por serem narrativas históricas basicamente da vida
civil, Cícero destaca a singularidade das ações humanas. As ações coletivas ficam mais
restritas aos feitos militares e às ações do senado; e apesar das ações do senado fazerem
parte da vida civil, o autor geralmente rememora as ações de senadores específicos e não
do corpo colegiado.

A transitoriedade da história, do curso dos acontecimentos foi tanta que Cícero não
pôde salvá-la com sua capacidade prudencial. Os homens possuem um tempo de vida
pequeno se comparados à República, então devem agir com alguma rapidez para que as
instituições sejam sólidas e permaneçam.
192

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